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Rio de Janeiro
2010
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Categoria: Processo Penal

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário

Prefácio ....................................................................................................................... ix
Rubens R R Casara
Apresentação ............................................................................................................. xvii

1ª Parte

O Arrependimento Posterior e os Crimes Violentos ............................................ 3


A Prisão Decorrente de Sentença Condenatória Recorrível................................ 9
O Direito ao Silêncio ................................................................................................. 25
Duplo grau de jurisdição no processo penal brasileiro: visão a partir da ConB
venção Americana sobre Direitos Humanos em Homenagem às idéias de
Julio B. J. Maier...................................................................................................... 35
Da Lei de Controle do Crime Organizado: crítica às técnicas de infiltração e
escuta ambiental ................................................................................................... 47
Cidadania e Crime .................................................................................................... 59
La reforma del proceso penal en Brasil.................................................................. 63
Da delação premiada: aspectos de direito processual ......................................... 71
Entre a teoria e a prática... ou a luta pelo Estado de Direito ............................... 79
Tribunal do Júri: propostas e alternativas ............................................................. 83
Dispositivos legais desencarceradores: o óbice hermenêutico ........................... 93
Geraldo Prado
Rubens R R Casara
Sobre Procedimentos e antinomias ........................................................................ 99
A Transação Penal quinze anos depois .................................................................. 103
Crônica da Reforma do Código de Processo Penal brasileiro que se inscreve
na disputa política pelo sentido e função da Justiça Criminal....................... 109
Sobre o Projeto de Código de Processo Penal: o habeas corpus............................ 123
Poder Negocial (sobre a pena), Common Law e processo penal brasileiro: MeB
ta XXI, em busca de um milhão de presos!? ..................................................... 137
A Defensoria Pública e o Direito Processual Penal brasileiro............................. 157

v
Afrânio Silva Jardim: lecionar pelo exemplo ........................................................ 169
Processo Penal e Estado de Direito no Brasil: Considerações sobre a fidelidaB
de do juiz à lei penal ............................................................................................ 177

2ª Parte

Embargos Infringentes: Machado de Assis e a oportunidade da Justiça .......... 203


Presunção de Inocência e nemo tenetur ................................................................... 216
Prova ilícita: o “Caso das Inglesas” ........................................................................ 224
Prova ilícita: inviolabilidade do domicílio ............................................................ 247
Proibição da prova emprestada .............................................................................. 257
Identidade física do juiz ........................................................................................... 270
O devido processo legal e a mutatio libelli.............................................................. 284
Suspensão condicional do processo e crime tentado ........................................... 289
Da resposta preliminar e do direito à entrevista prévia do preso ..................... 295
O contraditório prévio e a Lei nº 11.719/08 ........................................................... 316
Falsas Memórias ........................................................................................................ 325
Denúncia anônima .................................................................................................... 333
Desaforamento e o juiz natural ............................................................................... 345
Incriminação de vendedores ambulantes e o devido processo legal ................ 355
Constituição definitiva do crédito tributário ........................................................ 359
A perda superveniente do interesse: prescrição em perspectiva ....................... 366
Negligência: evento no trânsito .............................................................................. 371
Direção sob influência de álcool e lesividade ....................................................... 377
Fraude civil e fraude penal: distinção .................................................................... 386
Tráfico de drogas, redução da pena e cabimento do sursis: proporcionalidade ... 392
Roubo com emprego de arma ................................................................................. 410
Roubo: pena e proporcionalidade .......................................................................... 416
Criminologia Crítica: posse de drogas, princípio da lesividade e outras questões .. 424
Execução penal e o direito de visita à família ....................................................... 447
Psiquiatrização da execução penal ......................................................................... 452
Livramento condicional: controvérsia sobre o prazo para revogação .............. 462

vi
Execução penal: progressão, falta grave e cálculo da pena ................................ 469
Nemo tenetur e direito à imagem ........................................................................... 476
Direito à prova e oralidade ...................................................................................... 480
Crime de receptação e interpretação conforme a Constituição .......................... 492
Chamada de corréu e supressão hipotética do inquérito policial...................... 498
Prescrição em medida de segurança ...................................................................... 503

vii
Prefácio
Rubens R R Casara1

“O sonho vale uma vida?


Não sei. Mas aprendi
da escassa vida que gastei:
a morte não sonha”.
(Pedro Tierra)

É difícil escrever um prefácio. TrataBse de um discurso introdutório,


embora paralelo, produzido em razão de um texto que o antecede; um préBtexto
que possui uma clara vocação: passar despercebido à maioria dos leitores. Não
se pode culpar o leitor que, como recomenda Frei Be[o, prefira “ir direto ao
texto e avaliáBlo por sua qualidade intrínseca e não pelos confetes jogados pelo
prefaciador”.2 Os prefácios são funcionais à obra literária da mesma forma que
a entrada serve ao prato principal da refeição, ou seja, destinamBse a ser um rito
de passagem, não necessário, ao deleite produzido pela leitura.3 Por sorte, os
prefácios têm um valor de realização autônomo e, portanto, não interferem no
sucesso do texto subseqüente.
Como percebeu Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, o prefácio é “metade
razão, metade coração”4, diz tanto do prefaciador quanto da obra prefaciada.
Há, ao prefaciar, o necessário reconhecimento da presença do outro (o outro que
é o autor do texto principal, o outro que será o leitor da obra e o outro, o nãoB
leitor, o excluído da leitura, mas que pode figurar como beneficiado das lições
do autor) Há, sobretudo, sempre um terceiro, o grande Outro, que é constitutivo

1 Juiz de Direito do TJ/RJ, Doutorando em Direito pela UNESA/RJ, mestre em Ciências Penais pela
UCAM/ICC, professor de processo penal do IBMEC/ICC, membro da Associação Juízes para a
Democracia (AJD), do Movimento da Magistratura pela Democracia (MMFD), do Law Enforcement
Against Prohibition (LEAP) e do Campo Freudiano – Seção Rio de Janeiro.
2 CHRISTO, Carlos Alberto Líbano. Prefácios. São Paulo: mimeo.
3 Algumas vezes, nos melhores restaurantes, a entrada acaba por facilitar a digestão dos próximos
pratos ou estimular o apetite.
4 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Nota do autor. In Temas de direito penal e processo penal
(por prefácios selecionados). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. ix

ix
da posição do sujeito, no caso o prefaciador, enquanto alguém capaz de se
comunicar5. O Outro que é inconsciente, que ocupa o lugar do significante, o
registro do simbólico6, aquilo que é pura alteridade capaz de fazer com que o
sujeito diga sem saber o que e por que está dizendo.7
Ao prefaciar “Em torno da jurisdição”, novo livro do Professor Geraldo
Prado, ciente de que pelas brechas da razão transborda afeto, buscarei indicar
estratégias, estimular possibilidades, fornecer informações e fazer sugestões
de leituras complementares que apontem (e a palavra é sempre um caminho)
e ajudem na compreensão8 do eixo que dá coerência ao projeto do autor9: a

5 LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente; trad. Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 186.
6 Para uma introdução ao grande Outro lacaniano: JORGE, Marco Antônio Coutinho. Fundamentos
da psicanálise de Freud a Lacan: as bases conceituais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 92.
7 Como uma introdução ao conceito lacaniano de inconsciente: NASIO, J.BD. Cinco lições sobre a
teoria de Jaques Lacan; trad. Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, pp. 49B83; QUINET,
Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
8 A compreensão identificaBse com a interpretação e “nunca é apreensão de um dado preliminar,
isenta de pressuposições” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo; trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback.
Petrópolis, Vozes, p. 211) Ao compreender um texto, o leitor, imerso em uma tradição, projetaBse.
Com Heidegger, e aqui peço licença ao Geraldo para, neste particular, não levar em consideração
o passado nacionalBsocialista do professor de Freiburg (para uma breve introdução ao tema:
COLLINS, Jeff. Heidegger e os nazistas; trad. Fernanda Gurgel. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006;
LYOTARD, JeanBFrançois. Heidegger e os judeus; trad. Ephraim F. Alves. Petrópolis, 1994), podeB
se afirmar que “tudo o que está à mão sempre já se compreende a partir da totalidade estrutural”
(HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo; trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, Vozes, p. 211)
e no “projetarBse do compreender, o ente se abre em sua possibilidade” (HEIDEGGER, Martin. Ser
e tempo; trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, Vozes, p. 212). Assim, o sentido do texto
acaba por se revelar a perspectiva “na qual se estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia
e concepção prévia” ((HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo; trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback.
Petrópolis, Vozes, pp. 212B213), capaz de possibilitar que algo se torne compreensível como algo.
9 Projeto que em outra oportunidade chamei de “Geraldino”. Isso porque “nas crônicas de Nelson
Rodrigues que retratavam o mundo do futebol (...) nasceu a expressão ‘geraldinos e arquibaldos’.
Em oposição aos ‘arquibaldos’, os bem comportados ocupantes das arquibancadas dos estádios
de futebol, espaço da burguesia e dos torcedores mais conservadores, aparecem os ‘geraldinos’,
representantes das classes subalternas, o povo que só comprava ingresso para assistir aos jogos em
pé ‘na geral’, locus dos personagens mais irreverentes, criativos e combativos. Também inspirado no
clima dos estádios de futebol, e do Maracanã em particular, Luís Gonzaga do Nascimento Júnior, o
Gonzaguinha, compôs ‘Geraldinos e Arquibaldos’, letra e música com forte conotação política, que
através da metáfora do futebol retrata o comportamento do brasileiro em meio ao jogo da vida (‘E
esse jogo tá um osso/ É um angu que tem caroço’) que se desenvolve ‘no campo do adversário’. Por
evidente, o paralelo entre ‘geraldinos’ e ‘arquibaldos’ remete ao confronto entre grupos políticos
nascidos da Revolução Francesa, os Jacobinos e os Girondinos, a esquerda e a direita, aqueles que
lutam para mudar e os que se conformam com o status quo. Na arena jurídica, Geraldo Prado nunca
deixou dúvidas: sempre foi um inconformado com a injustiça social, com o processo de exclusão/
extermínio de parcela da sociedade. Com a coerência daqueles que sabem que, sob certo aspecto, a
divisão entre teoria e prática é artificial, Geraldo forjou sua produção, tanto na academia quanto nos
órgãos judiciais em que atuou, a partir de um compromisso com o ‘outro’, com a diferença, com
‘os de baixo’, com aqueles que criativos, combativos e, por vezes, até irreverentes, lutam em meio
às adversidades para (sobre)viver. Em suma, Geraldo Luiz Mascarenhas Prado, em suas sentenças,
acórdãos e livros, produziu textos geraldinos” (CASARA, Rubens R. R.; LIMA, Joel Corrêa. Textos

x
concretização do Estado de Direito. Não pretendo resumir nem desenvolver o
conteúdo da obra e muito menos utilizar este espaço para reafirmar a identidade
de princípios (e sonhos) que me aproximam do autor. Por outro lado, desde já,
confesso que neste prefácio pretendo transgredir as normas de objetividade que
a razão ocidental estabeleceu para os textos científicos.
A obra em questão é uma coletânea de textos, votos e artigos, que miram
na concretização do Estado de Direito. Os artigos, produzidos entre 1995 e 2010,
revelam a trajetória intelectual do autor, seus referenciais teóricos e a articulação
de saberes que passam entre, além e através do direito (histórico, antropológico,
filosófico, etc). Os votos, marcados pelo respeito à pessoa, confirmam a percepção
multifacetada do julgador acerca dos acontecimentos postos à sua apreciação.
Não por acaso, os textos do Professor Geraldo Prado são recheados de citações
que vão do erudito à sabedoria popular.10
Sob certo aspecto, Geraldo Prado é um autor trágico. RegistreBse que
tragédia (ao menos no sentido empregado por Friedrich Nietzsche) não se
confunde com o pessimismo. A tragédia é uma maneira de afirmar a vida em
todas as suas perspectivas, o drama e o sorriso. O texto de Geraldo Prado não
esconde a tristeza e a violência cotidianas, nem a responsabilidade do Estado
e de seus agentes pelo sofrimento causado tanto à vítima quanto ao infrator.
Sem a tragédia há o adormecimento, a perda da capacidade de indignação e a
naturalização do sofrimento humano.
Bem, a primeira sugestão aos leitores de Geraldo Prado é simples: necessário
se faz sempre, e sempre, contextualizar a produção de cada texto, tanto dos
artigos quanto dos votos. Aliás, nenhum texto existe sem o pertencimento do
autor a um determinado tempo e lugar. Comunidades constroem ao longo dos
anos tradições que condicionam a atuação de seus membros, um “repertório
comum de saber que perdura temporalmente e dá aos membros da comunidade
os referenciais e os parâmetros a partir dos quais indivíduos dão sentido ao
mundo ao seu redor”11. Cada conceito retirado da ciência jurídica, também as
correntes filosóficas, o senso comum, o saber popular, as representações coletivas
e os demais saberes encontrados na sociedade têm uma história e, mais do que
isso, uma funcionalidade política (política, aqui, entendida como estratégia
direcionada ao exercício do poder).

geraldinos: uma breve apresentação. In Temas para uma perspectiva crítica do direito: homenagem
ao Professor Geraldo Prado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010).
10 Um bom exemplo pode ser encontrado no voto que compõe esta obra e versa sobre “Embargos
infringentes: Machado de Assis e a oportunidade da justiça”.
11 JOVCHELOVITCH, Sandra. Os contextos do saber: representações, comunidade e cultura; trad.
Pedrinho Guareschi. Petrópolis, 2008, p. 137.

xi
Os artigos e decisões do Prof. Geraldo Prado têm um compromisso
com a facticidade (nesse particular, por fugir de idealizações e abstrações
generalizantes, o autor revelaBse pósBmetafísico). Há, porém, um elemento
comum e condicionante de toda a produção do autor: a sociedade brasileira, isto
é, uma sociedade periférica de capitalismo tardio com profundas desigualdades
sociais, na qual os indivíduos das classes subalternas são tratados como objetos
descartáveis e o poder penal é exercido como forma de controle dessa população
que não interessa à sociedade de consumo.12 13 14
PodeBse, portanto, afirmar que esse livro não existiria se as promessas
constitucionais estivessem concretizadas,15 se as práticas processuais penais se
aproximassem do deverBser constitucional. Não obstante a opção constitucional
pelo sistema acusatório16, as permanências inquisitoriais17 continuam a reforçar
o autoritarismo com o qual se acostumou parcela considerável da sociedade

12 Vale, sobre esse ponto, verificar o artigo em que figuro como coBautor: “Dispositivos legais
desencarceradores: o óbice hermenêutico”.
13 Basta conferir, por exemplo, o que consta dos votos que versam sobre “Incriminação de vendedores
ambulantes e o devido processo legal”, “Tráfico de drogas, redução da pena e cabimento do
sursis: proporcionalidade”, “Roubo: pena e proporcionalidade” e “Criminologia Crítica: posse de
drogas, princípio da lesividade e outras questões”, bem como dos artigos “Cidadania e crime” e
“Processo penal e estado de direito no Brasil: considerações sobre a fidelidade do juiz à lei penal”
para perceber que o autor concorda com o diagnóstico de Nilo Batista de que os presídios e casas de
custódia têm sido utilizados como um grande plano habitacional para a pobreza.
14 SabeBse que o processo de criminalização da pobreza não é recente, mas se acentuou com a revolução
tecnológica, na qual se deu a diminuição da importância do trabalhador no processo de produção,
com a substituição do componente humano por procedimentos automatizados de produção. A
razão instrumental foi utilizada primeiramente para dominar completamente o homem e, em um
segundo momento, para descartáBlo. Assim, ao mesmo tempo em que o processo de produção perdia
seu caráter social, com a ruptura do precário pacto entre as classes sociais, surgia a necessidade de
controlar a pobreza, como forma de manter a estrutura capitalista. Uma vez que parcela considerável
da população deixou de gozar dos meios necessários à satisfação de suas necessidades, inclusive
aquelas criadas (artificialmente) pela própria sociedade, os detentores do poder político (que, na
história do Brasil, quase sempre se identificaram com os detentores do poder econômico) passaram
a adotar estratégias de contenção dessas pessoas que colocavam em risco o discurso farsesco da
possibilidade de um estado de paz perpétua entre os ricos (e muito ricos) e os pobres (e muito
pobres), todos “máquinas desejantes” (GUATTARI, Félix; DELEUZE, Gilles. O Anti-Édipo:
capitalismo e esquizofrenia; trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010) em um espaço no
qual os objetos de desejo são finitos. Geraldo conhece essa história, as razões pelas quais se aposta em
punir os pobres e, em seus textos, denuncia a farsa que pretende fazer do sistema penal o principal
instrumento de manutenção do status quo.
15 Em artigos como “A prisão decorrente de sentença condenatória recorrível”, “O direito ao
silêncio”, “Duplo grau de jurisdição no processo penal brasileiro: visão a partir da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos em homenagem a Julio B. J. Maier” e “A Defensoria Pública e
o direito processual penal brasileiro”, o leitor poderá perceber a gestação de uma dogmática crítica
adequada ao projeto constitucional.
16 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
17 Sobre a lógica das permanências autoritárias: MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the
brazilian lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

xii
brasileira (aqueles mesmos “homens de bem” 18 que clamam por mais repressão
para os outros, pela restrição das garantias dos outros etc). As distorções e
perversões propiciadas pela subsistência do Código de Processo Penal de 194119,
bem como a necessidade de sua reforma, também aparecem em diversos artigos
desta coletânea. O autor propõe mudanças estruturais, capazes de adequar o
processo penal à Constituição, ou seja, que possibilitem um processo de partes,
com a Agência Judicial afastada da gestão das provas, sem descuidar das
garantias fundamentais do indivíduo, verdadeiras condições de legitimidade
do sistema judicial20.
É curioso também perceber como o magistrado Geraldo Prado, em seus
votos, desvela e desconstrói a epistemologia autoritária que aposta em concepções
substancialistas do direito penal (o delito enquanto em si mesmo imoral), na
confusão entre direito e moral (crime e pecado), em tipos de autor (tätertyp),
em decisionismos processuais, em perversões inquisitoriais, na tentativa de
reduzir o princípio da presunção de inocência à mera nãoBculpabilidade e na
mitológica verdade real.21 22 Vale reparar, ainda, na forma como o autor supera o
intelectualismo seco e pretensamente neutro (não há, salvo ingenuidade ou máB
fé, mais espaço para “neutralidades científicas”).
Recomendo também aos leitores que notem a coerência entre os artigos
(teorizações) e os votos (prática) do autor. Para além da honestidade intelectual,
os textos que compõem este livro servem de objeto para considerações acerca do
papel do intelectual do direito.
Em primeiro lugar, os textos permitem afirmar que o autor percebe o
artificialismo da distinção entre teoria e prática (poderBseBia falar, lacaneanamente,
em uma teoriaprática). Geraldo Prado encarna o intelectual orgânico23 de
transformação, aquele que de dentro da estrutura estatal busca transformar o
Estado. Intelectual que, seguindo a tradição inaugurada por Marx, não se limita

18 Sobre a desconstrução do “mito do bem e do mal” é indispensável a leitura de Alessandro Bara[a


(BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do
direito penal; trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997, pp. 59B67).
19 Produto legislativo da ditadura do Estado Novo, inspirado no Codice Rocco da Itália fascista, de 1930.
20 Vale conferir: “La reforma del proceso penal en Brasil”, “Tribunal do Júri: propostas e alternativas”,
“Sobre Procedimentos e antinomias”, “A Transação Penal quinze anos depois”, “Crônica da
Reforma do Código de Processo Penal brasileiro que se inscreve na disputa política pelo sentido
e função da Justiça Criminal”, “Sobre o Projeto de Código de Processo Penal: o habeas corpus” e
“Poder Negocial (sobre a pena), Common Law e processo penal brasileiro: Meta XXI, em busca de
um milhão de presos!?”.
21 Sobre a epistemologia autoritária, vale a leitura de: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: a teoria do
garantismo penal; trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 35B37.
22 Vale observar o voto que versa sobre “Falsas memórias”.
23 Sobre o conceito de “intelectual orgânico”: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volumes I e II.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

xiii
ao trabalho conceitual (que abandonou as abstrações generalizantes próprias do
paradigma liberalBindividualista). Geraldo sabe que a teoria que não se destina
à transformação da sociedade é estéril.
Segundo: o autor tem consciência de que os espaços que ocupa tanto na
academia quanto no Poder Judiciário são espaços de poder. Saber é poder.24
Geraldo exerce esse poder e produz preocupado com as conseqüências do
conjunto de práticas voltadas à conquista e manutenção do poder político. Em
diversas passagens, “Em torno da jurisdição” possibilita ao leitor acompanhar
as estratégias do autor, jurista e magistrado, para desmascarar os mecanismos
de dominação maquiados pela ideologia dominante e então superáBlos a partir
da Constituição.
Ademais, esperaBse do intelectual do direito a coragem para, em seu ofício
de dar concretude ao projeto constitucional, se manifestar em sentido contrário
às maiorias de ocasião25, muitas vezes forjadas pela opinião publicada pelas
grandes empresas de comunicação (no Brasil, como lembra o Juiz e Cientista
Político João Batista Damasceno, a liberdade de imprensa não raro se confunde
com a “liberdade – o abuso – de empresa”). Os direitos fundamentais funcionam
como trunfos contra a maioria, mas necessitam de intérpretes que não cedam à
tentação populista ou que, atraídos pelas câmeras de televisão, esqueçam do seu
compromisso com a Constituição da República.
O intelectual no campo jurídico deve ao interpretar a lei procurar desvelar
seus preconceitos, atentar que no processo hermenêutico entra a questão da
consciência história e reconhecer que o objetivismo é uma ilusão (em suma,
a compreensão do intérprete deve ser entendida como um ato da existência).
Geraldo Prado, mesmo desconfiado das potencialidades e funcionalidades do
linguistic turn (já que, como constata Nilo Batista, “as palavras não sangram”26),
ao interpretar o mundo e produzir seus textos se interpreta, projeta um por vir
democrático em meio à tradição autoritária, se contextualiza, sabe que somos
seresBparaBaBmorte27, que a angustia é constitutiva, mas aposta na vida com
o reconhecimento do Estado de Direito como o locus adequado à redução do
sofrimento causado pelo poder penal.
Por fim, com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Alexandre Morais
da Rosa, dentre tantos outros, acredito que vale insistir na psicanálise como

24 Sobre o tema: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder; trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Graal, 1997,
25 Vale conferir um voto proferido em meio à comoção midiática: “Prova ilícita: o “Caso das Inglesas”.
26 Em eBmail dirigido a este prefaciador e aos professores Geraldo Prado e Salo de Carvalho.
27 UtilizaBse aqui de mais uma categoria heideggariana.

xiv
parte do instrumental indispensável para se entender as decisões judiciais e a
insistência de muitos atores jurídicos em negar o potencial transformador da
Constituição. Impossível, portanto, ao intelectual do campo jurídico deixar de
reconhecer que as pulsões (sexo e morte) são o motor do psiquismo (e, portanto,
existem em todos nós) e que neuroses, esquizofrenias, histerismos e perversões
são encontrados tanto nos acusados quanto nos julgadores. Não é mais possível
fechar os olhos para a peste trazida para o direito pela psicanálise28.
Enfim, “Em torno da jurisdição”, livro que chega às livrarias pelas mãos do
editor João Luiz Almeida, é a oportunidade de apreciar em uma única obra como
foi se forjando o pensamento de Geraldo Prado, um dos principais pensadores
do processo penal da América Latina. Mas, antes de tudo, é uma convocação para
que se reflita sobre a importância da jurisdição na construção da democracia. A
jurisdição é um saberBpoder, é cognitio e auctoritas, saber e força29: Geraldo Prado
nos ensina que a democracia (entendida como a soma da participação popular
com a realização dos direitos fundamentais) depende do saber/conhecimento
atuar como limite aos atos de força/autoridade. Diante desse quadro, “Em torno
da jurisdição” é uma contribuição relevante para a construção de um saber
democrático e democratizante capaz de evitar a opressão e comprometido com
a construção de uma nova sociedade. Parabéns aos afortunados leitores.

28 Em uma conferência nos EUA, em 1909, Freud teria dito a Jung, a propósito da psicanálise: “eles não
sabem que lhes estamos a trazer a peste?”.
29 Sobre o tema: BINDER, Alberto. Política criminal: de la formulación a la práxis, Buenos Aires: AdBHoc,
1997.

xv
Apresentação

Voltar ao tema da Jurisdição. Esse tem sido o caminho escolhido para se


prestar a devida homenagem à função de julgar, em um mundo de conflitos
e controvérsias em que, pelo exercício da jurisdição, persegueBse a superação
destes conflitos com o menor custo social possível.
Assim procedeu, em 1971, Alberto Candian, ao publicar, por iniciativa
da Faculdade de Direito de Gênova, a obra “Tornare alla giurisdizione”, do
mestre Gaetano Foschini, em homenagem ao autor/professor, emérito docente
napolitano de processo penal, que encerrou sua carreira no magistério em
Gênova. Sem dúvida a obra reverenciava também à função jurisdicional em si
mesma, função a que Foschini dedicara grande parte de sua vida.
Não por coincidência este é, igualmente, o título da obra de Perfecto Andrés
Ibañez.
Este admirado e admirável jurista espanhol, que está mais próximo do nosso
público latinoBamericano nos dias atuais, e cujo compromisso com a democracia
constitui fonte permanente de inspiração, acentua em seu “En torno a la jurisdicción”
que, se é verdade que os direitos padecem em consequência do exercício prevaricador
do poder, não é menos verdade que, nas democracias pósBfascismos, há necessidade
do poder da jurisdição para conter estes mesmos abusos.
Citando Luigi Ferrajoli, Perfecto Andrés Ibañez literalmente sublinha que
“é mérito das constituições nascidas da vitória sobre os nazifascismos haverB
se dotado do instrumento jurídico idôneo para superar esta contradição [o
poder para conter abusos do poder]”. Acrescenta o jurista e juiz espanhol que
a Constituição, ao assumir o lugar mais alto da pirâmide kelseniana, dotandoBa
de uma esfera superior, que cuida do ‘dever ser do direito’, sujeita todos os
momentos do exercício do poder à legalidade constitucional.
Sem dúvida de que não se trata de tarefa fácil. Ao revés, em sociedades de
massas, em que o volume dos problemas corresponde ao aspecto gigantesco de
sua configuração, e que são atravessadas por desafios contemporâneos que, para
citar apenas um exemplo, expressam a apropriação (e exploração) simbólica
da questão criminal pelos meios empresariais de comunicação, manipulando
sentimentos e reações coletivas em proveito da manutenção de um status de
profunda diferenciação social, julgar com a Constituição da República pode ser
julgar “contra a opinião pública”.

xvii
Em pequenos grupos sociais, integrados por laços econômicos, sociais,
políticos e afetivos, a explicitação dos motivos pelos quais os direitos são proB
tegidos dessa ou daquela maneira, e não conforme a “vontade da maioria” é
viável e talvez eficiente para assegurar a base de legitimação do exercício da
jurisdição. TrataBse de compartilhar a crença nos valores forjados especialmente
nos três últimos séculos, no Ocidente, e pela proteção dos direitos fundamentais
reafirmar o padrão ético que deve orientar a vida em sociedades plurais, deB
sencantadas com a promessa da “paz absoluta”, que em verdade é a “paz
dos cemitérios”, mas seguras de que a administração dos conflitos por via da
jurisdição, com escrupuloso respeito aos direitos fundamentais, ergueBse como
barreira contra abusos historicamente constatados. Há um “dado real”, da vida
cotidiana, nos abusos de poder, que somente a avaliação distanciada (no tempo
e, às vezes, no espaço) permite notar. E o caráter didático da jurisdição opera
mais vivamente em grupos sociais em que as pessoas se conhecem, onde agentes
e vítimas são personagens que dividem histórias e compartilham tradições.
Os grandes núcleos populacionais contemporâneos, no entanto, não estão
unidos por laços da mesma ordem, digaBse de natureza pessoal. O sentimento
difuso de pertencimento à mesma classe ou grupo social é moldado de outra
matéria. O interesse (ou desinteresse) pela sorte do “próximo” é ditado pela
consciência igualmente difusa de que não há qualquer pessoa fora do círculo
íntimo, quase sempre constituído pelos familiares unidos por laços mais
estreitos, a merecer que se considere sua “pessoalidade”, isto é, sua humanidade
com tudo o que é peculiar a esta condição.
Daí o autoritarismo como expressão de um mundo “representado” nas
subjetividades dominantes, que cresce no solo fértil da intolerância, da inB
transigência. Este autoritarismo respira na atmosfera do “presenteísmo”, de um
eterno “tempo presente” que repudia a história das formações sociais e políticas
e despreza o contexto em prol da coexistência em um ritmo e sob as condições
que favoreçam o individualismo possessivo.
Para uma vida nessas circunstâncias, as contradições entre o discurso
ético e as práticas pessoais antiéticas são questões menores, até certo ponto
desprezíveis.
A retórica da generosidade cede ante a prática de tolher direitos para conter
as grandes massas populacionais de excluídos que reivindicam direitos que a
Constituição promete a todos, sem exceção.
E a jurisdição penal converteBse em um dos campos de disputa entre ambas
as visões de mundo.

xviii
Decidir contra a vontade da maioria, em determinados casos, passa a ser
considerado algo “quaseheróico”. Esta, porém, é uma das contingências da
jurisdição. Julgar contra a vontade da maioria nos casos em que esta vontade
dirigeBse contra os direitos fundamentais assegurados a todos.
Em uma democracia, e o Brasil é uma democracia política, não há lugar
para “julgar conforme a vontade sadia do povo” em detrimento dos direitos
fundamentais, que são barreiras a esta vontade orientada à supressão das miB
norias ou à opressão dos grupos e classes sociais mais frágeis, pelos mais
poderosos, política ou economicamente.
Este livro reúne experiências judiciais, por meio de votos, e reflexões
jurídicas, manifestadas em artigos, em virtude das quais se pretende homenagear
a jurisdição criminal no Brasil.
TrataBse de acreditar que é possível decidir na seara criminal com a ConsB
tituição, mesmo que se prescinda do acordo com a opinião pública. As decisões
contramajoritárias são, também, formadoras de opinião, ao menos no nível de
formação dos profissionais do direito que, pelo suar do duro exercício diário
de suas atividades, transmitem valores e argumentos que pesam, influenciam
e estimulam a configuração de redes sociais que ocupam relevante papel nas
decisões políticas contemporâneas.
Não há de fato nada de heroico nisso. Tampouco há certezas “absolutas”,
que deem conta de todas as difíceis questões com as quais os juízes criminais
lidam rotineiramente.
As decisões que estão neste livro exprimem pontos de vista do autor que
podem estar equivocados. O juízo é exclusivo do leitor. O que se deseja é deixar
ver, pelos esconderijos escolhidos pelas palavras das decisões, o refúgio de um
pensamento que andou muito, do primeiro texto, em 1995, sobre culpabilidade,
mas anotado como “arrependimento posterior nos crimes violentos” à profissão
de fé no Estado de Direito, que a nomenclatura neoliberal grafa ideologicamente
em letras menores (estado de direito).
Os votos manifestam a experiência jurídica tomada a sério. Com acertos e
erros, repitaBse, refletem a adoção franca e sincera de uma posição pelo Estado
de Direito que busca não se acomodar diante do conforto que o exercício da
profissão de juiz inegavelmente proporciona.
E os artigos exprimem uma determinada trajetória acadêmica que tem nos
votos a projeção que permitirá, pela análise comparativa, identificar simetrias,
mas também contradições.
Há ainda outro propósito, mais de ordem prática.

xix
Vários destes artigos andaram perdidos por aí. Do primeiro ao nono, os ensaios
são de uma época em tudo distinta da atual, para o autor. Entre 1995 e 2004 os
artigos foram divulgados em revistas ou livros que tiveram circulação limitada.
TêBlos juntos, agora, proporciona a oportunidade da visão contextualizada
de uma determinada produção intelectual para a qual concorreram inúmeros
parceiros intelectuais, que foram e continuam sendo a principal influência do
autor.
Vista por este ângulo há semelhança entre a composição de ensaios jurídicos
e a de músicas.
Na história da constituição do pensamento de que resultaram os artigos da
primeira fase, agora reunidos, há parcerias com compositores mais velhos, dois
dos quais são explicitamente homenageados na fase atual (Afrânio Silva Jardim
e Nilo Batista). TrataBse de atores políticos decisivos na delimitação do território
do pensamento dogmático, que não haveria de cingirBse à mera e pobre tarefa de
interpretação de textos legais. Weber Martins Batista, Leonardo Greco e Alberto
Silva Franco também são credores do que de melhor pode haver desta fase
refletida nos textos. Nenhum dos cinco tem responsabilidade por hesitações,
eventuais equívocos conceituais e deficiências. A responsabilidade por isso
sempre é do autor, com exclusividade.
Este também foi o período de gestação das obras Sistema Acusatório e
Transação Penal, e de exercício da jurisdição na 2ª Vara da Infância e Juventude
do Rio de Janeiro e 37ª Vara Criminal, nesta sucedendo Sergio de Souza Verani,
outro grande professor.
Os artigos posteriores dizem com outra fase, em que as parcerias vieram
acompanhadas de um tipo de relacionamento em que se dividiram, ou melhor,
compartilharamBse sonhos e utopias, cuja busca por concretização projetouBse
em ações e associações concretas.
Em uma retrospectiva dessa ordem há sempre o risco de se omitir,
involuntariamente, algum nome. A omissão, porém, certamente não diminui a
gratidão do autor pelo que se beneficiou em termos de convivência e aprendizado,
independentemente da idade ou condição pessoal do parceiro.
Quero expressamente citar Vera Malaguti, Gustavo Grandine[i, Miguel
Baldez, Maria Thereza Moura, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Lenio Luiz
Streck, Aury Lopes Jr., Fauzi Hassan Choukr, Paulo Rangel, Alexandre Câmara,
Claudio Brandão, Alexandre Wunderlich, Gustavo Badaró, Carlos Bacila, Edson
Baldan, Ana Paula Zomer, Ana Lúcia Sabadell, Leonardo Sica, André Nicoli[,
VictoriaBAmália Sulocki, Diogo Malan, entre tantos daqueles de cuja convivência
o autor extraiu benefícios na forma de lição de vida e de Direito.

xx
Por certo que os ensaios de dez a dezenove, desta segunda fase, repercutem,
além das reflexões teóricas, a adoção de postura política que se quis distinguir
pela articulação entre as diversas dimensões que conformam a prática social
definida pelo direito.
E neste contexto e “para além da teoria” há decisivas contribuições: Salo de
Carvalho, pela instigante capacidade de ampliar horizontes. Maurício Zanóide,
que buscou alavancar o IBCCRIM, e transformáBlo em um projeto genuinamente
nacional de “porto” do pensamento garantista. Rui Cunha Martins, hoje refeB
rência do autor em termos teóricos. Rubens Casara, que une as qualidades
anteriores à vocação de concretizar o pensamento verdadeiramente democrático
em decisões concretas, no exercício da jurisdição penal.
Aliás, de tantos parceiros implícitos (e explícitos, como é o caso do jurista
e amigo Gustavo Grandine[i), Rubens Casara está neste livro como a chave
entre presente, passado e futuro. Ainda jovem, há muito é um excepcional jurista e
juiz e agente político que, respeitando o significado da jurisdição, confere à função
jurisdicional o perfil transformador que não pode estar ausente em uma sociedade
periférica e concentradora de riquezas como ainda é este Brasil de 2010.
As divergências sobre o papel da hermenêutica filosófica (travadas em
memorável troca de mensagens eletrônicas, com a intervenção de pensadores
extraordinários, debate que, quem sabe, um dia virá à luz) somente fortalecem a
admiração por quem guarda a autonomia como jeito de ser, inalienável, e enlaçada
com a erudição que ilumina para todos e não, exclusivamente, para o intelectual.
Há mais do Rubens Casara no artigo comum, publicado neste livro, do que
do autor da coletânea. E esta é uma virtude, o leitor pode confiar.
Enfim, promovido por antiguidade ao cargo de Desembargador do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 2006, depois de 18 anos de exercício
da magistratura em primeiro grau, e lotado desde 21 de fevereiro de 2008 na 5ª
Câmara Criminal, por onde passou, como presidente, o formidável juiz Silvio
Teixeira, este tem sido o locus do exercício da jurisdição criminal do autor.
Os votos escolhidos para a coletânea foram, em sua maioria, proferidos na 5ª
Câmara Criminal. Nem sempre a redação dos textos faz justiça à contribuição dos
demais votantes. A dívida do autor, todavia, é enorme e os credores não são apenas
os atuais juízes titulares do colegiado, mas ainda os antigos titulares e os itinerantes.
Aqui vale o dito, sublinhado por Antonio Pedro Melchior, e cultivado com
muito carinho no colegiado: a divergência é a expressão da democracia nos
julgamentos coletivos!
Uma sociologia do judiciário revela o importante papel dos assessores
dos magistrados. Mais do que curiosidade, um estudo desta monta serve para

xxi
nortear as reformas legislativas e permite discutir a questão da legitimidade do
exercício do poder jurisdicional, incluindo os mecanismos de investidura, em
termos reais e racionais.
Os votos que constam do livro são decisões do autor, mas reproduzem a
atuação coletiva de um gabinete formado por pesquisadores ideologicamente
comprometidos com o Estado de Direito e com a transformação social.
Por isso, omitir os nomes dos assessores seria o mesmo que faltar com a
verdade, em termos de coautoria dos textos que são o veículo do julgamento.
E a falha seria agravada pelo fato de se deixar de reconhecer o papel, como
intelectuais, destes profissionais e estagiários engajados.
Daí a referência a Mariana Kaiuca Aquim, Yolanda Pinto, Juliana Galhardo,
Fernanda Peixoto Cassiano, Helena Guedes, Priscila Pontes e Antonio Pedro
Melchior.
O encerrar esta apresentação reclama renovar a advertência de que decidir as
causas criminais, tendo como parâmetro os direitos fundamentais, não é exercício
de heroísmo, mas cumprimento de dever e compromisso com a dignidade.
Não raro, em palestras, o autor termina contando a aventura de Miguel
Li[ín, clandestino no Chile durante a ditadura militar comandada pelo general
Pinochet.
Em 1985, por seis semanas, o diretor de cinema Miguel Li[ín, que havia
sido proscrito por decisão da ditadura, retorna ao Chile para filmar as condições
concretas de vida naquela ocasião. Ele o faz, por óbvio, cercado de cuidados e
durante sua estada corre muitos riscos, chegando a estar frente a frente com o
ditador Pinochet.
Ao deixar Santiago, em direção a Montevidéu, de avião, o cineasta quase
é descoberto. Indagado por Gabriel Garcia Marques (autor da reportagem,
publicada pela Record) sobre se aquele havia sido um ato de coragem, heroico,
Miguel responde que não, que em realidade fora o ato mais digno de sua vida.
Esta talvez seja a melhor lição para quem se dedica ao afazer de julgar
causas criminais: agir com dignidade.

Setembro de 2010.

Geraldo Prado

xxii
1ª Parte
O Arrependimento Posterior
e os Crimes Violentos

“Se a crítica deixa as coisas como estão, porque fazer a crítica da crítica? Se as palavras
são vazias de poder, porque usar tantas palavras para discutir o poder? Não, o fato é
que todos aqueles que ainda têm a ousadia de falar e escrever, acreditam, ainda que de
forma tênue, que o seu falar faz uma diferença.”
Rubem Alves

I. Introdução

Nullum crimem nulla poena sine culpa. Sem dúvida alguma esta fórmula
resume o dogma fundamental de um Estado Constitucional Democrático, impedindo
que ao indivíduo se imponha o gravame da sanção penal exclusivamente com base
em critérios de responsabilidade objetiva. Na sua trajetória evolutiva, o homem
não prescinde de referenciais que o permitam entender a fundo os dramas da sua
existência e o significado da sua vida, até mesmo para julgar e optar, nem sempre com
integral liberdade, pelos caminhos singularmente colocados à sua frente, aceitando
ou repudiando, com base nos valores conhecidos – as denominadas regras do jogo – a
influência que seus semelhantes hão de exercer sobre o seu destino.
PodeBse afirmar que as normas penais contém1, ou devem conter, por meio
de seus comandos, os dados indispensáveis para que o agente possa deliberar com
liberdade no âmbito interno, se deve ou não acatáBlas e assim assumir, se for o caso,
a responsabilidade decorrente de sua conduta. SugereBse, pois, que somente quem
esteve em condições de decidir livremente sobre se acolhia ou não o comando
normativo, no plano da regra incriminadora, haverá de estar sujeito à punição,
retribuição adrede estabelecida em face do mallum actionis.

1 Ao menos assim deve ser na medida em que se exige que os tipos penais sejam formulados com precisão,
encerrando a matéria da proibição, conforme a forma exigida previamente.

3
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Ocorre, como já se disse,2 que a limitação derivada do princípio da culpabiB


lidade não radica apenas em garantir o caráter não transcendental da sanção penal,
protegendo, destarte, aquelas pessoas ligadas por grau de parentesco ao agente,
como também visa evitar castigo demasiado pelo comportamento supostamente
praticado. TrataBse, portanto, de estabelecer uma graduação quer na cominação das
penas, em abstrato, quer na aplicação e execução da resposta penal, em concreto,
garantindo a proporcionalidade efetiva entre o mal causado e o mal necessário,
representado pela medida penal.
Disso tudo se tem afirmado modernamente que mesmo diante do injusto penal,
tal seja, da conduta típica e ilícita, cumpre ao julgador avaliar concretamente, à vista
das condições pessoais do agente se e em que medida este deve ser “contemplado”
com a pena. O problema que surge desta perspectiva do papel que a culpabilidade
desempenha no cenário do controle social consistiria, ao certo, na possibilidade de se
aplicar pena superior ao máximo abstratamente fixado. Porém, a questão é só aparente,
como ressalta Claus Roxin3, haja vista que o princípio da reserva legal ergueBse como
obstáculo à semelhante pretensão, ficando, por isso, restringida a problemática a saber
se se deve deixar de punir ou ainda castigar impondo medida retributiva arbitrada em
patamar inferior ao mínimo legal naqueles casos cuja culpabilidade do agente esteja a
recomendar precisamente tais tratamentos.
É o que pode acontecer, cremos, em algumas hipóteses de crimes praticados
com violência ou grave ameaça à pessoa, em que antes do oferecimento da denúncia
o agente venha a reparar o dano ou restituir a coisa, como veremos adiante.

II. Do arrependimento posterior

Como assinala Delmanto4, com o “pleonástico” nome a nova parte geral do


Código Penal – já não tão nova assim, salienteBse – criou uma causa de diminuição
de pena, cuja consequência prática conforme sublinhou Heleno Fragoso5, consiste
em tornar “o sistema menos repressivo”, muito embora a inovação haja sido
“instituída menos em favor do agente do crime do que da vítima”.
Entre as críticas que o dispositivo está a merecer, em nenhum caso, gizeBse,
voltadas à sua adoção mas sim aos limites que estabeleceu, primeiro discriminando
entre os que podem e os que não podem reparar o dano (aí encontraBse a maior

2 Convido o leitor a debruçarBse sobre o capítulo dedicado ao tema em Introdução Crítica ao Direito Penal,
de Nilo Batista, Rio de Janeiro, 1990, Revan.
3 Recomendo a leitura de A Culpabilidade como Critério Limitativo da Pena, Claus Roxin, Revista de Direito
Penal, nºs. 11/12, São Paulo, 1973, Revista dos Tribunais.
4 Código Penal Comentado, São Paulo, 1994, Renovar.
5 Lições de Direito Penal, Rio de Janeiro, 1994, Forense.

4
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parte da clientela do sistema punitivo) e depois excluindo os delitos cometidos


com violência à pessoa, malgrado culposos, uma destacamos no plano do presente
trabalho: a exclusão a priori dos autores de crimes violentos.
Não se trata aqui de perseverar por medidas mais brandas em face da
criminalidade violenta6, responsável ao lado da histeria difundida na imprensa,
pelo incremento de um grave sentimento de insegurança coletiva, perceptível
mais facilmente nos grandes centros. Pelo contrário, o repúdio aos crimes violentos
é postura natural de qualquer jurista comprometido com a preservação dos
direitos fundamentais da pessoa humana. Vale dizer, entretanto, que a eventual
utilidade da sanção penal em face da prevenção especial resultante da adoção
de semelhante benefício, mesmo em crimes violentos, desde que fatores pessoais
assim sugerissem, não foi devida e expressamente avaliada pelo legislador.
A título de exemplo citamos o seguinte fato: Três jovens, contando entre
dezoito e vinte e dois anos, subtraíram, por meio de grave ameaça ao lesado, um
aparelho de som e algumas roupas. O crime ocorreu em zona rural e os agentes,
neófitos delinqüentes, enrolaramBse de modo tal que de acordo com a vítima a cena
por ele presenciada beirava o patético, não lhe fosse pessoalmente trágica. Meses
depois, sem que se soubesse quem eram os autores da infração, estes, motivados
pela religião que então começaram a professar, espontaneamente e junto com os
demais familiares, procuraram o policial local e lhe entregaram, para que fossem
devolvidos, os bens de que se assenhorearam, descobrindoBse, deste modo a
autoria. O inquérito levou quase dois anos para ser concluído e enquanto dois dos
agentes foram trabalhar na pesca o outro continuou na roça, como empregado
daquele a quem roubara.
Mais de um ano gastouBse no curso do processo e, então, perto de quatro
anos depois do fato, confessado sem subterfúgios em juízo, tinham os réus de ser
julgados. A prova dos autos era robusta, categórica, no sentido de que os indivíduos
que haveriam de ser condenados por roubo consumado, especialmente agravado
pelo concurso de pessoas _pena mínima de cinco anos e quatro meses de reclusão_
reintegraramBse socialmente.
Ora, se nos filiarmos à tese de que a pena não pode ser mero castigo – um
mal por outro mal – o que, aliás, sucede do ponto de vista legal com a proclamação
contida no artigo 1º da LEP7 e que mesmo como retribuição há de ser proporcional

6 Em consideração primorosa salienta o Ministro Francisco Assis Toledo (Princípios Básicos de Direito Penal,
p. X, São Paulo, 1991, Saraiva): “O problema, assim pensamos, não reside na questão de ser ou não ser
benevolente com o crime (ninguém razoavelmente poderia sêBlo) mas de saber como contêBlo dentro
de limites socialmente toleráveis, de modo sério e verdadeiramente eficiente.”
7 “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e
proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado”.

5
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à culpabilidade dos agentes, revelada pelas condições de vida de cada um deles,


pelo círculo social freqüentado, pelas oportunidades apresentadas, enfim, por
tudo aquilo que decorre do que Zaffaroni denomina de espaço social desfrutado
pelo indivíduo, a própria racionalidade embutida como princípio norteador da
ação estatal8 há de servir como limite à imposição da sanção. Até mais do que isso,
leciona Roxin, a culpabilidade só estaria aperfeiçoada quando em contraste com
os fins da pena, justificasse a reação estatal, definindoBlhe a medida razoável, isto
é, adequada ao caso concreto e, pois, justa.
Tomando como parâmetro a causa de diminuição em tela não é difícil concluir
que mesmo preponderantemente voltada à vítima, a norma não desdenhou dos
agentes, selecionandoBos a partir de um critério que evidencia culpabilidade
ordinariamente atenuada.
Ora, o respeito ao princípio constitucional da culpabilidade deve impor ao
juiz, em concreto, que agasalhe de duas conclusões básicas: em casos de escassa
culpabilidade a punição agravada constituirá excesso reprovável, ferindo os
princípios da razoabilidade, inerente à culpabilidade, e da justiça, inspirador da
construção e manutenção da própria ordem constitucional9; nada obsta a aplicação
analógica de normas penais não incriminadoras, especialmente para assegurar
igualdade de tratamento aos agentes em situação comprovadamente semelhante
em termos de reprovação pessoal10.
Agindo assim, impedirá o magistrado a consumação de uma ordem de
coisas que, travestida de responsabilidade subjetiva pelo fato, está na verdade
consagrando real responsabilidade objetiva.
Convém ressaltar que na hipótese vislumbrada acima, ao contrário da regra
em termos de arrependimento posterior, pela qual não interessa indagar os motivos
que levaram o agente a reparar o dano, cumpriria ao magistrado perscrutar a
motivação do penitente, pois só a culpabilidade atenuada a justificaria, sendo
interessante do ponto de vista da política criminal, visto que tal circunstância
valeria como indício de que o agente não voltaria a delinquir.
É provável que ao pensamento jurídico conservador não agrade a idéia
de diminuir a pena de quem comete crimes violentos, levando em conta dados
pessoais – os mesmos que conduzem à conclusão da presença de um juízo de
reprovação pessoal.

8 Zaffaroni, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas, Rio de Janeiro, 1991, Revan.
9 Ver, a respeito, J.J. Canotilho Gomes, em Direito Constitucional, Coimbra, p. 3, 1992, Almedina.
10 Julio Fabrinni Mirabete destaca, em Direito Penal, Parte Geral, São Paulo, p. 50, 1989, Atlas, o seguinte:
“Nada impede, entretanto, a aplicação da analogia às normas não incriminadoras quando se vise, na
lacuna evidente da lei, favorecer a situação do réu por um princípio de eqüidade.”

6
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Releva notar, todavia, que a lei dos crimes hediondos introduziu o parágrafo
quarto do artigo 159 do estatuto punitivo, pelo qual a libertação do seqüestrado por
conta da delação de um dos membros da quadrilha é elevada ao status de causa
de diminuição de pena. Ora, de que se trata esta medida senão de compensação
em termos de política criminal pela reparação tempestiva do dano! No entanto,
friseBse, não se perturba o legislador com o exame das razões que inspiraram
o arrependido, sendo mais provável que sobre alguém nestas circunstâncias
possamos estabelecer um prognóstico de reincidência mais efetivo do que em
relação àquele cuja penitência é marca significativa de sua escassa culpabilidade.
Será que este último não merece o mesmo cuidado e atenção?
Não temos a pretensão de esgotar o assunto, contudo só provocar a
consciência jurídica do leitor para um processo de reflexão, que em última análise
busca a meditação sobre a justificação quer da sanção penal, quer dos limites e da
missão do Direito Penal. Por isso, não enfrentamos a questão proposta também
pelo ângulo inédito da arremetida de Roxin a respeito da inviabilidade prática de
designar se determinado agente estava realmente em condições de agir de acordo
com o Direito. Se seguíssemos esta via talvez encontrássemos no arrependimento
espontâneo do agente, desde que querido por ele como fundamento de sua ação
posterior ao crime, a prova de que em muitos casos os fatores circundantes de
tal modo são decisivos na opção pela conduta delituosa, que só o peso real das
consequências do seu atuar pode liberáBlo do estigma de ter de ser um delinqüente,
fazendoBo aí sim ser o sujeito que maneja as rédeas de sua própria vida. É a conquista
da liberdade pelo caminho mais doloroso do sacrifício da mesma liberdade.

III. Conclusão

Cremos, em face do exposto, que:

a) A responsabilidade objetiva repudiada constitucionalmente não é privilégio


das ações desprovidas de culpabilidade, mas se verifica ainda quando mesmo
culpável a conduta, seu autor é punido de maneira desproporcional;
b) A culpabilidade impõeBse, portanto, como um dos limites de fixação da
reação penal – o outro está consagrado no princípio da reserva legal;
c) Muito embora a figura do arrependimento posterior haja sido instituída
visando mais tutelarBse interesses da vítima e menos regular a situação do agente,
tanto que não se investiga a razão do arrependimento, extraiBse da aparente vedação
legal que os autores selecionados pela norma têm, via de regra, culpabilidade
atenuada;

7
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d) Não é defeso, em Direito Penal, conforme pacificamente se manifesta a


doutrina, aplicarBse a analogia em favor do agente;
e) O agente que após a consumação do delito cometido mediante violência ou
grave ameaça à pessoa haja, livre e espontaneamente, reparado o dano, concedendo
evidências de culpabilidade atenuada, está em situação semelhante, no plano do
juízo de reprovação, daquele que agiu assim, nas hipóteses elencadas no artigo 16
do Código Penal;
f) Neste caso é possível aplicarBse a analogia, pela qual o juiz suprirá a lacuna
inevitável decorrente do fato de haver de ajustar a sanção penal à culpabilidade do
autor reprovável do injusto;
g) No plano legal tal providência, dispensando a investigação sobre a
culpabilidade do agente,foi introduzida pela lei 8.072/90, incidindo em casos de
crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa.
Fevereiro de 1995

Bibliografia:

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal, Rio de Janeiro, 1990, Revan.
DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado, São Paulo, 1994, Renovar.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Geral, Rio de Janeiro,
1994, Forense.
GOMES, J.J. Canotilho. Direito Constitucional, Coimbra, 1992, Almedina.
MIRABETE, Julio Fabrinni. Direito Penal, Parte Geral, São Paulo, 1989, Atlas.
ROXIN, Claus. “A Culpabilidade como Critério Limitativo da Pena”, in Revista de
Direito Penal, nos. 11/12, São Paulo, 1973, Revista dos Tribunais.
TOLEDO, Francisco Assis. Princípios Básicos de Direito Penal, São Paulo, 1991,
Saraiva.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas, Rio de Janeiro, 1991,
Revan.

8
A Prisão Decorrente de
Sentença Condenatória Recorrível

“Para lá do portão ficava o mundo luminoso da liberdade, que do lado de


cá se imaginava como uma fantasmagoria, uma miragem. Para nós, o nosso
mundo não tinha nenhuma analogia com aquele; compunhaBse de leis, de
usos, de hábitos especiais, de uma casa mortaBviva, de uma vida à parte e
de homens à parte” (Dostoievski, Recordações da Casa dos Mortos).

1. Introdução

Entre os temas palpitantes do Direito Processual Penal brasileiro, sem


dúvida destacaBse, pela importância prática de que está revestido, o relativo
à natureza jurídica da prisão decorrente da sentença penal condenatória
recorrível, tratado na legislação, especialmente nos artigos 393, inciso I, e 594,
ambos do Código de Processo Penal, e no artigo 2° da Lei n° 8.072, de 1990. O
assunto ensejou a publicação de inúmeros trabalhos na órbita doutrinária e, no
plano jurisprudencial, produziu decisões conflitantes, malgrado o empenho dos
tribunais superiores em pacificar os entendimentos, em particular com a adoção
da Súmula n° 9 do STJ.
Consagrados autores defendem ardorosamente a qualificação da medida,
assim como sua justificação prática, a partir da idéia de que se trata de efeito
jurídico da sentença condenatória, embora não definitiva,1 opondoBse àqueles
que vislumbram, no preceito constitucional da presunção da nãoBculpabilidade,
o fundamento para a cautelaridade de toda restrição da liberdade, no âmbito do
processo penal, desde que a prisão não resulte da aplicação da pena, imposta por

1 Afrânio da Silva Jardim, Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres, Rio de Janeiro, Forense, 1992; E.
Magalhães Noronha, Curso de Direito Processual Penal, São Paulo, Saraiva, 1989; José Lisboa da Gama
Malcher, Manual de Processo Penal Brasileiro, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1980; Hélio Tornaghi,
Instituições de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1978; Vicente F. Greco, Manual de Processo Penal, São
Paulo, Saraiva, 1991; Júlio Fabrini Mirabete, Processo Penal, São Paulo, Atlas, 1992.

9
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decisão definitiva,2 havendo ainda quem, a exemplo de Weber Martins Batista,3


sustente que a ratio essendi da coerção encontraBse no reconhecimento da maior
periculosidade de determinados agentes.
Não se cuida aqui, portanto, à luz dos numerosos e respeitados ensaios
mencionados acima, de emitir a última palavra sobre o assunto, mas apenas,
como popularmente se diz, de sadiamente tentar “botar lenha na fogueira”, na
esperança de contribuir com argumentos quiçá suficientes para, entre outras
coisas, sensibilizar o legislador e levaBlo de volta ao caminho duramente
percorrido na história do nosso Direito positivo, tal seja, abolir de vez toda
prisão que não se justifique como imposição de sanção penal, em definitivo, ou
como necessidade do processo, observada em face do caso concreto.4

2. A Prisão como Efeito da Sentença Condenatória

Consoante frisamos, há na doutrina quem sustente que, por força do


disposto nos artigos 393, inciso I, e 594, todos do CPP (reproduzidos, a seguir),
a prisão surge como efeito jurídico natural da sentença condenatória penal,
sujeito, no entanto, à suspensão nas hipóteses em que o condenado puder e
vier a prestar fiança ou se tratar de crime de que se livre solto, ou ainda, se for
primário e de bons antecedentes.
“Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível:
I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis,
como nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar
fiança;”
“Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolherBse à prisão, ou prestar
fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na
sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.”
SalientaBse de todas, com efeito, a defesa que Afrânio Silva Jardim elabora
a respeito do assunto,5 destacando suas objeções sobre considerarBse cautelar a
natureza jurídica da prisão mencionada, bem como as vantagens que enumera a

2 Fernando da Costa Tourinho, Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1989; Maria Lúcia Karam, “Prisão e
Liberdade Processuais”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 2, Revista dos Tribunais, São
Paulo, 1993; Ada P. Grinover, Ciência e Política Criminal em Honra de Helena Fragoso, Rio de Janeiro,
Forense, 1992.
3 “O princípio constitucional da inocência; recurso em liberdade, antecedentes do réu”, in Revista do
IEJ, vol. 1, Rio de Janeiro, 1991.
4 Cumpre ver sobre o tema a retrospectiva levada a efeito por Tourinho Filho, in Processo Penal, vol. 3,
op. cit., p. 413.
5 In Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres. Rio de Janeiro, Forense, 1990.

10
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propósito da possibilidade de se executar provisoriamente a decisão, garantindo


ao acusado, mesmo na pendência de recurso da defesa, a fruição dos benefícios
previstos na lei de execuções penais.
Em primeiro lugar, leciona o professor que as características da cautela –
acessoriedade, preventividade, instrumentalidade hipotética e provisoriedade
– não se encontram presentes em concreto, visto que a sentença condenatória,
a par de não mais se arrimar na fumaça do bom direito, já que categórica e
imperativamente afirma que o condenado foi o autor do fato típico, ilícito
e culpável, não é acessória, aderente ao processo principal, mas sim fruto do
processo de conhecimento condenatório, tal seja, a verdadeira providência que se
persegue com a dedução da pretensão punitiva; que não visa a prevenir e evitar
danos à prestação derivada da tutela satisfativa, uma vez que é a própria tutela
satisfativa em plena operação; e, ainda, que o quinhão de provisoriedade que nela
está embutido é característico de todas as sentenças condenatórias conhecidas
em nosso Direito, seja aquelas exclusivamente pendentes de confirmação,
porque impugnadas por via dos recursos especial ou extraordinário, seja as que,
tendo transitado em julgado, possam ser atacadas por meio da revisão criminal.
Mesmo entre os que defendem a revogação das aludidas normas, encontramB
se partidários da posição de Afrânio, quanto ao fato de não se reconhecer a
natureza cautelar da prisão enfocada. 6
Isso não significa dizer, alerta o autor, que o fato de se negar à prisão em tela
seu caráter cautelar importa em interditar a custódia do condenado primário e
de bons antecedentes, nos casos em que livre, por exemplo, possa pôr em risco a
execução da sanção.7 FazendoBse necessário prender o agente condenado, apesar
de se lhe reconhecer, na sentença, a primariedade e bons antecedentes, quando
se observar o cometimento de atos compatíveis com o propósito de se subtrair à
aplicação da pena, é possível fazeBlo, decretandoBlhe a prisão preventiva.
Ao negarBlhe a natureza cautelar, Afrânio busca demonstrar que só como
efeito da condenação pode subsistir a prisão em tela, diferentemente da custódia
preventiva, e que, sendo desse modo, instauraBse real execução provisória da
pena, com inúmeras vantagens para o próprio condenado, valendo ilustrar
as hipóteses de progressão do regime, remissão dos dias cumpridos pelos
trabalhados e, particularmente, concessão de livramento condicional.

6 Luís Gustavo Grandine[i Castanho de Carvalho, O Processo Penal em face da Constituição, Rio de
Janeiro, Forense, 1992.
7 Op. cit., p. 393: “Importa salientar, portanto, que a eficácia suspensiva da apelação do réu impede
tãoBsomente a sua prisão como efeito da sentença impugnada (execução provisória da pena), não
vedando a custódia cautelar caso esteja presente algum motivo que autorize a decretação da prisão
preventiva do réu, conforme deixamos escapar acima.”

11
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Por isso é que, na esteira dos ensinamentos de Hélio Tornaghi, o citado autor
rebate as críticas formuladas e acentua as diferenças entre a prisão provisória e a
definitiva, ressaltando o que já teria sido demonstrado há tempo pelo primeiro,
isto é, que a pendência de recurso ordinário ou extraordinário nos leva à situação
em que a decisão a ser proferida cumprirá o papel de mera condição resolutiva,8
sem que se fira a disposição constitucional da presunção da nãoBculpabilidade,
estatuída no artigo 5°, inciso LVII, da Carta Magna, quando se prende a título de
condenação, mesmo que carecendo do trânsito em julgado, pois que “presumir
é aceitar um fato como verdadeiro, tendo em conta aquilo que geralmente
acontece”, e na prisão que então se verifica não há qualquer presunção. Segundo
Afrânio, exigirBse o recolhimento à prisão, como pressuposto de cabimento do
recurso, isto, sim, atingiria o preceito constitucional.

3. A Prisão como Cautela

Romeu Pires de Campos Barros, na obra intitulada Processo Penal Cautelar,9


com maestria revela as bases sobre as quais repousa o entendimento de que a
prisão de que tratamos tem natureza cautelar.
O referido autor destaca, logo de início, que, nas hipóteses em que o
condenado pode prestar fiança e o faz, exercitando um ato de contracautela, esta
providência impede que se prenda por causa da condenação ainda não definitiva.
Ora, se a fiança funciona como contracautela, qual seria, pois, a medida cautelar
em face da qual se dirige? É evidente, conclui o jurista, que a cautela afetada é a
própria prisão.10
Tourinho Filho também, no trabalho de consulta obrigatória dos estudiosos
do Direito Processual, Processo Penal,11 acentua a natureza cautelar a que se
refere Romeu Campos, salientando, todavia, que a ela se une, na espécie, uma
segunda natureza, que lhe confere caráter misto, em solução de compromisso

8 Hélio Tornaghi, Instituições de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1978, vol. 3, p. 167: “A prisão como
pena imposta em sentença recorrível é definitiva, embora sujeita a condição resolutiva, que é a
reforma da sentença. E o próprio fato de a decisão da instância superior funcionar como condição
resolutiva está a mostrar que a prisão não era provisória.”
9 Publicada pela Editora Forense, Rio de Janeiro, 1982, Título VII, Capítulo V.
10 Op. cit., p. 275: “Acontece que a fiança é contracautela, sendo admitida essa providência, cujos efeitos
persistem até que a sentença transite em julgado, não se pode contestar que aquele efeito mediato
desse ato jurisdicional, consistente na prisão, tem por finalidade assegurar o resultado do processo
principal, ou seja, tornar possível a relação executiva penal, com o cumprimento da sanção imposta.”
11 Publicado pela Editora Saraiva, São Paulo, 1989, vol. 3.

12
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que a um só tempo limita os casos de incidência da prisão, como permite o gozo


dos benefícios previstos na LEP, sem que tenha havido trânsito em julgado.12
A real interpretação da prisão embasada em sentença condenatória ainda
dependente do trânsito em julgado passa, pois, inevitavelmente, quando se
fala em medida cautelar, pelo alcance que se confira à norma constitucional
consagrada na doutrina como presunção da inocência, ou, o que seria mais
correto, presunção da nãoBculpabilidade, incorporada, somente em 1988, ao
nosso Direito positivo, isto porque, vedandoBse a presunção de culpa, até o
advento da definitiva decisão condenatória, estaríamos consagrando a exclusiva
existência de duas modalidades de prisão: “a definitiva, em virtude de condenação;
e a cautelar, em virtude de uma cognição provisória e para resguardar os fins do processo
dito principal”.13

4. O Princípio Constitucional

Estatui a Constituição da República que “ninguém será considerado culpado


até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, revelando, a par das
interpretações histórica e sistemática que venham a ser feitas, a admissão
inevitável de que presunção alguma que decorra da consideração da situação
jurídica de “culpado” pode vir a lume, até que haja ocorrido a preclusão ou o
esgotamento das vias recursais.
A idéia contida na regra em tela – insculpida na Carta Magna em vigor, em
nítido avanço em comparação à omissão que se verificava entre nós, no plano
constitucional, até então – remete obrigatoriamente aos vários conceitos de
presunção, entre os quais destacamBse aquele mencionado anteriormente, bem
como o ordinariamente mais acatado, tal seja, o de que presunção seria “modo
de raciocínio, em virtude do qual, a partir do estabelecimento de um fato, se
induz um outro fato que não é provado”.14
VêBse, portanto, que a vedação constitucional dirigeBse contra a proibição
de se asseverar a culpa lato sensu, salvo após o trânsito em julgado da decisão
condenatória, interditandoBse, com fulcro na disposição, a adoção de medidas
que partam de um fato qualquer do processo, mesmo que seja a demonstração

12 Op. cit., p. 341: “Assim, por exemplo, quando se requer a prisão preventiva, estamos em face de uma
ação cautelar que será apreciada pelo Juiz... DigaBse o mesmo, em se tratando de prisão resultante
de pronúncia ou, até mesmo, quando ela decorrer de uma sentença condenatória recorrível. Neste último
caso, ela apresenta um caráter misto de cautelar e sanção.”
13 Luís Gustavo G. C. de Carvalho, op. cit., p. 71.
14 Maria Thereza Rocha de Assis Moura, A prova por indícios no processo penal, São Paulo, Saraiva, 1994,
p. 44.

13
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cabal de materialidade e autoria, como ocorre nos casos de flagrante delito,


para induzir outro, isto é, que o réu é culpado, impondoBlhe, antecipadamente,
a conseqüência jurídica da decisão definitiva, caracterizada pela aplicação da
própria sanção penal.
É certo, e já foi sublinhado em demasia que o aspecto principal da proibição
há de ser enxergado, embora não exclusivamente, no âmbito do Direito Penal
concretizado, eis que no curso do processo praticamBse inúmeros atos de coerção,
alguns direcionados à pessoa do réu, a partir de evidências da existência do fato e da
demonstração hábil da autoria. Portanto, não presume a culpa o juiz que reconhece
provadas autoria e materialidade de determinada infração e, diante de elementos
que o convençam da necessidade de prender o acusado, para permitir a conclusão
do processo com o indispensável respeito aos direitos, faculdades e ônus das partes,
como, por exemplo, evitar a coação sobre testemunhas, aplica a providência.
No entanto, errará o juiz que, tomando por base a prova cabal das mesmas
materialidade e autoria, embarace a atividade probatória do processado, por
acreditar satisfatoriamente evidenciada a culpa do réu.
A guisa de exemplo é possível citar a situação do indivíduo que é preso
em flagrante no momento em que aponta uma arma para a cabeça da vítima e
dela exige dinheiro e documentos que carrega, ou de outro indivíduo, também
detido em flagrante por guardar em casa, na verdade um barraco, na favela,
certa quantidade de cocaína. Falar que o juiz não haverá, à vista desses fatos, de
presumir a culpa dos réus é negar a realidade. No entanto, desta presunção, não
poderão decorrer conseqüências, como restringir à defesa a atividade probatória
ou manter presos os agentes antes do trânsito em julgado, sem que a posteriori se
verifique a necessidade da medida extrema.
Com o rigor e a sabedoria que lhe eram peculiares, Mortara muito bem
iluminou os contornos do princípio, em célebre polêmica no parlamento italiano:
“O verdadeiro conceito que se deve aceitar e defender é este: ninguém
pode ser tido por culpado enquanto não condenado por sentença irrevogável;
por essa razão, o acusado, durante o processo, deve gozar de todas as garantias
da liberdade de plena e completa defesa; não deve ser oprimido (angariato,
submetido a vexames), torturado, submetido a tormentos morais, para se lhe
extorquir a confissão; não deve ser impedido de fazer valer todas as provas
necessárias a fim de demonstrar a insubsistência das acusações que lhe são feitas;
essas lhe devem ser manifestadas com exatidão e solicitude; da mesma forma,
deve ele conhecer as provas em seu desfavor; também sua liberdade pessoal
deve ser limitada o mínimo possível, ou seja, apenas na medida estritamente
necessária para que a justiça não seja defraudada em seus legítimos intentos

14
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e jamais com a finalidade ou com o efeito de impedir o acusado de provar, se


puder, a própria inocência. Essas são verdades dogmáticas que nenhum jurista
pode pôr em dúvida; mas uma coisa é afirmar que não se deve tratar o acusado
como culpado e outra é dizer que se lhe deve presumir a inocência. É evidente
o exagero da segunda fórmula, na qual se subverte o conceito da primeira”.15
O principal no pensamento de Mortara é incontestável: se a Constituição de
um Estado proíbe que se presuma a culpa, disso decorre que nenhuma medida
processual há de alvejar a situação jurídica do réu, notadamente mais fraca que
a do mesmo Estado, acusador, simplesmente porque se o admite culpado, antes
do trânsito em julgado da decisão condenatória.
No exemplo proposto, nada obsta a que imaginemos o primeiro réu como
vítima de coação irresistível, com um ente querido sob a mira de um revólver,
enquanto se aguarda a execução do delito, e o outro igualmente obrigado, à conta
da coação de violentos traficantes, a ceder sua casa para guarda da substância.
Em ambos os casos, as restrições provenientes da presunção de culpa hão de ser
contabilizadas na conta das decisões injustas, exatamente o que se quer evitar
por meio do preceito constitucional.
Agora, indiscutivelmente, se aplicarmos o artigo 393, inciso I, do CPP,
consideraremos os réus culpados, entretanto não em definitivo, e exigiremos dele
o imediato encarceramento, para o fim de executar a sanção. Esta é a realidade.
Outra conclusão deve, ainda, ser extraída da lição italiana: as medidas de
coerção são possíveis, porém não fundadas na convicção da culpa do agente,
mas sim na necessidade de evitar que a “justiça seja defraudada em seus legítimos
intentos”, o que é o mesmo que dizer que há de se prender o réu, desde que seja
preciso assegurar a viabilidade dos processos de conhecimento condenatório
ou de execução. É a instrumentalidade hipotética que, com razão, Afrânio não
identifica na custódia emanada do artigo 393 do diploma processual, eis que aí
não existe em vista do que o fulmina justamente por ser inconstitucional.
VisualizaBse, neste caso – isto é, só prender estribado na sentença conB
denatória recorrível, se for necessário para garantir o êxito dos processos que
viabilizam as tutelas satisfativas –, a acessoriedade da medida, não interessando
se inserida em título apto a se tornar, no futuro exeqüível. A sentença, com a
solução que apresenta para o conflito de interesses, representa, sem dúvida, a
providência principal do processo de conhecimento – seu fim último –, porém
a ordem de recolhimento à prisão ou manutenção da medida coercitiva insereB

15 In Instituições de Processo Penal, Hélio Tornaghi, vol. 3, p. 189.

15
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se, desta feita por força do mandamento constitucional, como dado acessório,
provisório, justificável tãoBsomente enquanto necessário.
Há de ser, pois, sempre provisória, e então subordinarBse à disciplina da
prisão preventiva stricto sensu, regida pelo que está previsto no artigo 312 do CPP,16
recomendandoBse à luz do fumus boni juris17, mais intenso neste instante, porquanto
conseqüência da convicção judicial da autoria e materialidade infracionais, quando
denunciarBse ainda como imprescindível – periculum in mora.
Em razão do que foi exposto, restaria indagar se não é a própria prisão
preventiva, portanto, que vige neste momento, o que, de certa maneira, imporB
taria – em aceitar, ao menos em parte, o argumento aduzido por Afrânio ou
–, estando igualmente revogados os artigos 393, inciso I, e 594 do CPP, como
querem Grandine[i de Carvalho e Paulo Cláudio Tovo –18 se não seria mais
possível prenderBse o agente por força da sentença, mantendoBse solto aquele
que porventura encontrarBse assim, mesmo que, com isso, haja risco para a
aplicação da lei penal.
Quanto ao instante da decretação da prisão preventiva, o artigo 311
responde taxativamente: “Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução
criminal, caberá a prisão preventiva...”.
A jurisprudência, ao lado do fato de interpretar restritivamente a norma,
como deve acontecer, em se tratando de regra limitadora de direito individual,
proíbe que se decrete a prisão preventiva após a prolação de sentença condeB
natória. Cremos que a melhor interpretação, todavia, consiste em limitar a
providência, atendendoBse à dicção legal, tal seja, somente impor a medida antes
da sentença, pelo menos como decorrência do disposto nos artigos 311 e 312 do
CPP, pois, do contrário, ultrapassaríamos a fronteira da “instrução criminal”,
para invadirmos a seara da fase decisória.
Assim, para evitarmos o absurdo do condenado armarBse para a fuga,
enquanto aguardamos o trânsito em julgado da sentença, sem que possamos nos
opor a isso por meio do expediente previsto no artigo 312 do diploma processual,

16 Art. 312: “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, por conveniência
da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência
do crime e indícios suficientes de autoria.”
17 Os conceitos fumus boni iuris e periculum in mora atualmente estão suplantados, no que concerne às
cautelares processuais penais. Neste campo não há lugar para a simetria com a teoria do processo
civil. Os pressupostos para a decretação das prisões provisórias dizem com o reconhecimento de
indícios de autoria de uma infração penal (fumus commissi delicti) e da necessidade da providência
haja vista o risco processual decorrente da liberdade do imputado (periculum libertatis). Ver Aury
Lopes Jr. Em Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, 5ª Ed., vol. 1 e 2, Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 2010. Nota do autor.
18 Op. cit., p. 74 (Grandine[i de Carvalho); Paulo Cláudio Tovo, Primeiras Linhas sobre o Processo Penal em
Face da Nova Constituição, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1989, p. 24.

16
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cremos que é razoável interpretarmos os artigos 393, inciso I, e 594 do CPP como
determinantes de um momento no qual a situação do agente, no que diz respeito
à necessidade de sua custódia, haverá de ser obrigatoriamente considerada
pelo juiz, sob pena de não se poder fazêBlo posteriormente. Se é certo que este
mesmo juiz está dotado de um poder cautelar genérico, igualmente é verdade
que, diante dos pressupostos da medida extrema, poderia decretáBla de ofício
até a instrução, não se lhe exigindo, salvo quando provocado pelas partes, um
pronunciamento específico a respeito da questão, e nem por isso fulminandoBlhe
a omissão por intermédio da preclusão. Caso não o tenha feito, e a situação haja
se revelado propícia, estará ele obrigado a manifestarBse por ocasião da sentença.
TrataBse de assegurar o êxito do processo principal, em face de circunstâncias
concretas que o ameacem – periculum in mora –, e somente nestes limites o Estado
está autorizado a privar o indivíduo de sua liberdade, motivo pelo qual, desde
que não haja máBfé do agente estatal, não nasce para o réu, afinal absolvido
em uma das instâncias superiores, o direito à reparação, que sabiamente a
Constituição lhe reconheceu, quando em cumprimento de pena excessiva ou
injusta, conforme o artigo 5°, inciso LXXV.19
Aliás, nesse aspecto, reside um dos calcanharesBdeBaquiles da conceituação
da prisão em tela, como efeito da condenação, isto porque, se o próprio Estado
reconhece, ao “condenado” que fica preso por tempo superior ao fixado na
sentença, direito à reparação, é em razão de taxar contrário ao direito o ato assim
praticado e, pois, proibido.
Cumpre advertir que a moderna preocupação dos juristas, especialmente
nesta sofrida América Latina, volta e meia invadida por ventos autoritários, está
em limitar ao máximo as restrições da liberdade do réu, antes do trânsito em
julgado, prevendoBse um alargamento do direito à indenização, que abraçará
até aquele que for enclausurado provisoriamente, sem que haja respeito aos
pressupostos da cautela.20
Do ponto de vista prático, argumentar com as vantagens da execução
provisória, para elidir a natureza cautelar da prisão de que cuidamos, envolve
duas considerações: não se pode determinar a natureza jurídica do instituto,
com base no proveito que da conclusão se pretenda auferir, definindoBse pelo
fim, até porque o que, em algumas situações, é positivo em outras certamente

19 “O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo
fixado na sentença”.
20 Ada Pellegrini Grinover menciona, em Ciência e Política Criminal em Honra de Heleno Fragoso (Rio de
Janeiro, Forense, 1992, p. 43), o esforço, reconhecido no Anteprojeto de Código de Processo Penal
Tipo para a América Latina, de incluir “previsão da indenização por erro judiciário e pela prisão cautelar
injusta”.

17
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será negativo; em segundo lugar, não se pode igualmente negar vigência ao


artigo 5°, inciso LXXV, da CR, o que, na prática, ocorreria se mantivéssemos
preso o condenado só por causa da sentença pendente de trânsito, e ele viesse a
ser absolvido, visto que, nessas circunstâncias, não se tem notícia de alguém que
tenha sido indenizado.
Vale ainda perguntar o que é melhor para o réu: ver seu recurso apreciado
logo e definida sua situação ou protrair pelo tempo o julgamento de segundo grau
e “beneficiarBse” do livramento condicional ou da progressão de regime (por que
não se “prejudicar” com a regressão?), até que saiba que foi reconhecido inocente?
E o direito à indenização? Visa a beneficiáBlo, porque se lhe negou outro
direito, isto é, aguardar livre o trânsito em julgado, ou revela um comportamento
que se quer evitar, qual seja, fazer cumprir pena quem não se encontra
definitivamente condenado?
Um dos direitos sagrados do acusado é de se ver processar pelo rito
adequado e de obter, dentro de prazos razoáveis, a solução judicial do litígio.
Se isso não ocorre e ele está preso, trataBse, então, de prisão ilegal e há de ser
relaxada, como, aliás, prevê a própria Constituição, no inciso LXV, sem que se
precise recorrer a artifícios, tais como “progredirBlhe o regime”.
Não se diga que os tribunais normalmente negam o relaxamento da prisão
em casos tais, pois que também negam reiteradamente a “execução provisória”.
A diferença está em que, conforme o caso, como pensamos, esgrimam com o
bom Direito.
Questão última mais difícil, porém não impossível de ser enfrentada,
reside na alegação de que a prisão decorrente de sentença condenatória nãoB
definitiva não tenha natureza cautelar, mas seja efeito mesmo da condenação,
sujeita à condição resolutiva consistente na decisão de segundo grau, em face
da identidade com o que ocorre, quando exclusivamente pendem de julgamento
recursos especial ou extraordinário, hipóteses tratadas uniformemente pela
doutrina, sem que se lhes reconheça personalidade cautelar.
Sem dúvida, o disposto nos artigos 27, § 2°, da Lei n° 8.038, de 1990,21 e 637
do CPP22 parece induzir que a execução provisória é regra no processo penal.
Todavia, convém esclarecer e distinguir as hipóteses. Como emerge cristalino
da lição de Barbosa Moreira,23 os recursos extremos cuidam de casos em que a revisão
proposta se volta ao direito aplicado, e não mais aos fatos, sendo bastante limitativos,

21 “Os recursos extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo.”


22 “O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo e, uma vez arrazoados pelo recorrido os autos
do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.”
23 Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1993, vol. V.

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pois, quanto aos conteúdos, de sorte a propiciar a execução, haja vista a confirmação, em
segundo grau, da sentença condenatória.24
É da salutar tradição do nosso Direito permitir a execução, até em razão de
impedir o recurso aos meios extremos, como forma de retardáBla indevidamente,
sovada procrastinação que, a rigor, não se compadece com os legítimos anseios
da justiça.
No entanto, de conteúdo mais amplo, a apelação revelaBse como direito
inexpugnável daquele que se sentiu prejudicado indevidamente pela primeira
decisão proferida, consistindo, antes de tudo, em reação natural do ser humano, o
que confere ao segundo grau de jurisdição status de real princípio constitucional.
Neste caso, não se justifica, e a própria Constituição proíbe, por intermédio de
outro princípio hierarquicamente superior – presunção da nãoBculpabilidade
–, que se prenda como efeito da sentença condenatória, para possibilitarBlhe a
execução provisória.

5. A Prisão e a Periculosidade do Condenado

Outra vertente que não pode deixar de ser arrostada cuida da análise da
questão á luz da periculosidade do apenado.
Salienta o professor Weber Batista25 que, na hipótese examinada, “o juízo de
cautela é mero juízo de periculosidade, não de culpabilidade”, acrescentando o ilustre
mestre que “ao determinar a prisão do réu condenado, porque reincidiu na prática de
crime ou porque tem maus antecedentes e cometeu um delito de maior gravidade, (...) a
lei não o presume culpado, mas perigoso”.
Com a clareza de sempre, aduz o referido professor que a consideração da
periculosidade do condenado aporta no sistema processual por meio da própria
Constituição, no artigo concernente aos direitos e garantias fundamentais, nos
casos em que, à vista da gravidade do delito, o legislador constituinte interditou
ao réu uma série de direitos. Assim, nos incisos XLII, XLIII e XLIV do artigo 5°,
estão previstas restrições processuais baseadas na gravidade do fato e, por isso,
na periculosidade do agente.
A despeito da discussão que o tema periculosidade pode gerar – não nos
esqueçamos, como lembra René Ariel Do[i,26 que “um direito penal próprio de um
Estado social e democrático rejeita a periculosidade como fundamento ou limite da penal,

24 Op. cit., p. 531: “Permite o recurso extraordinário, pois, tãoBsomente a revisão in iure, ou seja, a
reapreciação de questões de direito (constitucional federal) enfrentados pelo órgão a quo”.
25 Op. cit., p. 212.
26 Reforma Penal Brasileira, Rio de Janeiro, Forense, 1988, p. 269.

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o que ocorre nos regimes totalitários quando a indefinição das acusações criminais se
concilia com o caráter fluido do estado perigoso e permite a imposição de sanção
penal de cariz evidentemente preventivo” –, é indiscutível que o reconhecimento
da periculosidade pressupõe a admissão da culpabilidade do agente, pois que
abolida a periculosidade normativa, com a reforma penal de 1984, recaindo na
problemática que Weber Batista quis evitar, isto é, a presunção da culpabilidade.
Afirmar que o réu – em face de quem há indícios de autoria, além da
prova da materialidade de infração grave, mesmo que esses indícios tenham
sido suficientes para convencer o juiz a condenáBlo – é perigoso e, portanto,
deve ser preso ainda que não tenha transitado em julgado a decisão, partindo
exclusivamente da categoria do delito, restaura o sistema anterior, com todos
os seus inconvenientes, refletindo uma verdadeira antecipação de tutela,
mascarada de cautela.
As medidas cautelares caracterizamBse exatamente por “não constituírem um
fim em si mesmas”, conforme salientou o próprio mestre em obra anterior,27 mas
“estarem a serviço de outra providência”, relativa ao processo principal, razão pela
qual, assinalou Calamandrei, modulamBse como instrumento do instrumento.
No entanto, ao prendermos o acusado porque tem maus antecedentes ou
não é primário, baseados na sua periculosidade presumida, estamos apenas
presumindoBlhe a culpabilidade, porque não é mais necessário assegurar o
processo de conhecimento – já há sentença de mérito –, e a garantia da aplicação
da lei penal por meio da prisão do condenado exige ato que ele haja praticado
no curso do feito ou mesmo na fase préBprocessual, independentemente de sua
culpa ou inocência, reduzindoBse, pois, o fato à mera aplicação da pena, antes do
trânsito em julgado. Isso, a Constituição Federal nos impede de fazer.
Releva notar que os paradigmas constitucionais invocados chegam ao
máximo, no tocante às restrições processuais, vedando a afiançabilidade das
infrações perigosas, critério até certo ponto adotado, também, pelo legislador
ordinário – artigo 323 do CPP –, porém nunca eliminando a possibilidade de
liberdade provisória sem fiança.
Portanto, não restauram a prisão compulsória, e não é lícito ampliarBlhes
o âmbito de incidência, para escorar interpretação que pode nos conduzir a
rematadas injustiças, tais como garantir ao condenado primário e de bons
antecedentes – ótimos antecedentes, na verdade, detentor de boa situação social
e econômica –, condenado por homicídio qualificado, a dezoito anos de reclusão,
aguardar solto o trânsito em julgado da sentença, enquanto o reincidente – autor

27 Weber Martins Batista, Liberdade Provisória, Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 6.

20
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de vários furtos –, malgrado desde o princípio conteste a pretensão punitiva


estatal, deve esperar preso pelo resultado do recurso que interpôs contra a
sentença que o condenou a dois anos de reclusão.

6. A Natureza Cautelar e as Bases do Processo Penal Moderno

Cremos importante estabelecer que a vedação à execução provisória da sanção


penal, conseqüência de se atribuir à prisão decorrente de sentença penal condenatória
recorrível natureza cautelar, e não julgáBla efeito da condenação, revelaBse própria
de um Estado Democrático de Direito, em que o exercício do poder é legitimamente
controlado, evitandoBse que erros ou abusos daqueles aos quais se confia a tarefa de
julgar evoluam na direção nãoBdesejada do arbítrio, que anda de mãos dadas com
leis extravagantes e perversamente severas, hediondas.
No campo do litígio penal, em que, de um lado, avulta o interesse
público na repressão das condutas criminosas, pela aplicação da sanção
penal, e, do outro, o não menos público interesse na proteção dos direitos
do homem, especialmente o de liberdade, verdadeiro condomínio social, a
questão ora enfocada deve ser vista pelo prisma das liberdades públicas,
garantidas constitucionalmente, impondoBse sobre a casuística do combate
à criminalidade, com as vistas voltadas ao fenômeno apenas no seu aspecto
exterior, sem a preocupação de encararBlhe as causas, dimensionadas no
agravamento das distorções sociais e econômicas que nem o mais conservador
dos juristas pode ignorar.
Assim, quando diante de uma norma como a do artigo 2°, § 2°, da lei dos
crimes hediondos,28 que subverte a ordem das coisas, há de se lhe acoimar de
inconstitucional, seja porque explicitamente exige que se declare o que deveria
ser a regra, aguardar livre o trânsito em julgado, seja porque implicitamente
possibilita a esdrúxula interpretação, em razão da qual se dispensa o juiz de
declarar os motivos de negar ao réu o direito de recorrer solto. FereBse a liberdade
pública, que se diz pública justamente porque do Estado é que se cobram as
medidas necessárias a asseguráBla.29
Sobre este ponto, cumpre recordar a lição de Ada Grinover, isto é, que os
direitos observados no cenário processual são, antes de tudo, direitos do réu,

28 “Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em
liberdade.”
29 ObservaBse que a liberdade jurídica, radicada no reconhecimento legal da possibilidade de
determinado comportamento, não se denomina pública porque interdita ao Estado atos objetivando
dela privar o indivíduo, deixando de lado os conflitos intersubjetivos dos quais, a priori, o mesmo

21
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constituindo o processo penal verdadeiro instrumento de tutela da liberdade


jurídica dele.30
No conflito entre as “exigências comunitárias de repressão” e a tutela das
liberdades do réu, procura a autora o tertius inter partes, capaz de solucionar
adequadamente o litígio, sempre, em qualquer caso, com a preservação da
posição jurídica do incriminado:
“É dentro do processo penal, entendido como instrumento da persecução,
que a liberdade do indivíduo avulta e se torna mais nítida a necessidade de se
colocarem limites à atividade jurisdicional. A dicotomia defesa socialBdireitos
de liberdade assume freqüentemente conotações dramáticas no juízo penal; e
a obrigação do Estado de sacrificar na medida menor possível os direitos de
personalidade do acusado se transforma na pedra de toque de um sistema de
liberdades públicas.31

7. Conclusão

Diante do exposto, a conclusão inevitável consiste em admitirBse que a prisão


decorrente de sentença condenatória ainda nãoBdefinitiva tem natureza cautelar,
subsistindo desde que se verifiquem os pressupostos estatuídos no artigo 312 do
CPP, independentemente de o réu ser primário e gozar de bons antecedentes, ou
ainda ser afiançável, ou daquelas em que o condenado se livre solto da infração
cujo cometimento se lhe atribui, vergandoBse, por inconstitucional, a prisão
como efeito da sentença condenatória, passível de execução provisória.
Mutatis mutandis, aplicaBse o mesmo à hipótese de prisão decorrente de
pronúncia e, ainda, a temporária, em qualquer caso prevalecendo o entendimento
de que a prisão processual, por imposição do artigo 5°, inciso LVII, da CR, haverá
de ser sempre cautelar, variando tãoBsomente o grau de certeza que se cobra em
face do fumus boni juris, mais tênue, por exemplo, na prisão temporária, mais
acentuado na que decorre de sentença condenatória.
De todo modo, reconhecendoBse a natureza cautelar, vitoriosa estará
a tese do processo penal democrático, em face do autoritário, pois que, “no

Estado não participa, mas, a rigor, porque é do Estado que se cobram as necessárias ações que visam
a garantiBla.
30 “Mas, se, do ponto de vista da persecução penal, os direitos do acusado se colocam como limite à
função jurisdicional, de outro lado, é o próprio processo penal que se constitui em instrumento de
tutela da liberdade jurídica do réu” (Liberdades Públicas e Processo Penal, Revista dos Tribunais, 1982,
p. 15).
31 Op. cit., p. 20.

22
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Estado Democrático, o processo penal não pode ser senão estatuto jurídico das
liberdades públicas”.32
Bibliografia

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TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. 3, São Paulo: Saraiva, 1978.
TOURINHO, Fernando da Costa F. Processo Penal, vol. 3, São Paulo: Saraiva,
1989.
TOVO, Paulo Cláudio. Primeiras Linhas sobre o Processo Penal em Face da Nova
Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1989.

32 Ada P. Grinover, op. cit., p. 50.

23
O Direito ao Silêncio1

1. Introdução

Há quinze anos, Ada Pellegrini Grinover fazia publicar artigo sobre o inB
terrogatório do acusado e o direito ao silêncio2 que rapidamente se transformou em
um clássico na doutrina brasileira. As razões para isso, em síntese, derivaram da
correta percepção do interrogatório do réu como meio de defesa e, eventualmente,
fonte de prova3, e não, como até então se defendia, meio de prova.
Atualmente, em vigor Constituição da República que de forma expressa
garante ao preso o direito de permanecer calado – artigo 5º, inciso LXIII – e
integrando regularmente o nosso ordenamento jurídico a Convenção Americana
de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que em seu artigo 8º
prescreve, no rol das garantias judiciais, o direito de não ser (a pessoa) obrigada a
depor contra si mesma, nem a confessar/se culpada (letra “g”), a tudo se acrescentando
a instrumental presença de Defensor desde o início de qualquer procedimento
persecutório, parece fora de dúvida que as práticas judiciárias abandonaram à
própria sorte a chamada confissão extrajudicial, desamparada da orientação ao
investigado de que tem o direito de permanecer calado, especialmente quando
produzida com exclusividade na atividade de investigação criminal, na fase
preparatória ao processo de conhecimento de cunho de condenação.
Ocorre que nem sempre a disciplina normativa assegura a efetividade
dos direitos, mesmo quando, como no caso dos interrogatórios promovidos
pela autoridade policial, a avaliação do material colhido, ao nível provisório e
superficial se a hipótese é de receber denúncia do Ministério Público, ou em
cotejo com provas adquiridas ao longo do processo, se o momento é de cognição
exaustiva e emissão de sentença de mérito, é incumbência principal do juiz.
É que a prática do foro tem revelado, mediante o emprego de técnicas de
dissimulação às vezes inconscientes, que aquilo que a Constituição quis impedir

1 Publicado originalmente em Juris Poiesis Revista de Direito dos Cursos da Universidade Estácio de
Sá, Rio de Janeiro, v.1, n. 1, p.159B169, 1999 e na Revista Doutrina. Instituto de Direito, Rio de Janeiro,
1ª edição, p.43B52, 1999.
2 GRINOVER, Ada Pellegrini. Uma Proposta Inovadora no Processo Penal, in: O Processo em sua Unidade –
II, Rio de Janeiro, Forense, 1984.
3 Op. cit., p. 228.

25
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de forma direta, tal seja, a coação sobre a pessoa investigada de sorte a dela
extrair a confissão, em muitos aspectos ainda esperada com ansiedade, acaba
invadindo o processo de modo sutil, sinuoso, esvaziando no plano prático a
indiscutível proteção constitucional.

2. A confissão do imputado

Hélio Tornaghi conceitua confissão como sendo a declaração pela qual alguém
admite ser autor de crime4, aduzindo ainda que confessar é aceitar, como verdadeira,
a autoria de um fato ilícito, puro e simples, ou de circunstância exacerbante5.
Muito embora haja predominante reconhecimento de que a confissão, como
tal, só deve ser assim considerada e convencer o juiz se tiver sido produzida
em juízo, isto porque, admitida com reservas como meio de prova, prevista
no Código de Processo Penal, em capítulo que está a indicar a indispensável
mediação do julgador, submeteBse à exigência de índole constitucional em
virtude da qual toda prova oral deve ser colhida em juízo6, na realidade dos fatos
infelizmente a chamada confissão extrajudicial acaba tendo seu valor.
Sérgio Demoro admite para as declarações do investigado, indiciado,
adquiridas na etapa prévia ao processo, a qualidade de mero indício, apesar
de acreditar que para as condenações penais o indício, por seus próprios méritos,
nada vale7. Todavia, e ainda sem discutir sobre a adequação do entendimento do
ilustre processualista, desmistificada está, nos dias de hoje, a idéia corrente de
que condenações não se fundam em indícios, provas críticas, mas tãoBsomente
em provas diretas, históricas8.
É verdade que os indícios só poderão ser validamente considerados
pelo juiz, como meio de prova, se a sua aquisição houver sido permeada pelo
contraditório. Sem isso, do ponto de vista jurídico e, especificamente, na visão do
direito processual constitucional, por maior que seja a aptidão de convencimento
do elemento demonstrativo, este dado estará obstado em seu efeito de motivar
a convicção do julgador. Contudo, desde que tenha preenchido a cláusula
constitucional, servirá o indício, como elemento indireto de demonstração de

4 TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. 4, São Paulo, Saraiva, 1978, p. 46.
5 Idem.
6 HAMILTON, Sérgio Demoro. O Desvalor da Confissão Policial, in: Temas de Processo Penal, Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 1998.
7 Op. cit., p. 136 e 138.
8 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A Prova por Indícios no Processo Penal, São Paulo, Saraiva,
1994.

26
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um fato penalmente relevante, para fundamentar a crença do juiz a propósito


do fato objeto de prova.
Novamente aí temos a aparência do perfeito enlace entre as normas
constitucionais, situadas em estágio normativo superior, e as do direito processual
ordinário, que ditam a regra pela qual a confissão extrajudicial – especialmente a
policial – característico indício interno9, isoladamente não é prova e, portanto,
não está apta para influir no convencimento do juiz.
A harmonia no entanto é somente aparente. Com efeito, o próprio Sérgio
Demoro, referindoBse ao magistério consagrado de Damásio de Jesus e Tourinho
Filho, menciona a percepção crítica da doutrina a respeito da inclinação da
jurisprudência no sentido de considerar que a confissão extrajudicial, corroborada
por outras provas, é levada em conta, na sentença, pelo juiz. SalientaBse que
quando isso acontece, em realidade está a se considerar tãoBsó as outras provas,
uma vez que a confissão policial, insulada, nada significa.
Muito embora a explicação seja válida no plano jurídico, se estivermos
atentos ao que de certo ocorre, aplicando aos casos método sociológico e deixando
de lado a tendência a querer adaptar os fatos às nossas convicções científicas,
a grande verdade é que o juiz não apenas estará considerando a confissão
extrajudicial, como muito provavelmente ela terá reforçado o seu convencimento
a propósito das provas colhidas e não o contrário. Quantas vezes os advogados
não se deparam, no foro, com decisões lastradas em fiapos de prova que estão
exclusivamente presos à confissão extrajudicial – principalmente à policial – que
arrematam as condenações!
Isso pode ser entendido de duas maneiras, reciprocamente condicionadas:
de um lado prevalece em nosso País, independentemente do esforço expressivo
em sentido contrário, empreendido por intermédio do movimento que resultou
na Constituição da República de 1988, a cultura inquisitória, alicerçada na crença
em uma verdade real como objetivo primordial a ser alcançado no processo
penal; de outra parte, os juízes, em número também significativo, malgrado a
indiscutível imparcialidade e honestidade intelectual com que operam o direito,
ainda acreditam na confissão como prova situada em um plano superior.
Lembrando passagem de Hélio Tornaghi10, é incontestável que para o juiz,
homem comum, “é sumamente tranquilizador... ouvir dos lábios do réu uma narrativa
convincente do fato criminoso, com a declaração de havê/lo praticado. Isso, aliás, acontece
a qualquer homem normal”.

9 Idem, p. 76.
10 TORNAGHI, Hélio. Op. cit. P. 47.

27
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A admissão pela pessoa investigada, posteriormente acusada, da prática


da infração penal não só influencia de modo tranquilizador a consciência do
juiz penal, no instante da sentença, como age da mesma maneira em relação
aos demais atores da própria investigação, que por razões variadas, sérias
ou inconfessáveis, acomodamBse à confissão para dela tentar extrair o maior
proveito sem despender energia em busca de um mais abrangente acervo de
informações e alternativas de explicação.
Focalizando o aspecto psicológico também é possível aditar que juízes,
promotores de justiça e mesmo as autoridades policiais comungam a crença
de que as normas de experiência nos ensinam que a primeira e espontânea
declaração do investigado é verdadeira, ao contrário das demais, quando já
está orientado pelo Defensor ou teve tempo de refletir melhor e preparar suas
próprias desculpas11.

3. O devido processo legal e a legitimidade da decisão judicial

Tudo o que se examinou até o momento está fundado na concepção de que


a sentença penal, traduzindo a justa solução de conflito de interesses de suma
relevância social, é o resultado da atividade empreendida pelo juiz e pelas partes
em torno da verdade real, isto é, da correspondência absoluta entre o fato histórico
analisado no processo e a sua prova.
Por essa razão, a nosso juízo falaciosa, acentuaBse que o juiz penal deve
estar seguro ao máximo sobre a pertinência das questões de fato propostas e, em
busca dessa segurança absoluta ou total, com projeção obrigatória na motivação
da decisão definitiva da causa, ancorará sua certeza naqueles elementos de
convicção que a experiência recomenda como os mais confiáveis. Daí a predileção
pela confissão, que certamente não surge com exclusividade no conjunto dos
dados de convicção apontados pelo julgador, mas que pode ser percebida em
virtude da recorrente menção a ela como reforço de convencimento.
Muitas são as sentenças que, reconhecendo a responsabilidade penal do
acusado pela prática, por exemplo, do crime de venda de substância entorB
pecente, argumentam com a validade do depoimento exclusivo dos policiais que
prenderam em flagrante o réu, e em seguida destacam do próprio depoimento
dos policiais a circunstância alegada do acusado ter confessado aos autores da
prisão o crime e a sua condição de traficante.

11 CASTRILLO, Eduardo de Urbano e MORATO, Miguel Angel Torres de. La Prueba Ilícita Penal: Estudio
Jurisprudencial, Pamplona, Aranzadi, 1997, 59.

28
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Um destaque dessa ordem só tem sentido se o juiz não está totalmente


seguro do lastro probatório da sua conclusão e, diante da obstinada negativa
do acusado, apresentada quer perante a autoridade policial, a quem muitas
vezes se recusou a declarar quando ainda indiciado, quer perante o próprio juiz,
precisa ter a consciência tranqüila de que para a condenação não concorreram
tãoBsomente os depoimentos dos policiais mas a própria admissão do agente,
espontânea e livre de esquemas de justificação.
Ora, este estado de coisas despreza o gradual avanço da nossa civilização,
que aos poucos extraiu das experiências discriminatórias e violentas da repressão
penal, típica de Estados autoritários e totalitários, os mecanismos que devem
ser decididamente abolidos, porquanto representam sistemática violação da
dignidade humana.
O monopólio legítimo da violência pelo Estado há de considerar a
legitimidade no exercício de todas as formas de poder, processo de legitimação
que exige que o próprio Estado atue conforme o mínimo ético pactuado na carta
de direitos fundamentais. Não cabe ao Estado, pelos seus agentes, já se disse
tantas vezes, baldar as regras éticas de conduta na repressão às infrações penais,
a pretexto de conferir maior funcionalidade ao sistema de controle social.
No processo penal, a legitimidade está erguida sobre dois pilares
interrelacionados: o primeiro cuida do valor de verdade que a sentença há de
acolher e prestigiar; o segundo refereBse ao procedimento como instrumento de
tutela dos direitos e interesses da pessoa sujeita ao processo criminal.
Luigi Ferrajoli assinala que a função jurisdicional, no processo penal, está
legitimada pelo grau de verdade em que está inspirada a sentença penal. Com efeito,
o fato suposto ao qual a acusação atribui relevância jurídica, pela conseqüência
que deriva de seu reconhecimento, isto é, a imposição da sanção penal, deve ser
efetivamente demonstrado no processo, porque de outra maneira a solução
representada pela sentença estará alicerçada em bases falsas e será injusta12.
Tanto isso é verdade, no direito brasileiro, que muito embora haja consideração
constitucional do primado da coisa julgada, admiteBse expressamente, em nosso
ordenamento, a revogação da sentença de condenação transitada em julgado
quando se descobre que está motivada em elementos falsos, não verdadeiros
(artigo 621 do Código de Processo Penal: falsidade porque a sentença é contrária
à evidência dos autos, porque não é verdadeira a denotação jurídica do fato,
isto é, a sentença foi contrária ao texto expresso de lei; porque a sentença se
fundou em documentos, exames ou depoimentos comprovadamente falsos; ou

12 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, Madri, Tro[a, 1997.

29
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ainda porque depois da sentença foram descobertas novas provas da inocência


do acusado ou de causa de diminuição de pena).
Da busca da verdade nasce, para a maior parte da doutrina penal, a crença
mais ou menos difundida da existência de um poder de investigação judicial13
em virtude do qual, disciplina o nosso direito positivo, no artigo 156, parte final,
do Código de Processo Penal, o juiz poderá determinar de ofício diligências para
dirimir dúvida sobre ponto relevante da causa.
Acontece que, mesmo para o juiz, a busca da verdade real tem limites. Se é
tarefa do processo penal definir os modelos de compreensão que possibilitem que o juiz
não erre na formação da sua convicção14, a eficiência na prestação da justiça não é
um valor absoluto.
Aos amplos poderes de investigação, exercitados pelo Estado (Ministério
Público e autoridade policial), em razão da suspeita da existência de uma infração
penal, correspondem outros tantos direitos do investigado ou do acusado, por
meio dos quais são protegidos os inocentes e evitados os abusos. Do equilíbrio
entre estas funções, resumido na tutela dos direitos fundamentais e investigação
da verdade, dimana a real legitimidade democrática do processo penal e o poder
de império da sentença emitida15.
Assim, não obstante o valor de verdade que pode estar encarnado em
determinado meio de convicção, sua admissão no processo penal estará
condicionada ao modo pelo qual foi obtido, porquanto inadmissíveis são as provas
ilicitamente adquiridas – artigo 5º, inciso LVI, da Constituição da República. Desse
modo, protegemBse as pessoas contra torturas, extorsões, astúcia ou ameaças de
todo tipo, que maculam o ato de apreensão da prova e simultaneamente tornam
os órgãos estatais receptores de material criminosamente obtido16. Salienta
Costa Andrade, em magistério perfeitamente adequado ao nosso sistema, que
“o fim da pena é a confirmação das normas do mínimo ético, cristalizado nas leis penais”
e acrescenta que esta “demonstração estará frustrada se o próprio Estado violar o
mínimo ético para lograr a aplicação de uma pena. Desse modo, ele mostra que pode
valer a pena violar qualquer norma fundamental cuja vigência o direito penal se propõe
precisamente assegurar”17.

13 DIAS, Jorge de Figueiredo. O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1992.
14 HASSEMER, apud NETO, Theodomiro Dias. O Direito ao Silêncio in: Revista Brasileira de Ciências
Criminais, n.º 19, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 180.
15 GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais,
1982, p. 20.
16 ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 44.
17 Idem, p. 15.

30
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RepitaBse para sublinhar este ponto: a proibição da prova ilicitamente


obtida foi uma das maneiras encontradas pela Constituição de tutelar os direitos
fundamentais, quando em oposição à pretensão de natureza criminal. Da mesma
maneira, inadmissível será o elemento de convicção que, levado aos autos em
procedimento regular, tenha por origem prova ilicitamente obtida – a prova
ilícita por derivação.
No caso penal, à pretensão do Estado opõeBse a pretensão do acusado e de
seu defensor à tutela jurídica, resistindo aos interesses do autor, nota característica
do direito de defesa. Justamente porque a tutela jurídica dos interesses do
acusado repousa na proteção dos direitos fundamentais, é que se aceita que a
verdade tangida pela sentença há de ser tãoBsó a verdade contingente, própria
da natureza humana e das circunstâncias históricas, obtida com as cautelas
inerentes à preservação da dignidade humana (verdade forense), e não uma
verdade real e absoluta, cujo significado filosófico é até mesmo difícil de determinar.
Neste contexto situaBse o direito de defesa. Gilmar Ferreira Mendes nos
remete à histórica intervenção de João Barbalho, a propósito de comentar a
Constituição de 1891, para ajustar as práticas judiciais aos meios e fins coerentes
com nosso estágio de desenvolvimento. Vale, pois, destacar a intervenção, de
início do século:

“Com a plena defesa são incompatíveis, e, portanto, inteiramente


inadmissíveis, os processos secretos, inquisitoriais, as devassas,
as queixas ou o depoimento de inimigo capital, o julgamento de
crimes inafiançáveis na ausência do acusado ou tendo-se dado
a produção das testemunhas de acusação sem ao acusado se
permitir reinquiri-las, a incomunicabilidade depois da denúncia,
o juramento do réu, o interrogatório dele sob coação de qualquer
natureza, por perguntas sugestivas ou capciosas.”18

4. Do dever de instrução e de seu alcance

Porque é condição de validade da sentença que profere determinar se a


prova invocada pelas partes é admissível, para efeito de avaliação, de modo
conseqüente à sua forma de aquisição e introdução no processo, cabe sempre ao

18 BARBALHO, João apud MENDES, Gilmar Ferreira. Significado do Direito de Defesa in: Direitos
Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, São Paulo, Celso Bastos, 1998, p. 93.

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juiz indagar se a Constituição da República foi realmente respeitada antes de dar


por demonstrados (ou não) os fatos.
Para tanto, pressupõe harmonia com a Constituição, nos limites estreitos da
presente investigação, toda e qualquer declaração do acusado, nesta qualidade
ou antes ainda, quando suspeito ou indiciado, se a ele foi comunicado o direito
de permanecer calado, pilar do direito de não produzir prova contra si mesmo.
Nemo tenetur se detegere. Fora disso, inválida será qualquer declaração do
agente, sob todos os aspectos, inclusive para sustentar, na qualidade duvidosa
de indício, a legalidade de procedimentos de aquisição de provas.
É de se argumentar que apenas a confissão ao juiz, depois da orientação sobre
o direito ao silêncio, e coordenada com provas produzidas em contraditório, tem
o condão de motivar o convencimento judicial.
A análise crítica das práticas judiciárias, contudo, tem revelado que não
raras vezes o juiz considera o depoimento de testemunhas, especialmente de
policiais, sem maior aprofundamento no tocante à colheita de outros elementos
de demonstração, quando as testemunhas admitem ter sabido pelo próprio
acusado, espontaneamente, da condição dele haver cometido a infração penal.
Tal consideração friseBse, não produz seus efeitos com exclusividade no
momento da sentença. Tantas vezes serve para justificar a presença dos requisitos
ou pressupostos das medidas de cautela pertinentes à busca e apreensão de coisas,
objetos materiais do delito ou instrumentos necessários à sua concretização.
A exclusão deste aspecto da prova testemunhal, que em um esquema
funcional eficaz de controle da criminalidade deve ser substituído pela verdadeira
investigação criminal, com efetiva pesquisa de evidências, sem precisar recorrer
à confissão extrajudicial, é imperativo lógico da tutela dos direitos fundamentais,
estacas demarcatórias de um espaço vital mínimo19.
Ademais, ressalteBse, pelo prisma meramente funcional a eficácia das
ações empreendidas a partir, exclusivamente, da suposta confissão do agente
aos policiais, em circunstâncias que a história recente demonstra incapazes de
nos certificar da sua própria idoneidade, é bastante relativa e costuma arranhar
apenas a face superficial da criminalidade, deixando intocadas as engrenagens
mais sofisticadas das ações delituosas que devem ser legitimamente controladas
em um estado democrático.
O Estado, por todos os seus agentes, incluindo aí os policiais que efetuam
a prisão do investigado, é devedor do direito fundamental mencionado, em

19 COMPARATO, Fábio Konder. Liberdades Formais e Liberdades Reais in: Para Viver a Democracia, São
Paulo, Brasiliense, 1989.

32
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relação jurídica predominantemente pública. Nesta condição, do devedor se


espera uma postura passiva, consistente em não provocar o credor do direito no
sentido de obter dele a abdicação e alguma informação que possa prejudicáBlo
futuramente.
Não que o investigado, ao ser preso, esteja impedido de espontaneamente
declarar contra si mesmo. É claro que poderá fazer isso, que dispõe em alguma
medida de seu direito fundamental, ao qual poderá legitimamente renunciar. É
preciso, porém, para que a renúncia ao exercício do direito seja válida e eficaz,
que o preso seja claramente informado de que é titular de um direito e em que consiste,
realmente, o conteúdo deste direito e que isso ocorra em um ambiente no qual a
renúncia possa ser fiscalizada, de modo a garantir que não seja fruto de coações
de toda ordem, como alertava João Barbalho.
Como sujeito de um procedimento, o investigado logo ao ser preso,
no alvorecer da investigação, deve ser informado do seu direito e informado
não apenas pela autoridade policial, quando a prisão já está consumada e
provavelmente o meio de demonstração capturado de alguma maneira. Mas
sim no exato instante em que, devido às circunstâncias, pode se ver mediante
coação, compelido a produzir prova contra si mesmo, cooperando involuntária
ou indevidamente com o Estado, que tem o dever de investigar.
A isto a doutrina denomina de dever de instrução do direito ao silêncio, de
caráter prioritário para o ordenamento jurídico, como salientou Theodomiro Dias
Neto20, porque nestes casos não se pode pressupor o conhecimento do direito. A
máxima consistente em se afirmar que a ninguém é lícito invocar o desconhecimento
da lei há muito não prevalece, em termos de direito penal. Basta analisarmos a
disciplina jurídica do erro de proibição para constatarmos que o Direito opera com
a correta consciência de que a maioria da população desconhece muitos dos seus
direitos, quiçá quando está em oposição aos órgãos de repressão penal, nas áreas
periféricas das grandes cidades.
De acordo com o nosso pensamento, pois, o direito ao silêncio é precedido
do dever de instrução, que não surge para o Estado exclusivamente quando o
investigado vai ser interrogado pela autoridade policial, mas nasce antes, no
próprio instante em que se dá a primeira intervenção sobre a pessoa suspeita,
sendo então mais importante a sua observação uma vez que o contato entre o
suspeito e os agentes das forças públicas de repressão não será mediado quer
pela autoridade policial, na presença de defensor do indivíduo, ou pelo juiz, na
segurança jurídica do procedimento em contraditório.

20 NETO, Theodomiro Dias. Op. Cit., p. 188.

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Tratando da declaração do imputado, sem ser advertido de que é detentor


do direito de permanecer calado, o Tribunal Supremo da Espanha, em sentença
de 11 de abril de 1991, reputou carentes, como meio de prova, as declarações
dos imputados tomadas sem haverBlhes sido instruídos dessa qualidade e do
direito ao silêncio e, em outro julgado, de 5 de outubro de 1994, adotou idêntico
procedimento, anulando os atos praticados, inclusive aqueles pertinentes às
diligências prévias, salvo a demonstração de antecedentes penais21.

5. Conclusão

Assim postos os limites pertinentes à intervenção sobre o investigado,


a confissão e o direito ao silêncio decorrerão, conforme o caso, de práticas
constitucionalmente válidas, ao mesmo tempo em que a proteção à dignidade
da pessoa investigada alcançará limites reais e não simplesmente retóricos,
obstandoBse a fraude à Constituição na produção do material com o qual o juiz
formará o seu convencimento.
Não há prova ou mesmo indício, caso não se considere a este último como
prova, na confissão desprovida da implementação do direito ao silêncio, em
qualquer etapa da persecução penal.
Na hipótese da prova originarBse exclusivamente de confissão a que se
furtou o cumprimento do dever de instrução, há de ser considerada, a prova,
como derivada daquela ilicitamente obtida, interditandoBse a sua avaliação.
Em uma abordagem crítica é possível dizer que o dever irrestrito de
instrução sobre a existência e conteúdo do direito ao silêncio, difundido
amplamente e tutelado pelos tribunais de modo eficaz, pode ser fator sensível
de consagração da máxima pela qual os direitos não reconhecem limitação
subjetiva ou territorial (não valem exclusivamente para as pessoas de cor branca
ou que moram no asfalto), cumprindo o fim de universalidade que é próprio à
sua vocação.

21 CASTRILLO, Eduardo de Urbano e MORATO, Miguel Angel Torres. Op. cit., p. 64.

34
Duplo grau de jurisdição no processo penal
brasileiro: visão a partir da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos em
Homenagem às idéias de Julio B. J. Maier22

Introdução

O nosso tema é o juiz natural e o duplo grau de jurisdição na perspectiva dos


direitos fundamentais. Em primeiro lugar, convém levar a cabo uma observação
bastante simples: a idéia do princípio do juiz natural está indissoluvelmente
conectada à do devido processo penal. E no nosso país o devido processo legal
tende a se apresentar como um processo de partes, quando se trata do exercício
da ação penal condenatória promovida em um processo de conhecimento
condenatório.
Nesta perspectiva, como é possível conceber um processo de partes?
Eu sugiro que se parta da idéia de Julio Maier, que se vale da metáfora de
uma partida de futebol23. Uma partida de futebol será disputada por duas
equipes, cada uma delas com onze jogadores. É evidente que a igualdade que
se exige para a disputa é, pelo menos, uma igualdade formal. Esta igualdade
deverá ser, todavia de tal modo incrementada de sorte a permitir em tese
o prognóstico de sucesso de ambas as equipes, isto é, desde o início do
processo penal os resultados favoráveis a ambas as partes não podem estar
previamente excluídos.
Desse modo, a igualdade de partes deve ser encarada como igualdade
de oportunidades, que indispensavelmente pesará a desigualdade material
entre os dois sujeitos em posição de enfrentamento. Daí a advertência de que

22 Síntese da palestra proferida no Seminário Direito no Século XXI, promovido pela Universidade
Estácio de Sá e pelo CEPAD, no Hotel Glória, Rio de Janeiro, publicada em 2001 em Direito Penal
e Direito Processual Penal: uma visão garantista, organizado por Gilson Bonato, Rio de Janeiro,
Lumen Juris.
23 MAIER, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Tomo I: Fundamentos, Buenos Aires, Del Puerto, 1999, p. 22.

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essa igualdade só terá plena condição de se efetivar na medida em que os dois


sujeitos processuais parciais puderem dispor das mesmas armas ou de armas
(instrumentos processuais e recursos materiais) equivalentes e souberem com
antecedência quais são as regras do jogo. O que é permitido fazer? O que é
proibido fazer? O que se deve fazer para que se conquistar o gol, tal seja, alcançar
o resultado mais favorável? Nesta linha de raciocínio, o que é necessário para
convencer o juiz a respeito da procedência ou improcedência da pretensão
deduzida? Como se deve agir para oferecer uma resistência real e efetiva à
pretensão deduzida?
O conhecimento prévio das regras do jogo é essencial ao conceito de devido
processo penal. Mas não basta o conhecimento prévio, uma vez que esta partida,
como é uma partida que tem regras, deve admitir a possibilidade de os sujeitos
que a estão disputando violarem estas regras.
Em virtude disso incumbe determinar um árbitro que fiscalize com rigor
o respeito às regras do jogo pelos dois sujeitos. A figura do juiz no processo
penal brasileiro, no meu modo de entender, é a do sujeito que tem este papel de
fiscalização da atuação, ação e reação, do acusador, a atuação, ação e reação da
defesa imaginada em uma dupla dimensão, em relação à qual cada um deles –
réu e seu Defensor B dispõe de estatuto jurídico peculiar24.
E ao nosso juiz, em um primeiro momento, cabe exercer a função de
árbitro. Ocorre que a condição sine qua non de todo árbitro é de que seja
imparcial. O árbitro tem de ser imparcial para que sua atuação mereça
credibilidade, a confiança dos sujeitos processuais e também a confiança
da sociedade em geral, confiança esta de que o conflito levado ao judiciário
será resolvido conforme as regras postas pela Constituição e pelo Direito
Penal. De ressaltar que no processo penal, diferentemente de uma partida
de futebol, esta imparcialidade vai um pouco mais além. Quando o jogo
de futebol termina, a função do árbitro está esgotada. No Processo Penal
quando o juiz encerra o processo, o faz normalmente definindo a causa. É,
pois, um árbitro que diferentemente dos demais, declara um vencedor. Ele
diz: “julgo procedente o pedido formulado pelo Ministério Público; julgo
procedente a pretensão acusatória e condeno réu” ou “julgo improcedente
ou parcialmente procedente o pedido de condenação”.
Pois bem, esta característica do juiz como órgão do Estado responsável pela
definição das causas, exige algo mais do que uma imparcialidade simplesmente
formal.

24 Ver do autor SISTEMA ACUSATÓRIO, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2001.

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Do princípio do juiz natural

A história do princípio do juiz natural é a história da proibição da justiça


excepcional, dos tribunais de exceção, justiça de exceção que há de ser comB
preendida como a impossibilidade de se instituir juiz para julgar um fato já
ocorrido. Melhor situando o tema cumpre reconhecer que sempre que uma
determinada organização judiciária institui um juiz para julgar um fato, uma
suposta infração penal, se está diante da possibilidade desta definição do juiz em
ocasião posterior ao fato ter sido ditada por razões de ordem política. Interesses
na condenação ou absolvição daquela pessoa, por simpatia ou antipatia política,
irracionalidade, intolerância, podem orientar a escolha do juiz a posteriori,
inviabilizando o julgamento justo.
A garantia da jurisdição, do juízo justo e do devido processo legal, é, antes
de mas nada, a garantia de que as regras do jogo foram estabelecidas antes
do jogo e o árbitro também foi escolhido antes da partida. Este é o primeiro
ponto. Em segundo lugar: elegendoBse o árbitro, é necessário assegurar que ele
continue dirigindo o processo até o final. E que seja responsável pela definição
da causa, daí porque as modificações de competência durante o processo, as
modificações de competência com a partida em andamento, surpreendem as partes
e podem surpreendêBlas em posições absolutamente distintas, encontrando
uma delas num momento desfavorável. Esta alteração que eventualmente o
legislador resolve levar adiante, pode ter como objetivo resgatar o poder da parte
desfavorecida. Isso, obviamente, viola a idéia de igualdade de oportunidades
mencionada no início.
Classicamente o princípio do juiz natural passou a ser percebido, e assim
foi recepcionado no Direito Processual Penal Brasileiro, a partir de dois aspectos
de natureza formal, compreendendo uma dimensão formal deste princípio: a
garantia contra juízes instituídos ex post facto, isto é, a garantia contra juízes cuja
competência para processar e julgar o caso é fixada depois da infração penal; e
a garantia de que não deve haver modificação, alteração na competência do juiz
designado para julgamento da causa, enquanto durar o processo penal.
TrataBse de uma visão estritamente formal e limitada que o Direito Brasileiro
aceitou, e com a qual não concordo totalmente. Em vista desta dimensão
estritamente formal, a criminologia latinoBamericana tem procurado elaborar
crítica que, segundo defendo, é pertinente, na medida em que se esforça para
perceber o que realmente está por trás da organização e atuação do processo
penal. A rigor, a noção de juiz natural incorporada pela nossa doutrina e aceita
nos tribunais não é eficaz no sentido de oferecer efetiva proteção a todos os

37
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possíveis acusados em um processo penal que se desenvolve quase sempre de


forma seletiva e alcança os setores mais empobrecidos da nossa sociedade.
Esclareço este ponto. Com efeito, o árbitro tem o poder de decidir a causa,
de condenar ou absolver o réu. Quando o juiz inicia sua atividade no processo,
não apenas regula a participação das partes, mas tornaBse o destinatário de
todas as informações relevantes que as partes levam ao processo, ou seja, as
partes produzem prova para aquele juiz, a quem tentam convencer. As partes
acreditam que a partir das provas e dos seus argumentos formarão a convicção
do juiz, ou pelo menos contribuirão na elaboração da convicção do juiz, de modo
que a decisão do juiz vá ao encontro do interesse das partes.
Por isso o princípio do juiz natural nunca poderá estar desvinculado da
pessoa do juiz. O princípio do juiz natural, sem que o identifique na pessoa de um
juiz que concretamente presidirá o processo e decidirá a causa, fica totalmente
esvaziado25. Com os olhos voltados à Magna Carta de 1215, sede da primeira e
rudimentar elaboração do citado princípio, é possível notar que, no artigo 20 a
regra estava expressa nos seguintes termos: “Nenhuma multa será lançada, senão
pelo julgamento de homens honestos da vizinhança”. A interpretação que herdamos
do Direito Continental Europeu atribui a este dispositivo o poder de vedação
à instituição de juízes após o fato, com a conseqüente proibição de alterações
da competência durante o processo. Pouco se percebeu, todavia, a ênfase que
naquela época se dava aos homens honestos da vizinhança.
Por que homens honestos da vizinhança? Na realidade, a estrutura do Processo
Penal inglês naquele momento encontravaBse orientada à exigência de que a
decisão fosse proferida por alguém inserido no contexto históricoBcultural da
comunidade na qual viviam o acusado e o acusador. Não se tratava meramente
de uma interpretação valorativa jurídica do fato. Certamente, não se tratava
de atribuir à infração penal, caso se reconhecesse a sua existência, um valor
jurídico. Mais importante do que isso era tentar compreender o homem e o
fato do homem, na dimensão histórica da comunidade e da cultura do próprio
grupo social. Este era o princípio do Juiz Natural no instante do seu nascimento,
mas o desenvolvimento do processo penal, com sua inegável repercussão
política, levou a que especialmente no Continente Europeu ficasse orientado
predominante para a eficácia do Direito Penal.
A cultura inquisitorial que teve seu apogeu na Idade Média, mas que
certamente persiste nos dias atuais, viva em inúmeras categorias e instituições

25 É a posição de BINDER (Alberto, Introducción al Derecho Procesal Penal, Buenos Aires, ed. AdBHoc,
1999) e a nossa, exposta principalmente na Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais Comentada
e Anotada, Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2000.

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jurídicoBprocessuais, revelouBse eficiente ferramenta do poder, na edificação do


moderno Estado territorial. E nesse quadro o processo penal tinha como função
hegemônica servir como instrumento para tornar o Direito Penal efetivo, isto
é, para supostamente viabilizar a punição de cada crime cometido. Essa idéia
de um Direito Processual Penal e de seus instrumentos voltado à efetividade
exclusiva do Direito Penal, não dava conta da tarefa de captar a realidade na
qual estava inserido o acusado, a vítima, enfim todas as pessoas enredadas no
drama penal. Alberto Binder, na obra mencionada, desenvolvendo esta idéia na
Argentina conforme concepção processual penal latinoBamericana desvinculada
da realidade européia, preocupado com a nossa realidade e com as nossas
dificuldades, especialmente aquelas que têm a ver com o poder opressivo dos
Estados latinoBamericanos, que realizam um tipo de controle social direcionado
à manutenção do secular processo perverso de exclusão social.
Binder sublinha que o princípio do Juiz Natural está dotado de uma dimensão
formal, mas também tem, necessariamente, uma dimensão substancial. E esta
dimensão substancial só se realiza plenamente quando a identidade física do
juiz, a vinculação do juiz que colheu a prova, ouviu o réu em seu interrogatório,
presidiu os debates, esta vinculação seja efetiva. Nestas circunstâncias o juiz que
presidiu a instrução estará vinculado e tem o dever de julgar, pois participou do
cenário no qual foram produzidas as informações relevantes.
A consideração de um princípio de Juiz Natural que desmereça isso viabiliza
exclusivamente sentenças que exprimem preocupação tãoBsomente em apresentar
resposta às demandas, às vezes legítimas, às vezes artificiais, de punição e de
retribuição. O juiz que não conheceu diretamente as provas profere sentenças via de
regra sem conexão com a realidade do processo. E aí entra outra questão crucial, na
linha do garantismo penal, que se refere à legitimidade do juiz penal.
Diferentemente dos membros do Executivo e dos membros do Legislativo,
cuja legitimidade decorre de um princípio de maioria, o juiz penal somente
aufere legitimidade se puder decidir de acordo com a realidade, com a verdade
que aparece dentro do processo e não conforme a vontade da maioria.
A verdade processual ou forense, fruto da atividade probatória das partes,
realçada pelos argumentos da acusação e da defesa, em um processo contraditório
no qual os sujeitos parciais de fato tenham podido dispor de paridade de armas
e igualdade de tratamento e no qual, ainda, não sejam admitidas provas ilícitas,
assegura ao juiz legitimidade na medida em que a sentença estiver vinculada ao
valor de verdade. E este valor de verdade se realiza integralmente apenas se o
princípio da identidade física do juiz for respeitado.

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Portanto, minha primeira idéia, relativamente o princípio de Juiz Natural,


consiste em considerar que a identidade física do juiz deve ser categoria jurídica
deslocada do campo dos estudos relativos ao procedimento, para incorporarBse
ao princípio do Juiz Natural. TrataBse de subBprincípio que integra o princípio de
Juiz Natural e confere a este a necessária relevância.
Ainda dentro deste tópico o segundo ponto a ser abordado está em que, como
conseqüência natural da identidade física no processo penal, há a necessidade
de reformulação de todos os procedimentos penais. Tarefa, aliás, que está sendo
levada a cabo pela Comissão instituída pelo Ministro da Justiça e presidida por Ada
Grinover, da qual fazem parte outros grandes juristas brasileiros. É preciso resgatar
a oralidade para dentro do Código de Processo Penal, porque só haverá garantia
de que o juiz decidirá conforme as provas produzidas perante ele e conforme os
argumentos das partes se houver um procedimento concentrado, de modo a
evitar situações que afastem o juiz do processo, e principalmente se houver um
procedimento no qual a audiência seja o “lugar privilegiado para o trato da causa26”.
A oralidade é fundamental para realização do princípio da identidade física
do Juiz, para efetivação deste princípio que é condição sine qua non em termos
de reorganização dos procedimentos para chegarmos à ampla garantia de um
princípio de Juiz Natural.
Há também um terceiro aspecto a ser levado em conta: os critérios de
designação dos juízes, especialmente nos casos de auxílio ou de substituição
eventual. Atualmente, quando o juiz sai de férias ou se afasta por algum motivo,
por exemplo, não há regras no Processo Penal Brasileiro que regulem a matéria.
Não há prévia definição do juiz que substituirá o juiz titular nos momentos de
ausência, nos momentos de férias, ou até mesmo, nos casos de impedimento
ou suspeição. A única forma de se conseguir implementar um princípio de Juiz
Natural consistente e efetivo está em leváBlo ao seu ponto máximo, regulando
também previamente o modo de substituição.
Portanto, essa caminhada em torno do princípio de Juiz Natural, procura
acrescentar à dimensão formal, prevista expressamente na Constituição, no
artigo 5º, incisos XXXVII e LIII, uma dimensão substancial. E essa via passa
necessariamente pela reorganização de procedimentos para implementação
da oralidade, pela concentração dos atos do processo e pela garantia, há muito
tempo perseguida pelos processualistas penais, do princípio da identidade física
do juiz como verdadeiro requisito. É possível aventurar a tese de que a relação
processual penal antes de estar invalidada pelo desrespeito à identidade física,

26 CHIOVENDA, Giuseppe. A Oralidade e a Prova, Rio de Janeiro, Forense, 1940, p. 129B149.

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será atingida em sua existência, pois tal requisito se transformará em verdadeiro


elemento de existência da relação processual.

Do duplo grau na perspectiva proposta

Ora, se somente o juiz que teve contato com as provas e com os argumentos
das partes deve ter o poder de julgar, porque nele é possível depositar confiança
de que terá condição de ajuizar a situação real e ajuizáBla dentro de um contexto
histórico, cultural e social, também a compreensão a respeito do princípio do
duplo grau de jurisdição deve ser alterada.
Com efeito, um sistema de recursos como o brasileiro, que admite que uma
sentença absolutória ou condenatória seja modificada pelo tribunal por meio
de um recurso de apelação, sem que o tribunal tenha apreciado diretamente as
provas e sem que o tribunal tenha ouvido imediatamente os argumentos das partes,
guiandoBse com exclusividade por um mecanismo de interpretação de textos, sobre
os quais o tribunal se debruça (textos da apelação, das contraBrazões, dos termos de
depoimento e de declaração, além da própria sentença que está ali impressa), não
pode substituir o verdadeiro julgamento ou até ser considerado como tal.
Portanto, a oralidade é igualmente imprescindível no âmbito dos recursos,
e mais do que isso, como garantia que se impõe mediante reBinterpretação
constitucional do princípio do Juiz Natural.
Diante disso, a disciplina dos recursos tem de ser concebida de outro
modo, não se visualizando apenas seu aspecto formal, mas também seu aspecto
substancial. Afinal, como os convênios internacionais de direitos humanos
cuidam do duplo grau de jurisdição?
O estudo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ratificado
pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, revela a existência da seguinte regra: “Toda
pessoa declarada culpada, por um delito terá o direito de recorrer da sentença
condenatória e da pena, a uma instância superior em conformidade com a lei.”
O citado pacto, que compõe a Carta de Direitos Humanos, está integrado
ao ordenamento jurídico brasileiro de acordo com artigo 5º § 2º da Constituição
e tem consoante a posição aqui defendida, estatura de norma constitucional,
porque trata de direitos fundamentais.
No artigo 14, nº 5, do Pacto de Direitos Civis está consignado que toda
pessoa declarada culpada, por um delito terá o direito de recorrer da sentença
condenatória e da pena, a uma instância superior em conformidade com a lei. O
Pacto de São José da Costa Rica, que foi introduzido no Brasil pelo Decreto 678,
de 1992, exatamente como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,

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dispõe em seu artigo 8º: “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida com as devidas
garantias e dentro de um prazo razoável, por um Juiz ou Tribunal competente,
independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei na apuração de
qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus
direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra
natureza” e acrescenta, na letra h, que “toda pessoa terá o direito de recorrer da
sentença ao juiz ou tribunal superior.”
Esta pessoa referida é exatamente o acusado e tanto no Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos como no de São José da Costa Rica, a previsão de recursos
para assegurar o princípio de duplo grau de jurisdição é exclusiva da defesa27.
O recurso é concebido, à luz da doutrina brasileira mais aceita, como
prolongamento do exercício dos direitos de ação de defesa28. A ação se prolonga, a
defesa se prolonga, mediante recurso, dando uma idéia de bilateralidade do recurso.
A questão agora é se o princípio de duplo grau de jurisdição, concebido
na esteira das convenções internacionais, comporta esta idéia de bilateralidade?
Para nós a noção mais afinada com as citadas convenções prestigia a idéia
de unilateralidade dos recursos no processo penal, oferecendoBse o direito
somente à Defesa.
Por que somente a Defesa pode recorrer da decisão de mérito? Porque realmente
devemos nos acautelar dos julgamentos injustos que causem prejuízo ao acusado,
impondoBlhe sanção penal que às vezes ele não deveria receber. À acusação, por seu
turno, é dado o direito de, no espaço do processo penal, provar os fundamentos
de sua pretensão, de demonstrar os fatos sobre os quais sustenta seu pedido de
condenação. Se não o consegue, se o acusador não convence o juiz, não há porque
supor que o tribunal que normalmente não terá contato com as mesmas provas e
com os mesmo argumentos, e que se limitará a uma atividade de interpretação de
textos, fará justiça modificando a sentença absolutória.
Esse sistema pelo qual o recurso das decisões de mérito é exclusivo da
Defesa, é uma das coisas boas do Direito angloBsaxão. No Direito Inglês o
recurso é exclusivo da Defesa. Só há recurso da acusação quanto às chamadas
decisões interlocutórias, de natureza estritamente processual. No Direito norteB
americano também. No Direito inglês e no Direito norteBamericano, a idéia do
prolongamento do direito de ação e do prolongamento do direito de defesa
no plano dos recursos implica em violação do princípio do Juiz Natural, nesta

27 Julio Maier, na obra referida, é da mesma opinião, havendo influenciado nosso pensamento.
28 GRINOVER, Ada P. et al. Recursos no Processo Penal, São Paulo, RT, 1999.

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dimensão substancial, porque se o tribunal não teve contato com as provas e não
teve contato com os argumentos das partes não terá, a rigor, como julgar melhor.
Significa também, segundo inúmeras decisões da Corte Suprema dos Estados
Unidos, que o réu que estará sendo submetido a um segundo julgamento pelo
mesmo fato, dessa vez no âmbito recursal e de acordo com Pacto Internacional
dos Direitos Civis, como também de acordo com o Pacto de São José da Costa
Rica, ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato.
Por isso, se a acusação pretende a condenação do réu pela prática de uma
infração penal, que se organize e se prepare para estar em juízo em condições de
convencer o juiz, para estar em juízo em condições de demonstrar a existência
do fato, a responsabilidade do acusado, e o juiz então proferirá sentença
condenatória. Se ela não chegar a ter sucesso em sua pretensão não lhe resta mais
nada e efetivamente se consolida a absolvição nesse plano. Caso seja vencedora,
ao condenado se assegurará o direito à revisão da decisão, pois este é o princípio
do duplo grau de jurisdição em sua dimensão substancial.
No Direito Processual Brasileiro a única coisa mais ou menos parecida
está protesto por novo júri29, quando o réu, processado perante o Tribunal do
Júri, é condenado a uma pena igual ou superior a 20 anos. Basta que a Defesa
requeira ao juiz que o acusado seja submetido a novo julgamento, para que
seja reapreciada a situação do réu, sequer necessitando fundamentar esta sua
pretensão. E o único recurso no processo penal brasileiro que mais ou menos se
aproxima disso são os embargos infringentes30.
No entanto, é válido notar que a própria existência dos embargos infringentes
constitui violência à base de legitimidade do juiz, mencionada antes, porque
o critério de condenação que acaba prevalecendo nos recursos apreciados por
órgãos colegiados é o de maioria. E é certo que a maioria nem sempre está mais
qualificada que a minoria. Se há uma maioria decidindo a favor de uma tese é
porque não há um consenso a respeito da solução da causa e, por sua vez, se não
há este acordo é porque se está diante de uma situação de incerteza. Como se
sabe, a incerteza no processo penal induz à aplicação do princípio da presunção
de inocência, na perspectiva do in dubio pro reo, critério de resolução de incerteza
no processo penal.
No Júri da mesma forma o réu pode vir a ser condenado por quatro votos
a três, cinco votos a dois, seis votos a um, não interessa. No Júri o réu pode ser

29 Artigo 607 do Código de Processo Penal, pelo qual o réu tem, automaticamente, direito a novo
julgamento quando é condenado pelo tribunal do júri por tempo igual ou superior a vinte anos.
30 Artigo 609 do Código de Processo Penal.

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condenado por maioria e, indago de novo, por que a maioria tem de ser crida
como mais qualificada que a minoria?
Na realidade, o que se tem aí, efetivamente, são pessoas que discordam a
respeito da solução da causa, ou seja, há incerteza a respeito daquela solução. E
o critério matemático da maioria é válido no Congresso Nacional para se aprovar
uma lei e é válido no sistema de eleições para se eleger o Presidente da República,
mas não pode ser válido para nos convencer de que uma decisão está mais acertada
do que a outra, uma vez que o fundamento da decisão deve ser a verdade.
Todo o sistema recursal necessita ser filtrado, para em primeiro lugar,
desaparecer o recurso de apelação do Ministério Público contra sentença
absolutória, responsável por uma situação contraditória no Direito Processual
Penal brasileiro. No Pacto Internacional dos Direitos Civis, de aplicação
obrigatória entre nós, consta que: “Toda pessoa declarada culpada por um
delito, terá o direito de recorrer da sentença condenatória.”
Além de tudo, convém registrar a situação paradoxal, criada quando o
tribunal, julgando recurso de apelação do Ministério Público, condena réu que
havia sido absolvido em primeiro grau. Neste caso, no mínimo cabe assegurar ao
réu o direito de recorrer, muito embora não haja no sistema brasileiro um recurso
com a amplitude da apelação de que o novel condenado possa lançar mão quando
condenado no julgamento da apelação. Não há esse tipo de recurso e com todo
respeito à posição esboçada recentemente, por nossos tribunais superiores, isso
significa violação clara de um dispositivo que tem estatura constitucional.
A aplicação do direito ordinário conforme a Constituição no Brasil não
é algo que se faça com facilidade e nesta hipótese as dificuldades redobram
porque sempre virá o argumento: “olha, se o Ministério Público não puder
recorrer da sentença absolutória, mais uma vez estará imperando a impunidade
neste país e etc”. É evidente que o Ministério Público norteBamericano não
recorre das decisões de mérito de natureza penal, pois está proibido de recorrer
das sentenças absolutórias, e lá há dois milhões de presos e cinco milhões de
condenados. Basicamente não consta que haja reclamação por impunidade
nos Estados Unidos da América. Tudo é uma questão de garantir os direitos
constitucionais, e de preparar os operadores jurídicos para atuarem conforme a
Constituição e a lei, de sorte a efetivamente alcançarem o resultado que almejam.

A título de conclusão

Minha contribuição fica limitada, portanto, à proposta de reBinterpretação


do princípio do Juiz Natural, deslocando a oralidade, que seria um princípio

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procedimental, para o núcleo do princípio do Juiz do Natural, que é a verdadeira


garantia da comunidade, em uma dimensão substancial do princípio.
Regras previamente estabelecidas, claras e indiscutíveis sobre a substituição
dos juízes de primeiro grau e no tribunal, para evitar a manipulação quanto a
possíveis decisões no período de férias, licença, suspensão e etc.
Garantia da liberdade dos juízes para julgar conforme a Constituição e
a leis, e conforme a sua consciência. E, como reflexo imediato, o princípio do
princípio do duplo grau de jurisdição, com a abolição por completo dos recursos
contra as sentenças absolutórias e a manutenção exclusiva dos recursos contra
as sentenças condenatórias, com a ressalva da possibilidade de o Ministério
Público ou do querelante recorrerem das decisões desfavoráveis de natureza
interlocutórias.
E com isso, efetivamente, creio que pelo menos a promessa de cumprimento
da Constituição nós estaremos conseguindo cumprir.
No seminário referido na primeira nota vivenciei a espinhosa e dificílima
tarefa de substituir o Mestre queridíssimo, Professor Eugenio Raúl Zaffaroni.
Afirmei que a acusação não tem o direito a apelar. Disse que as sentenças proferidas
por juízes que não tiveram contato com as provas são sentenças inválidas. Ousei,
é certo, mas para esta ousadia, eu digo, para este atrevimento, talvez tenha
buscado inspiração em Zaffaroni. E nesta busca fui em seu livro, em Busca das
Penas Perdidas, para tentar ver se minha esquizofrenia era compartilhada por
outras pessoas também. E Zaffaroni diz, falando a respeito do seu livro Em Busca
das Penas Perdidas, literalmente: “já nos disseram que com este ensaio, estamos
escapando do sistema planetário, o que de certa forma é verdade. Talvez seja
este o ensaio herético, uma irreverência ou um atrevimento: estamos conscientes
de que a descrição da realidade do exercício do poder dos sistemas penais em
nossa região marginal latinoBamericana, e a tentativa subseqüente de reconstruir
dogmaticamente a teoria penal a partir desta realidade, levamBnos de encontro a
postulados amplamente reiterados do saber penal. Somente o nível de violência
a que assistimos e sua trágica progressão fazemBnos tomar a decisão de ‘sair do
sistema planetário’. É possível que não se trate de ‘sair’, e sim de reconhecer que
estão nos deixando de fora. De qualquer maneira assumir conscientemente a
condição de marginal é pressuposto iniludível para se tentar a sua superação”31.
O meu compromisso é com a transformação da realidade brasileira. E é
nessa direção que procuro colocar as minhas idéias.

31 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas, Rio de Janeiro, Revan, 1991, p. 7.

45
Da Lei de Controle do Crime Organizado:
crítica às técnicas de infiltração
e escuta ambiental1

1. Introdução

Em 11 de abril passado foi sancionada a Lei n. 10.217/2001, que alterou


dispositivos da Lei n. 9.034/95, conhecida também como Lei de Controle do
Crime Organizado.
É necessário desde logo salientar que em virtude da nova redação conferiuB
se previsão legal à interceptação ambiental e à infiltração de agentes, consistindo
a infiltração, nos termos da Lei, em atuação de agentes de polícia ou de inteligência em
organizações criminosas, sob falsa identidade, para capturar provas de infrações
penais supostamente praticadas por integrantes das referidas organizações.
O objetivo deste texto é colocar em destaque a inconstitucionalidade de
ambas as providências, inspiradas em modelos de política criminal dotados de
características distintas daquelas que defluem da ordem jurídica brasileira.

2. A proteção da intimidade e da vida privada como direitos


constitucionais e a autodeterminação informativa

Para melhor compreender as questões críticas e problemáticas advindas


da aplicação da mencionada lei, situando a análise tanto no campo do direito
processual penal de índole constitucional como no da política criminal, que
estabelece as linhas mestras do programa de controle da criminalidade, é
preciso lançar luz sobre o fato de que, nos dias atuais, o direito à vida privada
e à intimidade pode ser severamente afetado pela difusão descontrolada de
informações cuja obtenção acaba sendo facilitada pelo emprego de tecnologias
sofisticadas de comunicação e informação.

1 Este artigo sintetiza as idéias apresentadas em 21 de abril de 2001, no Hotel Glória, no Rio de Janeiro,
no Simpósio “Novos Rumos, Novas Ideias”, promovido pelo Instituto de Direito – ID.

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Os modernos bancos de dados pessoais, que evoluem para a formação de


verdadeiros dossiês de personalidades individuais2, permitem a permanente devassa
da vida privada das pessoas, ao que se soma o aparato de câmaras e microfones
capazes de captar imagens e sons, sem que as pessoas visadas ou os interlocutores
se dêem conta de que estão sendo vigiados. Isso, é claro, não induz à formação
de juízos de valor a priori. Não se trata de questionar toda e qualquer utilização
de meios refinados de registro, armazenamento, tratamento e transmissão de
dados, imagens ou sons, como se estivéssemos a julgar e condenar a sociedade
tecnológica (ou de informação como preferem alguns), comparandoBa com um
passado de simplicidade e harmonia total, que na realidade nunca existiu.
O ponto sobre o qual gira o eixo deste trabalho pode ser fixado a partir
da idéia de que a facilidade de disposição das citadas informações não raro
proporciona o seu emprego para fins de controle social e mesmo de violação de
interesses vitais das pessoas, sem que os indivíduos prejudicados disponham de
recursos eficientes e rápidos de neutralização dos efeitos perversos conseqüentes
à invasão de sua privacidade.
É bastante razoável supor que a disposição de câmaras parcialmente ocultas
em agências bancárias e aeroportos previna situações problemáticas. Da mesma
maneira, pudesse o médico em caso de emergência dispor de informações seguras
a respeito das condições de saúde daquele paciente até então desconhecido, cujo
atendimento de urgência se impõe, é claro que as chances de que essa pessoa
seja atendida satisfatoriamente aumentam de modo significativo. Ninguém
pode ser contra isso.
A questão crítica aparece quando as informações não são usadas em
benefício da maior parte das pessoas que compõem o núcleo social ou ainda
quando o emprego das informações é precedido por desproporcional violação
da esfera privada das pessoas.
Há muito se sabe que a pretexto de controlar (ou combater) a criminalidade,
os grupos e classes sociais dominantes empregaram meios violentos voltados,
claramente, à neutralização dos setores sociais desfavorecidos, desprivilegiados
ou simplesmente contestatórios3. Em um mesmo contexto eram tratados os
agentes responsáveis por atos que atentavam contra os interesses individuais
mais importantes (vida, integridade física, honra) e aquelas outras pessoas que
reivindicavam mudanças radicais da ordem estabelecida, como no caso da repressão
aos movimentos operários, mediante incriminação, nos séculos XIX e XX.

2 Chama a atenção para o denominado dossiê genético, questionado pela incomensurável potenciaB
lidade lesiva aos interesses vitais das pessoas.
3 George Ruschie e O[o Kirchheimer.

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Em retrospectiva é concebível especular que os movimentos de humanização


e racionalidade, de corte liberal, que marcaram o iluminismo e a modernidade
no plano do direito penal e do processo, tiveram eficácia limitada mesmo nos
países da Europa Ocidental, onde foram gerados, sendo que nos chamados
Estados periféricos nem isso, tendo sido reduzidos à mínima expressão, de
eficácia basicamente retórica4.
Mesmo assim, a idéiaBforça de consolidação da modernidade, fundada
em um direito de cunho ético e dirigida à transformação social, com redução
das desigualdades, proporcionou a edificação de uma estrutura de direitos
e garantias de natureza penal que, a par de controlar a resposta estatal aos
atos criminosos, atenuandoBlhe a brutalidade, buscou definir o Estado como
entidade cujos atos de seus agentes deveriam situarBse nos marcos de uma
legalidade prenhe de legitimidade e conformada eticamente. Desse modo, os
atos de repressão, apuração e punição das infrações penais e de seus autores não
seriam de forma alguma equiparáveis aos atos dos próprios agentes de delito.
O emprego da tortura e de outros meios cruéis para a descoberta da verdade
foi repudiado – ainda que na prática tenha sido tolerado ou incentivado por
regimes de vocação autoritária – e a aquisição e introdução de provas obtidas
por meios ilícitos esbarrou em firme objeção doutrinária, jurisprudencial e,
finalmente, legalBconstitucional.
Não obstante o princípio de reserva de lei para comprimir, legitimamente,
o exercício de direitos fundamentais, o certo é que de nada valeria a citada
garantia se os agentes do Estado Administração, encarregado da repressão e
apuração das infrações penais, pudessem decidir diretamente os casos de
restrição ao exercício dos direitos que conformam a dignidade humana. Há aí
nesta hipótese, claramente, a percepção de que o Estado Administração tem
interesse direto e atua como parte, de sorte que seus agentes dirigem suas ações
ao fim de coletar provas da existência de crimes e da responsabilidade dos
supostos autores. A tensão com os interesses das pessoas investigadas – que não
são necessariamente culpadas e não podem ser tratadas como tal até que seja
definitivamente pronunciada decisão condenatória – é inevitável.
A única solução cabível para resolver este conflito entre interesses
legítimos repousa em atribuir a órgão imparcial o poder exclusivo de conhecer
as pretensões de limitação dos direitos fundamentais alheios, julgando quando
realmente é necessário ou imprescindível reduzir a esfera de exercício destes
direitos em prol de interesses prevalecentes.

4 Sobre o tema recomendo a leitura do artigo – Revista Doutrina n. 11, ano 2001.

49
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Por isso cumpre reconhecer a existência de verdadeira “reserva constitucional


de função”, atribuível ao Poder Judiciário para examinar as demandas dos
responsáveis pelas investigações criminais, que estejam interessados em obter
provas ou assegurar a eficácia prática de virtual decreto condenatório fazendo
uso de medidas coercitivas dirigidas contra o investigado ou processado e seus
direitos fundamentais.
A postura de imparcialidade do juiz, no processo penal, independentemente
de expressar a recomendável eqüidistância entre pretensões que lhe são
submetidas, na expectativa de que receberão solução justa, não tendenciosa,
funciona também como garantia de que os interesses vitais dos membros da
comunidade, vinculados entre si por um moderno pacto social5, não serão
postergados salvo em casos extremos, em benefício do conjunto do grupo social,
após ponderada avaliação dos interesses em jogo.
Nessa dimensão entendeBse a razão por que a limitação dos direitos
fundamentais não é autoBaplicável e porque o juiz sempre terá de julgar as
situações concretas, padecendo de inconstitucionalidade os dispositivos legais
que imponham, automaticamente, restrição ao exercício de direitos fundamentais
sem apreciação da necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas
de limitação6, como ocorre, por exemplo, com a proibição de deferimento de
liberdade provisória em processo por crimes hediondos e equiparados7.
O exercício deste controle de necessidade, adequação e proporcionalidade
está prejudicado nos termos da Lei n. 10.217, como veremos adiante.

3. A infiltração e a escuta ambiental

3.1. Questão prévia

Antes, porém, de cuidar de examinar como a Lei n. 10.217/01 entrou em


rota de colisão com a Constituição da República, no tocante à violação indevida
de direitos individuais fundamentais, vale dedicar algumas palavras ao tipo

5 Vale sublinhar que o pacto social contemporâneo concebido pelo autor, diferentemente da versão
liberal clássica engendrada por LOCKE e HOBBES, compreende as distintas posições sociais
dos membros da comunidade e se orienta a reduzir as diferenças naquilo em que – para citar
BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS – a diferença desfavorece as pessoas.
6 TrataBse de aplicar à hipótese o critério da proporcionalidade, definido por CANOTILHO da seguinte
maneira: “O princípio considerado significa, no âmbito das leis interventivas na esfera de liberdades dos
cidadãos, que qualquer limitação a direitos seja feita deve ser apropriada, exigível e na justa medida, atributos
que permitem identificar o conteúdo jurídico do cânone da proporcionalidade em sentido amplo: adequação;
necessidade; proporcionalidade entre meios e fins (sentido estrito).”
7 Lei n. 8.072/90.

50
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legal de crime organizado – ou mais precisamente, ao tipo legal de crime de


associação criminosa, se neste caso não há heresia no uso do termo precisar.
Com efeito, o tipo legal de crime tem importantes funções, estudadas pela
dogmática penal, de que salienta a função de garantia, exercida de modo a
permitir aos indivíduos em geral conhecer com antecedência os comportamentos
penalmente proibidos, assegurandoBlhes a possibilidade de omitir a conduta
capaz de violar a norma penal.
Para tanto, é imprescindível que a lei penal incriminadora contenha termos
e expressões de significado inequívoco, isto é, unívoco8, para que a conduta
vedada seja passível de ser apreciada e compreendida por todos. De nada
serviria, pois um tipo penal contendo palavras de sentido variado, duvidoso,
impreciso e até mesmo contraditório, carecedor de eficácia para orientar o
comportamento dos indivíduos desejosos de evitar a comissão do ato ilícito
penal. A mera estipulação prévia, em lei penal, ainda que votada regularmente
pelo Parlamento e introduzida de maneira formalmente regular na ordem
jurídica, não sana deficientes redações de tipos penais, com abuso de expressões
vagas, ambíguas e polissêmicas, sendo por si só fator de invalidade da norma
jurídica em posição de contrariedade com a ordem constitucional.
O nullum crimen nulla poena sine legem, deduzido do artigo 5o, inciso XXXIX,
da Constituição da República, não se satisfaz apenas com a estipulação prévia da
conduta penalmente relevante. Para que haja perfeita harmonia entre a norma
penal incriminadora e a regra constitucional de garantia é indispensável que a lei
realmente defina a conduta censurável, indicando claramente os seus elementos
e as suas circunstâncias9.
Desde o advento da Lei n. 9.034/95 advertíamos para a grave situação
deflagrada por seu artigo 1o., uma vez que, fazendo menção de regular meios
de provas concernentes a associações ou organizações criminosas, girava sua
bateria indistintamente para os integrantes de quadrilhas ou bandos, como é
natural na forma definida no artigo 288 do Código Penal10.
A atenção foi reivindicada principalmente para o fato de a lei em questão
autorizar providências de intensa restrição de direitos fundamentais – algumas
das quais inconstitucionais –, que poderiam ser aplicadas a autores de infrações
penais de escassa gravidade e mesmo aos integrantes de bandos cuja existência,
embora perturbadora da tranqüilidade social, poderia ser controlada sem
recurso a medidas extremas. De frisar, uma vez mais, na linha do magistério

8 JUAREZ CIRINO.
9 Assim, FRANCISCO ASSIS TOLEDO, em Princípio Básicos de Direito Penal, São Paulo, Saraiva.
10 Ver GERALDO PRADO e WILLIAM DOUGLAS em Crime Organizado, Niterói, IMPETUS, 2000.

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de CANOTILHO, que a adoção de recursos capazes de cercear o exercício de


direitos fundamentais está na direta dependência da necessidade de adotáB
los, na medida em que de outro modo não é possível evitar a lesão de direitos
igualmente significativos e fundamentais.
Na verdade, o alvo da política criminal espelhada na Lei n. 9.034/95 eram as
organizações criminosas responsáveis por crimes de expressivo potencial ofensivo,
marcadamente os de corrupção estrutural e os violentos, de índole patrimonial.
Portanto, as medidas de restrição então incorporadas ao arsenal de controle da
criminalidade grave poderiam, dada a defeituosa redação da lei, ser aplicadas
indistintamente, sem a prudência inerente ao critério da proporcionalidade.
Para fugir ao desacerto legal parte da doutrina inclinouBse a sustentar
que o legislador havia criado novo tipo de delito de associação – tomar parte
de organização criminosa B, chegando a indicar os novos elementos em cuja
presença seria possível falar em organização criminosa11.
Ocorre, todavia, que a função de criação de tipos penais é reservada, com
exclusividade, ao legislador, nos termos do mencionado inciso do artigo 5o, da
Constituição da República. Desse modo, constatandoBse a impossibilidade de
distinguir em abstrato quais são os destinatários das medidas restritivas, sem
com isso invadir a seara da lei, ficam os juízes impedidos de aplicáBla. Essa é a
única solução que preserva a integridade da Constituição mas não foi a eleita
pelos tribunais.
É provável, todavia, que o alerta da doutrina tenha repercutido nos
gabinetes governamentais. Como podemos observar com facilidade, o novo
texto do artigo 1o, da Lei n. 9.034/95, com a redação que lhe confere a Lei n.
10.217/01, procura deixar evidente o alcance dos dispositivos legais, assinalando
que os meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas
por organizações criminosas poderão ser utilizados em procedimentos de
investigação que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilhas
ou bandos ou, friseBse, associações criminosas de qualquer tipo.
Portanto, no lugar de corrigir a redação infeliz do texto original, optouBse
pela via flagrantemente inconstitucional, ao negar a diferenciação necessária,
reconhecida por várias legislações de outros Estados, como é o caso da Italiana,
que trata da associação de tipo mafioso12.

11 Assim, por exemplo, LUIZ FLÁVIO GOMES reivindica para as organizações criminosas a previsão
de acumulação de riqueza indevida; hierarquia estrutural; planejamento empresarial, uso de meios
tecnológicos sofisticados, alto poder de intimidação, conexão local, regional ou internacional com
outra organização criminosa etc.
12 A Associação de Tipo Mafioso B artigo 416 bis do Comissões Parlamentares de Inquérito, pela
doutrina italiana pressupõe “Uma lógica de domínio e de conquista ilegal e violenta do espaço de poder

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O anteprojeto de reforma da Parte Especial do Código Penal, no Título


VIII – Dos Crimes Contra a Paz Pública – inova com redação mais feliz que
a atual. De acordo com sua exposição de motivos, destacando que “o fato está
em expansão não só no Brasil como no exterior. Se a Quadrilha ou Bando, como anota
a doutrina, quase sempre se ajusta aos crimes de bagatela, diferente, preocupando se
apresenta a – Organização criminosa (art. 278)”, sublinha os contornos do tipo penal
proposto, oferecendo a seguinte redação: “Constituírem, duas ou mais pessoas,
organização, comprometendo ou tentando comprometer, mediante ameaça,
corrupção, fraude ou violência, a e!cácia da atuação de agentes públicos, com
o !m de cometer crimes – Reclusão, de quatro a oito anos”. Ainda conforme a
exposição de motivos “busca/se impedir também a conexão internacional. Aliás, a
literatura qualifica esse delito como ‘Crime sem Fronteira’.”
Do jeito que está na Lei n. 10.217 a inconstitucionalidade persiste, uma vez
que não diferencia situações desiguais, permitindo ao juiz analisar os casos em
que será necessário reprimir mais intensamente o exercício de determinados
direitos elementares à dignidade da pessoa humana.

3.2. A proteção da intimidade e da vida privada

Examinando agora as novas técnicas de investigação introduzidas pela Lei


10.217, é certo que há visível tensão entre elas e a tutela da intimidade e da vida
privada.
O argumento primário dos que postulam expressiva restrição da proteção
à intimidade e vida privada costuma estar fundamentado politicamente na
concepção de que a garantia destes interesses se coloca como questão típica
do direito burguês e que tratar do acesso a informações nesse nível significa
assegurar a proteção de criminosos do colarinho branco e membros de oligarquias
corruptas encastelados nos governos, agentes políticos que historicamente
estiveram bem protegidos pelo Direito e são grandiosos em suas fraudes e danos
que causam a um número expressivo de pessoas.
Na ótica da efetividade dos direitos que constituem o esqueleto normativo
do denominado Estado de Direito, na América Latina, é certo que a profundidade

real” (ANTOLISEI B Manuale di Diri[o Penale B Parte Speciale B II B Crime contra a ordem pública).
GAETANO NANULA (1996), in La Lo[a Alla Mafia, e GIULIANO TURONE (1995), in Il Delito di
associazione mafiosa, caracterizam a associação de tipo mafioso por uma rigorosa hierarquia de
poder e de funções, exprimindo, ainda, uma poderosa força de intimidação, derivada da eficiência,
da unidade indecifrável e da estrutura organizacional, sujeitando seus integrantes à omertà. O
tipo penal alcança até mesmo as influências da organização sobre as ações políticoBpartidárias.

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e extensão da aplicação destes direitos revelaBse como mais uma entre tantas
práticas de discriminação e controle social autoritário.
Com efeito, há direitos civis reconhecidos desde a Constituição do Império
do Brasil. A atuação prática destes direitos, todavia, na maior parte das vezes
esteve dirigida à proteção dos grupos sociais historicamente mais bem situados
na pirâmide social. Não há erro em afirmar que a República foi proclamada,
no caso brasileiro, mas o sentimento republicano raramente foi compartilhado
por pessoas de todos os segmentos sociais. Isso se deve ao fato de a República
– como a monarquia pósBindependência – terem sido movimentos políticos
verticais, produzidos de cima para baixo, do cume para a base da sociedade,
base esta que, excluída do gozo das riquezas, permaneceu durante longo tempo
desconhecendo o significado da cidadania.
Isso marca sobremodo a percepção peculiar ao senso comum, nos quadrantes
dos países periféricos e semiBperiféricos, de que os direitos fundamentais são
na realidade escudo artificial de que se valem parcelas das elites para elidir sua
responsabilidade quando flagrados violando a norma penal.
A disfunção histórica em termos de efetividade de direitos fundamentais no
Brasil e no restante da América Latina não nos permite, no entanto, tomar como
medida de injustiça social a pretensão de tutela de interesses vitais para todas
as pessoas, com independência da sua situação social, nem tampouco deixar de
reconhecer que determinados direitos não são essencialmente fundamentais13,
muito embora sejam tratados como se fossem, ampliando indevidamente o
âmbito de segurança de valores que realmente dizem respeito a apenas uma
fração da comunidade.
Pelo contrário, o viés estritamente discriminatório que marcou a dura relação
entre exercício de direitos fundamentais e a condição de determinados atores
políticos serve para demonstrar de que maneira a manipulação destes direitos
funciona como fonte de contenção das reivindicações sociais e de que forma
a ampliação, tanto no nível horizontal (dos sujeitos que devem ser protegidos
das ações contra seus direitos fundamentais) como vertical (da profundidade da
proteção, com o implemento de ações judiciais de fundo constitucional) poderá
servir de instrumento para neutralizar a tendência de congelamento da atual
situação de desigualdade14.

13 Como é o caso do sigilo bancário, que está baseado em relação de confiança mas que terminou sendo
interpretado, equivocadamente a nosso juízo, como emanação da personalidade.
14 Penso que a difusão dos direitos fundamentais – políticos e sociais – contém enorme potencial de
transformação da sociedade, com capacidade para romper as barreiras erguidas pelas diferenças
econômicas e sociais.

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Desprezar a função política dos direitos fundamentais é a meu juízo um


enorme equívoco, como salienta igualmente LÖIC WACQUANT em sua obra
PUNIR OS POBRES: A NOVA GESTÃO DA MISÉRIA NOS ESTADOS UNIDOS15.
O exame das estratégias que unem políticas sociais e criminais em torno do
controle social punitivo, nos países centrais, demonstra como a penetração na
intimidade das pessoas que integram os chamados grupos sociais marginais ou
suspeitos (as minorias que atemorizam o imaginário das classes médias) pode
ser empregada para criar novos guetos, dominados por um moderno, complexo,
competente e difuso PANÓPTICO.
Diferentemente das tendências de criminologia crítica e sociologia do direito
penal, o Movimento de Lei e Ordem, a que se filiam as práticas de política criminal
orientadas à restrição dos direitos à intimidade e vida privada16, estipula funções
basicamente repressivas para conter os grupos sociais rebeldes, setores da sociedade
que supostamente põem em risco a lógica do capital e do mercado17.
O fenômeno da criminalidade transnacional, em grande medida expressão
do caráter transnacional que caracteriza a economia da era da globalização,
com seu permanente e descontrolado fluxo de capitais, recebe o tratamento de
criminalidade grave à semelhança do modelo de criminalidade política que na
década de 1970 marcou Itália e Alemanha. Com isso, o aparato bélico legalizado
nestes países ganha insuspeita credibilidade como conjunto de recursos eficazes
para a descoberta de criminosos perigosos e a punição deles. De lembrar, com
MANUEL AUGUSTO ALVES MEIRES18, que é da legislação antiBterrorismo que
emerge, ao nível legislativo, a figura do provocador, parente direto do nosso
infiltrado, aceita pelo Tribunal Constitucional Alemão, por supor a eficácia da
justiça penal, “indispensável à realização da justiça material”19.
Posta nestes termos, a questão da eficácia repressiva destes instrumentos
encobre os efeitos negativos que o cotidiano da justiça criminal no Brasil não
cansa de constatar: a ausência de controle real sobre os agentes encarregados da
investigação criminal, quando estes são os únicos responsáveis pela gestão das

15 Ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 2001.


16 Filiação evidente tanto da Lei n. 9.034/95 como da Lei n. 10.217/01.
17 Na obra mencionada LÖIC WACQUANT sublinha que as políticas sociais são quase inexistentes ou
nulas e não criam condições reais para a transferência de rendas e universalização dos benefícios
decorrentes do emprego prático das novas tecnologias. Por outro lado, as agências sociais norteB
americanas dispõem de um completo banco de dados que permite controlar as populações
empobrecidas, fazendo fluir dos bancos de dados sociais aos criminais e viceBversa informações
vitais para determinar, por exemplo, áreas de concentração das populações negras e orientar as
investigações criminais em cima do conhecido perfil de criminoso.
18 O Regime das Provas Obtidas por Agente Provocador em Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1999,
p. 27.
19 Idem, p. 28.

55
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técnicas de investigação que invadem o âmbito privado das pessoas, atua como
forte fator de corrupção e violência, degradando as relações entre a população
e as autoridades. Isso acontece no cotidiano das cidades brasileiras, quando as
casas da periferia são invadidas sem mandado e quando os informantes da polícia
de fato fazem parte dos grupos de criminosos que a mesma polícia devia tentar
controlar, de tal maneira que para as populações das áreas carentes acaba sendo
tarefa difícil delimitar o espaço dentro do qual os agentes do poder público
atuam para defendêBlas daquele outro em que estas mesmas populações são
reféns destes agentes como o são dos grupos criminosos.
Nos países centrais o sistema de garantias funciona relativamente nas
oportunidades em que é acionado para proteger os cidadãos. No Brasil e no
restante da América Latina o sentimento difuso de que as garantias processuais
não alcançam os mais pobres é reforçado pela certeza de que os Estados não
dispõem de Defensorias Públicas permanentes e bem equipadas. Aliás, sequer
um sistema judiciário com plantões freqüentes é encontrado em todos os lugares,
de modo a garantir o rápido acesso à justiça daqueles eventualmente atingidos
por atos arbitrários.
Ora, se diante de quadro semelhante o PANÓPTICO se instala nos Estados
centrais para, a pretexto de combater a criminalidade, controlar imensas
parcelas dos grupos sociais tidos como potencialmente perigosos (imigrantes
latinos, negros etc.), como supor que no Brasil – e em qualquer outro país da
América Latina – a liberdade de invasão na esfera da vida privada e intimidade
não servirão exatamente para acentuar o grau de discriminação que caracteriza
nossos sistemas penais?
Até porque, somente para ficarmos com um singelo exemplo, retirado
do campo de (im)possibilidade de aplicação da Lei n. 10.217/01, de onde virão
os agentes policiais que estarão infiltrados nos órgãos dirigentes dos grandes
grupos econômicos, se porventura houver suspeita da prática de crimes do
colarinho branco?20 Parece evidente que o alvo são as quadrilhas formadas por
sujeitos recrutados nas periferias, distinguindo aí, mais uma vez, os modelos de
criminalidade conforme o grupo social a que pertencem os agentes de delito.
Neste cenário comprometido pela violação da intimidade e vida privada,
com escuta ambiental e atuação de agentes infiltrados, o chamado direito à
AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA, compreendido como direito de
o sujeito sobre o qual são armazenadas informação conhecer previamente os

20 No Seminário a que me referi na nota 1 esta foi das indagações da platéia, que realçou o caráter
discriminatório da chamada infiltração.

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limites de emprego futuro dessas mesmas informações, está previamente


prejudicado. E mais. Não obstante a exigência legal de o juiz deferir ambas as
medidas – autorização para que agentes policiais sob disfarce se infiltrem em
quadrilhas e bandos e escuta ambiental – é indiscutível que nenhum controle
judicial sobre as informações coletadas e até mesmo sobre as ações levadas a
efeito pelos infiltrados será eficaz.
Neste sentido, a lei brasileira criou condições para os agentes infiltrados
decidirem questões que em muitas hipóteses um único Ministro do Supremo
Tribunal Federal não poderia decidir sem fundamentar sua decisão e submetêB
la ao controle do colegiado e do Ministério Público: tal seja, se é caso ou não de
entrar em determinada residência e ouvir as conversas alheias, interceptandoBas
por qualquer meio!
A constante atuação do infiltrado colocará insolúvel problema de ordem
processual-constitucional: como não compreendê-la como violação das
comunicações e do domicílio sem ordem judicial e como não atentar para a
flagrante violação da AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA?
Aceitando a posição defendida por HASSEMER e SÁNCHEZ, de que
o direito à AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA – que não é nenhum
invento de nossos dias – tem como elementos constitutivos a transparência
do desenvolvimento para o cidadão, possibilidades de controle e correção e
a proteção absoluta do âmbito básico da pessoa21, é incontestável que pelo
menos nestes dois últimos aspectos haverá grave atentado contra a liberdade
com a efetivação quer da escuta ambiental quer da infiltração.
Em NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO PROCESSUAL22 ADA GRIB
NOVER advertia para as graves conseqüências advindas do emprego da escuta
ambiental. Sublinhava a mencionada autora que “o interrogatório sub/reptício
do indiciado ou acusado, clandestinamente gravado, constitui inequivocamente prova
ilicitamente obtida, não só em face dos princípios gerais (de proteção à vida privada)
acima expostos, mas ainda por contrariar frontalmente as regras de advertência quanto
ao direito ao silêncio, incluído na garantia do nemo tenetur”.
A infiltração, por sua vez, representa verdadeira autorização em branco,
dada pelo juiz, para que o agente infiltrado ingresse nos mais variados domicílios,
suspeitos ou não de abrigar provas de infrações penais, independentemente do
exame judicial prévio de estrita necessidade, adequação e proporcionalidade em
cada oportunidade!

21 HASSEMER, Winfried e SÁNCHEZ, Alfredo Chirino. El Derecho a la Autodeterminación Informativa y


los Retos del Procesamiento Automatizado de Datos Personales, Buenos Aires, Del Puerto, 1997, p. 6.
22 GRINOVER, Ada Pellegrini, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1990, p. 67.

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Mais grave: a lei permite que o agente infiltrado não integre os corpos das
polícias responsáveis pela investigação criminal, indiciando perigosa tendência de
militarização da tarefa de persecução penal, sem embargo de uma nociva espécie de
cooperação penal internacional, que poderá comprometer nossa soberania.

4. A título de conclusão

As medidas previstas na Lei n. 10.217/01 apontam um falso problema: são


inconciliáveis as demandas de punição dos autores das infrações penais se não
houver drástica restrição ao exercício de certos direitos fundamentais.
Em minha opinião, o controle repressivo da criminalidade passa pelo
aperfeiçoamento das polícias, a disposição de maiores e melhores recursos
materiais e o respeito à dignidade dos policiais que atuam em todas as etapas –
preventivas e de investigação – que compõem o circuito de atuação diretamente
em contato com as práticas delituosas. Isso não significa que os índices de
criminalidade recuarão significativamente, pois é certo que há outros vetores
– políticos, econômicos e sociais B que influenciam decisivamente o processo de
incriminação e que parecem não ser afetados imediatamente pela capacidade de
reação do sistema repressivo.
A restrição de direitos fundamentais, por sua vez – remédio vendido
às escâncaras no mercado global –, poderá produzir mais presos mas não
necessariamente mais justiça, mesmo quando se tem em mente tãoBsó as decisões
do judiciário criminal.
O resultado provável da limitação dos direitos fundamentais em Estados
de escassa tradição democrática e republicana tende a ser, segundo penso, o
aumento das posições sociais vulneráveis e a fragilidade das próprias instituições
democráticas para atender as demandas sociais. A promiscuidade no trato de
direitos fundamentais nada acrescenta à cultura da indispensabilidade destes
direitos e ao importante valor da dignidade de todas as pessoas que integram o
grupo social, elemento básico de coesão da comunidade e de constituição de um
ambiente de solidariedade, compreensão e harmonia.

58
Cidadania e Crime

Um sentimento difuso de insegurança parece terBse transformado no elo


entre todas as classes e grupos sociais, nas grandes cidades do mundo inteiro.
Certamente não é diferente no Brasil. À toda evidência não faltam motivos
para as pessoas se sentirem angustiadas e intimidadas. Aos fatos sociais locais
e regionais, vinculados à má distribuição de renda, reduzida mobilidade soB
cial, corrupção e estímulo franco e intensivo ao consumo de bens que não esB
tão ao alcance da maioria da população, somamBse outros de larga escala. A
abrangência perturbadora do medo em razão da guerra no Oriente, cujos
fundamentos são incompreensíveis para a maior parte das populações, exprime
essa dura sensação de que ninguém está seguro e a salvo em lugar algum.
É preciso, todavia, compreender o que há de não inexorável neste quadro
para que, diante da clareza do diagnóstico, sejam adotadas as medidas de cunho
social e individual necessárias ao controle da situação. Portanto, em uma hora
terrivelmente tensa, na qual não faltam cenas de atentado ao Poder Judiciário,
em São Paulo, e à sociedade, no Rio de Janeiro, o “sangue frio”, o equilíbrio e o
bom senso hão de servir como atitude prévia à análise e tratamento daquilo que
envolve a delinqüência, especialmente no que se refere aos limites de intervenção
legal de natureza penal.
O primeiro ponto a ser destacado está ligado ao caráter histórico da
violência que aflige a população das grandes cidades brasileiras. O processo
de expansão desordenada destes centros populacionais registra crimes históricos
praticados contra amplos setores das camadas populares. Desde o fim do século
XIX, as grandes cidades brasileiras cresceram graças ao fluxo de pessoas pobres,
atraídas pelas burocracias da então Capital da República (Rio de Janeiro) e pelo
processo de industrialização que transformou São Paulo em centro da economia
do país. Naturalmente, segmento expressivo destes grupos populares terminou
ficando à margem da atividade produtiva, relegado territorialmente à periferia
das metrópoles. Os rígidos e hierarquizados padrões da sociedade brasileira,
a prática do privado locupletarBse do público e a ausência de um projeto de
inclusão social que protegesse estes setores desfavorecidos acabou, ironicamente,
produzindo os guetos onde agora parte da criminalidade violenta refugiaBse.
Esta realidade, confirmada pela dificuldade de acesso do Poder Público a
determinadas áreas, dentro das cidades, acaba por infelicidade confirmando no

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imaginário da classe média aquilo que as elites durante muito tempo procuraram
fazer crer: o vínculo entre pobreza e criminalidade. O ambiente de intolerância,
cujo exemplo em proporção macro não edifica, projetaBse no discurso da maioria
dos governantes, legisladores e juízes por meio da alegação do desgaste das
explicações socioeconômicas do delito. É necessário endurecer no combate à
criminalidade! Leis mais rigorosas e juízes implacáveis são o signo da nova
redenção! Tolerância Zero, esta é a tática contra o crime!
O que há de imperdoável neste discurso pode ser percebido em duas
distintas dimensões. A primeira delas está ligada ao sistema de penas. Para os
que não conhecem a história do direito penal, no Brasil, é preciso alertar que
desde a Independência nosso direito penal formal sempre foi muito rigoroso.
As penas cruéis do passado (de morte, açoites e outras) deram lugar a um dos
sistemas penitenciários mais desumanos de que se tem notícia. Gostando ou
não, este modelo revelouBse permeável à corrupção e fonte de delinqüência
e organização da criminalidade, além de não conseguir evitar mortes em
seu interior. O sistema penal informal, que teve seu tempo de glória durante
o último regime autoritário (64B85), semeou os grupos de extermínio que
ainda atuam nas periferias. A segunda dimensão sensível guarda relação com
a natureza dos crimes mais graves cometidos na atualidade e a situação das
populações das favelas e bairros populares. Em parte vinculados ao tráfico de
drogas, os delitos que mais impressionam têm nítida coloração econômica e
social. Arregimentando jovens pobres das antigas áreas esquecidas, esta espécie
de criminalidade aprisiona os jovens de classe média que consomem drogas
e prende também extensa parcela da população pobre das áreas periféricas,
maltratadas pelos criminosos e estigmatizadas pelo restante da sociedade.
As duras penas dos crimes – que ainda neste momento pretendeBse
ver aumentadas – e o longo encarceramento de criminosos pobres não têm
modificado o grau de insegurança da população em geral. As técnicas de
combate à criminalidade via redução das garantias constitucionais estão afetando,
principalmente, as vítimas mais diretas da criminalidade violenta, neste caso
os moradores das favelas, que perdem direito à inviolabilidade do domicílio,
ao argumento de que os barracos onde (sobre)vivem são refúgio de criminosos
e estão fora da tutela da Constituição. É natural que estes moradores reajam
com temor, desconfiança e ódio às ações policiais. Neste clima de intolerância
recíproca nenhuma medida concreta é capaz de restituir (ou instituir) um nível
de convivência relativamente harmonioso.
O desarme dos espíritos, fundamental para resgatar o sentido comunitário
e denunciar o caráter arbitrário das ações criminosas, passa de início por

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reprimir a tentação de empregar violência para combater a violência. Isso não


significa entregar a grupos armados de delinqüentes o controle das áreas urbanas.
A presença de uma polícia confiável, visível, eficiente e honesta é imprescindível
neste momento. Não é, todavia, suficiente. A ruptura imediata do processo de
concentração de riquezas, com a adoção de políticas públicas que de fato priorizem
a população pobre e estimulem o sentimento de integração social, tanto nos que
deixarão de ganhar como nos que passarão a receber, representa a única saída viável
para a crise social brasileira. Investir socialmente significa investir em moradias, em
educação apta às exigências atuais do mercado de trabalho, favorecimento da escola
pública via sistema de cotas e consideração pelos múltiplos papéis sociais que, em
seu conjunto, conformam a sociedade brasileira.
Defender que no Brasil reina a impunidade é fraudar a realidade da
repressão penal aos segmentos mais pobres, embora signifique reconhecer esta
realidade quando se trata da convivência igualmente histórica com a corrupção
praticada por criminosos que integram as elites.
Um novo governo federal tomou posse recentemente. Eleito a partir do
discurso de disposição para reduzir as desigualdades sociais, receiaBse que no
tema específico da segurança pública recaia no lugar comum: enrijecimento
da repressão pelo caminho da exasperação das penas e redução das garantias
judiciais! Aliás, salvo raras exceções, os membros das comissões de reforma das
legislações permanecem os mesmos dos últimos governos, da antiga situação,
como se a questão do controle da criminalidade pudesse ser encarada com
neutralidade técnica. TrataBse de questão política e isto não deve ser ignorado
em qualquer esfera, especialmente no que tange aos projetos legais. Como o
governo federal apenas começou a trabalhar, acredito em correção de rumos,
entrosamento com os governos estaduais e municipais e com organizações não
governamentais e a sociedade civil. Sem pretensão de ser o dono da verdade,
especulo que o caminho para a superação da crise passa por tudo que ficou
registrado linhas atrás e que, em suma, pode ser definido como estratégia da
inteligência, da razão e da admissão das responsabilidades históricas, de um
lado, contra a força do outro.

2003

61
La reforma del proceso penal en Brasil

I. Introducción

No es reciente el movimiento de reforma del Sistema de Justicia Criminal


brasileño. Casi siempre, las providencias en ese sentido han sido concebidas en
términos de reforma del Código de Procedimiento Penal, que fue editado el 3
de octubre de 1941, cuando resplandecía el Estado Nuevo, régimen autoritario
dirigido por Getúlio Vargas.
En las tres últimas décadas, algunos anteproyectos fueron idealizados y,
por motivos variados, terminaron siendo dejados de lado. Vale resaltar que
entre 1941 y 1988 Brasil pasó por dos regímenes políticos autoritarios (1937B45
y 1964B85) y en 1988 el Congreso Constituyente promulgó la Constitución de la
República, que actualmente está en vigor, inspirada en preceptos democráticos
y republicanos tradicionales.
La experiencia democrática en Brasil, sin embargo, ha sido bastante limitada
y eso no sólo en lo que se refiere al tiempo de duración de los regímenes políticos
de esa naturaleza sino, también, por fuerza de la escasa densidad democrática
de las instituciones republicanas, incluso el Poder Judicial, instituciones éstas
que han sido incapaces de consolidar una cultura de universalización de los
derechos fundamentales.
Un sinnúmero de trabajos académicos recientes acentúan la naturaleza
autoritaria de las prácticas jurídicas, especialmente en el terreno penal, prácticas
responsables por la difusión de la idea generalizada de que la criminalidad
está sedimentada en los estratos más pobres de la sociedad, identificándose
con la pobreza y con el origen racial y social de los grupos temidos dentro del
imaginario popular, especialmente de las clases medias.
Así, incluso en los espasmos democráticos anteriores y en la época actual, la
existencia de Constituciones con amplio rol de derechos y garantías, además de
reglas expresas acerca de la incidencia inmediata de los derechos individuales,
independientemente de mediación legal, y aplicación de aquellas normas
jurídicas derivadas de tratados internacionales de derechos humanos (artículo
5º, §§ 2º y 3º, de la actual Constitución de la República), no han sido suficientes
para asegurar el primado del proceso penal acusatorio, con la garantía efectiva

63
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del contradictorio y de la amplia defensa y sin recurso a la tortura o tratamiento


cruel, medidas expresamente repudiadas en el nuevo orden constitucional.
En el plano legal, desde inicios de los años 90 del siglo XX, la estrategia de
modificación y actualización de la principal ley procesal penal está centrada en
un foco distinto de las acciones precedentes, que no prosperaron en el Congreso:
en lugar de un Código nuevo surgieron propuestas de reformas puntuales. La
mayoría de las veces, como señala FAUZI HASSAN CHOUKR1, la iniciativa
partió del Poder Ejecutivo Federal y terminó chocando con resistencias y
acomodaciones en este mismo Congreso Nacional.
Paradójicamente, el proceso penal brasileño ha cambiado bastante en
estos últimos años, agravando la percepción de asimetría y desorganización
sistémica, al mismo tiempo que, por otro lado y con cierta persistencia, hubo
evolución de algunas instituciones esenciales para la implementación de una
Justicia Criminal más equilibrada, eficiente y respetadora de los derechos
fundamentales, con énfasis en el perfeccionamiento del Ministerio Público y en
la creación de la Defensoría Pública. Los concursos públicos frecuentes, para
cubrir los principales cargos de profesionales del derecho (Comisarios de Policía,
Promotores de Justicia y Procuradores de la República, Defensores Públicos y
Magistrados) y el fin de la censura a los medios de comunicación colaboraron
para la reducción de las prácticas autoritarias ilegales que, sin embargo, aún
están lejos de desaparecer por completo.
La limitación de espacio impide que el tema sea abordado con la profundidad
que merece.
Es necesario destacar que, desde el punto de vista legalBconstitucional, Brasil
es una federación, con fuerte concentración de Poderes en la Unión Federal, y
que la Justicia Criminal está organizada tanto en los Estados Federados como en
el ámbito Federal (Justicia Federal Común, Electoral y Militar2) en conformidad
con las reglas generales instituidas por la Constitución de la República,
prevaleciendo, para todos los sectores, reglas editadas por el Congreso Nacional,
ya que compete a la Unión legislar sobre Proceso (artículo 22, inciso I), siendo
residual y limitada la competencia de los Estados miembros (artículo 24, inciso
XI). No existen Códigos de Procedimiento Penal estaduales.
De allí deriva la importancia que asumen el debate y la decisión sobre la
reforma del Código de Procedimiento Penal.

1 La Reforma del Proceso Penal en Brasil y en América Latina, São Paulo, Método, 2001.
2 Por fuerza de la Enmienda Constitucional 45, el artículo 114 de la Constitución fue alterado para
prever la competencia de la Justicia del Trabajo para juzgar habeas corpus cuando el acto cuestionado
incluya materia sujeta a su jurisdicción.

64
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II. De la Reforma posible a la Reforma real: Procedimiento


Penal Vs. Sistema de Justicia Criminal

La comprensión de lo que está ocurriendo en Brasil puede ser medida por


el confronto entre dos corrientes que, sin embargo, tienen en común el hecho de
haber abandonado el proyecto de edición de un Código de Procedimiento Penal
totalmente nuevo, en substitución al obsoleto diploma de 1941.
Por un lado, desde 1990 el Congreso Nacional viene aprobando leyes que resB
tringen sobremanera los derechos fundamentales de los sospechosos, acusados y
condenados (ley 8.072/90). Casi siempre, se trata de legislación sobre crímenes graB
ves, denominados hediondos, o derivados de organizaciones criminales. Esas leyes
que buscan facilitar la investigación criminal, dotando a la autoridad policial de más
recursos para obtener informaciones, inciden sobre la libertad, intimidad y sobre la
posesión y propiedad de bienes de las personas sospechosas o acusadas de la prácB
tica de crímenes considerados graves (ley 9.613/98).
Varias son las técnicas utilizadas: ejemplo de eso es la detención obligatoria
de imputados, vedándose la libertad provisoria de aquellos que son presos en
flagrante; la inversión del peso de la prueba en lo tocante a la investigación del
lavado de capitales; la facilitación de la adopción de otras providencias cauteB
lares, perjudicando la presunción de inocencia expresamente reconocida en la
Constitución de la República; la delación premiada y el estímulo a la actuación
del Juez en la actividad probatoria, en algunos casos delegando al magistrado
responsabilidad por la investigación de hechos incluso antes de la formulación de
una acusación (ley n. 9.034/95, de “combate” al crimen organizado). En el espacio de
la ejecución penal se hacen aún más rigurosos los regímenes de pena, dificultándoB
se el proceso de restablecimiento de la libertad. Cumple subrayar que son notoriaB
mente precarias las condiciones de cumplimiento de pena privativa de libertad en
casi todas las prisiones y que la corrupción en el sistema penitenciario es, también,
bastante conocida, negociándose la entrada de armas, drogas y teléfonos celulares
incluso en unidades consideradas de “seguridad máxima”.
Las persistentes denuncias de corrupción y la noticia de crímenes graves,
aparentemente sin respuesta inmediata, han incrementado las muchas propuesB
tas que tramitan en el Congreso Nacional, en el sentido de producir la denomiB
nada legislación de pánico, aún más restrictiva que las leyes que están en vigor
y que son de dudosa constitucionalidad.
Al menos doce proyectos de reforma de los Códigos Penal y de ProcediB
miento, además de enmiendas a la Constitución de la República se están estuB
diando en el Congreso, en esa perspectiva, y trabajan sobre la posibilidad del

65
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aumento del tiempo de ejecución de las penas privativas de libertad (hasta 40


años, contra los 30 actuales), del aumento del tiempo de aislamiento en la priB
sión (puede llegar a 720 días), del distanciamiento del preso (interrogatorio en
la prisión y no en la sede del tribunal competente3), entre otras medidas que
chocan con el catálogo de derechos fundamentales de la propia Constitución de
la República y del Pacto de San José de Costa Rica, cuya aplicación es obligatoria
en Brasil por fuerza del Decreto 678/92.
En lugar del tradicional proceso en contradictorio, iniciado por acción peB
nal ejercida por el Ministerio Público y desarrollado con publicidad y sujeto a
doble grado de jurisdicción y a la motivación de las decisiones judiciales (todos
previstos en la Constitución), se propone el acuerdo referente a la pena privativa
de libertad, ampliándose los casos de delación premiada, “juzgados” incluso
antes de la instauración del proceso. La relación entre el Ministerio Público y la
policía no queda clara en esos proyectos, lo que lleva a creer que se mantendrá la
absoluta autonomía de ésta con relación a aquel, con prejuicio de la eficiencia de
las investigaciones y controles. El Juez es llamado, cada vez más precozmente, a
intervenir en las investigaciones preliminares, estimulando, con ello, las actuaB
ciones de oficio, sin guardar, necesariamente, vínculo con la tarea constitucional
de tutela de las garantías fundamentales (¡el Juez de garantías que gran parte de
la doctrina reivindica como consecuencia lógica de la estructura constitucional!).
En el lado opuesto, intentando huir del esquema de las leyes de pánico, se
sitúan las iniciativas del Poder Ejecutivo, a través de proyectos de ley enviados
al Congreso en el año 2000.
Por medio de la Portaría n. 61, del Ministerio de la Justicia, de 20 de enero del
2000, fue instituida como Comisión responsable por la presentación de propuestas
de reforma del Código de Procedimiento Penal. Presidida por la jurista Ada PelleB
grini Grinover, la Comisión extendió su trabajo durante todo el año 2000 y, el 6 de
diciembre, presentó once propuestas, agrupadas en siete anteproyectos, que objetiB
vaban reformular la investigación preliminar, los procedimientos, incluso del juraB
do, la disciplina de las pruebas, el interrogatorio del acusado, las medidas cautelares
y el sistema de recursos y acciones de impugnación.
Según la Comisión, los proyectos tenían como objetivo actualizar la estrucB
tura del proceso penal brasileño, ajustándola a la Constitución. Sus defensores

3 La Ley Federal n. 10.792, de 1º de diciembre de 2003, modificó el régimen de interrogatorio del


acusado y trajo expresa previsión del interrogatorio por Juez en establecimiento de detención (nueva
redacción del §1º del artículo 185 del Código de Procedimiento Penal). Además, instituyó el régimen
disciplinario diferenciado, con alteración de la Ley de Ejecución Penal (artículo 52 de la Ley Federal
n. 7.210/84). Con base en este dispositivo hay previsión de aislamiento por 360 días, mientras son
reforzados los poderes de la administración penitenciaria en detrimento de la fiscalización judicial.

66
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preconizaban la institución de la mencionada estructura acusatoria, con perfecto


delineamento de las funciones de acusación y defensa, publicidad, condensaciB
ón y concentración de los actos del proceso. Según discurso de los miembros de
la Comisión, se buscaba aliar eficiencia y garantías. Celeridad, transparencia y
desburocratización sirvieron como consignas.
Esos proyectos siguen tramitando en el Congreso Nacional, sin la misma
velocidad y preferencia que los referidos arriba, y merecieron críticas tanto de
los que defienden el endurecimiento de las respuestas penales como de aquellos
sectores más progresistas, que no identificaron en los proyectos muchas de las
virtudes referidas por sus autores.
Recientemente, en diciembre del 2004, los Jefes de los Tres Poderes lanzaB
ron el llamado Pacto Republicano. Entre otras providencias, este pacto establece
el propósito de implementar la Defensoría Pública en todos los Estados de la
Federación y también en el ámbito de la Unión y pretende el perfeccionamiento
de las leyes procesales penales. El Pacto Republicano manifiesta la intención de
apoyar la transformación en ley de los proyectos de la referida Comisión que
cambian el tratamiento dispensado a las medidas cautelares, pruebas, procediB
miento del jurado y recursos, dejando de lado las propuestas de modificación de
los demás procedimientos y aquella que trata de la investigación criminal.
De todos modos, no hubo radicalización en la estructura acusatoria, a pesar
de visibles avances, inspirados en el Código de Procedimiento Penal Modelo
para América Latina. El Juez quedó prohibido de alterar el contenido de la acuB
sación y debe decidir la causa cuja prueba fue producida en su presencia (prinB
cipio de la inmediación, actualmente inexistente), pero no ha sido prohibido de
determinar prisiones y otras medidas cautelares de oficio, además de producir
pruebas sin requerimiento de las partes, habiendo previsión de restricción de
libertad fundada en pronóstico de delincuencia vetado por la Constitución, por
herir la presunción de inocencia. El sensible tema de las investigaciones preliB
minares resultó de una especie de concesión ante las presiones de diversas corB
poraciones, provocando el desagrado del Ministerio Público y de la policía y no
atendiendo a la finalidad de control y eficiencia de cuerpos policiales con proB
blemas más que conocidos. Problemas técnicos en lo tocante al jurado y limitada
osadía en la previsión de métodos para asegurar la paridad de armas e igualdad
de tratamiento se suman a la cuestionable creencia de que desburocratización
y eliminación de las formalidades pueden ser llevadas la cabo sin prejuicio de
las garantías. La celeridad prevaleció sobre el fortalecimiento de la defensa en
un país sin tradición de Defensoría Pública (a excepción del Estado de Río de

67
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Janeiro) y con enorme contingente de acusados sin condiciones de constituir


abogado.
La tensión entre esas dos corrientes impide que sea fortalecida la posición
predominante en las academias de que un nuevo Código de Procedimiento PeB
nal debe ser estudiado, discutido y aprobado, de acuerdo a la Constitución y a
los Tratados Internacionales de Derechos Humanos.
Finalmente, se avanzó concretamente en la instalación de Juzgados EspeB
ciales Criminales, en los Estados y en el ámbito federal (ley n. 10.259/01). Se
trata de órgano de la Justicia competente para juzgar infracciones penales en su
mayoría de escasa peligrosidad, denominadas infracciones penales de menor
potencial ofensivo (ley n. 9.099/95).
Diseminados por Brasil, a excepción de los Estados de São Paulo y Santa
Catarina, los Juzgados Especiales Criminales procesan las causas estimulando
las soluciones consensuales, ora por medio de acuerdo entre víctima y sospeB
choso, ora en virtud de acuerdo entre Ministerio Público y sospechoso, acierto
involucrando, en este caso, pena no privativa de libertad.
Las mayores críticas a los Juzgados Especiales Criminales son producto de
deformaciones prácticas de sus operadores, aunque haya sectores de la doctrina
que cuestionan el propio concepto de proceso penal consensual, advirtiendo de
los riesgos de la supresión de diversos derechos y garantías, entre ellos el conB
tradictorio, presunción de inocencia, fundamentación de las decisiones y doble
grado, inherentes a esta modalidad de Justicia. Se argumenta, también, que una
característica del procedimiento en los Juzgados, la celeridad, es destinada al
ideal de impedir el bloqueo de la Justicia Criminal, por exceso de demanda, y
no a la solución justa de los casos, dejando desprotegidos grupos más frágiles,
como las víctimas de violencia doméstica.
El empleo muy limitado de las nuevas tecnologías de comunicación e inB
formación es igualmente blanco de críticas, siendo ejemplar el uso de los comB
putadores. Hoy existen en prácticamente todas las sedes de juicios criminales,
pero son utilizados casi exclusivamente como editores de texto, substituyendo
la antigua máquina de escribir.
La integración cultural cancela la validad social de determinadas formas
jurídicas de resolución de casos, especialmente cuando se trata de casos crimiB
nales. Formar parte de la cultura de la sociedad es esencial para que os instruB
mentos procesales penales sean manejados por sujetos procesales legítimos y el
resultado atienda a las expectativas justas, inmanentes a la democracia.
Cuando se trata de restricción al ejercicio de derechos fundamentales, prinB
cipalmente cuando se cuida de prisión y libertad y de protección de bienes juB

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rídicos, el debido proceso legal no puede ser una cajita de sorpresas, como en la
jerga del fútbol. Aquí, con mucho más motivos que en el deporte, la regla debe ser
clara y esta certeza está respaldada por valores constitucionales que, a merced de
la actividad legislativa dispersa y errática, raramente encuentran la ocasión de
cimentar una nueva cultura.
CARLOS MORALES DE SETIÉN RAVINA, analizando la racionalidad juB
rídica en BOURDIEU y TEUBNER, constata el papel de la dominación cultural,
que define como dominación de las fuerzas de un campo determinado. Señala
que las formas de un determinando campo solamente se consolidan mediante
la creación de una tradición y que esa tradición está vinculada a la existencia de
un conjunto de normas fijas y cognoscibles y, por eso, normas pasibles de interB
pretación y aplicación4.
Para que los valores constitucionales se consoliden y conformen una tra/
dición distinta a aquella históricamente experimentada, se hace necesario proB
ducir las normas jurídicas y sociales que propiciarán esa transición (en el caso
brasileño, una transición que ha demorado demasiado). La llave principal es,
sin duda, la Constitución de la República, como también los tratados internaB
cionales. Sin embargo, sin un nuevo código hay serio riesgo de que nunca se
configure el ideal republicano y democrático que debe dirigir el sistema de resB
ponsabilidad criminal.

Traducción: Naila Freitas (VERSO TRADUTORES – www.verso.com.br)

4 La Fuerza Del Derecho, Bogotá, Uniandes, 2000, p. 72.

69
Da delação premiada:
aspectos de direito processual*

I. Introdução

Inicialmente, agradeço ao IBCCRIM e ao IDDD o convite para participar


da Mesa de Estudos e Debates, proposta a partir de iniciativa do Ministério da
Justiça para refletir acerca da reforma do instituto da delação premiada.
Peço a compreensão dos leitores para o fato de remetêBlos a texto anterior,
sobre o tema, na perspectiva do Direito Processual Penal brasileiro. É que desde a
edição do citado texto, composto para integrar a obra Elementos para uma Análise
Crítica da Transação Penal (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003), pouco ou nada
mudou no panorama constitucional. A idéia central e as conclusões, portanto,
permanecem inalteradas.
Sem embargo disso, compreendo a delicada posição do Ministério da
Justiça. Pressionado pelas demandas de maior rigor na repressão penal, mas
cativo das exigências de operar nos limites da Constituição da República, cabe
ao Ministério encontrar o ponto de equilíbrio para que a resposta estatal aos
delitos e, também, o modo como o processo penal se desenvolve respeitem os
princípios fundamentais que formam a base do Estado de Direito.
Neste aspecto gostaria de chamar a atenção para o que se passa em nível
internacional. Enquanto são inúmeras as vozes a clamar pela difusão ainda maior
deste método — de delação premiada (cujo sentido será esclarecido adiante) —
instrumento supostamente bemBsucedido em outros Estados, penso que estamos
nos aproximando de perigosa senda, que atravessa o Estado de Direito e recupera
para o Direito Penal e para o Processo Penal a racionalidade autoritária préBmoB
derna, que se pensava haver sido expurgada com a consagração do processo em
contraditório, sob a direção de juiz imparcial.

* Texto produzido em virtude de participação em Mesa de Estudos e Debates, promovida pelo


IBCCRIM, em 24 de novembro de 2005, na sede do mencionado Instituto, em São Paulo. Ao texto
foram incorporadas notícias acerca do desdobramento da “Guerra contra o Terrorismo”, como se
convencionou chamar o conjunto de ações dessa natureza ordenadas pelo Governo dos Estados
Unidos da América. O referido texto foi publicado no Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.13, n.159, p.
10B12, fev. 2006.

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No plano internacional hoje são ouvidas com maior intensidade as críticas


à política norteBamericana de repressão aos atos de terrorismo. Em 13 de
dezembro de 2005, o jornal alemão Der Spiegel publicou sugestivas matérias
sobre o assunto, uma das quais sob o título “CIA: a Gestapo americana”1. O
recurso à tortura, o desrespeito à soberania de outros Estados e o propósito
de obter imunidade penal para agentes de segurança responsáveis por crimes
supostamente praticados para evitar e/ou combater o terrorismo são exemplos
de medidas amplamente empregadas pelo governo norteBamericano, desde 11
de setembro de 2001, conforme a lógica de que os fins justificam os meios.
Dois pontos ressaltam deste empreendimento: a) o conhecimento público,
ainda que parcial, das providências adotadas, violentadoras das chamadas
“liberdades civis”; b) e, senão a aprovação tácita da opinião pública norteB
americana, ao menos a ausência de crítica severa ao evidente descaso com a
Constituição, estado de acomodação que perdurou por longo tempo.
A mim parece óbvio que a metáfora que justifica a inércia do público
norteBamericano está ligada ao fato de a reação, com toda sua virulência
inconstitucional, estar dirigida ao “outro”, isto é, a grupos étnicos com os quais
o cidadão norteBamericano não tende a se identificar.
A hipótese se comprova porque neste fim de 2005 e início de 2006 se tem a
notícia, surpreendente para o cidadão dos Estados Unidos, de que seu governo
“espionava” cidadãos norteBamericanos, no próprio território, à margem da
lei! Somente em virtude da ciência deste episódio inusitado é que se ouvem as
fortes reações para restabelecimento do império das leis (e não dos homens!),
que fundou a democracia contemporânea e estabeleceu o paradigma do Estado
de Direito na modernidade2.
Quando o sujeito se percebe vítima das ações autoritárias compreende o
fundamento dos direitos fundamentais, o significado de sua universalidade e a
importância de seu caráter irrenunciável.
O que isso tem a ver com a delação premiada?
Penso que há estreita relação entre os assuntos. O que pretende a delação
premiada, senão substituir a investigação objetiva dos fatos pela ação direta
sobre o suspeito, visando tornáBlo colaborador e, pois, fonte de prova!

1 h[p://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2005/12/13/ult2682u66.jhtm, consultado em 1º de
janeiro de 2006.
2 Ver artigo de Dorrit Harazim, publicado no Jornal O Globo de 1º de janeiro de 2006, sob o título:
“Um despertar Americano?”, p. 29. Consultado na mesma data em h[p:// oglobo.globo. com/jornal/
mundo.

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Não há na delação premiada nada que possa, sequer timidamente, associáB


la ao modelo acusatório de processo penal. Pelo contrário, os antecedentes menos
remotos deste instituto podem ser pesquisados no Manual dos Inquisidores. Jogar
o peso da pesquisa dos fatos nos ombros de suspeitos e cancelar, arbitrariamente,
a condição que todas as pessoas têm, sem exceção, de serem titulares de
direitos fundamentais, é trilhar o caminho de volta à Inquisição (em tempos de
neofeudalismo isso não surpreende).
Para o Processo Penal com o núcleo acusatório que em minha opinião foi
consagrado pela Constituição da República de 1988, cabe ao titular da ação
penal demonstrar em juízo a responsabilidade penal do acusado. Deverá fazer
isso com provas que só alcançam esta “dignidade jurídica” porque se submetem
ao contraditório.
Será visto adiante que o produto da delação premiada não preenche este
requisito. Sua sedução está alicerçada em um juízo de “verdade” que parece
tranquilizar as mentes dos profissionais do Direito. Sustento, porém, que a
única tranquilidade possível para os que atuam no e com o processo penal está
na fidelidade aos direitos fundamentais e na crença de que no atual estágio da
humanidade (dita civilizada) não há espaço para supor que um ser humano
possa ser instrumento do que quer que seja.

II. Da delação premiada

Começando pelo princípio, é necessário advertir que de modo direto não


há previsão, no Brasil, para a transação penal, exceto no caso das denominadas
infrações de menor potencial ofensivo ou para certos delitos tipificados no
Código de Trânsito Brasileiro3. Existem, todavia, portas abertas ao acordo sobre
a pena, em situações mais graves, mas que não podem levar o juiz a reduzir
automaticamente a sanção com a dispensa do devido processo legal e ampla
atividade probatória4.
O artigo 14 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, assim expressa:

3 Artigo 291 da Lei nº 9.503, 23 de setembro de 1997. Vale lembrar que há infrações de menor potencial
ofensivo, definidas na Lei nº 9.605/98, relativa aos crimes ambientais.
4 Em pesquisa de fôlego, professores europeus de direito penal comparado optaram pelo mesmo
critério, de não incluir a “participação do delinquente no processo penal”, expressão cunhada por
A. Perrodet para designar a colaboração premiada, no conceito de justiça negociada, sob pena de
ampliar de tal modo e com tantas categorias heterogêneas, o citado conceito que ele terminaria
perdendo a pertinência e utilidade operacional. Association de Recherches Pénales Européennes
(ARPE). DELMAS-MARTY, Mireille (dir.). Procesos Penales de Europa. Zaragoza: Edijus, 2000, p. 661.

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“Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a


investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais
co/autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na
recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação,
terá a pena reduzida de um a dois terços”.5

O artigo 13 da mesma lei distingue da colaboração voluntária aquela


“efetiva e” voluntária e promete o perdão judicial para a “efetiva e voluntária”.
Como está linhas atrás, a abertura de brecha proporcionada por esta lei,
que em verdade segue a trilha das pioneiras Lei dos Crimes Hediondos (Lei
nº 8.072, de 25 de julho de 1990) e Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034, de 3
de maio de 1995)6, não importa em transação sobre a pena, embora envolva a
disponibilidade sobre o processo, no caso de deferimento judicial do perdão.
Nem por isso a questão é tranquila.
Assim é que a estrutura do processo penal brasileiro sempre tomou como
relativa a confissão7, compreendida como admissão de fatos específicos8. AdeB
mais, asseguraBse ao réu, constitucionalmente, o direito de ficar em silêncio9
e, distinguindo acusado de testemunhas, fixa o regime jurídico destas últimas
a partir do artigo 202 do Código de Processo Penal, sujeitandoBas às penas do
crime de falso testemunho10.
A posição processual do imputado — indiciado ou acusado — é de quem
poderá resistir à pretensão do acusador, pessoalmente e/ou por seu defensor.
A lei veda ao réu atuar como assistente do Ministério Público, interessado na
condenação de outro acusado (artigo 270 do Código de Processo Penal). Caso
admita a prática da conduta delituosa, assumindo a responsabilidade pelo fato,
a rigor o réu tem direito à redução de sua pena, pois que a confissão espontânea
funciona como atenuante genérica para qualquer infração penal11.

5 Proposição semelhante aparece nos §§ 2º e 3º do artigo 32 da Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002,


editada para regular o processo dos crimes ligados a substâncias entorpecentes.
6 Vide GOMES, Abel Fernandes; PRADO, Geraldo; DOUGLAS, William. Crime Organizado:
E suas Conexões com o Poder Público. Comentários à Lei nº 9.034/95 (Direito Penal e Processual Penal).
Considerações Críticas. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2000.
7 Artigos 197B200 do Código de Processo Penal.
8 Hélio Bastos Tornaghi sublinha que por confissão deveBse entender “a declaração pela qual alguém
admite ser autor de crime”, acrescentando que confessar é “aceitar, como verdadeira, a autoria de um
fato ilícito, puro e simples, ou de circunstância exacerbante”. TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de
Processo Penal, vol. 4, op. cit., p. 46.
9 Artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição da República.
10 Artigo 342 do Código Penal.
11 Artigo 65, inciso III, letra “d”, do Código Penal.

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O entrelaçamento entre estas diversas regras de Direito e Processo Penal


demonstra, basicamente, duas coisas: desde 1988, com o advento da nova ordem
constitucional, o comportamento processual do acusado não é mais (nem menos) que
exercício de autodefesa; daí, conclusão segunda, não está sujeito ao contraditório.
Vale dizer, com Franco Cordero, que o debate contraditório requer, pelo menos,
duas pessoas em posições antagônicas, que intervenham perante uma que tem o
dever de moderáBlas12. A atuação em contraditório pressupõe a possibilidade de
o ato praticado por uma parte ser contrariado pela outra. Embora o confronto de
argumentos integre o contraditório, o réu tem o direito de não produzir prova
contra si mesmo e, portanto, pode calar ou mentir, o que leva ao esvaziamento de
um possível debate entre o corréu delatado e o delator13.
Na essência do instituto do contraditório, que foi definido por Mendes de
Almeida como “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de con/
trariá/los”14, este elemento é a ferramenta de que as partes se valem na instrução
contraditória, objetivando convencer o juiz acerca do acerto de suas razões15.
Neste sentido, no processo penal o contraditório deve ser conjugado com a
atividade que o qualifica e haverá de compreender, ainda nas pegadas de Mendes
de Almeida, a instrução como procedimento de alegar e provar16. A rigor, não
basta alegar e é necessário ter em mente que o conteúdo do interrogatório é
formado por mera alegação do acusado, simétrica à denúncia, que por sua vez
contém a alegação primária (imputação) do acusador.
Em ensaio profundo, anterior à Constituição de 1988, Ada Pellegrini
Grinover posicionavaBse contra a possibilidade de se tomar a mera alegação como
meio de prova. Seus argumentos estavam estribados, em suma, em idênticas
razões que fundamentam o artigo 8º, letra “g”, da Convenção Americana
de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)17. Nos dias atuais,

12 CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tomo II. Bogotá: Editorial Temis, 2000, p. 201.
13 SublinheBse que o delatado não tem o direito de exigir do delator que responda a suas perguntas.
Como deve ser “interpretado” o silêncio do delator a respeito de alguns dos pontos invocados pela
defesa do delatado?
14 ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios Fundamentais do Processo Penal: A Contrariedade
na Instrução Criminal; O Direito de Defesa no Inquérito Policial; Inovações do Anteprojeto de Código de
Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1973, p. 82.
15 Conforme esta perspectiva o juiz é o destinatário da atividade das partes (do resultado dessa
atividade) e sua função é zelar para que os sujeitos parciais estejam aptos a deduzir suas alegações e
produzir as provas. Nesta tese não se aceita o posicionamento de respeitável grupo de processualistas
civis, no sentido de converter o juiz em sujeito ativo do contraditório, ou, como assevera Cândido
Rangel Dinamarco, reconhecer que ele próprio, juiz, exerce o contraditório. DINAMARCO,
Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno..., op. cit. , p. 124.
16 Idem, p. 115.
17 GRINOVER, Ada Pellegrini. “Uma proposta inovadora no Processo Penal”, in: O Processo em sua
Unidade II . Rio de Janeiro: Editora Forense, 1984, p. 228.

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aceitar a alegação de um réu como meio de prova é ainda mais impensável.


Talvez aí esteja uma diferença fundamental entre o processo penal e os outros
processos jurisdicionais, para os quais também existe, de ordinário, previsão
de contraditório, mas que não asseguram a uma das partes o direito de calar,
livrandoBa de qualquer consequência jurídica negativa em virtude desta opção.
Para o entendimento mais claro da questão posta pela Lei de Proteção
Especial a Vítimas e Testemunhas (pelo visto também aos réus colaboradores!),
a condenação criminal de alguém, no Brasil, está condicionada à demonstração,
por meio de provas colhidas em contraditório, de que o condenado é penalmente
responsável pela infração. Assim dispõe o artigo 5º, inciso LV, da Constituição e
agir de outro modo significa negar vigência ao texto constitucional. No entanto,
a norma penal ordinária atribui eficácia de extinção da punibilidade à conduta
processual do indiciado ou acusado que servir não só como fonte de provas, mas
como verdadeiro meio de provas.
Nunca se proibiu réu algum de confessar, e isso não teria sentido, pois
violaria a liberdade de agir peculiar ao ser humano. Tampouco em terras
habituadas a torturas estimulaBse a confissão como meio de demonstrar algo.
Do ponto de vista puramente formal, nada impediria o Ministério Público de se
aproveitar da confissão, como fonte de prova, para aprofundar sua pesquisa e
introduzir provas obtidas em razão da fonte.
O que acontece agora é que a partir dessa sutil diferenciação, promovida
pela indicação de um resultado da atividade processual do réu como meio de
prova, no lugar de suas próprias declarações, intentaBse contornar as proibições
constitucionais e transformar acusado em testemunha. Um exemplo revela a
possibilidade: agente investigado por tráfico de cocaína indica espontaneamente o
lugar onde “efetivamente” a substância é encontrada e aponta dois outros sujeitos
como responsáveis pela droga. O encontro da cocaína no lugar apontado é indício
de que a outra informação, sobre a coautoria do crime, também é verdadeira. A
confirmação desse aspecto da imputação dependerá, porém, da inquirição em
juízo, na qualidade de testemunha, não de um terceiro desinteressado, o que é
peculiar à testemunha, mas de alguém confessadamente autor de crime, que tem
todo interesse jurídico (perdão judicial, redução de pena, acaso flagrado) em que a
responsabilidade recaía sobre aqueles que foram denunciados.
Neste exemplo, como instrumento relativamente eficaz de descoberta da
verdade (de formação da convicção) o contraditório está inutilizado, uma vez
que não há o ambiente de desinteresse que é essencial à produção da prova. Vale
lembrar que essa “delação premiada” é também uma confissão e, do ponto de
vista psicológico, considerando a percepção ordinária dos juízes, será tratada

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dessa maneira. É possível, portanto, traçar um paralelo entre a delação premiada e


a confissão e recordar a remissão de Hélio de Bastos Tornaghi, sobre a confissão,
no sentido de que “é sumamente tranquilizador... ouvir dos lábios do réu (delator) uma
narrativa convincente do fato criminoso, com a declaração de havê/lo praticado” (parêntese
inserido nesta tese). Acrescenta o processualista que “isso, aliás, acontece a qualquer
homem normal”18. Por que seria diferente na chamada de corréu19?
Do ponto de vista do garantismo, para cuja teoria o contraditório é indispensável
recurso de elucidação da causa20, a epistemologia autoritária, fundada na decisão
judicial imotivada, prevalecerá sobre o conhecimento decorrente do contraditório,
característica elementar ao Sistema Garantista, fulminando o caráter estritamente
jurisdicional de que depende o efetivo funcionamento das garantias processuais21.
Conforme os pressupostos a que adiro, será negado o nexo entre legitimidade no
exercício do poder punitivo e verdade, que edifica o esquema epistemológico e
normativo compatível com a democracia22.
A arquitetura da delação premiada, por sua vizinhança com a transação
penal, guarda ainda outro elemento que em conexão com uma política criminal
de penas cada vez maiores, tem potencial para prejudicar a apuração dos fatos,
em processo público e em contraditório. O recrudescimento das penas, ditado
pelo movimento de lei e ordem23, facilita a “sedução” da delação, esgrimindoB
se no campo do concreto com uma pena de efeito simbólico, que de fato
nunca caberia ou seria aplicada, mas que, do ponto de vista da estratégia de
convencimento, se converte em poderoso aliado.
Na verdade, não se tem notícia de que a delação premiada haja se
transformado, em termos de emprego freqüente no Brasil, naquilo que é, por
exemplo, nos Estados Unidos da América.

18 TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de Processo Penal, vol. 4, op. cit., p. 47.
19 Nenhuma nota sobre o assunto pode ser mais eloqüente do que as orientações contidas no Manual
dos Inquisidores, escrito por Nicolau Eymerich em 1376 e revisto e ampliado por Francisco de La
Peña, em 1578. EYMERICH, Nicolau. Directorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores). Revisto
e ampliado por Francisco de La Peña, 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos; Brasília:
Fundação Universidade de Brasília, 1993, pp. 98B104.
20 “Nulla accusatio sine probatione”, assinala Luigi Ferrajoli (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., op.
cit., p. 93).
21 Idem, p. 539.
22 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., op. cit., p. 69.
23 Sobre o tema recomendaBse a leitura, entre outros, de Crimes Hediondos (FRANCO, Alberto Silva, 4ª
ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000).

77
Entre a teoria e a prática...
ou a luta pelo Estado de Direito1

Honrado com o convite do IBCCRIM para publicar artigo na edição comeB


morativa dos quinze anos ininterruptos de existência do Boletim eu aceitei o
desafio certo de que não haveria melhor momento e melhor público para comB
partilhar incertezas que me incomodam profundamente.
O IBCCRIM tem entre as suas metas a defesa do Estado de Direito e o sentiB
mento que hoje me aflige diz exatamente com o risco acentuado a que se submeB
te o Estado de Direito – ou a sua idéia, apenas parcialmente implementada – nos
dias atuais.
Inicialmente, quero chamar a atenção para a reportagem publicada pelo
jornal O Globo, em 18 de novembro de 2004 (p. 15), cuja manchete é a seguinte:
“Com os nervos à flor da pele: medo da violência leva cariocas a botarem em
cheque valores básicos do estado de direito”.
Bem se vê, pela manchete, o sentimento difuso acerca das questões relacioB
nadas à violência e como as pessoas em geral supõem que estas mesmas quesB
tões devem ser enfrentadas. Não é necessário ser um atento acompanhante da
história recente do Rio de Janeiro para perceber que a superficial compreensão
dos graves problemas que se refletem na violência cotidiana tem dado margem
ao implemento de soluções simplistas, que cuidam de definir as “hordas de bárB
baros” que, nesta ótica, terminam sendo considerados inimigos da sociedade!
Aqui é como na velha história: não dá para saber o que vem antes, se o
Direito Penal do inimigo, como (pobre) formulação teórica, ou se a prática do
extermínio de “indesejáveis” sociais e da invisibilidade e exclusão dos grandes
segmentos carentes e vulneráveis de nossa população!
O olhar crítico flagra a maldosa confusão entre violência, crime e pobreza e
nota o esforço de disfarçar a responsabilidade e os nexos de causalidade expresB
sos pela hegemonia de uma globalização que exulta com resultados financeiros
à sombra das massas de despossuídos condenados a serem clientes do Sistema
Penal. O pensamento e a prática de Nilo Batista, Juarez Cirino dos Santos, EuB

1 O referido texto foi publicado no Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.15, n.179, p. 09, fev. 2007.

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genio Raúl Zaffaroni, Massimo Pavarini e outros não deixam a crítica dormir e
permitem, que bom!, que as consciências não se acomodem diante do que parece
ser a explicação única e universal da crise social, apresentada diariamente pelos
meios de comunicação social.
Apesar disso, a política criminal contemporânea, no Brasil, tem sido marB
cada pela brutalidade e pelos objetivos de segregação, em retrocesso bem deB
nunciado pelos criminólogos críticos, mesmo quando se tem como referência
o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal formal no período de nosso
último regime autoritário (Nilo Batista).
Os números não deixam mentir! A publicação dos dados consolidados do
Sistema Penitenciário do Brasil (p. 34) revela que em 2005 havia 296.919 preB
sos (102.116 provisórios) e que no ano de 2006 o número passou para 339.580
(112.138 provisórios). Somente no Rio de Janeiro (p. 40) a evolução do encarceB
ramento registra que em 2003 havia 18.562 cumprindo pena e que em 2006 este
número pulou para 28.104.
À opção pelo encarceramento somaBse a disposição de brutalizar a represB
são e as informações do Ministério da Justiça destacam que, por hora, 7 (sete)
jovens entre 18 e 29 anos entram nas prisões brasileiras (jornal O Globo de 29 de
junho de 2007). O alvo preferencial continua sendo a juventude popular, moraB
dora da periferia!
Bem, daí às mortes a granel é um pulo! Que o diga o Complexo do Alemão!
Não à toa a Anistia Internacional tem denunciado a “politicagem” sobre seguB
rança no Brasil.
O que espanta neste quadro é o estado de quase completa letargia que toma
conta dos profissionais do direito, como se as questões relacionadas à segurança
pública não dissessem respeito à cidadania e como se as mortes e encarceramenB
to multiplicados não fizessem parte de um programa político. Programa, digaB
se de passagem, escolhido e implementado diariamente com a colaboração, no
mínimo por omissão, dos atores com formação e atuação no campo do direito!
Encarcerar pessoas em massa, fazer ouvidos de mercador às vozes das faB
mílias da periferia que reclamam pelos mortos – com mortes que atingem tamB
bém, inevitavelmente, os agentes das forças de segurança pública que recebem
a tarefa de estar na linha de frente do “combate” – fechar os olhos à informação
de que apenas na área do citado Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, 2% das
crianças estão em atividade de trabalho, contra a média brasileira de 0,6 %(CenB
so IBGE), tudo isso, em realidade, encerra determina ideologia.
Como sublinha Elisabeth Roudinesco (Filósofos na Tormenta, Zahar, R J,
2007, p. 10), citando Michel Foucault e Gilles Deleuze, cuidaBse aqui da domiB

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nação de um “fascismozinho ordinário, íntimo, desejado, querido, admitido,


celebrado por aquele mesmo que ora é seu protagonista, ora sua vítima”. Em
verdade, o neoliberalismo despolitizou as graves questões da vida em sociedade
e, com a vitória da ideologia do individualismo possessivo, limpou o terreno
para tornar supérfluos os próprios regimes políticos autoritários. O fascismo doB
minante hoje se expressa na vida cotidiana e em aspectos prosaicos desta mesma
realidade e, assim, dispensa os aparatos do poder.
No campo jurídico as mesmas regras sujeitamBse, cada dia mais, a interpreB
tações que limitam o exercício dos direitos individuais ou reservam este exercíB
cio tãoBsomente a determinados grupos sociais. A prática hermenêutica tornouB
Bse aliada importante na ação de disfarçar e esconder o caráter político das esB
colhas jurídicas. Ética e direitos fundamentais são invocados contra as classes e
os grupos sociais eternamente subjugados! O papel emancipador do direito dá
lugar à invocação da ordem e, curiosamente, a retórica da paz social é construída
em cima da reivindicação de mais punição e sacrifícios!
Há que se fazer aqui uma mea culpa. A teoria do garantismo, organizada
pela pena brilhante e sensível de Luigi Ferrajoli, exerce função estratégica na
defesa do caráter emancipador que o direito da modernidade deve ter. É preciso,
porém, que se compreenda que o garantismo consiste em teoria do direito, teoB
ria normativa (ou neonormativa, como prefere Perfecto Ibañez) ou nova teoria
pura do direito, como salienta Jose Luis Martí Mármol.
No plano do formalismo jurídico ainda imperam mitos e o alcance da deB
fesa dos direitos individuais a partir de categorias formuladas sobre estes mitos
tende a ser bastante limitado! Assinalar a função contramajoritária dos direitos
fundamentais sem destacar, simultaneamente, o mito da representação majoriB
tária implica em deixar fora das vistas práticas democráticas outras, para além
da combalida, porém indispensável, representação parlamentar.
No início dos anos 70, na Itália, diversos pensadores e, entre eles, muitos
magistrados comprometidos com a transformação social, se reuniram em um
Congresso que consagrou o uso alternativo do direito. Como vários destes maB
gistrados têm esclarecido, tratavaBse ali de defender posição antagônica aos enB
tendimentos das cortes italianas, que teimavam em aplicar as regras jurídicas
em manifesta contradição com a Constituição. Por óbvio que naquela ocasião
dominava a interpretação/criação do Direito a partir de conceitos construídos
sob o império da ideologia fascista e era contra isso que se rebelavam os jovens
partidários do uso alternativo do direito. Do momento em que a cultura da efeB
tividade dos direitos fundamentais – e de sua real universalidade B difundiuB
Bse, esta posição de luta, constituída pelo uso alternativo do direito, esmaeceu.

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Afinal, o direito encontravaBse agora ao lado da democracia e estavam dadas as


condições para erigirBse o Estado de Direito.
Creio eu que hoje o domínio destes pequenos fascismos, a que se referiu
Roudinesco, com reflexos na política criminal do enfrentamento como fundaB
mento da “paz social”, está a exigir uma nova tomada de posição. As interpretaB
ções/criações progressistas das normas no campo do direito e do processo penal,
salvo raras e honrosas exceções (expressadas em decisões recentes dos tribunais
superiores), têm escasseado e dado lugar ao implemento de políticas exclusivaB
mente repressivas. ReprimeBse o direito, sob o disfarce de se reprimir o crime!
O direito penal do autor, que, em última análise, resulta da aplicação do direito
penal do inimigo é aceito francamente. E o Estado de Direito está em risco.
É preciso lutar pelo Estado de Direito! Parafraseando Ihering, a luta é o
meio de que se serve o Estado de Direito para consolidarBse. Devemos lutar por
ele se quisermos conquistáBlo.

82
Tribunal do Júri: propostas e
alternativas1

Meu cordial boa tarde! Agradeço ao Ministério da Justiça e naturalmente


a todas as instituições que estão colaborando na organização desse encontro, o
convite para participar, discutir, debater a reforma do processo penal brasileiro.
Cumprimento os colegas de Mesa, Doutor Cosenzo e o querido amigo Gustavo
Badaró. Como temos tempo bastante limitado (15 minutos) e eu gostaria de
aproveitáBlo ao máximo, peço licença para entrar logo no assunto central que
é o projeto de reforma do procedimento do Júri, apresentado pela Comissão
presidida pela professora Ada Pellegrini Grinover e que está no Congresso
Nacional aguardando o desenvolvimento natural dos trabalhos e aparece no
Pacto Republicano como um dos projetos mais importantes na ótica de uma
reforma da administração da justiça penal.
Eu e o professor Gustavo Badaró pedimos à organização do evento que
fizesse a distribuição para cada um dos senhores e senhoras do Projeto de Lei
que trata dos procedimentos. É o projeto de lei nº 4.207 que confere nova feição
aos procedimentos no Código do Processo Penal. Esse projeto de lei não está
inserido no projeto maior, no programa do Pacto Republicano. O programa
do Pacto Republicano privilegiou alguns projetos, o do Tribunal do Júri, o da
prova, o das medidas cautelares e o dos recursos e deixou de lado o projeto dos
procedimentos: procedimento ordinário e procedimento sumário.
Assim, de início se eu puder fazer uma crítica mais de nível geral sobre
a ideologia da reforma, devo dizer que a exclusão do projeto dos demais
procedimentos do conjunto dos que compõem o Pacto Republicano gera
exatamente aquilo que não gostaríamos de ver acontecendo, isto é, uma reforma
pontual que no lugar de adaptar a lei processual penal mais importante às
diretrizes fixadas na Constituição, termina por tornar mais confuso ainda o
sistema de administração da justiça penal.

1 Palestra proferida no Seminário “A reforma do processo penal”, organizado pelo Ministério da


Justiça em Brasília, em 7, 8 e 9 de junho de 2005, com publicação em 2007 sob o título “A Reforma do
Processo Penal Brasileiro”.

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Esse alerta, essa advertência “olha uma reforma pontual sempre corre
o risco de retirar do sistema de administração da justiça penal o mínimo de
racionalidade”, que de alguma maneira a tradição jurídica, o modo de atuar
concreto dos profissionais do direito acabou construindo, este risco irá se
acentuar, ele é ainda maior se escolhermos modificar o “código” do sistema penal
pontualmente e deixarmos de lado alguns projetos que formam o que eu chamo
de a estrutura do processo penal, não a estrutura do Código de Processo Penal,
mas a estrutura do próprio processo penal. O processo penal como método deve
gozar de um mínimo de racionalidade.
Pensar o processo de conhecimento, pensar as medidas cautelares, a prova,
o interrogatório, os recursos separadamente implica colocar ainda mais lenha na
fogueira do autoritarismo ideológico, ou como disse aqui Maurício Zanoide de
Moraes, contribuir para a permanência inquisitorial que o modelo de 1941 soube
consagrar, soube realizar e que atualmente não depende tanto da lei para prosseguir
funcionando, pois acaba sendo algo muito mais de cultura jurídica. E não se pode
desprezar a força de uma prática cotidiana, consagrada no plano da cultura.
Portanto, se queremos alguma coisa melhor do que o que se tem na
atualidade, se queremos transformar o processo penal, precisamos transformáB
lo na sua estrutura. E ao pensarmos em transformar o processo penal na sua
estrutura devemos pensar em uma estrutura como sendo – nas palavras de
Ada Pellegrini Grinover – a conexão entre os elementos centrais deste sistema,
conexão essa que deve ser harmônica e que também deve ser razoável.
Em inúmeras passagens do projeto de reforma do procedimento do júri,
este faz referência ao projeto de novos procedimentos (ordinário e sumário).
Várias das disposições que estão previstas no procedimento do júri vêm
acompanhadas ao final de uma referência ao procedimento comum, já de
acordo com a nova redação proposta. Então a modificação de determinado
artigo do Código de Processo Penal dentro do capítulo do procedimento do júri,
em que esta modificação esteja ligada a algum outro capítulo, artigo, inciso ou
dispositivo de outro projeto, que é este que eu mencionei, como por exemplo, no
caso da chamada emendatio libelli ou da denominada mutatio libelli, pode gerar
perda de racionalidade. Assim, no exemplo, alteraBse o procedimento do júri no
que toca à possibilidade de mudança da imputação, e se diz: “nesse caso, iremos
atuar conforme o artigo 383 do CPP”, mas não o atual artigo 383 do Código do
Processo Penal e sim aquele pensado, idealizado, pela Comissão responsável
pelo Anteprojeto, agora projeto da reforma dos procedimentos.
A leitura conjunta é essencial. Uma eventual aprovação do projeto de
procedimento do júri sem a aprovação concomitante do projeto da reforma dos

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procedimentos penais inviabilizará, em minha opinião, o próprio procedimento


do júri. Tornará muito difícil a concretização dos ideais de acusatoriedade
máxima que no júri encontraria o seu espaço maior, a sua realização maior.
Se pudermos pensar num modelo de processo acusatório, o modelo
do júri é talvez o mais aparelhado para ser acusatório. Só que não depende
exclusivamente dele, depende de uma estrutura básica e uma estrutura básica
vem dada pelo projeto de reforma dos procedimentos. Esta estrutura básica, em
minha opinião, começa com alguns acertos relacionados à linguagem. Estamos
falando aqui em processo acusatório e o ideal é que toda vez em que se falar
de processo acusatório todos nós compartilhemos a mesma noção deste tipo de
processo, para que não haja má interpretação daquilo que está sendo falado.
Então temos que ter um acerto lingüístico, um acerto semântico, determinadas
palavras devem produzir um sentido razoavelmente compartilhado no que
toca à nossa compreensão de mundo, em nossa representação de mundo e a
lei vai ter um papel importante nisso. O projeto de reforma do procedimento
começa a empregar a palavra acusação, por exemplo, de uma forma um pouco
diferente daquela forma tímida do Código de Processo Penal de 1941, pois que o
Código do Processo Penal de 1941, sendo inquisitorial não poderia abrir espaço
para a idéia de acusatoriedade. Então a palavra acusação aparece no Código
do Processo Penal de 41, por exemplo, designando testemunhas, testemunhas de
acusação, testemunhas de defesa. Isto não existe! Do ponto de vista técnico, do
ponto de vista teórico, testemunhas são testemunhas de algo que aconteceu, elas
não são testemunhas de acusação ou testemunhas de defesa. São testemunhas
de fatos que são relevantes para o deslinde da causa. A palavra acusação vai ter
um outro sentido, vai ter um sentido central, vai determinar o espaço de decisão
do juiz, o limite temático da decisão do juiz.
Gustavo Badaró tem um trabalho fantástico sobre isso, a relação entre a
acusação e a sentença. Ao definir este espaço de atuação do juiz a acusação
estabelece para o juiz certas proibições; estabelece para o juiz neste contexto
de limitação, funções da mais alta relevância e pertinentes com a democracia,
a defesa dos direitos fundamentais que, em minha opinião, configuram a
finalidade e a função da atuação judicial no processo.
Então, as palavras devem produzir um significado compartilhado por
todos nós. Temos que temer palavras que não produzam este efeito e temos
obrigação na lei de nos esforçarmos para dirigir a produção legislativa para
um porto seguro comunicacional. Além das palavras e naturalmente além dos
conceitos, temos as estruturas gerais. O Projeto de Procedimentos está idealizado
a partir de uma perspectiva acusatória. Ao acusador, ao Ministério Público e ao

85
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querelante, nos casos de crime de ação penal privada, cabe definir a matéria que
será submetida ao juiz. Ao Ministério Público e ao querelante cabe dar início
ao processo apresentando em juízo a acusação. Esta acusação é submetida a
um filtro, já se falou disso hoje aqui, por meio da atuação do juiz como juiz de
garantias, tendo a função primordial de evitar que prospere processo fundado
em uma acusação leviana. Toda essa estrutura inicial do procedimento ordinário
previsto no projeto nº 4.207/2001, está voltada ao controle da acusação; queremos
uma acusação que de fato leve ao juiz a matéria que ele terá que apreciar e
decidir, mas que não leve a ele aquilo que não deve ser levado porque não existe
suporte probatório.
Porque em determinadas situações, a acusação estará veiculando ou estará
imputando ao réu práticas sobre as quais não há qualquer tipo de referência
na anterior investigação. O filtro funciona ali, o filtro impede que alguém se
submeta ao processo penal de forma vexatória. É uma idéia geral que no projeto
de reforma dos procedimentos irá aparecer nos seus artigos propostos, sendo o
artigo 395 central porque nos diz “olha, começamos o processo desta maneira”
e aí vem o 396. Convido os senhores à leitura: “oferecida a denúncia ou queixa, o
juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder à acusação,
por escrito, no prazo de dez dias, contados da data da juntada do mandado aos autos ou, no
caso de citação por edital, do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído”.
Assim, o réu será citado para apresentar defesa preliminar, alegações preliminares
no prazo de dez dias e indicar as provas que pretende produzir, e o juiz, diante
dessa defesa preliminar, produzirá análise dessa defesa preliminar cotejandoBa com
a acusação e com a investigação criminal que lhe sustenta.
E no artigo 396 está dito que: “o juiz, fundamentadamente, decidirá sobre a
admissibilidade da acusação, recebendo ou rejeitando a denúncia ou queixa”. Então,
ao contrário do que dispõe o atual artigo 396 do Código de Processo Penal, o
projeto sugere outro comportamento do magistrado no início do processo, como
se nos dissesse “olha juiz, a partir de agora, diferentemente do que acontece
hoje, não poderá simplesmente receber a denúncia e permitir que este processo
prossiga sem que, fundamentadamente, diga que está recebendo a denúncia
porque este elemento de convicção me convenceu da viabilidade da existência
do crime e/ou também da inviabilidade desse crime imputado ao réu. Estou
convencido provisoriamente disso, estou decidindo pela admissibilidade da
acusação e a partir de agora sim, vamos produzir as provas, vamos ouvir o que
o réu tem a dizer sobre o assunto, vamos ouvir o que as testemunhas arroladas
pela acusação e pela defesa irão declarar, o que elas podem dizer, que tipo de
contribuição elas poderão produzir... “

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Vale lembrar que o projeto dos procedimentos propõe o parágrafo único


do artigo 396, com a seguinte redação: ”a denúncia ou queixa será rejeitada quando:
inciso 1 – for manifestamente inepta. Inciso 2 – faltar pressuposto processual ou condição
para o exercício da ação penal. Inciso 3 – faltar justa causa para o exercício da ação”.
O que significa faltar justa causa para o exercício da ação penal? Significa que
não há indícios de autoria, indício da existência de um fato ou da autoria deste
fato que sejam suficientemente convincentes para levar o juiz a admitir que
aquele processo prossiga a partir dali. O processo penal causa dano às pessoas.
O processo penal é um mal necessário em termos de mecanismo civilizado de
resolução de casos. Se ele é um mal necessário, será um mal desnecessário e
exagerado se aceitarmos dar início ao processo sem base mínima, sem elementos
mínimos que nos levem a desconfiar de que aquela pessoa que está sendo
processada de fato cometeu um crime. Neste ponto o Projeto de Procedimentos
merece, em minha opinião, todos os elogios. Tem uma percepção clara do dano
que o processo penal produz na vida das pessoas. Tem uma visão clara do
papel do juiz nesta etapa, neste momento do processo penal; este é um juiz de
garantias, responsável pelo filtro da acusação, responsável por não permitir que
se prossiga com o processo penal, que não sacrifique a reputação das pessoas
quando desde logo se vê que aquilo é temerário, que aquilo é leviano.
E há algum ajuste de natureza técnica que vai colocar as coisas em seus
devidos lugares. Mais atrás o projeto modifica a chamada mutatio libelli, falaBse
da mutatio libelli, peço que voltem um pouco no projeto, porque o projeto tem seu
estilo de redação. São os artigos 383 e 384, ainda do Projeto de Procedimentos,
por favor. O artigo 383 vai disciplinar o modo como o juiz se porta diante da
acusação, está lá no artigo 383: “o juiz, sem modificar a descrição do fato contida
na denúncia ou queixa, poderá atribuir/lhe definição jurídica diversa, ainda que em
conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave”. Conhecemos isso do nosso artigo
383 atual emendatio libelli. Prossegue o projeto, em seu parágrafo primeiro, e aí
vem a mudança, uma das mais importantes mudanças que este projeto traz e que
vale para qualquer tipo de processo, qualquer tipo de procedimento: “Parágrafo
primeiro – as partes, todavia, deverão ser intimadas da nova definição jurídica do fato
antes de prolatada a sentença”.
Portanto, alguém é acusado da prática de um determinado crime. Por
erro na capitulação deste fato, o Ministério Público atribui ao fato uma
classificação jurídica diversa daquela que deveria ter sido atribuída. O juiz
poderá considerar a classificação jurídica correta. No entanto, em homenagem
ao princípio do contraditório, em homenagem ao princípio de ampla defesa,
o juiz obrigatoriamente deverá avisar às partes “olha, antes de modificar essa

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compreensão, essa qualificação jurídica dos fatos, eu quero alertáBlos de que


em minha opinião o fato é esse.” Evita problemas como concurso aparente de
tipos penais, limita o juiz porque se ele ultrapassa o limite nessa classificação o
Ministério Publico dirá “olha, ai não há erro de classificação não. Eu não quis
atribuir em concurso o estelionato, o uso do documento falso e a falsificação
de documento porque na minha concepção a hipótese é de estelionato, crime
fim que prevalece sobre os crimes antecedentes”. Dá margem à discussão
contraditória que controla o juiz e assegura a acusatoriedade, ao afastar o juiz da
produção da acusação.
O parágrafo segundo do artigo 383 do projeto estabelece que a providência
prevista do caput deste artigo poderá ser adotada pelo juiz no momento do
recebimento da denúncia ou queixa e isso tem que combinar com o que nós
vimos agora a pouco.
Finalmente, observem, porque aqui marca uma diferença enorme para o
projeto do procedimento do júri. Artigo 384 do projeto – “encerrada a instrução
probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de
prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida
na acusação, o Ministério Público poderá aditar a denúncia ou queixa, se em virtude
desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo/se a
termo o aditamento quando feito oralmente”. Nós enterramos definitivamente
a possibilidade de o juiz, diretamente, modificar a acusação sem que o autor
da ação penal, tenha ele próprio concordado com essa modificação, nos casos
em que o crime que o juiz reconhece depois da instrução criminal ser de igual
gravidade ou de menor gravidade que o crime atribuído ao réu pelo Ministério
Público, nós eliminamos a possibilidade de o juiz, neste caso. Por este artigo
proposto, o Juiz é afastado, definitivamente, da condição de autor da ação penal,
condição disfarçada que hoje a ele é atribuída pela mutatio libelli do atual artigo
384 do Código de Processo Penal. Segundo o projeto, nesses casos fica a critério do
Ministério Público alterar a acusação, enquanto pela regra em vigor o juiz poderia
fazer isso sem consultar o Ministério Público. O projeto também fica mais afastado
nos casos do parágrafo único do atual artigo 384, pelo qual o juiz não faz ele próprio
a mudança mas estimula, incentiva o Ministério Público a fazêBlo, saindo ele, juiz, da
posição de imparcialidade que é o seu papel no processo.
Pois bem, estou aqui, lamento que a Professora Ada não esteja presente,
Petrônio Calmon está aqui. Estou aqui elogiando os projetos de procedimento,
para em seguida fazer uma pergunta óbvia. Quem fez o projeto do procedimento
do júri não leu esse, de modificação dos procedimentos ordinário e sumário?
Não é possível! Mas por que está sendo feita esta afirmação? Eu estou fazendo

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a afirmação porque, em primeiro lugar, toda a fase de análise de denúncia ou


queixa no projeto de procedimento do júri se afasta da lógica do recebimento
da denúncia ou queixa do Projeto de Procedimentos em geral, se afasta
completamente, sem qualquer justificativa razoável, senão o demasiado apego,
ora à tradição, ora à força das palavras, como se as palavras pudessem, ser mais
importantes que os conceitos de acusatoriedade que a estrutura constitucional
definiu. Este afastamento ocorre no momento em que se cria dentro do
procedimento do júri algo diferenciado, um tipo diferenciado de atividade
probatória entre o oferecimento da denúncia/queixa e o instante em que essa
denúncia ou queixa é recebida pelo juiz. Ali há uma atividade probatória que em
minha opinião nada mais é do que o retorno à idéia central, inquisitorial, de que
os jurados não têm condição, a capacidade de fazer uma avaliação probatória do
material que as partes irão lhes apresentar para então decidir a causa.
O juiz profissional, o juiz togado, analisa a resposta escrita nos casos de
roubo, de furto, analisa a resposta escrita apresentada pela defesa, avalia se
convém ou não a produção de alguma prova em caráter cautelar, diria eu, em
caráter prévio. Em caráter prévio a prova é produzida ou não, o juiz recebe ou
não a denúncia ou queixa. No procedimento do júri não! Sendo o Tribunal do
Júri o juiz natural da causa e, portanto ao Tribunal do Júri as provas devem ser
dirigidas, as provas devem ser produzidas perante o Tribunal do Júri – uma das
maiores reclamações na prática, no cotidiano, são os famosos júris sem produção
de prova testemunhal; são os júris em que as partes ficam lendo termos de
depoimentos de testemunhas a um juiz presidente, em que, na realidade, o
vencedor desse confronto, desse duelo intelectual entre o Ministério Público e a
Defesa é quem melhor interpreta um texto de alguma coisa que é depoimento de
testemunha a que os jurados não tiveram acesso.
A Constituição não quer isso no seu artigo 5º, inciso XXXVIIII. A Constituição
da República estabelece o júri como juiz natural da causa e nós, presos à
tradição de que o júri não pode ser o juiz natural da causa por inúmeras razões,
queremos ainda assim, assegurar no início uma espécie de delimitação do modo
de conhecimento dos jurados da matéria. Porque com a redação proposta, sem
prejuízo da intenção dos autores do anteprojeto, nada impedirá que a prova
não se produza lá em plenário (novamente), porque aquela outra se produziu
para o recebimento da denúncia ou queixa, se produziu em contraditório, com o
Defensor e com o Ministério Público participando dessa produção da prova, de
modo que o produto desta atividade não poderá ser equiparado às informações
contidas no inquérito policial.

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Não é improvável (embora seja indesejável) ver o Supremo Tribunal Federal


decidindo: “não! É válida a decisão condenatória do júri, ainda que nenhuma
prova oral tenha sido produzida em plenário, porque o fundamento daquela
decisão foi justamente o depoimento de alguém que prestou esse depoimento
a um juiz, com o defensor e com o Ministério Público ali atuando”. Ou temos o
júri e aceitamos o júri, como diz a exposição de motivos do projeto, ou não temo
o júri. Não podemos é ficar com o júri ao qual não reconhecemos autonomia na
função de julgar.2
Até aí vai algo que pode ser objeto de controvérsia na interpretação que
eu estou dando. Nós ficamos com defeitos processuais ainda mais graves na
manutenção de decisões com nome de pronúncia e de impronúncia, o que em
minha opinião é dispensável. TrataBse de homenagem que se presta a uma
tradição de decisão (impronúncia) que viola o Pacto de São José da Costa Rica.
Como vocês devem lembrar e eu volto a falar, lá no caso do procedimento
do roubo este se desenvolve sinteticamente da seguinte maneira: a denúncia é
oferecida; o juiz cita o réu para que apresente a defesa preliminar; o juiz examina
a defesa preliminar, examina a denúncia, examina as informações do inquérito;
recebe a denúncia ou – está lá no projeto, artigo 396 – rejeita a denúncia e,
neste caso, por que? Por inépcia da inicial ou porque não há condições da
ação ou porque não há justa causa para ação penal. Volto a dizer, rejeitaBse a
denúncia ou queixa por falta de justa causa, decisão esta com a qual todos nós
já estamos acostumados, sabemos exatamente os seus efeitos, compreendemos
o que ela significa. E no procedimento do júri, o que o juiz faz? A denúncia
é oferecida (a queixa excepcionalmente); citado o réu, há a defesa preliminar;
depois há a audiência das testemunhas arroladas pela acusação – que lá
aparecem equivocadamente como testemunhas de acusação, é insistência no
erro terminológico, mas isso é de importância menor – e a audiência com as
testemunhas arroladas pela defesa, cinco e cinco. É estranho ali porque há um
apego numerológico, 5 no momento da denúncia, 5 no momento das alegações
preliminares e 8 em plenário quando provavelmente não teremos as 8 e fica
difícil saber porque 8 em plenário se 5 na etapa anterior, de onde surgiram as três
que sobram? Mas vamos deixar isso para lá que nós sabemos que a explicação
está dada novamente pelo apego ao numero 8 de testemunhas do procedimento
do júri hoje. Na mencionada audiência se produz essa prova, oralmente as
partes se manifestam e aí em seguida o juiz profere uma decisão, que poderá
ser de recebimento de alguma coisa – não está no projeto –; vamos colocar de

2 Ver artigo 480 do projeto do CPP.

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recebimento da denúncia (convém fazer esta correção terminológica porque é


importante que fique consignado o recebimento da denúncia, porque o recebimento
da denúncia, de acordo como código penal interrompe a prescrição. Então não
vamos deixar para os Tribunais ficarem discutindo se ali se recebeu ou não recebeu
a denúncia para efeito de interrupção do prazo de prescrição. Vamos deixar a coisa
clara!). TrataBse do recebimento da denúncia com automática pronúncia daquele
acusado. Ou rejeição da denúncia, ou ainda impronúncia.
A impronúncia, nos termos do projeto, significa rejeição daquela acusação
por ausência de indícios de autoria ou ausência de provas da existência da
infração penal. E aí eu volto a manifestar meu desacordo porque isso significa
rejeitar a denúncia por falta de justa causa. Mas porque no procedimento do júri
não aparece assim “rejeição da denúncia por falta de justa causa?” Tal escolha
deve ter suas razões, mas a impronúncia, que ganha essa sobrevida no projeto,
merece o título de sentença e vem acompanhada do que é hoje o seu parágrafo
do Código de Processo Penal, que é a regra pela qual se permite a dedução de
uma nova acusação contra o mesmo réu pelo mesmo fato, se surgirem novas
provas antes da extinção da punibilidade.
Isto é, eu elimino uma decisão, diferentemente da sentença que rejeita a
denúncia ou queixa no caso do roubo, dos demais casos, em que eu tive uma
produção probatória, testemunhas foram ouvidas, o réu foi interrogado, e eu
digo ao réu “você não irá a júri, não irá a júri porque? Porque não há justa causa
para esta ação penal”. Mas eu vou dizer isto de uma forma diferente: “réu, você
não irá a júri porque eu estou te impronunciando porque não há indícios de
autoria”. E agora, diferentemente daquele sujeito que no processo do roubo tem
a sua denúncia recebida, aí sim, que tem a prova produzida e é absolvido porque
não há indícios de autoria ou indícios da existência do próprio roubo, enquanto
não for extinta a punibilidade você poderá ser novamente julgado. Isto viola o
artigo 8º, inciso 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos. Não pode ser
dessa forma! Com todo respeito aos integrantes da Comissão responsável pelo
projeto, isso é inconstitucional na medida em que a Convenção Americana, para
mim pelo menos, tem status de uma norma constitucional!
Tem ainda no projeto que o juiz, nessa etapa da pronúncia, pode pronunciar
o réu por crime diverso daquele que consta na denúncia ou queixa, ainda que
tenha que aplicar pena mais grave. Eu acabei de ler para vocês o texto do
projeto dos procedimentos. No Projeto do Júri está disposto tudo aquilo que,
segundo o projeto dos procedimentos, não se aplica. Aqui o juiz pode sim
modificar a acusação e um réu acusado da prática de homicídio doloso poderá
ser pronunciado por homicídio doloso qualificado, ainda que o Ministério

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Público não tenha alterado a acusação!? Ou ainda – e encerro de vez a minha


opinião nessa parte do projeto – o juiz pode mandar o Ministério Público acusar
outras pessoas da prática de crime, a partir das provas que foram produzidas ali.
Pois bem, o Projeto do Júri é enorme, tem muita coisa para falar. Coube a mim,
nesta divisão de temas, “falar da primeira etapa” e eu digo “não dá para passar
este projeto sem que ele seja compatibilizado com o Projeto de Procedimentos,
porque ele mantém a estrutura arcaica que é incompatível com a Constituição,
enquanto o Projeto de Procedimentos tem a estrutura mais compatibilizada com
a Constituição e aí sim poderemos ter avanços significativos, restabelecendo a
soberania do júri. São idéias iniciais, não sei se vai ter debate, mas é basicamente
isto. Muito obrigado”.

92
Dispositivos legais desencarceradores:
o óbice hermenêutico1
Geraldo Prado2
Rubens R R Casara3

Em reação ao grande encarceramento sofrido por parcela significativa da


população selecionada pelo sistema penal, costumaBse apontar a necessidade
de dispositivos legais desencarceradores, conectados a um novo modelo de
política criminal, aptos a romper com a naturalização do cárcere como resposta
aos desvios criminalizados. EsperaBse, com a redução da distorção/perversão
encarceradora, própria de uma epistemologia autoritária, uma mudança de
estratégia no trato do poder penal.
TrataBse, portanto, de uma questão de poder. Os dispositivos legais desenB
carceradores referemBse à forma mais grave de manifestação do poder penal; são,
ao menos no plano do discurso oficial, uma tentativa de superação/limitação do
poder de encarcerar.
Desde Foucault, podeBse afirmar que o poder de encarcerar não é um objeto
capaz de ser apropriado pelo sujeito, que, ao seu desejo, o utilizaria ou não.
Como todo poder, o de colocar seres humanos em jaulas, é algo que se exerce
no tempo e no espaço; um fenômeno, uma prática social, e, como tal, constituída
historicamente, capaz de produzir efeitos concretos para além do local em que a
punição é escondida.4
O poder de encarcerar faz parte de uma rede de poderes que se espalha
na sociedade em meio a uma trama histórica, que se desenvolve com rupturas

1 O presente texto reúne as considerações levadas a cabo pelos autores durante o Seminário “Depois
do Grande Encarceramento”, realização do Ministério da Cultura e do Instituto Carioca de
Criminologia.
2 Desembargador do TJ/RJ, Doutor e Mestre em Direito pela UGF, Professor de Processo Penal da
UFRJ e da UNESA, Membro da Associação Juizes para a Democracia (AJD) e do Movimento da
Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD)
3 Juiz de Direito do TJ/RJ, Doutorando em Direito pela UNESA, Mestre em Ciências Penais pela
UCAM/ICC, Professor de Processo Penal do IBMECBRJ, Membro da Associação Juizes para a
Democracia (AJD) e do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD)
4 Sobre o tema: FOUCAULT, Michel. Genealogia e poder. In Microfísica do poder; trad. Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 167B177.

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e permanências. Nesse movimento, as mudanças nem sempre são bruscas ou


facilmente perceptíveis. Os discursos e a funcionalidade real do encarceramento
sofreram modificações, de diferentes intensidades, desde o final do século
XVIII. A vocação utilitária e o poder de adaptação do cárcere a diferentes (e
até antagônicas) ideologias são marcas desse processo. Dito de outra forma: a
engenhosidade do poder de encarcerar permite que ele seja exercido tanto para
aumentar utilidades econômicas, quanto para diminuir perigos políticos, em
especial na contenção das classes perigosas.
Assim, por exemplo, a partir da Revolução Tecnológica o processo de
encarceramento, sem sofrer lapso de continuidade, deixou de atender ao controle
da mãoBdeBobra de trabalho para se tornar uma forma de eliminar o perigo dessa
multidão. SabeBse que a denominada Revolução Tecnológica, em seu aspecto
mais visível e perverso, representou a substituição de homens por máquinas
na produção de riquezas, com a formação de uma multidão incapaz de vender
sua força de trabalho. Multidão que, apesar de possuir necessidades artificiais
de consumo, não dispõe da capacidade econômica necessária à aquisição desses
bens. Em resumo: pessoas que não mais interessam à sociedade de consumo.
RegistreBse que o poder de encarcerar é, como todo fenômeno, condicionado
pelo contexto em que é exercido. Não pode, por essa razão, ser abandonado ao
bel prazer de um sujeito. O encarceramento faz parte de uma tradição e apenas
a mudança da tradição permitirá o abandono do cárcere. A superação do grande
encarceramento depende, portanto, da compreensão desse contexto: é necessário
estar em condições de enfrentáBlo, de derrotáBlo, de começar algo a partir dele.
Dito de outra forma, a superação do poder penal, e em especial do poder de
encarcerar, só virá se existirem condições para tanto: é uma questão de estratégia,
de tática, de produção de um novo consenso à superação da tradição autoritária que
identifica liberdade com impunidade, enfim, de luta contra a hegemonia do cárcere.
Nessa luta contraBhegemônica, diversos aspectos devem ser considerados.
Assume relevância, em especial, o necessário esforço para a produção de um
saber capaz de penetrar na sociedade com informações sobre o fracasso das
funções declaradas do sistema penal, em especial a falência do modelo de
encarceramento, retrato mais perverso e atentatório à dignidade da pessoa
humana com que convive acriticamente a sociedade. ImpõemBse medidas que
revelem, a título de exemplo, a incapacidade da pena de prisão atender aos
fins que o discurso oficial lhe atribui, a relação indissociável entre o cárcere e o
fenômeno da reincidência e o caráter seletivo do exercício do poder de encarcerar.
Ainda dentro dessa linha, devem ser fomentados debates acerca da legitimidade
da punição em um país de capitalismo tardio, em que não são respeitados os

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direitos fundamentais de considerável parcela da sociedade, em especial diante


daquilo que Nilo Batista chamou de “pecado original da pena pública” 5. CuidaB
se da fundação da pena pública em uma estrutura social patrimonialista, que
confunde o público com o privado, em que os instrumentos públicos de coação
pertenciam (e ainda pertencem), de fato, às classes dominantes.
Embora se reconheça que as medidas penais desencarceradoras em certa
medida reBlegitimam o sistema penal, reconheceBse também que, enquanto
as condições políticas que permitirão a superação do sistema penal não são
construídas, é importante eliminar, tanto quanto possível, os efeitos reais do
exercício concreto do poder de encarcerar.
Não se trata de atuar a partir da fé cega no cárcere como resposta aos desvios
sociais, mas de agnosticamente atuar na redução de dramas e danos causados
pelo encarceramento. Afinal, enquanto o “depois do grande encarceramento”
não se torna realidade, pessoas em maioria que se encontram em estado de
vulnerabilidade, continuam submetidas ao sofrimento inútil do cárcere.
Sem a crença epistemologicamente ingênua de que o sistema penal pode
ser socialmente útil (ou, como quer parcela bem intencionada da doutrina e da
jurisprudência, “capaz de servir como instrumento de libertação da maioria
oprimida”), acreditaBse que os dispositivos penais desencarceradores podem
servir para reduzir os efeitos reais do exercício do poder penal.
O cuidado no manejo desses dispositivos, porém, deve ser redobrado, sob
pena de se ampliar o âmbito de incidência do sistema penal, ou seja, não se
deve permitir que as medidas desencarceradoras sirvam para submeter novas
pessoas ao controle penal através de medidas nãoBencarceradoras, no lugar de
diminuir o sofrimento dos que estão no cárcere.
Diversas propostas de dispositivos legais desencarceradores poderiam
ser formuladas, tais como: a ampliação das hipóteses de vedação à prisão
cautelar (que hoje se encontram previstas, a contrario sensu, no artigo 313 do
Código de Processo Penal), com a criação de “processos penais de liberdade
necessária” (antítese da antiga “prisão de curso forçado”); a positivação/
atualização, diante do apego dos atores jurídicos à lei em sentido formal, do
princípio da proporcionalidade aplicável às prisões cautelares; a reformulação
da parte especial do Código Penal à luz da Teoria do Bem Jurídico; a ampliação
das hipóteses de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de
direitos (deverBseBia ter a substituição como regra, vedada a pena restritiva de

5 Ver: BATISTA, Nilo. Pena pública e escravismo. In História e direito: jogos de encontros e transdisB
ciplinaridade. Gizlene Neder (org.). Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 27B62.

95
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direitos, tãoBsomente, diante das circunstâncias do caso concreto, em situações


excepcionais bem delineadas pelo legislador); a adoção do princípio do numerus
clausus em matéria de execução penal, ou seja, a consagração de que só é legítimo
executar penas que o sistema penitenciário comporte. O Estado que deseja punir,
e por essa razão prende o indivíduo que viola a lei penal, não pode descumprir
a Lei de Execução Penal na hora de executar suas sentenças condenatórias; o
Estado não pode perder a superioridade ética em relação ao criminoso, por
violação da dignidade humana no sistema prisional etc. Todavia, optarBseBá por
dar ênfase ao grande óbice à concretização dos dispositivos desencarceradores.
A hipótese aqui defendida é a de que o grande problema, o principal obstáculo
à concretização dessas medidas, não se dá no plano da legislação: trataBse de
uma questão hermenêutica; mesmo diante de dispositivos legais que autorizam
a substituição do cárcere por outras medidas penais (como, por exemplo, o
artigo 44 do Código Penal), é no momento da interpretação/aplicação da norma
que se impede a diminuição do sofrimento do apenado ou que se decreta ou
mantém prisões cautelares desnecessárias (em que a liberdade do acusado não
gera risco processual). Diante de uma Constituição da República em tendência
emancipatória (em que pesem alguns poucos comandos de incriminação), a
insistência dos atores jurídicos, em especial no Poder Judiciário, em reconhecer o
cárcere como resposta preferencial aos desvios sociais criminalizados, revela que
o processo de encarceramento deve ser compreendido à luz da hermenêutica.
Desde os estudos de Heidegger, se realçou que há uma diferença ontológica
entre o texto e a norma. A norma é, sempre e sempre, o produto da criação
do intérprete; em cada norma há um pouco do intérprete: a norma como
produto histórico carrega parcela ou recorte desta história, da consciência e do
inconsciente do intérprete. Com o texto legal não é diferente; cada dispositivo
legal desencarcerador só se torna efetivo, só se transforma em norma jurídica,
em cada caso concreto, por meio da atuação do intérprete.
Não raro, porém, o juiz/intérprete esvazia o conteúdo libertador do
dispositivo legal desencarcerador ao apresentar respostas estatais que prestigiam
o cárcere em detrimento de alternativas menos danosas à dignidade humana.
Isso é assim porque a préBcompreensão, que acompanha todo processo de
interpretação, condiciona toda a cadeia de significantes e, em conseqüência, o
resultado dessa interpretação.
Não se pode esquecer que o intérprete está inserido, ele mesmo, em uma
tradição autoritária. Daí que no momento de compreender/interpretar o texto,
o juiz penal pode acabar por esvaziar o conteúdo libertador do dispositivo
legal. Dito de outra forma: a situação hermenêutica – a grosso modo, o contexto

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em que está inserido o serBaíBjulgador6 – impede a concretização das medidas


desencarceradoras, na medida em que o juiz penal não se interpreta (não
reconhece, por exemplo, seus preconceitos) ao interpretar o dispositivo legal.
É necessário que o interprete/juiz passe a ter consciência de que “sua própria
compreensão e interpretação não é nenhuma construção a partir de princípios,
mas o aperfeiçoamento de um acontecimento que vem de longe. Os conceitos de
que se utiliza não poderão, por isso, ser reclamados sem questionamentos; terá,
porém, de ser aceito o que lhe foi trazido de herança do originário conteúdo
significante de seus conceitos”.7
Ao lado do ambiente autoritário em que se inscreve o intérprete, na
América Latina, porque acredita na pena (o juiz penal declaraBse severo,
enquanto é incapaz de reconhecerBse ingênuo e autoritário), há a reprodução do
“senso comum criminológico” 8 que clama por mais e mais repressão. Existem
pulsões de morte que irrompem, em regra inconscientemente, no processo de
interpretação: tudo a impedir o desencarceramento.
PercebeBse, pois, que a concretização do desencarceramento exige muito
mais do que apenas uma mudança legislativa, também necessária. É, antes de
tudo, uma luta política, uma batalha por mudança na correlação de forças e que
necessariamente passa pela construção de uma cultura democrática.
A ruptura com a tradição autoritária exige novos atores jurídicos. Isso
implica, dentre outras coisas, a reformulação dos concursos públicos para
ingresso nas carreiras que tratam com o poder penal e a eliminação dos controles
ideológicos que buscam a manutenção da tradição autoritária das Agências
Estatais. Exige, também, a construção de um saberBpoder comprometido com a
dignidade humana e com os valores consagrados nas Constituições Democráticas
e nos tratados internacionais de direitos humanos.

6 UtilizaBse aqui expressão de cunho heideggariano empregada por Alexandre Morais da Rosa (ROSA,
Alexandre Morais da. Decisão penal: bricolagem de significantes. Rio de Janeiro, 2006).
7 GADAMER, HansBGeorg. Verdade e método. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997,p. 35.
8 A expressão foi utilizada por Nilo Batista em sua fala no Seminário “Depois do Grande
Encarceramento”, promovido pelo Ministério da Justiça e pelo Instituto Carioca de Criminologia.

97
Sobre Procedimentos e antinomias1

I – Inicialmente, convém destacar que este ensaio está limitado ao exame


preliminar do âmbito de incidência de três preceitos dispositivos específicos,
introduzidos pela Lei nº. 11.719, de 20 de julho de 2008.
TrataBse de lei que integra a reforma parcial a que foi submetido o Código de
Processo Penal e, em específico, esta lei cuida do tema de procedimentos, malgrado
discipline ainda outros pontos que concernem à estrutura do processo.
Assim, não há aqui a pretensão de fundar críticas políticas, ideológicas e
estritamente jurídicas que cabem a respeito de reformas parciais ou pontuais do
Código de Processo Penal e do que isso representa.
O ângulo sob o qual se pretende trabalhar é bem mais modesto e se refere
aos termos definitivos dos artigos 396 e 399 do Código de Processo Penal, que
cuidam de prever, em distintos momentos da primeira etapa dos procedimenB
tos, a emissão de uma mesma decisão: a de recebimento da denúncia ou queixa!
A situação, por si só preocupante, tem acentuada a sua gravidade ao se
notar que o §4º do artigo 394 do Código de Processo Penal (de acordo com a
redação da referida lei) contém ainda que modestamente a previsão da chamaB
da “Reserva de Código de Processo”. Em outras palavras: os procedimentos
penais em primeiro grau, isto é, no que concerne ao julgamento originário da
causa2, terão de observar a seqüência definida nos artigos 395 a 398 do Código.
Daí que a incompatibilidade entre dois preceitos dispositivos desta lei tende a
produzir seus efeitos em relação à quase totalidade dos procedimentos, cumprindo
encontrar a solução adequada à situação criada pelo Congresso Nacional.

II – É preciso reconhecer desde logo que o caput do artigo 396 estabelece


que se o juiz não rejeitar a denúncia ou queixa, em se tratando de procedimento
ordinário ou sumário, irá recebê-la e ordenará a citação do acusado para apreB
sentar resposta, por escrito, no prazo de dez dias. O artigo 399, por sua vez,
dispõe que recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a
audiência de instrução e julgamento.

1 O referido texto foi publicado no Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.16, n.190, p. 04B05, fev. 2008.
2 E aí é irrelevante que se trate de ação penal exercitada perante o juiz singular, qualquer que seja a
infração penal atribuída ao acusado, exceto às de menor potencial ofensivo, ou mesmo ação penal
proposta diretamente no Tribunal (a denominada ação penal originária).

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Não há como negar que os preceitos obrigam à prática de comportamentos


contraditórios: tendo em mãos a denúncia ou queixa o juiz, de imediato, defineB
se por recebêBla, exceto nas hipóteses previstas no artigo 395 do Código. Depois
disso – e somente então – o juiz ordenará a citação do acusado; e, com a resposta
do acusado, devidamente citado, o juiz tornará a receber a denúncia ou queixa
e designará audiência de instrução e julgamento!
Na linha perspectivada pelo positivismo jurídico – que os tribunais em sua
maioria continuam a prestigiar – o que se tem aí, iniludivelmente, são preceitos
que ordenam a prática do mesmo ato, com conseqüências jurídicas sérias (artigo
117, inciso I, do Código Penal), mas sucessivamente.
Não se duvide que a despeito da clara incompatibilidade haja quem busque
atribuir às palavras e expressões recebê-la-á e recebida a denúncia ou queixa sigB
nificados diversos! Norberto Bobbio alertava para isso em seu livro “Teoria do OrB
denamento Jurídico” 3. Entre eliminar uma ou as duas regras, a tendência recaí em
“conservar as duas normas incompatíveis... eliminando a incompatibilidade” por meio
de interpretação corretiva, até mesmo com a ratificação da citada decisão.
A opinião defendida neste breve ensaio é outra e por muitas razões!

III – A questão está situada no plano da incompatibilidade: ou a inicial é reB


cebida em seguida ao seu oferecimento ou será recebida após a citação, quando
o processo terá completada a sua formação (artigo 363 do Código) e o acusado
também terá apresentado resposta (à semelhança do procedimento sumaríssimo
das infrações de menor potencial ofensivo, que serviu de inspiração ao projeto
original da Comissão presidida por Ada Pellegrini Grinover).
Os critérios ordinários de solução de antinomias aparentes não são sufiB
cientes nos casos em que, à semelhança deste, os preceitos são contemporâneos,
do mesmo nível e gerais!

IV – Buscar, portanto, a solução inscreveBse como tarefa para a qual a visão


do todo (por conta da Reserva de Código) e o reconhecimento da função precíB
pua do processo penal acabam por indicar o método e os critérios.
É assim, pois, porque o Direito Processual Penal deve consolidar o conjun-
to de garantias por meio das quais a atividade de investigação da responsabiliB
dade penal de alguém é apurada em um Estado de Direito.
Daí a compreensão: a) “de que as garantias são procedimentos funcionalmenB
te dispostos pelo sistema jurídico para assegurar a máxima correção e o mínimo

3 10ª edição, Brasília, UNB, 2006, p. 102B3.

100
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desvio entre as exigências constitucionais e a atuação dos poderes públicos”4; b) o


Estado de Direito instaura “nexo funcional entre o poder e os sujeitos”5; c) e impõe,
no plano da edição das leis, a adoção do “princípio da precisão”, que concretize as
exigências de determinação, clareza e confiança da ordem jurídica6.
O que se pretende é prestigiar a configuração normativa que assegure de
forma mais efetiva as garantias constitucionais do processo penal, em especial,
o contraditório. Este é o marco de constituição da norma jurídica processual, na
medida em que se sabe:

1) Que “normas não são textos..., mas os sentidos construídos a partir da


interpretação sistemática de textos normativos”7;
2) Para o quê é fundamental que se delimite o âmbito normativo, dito de
outra maneira, o programa normativo “com atenção aos elementos reB
lacionados ao problema a ser decidido”8;
3) Isso com o reconhecimento de que em uma República democrática a
dogmática jurídica ocupa lugar de destaque em virtude das possibiliB
dades de concretização de direitos. Cabe, pois, entender o caráter incinB
dível da interpretação/aplicação do direito9 reservado ao sujeito ativo
desta operação jurídica.

V – Assim, há de se reconhecer que o âmbito normativo instituído pelo


artigo 396 do Código de Processo Penal está incorporado pelo mais extenso proB
grama delimitado no artigo 399. Neste, cuidaBse de dar efetividade ao disposto
no artigo 363 do mesmo diploma e assegurar a complementação do processo
com a efetiva citação do acusado. Com a citação e defesa será possível examinar,
para além das causas de rejeição da inicial previstas no artigo 395 do Código, as
hipóteses de absolvição cuja admissão decorra da defesa preliminar (artigo 397).

4 PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. La garantia em el Estado constitucional de derecho, Madrid, Tro[a,
1997, p. 28.
5 COSTA, Pietro e ZOLO, Danilo. O Estado de Direito: História, Teoria e Crítica, Martins Fontes, São
Paulo, 2006, p. XIV.
6 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed. Almedina,
Coimbra, p. 258.
7 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 5ª edição.
Malheiros, São Paulo, 2006, p. 30.
8 ÁVILA, Ana Paula Oliveira. A face nãoBvinculante da eficácia vinculante das declarações de
constitucionalidade: uma análise da eficácia vinculante e o controle concreto de constitucionalidade
no Brasil, in: Fundamentos do Estado de Direito – Estudos em homenagem ao professor Almiro do
Couto e Silva. Malheiros, São Paulo, 2005, p. 205.
9 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, 2ª
edição. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 9.

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É neste contexto que o restante texto normativo do artigo 396 adquire


sentido, pois a defesa preliminar implementa a garantia constitucional do con-
traditório (como assumido em todas as recentes leis processuais sobre proceB
dimentos especiais!) e permite que a absolvição sumária seja precedida deste
indispensável contraditório, de sorte a evitar atos arbitrários que fulminem,
indevidamente, o também constitucional direito de ação.
O sacrifício da primeira norma (empregando a terminologia positivista)
neste caso será parcial, uma vez que apenas o preceito que determina o imediato
recebimento da inicial (recebê-la-á) será eliminado, porque somente ele contrasB
ta com o preceito que remete esta decisão ao instante posterior ao da apresentaB
ção da defesa preliminar (artigo 399).
Por isso, oferecida a denúncia ou queixa e se não houver imediata rejeição,
por aplicação do disposto no artigo 395 do Código de Processo Penal, o juiz
determinará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, em
dez dias. Somente depois disso é que o juiz poderá receber a inicial (artigo 399),
caso não a rejeite à luz dos novos argumentos ou não absolva o acusado com
fundamento em alguma das causas previstas no artigo 397 do mesmo estatuto10.
Para esta solução há precedente da doutrina em hipótese de incompatibiB
lidade parcial11 e, também, no Brasil, da jurisprudência, no caso paradigmático
de definição do preceito dispositivo da associação para o tráfico de drogas, em
decorrência da edição da Lei dos Crimes Hediondos 12.
Sob o ângulo prático esta interpretação/aplicação restitui as coisas aos seus
devidos lugares e conforma a atividade da legislação ordinária a critérios consB
titucionais.
E, não menos importante, permite que a Reserva de Código opere em uma
dupla dimensão garantista: reforçando a idéia do Código como “instrumento de
acesso e interação com uma determinada realidade” 13; e fundando a necessária
racionalidade a possibilitar que a norma processual prevista no artigo 394, §4º,
do Código de Processo Penal cumpra a exigência constitucional de validade do
sistema14.

10 Não é nova a resolução definitiva (“de mérito”) de uma causa sem precedência de decisão de
recebimento da inicial. Basta ver o disposto no artigo 74 da Lei nº. 9.099/95.
11 BOBBIO, obra citada, p. 89.
12 HC nº. 68.793 – RJ, Primeira Turma, Relator designado Min. Moreira Alves, julgado em 10 de março
de 1992 – RTJ 166/493.
13 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2002, p. 26.
14 PASTOR, Daniel R. Recodificación penal y principio de reserva de código. Buenos Aires, AdBHoc,
2005, p. 11.

102
A Transação Penal quinze anos depois1

1. Introdução

A Lei nº 9.099/95 introduziu a transação penal no direito brasileiro de sorte a


concretizar o comando contido no artigo 98, inciso I, da Constituição da República.
A possibilidade de o suspeito da prática de uma infração penal de menor
potencial ofensivo sujeitarBse a penas restritivas de direito por meio de acordo com o
Ministério Público, homologado judicialmente, mudou profundamente o panorama
do nosso processo penal. Com certeza, as categorias do tradicional processo penal em
contraditório ficaram abaladas. Além disso, o próprio papel dos sujeitos processuais
foi questionado: afinal, quais eram os limites da atuação do Ministério Público e o
que caberia ao juiz criminal, em um modelo inteiramente novo?
A novidade encontrou tradições e velhas formas de pensar, que se puseram a
“enquadrar” a transação penal conforme os paradigmas do positivismo jurídico
que ainda vigorava na década de 90 do século passado. “Natureza jurídica” da
proposta e da sentença de transação penal e estatuto jurídico das partes forjaram
os termos do debate que dominou o cenário pós Lei dos Juizados Especiais, e
ainda hoje é comum constatar que as discussões giram em torno desses eixos,
que por muitas razões estão ultrapassados.
Nos dias atuais tem lugar o processo legislativo de edição de um novo Código
de Processo Penal no Brasil, a partir do texto base do anteprojeto elaborado por
comissão de juristas composta por Hamilton Carvalhido (coordenador), Eugênio
Pacelli de Oliveira (relator), Antonio Correa, Antonio Magalhães Gomes Filho,
Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois Coelho Junior, Jacinto Nelson de
Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral.
O projeto (PLS 156/09) busca dar conta da concreta necessidade de dotar o
Brasil de um Código de Processo Penal que difira na base (estrutura), no modelo
e nas práticas do texto que está em vigor desde o Estado Novo (DecretoBLei nº
3.689, de 03 de outubro de 1941).
Nele há clara opção por um método de resolução consensual das cauB
sas penais, o procedimento sumário, por meio do qual será introduzida a

1 Artigo em homenagem ao Desembargador José Fernandes Filho.

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negociação direta em torno das penas, mesmo de prisão, em hipóteses muito


mais abrangentes que a prevista para a transação penal pela Lei nº 9.099/95.
Não há dúvida de que o debate adormecido sobre a medida em questão
ressurgirá e ganhará novo fôlego, o que justifica retornar ao tema.
Daí a escolha da matéria para homenagear o Desembargador José Fernandes
Filho, em uma área que lhe é particularmente cara: os Juizados Especiais.

2. A transação penal no direito brasileiro

O artigo 76 da Lei nº 9.099/95 instituiu entre nós a transação penal. Porque


esta lei define seus contornos principais, ela servirá de paradigma para a breve
análise em curso.
Com efeito, dispõe o artigo 76 da referida lei que, nos casos de infração
de menor potencial ofensivo para os quais seja estipulada ação penal pública,
condicionada ou incondicionada, o Ministério Público poderá propor a
aplicação direta de pena restritiva de direitos ou multa, desde que preenchidas
as condições previstas no citado dispositivo.
O § 4º do mencionado preceito, por sua vez, dispõe que o juiz acolherá
a proposta em questão, aceita pelo autor do fato, e emitirá sentença por meio
da qual aplicará a pena negociada. Esta decisão não importará reincidência,
tampouco produzirá efeitos civis e impedirá que o investigado/acusado se
“beneficie” da transação novamente em um período de cinco anos.
Até a entrada em vigor da Lei dos Juizados Especiais não havia nada que
formalizasse os acordos entre acusação e Defesa no processo penal brasileiro.
Prática relativamente comum, em especial em lugares menos populosos, em que
os envolvidos eram conhecidos ou mesmo conviventes, e em casos de menor
repercussão penal (mas não somente nestes), a transação penal não gozava,
porém, de estatuto jurídico próprio e assim estava condenada à clandestinidade
ou aos caprichos dos sujeitos processuais que a protagonizavam.
A novidade de então, pois, consistiu em conferir visibilidade e institucioB
nalizar o acordo penal, definindoBo em um âmbito em que se dispensava por
completo a prova.
O mito – ou fundamento – de que a prova penal conduzia à “verdade real”,
que ao seu tempo seria a base da sentença condenatória, começava a esfarelarBse
no nosso processo.
Era necessário, todavia, “analisáBla” (a transação penal), isto é, conferirB
lhe significados que orientassem os profissionais que nos últimos dois séculos

104
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afirmavam que de uma determinada maneira (inquisitorial) a prova penal era o


elemento de justificação das condenações.
E o método analítico preferencial da doutrina jurídica dos anos 90 no Brasil,
ainda não totalmente abandonado, apesar da fragilidade de seus pressupostos,
consistia em buscar nos “escaninhos” do positivismo jurídico “categorias” para
enquadramento das práticas jurídicas.
A isso se costuma(va) dar o nome de “natureza jurídica”, como se o direito
não fosse expressão cultural, especificamente denotada pelo exercício de poder
que autoriza, algo criado pelo homem e, portanto, além de qualquer “natureza”
prévia, aBhistórica e neutra!
O uso ideológico das categorias jurídicas, “analisadas” conforme sua “natureza
jurídica” é evidente: o acerto do emprego dessa técnica ou prática dependeria da
consideração acerca de seu enquadramento a priori no “mundo jurídico”, préB
condição para a produção de efeitos jurídicos. Em outras palavras: “o mundo
jurídico” em tese contempla todas as respostas válidas às questões postas, ainda
que tais questões resultem da adoção de mecanismos idealizados a partir de outras
matrizes jurídicas, cuja história difere substancialmente da nossa!
A certeza jurídica constituiria o ganho (político) da adoção desta metodologia.
No arco (ou modelo) das categorias préBexistentes são fixadas todas as novas
previsões legais, que assim deixariam de ser “novidades”, pois encontrariam
seu significado em antigos, conhecidos e pacificados “significantes”, como por
exemplo, a ação penal, o direito subjetivo do acusado e o poder de decidir as
causas, próprio e inafastável da atividade jurisdicional.
Esta é a razão pela qual há inúmeros manuais de processo penal que insistem
em classificar a transação penal conforme as referidas categorias e operam do
mesmo modo com qualquer nova previsão legal, estabelecendo interrogações
cujas respostas dependem da relação, por exemplo, entre transação penal – ação
penal, transação penal – direito público subjetivo do acusado e transação penal
– e poder jurisdicional.
Também neste nível as questões são colocadas nos concursos públicos
– afinal, é deste saber, supostamente, que o futuro juiz criminal auferirá os
fundamentos de sua decisão – e, não raro, igualmente é nestes termos que
o problema chega aos tribunais para exigir que se resolva sobre a inércia do
Ministério Público, a coisa julgada na sentença homologatória e a possibilidade
da transação penal em crimes de ação penal exclusivamente privada.
Parece um contrassenso pensar em tais bases hoje, competentemente.
A rigor, não há uma “natureza jurídica”. O mecanismo classificatório busca
facilitar nosso entendimento da realidade e nos orientar, dirigir as nossas ações

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em um mundo da vida em que os consensos acerca dos significados são tão


essenciais quanto as dissensões.
Pelo caminho tradicional, de conformar rigidamente o futuro de acordo com
o passado, muitas vertentes disputam a primazia acerca do âmbito normativo
da transação penal.
Há espaço para visões inquisitoriais, que dispensam a intervenção do Ministério
Público para fazer a transação penal prevalecer por iniciativa judicial, distorcendo o
ideal acusatório do processo como ato de três sujeitos: autor, réu e juiz.
Neste contexto e por força dos novos tempos, que não convivem bem com
manifestações que se autodefinem como autoritárias, o discurso de legitimação
da transação penal por iniciativa judicial, sem respaldo em pleito do Ministério
Público, busca esconder sua face dirigente pelo emprego da retórica de que a
transação penal consiste em direito subjetivo do autor do fato.
A insuficiência do argumento à luz do próprio conceito de “direito subjetivo”,
que é uma “posição jurídica de vantagem”, não incomoda, pois o que importa é
apoiar a decisão sobre o significado em uma categoria “séria” da ciência do direito.
O paradoxo de o sujeito em posição de vantagem perseguir... uma
“desvantagem”, a pena criminal, reflete o uso e abuso mecânico das “naturezas
jurídicas” no comércio dos significados jurídicos, em que o que importa é estabelecer
claramente as fronteiras de exercício do poder, preferencialmente para manter
intactas aquelas que erigiram o juiz criminal como o “dono do processo”, com tudo
o que este tem dentro, inclusive “a ação penal”, malgrado a objeção acusatória que
decorre do artigo 129, inciso I, da Constituição da República.
A própria noção de ação penal entre nós é também deficiente. E sua
debilidade se deve ao fato de buscar seus fundamentos na ação civil, à qual
pretende assemelharBse de qualquer maneira, ainda que à força, integrando na
concepção de facultas agendi o princípio da obrigatoriedade, em uma convivência
impossível entre inimigos conceituais declarados!
Assim, compreendeBse a resistência de parte da doutrina contra a aplicação
do atual artigo 28 do Código de Processo Penal – e o controle pelo Procurador
Geral sobre o não oferecimento da proposta de transação penal pelo Ministério
Público em primeiro grauB, pois é difícil comparar situações díspares, em
que o ponto de partida é justamente o oposto: tradicionalmente, provocaBse o
Procurador Geral porque não há denúncia; no caso da transação penal, ele é
provocado por que a denúncia foi oferecida!
Qualquer solução com base nas categorias tradicionais causa desconforto,
uma vez que remete a um padrão idealizado para dar conta de outras práticas e

106
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que, mesmo para estas (processo comum, por iniciativa do Ministério Público),
ainda assim deixa muito a desejar.

3. A transação penal e a pena negociada no “novo Código de


Processo Penal”.

O que era uma dificuldade, ultrapassável pelo censurável recurso intelectual


de não se pensar na incongruência das opções disponíveis no “mercado do saber
processual penal consagrado”, provavelmente se transformará em um grave
problema, a desafiar as mentes brilhantes que se atreverem a deduzir procedimentos
classificatórios (ação penal, direito subjetivo do acusado, poder jurisdicional, o que
fazer?) que hoje reinam nos cursinhos preparatórios para concursos públicos, mas
estão em regra despidos da indispensável seriedade científica.
Assim é que os propostos artigos 278 e 279 do futuro Código de Processo
Penal (PLS 156/09) possibilitarão que, por iniciativa do Ministério Público ou
da Defesa, mas sempre, neste caso, mediante concordância da acusação, o juiz
aplique, diretamente, penas em acusações da prática de crimes cujas penas
máximas não ultrapassem oito anos.
TrataBse de condenação, reconhecida nestes termos no projeto, expressamente,
pelo § 7º do projetado artigo 279.
Parece improvável que, a pretexto de imposição de pena mínima (inciso II
do primeiro § 1º do artigo 279 – pois, por erro, mesmo na versão da Comissão
de Constituição e Justiça há dois §§1º), alguém defenda a revogação pela lei
do artigo 129, inciso I, da Constituição da República e sustente como válida a
condenação direta sem a concordância do Ministério Público.
Tampouco é seguro supor que se pretenda distinguir a transação penal nas
infrações de menor potencial ofensivo daquelas em crimes de médio potencial,
postulandoBse que num caso, diferentemente do outro, a “ação penal” terá sido
proposta.
Nesta etapa da globalização, com ampla convivência e influência dos
sistemas jurídicos, a ignorância do conceito de acusação e a crença de que processo
civil e penal são métodos que comungam categorias, apesar das radicalmente
diversas histórias e propósitos, traria graves conseqüências na prática, afetando
a racionalidade do próprio sistema.
O processo penal consensual, por qualquer de suas modalidades, visa
aplicar penas (de prisão ou outras) por meio de acordo entre as partes. A
acusação, titular constitucional da ação penal e, portanto, detentora do poder
de iniciar o processo, e a Defesa, com a escuta e concordância obrigatória do

107
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principal interessado, o acusado, são os sujeitos processuais que definem se


haverá ou não dispensa de prova para a imposição de pena2. E este é o plano
da negociação: acertar a responsabilidade penal do acusado dispensandoBse a
produção de provas.
A atuação judicial é fundamental para filtrar as acusações e impedir os
abusos, tolhendo a iniciativa do Ministério Público naqueles casos em que não
há justa causa para a ação penal.
Convém registrar que um fenômeno comum, notado na prática da
negociação direta sobre penas, em outros ordenamentos, diz com a banalização
dessa prática, por interesse de Promotores de Justiça e defensores em geral.
A facilitação da justiça penal consensual, pela celeridade que inegavelmente
empresta ao processo, configura mecanismo de “sedução” perigoso, a exigir
de um juiz distante dos interesses de aceleração processual que intervenha
examinando as premissas para o próprio exercício da acusação penal.

4. Considerações finais

A percepção deste quadro pelos tribunais, a partir da racionalidade que


orienta o processo penal de partes, pode estar na base da consolidação da ideia,
na atualidade, de que a proposta de transação penal depende da iniciativa do
Ministério Público.
O horizonte proposto pelo PLS 156 neste ponto simplesmente projeta
entre nós prática consolidada em outros ordenamentos, situando os sujeitos
processuais em seu devido lugar e assegurando ao juiz o cumprimento de sua
mais nobre função, na ordem constitucional democrática, na órbita penal, que
consiste em zelar pelos direitos fundamentais do acusado.
Claro que há inúmeros perigos – para o Estado de Direito – que derivam da
justiça penal consensual. A eles, todavia, não devemos acrescentar a indesejável
perenidade das tradições inquisitoriais, que no passado fizeram do juiz criminal
brasileiro o grande protagonista de um poderoso Sistema de imposição de dor
e sofrimento.
E é pela defesa do Estado de Direito e da democracia que dedico o artigo ao
e. Desembargador José Fernandes Filho.

2 Ressalto aqui minha posição pela inconstitucionalidade da transação penal em torno da prisão,
conforme expus em Transação Penal, 2ª Ed, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006.

108
Crônica da Reforma do Código de Processo
Penal brasileiro que se inscreve na disputa
política pelo sentido e função
da Justiça Criminal1

1. Introdução

Em texto datado de 10 de maio de 2010 a AJUFE (Associação dos Juízes


Federais do Brasil) emitiu a Nota Técnica nº 3, por meio da qual propõe mudanças
ao texto do Projeto de Lei do Senado nº 156, que busca instituir um novo Código
de Processo Penal.
Também o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) ofereceu ao
Senador Valter Pereira, em 20 de abril de 2010, emendas ao texto do PLS nº 1562.
Da mesma forma o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por intermédio da
Portaria nº 126, de 17 de junho de 2010, constituiu Comissão para emitir nota
técnica sobre o referido projeto3.
Universidades, corporações de profissionais da área jurídica e institutos de
pesquisa que atuam no campo da Justiça Criminal têm opinado com o propósito
de tentar influir no processo legislativo de edição de um novo Código de
Processo Penal no Brasil, na sequência das audiências públicas promovidas pelo
relator, Senador Renato Casagrande, a partir do texto base, que hoje está bastante
modificado, do anteprojeto elaborado por comissão de juristas composta por
Hamilton Carvalhido (coordenador), Eugênio Pacelli de Oliveira (relator),
Antonio Correa, Antonio Magalhães Gomes Filho, Fabiano Augusto Martins

1 Artigo em homenagem aos professores Nilo Batista e Vera Malaguti. Versão do trabalho foi
apresentada em Curitiba, em 16 de agosto de 2010, durante as Jornadas comemorativas da fundação
do Núcleo de Pesquisa de Direito Processual Penal do Penal do Programa de PósBgraduação em
Direito da UFPR.
2 h[p://novo.direitoprocessual.org.br/content/blocos/96/1, consultado em 22 de agosto de 2010.
3 http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&task=view&id=11428&Itemid=511,
consultado em 22 de agosto de 2010.

109
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Silveira, Felix Valois Coelho Junior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro
Torres Avelar e Tito Souza do Amaral.
Em comum entre as iniciativas a certeza de que não há “paz doutrinária”,
isto é, não há sequer consenso acerca da concreta necessidade de dotar o Brasil
de um Código de Processo Penal que difira na base (estrutura), no modelo e nas
práticas do texto que está em vigor desde o Estado Novo (DecretoBLei nº 3.689,
de 03 de outubro de 1941).
Ao estudioso das Ciências Sociais por certo que as distintas visões de
mundo, que operam na dinâmica da firme discussão em torno da proposta de
uma nova lei processual penal, não causam estranheza. As divergências, que
cobrem aspectos centrais do modelo em disputa, refletem diferentes concepções
do Estado de Direito, do papel do Direito Penal e do Processo Penal e das funções
políticas e propriamente jurídicas que devem ser cometidas ao juiz criminal. São
ideologias em rota de colisão, e em uma democracia isso é relativamente comum.
O “mundo do direito”, porém, vive da ilusão do consenso, da suposta
“suspensão dos conflitos”, da superação das controvérsias sem que de fato os
problemas que estão no cerne das discussões sejam nomeados e enfrentados.
ViveBse da crença de que é possível sustentar a permanência das formas de
processar e julgar as pessoas acusadas de praticar crimes, sem embargo de, na
maioria das vezes, estas formas resultarem da aplicação política de critérios
peculiares aos sistemas autoritários.
A discussão pública, especialmente no âmbito das corporações, com
frequência confisca do discurso as expressões “ideologia”, “autoritarismo”
e até mesmo “inquisitorialismo”, para operar a partir da chave de leitura da
“tradição do processo penal brasileiro” tomada como hábito ou rotina instituída,
com práticas inscritas no cotidiano do foro e delegacias de polícia a que nos
acostumamos e que supostamente devemos seguir reproduzindo.
O campo de disputa de sentidos fica, pois, delimitado e restringido
exatamente na razão direta em que tem êxito a ação (política) de subtrair o
conteúdo ideológico do debate sobre a reforma do processo penal.
Refletir sobre esta “restrição” corresponde à tentativa de entender como
funcionam determinados grupos sociais e como “pessoas de carne e osso”
atuam na qualidade de portaBvozes de interesses que são legítimos, mas não são
necessariamente consensuais, e que se projetam no campo da “divisão de poder”
que, esta sim, varia sensivelmente de território, alargandoBse, mas desenhando
pontos de interseção entre os intelectuais (e a academia) e os políticos, incluindo
os agentes públicos que atuam na esfera do Poder Judiciário.

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Uma breve análise, na modalidade de crônica da Reforma do Processo


Penal, foi a melhor maneira que encontrei de homenagear um jurista brasileiro
que nunca teve medo, como pensador, professor, advogado e cidadão, de lidar
com todas as dimensões da questão criminal e nunca se curvou à dogmática
reinante, dogmática que até hoje persegue, cada vez mais escancaradamente,
o propósito de desencarnar o Direito Penal, para não permitir que se veja e se
sinta o sangue que esparrama em nosso solo como resultado concreto de sua
cotidiana aplicação. E a Vera Malaguti, socióloga, criminóloga e intelectual cuja
contribuição acadêmica fortalece a corrente dos que acreditam que sensibilidade
e justiça andam de mãos dadas.
Aos professores Nilo Batista e Vera Malaguti, portanto, não apenas minha
admiração, mas também a gratidão!

2. O Código de Processo Penal como “lugar” de luta política

Em 1989 o jurista italiano Luigi Ferrajoli4 publicou a obra Direito e Razão:


teoria do garantismo penal, posteriormente traduzida e bastante difundida na
Espanha e na América Latina.
Entre as teses defendidas em Direito e Razão, e posteriormente reafirmadas
em Derechos y Garantías: la ley del más débil5, está a ideia do direito como
sistema artificial de garantias, preordenado constitucionalmente à tutela dos
direitos fundamentais6.
De acordo com o pensador italiano, em ordenamentos de Constituição
rígida a “função de garantia do direito resulta atualmente possível pela específica
complexidade de sua estrutura formal”, a orientar não somente o “ser” do Direito,
porém ainda o “dever ser”, em virtude dos condicionamentos de validade
jurídica que decorrem da sintonia fina entre o direito infraconstitucional e o
catálogo de direitos fundamentais que são herança de um liberalismo político
construído na base do valor “dignidade da pessoa humana”.
No contexto em que o paradigma de validade jurídica está concebido, a
aplicação do direito “válido” pelos juízes resulta obrigatória e, consequentemente,
também se impõe a “não aplicação” das normas jurídicas inválidas, pois
em desarmonia com os direitos fundamentais. TrataBse de premissa para a

4 Luigi Ferrajoli exerceu as funções de magistrado entre os anos de 1967 e 1975, na Itália. Desde 1970
é professor de Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito na Universidade de Camerino e, desde
2003, na Universidade de Roma III.[]
5 5ª edição, 2006, Tro[a, Madrid.
6 Derechos y garantías, op. cit., p. 19.

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democracia substancial e os juízes, incluindo por óbvio os criminais, não estão


demitidos da tarefa de ajuste e aplicação dos direitos fundamentais em seu
cotidiano, ainda que ao custo de “não aplicar” normas em contradição com os
citados direitos e assim contrariar a vontade da maioria.
A legitimação no exercício do poder penal decorre da independência judicial
instrumentalmente conexa à função de assegurar diariamente a plenitude dos
direitos fundamentais nos casos concretos. TrataBse de legitimação jurídica
(constitucional) e política!
O desafio aos juízes nas novas democracias constitucionais, sob essa perspectiva,
pois, não é pequeno: avaliar os instrumentos que existem há bastante tempo, e que
formam “a tradição do sistema de justiça criminal”, para verificar a compatibilidade
destes instrumentos legais com os direitos fundamentais que decorrem ora da
Constituição da República ora dos tratados de direitos humanos.
Em outras palavras: cuidaBse de controlar a atividade parlamentar, uma
vez que a existência de uma lei processual penal, por mais antiga que seja não
confere a esta lei, automaticamente, o “certificado de executividade”. Aliás,
as leis processuais penais editadas durante regimes autoritários ficam sob
suspeição por esta mesma razão, algo como uma espécie de questionamento ou
“vício” de origem.
Em um ambiente de compreensão do direito dirigido pela teoria do
garantismo, a prevalência da Constituição da República, que é típica do
regime da supremacia da Constituição a reclamar mecanismos de controle de
constitucionalidade, pode levar a casos de atrito entre a atuação dos Congressos
(parlamentos) e os juízes.
Uma das críticas mais mordazes ao modelo aponta para alguma espécie
de “ditadura dos tribunais”, a amesquinhar a atividade parlamentar ordinária,
ao suprimir da legislação ordinária, ou do poder da maioria, determinadas
matérias, uma vez que os vínculos constitucionais aos poderes públicos, vínculos
substanciais, temperam ou modelam a (inexistente do ponto de vista jurídico)
onipotência da maioria.
Por isso verbalizamBse reações ao “ativismo judicial” instrumentalizado
pelos mecanismos de fiscalização da constitucionalidade das leis. Sob essa ótica,
afinal, onde está (ou para onde é remetido) o espaço do político? A atuação dos
parlamentos está esvaziada? A democracia representativa cede em prol de uma
“representação direta dos interesses” via Constituição? Em outras palavras – e

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parafraseando Anna Pintore: serão os direitos fundamentais “um instrumento


insaciável, devorador da democracia”?7
A tese principal de Anna Pintore, nesta troca de ideias entre ela e Luigi
Ferrajoli, expressa a preocupação, injustificável segundo advogo, de que a defesa
dos direitos fundamentais possa conduzir ao sacrifício dos traços democráticos
dos ordenamentos constitucionais8.
Claro que há aí uma disputa sobre o conceito e conteúdo da própria
democracia. E Ferrajoli irá ressaltar: existe também alguma confusão decorrente
da análise conceitual de tipo teóricoBjurídico e os discursos axiológicos de
pertinência da filosofia política9.
ValendoBme agora das palavras de Ferrajoli:

“A propósito da relação que estabeleço entre direitos e garantias


(Anna Pintore) se pergunta: de que tipo de relação se trata?
Já havia abordado amplamente o problema... sustentando em
resposta a Riccardo Guastini, que em ordenamentos nomodi-
nâmicos como aqueles em que vivemos, a relação entre direitos
e garantias é uma relação de dever ser, que a teoria enuncia como
uma implicação não diferente a que existe entre permitido e não
proibido e que, sem embargo, como esta, pode ser desatendida,
vale dizer, não atuada ou violada pela legislação vigente.”10

No plano, portanto, de uma Constituição rígida o “conteúdo” da norma


posta pelo legislador ordinário pode confrontar com as determinações da própria
Constituição da República e assim, para que a violação (e também a omissão
legislativa) não reflita a não efetividade constitucional o juiz atua corretivamente.
Há, portanto, pontos de contato entre a atividade parlamentar e a judicial.
Ambas, todavia, estão inspiradas em um conceito de democracia que supera
a tradicional vontade da maioria (que gerou a barbárie nazista) para agregar
o caráter plural que assegura as minorias contra a opressão das maiorias,
reconhecendo a vitalidade dos direitos fundamentais de todas as pessoas.
De toda maneira, seria muita inocência do analista supor que em uma
cultura de positivismo jurídico como a que se vive no Brasil, a difusão de

7 Derechos insaciables, in Los fundamentos de los derechos fundamentales, coordenado por Antonio
de Cabo e Gerardo Pisarello, Tro[a, Madrid, 2001, p. 243B265.
8 Op. cit., p. 243.
9 Los fundamentos de los derechos fundamentales, in Los fundamentos de los derechos fundamentales,
coordenado por Antonio de Cabo e Gerardo Pisarello, Tro[a, Madrid, 2001, p.288 e 323 a 328.
10 Idem, p. 327.

113
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uma teoria jurídica possa, isoladamente, alterar em profundidade práticas


de reverência à lei que se cristalizaram e que, em matéria penal e por conta
da exploração midiática, conferem ao profissional do direito “a garantia” de
sempre poder explicar ao público o próprio comportamento processual por
sua “conformidade à lei”. O que é algo que, em certa medida, para este mesmo
público, em geral soa mais compreensível do que uma alusão um tanto abstrata
a princípios constitucionais.
Não se discute que a opção em aplicar o Código de Processo Penal de 1941,
malgrado este Código tenha sido atualizado em 2008 pelas Leis n. 11.689/08,
11.690/08 e 11.719/08, não decorra com exclusividade da aparente “segurança”
para os profissionais do direito, especialmente os juízes.
O acompanhamento dos movimentos de reforma do Código de Processo
Penal em outros países, nos quais se vivenciou a transição da ditadura para
a democracia, revela igualmente a forte resistência ideológica a modelos ou
estruturas processuais em que há limitação de poderes em detrimento do
reposicionamento do juiz penal, que passa a ser “garante jurídicoBconstitucional”
da presunção de inocência.
Este reposicionamento é fruto da eleição constitucional em favor do sistema
acusatório, por força da adoção de um princípio (acusatório) que desloca o juiz
das atividades de postulação11 e de instrução para a posição de assegurador
do devido processo legal, garante da presunção de inocência, fiscal da licitude
das provas obtidas pelas partes e destinatário destas provas, que haverão de
fundamentar a sua decisão. Não é pouco!
A linha demarcatória das novas funções processuais do juiz, reclamadas
pela transição do autoritarismo para a democracia, com o abandono de uma das
principais ferramentas autoritárias, o processo de natureza inquisitória, é tênue,
frágil e passa quase despercebida, cotidianamente, justo porque é traçada por
princípios!
Muito embora o atual momento seja da retórica da força normativa da
Constituição, entre nós e nas democracias que se submetem a constituições
rígidas, ainda assim a arquitetura principiológica do processo penal esbarra nas
rotinas da tradição autoritária, ancoradas em Códigos de Processo Penal que
têm maior densidade normativa para os profissionais do Direito, pois são às

11 Como na primitiva redação do artigo 531 do Código de Processo Penal, que autorizava o juiz criminal
a iniciar o processo por meio de portaria ou auto de prisão em flagrante, acusando as pessoas da
prática das contravenções penais e dos crimes culposos (Lei nº 4.611/65).

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regras do Código que os referidos profissionais recorrem para justificar o seu


comportamento12.
Os Códigos são visíveis! E apagam os princípios constitucionais do processo
penal, pois a mera existência das regras codificadas, apesar de inconstitucionais,
oculta os princípios e sugere argumento de autoridade que, descontextualizado,
parece empurrar contra a parede quem defenda ponto de vista contrário: a
legalidade!
VerificaBse aí o divórcio entre os enunciados constitucionais do processo
penal e as práticas rotineiras. ErgueBse uma barreira simbólica, porém fortíssima,
contra a força normativa da constituição relativamente à presunção de inocência
e seus derivados, entre os quais o próprio sistema acusatório.
Não raro os iniciantes na militância do processo penal se deparam com
essa situação esdrúxula: em algum momento estes iniciantes foram ensinados
que o direito processual penal abeberaBse da Constituição da República, mas são
surpreendidos por comportamentos concretos que a par de negar a aplicação
dos princípios, ao se fazer incidir as regras antagonistas anteriores, resultam de
uma consciência difusa, inquisitorial, de que a “natureza do processo penal” é
mesmo assim. E como os desvios funcionais são inevitáveis e atingem até a relação
entre atos concretos e tipos legais de processo flagrantemente inquisitoriais, os
iniciantes e os “iniciados” seguem vivendo um processo penal à parte, diferente
de tudo, irreconhecível mesmo pelos manuais.
Como salientado nas linhas anteriores, este fenômeno não é exclusivamente
brasileiro.
Ennio Amodio sublinhará a existência, na Itália, de um processo penal
invisível, que não se lê em manuais ou nos repertórios jurisprudenciais, mas que
se toca com a mão na prática judiciária13. Processo cuja transformação em prol
da acusatoriedade termina por deparar com obstáculos opostos que exprimem
uma “cultura das corporações”, de matriz inquisitorial, que crê para além das
mais elementares objeções epistemológicas, em uma magistratura “depositária
exclusiva da função de busca da verdade”.14
Certo que mesmo o desvio que a prática processual consagra em face do
modelo legal inquisitorial pode ser corrigido, nos tribunais, por meio do “apelo”

12 Vale a leitura da obra seminal, no Brasil, sobre o tema: Interpretação retrospectiva: sociedade
brasileira e processo penal, publicada na Coleção Pensamento Crítico, de autoria de Rubens Casara,
Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2004.
13 La procedura penale dal rito inquisitório al giusto processo, in: h[p://www.associazionedeicos
tituzionalisti.it/materiali/convegni/roma20021114/amodio.html, consultado em 22 de agosto de 2010.
14 Idem, p. 2 e 11.

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à lei. E a lei é, ao fim e ao cabo, neste contexto de fragilidade dos princípios


constitucionais, o Código de Processo Penal.
O Código de Processo Penal passa, pois, a ser o “objeto do desejo” das
forças que disputam a representação (idealização) do direito processual penal
e se transforma em campo de luta, mesmo quando proliferam leis processuais
especiais cuja edição, por sua vez, exprime as mesmas contradições e enfrenB
tamentos mencionados.
Os diferentes estágios dessa luta permitem compreender as pressões
sobre os parlamentos e as oscilações legais, entre fórmulas compatíveis com a
Constituição e recaídas autoritárias, de índole inquisitorial15.
Do ponto de vista psicológico, entendemBse assim o comportamento e até
determinada jurisprudência, que estão pautados pelo objetivo de preservar a
validade de processos penais que sem dúvida alguma são nulos. CompreendeB
se, porém não se justifica.
Na prática, a atuação de cada juiz em seu órgão está condicionada pela
autoridade conferida ao Código de Processo Penal, portaBvoz da legalidade
processual penal para além da própria Constituição da República, em uma
inversão de valores que em aparência conta com o apoio da opinião pública.16
Como pode um juiz julgar com imparcialidade, quando se vê solitário, na
sala de audiências, em um processo criminal, a ter de ser acusador, defensor e
juiz ao mesmo tempo?

3. Em busca do seu “Código de Processo Penal”

Há muitas formas de se investigar a delimitação do campo de produção


do saber jurídico penal no Brasil em sua correspondência com o campo político.
Lilia Schwarcz irá acentuar o perfil institucional, no exame do período entre
a constituição das primeiras Faculdades de Direito no Brasil, em 11 de agosto de
1827, e a lógica que oporá a Faculdade de Direito do Recife à Faculdade de Direito
de São Paulo, em uma disputa pela definição das premissas do jurídico e seu
papel na conformação de uma nova sociedade no jovem Brasil independente17.

15 Neste sentido revelaBse elucidativo o testemunho de Giuliano Vassalli. La testimonianza di un


protagonista: Giuliano Vassalli, in: L‘inconscio inquisitório: l‘eredità del Codice Rocco nella cultura
processualpenalistica italiana, coordenado por Loredana Garlati, Giuffrè, Milano, 2010.
16 Das inúmeras e variadas manifestações públicas disso o exemplo mais recente e comentado é o da
Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010), que vulnera a presunção de
inocência, limitando o princípio insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República.
17 O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questões raciais no Brasil. Companhia das Letras,
Rio de Janeiro, 1993, p. 141B188.

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Gizlene Neder, por sua vez, destacará os vínculos entre o discurso autoritário
e a ordem burguesa no Brasil, em obra que leva este título, e investigará o papel
dos juristas e bacharéis no país que então nascia18.
Caberá, todavia, a Angela Alonso deslocar o olhar das instituições, em regra
percebidas como entidades coesas, cimentadas por interesses comuns de seus
membros, para as pessoas da chamada “geração de 1870”, em tese responsável
pela difusão inicial de uma “modernidade” intelectual em nosso país19.
Trabalhando com a categoria do “repertório”, no âmbito da história das
ideias, que está definido como “conjunto de recursos intelectuais disponível numa
sociedade em dado tempo”, verdadeira “caixa de ferramentas às quais os agentes
recorrem seletivamente, conforme suas necessidades de compreender certas situações e
definir linhas de ação” (grifo da autora) 20, a autora buscará entender o movimento
de 1870 a partir da combinação das chaves de leitura das categorias cognitivas
(formas de pensar conformadoras de sistemas racionais) e esquemas de
orientação prática.
Dito de outra maneira: a percepção da relação entre experiência e cultura,
em dado momento, a partir da manifestação de agentes em uma situação de
crise e, portanto, prévia à transformação, não deve menosprezar o movimento
intelectual em prol do político e viceBversa, tampouco supor uma autonomia
entre ambas as instâncias, até porque a pesquisa termina por revelar a inexistência
desta situação autônoma21!
Daí sua proposta de abordagem política do movimento intelectual,
sustentada na tese de que “formas de pensar estão imersas em redes sociais” 22.
Com efeito, não se deve deixar de considerar, como importante elemento
conformador da realidade, a articulação entre o pensamento (sobre o Brasil,
sobre o Direito etc.) e a ação política, como se não houvesse uma dimensão de
ação coletiva nas práticas de pessoas e grupos reunidos por afinidades variadas.
E, principalmente, como se a disputa pelo poder não estivesse em jogo.
Angela Alonso irá chamar atenção para o fato de que “movimentos
intelectuais são uma modalidade de movimento social”.
Sem dúvida que neste contexto as oportunidades políticas jogam um papel
decisivo, e não há privilégios de posição (casta intelectual). A análise empírica
será decisiva para ditar que pensamentos, sofisticados ou pobres, segundo

18 Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1995, p. 99B130.


19 Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do BrasilBImpério, Paz e Terra, São Paulo, 2002.
20 Op. cit., p. 39B40.
21 Idem, p. 35B38.
22 Ib idem, p. 38.

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certos critérios, foram (e são decisivos) para a determinação das formas de


pensar (jurídico) dominantes, em um campo (político) em que a adoção de
uma posição específica (escolha) implica, necessariamente, a exclusão de outras
possibilidades de ação, em detrimento de grupos sociais precisos.
Excluir de plano a importância de ideias sustentadas sem base teórica
sólida conforme a doutrina dominante configura grave erro metodológico, cujas
consequências são significativas.
Não há “espaço vazio” também nesta articulação entre “movimento
intelectual” e “ação política”!
De nada adianta, por exemplo, ignorar que inúmeros portaBvozes
autorizados do direito seguem se valendo da retórica da “busca da verdade
real”, contra todas as fortes e consistentes posições teóricas que reduziram a pó
semelhante categoria, como categoria válida do pensamento jurídico e filosófico23,
se estes agentes penetram com suas ideias nas Faculdades de Direitos e nas
corporações, “simplificando” a tarefa de pensar e gerando os “fundamentos”
para a manutenção de determinado status quo!
Principalmente, e aí trasladando para os dias atuais e para a questão do
Código de Processo Penal a reflexão de Angela Alonso, será inútil construir
alguma estratégia de ação política voltada à consolidação do estado de direito,
mediante contenção do poder punitivo e proteção dos direitos fundamentais,
ignorando as redes sociais mobilizadas em torno da manutenção do poder.
Porque é de manutenção do poder que se fala quando corporações judiciais
tentam preservar a iniciativa probatória em suas mãos e recusam a fórmula do
juiz das garantias, proposta no PLS 156/09.
E no “repertório” de que dispõem estas corporações e os grupos sociais
interessados em preservar uma função de mais intenso controle social, via
sistema penal, os agentes recorrem seletivamente às ferramentas mais adequadas
a seus propósitos, em uma disputa em que para a ocupação de posições (vagas
nos tribunais superiores, direção de escolas de magistratura, integração em
comissões legislativas ou de emissão de “notas técnicas”) toleraBse muita
coisa, mesmo que ao sacrifício da coerência e da reafirmação de determinados
consensos que extrapolam as fronteiras brasileiras e consolidam, em parte, a
cultura democrática de tutela dos direitos humanos.
É preciso ter isso em conta. Como também é necessário compreender o
contexto mais amplo em que a disputa pelo poder está inserida.

23 Remeto à leitura da obra Teorias de la verdad em el siglo XX, organizada por Juan Antonio Nicolás
e María José Frápolli, Tecnos, Madrid, 1997.

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O pensamento criminológico crítico não está desavisado das consequências


das novas conformações econômicas (globalização) e de sua influência na
administração da miséria pelo sistema penal24.
Não faltam pesquisas, algumas relevantes de institutos oficiais dos
governos, para demonstrar como paralelamente à nova conformação gerada
pela globalização, o número de encarcerados multiplicouBse25.
O sistema criminal pensado a partir da eficiência punitiva tem sido a
proposta chave a orientar a maioria das ações parlamentares.
O interesse, portanto, em manter as posições capazes de influenciar na
definição de um Código de Processo Penal com o propósito de manter tudo
como está, associaBse à política da globalização de mercados mediante gestão
penal dos “efeitos colaterais”.
Talvez não seja completamente eficiente propor uma participação ativa dos
juristas no próprio processo legislativo, mas não se pode desprezar esse caminho
sem arcar com as consequências.
Fabiano Martins adverte para a necessidade de comunicação entre a doutrina
e a esfera política, ainda durante o processo legislativo, por meio do emprego
de técnicas que favoreçam esse diálogo26, de sorte a imprimir racionalidade ao
“produto final” em uma espécie de acertamento entre a lei e a Constituição da
República pelo ângulo da harmonia com os direitos fundamentais.
E uma das “ferramentas” deste repertório, girando a seta dos argumentos
típicos da doutrina jurídica (“mudança no estilo argumentativo”), consiste em
produção de um saber “orientado às consequências” 27.
Em artigo a ser publicado no Boletim do IBCCRIM, sob o título “Embargos
infringentes no PLS 156”, levei em conta pesquisa de campo, a cargo do professor
Antonio Pedro Melchior, para demonstrar que a manutenção do sistema proposto
no PLS 156, com vedação aos embargos na hipótese de condenação original,
em primeiro grau, pode levar a injustiças. São significativos os números de
reforma em embargos, na mencionada hipótese, para absolver definitivamente
os acusados.
Argumentos do gênero pesam nas decisões políticas. Mas não são os únicos
e tampouco livram do risco do emprego em sentido oposto, para fazer valer
soluções não admitidas pela Constituição da República.

24 Entre outras leituras sugereBse, de Löic Wacquant, As duas faces do gueto, São Paulo, Boitempo, 2008.
25 Ver pesquisa que divulguei no blog: www.geraldoprado.blogspot.com, marcador Um novo Código
de Processo Penal.
26 O diálogo entre ciência e política no processo de formação das leis penais, in: Revista de Informação
Legislativa, ano 47, nº 186, abrilBjunho de 2010, publicação do Senado Federal, p. 9.
27 Op. cit., p. 21B26.

119
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O que se quer acentuar é que não há um único caminho na luta pela


definição de uma nova lei processual. E que a consciência de que esta definição
está no centro de uma disputa de sentidos, em que o desprezo pela fragilidade
teórica de argumentos adversos parece fundarBse em um otimismo acerca da
futura atuação do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade,
desafia a própria história da constituição de um modelo de processo penal no
Brasil marcadamente autoritário, inquisitório.
Enquanto a dogmática supõe, às vezes de maneira arrogante, que está
“emparedando” as leituras paleopositivistas das ciências jurídicoBpenais, a
realidade demonstra que é o contrário o que acontece.
É a própria dogmática que se marginaliza, descentrandoBse e perdendo
espaço na referida disputa.

4. Considerações finais

As palavras finais são de convite à luta.


À luta, como na proposta de Perfecto Ibañez, destituído o vocábulo de qualquer
conotação agressiva, mas como “hiperBesforço construtivo e reconstrutivo, tensão
ideal, compromisso com os valores elevados do ordenamento” 28.
A tradição que se pretende perpetuar, no processo penal brasileiro, é
autoritária. E isso precisa ficar claro.
As mudanças passam por concessões no exercício do poder que, em
verdade, dizem com princípios republicanos elementares.
A busca por posições destacadas, malgrado faça parte do movimento
intelectual, é indissociável das articulações políticas que jogam num e noutro
sentido, daí porque estas articulações e suas consequências devem ser previstas
e não podem ser desprezadas.
O PLS 156 busca instituir uma nova racionalidade no campo do processo
penal brasileiro. Certamente encontrará resistências. Já as encontra.
Cabe, pois, refinar e fazer atuar o repertório que existe em prol do Estado de
Direito. Esta é a tarefa dos juristas em uma democracia, mas é, principalmente,
uma tarefa da cidadania.
E terminar falando em cidadania ampla e democracia é falar em Nilo Batista
e Vera Malaguti, casal a quem dedico o artigo.

28 Andrés Ibañez, Perfecto. Garantia Judicial dos Direitos Humanos, Separata nº 78 da Revista do
Ministério Público, Lisboa, 1999, p. 29.

120
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WACQUANT, Löic. As duas faces do gueto, São Paulo, Boitempo, 2008.

121
Sobre o Projeto de Código de Processo Penal:
o habeas corpus1

1. Introdução

Há muito a comunidade jurídica ansiava por um novo Código de Processo


Penal. Por motivos bem conhecidos, o estatuto de 1941 não dava mais conta
das demandas destes tempos de sociedade de massas, industrializada e de
conhecimento e informação. Mais até, para os brasileiros, a emergência de um
novo paradigma processual penal era reclamada por conta das raízes históricas
autoritárias do diploma em vigor, ainda que atenuadas por modificações
parciais, que lhe afetam sobremodo o sistema e, principalmente, a racionalidade.
A iniciativa, pois, de constituir uma Comissão de Juristas e encarregáBla
de elaborar o anteprojeto, oferecido ao crivo da sociedade por intermédio do
Senado Federal, deve ser elogiada.
Obra humana que é e, em especial, resultado de um labor coletivo cuja
distribuição de tarefas, para resolução em tempo limitado, nem sempre condiz
com o desejo de consecução de um “todo” harmônico, o projeto pode e deve ser
aperfeiçoado. A exigir isso, ponderaBse aqui outro motivo de relevo: a riqueza
da Comissão haveria de decorrer de seu caráter plural. É assim nas democracias.
As variadas concepções ideológicas, no entanto, não devem ser ignoradas, até
porque refletem disputas que estão no cerne das diferenças entre escolas que
pretendem atribuir ao processo penal, em caráter hegemônico, funções distintas:
tutela dos direitos fundamentais versus efetividade da repressão penal.
Por certo que em ambos os casos a retórica é a da harmonia – e a exposição
de motivos do projeto testemunha este esforço conciliatório. Mas quem com
sinceridade se dedica ao estudo das práticas jurídicas que conformam o Sistema de
Justiça Criminal sabe que a realidade é bem outra. E por isso alguma desarmonia
seria de se esperar do projeto, confiantes seus autores de que o Congresso haverá

1 Este trabalho sumaria as posições do autor sobre o Projeto de reforma do Código de Processo Penal
(PLS 156/09), apresentadas em audiência pública da Comissão do Senado, no Rio de Janeiro, em 15
de junho de 2009.

123
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de lapidar a obra ou, na pior hipótese, remeter ao futuro incerto a tomada de


decisão que é, em perspectiva democrática, tarefa indelegável e impostergável.
Sem ter participado de forma direta da escritura do projeto, a crítica que se
oferece ao leitor resulta mais confortável para quem a expressa, pois que livre
das tensões e pressões do momento político de construção desta tarefa coletiva.
Isso não demite o crítico de ter consciência das dificuldades reais e de dar
os parabéns aos que, em prol do Estado de Direito, deram conta dessa missão.

2. Do contexto em que se insere a Reforma

É necessário, porém, ressaltar que uma das dificuldades tem que ver com a
conjuntura global em que se insere o projeto.
As décadas de 80 e 90 do século XX testemunharam na América Latina o
fim dos regimes autoritários, caracteristicamente militares. Era de esperar que
as Constituições das novas democracias contemplassem catálogos de garantias
que, entre outras funções reais e simbólicas, dessem conta da tarefa de demarcar
com rigor as fronteiras entre o velho (autoritário) e o novo (democrático e
republicano), sob a ótica do estado de direito.
E foi assim não apenas no plano interno, à vista da arquitetura normativa
das Constituições então recentemente promulgadas, mas também pela força
que vinha de fora e pressionava pela adoção dos tratados internacionais sobre
direitos humanos.
O olhar retrospectivo permite avaliar o excessivo otimismo que reinava à
época. Otimismo que a queda do Muro de Berlim, como registro do fim da Guerra
Fria e da dominante bipolaridade, sequer sugeria pudesse ficar abalado diante da já
insinuante política bélica em relação ao tráfico de drogas no Hemisfério Sul.
Com efeito, predominava entre as classes médias das novas democracias –
e no Brasil não era diferente – a suposição de que o repúdio à tortura praticada
pelas ditaduras militares e o prestígio aos direitos humanos, especialmente no
processo penal, faziam parte de algum consenso alargado, sustentado na mítica
do Pacto Social que as constituintes buscaram dar vida.
Claro que nas metrópoles a mídia corporativa já dominava o cenário e
a cultura do medo que difundia surtia seu efeito, incentivada pela explosão
de demandas das classes e grupos que aspiravam concretizar as promessas
constitucionais, com a profusão de conflitos gerados por isso. Assim, a adoção
das garantias processuais em relação à maioria das pessoas submetidas ao
processo penal na prática era paralisada ou retardada.

124
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Estudos recentes revelam o peso da exploração midiática de conflitos e o


poder dos grandes meios de comunicação de pautar a atividade legislativa e
esvaziar de forma sintomática a iniciativa de expansão dos direitos fundamentais
(BATISTA, 2003, p. 242B263) 2.
No caso brasileiro, a edição da Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072),
em 1990, configura exemplo marcante do que aqui se afirma, mas não menos
importante deve ser considerada a incriminação das ações de integrantes
de movimentos sociais populares, com destaque para o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.
O episódio do11 de setembro expandiu a reação conservadora! A partir
dos atentados terroristas contra as Torres Gêmeas, em Nova York, e a reação do
governo norteBamericano, as garantias processuais entraram em colapso.
Há razoável acerto entre os criminólogos críticos de que o Direito Penal
do Inimigo recrudesceu desde então. O terrorismo e o tráfico de drogas – em
realidade, as pessoas suspeitas de praticarem terrorismo e tráfico de drogas –
passaram a gozar do status de hostis iudicatus. E seus supostos agentes, definidos
pelos mais arbitrários critérios, passaram igualmente a ser tratados como
inimigos a serem neutralizados3.
O reflexo disso, no processo penal, tornouBse evidente com a consagração
de uma política criminal “global” (de alguns países centrais) de exceção, em
uma guerra aparentemente sem tréguas aos inimigos da paz social.
Com o olhar nas circunstâncias da edição nos Estados Unidos da América
da Lei Patriótica e suas conseqüências, ressaltaBse que a reação ao terrorismo
tomou a forma de profunda mudança estrutural das regras que disciplinavam
o processo penal estadunidense. À parte o esdrúxulo decreto que estabeleceu
tribunais para julgar membros estrangeiros de organizações terroristas, “fora
do alcance das regras processuais ordinárias e garantias do devido processo”,
sem dúvida a redefinição das competências para providências cautelares
preparatórias para o processo, a restrição ao emprego do habeas corpus, a prévia

2 Não há como deixar de citar aqui o trabalho paradigmático de Nilo Batista, sob o título “Mídia e
sistema penal no capitalismo tardio”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais ano 11,
nº 42, jan./mar. 2003, p. 242B263. E também a obra igualmente relevante, sobre o papel da mídia e
de seus “juízos paralelos”, de autoria de Simone Schreiber: A publicidade opressiva de julgamentos
criminais: uma investigação sobre as conseqüências e formas de superação da colisão entre liberdade
de expressão e informação e o direito ao julgamento criminal justo, sob a perspectiva da Constituição
brasileira de 1988, Renovar, São Paulo, 2008.
3 Luigi Cornacchia irá trabalhar com as categorias do Direito Penal do Inimigo e seus reflexos
processuais em La moderna hostis iudicatio: entre norma y estado de excepción (Universidad
Externado de Colombia, Cuadernos de Conferencias y Artículos n.º 42, Bogotá, 2007). TrataBse,
pois, de reavivar os mecanismos pelos quais o Estado cassa o status de cidadania de determinadas
pessoas, convertidas em “inimigos internos”.

125
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investigação sobre os defensores dos acusados e a admissão de meios de


prova insuscetíveis de controle pelas regras de exclusão das provas ilícitas
configuram expressão maior de um tempo de obscuridade e reacionarismo
(SALAS, 2006, p. 255B267)4.
Na dimensão do processo penal, portanto, a expansão quase irresistível
deste modelo de política criminal significou muita coisa: como adverte a doutrina,
acentuaramBse os poderes de polícia ao mesmo tempo em que presunção de
inocência, direito de defesa, garantia do contraditório e imparcialidade do juiz
sofrerem drásticas limitações e deformações (CORNACCHIA, 2007, p. 9) 5.
O influxo disso, às vezes imperceptível, em processos mais recentes de
reforma global do processo penal, constitui sério desafio para a doutrina do
processo penal brasileira, obsequiosa em tornar realidade os anseios de vida
digna para todos, sem distinção (e sem a distinção de inimigos imposta pelo
maniqueísmo simplificador da referida política criminal).
Ao se cogitar da reforma processual penal não se pode deixar de colocar em
evidência este cenário, as nuances do quadro em nossa terra e a tensão na base de
algum discurso de reforma, que não é compartilhado pela totalidade dos integrantes
da Comissão, fundado na falaciosa ideia do aperfeiçoamento técnico do processo
penal por meio do novo Código de Processo Penal ou mesmo de novas leis.
De acordo com os dados do Departamento Penitenciário Nacional,
sistematizados em 21 de agosto de 2009, a população carcerária brasileira atual é
de 469.546 pessoas. Em 2000 esta população era de 232.755 pessoas6.
Em pesquisa recente registraramBse, ainda, 498.729 pessoas submetidas a
penas ou outras medidas alternativas ao cárcere, em 2008, enquanto em 2002
havia 102.403 (DEPEN/MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008).
Há, pois, quase um milhão de pessoas que no Brasil estão sujeitas ao
controle social via Sistema Penal, praticamente o triplo do número registrado no
início da década. Ao lado disso não é possível olvidar o expressivo número de
pessoas mortas por policiais em serviço (JUSTIÇA GLOBAL, 2003)7.
As observações que se seguem como contribuição para aperfeiçoamento do
trabalho, sempre cientes e respeitosas do mencionado contexto, buscam também
por em relevo a citada conjuntura, amplamente superável desde que se tenha
em mente o caráter político dos direitos fundamentais.

4 SALAS, Luis P. La Ley patriótica USA, in: Terrorismo y Proceso Penal Acusatório, Tirant Lo Blanch,
Valencia, 2006, p. 255B267.
5 CORNACCHIA, Luigi. Obra citada, p. 9.
6 Consultado em 10 de novembro de 2009, no sítio eletrônico HTTP://www.mj.gov.br/depen.
7 Execuções Sumárias no Brasil: 1997/2003. Centro de Justiça Global, Rio de Janeiro, 2003.

126
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3. Da Gramática e da Semântica do projeto8

O atual Código de Processo Penal sobrevive bastante modificado após mais


de seis décadas. Instituído pelo DecretoBLei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941,
o referido estatuto é obra de cultores do direito penal (PRADO, 2006, p. 171) e o
estágio embrionário dos estudos de processo penal explica em parte a precária
consistência sistêmica do Código.
Ao longo do tempo esta deficiência foi enfrentada, porém de forma limitada.
Assim, era natural esperar da Comissão mais encontros do que desencontros na
eleição e emprego da linguagem técnica em um projeto da envergadura do novo
Código de Processo Penal.
E não se trata, somente, de definir algum consenso de significados. Os
acertos semânticos haveriam de traduzirBse em regras para o uso da linguagem
própria do direito processual penal. SabeBse muito bem que as práticas
autoritárias escondemBse com habilidade nas falsas (ou indevidas) polissemias e
nos (deliberadamente) incorretos usos da linguagem!
Os desacertos dessa(s) ordem(ns) são variados. Em alguns casos revelam
descuido e denotam imprecisão. É preciso revêBlos. Em outros, mais seriamente
a questão está em escamotear decisões ideológicas inadiáveis.
Na primeira categoria, com graves consequências, podemos citar alguns
exemplos:

· Expressões do senso comum jurídico dominam a cena e deslocamBse


da área das metáforas para assumirem o papel de protagonistas de insB
titutos jurídicos, a “expressar”... bem, nada! É o caso do “trancamento
do inquérito policial”, previsto no inciso IX do artigo 15. TrataBse, aqui,
de modalidade de “extinção do procedimento”. A renovação, ou “reaB
bertura” da investigação, condicionada à cláusula rebus sic stantibus, em
nada altera o fato de que a investigação está extinta e dessa extinção deB
correm efeitos jurídicos precisos. A mesma crítica é aplicável às expresB
sões “feito” (artigo 126, §2º e 129) 9 e “testemunho”, no lugar de depoiB
mento10. O emprego do termo “pedido(s)” no lugar de requerimento,
conforme está no inciso XII do mesmo artigo (e no artigo 237), sublinha
a despreocupação com a denominação de importante elemento da deB

8 Os artigos citados, sem qualquer outra referência, são sempre do projeto de Código de Processo
Penal (PLS 156/09).
9 Esta empregada em lugar de “processo”. DenunciaBse a incerteza a respeito do que se fala.
10 Testemunha/se o fato sobre o qual se depõe em juízo, no momento da formação da prova.

127
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manda e com a ideia, fulcral em um modelo pretensamente acusatório,


de determinar balizas para a intervenção judicial.
· Não há acerto sobre o que se suspende ou mesmo se julga: a ação (arB
tigos 134, 418 etc.), o processo (artigos 254, 255, 444 etc.) ou a acusaB
ção (artigo 296)? Simplesmente, não há como ficar assim! A confusão
é injustificável e se nota certa timidez em abandonar em definitivo as
denominações e conceitos do processo civil. Rompido o laço com a
ação penal exclusivamente privada (o que está a merecer elogios), era
hora de tratar da acusação e da imputação, que é elemento da primeira,
prestigiandoBse estas categorias nucleares em uma estrutura acusatória.
Com isso por certo sumiriam as causas de perplexidade, pois o método
de definição da responsabilidade penal é o processo, com fases ou etaB
pas, início, desenvolvimento, inúmeras hipóteses de suspensão e, por
fim (sugestivamente pleonástico!), a extinção, com ou sem resolução do
mérito. Não se trata de remeter a ação às calendas gregas! Há o habeas
corpus, o mandado de segurança, a revisão criminal. Todos os equívoB
cos referidos, porém, são observados quando se trata de ação condenaB
tória e seu respectivo processo.
· Daí a surpresa com a redação dos artigos 255 e 256. Não há outras petiB
ções iniciais em processo penal, além da denúncia? Pelo menos à queixa
há de se adotar idêntico critério, em hipótese de ação penal privada
subsidiária da pública, de índole constitucional (artigo 5º, inciso LIX, da
Constituição da República e artigo 309 do próprio projeto). E as petições
de revisão criminal e de mandado de segurança? A impronúncia perB
sistirá como causa de extinção do processo sem julgamento do mérito,
ainda que de mérito trate o seu conteúdo? E o óbvio: as absolvições e
condenações ao fim do curso do processo de conhecimento (mais pleoB
nasmo) não levam à extinção do processo com resolução do mérito? 11

Situações como essas estão espalhadas no texto do projeto e reclamam


tratamento mais cuidadoso (“interesse na ação penal” ou na demanda, ou,
ainda, na solução do caso penal? Artigo 253, inciso II).

11 Neste caso a opção implicará em uma nova e completa redação, que distinga as decisões extintivas
tomando por base a solução definitiva do caso, com pronunciamento judicial tendente à coisa
julgada material, ou a resolução meramente formal, por força de deficiente formação do processo ou
da própria acusação.

128
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Em minha opinião, porém, os mais graves desacertos são os do segundo


grupo e dizem com a tolerância com a flexibilidade semântica que diretamente
interfere com os direitos fundamentais.
É preciso desde logo colocar em relevo a regra de validade de um novo
Código de Processo Penal: sua compatibilidade com os direitos e garantias
assegurados pela Constituição da República e por tratados internacionais de que
o Brasil seja signatário!
Esta escolha não é negociável. Tampouco pode ser matizada. Não há “tons”
de presunção de inocência. Igualmente não existem nuances de acusatoriedade!
Para delimitar os recursos, convenientemente ou não com o propósito de
tutela dos direitos fundamentais, a exposição de motivos confessaBse ardorosa
defensora da “presunção de nãoBculpabilidade” (item VI). IgnoraBse o texto
expresso do item 2 do artigo 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(Decreto 678/92), que é tratado como se não existisse. E o efeito prático disso está,
por exemplo, em restringir o âmbito de abrangência dos Embargos Infringentes,
para impedir que recorra a ele o condenado que ostentar esta condição desde a
sentença em primeiro grau (artigo 478). Isso sem falar na repercussão da retórica
em tema de liberdade pessoal!
Não se contraria “impunemente” a Constituição da República (artigo 5º,
§2º). E a sanção para o contencioso entre Código de Processo Penal e Constituição
está na invalidade da norma infraconstitucional. Não se cuida de gosto ou
preferência “garantista”.
Na mesma seara encontraBse o propósito de “evitar leituras radicais acerca
da extensão do princípio acusatório” (item VII da mencionada Exposição).
Não há leituras radicais acerca da extensão do princípio acusatório!
O que repousa implícito na frase é o reconhecimento de que a estrutura de
direitos e garantias, conforme estabelecida na (e pela) Constituição da República
é acusatória.12 Limitar isso pela via da “contenção do significado” configura
pretensão de contornar a normativa constitucional.
Algo que pode ser retratado pelo inusitado exemplo: em não sendo possível
negar ao preso o direito ao silêncio, criaBse a figura do detento para da distinção
estabelecer que somente o indivíduo formalmente preso seja considerado titular
do direito ao silêncio! Isso é inviável!
Gostem ou não as pessoas, a Constituição da República estrutura o processo
penal em base acusatória. O que significa:

12 O artigo 4º, no entanto, não deixa margem à dúvida: “o processo penal terá estrutura acusatória”.

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· Dispor a acusação em mãos do acusador e afastar o juiz desta tarefa.


· Entregar às partes a gestão da prova.

O artigo 409 do projeto ilustra a “compressão” a que se pretende submeter


o princípio acusatório. Não se entende exatamente a que título a regra proposta
subsidia categoria inquisitorial repudiada (e, na maioria das vezes, desconhecida)
em modelos estruturados com alicerce na acusatoriedade!
É manifesta a incompatibilidade entre a condenação de alguém quando o
titular da ação penal (artigo 129, inciso I, da Constituição da República), após
detida análise da prova, se pronuncia pela absolvição, e a efetividade da garantia
do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da mesma Constituição). Até porque a
esta altura dos estudos jurídicos sabeBse bem que as provas (meios de prova)
não falam por si! O conjunto probatório deve ser necessariamente interpretado
pelas partes e esta interpretação é o objeto das alegações finais, de outro modo
dispensáveis (PRADO, 2006, p. 116).
Ao pleitear a absolvição, o acusador suprime argumentos que, por não
existirem, não poderão ser considerados em linha de contraditório pela defesa,
cuja função consiste em tutelar a presunção de inocência. E processo sem
contraditório é inválido, nulo! 13
A vigilância inquisitorial, disfarçada em contraponto a uma suposta leitura
radical acerca da extensão do princípio acusatório, mostra a face no parágrafo
único do artigo 162 do projeto.
Neste caso combinamBse as compreensões matizadas de presunção de
inocência e princípio acusatório, que por conveniência argumentativa recebem
os nomes de presunção de nãoBculpabilidade e leitura não radical do referido
princípio.
AdmiteBse no projeto alguma iniciativa probatória ao juiz. Poderes de
instrução, esta é a correta denominação.
IndagaBse: em um processo cujo estado de incerteza se resolve em favor do
acusado, em virtude da presunção de inocência, como a “dúvida” mencionada
no texto do citado dispositivo poderá merecer tratamento legal diferenciado?

13 A observância escrupulosa do princípio acusatório conduz a duas soluções: a) o Ministério Público


desiste da ação proposta (e o texto do artigo 50, malgrado a tendência a ampliar o espaço de decisão
do Ministério Público, nega essa possibilidade, contraditoriamente com a citada estrutura acusatória
e sem simetria com o tratamento em tema de recursos); b) ou encerra o processo opinando pela
declaração da inocência do acusado, cabendo ao juiz homologáBla como faria em hipótese de
suspensão do próprio processo. PodeBse conceber medida prévia à homologação, por iniciativa do
Ministério Público, nos termos do artigo 38 da proposta. Em caso algum a iniciativa (condenatória
ou de provocação de outra instância do Ministério Público poderia ficar a cargo do juiz, cuja
imparcialidade deverá ser preservada.

130
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Especialmente após os elogiáveis cuidados dispensados pelo projeto ao estatuto


do Defensor, em seu artigo 60!
A Defesa será efetiva... sob pena de tornarBse inválida... e assim contaminar
os atos do processo. Onde, pois, entra a intervenção probatória do juiz? Salvo
para organizar o conjunto probatório em desfavor do acusado, é claro! Mas isso
é inconstitucional14.
Não se trata de mera questão de preconceitos lingüísticos. O que está em
jogo neste caso, antes da harmonia interna do Código de Processo Penal futuro,
é seu ajuste à Constituição e sua adequação ao Estado de Direito.
Gramática e semântica não estão imunes às inferências ideológicas. Antes,
configuram o veículo por meio do qual as ideologias tomam forma. Não haveria
mal maior nisso se as escolhas fossem devidamente explicitadas15. Inseridas de
contrabando no texto, as concessões inquisitoriais tornamBse mais problemáticas
e exigem a necessária exposição, porque do contrário recairá sobre os ombros
do Supremo Tribunal Federal o fardo, que é sua função, de declarar a
inconstitucionalidade destas normas16.
Mais uma vez, em homenagem à função contraBmajoritária dos direitos
fundamentais e em apoio concreto à democracia (FERRAJOLI, 1997 e
CAMPILONGO, 1997, p. 53), há necessidade de uma tomada de posição que
preserve o Supremo Tribunal. Desgastes desnecessários da Corte para dar conta
de vertentes da opinião pública que buscam restringir garantias como forma de
assegurar alguma difusa “paz social”, que por este caminho é típica dos regimes
autoritários, são perfeitamente evitáveis.

4. Das escolhas: juiz natural e julgamento sumário

O projeto optou. Em alguns casos, noutros não.


Com efeito, o PLS 156/09 deixou de tomar partido na questão da direção
da investigação criminal, remetendo à lei (artigo 9º). Mas, que lei? Por que não
o próprio Código de Processo Penal, que reivindica reserva – e monopólio
infraconstitucional das regras de processo?

14 Este é o cerne da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal do artigo 3º


da Lei nº 9.034/95, no processo da ADIn 1.570B2 (DJU 19.11.2004). Pouco importa o momento do
exercício dos poderes de instrução. A questão posta diz com a iniciativa “de ofício” e o ferimento
mortal à presunção de inocência e à imparcialidade.
15 E aí caberia à Comissão de Constituição e Justiça emitir parecer pela rejeição da proposta.
16 CorreBse, portanto, o risco de apelo ao “direito penal simbólico”, com recurso a mecanismos de
antemão reconhecidos inválidos. Em uma democracia os juristas tem o dever de prevenir e evitar o
desgaste desnecessário da Corte Constitucional!

131
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A presente análise cuidará das opções. De algumas delas.


A estrutura acusatória tem consequências. E uma das mais visíveis está em
dispor de um juiz cuja função deve consistir em apreciar os meios de prova que
as partes se propõem a produzir e avaliar a licitude destes meios, determinando
a exclusão das provas ilícitas e delimitando o perímetro temático do debate
contraditório.
Este mesmo juiz poderá ter (e terá, nos termos da proposta) poderes
cautelares, que serão em regra impulsionados a requerimento dos interessados,
em estrita observância da presunção de inocência e do princípio acusatório.
Assim, evitaBse que o julgador responsável pelo veredicto se veja “contaminado”
por uma versão parcial, pertinente com exclusividade ao campo da admissibilidade
da acusação, e possa julgar o mérito, oportunamente, orientado pelas premissas
decorrentes da tantas vezes referida presunção de inocência17.
Com este propósito projetaBse a instituição do “juiz das garantias” (artigos
15 e seguintes).
A crítica recai, todavia, sobre a redação do artigo 18.
Nos termos deste artigo o “juiz das garantias” deverá ser “designado”
conforme normas de organização e divisão judiciárias. A designação poderá
ser interpretada como método de provimento transitório ou temporário, mas à
discrição do Chefe do Poder Judiciário local.
A solução contraria o princípio do juiz natural, compreendido como juiz
previamente definido em lei. As pressões que podem atingir o magistrado e
perturbar as condições de exercício imparcial da jurisdição não são devidas com
exclusividade a fatores externos. A garantia (para o cidadão) da imparcialidade
do juiz pode ser afetada por pressões oriundas da hierarquia do próprio Poder
e a forma de evitar isso está em assegurar a inamovibilidade do magistrado.
Ainda que se estabeleça mandato, isto é, prazo para o exercício da função de
“juiz das garantias”, a solução é mais adequada, pelo viés constitucional, que o
silêncio sobre o assunto, a remeter aos tribunais locais a tarefa de definir como
estes juízes serão instituídos. O mandato garante a inamovibilidade.
Conquista da democracia o julgamento com base em provas. PodeBse
asseverar que a legitimidade da sentença penal condenatória está condicionada
à fundamentação em meios de prova que convençam acerca da responsabilidade
penal do acusado (FERRAJOLI, 1997).

17 É meritória a proposta de redação do artigo 17, que se dirige ao citado objetivo de concretização da
imparcialidade do julgador,

132
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Os julgamentos sumários, instantâneos, modalidade de justiçamento18, prescindem


do contraditório, invertem a presunção de inocência e concebem os direitos
fundamentais como “direitos subjetivos” das pessoas (nesta hipótese, das partes no
processo), renegando visão emancipatória e transformadora destes mesmos direitos.
Com efeito, o discurso de fundação desta “modalidade de procedimento”
está ancorado na consensualidade (PRADO, 2006) 19. E esta, por sua vez, como
foi denunciada na obra citada, está alicerçada na liberdade de decisão do
indivíduo. Tal é a retórica dos direitos fundamentais em sociedades dominadas
pela ideologia do individualismo possessivo e pela lógica do mercado20.
Os países periféricos e semiBperiféricos, no entanto, não se constituíram
sobre a mesma base. Ao contrário, o autoritarismo imperante em nossas plagas
e seu reflexo na instrumentalização do Sistema de Justiça Criminal são de tal
ordem que mesmo os autores do projeto se viram forçados a reconhecer isso.
É assim com a aparentemente estranha redação do artigo 69 do projeto:
“Quando o interrogando quiser confessar a autoria da infração penal, a
autoridade indagará se o faz de livre e espontânea vontade”!
Como o autor reiteradamente se pronuncia, em conferências e palestras,
a edição de uma determinada regra tem sua história, seus motivos conhecidos e
velados, e não raro revelaBse ato falho, a escapar pelos poros do vigilante super ego!
Na América Latina, e de restos entre os povos historicamente oprimidos
e marginalizados, não pode conceber os direitos fundamentais salvo como o
resultado de “lutas raramente recompensadas com êxito” (HERRERA FLORES,
2009, p. 38). A opressão sobre o indivíduo, neste caso representado na pessoa do
acusado, deve ser contida pelo caráter irrenunciável dos direitos fundamentais
que estão voltados à tutela da dignidade da pessoa humana.
É a nossa história, pois, que nega o signo da constitucionalidade aos artigos 271
e 272 do projeto, amparada no reconhecimento implícito do caráter tradicionalmente
violento do sistema criminal, conforme o artigo 69 da própria proposta.

5. Das escolhas: habeas corpus

E é também nesta linha histórica que o habeas corpus deve ser colocado em
perspectiva.

18 Convém buscar o significado do termo nos dicionários, em relação ao nosso recente passado ditatorial.
19 PRADO, Geraldo. Transação Penal, 2ª ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006.
20 Conforme esta razão o indivíduo conscientemente não adotaria comportamento que lhe trouxesse
prejuízo. Minha crítica a isso e o entendimento sobre a inconstitucionalidade, entre nós, deste
procedimento, está lançada na referida obra (nota 14).

133
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Aos mais novos e aos esquecidos vale lembrar as palavras de Raymundo


Faoro, quando, presidente da OAB, em 15 de junho de 1977, na Folha de São
Paulo, contestava a ditadura militar (GASPARI, 2004, p. 450):

“O habeas corpus não é só uma reclamação da sociedade civil, mas


uma necessidade do próprio governo, pois a boa autoridade só pode
vigiar a má autoridade pelo controle das prisões, proporcionado
pelo habeas corpus”.

E este intérprete do Brasil voltaria ao tema, um mês depois, no Jornal do


Brasil, aduzindo:

“Nos fixamos no habeas corpus como medida imediata, pois


entendemos que a garantia da liberdade física leva à libertação do
medo. Este é o primeiro passo para que se obtenha um consenso da
nação que é o pressuposto do estado de direito e da legitimidade
das instituições”.

O projeto parece olvidar disso!


Não se preconiza o retorno aos termos do debate entre Pedro Lessa e Rui
Barbosa (LESSA, 2003, p. 276 e seguintes). Mas não se pode fazer vista grossa
à pretensão de reduzir o âmbito da garantia, algo que a Exposição de Motivos,
muito timidamente, mencionará ao fim do item VI.
Reservar o habeas corpus para decisões não impugnáveis por meio de
recurso com efeito suspensivo, como está no parágrafo único do artigo 637,
importa constranger os legitimados ao círculo estrito das partes do processo,
às quais se oferece a possibilidade, muitas vezes irreal à vista da cotidiano, de
prontamente impugnar medidas limitadoras da liberdade de ir e vir.
O habeas corpus é ação popular, de legitimação difusa, e há motivos para
ser assim.
Ademais, as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, proferidas em
julgamento de habeas corpus, revelam a gravidade da proposta de restringir a casos
de “prisões ilegais”, concretizadas ou iminentes, não protegidas pelo agravo!21
A restrição ao habeas corpus, em lei ordinária, é incompatível com a
Constituição da República e conspurca a nossa história.

21 Não é exatamente assim que a coisa está dita na exposição de motivos. Mas é como está colocada no
projeto, conforme o parágrafo único do artigo 637.

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6. Considerações finais

Em um projeto desta envergadura há muito mais a merecer consideração.


O tempo de duração das interceptações telefônicas, previsto no artigo 240,
que não escapa da crítica apresentada em outra oportunidade (PRADO, 2005, p.
38 e 45/6) e acolhida em decisão do Superior Tribunal de Justiça22.
A opção pelo modelo da parte civil é desnecessária e contradiz a celeridade
pretendida (artigo 79). Basta ver os prazos quando houver parte civil (artigo 261).
Isso, sem prejuízo da incompatibilidade entre tutela dos interesses da vítima e
a presunção de inocência. Prever a intervenção civil, com tudo a que isso obriga
(contraditório, prova etc.) funde, indevidamente, pretensões orientadas por
princípios diversos.
Elogiável, todavia, o fortalecimento de direitos da vítima (artigo 89),
avançandoBse na seara do bemBestar social.
PretendeBse o fim da conexão entre crime doloso contra a vida e crime de outra
natureza. Excelente. Como, porém, eliminar o vínculo apenas depois da pronúncia
(artigo 106, § 2º, e artigo 323)? O processo por crime que era (ou estava) objeto da
conexão será decidido antes do julgamento do homicídio? E depois, os jurados,
sem motivar, decidirão sobre o crime doloso contra a vida? Como fazer para que a
decisão anterior não influencie o julgamento do Conselho de Sentença?
É preciso, também, harmonizar o trato da suspensão condicional do
processo com a disciplina dos procedimentos.
Enfim, são sugestões de leitura e revisão, se for o caso. Não se desmerece,
porém, o trabalho.
A limitação dos casos de prisão preventiva deverá inverter a rotina de
multiplicação desta espécie de cautelar, que tem sofrido intensa limitação pelo
trabalho interpretativo dos tribunais. E apenas por isso o projeto já se inscreveria
entre o que de melhor se pensou sobre o assunto. Assim como, repitaBse, a
extinção da ação penal de iniciativa exclusiva da vítima.
Há, pois, muito a aplaudir e, em debate democrático, algo a ser revisto e
aperfeiçoado.

Referências bibliográficas

CAMIPLONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São Paulo: Max


Limonad, 1997.

22 Proferida no julgamento do HC 76.686BPR, j. 09.09.08. Rel. Ministro Nilson Naves, 6ª Turma.

135
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FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, Madrid:


Tro[a, 1997.
GASPARI, Elio. A Ditadura Encurralada. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
HERRERA FLORES, Joaquin. A (re) invenção dos Direitos Humanos.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário, edição facBsímile. Brasília: Senado Federal,
2003.
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
______. Transação Penal, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
______. Limites às interceptações telefônicas e a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

136
Poder Negocial (sobre a pena), Common
Law e processo penal brasileiro: Meta XXI,
em busca de um milhão de presos!?

1. Introdução

Romper paradigmas. Este tem sido o destino do professor Jacinto Nelson de


Miranda Coutinho em suas andanças pelo direito processual penal e na CAPES,
que liderou na área do Direito, orientando a pesquisa jurídica em direção à
competência, autonomia e comprometimento com o Estado de Direito.
Por isso saúdo Gilson Bonato, organizador do livro em homenagem a
Jacinto e o parabenizo pela iniciativa, que por certo reflete o pensamento de
todos os discípulos do mestre da UFPR, estimulados e incentivados por Jacinto
a caminhar juntos, nessa jornada sempre em aberto pela consolidação da
democracia.
Presto minha particular homenagem dividindo com o leitor as experiências
de pesquisa sobre tema que considero decisivo na transição pela qual passa o
nosso processo penal.
TrataBse da questão do “poder negocial”, prevista no projeto de lei do
Senado que se propõe a instituir um novo Código de Processo Penal.
ValhoBme das considerações acerca do tema emitidas em um Seminário
promovido em São Paulo pelo IBCCRIM, AJUFE e EMAG, e por isso optei por
manter a informalidade própria da exposição oral1.
Ao estimado Jacinto, pois, um forte abraço!
No dia 2 de junho deste ano dividi mesa com o professor Guilherme
Madeira, em Seminário promovido em São Paulo pelo IBCCRIM, AJUFE e
EMAG sobre o Projeto de Lei 156 do Senado (novo Código de Processo Penal).
Coube falar de poder negocial e julgamento antecipado, conforme está previsto
nos artigos 278 e 279 do projeto.
Quero compartilhar algumas considerações.

1 Agradeço à pesquisadora Fernanda Peixoto pelo trabalho de organização de texto e bibliografia.

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1. Começo por colocar minha divergência, sempre respeitosa, com a tese


de que o exercício do poder negocial, quer na modalidade da disponibilidade
sobre o objeto do processo, quer pelo viés da opção até pelo não processo
(oportunidade) deva ser visto como inerente à estrutura acusatória, ou ao menos
como parte integrante de uma “tradição acusatória (adversarial) do Common
Law”. Entendo que não há relação entre uma coisa e outra.
2. De início porque não há definição mais “indefinida”, escorregadia, do
que a da chamada “estrutura acusatória” do processo penal.
3. Isso é assim porque a compreensão da própria ideia de Sistema no direito
não está pacificada. A leitura do trabalho clássico de Mario Losano2 revelava,
já em 1968, os desacordos semânticos sobre a noção de Sistema no Direito que
atravessaram os séculos e que justificam os vários ângulos de observação do
fenômeno jurídico (não se pode reclamar a “exclusividade” de um ponto de
vista). Isso, por exemplo, sob a ótica de uma “organização estruturada de um
objeto ou da ciência que estuda tal objeto” ou conforme a ideia de sistema como
“conjunto de normas reunido por um elemento unificador”. E assim vai!
4. Mirjan Damaska, por sua vez, irá sublinhar o modo como cada grupo
social reivindicará para si a adoção de nomeados sistemas processuais, em geral
de cariz acusatório, sem que seja possível justapôBlos ou definir pontos comuns
acima de qualquer divergência teórica3.
5. E as dificuldades não diminuem quando o olhar pousa quase
exclusivamente sobre o modelo em vigor nos Estados Unidos. Michele Taruffo4
reafirma, em 2007, suas convicções da década de 70 do século passado, de que
o “mito adversarial”, sustentado por uma certa “tradição” do common law, não
corresponde ao mundo real (e por isso é um mito) e tampouco é tão tradicional
assim (como se constituem as tradições?)5.
6. Em um contexto aparente de tantas incertezas, os estudiosos podem ser
levados a crer na conclusão de Juan Montero Aroca, jurista e juiz de primeira
linha, sobre a “inutilidade do princípio acusatório para a conformação do
processo penal”6.
7. Continuo acreditando na validade do conceito, com todas as possibilidades
de desencontros de significados, porque o mundo real, das pessoas que são

2 Sistema e estrutura no Direito, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2008.


3 Las caras de la justicia y el poder del Estado, Editorial Juridica de Chile, 2000.
4 El proceso civil adversarial en la experiencia americana, Bogotá, Temis, 2008.
5 HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. A invenção das Tradições, 6ª Ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra,
2008.
6 Proceso Penal y Libertad, Pamplona/Navarra, Thomson/Civitas, 2008.

138
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encarceradas e julgadas, reclama a imposição de limites ao poder do Estado de


encarceráBlas e de matáBlas, de uma vez ou em contaBgotas.
8. A prova disso eu extraio da violenta reação, pós 11 de setembro, nos
Estados Unidos. A vigorosa tradição do processo adversary não impediu por
bastante tempo o desenvolvimento de procedimentos penais em sigilo, com
violação do juiz natural, restrições ou supressões do direito de defesa e do
contraditório, e perpetuação de detenções “provisórias” sem acusação formal.
Sem falar na tolerância com as provas obtidas por meios ilícitos7.
9. O retorno, malgrado lento, às bases mais humanizadas do processo penal
nos Estados Unidos, no entanto, tem sido orientado pela fidelidade à “tradição”
adversary de processo penal, que serve como parâmetro para questionar e invalidar
ações arbitrárias, de índole inquisitorial, no marco do Estado de Direito.
10. Assim, o Sistema Acusatório é como a face de uma moeda: não existe
sem a “coroa”, cuja presença iminente sempre incomoda, porque relembra
(história) as estratégias de infiltração das práticas autoritárias, em avanço muitas
vezes destemido sobre os direitos humanos (pesquisa em andamento sobre As
matrizes autoritárias do Processo Penal brasileiro na UFRJ) 8.
11. E é por isso que em cada caso, conforme a história de cada grupo social,
alguns aspectos do complexo em que se constitui o Sistema são mais relevantes
que outros. As histórias do Brasil e latinoBamericana, em geral, denunciam a
parceria entre juiz e acusador (durante quanto tempo se confundiram no mesmo
sujeito processual?) a reivindicar que coloquemos acento na distinção das funções
principais do processo, para que coadjuvações do gênero não inviabilizem o
direito de defesa, em prejuízo dos direitos fundamentais!
12. A iniciativa judicial do processo, denominada entre nós de “jurisdição
sem ação”, o domínio sobre a imputação pelo juiz, apelidado de mutatio libelli, o
controle judicial da inércia do MP são “evidências” do que afirmo. São pistas do
inquisitório encontradas cotidianamente nas prateleiras dos cartórios criminais.
13. Mas o que importa agora é o Sistema Acusatório, que tem sua história
alargada no Common Law. E o poder negocial.
14. Em um trabalho de fôlego John Lagbein, Renée Lerner e Bruce Smith
vão descolar o “plea bargaining” da estrutura acusatória tradicional9.
15. O pragmatismo norteBamericano, no século XIX, ditado pelas dificuldades
da organização do Júri para dar conta dos dilemas cada vez mais complexos,

7 SALAS CALERO, Luis. La Ley Patriótica USA, em Terrorismo y Proceso Penal Acusatório, Valencia,
Tirant Lo Blanch, 2006.
8 h[p://gpgrupodeestudos.blogspot.com, consultado em 07 de setembro de 2010.
9 History of the Common Law: the development of angloBamerican legal institutions, Aspen, 2009.

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gerados por uma sociedade industrial em desenvolvimento, é somente uma das


hipóteses aventadas por estudiosos ingleses e norteBamericanos10.
16. O certo, porém, e aí são dois professores da Universidade de Chigago
que irão se pronunciar a respeito, é que durante muito tempo neste mesmo
século XIX, nos Estados Unidos, os juízes resistiram intensamente a admitir a
confissão B e a correspondente “barganha” B como mecanismos de exclusão do
Júri, dispensa do ônus da prova pela acusação e, de quebra, não aplicação da
Sexta Emenda!11
17. John Langbein irá ressaltar que justamente este foi o período em que o
direito, não como prática social, mas como ciência ou saber instrumental, passou
a se interessar e a tomar como objeto de análise o processo criminal: “It was
not until the third quarter of the nineteenth century that the modern form of
the adversary trial appeared with frequency in the bulk of ordinary criminal
cases. This is some one hundred or 150 years a…er the introduction of those
institutions B rules of evidence, procedure, expansion of the rights of defense
counsel, and other factors B normally associated with the lawyerization of the
criminal procedure”12.
18. Um pouco como o processo penal “gata borralheira” de Carnelu[i13,
quando comparado ao saber desenvolvido no âmbito do Common Law pelos
demais ramos do direito, lá o criminal não ocupou espaço destacado, salvo como
prática social.
19. E é neste contexto de prática social, com maiores ou menores resistências nos
tribunais e, agora, inversamente, com maior resistência na doutrina em confronto
com a ampla aceitação pelas corporações profissionais (juízes, advogados e MP),
que o poder negocial conquistou seu espaço no direito angloBsaxão.
20. A questão jurídica nos Estados Unidos não é colocada no âmbito da “ação
penal”! A discussão jurídica B e não política, em sentido estrito B diz com o direito ao
júri (Sexta Emenda) e a relação, difícil, entre a solução da causa e o “mito adversarial”
de que este tipo de processo é mais adequado à determinação da “verdade”14.
21. Não se pensa com categorias ou termos continentais, como oportunidade
ou disponibilidade, mas sim com a eficiência punitiva que periodicamente reclama
a legitimidade do MP (eleição), em um contexto bastante distinto do nosso!

10 Langbein et alli, op. cit. p. 709.


11 ALSCHULER, Albert e DEISS, Andrew. Breve historia del jurado criminal en los Estados Unidos, in
Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia penal, ano VIII, n. 14, Buenos Aires, Ad Hoc.
12 Langbein et alli, op. cit. p. 709.
13 CARNELUTTI, Francesco. Observaciones sobre la imputación penal, em Cuestiones sobre el proceso
penal, Buenos Aires, Libreria El Foro, tradução da obra de 1950, p. 135.
14 Ver Taruffo, obra citada, cap. 1.

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22. Vale dar uma lida no cap. 4 do Adversarial Legalism: the american
way of law, de Robert Kagan, e nas demandas por mais segurança (ou na
manipulação do medo) entre as classes médias norteBamericanas, para
compreender o salto extraordinário da população carcerária e sob vigilância
nos Estados Unidos, dos anos 60 para cá, e como isso influenciou o adversarial
legalism na área criminal15.
22. Assim, atrelar o poder negocial, ainda que sob a forma de procedimento
sumário, ao modelo acusatório importa em juntar duas coisas que não comungam
a mesma identidade, tampouco precisam do mesmo “ar” para viver.
23. Claro que o projeto de Código de Processo Penal não obedece a algum
capricho de seus autores, respeitados no meio acadêmico e profissional, e todos
indiscutivelmente comprometidos com os direitos humanos e a democracia (a
biografia de cada um deles os antecede).
24. É necessário tentar entender os fios que unem a proposta de poder
negocial à reformulação completa e complexa de nosso modelo de persecução
criminal.
25. Começo por reproduzir um texto de Loïc Wacquant: “Após abandonar o
programa social fordistaBkeynesiano em meados dos anos 1970 e o processo de
esfacelamento do gueto negro como instrumento de controle de casta, os Estados
Unidos lançaramBse em um experimento sócioBhistórico singular: a incipiente
substituição da regulação estatal da pobreza e dos distúrbios urbanos, frutos da
crescente desproteção social e do conflito racial, por seu gerenciamento punitivo
por meio da polícia, da Justiça e do sistema correcional [grifo nosso]” 16.
25. Segue Wacquant, acrescentando que a consequência inevitável desta
escolha não poderia deixar de ser a ascensão descomunal do Estado Penal,
nas três décadas seguintes: “Expansão vertical via hiperinflação carcerária: a
quadruplicação da população encarcerada em 25 anos, devida basicamente ao
aumento das detenções, fez dos Estados Unidos o inigualável campeão mundial
em aprisionamento, com 2 milhões de pessoas atrás das grades e 740 presos por
100 mil habitantes B de seis a doze vezes as taxas de outras sociedades avançadas
B, embora o índice de criminalidade permanecesse em estagnação e depois em
declínio durante o período”.
26. Convém rematar o registro dos dados, ainda com base nas informações
de Wacquant, sublinhando: “Expansão horizontal via dilatação da suspensão
condicional da pena, reestruturação da liberdade condicional e ampliação

15 KAGAN, Robert. Adversarial Legalism: the american way of law, Harvard, 2003.
16 WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto, São Paulo, Boitempo, 2008, p. 123

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das bases de dados eletrônicas e genéticas, para propiciar maior vigilância à


distância. O resultado desse ‘alastramento’ da rede penal é que hoje 6,5 milhões
de norteBamericanos estão sob supervisão da justiça criminal, o que representa,
na população masculina, um em cada vinte adultos (mais de 35 anos), um em
nove adultos negros e um a cada três negros com 18 a 35 anos.”
27. Os números impressionam, mas não devem ser avaliados de maneira
isolada.
28. Albert Alschuler e Andrew Deiss, professores da Faculdade de Direito da
Universidade de Chicago citam dados do Departamento de Justiça dos Estados
Unidos para salientar que, em 1992, nos 75 maiores condados norteBamericanos
94% de todas as condenações por delitos graves decorreram de “declarações de
culpabilidade”. Em Nova York, naquele ano, o índice registrado foi de 93% (obra
citada, p. 189).
29. De acordo com a fisiologia do Sistema de Justiça Criminal em vigor nos
Estados Unidos a população encarcerada não está nas cadeias e penitenciárias,
salvo por ordem judicial. E também a vigilância de natureza criminal, que
submete mais de três milhões de pessoas, presume o funcionamento ordinário
desse mesmo sistema, que no ontem recentíssimo e no hoje depende dos acordos
diretos entre MP e Defesa/acusado em torno da assunção de culpa e da aplicação
da pena, sem provas, alegações e confrontações com a presunção de inocência.
30. Os artigos 278 e 279 do projeto de lei 156 do Senado, na versão aprovada
na CCJ, correspondem à condenação direta.
31. Pelo artigo 278, o MP e a Defesa poderão requerer ao juiz “a aplicação
imediata de pena nos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse 8
(oito) anos”, desde que verificadas algumas condições, a saber: a) a confissão,
total ou parcial; b) o requerimento de que a pena privativa de liberdade seja
aplicada no mínimo legal...; c) expressa dispensa das provas.
32. Convém logo destacar um ponto: o consenso penal em torno da
condenação, com a possibilidade mesmo de imposição de pena de prisão,
ainda que de curta duração, está regulado como uma espécie de procedimento
(Capítulo III B Do procedimento sumário).
O que me parece fundamental, no atual contexto, diz com duas questões
incontornáveis: a) o nosso regime de direitos fundamentais autoriza a
condenação sem provas e por este meio a imposição de graves restrições às
liberdades públicas, afastandoBse a proteção da presunção de inocência? b) qual
a razão de política criminal e judiciária que busca legitimar, justificar ou explicar
a referida eleição (pela condenação direta)?

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2. O nosso regime de direitos fundamentais autoriza a


condenação sem provas, e por este meio a imposição de
graves restrições às liberdades públicas, afastandoBse a
proteção da presunção de inocência?

33. Item a:
1.1. Em Transação Penal17 avancei a seguinte hipótese, que transcrevo: “A
irrenunciabilidade do direito fundamental, pelo particular, é o antecedente
lógico da indisponibilidade e no campo jurídico invalida, por contradição com
a Constituição, qualquer ato tendente à abdicação dos direitos individuais.”
1.2. Então, em 2003, e a propósito de analisar a transação penal da Lei nº 9.099/95,
trabalhei neste nível para destacar a “irrenunciabilidade e indisponibilidade
do exercício do direito de defesa no processo penal brasileiro” 18.
1.3. Creio ter antecipado em sete anos este debate quando escrevi sobre
“funcionalidade e eficiência: a transação penal desliza em direção à prisão”
(idem, p. 16B28) para diagnosticar tendências e argumentos que o funcionalismo
penal infiltrava na doutrina brasileira, em busca de apoio ao projeto de
implantação da negociação em torno da pena privativa de liberdade.
1.4. Tenho certeza de que meu livro mais conhecido B e do qual mais gosto
B é o Sistema Acusatório. Para mim, porém, o trabalho de que mais me
orgulho, ao lado da investigação sobre interceptações telefônicas e a
jurisprudência do STJ, é este, Transação Penal.
1.5. Isso porque, percebendo a energia liberada em prol da introdução
entre nós do plea bargaining, busquei interrogar o estatuto de nossos
direitos fundamentais, ainda antes da confrontação teórica entre
âmbito normativo e tutela de bem jurídico no cenário destes direitos,
no campo do processo penal, para assinalar que a proteção dos direitos
fundamentais em uma sociedade semiBperiférica há de ser interpretada
como limite às forças opressivas que historicamente bloquearam aos
grupos mais vulneráveis o acesso aos bens da vida.
1.6. A criminologia crítica produzida na América Latina comprova
empiricamente o torpedeamento das classes e dos grupos sociais mais
frágeis via sistema penal19.

17 PRADO, Geraldo. Transação Penal, 2ª ed., RJ, Lumen Juris, 2006, p. 189.
18 Obra citada, p. 70.
19 ZAFFARONI, Eugenio Raul. En busca de las penas perdidas, 4ª reimpressão, cap. 1, Ediar, Buenos
Aires, 2005.

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1.7. Neste contexto, assegurar o núcleo dos direitos fundamentais em cada


caso é estratégico. E não se pode duvidar, à luz dos incisos LIV, LV e
LVII do artigo 5º da Constituição da República, que a presunção de
inocência, o direito ao processo e, consequentemente, o direito à prova
sejam direitos fundamentais!
1.8. E se o são, em âmbito penal, é assim por quê?
1.9. Entre nós a impossível coerção sobre a presunção de inocência obedece à
lógica de impor limites ao encarceramento como estratégia histórica de
controle social. E é contra esta estratégia que o devido processo penal se
instituiu no Brasil, pós 1988.
1.10. A tese da irrenunciabilidade (naturalmente que pelo próprio titular do
direito) a determinados direitos fundamentais, para preservar a essência
destes direitos, não é nova.
1.11. Na palestra alertei para o exemplo: João, denunciado por homicídio
doloso, se dirige ao juiz da Vara Criminal e, dizendoBse confiante em seu
julgamento, requer seja dispensado do Júri para ser julgado no mérito
pelo juiz. De antemão o acusado afirma que aceitará qualquer resultado,
até mesmo a condenação.
1.12. Indago: em semelhante hipótese a autonomia de vontade de João produz
uma manifestação jurídica válida e apta a dispensáBlo do Júri, garantia
constitucional prevista no inciso XXXVIII do artigo 5º?
1.13. Somente a resposta afirmativa a esta questão pode justificar a declaração
da constitucionalidade da condenação direta, prevista nos artigos 278 e
279 do Projeto! Até onde sei este não é o rumo ajustado no Brasil, quer
na teoria, quer na prática dos tribunais, acerca do Direito ao Júri.
1.14. E a negativa não é uma opção, mas decorre do estatuto dos direitos
fundamentais que é adotado no Brasil!
1.15. Concluo, pois, sustentando a inconstitucionalidade da previsão.

3. As questões da ordem das políticas criminal e judiciária que


pressionam pelo Poder Negocial.

33. Há outras questões a serem investigadas.


33.33. Com efeito, na sequência dos tópicos anteriores, cuidei de abordar as
razões latentes da previsão da negociação direta em torno da pena,
conforme está nos artigos 278 e 279 do PLS 156.
33.34. Em síntese, ao lado dos motivos manifestos, que são identificáveis na
Exposição de Motivos, há questões da ordem das políticas criminal

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e judiciária que estão ocultas, mas que dizem com a realidade do


funcionamento cotidiano do Sistema de Justiça Criminal, suas demandas
e as articulações um tanto inevitáveis com as pressões de grupos sociais
por maior controle.
33.35. Começarei citando dados. Dados coletados pela socióloga Julita
Lemgruber para apresentação no Painel 4, Fora da lei, abaixo da vida,
do Seminário “A Justiça que queremos”, promovido pela Escola da
Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), em 15 de agosto de 2008.
33.36. A professora Julita buscou em fontes oficiais (Ministério da Justiça) os
números que falam com eloquência: a população carcerária no Brasil,
em 1995, era de 148.760 pessoas. Em 2007 esta população havia saltado
para 422.590 pessoas, em uma taxa correspondente a 221 presos a cada
100 mil habitantes, contra 93 presos a cada 100 mil pessoas em 1995.
33.37. Outro número interessante que se extrai da pesquisa diz com a evolução
das pessoas sob vigilância, no Brasil, pelo Sistema Criminal, sem
encarceramento. A socióloga destaca que em 1995 havia 80.364 pessoas
cumprindo penas e medidas alternativas (transação penal e suspensão
condicional do processo, conforme os artigos 76 e 89 da Lei dos Juizados
Especiais Criminais).
33.38. Este número saltou para 498.729 pessoas em 2008 (maior, portanto, que
o de presos, que era de 439.737).
33.39. Para o que nos interessa, porém, o que vale, efetivamente, é somar: Em
2008 havia no Brasil 938.466 pessoas submetidas, de uma forma ou de
outra, ao Sistema Criminal.
33.40. Os números revelam o que Nilo Batista denuncia sempre, com lastro
em dados registrados oficialmente, mas que parecem tocar pouco à
sensibilidade dos juristas: há no País, inegavelmente, uma política de
Estado Penal, que se torna aguda se forem somados os números dos
mortos em confronto com a polícia, especialmente nos grandes centros
urbanos20.
33.41. O Brasil encontraBse, portanto, em uma encruzilhada e deve escolher
entre a amplificação dos “controlados pelo sistema” ou a adoção de
estratégias que façam recuar estes números de forma significativa,
mediante procedimentos que evitem a todo o custo a intervenção penal,

20 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida
do Estado brasileiro”, Rio de Janeiro, Contraponto, 2008.

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o processo criminal, a aplicação imediata ou postergada de sanções


penais de qualquer natureza.
33.42. Respondendo ao professor Gabriel Sampaio, da PUC de São Paulo,
que estava na plateia do Seminário, propus que olhássemos com maior
atenção as iniciativas de mediação e justiça restaurativa21.
33.43. Ressaltei, todavia, que não há respostas prontas, mas uma só certeza:
quanto mais encarcerarmos, mais encarceramento será demandado22.
33.44. De toda maneira, aqui está o que interessa. A condenação direta, pelo
procedimento do artigo 278 do PLS 156, com confissão (total ou parcial)
e expressa dispensa de provas, ainda que o consenso opere sobre a pena
mínima cominada, associaBse à política criminal do Estado Penal.
33.45. E a política judiciária?
33.46. Deixando de lado um tanto da discussão sobre ideologias autoritárias e de
garantia, não é possível desprezar a vertente constituída pela pressão sobre
o Poder Judiciário para julgar mais (em quantidade) e mais rapidamente
(celeridade), de sorte a gerir os casos por meio de processos coletivos ou de
medidas padronizadas (ver a “Campanha das Metas” do CNJ).
33.47. A questão problemática, no entanto, surge quando se observa no dia a
dia dos fóruns criminais que a adoção da oralidade nos procedimentos
penais, a partir de 2008, atendendo antiga reivindicação dos juristas
democráticos na esfera penal, “quebrou o ritmo” imposto pela
demanda de aceleração processual (Lei nº 11.719/08, que modificou os
procedimentos no atual Código de Processo Penal).
33.48. Não há como “padronizar” os julgamentos das causas penais que se
submetem ao procedimento probatório para determinar, em cada caso,
a “verdade” dos fatos e assim adjudicar soluções em tese mais justas.
33.49. E com a oralidade, postulada em audiência única (concentração), cada
processo se transforma em um “pequeno júri”, ainda que se trate de
crimes sem maior gravidade. DemandaBse tempo que consome um no
lugar de dois, três ou mais processos.
33.50. O procedimento do Código de Processo Penal reformado em 2008 revelaB
se inadequado ao propósito de atender às Metas do CNJ!

21 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão
do crime, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007. PALLAMOLLA, Raffaella, monografia vencedora do 13º
Concurso de Monografias de Ciências Criminais do IBCCRIM, sob o título “Justiça Restaurativa: da
teoria à prática”, 2009.
22 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade, Rio de Janeiro, Zahar, 2009.

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33.51. O problema não é novo ou original. O profundo processo político de reforma


do Processo Penal na América Latina, em seguida às transições democráticas,
foi estudado pelo Centro de Estudios de Justicia de las Américas (CEJA),
que detectou as dificuldades inerentes à adoção da oralidade.
33.52. Em 2004 participei da publicação coletiva da revista Sistemas Judiciales:
una perspectiva integral sobre la administración de justicia (CEJA, ano
4, nº 7), sob o tema “oralidad y formalización de la Justicia”.
33.53. Já naquela ocasião existia farto material disponível para constatar que as
dificuldades opostas ao processo civil não se equivalem às do processo
penal. Em ambos os casos as questões controvertidas são delicadas.
Ambas as esferas aspiram à “neutralidade” ideológica burguesa que faz
pender a balança em favor do mais forte. Mas o processo penal consegue
ser mais diretamente brutal e, como disse, cobra o preço da submissão
em vida e liberdade.
33.54. Assim, os caminhos da “antecipação de tutela” na seara penal (verdadeiro
nome deste procedimento proposto) refletem a opção por contornar
as dificuldades derivadas da oralidade que, apesar da promessa de
audiência única, alarga sobremodo o tempo de resolução dos processos
criminais e inviabiliza o atendimento das metas de gestão neoliberal das
Justiças em estados periféricos e semiperiféricos.
33.55. A questão está em definir o quanto de compatibilidade existe entre esta
estratégia de política judiciária e as garantias constitucionais do processo
penal e se a força ideológica neoliberal será suficiente para comprimir as
garantias liberais, em uma tensão que decorre de escolhas políticas das
quais não há ninguém a salvo.

4. A “verdade” e o Poder Negocial

34. Falarei da problemática “questão da verdade” no processo penal.


35. Inicio por afirmar que ambos os modelos, acusatório e inquisitório,
reivindicam a verdade como sua “fonte de legitimação”.
36. Mais importante do que tentar determinar o que seja definido como verdade
em ambas as estruturas B até pela razão de que não há consenso a respeito
B registro que há um “uso político” da verdade, nos dois casos, que merece
a nossa atenção e que é por conta desse uso político que é travada a disputa
em torno dos poderes dos sujeitos processuais.

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37. Na obra de Taruffo citada (como em vários de seus outros livros) 23, o
professor italiano irá destacar a crítica dirigida pelo pensamento jurídico
continental europeu ao fato de o processo adversary entregar as provas em
aparente exclusividade às partes.
38. Muito claramente Taruffo relata que os críticos do adversary system
salientam que as manifestações mais “fortemente degenerativas” decorrem
da incapacidade de a atividade das partes conduzir a conhecimentos
“verdadeiros” acerca dos fatos da causa e assinala que por “conhecimentos
verdadeiros” se deve entender “as reconstruções suficientemente aproximadas
à realidade dos fatos que devam ser comprovados” (p. 43 da obra citada).
39. O tema é relevante para nós por aquilo que, em Derecho y Razón24,
Luigi Ferrajoli sublinhará como fundamento da legitimidade do exercício
do poder punitivo, na sociedade democrática contemporânea, tal seja, a
verdade postulada em um processo orientado em direção à verificação
dos fatos penalmente relevantes, por métodos que operem à base do
cognoscitivismo.
40. Esta verdade processual invocada como fonte de legitimidade diferenciará
os modelos inquisitório e acusatório, conforme a visão de Ferrajoli, entre
outros motivos, por não expressar o subjetivismo judicial que, toldado pela
ilusão de uma “verdade real”, supostamente estaria a autorizar o juiz penal
a partir em busca dos elementos que comprovarão no mundo dos fatos a
argumentação de uma das partes!
41. A impossibilidade de uma completa correspondência entre o fato (situado,
pois, no passado, como o nome indica) e a imagem do fato na mente do
juiz, a necessária imparcialidade do julgador, como garante da existência
do próprio processo penal no Estado de Direito, e os bloqueios éticos
à aquisição das informações (proibição das provas ilícitas) separam
rigidamente as estruturas acusatórias das de índole inquisitorial.
42. Ferrajoli, porém, não estreita a crítica, fixandoBa somente em relação aos
modelos que fortalecem a posição do juiz, quer na gestão da prova, quer
no plano da iniciativa para o processo, quando é conformada a imputação
nas diversas etapas da persecução (redação do artigo 384 do CPP antes da
reforma introduzida pela Lei nº 11.719/08).
43. O autor de Direito e Razão aduz que a disputa por legitimidade envolve,
claro, todas as formas de resolução das questões penais que “dispensam”

23 La Prueba B Madrid, Marcial Pons, 2008. La prueba de los hechos, Madrid, Tro[a, 2002.
24 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón:Teoria del Garantismo Penal, 4ª ed., Tro[a, Madrid, 2000, p. 69.

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ou “demitam” a verdade do posto de base ou fundamento da própria


decisão.
44. E, é claro, neste contexto as diversas manifestações de “transação penal”
do Common Law encontramBse no foco da discussão, uma vez que o acordo
entre as partes prescinde da verificação dos fatos em juízo.
45. Este é o ponto de vista dominante na formação jurídica continental europeia
acerca do (inexistente) papel da verdade no processo penal estruturado na
conformidade do acusado à pena negociada.
46. O olhar do Common Law sobre o assunto, todavia, é outro.
47. A começar, Taruffo assinalará que a par da impossível definição unitária
de um modelo adversary, provavelmente o “único conceito ordenador
que se pode considerar exclusivamente típico do adversary system é o da
passividade do juiz árbitro na busca da verdade” (grifo nosso) 25. Em
seguida, porém, revelará o quanto isso não é totalmente “verdadeiro”,
sequer no sistema de justiça norteBamericano.
48. Em linhas gerais, a ideologia dominante no Common Law acerca da verdade
aponta para a crença na “fight theory of truth”, em virtude da qual a mais ampla
oportunidade das partes terem acesso às informações que fundam as suas
pretensões em juízo sempre inspirará o comportamento dos adversários/
litigantes, que assim buscarão a melhor solução para o seu conflito, como
reflexo dessa verdade possível de ser determinada judicialmente em um
“duelo intelectual”.
49. Nisso jogam categorias e crenças próprias deste sistema. Desde a discovery,
ainda que pesando “a disparidade institucional entre o MP e o imputado”
(Taruffo, op. cit., p. 11), mas que por conferir às partes, no preâmbulo do
procedimento, o conhecimento acerca das armas do adversário, persegue
a redução da influência de fatores não derivados da racionalidade jurídica
(limitando o espaço de atuação de uma “sporting theory of justice”), até a
convicção de que a técnica do “cross examination”, como metodologia para
a assunção da prova, viabiliza a produção dessa verdade.
50. O que parece exato nisso tudo é que Common Law e direito continental
europeu, de que somos herdeiros, não falam de uma mesma “verdade”
como fundamento de legitimidade do exercício do poder punitivo.
51. O discurso sobre a “verdade” é distinto em ambos e opera a partir dos
objetivos perseguidos onde estes discursos imperam como expressão da
visão peculiar do mundo que as respectivas sociedades compartilham.

25 El proceso civil..., op. cit., p. 5.

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52. De um lado a verdade como a “reconstrução suficientemente aproximada


à realidade dos fatos”; de outro a verdade como “dominada” pelas partes,
que dela fazem o melhor uso, quer em virtude de seus interesses expressos
em juízo, quer pela técnica do “cross examination”, sem, contudo, definiBla!
53. Em “A verdade e as formas jurídicas” 26 Michel Foucault advertia para o
“discurso como esse conjunto regular de fatos linguísticos em determinado
nível, e polêmicos e estratégicos em outro” (grifo nosso).
54. É nesse plano “estratégico” que deslizam os dois discursos e suas derivações.
55. Sem dúvida que por tudo o que mencionei, a opção pelas soluções negociadas
de casos criminais haveria, ela própria, de adaptarBse aos discursos
legitimadores que circulam no “mundo da vida”. De outro modo, a “transação
penal” perderia seu status de técnica aceitável de resolução dos casos penais.
56. Por último, relembro que na obra de Foucault que mencionei, ao relatar
a caminhada do “inquérito”/busca da verdade na constituição da técnica
do poder penal por excelência, o filósofo separou também rigorosamente
os métodos de solução de litígios entre os que buscam a composição do
conflito (ver o mito da história da contestação entre Antíloco e Menelau B
Conferência 2) e os que tem por base a verdade.
5 – O processo como “jogo”.
57. Em minhas aulas tenho dito que os modelos acusatório e inquisitório tocam à
busca da verdade e que as soluções penais consensuais tratam de coisa diversa
e por isso não se enquadram, diretamente, em quaisquer desses modelos.
58. Desenvolvo um pouco mais, mas ainda de maneira tópica, uma das questões
que tenderá a atravessar o processo penal, em sua versão negocial. TrataB
se da “ação estratégica” das partes em busca de persuadir o adversário a
compor e de como os instrumentos legais e as práticas de “convencimento”
esbarram em uma tradição inquisitória forjada sobre a ideia da verdade.
59. Com efeito, não há novidade em se compreender o processo guiado pelo
princípio dispositivo como um “jogo”.
60. Em 1950, Piero Calamandrei, professor na Universidade de Florença,
escreveu seu famoso artigo denominado “O processo como jogo”, em
homenagem ao professor Francesco Carnelu[i27.
61. Naquela oportunidade e, como quase sempre, muito além de seu tempo,
Calamandrei propunha investigar o processo civil orientado pelo princípio
dispositivo não por critérios estritamente abstratos, consagrados nos

26 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, Nau, 2005, p. 9.


27 CALAMANDREI, Piero. Il processo come giuoco, Rivista di Diri[o Processuale, vol. V, parte I,
CEDAM, Padova, ano 1950, p. 23 – 51.

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“manuais escolásticos”, conforme rígidos esquemas que raramente aderiam


à realidade forense!
62. Interrogar o cotidiano das atividades processuais e perceber nas ações das
partes seus objetivos imediatos e também os indiretos, e as táticas para
alcançáBlos, dizia muito do complexo em que de fato o processo se constitui
e, a partir deste conhecimento seria possível ordenar medidas e prevenir
danos em busca de uma jurisdição dirigida à Justiça.
63. Assim, o passo inicial da investigação do processualista italiano foi dado no
sentido de interrogar as partes acerca de seu objetivo final. A resposta, de
que Carnelu[i irá se desagradar ante sua própria concepção de processo e
sua crença moral nas atitudes humanas e nos (bons) propósitos dos “atores”
processuais é sem dúvida esta: as partes buscam a vitória!
64. Segundo este ponto de vista o processo não é o instrumento para
necessariamente conceder a vitória a quem tem razão (“para obter justiça
não basta ter razão”). Pelo enfrentamento de ações guiadas por objetivos
distintos e praticadas para tornar realidade estes objetivos, o processo
se encerra em uma sentença que, segundo Calamandrei, “não é uma
aplicação automática das leis aos fatos”, mas bem o resultado de “uma
competição renhida”, em que não prevalecem apenas as boas razões, mas
principalmente “a habilidade técnica para fazêBlas valer”.
65. Pelo menos com duas décadas de antecedência Calamandrei antecipouBse
a Carnelu[i para destacar na sentença “o ato de eleição (escolha) pelo juiz”
da versão prevalecente entre as opostas pelas partes neste duelo intelectual
em contraditório.
66. Como disse, não há novidade alguma nisso, mas com muita frequência a
compreensão do novo passa por revisitar o antigo e, quiçá, como adverte
Boaventura de Souza Santos, “descobrir com atraso o que sabíamos quando
éramos considerados atrasados”!
67. E a redescoberta aqui diz com táticas e estratégias que as partes empregam
para obter um resultado processual nem sempre condizente com aquilo
que a doutrina processual penal acostumouBse a definir como ponto de
encontro das forças em movimento no processo: a verdade!
68. Quando o autor se apresenta em juízo no começo do processo o faz por
meio da petição inicial, que no relato dos fatos e em sua estruturação geral
contém o “desenho estratégico”, em nível probatório, daquela que deverá

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ser a caminhada dele, autor, em busca de uma sentença procedente28. É


natural que seja assim, pois não se concebe que o autor esteja em juízo
desacreditando em sua própria tese.
69. E, claro, em um processo penal acusatório ou inquisitório, cuja premissa é
de que a sentença esteja apoiada em provas dos fatos penalmente relevantes,
sempre será possível detectar distorção na seleção dos meios probatórios
introduzidos pelas partes ou pelo juiz, uma vez que todos estes sujeitos,
conforme estejam previamente comprometidos com alguma hipótese (o
juiz, naturalmente, no procedimento de matriz inquisitorial), irão eleger
as provas que em sua opinião habilitam a justificar a tese defendida ou
eleita. Fugir disso significa buscar uma Justiça para além das possibilidades
(características) humanas!
70. No marco do processo penal orientado pela produção de provas, a
estratégia da acusação em um primeiro momento estará voltada, portanto,
à demonstração da fiabilidade da imputação. As provas serão propostas
com este objetivo e, sendo admitidas, as provas aportam no processo para
“instruir” o juiz consoante “a língua falada” pela parte autora. O que não
é contraditório com o convencimento, pelo Ministério Público, ao longo
do processo, de que a tese inicialmente esposada é inviável, pois está “em
contradição” com a prova produzida ao longo da instrução. Por isso a
evidente liberdade de o Ministério Público abandonar a versão acusatória e
postular a absolvição do acusado.
71. Em linhas gerais, esta é a legitimação democrática que, com algum esforço,
é possível extrair do garantismo penal, fundado em uma filosofia analítica
e em seu entendimento “político” sobre o papel da verdade no processo
penal, com as amarras que eticizam o processo, em busca de imunizáBlo
contra os abusos inquisitoriais (inércia judicial, proibição das provas ilícitas,
respeito à dignidade do acusado na relação com as atividades probatórias
etc.).
72. Não há dúvida de que a distância entre ficção jurídica e realidade, mesmo
no marco do Garantismo, é abissal e se alarga em um país como o nosso,
em que a defesa da enorme maioria dos acusados depende de Defensorias
Públicas que ainda não são prioridade para os governantes, ou mesmo da
boa vontade da advocacia dativa. A garantia da paridade de armas converteB
se apenas em mais um “chavão teórico”, presente nos novos “manuais

28 ANDRÉS IBAÑEZ, Perfecto. Valoração da prova e sentença penal, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006,
p. 39.

152
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escolásticos”, porém quase desaparecida da realidade do Sistema de Justiça


Criminal.
73. Tal distorção, todavia, acaba incrementada na Justiça Penal de caráter
negocial.
74. É que o novo horizonte estratégico, neste caso, não está ditado pela seleção
de provas para influir no convencimento do juiz.
75. Não há provas neste contexto! Elas estão banidas do processo negocial,
não porque sejam inúteis ou irrelevantes, mas pela razão de dificultarem os
acordos probatórios!
76. Em sua crítica dura ao debate, ao seu juízo supérfluo do ponto de vista
científico, sobre se há sentido em falar em um princípio acusatório, Montero
Aroca sublinha que a “mítica” que envolve o adversary nos Estados Unidos
é desmentida diariamente pelo apelo a um procedimento não adversarial,
o plea bargaining, em que se empenham tão ferozmente todos os envolvidos,
incluindo o juiz e o próprio advogado do réu, que pressionam este último a
“aceitar” o acordo e assim dar conta do maior número de casos possível29.
77. A partir da ideiaBchave do modelo negocial, de que partem todos, incluindo juiz
e defensor, de que “o acusado se presume culpado” 30, os sujeitos processuais
empenhamBse decididamente a convencer o réu a “acordar” (!?).
78. E nisso estão ordinariamente baseadas as estratégias de convencimento
que, já em 1950, Calamandrei advertia, focalizando o uso tático (lateral) das
medidas cautelares. Em outras palavras: em um contexto de “jogo” em que
o resultado não depende de provas, mas da persuasão do adversário para
forçáBlo a aceitar o acordo, o uso das providências cautelares desviadas da
função de proteção processual revelaBse uma arma extraordinária!
79. E aí eu alerto não somente para o emprego das cautelares na investigação, para
onde as atividades processuais são decididamente deslocadas (antecipadas),
em um ambiente de menor influência da defesa e menos permeável ao
contraditório, mas também para a chamada Blitz/krieg dos procedimentos
cautelares (Calamandrei), esgrimida como meio de coerção psicológica.
80. Bernd Schünemann irá destacar o “efeito hidra” das cautelares, no
processo penal alemão, como fonte de estímulo aos acusados a aceitarem a
“conformidade”, o acordo penal!31

29 La inutilidad del llamado principio acusatorio para la conformación del proceso penal, obra citada,
p. 81.
30 Idem, p. 83.
31 SCHÜNEMANN, Bernd. La reforma del proceso penal, Madrid, Dykinson, 2005, p. 33.

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81. O sufocar do investigado, na fase preliminar, com adoção de medidas


cautelares que retiram dele suas fontes de renda e sobrevivência e, não
raro, a própria liberdade, não apenas serve para angustiáBlo, sob o ângulo
psicológico, e enfraquecêBlo, tornando factível e “interessante” o acordo,
como funciona ainda como uma espécie de “radar das infrações penais
desconhecidas”, que seriam recolhidas por esta “rede” de providências
cautelares de modo bastante simétrico às investigações inquisitoriais do
procedimento eclesiástico da Idade Média!
82. Não por acaso o comportamento processual que se espera do acusado, na
negociação penal, igualmente remete à Idade Média: a confissão!
83. E como escapar à conformidade, ao acordo, em condições tão desfavoráveis?
84. Em 2009, o Conselho Nacional de Justiça levantou dados sobre a
correspondência entre prisões cautelares e as que se originam em
condenação. O quadro do CNJ fala por si e pode ser consultado no link.32
85. Schünemann sublinhará, na Alemanha, que em 1980 47,5% dos presos
provisórios não eram condenados posteriormente33. E especificamente
sobre os acordos penais, o professor alemão referirá que “substituíram a
investigação da verdade material a ser realizada em um juízo oral, como
base da sentença, pelo consenso do participante... mediante a submissão
dele ao marco de uma sentença acordada previamente” 34.
86. Este método abarcava na Alemanha de um quarto a um terço dos casos
penais, em fins dos anos 80. Em pelo menos a metade deles havia prisão
provisória35.

6. Considerações finais

Este é, pois, o cenário em que trava a disputa pelo exercício do Poder


Negocial no Brasil. Advertir para isso é também, e principalmente, função do
jurista. TrataBse de compromisso com o Estado de Direito e, senão por todas as
razões que justificam a homenagem a partir da biografia exemplar de Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho, essa, a sua persistente batalha pelo Estado de
Direito já recomendaria ser a obra o veículo do meu pensamento.
Fica aqui também meu fraternal abraço!

32 h[p://www.ciddh.com/archivos/pdf8597741916.ppt#326,1,Slide%201, consultado em 07 de setembro


de 2010.
33 SCHÜNEMANN, obra citada, p. 32.
34 Idem, p. 44.
35 Ib idem, p. 45.

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156
A Defensoria Pública e o
Direito Processual Penal brasileiro

1. Introdução

Em 07 de outubro de 2009 foi editada a Lei Complementar nº 132, que alterou


dispositivos da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, responsável
pela organização da Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e pela
prescrição de normas gerais para organização da Defensoria Pública nos Estados
da Federação.
Sob a ótica da nova lei e dos objetivos declarados para a Defensoria Pública
justificaBse refletir sobre alguns importantes aspectos do processo penal brasileiro.
CompreendeBse que seja assim por muitas razões: em primeiro lugar
porque é inegável que a LC 132 veio fortalecer o sistema de assistência judiciária
estatal no contexto de um país de dimensões continentais e distorções de renda
e de qualidade de vida ainda bastante significativas, em que a judicialização de
pretensões próprias das aspirações de um estado do bemBestar social desafia
dificuldades de acesso à justiça, inaceitáveis para os padrões civilizados; em
segundo lugar porque a vida e a liberdade das pessoas dos grupos e classes
sociais mais desfavorecidos não podem ficar à mercê das políticas de índole
punitiva, levandoBse em consideração o fato indiscutível de que a “promessa
constitucional” de realização de um estado de bemBestar social frustrouBse com a
reviravolta neoliberal da década de 90 do século passado, e uma das expressões
mais claras disso consistiu na multiplicação do encarceramento de pessoas, nos
últimos dez anos, a comprovar empiricamente que há um “Estado Policial”
embutido na democracia liberal.
A correia de transmissão que faz passar a energia gerada pela tensão
entre as promessas e ações em busca de dignidade para todos e a reação das
forças econômicas e políticas que sustentam, com base em uma ideologia do
individualismo possessivo, que o paraíso na terra depende das conjunções
favoráveis do mercado, é afetada pelo invariável recurso de se valer do sistema
de justiça criminal para dar conta das disfunções que surgem, transformando
a Justiça Criminal em locus privilegiado de luta, que não raro colhe de um
lado (dos acusados) uma multidão de pessoas às quais se nega em concreto a

157
E! "#$%# &' ()$*+&*-.# / 1ª P'$"0

possibilidade de acesso a meios e recursos para enfrentar por conta própria as


dificuldades reais e do outro encontra o aparato estatal de repressão, que se
consolidou ao longo de dois séculos e que se aperfeiçoou na tarefa de funcionar
por fora dos limites que são reconhecidos como próprios do Estado de Direito.
A tradição inquisitorial do processo penal brasileiro revelaBse neste
aparato, cujas ações ainda são dirigidas prioritariamente contra os que estão
na base econômica da sociedade ou integram grupos frágeis assim definidos
historicamente. E mesmo encerrado o ciclo das ditaduras, com a Constituição
da República de 1988, esta tradição sobrevive da permanência de uma cultura
inquisitorial que se vale de tudo: desde leis manifestamente inconstitucionais,
que violam o direito de defesa e a garantia do contraditório, a práticas policiais e
judiciais igualmente em desarmonia com os direitos fundamentais.
Por isso uma instituição como a Defensoria Pública não apenas é necessária
no Brasil, mas é verdadeiramente essencial, se o que se quer é trilhar o caminho
do Estado de Direito e da universalização dos meios para que se assegure a
todos a condição de vida digna que está na base de nosso pacto social (artigo 1º,
inciso III, da Constituição da República).

2. O processo penal inquisitorial no Brasil de hoje

Não obstante a boa vontade de parte da doutrina processual penal brasileira


e o diligente trabalho de revisão da jurisprudência em matéria penal, levado a
cabo pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos sete anos, a verdade nua e crua
é que ainda se vive por aqui sob a égide de um processo penal inquisitorial,
mesmo que, à semelhança do modelo alemão, se possa chamáBlo de “processo
penal inquisitorial reformado”.
Não é difícil perceber os sinais inquisitoriais de nosso processo penal,
malgrado a reforma processual penal de 200836.
Com efeito, as bases para um processo penal acusatório dependem da
estruturação de procedimentos em que as principais funções processuais –
acusar, defender e julgar – estejam escrupulosamente distribuídas entre sujeitos
processuais distintos: acusador, acusado e seu defensor e juiz.
A estrita diferenciação das funções obedece à lógica própria do Estado de
Direito de que o exercício do poder punitivo sofre condicionamentos e somente
é considerado válido quando observa os limites constitucionais e legais que

36 Leis nº 11.689/08, 11.690/08 e 11.719/08.

158
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orientem a atuação estatal na busca de uma condenação conforme preceitos


éticos que alicerçam a vida em sociedade.
Assim, o propósito de reprovação das condutas criminosas não se impõe
por si só. Punir após a determinação da “verdade” da responsabilidade penal do
acusado não está acima da verificação do vínculo entre os meios (processuais)
e o respeito à dignidade da pessoa do próprio acusado, independentemente da
acusação que pese contra ele.
Este contorno ético, verdadeira fronteira axiológica, dentro da qual as
atividades das partes têm lugar para determinar a responsabilidade penal do
acusado, inibe qualquer “pretensão” de o juiz determinar o objeto do processo,
quer para orientar o exercício futuro da ação penal (portanto, vedaBse a atuação ex
officio na fase de investigação), quer para fazer nascer o processo (como dispunha
a redação primitiva do artigo 531 do Código de Processo Penal, reformado pela
Lei nº 11.719/08), quer ainda para modificar a própria acusação, alterandoBlhe o
objeto com autonomia em face do Ministério Público (preceito anterior do artigo
384 do Código de Processo Penal, também reformulado pela Lei nº 11.719/08).
O caráter inquisitorial do processo penal não está apenas na definição dos
limites da acusação. Talvez com maior sutileza percebeBse a fusão das principais
funções processuais na figura do juiz, característica do modelo inquisitório, na
atuação judicial em tese dirigida à proteção do processo (medidas cautelares
decretadas sem provocação das partes) e na denominada gestão da prova,
a respeito da qual com tanta ênfase Jacinto Nelson de Miranda Coutinho se
pronuncia.
O poder instrutório, tal seja, a capacidade de o juiz produzir provas não
requeridas pelas partes, é da essência do modelo inquisitorial, pela estrutura
mental que é peculiar a esta atividade: a atuação probatória consiste em
subministrar meios de demonstração da existência de fatos que conferem suporte
às teses jurídicas (hipóteses) apresentadas pelas partes, acusação e defesa.
TemBse aí, pois, o juiz “propondo” a si mesmo meios de prova para se
convencer de algo que não foi determinado por ele, que sequer podia fazer
isso. São meios de provas olvidados pelas partes, mas que ao olhar do juiz
são imprescindíveis para demonstrar, em regra, a responsabilidade penal do
acusado, confirmandoBse a hipótese acusatória1.

1 O fato de o processo penal brasileiro ser orientado pela presunção de inocência, como disciplina o
artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República responde sem delongas à questão óbvia: se há
alguma dúvida ao fim da instrução probatória, esta se resolve em favor do acusado, dispensandoBse
qualquer outra atividade probatória que, para reverter este quadro, precisaria estar comprometida
com a tese acusatória.

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O reformado artigo 156 do Código de Processo Penal, alvo da Lei nº


11.690/08, em sua nova versão, preserva em mãos do juiz o poder de produzir
provas de ofício, ainda antes do início do processo:

“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo,


porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção
antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando
a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir
sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre
ponto relevante.”

O dia a dia forense sugere a dispensa de qualquer pesquisa empírica para se


ter por demonstrada a satisfação com que, na maioria das vezes, os magistrados
acolhem de boaBfé estes poderes instrutórios.
Karl Heinz Gössel chamará atenção para isso também na Alemanha,
alertando para a máxima do senso comum inquisitorial, em razão da qual se
supõe que “se a verdade deve ser investigada [no processo], verdade que, por
suposto, é indivisível, resulta natural confiar somente ao tribunal da causa a
busca da verdade” 2. O citado autor chama as inclinações inquisitoriais dessa
natureza de “extravios funestos”!
A naturalidade com que os magistrados incorporam esta função probatória
explica a grande rejeição da corporação em relação à instituição do juiz das
garantias, proposta nos artigos 14 a 17 do Projeto de Lei do Senado nº 156 (novo
Código de Processo Penal), para atuar na salvaguarda dos direitos fundamentais
dos imputados:

“A criação da comissão da AMB para analisar o projeto de lei da


reforma do Código de Processo Penal (CPP) foi destaque na edição
desta quartaBfeira (28), na editoria Direito e Justiça, do Jornal do
Commercio do Rio de Janeiro. O presidente da AMB, Mozart
Valadares Pires, criticou a implementação do juiz de garantias,
que segundo o novo CPP, será responsável pelo controle dos direitos

2 La Defensa en El Estado de Derecho y las limitaciones al Defensor, em El Derecho Procesal Penal en


El Estado de Derecho, Tomo 1, Buenos Aires, Rubinzal, 2007, p. 61.

160
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fundamentais investigados e pela legalidade da investigação


criminal.”3 [grifo nosso]

Alberto Binder afirma que em essência o inquisitorialismo é uma cultura


e uma prática4. E é assim que se deve examinar o processo penal concreto, que
afeta a vida das pessoas para além das definições teóricas hegemônicas.
A distribuição rigorosa das principais funções processuais, que marca o
modelo acusatório de processo, não é fruto de capricho, inocência teórica ou
generosidade para com quem quer que seja.
Em realidade, a conquista histórica de que resultará este modelo, de definição
tão imprecisa, como salienta Mirjan Damaska5, comprova que o afastamento
do juiz da função acusatória operou na lógica pela qual o magistrado passa a
cumprir outras importantes funções, nitidamente distintas da acusação, mas
que estão longe de significar inércia ou paralisação.
Com efeito, o deslocamento da atuação judicial derivou do reconhecimento dos
excessos notados no funcionamento cotidiano do Sistema de Justiça Criminal (que
incorpora a Polícia), a exigir uma figura com autoridade para coibir estes excessos e
evitar, tanto quanto possível, o uso indevido da máquina judiciária criminal.
O juiz do modelo acusatório é um juiz de garantias o tempo todo!
Na primeira etapa da persecução criminal caberá a ele preservar as liberdades
públicas das pessoas envolvidas, condicionando a intervenção dos órgãos
estatais de persecução no âmbito destas liberdades à prova da necessidade e
utilidade da compressão dos direitos e, mesmo assim, definindo restritivamente
(em profundidade e extensão) as fronteiras da intervenção (prisão, interceptação
das comunicações telefônicas, busca e apreensão etc.).
No segundo momento caberá a este juiz avaliar se a acusação realmente
tem uma causa penal. Em outras palavras, se o Ministério Público tem justa
causa para acionar o acusado, se há base para supor verídica a imputação, se ela
é viável, se pode ser provada com os meios de prova propostos pela acusação e,
finalmente, se a aquisição das informações que configuram a alegada justa causa
obedeceu aos rigores constitucionais e legais.
E na terceira etapa o juiz avaliará a prova produzida pelas partes, velando
para que estejam em condições de igualdade e paridade de armas, pois que,

3 Extraída do sítio eletrônico da AMB em 01 de agosto de 2010: h[p://www.amb.com.br/index.


asp?secao=mostranoticia&mat_id=21103.
4 Introdução ao Direito Processual Penal, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2003.
5 Las Caras de La Justicia y El Poder del Estado: análisis comparado del proceso legal. Editorial
Jurídica de Chile, Santiago, 2000.

161
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conforme salientou Karl Heinz Gössel, “um Estado obrigado pela vigência
jurídica e justiça não pode entregar o imputado à mercê unicamente da
superioridade evidente dos órgãos de persecução penal” 6.
Ora, quando a lei contempla poderes instrutórios a cargo do juiz e, além
disso, a prática do foro reafirma a postura política dos magistrados, em face da
reforma proposta no PLS 156 para eliminar a mencionada iniciativa probatória,
visando com a ação política preservar estes poderes em prol do conhecimento
de uma inatingível (e desmoralizada epistemologicamente) “verdade real”, a
existência de uma defesa concreta no processo penal, que funcione como óbice à
sistemática violação de direitos e garantias processuais penais dos mais débeis,
que formam a imensa maioria dos destinatários do processo penal, é uma
exigência do Estado de Direito para o qual, neste contexto, a Defensoria Pública
revelaBse instituição de defesa da democracia.
RessalteBse que a perseverante prática inquisitorial em regra apóiaBse na
boaBfé e nas boas intenções dos magistrados, que também se vêem às voltas com
dificuldades concretas aparentemente insuperáveis. Não são raros os relatos de
juízes que estão impedidos de trabalhar porque o Ministério Público não dota
de promotores de justiça em número suficiente as Comarcas, ou até porque a
este número insuficiente de promotores de justiça somaBse o pequeno plantel de
defensores públicos, o que obriga estes profissionais a se desdobrarem, deixando
apenas nas mãos dos juízes a condução integral dos processos.
Do ponto de vista psicológico, compreendemBse assim as práticas e até
determinada jurisprudência, que tende a preservar a validade de processos
penais que sem dúvida alguma são nulos.
Como pode um juiz julgar com imparcialidade, quando se vê solitário, na
sala de audiências, em um processo criminal, premido este juiz pelas exigências
estatísticas dos órgãos de controle (corregedorias e Conselho Nacional de
Justiça), a ter de ser, simultaneamente, acusador, defensor e juiz?
Do somatório disso que constitui o cotidiano dos julgamentos criminais
cristalizaBse, em grande parte, a cultura inquisitorial: por contingência ou
convicção muitos juízes criminais não atuam como juízes das garantias, conforme
o modelo acusatório, e terminam por consagrar o modelo inquisitorial.
A tudo não se deve deixar de acrescentar a pressão que a opinião pública
com alguma freqüência exerce sobre os juízes, em busca da punição “rápida e
exemplar” dos criminosos. No seio da mídia que cobre e forma esta “opinião

6 Op. cit., p. 62.

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pública” domina a ideia de que o processo é inimigo da punição. E entre todos,


são os Defensores os inimigos públicos nº 1!

3. O Defensor Público e o processo inquisitorial: a defesa


necessária em busca do modelo acusatório

A partir do momento em que a consciência democrática ganha vida


e passa a exigir tomada de posição no processo penal brasileiro, contra as
práticas autoritárias inquisitoriais, a própria concepção do que representa o
processo penal acusatório irá jogar papel decisivo na delimitação das atividades
defensivas.
Assim é que para a arquitetura normativa constitucional, a “planta” do
processo penal sobre a qual os “operários” trabalharão cotidianamente, em
investigações e processos, o eixo normativo é constituído pela presunção de
inocência, definida no artigo 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Toda a dinâmica processual penal deve operar conforme a lógica da
presunção de inocência. A investigação criminal há de respeitar o patrimônio
de direitos da pessoa investigada e as medidas incidentes sobre seus direitos
fundamentais são excepcionais. Estas medidas somente hão de ser providas
quando estritamente necessárias à formação da justa causa e após a indispensável
ponderação entre os interesses jurídicos afetados pela reclamada intervenção e
os objetivos procedimentais perseguidos. Não se pode tomar provisoriamente
do suspeito ou investigado bem da vida que não lhe seria desapropriado na
hipótese de ser acusado e condenado. É vedada a antecipação da tutela penal
consistente em qualquer das consequências de uma condenação penal: prisão,
limitação da liberdade de alguma outra maneira e perda de disponibilidade
sobre os próprios bens.
E será assim também no que concerne ao processo.
Com isso, o juiz não tem iniciativa em âmbito cautelar, salvo para resguardar
a liberdade do imputado, indevidamente atingida por ato de autoridade, bem
como o magistrado não dispõe de iniciativa para o processo, quer no que toca a
determinar seu início, quer no que concerne à imputação e tampouco no que se
refere à propositura dos meios de prova.
A presunção de inocência atua igualmente como salvaguarda do imputado
(investigado ou acusado), ao fazer recair sobre a acusação o ônus da prova. Cabe
ao Ministério Público demonstrar que o acusado é penalmente responsável pela

163
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infração que atribui ao acusado na denúncia, devendo arregimentar os meios de


prova que possam cumprir esta função.
Na tensão entre a “estrutura normativa acusatória” e o cotidiano
predominantemente inquisitorial de nosso processo penal é exatamente o eixo
da presunção de inocência o aspecto mais afetado pelas energias autoritárias.
Certamente por isso Claus Roxin não tem dúvida em definir a função do
Defensor no processo penal como: “garante jurídicoBconstitucional da presunção
de inocência para o imputado” 7.
E a defesa da presunção de inocência depende, instrumentalmente, de
serem assegurados o direito de defesa e a garantia do contraditório, previstos no
artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República.
Ao desavisado, pois, pareceria estranho ver a LC 132/2009 instituir o artigo
3º B A, para deduzir, entre os objetivos da Defensoria Pública, a tarefa de velar pela
“garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório”.
Aos que conhecem processo penal, mas não sabem o endereço do fórum
ou das delegacias de polícia, a previsão normativa padeceria de um estranho
pendor por repetir a máxima constitucional.
Infelizmente, mesmo na academia (e principalmente aí) há os que vivem
em um mundo apartado da experiência cotidiana, novos paleopositivistas que,
por receio do significado pejorativo da expressão, buscam abrigo em uma das
múltiplas facetas do neoconstitucionalismo, entrincheirados na retórica que em
passado recente era chamada de redoma.
Aos que vivem as dores experimentadas por acusados presos em condições
insalubres, muitas vezes por força de decisões carentes de fundamentação, e que
se vêem imbuídos da missão de lutar pela liberdade dessas pessoas, enfrentando
os prejuízos e preconceitos que dão forma a um moderno direito penal do autor
(vide o caso dos processos contra acusados de tráfico de drogas), a reafirmação
do preceito constitucional como objetivo da Defensoria Pública em verdade é a
arma da luta civilizada que podem travar, como Defensores Públicos, em busca
de... civilização!
Ao se assumir teoricamente que o papel da Defesa no processo penal
consiste em tutelar a presunção de inocência e se definir, no relevante plano
normativo de uma Lei Complementar (à Constituição da República) que a
Defensoria Pública se orienta à defesa da “ampla defesa e do contraditório”, as

7 Presente y futuro de la defensa en el proceso penal del Estado de Derecho, in Pasado, presente y
futuro del Derecho Procesal Penal, Rubinzal, Buenos Aires, 2004, p. 39.

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perspectivas de transformação do processo penal de inquisitório para acusatório


multiplicamBse.
Em verdade e para além da mera retórica ufanista, têmBse aqui as
ferramentas para erradicar decisões dos tribunais que, prestando inconsciente
homenagem ao passado ditatorial, reproduzem velhos jargões, muitas vezes
elevados à condição de enunciados jurisprudenciais, que não sobreviveram em
tese à Constituição de 1988, mas que ainda assim continuam sendo invocados
pelos tribunais, certamente sem a real percepção do significado autoritário que
trazem embutido.
Exemplo disso pode ser traduzido no verbete nº 523 das Súmulas do
Supremo Tribunal Federal:

“NO PROCESSO PENAL, A FALTA DA DEFESA CONSTITUI


NULIDADE ABSOLUTA, MAS A SUA DEFICIÊNCIA SÓ O
ANULARÁ SE HOUVER PROVA DE PREJUÍZO PARA O RÉU.”

Muito provavelmente os julgadores não se deram conta de que este


verbete entrou em vigor dez dias antes de o AI 5 completar o primeiro aniversário
de sua nefasta existência (Sessão Plenária de 03/12/1969)! E que as razões de um
e outro eram complementares, em perfeita harmonia com o Brasil da época.
Ao não se prestigiar a ampla defesa – e tolerar, portanto, a condenação
fundada em processo em que as alternativas de resistência à imputação sofreram
reconhecida limitação por obra do defensor – o Supremo Tribunal Federal reforça
a resistência à cultura acusatória, que deveria incentivar.
Vale aqui citar a título de exemplo a decisão proferida pela Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal, em 24 de novembro de 2009, em habeas corpus (nº
97413/SP) da relatoria do Ministro Dias Toffoli:

Ementa

EMENTA Habeas corpus. Processual penal. Improcedência da


alegação de deficiência técnica da defesa prévia apresentada pelo
defensor dativo. Prejuízo não demonstrado pelos impetrantes.
Incidência da Súmula nº 523 do STF. Precedentes da Corte. 1.
A alegação de deficiência técnica da defesa prévia apresentada
pelo defensor dativo não encontra respaldo nos autos, uma vez
que os impetrantes não lograram demonstrar eventual prejuízo
causado ao paciente de modo a justificar a concessão da ordem.

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2. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a nulidade por


de!ciência na defesa do réu só deverá ser declarada se comprovado
o efetivo prejuízo. Esse entendimento está, ainda, preconizado na
Súmula nº 523/STF, que assim dispõe: “No processo penal, a falta
da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua de!ciência só o
anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. 3. Habeas corpus
denegado. [Itálico nosso]

Decisão

A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto


do Relator. Unânime. Presidência do Ministro Carlos Ayres Bri[o.
1ª Turma, 24.11.2009.

A mudança de cenário depende muito, e fundamentalmente, da Defensoria


Pública.
Em um contexto adverso, em que o domínio da cultura inquisitorial é reforçado
pelo modo como os meios de comunicação lidam com a questão criminal, não
há dúvida de que o respaldo legal fortalece a posição da Defensoria Pública, no
cumprimento de uma missão que se reputa essencial ao Estado de Direito, tendo em
mira o objetivo maior de assegurar a dignidade de todas as pessoas.
Assim, se por um lado ainda são visíveis as marcas inquisitoriais, a atuação
de Defensores Públicos nos tribunais superiores têm sido responsável por
acelerar o processo de “modernização acusatória” de nosso processo penal.
Para ilustrar vale a citação do acórdão, proferido em grau de repercussão
geral, em julgamento realizado em 19 de novembro de 2009, em processo da
relatoria do Ministro Cezar Peluso, em que se defendia o emprego, exclusivamente
em benefício da defesa, de prova obtida mediante gravação de conversas:

RE 583937 RG-QO/RJ - RIO DE JANEIRO


REPERCUSSÃO GERAL POR QUEST. ORD. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. CEZAR PELUSO
Julgamento: 19/11/2009
Publicação
REPERCUSSÃO GERAL B MÉRITO
DJEB237 DIVULG 17B12B2009 PUBLIC 18B12B2009

166
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EMENT VOLB02387B10 PPB01741


Parte(s)
RECTE.(S): FERNANDO CORREA DE OLIVEIRA
ADV.(A/S) DPEBRJ B CLÓVIS BOTELHO
ADV.(A/S) : DPEBRJ B ADALGISA MARIA STEELE MACABU
RECDO.(A/S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO
PROC.(A/S)(ES): PROCURADORBGERAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Ementa

EMENTA: AÇÃO PENAL. Prova. Gravação ambiental. Realização


por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade.
Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso
extraordinário provido. Aplicação do art. 543BB, § 3º, do CPC. É
lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um
dos interlocutores sem conhecimento do outro.
Decisão: O Tribunal, por maioria, vencido o Senhor Ministro
Marco Aurélio, reconheceu a existência de repercussão geral,
reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da admissibilidade do
uso, como meio de prova, de gravação ambiental realizada por um
dos interlocutores e deu provimento ao recurso da Defensoria
Pública, para anular o processo desde o indeferimento da prova
admissível e ora admitida, nos termos do voto do Relator. Votou
o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, justificadamente,
o Senhor Ministro Eros Grau e, neste julgamento, o Senhor Ministro
Carlos Bri[o. Plenário, 19.11.2009. [Negrito nosso]

4. Considerações finais

VerificaBse assim que há muitas razões, pois, para a Cidadania festejar a


aprovação da Lei Complementar nº 132/2009!
Para os que militam no processo penal, independentemente de serem
Defensores Públicos, entre muitos motivos de peso para alegrarBse com a LC
destacaBse a afirmação jurídica de um instrumental, posto em forma de missão
da Instituição, que tende a balançar a agulha do Sistema Criminal em direção ao

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modelo acusatório e assim harmonizar o trato cotidiano das causas penais aos
mandamentos constitucionais de tutela da dignidade da pessoa humana.
O longo caminho a ser percorrido por certo encontra Defensores Públicos
com consciência de suas responsabilidades e preparados para o embate
democrático, que, em outras palavras, nada mais é do que a luta por Justiça
Social.

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168
Afrânio Silva Jardim: lecionar pelo exemplo

Perfeição demais
Me agita os instintos
Quem se diz muito perfeito
Na certa encontrou um jeito
Insosso!
Pra não ser de carne e osso
(Carne e Osso – Zélia Duncan)

A homenagem que os coordenadores desta obra prestam ao professor


Afrânio Silva Jardim é também, sem dúvida alguma, homenagem à retomada
dos estudos de direito processual penal no Brasil em uma perspectiva crítica,
pósBregime militar.
E neste contexto entendo que se faz necessário distinguir o papel do
homenageado, cuja singularidade representa muito para várias gerações que se
inspiraram nele e o tomaram e ainda o tomam, com muita justiça, como exemplo
de postura política no cenário da docência e das práticas jurídicas no âmbito do
Sistema Penal.
Afrânio certamente não é “chefe de escola” jurídica.
Ana Lúcia Sabadell lembra que por ‘escola jurídica’ há de se entender “um
grupo de autores que compartem determinada visão sobre a função do direito,
sobre os critérios de validade e as regras de interpretação das normas jurídicas
e, finalmente, sobre os conteúdos que o direito deveria ter” 1.
Não se pode afirmar que, sob parâmetros tão estritos – e metodologicamente
acertados – Afrânio Silva Jardim tenha fundado uma Escola de Direito Processual
Penal.
Reitero, todavia, que quem de algum modo experimentou a realidade
do funcionamento do Sistema de Justiça Criminal no Brasil, nas três últimas
décadas, não pode negar ao homenageado a importância decisiva do seu
pensamento na formação de um espírito crítico, moldado com a sensibilidade

1 SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito,
4ª ed., São Paulo, RT, 2008, p. 21.

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de quem viu “os anos de chumbo” da ditadura militar e compreendeu o papel


histórico desempenhado pelos profissionais do Direito neste palco.
Segundo penso, não há dúvida de que a liderança no plano das ideias e a
militância na defesa dos direitos humanos constituem uma das mais importantes
dimensões do mundo intelectual. Muitas vezes até mais decisiva que a condição
de protagonista intelectual, formador de Escola ou seu pseudo chefe.
Digo isso porque a elaboração de um pensamento original sobre o
fenômeno jurídico, qualquer que seja o viés escolhido, nunca é obra de uma só
pessoa. Os fundadores ou chefes de Escola (Hobbes, Locke, Kant, Kelsen etc.)
não elaboraram suas sofisticadas considerações sistêmicas sem amparo em uma
longa tradição, ora negada, ora contestada, mas indiscutivelmente incorporada
ao modo de pensar o Direito.
Especificamente no que se refere ao Direito Processual Penal releva notar
que os vínculos e mesmo as oposições entre visões de mundo e a respeito da
maneira como os seres humanos regulam a vida social e estabelecem e aplicam
sanções a alguns dos autores de comportamento supostamente “desviantes”,
são construídos e identificados a partir de um amplo universo de contribuições
que, a par do gênio daqueles que “colocam o ovo em pé”, não prescinde de
tantos outros indivíduos singularmente inteligentes, diferenciados.
Não se pensa o Direito exclusivamente de forma estática.
A realidade impulsiona os fatos sociais, transformaBse permanentemente, e
o próprio Direito é guiado em direções nem sempre previsíveis ou préBdizíveis.
A dinâmica está na essência do fenômeno jurídico e se há uma relação forte
entre Direito e Poder, a densidade desta correlação revigoraBse no campo da
Justiça Penal, alcançando aí sua máxima intensidade.
Não por acaso a grande maioria dos autores da modernidade dedicados
ao estudo do direito compartilharam suas investigações primariamente entre
o âmbito do funcionamento da Justiça Criminal e o exercício da soberania e
as discussões sobre a racionalidade, centradas na epistemologia e na teoria do
conhecimento.
De qualquer modo, a tensão política é inerente à dinâmica do Direito e está
potencializada no ambiente da Justiça Criminal e mesmo nos subterrâneos que
são palco do funcionamento do Sistema de Justiça Penal clandestino (em que
atuam torturadores, grupos paramilitares e milícias, por exemplo).
Não há tensão política, porém, que prescinda dos sujeitos históricos, quer
em sua compreensão coletiva (proletariado, classe burguesa etc.), quer visto sob
o ângulo contingente das ações individuais que “mudam” o rumo da história.

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A prática de Afrânio Silva Jardim, entre os anos 80 do século passado e o


presente momento, insereBse afirmativamente neste segundo contexto.
Como se explica esta prática e em que se difere, por outro lado, daquilo que
usualmente foi o direito processual penal brasileiro do período da unificação dos
Códigos (1941) à consolidação de uma contestada teoria unitária do processo?
A prática, e no caso a diferença, podem ser medidas em dois graus: pela
capacidade do homenageado de compreender e articular o modelo que inspira
o aparato do Sistema Penal, conforme o paradigma dos direitos humanos; e por
fazer isso com a consciência plena do contexto em que a ação do intérprete toca
um amplo universo de pessoas.
Transcender, pensar para além do individualismo possessivo em voga
mesmo no ambiente acadêmico. E ainda: pensar a partir de categorias que
não se recusavam a enxergar o abuso cotidiano gerado pela repressão penal,
cristalizado (ou tornado “tradição”) em décadas de ditaduras variadas. Virtudes
do homenageado.
Para Afrânio nunca valeu a máxima universitária: Direito se aprende
fora da Faculdade! A práxis de Afrânio Silva Jardim constituiuBse na hábil e
indispensável associação entre uma e outra.
Aproximar teoria e prática, algo trivial na atualidade, continuou configuB
rando verdadeira heresia mesmo depois da promulgação da Constituição da
República, em 05 de outubro de 1988, até bem pouco tempo!
Ora, diziam os portaBvozes autorizados da inteligência processual penal
brasileira: como falar em discriminação, seletividade, violações sistemáticas
de direitos diante do novo quadro de “garantias” aportado entre nós pela
Constituição democrática? Se havia (ou há) violações elas nada dizem ao Direito
Processual Penal, pois caracterizam a sua negação e não a sua realidade, assim
os positivistas mais empedernidos vociferaram por muito tempo.
O estudante que se dedicar ao exame honesto, sincero, das obras jurídicas
de processo penal que precederam a Constituição de 1988, e aquelas publicadas
até o fim da primeira década de sua vigência, perceberá que praticamente todas
se congratulavam por um suposto “ingresso no Estado de Direito”, negado
cabalmente pelo diaBaBdia das delegacias e fóruns.
A voz dissonante do homenageado ressoava quase isolada. Talvez o filtro
interdisciplinar que sua extraordinária formação cultural impôs ao exame das
“constatações garantistas” 2 de então se deva não somente a isso, a esta formação

2 Nada a ver com a Teoria do Garantismo Penal, sistematizada por Luigi Ferrajoli em seu Derecho y
Razón: Teoría del Garantismo Penal, 4ª ed., Madrid, Tro[a, 2000.

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de vida e acadêmica, mas seja tributário das relações pessoais que envolviam
Afrânio Silva Jardim com pensadores como Amilton Bueno de Carvalho, Juarez
Cirino dos Santos, Nilo Batista, Vera Malaguti, Lênio Streck, Maria Lúcia Karam
e Salo de Carvalho. Isso sob a batuta de James Tubenchlak3.
E fomos todos nós, seus alunos, os beneficiários desta abertura de horizontes,
que combinava a criminologia radical e sua visão marxista ao rigor na apreciação
das categorias de processo penal, tudo permeado pelo compromisso concreto,
reafirmado diariamente, na tribuna do Tribunal do Júri do Rio de Janeiro e nas salas
de aula, de lutar por uma sociedade menos marcada pelas discriminações próprias
do capitalismo abusivo e mais por uma solidariedade tipicamente socialista.
Como jogaram estes compromissos de atuação política na carreira do jurista
e de que maneira isso marcou seu pensamento no Processo Penal e influenciou
as novas gerações?
Não muitos acompanharam as lutas de Afrânio Silva Jardim ao lado de
Miguel Baldez4, na Universidade Cândido Mendes, pela democratização
nas relações entre Universidade, professores, alunos e funcionários e pela
implantação de práticas sólidas que canalizassem para a mencionada casa de
ensino os ganhos democráticos que se institucionalizavam em outros lugares.
Também corre o risco de se perder na memória o registro da atuação do
homenageado, nas ruas e em vários auditórios, em oposição à política neoliberal
que esvaziou o Estado e desempregou dezenas de milhares de brasileiros, no
governo Fernando Henrique Cardoso, causando prejuízos sensíveis até os dias
atuais, salvo, evidentemente para o grande capital.
É disso que se intenta falar quando o tema é o sujeito (político) que transforma
a realidade. FalaBse da autoridade do homenageado como processualista penal,
confirmada pela militância incansável e, vez por outra, solitária, na defesa de
pessoas que não conhecia e não viria a conhecer, e em prol das gerações futuras,
sem reivindicar nada em troca. E quantas vezes ganhando apenas a “pecha” de
marginal, em razão do preconceito contra suas atitudes autênticas5!

3 Carece de uma investigação acadêmica o extraordinário significado dos Simpósios organizados por
James Tubenchlak, entre o fim da década de 80 e os primeiros anos do século XXI, quando nos deixou
precocemente. Muitas correntes de pensamento arejaram a ambiência intelectual no mundo jurídico
brasileiro graças aos Simpósios, que se inscreveram no calendário nacional e durante mais de uma
década reuniram (e aproximaram grandes pesquisadores e juristas).
4 Infelizmente, ao tempo em que estas linhas são escritas chega notícia da saída de Miguel Baldez da
UCAM, em um ato da Universidade que, de uma penada, colocou abaixo as vitórias democráticas de
duas décadas. Inúmeros movimentos sociais e populares solidarizaramBse com o professor Baldez, tal
como, em sua época, e por motivo semelhante, também se solidarizaram com Afrânio Silva Jardim.
5 Em um país submetido, no verão, a temperaturas típicas do Saara, em que os trajes formais dos
profissionais do direito convertemBse em elementos de reafirmação de uma distinção social a maioria
do tempo discriminatória para com a população mais vulnerável, Afrânio inovou. Inovou nos trajes.

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Professores e outros profissionais foram formados e preparados com


muita competência por este sujeito transformador, instigante e inspirador,
sem precisar da ribalta, sem buscar, artificialmente, ser o “centro irradiador”
de algum saber jurídico.
Afrânio Silva Jardim está, pois, neste nível.
Não se trata de um “chefe de escola”. Aliás, sublinheBse, nunca reivindicou para
si este status. CuidaBse, porém, de um investigador altamente refinado, que elegeu
o Direito Processual Penal como “alvo” de suas preocupações intelectuais, mas se
aproximou dele com o rigor da dogmática jurídica tensionado pelo conhecimento
acerca das condições concretas de vida de seus semelhantes, no Brasil.
O conhecimento da obra rica de Afrânio permite que se enxergue no
seu emprego, por exemplo, pensadores como Caio Prado Jr., e a virtude
da interdisciplinaridade que nos anos 90 do século XX veio a ser bastante
valorizada, ao menos do ponto de vista retórico. Sem alarde, o homenageado
trouxe a história econômica para o interior do direito – e do direito processual
penal –, enriquecendo a abordagem jurídica com substância que apenas mais
recentemente veio a merecer seu justo destaque.
Convém também ressaltar a extensão da marca que este jurista impôs à
reflexão processual penal, entre nós, com a ultrapassagem dos limites da
academia fluminense e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, para
envolver profissionais de todo o Brasil
TrataBse de uma geração inteira de atuantes professores, juízes, promotores
de justiça, advogados, defensores públicos e delegados de polícia que estão ainda
hoje sob sua generosa influência, mesmo que esta não tenha sido a vontade do
próprio Afrânio.
E este outro ponto parece relevante salientar: na figura do homenageado a
seriedade acadêmica sempre andou lado a lado com a coerência que fez com que
recusasse o conforto de ter “os outros pensando em seu lugar”, como, também,
não reivindicou a duvidosa primazia de “pensar pelos outros”, comum aos
“chefes de escola” que dependem da simbiose (que mais funciona pelo efeito
de “absorção” do mais fraco como algo próximo à subserviência) com pretensos
discípulos para existirem.
No Brasil, à semelhança de outros países, há uma Economia do Saber e
práticas duras de exercício do poder, na esfera acadêmica, que passam ocultas
aos olhos da maioria das pessoas.

Inovou em sua sincera e aberta opção pelo marxismo. Inovou por seu gosto musical (hard rock) e
literário (Eduardo Galeano). E fez escola!

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Como em qualquer época e lugar onde a economia e o poder trançam seus


fios, a suposta sabedoria dos doutores (lato sensu), que deveria se expressar pela
solidariedade, respeito mútuo e compreensão pelos pontos de vista alheios, se
encontra atravessada por intensas disputas, em um nível não diferente das que
vicejam entre os partidos políticos.
A luta desenfreada pelas fontes de fomento de pesquisas não conhece barreiras
éticas ou mesmo de urbanidade. DesenhamBse e são estimulados falsos conflitos
entre pesquisadores do direito que se dedicam exclusivamente à academia e outros
que partilham diferentes atividades profissionais, como se a atividade de uns e
outros não se relacionasse ou não devesse visar o público em geral. E isso como se
fosse possível ou desejável separar em definitivo as atividades de pesquisa, ensino
e extensão, para as quais algum ilustrado Platão da pósBmodernidade elegeu a
contemplação como meio e fim de suas “práticas” pseudoBintelectuais6!
Nem mesmo os baixos salários do magistério e a escassa visibilidade social
da profissão podem justificar, com base na realidade, as disputas agudas que
ao fim irão refletir na busca desenfreada por posições de domínio, quer nas
Universidades, principalmente em seus programas de pósBgraduação algumas
vezes imunizados contra práticas democráticas, quer nas agências que se situam
neste continente7.
E no meio de tudo isso professores e alunos se encontram em uma relação
mestreBdiscípulo que delineia mais um campo de tensão.
François Waquet analisou a natureza das relações que se estabelecem entre
mestres e discípulos e o fez tomando por base referências combinadas a partir
de categorias da História das Ideias, mas também, ainda que indiretamente, da
História das Universidades e da História Social das Ciências.
Vista por este ângulo, da Economia do Saber, a visão romântica da relação
mestreBdiscípulo quase cai por terra! Pragmaticamente, o discípulo constitui
mais um “combatente” do exército “aliado” de seu mestre. Não é raro ver o
alunoBdiscípulo deslocado das atividades de ensino, pesquisa e extensão para
tomar lugar na arena da política universitária ou associarBse na busca de recursos
que fluirão para a pesquisa “comandada” pelo mestre8.

6 Contemplação, registreBse, desde que bem remunerada por agências públicas e instituições privadas
de fomento!
7 Na verdade, um (baixos salários) e outro (perda de status social do professor) explicam as guerras
localizadas em várias áreas pelos recursos (bolsas, comissões, gestão de fundos e destaque nas
publicações), mas isso há de servir como advertência para a necessidade de refletir sobre os termos
em que se edifica esta nada edificante “Economia do Saber” aqui e lá fora.
8 RessalteBse a importância da participação dos alunos na política da Universidade, influenciando
decisões que em uma democracia não devem ser tomadas à revelia das pessoas que, diretamente,
estarão sujeitas a ela. Também convém colocar em relevo a virtude da colaboração entre docentes

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Como Afrânio Silva Jardim nunca buscou para si esta posição de poder
e privilégio, a sua liderança e o exemplo de como soube e sabe lidar com seus
alunos destaca mais uma excepcional faceta: a comunicação do saber, “cerne
específico e principal desta relação” 9, transita em mão dupla horizontalmente.
Quem conhece o homenageado sabe de seu embaraço com manifestações
que expressam relações verticalizadas. Vai contra sua índole democrática.
Por isso, ao liderar naturalmente o movimento crítico no processo penal
brasileiro das três últimas décadas Afrânio Silva Jardim construiu também, de
forma natural, entre seus seguidores, o hábito de respeitarem o pensamento
alheio, ainda que divergente, e de assegurarem os lugares de fala, em todos os
ambientes, especialmente para aqueles despojados do direito de se exprimir!
Afrânio Silva Jardim não exclui de seu convívio o exBaluno que, por esse ou
aquele motivo, resolve seguir outra linha de pensamento.
Ao revés, Afrânio está sempre aberto a novos ângulos, perspectivas, que
a dinâmica da transmissão do conhecimento possibilita por iniciativa dos que
ontem eram alunos e que hoje também são professores, independentemente de
sua condição formal (ainda que de aluno). As correias de transmissão do saber
prescindem de títulos e formalismos.
O homenageado mostrou que é possível “compartilhar” as atividades
do saber prescindindo das habituais posições de domínio que caracterizam o
individualismo possessivo em todas as suas esferas.
Afrânio Silva Jardim abomina a pretensão de perfeição absoluta que em nada
se confunde com o rigor da análise e a inteligência da observação da realidade.
Mais uma vez, o homenageado está na contramão das práticas correntes em
determinada seara, que postulam para o mestre, especialmente aquele que detém
o título de doutor, a designação de sábio e perfeito!
É certo que por isso mesmo, por esta liberdade de que o homenageado
usufrui e compartilha, há um preço a pagar.
E este eu creio que é pequeno e se traduz por ver alguns dos seus discípulos,
fiéis ao espírito democrático, buscar outros caminhos teóricos. As divergências
que pairam sobre um ou outro tema, no entanto, não mudam o essencial. Ao
se aprender a pensar e respeitar o pensamento alheio e entender a “natureza”
imperfeita dos seres humanos, quem foi discípulo de Afrânio Silva Jardim

e discentes em atividades orientadas à produção do saber. O texto trata de coisa diversa: da


manipulação da relação mestreBdiscípulo em prol de interesses que não estão associados à produção
do conhecimento e ao aperfeiçoamento da sociedade.
9 WAQUET, François. Os filhos de Sócrates: filiação intelectual e transmissão do saber do século XVII
ao XXI, Rio de Janeiro, DIFEL, 2010, p. 21.

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formaBse para a cidadania e esta talvez seja a maior homenagem que se pode
prestar ao mestre.
Chico Buarque de Holanda diz que o compositor fica feliz quando sabe que
uma música sua é fundo musical de um namoro, de uma história de amor.
Assim, eu acredito que Afrânio se sinta ao saber que as suas lições (de vida
e do Direito) são o pano de fundo das ações responsáveis de seus exBalunos em
busca de um Brasil mais justo e solidário.

Do discípulo Geraldo Prado

176
Processo Penal e Estado de Direito no Brasil:
Considerações sobre a fidelidade do juiz
à lei penal

Aos amigos tudo, aos inimigos a lei.


Getúlio Vargas1
ou Quando a América Latina irá se livrar de seus ridículos tiranos?
Caetano Veloso

I. Introdução

Certamente ainda não foram exploradas todas as possibilidades teóricas


que podem ser extraídas da difícil relação entre a noção de Estado de Direito,
concebida à luz do pensamento europeu ocidental e norteBamericano, e a prática
política brasileira e latinoBamericana como um todo.
Com efeito, independentemente da crença sobre que elementos constituem
o chamado estado de direito, é certo que nenhum conceito terá legitimidade e
será admissível se na realidade de sua implementação estiver contida uma perB
versa espécie de desigualdade social, aparentemente insuperável, consistente no
fato de, ainda hoje, a lei penal e a totalidade do aparato punitivo apontarem
de forma predominante em direção aos grupos social e economicamente mais
débeis. Em outras palavras, como realçou Paulo Sérgio Pinheiro, “a democracia
não pode apoiar/se num Estado de Direito que pune preferencialmente os pobres e os
marginalizados”2, atuando como expressão unilateral de um controle social estaB
bilizador das absurdas desigualdades econômicas e sociais.

1 Epígrafe do excelente artigo de GUILLERMO O’DONNELL, Poliarquias e a (in)efetividade da Lei


na América Latina: uma conclusão parcial, publicado na coletânea DEMOCRACIA, VIOLÊNCIA E
INJUSTIÇA: o NãoBEstado de Direito na América Latina, sob coordenação de GUILLERMO e de
JUAN E. MÉNDEZ e PAULO SÉRGIO PINHEIRO, São Paulo, ed. Paz e Terra, 2000.
2 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Introdução: O Estado de Direito e os Não Privilegiados na América Latina,
in DEMOCRACIA, VIOLÊNCIA E INJUSTIÇA: o NãoBEstado de Direito na América Latina, sob
coordenação de GUILLERMO e de JUAN E. MÉNDEZ e PAULO SÉRGIO PINHEIRO, São Paulo, ed.
Paz e Terra, 2000, p. 15.

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O exame crítico dos fenômenos que influenciam a fidelidade do juiz à lei


penal, especialmente no Brasil, deve considerar portanto a realidade da edifiB
cação dos Estados nacionais nesta área e o papel jogado pelas declarações de
direito das constituições na consolidação de um determinado estado de coisas,
papel este por si só necessário mas não suficiente para o fim de assegurar a liB
berdade das pessoas, ou ainda e principalmente para prover autonomia e, em
conseqüência disso, igualdade substancial.
Por isso, o objetivo desta análise deve consistir na compreensão do modo
de funcionamento do aparato burocrático que compõe o sistema penal em face
de uma idéia confessadamente parcial de estado de direito3. A crise de legitimiB
dade da democracia representativa e a forma de atuação da mídia4 servirão ao
final para testarmos a hipótese de que a efetividade das liberdades públicas que
caracterizam um tipo de estado de direito no Brasil é manipulada para atender
preferencialmente a grupos sociais privilegiados.

II. O Estado de Direito, a Democracia e a Lei

Parte 1 – O Estado de Direito


A primeira dificuldade no enfrentamento do tema aparece logo quando
nos lançamos à tarefa de definir o que se entende por estado de direito.
Em realidade, inúmeros autores debatem sobre esta construção lingüística
especial, como a denominou BÖCKENFÓRDE5, digladiando em torno da exisB
tência de estados de direito formal e material, cujos distintos conteúdos têm releB
vância na determinação da idéia singular de estado de direito.
Além disso, vale acrescentar que se hoje quase todos estão de acordo em
que o ambiente propício para o desenvolvimento do estado de direito é a demoB
cracia, a tarefa de definiBla também não é fácil ou está livre de controvérsias.
Logo de início temos que é preciso assumir posição em relação a ambos os
conceitos, de estado de direito e de democracia.
Como destaca BÖCKENFÓRDE, o conceito originário de estado de direito
estava fundado na necessidade de defender o reconhecimento de que este ente

3 Nosso objetivo é fundamentar politicamente a posição do juiz frente à lei penal. Necessariamente,
a fundamentação política se articulará com a jurídica, uma vez que o direito é expressão da
cultura política da nossa civilização. Essa é a lição de PISAPIA (Gian Domenico), in Los Principios
Fundamentales Del Proceso Penal em la Constitución Italiana y en las Convenciones Internacionales
(Problemas Actuales de las Ciencias Penales y la Filosofía del Derecho), Buenos Aires, Pannedille, 1970.
4 Que aqui será apreciada tãoBsomente de maneira incidental, tomando por base as notícias de crimes
e a sua percepção social.
5 BÖCKENFÓRDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la Democracia, Madrid, Tro[a, 2000.

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artificial, que é o Estado, fora idealizado para concretizar a autonomia da pessoa


humana, conforme padrões caros ao Iluminismo dos séculos XVI a XVIII6.
Desde HOBBES, sobretudo, tem lugar a concepção de que a vida em comum
exige por imprescindível, para que os homens não se destruam reciprocamente,
a existência de um ente superior às pessoas, consideradas individualmente, enB
tidade esta capaz de fazer respeitar as normas de comportamento essenciais à
manutenção da paz social. Este ente deveria ser forte o suficiente para controlar
as pessoas – e, pois, haveria de estar dotado do monopólio legítimo do emprego
da força – mas a princípio, porque constituído para protegêBlas, caberiaBlhe fixar
regras compatíveis com o bemBestar dos súditos7.
John Locke, por sua vez, defendia que a existência do Estado se justificava
pela possibilidade de garantir o pleno desenvolvimento das potencialidades dos
súditos, valendoBse dos instrumentos de que poderia dispor, de sorte a tornar
mais eficiente o esforço dos indivíduos em alcançar uma condição de vida pleB
namente satisfatória8.
Apesar da perspectiva ex parte principis, destacada por BOBBIO9 ao subliB
nhar a posição de subordinação dos governados à lei do Estado como fruto de
uma relação soberanoBsúdito que assegurava ao governante status privilegiado,
em ambos os casos a idéia de que competia à lei estabelecer o espaço de liberB
dade individual forçosamente contribuiu para consolidar a noção da impresB
cindibilidade da lei. Neste contexto a lei é vista como recurso para a limitação
do poder em prol da segurança comum e ainda meio de tutela dos interesses
individuais contra intervenções indevidas, que possam por em risco a impleB
mentação de direitos naturais orientados à plena felicidade dos cidadãos. Por
isso, o âmbito de atuação do Estado e de intervenção na esfera privada teria de
ser previamente fixado pela lei jurídica enquanto a ideologia do contrato social,
que pairava sobre as cabeças iluministas daquela época, contribuiu para atribuir
legitimidade a esta espécie de lei, em tese representativa da vontade majoritária
de uma comunidade10 formada não apenas ou realmente de súditos mas sim
de cidadãos teoricamente em pé de igualdade. A transformação do súdito em
cidadão, em que pese não resultar da aplicação irrestrita das idéias de todos os

6 Op. cit., p. 21.


7 HOBBES, Thomas. O Leviatã, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995, cap. XXI, p. 182.
8 LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo, São Paulo, Martins Fontes, 1998, especialmente O
Segundo Tratado Sobre o Governo: Um ensaio referente à Verdadeira Origem, Extensão e Objetivo
do Governo Civil, cap. 1, p.381.
9 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos, Rio de Janeiro,
Campus, 2000, p. 390.
10 HOBBES chega a associar a democracia à liberdade, com as ressalvas que assinala. Op. cit., p. 179.

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contratualistas, é produto da posição que veio a se consolidar na culminância


do pensamento ilustrado que antecedeu imediatamente a Revolução Francesa.
Como salienta BÖCKENFÓRDE, neste momento o conceito de estado de
direito não se deixa reduzir à alternativa entre estado de direito material ou
formal e nele a lei tem significado central, constituindo o eixo do próprio estado
de direito. Neste contexto, a lei é estabelecida como “regra geral que surge com o
assentimento da representação do povo em um procedimento caracterizado pela discussão
e pela publicidade”.11
Esta visão de mundo será debatida mais adiante. Entretanto, de imediato
é lícito acrescentar que hoje em dia há quem postule para a lei este significaB
do forte, a um só tempo elemento de determinação dos limites da intervenção
estatal e fator condicionante do exercício da atividade jurisdicional, ainda que
seja ressalvada a inegável expansão dos princípios que assumem a qualidade de
normas jurídicas12.
A realidade não se conformou ao paradigma teórico de consideração
pura e simples da legitimação da lei. Mesmo nos primórdios dos Estados
Constitucionais modernos a participação dos membros adultos da comunidade
no processo de definição das leis ficou restrita aos integrantes dos grupos sociais
economicamente mais poderosos, que velaram competentemente pela proteção
de seus interesses em oposição aos interesses dos grupos e classes sociais débeis
que eram formados em conseqüência da transformação do sistema feudal em
sistema capitalista.
No entanto, a verdade é que, ao menos em tese, estava sendo proposta
uma limitação ao exercício do poder. A lei devia ter essa função. Continuava
aberta, é claro, a questão do conteúdo da lei e dos limites da regulação jurídica.
Com efeito, uma das idéiasBforça do pensamento iluminista, apta a proporB
cionar o rompimento da cadeia social estratificada rigidamente, como ocorreu
em definitivo a partir do advento da Revolução Francesa, era a de que o estado
de direito devia criar condições para as pessoas desenvolverem plenamente sua
autonomia; em outra perspectiva, um governo de leis e não de homens só seria
capaz de eliminar toda tirania e tornar possível a liberdade se o arbítrio do go/

11 BÖCKENFÓRDE, op. cit., p. 23.


12 TrataBse do ponto de vista conservador de Liborio Hierro (HIERRO, Libório, Estado de Derecho:
problemas actuales, México, Biblioteca de Ética, Filosofía Del Derecho y Política, 1998, p. 44), para
quem o juiz deve sua legitimidade ao fato de aplicar leis – e os princípios – do sistema democrático,
em uma compreensão simplificada da legitimidade do exercício da jurisdição, muito próxima da
postura de Montesquieu, para quem o juiz devia julgar de acordo com os termos precisos da lei
(Do Espírito das Leis, tradução Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues, São Paulo,
Abril Cultural, 1979, p. 83).

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vernante não fosse substituído – ou ficasse escondido – pelo arbítrio da lei, a tudo
permitir, supostamente amparado em uma intangível vontade da maioria.
Segundo pensamos, as questões são conexas pois dizem respeito ao conteB
údo das leis e a percepção de sua legitimidade no ambiente social, de tal modo
que permitem a reflexão sobre o que pode e deve ser legalmente regulado e até
que ponto o legislativo está autorizado a legislar. Ficam de fora por enquanto
os problemas relacionados à legitimidade do próprio legislativo e ao fenômeno
verificado a partir da concepção do Estado do BemBEstar Social, fenômeno que
persiste à aparente extinção desta espécie de estado13.
Com efeito, é escamotear a realidade supor que a mera existência da lei, defiB
nindo claramente a esfera de liberdade privada, conduz a que as pessoas realizem
plenamente suas potencialidades e conquistem vida de qualidade satisfatória.
Na sociedade, as pessoas integram diferentes grupos e classes sociais e têm
interesses distintos e muitas vezes contrapostos14. Desse modo, se é possível aceitar
que regras dirigidas à generalidade das pessoas podem instituir âmbito privado
a princípio intocável (liberdades civis), isto não significa que estas regras facilitaB
rão aos indivíduos dispor de meios para suplantar situações sociais e econômicas
desfavoráveis. Em uma sociedade capitalista os donos do capital se encontram em
posição vantajosa diante dos que têm de lhes vender sua força de trabalho. A autoB
nomia daqueles não se compara com a dos trabalhadores, se é que na maioria dos
casos estes dispõem realmente de alguma autonomia, aqui compreendida como a
situação em virtude da qual o indivíduo se encontra em condição de exercer, com
responsabilidade e integralmente, seus direitos civis e políticos15.
Em que circunstâncias pode um trabalhador expressar opiniões responsáB
veis acerca de qualquer assunto se tem de se dedicar em tempo integral a tentar
garantir o sustento seu e de sua família? É evidente que as condições propícias
para conquistar autonomia não ficam reduzidas ao econômico; mas quando o
indivíduo depende de forma vital de outras pessoas, economicamente, suas opiB
niões e até seu envolvimento na vida pública periclitam. E é óbvio que neste

13 No estado do bemBestar social não é rara a situação pela qual as leis genéricas dão lugar, em alguns
casos, à regulação jurídica orientada especialmente a determinada categoria de pessoas, visando, por
meio da edição de regras diferenciadas, criar condições de superação das desigualdades de natureza
variada.
14 Convém ler SANTOS, BOAVENTURA DE SOUZA, em Crítica à Razão Indolente: contra o desperdício
da experiência, São Paulo, 2000. Destaca este autor que as situações potencialmente conflituosas, na
sociedade, podem ser encontradas não apenas na área onde se desenvolve o antagonismo de classes
mas também, no seio das próprias classes, quando se opõem grupos sociais diferentes, tais como
aqueles que se distinguem pelo sexo, raça ou religião.
15 O’DONNELL, op. cit., p. 339.

181
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caso tal indivíduo não está em pé de igualdade com aquele outro, econômica e
socialmente mais bem situado.
Mesmo na concepção kantiana de que o estado deve ser considerado a prio/
ri como uma “união de homens sob leis”, estas leis como princípios da razão
pressupõem a liberdade de cada membro da sociedade, a igualdade de cada um
perante os demais e a autonomia de cada membro da comunidade, na qualidade
de cidadão16.
Exatamente no campo da autonomia percebeBse a fratura do pensamento
dos contratualistas clássicos mencionados, HOBBES e LOCKE, situação que o
novo contratualismo de RAWLS e HABERMAS, ainda que sob perspectivas diB
ferentes, não supera.
Com efeito, se HOBBES tem razão quando enuncia o princípio ético segunB
do o qual “todos os homens são, por natureza, igualmente livres”17, a análise dos dois
últimos séculos demonstra que o Estado fruto do iluminismo foi arquitetado de
modo a apropriarBse exclusivamente da categoria liberdade civil e, por conta do
desenvolvimento do capitalismo, articular uma forma jurídica complexa, pela
qual desde a definição de direito subjetivo à delimitação da área de intervenção
do próprio Estado, foi sendo imposta uma modalidade de estado de direito que
termina tutelando os interesses econômicos de parcela mínima de sua populaB
ção. DigaBse de passagem, tais interesses estão encobertos pela ideologia pecuB
liar ao capitalismo, de modo tal que chegam a ser tomados como interesses do
próprio Estado, da sociedade e, quiçá, da comunidade global.
Em passagem incensurável BOAVENTURA chama atenção a respeito disB
so, sublinhando que:

“O Estado constitucional do século XIX é herdeiro da rica tradição


intelectual descrita na secção anterior. Contudo, ao entrar na posse
desta herança, o Estado minimizou os ideais éticos e as promessas
políticas de modo a ajustar uns e outros às necessidades regula-
tórias do capitalismo liberal. A soberania do povo transformou-se
na soberania do Estado-nação dentro de um sistema inter-estatal;
a vontade geral transformou-se na regra da maioria (obtida entre
as elites governantes) e na raison d’état; o direito separou-se dos
princípios éticos e tornou-se um instrumento dócil da construção

16 KANT, I., apud BÖCKENFÓRDE, op. cit., p. 21.


17 HOBBES, op. cit., p. 179.

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institucional e da regulação do mercado; a boa ordem transfor-


mou-se na ordem tout court. “18

Desse modo, é correto afirmar que a lei deste estado de direito, mesmo
nos regimes de democracia política, não continha (e não contém) legitimidade
bastante para que possamos reconhecêBla como expressão da vontade geral. A
própria vontade geral é inconcebível justamente porque a comunidade de deterB
minado Estado não é homogênea quanto a seus interesses e por isso a regulação
jurídica produzida resulta da eficaz proteção dos interesses daqueles que se orB
ganizam melhor para participar do jogo político.

Parte 2 – A Democracia
Porque as regras do jogo contam aí entra a questão das diversas formas que a
democracia assumiu ao longo dos séculos XIX e XX. O ideal de democracia direta,
preconizado por ROUSSEAU, sob inspiração das cidadesBestado gregas da antiguiB
dade clássica, em razão do qual os indivíduos transformamBse em cidadãos em toda
a sua plenitude, governando a cidade e tomando as decisões de natureza pública
que afetam as suas vidas, rapidamente revelouBse incapaz de dar conta das demanB
das das complexas sociedades contemporâneas19. Independentemente da crítica ao
fato de que mesmo em pequenos grupos sociais a tomada de decisão acaba sendo
privilégio de poucos, que se dispõem a participar ativamente da vida pública, e
que são estas pessoas as responsáveis pela formulação das perguntas nas consultas
populares20 que ora traduzem ora disfarçam experimentos de democracia direta, o
certo é que as grandes sociedades modernas são sociedades de massas e a apuração
das diversas tendências em relação a assuntos igualmente complexos e importantes
é tarefa praticamente impossível.
A democracia representativa tem sua razão de existir por conta disso.
Também por esse e outros motivos, que serão apreciados à frente, encontraBse
parcialmente incapaz de cumprir as promessas libertadoras da modernidade.

18 BOAVENTURA, op. cit., p. 140.


19 É exatamente o que assinala, em O Contrato Social (Livro III, cap. IV, Da Democracia), quando
assevera que “É contra a ordem natural que o grande número governe e o pequeno seja governado. Não
se pode imaginar que o povo permaneça constantemente reunido para ocupar/se dos negócios públicos; e vê/
se facilmente que não seria possível estabelecer comissões para isso sem mudar a forma da administração”.
ROUSSEAU, JeanBJacques, Sao Paulo, ed. Martins Fontes, 1998, p. 83.
20 Quem tem o poder de formular as perguntas pode fazêBlo de modo a indicar as opções que
considera mais interessantes. Voltaremos a este ponto mais adiante, quando tratarmos da
COMPUTADORCRACIA, a que se refere Norberto BOBBIO, em O Futuro da Democracia: Uma Defesa
das Regras do Jogo, São Paulo, Paz e Terra, 1992, p. 30.

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Além disso, como a engenharia institucional que tomou conta do processo


de construção do estado de direito, na Europa Ocidental do século XIX, estava
dirigida à regulação econômica, visando fortalecer o capitalismo, a produção
jurídica haveria de se tornar compatível com a estabilidade das expectativas,
tão cara ao mercado, além de tutelar a iniciativa privada e desse modo não lhe
perturbar o fim de lucro. Concomitantemente com a ideologia que orientava as
ciências ditas naturais, desenhouBse aí campo fértil ao positivismo jurídico, com
sua inegável propensão a estabelecer certeza jurídica, papel fundamental da lei
jurídica. Sobre o assunto novamente é preciso o magistério de BOAVENTURA:

“O aparecimento do positivismo na epistemologia da ciência


moderna e o do positivismo jurídico no direito e na dogmática
jurídica podem considerar-se, em ambos os casos, construções
ideológicas destinadas a reduzir o progresso societal ao desenvol-
vimento capitalista, bem como a imunizar a racionalidade contra
a contaminação de qualquer irracionalidade não capitalista, quer
ela fosse Deus, a religião ou a tradição, a metafísica ou a ética, ou
ainda as utopias ou os ideais emancipatórios. No mesmo processo,
as irracionalidades do capitalismo passam a poder coexistir e até
conviver com a racionalidade moderna, desde que se apresentem
como regularidades (jurídicas ou científicas) empíricas.”21

O tipo de democracia representativa conseqüente a este estado de coisas foi


implementado de modo a proteger interesses minoritários, evidentemente em
rota de colisão com as aspirações de autonomia das maiorias empobrecidas22.
Em virtude da pressão dos grupos populares, que constantemente reclamaB
vam maior integração e, conseqüentemente, obtinham mais alguma proteção, a
democracia também acaba por se modificar na Europa e nos Estados Unidos da
América. É importante fixar que as alterações por que passou a democracia têm
a ver com duas ordens de fatores: em primeiro lugar, foi alterado o aspecto mais
visível da democracia, ou pelo menos aquele pelo qual os regimes democráticos
ficam mais conhecidos e que reside na participação das pessoas no processo eleiB
toral. Com efeito, obedecendo a tempos distintos, os Estados foram ampliando
seus colégios eleitorais até isso se traduzir na adoção do sufrágio universal e peB

21 BOAVENTURA, op. cit., p. 141.


22 Não é de estranhar, pois, que tenham sido concebidas democracias censitárias, sob a inspiração
ainda do pensamento de LOCKE, para quem o direito à propriedade privada era também natural e
por esse motivo anterior ao Estado, cumprindo a este tuteláBlo de forma adequada.

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riódico. A garantia de votar e ser votado funciona somente quando são estabeleB
cidas regras do jogo eleitoral pelas quais é assegurada à oposição a possibilidade
de se transformar em situação sem violação do círculo de legalidade; ademais, o
Estado adequouBse para atender às demandas dos diversos grupos e classes soB
ciais, que reivindicaram melhorias em suas condições de vida compatíveis com
um nível razoável de autonomia e com os frutos de um desenvolvimento tecnoB
lógico sem precedentes na história da humanidade. Na realidade, a existência do
Estado do BemBEstar Social, regulador e provedor, pode ser creditada em parte
à capacidade de o Estado burguês absorver fortes demandas sociais sem mudar
essencialmente. As promessas de igualdade que no século XX formaram o subsB
trato das ações e postulações de emancipação do indivíduo e da coletividade,
tanto no bloco comunista como nos países de capitalismo desenvolvido, nestes
últimos foram objeto de filtragem e mediação no campo político, com a extensão
da concepção de democracia para os pátios internos da sociedade. Tomadas de
decisão fora dos campos políticos tradicionais, como a administração e o parlaB
mento, facilitadas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massas,
serviram aos Estados da Europa Ocidental para apregoar as reais virtudes da
democracia e superar a irracionalidade tornada evidente com as grandes guerB
ras, o colonialismo e o holocausto.
É certo que aí a noção de estado de direito, no substantivo, é insuficiente
para explicar esse estado de coisas. Tanto o estado de direito como a democracia
ganham predicados, por meio dos quais é possível visualizar o grau de uniB
versalização dos benefícios sociais e econômicos inerentes ao desenvolvimento
tecnológico.
Enquanto a denominação “estado de direito formal” fica reservada àquele
estado no qual a democracia política é o resultado último das conquistas da soB
ciedade, sem que isso importe em melhor distribuição de renda e maior justiça
social23, a expressão estado de direito material serve para designar aqueles outros
nos quais é detectada a tendência a reduzir as desigualdades sociais e ampliar a
oferta de recursos que melhoram as condições de vida das pessoas.
No terreno da democracia ocorre o mesmo. Assim é que as democracias
passam a adotar o termo política ou social conforme o âmbito de decisão esteja
circunscrito ao parlamento ou alcance também outras esferas da vida de relação.
No primeiro caso, a função da lei permanece aquela referida anteriormente e as
críticas à democracia representativa são vigorosas. Não pode ser verdadeiraB

23 Justiça social que se constitui em expressão repudiada veementemente pelo liberalismo economicista,
como é possível extrair da obra de FRIEDRICH A. HAYEK.

185
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mente representativa uma democracia exclusivamente política, apesar da reguB


laridade das eleições, porque ao pressupor identidade de autonomia entre pesB
soas que estão em nível econômico completamente distinto, impede que os indiB
víduos se coloquem em real igualdade de condições. As vagas nos parlamentos
são preenchidas periodicamente, por meio de sufrágio direto e universal, todaB
via os eleitos na sua maioria não têm afinidade com as carências e demandas
dos eleitores. A eleição transformaBse em um espetáculo democrático, objeto da
atenção dos meios empresariais de comunicação de massas, que se esgota em si
mesma e o parlamento funciona à revelia do interesse dos grupos populares e
classes sociais, atuando basicamente na reafirmação dos valores relacionados ao
sistema econômico prevalente.
Essa realidade acaba por gerar um padrão de lei anêmico, pálido, dificilmente
apto a ser conduzido àquela “regra geral que surge com o assentimento da representação
do povo em um procedimento caracterizado pela discussão e pela publicidade”, de que nos
fala BÖCKENFÓRDE. Neste sentido um estado de direito meramente legal, ordeB
nado em uma democracia exclusivamente política, é insuficiente para quitar a fatuB
ra decorrente da promessa de emancipação. O círculo de legalidade não assegura,
antes impede a mobilidade social, e as regras jurídicas funcionam prioritariamente
dirigidas à proteção dos interesses dos grupos e classes privilegiados.
Por sua vez, a democracia social assume a existência de campos fora do Estado
onde são travadas relações de poder e que, por isso mesmo, produzem alguma esB
pécie de regulação de caráter paralegal, em suma, que produzem direito não estatal
mas igualmente válido e importante. Estes campos são reivindicados como lugaB
res onde a democracia também deve imperar, não só por meio da legitimação dos
procedimentos de criação dessas normas, mas igualmente pela universalização dos
benefícios, o que termina por estimular a participação dos indivíduos na aplicação
das normas paralegais e na aferição de seus resultados.
A democracia social não exclui a democracia representativa. Antes reconhece
que determinadas questões devem ser equacionadas no âmbito parlamentar. No
entanto, ao ampliar os espaços públicos e permitir o desenvolvimento de ações tenB
dentes a promover a redução das desigualdades sociais, com isso contribui para
que a participação política tradicional não perpetue as situações legais hostis aos
segmentos mais pobres da comunidade. A democracia social promove a autonomia
dos indivíduos e os sensibiliza para os aspectos críticos da sociedade.
A democracia social é participativa por natureza, como supõe PAUL HIRST24.

24 HIRST, Paul. A Democracia Representativa e seus Limites, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.

186
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Há ainda outro ponto no qual a democracia social se distingue daquela


meramente política.
Com efeito, praticamente todas as sociedades contemporâneas estão enB
frentando questões cada dia mais complexas. A tomada de decisão relativamenB
te a aquilo que pode afetar de forma substancial a vida das pessoas depende do
nível de conhecimento de que devem dispor os responsáveis pelas decisões. Não
há democracia sem responsabilidade dos gestores e tomadores de decisão.
Certamente, não são todas as situações que se enquadram em um modelo
no qual o nível de conhecimento imprescindível para se decidir deve ser esB
pecífico. Em nossa visão, nem sequer a maioria. Todavia, como chama atenção
NORBERTO BOBBIO25, em toda sociedade avançada há a “necessidade da toma/
da de decisões em matérias que requerem conhecimentos cada vez mais especializados,
inacessíveis às massas”, que põe tanto o problema do controle popular e de como
leváBlo a cabo, como o do princípio da maioria.
A nossa posição consiste em estabelecer, relativamente à democracia social
e ao estado de direito material, a seguinte premissa: naqueles casos em que o
exercício do poder exige a posse de conhecimentos específicos, esse exercício
do poder há de ser visível de maneira a permitir a difusão do conhecimento
dominado.
BOBBIO avança a tese pela qual apresenta a democracia como “poder em
público”26, e acentua que “o poder tem uma irresistível tendência a esconder/se”27.
Como se busca com a democracia social e o estado de direito material a
redução radical das desigualdades sociais, as situações nas quais o saber, o coB
nhecimento específico e complexo, é essencial para assegurar esse fim devem
ser preservadas da vontade da maioria. No entanto, como em um aparente paB
radoxo não há democracia sem controle social – preferencialmente exercido pela
totalidade dos membros de uma comunidade –, porém a própria decisão de
subtrair determinadas matérias do escrutínio é a princípio inadmissível.
Antes, pelo contrário, toda norma jurídica deve ser pressuposta como doB
tada de conteúdo político e portanto, a decisão a respeito desse conteúdo deve
obedecer ao critério democrático do princípio da maioria. Salvo, sublinheBse
agora, quando dirigida à eliminação ou à compressão injustificável e desproporB
cional de direitos fundamentais. Neste caso, a própria idéia de que os direitos
fundamentais representam o mínimo indispensável para configurar a dignidade
da pessoa humana cria em torno deles uma couraça instransponível, em razão

25 BOBBIO, Teoria Geral da Política, op. cit., p. 383.


26 Idem, p. 386.
27 Ib idem, p. 387.

187
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da qual tais direitos têm vocação de eternidade, como a doutrina constitucional


reconhece.
A lei sobre direitos fundamentais nesta hipótese encontra/se na seguinte situação:
a vontade da maioria, manifestada diretamente ou por meio de seus representantes, é
incapaz de revogá/la; a vontade da maioria, além de tudo, não tem poderes para deixar
de aplicá/la.
O resultado disso é que no estado de direito material e na democracia social
os direitos fundamentais são inalienáveis, irrenunciáveis e não podem ser suB
primidos. A força que tomam estes direitos é, indiscutivelmente, o elemento de
distinção do estado de direito material, relativamente ao formal, e da democraB
cia social em face da democracia exclusivamente política. A razão de existência
desses direitos, repitaBse, está assentada nas conquistas dos últimos cinqüenta
anos, voltadas à universalização da autonomia da pessoa humana.
De todo o exposto neste tópico é possível concluir porque a lei do estado de
direito formal encontraBse, em relação ao juiz que deverá apreciáBla e aplicáBla,
em uma situação distinta daquela outra que carrega consigo as marcas do estado
de direito material. A primeira circunstancialmente poderá prever situações ou
relações tendentes a reduzir as desigualdades sociais e assegurar a autonomia
do indivíduo, independentemente da posição social e econômica de seu destinaB
tário. Caso não seja assim, cumpre ao intérprete, mesmo sendo ele o juiz e, se for
o caso, o juiz penal, adotar o sentido conforme ao provimento desta autonomia28;
à lei do estado de direito material, destinada a realizar a autonomia da pessoa
humana, deve o juiz penal maior fidelidade, reconhecendoBse, certamente, que é
ele juiz que atribuirá sentido à norma jurídica e por isso mesmo será responsável
pela obtenção dos resultados dirigidos ao provimento da referida autonomia29.
PodeBse dizer que o Estado Constitucional Democrático é a expressão mais
eloqüente do estado de direito material e da democracia social. DeveBse aditar
que o Estado Constitucional Democrático absorve as tensões e conflitos sociais e
realiza através do processo político a mediação destes conflitos, conferindo priB
mazia às decisões que implementam a autonomia da pessoa humana. Cumpre,
ainda, acrescentar que o estado de direito material abriga na Constituição as duB
ras conquistas que resultaram em direitos fundamentais, individuais e sociais.
Infelizmente, cabe reconhecer que o Estado Constitucional Democrático enfrenB

28 Exemplo disso está na aplicação, a nosso juízo, do princípio da insignificante lesão ao bem jurídico,
que pode afastar a tipicidade penal das condutas e evitar injustas punições.
29 É o caso das regras que dispõem sobre ampla defesa, que estão a exigir do juiz constante fiscalização
do processo penal para que o réu possa dispor, realmente, de defesa profissional à altura das suas
reais necessidades.

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tou na Europa Ocidental, em sua vertente de Estado do BemBEstar Social, crise


séria que o debilitou e pôs em cheque a capacidade das sociedades preservarem
seus direitos fundamentais em um plano ideal de universalização.
PIERRE ROSANVALLON30 analisa a questão e reconhece que o Estado proB
vedor encontraBse debilitado financeiramente, prejudicado pelo ritmo crescente
das despesas públicas. Salienta que as despesas relacionadas às políticas sociais
e aos mecanismos de redistribuição pesam e enfraquecem este Estado.
Neste contexto, não faltam defensores de reformas de fundo que, atribuinB
do a crise do Estado Providência ao custo econômico das mencionadas polítiB
cas, postulam o redimensionamento dos direitos fundamentais. Em verdade, os
movimentos de minimização dos procedimentos e desconstitucionalização de
direitos estão por detrás de um mesmo projeto jurídico de Estado, aqui persB
pectivado como sendo o estado de direito formal, que nessa linha de raciocínio
perderia a adjetivação31.
As conseqüências disso podem ser notadas no recrudescimento das ações de
discriminação contra imigrantes e na consolidação da absoluta ausência de horizonB
tes e esperanças para as camadas mais empobrecidas da sociedade européia.

Parte 3 – A Lei e a fidelidade do juiz


Nestes termos volta à tona a questão da fidelidade do juiz à lei penal. As
reformas legais e constitucionais nessa conjuntura assumem basicamente duas
formas e estão dirigidas a neutralizar o inimigo do bem/estar individual: são reduB
zidas as garantias do processo penal e endurecidas as regras de aplicação do diB
reito penal material, incluindo aí, paradoxalmente, a flexibilização dos direitos
fundamentais que regulam a incidência do direito punitivo em caráter excepcioB
nal e nos limites do estritamente necessário.
A concepção do agente do delito – e do suspeito de ser agente de delito
– como inimigo social parece autorizar o emprego de todo tipo de recursos. O
arsenal de combate ao crime voltou a vulgarizarBse, expandindoBse por interméB
dio dos meios de comunicação de massas a percepção de que estamos em uma
guerra a ser vencida a qualquer custo!
A crítica sobre o fato de os detentores dos meios de comunicação de massas
serem empresários cujos interesses econômicos são gravemente afetados em um

30 ROSANVALLON, Pierre. A Crise do Estado/Providência, Goiânia, UNB, 1997.


31 É valiosa e ilustrativa a análise de Pérez Luño sobre o dilema essencialismo x funcionalismo em termos
de direitos fundamentais. PÉREZ LUÑO, AntonioBEnrique, Derechos Humanos y Constitucionalismo en
la Actualidad, in: Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio, Madrid, Marcial
Pons, 1996, p. 18.

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estado de direito material fica restrita aos círculos acadêmicos32, onde quase com
exclusividade são discutidas as teses de mínima intervenção penal e de efetiva
integração social dos excluídos, enquanto no cotidiano das cidades é fomentada
a demanda por mais repressão.
Neste campo uma espécie de direito penal funcionalista também tem seu
espaço e se debate sobre o nível de conformidade das condutas a normas jurídiB
cas que estão endereçadas a tutela de interesses minoritários dos grupos sociais
mais organizados e privilegiados, independentemente da possibilidade concreB
ta de as condutas atentarem contra estes mesmos interesses.
O estado de direito meramente formal, talvez sem o querer e sem o saber,
faz o caminho de retorno em direção à préBmodernidade.
Não é de estranhar que o comportamento processual do processado
volte a ter a mesma importância dos tempos da confissão rainha das provas!
Simultaneamente restringeBse a publicidade dos atos processuais que seguem a
nova filosofia (o processo é tratado como investigação preliminar, sigilosamente,
nas variadas modalidades de transação penal, ainda quando implica imposição
de penas criminais); e as penas criminais são apelidadas de medidas penais, em
relação às quais o contraditório é simples providência burocrática e a proibição
da reformatio in pejus é solenemente ignorada!33 Do outro lado, relativamente ao
processo tradicional que ainda está formalmente sujeito às garantias constituB
cionais, recorreBse com inusitada freqüência ao apelo da mídia, que explora à
exaustão os casos e não raro emprega, nas suas investigações paralelas, provas
inadmissíveis em juízo34.

32 A esse respeito SERGE HALIMI lembra sempre a advertência de NOAM CHOMSKY. “Um dia, um
estudante americano formula/lhe esta pergunta: ‘Gostaria de saber como a elite consegue controlar a mídia?’
Ele replica: ‘Como é que ela controla a General Motors? A pergunta não tem razão de ser. A elite não precisa
controlar a General Motors uma vez que é sua proprietária.” (Os novos cães de guarda, Petrópolis, Vozes,
1998, p. 48).
33 Exemplo disso a jurisprudência que toma corpo, admitindo o oferecimento de denúncia nos casos de
transação penal descumprida. Com efeito, o artigo 76 da Lei n. 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais,
prevê a possibilidade de o Ministério Público e o investigado chegarem a acordo sobre pena não
privativa de liberdade. Este acordo, homologado pelo juiz, torna aparentemente legítima a execução
forçada e o adimplemento voluntário das sanções criminais estabelecidas consensualmente. Por
evidente falha da Lei, na maioria dos casos não há previsão sobre o que fazer quando o autor do
fato descumpre o acordo, isto é, não cumpre a pena. Desprezando a natureza jurídica de sentença
condenatória definitiva, que caracteriza a sentença de homologação do acordo, parte dos tribunais
aceita a reabertura do processo de conhecimento condenatório e o oferecimento de denúncia contra
o réu inadimplente. Com isso, abreBse a porta ao juiz penal, que está liberado para aplicar ao acusado
pena superior e mais grave que aquela acordada anteriormente.
34 Enquanto o autor escrevia este trabalho a Revista Veja, de 14 de fevereiro de 2001, edição 1687,
publicava sem nenhum explicação trechos de conversas telefônicas gravados aparentemente à
revelia dos interlocutores.

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A confiança cega de alguns iluministas na bondade intrínseca da sociedaB


de civil é agora compartilhada pela nova ordem jurídica, que fecha os olhos ao
princípio do devido processo legal, ignora a presunção de inocência e acredita
na imunidade do juiz profissional aos efeitos da publicidade intensiva dos meios
de comunicação na cobertura das investigações e processos penais, feita a resB
salva ao Reino Unido, apesar das conseqüências desastrosas dessa publicidade
intensiva para a apuração da verdade35.
Neste quadro a posição do juiz frente à lei deve ser propositadamente
ambígua. Em casos especiais, quando a aplicação da lei se mostrar incapaz de
realizar o projeto moderno de autonomia, isto é, quando não tiver aptidão ou
tendência para assegurar a emancipação do indivíduo, certamente esta lei estará
em conflito com direitos fundamentais cuja efetivação é tarefa primordial do
juiz. Decorrerá daí a invalidade da lei e o juiz estará autorizado a não aplicáBla36.
Quando, ao contrário, a lei guardar simetria com o projeto de autonomia, respeiB
tando os direitos fundamentais do indivíduo, caberá ao juiz aplicáBla, pelo que
seu espaço de criação do direito estará reduzido.
Estas conclusões que a nosso juízo são válidas nas circunstâncias acima
mencionadas são ainda mais requeridas quando tratamos da situação brasileira,
particularização emblemática da realidade do sistema penal latinoBamericano.

III. A Lei, o Estado de Direito e a Democracia no Brasil

Parte 1 – O Estado de Direito no Brasil: a formação da República


Do Estado de Direito no Brasil até 1988 é possível dizer o mesmo que
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA declarou acerca da democracia: “foi sempre
um lamentável mal/entendido”.37
A constituição do Estado brasileiro está marcada pela permanente aproB
priação das riquezas por grupos reduzidos que controlaram o cenário nacioB
nal. A dominação de tipo oligárquicoBpatrimonial, instaurada desde cedo e forB
temente gerida por meio da exploração de extensos segmentos da população,
produziu a maior parte do tempo um ambiente incapaz de gerar classes sociais
dotadas de autonomia e aptas a provocar a tensão necessária à introdução, enB
tre nós, dos movimentos reivindicatórios e de emancipação que no século XIX

35 É de todo conveniente a leitura do artigo Publicidad periodística del hecho y principio de imparcialidad,
de autoria de FABRICIO GUARIGLIA, in Libertad de Prensa y Derecho Penal, Buenos Aires, Del
Puerto, 1997, p. 87 – 109.
36 FERRAJOLI, JUIGI. Derecho y Razón, Madrid, Tro[a, 1997.
37 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil e MOISÉS, José Álvaro, em Cidadania e Participação, São
Paulo, Marco Zero, 1990, p. 15.

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europeu serviram para fincar as bases das democracias sociais que acabaram
florescendo na etapa seguinte.
Enquanto a Europa feudal dava passagem ao mercantilismo e, posteriorB
mente, ao sistema capitalista, criando no seio da sociedade diferenciações ecoB
nômicas que foram exploradas ao máximo para edificar o arcabouço políticoB
Bjurídico primeiro das democracias liberais e depois do Estado do BemBEstar
Social, o regime escravocrata vigente no Brasil foi substituído por outra ordem,
igualmente amparada em privilégios que encastelaram e protegeram os interesB
ses das elites agrárias, industriais e burocráticas.
Nunca se produziu entre nós, até recentemente, o tipo de tensão regulação
x emancipação característico da modernidade européia porque na realidade a
sociedade civil passou a maior parte do tempo acomodada, controlada, anuB
lada por um setor dela própria, as elites, que se desenvolveu tirando proveito
do Estado, em aliança estratégica com setores militares. Neste sentido o estado
brasileiro está muito afastado quer da figura protetora idealizada por HOBBES,
quer daquela capaz de propiciar as condições de desenvolvimento da economia,
preconizada por LOCKE.
Centralizador e militarizado durante longo período da nossa história38, o
estado brasileiro fez atuar a força e a violência mais intensa para controlar os
inúmeros movimentos de autonomia que eclodiram de maneira pouco ou insuB
ficientemente organizada. As iniciativas políticas e a tomada de decisões foram
privilégio das elites, que invariavelmente as exercitaram em causa própria, e
mesmo o movimento de abolição da escravidão deve mais às transformações
econômicas internacionais que aos esforços seculares de romper os grilhões do
racismo e da discriminação.
Este estado centralizador e autoritário é responsável por uma cultura em
que a noção de autonomia não é praticamente conhecida até o fim do Estado
Novo, de tal sorte que as questões de legitimação do estado e de orientação das
suas políticas não são profundamente discutidas pela maior parte da população.
Há quem defenda que exatamente por isso a sociedade não se sente responsável
pelas políticas públicas e estas não são minimamente eficazes para reduzir as
desigualdades e eliminar os antagonismos sociais.

38 MOISÉS adverte para o fato de a forte presença militar ter inaugurado, desde o início da República,
a tradição de atribuir às Forças Armadas o encargo de defender as instituições públicas. MOISÉS,
José Álvaro, op. cit., p. 12. É interessante destacar a recorrência à tutela militar para equacionar os
conflitos sociais, pleito que ressurge nos dias atuais por intermédio do discurso de integrar as Forças
Armadas no combate ao crime organizado.

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Em certo sentido semelhante à situação brasileira, a realidade portuguesa é


retratada por BOAVENTURA da seguinte maneira:

“A centralidade do Estado é exercida com grande dose de


ineficiência. Entre muitos outros fatores que a explicam, deve
salientar-se o fato de entre nós funcionarem, com muito mais di-
ficuldades que nos Estados dos países centrais, as dicotomias que
estão na base do Estado moderno, tais como as dicotomias: Estado/
sociedade civil, oficial/não oficial, formal/informal, público/priva-
do. A prevalência de fenômenos de populismo e de clientelismo
contribui em grande medida para que a lógica de ação do Estado
(estatal, oficial, formal e pública) seja a cada passo interpenetrada,
ou mesmo subvertida, por lógicas societais particularísticas com
influência suficiente para orientar a seu favor e de modo não ofi-
cial, informal e privado, a atuação do Estado.”39

O artificialismo das leis, noticiado por MOISÉS40, está para nós muito menos
fruto da tensão dialética entre burguesia, campesinos e proletariado, que conduB
ziu a uma ordem jurídica liberal burguesa na Europa e a sua crítica marxista, e
mais resultado de uma “produção política funcional para as elites dominantes”, sinal
de fissura entre o grupo maior da sociedade civil brasileira e a elite que dirigiu o
processo de instauração da República.
Sendo assim, a curiosidade de termos declarações de direitos fundamenB
tais em nossas Constituições desde o Império coexistindo com regimes políticos
autoritários explicaBse facilmente. Preconizar que todos são iguais perante a lei
e admitir a escravidão, enunciar regras de devido processo legal e instituir triB
bunais de exceção, como no Estado Novo, e permitir o exílio e a eliminação de
dissidentes políticos, como no pósB64, servem apenas para iluminar de forma
especial aquilo que sempre foi o cotidiano da Justiça Penal no Brasil até 1988:
o controle social punitivo como forma de reduzir, conscientemente ou não, as
resistências políticas ao projeto de perpetuação das oligarquias.
Durante a maior parte do tempo a não implementação dos direitos funB
damentais que constituem garantias processuais não foi no Brasil a resultante
de uma disfunção política gerada pela inabilidade dos governantes e das elites
cultas. Na realidade, sempre que parte desta mesma elite esteve às voltas com

39 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice, São Paulo, Cortez, 1999, p. 68.
40 MOISÉS, José Álvaro, op. cit., p. 16.

193
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questões criminais, as regras de proteção das diversas cartas constitucionais atuB


aram de maneira satisfatória. O dado não funcional está em que historicamente
estamos submetidos a uma espécie de esquizofrenia jurídica por meio da qual
houve uma clara cisão entre dois grupos: de um lado aqueles para os quais as
regras constitucionais realmente valiam e continuam valendo; do outro a imensa
maioria, que sequer tem conhecimento do que seja direito fundamental e não
tem a menor idéia da sua relevância na manutenção de um pacto político da
expressão da Constituição da República. O não valer as regras na prática, neste
segundo caso, tem a ver com o fato de o poder central dispor de um instrumento
eficiente de repressão das reivindicações de emancipação que o crescimento da
sociedade brasileira tornou inevitável: o sistema penal.
Podemos voltar ao Império e encontrar um exemplo luminoso da estratégia
de incriminação de movimentos sociais de emancipação, constrangidos ainda
pela falta de garantias.
Em agosto de 1840 o vaqueiro RAIMUNDO GOMES VIEIRA, líder do moB
vimento denominado BALAIDA, a maior guerra civil ocorrida no Maranhão,
vai juntarBse ao negro COSME BENTO DAS CHAGAS, por sua vez, fundador
do maior quilombo maranhense, que reuniu cerca de 3.000 escravos fugidos41.
A história da união entre os revoltosos livres do Maranhão, que se opuB
nham politicamente ao Governo Central conservador, e os negros fugidos é
emblemática da história das alianças circunstanciais que unirão durante muito
tempo liberais de classe média (e às vezes até dos estratos econômicos mais deB
pauperados) e os marginais brasileiros: os negros e, no século XX, os operários
e lavradores. DeuBse é certo pela necessidade de unirem forças para enfrentar o
inimigo comum e não por que os BALAIOS estivessem convencidos da injustiça
do regime de escravidão.
Ocorre que o Governo Central encara os dois movimentos, a BALAIADA e
a revolta dos QUILOMBOS, como distintos e confere ao primeiro a condição de
resistência política, concedendo anistias em troca do retorno à legalidade, imposB
sível no caso dos negros, identificados como marginais e criminosos comuns.
Assim, parte das forças dos revoltosos BALAIOS se une às tropas de Duque
de Caxias, põe fim ao próprio movimento e esmaga violentamente os negros
fugidos. A anistia política absorve a tensão do conflito com a parte revoltada das
elites maranhenses, enquanto a lei penal é usada, violentamente, para controlar
as ações de libertação dos escravos.

41 Várias obras trazem o relato dessa interessante interação. Aos estudantes recomendamos a leitura de
Rebeldes Brasileiros, n. 4, coleção CAROS AMIGOS, 2000.

194
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É preciso destacar que a lei é manipulada para exacerbar diferenças artifiB


ciais entre determinados segmentos sociais e segue sendo assim, no Brasil, na
maior parte do tempo. O clássico divide e impera ganha contorno mais perverso
quando a modalidade de diferenciação está em atribuir direitos que podem ser
usufruídos apenas por alguns setores da sociedade, excluindo outros, total ou
parcialmente, conforme as conveniências de ocasião.
As principais leis penais brasileiras, nossos Códigos Penais e de Processo,
muito embora tenham resultado do empenho de pensadores liberais clássicos,
terminaram sendo editados durante períodos autoritários e não fugiram à regra.
VêBse neles o apego aos valores principais do liberalismo econômico, registranB
doBse, ao lado de tantas leis de segurança nacional, as condições ideais de conB
tenção das populações empobrecidas.
Ocorre que ao formalizar sua adesão ao regime de direitos fundamentais,
entre 1946 e 1964 e após 1988, o Estado brasileiro contemporâneo viuBse às volB
tas com demandas típicas de um estado de direito material, mediadas por uma
espécie de democracia concebida como social e política. A sociedade rural da
primeira metade do século XX cede espaço a uma nova sociedade urbana, mais
complexa, sofisticada e envolvida no ambiente internacional.
A industrialização e o desenvolvimento do movimento operário, ao qual
estrategicamente se aliaram os liberais em oposição ao regime autoritário de
1964, terminaram por recolocar as demandas típicas do estado de direito mateB
rial A incapacidade de atender a tais demandas e assim reduzir as desigualdaB
des sociais é outra questão. O certo é que neste novo contexto a diferenciação
funcional continua sendo operacionalizada mediante a efetivação de direitos e
garantias apenas para uma parte da população, buscandoBse a explicação disso
no fato de o Estado não dispor de recursos para universalizar os variados sisteB
mas de proteção.

Parte 2 – A lei penal e o Estado de Direito pós-1988


As leis penais e processuais básicas são as mesmas dos tempos autoritários,
modernizadas mas não adequadas à modernidade, no viés da emancipação. A inflaB
ção de leis penais, a tutela penal de interesses da classe média, a orientação em
direção à incriminação de condutas contra a ordem econômica e tributária ajuB
dam a passar a imagem de democratização do sistema penal, mediante o recurso
à expansão deste mesmo sistema.
EncobreBse a estrutura autoritária da legislação e o empenho legislativo
mira em pilares arcaicos. O discurso das garantias aparece com freqüência nos
meios acadêmicos e até nas exposições de motivo dos anteprojetos de reforma

195
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das leis. Contudo, o fenômeno da integração do Brasil à nova ordem mundial


acaba fazendo com que procedimentos mais flexíveis, com menor dose de garantias
especialmente para os que não podem contratar advogados e ainda são vistos pela
polícia como uma séria ameaça a essa mesma ordem, sejam incorporados ao cenáB
rio brasileiro como prova do estágio evoluído de nossa legislação42. Menos que nos
acautelarmos contra o risco de desperdiçarmos nossa própria experiência, entrando
em uma área delicada contaminada pela valoração de tudo sob o prisma meramenB
te econômico, poderemos nos encontrar, em um futuro não muito distante, naquela
situação referida por BOAVENTURA, de termos “pateticamente de inventar, sempre
com atraso, o que já tivemos quando éramos ‘atrasados’”.43
Fator que preocupa nessa conjuntura é que a mídia de um modo geral joga
decisivamente na construção desta falsa imagem de democratização da incrimiB
nação, incorporada inclusive por setores progressistas, como habilmente denunB
ciou MARIA LÚCIA KARAM44.
Enquanto de um lado associa a violência à impunidade, de outro alardeia
as virtudes da expansão da incriminação, pinçando raros exemplos de crimes
cometidos pelos do andar de cima que são apurados para justificar a proposta de
mais punição. Em um estudo sobre o estado de direito no Brasil de hoje não há
como deixar de reconhecer o padrão de atuação dos meios de comunicação de
massas. É possível observáBlo em dupla perspectiva:

a) No lugar de submeter as leis penais ao necessário debate público acerca


das conseqüências do encarceramento e da eficácia da repressão penal,
objetivando humanizar as respostas penais e conservar somente aqueB
las infrações penais que de fato tutelam interesses gerais ou da maioria
da população, os meios de comunicação de massas expõem diariamenB
te cenas de violência associadas aos grupos mais pobres ou a setores

42 O fenômeno de modernização do processo penal brasileiro à semelhança do que acontece em outros


lugares está tendendo, perigosamente, à privatização do processo. Com fundamento na acertada
visão de que é necessário oferecer alguma proteção aos interesses legítimos da vítima, confundemBse
estes interesses com pretensões de cunho patrimonial ou econômico. Com isso, no lugar de integrar
as pessoas e resolver o conflito eventualmente existente entre elas, o Estado termina por abandonáB
las, difundindo sensação de desconforto e de desproteção. BINDER chama a atenção para isso,
salientando que ao abrir caminho a novas formas de controle social horizontal, de que a conciliação
civil é exemplo no direito brasileiro, o Estado deixa a via livre para a execução eficiente do controle
social vertical, em mãos de grupos sociais bem definidos. BINDER, Alberto M. Justicia Penal y Estado
de Derecho: Limites y Posibilidades de la simplificación del proceso, Buenos Aires, AdBhoc, 1993, p. 70.
43 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice: onze teses por ocasião de mais uma descoberta de
Portugal, São Paulo, Cortez, 1999, p. 67.
44 KARAM, Maria Lucia. A Esquerda Punitiva, in: Discursos Sediciosos, n. 1, Rio de Janeiro, ed.
Relume&Dumará, 1996, p. 73 e seguintes.

196
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rebeldes em face dos projetos econômicos das elites. A eficácia social


dessa espécie de propaganda reside em vincular, na imaginação da clasB
se média, mais politizada e influente no processo eleitoral, a idéia de
que as camadas mais pobres da população e os setores insatisfeitos com
o atual modelo econômico são inimigos de seus interesses vitais;
b) O monopólio da jurisdição, pelo Estado, é posto em dúvida, acusado de
ineficaz e orientado tãoBsomente à proteção dos criminosos que deveB
ria castigar. A imprensa, então, toma a si a tarefa de investigar os criB
mes, denunciar seus autores, perseguiBlos por meio da exibição da sua
imagem em redes de televisão. Não seria de espantar se, na seqüência,
aproveitando os programas que dramatizam os crimes violentos, vier a
se oferecer ao telespectador a possibilidade de votar pela culpa ou ino/
cência do acusado, isso ao vivo, mediante interação proporcionada pelo
desenvolvimento dos meios de comunicação e informação.

Esperar dos meios de comunicação de massas que sirvam de arena para o


debate necessário a respeito dos limites da intervenção penal e das alternativas à
incriminação, se é justo e legítimo, acaba esbarrando no fato destes meios serem
de propriedade de grupos empresariais que participaram ativamente da consB
trução desse modelo republicano em tese disfuncional, cuja utilidade para eles é
indiscutível neste aspecto.
A gravidade maior da situação reside, porém, na sugerida legitimidade dos
meios de comunicação, pelo fato de terem intensa presença no diaBaBdia das
pessoas. Nos acostumamos à televisão e ao rádio e deles recebemos diariamente
infinita carga de informações que não temos condições de submeter a qualquer
espécie de crítica. Aliás, sequer isso é esperado. Daí a absorção automática daB
quilo que nos é transmitido pela mídia, cujas conclusões aceitamos quase inconB
dicionalmente como verdades absolutas. Quando o assunto é justiça criminal,
que sem dúvida alguma nos afeta no plano emocional, a pretensão de justiça
e moralidade aparentemente deduzida pelos meios de comunicação de forma
neutra, exerce enorme poder de convencimento. Estamos prontos a admitir o
veredicto da imprensa.
Até os juízes estão sujeitos a se convencer pelo que assistem pelos meios de
comunicação. LETRIA assinala que se o dilema da Informação e da Justiça nunca
foi facilmente solucionado, o “perigo reside na ocasional rendição dos tribunais, ou
dos juízes, ou ainda dos jurados a essas pressões, por vezes sucumbindo à tensão medi/

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ática ou à dos cidadãos comuns, nas aparições públicas”45. Em Portugal é assim. No


Brasil isso ainda é mais grave dada a timidez dos recursos colocados à disposiB
ção dos eventuais prejudicados diretos.
No entanto, a pretensão de legitimidade dos meios de comunicação em
uma conjuntura na qual o estado de direito é uma miragem incompreensível
para a maioria das pessoas, tem colocado as empresas de comunicação em uma
posição privilegiada. Com efeito, não raramente os meios usam métodos de
invasão da privacidade alheia inadmissíveis no processo penal tradicional. O
emprego destes recursos não causa espanto porque sequer é objeto de debate
visível nos próprios meios e assim passa encoberto por uma suposta eficiência
na revelação da verdade e denúncia dos criminosos.
Aquilo que o Estado não admite para si, tal seja, o recurso a provas ilíciB
tas, termina sendo utilizado pelos meios de comunicação de massas para exploB
rar sua presumida legitimidade. Antes de se legitimarem pelo procedimento,
legitimam/se pelos resultados, exatamente como os juízes inquisidores da Idade
Média! O fim dessa história é conhecido, especialmente o capítulo que trata da
confusão entre acusador e juiz.

Parte 3 – A fidelidade do juiz à lei penal


O que se põe ao juiz criminal brasileiro, observado este estado de coisas?
Como foi ponderado, em um estado de direito verdadeiro o norte são as
promessas de emancipação, traduzidas na autonomia de cada pessoa e de todas
as pessoas, promessas que devem ser perseguidas permanentemente.
Os obstáculos aparecem no campo penal quando são praticados comportaB
mentos lesivos à conquista desta autonomia e aos interesses vitais da totalidade
das pessoas ou da maioria do grupo social.
A identificação destes comportamentos deve passar por amplo debate soB
cial, que legitime as intervenções mais rigorosas, respeitadas as conquistas da
civilização moderna, que está pautada pela racionalidade e pela humanidade.
Neste sentido, a reconstrução da república brasileira impõe que todos os
poderes legais, públicos e privados, acatem os procedimentos que asseguram
racionalidade e humanidade, limites até mesmo à vontade da maioria.
Uma república com essas características deve ser concebida em função de
um poder ascendente, exercido da base para o cume, da maioria da população
para o Estado, em um ambiente em que as únicas diferenças de tratamento aceiB

45 LETRIA, Joaquim. A Verdade Confiscada: escândalo – armadilha da nova censura, Lisboa, Notícias, 1998,
p. 30.

198
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tas são as que preservam a identidade das pessoas e contribuem para seu proB
gresso em termos de fruição universal dos benefícios alcançados neste estágio
da humanidade.
Por isso, a questão do conteúdo da lei é essencial. E ao juiz penal cabe atriB
buir o necessário significado à norma jurídica de modo que o objetivo de possiB
bilitar autonomia venha a ser conquistado ou mantido, conforme o caso.
No caso brasileiro, a interpretação da lei penal incriminadora ou, dito de ouB
tra maneira, a fidelidade do juiz à lei penal incriminadora, revesteBse das seguinB
tes peculiaridades: a lei penal que tutela situações discriminatórias ou voltadas
à perpetuação das desigualdades sociais fere o pacto social, viola a Constituição
da República e é inválida. Cabe ao juiz deixar de aplicáBla. Com isso, por exemB
plo, a incriminação dos movimentos sociais de reforma agrária se transforma em
matéria no mínimo de discutível constitucionalidade; quando a proteção penal
obedecer à cláusula de tutela dos interesses da maioria ou da generalidade das
pessoas, o juiz penal não deve se esquecer do caráter excepcional da intervenção
do sistema punitivo, cumprindo interpretar a lei penal de forma restritiva.
Finalmente, as chamadas garantias processuais são o passaporte de qualB
quer Estado para o mundo civilizado. São as primeiras regras desrespeitadas
quando surgem os governos autoritários. E, pois, não são suprimíveis quando
se trata de postular tratamento racional e humano às causas criminais. O juiz
não pode abdicar das garantias processuais, independentemente de quem esteja
sendo processado e da natureza da infração penal atribuída ao acusado.
No caso brasileiro é possível notar duas tendências: os crimes violentos
e aqueles supostamente cometidos por pessoas com alguma notoriedade são
apurados com escassa preocupação em tornar efetivas as garantias processuais.
Estas são consideradas verdadeiros óbices à apuração do fato e punição de seu
autor e por esse motivo não são objeto constante da atenção dos operadores juríB
dicos. Nos processos em que os réus gozam de notoriedade e simultaneamente
dispõem de recursos para contratar bons advogados, o desprezo às garantias
processuais resulta, não raro, em nulidade e prescrição, enfim, em não punição,
explorada pelos meios de comunicação como prova da fragilidade do sistema e
falta de credibilidade da Justiça. Nos demais casos, a defesa penal meramente
figurativa ou ineficiente normalmente não chega a ser proclamada ineficaz, geB
rando assim crua repressão aos que estão nos estratos inferiores da comunidade.
Além disso, há toda sorte de infrações penais que parecem não despertar
o interesse do Estado. O aumento das situações de litígio e a universalização do
acesso à justiça aumentaram o custo econômico da intervenção judicial. Quanto
a elas optouBse pela drástica redução da intervenção estatal, abdicandoBse das

199
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garantias processuais como no outro caso, porém supostamente com autorizaB


ção constitucional.
O juiz penal, como guardião das promessas da modernidade, não pode
desinteressarBse da qualidade da prestação jurisdicional que está obrigado a enB
tregar nem tampouco descuidarBse de seu importante papel como mediador dos
conflitos sociais. Sua atitude de zelador das garantias processuais, em caráter
universal, isto é, para todas as pessoas, o conduz à posição de garante dos prinB
cípios republicanos e da Democracia.

200
2ª Parte
Embargos Infringentes:
Machado de Assis e a oportunidade da Justiça

5ª CÂMARA CRIMINAL
EMBARGOS INFRINGENTES Nº 2008.054.00076
JUÍZO DE ORIGEM: 25ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DA CAPITAL e
2ª CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EMBARGANTE: XXXXXX
EMBARGADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES. DIREITO PENAL E


PROCESSUAL PENAL. PERÍMETRO DECISÓRIO NOS EM-
BARGOS INFRINGENTES. SUPERVENIÊNCIA DE LEI NOVA,
MAIS FAVORÁVEL, NO PERÍODO ENTRE O JULGAMENTO DA
APELAÇÃO E A OPOSIÇÃO DOS EMBARGOS. CABIMENTO
DE SUA APLICAÇÃO NO JULGAMENTO DOS EMBARGOS.
PREVALÊNCIA DA TUTELA DA LIBERDADE. CONDENAÇÃO
POR TRÁFICO DE DROGAS. DIVERGÊNCIA NA APELAÇÃO
ASSENTADA NA POSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO DA
PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE
DIREITOS. PRIMARIEDADE E BONS ANTECEDENTES RE-
CONHECIDOS NA SENTENÇA E NO ACÓRDÃO. CRIME
PRATICADO NA VIGÊNCIA DA LEI 6.368/76. AUSÊNCIA
DE VEDAÇÃO LEGAL À SUBSTITUIÇÃO POR PENAS NÃO
ENCARCERADORAS. VOTO VENCEDOR PROLATADO NA
VIGÊNCIA DA LEI 11.343/06. REDUÇÃO DA PENA PRIVATIVA
DE LIBERDADE QUE SE IMPÕE. ARTIGO 33, §4º, DA LEI
11.343/06. INEXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE VINCULAÇÃO
DO EMBARGANTE À ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA, AS-
SOCIADO AO RECONHECIMENTO DA PRIMARIEDADE
E DOS BONS ANTECEDENTES. INCIDÊNCIA DA CAUSA
ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA. COMPETÊNCIA

203
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DESTE TRIBUNAL. REDUÇÃO DA PENA APLICADA DE


OFÍCIO. RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA. EXTINÇÃO
DA PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO
PUNITIVA. Embargante condenado pela prática da conduta
definida no artigo 12 da Lei 6.368/76 às penas de três anos de
reclusão, a ser cumprida integralmente em regime fechado, e
cinqüenta dias-multa (fls. 190). Acórdão proferido em 07 de julho
de 2005 pela Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro (fls. 333/340) no julgamento da apelação
interposta pela Defesa. Decisão que, por unanimidade, manteve a
sentença recorrida. Embargos de Declaração opostos pela Defesa
com efeitos infringentes, com o pleito do reconhecimento da
progressão de regime (fls. 343/4). Embargos de declaração providos
à unanimidade de votos (fls. 347/9) em 22 de agosto de 2006. Novos
embargos de declaração opostos pela Defesa em 15 de dezembro
de 2006 (fls. 352/8) com o escopo de assegurar ao recorrente o
direito à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva
de direitos, tendo sido negado provimento, por maioria de votos,
em 17 de julho de 2007 (fls. 409/410). Voto vencido da lavra do
e. Desembargador ADILSON VIEIRA MACABU (fls. 413/6), que
os acolhia para permitir ao embargante a substituição de pena
pretendida. Divergência que repousa na possibilidade de se
aplicar a substituição da pena privativa de liberdade por penas
restritivas de direitos nas hipóteses de condenação pela prática do
crime de tráfico de drogas. Acusado primário. Sentença e acórdão
que não apresentam motivação fundada em fato concreto para
justificar a não substituição da pena privativa de liberdade por
restritivas de direitos. Crime praticado ainda na vigência da Lei
6.368/76, à época em que não havia objeção legal à substituição
da pena privativa de liberdade em tráfico de drogas. Precedentes
do Supremo Tribunal Federal. Crime assemelhado aos hediondos
que por si só não tem o condão de impedir a aplicação de tal
medida. Restrição que nunca esteve prevista na Lei 6.368/76.
Possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos. Possibilidade, ainda, de aplicação da causa
especial de diminuição de pena prevista no artigo 33, §4º, da Lei
11.343/06, que não foi objeto de exame nos sucessivos acórdãos
prolatados pela e. Segunda Câmara Criminal. Apelação interposta

204
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(05 de dezembro de 2002 – fls. 262) e julgada antes do advento


da Lei 11.343/06 (fls. 333/40 – 07 de julho de 2005) e embargos de
declaração, até os que originaram o voto vencido, opostos (11 de
abril de 2006) e julgados (22 de agosto de 2006) depois da vigência
da Lei 11.343/06. Admissibilidade do reconhecimento da lei penal
mais benéfica em sede de embargos infringentes. Perímetro
decisório traçado nos embargos infringentes pelo voto vencido, o
que não obsta a análise e conseqüente incidência da norma penal
mais benéfica. Trânsito em julgado que não se verifica enquanto
pendente o julgamento dos embargos infringentes. Prevalência
da tutela constitucional da liberdade. Competência da Vara de
Execuções Penais que se afasta por este motivo. Entendimento
pacificado no e. Supremo Tribunal Federal no verbete nº 611 de
suas súmulas e no enunciado nº 33 da Súmula de Unificação de
Jurisprudência da Vara de Execuções Penais. Contraditório que se
encontra preservado na medida em que os dados da realidade que,
uma vez preenchidos, permitem a diminuição de pena por conta
da lei penal mais benéfica, foram extraídos das provas produzidas
no decorrer da instrução criminal. Primariedade do acusado,
quantidade de droga apreendida e ausência de prova de sua
participação em organização criminosa que estão reconhecidos na
sentença condenatória – que fixou a pena-base no mínimo legal –
e foram submetidos ao debate em contraditório. Pena aquietada
em um ano de reclusão e dezesseis dias-multa, substituída por
restritiva de direitos. Reconhecimento do advento do prazo da
prescrição da pretensão punitiva, tendo em vista a quantidade da
pena privativa de liberdade imposta. Extinção da punibilidade
do crime imputado ao embargante que se declara nos termos do
artigo 107, inciso IV c/c artigo 109, inciso V, e artigo 110, caput,
todos do Código Penal
EMBARGOS CONHECIDOS E ACOLHIDOS.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos dos Embargos Infringentes e


de Nulidade n.º 2008.054.00076, em que é embargante JOÃO e embargado o
MINISTÉRIO PÚBLICO.

205
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ACORDAM os Desembargadores da Quinta Câmara Criminal do Tribunal


de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão realizada no dia 23 de
outubro de 2008, em, POR UNANIMIDADE de votos, conhecer os Embargos
Infringentes para dar-lhes provimento nos termos do voto minoritário e
aplicar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos
e também, POR MAIORIA, para reduzir a pena privativa de liberdade
do recorrente para um ano de reclusão e dezesseis dias-multa, aplicando-
se o artigo 33, §4º, da Lei 11.343/06. Em conseqüência, declarou-se extinta a
punibilidade do fato, tendo em vista a prescrição da pretensão punitiva
(artigo 107, inciso IV c/c artigo 109, inciso V, e artigo 110, caput, todos do Código
Penal). Vencidos nesta parte o Desembargador Revisor Paulo de Tarso Neves e a
Desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita.

Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2008.

DES. GERALDO PRADO


RELATOR

DES. PAULO DE TARSO NEVES


VOTO VENCIDO

DES. ROSA HELENA PENNA MACEDO GUITA


VOTO VENCIDO

VOTO

Antes de enfrentar as questões propriamente jurídicas colocadas nestes


Embargos o registro do teor dos debates orais merece ser feito, haja vista que a
importância na definição das alternativas de decisão muito dificilmente pode ser
captada e retida pelo texto escrito na mesma dimensão do voto oral.
É que participaram do julgamento os e. Desembargadores Paulo de Tarso
Neves, Rosa Helena Penna Macedo Guita, Nildson Araújo da Cruz e Sérgio de
Souza Verani.
Muito embora tenha havido consenso a respeito da questão central dos
embargos – pertinência do voto minoritário para o fim de substituir a pena
privativa de liberdade por restritiva de direitos – não ocorreu o mesmo em
relação à aplicação retroativa da atual Lei de Drogas, quanto à incidência de
causa especial de diminuição de pena.

206
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Sobre este ponto – da aplicação retroativa de lei nova, superveniente ao


julgamento da apelação original – todos os integrantes do Colegiado estavam de
acordo no sentido de que o embargante preenchia os requisitos para se beneficiar
com a redução da pena. Os desembargadores Paulo de Tarso e Rosa Helena,
todavia, entendiam que o tema fugia ao perímetro de decisão dos Embargos,
pois que estes foram opostos visando exclusivamente substituir a pena de
reclusão por restritiva de direitos.
De acordo com o entendimento esposado pelo e. revisor e pela desemB
bargadora Rosa Helena, a aplicação de lei posterior benéfica ficaria reservada ao
juiz da execução, conforme dispõe o artigo 66, inciso I, da Lei de Execução Penal.
O julgamento chegou ao impasse quando votou o desembargador Nildson
Araújo, acolhendo a tese deste relator, pela possibilidade de aplicação imediata
da lei nova mais favorável.
Desnecessário sublinhar a excelência dos argumentos expostos pelos três
eminentes magistrados – Paulo de Tarso, Rosa Helena e Nildson Araújo. Quem
conhece as decisões que proferem não tem dúvida a respeito da sensibilidade
destes julgadores, do cuidado ao examinarem as causas e da profundidade de
seus pronunciamentos.
Por isso o impasse corria o risco de indiciar solução mais próxima dos
alinhamentos ideológicos que são próprios de qualquer colegiado, do que
pela afirmação de algum princípio jurídico superior a orientar a interpretação/
aplicação das normas jurídicas no caso concreto.
O voto de desempate foi proferido pelo desembargador Sérgio Verani, que
também presidia a Sessão.
Os que se acostumaram a ver o desembargador Sérgio Verani julgar
conhecem bem sua técnica de argumentar, afiada ao longo do tempo por uma
invulgar cultura e pela destemida defesa de pontos de vista contrários à expansão
dos sofrimentos. Ademais, percebeBse ainda nele a influência da convivência
com o (hoje aposentado) desembargador Silvio Teixeira, que sempre iniciava
suas manifestações associandoBas a episódios históricos ou da vida cotidiana,
dos quais era possível, com sua sabedoria mineira, extrair o princípio que regeria
a (melhor) solução jurídica.
E o presidente Sérgio Verani começou a votar invocando Machado de Assis
(cujo centenário de sua morte é lembrado neste ano de 2008).
Citando Sidney Chalhoub, em Machado de Assis Historiador1, o desemB
bargador Sérgio Verani lembrou os tempos em que o “bruxo” trabalhava no

1 Companhia das Letras, São Paulo, 2003, p. 192 e seguintes.

207
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Ministério da Agricultura2. E registrou que data desta época a troca de escritos


entre Machado e JOÃO de Alencar, em torno do tema da abolição da escravidão.
Entre contos e vivendo seu tempo o escritor, sublinhou Sérgio Verani, valiaB
se de sua arte para, nas palavras de Sidney Chalhoub, aparentemente reconhecer
que “a mensagem inescapável do conto é a necessidade de o poder público submeter o
poder privado dos senhores ao domínio da lei. Era preciso intervir nas relações entre
senhores e escravos e promover a superação da instituição da escravidão, enfrentando
decididamente os interesses sociais e econômicos que ainda a sustentavam”3.
Em seu voto, o desembargador Sérgio Verani precisou que se tratava do debate
aceso com a Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871, e as
estratégias em disputa sobre como encerrar, definitivamente, a escravidão no Brasil.
Pontuou Sérgio Verani a posição de Machado de Assis, exprimida nos
escritos do Primeiro Oficial em resposta ao Deputado e também escritor JOÃO
de Alencar: não há como esperar o fim da escravidão pelo desaparecimento
dos escravos em virtude da Lei do Ventre Livre! Não se cuidava de “‘questão de
forma e oportunidade’, como diziam os próprios escravocratas”4. Era preciso ir
além. Reconhecer a lógica hegemônica das engrenagens hierárquicas e desiguais
da sociedade brasileira para imediatamente agir sobre elas, pondo fim ao
sofrimento. Este era (seria?) o papel do Estado!
Em outras palavras: uma sociedade não pode reivindicar o status de
sociedade democrática se posterga, transferindo ao futuro incerto, a solução de
seus graves problemas!
O laço entre ambas as situações – a do fim da escravidão e a deste processo
B, malgrado não guardarem a mesma proporção, até porque o embargante ficará
solto qualquer que seja a tese vitoriosa, está no princípio da liberdade.
Com efeito, a linha condutora da tarefa de interpretação/aplicação das
normas penais (incluindo aí as processuais) há de ser a tutela constitucional da
liberdade.
Naqueles casos em que a ausência de liberdade ou o risco desta privação
representa um desvalor, porque carece logo do fundamento da legalidade, não
se deve reservar ao futuro a ação emancipatória.

2 Miguel Matos informa que Machado de Assis ingressou no Ministério da Agricultura em 1873, aos
trinta e três anos de idade, na função de amanuense. Esclarece que Machado era já escritor de renome
e que aos poucos ele ascendeu ao posto de Primeiro Oficial, com a responsabilidade pela emissão de
pareceres nas mais variadas áreas e com destaque para as ações de liberdade dos escravos. Doutor
Machado: o direito na vida e na obra de Machado de Assis. Le[era.doc. Ribeirão Preto, São Paulo,
2008, p. 107/115.
3 Obra citada, p. 137. TrataBse de análise do conto XXXX.
4 Idem.

208
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Assim, se é certo que o embargante é titular do direito à redução da pena


e todos os julgadores estão de acordo com isso, a interpretação do âmbito
normativo dos embargos infringentes, em face da superveniência de lei nova,
mais favorável ao acusado, deve levar em conta o imperativo em que se constitui
a tutela desta liberdade!
Em linhas gerais – e com as desculpas prévias dirigidas ao desembargador
Sérgio Verani por talvez não ter conseguido captar por inteiro os seus argumentos
– foi este o fundamento da maioria para reconhecer, imediatamente, o direito do
embargante.
Vamos ao voto!

I – Possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por


restritiva de direitos em crime de tráfico de drogas – artigo 12 da Lei 6.368/76.

O embargante foi condenado pela prática da conduta definida no artigo 12


da Lei 6.368/76 às penas de três anos de reclusão, a ser cumprida integralmente
em regime fechado, e cinqüenta diasBmulta.
A Defesa apelou e o acórdão proferido pela Segunda Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (fls. 333/340) negou provimento ao recurso.
Por unanimidade a sentença foi mantida.
Foram opostos pela Defesa embargos de declaração com efeitos infringentes
para que o juízo em segundo grau se pronunciasse a respeito da possibilidade
de progressão de regime (fls. 343/4). Os referidos embargos foram providos
à unanimidade de votos (fls. 347/9), tendo sido fixado inicialmente o regime
fechado para o cumprimento da pena privativa de liberdade.
Novos embargos de declaração foram opostos pela Defesa, desta vez para
assegurar ao recorrente o direito à substituição da pena privativa de liberdade
por restritiva de direitos, tendo sido negado provimento ao recurso por maioria
de votos, conforme acórdão de fls. 409/410.
Nesta ocasião, votou vencido o Desembargador ADILSON VIEIRA
MACABU (fls. 413/6), que acolhia os embargos de declaração para permitir ao
embargante a substituição de pena pretendida.
Diante de tal divergência, a Defesa interpôs embargos infringentes (fls.
419/423), com o escopo de ver prevalecer o voto vencido, com a conseqüente
substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Assim é que a divergência repousa, primeiramente, na possibilidade de se
deferir a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de
direitos nas hipóteses de condenação pela prática do crime de tráfico de drogas.

209
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Com efeito, a sentença proferida no juízo da 25ª Vara Criminal, ainda


sob a égide da Lei 6.368/76, negou a substituição com fulcro na jurisprudência
dominante à época e especialmente no fato de que a Lei 8.072/80, em sua redação
original, não permitia a progressão de regime aos condenados pela prática de
crime hediondo ou equiparado.
O voto vencedor nos segundos embargos de declaração opostos, prolatado
na vigência da Lei 11.343/06, aduziu que não obstante a Lei 11.464/07 ter
permitido a progressão de regime em crimes hediondos, a referida previsão
legal não teria afastado a hediondez do crime de tráfico de drogas. Em reforço à
referida tese, argumentouBse que a nova Lei de Drogas impediria, igualmente, a
substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
Em que pesem os argumentos acima delineados, certo é que o acusado
é primário e a sentença e o acórdão guerreados não apresentam motivação
fundada em fato concreto para justificar a não substituição da pena privativa de
liberdade por restritivas de direitos.
Na verdade, o crime foi praticado ainda na vigência da Lei 6.368/76 e, à
época, não havia objeção legal à substituição da pena privativa de liberdade em
tráfico de drogas.
Há inúmeros precedentes do Supremo Tribunal Federal em abono à tese
aqui defendida, em que foi reconhecida a aplicação do artigo 44 do Código Penal
ao tráfico de drogas, inclusive antes do advento da Lei 11.464/07.

EMENTA: I. Habeas corpus: deficiência da fundamentação: indeB


ferimento. II. Sentença condenatória por tráfico de entorpecentes.
Pena privativa de liberdade: cabimento da substituição por resB
tritiva de direitos, na condenação por fato ocorrido na vigência da
L. 6.368/76: inadmissibilidade da aplicação retroativa de lei penal
posterior mais gravosa (CF/88, art. 5º, XL). III. Habeas corpus:
deferimento, de ofício, para anular o acórdão da apelação no ponto
em que indeferiu a substituição da pena privativa de liberdade,
devendo o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul prosseguir
no julgamento da apelação, analisando, como entender de direito,
a presença dos requisitos para a substituição contidos no art.
44 do C. Penal. Decisão HC 91600 / RS B RIO GRANDE DO SUL
Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE Julgamento: 07/08/2007 Órgão
Julgador: Primeira Turma

210
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EMENTA: PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS.


TRÁFICO DE ENTORPECENTES. SUBSTITUIÇÃO DE PENA
PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. LEI
6.368/76. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE. APLICAÇÃO DO ART.
44 DO CÓDIGO PENAL. REQUISITOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS
PRESENTES. ORDEM CONCEDIDA. 1. A regra do art. 44 do
Código Penal é aplicável ao crime de tráfico de entorpecentes,
ocorrido sob a égide da Lei 6.368/76, desde que observados os
requisitos objetivos e subjetivos, no caso concreto. Precedente. 2.
Ordem concedida. HC 84715 / SP B SÃO PAULO Relator(a): Min.
JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 08/05/2007. Órgão Julgador:
Segunda Turma

EMENTA: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES.


SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE
POR PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. INOVAÇÃO. NÃOB
CONHECIMENTO. PROGRESSÃO DE REGIME. LIMINAR DE
OFÍCIO. 1. Condenação por tráfico de entorpecentes. Substituição
da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos. Pleito
não submetido às instâncias precedentes. NãoBconhecimento, por
implicar supressão de instância. 2. Liminar concedida de ofício para
assegurar, até o julgamento definitivo pelo Pleno do HC 82.959, a
progressão do regime de cumprimento da pena, ficando a cargo do
juiz da execução a análise dos requisitos objetivos e subjetivos do
benefício. HC deferido, em parte. HC 87035 / TO – TOCANTINS
Relator(a): Min. EROS GRAU Julgamento: 07/02/2006 Órgão
Julgador: Primeira Turma Publicação

Quando no exercício da titularidade da 37ª Vara Criminal proferi várias


sentenças condenatórias por tráfico de drogas em que reconheci a aplicabilidade
do artigo 44 do Código Penal para substituir a pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos.
Isto porque o fato de se tratar de crime assemelhado aos hediondos,
conforme defendido no voto vencedor, não tem o condão de impedir a aplicação
de tal medida, sendo certo que a referida restrição nunca esteve prevista na Lei
6.368/76.

211
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Ainda sob égide da revogada Lei LUIZ FLÁVIO GOMES5 asseverava


que “Não resta a menor dúvida de que em tese, pela pena aplicada, cabe a
substituição da pena de prisão nos denominados crimes hediondos, tal como é
o caso, por exemplo, do delito de tráfico de drogas...”.
Como se não bastasse, eventual alegação de que a substituição seria
impossível porque estaríamos diante de lei especial – dos crimes hediondos – e
por isso com regulamento peculiar, que prevalece sobre lei geral, ateria contra os
critérios de hermenêutica de que se vale o Direito.
É necessário perceber que o Direito Penal constitui um dos alicerces de um
sistema, compreendendo normas, princípios, institutos e instituições que, sob
pena de padecerem de ineficiência, devem funcionar de maneira harmônica e
concatenada. Essa é a razão da reserva de disciplina do Código Penal em relação
à legislação não codificada, que autores chamam de princípio da reserva de
Código Penal, pelo qual a orientação básica de aplicação da lei penal – critérios
de definição dos crimes, com determinação da existência (vínculo de imputação)
e qualidade das condutas (dolosa ou culposa), extensão do âmbito de punição
(tentativa ou consumação, concursos material e formal, crime continuado) e
regras de aplicação das sanções – obedece a uma coerente uniformidade.
Neste contexto, a modificação de fragmentos da parte geral do Código Penal
necessariamente haverá de incidir sobre a legislação especial – ampliando ou
reduzindo o momento de intervenção penal, caso fosse modificado o critério de
determinação da tentativa, por exemplo – salvo, é claro, se expressa disposição
vier a impedir a aplicação ou regular diversamente a matéria, o que não ocorreu.
Sendo assim, uma vez tendo o delito sido praticado sem violência ou
grave ameaça à pessoa, sendo o agente primário e de bons antecedentes e a
pena aplicada inferior a quatro anos de reclusão, deve ser reconhecido o direito
subjetivo do réu em cumprir a pena que lhe foi imposta por meio de restrição de
determinados direitos.

II – Aplicabilidade do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06.

Por fim, vale destacar que além da primariedade do embargante, tanto


a sentença como o acórdão, em seu voto vencedor e o voto vencido, não
reconheceram qualquer vínculo do recorrente com atividade e organização
criminosas.

5 Penas e Medidas Alternativas à Prisão, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 111

212
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É verdade que foi apreendida cocaína e maconha em poder de JOÃO. Nada


obstante, a quantidade de droga, qual seja, 135g de maconha e 6,6g de cocaína
não é significativa.
O recurso de apelação foi interposto antes do advento da Lei 11.343/06 e o
respectivo acórdão foi proferido em 07 de julho de 2005 (fls. 333/40).
Os embargos de declaração opostos pela Defesa com efeitos infringentes e os
embargos de declaração que originaram o voto vencido que ora se pretende ver
prevalecer foram apresentados e julgados depois da vigência da Lei 11.343/06.
Em ambos os casos não houve exame do cabimento da hipótese do § 4º do
artigo 33 da Lei 11.343/06, omissão que pode ser corrigida pela via dos embargos
infringentes e de nulidade, motivo pelo qual assim o faço.
Isto porque em se tratando de novatio legis in melius a sua aplicação é
imediata nos termos do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal e, neste
contexto, deve retroagir para alcançar os fatos pretéritos, uma vez preenchidos
os requisitos previstos na referida legislação6.
Ao tratar da sucessão de leis penais no tempo e o princípio da aplicação da
lei penal mais favorável, AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO7 destaca que a
sua retroatividade fundamentouBse inicialmente em questões políticoBcriminais
– concepção preventiva da pena B e não em “razões humanitárias”.
Citando a obra de LEVY MARIA JORDÃO (Commentários ao Código Penal
Portuguez, t. I, Lisboa:Morando [1853], 169), o referido autor ressalta que “além
disso comminando uma pena mais suave o Legislador renunciou ao direito que
tinha de requerer a aplicação da pena mais forte...”.
A evolução do tema permitiu ao autor concluir que8:

“De tudo parece poder concluirBse que é, hoje, incorrecta a


classificação da proibição da retroactividade como princípio geral
da ‘aplicação da lei penal no tempo’ e da retroactividade da lei
mais favorável como exceçpão. Deverá antes, e com legitimidade,
afirmarBse que o princípio é o da aplicação da lei penal mais favorável.”

Os embargos infringentes, por certo, estão limitados ao voto vencido,


conforme destaca GUILHERME DE SOUZA NUCCI9:

6 Luiz Flávio Gomes. Nova Lei de Drogas Comentada. Lei 11.323, de 23.08.2006, RT, 1ª Ed. 2006, pg. 165
7 CARVALHO, Américo A. Taipa de. Sucessão de leis penais. 2ª edição revista. Editoria Coimbra: 1997,
p. 96.
8 CARVALHO, Américo A. Taipa de, ob. cit. p. 107
9 Código de Processo Penal Comentado. 5ª edição. Ed. RT. São Paulo:2006, p.972

213
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“o voto vencido, inspirador da decisão não unânime, pode ter


divergido frontal e integralmente dos demais, propiciando amplo
conhecimento pela câmara ou turma ampliada a respeito da matéria
julgada, bem como pode divergir somente em alguns aspectos,
limitando, então, o recurso do réu ao tema objeto da controvérsia”.

É importante que se diga que embora o limite dos embargos infringentes


esteja fixado pelo voto vencido, não há obstáculo processual à análise e
conseqüente incidência da norma penal mais benéfica.
Ademais enquanto pendente decisão nos embargos infringentes não há
trânsito em julgado, o que faz com que a competência para julgar o cabimento e
aplicar o referido instituto seja do Tribunal de Justiça.
Por este motivo, o possível reconhecimento da aplicabilidade do §4º do
artigo 33 da Lei 11.343/06, não caberá ao juiz da execução.
TrataBse de entendimento pacificado no e. Supremo Tribunal Federal no
verbete nº 611 de suas súmulas que dispõem:

“Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das


execuções a aplicação da lei mais benigna”.

O referido entendimento encontraBse, ainda, expressamente disciplinado


no enunciado nº 33 da Súmula de Unificação de Jurisprudência da Vara de
Execuções Penais ao determinar que:

“Por força do disposto no art. 66, inciso I, da LEP, e nos precisos termos
do enunciado de Súmula de n° 611 do STF, compete ao Juízo de Execução
a aplicação da redução da pena prevista no §4º do art. 33, da Lei n.
11.343/2006 aos casos julgados sob a égide da lei anterior”.

AfastaBse, neste ponto, eventual questionamento no que toca à competência


para apreciar a incidência da causa especial de diminuição de pena, conforme
destacado.
O contraditório encontraBse preservado na medida em que os dados da
realidade que, uma vez preenchidos, permitem a diminuição de pena por conta
da lei penal mais benéfica, foram extraídos das provas produzidas no decorrer
da instrução criminal.
A primariedade do acusado, a quantidade de droga apreendida e a ausência
de prova de sua participação em organização criminosa estão reconhecidos

214
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na sentença condenatória – que fixou a penaBbase no mínimo legal – e foram


submetidos ao debate em contraditório.
RespeitaramBse as provas produzidas no processo, sem alteração do núcleo
da decisão impugnada B que no caso consiste na afirmação de que o condenado
estava traficando drogas.
Convém destacar que a hipótese não trata de causa de diminuição de pena
prevista em lei ao tempo do fato e que se caracterizou pelo surgimento de provas
novas. Aqui sim, a manifestação do Ministério Público seria imprescindível para
a preservação do contraditório.
Assim, levandoBse em consideração a quantidade de drogas apreendida e
adotandoBse, ainda, a sistemática introduzida pela Lei 11.323/06, a pena há de
ser diminuída, nos termos do artigo 33, § 4º, desta Lei, aquietandoBse, ao final,
em um ano de reclusão e dezesseis dias-multa.
Ao fim e ao cabo destaco que o fato imputado ao embargante foi praticado em
08 de setembro de 2001 e a denúncia foi recebida em 14 de setembro de 2001 (fls. 02).
O recurso de apelação e os embargos de declaração foram opostos
exclusivamente pela Defesa e em razão da quantidade da pena privativa de
liberdade imposta, cujo patamar não excede a dois anos, o caso é de incidência
da prescrição, tendo por marco normativo o tempo indicado no inciso V, do
artigo 109, do Código Penal, isto é, quatro anos.
LevandoBse em conta que o transcurso do prazo prescricional teve início
com o recebimento da denúncia em 14 de setembro de 2001, sem a verificação de
novo marco interruptivo, é inegável o implemento da prescrição da pretensão
punitiva (artigo 107, inciso V c/c artigo 110, caput todos do Código Penal).
Por tais motivos, meu voto é no sentido de DAR PROVIMENTO AOS
EMBARGOS INFRINGENTES para, de ofício, reduzir a pena privativa
de liberdade do recorrente para um ano de reclusão e dezesseis dias-multa
e acolher o voto vencido para permitir ao embargante a substituição da pena
privativa de liberdade por restritiva de direitos, a ser instituída pelo Juízo da
Vara de Execuções Penais.
Voto, ainda, no sentido de reconhecer o advento do prazo da prescrição da
pretensão punitiva para declarar extinta a punibilidade do crime imputado ao
embargante, nos termos do artigo 107, inciso IV c/c artigo 109, inciso V, e artigo
110, caput, todos do Código Penal.
Rio de Janeiro, 23 de outubro de 2008.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

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Presunção de Inocência e nemo tenetur

5ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS 2009.059.05652
AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DA 3.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA
DE CAMPOS DOS GOYTACAZES
IMPETRANTE: XXXX
PACIENTE: YYYY
RELATOR: DESEMBARGADPR GERALDO PRADO

EMENTA: HABEAS CORPUS. DIREITO DE APELAR EM LI-


BERDADE. ROUBO EM CONCURSO DE AGENTES. CON-
DENAÇÃO À PENA DE 4 (QUATRO) ANOS DE RECLUSÃO,
A SEREM CUMPRIDOS INICIALMENTE EM REGIME SE-
MIABERTO. RECONHECIMENTO NA SENTENÇA DA PRI-
MARIEDADE E DOS BONS ANTECEDENTES. DECRETAÇÃO
SIMULTÂNEA DA PRISÃO PREVENTIVA. REGIME DE PENA
FUNDADO NO SENSO DE RESPONSABILIDADE PESSOAL
E AUTODISCIPLINA DO APENADO. CONTRADIÇÃO EN-
TRE ESTA SITUAÇÃO E A DECRETAÇÃO DA PRISÃO PRO-
CESSUAL. ARTIGO 387, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO
DE PROCESSO PENAL, EM SUA NOVA REDAÇÃO, QUE
EXIGE O RISCO À APLICAÇÃO DA LEI PENAL COMO DA-
DO CONCRETO A EMBASAR A DECRETAÇÃO DA PRISÃO
PREVENTIVA NA SENTENÇA. AUSÊNCIA DE DEVER DE
COMPARECIMENTO DO ACUSADO INTIMADO PESSOAL-
MENTE DA DATA DA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JUL-
GAMENTO. NEMO TENETUR SE DETEGERE. ARTIGO 367 DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PACIENTE QUE COMPROVA
ATIVIDADE LABORATIVA LÍCITA E RESIDÊNCIA FIXA,
NA QUAL FOI ENCONTRADO PARA SER INTIMADO DA
SENTENÇA. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA QUE EXIGE
DEMONSTRAÇÃO DE QUADRO FÁTICO EXCEPCIONAL QUE
LEGITIME A DECRETAÇÃO DE PRISÃO ANTES DO TRÂNSITO
EM JULGADO DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA.

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Paciente condenado pela prática do crime de roubo em concurso


de agentes, às penas de 4 (quatro) anos de reclusão, a serem
cumpridos em regime semiaberto, e 10 (dez) diasBmulta. Prisão
preventiva decretada por ocasião da prolação da sentença, em que
se reconheceram a primariedade e os bons antecedentes do paciente.
Exigência de fundamentação da decisão que decreta a prisão
cautelar na sentença que se verifica não só por força do que dispõe
agora de forma expressa o parágrafo único do artigo 387 do Código
de Processo Penal, mas principalmente porque o cumprimento de
pena em regime semiaberto, ainda que provisoriamente, em regra
é incompatível com os fundamentos da prisão processual. Sanção
penal que está baseada no senso de responsabilidade pessoal e
autodisciplina do condenado, sendo, pois, contraditório com a
prisão preventiva, cuja execução é equiparada àquela imposta em
regime de pena fechado. Ausência, além disso, de risco à aplicação
de lei penal, haja vista a comprovação de atividade laborativa
lícita e residência fixa do paciente, que foi encontrado em sua casa
quando do cumprimento do mandado de intimação para ciência de
sentença. Ausência de dever de comparecimento do acusado que,
tendo respondido solto a grande parte do processo, foi intimado
pessoalmente da data designada para a Audiência de Instrução
e Julgamento. Nemo tenetur se detegere. Artigo 367 do Código de
Processo Penal. Presunção de inocência que exige quadro fático
excepcional, na hipótese inexistente, que legitime a decretação de
prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Constrangimento ilegal configurado.
ORDEM CONCEDIDA.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº 2008.059.05652,


em que é impetrante XXXX e paciente YYYY.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que compõem a
Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em
sessão de julgamento realizada em 13 de agosto de 2009, em julgar procedente o
pedido e CONCEDER A ORDEM, para que o paciente aguarde em liberdade o
julgamento de eventual apelação, na forma do voto do Desembargador Relator.
Expeça-se alvará de soltura.

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Presidiu a sessão o Desembargador Nildson Araújo da Cruz. Participaram


do julgamento como vogais as Desembargadoras Leony Maria Grivet Pinho e
Rosa Helena Guita.
Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

RELATÓRIO

YYYY foi processado e condenado pelo Juízo da 3.ª Vara Criminal da


Comarca de Campos dos Goytacazes, pela prática do crime de roubo em
concurso de agentes, às penas de 4 (quatro) anos de reclusão, a serem cumpridos
em regime semiaberto, e 10 (dez) diasBmulta.
Alega o impetrante que, não obstante o paciente tenha respondido a parte
do processo solto, foi decretada sua prisão preventiva quando prolatada a
sentença, embora tenha sido fixado o regime semiaberto para o cumprimento da
pena privativa de liberdade e não estejam presentes os requisitos ensejadores da
custódia cautelar.
Postula, pois, a concessão da ordem para o que o paciente aguarde solto o
trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
A inicial veio acompanhada dos documentos de fls. 09/26.
Instada a se manifestar, a digna autoridade judiciária prestou informações às
fl. 30, informando que decretou a prisão preventiva “para acautelar a sociedade
e garantir a aplicação da lei penal”, uma vez que o acusado não compareceu à
Audiência de Instrução e Julgamento, apesar de intimado.
O Ministério Público apresentou parecer às fls. 32/3, da lavra da e.
Procuradora de Justiça Maria Teresa de Andrade Ramos Ferraz, no sentido da
denegação da ordem.
É o relatório.

VOTO

A ordem deve ser concedida.


E o princípio que fundamenta a impossibilidade de decretação da prisão
preventiva é – e sempre o é, por se tratar de premissa axiológica da qual decorrem
todos os demais princípios processuais penais – o da presunção de inocência,

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que teve origem, tal como concebido hoje, nas formulações políticoBfilosóficas
iluministas.
Antes delas, o que vigia era um pacto entre clero, nobreza e soberano.
Portanto, o poder absoluto do Estado, personificado na pessoa do monarca,
legitimavaBse a partir de teorias teológicas, evidentemente em razão da forte
influência da Igreja naquele período.
Assim, ao homem a maldade era imanente, pois a inocência era concebida
não como uma qualidade, mas como um estado de pureza que, quebrado desde
que Adão cometera o pecado original, jamais seria recuperado por qualquer dos
seres humanos.
Era nesse contexto que tinha lugar a presunção de culpa e, portanto,
também a tortura como método de extração da confissão, a acusação secreta e o
sistema da prova legal tarifada, por exemplo.
Todavia, se nos tempos medieval e absolutista a supremacia políticoB
hereditária e teológica constituía o paradigma de atuação do Estado na esfera
criminal, o iluminismo trouxe à tona a necessidade de inverter a relação
indivíduoBsoberano: “Para essa nova corrente filosófica, encetada nos séculos
XVI e XVII, o ser humano não deveria ser mais visto como inimigo do Estado,
mas como fonte e destino de seu poder”10.
TrataBse, dessa forma, de uma concepção contratualista do poder,
segundo a qual os cidadãos abrem mão de sua liberdade em prol de um ente
supraindividual – o Estado –, para que ele exerça o poder que lhe foi conferido
na direção do bem dos indivíduos, como e quando por eles autorizado.
Não se tratava, portanto, de negar o Estado, mas de permitir sua intromissão
na esfera das liberdades individuais apenas quando absolutamente necessário, o
que requeria, por certo, o estabelecimento de regras que limitassem a tendência
expansiva do poder.
Era exatamente isso o que significava, na esfera penal – que talvez tenha
sido a expressão mais simbólica dos desmandos medievais e absolutistas –, a
presunção de inocência, conforme lição de Cesare Beccaria:

Um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz, e a


sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele
violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada. Qual é, pois, o

10 MORAES, Maurício Zanóide de. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua
estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. 603 f. Tese (LivreBDocência em
Direito Processual Penal) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 99.

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direito, senão o da força, que dá ao juiz o poder de aplicar pena ao cidadão,


enquanto existe dúvida sobre sua culpabilidade ou inocência?11

A inocência deixa de significar a pureza do homem que não peca – e,


portanto, não existe – para constituirBse em um “um atributo, uma qualidade ou
uma característica positiva do ´ser humano`”12.
Maurício Zanóide chama a atenção, contudo, para o questionamento que
essa verdadeira qualidade acarreta:

(...) quem pode receber aquele atributo? E, ainda: quando alguém é


merecedor de tal qualidade?
A resposta a essas perguntas exige uma tomada de posição do observador
em relação ao “outro”.13

E continua o autor:

Porém, para se responder às mesmas perguntas de modo uniforme


e coerente, exigeBse que o observador não tome apenas uma posição
sobre quem ele examina (o “outro”), mas, principalmente, sobre si
mesmo em relação ao outro. Essa posição comparativa entre o “eu”
e o “outro”, mais do que necessária, revela as razões pelas quais se
aceita, ou não, que todos “são” (potencialmente) culpados ou, ao
contrário, que todos “somos” inocentes.

A igualdade, portanto, consiste no ponto exato onde reside a relação da


presunção de inocência com a democracia.

É muito útil a lei que faz cada homem ser julgado por seus iguais, pois,
quando se trata da liberdade e do destino do cidadão, devem silenciar os
sentimentos inspirados pela desigualdade.14

E foi a partir dela que se julgou necessário positiváBla, pela primeira vez na
história, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, com a

11 Dos delitos e das penas. Trad. J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. 3.ª Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo,
2006, p. 50.
12 MORAES. Op. Cit., p. 118.
13 Ibidem.
14 BECCARIA. Op. Cit., p. 47.

220
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previsão expressa da excepcionalidade da prisão antes de declarada a culpa, tal


como sugerido por Beccaria15.
Portanto, como fundamento que veda a prisão processual desnecessária, o
princípio da presunção de inocência não é tão antigo assim, se considerados os
milhares de anos ao longo dos quais a história da humanidade se desenvolveu.
Não é, porém, tão recente, a ponto de ainda enfrentarmos dificuldades na
racionalização da relação psicológica entre o “eu” e o “outro” e na consequente
materialização do princípio da isonomia.
Tal tarefa, que deve ser realizada como enfrentamento aos inevitáveis
retrocessos com que, mesmo em épocas de mudanças radicais, a história humana
esbarra, requer a identificação dos casos em que a lei, como expressão dessa
premissa axiológica e limitadora do poder estatal, não autoriza a prisão antes do
trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
E, na atual dogmática processual penal brasileira, a presunção de
inocência, expressamente prevista no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição
da República, faz pressupor que, após a emissão de sentença de condenação o
único fundamento constitucional para a manutenção ou decretação da custódia
cautelar consiste na garantia da aplicação da lei penal, colocada em risco pela
liberdade do condenado (periculum libertatis)16.
Assim, é necessário investigar se a prisão imposta ou mantida na sentença está
fundamentada nesta direção, excluindoBse, de plano, qualquer decreto prisional
fundado na necessidade de “acautelar a sociedade”, e se a fundamentação é
coerente com o conteúdo da própria decisão, matéria perfeitamente adequada
aos limites do habeas corpus.
Na hipótese, o paciente foi condenado pela prática do crime de roubo em
concurso de agentes às penas de 4 (quatro) anos de reclusão, a serem cumpridos
em regime semiaberto, e 10 (dez) diasBmulta.
Não obstante, ele se encontra detido cautelarmente, em razão de ter sido
decretada sua prisão preventiva quando prolatada a sentença acostada às fls. 23/4.
Não há recurso por parte da acusação, o que reforça a lógica, derivada do
princípio da presunção de inocência, de que toda prisão cautelar é excepcional e
somente será decretada ou mantida quando indispensável.
Por isso, o reconhecimento da necessidade da prisão há de ser expresso
(artigo 93, inciso IX, da Constituição da República) e terá de guardar relação

15 Idem, p. 81B83.
16 LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3.ª
Ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris.

221
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com os demais termos da decisão, especialmente quando o título da custódia é


a sentença condenatória.
É verdade que o juiz de primeiro grau fundamentou o decreto prisional
na ausência do acusado à Audiência de Instrução e Julgamento cuja assentada
encontraBse às fls. 21/5.
Todavia, não podem ser desconsideradas as implicações decorrentes da
positivação do silêncio como direito fundamental na Constituição da República
(artigo 5.º, inciso LXIII), dentre elas a de não colaborar com o processo na direção
tomada pela acusação.
A esse respeito, em obra abrangente sobre o princípio nemo tenetur se
detegere, Maria Elizabeth Queijo rechaça até mesmo a condução coercitiva do
acusado que, intimado para o interrogatório, não comparece17.
Menos ainda, portanto, é possível admitir a prisão decorrente da revelia,
cujas consequências restringemBse àquelas elencadas no artigo 367 do Código
de Processo Penal18.
Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal:

AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado em necessidade de


garantia da ordem pública e aplicação da lei penal. Fundamentos ligados ao
mero fato da revelia dos réus, tida como fuga. Inadmissibilidade. Razão que
não autoriza a prisão cautelar. HC concedido. Inteligência dos arts. 5º, LVII, da
CF, e 312 do CPP. Voto vencido. É ilegal o decreto de prisão preventiva que, a
título de necessidade de garantia da ordem pública e de aplicação da lei penal,
se baseia no só fato de o réu ser revel, tomando/o por fuga.19

De qualquer sorte, o impetrante trouxe prova de que o acusado, que respondeu


a grande parte do processo solto – e pouco importa que isso tenha se dado em razão
do excesso de prazo –, possui trabalho lícito e residência fixa (fls. 09/11).
A propósito, ele foi encontrado em sua residência por ocasião do
cumprimento do mandado de intimação para ciência da sentença (fl. 26), o
que faz presumir a razoabilidade da alegação defensiva, no sentido de que o
paciente, em verdade, imaginava que receberia em casa o mandado de intimação
referente à Audiência de Instrução e Julgamento.

17 O Direito de Não Produzir Prova Contra Si Mesmo. Saraiva. São Paulo, 2003, p. 372B374.
18 TOURINHO FILHO, XXXX da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 12.ª Ed. Saraiva. São Paulo,
2009, p. 912B913.
19 HC 94759/RN. Segunda Turma. Rel. Min. Ellen Gracie. Rel. para acórdão: Min. Cezar Peluso.
Julgamento: 02/09/2008.

222
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Além disso, cabe destacar que, principalmente quando não há recurso do


Ministério Público, é a sentença que “dita a lei penal” aplicável à espécie: juris dictio.
E foi a própria sentença que reconheceu a ausência de necessidade da
prisão, pois, ao condenar o acusado por crime de roubo sem emprego de arma,
além de consignar textualmente a primariedade e bons antecedentes do paciente,
escolheu o regime semiaberto como o mais adequado.
Ocorre que o cumprimento de pena no regime aplicado na sentença é em
regra incompatível com os fundamentos da prisão processual, já que se trata de
regime intermediário que não comporta o fundamento da garantia da aplicação
da lei penal.
A esse respeito, embora renda homenagens à Procuradora de Justiça
subscritora do parecer de fls. 32/3, destaco que não há como compatibilizar a
custódia cautelar com o regime de pena imposto na sentença, que admite, nos
termos do artigo 35, § 2.º, do Código Penal, o trabalho extramuros, em razão do
disposto no artigo 300 do Código de Processo Penal.
Assim, é causa de constrangimento ilegal a decisão que reconhece
desnecessária a resposta penal fundada em rigoroso encarceramento, porém
decreta prisão processual, evidentemente excessiva e imprópria ao alcance da
finalidade de proteção do processo de execução.
Tudo isso indica que a prisão processual do paciente foi decretada, embora
com fundamentação resguardada pelo artigo 312 do Código de Processo
Penal, sem a sua necessária e adequada relação com o quadro fático concreto
apresentado à apreciação do juiz – e por ele mesmo reconhecido na sentença.
Portanto, foi violada a exigência de fundamentação idônea da decretação
da prisão na sentença, que se verifica por força do que dispõe agora de forma
expressa o parágrafo único do artigo 387 do Código de Processo Penal.
Portanto, a decretação da prisão cautelar do condenado configura
verdadeiro constrangimento ilegal que há de ser afastado, com fulcro no artigo
5º, inciso LXVIII, da Constituição da República.
Pelo exposto, meu voto é no sentido de julgar procedente o pedido e
conceder a ordem para que o paciente possa aguardar em liberdade o trânsito
em julgado da sentença penal condenatória, expedindoBse alvará de soltura.

Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

223
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Prova ilícita: o “Caso das Inglesas”

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL 0189866-10.2009.8.19.0001 (2009.050.07372)
APELANTES: (1) XXXXX
(2) XXXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO: 27.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DA CAPITAL
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigos 171, § 2.º, inciso V, na forma do artigo 14, inciso II, 299, caput, e 340,
tudo na forma do artigo 69, todos do Código Penal.

EMENTA: APELAÇÃO. PENAL, PROCESSO PENAL E


CONSTITUCIONAL. ARTIGOS 171, § 2.º, INCISO V, NA FORMA
DO ARTIGO 14, INCISO II, 299 E 340, TODOS DO CÓDIGO
PENAL. CONDENAÇÃO. PROVA ILÍCITA. INVIOLABILIDADE
DO DOMICÍLIO, INTIMIDADE, VIDA PRIVADA E DIREITO
AO SILÊNCIO. CONSEQUENTE ABSOLVIÇÃO. Apelantes
condenadas pela prática dos crimes definidos nos artigos 171, § 2.º,
inciso V, na forma do artigo 14, inciso II, 299 e 340, todos do Código
Penal. Prova ilícita. Ingresso indevido no quarto de hospedagem
das acusadas. Inviolabilidade de domicílio, da intimidade e da vida
privada (artigo 5.º, incisos X e XI, da Constituição da República).
Rés que não foram informadas de seu direito ao silêncio (artigo
5.º, inciso LXIII, da Constituição da República). Apreensão
dos bens falsamente furtados, portanto, ilícita. Prova oral que,
decorrente exclusivamente dessa apreensão, também se revela
ilícita. Desaparecimento da materialidade do crime. Absolvição.
RECURSOS PROVIDOS.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº. 2009.050. 07372,


em que são apelantes XXXXX e XXXXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.

224
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ACORDAM, por maioria de votos, os Desembargadores da Quinta


Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão
de julgamento realizada no dia 17 de dezembro de 2009, em dar provimento ao
recurso para reconhecer a ilicitude da prova e, em consequência, absolver as
acusadas, nos termos do voto do Desembargador Relator.
Ficou vencido o e. Desembargador Revisor, Cairo Ítalo França David, que
dava parcial provimento aos recursos para excluir a condenação pelos crimes de
falsidade ideológica e comunicação falsa de crime, reduzir as penas a 4 (quatro)
meses de reclusão e 3 (três) diasBmulta e substituir a pena privativa de liberdade
por prestação pecuniária.
RestituamBse os passaportes.
OficieBe à Polícia Federal autorizando a saída das apelantes do país.
Presidiu a sessão o Desembargador Sérgio de Souza Verani, que também
participou do julgamento como vogal.
Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

VOTO

XXXXXX e XXXXX, cidadãs inglesas, foram processadas perante a 27.ª Vara


Criminal da Comarca da Capital porque, segundo a denúncia, ao final de uma
viagem que faziam pelo mundo, no dia 26 de julho de 2009, compareceram à
Delegacia de Atendimento ao Turista para registrar falso furto de que teriam
sido vítimas durante o trajeto que fizeram da cidade de Foz do Iguaçu até o Rio
de Janeiro, a fim de obterem o valor concernente ao seguro contratado junto à
empresa InsuranceandGo Insurance Services Ltd.
Destaco inicialmente que, por não comungar da posição adotada pela
d. Procuradoria de Justiça em seu parecer, a qual redundaria na absolvição
das acusadas, enfrento as questões processuais levantadas pela Defesa como
prejudiciais à análise da correção do juízo de censura.

Do fato.

O fato descrito na denúncia, em si, é incontroverso.


Com efeito, as acusadas, fielmente patrocinadas e com o auxílio de tradutora
juramentada, confessaram que, embora tivessem sido efetivamente furtadas

225
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durante a viagem de ingresso no Brasil, entre as cidades de Foz do Iguaçu e Rio


de Janeiro, em Delegacia de Polícia incluíram na lista de bens subtraídos outros
pertences que ainda estavam em seu poder:

(...) que, na verdade, a interroganda teve bens subtraídos quando de sua


viagem de Foz do Iguaçu para o Rio de Janeiro, mais precisamente em
13/07/2009, sendo certo que resolveu acrescentar, quando do registro de
ocorrência na DEAT, alguns itens que não haviam sido subtraídos; que
o mesmo ocorreu com XXXXX; que, dos bens discriminados no primeiro
parágrafo de fl. 02/A, somente não foram furtados uma bolsa branca marca
Sansonite, um telefone celular da marca Sony Ericsson e uma câmera
fotográfica da marca Canon (...)
(fls. 301/2)

(...) que efetivamente a interroganda e XXXX tiveram bens subtraídos


numa viagem de Foz do Iguaçu para o Rio de Janeiro, sendo certo que isto
se deu no dia 13/07/2009; que a interroganda e XXXX, contudo, resolveram
acrescentar outros bens àqueles que efetivamente tinham sido subtraídos; que
tem ciência de que compareceu em sede policial para comunicar o furto de bens
que não haviam sido furtados, sendo certo que também comunicou o furto de
efetivamente que haviam sido furtados; (...) que, dos bens discriminados à fl. 10
dos autos em apenso, somente a câmera digital não foi furtada (...)
(fls. 304/5)

Tais declarações estão em consonância com o que foi relatado pelo


policial XXXXXX (fls. 292/5), que afirmou ter desconfiado das acusadas porque,
apesar do furto, elas, além de estarem tranquilas, tinham em mãos os respectivos
passaportes.
Toda a prova oral, portanto, integrada ainda pelos depoimentos do
policial civil XXXXX (fls. 296/7) e do funcionário do albergue Stone of the Beach,
XXXX (fls. 298/9), convergem no mesmo sentido: as rés, com a finalidade de
obterem maior indenização do seguro contratado, incluíram na lista de bens
furtados outros pertences que não haviam sido efetivamente subtraídos.

Da prova ilícita: a inviolabilidade domiciliar.

Não obstante, deveBse esclarecer que todo esse arcabouço probatório,


colhido oralmente durante a instrução, decorre diretamente do fato de terem

226
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sido encontrados, dentro do quarto de albergue onde estavam hospedadas


XXXX e XXXXX, aqueles bens que não haviam sido realmente furtados.
E isso se deu, é preciso destacar, em clara violação ao disposto no artigo 5.º,
incisos X e XI, da Constituição da República.
Isso porque, se por um lado a prova oral é uníssona no sentido de terem
as rés tentado comunicar falso furto para obterem maior valor da empresa
seguradora, por outro também é incontroverso que, assim que desconfiou da
atitude das acusadas, em vez de diligenciar no sentido de obter o necessário
mandado de busca e apreensão, a autoridade policial determinou a XXXXX,
funcionário do albergue, que entrasse no quarto onde elas estavam hospedadas
para verificar se aqueles bens estavam ocultados.
É o que declara XXXXX às fls. 293/5:

(...) que, em seguida, as declarações das rés foram tomadas em termos próprios,
sendo certo que, quando estavam sendo tomados os depoimentos delas, o que se
deu na presença da autoridade policial, houve uma desconfiança em relação a
um possível golpe do seguro, o que fez o depoente telefonar para o albergue onde
elas estavam hospedadas e perguntado acerca dos bens que elas discriminaram
nos documentos de fls. 10 e 11 dos autos do apenso como tendo sido furtados
na viagem que teriam feito de Foz do Iguaçu para o Rio de Janeiro; que se
recorda de o funcionário do albergue, que se encontra do lado de fora da sala
de audiências para prestar depoimento, ter identificado, pela fresta de uma das
gavetas que elas mantinham fechadas com cadeados, uma bolsa tipo mochila de
cor branca (...)

As mencionadas gavetas, é necessário destacar, ficavam localizadas no


interior do quarto onde as rés estavam hospedadas, como esclareceu o próprio
policial ao descrever a diligência confirmatória da fraude, feita pessoalmente por
ele na presença de XXXXX, XXXXX, XXXXX e XXXXX, que declarou o seguinte
(fls. 296/7):

(...) XXXXX começou a colher os depoimentos das rés, sendo certo que no
meio dos referidos depoimentos desconfiou de algo, tendo telefonado para
o albergue onde elas estavam hospedadas e indagado a um funcionário se
havia uma mochila branca no quarto das rés, tendo o funcionário dito que

227
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os bens das rés estavam em gavetas e que, pela fresta de uma delas, viu a
referida mochila branca (...)20

As declarações de XXXXX, a seu turno, foram textuais nesse sentido (fls.


298/9):

(...) recebeu um telefonema do policial civil XXXXX, da DEAT, indagando


se as rés, que ora reconhece nesta sala de audiências, estavam hospedadas
lá, sendo certo que, em razão da resposta afirmativa, solicitou ao depoente
que verificasse se no quarto delas havia uma bolsa branca; que o depoente,
então, foi ao quarto das rés e, por uma fresta, já que as gavetas estavam
trancadas com cadeados que só elas tinham as chaves, o depoente viu a tal
bolsa branca (...)21

Não há dúvida, pois, de que, durante a lavratura do registro de ocorrência


relativo ao furto, a linha investigativa mudou seu rumo para focarBse em possível
estelionato, materializandoBse no desrespeito à inviolabilidade do domicílio, à
intimidade e à vida privada das acusadas, que não consentiram com o ingresso
do funcionário em seu quarto.
Com efeito, releva notar, e não é novidade entre nós, que a Constituição da
República consagra dentre os direitos e garantias individuais, a inviolabilidade
de domicílio (artigo 5º, inciso XI), como fator de proteção à esfera de liberdade
individual e à privacidade pessoal.
Nessa perspectiva Luis Gustavo Grandine[i22 mencionou decisão da
Suprema Corte Argentina, em que se afirmou que a inexistência de objeção do
morador não representa consentimento ao ingresso de terceiros na casa. Sob
outro enfoque, a aquiescência deve ser expressa.
Assim é porque “Direitos fundamentais valem perante o Estado, e não pelo
acidente da regra constitucional”23.
E há aqueles que, a despeito do histórico debate sobre sua anterioridade ou
não ao fenômeno estatal, são considerados, ainda por Pontes de Miranda, como
supra/estatais24, dentre os quais a inviolabilidade domiciliar.

20 Grifei.
21 Grifei.
22 Processo Penal e Constituição – Princípios Constitucionais do Processo Penal. 4.ª Ed. Lumen Juris. Rio de
Janeiro, 2006, p. 88B89.
23 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Vol. V. 2.ª Ed. Revista dos Tribunais, São
Paulo, 1974, p. 617.
24 Idem, p. 618.

228
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Não se trata de concebêBlos como direitos naturais. CuidaBse de rechaçar o


Estado como paradigma de sua existência e, ao oposto, encaráBlos – os direitos
fundamentais – como paradigma de atuação do Estado, em qualquer das
funções do poder: executiva, legislativa ou judiciária. TrataBse, pois, de repudiar
qualquer forma de Estado ou regime de governo autoritário, na esteira das
históricas conquistas das liberdades individuais25.
Nesse sentido o autor assinalou:

Os direitos supra/estatais são, de ordinário, direitos fundamentais abso/


lutos. Não existem conforme os cria ou regula a lei: existem a despeito
das leis que os pretendam modificar ou conceituar. Não resultam das leis:
precedem/nas; não têm o conteúdo que elas lhes dão, recebem/no do direito
das gentes.26

É essa a natureza que a eles se atribui porque é a mesma que também


se atribui à dignidade da pessoa humana, que, de maneira geral, consiste em
“respeito ao ser humano” expressado “em princípios aceitos extensivamente e
afirmados profundamente na natureza real dos homens, como se desenvolveram
através da história para serem, hoje, parte essencial do que é considerado um
ser humano normal, como postulados éticos para o Direito”27 (grifei).
Daí porque esse princípio foi alçado à condição de estrutura sobre a qual se
edifica o Estado de Direito sedimentado pela Carta Política de 1988 e a partir da
qual se extraem, sem necessidade sequer de positivação, os chamados direitos
fundamentais supraBestatais28.
A esse respeito, Luigi Ferrajoli destacou que o Estado de Direito não se
limita ao aspecto formal, concernente à noção de legalidade, mas possui outra
noção substancial “da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia
dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em
sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações
legais de lesão aos direitos de liberdade (...)”29.

25 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? 7.ª Ed. Brasiliense, São Paulo, 1986.
26 MIRANDA, Op. Cit., p. 625.
27 ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas Ilícitas e Proporcionalidade. Lumen Juris, Rio de Janeiro,
2007, p. 36.
28 Idem, p. 40B42 e BALUTA, José Jairo. O ´Juiz Garantidor` e o Processo como ´Meio Respeitoso` de Garantir
os Direitos Individuais. In: Doutrina. Coord.: TUBENCHLAK, James. N.º 5. Instituto de Direito, 1998,
p. 141B144.
29 Direito e Razão. Trad.: SICA, Ana Paula Zomer; CHOUKR, Fauzi Hassan; TAVARES, Juarez e GOMES,
Luiz Flávio. 2.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 790.

229
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A positivação desses direitos como tais, portanto, representa, na verdade,


a organização de sua proteção jurídica, cuja necessidade é reconhecida não como
forma de criação de direitos, mas como técnica impeditiva do não raro abuso no
exercício do poder, a exemplo do que ocorreu neste caso.
Foi nesse passo, em contexto histórico que reclamava essa verdadeira
declaração de direitos – friseBse, não a sua mera definição –, que a Constituição
da República elencou taxativamente as hipóteses em que é possível o ingresso
em casa alheia, no inciso XI do artigo 5.º:

a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem


consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou
para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial

Aqui é preciso reconhecer que se trata – a vida privada, a intimidade (artigo 5.º,
inciso X, da Constituição da República) e a inviolabilidade de domicílio – dos chamados
direitos fundamentais assegurados, os quais, em contrapartida aos garantidos,
entendemBse “só limitados segundo regras explícitas das Constituições e, de ordinário,
só limitados nos têrmos dos textos constitucionais, ou ´segundo a lei`”30.
Portanto, a exceção está prevista na própria norma constitucional a
taxativamente admitir o ingresso na casa de outrem diante de situação fática
caracterizadora do estado de flagrante delito ou desastre ou com o escopo de
prestar socorro. AdmiteBse, ainda, como decorrência lógica da própria vedação
constitucional, o ingresso mediante o consentimento de seu morador ou por
determinação judicial, esta última somente durante o dia.
Pontes de Miranda, nessa perspectiva, destacou que “´Casa` (...) é a porção
espacial, delimitada, autônoma, que alguém ocupa, só ou em companhia de
outrem, com exclusão das outras pessoas e, pois, em virtude do princípio da
inviolabilidade do domicílio, com exclusão do Estado”31 e, evidentemente, de
quaisquer outras pessoas não convidadas pelo titular do direito fundamental à
inviolabilidade do domicílio, da intimidade e da vida privada.
Esse conceito atribuído pelo autor à “casa” contempla não só a residência
e o local destinado à atividade profissional do indivíduo, como comumente se
consigna na doutrina, mas também qualquer “aposento ocupado de habitação
coletiva”32 (artigo 150, § 4.º, inciso II, do Código Penal).

30 MIRANDA, Op. Cit., p. 652.


31 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Vol. V. 2.ª Ed. Revista dos Tribunais, São
Paulo, 1974, p. 185.
32 Grifei.

230
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O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas corpus n.º90.376/RJ,


manifestouBse na mesma linha:

(...) Prova penal. BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS


ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) / ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR
DERIVAÇÃO) / INADMISSIBILDADE / BUSCA E APREENSÃO DE
MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO
JUDICIAL, EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADO /
IMPOSSIBLIDADE (...) GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO
CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE
PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE PRÉ/PROCESSUAL
(...) IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO
PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À
GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR / PROVA
ILÍCITA / INIDONEIDADE JURÍDICA / RECURSO ORDINÁRIO
PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS
DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL) /
SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE OCUPADO,
AO CONCEITO DE “CASA” / CONSEQÜENTE NECESSIDADE,
EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL, RESSALVADAS AS
EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL.
(...) Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente
previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público
poderá, contra a vontade de quem de direito (“invito domino”), ingressar,
durante o dia, sem mandado judicial, em aposento ocupado de habitação
coletiva, sob pena de a prova resultante dessa diligência de busca e apreensão
reputar/se inadmissível, porque impregnada de ilicitude originária.
Doutrina. Precedentes (STF). (...)33

Na ocasião, o e. Ministro Relator Celso de Mello asseverou que “o conceito


de ´casa`, para o fim de proteção jurídicoBconstitucional a que se refere o art. 5º,
XI, da Lei Fundamental, reveste-se de caráter amplo (...), pois compreende, na
abrangência de sua designação tutelar (a) qualquer compartimento habitado, (b)
qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento
privado não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade”.

33 Segunda Turma. Rel. MIn. Celso de Mello. Julgamento: 03 de abril de 2007.

231
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Não procede o argumento segundo o qual, por se tratar de funcionário do


albergue, no caso concreto XXXXX tinha autorização para entrar no quarto das
acusadas.
É o que leciona Ada Pellegrini Grinover:

(...) a inadmissibilidade processual da prova ilícita torna/se absoluta,


sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma constitucional,
em prejuízo das partes ou de terceiros. Nesses casos, é irrelevante indagar
se o ilícito foi cometido por agente público ou por particulares, porque, em
ambos os casos, a prova terá sido obtida com infringência aos princípios
constitucionais que garantem os direitos da personalidade.34

Além disso, XXXX entrou no quarto de XXXXX e XXXX com o exclusivo


objetivo de proceder a diligência cuja atribuição constitucional é da polícia.
Agiu, portanto, se é que assim é permitido, como uma espécie de longa manus da
autoridade policial.
E a atuação do Estado, não é inútil frisar, deve sempre estar em consonância
com os ditames constitucionais, que exigem decisão judicial determinando busca
e apreensão no local diligenciado pelo empregado do albergue.
Além disso, essa espécie de hospedagem, como se sabe, não possui sequer
serviço de camareira, o que, de plano, afasta eventual alegação de que as rés
consentiam com a limitação de sua intimidade por autorização contratual.
A esse respeito, insta destacar que nenhum contrato de serviços de
hospedagem tem o condão de permitir que um funcionário entre no aposento
ocupado pelo contratante para fins diversos daqueles estabelecidos em suas
obrigações contratuais.
Sob outro enfoque, se XXXXX tinha efetivamente autorização das acusadas
para entrar em seu quarto, ela se limitava à limpeza do local e, pois, excluía, por
certo, a “bisbilhotagem” de suas gavetas.
Diferente seria se uma camareira, por exemplo, quando entrasse no quarto
do hóspede com o exclusivo objetivo de exercer suas atividades profissionais,
encontrasse, sobre a cama – exposta, portanto –, uma determinada quantidade
de droga, o que lhe permitiria comunicar o fato à polícia.
Não é o caso. O próprio estabelecimento comercial, a propósito, a
fornecer as chaves das gavetas exclusivamente às rés (fls. 298/9), reconheceu

34 Liberdades Públicas e Processo Penal – As interceptações telefônicas. Saraiva. 1976. pág. 189.

232
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contratualmente, ainda que de forma tácita, que aqueles compartimentos não


são passíveis de manuseamento por parte de seus empregados.
Nesse contexto, o fato de XXXX e XXXXX terem mantido as gavetas trancadas
revela, de maneira evidente, que não tinham interesse no conhecimento de seu
conteúdo por terceiros – e pouco importa que isso tenha se dado com a finalidade
de praticar um crime, pois, para investigáBlo, bastava que a autoridade policial
ali comparecesse autorizada judicialmente.
Igualmente, incabível a invocação do flagrante delito como legitimador do
ingresso não autorizado no quarto das acusadas, pois não havia qualquer notícia
prévia do estado de flagrância senão a simples suspeita do policial XXXXX,
motivada pelo fato de as acusadas estarem na posse de seus passaportes.
Por isso, não se legitima a ação policial, neste caso, pelo estado de flagrância.
Para isso seria necessário que, antes, houvesse fundadas razões de que o quarto
das rés funcionava como local de prática de crime(s).
O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no
exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a
fundada – e não simplesmente íntima – suspeita de que um crime esteja sendo
praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha
justamente o propósito de evitar que esse crime se consume.
Se assim não fosse, seria permitido ingressar nas casas alheias, de forma
aleatória, até encontrar substrato fático, consistente em flagrante delito, capaz de
ensejar a formal instauração de procedimento investigatório criminal.
Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assim fizesse e,
com a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade,
“encontrasse” à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado.
Não foi esse, evidentemente, o escopo do constituinte. Pelo contrário, a
norma constitucional que emerge do artigo 5.º, inciso XI, da Constituição da
República visa justamente coibir essas práticas.
Assim, é ilícita a prova da falsidade do furto comunicado pelas rés.35

Da prova ilícita: o direito ao silêncio

Caso vencido em relação ao reconhecimento da indevida violação ao


domicílio, à intimidade e à privacidade das acusadas, a sentença condenatória,
ainda assim, não pode ser mantida.

35 Precedentes desta Câmara Criminal: AP 2007.050.05649. Rel. Geraldo Prado. Julgamento: 28/02/2008;
AP 2008.050.00771. Rel. Maria Helena Salcedo. Julgamento: 11/03/2009.

233
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Isso porque, depois de obter conhecimento da fraude e terminar a lavratura


do registro de ocorrência do falso furto, XXXXX solicitou às rés permissão
para entrar em seu quarto e pediu que elas abrissem as gavetas onde estavam
ocultados os bens falsamente subtraídos.
Nesse momento, tanto o mencionado policial quanto XXXX, assim
como XXXX, disseram que nenhuma delas se opôs à atuação dos agentes
públicos:

(...) que as rés franquearam a entrada no quarto aos policiais civis, sendo
certo que tudo isto se deu na presença do funcionário do albergue; que as
rés espontaneamente abriram os cadeados das gavetas (...)
(fl. 296).

A aquiescência das acusadas, porém, não é válida.


Com efeito, assim que soube, por intermédio de XXXXX via telefone, que a
bolsa branca não havia sido furtada, a autoridade policial, não obstante tivesse
alterado ao extremo oposto a linha investigativa que tomava até então, passando
as acusadas de vítimas a investigadas, deu continuidade à lavratura do registro
de ocorrência, como se de furto fosse.
É o que se infere das declarações de XXXXX (fls. 292/5):

(...) que essa informação foi solicitada pelo depoente por telefone, sendo
certo que a informação foi efetivamente passada pelo funcionário do
albergue por telefone, já que o depoente só se dirigiu para lá com
as rés após a confecção do registro de ocorrência relativo ao
suposto furto de suas bagagens; que o referido funcionário do
albergue ainda salientou que as rés haviam sido vistas nos últimos
três dias no albergue, razão pela qual não tinham feito viagem alguma
para Foz do Iguaçu; que, após tais informações do funcionário do
albergue, o depoente terminou de colher as declarações das rés,
que estavam prestando na condição de lesadas e, ato contínuo,
confeccionou o registro de ocorrência do suposto furto, tendo elas
assinado o registro de ocorrência; (...) que também reconhece os termos
de declarações de fls. 06/07 e 08/09 dos autos em apenso como sendo
aqueles referentes às declarações prestadas pelas rés, na condição de
lesadas, em sede inquisitorial (...)36

36 Grifei.

234
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Isso veio confirmado não só pelas declarações constantes de fls. 06/9 do


apenso, mas ainda por XXXXXX, que declarou que, após a informação dada via
telefone por XXXXX, “XXXX continuou a colher os depoimentos das rés, sendo
certo que na presença da Delegada de Polícia; que após colher as declarações das
rés, foi feito o registro de ocorrência do suposto furto das bagagens”37 (fl. 296).
Assim, embora tenham passado de vítimas a indiciadas, as rés não foram
cientificadas de seu direito ao silêncio (artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição da
República) e ainda foram ludibriadas, pois prestaram declarações autoincriminatórias
acreditando que eram encaradas, pelo policial, como lesadas.
Nesse quadro, XXXX e XXXXX, ignorando seu direito constitucional de não
produzir prova contra si, não se opuseram à solicitação do policial para entrar
em seu quarto e abrir suas gavetas, onde estavam os bens ocultados.
Sob outro enfoque, a renúncia aos seus direitos constitucionais – sem dúvida
possível em princípio – deuBse fora do exercício de suas liberdades individuais,
o que igualmente torna a apreensão dos bens ilícita.
E a liberdade, que pressupõe o conhecimento de todas as circunstâncias
fáticas envolvidas e das possíveis consequências da opção que vier a ser feita, é
essencial para a validade da renúncia ao direito de não produzir prova contra si,
que integra a própria personalidade do indivíduo.
E é justamente esse substrato políticoBjurídico que coloca, ao lado da
intangibilidade do corpo, a “liberdade do acusado de encontrar uma decisão
autônoma sobre se ele quer colaborar ativamente com o esclarecimento dos fatos
ou não” 38 como critério norteador do princípio nemo tenetur se detegere39.
E não é normal que, no exercício dessa liberdade, alguém indique o local
onde estão as principais evidências de um crime que cometeu, quando ciente
das consequências jurídicas que isso pode acarretar.
Assim, o encontro dos bens é contestável pela inidoneidade dos policiais
ou da atuação deles, para cuja diligência, consoante predominante posição
jurisprudencial, seria necessário que dispusessem de mandado judicial.
Não obstante, XXXXX confessa que, mesmo sabendo que se tratava de falso
furto, simulou dar continuidade ao registro de ocorrência pelo crime de que as
rés alegavam ser vítimas. É evidente que deste momento em diante as liberdades
de XXXX e XXXX estavam periclitando.

37 Grifei.
38 Suprema Corte Alemã. Decisão BGHSt 40, 71. Apud ROXIN, Claus. “Nemo tenetur”: La jurisprudência
em La encrucijada. In: Pasado, Presente y Futuro del Derecho Procesal Penal. p. 163B178.
39 LOPES JR. Aury. Palestra proferida no dia 25/06/2009, na 13.ª Reunião do Fórum de Especialização e
Atualização do Direito e do Processo Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

235
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Investigadas as acusadas, ainda que em circunstâncias manifestamente


precárias, era dever dos agentes da lei alertáBlas de que tinham direito ao silêncio.
Assim é que, à luz do tantas vezes citado artigo 5° da Constituição da
República, em seu inciso LXIII, ao preso se informará do direito de permanecer
calado. TrataBse do direito ao silêncio que constitui o pilar fundamental de outra
disposição de índole constitucional, por força do artigo 5.°, § 2.°, da Carta, tal
seja, o direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar/se culpado,
previsto na Convenção Americana dos Direitos Humanos, introduzida no
ordenamento jurídico pelo Decreto 678/92. Nemo tenetur se detegere.
Ora, em primeiro lugar sabemos todos que os direitos fundamentais,
classificados como liberdades públicas, são em realidade posições jurídicas de
vantagem40, estacas demarcatórias de um espaço vital mínimo, que estabelecem
uma relação jurídica a princípio com o Estado, originário devedor41.
Do devedor se espera uma postura passiva, consistente em não provocar
(não agir contra) o credor do direito no sentido de dele obter alguma informação
que possa futuramente prejudicáBlo.
Não que o indiciado esteja impedido de espontaneamente declarar contra
si próprio. É claro que ele poderá fazer isso, que dispõe em alguma medida
de seu direito fundamental, ao qual poderá legitimamente renunciar. É preciso,
porém, para que a renúncia ao exercício do direito seja válida e eficaz, que
o preso seja claramente informado de que é titular de um direito e em que
consiste, realmente, o conteúdo deste direito.
Como sujeito de um procedimento, o investigado logo ao ser preso, no
alvorecer da investigação, deve ser informado do seu direito, e não quando a
prisão está já consumada e provavelmente o meio de demonstração capturado.
Mas sim no exato instante em que, devido às circunstâncias, pode verBse
compelido a produzir prova contra si mesmo, cooperando inadvertidamente
com o Estado, que tem o dever de investigar.
A isto a doutrina denomina de dever de instrução do direito ao silêncio,
de caráter prioritário para o ordenamento jurídico, como salientou Theodomiro
Dias Neto42, porque não se pode pressupor o conhecimento do direito.
A máxima consistente em se afirmar que a ninguém é lícito invocar o
desconhecimento da lei há muito não prevalece, em termos de direito penal. Basta

40 GRINOVER, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais e o Direito de Ação. RT. São Paulo, 1973.
41 COMPARATO, Fábio Konder. Para Viver a Democracia: Liberdades Formais e Liberdades Reais. Brasiliense.
São Paulo, 1989, p. 33; HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro,
1997, p. 116B121.
42 DIAS NETO, Theodomiro, in O Direito ao Silêncio. Revista Brasileira de Ciências Criminais n° 19. São
Paulo, 1997, p. 180.

236
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analisarmos a disciplina jurídica do erro de proibição, para constatarmos que o direito


opera com a consciência de que a maioria da população desconhece muitos dos seus
direitos, quiçá quando está em oposição aos órgãos de repressão penal.
Ademais, e é o argumento saliente em termos de processo penal, não se
pode presumir inequivocamente o conhecimento da lei também porque a única
presunção admissível, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, é a
da inocência do imputado (artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República).
Em virtude disso é que se exige da acusação a prova do dolo e da culpabilidade
dos acusados.
No caso concreto, a prova oral é expressa em afirmar que as acusadas não
só não foram cientificadas de seus direitos constitucionais, como acreditaram
que estavam colaborando não para a sua incriminação, mas para a solução do
crime de que diziam ser vítimas.
Contra essa espécie de abuso, há a Constituição da República, que consagra
direitos que não reconhecem limitação subjetiva ou territorial.
Assim, temos por violado o comando constitucional.
O acolhimento da tese da ilicitude da prova importa em absolvição das
apelantes, mas não pelos fundamentos da apelação e do parecer do Ministério
Público em segundo grau.
Com efeito, tal constatação, quer pelo reconhecimento do desrespeito
à inviolabilidade do domicílio ou ao direito ao silêncio, determina a
descontaminação do julgado43, na forma do artigo 5.º, inciso LVI, da Constituição
da República, por meio do desentranhamento, ainda que hipotético, de todas
essas provas e do laudo de fl. 247.
É a única forma de conciliar o criticável veto à introdução do § 4.º ao arB
tigo 157 do Código de Processo Penal pela Lei 11.690/2008 com o princípio da
imparcialidade do juiz, implícito nas garantias conferidas aos Magistrados pela
Constituição da República.
Com efeito, a prova obtida por meios ilícitos, mesmo antes das recentes
modificações trazidas ao Código de Processo Penal, não haveria de estar presente
em autos de processo, na medida em que a Constituição da República a repudiou
em seu artigo 5.º, inciso LVI: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas
por meios ilícitos”.
TrataBse de garantia que integra o princípio do devido processo legal, o
qual se define, no aspecto formal, pela apuração da prática de uma infração

43 SILVA, Ticiano Alves e. O vetado § 4.º do art. 157 da nova lei 11.690/2008 e a descontaminação do julgado.
IBCCRIM. 01/09/2009. Disponível em: www.ibccrim.org.br/site/artigos.

237
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penal e de sua autoria na forma legalmente prescrita, conforme destacado pelo


Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello:

A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder


perante a qual se instaure, para revestir/se de legitimidade, não pode
apoiar/se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa
à garantia constitucional do “due processo of law”, que tem, no dogma
da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas
projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo.44

Ada Pellegrini Grinover45, no mesmo sentido, afirma que o direito à prova


está limitado, na medida em que constitui as garantias do contraditório e da
ampla defesa, de sorte que o seu exercício não pode ultrapassar os limites da lei
e, sobretudo, da Constituição.
Idêntica é a lição de Antônio Magalhães Gomes Filho:

O campo das proibições de prova relacionadas à tutela de valores estranhos


à economia interna do processo é vastíssimo, revelando que o objetivo de
apuração da verdade processual deve conviver com os demais interesses
dignos de proteção pela ordem jurídica.46

Por isso, a Lei 11.690/08 veio a corroborar, de forma expressa, o mandamento


constitucional que determina o desentranhamento das provas obtidas por meios
ilícitos, a atribuir ao artigo 157 do Código de Processo Penal a seguinte redação:

São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas


ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais
ou legais.

No entanto, somente com a apreensão ilícita dos bens foi possível tomar
os depoimentos dos policiais civis e de XXXX e lavrar o auto de prisão em
flagrante. Sob outro enfoque, caso não houvessem sido encontrados os pertences
não furtados das acusadas, nada existiria senão a suspeita íntima do policial
XXXXXX.

44 RHC 90376B2/RJ. Segunda Turma. Julgamento: 03/04/2007.


45 As Nulidades no Processo Penal. 9.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 145B146.
46 Direito à Prova no Processo Penal. Revista dos Tribunais, 1997, p. 98.

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A prova oral colhida durante a instrução, portanto, é exemplo das chamadas


provas ilícitas por derivação, que, embora obtidas em conformidade com a lei,
estão contaminadas pela ilicitude do meio por que obtida a prova originária, da
qual decorreram de forma exclusiva.
Nesse sentido Aury Lopes Junior destacou:

Entendemos que o vício se transmite a todos os elementos probatórios obtidos


a partir do ato maculado, literalmente contaminando/os com a mesma
intensidade. Dessa forma, devem ser desentranhados o ato originariamente
viciado e todos os que dele derivem ou decorram, pois igualmente ilícita a
prova que deles se obteve.47

Assim, não há prova residual alguma da materialidade do crime, o que


impõe a absolvição de ambas as acusadas.

Dos efeitos interjurisdicionais

Convém destacar este ponto tendo em vista a transcendência da decisão,


isto é, a projeção de seus efeitos no âmbito civil, no contexto da relação entre as
apelantes e a empresa seguradora.

Da alegação de inexistência de crime

A Defesa aduz que as acusadas não iniciaram os atos de execução do


crime, que dependeriam da sua comunicação à empresa seguradora, e não
simplesmente à polícia.
Assiste em parte razão às apelantes quando aduzem se tratar de atos
preparatórios. CuidaBse, porém, de uma daquelas exceções às quais o legislador
atribuiu grande valor de reprovação, a ponto de incrimináBlas, apesar de não
gerarem efetivo dano à vítima.
Tanto é assim que há jurisprudência defensiva da tese de que, recebido o
valor do seguro, o fato passa a subsumirBse à norma incriminadora do artigo
171, caput, do Código Penal:

(...) Cuida/se, na hipótese, de verdadeira exceção ao princípio da ´espe/


cialidade` que rege os conflitos aparentes de normas penais. Isto porque,

47 Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2007, p. 369.

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embora a norma do art. 171, § 2.º, V do CP contemple exatamente as ações


físicas praticadas para o fim de fraude ao contrato de seguro, a consecução
do objetivo de proveito não está abrangida no dispositivo, muito embora se
cuide de situação mais grave, nem mesmo como agravante ou majorante.
Por esta razão, os tratadistas entendem que, atingido o objetivo de proveito
próprio, afastada fica a incidência do sispositivo específico em tela, dada sua
clara redação: ´destrói, total ou parcialmente, oculta coisa própria`, ou...
´com o intuito de haver indenização ou valor de seguro` (...). A expressão
´com o intuito` pretende significar apenas as ações preparatórias da fraude
e não a locupletação. A inexistência de figura especial para reprimir esta
última, embora constitua falha legislativa, faz cindir, na espécie, o caput do
artigo, que contempla o ardil bem sucedido. (...)48

Sob outro enfoque, a simples leitura do tipo penal do artigo 171, § 2.º,
inciso V, do Código Penal permite apreender que se trata de crime formal, cujo
momento consumativo, no caso concreto, confundeBse com o da ocultação dos
bens falsamente furtados nas gavetas das rés.
É o que ensina Cezar Roberto Bitencourt:

A fraude para recebimento de seguro é crime formal, que não requer a


ocorrência de dano efetivo em prejuízo do ofendido para consumar/se, algo
que ocorre pela simples conduta de ocultar. Assim, o emprego do meio
fraudulento é necessário e suficiente para a caracterização do crime, desde
que sua finalidade seja o recebimento da indenização do seguro (elemento
subjetivo especial). Enfim, consuma/se o estelionato independentemente do
recebimento da indenização pretendida.49

Igualmente assevera Alberto Silva Franco:

O crime se consuma com a ação física, desde que provado o intuito de obter
a vantagem. Não é necessário que o agente receba a indenização ou o valor
do seguro.50

48 TACRIMBSP – AC – Rel. Carvalho Neto – RJD 1/150, RT 635/389 e JUTACRIM 97/352.


49 Tratado de Direito Penal. V. 3. 3.ª Ed. Saraiva. São Paulo, 2006, p. 297B298.
50 Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. V. 2. 7.ª Ed. São Paulo, 2001, p. 2896.

240
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É por isso que, conforme afirmado pelo mesmo autor, a hipótese deste
processo, ao contrário do que reconhecido na sentença, é de fraude contra seguro
consumado.
A tentativa, nas hipóteses de caracterização desse crime, dáBse, a exemplo,
quando o agente é surpreendido no momento em que joga o veículo de um
penhasco com a finalidade de obter a indenização da empresa seguradora.
E, a considerar, em obediência à vedação à reformatio in pejus, correta
a premissa exarada pelo juiz a quo, o simples fato de as acusadas terem
comunicado o crime falso constitui o início dos atos de execução, pois, conforme
contrato acostado às fls. 143/67, as rés não obteriam o valor do seguro caso não
registrassem a pretensa ocorrência em Delegacia de Polícia.
Do alegado crime impossível.
Hipoteticamente, a pretensão do reconhecimento do crime impossível, a
seu turno, só pode ser acolhida em relação a XXXXX, pois, segundo o contrato
de fls. 143/67, traduzido juramentadamente na audiência documentada às fls.
282/91, sua apólice vigia apenas até o dia 09 de julho de 2009, antes mesmo da
viagem de Foz do Iguaçu até o Rio de Janeiro, feita no dia 13 de julho, em que
teria ocorrido o falso furto.
É verdade que a própria acusada aduz em seu interrogatório “que tem
certeza que a apólice de fl. 105 está errada, já que a interroganda tem outra
apólice com a data do término em 03/08/2009” (fl. 306).
TrataBse, porém, de confissão como qualquer outra. E é preciso compreender
o lugar da confissão no sistema acusatório, adotado pelo artigo 129, inciso I, da
Constituição da República.
Assim é porque a estrutura do processo penal brasileiro claramente optou
pela constituição de estatuto jurídico singular peculiar aos acusados. Nesse
sentido, pelo menos desde 1941 a posição jurídica do acusado (artigos 185 e
seguintes do Código de Processo Penal) difere daquela ostentada por ofendidos
(art. 201 do mesmo diploma) e pelas testemunhas (artigos 202 e seguintes do
citado Código).
Ademais, a Constituição de 1988 assegurou aos acusados em processo
criminal o direito ao silêncio (art. 5º, inc. LXIII), o que equivale ao reconhecimento
de que o comportamento processual dos réus configura exercício do direito de
defesa e prática do correlato direito de argumentar (alegar), de que também é
titular o Ministério Público.
Nesses termos, operouBse a reforma das regras que disciplinavam o inB
terrogatório do acusado em juízo e, mais importante, a nova redação do artigo

241
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186, parágrafo único, do Código de Processo Penal sublinhou o caráter de


autodefesa que distingue o interrogatório dos demais atos processuais.
É evidente que tal mudança tem peso nas rotinas e práticas do processo
penal. É significativo que a confissão, antes extraordinariamente avaliada pelos
julgadores, tenha perdido seu status de prova (malgrado tenho sido assim tratada
contra todas as evidências do próprio sistema do Código de Processo Penal).
Isso se tornou mais evidente a partir da Lei 11.719/08, que transferiu o
interrogatório para o último momento da Audiência de Instrução e Julgamento,
apesar de mantêBlo anterior ao requerimento de diligências pelas partes no
procedimento ordinário51, de forma que o acusado possa exercer sua autodefesa
sem ignorar as provas produzidas durante o processo.
O período de domínio intelectual da confissão, todavia, produziu e ainda
produz seus frutos. A permanência da idéia de que a confissão, especialmente
em juízo, revela com segurança a responsabilidade penal daquele que confessa
ainda mantém seu poder de sedução. Tanto é assim que há projetos de lei que
pretendem viabilizar o julgamento sumário, a partir das evidências da prisão em
flagrante associadas à confissão.
Independentemente das incontáveis discussões que o tema proporciona – e
que não cabem neste voto – é indispensável, diria verdadeiramente prioritário,
recolocar a confissão no lugar processual que lhe cabe no processo penal
brasileiro orientado pelas garantias processuais previstas na Constituição da
República e em tratados internacionais.
O réu pode calar a verdade. Pode também mentir em juízo. Não há
penalidades. Sua intervenção pessoal pode estar orientada por alguma estratégia
defensiva, pela disposição de diminuir seu papel no enredo criminoso ou em
simples desejo de vingança. Pode ainda estar falando a verdade.
O que o juiz não pode desconhecer é que a “fala” do acusado nada prova.
Quando muito indica a existência de meios de prova, convertendoBse ela própria
em mera fonte de prova.

(...) o interrogatório apresenta/se como oportunidade processual em que o


acusado poderá exercer a autodefesa, falando ou silenciando. Se ele fornecer
elementos probatórios, por meio de suas respostas, caberá ao juiz diligenciar
sobre as fontes de prova reveladas.52

51 Artigo 402 do Código de Processo Penal.


52 QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova contra Si Mesmo (o princípio do nemo tenetur
se detegere e suas decorrências no processo penal). Saraiva, São Paulo, 2003, p. 90.

242
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A certeza íntima de que as pessoas somente assumem a responsabilidade


por atos que tenham realmente praticado é desmentida pela experiência
cotidiana. Ainda que assim não seja, esta certeza é “íntima”, isto é, não pode ser
alvo de questionamento por quem quer que seja e dessa maneira não é suscetível
de se submeter ao controle pelo contraditório.
Nesse contexto, sem meios de prova há tãoBsomente versões, e a garantia
da presunção de inocência incide para afastar toda e qualquer conclusão
desfavorável a acusado contra o qual não se tenha produzido prova.
Assim, como não foi trazida a mencionada segunda apólice de seguro, que
teria vigência na data do fato, a dúvida instaurada impõe que se reconheça, em
relação a XXXXX, o crime impossível (artigo 17 do Código Penal), por absoluta
impropriedade do objeto, já que não há provas de que o contrato de seguro existia
quando ela compareceu à delegacia de polícia para comunicar o falso furto.
Com efeito, não é distinta a hipótese daquela em que, com intenção de
matar, alguém dispara contra a cabeça de um cadáver, fato que, na esclarecedora
lição de Zaffaroni e Pierangeli, sequer caracteriza a tentativa, sendo penalmente
atípico:

A tentativa é só uma ampliação da tipicidade para abranger uma etapa


anterior à consumação, vale dizer, a falta do tipo objetivo da tentativa
surge unicamente da antecipação cronológica da proibição que a tentativa
implica, mas de modo algum se podem admitir faltas de outra natureza,
porque isso implicará que, com a tentativa, se alcancem condutas que não
estão tipificadas, como a perfuração de um cadáver, deitar/se com o próprio
cônjuge, apoderar/se de uma coisa própria, a bestialidade, a necrofilia, etc.
Em todos esses casos faltará a vida que se queria tirar,, a mulher alheia
com quem se relacionar, a coisa alheia de que se desejava apoderar, o lucro
indébito que se pretendia obter, a pessoa com quem se desejava o acesso
carnal, mas estas faltas não obedecerão a uma antecipação cronológica
da proibição, própria da tentativa, por razões totalmente diferentes e, por
conseguinte, alheias à natureza da limitação que a tentativa produz no tipo
objetivo. Estará faltando muito mais tipicidade objetiva do que aquela que
a tentativa exige que falte.
(...)
Quando tem lugar a chamada “inidoneidade de objeto” não é possível falar
de tentativa, posto que ela requer o começo de execução de um “delito”,
vale dizer, de uma tipicidade objetiva, e não se começa a executar qualquer
tipicidade objetiva quando não existe objeto idôneo, sem que haja interesse

243
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em se estabelecer se essa inidoneidade é “fática” ou “jurídica”: não começa


qualquer tipicidade objetiva quem pretende fazer uma mulher que não se
encontra grávida abortar, nem tampouco aquele que se apodera de coisa
própria.53

Dessa forma, a absolvição de XXXXX também por esse motivo seria


imperativa.
O mesmo, porém, não poderia ser dito em relação à acusada XXXX.
Isso porque, em primeiro lugar, sua apólice vigia até o dia 10 de agosto de
2009, depois da data do fato. O objeto do crime, pois, nada tem de impróprio.
Os meios de sua execução, a seu turno, também não são absolutamente
inidôneos.
É verdade que as acusadas informaram o falso sinistro à polícia em prazo
muito superior àquele estipulado no contrato de fls. 143/67, de 24 horas, pois
compareceram em sede policial para registrar a ocorrência no dia 26 de julho
de 2009, quando a viagem em que teria ocorrido o furto foi feita em 13 de julho.
No entanto, o fato de as rés terem informado à autoridade policial que
haviam sido furtadas um dia antes – comprovado pelo interrogatório de XXXX
e pelas declarações de fls. 06/9 do apenso –, além de demonstrar o elemento
subjetivo do tipo, colocou efetivamente em risco o patrimônio da seguradora,
revelandoBse como manobra para obter a indenização apesar de extrapolado o
prazo para a comunicação.
Igualmente, não procederiam os argumentos relacionados ao local onde
estariam guardados os bens falsamente furtados e à ausência de vigilância pelas
rés, que, segundo a Defesa, excluem, de plano, a possibilidade de a empresa
seguradora indenizar as rés, de acordo com o contrato acostado às fls. 143/67.
Com efeito, a função garantidora do Direito Penal implica estabelecer o
bem jurídico como paradigma de legitimação da intervenção do Estado sobre a
liberdade individual:

A reprodução do tipo como ação indica que a norma jurídica definidora


do injusto é uma norma de conduta e não uma norma meramente de
reconhecimento (...). Como norma de conduta, deve estar associada a
determinada finalidade: a delimitação do poder de intervenção do Estado, a
qual não pode ser alcançada sem um pressuposto material que lhe trace os

53 Da tentativa – Doutrina e Jurisprudência. 7.ª Ed. RT. São Paulo, 2005, p. 73B79.

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contornos de estabilidade. Daí a necessidade que se estabeleça, como base da


ação típica, a lesão de bem jurídico.54

A imposição desse limite à atuação estatal, porém, ao mesmo tempo em que


garante o pleno exercício da liberdade ao indivíduo, exigeBlhe que aja segundo
esses limites, sob pena de estabelecimento de um conflito ético inaceitável sob o
ponto de vista da convivência social.
É por isso que o artigo 17 do Código Penal, adotando a teoria objetiva,
firma o risco objetivo ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora como
premissa do reconhecimento do crime impossível:

Na lei penal brasileira, a tentativa idônea se distingue da inidônea pelo perigo


objetivo para o bem jurídico, sob o seguinte argumento: se o resultado de lesão
do bem jurídico é o fundamento da punibilidade do fato, então a punibilidade
da tentativa exige ação capaz de produzir o resultado típico. A exigência de
perigo objetivo de lesão do bem jurídico (teoria do autor) – sem o qual não
pode existir início de execução do tipo objetivo /, representa correta decisão
político/criminal do legislador e, por outro lado, é compatível com a variante
minoritária da teoria objetiva individual, que exige comportamento típico
manifestado em ação de execução específica do tipo.55

No caso concreto, porém, os argumentos deduzidos pela Defesa em prol


do reconhecimento da chamada tentativa inidônea dizem respeito ao mérito de
futura discussão que seria travada entre as contratantes do seguro e a empresa
contratada, talvez até em juízo, o que, por si só, impõe reconhecer o risco ao
patrimônio da seguradora, bem jurídico tutelado pelo artigo 171, § 2.º, inciso V,
do Código Penal.
Com efeito, não é incomum, em casos parecidos, em que o segurado
mantém seus pertences em local não acobertado pelo seguro, o ajuizamento de
ações judiciais e até mesmo o seu acolhimento, apesar da existência de cláusulas
contratuais similares às que a Defesa levanta com o fim de ver ambas as rés
absolvidas com fulcro no artigo 17 do Código Penal.
É verdade que havia possibilidade de a empresa vir a se certificar da
verdadeira data da viagem e das condições em que as rés deixaram seus

54 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2.ª Ed. DelRey. Belo Horizonte, 2002, p. 179B180.
55 SANTOS. Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. 2.ª Ed. Lumen Juris. Curitiba, 2007, p. 391B392.

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pertences no ônibus, bem como do fato de elas terem se ausentado do veículo,


durante a madrugada, por algumas vezes.
Para o reconhecimento do crime impossível, contudo, “É indispensável que
o meio seja inteiramente ineficaz. Se a ineficácia do meio for relativa, haverá
tentativa punível”56.
Não é caso.
Dessa forma, a única acusada que poderia ser beneficiada com o
reconhecimento da tentativa inidônea é XXXXX, cuja apólice havia expirado em
09 de julho de 2009.
Posto isto, voto no sentido de dar provimento aos recursos para absolver
as apelantes, tendo em vista a ilicitude da prova, restituindoBse imediatamente
seus passaportes e oficiandoBse à Polícia Federal.
Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

56 BITENCOURT, op. cit., V. 1. 11.ª, 2007, p. 405B406.

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Prova ilícita: inviolabilidade do domicílio

7ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL 2007.050.05649
APELANTE: XXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO: 2ª VARA CRIMINAL DE CAMPOS DOS GOYTACAZES

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. DIREITO CONSTITU-


CIONAL. PROVA ILÍCITA. PROCESSO PENAL. TRÁFICO
DE DROGAS. ARTIGO 33 DA LEI 11.343/06. PRELIMINAR
DE NULIDADE DA APREENSÃO DROGA E DO DINHEIRO,
SUSPOSTAMENTE DE PROPRIEDADE DO APELANTE,
QUANDO ESTE SE ENCONTRAVA EM SUA RESIDÊNCIA,
FUMANDO UM CIGARRO DE MACONHA. PRINCÍPIO DA
INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO. BUSCA E APREENSÃO
NÃO AUTORIZADA. LIMITAÇÃO AO PODER DO ESTADO.
POSSE DE DROGAS PARA USO PESSOAL QUE NÃO COMPORTA
PRISÃO EM FLAGRANTE POR EXPRESSA DISPOSIÇÃO
LEGAL. INGRESSO EM CASA ALHEIA QUE, NESTE CON-
TEXTO, NÃO ENCONTRA RESPALDO NA EXCEÇÃO CONS-
TITUCIONAL À INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO. POS-
TULADO JURÍDICO DA PROPORCIONALIDADE. COM-
PROMETIMENTO DAS DEMAIS PROVAS OBTIDAS POR
MEIO DA VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO, NÃO AUTORIZADA
PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. Apelante processado e
condenado, acusado da prática do crime definido no artigo 33 da
Lei 11.343/06. Prisão em flagrante quando o apelante se encontrava
em casa, fumando um cigarro de maconha. Crime cuja disciplina
legal não permite prisão em flagrante. Inviolabilidade de domicílio.
Artigo 5º, inciso XI, da Constituição da República. Exceção prevista
na própria norma constitucional. Ingresso em casa alheia, sem o
consentimento do morador e sem ordem judicial, é excepcional
e somente se justifica quando houver fundadas razões quanto à
urgência e a necessidade para o seu procedimento. Entrada que

247
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não pode decorrer de estado de ânimo do agente estatal no exercício


do poder de polícia. Ao revés, conforme determina o §1º do artigo
240 do Código de Processo Penal, exigeBse fundada suspeita de que
um crime esteja sendo praticado no interior da casa que se pretende
ingressar, e que o ingresso seja justamente com o propósito de evitar
que este crime se consume. Limites à atuação estatal, cujos agentes e
autoridades estão sujeitos à observância dos direitos e prerrogativas
que assistem aos cidadãos em geral, como fator condicionante da
legitimidade de suas condutas. Questão de ordem administrativa.
Exercício do poder de polícia. Artigo 5ª, caput, da Constituição da
República que assegura o direito à segurança tornandoBse o Estado
devedor desta prestação positiva, pelo que não deve olvidar esforços
em prestáBla, porém na forma da lei e seguindo escrupulosamente
os parâmetros constitucionais. Ponderação entre a garantia da
inviolabilidade do domicílio e o direito à segurança, este último,
como justificador do ingresso não autorizado para, nos termos do
permitido pela Constituição da República, impedir a consumação de
crimes nas hipóteses de flagrante delito. Infração penal que motivou
o ingresso não autorizado. Posse de drogas para uso pessoal. Crime
que, ao não prever como punição a pena corporal limitadora de
liberdade e não admitir a prisão em flagrante, passa ao largo da
exceção constitucionalmente prevista à garantia da inviolabilidade
de domicílio. Artigo 48, §2º, da Lei 11.343/06. Ofensa ao postulado
da proporcionalidade e, por conseqüência, à norma prescrita no
artigo 5º, inciso XI, da Constituição da República. Ausência de
relação dialética meio/fim, intersubjetivamente controlável, que
compromete a própria aplicabilidade deste postulado. Em suma,
se não há prisão em flagrante, não se pode entrar na casa, protegida
por cláusula constitucional. Contaminação das demais provas que
dela derivam e que por conta desta foram obtidas. Nulidade da
apreensão. Ausência de outras provas aptas a ensejar a condenação,
uma vez excluída a prova ilícita. Absolvição do apelante.
PRELIMINAR ACOLHIDA. RECURSO PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº. 2007.050. 05649,


em que é apelante XXXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.

248
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ACORDAM, por unanimidade de votos, os Desembargadores da 7ª Câmara


Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão de
julgamento realizada em 28 de fevereiro de 2008, em conhecer o recurso e acolher
a preliminar deduzida para declarar a nulidade da apreensão da substância
e, por conseqüência, absolver o réu por ausência de provas suficientes para a
manutenção da condenação, nos termos do voto do Desembargador Relator.
DeterminouBse a expedição de alvará de soltura.
Presidiu a sessão o Desembargador Eduardo Mayr, que participou do
julgamento como Revisor, sendo vogal o Desembargador Maurílio Passos Braga.

Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2008.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

VOTO

XXXX foi processado e condenado no Juízo da Vara Criminal de Campos


dos Goytacazes como incurso nas sanções do artigo 33 da Lei 11.343/06 às penas
de quatro anos e dois meses de reclusão e quatrocentos e dezessete diasBmulta.
A Defesa combate a referida decisão condenatória por meio deste recurso de
apelação e, argüi, preliminarmente, a nulidade do ato de apreensão por violação à
garantia constitucional da inviolabilidade de domicílio, com a absolvição do réu.
No mérito, a Defesa postula a absolvição do apelante por atipicidade da
conduta ou por ausência de prova da existência e a autoria do crime. Pretende,
subsidiariamente, a desclassificação do crime de tráfico para o de uso de
drogas, porém, caso seja mantida a condenação, postula a aplicação do redutor
máximo por conta do reconhecimento da causa especial de diminuição de pena
prevista no artigo 33, parágrafo único, da Lei 11.343/06 e o reconhecimento
da inconstitucionalidade da vedação legal à substituição da pena privativa de
liberdade por pena restritiva de direitos.
A questão posta como preliminar há de ser analisada à luz da Constituição
da República e das normas processuais penais subjacentes para que se possa,
em fim, concluir pela validade ou não ato de apreensão das coisas supostamente
encontradas na casa do apelante.
Com efeito, a versão apresentada pelos policiais militares aponta no sentido
de que os agentes do estado encontravamBse na localidade para o cumprimento
de determinado mandado de prisão, quando então obtiveram a informação

249
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de que a pessoa procurada encontravaBse na casa do apelante. O mandado de


prisão, que não consta dos autos, dirigiaBse a terceiros e não ao réu.
Seja como for, ao chegarem à casa do apelante os policiais afirmaram que
encontraram o apelante fumando maconha no local, fato este que teria justificado
o ingresso não autorizado em casa alheia.
Ainda segundo o relato dos policiais, ao ingressarem na casa do acusado
teriam encontrado mais quantidade de maconha, não explicada ao certo pelos
agentes como esta droga estaria acondicionada.
Indagado pelos policiais, o apelante teria indicado onde se encontrava o
restante da droga. Ao chegarem ao local apontado pelo réu foram encontradas
28,8g de maconha escondida embaixo de uma tampa de esgoto fora da casa. No
interior da residência, ademais, foi apreendida a quantia de R$ 721,00.
Releva notar, e não é novidade entre nós, que a Constituição da República
consagra dentre os direitos e garantias individuais, a inviolabilidade de domicílio
(artigo 5º, inciso XI), como fator de proteção à esfera de liberdade individual e a
privacidade pessoal.
Esta é a regra posta pela Carta da República e que impede o ingresso de
terceiros na casa, o asilo inviolável do indivíduo.
A exceção está prevista na própria norma constitucional ao taxativamente
admitir o ingresso na casa de outrem diante de situação fática caracterizadora
do estado de flagrante delito ou desastre ou com o escopo de prestar socorro.
AdmiteBse, ainda, como decorrência lógica da própria vedação constitucional,
o ingresso mediante o consentimento de seu morador ou por determinação
judicial, esta última, somente durante o dia.
Neste contexto se insere a busca e apreensão, instituto regulado pelo direito
processual penal e que tem por escopo a tomada de alguma coisa ou pessoa,
permitindo, dentre outras providências cautelares, o acesso ao domicílio de
alguém, ainda que sem autorização de seu morador.
Há, portanto, regra constitucional que assegura a todos a inviolabilidade
de seu domicílio e a exceção, pois, está disciplinada pela própria Constituição.
Assim, e levandoBse em conta a regra constitucional, o ingresso em casa
alheia sem o consentimento do morador e sem ordem judicial é excepcional
e somente se justifica quando houver fundadas razões quanto à urgência e a
necessidade para o seu procedimento.
HELIO TORNAGHI57 destaca, quanto ao instituto da busca e apreensão, a
exigência da lei no sentido de que as “fundadas razões” encontrem fundamento

57 Curso de Processo Penal. Volume I. 10ª Ed. Saraiva. 1997. pág 471

250
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em séria e grave suspeita em consonância ao que a “autoridade judicial sabe, pelo


que teme, pelo que deve prevenir ou remediar e não na realidade que só por meio de busca
vai ser conhecida”.
O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no
exercício do poder de polícia.
Não se pode adivinhar essas coisas!
Ao revés, conforme determina o §1º do artigo 240 do Código de Processo
Penal, exigeBse fundada suspeita de que um crime esteja sendo praticado no
interior da casa que se pretende ingressar, e que o ingresso seja justamente com
o propósito de evitar que este crime se consume.
FAUZI HASSAN CHOUKR58 leciona que “quando o §1º do art. 240 do Código
de Processo Penal fala em ‘fundadas razões’, não se refere, por certo, à mera fumaça
do bom direito, senão à razão (ou motivo) provável, ou seja, dotada de certo grau de
credibilidade que justifique afastar as garantias constitucionais para se colher elementos
capazes de alicerçar eventual ação penal”.
Neste ponto reside o limite da atuação estatal, cujos agentes e autoridades
estão sujeitos à observância dos direitos e prerrogativas que assistem aos
cidadãos em geral, como fator condicionante da legitimidade de suas condutas.
VêBse, pois, que enquanto a norma constitucional impõe severas restrições
ao ingresso no domicílio do indivíduo, esta mesma norma disciplina as exceções
que autorizam a atuação dos agentes estatais.
Esta conduta, porém, está orientada, não por um comportamento processual
penal, mas por questão de ordem administrativa, de exercício do poder de
polícia, para evitar a consumação de crimes.
Ao prometer no caput do artigo 5ª da Constituição da República o direito
à segurança, o Estado tornaBse devedor desta prestação positiva, pelo que
não deve olvidar esforços em prestáBla, porém na forma da lei e seguindo
escrupulosamente os parâmetros constitucionais.
A inevitabilidade deste comportamento estatal que visa, como questão de
ordem administrativa no exercício do poder de polícia, obstar a consumação
de crimes, deve ser levada a efeito mediante a ponderação dos valores que se
pretende tutelar.
Há de se equacionar, pois, a garantia da inviolabilidade do domicílio e o
direito à segurança, este último, como justificador do ingresso não autorizado

58 Código de Processo Penal. Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. 2ª Ed. Lumen Juris.
2007. pág. 422

251
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para, nos termos do permitido pela Constituição da República, impedir a


consumação de crimes nas hipóteses de flagrante delito.
Isso significa que, ao mesmo tempo em que ao Estado compete, como
devedor que é, garantir a todos o direito à segurança, o resultado processual
penal somente é lícito se o ingresso está justificado.
Apenas nessas hipóteses é que se admite o acesso domiciliar, como exceção à
norma da constitucional que impede o ingresso não consentido e não autorizado.
Reconhecendo a relatividade dos direitos fundamentais dentro dos quais
se insere a inviolabilidade de domicílio, GILMAR FERREIRA MENDES59 afirma
a licitude do ingresso em caso de flagrante delito, para destacar, que este mesmo
ingresso somente se justifica enquanto se mantiver o referido estado, pois,
“quebrado o flagrante a invasão é proibida”.
Ora, a prática de uma infração penal, que do ponto de vista legal é de ínfimo
potencial ofensivo, cuja disciplina não prevê como punição a pena corporal
limitadora de liberdade, bem como não admite prisão em flagrante, passa ao
largo da exceção constitucionalmente prevista.
Com isso, fundadas devem ser as suspeitas que, conforme a proporcionalidade
e razoabilidade, autorizem a compressão deste direito fundamental, o que não
ocorre em hipótese de crime para o qual sequer há prisão em flagrante (artigo
48, §2º, da Lei 11.343/06).
O postulado da proporcionalidade, segundo HUMBERTO ÁVILA60,
pressupõe uma relação entre meio e fim. A ausência dessa relação dialética meio/
fim, intersubjetivamente controlável segundo o referido autor, compromete a
sua própria razão de ser.
Seja como for, esta autor coloca com precisão a estrutura necessária para a
correta aplicação do referido postulado:

“O exame da proporcionalidade aplica-se sempre que houver


uma medida concreta destinada a realizar uma !nalidade. Nesse
caso devem ser analisadas as possibilidades de a medida levar
à realização da finalidade (exame da adequação), de a medida
ser a menos restritiva aos direitos evolvidos dentre aquelas que
poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade (exame
da necessidade) e de a finalidade pública ser tão valorosa que

59 INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO. Curso de Direito


Constitucional. Ed. Saraiva. Instituto Brasiliense de Direito Público. 2007. pág. 381
60 Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª Ed. Malheiros. 2005, pág. 150

252
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justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em


sentido estrito)”.

Sob este prisma, o ingresso em casa alheia ao argumento de que o morador


encontraBse em flagrante delito quando o crime supostamente praticado pelo
agente não comporta prisão em flagrante e sequer imputação de pena privativa
de liberdade na hipótese de eventual condenação, ofende o postulado da
proporcionalidade e, por conseqüência, a norma prescrita no artigo 5º, inciso XI,
da Constituição da República.
Em suma, se não há a possibilidade de prisão em flagrante, não se pode
entrar na casa, protegida por cláusula constitucional.
A transgressão pelo poder público da garantia constitucional estabelecida
no artigo 5º, inciso XI, da Constituição da República acaba por contaminar todas
as demais provas que dela derivam e que por conta dela foram eventualmente
obtidas.
Nesse sentido é o magistério de ADA PELLEGRINI GRINOVER61:

“a inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta,


sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma
constitucional, em prejuízo das partes ou de terceiros. Nesses casos,
é irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente público
ou por particulares, porque, em ambos os casos, a prova terá sido
obtida com infringência aos princípios constitucionais que garantem
os direitos da personalidade. Será também irrelevante indagar-se a
respeito do momento em que a ilicitude se caracterizou (antes ou fora
do processo ou no curso do mesmo); será irrelevante indagar-se se o
ato ilícito foi cumprido contra a parte ou contra terceiro, desde que
tenha importado em violação a direitos fundamentais; e será, por fim,
irrelevante indagar-se se o processo no qual se utilizaria prova ilícita
deste jaez é de natureza penal ou civil”.

Indo ao encontro do pensamento de ADA PELLEGRINI GRINOVER, o


Supremo Tribunal Federal, julgando o habeas corpus 90.376B2, em voto da lavra
do e. Ministro Celso de Mello, assim decidiu:

61 Liberdades Públicas e Processo Penal – As interceptações telefônicas. Saraiva. 1976. pág. 189.

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“Prova penal. BANIMENTO CONSTITUCIONAL DAS PROVAS


ILÍCITAS (CF, ART. 5º, LVI) B ILICITUDE (ORIGINÁRIA E POR
DERIVAÇÃO) B INADMISSIBILDADE B BUSCA E APREENSÃO DE
MATERIAIS E EQUIPAMENTOS REALIZADA, SEM MANDADO
JUDICIAL, EM QUARTO DE HOTEL AINDA OCUPADO B
IMPOSSIBLIDADE (...) GARANTIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO
CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE
PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SUA FASE PRÉBPROCESSUAL
(...) IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO
PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO À
GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR B PROVA
ILÍCITA B INIDONEIDADE JURÍDICA B RECURSO ORDINÁRIO
PROVIDO. BUSCA E APREENSÃO EM APOSENTOS OCUPADOS
DE HABITAÇÃO COLETIVA (COMO QUARTOS DE HOTEL)
B SUBSUNÇÃO DESSE ESPAÇO PRIVADO, DESDE QUE
OCUPADO, AO CONCEITO DE “CASA” B CONSEQÜENTE
NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL,
RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO
CONSTITUCIONAL. (...) Sem que ocorra qualquer das situações
excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º,
XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade de quem de
direito (“invito domino”), ingressar, durante o dia, sem mandado
judicial, em aposento ocupado de habitação coletiva, sob pena de a
prova resultante dessa diligência de busca e apreensão reputarBse
inadmissível, porque impregnada de ilicitude originária. Doutrina.
Precedentes (STF). ILICITUDE DA PROVA B INADMISSIBILIDADE
DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER
INSTÂNCIA DE PODER) B INIDONEIDADE JURÍDICA DA
PROVA RESULTANTE DA TRANSGRESSÃO ESTATAL AO
REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS
INDIVIDUAIS. B A ação persecutória do Estado, qualquer que
seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestirB
se de legitimidade, não pode apoiarBse em elementos probatórios
ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional
do “due process of law”, que tem, no dogma da inadmissibilidade
das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções
concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. B
A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo

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vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com


os postulados que regem uma sociedade fundada em bases
democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder
Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional,
repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que
resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito
processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento
normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a
fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”. Doutrina.
Precedentes. A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA
ÁRVORE ENVENENADA (“FRUITS OF THE POISONOUS TREE”):
A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO. B Ninguém pode
ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente,
em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se
cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório,
ainda que produzido, de modo válido, em momento subseqüente,
não pode apoiarBse, não pode ter fundamento causal nem derivar
de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária. B A
exclusão da prova originariamente ilícita B ou daquela afetada
pelo vício da ilicitude por derivação B representa um dos meios
mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do
“due process of law” e a tornar mais intensa, pelo banimento da
prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os
direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede
processual penal. Doutrina. Precedentes. B A doutrina da ilicitude
por derivação (teoria dos “frutos da árvore envenenada”) repudia,
por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que,
não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior,
achamBse afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude
originária, que a eles se transmite, contaminandoBos, por efeito de
repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios
somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de
anterior transgressão praticada, originariamente, pelos agentes da
persecução penal, que desrespeitaram a garantia constitucional da
inviolabilidade domiciliar. B RevelamBse inadmissíveis, desse modo,
em decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios
a que os órgãos da persecução penal somente tiveram acesso em
razão da prova originariamente ilícita, obtida como resultado

255
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da transgressão, por agentes estatais, de direitos e garantias


constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do
ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação
de ordem jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos. B Se,
no entanto, o órgão da persecução penal demonstrar que obteve,
legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma
fonte autônoma de prova B que não guarde qualquer relação de
dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com
esta não mantendo vinculação causal B, tais dados probatórios
revelarBseBão plenamente admissíveis, porque não contaminados
pela mácula da ilicitude originária. B A QUESTÃO DA FONTE
AUTÔNOMA DE PROVA (“AN INDEPENDENT SOURCE”) E A
SUA DESVINCULAÇÃO CAUSAL DA PROVA ILICITAMENTE
OBTIDA B DOUTRINA B PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL B JURISPRUDÊNCIA COMPARADA (A EXPERIÊNCIA
DA SUPREMA CORTE AMERICANA): CASOS “SILVERTHORNE
LUMBER CO. V. UNITED STATES (1920); SEGURA V. UNITED
STATES (1984); NIX V. WILLIAMS (1984); MURRAY V. UNITED
STATES (1988)”, v.g..

Abstraída a prova ilicitamente colhida, qual seja, por força de prisão em


flagrante levada a efeito em afronta ao princípio da inviolabilidade de domicílio,
e aquelas provas que dela decorreram, não há elementos fáticos que autorizem a
manutenção do provimento condenatório.
Isto porque todas as provas que decorrem do ingresso dos policiais na
casa do apelante, quais sejam a droga apreendida no local indicado pelo réu e a
quantia em espécie encontrada no interior do armário desta mesma residência,
são fruto de ato eivado de nulidade e, portanto, estas provas são imprestáveis
para a formação do livre convencimento motivado do magistrado.
Posto isto, voto no sentido de conhecer o recurso para, acolhendo a preliminar
deduzida, declarar a nulidade da apreensão e, por conseqüência, absolver o réu
por ausência de provas suficientes para a manutenção da condenação.
Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2008.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

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Proibição da prova emprestada

HABEAS CORPUS 0014374-70.2010.8.19.0000


AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DA XX VARA DA COMARCA DE SÃO
GONÇALO
IMPETRANTE: XXX
PACIENTE: XXX
CORRÉU: CARLOS VANDRÉ DE SOUZA OLIVEIRA
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

VOTO VENCIDO

Em que pese o entendimento diverso adotado pela douta maioria, voto


vencido para JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO E CONCEDER A ORDEM
para cassar a decisão de fls. 41/2 e, caso a prova já tenha sido introduzida no
processo, determinar que ela seja desentranhada.
Apresento em anexo a declaração de voto com ementa.

Rio de Janeiro, 01 de julho de 2010.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. EMPRÉS-


TIMO DE PROVA ORAL PRODUZIDA EM PROCESSO
QUE O PACIENTE NÃO INTEGRAVA COMO PARTE, UMA
VEZ QUE DECRETADA SUA REVELIA. REQUERIMENTO
MINISTERIAL DEFERIDO PELA AUTORIDADE APONTADA
COMO COATORA. IMPOSSIBILIDADE. INCOERÊNCIA COM
A LÓGICA DA ORALIDADE ADOTADA PELAS LEIS 11.689,
11.690 E 11.719, TODAS DE 2008. PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO.
REPERCUSSÃO NA AMPLA DEFESA, NO CONTRADITÓRIO,
NO DIREITO À PROVA, NO LIVRE CONVENCIMENTO DO
JUIZ E NA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. PROVA

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ILEGÍTIMA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO.


Paciente denunciado pela suposta prática do crime definido no
artigo 121, § 2.º, inciso I, do Código Penal. Ministério Público
que requereu empréstimo de prova produzida no processo do
corréu. Princípios da livre convicção motivada e, no caso concreto
especificamente, da íntima convicção que permitem a atribuição
do valor que o julgador entender adequado à mencionada prova.
Imposição constitucional do contraditório que, nesse contexto, se
fortalece, colocando como requisito à importação da prova que a
parte contra quem se pretende introduziBla no segundo processo
tenha sido parte no primeiro. Exigência de efetiva participação
do paciente na produção da prova, e não apenas na crítica ao seu
conteúdo quando ele já está finalizado, salvo se com isso ele próprio
concordar, o que não ocorre no presente caso. Inaplicabilidade do
contraditório diferido (artigo 155 do Código de Processo Penal).
Inadmissibilidade da prova oral sob a forma documental, diante
das alterações trazidas ao Código de Processo Penal pelas Leis
11.689, 11.690 e 11.719, todas de 2008, que consagraram o princípio
da oralidade. Premissa axiológica que veio para concentrar os atos
em audiência e garantir a ambas as partes mais efetiva influência
no resultado do processo e, sobretudo, de maior fidelidade da
sentença ao fato caracterizador do crime. Princípio da imediação.
Repercussão em diversas esferas, tais como a ampla defesa, o
contraditório, o direito à prova, o livre convencimento do juiz, o
juiz natural e a inafastabilidade da jurisdição. Direito fundamental à
prova que assiste a ambas as partes – Ministério Público e acusado.
Inviabilidade do empréstimo, sob pena de ilegitimidade da prova.
VOTEI VENCIDO PARA CONCEDER A ORDEM.

VOTO

Em síntese, a impetrante aduz a ilicitude da prova produzida pelo


Ministério Público, já que produzida em processo não integrado pelo paciente,
o que viola o contraditório.
A impetrante está com a razão.
Com efeito, sabeBse que o instituto da prova emprestada, por carecer de
regulamentação específica tanto no âmbito processual civil como no processual
penal, surte muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais.

258
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É assim especialmente em relação aos seus requisitos, dentre os quais ora


se inclui, ora se exclui a identidade objetiva (fatos provados e fatos probandos)
e subjetiva (partes) entre o processo de que se importa a prova e aquele para o
qual ela se exporta; ora se salienta a identidade física do julgador de ambas as
demandas, ora se a considera desnecessária; ora se exige que a prova importada
provenha de processo judicial, ora se a admite quando produzida em processo
administrativo, etc.
Não obstante a gama de posicionamentos que o tema propõe, muitas
vezes opostos, há pontos em que a doutrina e a jurisprudência não divergem,
nos quais se incluem curiosamente aqueles sobre os quais controvertem, no
caso presente, a Defesa e o Ministério Público, cujo pedido foi deferido pela
autoridade apontada como coatora.
E todos eles desembocam no contraditório (artigo 5.º, inciso LV, da
Constituição da República) como princípio fundamental que deve nortear a
função jurisdicional do Estado.
Com efeito, como salientado pela autoridade judiciária à fl. 50, a doutrina é
unânime em admitir a forma documental da prova emprestada62.
Todavia, não se trata de reconhecer, com isso, que o depoimento de uma
testemunha, por exemplo, ao ingressar num segundo processo como prova
importada, perde sua natureza oral para se transformar em documento.
Ao contrário, não há alquimia que transforme prova oral em documental.
Em verdade, a afirmação pacífica de que a prova emprestada entra
documentalmente no segundo processo constitui paradigma para estabelecer
limites à sua admissibilidade, expressos nas normas de produção da prova
documental (artigos 231 a 238 do Código de Processo Penal) e no contraditório,
mediante ciência às partes a respeito de seu conteúdo.
A prova emprestada, portanto, é introduzida no novo processo na forma
documental, mas a sua natureza permanece inalterada.

Mesmo sendo apresentada no segundo processo pela forma documental, a


prova emprestada não valerá como mero documento. Terá a potencialidade

62 Nesse sentido: GRINOVER, Ada. Prova emprestada. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais,
n.º 4, p. 60B69; ANTUNES, Carla Heidrich, BIANCHINI, Caroline Ribeiro e MAGALDI, Fernando.
Prova emprestada: algumas considerações. In: Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n.º 5,
MaiBJun/2000, p. 28B37; REMATOSO, Mariana Borges. A (in)eficácia da prova emprestada. In: Revista
de Direito Privado, n.º 41, 2010, p. 152B222; TALAMINI, Eduardo. Prova emprestada no processo
civil e penal. In: Revista de Processo, n.º 91, p. 92B114; KODANI, Gisele. Âmbito de aplicação da prova
emprestada. In: Revista de Processo, n.º 113, p. 268B280; RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17.ª
Ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2010, p. 479; NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal
Comentado. 9.ª Ed. RT. São Paulo, 2009, p.

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de assumir exatamente a eficácia probatória que obteria no processo em


que foi originariamente produzida. (...) O Juiz, ao apreciar as provas,
poderá conferir à emprestada precisamente o mesmo peso que esta teria, se
houvesse sido originariamente produzida no segundo processo.63

Para Gisele Kodani, a propósito, é precisamente isso o que caracteriza a


prova emprestada:

É este, portanto, o aspecto essencial da prova emprestada: apresentar/se


sob a forma documental, mas com a potencialidade de assumir a mesma
eficácia com que foi produzida no processo de origem. Todas as vezes que
não houver essa dicotomia: forma documental versus valor de outro meio
de prova, não há falar em prova emprestada. (...) Quando se fala, portanto,
em prova emprestada, quer se dizer não apenas o transporte físico (de uns
autos para outros), mas também o transporte do valor da prova em si.64

TrataBse de decorrência lógica do princípio da livre convicção motivada: o juiz


pode valorar livremente as provas produzidas pelas partes, desde que fundamente
a opção por esta ou aquela tese, estando as exceções expressamente previstas em lei,
como as hipóteses de infrações que deixam vestígios, em que o exame de corpo de
delito é imprescindível (artigo 158 do Código de Processo Penal).
Por isso mesmo a doutrina65 também é pacífica em afirmar que, se por
um lado a prova emprestada ingressa no novo processo na forma documental,
ela não perde seu valor originário, pois a lei não lhe atribui menor ou maior
relevância do que às demais – nem poderia, sob pena de regressão ao sistema
das provas legais, típico de modelos inquisitivos de processo.

Isso não significa, contudo, que a prova emprestada receberá sempre,


absoluta e necessariamente, o valor que talvez possuísse em sua essência
originária. Também não é correto dizer que, mesmo sendo admissível, ela não
poderá jamais assumir tal valor. O Juiz, no caso concreto e motivadamente,
conferir/lhe/á o valor que ela mereça.66

63 TALAMINI, op. cit., p. 94.


64 Op. cit., p. 272. Por isso mesmo a autora afirma que “não deve ser entendido como prova emprestada
o mero documento reprografado de outros autos, pois não há ‘o contraste entre forma e valor
potencial’”.
65 Vide nota 1.
66 TALAMINI, op. cit., p. 111.

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Nessa perspectiva, não é possível argumentar com a validade da futura


sentença que eventualmente esteja fundamentada na prova importada, ainda
que condicionada à existência de outras provas, produzidas sob o crivo do
contraditório, que a corroborem.
Isso porque, em primeiro lugar, “ou bem esses elementos probatórios
por si só já bastariam (e então a prova inconstitucional seria até dispensável,
não havendo razão para permanecer nos autos); ou tais elementos seriam
insuficientes e precisamente a prova inconstitucional é que faria a diferença (ou
seja, estaria sendo aproveitada como elemento decisivo – em frontal colisão com a
determinação constitucional de inaproveitabilidade)”67.
Além disso, a hipótese sob julgamento é de imputação de crime doloso
contra a vida, cujo julgamento, caso pronunciado o paciente, ficará a cargo do
Conselho de Sentença, sob o princípio da íntima convicção, inexistindo meios de
verificar, com nessa argumentação, aduzida nas informações de fls. 49/53, se sua
decisão será válida ou não.
Assim, se a prova emprestada, depois de introduzida sob a forma
documental no novo processo, mantém sua natureza original – oral ou pericial,
por exemplo – e assim deve ser valorada pelo juiz, quer fundamentadamente,
quer sob o princípio da íntima convicção, “é preciso que o grau de contraditório
e de cognição do processo anterior tenha sido, no mínimo, tão intenso quanto
o que haveria no segundo processo”68, caso nele a prova viesse a ser produzida
originariamente.
Isso porque, afora os requisitos específicos de sua admissibilidade, a prova
emprestada submeteBse à regulamentação das provas em geral, em que está
inserido o artigo 155 do Código de Processo Penal, que dispõe que o “juiz formará
sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório
judicial”69, conforme decidido por este E. Tribunal de Justiça:

(...) Prova testemunhal silente quanto à existência de prévia conjugação


e concerto de intenções e de atividades dos implicados no evento para a
sucessiva prática da ilícita traficância, cuja sustentação condenatória e
acolhimento sentencial apenas se deram calcados nas declarações realizadas
pelos adolescentes/infratores junto ao Juízo da 2ª Vara da Infância e da
Adolescência, o que se constituiria, na melhor das hipóteses, em prova
emprestada, mercê da ausência de estabelecimento de Contraditório

67 Idem, p. 111B112.
68 Idem, p. 97.
69 Grifei.

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no Juízo criminal em face de tais manifestações, mas o que poderia ser


valorado como análogo aos elementos produzidos em sede inquisitorial, e,
portanto, susceptível de sofrer a limitação prevista na parte final do art.
155, do Diploma dos Ritos, segundo a redação que lhe foi imposta pela
Lei nº 11.690/08, mas ainda sem perder de vista que, mesmo que válidas
fossem tais elementos de convicção, ainda assim eles não seriam suficientes
para alicerçar um correto juízo reprovatório, já que equiparados a meras
“chamadas do co/réu”. (...)70

E, no regime das provas em geral, o “contraditório judicial” não deve ser


exercido apenas no momento da crítica ao elemento probatório, a partir do
acesso a seu conteúdo já finalizado.
Esse argumento, que se confunde com aquele do contraditório diferido,
empregado nas informações de fls. 49/53, é válido apenas no processo civil, “que
geralmente se satisfaz com a potencialidade de contraditório: bastando que se
dê às partes a oportunidade de participar”71.
Ainda assim, as hipóteses de contraditório diferido, conforme acentuado
por Ada Pellegrini Grinover72, estão adstritas às provas antecipadas, que possuem
natureza cautelar, além das irrepetíveis (artigo 155 do Código de Processo Penal)
ou das de difícil reprodução73.
Não seria, pois, o caso apresentado a julgamento, ainda que se tratasse de
causa de natureza extrapenal.
No processo penal, a seu turno, a defesa técnica é indisponível, seja para
fazer alegações ou para exercer o direito à prova, que, portanto, não engloba só
o momento da análise da prova, mas também outros dois momentos anteriores:
o da sua admissão – que ora se analisa – e o da sua produção – no qual todas as
partes deverão estar presentes74.

E é importante salientar que o princípio da ineficácia das provas que não


sejam colhidas em contraditório não significa apenas que a parte possa
defender/se em relação às provas contra ela apresentadas: exige/se, isso

70 AP 0040714B53.2007.8.19.0001. Sexta Câmara Criminal. Rel. Des. Luiz Noronha Dantas. Julgamento:
02/03/2010.
71 ANTUNES, et. all, op. cit., p. 35.
72 Prova emprestada, cit., p. 62.
73 REMATOSO, op. cit., p. 190.
74 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. RT. São Paulo, 1997, p. 169.

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sim, que seja posta em condições de participar, assistindo à produção das


mesmas enquanto ela se desenvolve.75

Por isso se coloca, também de forma pacífica jurisprudencial e doutrinaB


riamente, entre os requisitos de admissibilidade da prova emprestada, que ela
tenha sido produzida, no processo primitivo, em obediência às normas legais e
constitucionais:

O juiz pode levá/la em consideração, embora deva ter a especial cautela de


verificar como foi formada no outro feito, de onde foi importada, para saber
se houve o indispensável devido processo legal.76

Nessa perspectiva, não há como subtrair do direito de provar as atividades


inerentes à própria produção da prova, como a de formular quesitos ao perito e
nomear assistente técnico e a de formular perguntas às testemunhas.
É o que ensina Antonio Magalhães Gomes Filho, que, depois de salientar,
no contraditório, o momento de ciência das partes a respeito da prática e do
conteúdo dos atos processuais, afirma:

No seu segundo momento, o contraditório adquire uma feição dinâmica,


caracterizando/se pela possibilidade de participação ativa dos seus
protagonistas em todos os atos do procedimento, com o objetivo de influenciar
positivamente o espírito do juiz e obter, assim, a tutela pretendida.77

Não se trata, pois, de capricho formalista, mas de garantia que possui um


determinado fim: o de convencer o julgador. Nessa linha, assumem relevância os
princípios da oralidade e, por via de consequência, da imediação e da identidade
física do juiz78.
Com efeito, o empréstimo de prova oral e de interrogatório de corréu na
forma documental vai de encontro à lógica adotada pelas recentes alterações
trazidas ao Código de Processo Penal, por meio das Leis 11.689, 11.690 e 11.719,
todas de 2008.
A propósito, cumpre destacar que não foi casual a opção do legislador
pela estruturação oral dos novos procedimentos, pois dentre os princípios que

75 GRIONVER, Prova emprestada, cit., p. 63.


76 NUCCI, op. cit., p. 347.
77 GOMES FILHO, op. cit., p. 138.
78 GRINOVER, Prova emprestada, cit., p. 62, ademais de todos os autores citados na nota 1.

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informam o sistema acusatório, eleito no artigo 129, inciso I, da Constituição da


República, está o da oralidade, que tem por objetivo, dentre outros, a aceleração
do processo pela concentração dos atos processuais em audiência.
Além disso, a contraposição desse princípio com a escritura conduz à
constatação de que a relação entre sistemas autoritários e a forma escrita de
instrução probatória e manifestação das partes no processo não é rara, a exemplo
dos tempos de Inquisição79.
Não se trata, evidentemente, de coincidência histórica, pois “a alternativa
axiológica entre as formas oral e escrita, assim como aquela entre publicidade
e segredo, reflete a diversidade dos métodos probatórios próprios do sistema
acusatório e inquisitório: enquanto a forma escrita é inevitável em um sistema
penal baseado nas provas legais, a forma oral o é, ao invés, nos sistemas
informados pelo contraditório e pelo livre convencimento”80.
O efeito prático da oralidade no contraditório é de fato evidente porque,
ao implicar necessariamente maior grau de publicidade dos atos, ela “abrevia
a distância”81 entre os sujeitos processuais e, portanto, proporciona a imediação
do diálogo entre eles: cientes do conteúdo das provas eventualmente produzidas
em processo, as partes possuem maior liberdade e possibilidade de manifestação
e interferência no convencimento do juiz.
Não seria de grande valia, no entanto, a imediação entendida apenas como
método de convencimento do juiz. Segundo Iacovello, o binômio oralidadeB
imediação deve antes ser concebido como “técnica de formação das provas”82.
Assim é porque o Juiz que não participa da produção das provas abre mão
do contato com detalhes e sutilezas que escapam à frieza dos papéis que as
reproduzem.

(...) o essencial do processo se cifra na relação direta do juiz com as fontes


pessoais de prova, que na experiência do processo criminal são muitas
vezes as únicas e, em geral, as de maior rendimento. E, ademais, vigente o
princípio da livre convicção, não existiria outro modus operandi possível,
posto que o julgador deve formar convicção com materiais de primeira mão,
em virtude de uma apreciação personalíssima.83

79 Ferrajoli, Luigi. Trad.: Zomer, Ana Paula; Tavares, Juarez; Choukr, Fauzi Hassan e GOMES, Luiz
Flávio. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, p. 451B454.
80 Idem, p. 494.
81 Carnelu[i, Francesco. Diri_o e Processo. Morano, Napoli, 1958, p. 151.
82 Apud Ibáñez, Perfecto Andrés. Valoração da Prova e Sentença Penal. Org. Lédio Rosa de Andrade.
Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 9.
83 Idem, p. 5.

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Não basta, portanto, que o Juiz ouça diretamente as partes; também não é
suficiente que ele presencie a produção das provas. Ambas as situações devem
estar presentes para que o resultado do processo tenha fidelidade mínima à
realidade dos fatos.
A esse respeito, Bentham, em ponto de vista contrário à estrutura mista do
processo penal francês, destacou que “O juiz que não ouviu as testemunhas,
nunca estará seguro de que as atas representam fielmente o testemunho oral,
nem de que este tenha sido exato e completo em sua origem”84.
Continua o autor, ao justificar a necessidade da identidade física do juiz:

O juiz não pode conhecer por observações próprias os caracteres de verdade


tão vivos a tão naturais, relacionados com a fisionomia, com o tom de
voz, com a firmeza, com a prontidão, com as emoções do temor, com a
simplicidade da inocência, com a turbação da má fé (...).85

Nessa perspectiva, cumpre destacar o princípio do juiz natural, que,


segundo Ada Pellegrini Grinover86, “é tutelado por uma dúplice garantia: de
um lado, a proibição de tribunais extraordinários ou de exceção, ex post facto;
e, do outro, o asseguramento do juiz competente”87 (artigo 5.º, inciso LIII, da
Constituição da República).
E prossegue a autora:

É essa a interligação entre os princípios do contraditório e do juiz natural,


a exigir que o primeiro seja instaurado perante o juiz da causa: tanto
assim que, ainda que a prova fosse produzida com a participação das
partes, a ausência do juiz natural impossibilitaria a convalidação do vício.
Trata/se, segundo a doutrina e jurisprudência italianas, da denominada
impossibilidade de integração extrajudicial do contraditório.88

É evidente, pois, que os princípios da oralidade, da imediação, do


contraditório, da identidade física do juiz e do juiz natural não serão observados
caso se importem os depoimentos prestados no processo em que era réu XXX,

84 Tratado de las Pruebas Judiciales. V. I. Trad. Manuel Ossorio Florit. Dumont, Buenos Aires, 1959, p. 92.
85 Ibidem.
86 Prova emprestada, p. 63.
87 Grifei.
88 Ibidem.

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já que o Júri não poderá ser composto pelos mesmos cidadãos que julgaram o
mencionado corréu.
Com isso, menos ainda será observada a paridade de armas:

E o princípio do contraditório ficaria esvaziado de qualquer sentido, se as


partes não fossem colocadas em condições de participar da formação da
prova, em plano paritético.89

No que tange à prova oral, “disso decorre a constatação de que a aquisição


da prova não se limita à documentação de uma informação, mas exige uma
participação ativa de quem realiza a inquirição, com o objetivo de se proceder,
concomitantemente, a uma valoração sobre a idoneidade do testemunho”90.
É por isso que, se a doutrina diverge a respeito da identidade de partes entre
o primeiro e o segundo processos como requisito de admissibilidade da prova
emprestada, por outro lado ela é pacífica em exigir que ao menos aquele contra
quem se pretende produzir essa prova tenha sido parte no processo primitivo91.
E esse requisito não se afasta pela alegação de que o segundo processo,
como no caso concreto sob julgamento, decorra de um primeiro que verse sobre
os mesmos fatos, imputados às mesmas pessoas. Isso porque não basta que a
parte tenha sido parte na demanda; ela deve ter efetivamente integrado a relação
processual.
Além disso, é precisa a lição de Eduardo Talamini92, ainda que se refira ao
processo primitivo como sendo de natureza extrapenal, endossada por Mariana
Rematoso no âmbito penal:

Da mesma forma, a prova obtida em processo que houve revelia do réu não
pode ser emprestada a outra demanda contra o mesmo réu, pois a preclusão
só pode gerar efeitos endoprocessuais.93

89 Idem, p. 61.
90 GOMES FILHO, op. cit., p. 152.
91 Vide nota 1, além de Camargo Aranha, citado por GRINOVER, em Prova emprestada, cit., p. 66: “O
princípio constitucional do contraditório (audiatur et altera pars) exige que a prova somente tenha
valia se produzida diante de quem suportará seus efeitos, com a possibilidade de contrariáBla
por todos os meios admissíveis. Daí porque a prova emprestada somente poderá surtir efeito se
originariamente colhida em processo entre as mesmas partes ou no qual figure como parte quem por
ela será atingido. Em hipótese alguma, por violar o princípio constitucional do contraditório, gerará
efeitos contra quem não tenha figurado como uma das partes no processo originário”.
92 Op. cit., p. 97.
93 Op. cit., p. 190.

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No mesmo sentido já decidiu esta E. Câmara Criminal:

Indivíduo denunciado, junto com três outros, por prática de roubo, com
as majorantes do emprego de arma e pluralidade de agentes. Autuação
flagrancial apenas dos demais. Prisão preventiva, decretada, do referido.
Desmembramento do feito quanto a ele. Citação por edital, e suspensão
processual à luz do artigo 366 da Lei Adjetiva, que durou quatro anos.
Localização em estabelecimento do sistema penitenciário. Mantença
da custódia. Sentença que, prestigiando quase toda a acusação pública,
condenou o citado réu nas penas de 05 anos e 04 meses de reclusão, sob
regime fechado, e pagamento de 13 dias/multa no valor unitário mínimo;
na incidência do artigo 157, § 2º, II, do Código Penal. Apelação defensiva,
concordada pelo MP de 1º grau e pela Procuradoria de Justiça. Razão
manifesta. Confissões dos co/réus, na fase policial e nos interrogatórios,
incriminando o ora insurgente, que não são vistas de bastante; eis que não
respaldadas por outras provas. Ausência de reconhecimento por vítimas
ou testemunhas. Prova emprestada do processo no tocante aos outros réus,
da qual não participou a defesa técnica do apelante; logo não podendo
ser aproveitada contra ele, sob pena de violação das pétreas garantias
constitucionais da defesa ampla e do contraditório. Cognição dubitativa,
acarretando o sucesso da resistência à pretensão punitiva. Absolvição do
recorrente com base no artigo 386, VII, da Lei Adjetiva. Sentença que se
reforma. Recurso provido. Expedição do Alvará de Soltura.94

Também o Supremo Tribunal Federal já adotou este posicionamento:

Recurso extraordinário: descabimento: falta de prequestionamento da


matéria constitucional suscitada no RE (CF, art. 5º, LV). II. Recurso
extraordinário, prequestionamento e habeas/corpus de ofício. Em recurso
extraordinário criminal, perde relevo a discussão em torno de requisitos
específicos, qual o do prequestionamento, sempre que / evidenciando/se
a lesão ou a ameaça à liberdade de locomoção / seja possível a concessão
de habeas/corpus de ofício (cf. RE 273.363, 1ª T,., 5.9.2000, Pertence, DJ
20.10.2000). III. Prova emprestada e garantia do contraditório. A garantia
constitucional do contraditório / ao lado, quando for o caso, do princípio

94 AP 004528B40.2002.8.19.0004. Quinta Câmara Criminal. Rel. Des. Luiz Felipe Haddad. Julgamento:
13/05/2010.

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do juiz natural / é o obstáculo mais freqüentemente oponível à admissão e


à valoração da prova emprestada de outro processo, no qual, pelo menos,
não tenha sido parte aquele contra quem se pretenda fazê/la valer; por isso
mesmo, no entanto, a circunstância de provir a prova de procedimento a
que estranho a parte contra a qual se pretende utilizá/la só tem relevo, se
se cuida de prova que / não fora o seu traslado para o processo / nele se
devesse produzir no curso da instrução contraditória, com a presença e a
intervenção das partes. Não é a hipótese dos autos: aqui o que se tomou de
empréstimo ao processo a que respondeu co/ré da recorrente, foi o laudo de
materialidade do tóxico apreendido, que, de regra, não se faz em juízo e à
veracidade do qual nada se opõe.95

Por fim, cumpre destacar, a título ilustrativo, a seguinte ementa, do Tribunal


de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

APELAÇÃO. RECEPTAÇÃO. Prova emprestada. A prova emprestada é


prova ilegítima quando produzida na ausência do réu e/ou seu defensor,
ferindo os princípios do contraditório e ampla defesa. Ausência de elementar
do tipo. Não comprovação da ciência pelo réu da origem ilícita do bem. In
dubio pro reo que impõe a absolvição. Apelo provido.96

É evidente que isso não significa estar proibida a importação da prova toda
vez que tenha sido produzida na ausência da parte contra a qual pretende servir
no processo. Todavia, o seu ingresso no segundo processo depende da anuência
dessa parte, que “tem direito de se manifestar quanto à admissibilidade do
empréstimo”97.
Caso contrário, a prova não poderá ser importada, eis que ilegítima por
violação ao preceito processualBconstitucional do contraditório (artigo 5.º, inciso
LVI, da Constituição da República), o que poderá ensejar a nulidade absoluta do
processo desde o empréstimo98.
Cumpre destacar que não se trata de restringir o direito fundamental à
prova, que também assiste ao Ministério Público como corolário do contraditório.
O que não se pode negar é que o exercício de todo direito está sujeito a limites,
normalmente estabelecidos pelos direitos alheios.

95 RE 328138/MG. Primeira Turma. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento: 16/09/2003.


96 AP 70025346412. Quinta Câmara Criminal. Rel. Des. Aramis Nassif. Julgamento: 27/01/2010.
97 ANTUNES, et. all, op. cit., p. 31.
98 GRINOVER, Prova emprestada, cit., p. 64B66.

268
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Assim, o princípio da economia processual, que orienta a pacífica


admissibilidade da prova emprestada, não é absoluto, devendo ceder lugar
aos direitos fundamentais dos cidadãos – no caso o direito ao contraditório do
acusado XXX.
É o que leciona Gisele Kodani:

Se há uma forma de se praticado o menor número de atos processuais


com a mesma eficiência e sem agressão aos direitos das partes, não há
motivo para não admitir a conveniência da prova emprestada no processo,
mormente se considerarmos que a morosidade da prestação jurisdicional é
um dos maiores desafios da temática do acesso à justiça na atualidade, e é
inversamente proporcional à realização do direito material.99

Dessa forma, como XXX não renunciou ao direito de participar da produção


da prova oral e do interrogatório do corréu XXX, esses elementos não poderão
ser importados para o processo.
Caso o Ministério Público entenda serem eles indispensáveis, deverá
reproduziBlos, arrolando as testemunhas cujos depoimentos julga necessários
ao justo deslinde da causa, eis que, como titular da ação penal, é também titular
do ônus de provar a acusação, observadas as normas processuais atinentes ao
contraditório.
Portanto, votei vencido no sentido de julgar procedente o pedido e conceder
a ordem para cassar a decisão de fls. 41/2 e, caso a prova já tenha sido introduzida
no processo, determinar que ela seja desentranhada.

Rio de Janeiro, 01 de julho de 2010.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

99 Op. cit., p. 272.

269
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Identidade física do juiz

5ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS: 2009.059.02457
IMPETRANTES: XXXX
PACIENTE: XXXX
AUTORIDADE COATORA: JUIZ DE DIREITO DA 33.ª VARA CRIMINAL
DA COMARCA DA CAPITAL
CORRÉUS: XXXX E OUTROS
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

EMENTA: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. PACIENTE


DENUNCIADA POR PRÁTICA DE TENTATIVA DE FURTO
QUALIFICADO, FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
PARTICULAR, POR VINTE E CINCO VEZES, E QUADRILHA,
EM CONCURSO MATERIAL. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.
DECISÃO QUE NÃO APONTA ELEMENTOS CONCRETOS PARA
A MANUTENÇÃO DO DECRETO PRISIONAL. AUSÊNCIA
DE FUNDAMENTAÇÃO. AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO
E JULGAMENTO INICIADA POR UM MAGISTRADO E
CONCLUÍDA POR OUTRO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO
DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ, EXPRESSAMENTE
CONSAGRADO COM AS ALTERAÇÕES TRAZIDAS AO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PELA LEI 11.719/08 (ARTIGO
399, § 2.º). PRINCÍPIO QUE REPERCUTE NA AMPLA DEFESA,
NO CONTRADITÓRIO, NO DIREITO DE PROVA, NO LIVRE
CONVENCIMENTO DO JUIZ E NA INAFASTABILIDADE DA
JURISDIÇÃO. NULIDADE ABSOLUTA. CONSTRANGIMENTO
ILEGAL CONFIGURADO. Paciente que responde pela prática da
conduta definida nos artigos 155, §4º, incisos II e IV, c.c. artigo 14,
inciso II, oito vezes, artigo 155, §4º, incisos II e IV, artigo 298, vinte
e cinco vezes, e artigo 288, na forma do artigo 69, todos do Código
Penal. Prisão em flagrante mantida com fundamento na preservação
da ordem pública. Ausência de elemento concreto referente aos
pressupostos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal

270
E! "#$%# &' ()$*+&*-.# / 2ª P'$"0

que determine a manutenção da custódia cautelar. Risco de


aplicação da pena de forma antecipada, que se configura medida
inadmissível no atual modelo constitucional. Violação da garantia
prevista no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República.
Presunção de inocência que deve ser assegurada. Ausência de
fundamentação da decisão que manteve a custódia cautelar que
leva ao reconhecimento da nulidade. Constatação de violação ao
disposto no artigo 399, § 2.º, do Código de Processo Penal, com
a redação conferida pela Lei 11.719/08, por ocasião da audiência
realizada no dia 03 de abril de 2009. Substituição do Magistrado
que iniciou a colheita da prova, de sorte que a Juíza que realizou
o interrogatório dos réus foi distinta daquele Juiz que ouviu as
testemunhas. Princípio da identidade física do juiz que, como
consequência da estruturação oral do processo e garantia, a ambas
as partes, de mais efetiva influência no seu resultado e, sobretudo,
de maior fidelidade da sentença ao fato caracterizador do crime,
tem repercussão em diversas esferas, tais como a ampla defesa,
o contraditório, o direito à prova, o livre convencimento do juiz
e a inafastabilidade da jurisdição. Matérias que, em razão de sua
relevância, dispensam a comprovação de prejuízo às partes para
fins de declaração de nulidade do ato. Chamado de urgência do
Magistrado titular do Juízo a quo ao Tribunal Regional Eleitoral
que não supre a nulidade: a uma porque a lei processual penal
não prevê exceções ao artigo 399, § 2.º, do Código de Processo
Penal, que contém norma processual de conteúdo material; a duas
porque, mesmo que se admita a aplicação analógica do artigo 132
do Código de Processo Civil, tal convocação, para desvincular
o Juiz do processo, deveria ensejar o efetivo afastamento do
Magistrado de suas atividades jurisdicionais como Juiz de
Direito, o que não ocorre, a teor do artigo 114 do Regimento
Interno do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro.
Nulidade que atinge a prisão cautelar, cuja acessoriedade
consiste na vinculação a processo válido. Artigo 648, inciso
VI, do Código de Processo Penal. Constrangimento ilegal
configurado. Ordem concedida e, nestes termos, estendida aos
corréus.
CONCESSÃO DA ORDEM.

271
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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº. 2009.059.02457,


em que são impetrantes XXXX e paciente XXXX.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que compõem a
Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em
sessão de julgamento realizada no dia 22 de abril de 2009, em julgar procedente
o pedido e CONCEDER A ORDEM, ratificada a liminar, declarandoBse, também,
a nulidade da audiência realizada no dia 03 de abril de 2009, por violação ao que
dispõe o artigo 399, § 2.º, do Código de Processo Penal, estendida a decisão aos
corréus.
A sessão de julgamento foi presidida pelo Desembargador Sérgio de Souza
Verani e participaram do julgamento como vogais os Desembargadores Rosa
Helena Guita e Nildson Araújo da Cruz.

Rio de Janeiro, 22 de abril de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

RELATÓRIO

TrataBse de habeas corpus ajuizado em favor de XXXX, por meio do qual


aduzem os impetrantes que a paciente foi presa em flagrante em 10 de novembro
de 2008 e denunciada pela prática de crimes de furto qualificado, na forma
tentada e consumada, falsificação de documento particular e quadrilha, em
concurso de agentes.
Por meio de decisão acostada à fl. 87/8 o magistrado indeferiu o pedido
de liberdade provisória com fundamento na preservação da ordem pública,
considerando a “sensação de insegurança” da sociedade, assim como o fato de
se tratar, a priori, de quadrilha especialidade em clonagem de cartões de crédito.
Os impetrantes requerem o relaxamento da prisão em flagrante da
paciente e, para fundamentar seu pedido, alegam que não foram configurados
os pressupostos para a manutenção da prisão preventiva, motivo pelo qual a
decisão de indeferimento do requerimento de liberdade provisória é nula.
A liminar foi deferida nos termos da decisão de fl. 40.

272
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Instada a se manifestar, a autoridade apontada como coatora prestou


informações às fls. 57/9, informando que o processo principal encontraBse
aguardando a continuação da audiência de instrução e julgamento designada
para o dia 03 de abril de 2009 e confirmou o indeferimento do pedido de
liberdade provisória, sem, no entanto, explicitar as razões.
O Ministério Público apresentou parecer às fls. 108/9 no sentido de concessão
da ordem tendo em vista a ausência de fundamentos para a manutenção da
custódia cautelar da paciente.

VOTO

A ordem deve ser concedida.


Da desnecessidade da prisão cautelar e da ausência de fundamentação da
decisão que indefere liberdade provisória.
A prisão em flagrante da paciente data de 10 de novembro de 2008 e a
custódia foi mantida por meio da decisão cuja cópia está acostada à fl. 87/8.
A decisão que manteve a custódia cautelar não mencionou qualquer fato
concreto que configurasse os pressupostos previstos no artigo 312 do Código de
Processo Penal, até mesmo porque não há notícia no processo de que a paciente
tenha ameaçado qualquer das testemunhas, assim como haja tentado se furtar à
aplicação da lei penal.
Em um Estado Democrático de Direito, e em face do princípio constitucional
da presunção de inocência, que permeia toda a dogmática penal e processual
penal, a custódia cautelar, espécie do gênero tutela de urgência penal, é uma
medida excepcional e somente se justifica quando presentes os requisitos do
fumus commissi delicti e periculum libertatis.
É necessário, pois, investigar se a prisão imposta ou mantida no decorrer
da instrução processual está fundamentada nesta direção e se a fundamentação
é coerente com o conteúdo da própria decisão, matéria perfeitamente adequada
aos limites do habeas corpus.
Esta investigação se impõe ao juiz sempre que a parte, via de regra a Defesa,
pretende ver reapreciada a decisão que decreta ou mantém a prisão. Claro está
que se o Direito Processual Penal brasileiro não dispõe de regra que defina tal
periodicidade, é certo que o afirmado caráter excepcional da custódia obriga ao
exame para evitar a duração excessiva ou desnecessária da prisão.
Na hipótese, a paciente foi presa em 11 de novembro de 2008, encontrandoB
se detida cautelarmente não obstante tenha formulado pedido de liberdade

273
E! "#$%# &' ()$*+&*-.# / 2ª P'$"0

provisória ao argumento de que faltariam os requisitos indispensáveis à


manutenção da prisão.
Caberia ao juiz, portanto, fundamentadamente enfrentar o pleito defensivo.
Volto a dizer, esta é uma exigência da Constituição, que aponta para a nulidade
nos casos em que a decisão carece de fundamentação. Não há como contornar a
ilegalidade se a decisão está desprovida de fundamentação.
Assim, o reconhecimento da necessidade da prisão há de ser expresso
(artigo 93, inciso IX, da Constituição da República) e terá de guardar relação
com os demais termos da decisão.
Os profissionais do direito não desconhecem que a fundamentação há de
ter conteúdo! Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart
(Manual do Processo de Conhecimento, 5ª edição, RT, São Paulo, 2006, p. 468) “a
motivação é a explicação da convicção e da decisão”. Acrescentam os citados autores
que o juiz deve demonstrar a origem e a razão de sua convicção e sua relação
com o direito que a sustenta.
Isso não ocorreu neste caso.
A decisão proferida pela autoridade apontada como coatora deixou de
observar a imposição constitucional, valendo aqui transcrever o seu conteúdo:

A sensação de insegurança em nossa cidade alcança índices alarmantes,


sendo dever do Estado a prevenção desses delitos, devendo, para isso,
verificar se a custódia de alguns meliantes é necessária.
Consta ainda nos autos que a quadrilha era especializada na clonagem de
cartões de crédito, tendo como(sic) meio de subsistência a prática de ilícitos,
devendo então ser mantida a custódia cautelar dos réus visando assegurar
a ordem pública e a ordem econômica. (fl. 87)

A decisão acima transcrita se reporta à preservação da ordem pública,


que não constitui fundamento válido para a preservação da custódia cautelar
quando dissociado de elementos concretos comprovados no processo, de forma
a justificar a decretação ou a manutenção da prisão processual.
Não houve, assim, qualquer referência a fatos concretos que demonstrassem
a real necessidade da manutenção da prisão. Além disso, não a Constituição da
República, ao garantir a presunção de inocência a todos os acusados, veda de
forma absoluta a antecipação de pena, o que demonstra que a finalidade de maior
reprovação da conduta do acusado referida pelo e. magistrado é flagrantemente
inconstitucional.

274
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Por óbvio, em se tratando de custódia cautelar decorrente do estado de


flagrância, nos termos do parágrafo único, do artigo 310, do Código de Processo
Penal, sua manutenção está condicionada à verificação dos requisitos da prisão
preventiva.
O magistrado necessitava afirmar na decisão a presença de fumus commissi
delicti, consistente na “probabilidade da ocorrência de um delito”, e o periculum
libertatis, representado pela natureza do risco à conveniência da instrução penal
ou para assegurar a aplicação da lei penal embutida em eventual liberdade da
paciente (Aury Lopes Jr., in Introdução Crítica ao Processo Penal: fundamentos da
instrumentalidade garantista, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 195).
A leitura do pronunciamento revela ausência de indicação de fatos
processuais aptos a ensejar a convicção de que a liberdade da paciente
colocaria em risco o processo. Não há um tópico sequer com o apontamento de
causas concretas para se negar à paciente o direito, que é regra geral, à luz da
Constituição, como reconhece o Supremo Tribunal Federal de forma pacífica.
Neste sentido, viola a norma constitucional decisão que preserva custódia
cautelar excepcional sem fundamento legal válido.
Assim, a decisão foge dos limites traçados pela norma processual para caracterizar
quaisquer dos pressupostos, denotando total ausência de fundamentação.
Ao magistrado e ao Ministério Público compete aplicar a lei e velar pela
sua aplicação, respectivamente, pautando sua atuação em consonância com os
princípios constitucionais que fundamentam a ordem democrática e igualitária,
alijado de preconceitos e subjetivismos/rotulações (Carlos Roberto Bacila. A violação
dos Direitos Humanos e o Estigma do Suspeito e do Policial, in Direito Penal e Processual
Penal B Uma visão Garantista, org. Gilson Bonato, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2001).
E o que se constata é que o juiz autor da decisão deixou de indicar fatos
concretos que poderiam prejudicar a colheita da prova e tampouco esclareceu
a circunstância que estaria a prejudicar eventual aplicação da lei penal, além de
se referir expressamente à aplicação da pena de forma antecipada. Em suma,
a decisão que manteve a custódia cautelar do paciente não encontra alicerce
constitucional.
Baseada, portanto, principalmente em préBjuízo acerca da prática do crime
a decisão é nula e como tal não pode produzir o efeito de justificar a manutenção
da custódia, dando causa ao relaxamento da prisão.
Pois, sem dúvida, a decisão que reconhece necessária a manutenção da
custódia cautelar da paciente, sem, contudo, apresentar fundamentação legal
e concreta para decisão proferida, conforme exige o artigo 93, inciso IX da
Constituição da República, é causa de constrangimento ilegal.

275
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Além disso, importante ressaltar que, após o deferimento da liminar em


favor da ora paciente, os corréus também tiveram deferido o pedido de liberdade
provisória por ausência de fundamentação do decreto prisional, conforme consta
da consulta processual realizada no sítio eletrônico deste Tribunal, ora anexada.
Este fato apenas confirma a desnecessidade da prisão cautelar ora analisada.
Por isso, ela não pode ser mantida.

Da violação ao princípio da identidade física do juiz.

Mais que isso, verificouBse, por meio do habeas corpus n.º 2009.059.02458,
a nulidade da audiência realizada no dia 03 de abril deste ano, em razão da
violação do que dispõe o artigo 399, § 2.º, do Código de Processo Penal, com a
redação conferida pela Lei 11.719/08.
A esse respeito é pertinente observar que as alterações trazidas pela aludida
Lei, bem como pelas Leis 11.689 e 11.690/08, ao Código de Processo Penal têm
enfrentado fortes resistências.
Aparentemente o fenômeno é de objeção à evolução do processo penal
brasileiro no sentido da transformação de um sistema processual com
características inquisitivas em outro com marcas mais adequadas às garantias
constitucionais que informam os Estados Democráticos de Direito – no caso
brasileiro, ao artigo 129, inciso I, da Constituição da República.
O mesmo problema enfrenta o princípio da identidade física do juiz, que,
malgrado adotado desde 1939 no Processo Civil brasileiro, jamais foi aplicado
no Processo Penal – nem mesmo, digaBse, ao procedimento sumário100 –, o
que é naturalmente previsível considerando as já mencionadas características
inquisitórias do Código de Processo Penal de 1941.
Não se trata de adotar uma concepção unitária do processo, de sorte a
confundir os institutos processuais civis com os processuais penais, mas de
reconhecer a desproporção entre o tratamento dado aos casos que nem sempre
envolvem direitos indisponíveis e aquele conferido às hipóteses em que o direito
de liberdade está sempre em questão.
A omissão do princípio no Código de Processo Penal, contudo, não veio
seguida de um esforço sequer da aplicação analógica do artigo 132 do Código de
Processo Civil, mesmo com suas exceções, tais como afastamento, aposentadoria
e promoção do juiz.

100 Supremo Tribunal Federal. HC 70819/MG. Primeira Turma. Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
Julgamento: 21/06/1994.

276
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Não é surpreendente que haja resistências dessa natureza, considerando


que historicamente a cultura jurídica brasileira pautouBse em valores autoritários
– que emergem de contextos políticos da mesma natureza – como parâmetro de
elaboração e aplicação das leis penais e processuais penais. Assim, surgem falsas
premissas e conclusões, tais como a de que o oferecimento de alegações finais
por memoriais escritos, por exemplo, permite ao acusado maior amplitude de
defesa do que na forma oral.
Era preciso compreender, contudo, a necessidade de filtrar as disposições
de lei processual que, se em valores numéricos parecia nova, em termos
históricos era visivelmente obsoleta, conforme destacado por Paulo Affonso
Leme Machado, em artigo ainda sobre o Projeto de Lei n.º 635 de 1975, que
buscava inserir a identidade física do juiz no Processo Penal101.
E o parâmetro dessa filtragem é – e foi, em certo aspecto, na edição das
novas leis processuais – a Constituição, promulgada em contexto histórico mais
recente e atualizado por valores democráticos.
Tal compreensão, porém, como se observa das resistências sofridas pela
nova legislação, requer que se conheçam os fundamentos teóricos que a apoiaram
em certa medida.
Daí decorre a demanda pelo reconhecimento das características dos tipos de
sistemas processuais identificados até hoje pelo Direito Processual Penal.
Nesse particular, a Constituição da República de 1988, em seu artigo 129,
inciso I, estabeleceu como pressuposto básico da validade do processo a estrita
observância do princípio acusatório.
Embora o sistema de mesmo nome não se confunda com ele, não se pode negar
que se trata da principal premissa axiológica do sistema acusatório, conforme
por mim salientado em Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das
Leis Processuais Penais102, o que evidencia o escopo constitucional de eleição dos
demais princípios que o informam.
Não foi por acaso que o legislador de 2008 optou pela estruturação oral
dos novos procedimentos, pois dentre os princípios que informam o sistema
processual constitucionalmente eleito está o da oralidade, em contraposição à
escritura.

101 A Identidade Física do Juiz no Processo Penal – Inovação Necessária. RTB476. Junho de 1975. p. 451B453.
102 4.ª Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 102B104.

277
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Com efeito, não é rara relação entre sistemas autoritários e a forma escrita
de instrução probatória e manifestação das partes no processo, a exemplo dos
tempos de Inquisição103.
Não se trata, evidentemente, de coincidência histórica, pois “a alternativa
axiológica entre as formas oral e escrita, assim como aquela entre publicidade
e segredo, reflete a diversidade dos métodos probatórios próprios do sistema
acusatório e inquisitório: enquanto a forma escrita é inevitável em um sistema
penal baseado nas provas legais, a forma oral o é, ao invés, nos sistemas
informados pelo contraditório e pelo livre convencimento”104.
O efeito prático da oralidade no contraditório é de fato evidente porque,
ao implicar necessariamente maior grau de publicidade dos atos, ela “abrevia a
distância”105 entre os sujeitos processuais e, portanto, proporciona a imediação
do diálogo entre eles: cientes do conteúdo das provas eventualmente produzidas
em processo, as partes possuem maior liberdade e possibilidade de manifestação
e interferência no convencimento do juiz.
Não seria de grande valia, no entanto, a imediação entendida apenas como
método de convencimento do juiz. Segundo Iacovello, o binômio oralidadeB
imediação deve antes ser concebido como “técnica de formação das provas”106.
Assim é porque o Juiz que não participa da produção das provas abre mão
do contato com detalhes e sutilezas que escapam à frieza dos papéis que as
reproduzem.

(...) o essencial do processo se cifra na relação direta do juiz com as fontes


pessoais de prova, que na experiência do processo criminal são muitas
vezes as únicas e, em geral, as de maior rendimento. E, ademais, vigente o
princípio da livre convicção, não existiria outro modus operandi possível,
posto que o julgador deve formar convicção com materiais de primeira mão,
em virtude de uma apreciação personalíssima.107

Não basta, portanto, que o Juiz ouça diretamente as partes; também não é
suficiente que ele presencie a produção das provas. Ambas as situações devem

103 Ferrajoli, Luigi. Trad.: Zomer, Ana Paula; Tavares, Juarez; Choukr, Fauzi Hassan e GOMES, Luiz
Flávio. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, p. 451B454.
104 Idem, p. 494.
105 Carnelu[i, Francesco. Diri_o e Processo. Morano, Napoli, 1958, p. 151.
106 Apud Ibáñez, Perfecto Andrés. Valoração da Prova e Sentença Penal. Tradução Lédio Rosa de Andrade.
Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 9.
107 Idem, p. 5.

278
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estar presentes para que o resultado do processo tenha fidelidade mínima à


realidade dos fatos.
Sob outro enfoque, “O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a
sentença” (artigo 399, § 2.º, do Código de Processo Penal).
A esse respeito, Bentham, em ponto de vista contrário à estrutura mista do
processo penal francês, destacou que “O juiz que não ouviu as testemunhas,
nunca estará seguro de que as atas representam fielmente o testemunho oral,
nem de que este tenha sido exato e completo em sua origem”108.
Continua o autor, justificando a necessidade da identidade física do juiz:

O juiz não pode conhecer por observações próprias os caracteres de verdade


tão vivos a tão naturais, relacionados com a fisionomia, com o tom de
voz, com a firmeza, com a prontidão, com as emoções do temor, com a
simplicidade da inocência, com a turbação da má fé (...).109

O princípio da identidade física do juiz veio, portanto, em boa hora, como


consequência da estruturação oral do processo e garantia, a ambas as partes –
acusador e acusado –, de mais efetiva influência no seu resultado e, sobretudo,
de maior fidelidade da sentença ao fato caracterizador do crime.
Possui, pois, repercussão em esferas diversas, tais como a ampla defesa, o
contraditório, o direito à prova, o livre convencimento do juiz e a inafastabilidade
da jurisdição, substancialmente relevantes num processo penal democrático, de
sorte que sua violação não carece sequer da aclamada comprovação do prejuízo
para fins de declaração da nulidade do processo, conforme afirmado por Ada
Pellegrini Grinover110:

Isso não significa que em todos os casos se exija a produção de prova da


ocorrência de prejuízo; normalmente essa demonstração se faz através
de simples procedimento lógico, verificando/se se a perda da faculdade
processual conferida à parte ou o comprometimento dos elementos
colocados à disposição do juiz no momento da sentença tiveram influência
no resultado final do processo.

É evidente que a “troca” de juiz durante a Audiência de Instrução e


Julgamento terá efeito no resultado do processo, na medida em que, neste caso,

108 Tratado de las Pruebas Judiciales. V. I. Trad. Manuel Ossorio Florit. Dumont, Buenos Aires, 1959, p. 92.
109 Ibidem.
110 As Nulidades no Processo Penal. 9.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 31.

279
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ao passo que um presidiu a colheita da prova, o outro ouviu os acusados. E


o conhecimento fracionado das versões apresentadas em juízo certamente
comprometerá o convencimento do juiz, qualquer que seja o que vier a proferir
a sentença.
Nesse sentido, em matéria processual civil, é o entendimento de José
Roberto dos Santos Bedaque111, para quem a violação do princípio da identidade
física do juiz enseja nulidade absoluta.
É verdade que na audiência realizada no dia 03 de abril de 2009 a substituição
do e. Juiz que iniciou a audiência foi feita sob o fundamento de que ele “teve que
comparecer com urgência ao TRE, órgão em que é membro efetivo”.
Ocorre que, considerando a já destacada repercussão que ele possui nos
direitos fundamentais da ampla defesa, do contraditório e da inafastabilidade
da jurisdição, deveBse reconhecer que a norma processual contida no § 2.º do
artigo 399 do Código de Processo Penal possui também conteúdo material:

(...) as primeiras [normas processuais penais materiais] (de que são


exemplos, como já referimos, a queixa, a prescrição, as espécies de prova, os
graus de recurso, a prisão preventiva, a liberdade condicional) condicionam
a efectivação da responsabilidade penal ou contendem directamente com
os direitos do arguido ou do recluso, enquanto que as segundas [normas
processuais penais formais] de que são exemplos as formas de citação ou
convocação, a redacção dos mandados, as formas de audição e registro dos
intervenientes processuais: estenografia, vídeo, etc., prazos de notificação
do arguido, formalidades e prazos dos exames periciais, formalidades e
horários das buscas), regulamentando o desenvolvimento do processo, não
produzem os efeitos jurídico/materiais derivados das primeiras.112

Dessa forma, a aludida norma está submetida à legalidade estrita e, na


ausência de previsão de exceções ao princípio da identidade física do juiz, ele
deve ser entendido como absoluto.
É que em matéria de restrição de direitos fundamentais a interpretação
das normas jurídicas é sempre restritiva, nunca ampliativa. É esta forma
taxativa, inerente ao método de aplicação das normas que restringem direitos
fundamentais, que não socorre o juiz ao especular com a incidência de exceções
que a lei não prevê.

111 Código de Processo Civil Interpretado. Corrd. Antônio Carlos Marcato. 3.ª Ed. Atlas, São Paulo, 2008, p.
389B391.
112 CARVALHO, Américo A. Taipa de. Sucessão de Leis Penais. 2.ª ed. Coimbra. Coimbra, 1997, p. 263B264.

280
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Se assim não fosse, a norma em questão seria, em certa medida, letra


morta na nova legislação, pois não serviria de todo ao fim a que se destina: uma
prestação jurisdicional mais justa.
De qualquer sorte, ainda que se admitam situações excepcionais à identidade
física do juiz, isso não pode ser feito sob a liberalidade do Magistrado. O máximo
que se contempla é a aplicação analógica do artigo 132 do Código de Processo Civil:

O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo


se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido
ou aposentado, caso em que passará os autos ao seu sucessor.

Não é redundante frisar que não se adota, por esse meio, a concepção
unitária do processo. O que se propõe é a identificação de regiões cinzentas que
tangenciam os limites entre o Processo Civil e o Processo Penal.
Nesse particular, Barbosa Moreira chamou a atenção para um fenômeno
que chamou de publicização do Processo Civil, ao identificar em algumas relações
materiais que o subjazem a indisponibilidade de direitos. Mas não é só, pois
continua o autor:

(...) ainda onde prevaleça a disponibilidade, uma coisa é reconhecê/la à


relação jurídica litigiosa, outra, bem diversa, é estendê/la à atividade do
mecanismo estatal a que porventura recorram os interessados para pedir/
lhe que resolva o litígio.113

Assim, nada impede que, especialmente quando se trata de matéria de ordem


pública, como a presente, se apliquem institutos processuais civis ao Processo
Penal, malgrado se deva, para tanto, cuidar para que direitos fundamentais não
sejam atingidos com tal técnica.
É assim que se conclui pela impossibilidade de substituição do juiz titular
pelo seu auxiliar sob o argumento de que ele deve assumir suas funções em
Tribunal Eleitoral.
Isso porque, apesar de o artigo 132 do Código de Processo Civil mencionar
a convocação como uma das exceções à identidade física do juiz, ela só pode
ser assim considerada quando enseja efetivo afastamento do Magistrado de

113 Processo Civil e Processo Penal: mão e contramão? In: Doutrina n.º 7. Coord. James Tubenschlak. Instituto
de Direito, Rio de Janeiro, 1999, p. 63.

281
E! "#$%# &' ()$*+&*-.# / 2ª P'$"0

suas funções originais, tais como convocação para auxílio à Presidência ou para
substituição de Desembargador em período de férias.
É esse o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSO CIVIL. IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. NULIDADE


DA SENTENÇA RECONHECIDA PELO TRIBUNAL A QUO. O
juiz que concluir a audiência só não julgará a lide se estiver convocado,
licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado
(CPC, art. 132, caput); não se exonera dessa obrigação o juiz que
permanece atuando na vara onde ultimou a instrução. Recurso especial
conhecido e não provido.114

Não é o caso. Ao contrário, o Regimento Interno do Tribunal Regional


Eleitoral do Rio de Janeiro prevê expressamente em seu artigo 114 a exigência
de que o Juiz de Direito esteja em efetivo exercício no Juízo de sua Jurisdição
para que seja membro efetivo daquele Tribunal, dispondo, inclusive, que na sua
falta ele será substituído:

Cabe a jurisdição de cada uma das zonas eleitorais a um juiz de


direito em efetivo exercício e, na sua falta, ao seu substituto legal que
goze das prerrogativas do art. 95 e § 1º do art. 121 da Constituição
da República.

É evidente, portanto, que a substituição do Magistrado que iniciou a


Audiência de Instrução de Julgamento não poderia ter sido realizada sob o
fundamento utilizado neste caso.
A nulidade que daí resulta é absoluta e, portanto, enseja o relaxamento da
prisão da paciente e dos corréus. Assim é porque um dos caracteres das medidas
cautelares – dentre elas as prisões provisórias – é a acessoriedade, que consiste
não só na sua vinculação a um processo penal em andamento, mas sobretudo a
um processo válido.
Essa é a razão de ser do artigo 648, inciso VI, do Código de Processo Penal,
que levou Eugênio Pacelli a afirmar que qualquer nulidade absoluta, desde que
impeça o regular prosseguimento do processo, como neste caso, terá repercussão
na prisão cautelar.115

114 Resp. 493838/CE. Terceira Turma. Rel. Min. Ari Pargendler. Julgamento: 04/12/2003.
115 Curso de Processo Penal. 8.ª Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007, p. 741.

282
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Pelo exposto, voto no sentido de conceder a ordem, para declarar a nulidade


da audiência realizada no dia 03 de abril de 2009, por violação ao disposto no
artigo 399, § 2.º, do Código de Processo Penal, e relaxar a prisão da paciente,
estendendoBa aos corréus.

Rio de Janeiro, 22 de abril de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

283
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O devido processo legal e a mutatio libelli

5ª CÂMARA CRIMINAL
Apelação Criminal nº. 2009.050.02701
Apelante: XXXX
Apelado: MINISTÉRIO PÚBLICO
Juízo de Origem: 41ª Vara Criminal da Comarca da Capital
Artigo 35 da Lei 11.343/06

EMENTA: DIREITO PENAL. CONDENAÇÃO POR CONTRI-


BUIÇÃO AO TRÁFICO DE DROGAS. CORRELAÇÃO ENTRE
DENÚNCIA E SENTENÇA. FUNÇÃO DE OLHEIRO QUE NÃO
CONFIGURA O CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO
DE DROGAS, ASSIM COMO O CRIME DE CONTRIBUIÇÃO
PARA O TRÁFICO. NOVA LEI DE DROGAS QUE NÃO TIPIFICA
ESTA CONDUTA. ATIPICIDADE. Apelante condenado pela
prática da conduta definida no artigo 35 da Lei 11.343/06 porque
exercia a função de “olheiro” ou “fogueteiro” e, assim, auxiliava
suposta organização criminosa a praticar o tráfico de drogas. Lei nº.
11.343/06 que apenas tipificou a conduta de contribuição ao tráfico
de drogas na modalidade informante, o que não abrange a referida
função exercida pelo apelante. Além disso, a colaboração para o
tráfico, caso fosse comprovada, constituiria o tipo do artigo 37 da
Lei 11.343/06. Impossibilidade de mutatio libelli em segundo grau de
jurisdição, sob pena de violação à correlação entre a imputação e a
sentença. Reconhecimento da atipicidade da conduta. Absolvição
que se impõe.
PROVIMENTO DO APELO.

ACÓRDÃO

VISTOS, relatados e discutidos estes autos da APELAÇÃO CRIMINAL nº.


2009.050.02701 em que é Apelante XXXX e Apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.

284
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ACORDAM os Desembargadores que compõem a Quinta Câmara


Criminal, por unanimidade de votos, em sessão de julgamento realizada no dia
13 de agosto de 2009, em dar provimento ao apelo para reconhecer a atipicidade
da conduta praticada pelo apelante e absolvêBlo com base no artigo 386, inciso
III, do Código de Processo Penal. ExpeçaBse o alvará de soltura.
Presidiu a sessão o Desembargador Nildson Araújo da Cruz. Participaram
do julgamento os Desembargadores Cairo Ítalo França David como revisor e
Rosa Helena Penna Guita como vogal.

Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


Relator

VOTO
O recurso merece provimento

A denúncia imputa ao acusado o exercício da função de “olheiro” ou


“fogueteiro” de organização criminosa cujo objeto é a prática de tráfico de
drogas. A conduta supostamente praticada pelo apelante foi tipificada no artigo
35 da Lei de Drogas e nestes termos ele foi condenado.
As provas periciais produzidas durante a instrução criminal comprovam
que o acusado estava na posse de um rádio transmissor “sem carga, usado,
danificado, em mau estado” no momento da prisão em flagrante, conforme o
laudo pericial acostado à fl. 63.
Além disso, o acusado portava também dois artefatos explosivos,
tecnicamente denominados “Fogos de Artifícios Pirotécnicos como Espoleta de
Ignição” (laudo de fl. 65/6).
Foram colhidas provas orais consistentes nos depoimentos dos policiais
militares YYYY, WWW, ZZZZ e EEEE (fls. 81/8).
Há que se ressaltar, entretanto, que com relação ao crime de contribuição
para o tráfico de drogas, a Nova Lei de Drogas não tipificou a conduta praticada
pelo apelante, restringindo a contribuição para o tráfico apenas aos casos de
“informante”, conforme descreve seu artigo 37.
É de se destacar que a ausência de incriminação autônoma à contribuição
acessória ao tráfico de drogas – opção da Lei nº. 6.368/76 – não pode conduzir
ao ajuste em face da tipificação do delito de tráfico, pela Lei Nova, ainda que em
quaisquer das conhecidas modalidades de participação.

285
E! "#$%# &' ()$*+&*-.# / 2ª P'$"0

Isso é assim porque a lei anterior, expressamente revogada, seguiu a trilha


da incriminação isolada das formas de contribuição e, ao prever esta forma
(ambígua) de enquadramento dos comportamentos acessórios, fundamentou as
acusações e correspondentes sentenças ao tipo penal específico.
Na atualidade são indiscutíveis os vínculos que ligam o Direito Penal ao
Processo Penal. Na hipótese de acusação por cooperação para o tráfico de drogas
o processo – com prática de atos em contraditório e com escrupulosa observância
da ampla defesa – erigiuBse sobre as bases de tipo de injusto que à luz da Nova
Lei desapareceu em sua forma autônoma.
Assim, não é possível alterar substancialmente os fatos que fundamentavam
o antigo tipo de justo (para empregar a expressão consagrada no Direito
Processual Penal português) para adequáBlos, por meio de nova descrição,
àqueles que à luz da Nova Lei ganham reprovação acessória.
Ainda, destaco o fato de que a conduta supostamente praticada pelo ora
apelante foi capitulada no artigo 35 da Lei 11.343/06, quando, na verdade,
a contribuição para o tráfico de drogas está definida no artigo 37 do referido
diploma legal.
Vale dizer que os referidos dispositivos legais tratam de condutas distintas
entre si e, dessa forma, seria necessária a aplicação de mutatio libelli, cuja aplicação,
consagrada no artigo 617 do Código de Processo Penal, é expressamente proibida
em segundo grau de jurisdição.
O fato narrado na inicial assim considerado não configura o crime de
associação. Os aspectos centrais do relato, confirmados pela prova testemunhal
e pelos laudos, quando muito poderiam caracterizar o crime do artigo 37, desde
que se tratasse de exercício da função de informante, que, segundo Luiz Flávio
Gomes116, é a transmissão de conhecimento obtido por meio de investigação ao
grupo criminoso.
Isto, por certo, não se verifica no presente caso, eis que não se sabe sequer de
que organização criminosa se trata, menos ainda quem seriam seus integrantes,
assim como não há prova da habitualidade.
Por se tratar de fatos inteiramente distintos é que deve ser observado
que é constitucionalmente garantido a todo acusado o direito à ampla defesa
e ao devido processo legal, com a oportunidade de se defender da imputação
formulada originariamente – em primeiro grau – em seu desfavor.

116 Luiz Flávio Gomes. Lei de Drogas comentada artigo por artigo: lei 11.343/06, de 23.08.2006. 2ª edição
revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2007. p. 211.

286
E! "#$%# &' ()$*+&*-.# / 2ª P'$"0

E é aí que os vínculos entre o Direito material e o processual penal se


estreitam! A manifesta proibição no campo do processo se projeta no âmbito
do tipo penal para, pelas mesmas razões de garantia, acentuar que a proibição
de comportamento que cada incriminação veiculada há de ser conhecida
previamente pelo agente, de sorte a permitir que este se oriente no sentido de
não realizar a ação proibida.
Como a significativa mudança de paradigmas de tipo de injusto afeta
a função de garantia do tipo, a única solução ajustada à Constituição da
República importa no reconhecimento de que se opera aqui abolitio criminis
e, em conseqüência, relativamente ao crime que fundamenta esta pretensão a
hipótese é de absolvição. Isso por mais moralmente reprováveis que sejam os
fatos anteriores à Nova Lei.
Diante disso, deve ser reconhecida a atipicidade com relação à conduta
praticada pelo apelante no que se refere à contribuição para o tráfico, eis que
praticado já sob a égide da Nova Lei.
Nesse sentido entende a melhor e majoritária jurisprudência do nosso
Tribunal, senão vejamos:

“APELAÇÃO. Crimes de contribuição para o tráfico ilícito de


entorpecente e posse ilegal de acessório e munição para fuzil.
Sentença condenatória. Recurso defensivo pugnando pela
absolvição. Precariedade do conjunto probatório para embasar
censura penal pelo crime da Lei de Armas. Insuficiência dos
depoimentos dos policiais para a comprovação da materialidade
delitiva. Ausência de auto de apreensão e de laudo de exame dos
acessórios e munições. Absolvição que se impõe com base no art.
386, inciso VI, do CPP. Conjunto probatório firme e suficiente
para embasar condenação pelo crime do art. 12, § 2º, III, da Lei nº
6.368/76. Superveniência de lei penal retirando do ordenamento
jurídico a tipicidade da conduta. Abolitio criminis. Extinção da
punibilidade com base no art. 107, inciso III, do Código Penal.
Provimento do recurso”. (grifos nossos)
(TJRJ, AP 2006.050.03896, Rel. Des. MARCO AURÉLIO BELLIZZE,
j. 14/11/2006, Terceira Câmara Criminal).
“Apelação B contribuição para a difusão do tráfico ilícito de
entorpecentes B artigo 12, § 2º, III, da lei 6368/76 B réu acusado
de exercer as funções de segurança e olheiro do tráfico conjunto
probatório duvidoso B elementos que trocaram tiros com os policiais

287
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fugiram B réu preso no interior de um condomínio, sem estar na


posse de entorpecentes ou arma, e que admitiu a compra e uso de
entorpecente, e ser usuário B prova insuficiente para dar suporte à
condenação B lei 11.343/06 que revogou a lei 6368/76, que entrou
em vigor em 09/10/06, que não descreve como a conduta do art. 12,
§ 2º, III, da lei 6368/76, como crime incidência da abolitio criminis
- art. 2º, do Código Penal - ninguém pode ser punido por fato que
lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela
a execução e efeitos da sentença condenatória B reconhecimento de
ofício da abolitio criminis e declaração de extinção da punibilidade
do apelante, com fundamento no art. 107, III, do CP, expedindoBse o
alvará de soltura.”. (grifos nossos).
(TJRJ, AP 2006.050.04381, Rel. Des. ROBERTO ROCHA FERREIRA,
j. 19/12/2006, Quinta Câmara Criminal).
Diante disso, o acusado deve ser absolvido.

Portanto, dou provimento ao recurso para reformar a sentença e absolver


o apelante com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal,
expedindoBse o respectivo alvará de soltura.

Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2009.


DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
RELATOR

288
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Suspensão condicional do processo


e crime tentado

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL 2007.050.04880
JUIZO DE ORIGEM: 2ª VARA CRIMINAL REGIONAL DE SANTA CRUZ
APELANTE: XXXX
APELADO (1): YYYY
APELADO (2): ZZZZ
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigo 155, § 4º, IV, na forma do artigo 14, II, ambos do Código Penal.

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. DIREITO PROCESSUAL


PENAL. FURTO QUALIFICADO TENTADO. HOMOLOGAÇÃO
DA PROPOSTA DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO
PROCESSO. REFORMA PRETENDIDA PELO ASSISTENTE DE
ACUSAÇÃO. EXISTÊNCIA DE MANIFESTA SITUAÇÃO DE
INCERTEZA JURÍDICA SOBRE O MEIO DE IMPUGNAÇÃO
CABÍVEL. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. INTERESSE
RECURSAL EVIDENCIADO. NECESSIDADE DA DECISÃO
JUDICIAL PARA ALCANÇAR O PROVIMENTO DE DIREITO
MATERIAL PERSEGUIDO. PRELIMINARES REJEITADAS.
CONHECIMENTO DA APELAÇÃO. CRIME COM PENA
MÍNIMA EM ABSTRATO INFERIOR A UM ANO. CRITÉRIO
PARA ADMISSIBILIDADE DO SURSIS PROCESSUAL
ESTABELECIDO NA LEI. PERCENTUAL DE REDUÇÃO PELA
TENTATIVA QUE DEVE SER CALCULADO EM SEU GRAU
MÁXIMO. “SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO
QUE DEVE ORIENTAR-SE POR CRITÉRIO DE DEFINIÇÃO
DAS INFRAÇÕES PENAIS EXTRAÍDO DO DIREITO PENAL”117.
DEFINIÇÃO JURÍDICA DA INFRAÇÃO PENAL, EM CRIME

117 Geraldo Prado, Lei dos Juizados Especiais Criminais – Comentada e Anotada, Ed. Lumen Juris, Rio
de Janeiro, 2006, p. 194.

289
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DE AÇÃO PENAL PÚBLICA, QUE É TAREFA DO MINISTÉRIO


PÚBLICO. Apelados denunciados no juízo da 2ª Vara Regional
de Santa Cruz, pela prática do crime de furto qualificado
tentado. Apelação interposta pelo assistente de acusação contra a
homologação da proposta da suspensão condicional do processo.
Rejeição das preliminares suscitadas pelo Ministério Público, de
não cabimento do recurso e ausência de interesse. Orientação dos
tribunais superiores no sentido de que deve ser aplicado o princípio
da fungibilidade quando houver manifesta situação de
incerteza jurídica do meio de impugnação cabível. Aplicação
que decorre do princípio da instrumentalidade das formas
que rechaça a rejeição de um recurso em razão de questões
meramente formais. Lei dos Juizados Especiais que não traz
previsão do recurso cabível em face da decisão que suspende
o processo (artigo 89). Interesse recursal do assistente de
acusação evidenciado pela necessidade do recurso para
atingir o objetivo perseguido, consistente no reexame da
questão posta à apreciação do tribunal. Preliminares repelidas
e conhecimento do recurso. Recorrente que no mérito alega
que os acusados não preenchem o requisito objetivo da pena
mínima cominada para oferecimento do sursis processual, uma
vez que a diminuição de dois terços decorrente da tentativa
não poderia ser aplicada. Argumento também de que o objeto
do crime é de grande valor econômico. Tese recursal que
antecipa juízo acerca de eventual fixação da pena cominada
para o tipo de injusto. Proposição que atua fora dos limites das
atribuições previstas para essa fase do processo, formulando
indevida invasão na análise da dosimetria da pena, somente
admitida no curso do processo. Neste momento cuidaB
se apenas de ponderar acerca do cabimento da suspensão
condicional do processo. Suspensão que tem por base, no
que toca à pena, critérios legislativos abstratos, não judiciais
(concretos). Hipótese de crime tentado em que o magistrado
deve considerar a menor pena cominada em abstrato para o
delito, reduzida pela maior fração prevista no artigo 14, II, do
Código Penal. Acerto da decisão que homologou a proposta de
suspensão condicional do processo.
CONHECIMENTO E NÃO PROVIMENTO DO RECURSO.

290
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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Criminal nº


2007.050.04880 em que é apelante XXXX e apelados YYYY e ZZZZ.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que integram a
Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
em sessão de julgamento realizada no dia 24 de agosto de 2009, em rejeitar as
preliminares para conhecer o recurso e NEGAR PROVIMENTO para manter a
decisão, nos termos do voto do Relator.
Presidiu a sessão o Desembargador Nildson Araújo da Cruz. Participaram
do julgamento a Desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita como
revisora e a Desembargadora Maria Helena Salcedo como vogal.

Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2009

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

VOTO

De início cumpre salientar que as preliminares de não conhecimento do


recurso suscitadas pelo Ministério Público em primeiro grau (fls. 261/3) devem
ser rejeitadas.
Conheço o recurso interposto pelo assistente de acusação em apreço
ao princípio da fungibilidade e em virtude da incerteza quanto ao recurso
adequado, revelada por controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais.
Com efeito, a aplicação da fungibilidade entre recursos decorre do princípio
da instrumentalidade das formas, que, preceitua uma concepção instrumental
do processo e rechaça a rejeição de recurso em razão de questões meramente
formais, a fim de que se possa atingir o objetivo perseguido, consistente no
reexame da questão posta à apreciação do tribunal.
Assim leciona Eugênio Pacelli de Oliveira118:

(...) processo é meio, e não o fim do direito. Eventuais dificuldades na


identificação do recurso cabível não devem conduzir à sua rejeição, sem o
exame cuidadoso do caso concreto.

118 Curso de Processo Penal, 8.ª edição, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007, p. 676.

291
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Além disso, inúmeros acórdãos nos Tribunais Superiores mostram a


existência de manifesta situação de incerteza jurídica sobre o meio de impugnação
cabível contra a decisão que suspende o processo119.
Com relação à alegação de falta de interesse, destaco que há interesse
recursal sempre que a parte necessitar do recurso para remover a decisão judicial
que a impede de alcançar o provimento de direito material perseguido.
Como salientam Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes
Filho e Antônio Scarance Fernandes, “o interesse/necessidade implica a exigência
de se lançar mão do recurso, para atingimento do resultado prático que o recorrente tem
em vista”. Acrescentam que “o recurso interposto deve ser adequado a assegurar a
utilidade visada pelo recorrente” 120.
Diante dessas circunstâncias, forçoso reconhecer que a vantagem prática
pretendida pelo apelante, a reforma da sentença da suspensão condicional
do processo, somente poderia ser esperada com o julgamento da apelação
interposta.
Dessa forma, rejeito as preliminares aduzidas pelo Ministério Público a fim
de conhecer o recurso do assistente de acusação.
No mérito, o recurso não merece ser provido.
Em síntese, o recorrente pretende a reforma da decisão que suspendeu o
processo (artigo 89 da Lei dos Juizados Especiais). Argumenta que os acusados
não preenchem o requisito objetivo da pena mínima cominada para oferecimento
do sursis processual, uma vez que a diminuição decorrente da tentativa (1/3 ou
2/3) não poderia ser aplicada. Alega também o objeto do crime é de grande valor
econômico.
Ocorre que incumbe ao Ministério Público oferecer a proposta de suspensão
condicional do processo considerados somente os requisitos de admissibilidade
elencados no artigo 89 da Lei dos Juizados Especiais.
Para se avaliar o âmbito de admissibilidade do sursis processual deveBse
ter em conta a pena mínima cominada em abstrato para o crime, observadas as
causas de aumento e diminuição da pena, conforme descritas na denúncia.
O critério objetivo para aferição do cabimento da suspensão condicional do
processo, na hipótese de crime tentado, não é diferente daquele que se aplica aos
casos de crime consumado.
Assim é que a lei estabelece um parâmetro, a pena mínima cominada, e não
a pena mínima provável à luz do caso concreto.

119 Entre outros cabe citar: RHC 16028/SP, HC 90584/RS, HC 103053/SP, HC 76439/SP.
120 Recursos no Processo Penal, Ed. RT, 3ª ed., São Paulo, 2001, p. 83.

292
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O critério legal para o cálculo da pena mínima cominada para o crime,


adequado às exigências do art. 89 da Lei nº 9.099/95, não deixa dúvida quanto a
ser esta de dois anos no caso do furto qualificado, com a redução máxima pela
tentativa, a teor do § 4º do artigo 155 c.c. o parágrafo único do inciso II do artigo
14, ambos do Código Penal.
O recorrente ao afirmar que a “redução aplicável à espécie se afastaria do máximo
previsto para a tentativa, não chegando, assim, a pena ao patamar objetivo do art. 89 da
Lei 9.099/95” (fl. 230) antecipa juízo acerca de eventual fixação da pena cominada
para o tipo legal.
Ao estabelecer tal premissa, o recorrente atua fora dos limites das
atribuições previstas para essa fase do processo, formulando indevida invasão
na análise da dosimetria da pena, somente admitida no curso do processo penal.
Neste momento cuidaBse apenas de ponderar acerca do cabimento da suspensão
condicional do processo.
O que conta é a individualização da pena feita pelo legislador, não a
posterior individualização que será feita pelo juiz. A suspensão tem por base, no
que toca à pena, critérios legislativos abstratos, não judiciais (concretos).
Por isso que em se tratando de crime tentado o magistrado considerará a
menor pena cominada em abstrato para o delito, reduzida pela fração prevista
no artigo 14, II, do Código Penal.
Defendo este posicionamento na obra “Lei dos Juizados Especiais Criminais
– Comentada e Anotada”, pois entendo que “a suspensão condicional do
processo deve orientarBse por critério de definição das infrações penais extraídos
do direito penal” 121.
Além disso, afirmo que “quando o crime atribuído ao réu na denúncia
for tentado, o Ministério Público haverá de considerar, para os efeitos deste
dispositivo legal (artigo 89), a maior redução possível, de modo a alcançar real
pena mínima em abstrato” 122.
Finalmente há de se levar em conta que a definição jurídica da infração
penal, em crime de ação pública, é tarefa cometida ao Ministério Público. Desse
modo, eventual discordância do magistrado não tem e poderia ter o efeito
perseguido pelo assistente, que objetiva seja negada aos apelados a suspensão
condicional do processo.
Com efeito, admitindoBse hipoteticamente – e apenas hipoteticamente – que
se trata de crime consumado, a imputação de crime tentado contida na denúncia

121 Lei dos Juizados Especiais Criminais – Comentada e Anotada, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006,
p. 194.
122 Obra citada, p. 194.

293
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deveria ser rejeitada pelo magistrado, por meio de sentença que extingue o processo.
É assim por conta do princípio da correlação entre a imputação e a sentença (artigo
384 e 395 do Código de Processo Penal) porque não cabe ao juiz acusar.
Claro que na situação hipotética acima mencionada os acusados seriam
beneficiados pelo fluir da prescrição, porquanto a suspensão condicional do
processo expressamente suspende a prescrição durante o tempo da paralisação
da atividade processual.
O caso, porém, é de tentativa conforme reconhece o próprio apelante (fl.
226). Agiu, pois, acertadamente o magistrado e é oportuno, por último, ressaltar
que as decisões apontadas nas razões não são aplicáveis a este julgamento.
Posto isso, voto no sentido de rejeitar as preliminares para conhecer o
recurso e negar provimento para manter a decisão.

Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

294
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Da resposta preliminar e do direito à


entrevista prévia do preso

5ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS 2009.059.05484
AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DA 3ª VARA CRIMINAL DE CAMPOS
DOS GOYTACAZES
IMPETRANTE: DEFENSORIA PÚBLICA
PACIENTE: XXXX

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE


DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA. PROCEDIMENTO DA LEI
DE DROGAS. ARTIGO 55 DA LEI 11.343/06. CONTRADITÓRIO
PRÉVIO COMO REFLEXO DA EVOLUÇÃO DA CONCEPÇÃO
DO PROCESSO PENAL E DO RECONHECIMENTO DAS
GARANTIAS INDIVIDUAIS. PRINCÍPIOS CONSTITUCIO-
NAIS DO CONTRADITÓRIO, AMPLA DEFESA E DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA QUE SE VISA TUTELAR. REQUISIÇÃO
DO PRESO PARA ENTREVISTAR-SE COM O DEFENSOR
PÚBLICO E ELABORAR A DEFESA PRÉVIA. NOTÓRIA DE-
FICIÊNCIA DA ESTRUTURA DA DEFENSORIA PÚBLICA E
DOS INSTRUMENTOS COLOCADOS A SUA DISPOSIÇÃO
QUE JUSTIFICAM O ATENDIMENTO DO PLEITO DEFEN-
SIVO. INCONSTITUCIONALIDADE PROGRESSIVA. NOR-
MA “AINDA CONSTITUCIONAL”. PRECEDENTES DO E.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. EXCESSO DE PRAZO NA
PRISÃO. ARTIGO 56, §2º, DA LEI 11.343/06. VIOLAÇÃO.
AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO PARA A MANUTENÇÃO
DA CUSTÓDIA CAUTELAR. ARTIGO 44 DA LEI 11.343/06.
INCONSTITUCIONALIDADE DA VEDAÇÃO AUTOMÁTICA
RECONHECIDA PELO E. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
DESRESPEITO AOS POSTULADOS DA PRESUNÇÃO
DE INOCÊNCIA, DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E
DA RAZOABILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL

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CONFIGURADO. Paciente preso preventivamente no dia 01º de


junho de 2009, acusado da prática do crime de tráfico de drogas e
associação para o tráfico de drogas. Defesa que postulou a requisição
do acusado para entrevistarBse com o Defensor Público após a
notificação do acusado, o que foi indeferido pela digna autoridade
judiciária porque “não cabe ao Poder Judiciário determinar a requisição e
apresentação de presos nas instalações da Defensoria Pública, eis que sequer
há cabimento legal para tal medida”. Contraditório preliminar que foi
instituído para os crimes de tráfico na Lei 10.409/2002 e mantido pela
nova Lei de Drogas. Imposição deste contraditório preliminar que
surge num contexto em que se busca conferir efetividade às normas
constitucionais, com a preservação da garantia da presunção de
inocência, da ampla defesa e do contraditório e, acima de tudo, do
postulado da dignidade da pessoa humana. Defesa prévia que tem
por escopo dar à parte a oportunidade de evitar a instauração de
processo criminal, cujos reflexos deletérios sobre a vida do acusado
são inevitáveis e, por isso, tornaBse imprescindível o direito de
se entrevistar com o Defensor. É neste momento que o réu e seu
Defensor poderão eleger a tese defensiva, selecionar documentos
e enumerar as provas que serão produzidas na instrução criminal.
Dever do advogado de entrevistarBse com o seu cliente, cuja lógica,
hoje, não pode ser imposta a todos aqueles que têm sua defesa
patrocinada pela Defensoria Pública – e por isso deve o preso, à vista
do caso concreto, ser requisitado para entrevistarBse com o Defensor.
Precariedade da estrutura fornecida pelo Estado à Defensoria Pública
que justifica a concessão de tratamento diverso como única forma de
se oportunizar o acesso aos meios para o exercício da ampla defesa.
Deficiência do aparelho estatal que se mostra ainda mais grave
nas comarcas do interior, onde é posto à disposição da população
número insuficiente de profissionais para o atendimento das
pessoas de baixa renda. Reconhecimento da inconstitucionalidade
progressiva da lei enquanto o órgão constitucionalmente incumbido
de prestar assistência judiciária gratuita não estiver devidamente
instalado ou estruturado123. Precedentes do e. Supremo Tribunal
Federal. Alternativa encontrada pela e. Suprema Corte no sentido
de preservar a norma tendo em vista o contexto social evidenciado,

123 Artigo 5º, §5º, da Lei 1.060, de 05 de fevereiro de 1950.

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“ficando claro, todavia, que, no futuro, a alteração do status


quo poderia ensejar decisão em sentido oposto”124. Excesso de
prazo na prisão em razão do tempo gasto com o debate sobre
a apresentação do preso e designação da audiência para além
do prazo legal (artigo 56, §2º, da Lei 11.343/06) sem qualquer
justificativa. Decisão que indeferiu a revogação da prisão
preventiva que não aponta qualquer elemento concreto que
determine a manutenção da custódia cautelar. “Impossibilidade”
de se conceder a liberdade provisória ao paciente que responde
por crime equiparado a hediondo não configura fundamentação
idônea à luz da Constituição da República. Incompatibilidade da
proibição automática da liberdade provisória prevista no artigo
44 da Lei 11.343/06 com a Constituição da República e violação
do princípio da presunção de inocência. “Fundamentação”
que se mostra desarrazoada em razão da inconstitucionalidade
reconhecida pelo e. Supremo Tribunal Federal ao analisar tema
idêntico (artigo 21 da Lei 10.826/06), visto que o texto magno
não autoriza a prisão ex lege. Providência cautelar que exige
fundamentação adequada aos fatos do processo (artigo 93, inciso
IX, da Constituição da República). Fundamentação padrão das
decisões que corresponde à ausência de fundamentação: o que
serve para justificar todas as situações não justifica qualquer
delas. Constrangimento ilegal configurado.
CONCESSÃO DA ORDEM.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº. 2009.059.05484


em que é impetrante a DEFENSORIA PÚBLICA e paciente XXXX.
ACORDAM, por unanimidade de votos, os Desembargadores que compõem
a Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
em sessão de julgamento iniciada em 20 de agosto de 2009 e concluída em 24 de
agosto de 2009, em julgar procedente o pedido e CONCEDER A ORDEM para
relaxar a prisão do paciente por falta de fundamentação da decisão que manteve

124 Informativo de Jurisprudência 272. Transcrição: “A questão da ‘lei ainda constitucional’”. RE 341.717.
Rel. Ministro Celso de Mello.

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a custódia cautelar e por excesso de prazo da prisão, expedindoBse alvará de


soltura.
Presidiu a sessão a Desembargadora Maria Helena Salcedo que participou
do julgamento, juntamente com a Desembargadora Rosa Helena Penna Macedo
Guita.
Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

RELATÓRIO

XXXX foi preso preventivamente no dia 1º de junho de 2009, denunciado


como incurso nas sanções dos artigos 33 e 35 da Lei 11.343/06.
Alega o impetrante que o paciente estaria sofrendo constrangimento
ilegal consubstanciado na violação ao direito da parte de se entrevistar com
seu defensor, conforme preceitua o §5º do artigo 55 da Lei 10.343/06 e por isso
pretende a concessão da ordem para que seja declarada a nulidade do processo,
com devolução do prazo para a apresentação da defesa preliminar e relaxada a
prisão do paciente.
Subsidiariamente, pretende a revogação da prisão preventiva por ausência
dos requisitos para a sua manutenção e, ainda, seja afastado o óbice imposto
pelo artigo 44 da Lei 11343/06, pois o paciente não foi preso em flagrante delito.
Além disso, sustenta a ilegalidade de prisão ante o advento da Lei 11.464/07, que
teria revogado o mencionado artigo 44 da Lei 11.343/06, que veda a concessão da
liberdade provisória.
Com efeito, narra a denúncia que policiais militares, em procedimento de
averiguação de notícia sobre eventual participação do paciente XXXX na prática
do crime de tráfico de drogas, dirigiramBse à residência do casal e lá ingressaram
após a autorização de YYYY, companheira do paciente.
Na referida residência, situada na Rua 5, nº. ZZZ, bairro Eldorado,
em Campos dos Goytacazes, os policiais militares apreenderam 8,8 gramas
de cocaína, acondicionados em 27 embalagens e 12,2 gramas de maconha,
acondicionados em 29 embalagens.
Os mencionados policiais teriam encontrado R$ 33,00 em notas miúdas o
que, segundo a denúncia, refletiria a possível prática do comércio de drogas.

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Além disso, em data ainda indeterminada, mas antes de 17 de janeiro de


2009, o paciente e a sua companheira YYYY teriam se associado para a prática
do crime de tráfico de drogas.
A corré YYYY foi absolvida em 28 de maio de 2009, com fulcro no artigo
386, inciso V, do Código de Processo Penal e o processo originário desmembrado
em relação a XXXX (fls. 31/2).
Com a petição inicial deste habeas corpus foram anexadas cópia da denúncia
(fls. 16/8), decisão que decretou a prisão preventiva do corréu XXXX (fls. 43/4),
sentença absolutória em relação à corré YYYY (fls. 30/2), decisão que determinou
a notificação do paciente (fls. 33), comunicado da prisão preventiva do paciente
(fls. 34), certidão atestando a ausência de antecedentes criminais do paciente
(fls. 41), certidão da vara da infância e da juventude atestando a ausência de
atos infracionais (fls. 29), folha de antecedentes criminais (fls. 49/52) decisão de
recebimento da denúncia (fls. 49), cópia da identidade e CPF da paciente (fls.
59), comprovante de residência (fls. 60/1), decisão que indeferiu o requerimento
de liberdade provisória (fls. 53/5), decisão que indeferiu o requerimento da
Defesa no sentido de que o paciente fosse requisitado para entrevistarBse com o
Defensor Público (fls. 61/2), dentre outros.
Solicitadas as informações, a digna autoridade apontada como coatora
informou que não há norma que imponha a requisição de presos para
entrevistarBse com seu Defensor, cabendo à Defensoria Pública promover o
deslocamento do Defensor Público, nos termos do artigo 2º da Resolução
DGPE 494 de 26 de maio de 2009. Aduziu, ainda, que o réu responde a crime
de extrema gravidade e que o artigo 44 da Lei 11.343/06 veda a concessão de
liberdade provisória (fls. 72/4).
O Ministério Público apresentou parecer da lavra da Procuradora de Justiça
Vanda Menezes Rocha, que opinou no sentido da concessão da ordem para
que seja determinada a requisição do paciente para apresentáBlo à Defensoria
Pública e, subsidiariamente, tendo em vista a impossibilidade de se determinar
que o órgão da Assistência Judiciária compareça a prisão, opinou pela concessão
da ordem para que seja concedida a liberdade ao paciente para que ele, por sua
iniciativa própria, apresenteBse ao Defensor Público.
Vale destacar que em consulta realizada no site deste e. Tribunal de
Justiça, há notícias de que a denúncia foi recebida em 27 de julho de 2009,
tendo sido designada audiência de instrução e julgamento para o dia 23 de
setembro de 2009.
É o relatório.

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VOTO

Conforme relatado, o paciente foi preso preventivamente no dia 01º de


junho de 2009, acusado da prática do crime de tráfico de drogas e associação
para o tráfico de drogas.
A corré YYYY foi absolvida em 28 de maio de 2009, com fulcro no artigo
386, inciso V, do Código de Processo Penal e o processo originário desmembrado
em relação a XXXX (fls. 31/2).
A Defesa pretende a concessão da ordem e aponta como causa de pedir: a)
a nulidade do processo por ausência de requisição do preso para se entrevistar
com seu Defensor; b) ausência de fundamento para a decretação da custódia
cautelar; c) inconstitucionalidade da vedação automática à liberdade provisória.

A hipótese é de concessão da ordem.

Com efeito, a Defesa postulou a requisição do acusado para entrevistarBse


com o Defensor Público após a notificação do acusado.
A digna autoridade judiciária, entretanto ressaltou expressamente que não
requisitaria o paciente para apresentáBlo à Defensoria Pública e o fez ao seguinte
argumento (fls. 61/2):

“não cabe ao Poder Judiciário determinar a requisição e apresentação


de presos nas instalações da Defensoria Pública, eis que sequer
há cabimento legal para tal medida. Aliás, em recente encontro
realizado com os magistrados criminais da Capital do Estado ficou
assentado e decidido que os magistrados não deveriam fazer tal
requisição e apresentação de presos à Defensoria Pública, por falta
de amparo legal e também porque não cabe ao Juízo movimentar
a máquina policial determinando deslocamento de escolta par
atender a interesses pessoais (...) Ademais, cabe ao Defensor Público
fazer o atendimento regular e contínuo ao detento junto a Casa de
Custódia, nos termos do disposto no art. 2º da Resolução DPGE nº.
494/2009, em vigor desde 22/05/2009”.

A hipótese é intrigante, pois a decisão adota como razão de decidir


fundamentos que violam o direito da parte entrevistar-se com seu Defensor.
Vale destacar, por oportuno, que na vigência da Lei 6.368/76 adotavaBse o
procedimento ordinário para processar e julgar os crimes nela previstos e em

300
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2002, com o advento da revogada Lei 10.409, instituiuBse para os crimes de tráfico
a fase de defesa prévia do denunciado, o que se denominou de contraditório
preliminar.
O acusado, então, passou a ser notificado para apresentar a referida
defesa, no prazo de dez dias, em que deveria apresentar todas as alegações
necessárias e úteis para afastar a responsabilidade penal do acusado, evitandoB
se o recebimento da denúncia.
Assim, era o conteúdo desta defesa que iria nortear o magistrado no
momento do juízo de recebimento da denúncia.
A orientação fixada pela Lei 10.409, reflexo da evolução da concepção do
processo penal e do reconhecimento das garantias individuais, foi mantida na
nova Lei de Drogas, notadamente no artigo 55.
Esta norma, de conteúdo processual constitucional, preservou o
contraditório preliminar, ao estabelecer a notificação do acusado para o
oferecimento da defesa prévia, por escrito, no prazo de dez dias.
A imposição deste contraditório preliminar surgiu num contexto em que
se buscava conferir efetividade às normas constitucionais, com a preservação da
garantia da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório e, acima
de tudo, do postulado da dignidade da pessoa humana.
Por meio deste procedimento, deferiuBse aos acusados a oportunidade de
evitar a instauração de processo criminal, cujos reflexos deletérios sobre a vida
do acusado são inevitáveis.
Neste ponto, vale destacar, mais uma vez, a lição de ALEXANDRE
BIZZOTTO e ANDREIA DE BRITO RODRIGUES125 quando da análise do artigo
55 da Lei 11.343/06:

“A defesa preliminar é uma maneira de mitigar a brusquidão


investigativa e permitir que o perseguido penal tenha a oportunidade
de se livrar da instauração de uma relação processual penal incômoda
e quiçá descabida, na qual normalmente é nenhuma (ou irrisória) a
participação plena da defesa, forçandoBse que o juiz aprecie, sob o
olhar contraditório, o que foi produzido inquisitorialmente”.

Com isso, se antes da Lei 10.409/02 já era prevista a apresentação do réu


preso para entrevistarBse com seu Defensor, nos termos do artigo 185 do Código

125 Nova Lei de Drogas. Comentários à Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Lumen Juris. Rio de Janeiro:
2007. p. 148.

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de Processo Penal, com a instituição do contraditório preliminar nos processos


previstos na lei de tráfico de drogas, esta apresentação tornaBse imprescindível.
O conteúdo desta defesa prévia e o fim a que se destina dão os contornos
desta etapa da instrução criminal e sua relevância no contexto da ampla defesa
e do contraditório.
Ao analisar o conteúdo desta defesa, LUIZ FLÁVIO GOMES126 destaca
sua diferença em relação à tradicional defesa “prévia”, aquela que precedia o
interrogatório antes do advento da Lei 11.719/08. Aduz o referido autor que “na
preliminar, a defesa deve invocar tudo que possa interferir na decisão do juiz de
receber ou rejeitar a peça acusatória”.
Postas as coisas desta maneira, deve ser deferido ao paciente o direito de
se entrevistar com o seu Defensor de sorte a lhe fornecer os subsídios necessários
à apresentação da defesa prévia. É neste momento que o réu e seu defensor
poderão eleger a tese defensiva, selecionar documentos e enumerar as provas
que serão produzidas na instrução criminal.
TrataBse do exercício da ampla defesa e do contraditório e isto não pode
ser suprimido da parte sob a alegação de que “não cabe ao Poder Judiciário
determinar a requisição e apresentação de presos nas instalações da Defensoria
Pública” ou de que “magistrados criminais da Capital do Estado” teriam
“assentado e decidido que os magistrados não deveriam fazer tal requisição
e apresentação de presos à Defensoria Pública, por falta de amparo legal e
também porque não cabe ao Juízo movimentar a máquina policial determinando
deslocamento de escolta par atender a interesses pessoais”.
A persecução penal não pode ser legitimamente instaurada sem o
atendimento mínimo de direitos e garantias constitucionais vigentes em nosso
Estado Democrático de Direito.
O desrespeito aos direitos ao contraditório e à ampla defesa, com relação ao
caso específico desse processo, constitui tema com sérias implicações no campo
dos direitos fundamentais, seja com relação ao direito de defesa, seja com relação
à dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º,
inciso III, da Constituição da República).
Em relação à violação da dignidade humana, cumpre registrar os
ensinamentos GÜNTHER DÜRIG127:

126 Lei de Drogas Comentada. Lei 11.343, de 23.08.2006. 2ª Ed. RT. São Paulo. 2007. p. 271
127 MAUNZBDÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C. H. Beck, 1990, 1 18 in STF,
RE 515.427/GO, Rel. Min. Gilmar Ferreira Mendes.

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“O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do


indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito,
em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, afirma Günther
Dürig que a submissão do homem a um processo judicial indefinido
e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o
princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o
princípio da dignidade humana (‘Eine Auslieferung des Menschen
an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt
dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.’).

É verdade que em regra, compete ao advogado entrevistarBse com o seu


cliente e para isso deve dirigirBse ao estabelecimento prisional em que se encontre
o acusado.
Infelizmente esta lógica, hoje, não pode ser imposta àqueles que têm sua
defesa patrocinada pela Defensoria Pública.
O direito de defesa é exercido conforme a disponibilidade dos recursos,
mas em hipótese alguma este direito poderá ser prejudicado se a carência de
recursos é da responsabilidade do Estado.
A precariedade da estrutura fornecida pelo Estado à Defensoria Pública
justifica a concessão de tratamento diverso como única forma de se oportunizar
o acesso aos meios para o exercício da ampla defesa.
As decisões proferidas no âmbito deste e. Tribunal de Justiça, ainda que
contrárias ao entendimento deste relator, não ignoraram os problemas estruturais
da Defensoria Pública, conforme se infere do julgamento do habeas corpus
2009.059.00280, em 11 de fevereiro de 2009, da e. Primeira Câmara Criminal,
da lavra do e. Desembargador Marcus Basílio, e citado pela digna autoridade
apontada como coatora:

EMENTAB TRÁFICO B DEFESAPRELIMINAR OBRIGATORIEDADE


B REQUISIÇÃO DE PRESO PARA SE ENTREVISTAR COM O
DEFENSOR PÚBLICO B LIBERALIDADE DO JUIZ. Não havendo
qualquer dispositivo legal que obrigue o Juiz a requisitar o preso
para se entrevistar com o Defensor Público antes do oferecimento
da defesa preliminar, o deferimento em alguns casos constitui mera
liberalidade do Juiz. Até penso que dentro do possível o Juiz,
conhecendo os problemas estruturais da Defensoria Pública,
deveria atender ao pedido respectivo. Todavia, não está obrigado
a assim proceder. A entrevista prévia com a defesa técnica é

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obrigatória quando do interrogatório, que hoje ocorre ao final da


AIJ, o que evidencia que aquele contato ocorrerá antes da oitiva
das testemunhas. Entretanto, penso que a defesa preliminar nos
processos da lei de entorpecentes, que ocorre antes do recebimento
da denúncia, é peça obrigatória, não podendo o Juiz avançar
no andamento processual sem a vinda daquele instrumento
garantidor da ampla defesa, não importando se ela é apresentada
por advogado constituído ou dativo. Não deferida tal requisição
prévia, deve o Defensor Público procurar contato direto com o
preso ou oferecer a peça com os elementos que possui, podendo
a sua inércia configurar infração administrativa disciplinar, através
da provocação do Juiz ao órgão censor de classe.

Em seu voto, o e. Desembargador Marcus Basílio expressamente destaca que


“dentro do possível o Juiz, conhecendo os problemas estruturais da Defensoria
Pública, deveria atender ao pedido respectivo”.
O julgamento deste habeas corpus de relatoria do e. Desembargador Marcus
Basílio foi realizado em 11 de fevereiro de 2009 e, de lá para cá, nada mudou.
Essa realidade tornaBse ainda mais grave nas comarcas do interior, onde
é posto à disposição da população número insuficiente de profissionais para o
atendimento das pessoas de baixa renda.
Não é crível exigir que o Defensor Público proceda a todos os atendimentos
que o seu ofício lhe impõe e, ainda, tenha que se deslocar para os presídios para
entrevistarBse com o seu assistido.
Não que isso não venha a ser exigível no futuro.
É que hoje a estrutura da Defensoria Pública não permite o adequado
atendimento dos necessitados e ao se exigir o deslocamento do Defensor haverá
inegável imposição de sacrificou desproporcional aos direitos fundamentais, não
apenas daquele assistido, mas de toda a coletividade que necessita da assistência
judiciária gratuita.
De duas uma: ou o preso não poderá fazer jus ao tempo necessário para
a elaboração de sua defesa plena ou os demais assistidos não terão acesso ao
Defensor Público, função essencial à justiça.
Assim, embora não se saiba à vista dos documentos que acompanham o
processo onde o paciente está preso, o que no futuro será vital para decidir pela
concessão ou não da ordem em casos semelhantes, certo é que o processo de
XXXX é oriundo de Campos do Goytacazes, o que faz presumir a dificuldade de
entrevista pessoal do defensor com o paciente.

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Releva notar que em precedente histórico o e. Supremo Tribunal Federal


decidiu pela inconstitucionalidade progressiva da lei que concedia prazo em
dobro para a Defensoria Pública enquanto esse órgão não estivesse devidamente
instalado ou estruturado128.
Assim é que no julgamento do habeas corpus 70.541, de 23 de março de 1994, o
Tribunal Pleno, em voto da lavra do então Ministro Sydney Sanches, decidiu que:

“EMENTA: B Direito Constitucional e Processual Penal. Defensores


Públicos: prazo em dobro para interposição de recursos (§ 5 do art.
1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de
08.11.1989). Constitucionalidade. “Habeas Corpus”. Nulidades.
Intimação pessoal dos Defensores Públicos e prazo em dobro
para interposição de recursos. 1. Não é de ser reconhecida a
inconstitucionalidade do § 5 do art. 1 da Lei n 1.060, de 05.02.1950,
acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989, no ponto em que
confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas,
ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível
de organização do respectivo Ministério Público, que é a parte
adversa, como órgão de acusação, no processo da ação penal
pública. 2. Deve ser anulado, pelo Supremo Tribunal Federal,
acórdão de Tribunal que não conhece de apelação interposta por
Defensor Público, por consideráBla intempestiva, sem levar em conta
o prazo em dobro para recurso, de que trata o § 5 do art. 1 da Lei n
1.060, de 05.02.1950, acrescentado pela Lei n 7.871, de 08.11.1989. 3.
A anulação também se justifica, se, apesar do disposto no mesmo
parágrafo, o julgamento do recurso se realiza, sem intimação pessoal
do Defensor Público e resulta desfavorável ao réu, seja, quanto a sua
própria apelação, seja quanto à interposta pelo Ministério Público. 4.
A anulação deve beneficiar também o coBréu, defendido pelo mesmo
Defensor Público, ainda que não tenha apelado, se o julgamento do
recurso interposto pelo Ministério Público, realizado nas referidas
circunstâncias, lhe é igualmente desfavorável. “Habeas Corpus”
deferido para tais fins, devendo o novo julgamento se realizar com
prévia intimação pessoal do Defensor Público, afastada a questão
da tempestividade da apelação do réu, interposto dentro do prazo
em dobro”.

128 Artigo 5º, § 5º, da Lei 1.060, de 05 de fevereiro de 1950.

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O voto do então Ministro Moreira Alves129, também no julgamento do


mencionado habeas corpus, aponta os motivos pelos quais a norma foi declarada
“ainda constitucional”.
Assim é que destacou o Ministro que:

“A única justificativa que encontro para esse tratamento desigual


em favor da Defensoria Pública em face do Ministério Público é a
de caráter temporário: a circunstância de as Defensorias Públicas
ainda não estarem, por sua recente implantação, devidamente
aparelhadas como se acha o Ministério Público. Por isso, para
casos como este, pareceBme deva adotarBse a construção da Corte
Constitucional alemã no sentido de considerar que uma lei, em
virtude das circunstâncias de fato, pode vir a ser inconstitucional,
não o sendo, porém, enquanto essas circunstâncias de fato não se
apresentarem com a intensidade necessária para que se tornem
inconstitucionais. Assim, a lei em causa será constitucional
enquanto a Defensoria Pública, concretamente, não estiver
organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar em posição de
igualdade com o Ministério Público, tornando-se inconstitucional,
porém, quando essa circunstância de fato não mais se verificar”.

Posteriormente, o e. Supremo Tribunal Federal130, valendoBse de idêntica


fundamentação, reconheceu a legitimação do Ministério Público para a execução

129 Apud. Ives Granda da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle Concentrado de
Constitucionalidade. Ed. Saraiva. 3ª Ed. 2009. São Paulo. P. 479/80.
130 LEGITIMIDADE B AÇÃO “EX DELICTO” B MINISTÉRIO PÚBLICO B DEFENSORIA PÚBLICA B
ARTIGO 68 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL B CARTA DA REPÚBLICA DE 1988. A teor do
disposto no artigo 134 da Constituição Federal, cabe à Defensoria Pública, instituição essencial à
função jurisdicional do Estado, a orientação e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na
forma do artigo 5º, LXXIV, da Carta, estando restrita a atuação do Ministério Público, no campo
dos interesses sociais e individuais, àqueles indisponíveis (parte final do artigo 127 da Constituição
Federal). INCONSTITUCIONALIDADE PROGRESSIVA B VIABILIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DE
DIREITO ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE B ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA
DOS NECESSITADOS B SUBSISTÊNCIA TEMPORÁRIA DA LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO. Ao Estado, no que assegurado constitucionalmente certo direito, cumpre viabilizar o
respectivo exercício. Enquanto não criada por lei, organizada B e, portanto, preenchidos os cargos
próprios, na unidade da Federação B a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código
de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele
prevista. Irrelevância de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado,
em face de não lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar,
contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento. (RE 135328,
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/1994, DJ 20B04B2001 PPB00137
EMENT VOLB02027B06 PPB01164 RTJ VOLB00177B02 PPB00879)

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de sentença condenatória penal em âmbito cível (artigo 68 do Código de Processo


Penal) naqueles Estados da Federação em que não há Defensoria Pública ou seu
funcionamento é precário (RE 135.382B7/SP).
É que a Constituição da República, em seu artigo 134, erigiu a Defensoria
Pública em “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindoBlhe
a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do
artigo 5º, LXXIV” e a omissão do Estado no implemento das instituições previstas
na Carta Política acaba por criar “situações constitucionais imperfeitas”.
A alternativa encontrada pela e. Suprema Corte foi a de preservar a norma
tendo em vista o contexto social evidenciado, “ficando claro, todavia, que, no
futuro, a alteração do status quo poderia ensejar decisão em sentido oposto”131.
RejeitouBse, portanto, “a alternativa radical da jurisdição constitucional ortoB
doxa” 132 que, por vezes, acaba por relegar ao segundo plano a lógica de que a
implementação de uma nova ordem constitucional está condicionada a própria
mudança da realidade fática.
Com isso, considerando as nuances do exercício do direito de defesa e a
referida notoriedade da estrutura precária da Defensoria Pública no Estado
do Rio de Janeiro para o atendimento daqueles que necessitam da assistência
judiciária gratuita, há manifesto constrangimento ilegal em o Estado, pelo
Tribunal, deixar de requisitar o preso para que o Defensor Público possa se
entrevistar.
Por último, não custa lembrar que os sujeitos processuais parciais não
exercem poderes no processo. Os poderes estão concentrados na figura do juiz.
Direitos das partes não implementados em decorrência da inadequada estrutura
do Estado devem ser providos por quem pode fazêBlo: o Poder Judiciário.
E aí, de exercício do poder se passa ao cumprimento do dever, inescusável
no Estado Democrático de Direito.
Como se não bastasse, a ordem também deve ser concedida em razão do
excesso de prazo na prisão por duplo fundamento: a) designação da audiência
para além do prazo legal sem qualquer justificativa (artigo 56, §1º, da Lei
11.343/06); b) tempo gasto com o debate sobre a apresentação do preso.
Assim é que no dia 17 de junho de 2009, foi determinada a notificação do
acusado para a apresentação de sua defesa prévia, no prazo de dez dias (fls. 33) e
a denúncia foi recebida no dia 27 de julho de 2009. Nesta oportunidade, a digna

131 Informativo de Jurisprudência 272. Transcrição: “A questão da ‘lei ainda constitucional’”. RE 341.717.
Rel. Ministro Celso de Mello.
132 Idem.

307
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autoridade judiciária apontada como coatora designou o interrogatório para o


dia 23 de setembro de 2009.
Entre a data do recebimento da denúncia e aquela designada para a
audiência de instrução e julgamento transcorreriam mais de trinta dias e isso é
causa de constrangimento ilegal.
Assim é porque a lei de drogas, em seu artigo 56, §2º, determina que a
audiência de instrução e julgamento deverá ser realizada dentro de trinta dias, a
contar do recebimento da denúncia.
A exceção a esta regra encontraBse positivada neste mesmo §2º do artigo
56 da Lei 11.343/06, que autoriza a realização da audiência no prazo de noventa
dias sempre que houver necessidade de realização de avaliação de dependência
de droga, o que não é o caso.
Conforme destacam ALEXANDRE BIZZOTTO e ANDREIA DE BRITO
RODRIGUES133 o prazo fixado na Lei de Drogas foi estabelecido com o escopo
de fixar limites temporais à instrução criminal, em se tratando de réu preso, e a
não observância deste prazo poderá motivar o relaxamento da prisão em razão
do excesso de prazo.
Esta é uma norma que decorre da própria Constituição da República que,
após a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, passou a prever expressamente
dentre o rol dos direitos e garantias individuais a duração razoável do processo.
Releva notar que este prazo de trinta dias poderá também ser dilatado
sempre que as circunstâncias concretas do caso e a complexidade da causa assim
justificarem.
E não foi isso que aconteceu. O magistrado deixou de apontar qualquer
fundamento idôneo para justificar a excepcionalidade da norma legal, pois que
se limitou a receber a denúncia e fixar data para a audiência.
Além disso, os documentos que instruíram este habeas corpus revelam
que entre a data do indeferimento do pedido de liberdade (30 de junho de
2009) e a decisão que deixou de requisitar o acusado para entrevistarBse com o
Defensor Público (07 de julho de 2009) transcorreram quase vinte dias. E esse
tempo gasto com o debate sobre a apresentação do paciente também é causa de
constrangimento ilegal.
Por fim, mas não menos importante, o paciente sofre constrangimento
ilegal porque a sua prisão preventiva foi decretada e mantida sem que a digna

133 Nova Lei de Drogas. Comentários à Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Lumen Juris. Rio de Janeiro:
2007. p. 162.

308
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autoridade coatora apontasse dados fáticos que justificassem a custódia cautelar


do acusado.
A prisão preventiva de XXXX foi decretada em 30 de janeiro de 2009, por
ocasião do oferecimento da denúncia, para garantia da ordem pública em razão
“da gravidade e da violência do crime”, pois “o delito de tráfico de drogas vem
assolando a sociedade, especialmente a campista, tomando grandes e desastrosas
proporções e causando a desgraça e morte de várias pessoas (...)” (fls. 43/4).
XXXX foi preso em 01 de junho de 2009 e o requerimento de revogação da
prisão preventiva, formulado em 23 de junho de 2009, foi indeferido pela digna
autoridade judiciária apontada como coatora porque (fls. 53/5):

“Como é cediço, a prisão provisória se reveste de natureza


cautelar, devendo ser mantida quando se evidencie a necessidade
e de acordo com os requisitos permissivos extrínsecos elencados
no art. 312 do CPP. Por outro lado, a jurisprudência do STJ e
STF já firmou entendimento no sentido de que a existência
de residência fixa e até a primariedade não constituem óbice à
decretação ou manutenção da custódia cautelar. Note-se que o
acusado responde neste feito por crime de extrema gravidade,
consubstanciado em tráfico de entorpecentes e associação (artigos
33 e 35, ambos da Lei 11343/06), equiparado a hediondo pela
legislação penal, sendo certo que em delitos que tais, impossível
se faz a concessão de liberdade provisória. Importante frisar
que a atual jurisprudência do STJ acompanha o entendimento do
Supremo Tribunal Federal no sentido de vedar a concessão de
fiança e de liberdade provisória em casos de crimes considerados
hediondos, com base no texto constitucional (HC 76534 e HC 73986,
ambos da 5ª Turma do STJ, Relatores os Srs. Ministros Jane Silva
e Arnaldo E. Lima, respectivamente). Convém ainda salientar
que a mais abalizada doutrina e jurisprudência entendem ser
possível a decretação ou manutenção da prisão cautelar em razão
da gravidade do delito, aliada a outros elementos autorizadores
da medida (RT 483/306), ainda quando seja primário e de bons
antecedentes o réu. Assim porque, nos termos da jurisprudência
pátria, ´a gravidade e a violência da infração, têm valor considerável
na decretação da custódia preventiva, mesmo porque revelam, no
mínimo, uma possível periculosidade do agente, determinando
mais vigor na aplicação da lei penal´ (TJSPBHCBRel. Pires Neto

309
E! "#$%# &' ()$*+&*-.# / 2ª P'$"0

B RJTJSP 125/579). A ordem pública consiste na preservação da


sociedade contra atos ilícitos e deturpadores do Estado de Direito,
evitando a eventual repetição do delito pelo agente, até porque, o
delito por ele praticado causa grande impacto social, considerado
hediondo pela legislação pátria. SalienteBse que o conceito de ordem
pública não se limita a prevenir futuros delitos, mas acautelar
a sociedade, garantindo a paz social e a credibilidade da Justiça,
face o clamor público e a gravidade do crime. NoteBse ainda que
segundo a denúncia, os milicianos lograram êxito ao procederem
averiguação de notícia de prática de crime de tráfico perpetrado
pelo requerente, sendo a coBré Rosileide presa em flagrante na posse
de considerável quantidade de entorpecentes, acondicionados de
forma comum ao tráfico. Cumpre ressaltar, desde logo, que há nos
autos prova da existência do crime e indícios fortes e suficientes
da autoria, bastantes para que se mantenha a prisão cautelar. Por
derradeiro, deveBse ter em vista que a prisão cautelar não ofende
o princípio da presunção de inocência, conforme já pacificado
nos tribunais superiores, estando o entendimento inclusive já
sumulado pelo E. STJ. Outrossim, o art. 44 da Lei 11.343/2006, veda
expressamente a concessão de liberdade provisória no caso de
crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Neste sentido, recentes
julgados do STF e TJRJ: ´DIREITO PROCESSUAL PENAL, PRISÃO
PREVENTIVA. EXCESSO DE PRAZO. DECISÃO MONOCRÁTICA
DO STJ. SÚMULA 691, STF. NÃO CONHECIMENTO DO HABEAS
CORPUS. 1. Obstáculo instransponível ao conhecimento do Habeas
corpus (enunciado 691, da Súmula do Supremo Tribunal Federal:
Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer habeas corpus
impetrado contra decisão do relator que, em sede de habeas corpus
requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar´). 2. Decisão do STJ
não é flagrantemente ilegal, teratológica, não cabendo a relativização
da orientação contida na referida Súmula 691, desta Corte. 3. O
STF tem adotado orientação segundo a qual há proibição legal de
concessão de liberdade provisória em favor dos sujeitos ativos do
crime de tráfico ilícito de drogas (art. 44, da Lei 11.343/06), o que,
por si só, é fundamento para o indeferimento do requerimento de
liberdade provisória. 4. O critério da razoabilidade deve nortear a
aferição do prolongamento do processo penal. Apenas o excesso
injustificado da instrução processual se afigura constrangimento

310
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ilegal, hábil à concessão da ordem para fins de cassação do decreto


prisional. 5. Habeas corpus não conhecido.´ (HC 93653 / RN B RIO
GRANDE DO NORTE B Relator(a): Ministra ELLEN GRACIE
Julgamento: 03/06/2008 Órgão Julgador: Segunda Turma) grifouB
se. TRÁFICO DE ENTORPECENTES, ASSOCIAÇÃO PARA O
TRÁFICO E PORTE DE ARMA COM NUMERAÇÃO RASPADA.
Excesso de prazo. Os prazos para instrução criminal visam evitar
a procrastinação, a demora injustificada no processamento do
feito, mas não são peremptórios, devendo ser temperados com o
princípio da razoabilidade. Liberdade provisória. A proibição de
concessão de liberdade provisória para os autores de crime de
tráfico de entorpecentes está prevista no art. 44 da Lei 11.343/06,
que reflete um comando constitucional nesse sentido, tratandoB
se, pois, de uma custódia cautelar de necessidade presumida pela
própria Constituição. Ordem que se denega. (TJRJ, Habeas Corpus
2008.059.04240, REL.DES. MANOEL ALBERTO B Julgamento:
22/07/2008 B TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL) Ante o exposto,
INDEFIRO o pedido de liberdade provisória e, em conseqüência,
mantenho a prisão cautelar.

A mencionada decisão revela que a digna autoridade apontada como coatora


se valeu como razão de decidir da vedação automática à liberdade provisória
imposta pela Lei de Drogas e da gravidade em tese do delito supostamente
praticado pelo paciente.
Não se pode desprezar que o artigo 44 do mencionado diploma legal há
de ser interpretado à luz da Constituição da República, e como qualquer norma
jurídica, sua validade está condicionada à indispensável filtragem constitucional.
Como sói ser, a liberdade provisória é direito público subjetivo daqueles
acusados que preencherem os requisitos exigidos pelo sistema processual penal e
isso é premissa elementar que existe antes da Constituição da República de 1988.
Ademais, o artigo 44 da Lei 11.343/06 ou qualquer alegação fundada
na gravidade em tese ou hediondez do crime não pode, por si só, justificar a
manutenção da prisão cautelar do paciente, especialmente após a edição da Lei
11.464/07, que excluiu a vedação legal de concessão da liberdade provisória de
todos os crimes hediondos e equiparados.
Decisão que elege estes argumentos como conteúdo, por certo, não encontra
fundamento de validade na Constituição da República (artigo 93, IX).

311
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O caráter cogente da exigência de fundamentação é dirigido tanto ao órgão


jurisdicional quanto ao legislador, e a este último é vedado prover preceito
dispositivo que mantenha o estado de custódia sem que a autoridade judiciária
tenha que justificar a privação de liberdade de natureza cautelar.
Não se pode admitir que a atividade jurisdicional, ancorada em legislação
infraconstitucional, no caso o artigo 44 da Lei 11.343/06, transite em matéria
de liberdade em prejuízo das garantias constitucionais dos indivíduos,
especialmente daqueles que se encontram submetidos ao poder do Estado.
Na perspectiva da Constituição da República, em consonância com a
jurisprudência dos tribunais superiores, manter a custódia cautelar do paciente,
em alegada impossibilidade de se conceder liberdade, tendo em vista que o
“acusado responde neste feito por crime de extrema gravidade, consubstanciado
em tráfico de entorpecentes cumulado com associação para o tráfico (artigos 33
e 35 da Lei 11343/06), equiparados a hediondos pela legislação penal” é causa
de constrangimento ilegal, dada a desconformidade da vedação automática
contida no artigo 44 da Lei de Drogas com a Carta Política.
Destaco também que o exame do postulado da proporcionalidade, de ampla
incidência na atuação do Estado, até mesmo sobre a produção normativa, é fundamental
à tutela das liberdades individuais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão
substantiva ou material, a garantia do devido processo legal.
A proibição do excesso se insere nesse contexto, pois a limitação material
à ação normativa do Poder Legislativo, traduzida hoje pela doutrina como
razoabilidade, e o exame da adequação de determinado ato estatal, denominado
proporcionalidade, viabilizam a fiscalização de constitucionalidade das
imposições normativas emanadas do Poder Público.
Além disso, saliento que a proibição legal contida no artigo 44 da Lei
11.343/2006 é insuficiente para o indeferimento da liberdade provisória.
Sobre a inconstitucionalidade da vedação automática de liberdade
provisória, prevista especificamente no artigo 21 do Estatuto do Desarmamento,
regra legal de conteúdo material idêntico ao do artigo em exame, fala mais
alto a decisão que, em controle direto de constitucionalidade, declarou a
inconstitucionalidade da mencionada norma.
Esta é a ementa do acórdão proferido na ADI 3112/DF:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.


LEI 10.826/2003. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. INCONS-
TITUCIONALIDADE FORMAL AFASTADA. INVASÃO DA
COMPETÊNCIA RESIDUAL DOS ESTADOS. INOCORRÊNCIA.

312
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DIREITO DE PROPRIEDADE. INTROMISSÃO DO ESTADO NA


ESFERA PRIVADA DESCARACTERIZADA. PREDOMINÂNCIA
DO INTERESSE PÚBLICO RECONHECIDA. OBRIGAÇÃO DE
RENOVAÇÃO PERIÓDICA DO REGISTRO DAS ARMAS DE
FOGO. DIREITO DE PROPRIEDADE, ATO JURÍDICO PERFEITO
E DIREITO ADQUIRIDO ALEGADAMENTE VIOLADOS.
ASSERTIVA IMPROCEDENTE. LESÃO AOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. AFRONTA TAMBÉM
AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. ARGUMENTOS
NÃO ACOLHIDOS. FIXAÇÃO DE IDADE MÍNIMA PARA
A AQUISIÇÃO DE ARMA DE FOGO. POSSIBILIDADE.
REALIZAÇÃO DE REFERENDO. INCOMPETÊNCIA DO
CONGRESSO NACIONAL. PREJUDICIALIDADE. AÇÃO
JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE QUANTO À
PROIBIÇÃO DO ESTABELECIMENTO DE FIANÇA E LI-
BERDADE PROVISÓRIA. I B Dispositivos impugnados que
constituem mera reprodução de normas constantes da Lei
9.437/1997, de iniciativa do Executivo, revogada pela Lei 10.826/2003,
ou são consentâneos com o que nela se dispunha, ou, ainda,
consubstanciam preceitos que guardam afinidade lógica, em uma
relação de pertinência, com a Lei 9.437/1997 ou com o PL 1.073/1999,
ambos encaminhados ao Congresso Nacional pela Presidência
da República, razão pela qual não se caracteriza a alegada
inconstitucionalidade formal. II B Invasão de competência residual
dos Estados para legislar sobre segurança pública inocorrente,
pois cabe à União legislar sobre matérias de predominante
interesse geral. III B O direito do proprietário à percepção de justa e
adequada indenização, reconhecida no diploma legal impugnado,
afasta a alegada violação ao art. 5º, XXII, da Constituição Federal,
bem como ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido. IV B A
proibição de estabelecimento de fiança para os delitos de “porte
ilegal de arma de fogo de uso permitido” e de “disparo de arma
de fogo”, mostraBse desarrazoada, porquanto são crimes de mera
conduta, que não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou
ameaça de lesão à vida ou à propriedade. V B Insusceptibilidade
de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts.
16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto

313
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magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da


presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação
dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente.
VI B Identificação das armas e munições, de modo a permitir o
rastreamento dos respectivos fabricantes e adquirentes, medida que
não se mostra irrazoável. VII B A idade mínima para aquisição de
arma de fogo pode ser estabelecida por meio de lei ordinária, como
se tem admitido em outras hipóteses. VIII B Prejudicado o exame da
inconstitucionalidade formal e material do art. 35, tendo em conta a
realização de referendo. IX B Ação julgada procedente, em parte, para
declarar a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos artigos 14 e
15 e do artigo 21 da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003.

De outro lado é preciso advertir sobre a excepcionalidade de toda e


qualquer prisão processual e a exigência do suporte probatório mínimo para a
sua decretação e/ou manutenção.
No caso desse processo o impetrante logrou comprovar que o paciente
possui residência fixa e não há qualquer anotação em sua folha de antecedentes
criminais (fls. 40/1 e 49/52).
Em se tratando de custódia cautelar sua decretação ou manutenção está
condicionada à verificação dos requisitos da prisão preventiva.
Isso porque, em um Estado Democrático de Direito, e em face do princípio
constitucional da presunção de inocência, que permeia toda a dogmática penal e
processual penal, a custódia cautelar, espécie do gênero tutela de urgência penal,
é medida excepcional e somente se justifica quando presentes os requisitos do
fumus commissi delicti e periculum libertatis.
Neste contexto, impõeBse que o magistrado afirme na decisão a presença de
fumus commissi delicti, consistente na “probabilidade da ocorrência de um delito”,
e o periculum libertatis, representado pela natureza do risco à conveniência da
instrução penal ou para assegurar a aplicação da lei penal embutida em eventual
liberdade do paciente134.
Esta é uma exigência que decorre da Constituição (artigo 5º, inciso LIV e LXI).
Vale destacar que a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça vem
decidindo no sentido de que:

134 Aury Lopes Jr., in Introdução Crítica ao Processo Penal: fundamentos da instrumentalidade garantista, 2ª
ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 195.

314
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“com o advento da Lei nº 11.464/2007, que alterou a redação do art.


2º, II, da Lei 8.072/90, tornouBse possível a concessão de liberdade
provisória aos crimes hediondos ou equiparados, nas hipóteses
que não estejam presentes os requisitos do art. 312 do Código de
Processo Penal, quando a negativa da liberdade provisória não está
fundamentada em fatos concretos, mas tãoBsó na gravidade abstrata
do crime e nas conseqüências que ele causa na sociedade, motivação,
por certo, insuficiente para manter a prisão cautelar” 135

Neste acórdão ficou assentado que:

“a Lei 11.464/07 não impede a concessão da liberdade provisória nos


crimes hediondos, sendo de natureza geral em relação a todos os crimes
dessa espécie. Inadmissível o indeferimento da liberdade provisória
com base na necessidade de resguardar a ordem pública tãoBsomente
em função da nocividade da conduta atribuída à acusada, não havendo
o Magistrado singular sequer apontado em quê consistiria referida
nocividade, em clara afronta à garantia constitucional elencada no
artigo 93, IX da Constituição da República”.

Assim, se a regra é a liberdade e a prisão é exceção, esta situação excepcional


há de ser claramente apontada pelo juiz, a contrario sensu do que dispõe o
parágrafo único, do artigo 310, do Código de Processo Penal.
E a autoridade judiciária apontada como coatora não apontou qualquer
dado realidade empírica da qual seja possível extrair os efeitos jurídicos próprios
da situação examinada.
Volto a dizer: o que serve para justificar todas as situações não justifica
qualquer delas.
Posto isso, voto no sentido de conceder a ordem para relaxar a prisão do
paciente por ausência de fundamentação da decisão que manteve a custódia
cautelar do paciente e também por excesso de prazo na manutenção desta prisão,
expedindoBse alvará de soltura.
.
Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2009.
GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

135 RHC 23393/SP Recurso Ordinário em Habeas Corpus 2008/0080662B0 B 11/09/2008.

315
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O contraditório prévio e a Lei nº 11.719/08

5ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS 2009.059.05975
AUTORIDADE COATORA: VARA ÚNICA DE ARRAIAL DO CABO
IMPETRANTES: (1) XXXX
(2) YYYY
PACIENTE: WWWW
CORRÉU: ZZZZ
CORRÉU: EEEE

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL.


ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA DENÚNCIA E AUSÊNCIA DE
JUSTA CAUSA PARA A DEFLAGRAÇÃO DA AÇÃO PENAL.
CORRETA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 396 DO CÓDIGO
DE PROCESSSO PENAL. LEI 11.719/08 QUE ACOLHE A
ESTRUTURA TRIFÁSICA DO PROCEDIMENTO, ANCORADA
NO JUSTO PROPÓSITO DE INTRODUZIR UMA ETAPA DE
DEBATE CONTRADITÓRIO PARA A ADMISSIBILIDADE
DA ACUSAÇÃO E COM ISSO EVITAR SITUAÇÕES DE
CONSTRANGIMENTO ILEGAL. IMPRESCINDIBILIDADE
DO CONTRADITÓRIO PRÉVIO E NECESSIDADE DE
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE RECEBE OU NÃO
A DENÚNCIA. Paciente processado no juízo da Vara Única
de Arraial do Cabo porque, em tese, como Diretor Presidente da
Companhia Nacional de Álcalis S/A teria suprimido o pagamento
de ICMS no período compreendido entre 1º de julho de 2004 e
10 de março de 2006. Caso concreto que demonstra o equívoco
da interpretação e aplicação literal da regra contida no preceito
do artigo 396, caput, do Código de Processo Penal. Reelaboração
legislativa do estatuto processual penal que foi concebida e
orientada à concretização da garantia do contraditório (artigo 5º,
inciso LV, da Constituição da República). Introdução de uma etapa
de avaliação sobre a viabilidade e idoneidade da acusação, bem
como a necessidade de se atribuir caráter decisório à manifestação

316
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do magistrado que recebe ou não a denúncia ou queixa. Exame


prévio de admissibilidade da acusação que tem por escopo evitar a
instauração de processo criminal levandoBse em conta o reforço às
garantias constitucionais do acusado. Projeto original, que resultou
na Lei 11.719/08, modificado com a introdução da “mesóclise da
discórdia” recebê/la/á no artigo 396 do Código de Processo Penal.
Impossibilidade de se suprimir o contraditório preliminar, etapa
necessária à formação do convencimento do magistrado no momento
de proferir a decisão (fundamentada) de recebimento da denúncia.
Juízo de admissibilidade da acusação que se desloca para depois da
resposta do acusado (conforme preconiza o artigo 399 do Diploma
Processual Penal), como única solução compatível com o Estado de
Direito e, por isso, com a Constituição da República. Interpretação
conferida que também procura prestigiar a configuração normativa
que melhor promova as garantias constitucionais do processo
penal. Sacrifício parcial da primeira norma (artigo 396 do Código de
Processo Penal), “uma vez que apenas o preceito que determina o
imediato recebimento da inicial (recebêBlaBá) será eliminado, porque
somente ele contrasta com o preceito que remete esta decisão ao
instante posterior ao da apresentação da defesa preliminar (artigo
399 do Código de Processo Penal)”. Dúvidas sobre a viabilidade da
peça acusatória que reforça a tese da necessidade do contraditório
prévio ao recebimento da denúncia. Reconhecimento da nulidade
da decisão que recebe a denúncia e não aponta as razões de decidir.
Constrangimento ilegal configurado.
ORDEM CONCEDIDA.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº. 2009.059.05975


em que são impetrantes XXXX e YYYY e paciente WWWW.
ACORDAM, por unanimidade de votos, os Desembargadores que
compõem a Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro, em sessão de julgamento realizada em 10 de setembro de 2009, em
julgar parcialmente procedente o pedido para conceder a ordem, também em
parte, e declarar a nulidade da decisão que recebeu a denúncia, por falta de
fundamentação, nos termos do voto do Desembargador Relator.

317
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Presidiu a sessão o Desembargador Sérgio de Souza Verani. Participaram


do julgamento o Desembargador Cairo Ítalo França David e a Desembargadora
Rosa Helena Penna Macedo Guita.
Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

RELATÓRIO

XXXX e YYYY impetram habeas corpus em favor de WWWW, apontando


como autoridade coatora o Juízo da Vara Única de Arraial do Cabo.
Por meio deste processo os impetrantes alegam que o paciente estaria
sofrendo constrangimento ilegal em razão da ausência de justa causa para a
deflagração da ação penal e inépcia da denúncia.
Assim é que o paciente está sendo processado, acusado da prática dos
crimes definidos no artigo 1º, inciso II (vinte vezes) c/c artigo 11, ambos da Lei
8.137/90, na forma do artigo 71 do Código Penal, isto porque, segundo narra a
denúncia, no período compreendido entre 1º de julho de 2004 e 10 de março de
2006, o paciente teria suprimido o pagamento de ICMS em favor da empresa
Companhia Nacional Álcalis S/A.
A denúncia (fls. 16/19) foi recebida em 15 de dezembro de 2008 e a resposta
foi apresentada no dia 16 de março de 2009. Junto à resposta foram anexadas
cópia da publicação, em Diário Oficial (fls. 51), e da ata de reunião do conselho
de administração da sociedade, realizada em 07 de fevereiro de 1995, em que
o paciente teria renunciado ao cargo de diretor presidente da mencionada
sociedade.
A ausência de justa causa estaria retratada na falta de lastro probatório
mínimo da autoria e materialidade do crime e, segundo os impetrantes, o
Ministério Público fundamenta a denúncia com base exclusivamente em folha
obtida no site da junta comercial do Estado do Rio de Janeiro. A denúncia
seria também inepta, pois não descreveu as condutas típicas de cada um dos
acusados, além de imputar ao paciente a prática de um crime pelo só fato de ter
sido presidente da empresa.
Instada a se manifestar (fls. 60/1), a digna autoridade judiciária apontada
como coatora esclareceu que o pedido formulado neste processo de habeas
corpus foi também objeto da resposta do paciente. Tendo em vista as alegações

318
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da Defesa foi determinada a expedição de ofício à JUCERJA para informar a


composição do quadro societário da empresa no período narrado na denúncia.
Aduz a digna autoridade judiciária que esta matéria ainda não foi apreciada
pelo juízo de origem e, apesar disso, foi impetrado o presente habeas corpus.
No que toca à alegada ilegitimidade passiva do acusado WWWW B que
segundo as informações prestadas pela digna autoridade seria objeto de
alegação neste habeas corpus / esta deveria ter sido arguida por meio de exceção
de ilegitimidade. Nada obstante, a digna autoridade judiciária apontada como
coatora teria determinado a realização de diligências e a matéria ainda não foi
apreciada pelo juízo a quo.
Quanto à inépcia de denúncia, informou a referida autoridade que a
denúncia narra a participação do acusado e atribui a conduta de deixar de
recolher no prazo legal os valores retidos a título de ICMS na qualidade de
substituta processual.
Por fim, concluiu que as questões preliminares deduzidas na resposta, e
que também foram objeto de questionamento neste habeas corpus, ainda não
foram apreciadas, pois aguardam o cumprimento de diligências.
O Ministério Público em parecer da lavra da e. Procuradora de Justiça Lígia
Portes Santos manifestouBse pela extinção do processo sem julgamento do mérito
nos termos do artigo 31, inciso VIII, do RITJERJ tendo em vista a necessidade de
realização de diligências, o que é incompatível com o processo de habeas corpus.
Caso não seja a hipótese de extinção do processo, postula a realização de
diligências.
É o relatório.

VOTO

WWWW está sendo processado no juízo da Vara Única de Arraial do Cabo


porque, em tese, como Diretor Presidente da Companhia Nacional de Álcalis
S/A teria suprimido o pagamento de ICMS no período compreendido entre 1º de
julho de 2004 e 10 de março de 2006.
Este caso demonstra o equívoco da interpretação e aplicação literal da regra
contida no preceito do artigo 396, caput, do Código de Processo Penal.
Com efeito, a reelaboração legislativa do estatuto processual penal foi
concebida e orientada à concretização da garantia do contraditório (artigo 5º,
inciso LV, da Constituição da República).
Em outros tempos, encerrada a investigação criminal, a denúncia ou a
queixa era oferecida e recebida por meio de “despacho” ao qual até os tribunais

319
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superiores negavam a qualidade de decisão136 (iniciavaBse o processo) sem que a


Defesa pudesse ter a oportunidade de demonstrar que a investigação que havia
conferido lastro à acusação era inidônea ou precária e, pois, imprópria para
demonstrar a existência de indícios de autoria e da prática de uma infração penal.
SabeBse que durante o processo legislativo, o projeto original que se transformou
na Lei 11.719/08 acolhia a estrutura trifásica do procedimento, ancorado no justo
propósito de introduzir uma etapa de debate contraditório para a admissibilidade
da acusação e com isso evitar situações de constrangimento ilegal.
Assim é que este projeto veio confirmar a necessidade de se atribuir caráter
decisório à manifestação do magistrado ao receber ou não a denúncia ou queixa,
com a realização de exame prévio sobre a admissibilidade da peça acusatória.
É que, por meio deste exame prévio, buscavaBse evitar a instauração
de processo criminal, cujos reflexos deletérios sobre a vida do acusado são
inevitáveis. Tudo isso levandoBse em conta, mais uma vez, a necessidade de
reforço às garantias constitucionais do acusado, questão exaustiva no anteprojeto.
Nesse contexto, com a resposta preliminar seriam fornecidos os subsídios
probatórios para que o magistrado pudesse apreciar a denúncia ou queixa, emitindo,
em seguida, uma decisão fundamentada sobre a análise da peça acusatória.
O projeto original, que resultou na Lei 11.719/08, foi modificado e no artigo
396 do Código de Processo Penal introduziuBse, nas palavras de AURY LOPES
JR137., “a mesóclise da discórdia”: recebê/la/á.
Muitos são os que defendem, à luz da redação conferida ao artigo 396
do Código de Processo Penal, que o magistrado deverá receber “de plano” a
denúncia para, em seguida, determinar a citação do acusado para o oferecimento
da resposta à acusação. Não haveria, pois, o tão almejado contraditório prévio!
Entendo, porém, que esta não é a interpretação que melhor concretize as normas
constitucionais, e o presente caso, repitaBse, retrata o equívoco da interpretação
que concebe o artigo 396 do Código de Processo Penal como o momento para o
recebimento da denúncia, com a supressão deste contraditório prévio.

136 Em comentários aos projetos de reforma do Código de Processo Penal, em especial ao PL 4.207/2001,
que veio a se transformar na Lei 11.719/08, Eduardo Reale Ferrari trouxe à tona a necessidade de se
adequar a legislação processual à Constituição da República. Isso porque, na lição do mencionado
autor, “não obstante erigido a dogma constitucional a necessidade de fundamentação das decisões
judiciais, a prática forense tornou inócuo o dispositivo, tornando o recebimento e a rejeição da peça
acusatória mero despacho ordinatório, olvidandoBse da existência de juízo de admissibilidade, no
mínimo implícito, no referido despacho”(Código de Processo Penal: Comentários aos Projetos de
Reforma Legislativa. Ed. Millennium. São Paulo. 2003. pg. 153).
137 Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume II. Lumen Juris. Rio de Janeiro.
2009. pg. 193.

320
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Com efeito, as informações prestadas pela digna autoridade judiciária


apontada como coatora revelam que a denúncia foi, de plano, recebida138 (nos
termos do artigo 396 do Código de Processo Penal, com a interpretação que ora
se rejeita) com determinação da citação da parte para o oferecimento da resposta
no prazo de dez dias.
Com a resposta à denúncia B que a digna autoridade judiciária apontada
como coatora denomina de “Defesa Prévia” – foram suscitadas a inépcia da
denúncia, a ausência de justa causa e a ilegitimidade passiva dos acusados.
Por conta disso, ainda segundo as informações prestadas pela digna
autoridade judiciária apontada como coatora, foram expedidos ofícios à JUCERJA
“a fim de que esta informe a composição do quadro societário da Companhia
Nacional de Álcalis no período de 01 de julho de 2004 a 10 de março de 2006”
(fls. 61). Em seguida, foi determinada a complementação das diligências “para
que seja informado o nome dos diretores e presidente da Companhia Nacional
de Álcalis no período de 01/07/2004 a 10/03/2006” (fls. 60).
O conteúdo da decisão, que se limitou a receber a denúncia, e as diligências
que foram requisitadas revelam a impossibilidade de se tomar como válida a
decisão de fl. 97.
Assim é porque tanto a decisão de fl. 97 como o pronunciamento posterior
à apresentação da “Defesa Prévia” comprovam ser imprescindível a realização
do contraditório prévio ao recebimento da denúncia, por tudo o que já se falou
sobre os efeitos desta decisão sobre a vida do acusado.
Ora, os indícios de autoria são coisa séria e, se a parte apresenta documento
sobre ato oficial que atesta que ele não era mais presidente da companhia ao
tempo do crime, há dúvida séria, e esta dúvida deveria ser resolvida em favor do
acusado na impossibilidade de extensão da atividade de instrução preliminar.
Em outras palavras, o equívoco da interpretação conferida ao artigo 396 do
Código de Processo Penal sugere o recebimento da denúncia que, em seguida, com
a apresentação da “Defesa Prévia”, mostrouBse duvidoso. Duvidoso porque não há
certeza da existência dos indícios de autoria do crime, o que levou o magistrado a
determinar a realização de diligências para o esclarecimento da causa.
Tudo isso, é óbvio, poderia ter sido evitado caso o magistrado houvesse
observado o contraditório prévio para, em seguida e diante do conteúdo da
resposta, aí sim, proferir uma decisão fundamentada sobre a admissibilidade ou
não da peça acusatória.

138 “1 – Recebo a denúncia. CitemBse para apresentar resposta à acusação, no prazo de dez dias; 2 –
AtendaBse a diligência de fls. 29, observando a que consta às fls. 39”.

321
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E é nesse contexto em que defendo que a única solução compatível com o


Estado de Direito e, por isso, com a Constituição da República, é aquela preconizada
pelo artigo 399 do Código de Processo Penal. Em outras palavras, o momento do
juízo de admissibilidade da acusação será o do artigo 399 do Diploma Processual
Penal, e, portanto, depois da resposta do acusado, quando então, ao magistrado será
possível adotar três posicionamentos distintos: rejeição da denúncia, nos termos
do artigo 395 do Código de Processo Penal, absolvição sumária do acusado, nas
hipóteses do artigo 397 do Código de Processo Penal ou, recebimento da denúncia
com designação de audiência de instrução e julgamento.
A resposta encontrada, na opinião deste Desembargador, é aquela que
melhor se conforma com a previsão da chamada “Reserva de Código de
Processo” (artigo 394, §4º, do Código de Processo Penal) e o reconhecimento
da função do processo penal como conjunto de garantias por meio das quais a
atividade de investigação da responsabilidade penal de alguém se desenvolve
em um Estado Democrático de Direito.
Isso é assim porque o que se pretende é prestigiar a configuração normativa
que melhor promova as garantias constitucionais do processo penal. E destas
garantias destacamBse o contraditório e a ampla defesa, que serão assegurados
de forma mais efetiva ao se permitir que o acusado se defenda de acusações
não fundadas ou, quiçá, injustas, antes de o magistrado proferir a decisão de
recebimento da denúncia ou queixa.
GUSTAVO BADARÓ139, em excelente trabalho, no qual são analisadas as
implicações provocadas pela reforma parcial a que foi submetido o Código de
Processo Penal, destaca que:

“a escolha de qual norma corrigir – eliminando uma sua parte –


deve ser informada por critérios de prevalência da norma que, em
maior ou melhor grau, implemente o programa constitucional.
Neste caso, considerar que há apenas um único recebimento
da denúncia, no caso, aquele previsto no art. 399 do CPP, é a
interpretação mais adequada e consentânea com um ordenamento
jurídico que, por expresso mandamento constitucional, tem como
fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/1988)
– e, portanto, deverá ter mecanismos para repelir uma acusação

139 Rejeição da denúncia ou queixa e absolvição sumária na reforma do Código de Processo Penal: atuação integrada
de tais mecanismos na dinâmica procedimental. Separata da Revista Brasileira de Ciências Criminais.
São Paulo: IBCCrim Jan/Fev. 2009 – Ano 17 – p. 151

322
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injusta e infundada, evitando todos os malefícios que o recebimento


da denúncia abusiva acarreta”.

Nesse contexto, o programa delimitado pelo artigo 399 incorpora o âmbito


normativo instituído pelo artigo 396 do Código de Processo Penal e confere
efetividade ao artigo 363 do referido diploma, com a citação do acusado.
A garantia constitucional do contraditório é assim implementada no
momento em que se confere ao acusado a possibilidade de apresentação da
defesa preliminar. Por meio desta defesa permiteBse levar ao conhecimento
do magistrado informações capazes de impedir o desenvolvimento da relação
jurídica processual com a rejeição da denúncia ou a absolvição sumário do
acusado.
Por tudo isso “o sacrifício da primeira norma (empregando a terminologia
positivista) neste caso será parcial, uma vez que apenas o preceito que determina
o imediato recebimento da inicial (recebêBlaBá) será eliminado, porque somente
ele contrasta com o preceito que remete esta decisão ao instante posterior ao da
apresentação da defesa preliminar (artigo 399)140”.
A persecução penal não pode ser legitimamente instaurada sem o
atendimento mínimo de direitos e garantias constitucionais vigentes em nosso
Estado Democrático de Direito.
Deve o magistrado determinar a citação do acusado para responder
a acusação, por escrito, no prazo de dez dias, caso não a rejeite a denúncia
liminarmente. É essa a interpretação, digaBse mais uma vez, que confiro ao
artigo 396 do Código de Processo Penal.
Assim, se o próprio juiz sequer está seguro de que há indícios de autoria,
a decisão que recebe a denúncia é inválida e há necessidade de se solucionar a
dúvida, concluindo a instrução que a própria lei estabelece.
Destaco, por fim, que malgrado a digna autoridade judiciária apontada como
coatora tenha informado que a impetração dá conta de alegada ilegitimidade
passiva, a verdade é que este não foi o pedido formulado pelos impetrantes.
Seja como for, na hipótese, não há se falar em ilegitimidade passiva, que
haveria caso o Ministério Público houvesse atribuído a responsabilidade criminal
a diretores de uma empresa diversa. Aqui, o que se tem é a controvérsia sobre a
condição ou não de presidente da companhia atribuída ao paciente.

140 Geraldo Prado. Sobre procedimentos e antinomias. Boletim IBCCrim 190/4/5. São Paulo: IBCCrim, set. 2008.

323
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Quanto à alegada inépcia da denúncia, releva notar que, em aparência, a


peça acusatória preenche os requisitos formais de admissibilidade porque neste
campo e em relação ao paciente a denúncia não é genérica ou impessoal.
Narra a inicial acusatória a conduta supostamente praticada pelo paciente e
pelos demais corréus, conforme se infere dos seguintes parágrafos:

“Assim sendo, verificaBse, no caso em apreço, que os denunciados,


agindo de forma livre e consciente e na qualidade de sóciosBgerentes
da empresa COMPANHIA NACIONAL DE ÁLCALIS, deixaram
de recolher, no prazo legal, valores retidos a título de ICMS na
qualidade de substituto tributário, suprimindo dos cofres públicos
estaduais, de forma ilícita e efetiva, quantia de 10.745,12 (dez mil,
setecentos e quarenta e cinco e doze centavos) UFIRBRJ.
SalienteBse, apenas, que a conduta perpetrada pelos denunciados
evidencia, pelo modus operandi, o caráter fraudulento da prática
reiterada da apropriação indevida acima descrita, com o intuito de
locupletamento demonstrado pelo lapso temporal em que se deram
as respectivas manobras”.

É verdade que, para o válido e regular exercício da ação penal, é primordial


que a inicial acusatória delimite de forma clara os fatos imputados ao denunciado,
para que seja possibilitado a este o exercício da ampla defesa e do contraditório,
garantias constitucionais com sede no inciso LIV do artigo 5º da Constituição da
República.
No presente caso, com o exercício da ação penal o Ministério Público não
violou o direito da parte pois, repitaBse, delimitou a suposta participação do
acusado no programa criminoso.
Nada obstante, conforme destacado, a decisão que recebeu a denúncia é
nula por ausência de fundamentação e a alegada inépcia da denúncia poderá
ser melhor apreciada após a realização do contraditório prévio, instaurada com
a Defesa Prévia.
Posto isso, voto no sentido de julgar parcialmente procedente o pedido
para conceder a ordem, também em parte, e declarar a nulidade da decisão que
recebeu a denúncia, por falta de fundamentação.
Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2009.

GERALDO PRADO
DES. RELATOR

324
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Falsas Memórias

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL nº 2009.050.02677
APELANTE: XXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO DE ORIGEM: VARA ÚNICA DA COMARCA DE JAPERI
DESEMBARGADORA RELATOR: MARIA HELENA SALCEDO
DESEMBARGARDOR REVISOR: GERALDO PRADO
Artigo 16, caput, da Lei 10.826/03, artigo 19 da Lei de Contravenções Penais,
artigo 329, §1º, do Código Penal, na forma do artigo 69 do Código Penal.

EMENTA: PROCESSO PENAL. “MITO DA VERDADE


REAL”. PROVA ORAL. VERSÃO DO RÉU COM COERÊNCIA
NARRATIVA. DÚVIDA INDISSOLÚVEL. PROVAS INSU-
FICIENTES A RESPEITO DA AUTORIA DO DELITO. IN DUBIO
PRO REO. ABSOLVIÇÃO. Apelante denunciado pela prática das
condutas definidas nos artigos 16, caput, da Lei 10.826/03, 19 da Lei
de Contravenções Penais e 329, §1°, do Código Penal, na forma do
artigo 69 do Código Penal. Condenação às penas de oito anos e seis
meses de reclusão e cento e dois diasBmulta, e seis meses de prisão
simples a ser cumprida em regime inicialmente fechado. A busca
pela compreensão aproximada do fato impõe reconhecer que, num
ambiente pouco iluminado, a perseguição aumenta o stress tornando
o depoimento influenciável pela instabilidade psíquica. O resultado
é a diminuição na capacidade de perceber os detalhes ligados ao
acontecimento. Diferença entre a mentira e a falsa memória. A versão
do acusado possui capacidade explicativa e, portanto, coerência
narrativa. Neste contexto de justificação o interesse da Defesa está
satisfeito em criar uma dúvida razoável no julgador. Conjunto
probatório inconsistente para embasar um decreto condenatório.
A impossibilidade de condenação quando paira dúvida acerca da
autoria dos crimes descritos na denúncia cumpre justamente o
paradigma garantista do processo penal, qual seja a racionalidade

325
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do juízo e a máxima tutela das liberdades. Princípio do in dubio pro


reo. Sentença que se reforma para absolver o apelante.
RECURSO PROVIDO.

ACÓRDÃO

VISTOS, relatados e discutidos estes autos da APELAÇÃO CRIMINAL nº.


2009.050.02677 em que é apelante XXXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.
ACORDAM os Desembargadores que compõem a Quinta Câmara Criminal,
na sessão de julgamento iniciada em 05 de agosto de 2009 e concluída em 13 de
agosto de 2009 em, POR UNANIMIDADE, absolver o apelante das condutas
definidas no artigo 19 da Lei de Contravenções Penais e no artigo 329, §1°, do
Código Penal e, POR MAIORIA de votos, absolver o apelante do crime definido
no art.16 da Lei 10.823/03, nos termos do artigo 386, inciso VII, do Código de
Processo Penal. Vencida, neste ponto, a Desembargadora Relatora Maria Helena
Salcedo. Expeça-se alvará de soltura.
Presidiu a sessão o Desembargador Nildson Araújo da Cruz. Participaram
do julgamento como Relatora, a Desembargadora Maria Helena Salcedo, como
Revisor, o Desembargador Geraldo Prado e, como vogal, o Desembargador
Cairo Ítalo França David.

Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


REVISOR DESIGNADO PARA A LAVRATURA DO ACÓRDÃO

DESEMBARGADORA MARIA HELENA SALCEDO


RELATORA – VOTO VENCIDO

VOTO

Na denúncia, ao acusado fora imputada a autoria das condutas definidas


nos artigos 16, caput, da Lei 10.826/03, 19 da Lei de Contravenções Penais e 329,
§1°, do Código Penal, na forma do artigo 69 do Código Penal.
Narra a acusação que o réu, em comunhão de ações e desígnios com terceiros
não identificados, no dia 05 de Agosto de 2007, na rua YYYY, Engenho Pedreira –
Japeri, teria resistido violentamente à abordagem policial. Para tanto, supostamente

326
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teria disparado tiros contra a unidade, com o emprego de uma pistola Calibre 45,
marca Taurus que, segundo o Ministério Público, portava, em suas mãos.
A hipótese acusatória ainda imputa a XXXX a conduta de, no mesmo
contexto fático, trazer consigo, junto à cintura, uma faca de empunhadura de
madeira, tipo canivete.
A sentença proferida pelo e. juiz Milton Delgado Soares julgou procedente a
pretensão estatal condenando o réu à reprimenda penal de seis anos de reclusão
e setenta diasBmulta pela prática do crime definido no artigo 16 da Lei 10.826/03,
seis meses de prisão simples pela prática da conduta definida no artigo 19 da Lei
de Contravenções Penais, além de dois anos, seis meses de reclusão e trinta diasB
multa pela prática do crime definido no artigo 329,§1°, do Código Penal, todos
na forma do artigo 69 do Código Penal.
Irresignada a Defesa interpôs o apelo, forte no argumento de que o réu deve
ser absolvido por insuficiência de prova. Postula, outrossim, o reconhecimento
da atipicidade da conduta de porte de arma de fogo, nos termos do art.32 da Lei
10.826/03; a redução da pena privativa de liberdade e, finalmente, a substituição
da privação de liberdade pela pena restritiva de direitos.
Em contrarrazões, o órgão ministerial pugna pelo desprovimento do
recurso e, por conseguinte, pela manutenção dos termos fixados na sentença.
A Procuradoria de Justiça opina favoravelmente à pretensão defensiva,
sugerindo a absolvição do acusado ou, alternativamente, o reconhecimento de
excesso na dosimetria da pena.
Merece provimento o recurso.
Compreender os problemas decorrentes da reconstrução dos fatos e, por
conseguinte, as implicações de se interpretar os signos do passado é de extrema
relevância, afinal, o presente processo trata da vida de XXXX, a quem a d.
sentença pretende enclausurar pelo total de nove anos.
Dentro de todas as alternativas explicativas, insurge, pois, a necessidade
de buscar a fiabilidade da prova, jamais se afastando da premissa de que no
processo penal acusatório a verdade real é um mito e a “certeza jurídica” no
máximo aproximativa141.
TornaBse, pois, mormente quando a prova da condenação em primeiro grau
é unicamente testemunhal, necessário questionar as limitações da memória em
sua tentativa de reconstruir o acontecimento, aproximando o julgador de uma
ou outra narrativa deduzida nos autos.

141 A gestão histórica dos fatos no processo penal o torna, nas palavras de Aury Lopes Júnior, um “ritual
de recognição”. B LOPES JR. Aury, Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Vol.I 3°
Ed. Lumen Juris – Rio de Janeiro. p.489.

327
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Por esse motivo, é imprescindível avaliar a hipótese explicativa proposta


pela acusação em concorrência com a alternativa explicativa levantada pelo réu.
XXXX, a quem se imputa o crime de resistência, porte de arma de fogo de
uso proibido e arma branca, nega peremptoriamente a sua autoria (fls.46):

“(...) Que não são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; que


no dia dos fatos estava junto com seu sogro e cunhado, além de
outras pessoas paradas na esquina, quando viu a aproximação de
um carro todo apagado e com a tampa do portaBmalas levantado;
que sabe que há uma milícia no local, comandada pelo vice prefeito
da cidade, Sr. Almir Ribeiro; que como todos sabem disso, e viram
a aproximação do veículo apagado, correram, ocasião em que o
depoente ouviu alguns disparos vindo do veículo; que ao ouvir
os disparos, se jogou no chão e logo foi abordado pelos policiais;
(...) que enquanto era colocado na viatura começou a se debater e
gritar por socorro, e acha que por isso está sendo processado por
resistência; que nenhuma arma foi encontrada sequer próximo
ao depoente; que o revólver e o canivete apreendidos foram
encontrados a uma distância de aproximadamente cinqüenta
metros do local da prisão. (...)” (Grifos nossos).

O Ministério Público, por sua vez, sustenta na denúncia que o acusado


portava, junta à cintura, o canivete e, em suas mãos, a pistola Taurus, tendo
atirado contra os policiais, com o escopo de, em companhia de terceiros não
identificados, evadirBse do local da diligência.
Para sustentar a tese acusatória arrola os policiais responsáveis pela prisão
do acusado. Vejamos o depoimento do Sr. ZZZZ (fls.54):

“(...) que o acusado correu para a direita e foi perseguido; que


enquanto fugia desfez-se da arma, jogandoBa num terreno
baldio e se jogou no chão; que ao se jogar no chão foi preso; que
o acusado ainda tinha na cintura uma lâmina tipo canivete, de
aproximadamente vinte e cinco centímetros (...).”

EEEE relata o seguinte (fls.53):

“(...) Que lá chegando, havia um grupo de mais ou menos oito


pessoas que, ao virem a Patamo, fugiram; que alguns foram para

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o lado direito e outros para o lado esquerdo; que durante a fuga os


mesmos dispararam contra os policiais, que os policiais seguiram
pelo lado direito e o depoente passou a perseguir o acusado, quando
o viu livrar-se da pistola, jogando-a num terreno e se atirando ao
chão; que ainda chegou a passar por ele, porque não o viu, porém
notou o mesmo no chão, voltou e o rendeu até a chegada de seu
colega, que o algemou; que o acusado ainda portava uma faca na
cintura, que não chegou a ver se o acusado efetuou algum disparo.
(...)”. (Grifos nossos).

Arroladas pela Defesa, as testemunhas que também estavam presentes no


local, assim se manifestam:

“(...)que o local estava escuro e o bar estava vazio; que quando se


aproximou um carro escuro, não sabendo o depoente dizer se se
tratava de uma viatura policial, todos correram; que o depoente só
veio a saber que o réu foi preso no dia seguinte (...) que o canivete
pertence ao depoente; (...) que quando correu o canivete caiu no
chão; (...) que quando o depoente correu escutou tiros; que nunca
viu o acusado armado (...).” – FFFF (fls.58).
“(...) Que estava indo para o trabalho quando encontrou o acusado
em um bar; que parou para conversar; que foi surpreendido por
um veículo escuro, que vinha todo apagado; que todos correram,
inclusive o depoente; que o depoente não viu nenhum canivete
e nem arma de fogo com o acusado; que o depoente nunca viu
o acusado armado.(...)” PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FOI
PERGUNTADO E RESPONDIDO: “que o acusado correu junto
com as outras pessoas; que dois minutos após correr o depoente
escutou o barulho dos disparos; que o depoente não sabe dizer a
quem pertencia a arma de fogo e quem realizou os disparos” –
GGGG (fls.60).

É possível perceber que há uma diferença sensível entre a narrativa


acusatória e a hipótese explicativa dada por XXXX e corroborada pelo depoimento
de outras pessoas presentes no mesmo contexto.
A premissa de que não existe uma determinação de veracidade e que
cada prova é um fragmento da história nos permite compreender que a sua única
função é a de avalizar a tese desenvolvida por um dos personagens do diálogo,

329
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tornandoBa idônea142 para ser assumida pelo juiz, no ato de legitimação do poder
inerente à sentença143.
A atividade probatória, portanto, na medida em que incorpora contribuições
parciais provenientes da leitura dos fatos, não pode se desassociar de sua dimensão
subjetiva144 que, como tal, somente produz um conhecimento provável.
O testemunho do policial EEEE é sintomático nesse sentido (fls. 53).
Afirma o depoente que “viu o acusado se livrar da pistola, jogando-a num
terreno e se atirando ao chão”, ao mesmo tempo prossegue dizendo que “ainda
chegou a passar por ele porque não o viu, porém notou o mesmo no chão, voltou
e o rendeu”.
O depoimento é sem dúvida, paradoxal: foi possível observar o acusado se
livrando da arma, mas não foi possível vêBlo se jogando no chão, ainda que na
mesma situação fática: “chegou a passar pelo réu, porque não o viu”.
Não se trata do reducionismo de minar a credibilidade do testemunho
policial apenas por conta de sua condição funcional.
A tentativa de compreender, de forma aproximada, a dinâmica dos fatos,
impõe o reconhecimento de que, num ambiente pouco iluminado, a perseguição
aumenta o stress tornando o depoimento influenciável pela instabilidade psíquica145.
O resultado é a diminuição na capacidade de perceber os detalhes ligados
ao acontecimento.
Considerando o ambiente conflituoso em que se deu a diligência, não se está
autorizado a assegurar que o depoimento policial de que o réu portava uma arma e
teria dela se desvencilhado é simplesmente mentiroso. A diferença entre a mentira e
a falsa informação reside justamente na constatação de que, todos os seres humanos,
estão sujeitos às variáveis que atuam no processo de codificação da memória.
Aury Lopes Jr. destaca que146: “As falsas memórias se diferenciam da mentira,
essencialmente, porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando,

142 LOPES JR. Aury, Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Vol.1 4° Ed. Lumen Juris –
Rio de Janeiro. Pg.553
143 ReafirmaBse que a busca pela compreensão do acontecimento histórico não possui o condão de
extrair uma verdade onipresente, mas simplesmente o de afirmar a sua contigencialidade dentro de
todo o labirinto cognoscitivo que é a produção da prova no processo.
144 IBÁÑES Perfecto Andrés, Valoração da Prova e Sentença Penal. Org. Lédio Rosa de Andrade. Lumen
JurisB Rio de janeiro. Pg. 126, 142B 148.
145 O medo e stress são indicados como importantes variáveis da fase de codificação da memória. Nesse
sentido, o aumento da intensidade do stress seria responsável por ocasionar um estreitamento da
atenção e, por conseguinte, maior grau de distractibilidade. / PINHO, Maria Salomé, Factores que
influenciam a memória das testemunhas oculares, in Psicologia e Justiça. Antonio Castro Fonseca (Ed).B
Almedina – Coimbra 2008. Pg. 308
146 LOPES JR. Aury, Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. 1. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2007, p. 624.

330
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pois a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente), chegando a sofrer com isso.
Já a mentira é um ato consciente, onde a pessoa tem noção do seu espaço de criação e
manipulação.”
Por isso, a versão do réu de que “nenhuma arma foi encontrada sequer próximo
e que o revólver e o canivete foram encontrados a uma distância de aproximadamente
cinqüenta metros do local da prisão” possui capacidade explicativa e, portanto,
coerência narrativa.
SalientaBse que o interesse da Defesa está satisfeito precisamente na criação
de uma dúvida razoável no julgador, em tornar crível, provável, enfim, plausível
a sua alegação.
Portanto, neste contexto de justificação147, a explicação reconstrutiva do acusado
encontraBse dotada de lógica interna, o que torna aceitável a sua proposição.
Dentro da tensão dialética que envolve a versão do réu e a hipótese
acusatória, somente se poderá impor decreto condenatório quando a valoração
de todas as provas apontar de forma inequívoca para a realização do injusto tal
como constante na denúncia.
A análise do processo, porém, não permite afirmar, com consistência, que
XXXX portava qualquer tipo de arma, seja branca ou de fogo.
Conseqüentemente, a pretensão condenatória quanto ao delito de resistência
também se torna insubsistente.
Com efeito, a premissa que sustentava esta imputação era a oposição
violenta do réu que, atirando contra a unidade policial, buscava evadirBse da
abordagem.
Considerando que o próprio policial EEEE afirma “que não chegou a ver
se o acusado efetuou algum disparo” (fls.53) e que as provas de que o acusado
portava a arma de fogo são extremamente frágeis, a única decisão legítima é
pelo provimento do recurso.
Ademais, o argumento de que a comunicabilidade das circunstâncias
elementares torna irrelevante aferir se o disparo foi deflagrado por terceiro ou
pelo réu, tampouco merece ser considerado, posto que há ainda menos elementos
acerca do liame subjetivo indispensável à configuração do concurso de agentes.
A impossibilidade de condenação quando paira dúvida acerca da autoria
do crime descrito na denúncia, cumpre justamente o paradigma garantista do
processo penal, qual seja a vinculação à racionalidade do juízo e, por conseguinte,
a máxima tutela das liberdades.

147 IBÁÑES Perfecto Andrés, Valoração da Prova e Sentença Penal. Org. Lédio Rosa de Andrade. Lumen
JurisB Rio de Janeiro. Pg. 135.

331
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Isso posto, em consonância com o princípio do in dubio pro reo, voto pela
ABSOLVIÇÃO do apelante pelas imputações referentes aos crimes definidos
nos artigos 16, caput, da Lei 10.826/03, 329, §1°, do Código Penal, e com relação à
contravenção definida no artigo 19 da Lei de Contravenções Penais, com base no
artigo 386, VII do Código de Processo Penal.
Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


REVISOR DESIGNADO PARA A LAVRATURA DO ACÓRDÃO

332
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Denúncia anônima

5ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS 2009.059.01373
AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DA 2.ª VARA DA COMARCA DE
MARICÁ
IMPETRANTE: XXXXX
PACIENTE: XXX
CORRÉU: XXX
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. PRISÃO


PREVENTIVA. ALEGAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO
ILEGAL CONSUBSTANCIADO NA AUSÊNCIA DOS RE-
QUISITOS AUTORIZADORES DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO
PREVENTIVA. DECISÃO QUE SE FUNDAMENTA NO AUTO
DE PRISÃO EM FLAGRANTE DO CORRÉU. POLICIAIS
QUE, SOB O FUNDAMENTO DE QUE RECEBERAM “DE-
NÚNCIA ANÔNIMA” NOTICIANDO A PRESENÇA DE
DUAS PESSOAS ENVOLVIDAS EM DIVERSOS ROUBOS
NA CASA DO CORRÉU, NELA INGRESSARAM PORQUE
ENCONTRARAM A PORTA ABERTA. CIRCUNSTÂNCIA QUE
NÃO AUTORIZA INGRESSO A CASA ALHEIA. FLAGRANTE
DELITO QUE IGUALMENTE NÃO LEGITIMA A VIOLAÇÃO
AO DOMICÍLIO, POIS SOMENTE FOI VERIFICADO APÓS O
ILEGAL INGRESSO DOS POLICIAIS À CASA DO CORRÉU.
NECESSIDADE DE PRÉVIA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DA
CIRCUNSTÂNCIA FLAGRANCIAL. “DENÚNCIA ANÔNIMA”
QUE NÃO FAZ MENÇÃO À POSSE DE ARMA DE FOGO.
PRECARIEDADE DA DENÚNCIA ANÔNIMA REVELADORA
DO PROPÓSITO SINGULAR DE CONTORNAR A EXIGÊNCIA
CONSTITUCIONAL DE ORDEM JUDICIAL, PRÉVIA E
FUNDAMENTADA, PARA INGRESSO EM CASA ALHEIA.
PRISÃO EM FLAGRANTE ILEGAL QUE CONTAMINA NÃO

333
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SÓ O DECRETO DE PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE,


MAS SE PROJETA PARA O PROCESSO. Paciente acusado da
prática da conduta definida no artigo 14 da Lei 10.826/03. Prisão
preventiva. Alegação de ausência dos requisitos autorizadores
da decretação da prisão cautelar. Decisão que decorre de Auto de
Prisão em Flagrante do corréu, que foi preso dentro de seu quarto,
após a entrada dos policiais em sua casa, cuja porta estava aberta,
sob o argumento de que teriam recebido “denúncia anônima”,
por telefone, noticiando que lá estariam presentes duas pessoas
envolvidas em diversos roubos. O fato de a porta estar aberta não
significa necessariamente estar franqueada a entrada daqueles que
não fazem parte da família ou do meio social do morador da casa,
especialmente porque não prevista no rol taxativo de hipóteses em
que é permitida a excepcional violação a domicílio. Flagrante delito
constatado após a atitude ilegal dos policiais, quando a entrada em
residência alheia exige prévia existência de indícios da prática de
crime. “Denúncia anônima” que não fez referência à posse ou ao
porte ilegal de arma de fogo de uso permitido. Expediente que,
malgrado “tolerado” pela jurisprudência, deve ser analisado com
cautela, pois a Constituição da República, ao mesmo tempo em que
assegura a liberdade de expressão, veda o anonimato. Ilicitude da
apreensão da arma. Desentranhamento da prova obtida por meio
ilícito, nos termos do artigo 157 do Código de Processo Penal.
Desaparecimento da materialidade delitiva. Consequente extinção
do processo sem resolução do mérito por falta de justa causa. Ordem
que se estende ao corréu.
ORDEM CONCEDIDA.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº. 2009.059.01373


em que é impetrante XXXX e paciente XXXX.
ACORDAM, por unanimidade de votos, os Desembargadores que
compõem a Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro, em sessão de julgamento realizada em 19 de março de 2009,
em julgar procedente o pedido e CONCEDER A ORDEM ao paciente, para
relaxar sua prisão preventiva e extinguir o processo sem resolução do mérito,

334
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estendendoBa ao corréu e expedindoBse alvarás de soltura, nos termos do voto


do Desembargador Relator.
A sessão de julgamento foi presidida pelo Desembargador Sérgio de Souza
Verani e participaram do julgamento como vogais as Desembargadoras Cairo
Ítalo França David e Rosa Helena Guita.

Rio de Janeiro, 19 de março de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

RELATÓRIO

TrataBse de pedido de habeas corpus impetrado em favor de XXXX, acusado


da prática do crime definido no artigo 14 da Lei 10.826/03 que teve sua prisão
preventiva decretada às fls. 41/3.
Na petição inicial, que veio instruída com os documentos de fls. 18/44, a
impetração alega que não estão presentes os requisitos ensejadores da prisão
cautelar.
Após indeferida a liminar (fl. 47), foram prestadas as informações pela
autoridade reputada coatora (fls. 51/5), aduzindo estarem presentes os requisitos
necessários à decretação da prisão preventiva, pelo que indeferiu o pleito de
revogação da prisão preventiva formulado pela Defesa do paciente.
A Magistrada ainda informou que, diante da inércia defensiva no sentido
de apresentar resposta preliminar, determinou abertura de vista à Defensoria
Pública para esse fim no que concerne ao paciente.
A Procuradoria de Justiça, em parecer de fls. 78/80, de lavra do Procurador
Astério Pereira dos Santos, opina pela concessão da ordem.
É o relatório.

VOTO

A ordem deve ser concedida.


Isso porque, a partir da leitura do Auto de Prisão em Flagrante do corréu
XXXX, observaBse que esta prisão e, por via de consequência, a do paciente, são
ilegais.

335
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Com efeito, as declarações ali prestadas são uníssonas no sentido de que


XXXX foi preso dentro de seu quarto, após os policiais XXXX e XXXX entrarem
em sua casa, sem ordem judicial, por voltas da 13:30 (fls. 22/7).
Este fato é incontroverso: ambos os policiais afirmaram que encontraram
a porta aberta, razão pela qual entraram na casa do corréu, sob o fundamento
de que teriam recebido uma denúncia anônima, por telefone, relatando que
naquele endereço haveria duas pessoas envolvidas em diversos roubos na região
de Itaipuaçu.
A porta aberta, portanto, foi o mote utilizado para o ingresso em casa alheia.
Todavia, não é preciso recorrer à Constituição da República para reconhecer
a impossibilidade de proceder dessa forma. É inerente à nossa cultura a noção de
que uma porta aberta não representa necessariamente estar franqueada a entrada
daqueles que não fazem parte da família ou do meio social do morador da casa.
Canção difundida popularmente, do compositor Vinícius de Moraes,
remete a esse valor cultural:

Era uma casa muito engraçada


não tinha teto não tinha nada
ninguém podia entrar nela não
porque na casa não tinha chão
(...)

Mesmo que a casa não possua muros ou porta; mesmo que destoe do que
no senso comum se chama de casa, não há fato algum que legitime qualquer
pessoa a nela entrar sem o consentimento do morador.
A vida privada será sempre o muro. A intimidade sempre a porta. E ela
estará sempre fechada para os não convidados (o Estado).
Portanto, não importa se concreta ou metafórica, a casa, em qualquer
hipótese, tem uma porta e, à exceção daqueles que são bemBvindos pelo seu
morador, ela está sempre cerrada.
Pontes de Miranda, nesse sentido, destacou que “´Casa` (...) é a porção
espacial, delimitada, autônoma, que alguém ocupa, só ou em companhia de
outrem, com exclusão das outras pessoas e, pois, em virtude do princípio da
inviolabilidade do domicílio, com exclusão do Estado”148.

148 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Vol. V. 2.ª Ed. Revista dos Tribunais, São
Paulo, 1974, p. 185.

336
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Nessa perspectiva Luis Gustavo Grandine[i149 mencionou decisão da


Suprema Corte Argentina, em que se afirmou que a inexistência de objeção do
morador, a exemplo uma porta aberta, não representa consentimento ao ingresso
de terceiros na casa.
Menos ainda é necessária alusão expressa à ordem constitucional posta
porque “Direitos fundamentais valem perante o Estado, e não pelo acidente da
regra constitucional”150.
E há aqueles que, a despeito do histórico debate sobre sua anterioridade ou
não ao fenômeno estatal, são considerados, ainda por Pontes de Miranda, como
supra/estatais151, dentre os quais a inviolabilidade domiciliar.
Não se trata de concebêBlos como direitos naturais. CuidaBse de rechaçar o
Estado como paradigma de sua existência e, ao oposto, encaráBlos – os direitos
fundamentais – como paradigma de atuação do Estado, em qualquer das
funções do poder: executiva, legislativa ou judiciária. Sob outro enfoque, trataB
se de repudiar qualquer forma de Estado ou regime de governo autoritário, na
esteira das históricas conquistas das liberdades individuais152.
Nesse sentido o autor assinalou:

Os direitos supra/estatais são, de ordinário, direitos fundamentais abso/


lutos. Não existem conforme os cria ou regula a lei: existem a despeito
das leis que os pretendam modificar ou conceituar. Não resultam das leis:
precedem/nas; não têm o conteúdo que elas lhes dão, recebem/no do direito
das gentes.153

É essa a natureza que a eles se atribui porque é a mesma que também


se atribui à dignidade da pessoa humana, que, de maneira geral, consiste em
“respeito ao ser humano” expressado “em princípios aceitos extensivamente e
afirmados profundamente na natureza real dos homens, como se desenvolveram
através da história para serem, hoje, parte essencial do que é considerado um
ser humano normal, como postulados éticos para o Direito”154 (grifei).

149 Processo Penal e Constituição – Princípios Constitucionais do Processo Penal. 4.ª Ed. Lumen Juris. Rio de
Janeiro, 2006, p. 88B89.
150 MIRANDA, Op. Cit. Vol. IV, p. 617.
151 Idem, p. 618.
152 LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? 7.ª Ed. Brasiliense, São Paulo, 1986.
153 MIRANDA, Op. Cit., p. 625.
154 ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas Ilícitas e Proporcionalidade. Lumen Juris, Rio de Janeiro,
2007, p. 36.

337
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Daí porque esse princípio foi alçado à condição de estrutura sobre a qual se
edifica o Estado de Direito sedimentado pela Carta Política de 1988 e a partir da
qual se extraem, sem necessidade sequer de positivação, os chamados direitos
fundamentais supraBestatais155.
A esse respeito, Luigi Ferrajoli destacou que o Estado de Direito não se
limita ao aspecto formal, concernente à noção de legalidade, mas possui outra
noção substancial “da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia
dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em
sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações
legais de lesão aos direitos de liberdade (...)” 156.
A positivação desses direitos como tais, portanto, representa, na verdade,
a organização de sua proteção jurídica, cuja necessidade é reconhecida não como
forma de criação de direitos, mas como técnica impeditiva do não raro abuso no
exercício do poder, a exemplo do que ocorreu neste caso.
Foi nesse passo, em contexto histórico que reclamava essa verdadeira
declaração de direitos – friseBse, não a sua mera definição –, que a Constituição
da República elencou taxativamente as hipóteses em que é possível o ingresso
em casa alheia, no inciso XI do artigo 5.º:

a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem


consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou
para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial

Aqui é preciso reconhecer que se trata – a vida privada, a intimidade (artigo


5.º, inciso X, da Constituição da República) e a inviolabilidade de domicílio –
dos chamados direitos fundamentais assegurados, os quais, em contrapartida
aos garantidos, entendemBse “só limitados segundo regras explícitas das
Constituições e, de ordinário, só limitados nos têrmos dos textos constitucionais,
ou ´segundo a lei`”157.
E a porta aberta não está entre as exceções.
É verdade que o flagrante delito está. A “denúncia anônima” a que se
referiram os policiais, contudo, não fazia menção à posse ou ao porte ilegal de
arma de uso permitido, mas exclusivamente a duas pessoas que supostamente

155 Idem, p. 40B42 e BALUTA, José Jairo. O ´Juiz Garantidor` e o Processo como ´Meio Respeitoso` de Garantir
os Direitos Individuais. In: Doutrina. Coord.: TUBENCHLAK, James. N.º 5. Instituto de Direito, 1998,
p. 141B144.
156 Direito e Razão. Trad.: SICA, Ana Paula Zomer; CHOUKR, Fauzi Hassan; TAVARES, Juarez e GOMES,
Luiz Flávio. 2.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 790.
157 MIRANDA, Op. Cit., p. 652.

338
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praticariam diversos roubos com a participação de adolescentes (fls. 25 e 27).


Sequer haveria um roubo em curso!
Por isso, não se legitima a ação policial, neste caso, pelo estado de
flagrância. Para isso seria necessário que, antes, houvesse fundadas razões
que identificassem a residência do corréu como local em que se praticasse(m)
crime(s). Sob outro enfoque, a notícia do flagrante delito deveria ter sido anterior
à violação do domicílio, e não posterior, como ocorreu na prática.
O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no
exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a
fundada suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa
em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha justamente o propósito de
evitar que esse crime se consume.
Se assim não fosse, seria permitido ingressar nas residências alheias, de
forma aleatória, até encontrar substrato fático, consistente em flagrante delito,
capaz de ensejar a formal instauração de procedimento investigatório criminal.
Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assim fizesse e, com
a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade,
“encontrasse” à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado.
Não foi esse, evidentemente, o escopo do constituinte. Pelo contrário, a
norma constitucional que emerge do artigo 5.º, inciso XI, da Constituição da
República visa justamente a coibir essas práticas.
A prévia colheita de indícios que tragam suspeitas do estado de flagrância, a
seu turno, também deve seguir os ditames da legalidade. Aí reside a problemática
concernente à “denúncia anônima”.
De fato, é preciso compreender o limite de sua aceitação – especialmente
neste caso, em que a “denúncia anônima” foi recebida pelos policiais que
efetuaram a prisão “via telefone” (fls. 25 e 27), e não pelos recursos estatais
destinados à repressão da prática de crimes, a exemplo do conhecido “disqueB
denúncia” – como subsídio legítimo para a violação do direito fundamental à
inviolabilidade do domicílio.
Não há como substituir a base fática exigida para a constrição de direitos
fundamentais pela “denúncia anônima”.
É certo que a Constituição da República (artigo 5º, inciso IV) erigiu a livre
manifestação de pensamento à categoria de direito fundamental, vedando,
contudo, o anonimato.
Por conta disso, aquele que exerce a liberdade de pensamento deve assumir
a identidade das posições externadas, haja vista a hipótese de responder por
eventuais danos causados a terceiros. O veto constitucional, portanto, busca

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impedir abusos no exercício da liberdade de manifestação de pensamento, pois,


ao se exigir a identidade de quem se vale desta prerrogativa políticoBjurídica,
essencial à própria configuração do Estado Democrático de Direito, visaBse,
em última análise, a possibilitar que eventuais excessos sejam passíveis de
responsabilização.
Assim é que, na lição de José Frederico Marques158 “a lei penal considera
crime a denunciação caluniosa e a comunicação falsa de crime (Código Penal
artigos 339 e 340), o que implica na exclusão do anonimato na notitia criminis,
uma vez que é corolário dos preceitos legais citados, a perfeita individualização
de quem faz a comunicação de crime, a fim de que possa ser punido no caso de
atuar abusiva e ilicitamente.”
Em que pese o anonimato ter sido repudiado pelo constituinte originário,
a verdade é que, em virtude da necessidade de se coibir a prática de infrações
penais, os Tribunais Superiores vem admitindo, com reservas, a instauração da
persecução penal com base na denominada “denúncia anônima”.
Neste sentido, o Ministro Celso de Mello, julgando o Inquérito nº 1957/PR,
em 11 de maio de 2005 destacou que:

Nada impede contudo que o Poder Público provocado por delação anônima
(‘disque/denúncia’, p.ex) adote medidas informais destinadas a apurar,
previamente, em averiguação sumária, ‘com prudência e descrição’, a
possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça
com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados,
em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da
‘persecutio criminis’, mantendo/se, assim, completa desvinculação desse
procedimento estatal em relação às peças apócrifas.

Ocorre que, ainda que tolerável a “denúncia anônima” para a prática de


atos iniciais de investigação pela autoridade policial, não deve ser admitida para
embasar medidas limitadoras de direitos fundamentais.
Isso porque a “denúncia anônima”, isoladamente, não tem o condão de
fornecer o lastro mínimo probatório aos mencionados expedientes.
No julgamento do habeas corpus n.º 84827, da relatoria do Ministro Marco
Aurélio, em 07 de agosto de 2007, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a
questão da denúncia anônima, em face do artigo 5º, inciso IV, da Constituição
da República, decidiu que “não serve à persecução criminal notícia de prática

158 Elementos de Direito Processual Penal, Volume 1, Editora Bookseller, p. 135.

340
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criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional


do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade,
nos campos cível e penal, de quem a implemente”.
A delação anônima, notadamente quando veicula supostas práticas
delituosas, faz surgir situações de tensão entre valores essenciais igualmente
protegidos pelo ordenamento constitucional, como se dá entre o direito à
intimidade e privacidade e o direito à segurança.
Neste particular, reconhecendo a existência de conflitos entre interesses
constitucionalmente protegidos na fase da persecução penal, Fauzi Hassan
Choukr159 dispõe que “nesse ponto é necessário evidenciar que a investigação
criminal encerra, talvez, o dilema fundamental do processo penal, que é o
equacionamento e balanceamento dos valores da segurança e liberdade.”
Diante do mencionado antagonismo, impõeBse como solução a invocação
à supremacia da dignidade da pessoa humana em detrimento da tutela do
interesse de prevenção e repressão do crime.
No mesmo sentido, Klaus Tiedmann160 destaca que:

(...) assim sendo, uma vez que a verdade não pode ser investigada a qualquer
preço, mas somente mediante preservação da dignidade da pessoa humana e
dos direitos fundamentais do acusado, fica evidente mais uma vez a estreita
ligação do Direito Processual Penal e o Direito Constitucional.

A ordem constitucional, ao vedar o anonimato, visa preservar direitos


da personalidade como a honra, a vida privada, a intimidade, a propriedade.
A prática conhecida como “denúncia anônima” – notitia criminis feita por
qualquer do povo sem identificação – por potencialmente expressar abusos,
não pode servir para fundamentar direta e imediatamente qualquer ato formal
seja do inquérito seja do processo. Menos ainda de expediente desprovido das
formalidades essenciais à investigação criminal e ao processo penal.
A “denúncia anônima” como elemento apto a embasar a restrição a
direitos e garantias fundamentais, bem como deflagrar a ação penal, deve ser
veementemente combatida já no seu nascimento, uma vez que seria temerário
submeter o cidadão a uma reprimenda em decorrência de informações advindas
não se sabe de quem ou de onde.

159 Garantias Constitucionais na Investigação Criminal, 3ª edição, Ed. Lumen Juris, p.08.
160 Claus Roxin, Gunter Arzt, Kalus Tieddermann, Introdução ao Direito Penal e Direito Processual Penal,
Ed. Del Rey, p. 154.

341
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DeveBse destacar que o ingresso à casa de XXXX deuBse com base


exclusivamente em “denúncia anônima” feita aos policiais que a ele procederam,
não existindo, na ocasião, qualquer outro elemento indicador da materialidade e
autoria das infrações penais imputadas aos acusados.
Portanto, o nosso ordenamento jurídico “tolera” a utilização da denúncia
anônima para inaugurar a investigação criminal, ante à necessidade da
colaboração dos cidadãos na perseguição e na apuração dos crimes.
Todavia, quando a referida delação anônima é utilizada para fundamentar
medidas limitadoras de direitos fundamentais, indagaBse acerca da validade da
medida realizada, bem como a validade das provas dela oriundas.
Considerando, pois, que os policiais entraram na casa de XXXX sem seu
consentimento ou de sua esposa, com base exclusivamente em “denúncia
anônima”, a qual não fez menção a flagrante delito algum, porque encontraram
a porta aberta, é manifesta a ilegalidade da prisão do corréu e da apreensão da
arma e, portanto, de todos os atos que a ela se seguiram.
Com efeito, a prova obtida por meios ilícitos, mesmo antes das recentes
modificações trazidas ao Código de Processo Penal, não haveria de estar presente
em autos de processo, na medida em que a Constituição da República a repudiou
em seu artigo 5.º, inciso LVI: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas
por meios ilícitos”.
TrataBse de garantia que integra o devido princípio do devido processo legal,
o qual se define, no aspecto formal, pela apuração da prática de uma infração
penal e de sua autoria na forma legalmente prescrita, conforme destacado pelo
Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello:

A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder


perante a qual se instaure, para revestir/se de legitimidade, não pode
apoiar/se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa
à garantia constitucional do “due processo of law”, que tem, no dogma
da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas
projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo.161

Ada Pellegrini Grinover162, no mesmo sentido, afirma que o direito à prova


está limitado, na medida em que constitui as garantias do contraditório e da

161 RHC 90376B2/RJ. Segunda Turma. Julgamento: 03/04/2007.


162 As Nulidades no Processo Penal. 9.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 145B146.

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ampla defesa, de sorte que o seu exercício não pode ultrapassar os limites da lei
e, sobretudo, da Constituição.

O campo das proibições de prova relacionadas à tutela de valores estranhos


à economia interna do processo é vastíssimo, revelando que o objetivo de
apuração da verdade processual deve conviver com os demais interesses
dignos de proteção pela ordem jurídica.163

Por isso, a Lei 11.690/08 veio a corroborar, de forma expressa, o mandamento


constitucional que determina o desentranhamento das provas obtidas por meios
ilícitos, ao atribuir ao artigo 157 do Código de Processo Penal a seguinte redação:

São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas


ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais
ou legais.

A desaparecer do processo, portanto, a arma, já que apreendida no contexto


da indevida violação do domicílio de XXXX, desaparece também a materialidade
delitiva.
Mas não é só: se a apreensão da arma foi ilegal, estão contaminados os
depoimentos do corréu e de sua esposa, que decorreram exclusivamente da
prova obtida por meio ilícito e, mesmo assim, acabaram por servir de lastro
para o oferecimento da denúncia em face do paciente e para a decretação de sua
prisão preventiva.
TrataBse de provas ilícitas por derivação, que, embora obtidas em
conformidade com a lei, estão contaminadas pela ilicitude do meio por que
obtida a prova originária, da qual decorreram de forma exclusiva.
Nesse sentido Aury Lopes Junior destacou:

Entendemos que o vício se transmite a todos os elementos probatórios obtidos


a partir do ato maculado, literalmente contaminando/os com a mesma
intensidade. Dessa forma, devem ser desentranhados o ato originariamente
viciado e todos os que dele derivem ou decorram, pois igualmente ilícita a
prova que deles se obteve.164

163 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. Revista dos Tribunais, 1997, p. 98.
164 Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2007, p. 369.

343
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Nesse contexto, excluída do processo a apreensão da arma e,


consequentemente, os depoimentos do corréu e de XXXX, não resta indício
algum de materialidade e autoria delitiva, condição essencial à propositura da
ação penal, nos termos da nova redação do artigo 395, inciso III, do Código de
Processo Penal, razão por que se impõe a extinção do processo sem apreciação
do mérito, por falta de justa causa.
Posto isto, voto no sentido de conceder a ordem, além dos limites postulados
na inicial, para relaxar a prisão preventiva do paciente e determinar a extinção
do processo sem julgamento do mérito, estendendoBa ao corréu.

Rio de Janeiro, 19 de março de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

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Desaforamento e o juiz natural

5ª CÂMARA CRIMINAL
Desaforamento nº 2008.057.00008
Requerente: JUÍZO DE DIREITO DA VARA ÚNICA DE MIGUEL PEREIRA
Requerido: XXXX
Juízo de Origem: VARA ÚNICA DA COMARCA DE MIGUEL PEREIRA

EMENTA: DIREITO PENAL. JÚRI. DESAFORAMENTO.


QUESTÃO DE RELEVÂNCIA SOCIAL. IMPARCIALIDADE
DO JÚRI QUE DEVE SER PRESERVADA. ELEMENTOS
QUE INSTRUEM O PROCESSO QUE COMPROVAM A
NECESSIDADE DA MODIFICAÇÃO DE COMPETÊNCIA PARA
O JULGAMENTO DO CASO. O requerido responde pela prática
de crime de homicídio consumado e dois crimes de lesão corporal,
sendo certo que os crimes teriam ocorrido na comarca de Miguel
Pereira. O juízo manifestouBse no sentido de desaforar o julgamento
pelo Tribunal do Júri para a Comarca da Capital. Fundamenta sua
representação no fato de o episódio ter causado enorme comoção
social e o acusado integrar a família “YYYY”, a que se atribui a
prática de vários crimes de homicídio na região que engloba as
cidades de Barra Mansa, Volta Redonda, Barra do Piraí, Vassouras,
Paty do Alferes, Mendes, Paraíba do Sul e Três Rios, além da comarca
em que tramita o processo – Miguel Pereira. Assim, justifica que
a medida preservará a isenção do julgamento e a segurança dos
jurados “em face de eficientes indícios que motivam a formação
de convicção de uma futura presença de clima de intranqüilidade
a ponto de impedir a manifestação dos jurados”, tendo em vista
que o réu e toda a sua família são pessoas muito temidas naquela
região. Desaforamento que está fundado no propósito de assegurar
a isenção dos jurados e conferir efetividade ao princípio do juiz
natural. Argumentos respaldados pelos documentos que instruem
o processo. De fato há indícios suficientes a demonstrar o risco
concreto de não preservação da imparcialidade do Conselho de

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Sentença na hipótese de manutenção do julgamento em Miguel


Pereira.
PEDIDO ACOLHIDO.

ACÓRDÃO

VISTOS, relatados e discutidos estes autos do DESAFORAMENTO nº


2008.057.00008 em que é requerente o JUÍZO DA VARA ÚNICA DE MIGUEL
PEREIRA e requerido XXXX.
ACORDAM os Desembargadores que compõem a Quinta Câmara Criminal,
por unanimidade de votos, em sessão realizada no dia 25 de novembro de 2009,
em acolher o pedido de desaforamento para que o Júri seja realizado na Comarca
da Capital, na forma do voto do Relator.
Presidiu a sessão o Desembargador Nildson Araújo da Cruz, que também
participou do julgamento como vogal juntamente com o Desembargador Cairo
Ítalo França David.

Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


Relator

RELATÓRIO

O JUÍZO DA VARA ÚNICA DA COMARCA DE MIGUEL PEREIRA


representou a este Tribunal requerendo o desaforamento do julgamento
referente ao processo autuado sob o nº 2002.033.000616B6, em que o Ministério
Público denunciou o réu XXXX pela prática da conduta definida no artigo 121,
§2º, incisos II e IV, do Código Penal.
Atua como assistente de acusação YYYY.
Narra a denúncia que no dia 17 de novembro de 2002, por volta das 03:30h,
no local denominado Pavilhão da Fenart, Centro, em Miguel Pereira, XXXX
efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima ZZZZ, atingindoBo e causandoB
lhe lesões, conforme descrito no auto de exame cadavérico juntado às fls. 31/2,
as quais foram a causa única e eficiente de sua morte. O crime foi cometido
por motivo fútil, eis que o denunciado, por capricho em não permitir que sua
exBnamorada EEEE namorasse outros rapazes, perpetrou o delito em tela, logo
após avistáBla juntamente com a vítima ZZZZ. O crime foi praticado mediante

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recurso que dificultou a defesa da vítima, pois o denunciado, após ter desferido
um soco no rosto de ZZZZ, chegando a dar uns passos para trás, retornou e de
surpresa efetuou os disparos de arma de fogo contra a vítima.
Além disso, ainda segundo a inicial acusatória, em seguida a este episódio,
o réu teria praticado tentativa de homicídio contra as vítimas FFFF e EEEE,
sendo certo que estes não se consumaram por circunstâncias alheias à vontade
do réu e teriam sido praticados para assegurar a impunidade do primeiro crime,
cuja vítima foi ZZZZ.
A prisão temporária foi decretada em 19 de novembro de 2002 (fls. 26/7)
e a prisão preventiva foi decretada em 28 de novembro de 2002 (fls. 62/4). O
mandado de prisão foi cumprido em 26 de novembro de 2003 (fl.450), sendo
certo que o réu foi encontrado na Fazenda GGGG, em Carangola – Minas Gerais.
Decisão de pronúncia às fls. 755/761, pela qual o réu foi pronunciado pela
prática das condutas definidas nos artigos 121, §2º, incisos II e IV (por uma vez)
e artigo 121, §2º, inciso V, na forma do artigo 14, inciso II (por duas vezes), todos
do Código Penal.
Irresignada, a Defesa interpôs recurso em sentido estrito (razões às
fls. 796/812), tendo o Ministério Público apresentado suas contraBrazões às
fls. 814/820. ContraBrazões do assistente de acusação às fls. 834/8. Parecer do
Ministério Público às fls. 840/7.
Em julgamento realizado em 23 de agosto de 2005 (fls. 866/7) deuBse parcial
provimento ao recurso para desclassificar a imputação de prática dos crimes de
homicídio em sua modalidade tentada para crimes de lesão corporal de natureza leve.
O acusado interpôs Recursos Especial e Extraordinário em 28 de outubro
de 2005 (fls. 896/940 e 944/1000). O Ministério Público se manifestou por meio
do parecer acostado às fls. 1005/1011 e 1012/1019, no sentido de inadmissão dos
recursos e, no mérito, que não seja dado provimento aos recursos.
Por meio da decisão proferida em 28 de março de 2006, este Tribunal deixou
de admitir os recursos especial e extraordinário (fls. 1067/1072), o que gerou a
interposição de agravo de instrumento perante o Superior Tribunal de Justiça e
o Supremo Tribunal Federal.
A certidão acostada à fl. 1268 informa que em 06 de junho de 2007 foi negado
provimento ao agravo de instrumento e, sucessivamente, em 28 de junho de
2007 foi negado provimento ao agravo regimental interposto perante o Superior
Tribunal de Justiça.
O acusado interpôs, ainda, agravo de instrumento perante o Supremo
Tribunal Federal em 08 de outubro de 2007, ao qual foi negado seguimento em
05 de dezembro de 2007 (certidão de fl. 1444). Após, a Defesa interpôs agravo

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regimental impugnando esta decisão em 19 de dezembro do mesmo ano, ao qual


foi negado provimento em 05 de maio de 2009, por maioria de votos, decisão
esta que transitou em julgado em 10 de agosto de 2009, conforme informação
expedida pelo Supremo Tribunal Federal (fls. 1597/1601).
O juízo de origem representou pelo desaforamento em 25 de fevereiro de
2008 (fls. 1458/1463), pelo que requer que o julgamento seja realizado perante
um dos Tribunais do Júri da Capital. O juízo fundamenta sua representação no
fato de o crime ter causado enorme comoção social e o acusado integrar a família
“YYYY”, que é acusada da prática de vários crimes de homicídio na região que
engloba as cidades de Barra Mansa, Volta Redonda, Barra do Piraí, Vassouras,
Paty do Alferes, Mendes, Paraíba do Sul e Três Rios, além da comarca em que
tramita o processo – Miguel Pereira. Assim, justifica seu pedido no fato de o
desaforamento preservar a isenção do julgamento e a segurança dos jurados
“em face de eficientes indícios que motivam a formação de convicção de uma
futura presença de clima de intranqüilidade a ponto de impedir a manifestação
dos jurados”, tendo em vista que o réu é pessoa muito temida naquela região,
assim como toda sua família.
A Defesa se manifestou em 10 de março de 2008, no sentido de que a
decisão de pronúncia não está preclusa e por isso não há possibilidade de haver
desaforamento. Além disso, alega que os argumentos do juízo estão dissociados
de elementos concretos que os justifiquem, sendo certo que nenhum jurado
declarou ter sido ameaçado (fls. 1466/7 e 1468/1470).
Ainda, às fls. 1468/1470, a Defesa se manifesta no sentido de o acusado
ser transferido para uma das carceragens da Polinter por se tratar de preso
provisório.
Entretanto, em 17 de março de 2008, o juízo entendeu por indeferir o pedido
por se tratar de questão atinente à Administração Pública (fl. 1483).
O Ministério Público se manifestou em 20 de maio de 2008, por meio
de parecer acostado às fls. 1494/8, no sentido de acolhimento do pedido de
desaforamento.
Manifestação do assistente de acusação e do réu, que ora se anexa aos autos.
Decisão à fl. 1521 determinando a suspensão do processo até que seja
realizado o julgamento do agravo regimental interposto pela Defesa perante o
Supremo Tribunal Federal e, assim, ocorra a preclusão da decisão de pronúncia.
Informação do Supremo Tribunal Federal acerca da realização do julgamento
do referido agravo regimental, ao qual foi negado provimento por maioria de votos,
com o trânsito em julgado da decisão em 10 de agosto de 2009 (fls. 1597/1601).
É o relatório.

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VOTO
O pedido merece ser acolhido.

1. Inicialmente, teço algumas considerações a respeito do princípio do juiz


natural, que constitui o fundamento central da questão ora discutida.
No âmbito do princípio do juiz natural chocamBse interpretações restritivas
do alcance da regra prevista no inciso LIII, do artigo 5o, da Constituição da
República, contra visões que buscam ampliar a área de incidência e regulação
da mencionada disposição. De um lado, há os que conferem à competência
instituída originalmente na própria Constituição estatura jurídica superior
àquela fixada de acordo com regras de direito ordinário, muito embora o citado
texto constitucional não faça ressalvas. Há também significativo grupo de
intérpretes e operadores jurídicos que recusam qualquer espécie de vínculo entre
o princípio do juiz natural e demandas teóricas de positivação da identidade
física do juiz, no processo penal, como se fosse possível, nas palavras de Alberto
Binder, entregar os julgamentos criminais a órgãos abstratos e não a pessoas no
exercício de funções públicas.
De todo modo, é certo que a ideia reitora do princípio do juiz natural –
garantia das partes e condição de eficácia plena da jurisdição – consiste na
combinação de exigência da prévia determinação das regras do jogo (reserva
legal peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do juiz, tomada
a expressão no sentido de estarem seguras as partes quanto ao fato de o juiz
não ter aderido a priori a uma das alternativas de explicação que as partes
reciprocamente contrapõem durante o processo.
Com efeito, o juiz que antecipadamente está em condições de ajuizar a
solução para a demanda que em alguns casos sequer foi objeto de pretensão do
interessado, na prática torna dispensável o processo, pois tem definida a questão
independentemente das atividades probatórias das partes, comportamentos
processuais que devem ser realizados publicamente e em contraditório (artigo
5o, inciso LV, da Constituição da República).
Ocorre que o devido processo legal só constitui, de fato, mecanismo
civilizado de resolução de demandas se o resultado não puder ser determinado
antecipadamente, isto é, só há processo penal real se, no início do procedimento,
ambas as teses – de acusação e de resistência – puderem ser apresentadas em
condições de convencer o juiz (O[o Kirchheimer165). É claro que, nestes termos,

165 KIRCHHEIMER, O[o. Justicia Política, México, Unión Tipográfica Editorial Hispano Americana,
1968.

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o juiz não estará em condições de julgar e, portanto, deverá ser excluído e


substituído, se não oferecer às partes suficiente credibilidade quanto à sua
imparcialidade.
2. A rigor, o legislador ordinário cuidou da imparcialidade do juiz de duas
formas: traçou os casos de impedimento (artigo 252 do Código de Processo Penal),
visando excluir o juiz que pudesse ter interesse no resultado da causa; sublinhou as
hipóteses de suspeição (artigo 254 do mesmo diploma), para permitir a substituição
do juiz interessado nas partes. De modo geral, as questões que envolvem o primeiro
conjunto – causas de impedimento – são impessoais, mas guardam, em alguma
medida, certo vínculo direto com a pessoa do magistrado, enquanto as causas de
suspeição são dotadas de caráter predominantemente pessoal.
É preciso destacar, no entanto, que em ambas as hipóteses a filosofia
que presidiu a edição das regras dos artigos 252 e 254 do Código de Processo
Penal cuidou de restringir ao máximo os casos de recusa do juiz. É até natural,
exatamente por que em conformidade com o pensamento autoritário sob cuja
égide o Código veio a lume. À época, a função punitiva do magistrado se
superava àquela que as constituições lhe impunham juridicamente, tal seja, a de
apreciar e resolver de forma isenta a questão levada a juízo.
3. Os tempos hoje são outros. O exercício da jurisdição, em um Estado
Constitucional Democrático, está, tanto quanto o exercício de qualquer outro
poder no âmbito deste Estado, condicionado a regras de impessoalidade.
Não basta somente assegurar a aparência de isenção dos juízes que julgam as
causas penais. Mais do que isso, é necessário garantir que, independentemente
da integridade pessoal e intelectual do magistrado, sua apreciação não esteja em
concreto comprometida em virtude de algum juízo apriorístico. Esta é a tendência
que se manifesta no movimento de reforma do Código de Processo Penal, em
harmonia com o direito de outros países sujeitos ao mesmo tipo de influência.
Talvez se trate, aqui, de uma compreensão invertida da máxima pela qual à mulher
de César não basta ser honesta. No caso, ao juiz não é suficiente parecer honesto;
terá de sêBlo verdadeiramente, inclusive do ponto de vista intelectual.
Exemplo claro de causa de impedimento, derivada da nova ordem de coisas
extraídas da Constituição da República, reside na impossibilidade de o juiz que
tenha requisitado a instauração de inquérito policial vir a processar e julgar
acusado em processo penal iniciado em razão desta investigação. ObserveBse
que no exemplo o juiz poderá se sentir habilitado a apreciar com isenção às
teses que eventualmente a Defesa venha a apresentar. Todavia, não poderá o
réu confiar em um juiz que, independentemente de qualquer causa penal, já
se manifestou a princípio pela existência de uma infração penal, ainda que

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ao nível de um juízo sumário, provisório e superficial. Haverá de fato, nestas


circunstâncias, inversão do ônus da prova, com o réu se sentindo impelido
a demonstrar que o juiz inicialmente não tinha razão. A confiabilidade das
partes na isenção do juiz emerge como condição de validade jurídica dos atos
jurisdicionais. Ausente tal requisito estaremos diante de atos absolutamente nulos.
Esta foi a conclusão do e. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do RHC 4.769
– PR – 6a Turma (j. 07.11.95 – RT 733/530), rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro,
malgrado o e. Supremo Tribunal Federal não tenha se sensibilizado totalmente com
a tese (HABEAS CORPUS n. 68.784, 1a Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 26.3.93,
p. 5.003).
Por isso, é necessário propor nova interpretação ao artigo 252 do Código de
Processo Penal, para, à luz do artigo 5o, inciso LIII, da Constituição da República,
admitir entre as causas de impedimento o fato de o juiz ter requisitado a
instauração da investigação criminal166.
4. Esta dogmática persiste, da mesma forma e na mesma proporção, no caso
do procedimento do Júri.
Assim é que os jurados que integram o Conselho de Sentença são impedidos
de participar do julgamento em caso de parcialidade.
Isso porque, mesmo que se trate de julgamento realizado por cidadãos
leigos, certo é que a imparcialidade deve ser preservada e este é o raciocínio
empregado no artigo 449 do Código de Processo Penal.
O artigo 70 do Código de Processo Penal prevê a regra geral para a fixação
de competência, segundo a qual a comarca competente para o julgamento do
processo será aquela onde se consumou a infração.
No caso em questão, em tese o crime se consumou no território da comarca
da Miguel Pereira, como se vê na descrição do fato na própria denúncia,
confirmado durante a produção de prova oral durante a primeira fase do
procedimento do júri (fls. 421; 429/436).
O artigo 427 do mesmo diploma legal, entretanto, prevê a exceção a esta
regra por meio do desaforamento nos processos de competência do Tribunal do
Júri para preservar a imparcialidade dos jurados e a segurança pessoal do réu ou
quando constituir interesse da ordem pública.
5. Os motivos legais que determinam o desaforamento devem ser
comprovados e, por meio da análise do presente caso concreto, não há dúvida
quanto à necessidade de se aplicar a regra excepcional de deslocamento da
competência para o julgamento da questão.

166 Artigo 20 do Projeto de Lei do Senado nº 150.

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Isso porque o homicídio, cuja autoria se atribui ao acusado – ora requerido


– causou comoção social, principalmente por se tratar de uma pequena cidade
do interior, com aproximadamente vinte mil habitantes, e o acusado, por outro
lado, fazer parte de uma família acusada da prática de vários crimes de homicídio
na região, além da própria cidade de Miguel Pereira, as cidades de Barra Mansa,
Volta Redonda, Barra do Piraí, Vassouras, Paty do Alferes, Mendes, Paraíba do
Sul e Três Rios.
Esses elementos são retratados nos documentos que instruem o processo,
principalmente aqueles acostados às fls. 231/416 e 469/559, que se referem a
dossiês formulados a respeito do histórico de violência da família a que pertence
o acusado.
Além disso, o então deputado estadual e presidente da Comissão Estadual
para averiguar o Cumprimento das Leis e membro Titular da Comissão de
Segurança Pública e assuntos da Polícia da ALERJ, atual Ministro de Estado,
Carlos Minc, também opinou pelo desaforamento à fl. 468, sustentando que
as testemunhas estariam amedrontadas de comparecer ao julgamento em
decorrência de temerem por represálias, tudo em função da forte influência
exercida pela família do acusado na região.
6. A questão que norteia o processo é complexa e a imparcialidade dos
jurados deverá ser resguardada para que seja garantido um julgamento justo ao
próprio acusado e às partes, em conformidade com o devido processo legal – do
qual faz parte o juiz natural – que constitui garantia individual sediada no inciso
LIV do artigo 5º da Constituição da República.
PreservaBse, assim, não apenas aqueles que estão diretamente vinculados
ao processo, mas toda a sociedade, que é, ao mesmo tempo, o alicerce e a
destinatária de toda a função jurisdicional.
Nesse contexto vale citar lição de Guilherme de Souza Nucci:

“É questão delicada esse requisito, pois as provas normalmente são frágeis


para apontar a parcialidade dos juízes leigos. Entretanto, é, dentre todos
os motivos, em nosso entender, o principal, pois compromete, diretamente,
o princípio constitucional do juiz natural. Não há possibilidade de haver
um julgamento justo com um corpo de jurados parcial. Tal situação pode
dar/se quando a cidade for muito pequena e o crime tenha sido gravíssimo,
levando à comoção geral, de modo que o caso vem sendo discutido em todos
os setores da sociedade muito antes do julgamento ocorrer. Dificilmente,
nessa hipótese, haveria um Conselho de Sentença imparcial, seja para

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condenar, seja para absolver, visto que a tendência a uma postura ou outra
já estará consolidada há muito tempo.” 167

Considerando todo o contexto social da região onde supostamente ocorreu


o crime em tela, verificaBse que se trata de uma situação excepcional qualificada.
Assim é que, para que sejam preservados todos os direitos e garantias
constitucionais, não seria suficiente que o julgamento se deslocasse para uma
das comarcas contíguas, como está previsto no artigo 427 do Código de Processo
Penal.
É preciso que o julgamento seja realizado na comarca da Capital, onde não
persistirão os motivos que deram origem ao desaforamento, eis que o receio pela
família “YYYY” está presente em toda a região sulBfluminense.
Desse modo, não há dúvida de que está presente a situação excepcional
consistente no risco de julgamento imparcial pelo Conselho de Sentença e,
por isso, se trata de extrema relevância social, à qual corresponde a adoção de
medida extrema.
Nesse sentido leciona FAUZI HASSAN CHOUKR:

“Afastam/se assim deste contexto as meras conjecturas, devendo haver


prova inequívoca da situação geradora da imparcialidade”. 168

E exemplifica:

“Sendo o desaforamento medida excepcional recepcionada no Código de


Processo Penal, implicando o deslocamento da competência territorial dos
julgadores naturais, nos casos de júri, somente pode e deve ser concedido em
casos especialíssimos, desde que se faça clara, manifesta, visível e patente
situação que possa comprometer um julgamento imparcial, máxime se essa
circunstância é referendada ou denunciada pelo magistrado que preside o
feito”. (Desaforamento – Classe I – 5 – nº 52/97, de Mirassol D’Oeste).

A jurisprudência deste Tribunal de Justiça reflete o raciocínio acima


explicitado, in verbis:

167 Guilherme de Souza Nucci em Código de Processo Penal Comentado. 9ª edição revista, atualizada e
ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 774.
168 Fauzi Hassan Choukr em Júri: Reformas, Continuísmos e Perspectivas Práticas. Editora Lumen Juris.
Rio de Janeiro, 2009. p. 64.

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EMENTA. TRIBUNAL DO JÚRI. DESAFORAMENTO. TEMOR


QUANTO À IMPARCIALIDADE DO CORPO DE JURADOS
MOTIVADO PELA INFLUÊNCIA DO RÉU NO DISTRITO DA
CULPA. O juízo natural do processo por crimes dolosos contra a vida
é o Tribunal do Júri e sua competência, de regra, é fixada segundo o
local em que se consumou o delito. Todavia, o ordenamento processual
admite a realização do júri popular em Comarca diversa do distrito
da culpa, consoante o que dispõe o art. 427 do CPP. O Ministério
Público requereu o desaforamento ao argumento de que o julgamento
popular corre sério risco de ser realizado sem a necessária isenção
dos jurados, porque o Requerido é policial militar, pessoa influente
na pequena comunidade de Silva Jardim, conhecido de diversos
políticos, bem como seus parentes, tendo inclusive seu sogro apoiado
a candidatura do atual Prefeito, sendo seu Secretário de Transportes.
O douto Juiz a quo ratificou o que foi destacado pelo órgão ministerial
na peça de interposição, confirmando o risco quanto à imparcialidade
do Júri, sendo evidente que tal manifestação do Magistrado deve ser
considerada, eis que diretamente em contato com a sociedade local,
possuindo maiores condições de avaliar a necessidade de ser adotada
a medida extrema requerida. Consta que já existe campanha na cidade
para a absolvição do Requerido. Os fatos relatados pelo Ministério
Público de 1º Grau trazem indícios sérios e gravíssimos, evidenciando
a suspeita de parcialidade do julgamento, posto que o veredito dos
jurados não se daria com a imparcialidade legalmente exigida, o
que torna necessário o desaforamento para a Comarca de Niterói,
na forma do art. 427 do Código de Processo Penal. Desaforamento
acolhido para determinar o julgamento pelo Tribunal do Júri de
Niterói. (2009.057.00009 B DESAFORAMENTO DE JULGAMENTO
B 1ª Ementa. DES. LEONY MARIA GRIVET PINHO B Julgamento:
13/08/2009 B QUINTA CÂMARA CRIMINAL)

Tendo em vista a configuração dos pressupostos que autorizam a aplicação


da medida excepcional, voto no sentido de acolher o pedido de desaforamento,
indicando a Comarca da Capital para a realização do Júri.
Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

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Incriminação de vendedores ambulantes


e o devido processo legal

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL: 2008.050.00580
APELANTE: XXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO DE ORIGEM: 36.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DA CAPITAL
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigo 184, § 2.º, do Código Penal

EMENTA: APELAÇÃO. APELANTE CONDENADO PELA


PRÁTICA DO CRIME DEFINIDO NO ARTIO 184, § 2.º, DO
CÓDIGO PENAL. AUTO DE APREENSÃO E LAUDO DE EXAME
EM MATERIAL QUE NÃO IDENTIFICAM OS TÍTULOS DAS
OBRAS SUPOSTAMENTE CONTRAFEITAS. DÚVIDA SOBRE
A MATERIALIDADE DO CRIME, JÁ QUE IMPOSSÍVEL AFERIR
A AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DA REPRODUÇÃO PELOS
TITULARES DOS DIREITOS AUTORAIS, QUE CONDICIONA
A TIPICIDADE DO FATO. Apelante condenado pela prática
do crime definido no artigo 184, § 2.º, do Código Penal porque
supostamente expunha à venda 87 CDBRs com reprodução ilegal
de jogos, músicas, filmes e programas de computador. Auto de
Apreensão e Laudo de Exame em Material genéricos. Bem jurídico
tutelado – propriedade imaterial – que exige o fiel cumprimento da
determinação do artigo 530BC do Código de Processo Penal, sem o
que instauraBse dúvida a respeito da materialidade do crime. Isso
porque, anônimos os titulares dos direitos autorais, é impossível
aferir se houve ou não autorização de sua parte para a reprodução
de suas obras – análise que condiciona a tipicidade do fato – ou
até mesmo se as obras contrafeitas já caíram no domínio público.
Absolvição que se impõe, na forma do artigo 386, inciso II, do
Código de Processo Penal.
RECURSO PROVIDO.

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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Criminal nº


2008.050.00580, em que é apelante XXXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que integram a
Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
em sessão de julgamento realizada no dia 19 de novembro de 2009, em dar
provimento ao recurso para absolver o apelante, na forma do artigo 386, inciso
II, do Código de Processo Penal.
O julgamento foi presidido pelo Desembargador Sérgio de Souza Verani
e participaram os Desembargadores Cairo Ítalo França David, como revisor, e
Nildson Araújo da Cruz, como vogal.

Rio de Janeiro, 19 de novembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

VOTO

TrataBse de recurso de apelação interposto por XXXX contra sentença que


o condenou pela prática do crime definido no artigo 184, § 2.º, do Código Penal,
absolvendoBo da imputação do delito definido no artigo 180, § 1.º, do Código
Penal.
Embora o recurso seja parcial, destinado a impugnar exclusivamente a má
personalidade do acusado como fundamento para a aplicação da penaBbase acima
do mínimo legal e requerer a substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos, cabe salientar que é incontroverso que o acusado, no dia 06 de
outubro de 2003, na Avenida Presidente Vargas, expunha à venda 87 CDBRs.
O que não se pode afirmar com certeza é que esse fato constitui crime.
Assim é, em primeiro lugar, porque o bem jurídico tutelado pela norma
incriminadora em questão é a propriedade imaterial, o que determina, como
entre os delitos contra o patrimônio (artigos 155 e seguintes do Código Penal), a
identificação daquele que foi lesado pela conduta criminosa.
Não obstante, o auto de apreensão de fl. 05 descreveu genericamente os bens
apreendidos, nos seguintes termos: “87 CD´s entre programas de computador,
jogos, filmes e música”.
O laudo de fls. 09/10 incorreu no mesmo erro:

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Identifica/se o material encaminhado à exame como oitenta e sete unidades


discos compactos graváveis (CD/R), apresentando nomes de jogos,
filmes, músicas e programas de computador diversos com inscrições em
manuscritos ou carimbos na superfície oposta do disco, embalados em
envelopes plásticos ostentando capas coloridas, impressas por processo
diferente do originalmente utilizado.

A postura dos peritos subscritores, em não identificar qualquer dos títulos


supostamente contrafeitos, afronta o disposto no artigo 530BC do Código
de Processo Penal, que determina a descriminação dos objetos examinados,
e, portanto, coloca em dúvida a materialidade do crime, já que anônimos os
próprios titulares dos direitos autorais em tese violados.
Esta Câmara Criminal já teve a oportunidade de se manifestar nesse sentido,
sob a relatoria da e. Desembargadora Maria Helena Salcedo Magalhães:

Apelação Criminal. Crime contra a propriedade imaterial. Artigo 184,


§ 2º, do Código Penal. Condenação. Inconformismo defensivo. Pedido
absolutório fundado em erro de proibição, estado de necessidade e atipicidade
da conduta, de acordo com o princípio da bagatela. Inocorrência. Autoria
do crime demonstrada. Inexistência das alegadas excludentes. Laudo de
material em dissonância com o determinado no artigo 530/c do Código de
Ritos, o que torna incerta a materialidade do delito. Impossibilidade de se
reconhecer validamente a prática do crime, diante da não/individualização
dos titulares dos direitos imateriais que se afirmam violados. Solução
absolutória. Provimento do recurso defensivo, para absolver o réu, com
fulcro no artigo 386, II, do Código de Processo Penal.169

É verdade que o acusado declarou “que os CDs eram somente de programas


e jogos, eram comprados de uma pessoa que passava na Avenida Presidente
Vargas; que eram CDs ´piratas`, sem nota fiscal; que comprava os CDs por
R$2,50 e vendiaBos por R$10,00” (fl. 55).
Também não se ignora que tais relatos vieram acompanhados das declarações
da esposa do apelante, que corroborou a atividade por ele desenvolvida (fl. 101),
e pelo depoimento do policial YYYY (fl. 83):

169 Ap. 2008.050.00004. Julgamento: 24/08/2009.

357
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(...) que não se recorda bem como os fatos ocorreram, mas pode dizer que ao
chegar ao local onde se encontrava o acusado o mesmo portava mercadorias
falsificadas pelo que realizou a apreensão (...)

Ainda assim, o cumprimento do artigo 530BC do Código de Processo Penal


era irrenunciável, uma vez que a expressão “sem a expressa autorização dos
titulares do direito ou de quem os represente”, constante do § 2.º do artigo 184
do Código Penal, “constitui elementar típica; havendo autorização, a conduta
será atípica, pela falta desse elemento normativo”170.
E a identificação dessa elementar, evidentemente, depende da identificação
dos titulares dos direitos autorais supostamente violados pelo acusado, sem o
que não é possível saber se houve ou não a autorização.
Cabe destacar, a propósito, que há obras que, já tendo caído no domínio
público, não são tuteladas pela norma incriminadora do artigo 184 do Código
Penal.
Dessa forma, há ao menos dúvida a respeito da tipicidade da conduta do
acusado.
E as incertezas, como se sabe, militam sempre em favor do réu, como
expressão do princípio da presunção de inocência (artigo 5.º, inciso LVII, da
Constituição da República), que determina a distribuição do ônus da prova no
processo Penal.
Diante do exposto, voto no sentido de dar provimento ao recurso
defensivo, estendendo seus limites, para absolver o apelante, na forma do artigo
386, inciso II, do Código de Processo Penal.

Rio de Janeiro, 19 de novembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

170 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. V. 3. 3.ª Ed. Saraiva. São Paulo, 2006, p. 427.

358
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Constituição definitiva do crédito tributário

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL: 2008.050.03607
APELANTE: XXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO DE ORIGEM: 32.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DA CAPITAL
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigo 1.º, V, da Lei 8.137/90

EMENTA: APELAÇÃO. PENAL. CONDENAÇÃO PELO


CRIME DEFINIDO NO ART. 1.º, V, DA LEI 8.137/90. CRIME
MATERIAL. COMPROVADA EMISSÃO DA NOTA FISCAL.
INEXISTÊNCIA DE DOLO. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE.
AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL, SEM A QUAL
NÃO SE VERIFICA A TIPICIDADE CONGLOBANTE
E, PORTANTO, A TIPICIDADE PENAL. ATIPICIDADE
DA CONDUTA. INEXISTÊNCIA DO ESPECIAL FIM DE
AGIR, CONSISTENTE NA SUPRESSÃO OU REDUÇÃO
DO TRIBUTO, QUE REPERCUTE NA ESFERA DA
ANTIJURIDICIDADE. Apelação interposta em face de
sentença que condena o apelante pela prática do crime
definido no art. 1.º, V, da Lei 8.137/90. Emissão da nota fiscal
comprovada pela prova oral e documental produzida durante
a instrução criminal. Ação que, para a configuração do injusto
penal, deve estar orientada a uma finalidade reprovável.
Ausência de dolo. Inexistência, também, de antijuridicidade,
haja vista a ausência do especial fim de agir, consistente na
supressão ou redução do tributo. Princípio da lesividade.
Exigência da efetiva afetação ao bem jurídico, sem a qual não
se caracteriza a tipicidade material e, portanto, a tipicidade
conglobante, que condiciona, a seu turno, a tipicidade penal.
Atipicidade da conduta.
RECURSO PROVIDO.

359
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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Criminal nº


2008.050.03607, em que é apelante XXXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.
ACORDAM, por maioria, os Desembargadores que integram a Quinta
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão
de julgamento realizada no dia 05 de novembro de 2009, em dar provimento ao
recurso, para absolver o apelante, nos termos do voto do Desembargador Relator.
Ficou vencido o e. Desembargador Revisor Cairo Ítalo França David, que
desprovia a apelação.
Presidiu a sessão a Desembargadora Maria Helena Salcedo Magalhães e
participou do julgamento como Vogal a Desembargadora Rosa Helena Guita.

Rio de Janeiro, 05 de novembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

VOTO

XXXX apela de sentença que o condena pela prática do delito definido no


art. 1.º, V, da Lei 8.137/90.
A imputação consiste no fato de o apelante, em tese, no dia 20 de agosto de
2007, por volta das 14:20, na Rua Y, n.º 246, 5.º andar, coberturas 1 e 2, Tijuca, Rio
de Janeiro, ter se negado e deixado de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal
ou documento equivalente, relativo à venda de guitarra efetivamente realizada
no valor de R$ 2.000,00.
Ocorre que o art. 1.º da Lei 8.137 condicionou ao menos a consumação – se
não a prática em si – dos crimes ali definidos à efetiva supressão ou redução de
tributos:

Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou


contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
(...)
V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou
documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de
serviço, efetivamente realizada, ou fornecê/la em desacordo com a legislação
(grifei)

360
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Assim, é assente que se trata de tipo penal que compreende “uma separação
espaçoBtemporal entre ação e resultado”171 e, portanto, que define crimes
materiais.
Diante disso, instaurouBse intensa discussão sobre a necessidade ou não da
constituição definitiva do crédito tributário, nas hipóteses que se subsumem ao
art. 1.º da Lei 8.137/90, para o fim de oferecimento de denúncia.
O E. Supremo Tribunal Federal pacificou a questão, colocando sempre a
declaração de existência crédito tributário como necessária à deflagração da ação
penal. Manteve, todavia, a dúvida sobre sua natureza: se de condição objetiva de
punibilidade ou de elemento normativo do tipo.
À parte dessa discussão, que, por si só, seria capaz de ensejar o provimento
deste recurso, antes mesmo de enfrentáBla é necessária uma reflexão sobre as
provas produzidas durante a instrução criminal e os elementos do crime no
presente caso.
De fato, o próprio acusado admite, em seu interrogatório (fls. 116/9), que
não forneceu a nota fiscal ao cliente ZZZZ, alegando que, no momento da
realização da venda do instrumento, não possuía o talonário de notas fiscais,
cuja entrega estava prevista para dois dias depois. O apelante afirmou também
que, enquanto a nota fiscal não fosse emitida, um recibo de compra supriria o
documento.
Tal versão foi corroborada não só pelo funcionário EEEE (fls. 156/7), mas
pela própria vítima, que afirmou às fls. 151/5:

(...) que antes de se retirar da loja, o depoente pediu uma nota fiscal, mas o
acusado disse que não tinha como dar a nota para o depoente; que diante da
insistência do depoente, o acusado preencheu um recibo feito em papel ofício
digitado no computador; (...) que o policial tentou dissuadir o depoente
de fazer a ocorrência, dizendo que o acusado iria lhe dar a nota fiscal
posteriormente (...)

DeveBse destacar que, realmente, a nota fiscal foi emitida, conforme se


verifica à fl. 177, que aponta data de emissão 9 (nove) dias depois do fato. A
declaração do contrato de compra e venda, portanto, foi manifestada, de modo
que três questões se colocam em pauta.
A primeira delas diz respeito à concepção finalística da ação, que possui
repercussão direta no desvalor da ação e do resultado.

171 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. 2.ª Ed. Lumen Juris. Curitiba, 2007, p. 109.

361
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O delito, portanto, constituído pela conduta do agente, não se verifica


quando ela não está orientada a uma finalidade reprovável, conforme lição de
Juarez Cirino dos Santos:

(...) Na ação humana, a vontade é a energia produtora da ação, enquanto a


consciência do fim é sua direção inteligente: a finalidade dirige a causalidade
para configurar o futuro conforme o plano do autor. (...)
A unidade subjetiva e objetiva da ação humana é o fundamento real da
estrutura subjetiva e objetiva do tipo de injusto. A homogenia entre teoria
da ação e teoria da ação típica (ação concreta adequada a um tipo legal,
portanto, substantivo adjetivado) é um dos méritos do modelo final de
ação. (...)172

É evidente a ausência de dolo neste caso, já que a nota fiscal foi efetivamente
emitida.
No caso vertente isso é ainda mais flagrante porque a condenação encontra
óbice na inexistência do especial fim de agir, exigido para a configuração dos
crimes definido no art. 1.º da Lei 8.137/90:

PENAL. HABEAS CORPUS. DENÚNCIA. ART. 41 DO CPP.


DELITOS SOCIETÁRIOS. EXAME DE PROVA. IMPROPRIEDADE
DO WRIT. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. LEI 8.137/90.
PARCELAMENTO DO DÉBITO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE.
/ Não é inepta a denúncia que descreve fatos que, em tese, apresentam a
feição de crime e oferece condições plenas para o exercício de defesa.
/ Se para o deslinde da questão é necessário o revolvimento da prova
condensada no bojo dos autos, o tema situa/se fora do alcance do habeas/
corpus, que não é instrumento processual próprio para se obter sentença
de absolvição sumária.
/ Em sede de crime contra a ordem tributária, ocorre a extinção da
punibilidade com a concessão do parcelamento da dívida pela Administração
antes do recebimento da denúncia, nos termos do art. 14, da Lei nº 8.137,
de 1990, revigorado pelo art. 34, da Lei nº 9.249, de 1995.
/ Para a caracterização do crime em tela, é necessária a presença do dolo
específico, ou seja, o ânimo de furtar/se ao cumprimento da obrigação
tributária, inexistente na hipótese em que o contribuinte celebra com

172 Idem, p. 86.

362
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a Administração acordo de pagamento parcelado da dívida, resultando


atípica a conduta imputada.
/ Recurso ordinário provido. Habeas/corpus concedido.173

Não atendida tal exigência, segundo Cezar Roberto Bitencourt, não há


crime configurado, embora o autor afirme que ela tem repercussão na esfera da
antijuridicidade, e não na da tipicidade subjetiva.

O especial fim de agir que integra determinadas definições de delitos


condiciona ou fundamenta a ilicitude do fato, constituindo, assim, elemento
subjetivo do tipo de ilícito, de forma autônoma e independente do dolo.174

Uma vez emitida a nota fiscal, portanto, não há porque punir a conduta do
apelante, já que não houve prejuízo ao erário, que constitui justamente o que a
norma incriminadora busca evitar.
A atipicidade da conduta do acusado também se revela na ausência de
ofensividade ao bem jurídico tutelado. Com efeito, condenar o apelante pela
prática de crime contra a ordem tributária sem que ela efetivamente tenha sido
atingida é ignorar o princípio da lesividade, “segundo o qual nenhum direito
pode legitimar uma intervenção punitiva quando não medeie, pelo menos,
um conflito jurídico, entendido como a afetação de um bem jurídico total ou
parcialmente alheio, individual ou coletivo”.175
TrataBse de expressão do princípio da intervenção mínima, que postula a
incidência das normas penais apenas aos casos que tenham efetiva relevância
jurídica e social.
Por esse motivo, a conduta do acusado, para ensejar sua condenação,
deveria ter gerado efetivo prejuízo ao fisco, pois, sem ele, não se configura a
tipicidade penal.
Com efeito, a tipicidade penal não consiste em elemento meramente
formal, de sorte que não se caracteriza a partir da simples subsunção do fato
à norma incriminadora. Assumir essa concepção como verdadeira é incorrer
na equivocada confusão entre tipicidade legal e tipicidade penal – a qual se

173 RHC 11816/MG. Sexta Turma. Rel. Min. Vicente Leal. Julgamento: 26/02/2002.
174 Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 10.ª ed. Saraiva. São Paulo, 2006, p. 341.
175 BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro. Vol. I. 2.ª ed. Revan, 2003, p. 226.

363
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caracteriza não apenas por esse aspecto objetivo (formal), mas também pela
tipicidade conglobante, defendida por Zzaffaroni176.
Por isso, esta última não pode ser ignorada e consiste no que o autor
chamou de antinormatividade – que se revela, em linhas gerais, pela coerência
sistemática da norma proibitiva – somada à tipicidade material, a qual se verifica
exclusivamente se o bem jurídico for relevantemente atingido.

(...) Embora seja certo que o delito é algo mais – ou muito mais – que a lesão
a um bem jurídico, esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade.
É por isto que o bem jurídico desempenha um papel central na teoria do
tipo, dando o verdadeiro sentido teleológico (de telos, fim) à lei penal. Sem o
bem jurídico, não há um para quê? Do tipo e, portanto, não há possibilidade
alguma de interpretação teleológico da lei penal. Sem o bem jurídico, caímos
num formalismo legal, numa pura “jurisprudência de conceitos”.177

Sem efetiva lesão ao bem jurídico tutelado – ou, bastaria dizer, sem afetação
ao bem jurídico, conforme defendido por Nilo Batista178 – não se configura a
tipicidade material e, portanto, o fato é penalmente atípico, pois, ausente a
tipicidade material, também não se vislumbra a tipicidade conglobante, a qual,
a seu turno, condiciona a tipicidade penal.
Na hipótese deste processo, a conduta do acusado não lesionou a ordem
tributária, pois afinal a nota fiscal foi emitida e, portanto, o contrato de compra
e venda celebrado foi declarado.
Assim, embora na data do fato o acusado tenha deixado de fornecer
o documento fiscal, tal conduta configura exclusivamente a tipicidade
formal, que, repitaBse, sozinha, não é capaz de tornar a ação do apelante
penalmente típica.
Isso não significa, evidentemente, impedir que a vítima, pelos meios legais,
venha a pleitear os danos morais que julga ter sofrido quando da discussão com
o apelante.
TrataBse, porém, de esferas distintas: se há efetivamente responsaB
bilidade civil de XXXX – o que só poderá ser reconhecido pelo juiz
competente –, não quer dizer que ele tenha, também responsabilidade

176 ZAFFARONI, E. Raúl e PIERANGELI, J. Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. I. 7.ª ed.
Revista dos Tribunais. São Paulo, 2008.
177 Idem, p. 398B399.
178 Op. cit., p. 228.

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penal. Ao contrário, como salientado, a conduta dele não se subsume a


qualquer norma incriminadora.
Por isso, voto no sentido de dar provimento ao recurso para absolver o
apelante, por atipicidade de sua conduta.

Rio de Janeiro, 05 de novembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

365
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A perda superveniente do interesse:


prescrição em perspectiva

7ª CÂMARA CRIMINAL
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO: 2007.051.00593
RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO
RECORRIDO: XXXX
JUÍZO DE ORIGEM: Vara Criminal de Itaguaí
RELATOR: Desembargador Geraldo Prado

EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM


SENTIDO ESTRITO. EXTINÇÃO DA PUNIBLIDADE PELA
PENA EM PERSPECTIVA. SENTENÇA QUE EM REALIDADE
RECONHECEU A FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL
SUPERVENIENTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PROCESSO
EXTINTO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. POSSIBILIDADE.
AUSÊNCIA DE UMA DAS CONDIÇÕES PARA O REGULAR
EXERCÍCIO DO DIREITO DE AÇÃO. INEFETIVIDADE DO
PROCESSO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA HOSTILIZADA.
TrataBse de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério
Público, contra sentença que, ao examinar a imputação da prática dos
crimes de furto qualificado e corrupção de menores e as condições
pessoais do recorrido entendeu pela extinção da punibilidade.
Fundamentou o magistrado o reconhecimento da extinção da
punibilidade na constatação do desaparecimento superveniente
do interesse de agir. Fato datado de 20 de fevereiro de 1993 e
denúncia recebida em 05 de outubro de 2004. Recorrido que à época
dos crimes era menor de vinte e um anos de idade. Sentença que
em sua fundamentação revelaBse acertada, pois que a ação penal
visivelmente está fadada ao fracasso e o processo não constitui
instrumento hábil à obtenção do resultado prático pretendido pela
acusação. Vale destacar que considerando a pena cominada para
os crimes a prescrição da pretensão punitiva se consumaria em

366
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doze anos (artigo 109, inciso III, do Código Penal). As chamadas


condições da ação, no processo penal brasileiro, condicionam o
conhecimento e julgamento da pretensão veiculada pela demanda,
ao preenchimento prévio de determinadas exigências, cujo
desatendimento impede o julgamento da pretensão de direito
material deduzida. O interesse processual, condição necessária para
o regular exercício da provocação do poder jurisdicional, é visto
no âmbito específico do processo penal, sob a perspectiva de sua
efetividade. O processo deve mostrarBse útil desde a sua instauração,
a fim de realizar os diversos escopos da jurisdição. Haverá interesse
sempre que o processo constituir a única via, válida e eficaz, para que
o autor da ação penal condenatória alcance a conseqüência jurídica
inerente ao reconhecimento da responsabilidade penal do réu, qual
seja, a aplicação da pena criminal. Assim, em hipótese de perda
superveniente do interesse processual, ante a impossibilidade de
futura aplicação da pena, em razão do reconhecimento da prescrição
em perspectiva, deve o processo ser extinto sem resolução do mérito.
Muito embora a extinção do processo por falta de interesse não
se confunda com extinção do processo em virtude da extinção da
punibilidade é inócua a alteração do fundamento da sentença, pois
que o resultado prático consiste no impedimento do ajuizamento de
nova demanda.
RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos do Recurso em Sentido Estrito nº
2007.051.00593, em que é recorrente o MINISTÉRIO PÚBLICO e recorrido XXXX.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que integram a
Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em
conhecer do recurso e, no mérito, negarBlhe provimento, para manter a sentença
hostilizada, nos termos do voto do Relator.
Presidiu a sessão o Desembargador Eduardo Mayr. Participaram do
julgamento os Desembargadores Alexandre Herculano Varella e Maurilio Passos
Braga como vogais.
Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2007.
DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
RELATOR

367
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RELATÓRIO

TrataBse de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério


Público, em face de sentença que julgara extinta a punibilidade de XXXX, ante
o reconhecimento de falta de interesse processual superveniente do Órgão
Ministerial. Sendo assim, julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, na
forma do artigo 267, inciso VI, do Diploma Processual Civil.
Com efeito, a denúncia imputou ao recorrido a prática dos crimes definidos
nos artigos 155, §§ 1º e 4º, inciso I e IV, do Código Penal e artigo 1º da Lei 2.252/54,
que supostamente teriam ocorrido em 20 de fevereiro de 1993. O recebimento
da denúncia data de 05 de outubro de 2004 (fl. 76). À fl. 09, verificaBse que o
recorrido era menor de vinte e um anos ao tempo do crime.
A instrução criminal está retratada às fls. 119 e 141. Entre a primeira e a
segunda audiência o réu se tornou revel.
Não foi possível a emissão da folha penal do recorrido (fl. 98).
A r. sentença, acostada às fls. 144/5, ao analisar o delito em tese praticado, e as
condições pessoais de XXXX, entendeu pela ausência de interesse superveniente
do Ministério Público, e julgou extinto o processo sem resolução do mérito e,
conseqüentemente, extinta a punibilidade.
O Ministério Público interpôs recurso de Apelação (fls. 147/150), recebido
como Recurso em Sentido Estrito (fl. 156), pleiteando a declaração de nulidade
da sentença recorrida, e o prosseguimento do processo nos moldes da Lei.
Em contraBrazões acostadas às fls. 153/4, a recorrida pugna pela manutenção
da sentença hostilizada pelos seus próprios fundamentos, tendo em vista a
inexistência de error in procedendo.
A sentença foi mantida em sede de juízo de retratação (fl. 156).
É o relatório.

VOTO

TrataBse de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Órgão Ministerial,


em face de sentença da lavra do e. Juiz Rafael de Oliveira Fonseca, que julgou
extinto o processo sem resolução do mérito e, conseqüentemente, julgou extinta
a punibilidade do denunciado, ante o reconhecimento de falta de interesse
processual superveniente do Ministério Público.
Pugna o recorrente pela declaração de nulidade da sentença atacada,
a fim de que o processo prossiga nos moldes da Lei. Para tanto, alega que a
fundamentação exarada na sentença – prescrição pela pena ideal, virtual ou

368
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em perspectiva – não encontra respaldo em nosso ordenamento. Aduz que a


prescrição retroativa regulaBse pela pena concretamente aplicada, nos moldes
do artigo 109 do Código Penal.
O recorrido, em contraBrazões entranhadas às fls. 153/4, requer a manutenção
da sentença guerreada pelos seus próprios fundamentos, tendo vista a ausência
de error in procedendo.

O recurso não deve ser provido.

As chamadas condições da ação, no processo penal brasileiro, condicionam


o conhecimento e julgamento da pretensão veiculada pela demanda, ao
preenchimento prévio de determinadas exigências, cujo desatendimento impede
o julgamento da pretensão de direito material deduzida.
O interesse de agir, no âmbito específico do processo penal, decorre da
necessidade de escolha da prestação jurisdicional, para que o Estado conheça e,
se for convencido da prática da infração penal, condene o réu ao cumprimento
de uma pena justa. Nos dizeres de Liebman179: “o interesse de agir é o elemento
material do direito de ação e consiste no interesse de obter o provimento solicitado”
Neste passo, uma das condições para o regular exercício do direito de ação
consiste na existência de interesse processual. Este estará presente sempre que
o processo constituir a única via válida e eficaz para que o autor da ação penal
condenatória possa alcançar a produção da conseqüência jurídica inerente ao
reconhecimento da responsabilidade penal do réu.
No caso da ação penal, a mencionada conseqüência é a aplicação da pena
criminal. Por outro lado, a falta de interesse verificarBseBá quando for observada,
em concreto, a existência de situação impeditiva do trânsito em julgado de
eventual sentença condenatória, justamente pela impossibilidade de o autor
da ação penal atingir o proveito de direito material que persegue mediante o
exercício da citada ação.
Estabelecidas tais premissas, ao se fazer a necessária subsunção dos
conceitos ao caso concreto constataBse que XXXX foi denunciado pela prática
da conduta delituosa prevista no artigo 155, §§ 1º e 4º, incisos I e IV, do Código
Penal, e no artigo 1º da Lei 2.252/54. Os crimes teriam sido praticados em 20 de
fevereiro de 1993, quando o acusado era menor de vinte e um anos de idade.
A denúncia foi recebida em 05 de outubro de 2004.

179 ENRICO TÚLLIO LIEBMAN. Manual de direito processual civil, v. 1, p. 154.

369
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Tendo em vista que a pena máxima cominada para o crime de furto


qualificado é de oito anos de reclusão, a prescrição regulaBse em conformidade
com o disposto no artigo 109, inciso III, do Código Penal, ou seja, em doze anos
entre um marco interrruptivo e outro.
Por fim, considerando a idade do acusado ao tempo do crime, o prazo
prescricional é reduzido pela metade, conforme disposto no artigo 115 do
Código Penal.
Convém destacar que em realidade a prescrição já havia operado em
concreto, levandoBse em conta a regra acima referida.
Este não foi, todavia, o fundamento da solução alvitrada pelo juiz e como
o resultado prático é indiferente, optaBse, aqui, em caráter excepcional, pela
manutenção da motivação eleita, isto é, falta de interesse.
Por tais motivos, forçoso reconhecer a ausência de uma das condições
necessárias para o legítimo exercício do direito acionário, qual seja, o interesse
de agir.
Na linha do entendimento exposto, o culto Magistrado constatou de forma
acertada que a prescrição se consumou antes do recebimento da denúncia.
Desta sorte, desaparecendo o interesse processual, a sentença ora atacada
deve ser mantida, muito embora por fundamento diverso, qual seja, prescrição
pela pena em abstrato. E o será sem resolução do mérito, pois que não há real
extinção da punibilidade. Todavia, esta sentença tem eficácia de interdição do
exercício de nova ação penal pelo mesmo fato, em face do mesmo acusado, uma
vez que é impossível suplantar o obstáculo à ausência de interesse.
Posto isso, dirijo meu voto no sentido de negar provimento ao recurso com
a conseqüente manutenção da sentença hostilizada.

Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2007.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

370
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Negligência: evento no trânsito

7ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL: 2007.050.04685
APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO
APELADO: XXXX
JUÍZO DE ORIGEM: QUARTA VARA CRIMINAL DE NITERÓI
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigo 302, caput, da Lei 9.503/97

EMENTA: LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL. CÓDIGO


BRASILEIRO DE TRÂNSITO. HOMICÍDIO CULPOSO NA
DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ABSOLVIÇÃO ANTE
A AUSÊNCIA DE PROVA DA MANIFESTA “IMPRUDÊNCIA”.
RECURSO MINISTERIAL. ALEGAÇÃO DE FARTO CONJUNTO
PROBATÓRIO APTO A DEMONSTRAR A INOBSERVÂNCIA
DO DEVER OBJETIVO DE CUIDADO. MANUTENÇÃO DA
SENTENÇA HOSTILIZADA. AUSÊNCIA DE PROVA DA
CONDUTA NEGLIGENTE. FALHA NO SISTEMA DE FREIOS.
IMPREVISIBILIDADE. LAUDO PERICIAL QUE SE LIMITA A
ATESTAR FATO INCONTROVERSO. AUSÊNCIA DE DADOS
OBJETIVOS APTOS A VINCULAR O RESULTADO LESIVO A
UM PRECISO COMPORTAMENTO DEFLAGRADOR DO NEXO
DE CAUSALIDADE. PROVA QUE INCUMBE À ACUSAÇÃO. IN
DUBIO PRO REO. TrataBse de recurso de apelação interposto pelo
Ministério Público em face de sentença absolutória que, com fulcro
no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, reconheceu
a inexistência de provas da manifesta “imprudência” do réu.
Denúncia que, inobstante impute ao acusado um comportamento
imprudente, descreve clara hipótese de negligência. Alegação de
farto conjunto probatório apto a demonstrar a conduta “imprudente”
do acusado, com inobservância do dever de cuidado que lhe era
exigível. Alegação de que o apelado tinha consciência das precárias
condições do caminhão. Alegação não provada. Prova pericial que

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se limita a constatar a ineficiência do sistema de freio. Prova oral


que se resume à constatação do evento morte. Ausência de elemento
apto a vincular a causa da morte a um preciso comportamento
deflagrador do nexo de causalidade. Princípio do in dubio pro reo
que funciona como critério de resolução da incerteza, impondoBse
como expressão do princípio da presunção de inocência. Diante
de hipóteses explicativas viáveis, mas contraditórias e excludentes
entre si, não pode o juiz optar por aquela posta em desfavor do
acusado. Absolvição que se impõe.
RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

ACORDÃO

VISTOS, relatados e discutidos estes autos da Apelação Criminal nº


2007.050.04685 em que é apelante o MINISTÉRIO PÚBLICO e apelado XXXX.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que integram a
Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
em sessão de julgamento realizada no dia 11 de outubro de 2007, em conhecer
do recurso e, no mérito, NEGAR-LHE PROVIMENTO, nos termos do voto do
Desembargador Relator.

Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2007.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

RELATÓRIO

TrataBse de recurso de apelação interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO


(fl.93), contra sentença que, ao julgar improcedente a pretensão deduzida na
denúncia, absolveu o acusado da prática da conduta delituosa prevista no artigo
302 da Lei 9.503/97, com fulcro no inciso VI do artigo 386 do Código de Processo
Penal.
O apelado foi denunciado porque, no dia 28 de julho de 2005, na direção
de veículo automotor, de forma imprudente, ofendeu a integridade corporal de
YYYY, produzindoBlhe as lesões descritas no laudo de fls. 26/28, que foram a
causa eficiente da morte da vítima.

372
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Segundo a inicial acusatória, o apelado conduzia o Caminhão de placa KTT


quando, ao realizar determinada manobra, perdeu totalmente o controle do
veículo, vindo a atingir a vítima que se encontrava na calçada. Aduz a exordial,
que o mencionado veículo encontravaBse em precárias condições de conservação,
com indicação de ineficiência do sistema de frenagem.
A denúncia foi recebida em 12 de dezembro de 2005 (fl. 37), com esteio em
inquérito policial, cujas principais peças são: Registro de Ocorrência (fls.), Laudo
de Exame em Veículo (fl. 23) e Auto de Exame Cadavérico (fls. 26/28).
A r. sentença, proferida pela Juíza Cíntia Santarém Cardinali, absolveu o
apelado da imputação que lhe fora feita, com base no inciso VI do artigo 386
do Código de Processo Penal, ante o reconhecimento de ausência de prova da
conduta imprudente do acusado.
O Ministério Público, inconformado com a r. sentença, interpôs recurso
de apelação à fl. 93, recebido à fl. 102 e com razões recursais entranhadas às
fls. 108/111. Pleiteia a reforma da decisão, com a conseqüente condenação do
acusado, nos termos da inicial.
A Defesa, por sua vez, em contraBrazões acostadas às fls. 123/7, manifestaB
se pela manutenção da sentença hostilizada.
A Douta Procuradoria Geral de Justiça, em parecer acostado às fls. 123/7,
da lavra da e. Procuradora SILVIA LIZ DELL’OME, opina pelo não provimento
do recurso ministerial.
É o relatório.
VOTO

Conforme relatado, trataBse de recurso de apelação interposto pelo


Ministério Público, com o escopo de reformar sentença absolutória proferida no
Juízo da Quarta Vara Criminal de Niterói.
Alega que a autoria e a materialidade estão devidamente comprovadas
pelas provas colacionadas aos autos. E afirma que o conjunto probatório revela
que o acusado, agindo com inobservância do dever objetivo de cuidado, que
lhe era previsível, em função das precárias condições do veículo conduzido,
provocou a morte da vítima Valéria Santos de Souza.

O recurso não deve ser provido.

De fato, o apelado foi denunciado pela prática da conduta delituosa prevista


no artigo 302, caput, da Lei 9.503/97.

373
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Após a instrução criminal, apurouBse que Jonas, no dia 18 de julho de 2005,


na direção do veículo descrito no laudo de fls. 23, deu causa eficiente à morte da
vítima YYYY.
E isto porque, XXXX, ao realizar uma manobra, perdeu o controle do
mencionado veículo, vindo a atingir a vítima que se encontrava na calçada.
ConstatouBse também, que a perda do controle do veículo teve como causa
a ineficiência do sistema de freios, tendo em vista que, conforme observado pelo
laudo de fls. 23, o mencionado sistema encontravaBse com perda de pressão
quando do seu acionamento, sendo necessário pressionar o pedal mais de uma
vez para que o sistema adquirisse pressão suficiente para parar o veículo.
Inicialmente cumpre destacar que, embora a denúncia impute ao acusado
a realização de uma conduta imprudente, não é essa a conclusão que se extrai
dos autos.
A inicial acusatória descreve clara hipótese de comportamento negligente, e
não imprudente. E assim porque, diferentemente da imprudência, que é a prática
de uma conduta arriscada e tem caráter comissivo, a negligência precede à ação, e
significa a abstenção de uma cautela que deveria ser adotada antes de agir.
A esse respeito, cumpre coligir os escólios de Juarez Tavares180, um dos mais
autorizados doutrinadores sobre a temática:

“Assim, poder/se/á conceituar a negligência como forma de conduta


humana que se caracteriza pela realização do tipo de um delito, por meio
de uma ação perigosa e contrária ao dever de cuidado, materializável em
um resultado proibido, previsível e evitável, e cuja culpabilidade se assenta
no fato de não haver o agente evitado sua realização, apesar de capaz e em
condições de fazê/lo.”

Impende frisar ainda que, para se impor ao agente um juízo de censura


em razão de uma conduta negligente, deveBse partir do pressuposto que ele
estivesse em condições não só de evitar, mas também de prever o resultado. A
previsibilidade, portanto, funciona em momento anterior à evitabilidade.
Estabelecidas tais premissas, passemos, pois, à análise da conduta do apelado.
A existência do fato está devidamente comprovada pelo conjunto probatório
carreado aos autos, consubstanciado no Registro de Ocorrência (fls.); Laudo de
Exame em Veículo (fl. 23); e Auto de Exame Cadavérico (fls. 26/28);

180 JUAREZ TAVARES. Direito penal da negligência: uma contribuição à teoria do crime culposo. 2ª ed.,
rev. E ampl. Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2003, p. 256.

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A autoria está igualmente comprovada, uma vez que resultou incontroverso


que XXXX encontravaBse na direção do veículo automotor no momento do
evento. Fato este reconhecido pelo réu (fls. 45/47) e pela prova oral produzida
sob o crivo do contraditório (fls. 55/6 e 65).
No entanto, não há nos autos elementos aptos a demonstrar o comportamento
negligente do apelado.
O laudo de fl. 23 se resume a constatar a ineficiência do freio. Mas isso
não basta. Para que seja imputada ao réu a prática da conduta negligente ora
discutida, é necessário que seja constatada a não manutenção regular do veículo
e do sistema de freio.
O evasivo laudo pericial acostado à fl. 23 equivale a um laudo de exame
cadavérico que se limita a atestar a morte da vítima, sem apontar os dados
objetivos aptos a vincular a causa da morte a um preciso comportamento
deflagrador do nexo de causalidade.
A prova oral, por sua vez, se reduz a constatação do evento morte.
O réu, ao reverso, em interrogatório espelhado às fls. 45/47, relatou
que, embora o veículo apresentasse muitas avarias na parte da lataria, era
constantemente submetido à vistoria mecânica. Aduziu que cerca de quinze dias
antes do evento danoso o caminhão havia passado por uma revisão.
A rigor, cabe à acusação demonstrar que o defeito no sistema de freios
decorreu da falta de manutenção ou de sua precária realização.
Dito isto, não há nos autos nenhum elemento apto a comprovar que o
defeito apresentado no sistema de freios do caminhão era previsível ao réu.
Assim, não se pode falar em culpa quando, embora haja um resultado
lesivo não desejado, este não era objetivamente previsível.
A respeito, nunca é demais recorrer à lição de Cezar Roberto Bitencourt181:

“A tipicidade do crime culposo decorre da realização de uma conduta não


diligente causadora de uma lesão ou de perigo a um bem jurídico penalmente
protegido. Contudo, a falta do cuidado objetivo devido, configurador da
imprudência, negligência ou imperícia, é de natureza objetiva. Em outros
termos, no plano da tipicidade, trata/se, apenas, de analisar se o agente agiu
com o cuidado necessário e normalmente exigível.”

181 CEZAR ROBERTO BITENCOURT. Tratado de direito penal: parte geral, volume 1. 11ª ed. atual. – São
Paulo : Saraiva, 2007, p. 278.

375
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Impende frisar que o emprego da diligência exigível deve ser aferido


nas condições concretas, existentes no momento do fato, além da necessidade
objetiva, naquele instante, de proteger o bem jurídico.
Neste passo, diante da inexistência de elementos comprovadores da conduta
negligente do apelado, consubstanciada na ausência de prova do conhecimento
do réu acerca das precárias condições do sistema de freio, forçoso reconhecer a
ausência do nexo de causalidade.
Assim, diante do conjunto probatório coligido, não há como afirmarmos
que o acusado, efetivamente, tinha consciência dos defeitos apresentados no
sistema de freios do caminhão.
Neste tocante, o princípio in dubio pro reo funciona aqui como critério de
resolução da incerteza, impondoBse como expressão do princípio da presunção de
inocência.
NoteBse que diante de hipóteses explicativas viáveis, mas contraditórias
e excludentes entre si, não pode o juiz optar por aquela posta em desfavor do
acusado.
Como destaca GUILHERME DE SOUZA NUCCI182:

“A prova insuficiente para a condenação é outra consagração do princípio


da prevalência do interesse do réu – in dubio pro reo. Se o juiz não possui
provas sólidas para formação de seu convencimento, podendo indicá/las na
fundamentação de sua sentença, o melhor caminho é a absolvição.”

Sobreleva registrar que tudo isso não isenta o apelado e a própria pessoa
jurídica responsável pelo veículo da responsabilidade civil. Até porque o
fundamento da absolvição foi por ausência de provas.
Desta sorte, o ato jurisdicional está correto e é inatacável.
Posto isso, voto no sentido de conhecer do recurso e, no mérito, negarBlhe
provimento, com a conseqüente manutenção da sentença recorrida.

Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2007.


GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

182 GUILHERME DE SOUZA NUCCI. Código de Processo Penal Anotado, 5ª Edição, Editora Revista dos
Tribunais.

376
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Direção sob influência de álcool e lesividade

HABEAS CORPUS 0034780-15.2010.8.19.0000


AUTORIDADE COATORA: XX VARA CRIMINAL DA COMARCA DA
CAPITAL
IMPETRANTE: XXX
PACIENTE: XXX
RELATOR: DES. GERALDO PRADO
Artigo 306 da Lei 9.503/97

EMENTA: HABEAS CORPUS. DIREITO CONSTITUCIONAL E


DIREITO PENAL. ARTIGO 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO
BRASILEIRO. LEI 11.705/2008. PRINCÍPIO DA LESIVIDADE.
INCOMPATIBILIDADE DOS CRIMES SEM PERIGO COM
A NOVA DOGMÁTICA PENAL E COM A NOVA ORDEM
CONSTITUCIONAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONS-
TITUIÇÃO. EXIGÊNCIA DE PERIGO AO BEM JURÍDICO TU-
TELADO PARA A CARACTERIZAÇÃO DO CRIME EM QUESTÃO.
DENÚNCIA QUE, NESSA PERSPECTIVA, DESCREVE CONDUTA
ATÍPICA. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO
MÉRITO. Paciente denunciado pela suposta prática do crime definido
no artigo 306 do Código Penal. Denúncia que não faz menção a qualquer
circunstância fática que tenha gerado risco à incolumidade pública ou à
integridade física de terceiros e, portanto, narra crime de perigo abstrato.
Incompatibilidade dessa espécie de injusto com a teoria final do crime,
adotada pelo Código Penal. Princípio da lesividade que exige efetivo
dano ou risco empírico de lesão ao bem jurídico tutelado, sob pena de
ilegitimidade da intervenção penal. Constituição da República que, nessa
ótica, observadas a proporcionalidade e a ampla defesa, impõe que se
interprete o crime do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro como de
perigo concreto. Denúncia que, nessa perspectiva, não narra fato típico.
Constrangimento ilegal configurado. Extinção do processo sem resolução
do mérito.
ORDEM CONCEDIDA.

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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus nº. 0034780B


15.2010.8.19.0000, em que é impetrante XXX e paciente XXX.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que compõem a
Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
em sessão de julgamento realizada no dia 02 de setembro de 2010, em conceder
a ordem para julgar extinto o processo sem resolução do mérito, nos termos do
voto do Desembargador Relator.
Presidiu a sessão o Desembargador Adilson Vieira Macabu. Participaram
do julgamento os Desembargadores Cairo Ítalo França David e José Roberto
Lagranha Távora.

Rio de Janeiro, 02 de setembro de 2010.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

RELATÓRIO

XXX impetra habeas corpus em favor de XXX, denunciado pela suposta


prática do crime definido no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, por
meio do qual postula a concessão da ordem para que seja julgado extinto o
processo sem resolução do mérito.
Alega a impetrante que o crime por que denunciado o paciente, embora o
respectivo tipo penal lhe dê roupagem de delito de perigo abstrato, não pode
assim ser encarado, sob pena de violação a diversos princípios constitucionais,
como a ofensividade, a taxatividade e a ultima ratio.
A inicial veio acompanhada dos documentos de fls. 18/26.
A liminar foi deferida à fl. 28, a fim de determinar a suspensão do curso do
processo.
Às fls. 22/1, a autoridade judiciária confirmou a matéria fática exposta na
inicial, mas declinou seu entendimento no sentido de que o crime definido no
artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro é de perigo abstrato.
O Ministério Público apresentou parecer às fls. 49/51, da lavra da Procuradora
de Justiça Delma Moreira Acioly, no sentido da concessão da ordem.
É o relatório.

378
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VOTO

A redação primária do preceito dispositivo que define o crime por que


denunciado o paciente, de embriaguez ao volante (artigo 306 do Código de
Trânsito Brasileiro), não deixava dúvida a respeito de sua natureza:

Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool


ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a
incolumidade de outrem:183

Todavia, a lei 11.705/08 alterou o mencionado dispositivo, suprimindo


as elementares “sob a influência de álcool” e “expondo a dano potencial a
incolumidade”. Suprimida, assim, a exigência da situação potencial de dano,
a doutrina e a jurisprudência passaram a divergir e instauraram a controvérsia
apresentada a julgamento: se o tipo penal em questão define crime de perigo
abstrato ou de perigo concreto.
A esse respeito, insta destacar que os crimes de perigo abstrato, que não
exigem resultado material algum – seja de lesão ou de perigo de lesão, como
leciona Juarez Cirino dos Santos184 –, fundamBse na simples possibilidade,
aferida no plano ontológico, e não empírico, de afetação a um bem cuja proteção
é tida por necessária ao menos pela maior parte da coletividade.
O enfoque, portanto, é dado à viabilidade de que determinada conduta
cause ou não um resultado que, embora reprovável do ponto de vista penal, não
é relevante para a configuração do tipo incriminador.185
Daí se infere que a categoria em questão só tem lugar na concepção
causalista da conduta e da teoria do delito, na medida em que sobreleva o valor
do nexo de causalidade em detrimento do elemento subjetivo da conduta.
Com a adoção de uma perspectiva finalista do crime, consubstanciada no
Código Penal desde 1984, deslocamBse as atenções da potencialidade causal da
conduta para a sua finalidade, orientada a um resultado penalmente reprovável
ou a um propósito que, malgrado lícito, para ser atingido necessita ao menos de
risco empírico da provocação desse resultado.
Nessa perspectiva, nem mesmo Welzel respondeu satisfatoriamente às
críticas da admissibilidade dos crimes de perigo abstrato na concepção finalista,

183 Grifei.
184 Direito Penal – Parte Geral. 2.ª Ed. Lumen Juris. Curitiba, 2007, p. 110B111.
185 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. RT. São
Paulo, 2007, p. 132B135.

379
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pois “justifica a existência destas espécies delitivas pela freqüência com que tais
ações resultam em situações de perigo concreto ou dano”186, fundamentandoBse,
pois, em qualquer caso, na necessidade empírica de um resultado, seja ele de
perigo concreto ou de efetiva lesão.
Assim, na lógica finalista da teoria do delito, a conduta deve estar orientada
a um resultado penalmente reprovável ou, ao menos, ser praticada por meios
que sejam capazes de provocáBlos (negligência, imprudência ou imperícia), o que
implica reconhecer o bem jurídico como paradigma que estabelece o perímetro
máximo da incriminação, conforme lição de Juarez Tavares:

A reprodução do tipo como ação indica que a norma jurídica definidora


do injusto é uma norma de conduta e não uma norma meramente de
reconhecimento (...). Como norma de conduta, deve estar associada a
determinada finalidade: a delimitação do poder de intervenção do Estado, a
qual não pode ser alcançada sem um pressuposto material que lhe trace os
contornos de estabilidade. Daí a necessidade que se estabeleça, como base da
ação típica, a lesão de bem jurídico.187

Sob outro enfoque, na ótica penal vigente, a proteção do bem jurídico


não justifica a criminalização de determinadas condutas a qualquer custo;
ao contrário, orienta a sua limitação, exigindo a lesão ou o perigo de lesão ao
bem jurídico para a configuração de crimes, sem que, com isso, se abra mão
da punição de condutas tidas por socialmente reprovadas em maior nível de
gravidade.
Por isso, Cezar Roberto Bitencourt, a definir o princípio da ofensividade,
destaca que “somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão
penal se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante,
que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado” e defende
que “são inconstitucionais todos os chamados crimes de perigo abstrato, pois, no
âmbito do Direito Penal de um estado Democrático de Direito, somente se
admite a um bem jurídico determinado”188.
Com efeito, a inconstitucionalidade consiste em incluir no âmbito da
responsabilidade penal condutas que não impliquem perigo de lesão algum,
nem mesmo a um bem jurídico titularizado por pessoas indeterminadas (a
coletividade).

186 Idem, p. 137.


187 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2.ª Ed. DelRey. Belo Horizonte, 2002, p. 179B180.
188 Tratado de Direito Penal / Parte Geral. 11.ª Ed. Saraiva. São Paulo, 2007, p. 22.

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Isso não acarreta, evidentemente, negar aplicação ao artigo 306 do Código


de Trânsito Brasileiro, que tem sido por alguns classificado como de perigo
abstrato. É incontroverso que, em determinadas situações empiricamente
estudadas, o tipo penal em questão tem a valiosa função de inibir e/ou punir
condutas que gerem efetivo risco à incolumidade pública e à integridade física
de terceiros – bens jurídicos tutelados pela mencionada norma incriminadora.
Ao contrário, cuidaBse, em vez de declarar a sua inconstitucionalidade – o
que certamente deveria observar o princípio da Reserva de Plenário (artigo 97 da
Constituição da República) –, de realizar interpretação conforme a Constituição.
Com efeito, o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma norma
implica “paralisar” sua eficácia189: ela é hipoteticamente eliminada do ordenaB
mento jurídico, em razão do reconhecimento de incompatibilidade absoluta do
seu conteúdo com o texto constitucional.

A conseqüência da declaração de inconstitucionalidade “é a ineficácia do


ato legislativo em face da recusa dos tribunais em aplicá/lo aos casos que
lhe são submetidos”. (...) Por isso, a decisão do tribunal, uma vez passada
em julgado é, em relação ao caso, final, inatacável, definitiva, produzindo,
quanto à lei, efeito ex tunc, tal como se ela (a lei declarada inconstitucional)
“jamais tivesse existido – is as though it never existed”.190

Por outro lado, se a este órgão jurisdicional fracionário não é dado afastar
a aplicação do artigo 306 sob a alegação de sua inconstitucionalidade (artigo
97 da Constituição da República), neste caso, é perfeitamente possível realizar,
aplicando as técnicas de hermenêutica, interpretação conforme a Constituição.
Nesse sentido, em passagem do trabalho entitulado Sistema Acusatório –
A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais191, faço breve exposição
sobre a possibilidade e necessidade de realização da interpretação das Leis
Processuais segundo o sentido Constitucional: diferentemente de afastar a
aplicação de uma norma, cuidaBse de atribuirBlhe significado conforme a opção
política externada no Texto Maior, e não de lhe negar validade, como ocorre na
declaração de inconstitucionalidade.

189 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 3.ª Ed. Saraiva, São
Paulo, 2008, p. 29.
190 CLÈVE, Clemerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2.ª Ed.
Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000, p. 112.
191 PRADO, Geraldo Luis Mascarenhas. Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das Leis
Processuais Penais. 4.ª ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2006.

381
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Dessa forma, quando se realiza interpretação conforme a Constituição, se


há o reconhecimento da incompatibilidade da norma com a Magna Carta, ela
é relativa e, portanto, sanável – não por meio da negação de sua aplicação, mas
pela sua incidência sobre a hipótese submetida ao Judiciário, desde que num
determinado significado ou sentido abrangido pela Carta Política.

Se não se pode contestar que o princípio da judicial review reconhece apenas


aos tribunais o poder de constatar a nulidade de uma norma legal contrária
à constituição e desaplicá/la no caso concreto, e que o controlo concentrado
abstracto é fundamentalmente (Kelsen) uma ´legislação negativa` eliminadora
das normas não compatíveis com a constituição, nem por isso se pode
deixar de reconhecer constituir a tarefa de controlo também a uma tarefa de
concretização e desenvolvimento do direito constitucional.192

BuscaBse, portanto, por meio da interpretação conforme a Constituição,


uma harmonia entre a norma interpretada e a constitucional. Encontrar essa
compatibilidade pressupõe, evidentemente – e ao contrário das hipóteses em
que se declara a inconstitucionalidade – a existência de caminhos diversos à
disposição do intérprete, de sorte que, segundo o método que ele julgar mais
adequado – no caso o sistemático –, um deles será o eleito para dar solução ao
conflito entre os diferentes sentidos que a norma pode oferecer.

O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual
se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do
caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados
é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução
constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido.193

É exatamente o que ocorre na hipótese.


Com efeito, dispõe o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, em
sua primeira parte, que é crime “Conduzir veículo automotor, na via pública,
estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6
(seis) decigramas”, sem que para isso se exija condução anormal do veículo.

192 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª Ed.Almedina, Coimbra,
p. 891.
193 BARCELLOS, Ana Paula de e BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História: a Nova Interpretação
Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In: Interpretação Constitucional. Org.
Virgílio Afonso da Silva. 1.ª Ed. 2.ª tiragem. Malheiros, São Paulo, p. 271B316.

382
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Todavia, na lógica de tutela de direitos fundamentais consagrada na


Constituição da República, “nenhum direito pode legitimar uma intervenção
punitiva quando não medeie, pelo menos, um conflito jurídico, entendido como a
afetação de um bem jurídico total ou parcialmente alheio, individual ou coletivo”194.
Em que caso poderá o EstadoBjuiz intervir na esfera de liberdade individual
de uma pessoa: naquele em que ele simplesmente dirige veículo automotor com a
quantidade de álcool por litro de sangue superior à definida na nova lei ou naquele
em que, em razão dessa concentração que a norma penal considera excessiva, ele
conduz o veículo de maneira anormal, causando no mínimo perigo de lesão à
incolumidade pública e à integridade física de outras pessoas determinadas?
Evidentemente, a resposta está na segunda hipótese, orientada pela
aplicação do princípio da ofensividade, implícito na Constituição da República,
como critério hermenêutico, como leciona Luiz Flávio Gomes, socorrendoBse da
lição de Palazzo.

(...) o princípio da ofensividade no Direito penal tem a pretensão de irradiar


suas concretas conseqüências (seus efeitos) em dois diferentes planos: serve
“não só de guia na atividade legiferante, orientando, portanto, o legislador,
no exato momento da formulação do tipo legal, com o escopo de vinculá/
lo à construção de tipos legais dotados de um real conteúdo ofensivo aos
bens jurídicos socialmente relevantes, senão também como critério de
interpretação, dirigido ao juiz e ao intérprete, para exortá/lo a verificar em
cada caso concreto a existência (no fato histórico) da ‘necessária lesividade’
ao bem jurídico protegido”.195

Além disso, os crimes de perigo abstrato caracterizamBse pela presunção


de risco ao bem jurídico tutelado, sem possibilidade de produção de prova em
contrário, de modo a destacar a ampla defesa (artigo 5.º, inciso LV, da Constituição
da República) como mais um critério de realização da interpretação conforme a
Constituição.
Assim, “todo tipo legal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado
na forma de perigo concreto (ainda que indeterminado, que é o limite mínimo para
se admitir um delito, ou seja, a intervenção do Direito Penal)”196.

194 BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro. Vol. I. 2.ª ed. Revan, 2003, p. 226.
195 Princípio da ofensividade no Direito Penal. Série As ciências criminais no século XXI. V. 6. RT. São
Paulo, 2002, p. 27B28.
196 GOMES, Luiz Flávio et all. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de trânsito. RT.
São Paulo, 2008, p. 376.

383
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Tanto é assim que, no caso em apreço, o próprio Código de Trânsito exige,


para a caracterização de infração administrativa, evidentemente menos grave que
a de índole penal, que a condução do veículo se dê “sob a influência de álcool ou
de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência” (artigo 165).
De fato, soaria desarrazoado que a lei assim fizesse para aplicar uma multa
e, por outro lado, não o fizesse para restringir a liberdade de locomoção de
indivíduo, bem sabidamente mais valioso do que o patrimônio.
Mais uma vez, a proporcionalidade incide como parâmetro de interpretação,
a fim de determinar a necessária relação de proporção entre as infrações e as
sanções que lhes são cominadas pelo ordenamento jurídico.
Dessa forma, exigeBse sempre, para a configuração do crime definido no artigo
306 do Código de Trânsito Brasileiro, a lesão ou o perigo de lesão à integridade física
de terceiros, o que normalmente se revela pela conjugação da quantidade de álcool
ali prevista com a direção anormal e perigosa de veículo automotor:

(...) se o sujeito tem concentração de álcool igual ou superior a seis decigramas,


mas dirige seu veículo normalmente (corretamente, sem nenhum deslize viário),
inexiste infração penal (art. 306). Cuida/se, sim, de infração administrativa
(art. 165). O crime exige embriaguez + direção anormal (risco concreto para
a segurança viária). Condutor anormal + condução anormal: sem a presença
desses dois requisitos não há que se falar em crime.197

Todavia, a denúncia (fls. 18/9), no caso concreto, limitaBse a descrever o


excesso de álcool por litro de sangue constatado no paciente, sem fazer qualquer
menção a alguma circunstância que caracterize o risco de dano, como se constata
do seguinte trecho:

No dia 11 de maio de 2010, por volta das 03 horas e 30 minutos, na Avenida


Padre Leonel Franca, próximo ao n. 146, bairro da Gávea, nesta cidade, o
denunciado, com consciência e vontade, conduzia seu veículo automotor,
sobre (sic) influência de substância alcoólica, com concentração superior a
0,3 miligramas por litro de ar expelido dos pulmões.

Insta destacar que, embora afirme que o paciente dirigia o veículo sob
influência de álcool, a acusação não narra qualquer circunstância fática que revele
esse dado. Ao contrário, restringeBse a dizer que os policiais que abordaram o

197 Idem, p. 379.

384
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paciente constataram, por meio do teste do etilômetro, a quantidade mencionada


de álcool por litro de sangue.
Assim, a denúncia não descreve fato penalmente típico.
Nesse sentido já decidiu esta Câmara Criminal, sob a relatoria do
Desembargador Cairo Ítalo França David:

LEI SECA. Constrangimento ilegal ao argumento de inépcia da denuncia,


por não ter descrito uma conduta que importasse na produção de um efetivo
perigo à segurança viária. 1. O paciente foi parado durante a operação “Lei
Seca” sendo compelido a realizar o teste de verificação de alcoolemia, por
meio do etilômetro, apurando/se que ele apresentava o teor de 0,43 mg/l
de álcool por litro de ar expelido dos pulmões. 2. A denúncia limitou/se
a descrever esse comportamento não apontando qualquer ação descuidada
por parte do paciente, que caracterizasse direção anormal, geradora de
riscos, presumindo/se que apesar do teor alcoólico o acusado estivesse
conduzindo de forma anormal a motocicleta. 3. Sem esse plus considera/
se que subsiste apenas uma infração de natureza administrativa, já que
tal comportamento não possui tipicidade penal. 4. Sob tais parâmetros,
a denúncia é inepta, já que não descreve, a rigor, uma infração penal,
limitando/se a narrar um fato que possui mera tipicidade formal, mas
sendo totalmente desprovido de tipicidade material. 5. Acresce que esse tipo
de exame, ao qual são compelidos a se submeter todos os que são parados
nesse tipo de operação, não importando se dirigirem de forma perigosa ou
se estejam com hálito etílico, além de obrigar o sujeito a fazer prova contra
si, o que contraria os postulados constitucionais, ainda firma desde logo
os alicerces da condenação do acusado. Incumbe ao judiciário mitigar tais
exageros, adequando a lei aos parâmetros da nossa Carta Magna. 6. Ordem
concedida, determinando/se o trancamento da ação penal.198

Por isso concedo a ordem para extinguir o processo originário sem resolução
do mérito, ratificada a liminar deferida.

Rio de Janeiro, 02 de setembro de 2010.

GERALDO PRADO
DES. RELATOR

198 HC 0031166B02.2010.8.19.0000. Julgamento: 29/07/2010.

385
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Fraude civil e fraude penal: distinção

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL: 2008.050.06783
APELANTE: XXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO DE ORIGEM: 26.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DA CAPITAL
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigo 171, caput, do Código Penal

EMENTA: APELAÇÃO. PENAL. CONDENAÇÃO PELO CRIME


DEFINIDO NO ART. 171, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL.
EMISSÃO DE CHEQUES PROVENIENTES DE CONTA
CORRENTE JÁ ENCERRADA. INFORMAÇÕES BANCÁRIAS
CONTRADITÓRIAS QUE COLOCAM EM DÚVIDA O DOLO
PENAL – QUE EXIGE, ALÉM DO ASPECTO VOLITIVO,
TAMBÉM O “COGNOSCITIVO”. “CONHECIMENTO
ATUAL” DA CIRCUNSTÂNCIA OBJETIVA CONSTITUTIVA
DO CRIME NÃO COMPROVADO. FRAUDE PENAL QUE SE
DISTINGUE DA FRAUDE CIVIL PELA MAIOR GRAVIDADE
DE SUA REPERCUSSÃO NA ESFERA JURÍDICA E SOCIAL.
CONFIGURAÇÃO DE ILÍCITO MERAMENTE CIVIL. Apelação
interposta em face de sentença que condena o apelante pela prática
do crime definido no art. 171, caput, do Código Penal. Emissão de
cheques provenientes de conta corrente já encerrada. Informações
bancárias contraditórias, pois ora se aceitava depósito em conta
corrente declarada encerrada, ora se devolviam cheques por falta
de provisão de fundos e ora assim se fazia sob fundamento de
encerramento da conta corrente. Dúvida sobre o elemento subjetivo
do tipo de injusto. Dolo penal que exige, além do aspecto volitivo,
também o cognoscitivo, que consiste no “conhecimento atual”
acerca da circunstância objetiva caracterizadora do crime: o fato
de a conta corrente estar encerrada. Ausente o dolo penal, inexiste
igualmente fraude penal, que se diferencia da fraude civil por meio

386
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do critério relativo “da sufficiencia ou insufficiencia das sancções


não penaes”. Gravidade da conduta do apelante que não justifica a
incidência das normas penais, pois os institutos civis e processuais
civis bastam para o reajuste da ordem jurídica. Alegação ministerial
que se funda na existência de diversos inquéritos policiais em face
do acusado. Improcedência que se verifica a partir da Folha de
Antecedentes Criminais. Absolvição.
RECURSO PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Criminal nº


2008.050.06783, em que é apelante XXXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que integram a
Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
em sessão de julgamento realizada no dia 12 de novembro de 2009, em dar
provimento ao recurso, apara absolver o apelante.
Presidiu a sessão o Desembargador Nildson Araújo da Cruz, que também
participou do julgamento como Vogal, assim como o Desembargador Revisor
Cairo Ítalo França.

Rio de Janeiro, 12 de novembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

VOTO
TrataBse de recurso de apelação interposto por XXXX em face de sentença
que o condena pela prática do crime definido no art. 171, caput, do Código Penal.
Segundo a denúncia, o apelante, em tese, no dia 14 de fevereiro de 2006,
na sede da empresa YYYY, adquiriu 4 (quatro) veículos, fornecendo como
pagamento 3 (três) cheques, os quais foram posteriormente trocados, a título de
renegociação de dívida, por outros 4 (quatro), cada qual no valor de R$ 16.750,00
(dezesseis mil, setecentos e cinqüenta reais), todos vinculados à conta corrente
n.º AAAA, agência n.º BB do Citibank.
Apresentado o primeiro cheque para desconto na data acordada, dia 31
de maio de 2006, o banco o teria devolvido por tratarBse de título de crédito
vinculado a conta corrente já encerrada.

387
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O recurso merece provimento

Com efeito, a testemunha ZZZZ, funcionário da empresa supostamente


lesada, declarou “que o primeiro cheque dado pelo acusado, no valor de R$
30.000,00, emitido em 27 de fevereiro de 2006, foi depositado na data combinada
e não foi descontado por falta de fundos”, e não em razão de a conta corrente ter
sido encerrada.
Tal informação confrontaBse diretamente àquelas fornecidas pelo Banco
Citibank, que são também entre si contraditórias: ao passo que em dezembro
de 2005 – antes, pois, da emissão dos cheques em favor da vítima – a instituição
financeira informou a devolução de cheques por encerramento de conta (fl. 14),
em 22 de fevereiro de 2006 devolveu outro cheque por insuficiência de fundos
(fl. 115).
Não bastasse isso, pouco antes, em 30 de janeiro de 2006, foi realizado
regularmente depósito na conta corrente do apelante sem que o sistema
informático do banco identificasse seu encerramento (fl. 113).
A conduta do banco – que ora aceitava depósito em conta corrente que
declarava encerrada, ora devolvia cheques por falta de provisão de fundos e ora
o fazia sob fundamento de encerramento da conta corrente – está a colocar em
dúvida o elemento subjetivo do tipo de injusto de estelionato.
Igualmente, não faria qualquer sentido que o apelante substituísse os
cheques em princípio emitidos por outros quatro tendo conhecimento de que a
conta corrente estava encerrada, já que, se assim fosse, tal comportamento não
lhe traria qualquer benefício a mais do que aquele que ele já esperava ao entregar
os primeiros títulos de crédito.
Mais que isso, a substituição dos cheques jamais excluiria a obrigação
do acusado. Pelo contrário, por se tratar de novação, apenas constituiria nova
obrigação, embora a anterior se fizesse extinta199.
Não se trata de afastar, portanto, a responsabilidade civil do apelante, que
é induvidosa, pois, ao que tudo indica, descumpriu contrato de compra e venda
firmado com a empresa lesada, agora diante de significativo prejuízo.
Sobre o injusto penal, porém, não há certeza.
Isso porque o dolo penal não é composto exclusivamente pelo elemento
volitivo. Ele exige também o conhecimento das circunstâncias objetivas que

199 TEPEDINO, Gustavo. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. Renovar.
2004, p. 657B660.

388
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caracterizam o delito imputado ao acusado, ao que Zaffaroni chamou de aspecto


cognoscitivo do dolo.

(...) Há mais de meio século a doutrina apercebeu/se de que é tão falso que o
dolo seja representação como que o dolo seja vontade: o dolo é representação
e vontade. (...)
O reconhecimento de que o dolo é uma vontade individualizada em um
tipo, obriga/nos a reconhecer em sua estrutura os dois aspectos em que
consiste: o do conhecimento pressuposto ao querer e o próprio querer (que
não pode existir sem conhecimento).200

No caso em exame, a incongruência entre as informações trazidas pelo


próprio banco e o comportamento do réu, ao substituir os três primeiros cheques
por outros quatro, põe em dúvida a representação do acusado sobre circunstância
objetiva relevante para a caracterização do estelionato, consistente no fato de sua
conta corrente estar encerrada.
Embora fosse possível aferir tal circunstância pelo histórico bancário, não
se pode reconhecer nisso a existência de dolo porque, segundo Juarez Cirino dos
Santos201, esse “componente intelectual do dolo consiste no conhecimento atual das
circunstâncias de fato do tipo objetivo, como representação ou percepção real da
ação típica: não basta uma consciência potencial, capaz de atualização”.
A realização normal de depósito, pelo acusado, menos de um mês antes da
emissão do primeiro cheque exclui a atualidade desse conhecimento. E, como a
representação, nesta linha de raciocínio, precede o aspecto volitivo do elemento
doloso do tipo, ele fica, na dúvida, afastado.
Sob outro enfoque, se havia de algum modo efetiva vontade de descumprir
o contrato de compra e venda, ela apenas se presta à identificação de um ilícito
civil, mas não é suficiente a tipificar a conduta do apelante como subsumida ao
art. 171 do Código Penal.
Nesse sentido o seguinte julgado:

Sabe/se à saciedade que no estelionato o dolo é a essência da infração e


antecede a ação criminosa. Não havendo prova inquestionável de que o
acusado tenha agido com dolo preordenado, característico do estelionato,
temerária é a sua condenação, o que não afasta, contudo, que na esfera do

200 Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. I. 7.ª ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2008, p. 416.
201 Direito Penal – Parte Geral. 2.ª ed. Lumen Juris. Curitiba, 2007, p. 132.

389
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Direito Civil seu comportamento contamine de anulabilidade o ato jurídico


praticado, obrigando/o a experimentar os danos experimentados.202

Com efeito, Nelson Hungria203 alertava que a incidência do Direito Penal


apenas se legitima quando o ato ilícito afronta a ordem jurídica e social de forma
mais grave.
Daí porque o autor conclui que “o único critério acceitavel é o critério
relativo, não fixável a priori, da sufficiencia ou insufficiencia das sancções não
penaes. Sómente quando a sancção civil é manifestamente inefficaz e inhabil
para a reintegração da ordem juridica violada, é que surge a necessidade da
sancção penal”204.
Continua o autor, não obstante defenda a concepção unitária do ato ilícito,
caracterizandoBo pela antijuridicidade, comum ao ilícito penal e ao civil:

(...) pode/se affirmar que delicto penal é o ataque á ordem juridica,


contra o qual, pela sua intensidade ou periculosidade, a unica sancção
adequada é a pena, e delicto civil é o ataque á ordem juridica, para cuja
neutralização bastam as sancções a_enuadas da indemnisação, da execução
forçada, da restituição in specie, da anullação do acto, etc.205

Por isso, a fraude penal se distingue da fraude civil pela gravidade da


conduta que a constitui, de modo que a resposta penal só se justifica quando ela
trouxer ameaça mais considerável à ordem jurídica e social.
E essa aferição cabe ao Magistrado, quando se depara diante de um caso
como este, em que a adequação e a suficiência dos institutos civis e processuais
civis orientam no sentido da absolvição do acusado, pois a precariedade das
provas com relação ao dolo penal – se não se pode dizer a sua total ausência –
diminuem a reprovabilidade de sua conduta.
Dessa forma, o postulado constitucional da presunção de inocência (art.
5.º, LVII, da Constituição da República) impõe a absolvição do apelante, sob
pena de se assumir o ônus da condenação de um inocente.
A dúvida que se coloca sobre a linha tênue entre o inadimplemento de
obrigação e o delito de estelionato é que talvez tenha ensejado uma primeira

202 TACrimSP – Ap. – Rel. Raul Mo[a – Jutacrim 85/356.


203 HUNGRIA, Nelson e LYRA, Roberto. Direito Penal. Vol. 2. Livraria Jacyntho. Rio de Janeiro, 1937, p.
360B383.
204 Idem, p. 368.
205 Idem, p. 368B369.

390
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manifestação ministerial no sentido de oferecer proposta de suspensão


condicional do processo (fl. 233).
Posteriormente, no entanto, o Ministério Público veio a trazer a existência
de diversos inquéritos policiais em face do apelante em desfavor do benefício
processual (fl. 300). A Folha de Antecedentes Criminais, todavia, não reprova
condutas anteriores, pois aponta apenas 4 (quatro) quatro anotações, uma
delas relativa a este processo (fls. 572/8). Tanto é assim que a pena privativa de
liberdade foi aplicada no mínimo legal e, posteriormente, substituída por pena
restritiva de direitos.
Por isso, voto no sentido de dar provimento ao recurso para absolver o
apelante.

Rio de Janeiro, 12 de novembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

391
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Tráfico de drogas, redução da pena e


cabimento do sursis: proporcionalidade

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL 2008.050.1143
APELANTE: XXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO: 31ª VARA CRIMINAL DA CAPITAL.

EMENTA: APELAÇÃO. CONDENAÇÃO PELA PRÁTICA


DO CRIME DEFINIDO NO ARTIGO 33 DA LEI Nº 11.343/06.
MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE CENSURA. FARTO CONJUNTO
PROBATÓRIO. REJEIÇÃO DA TESE DEFENSIVA DE COAÇÃO
MORAL IRRESISTÍVEL. APELANTE QUE EM MOMENTO
ALGUM ALEGOU TER SIDO COAGIDA AO EXTREMO DE NÃO
TER ALTERNATIVA A NÃO SER AGIR EM CONFRONTO COM
A NORMA PENAL. DIMINUIÇÃO DA PENA. CULPABILIDADE
ATENUADA. PROVIMENTO PARCIAL DO APELO TÃO-
SOMENTE PARA REDUZIR E AJUSTAR A SANÇÃO PENAL.
POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE QUE IMPEDE QUE
CONDUTA MENOS GRAVE SEJA PUNIDA COM O MESMO
RIGOR DA CONDUTA MAIS GRAVE. APLICAÇÃO DO
SURSIS. VEDAÇÃO DO ARTIGO 40 DA LEI nº 11.343/06 QUE
NÃO SE DIRIGE À CONDUTA DO ARTIGO 33,§ 4º DO MESMO
DIPLOMA LEGAL A apelante foi processada e condenada pela
prática da infração penal prevista no artigo 33 da Lei nº 11.343/06
à pena de três anos e quatro meses de reclusão e 333 diasBmulta.
Recurso defensivo com o escopo de obter primeiramente a absolvição
ao argumento de ter a apelante agido sob coação moral irresistível,
uma vez que apenas transportou a droga em obediência à ordem
emanada do traficante da favela. No entanto, em sendo mantida
a condenação, pleiteia a redução da pena na fração máxima, em
virtude do § 4º do artigo 33 e do artigo 41, ambos da Lei nº 11.343/06.

392
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Não comprovação de ter a apelante agido sob coação moral


irresistível. Conjunto probatório que demonstrou ter a apelante
agido com o fim de obter vantagem financeira pelo transporte da
droga. Manutenção da condenação. Apelante primária e de bons
antecedentes. Inexistência de provas a demonstrar estar a apelante
envolvida em atividade ou organização criminosa. Redução de
pena que se impõe. Sem embargo do entendimento deste Relator,
deliberouBse por decidir que a hipótese não é de delação premiada,
motivo pelo qual esta não foi reconhecida. Proporcionalidade
como postulado básico de contenção dos excessos do Poder
Público. Aplicação do sursis pelo prazo de dois anos, mediante as
condições dos artigos 77 e 78, ambos do Código Penal. RECURSO
PARCIALMENTE PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº. 2008.050.1143, em


que é apelante XXXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.
ACORDAM os Desembargadores da Quinta Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão de julgamento realizada em
03 de julho de 2008, em, por unanimidade de votos, conhecer o recurso e darBlhe
parcial provimento para reduzir a pena para um ano e oito meses de reclusão e
cento e sessenta e seis diasBmulta e, por maioria, concedeuBse o SURSIS pelo prazo
de dois anos, mediante as condições dos artigos 77 e 78 do Código de Processo
pena, com prestação de serviços à comunidade no primeiro ano do prazo.
Vencida, nesta parte, a JDS Desembargadora Rosa Helena Guita, que reduzia
as penas, mas não aplicava o SURSIS, nos termos do voto do Desembargador
Relator. Determinada a audiência admonitória à Vara de Execuções Penais e a
expedição de alvará de soltura.
Presidiu a sessão a Desembargadora Maria Helena Salcedo. Participou do
julgamento o Desembargador Paulo de Tarso Neves e a JDS Desembargadora
Rosa Helena Guita.

Rio de Janeiro, 03 de julho de 2008.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

393
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VOTO

XXXX foi processada e condenada no Juízo da 31ª Vara Criminal da Comarca


da Capital como incursa nas sanções do artigo 33 da Lei nº 11.343/06 à pena de
três anos e quatro meses de reclusão e trezentos e trinta e três diasBmulta.
A Defesa combate a referida decisão condenatória por meio deste recurso
de apelação e, postula inicialmente a absolvição da apelante pela tráfico de
drogas, em razão da inexigibilidade de conduta diversa, uma vez que a autora
agiu sob coação moral irresistível.
Porém, caso seja mantida a condenação pretende, seja diminuída do
máximo a pena nos termos do artigo 33, § 4º e artigo 41, ambos da Lei nº 11.343/06,
havendo, para tanto, o reconhecimento da delação premiada.

O recurso deve ser parcialmente provido.

Do pedido de absolvição baseado na coação moral irresistível.

De início, imperioso se faz analisar a conduta praticada pela apelante,


assim como os motivos que a embasaram, para, então, concluir acerca da
existência ou não de causa excludente da culpabilidade.
Cabe salientar, que o legislador infraconstitucional inseriu no artigo 22 do
Código Penal a coação moral irresistível como causa que afasta a exigibilidade
de conduta diversa e, conseqüentemente, exclui a culpabilidade.
Não custa lembrar que a culpabilidade constitui juízo de censurabilidade
e de reprovação sobre um fato determinado, praticado pelo autor, e não sobre a
sua forma de conduzir a vida, sua personalidade ou sobre os fatos que podem
ser praticados no futuro.
Vale destacar que a estrutura da culpabilidade é constituída pelo conjunto
de elementos capazes de explicar o porquê o sujeito é reprovado. São eles: a
imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta
diversa. Este último caracterizaBse como expectativa social de comportamento
diferente daquele que foi adotado pelo agente, sobre o que incide a causa de
exclusão da culpabilidade da coação moral irresistível. A coação moral irresistível
configura o aspecto negativo da exigibilidade de conduta diversa.
Assim, a culpabilidade pode não estar presente no caso concreto, apesar de
existir um injusto penal.

394
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Conforme ressaltado, uma das causas excludentes da culpabilidade é a


inexigibilidade de conduta diversa, que poderá ser afastada pela coação moral
irresistível.
Convém sublinhar que a coação irresistível é tudo que interfere na vontade
do agente impondo determinado comportamento, eliminando ou reduzindo o
poder de escolha.
Vale trazer à colação, a lição de JUAREZ TAVARES206 que dispõe “culpabilidade
significa, basicamente, atribuição pessoal de responsabilidade. Esta atribuição pessoal não
se confunde, porém, nem com a retribuição nem com a censura moral. Seu significado
se assenta em que, havendo o agente violado o âmbito de atuação da norma, formalizado
através das proibições ou determinações concretas, embora tivesse a capacidade e pudesse
concretamente agir de outra maneira, está sujeito a sofrer a intervenção do Estado por
meio de uma medida coercitiva.”
Certo é que o que debilita a vontade é a existência de um mal direcionado
ao agente ou à pessoa de seu relacionamento.
Cumpre alertar para o fato de que ameaças vagas e imprecisas não podem
ser consideradas suficientemente graves a justificar a exclusão da culpabilidade.
Ao tratar da gravidade da coação moral, o Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro decidiu na Apelação Criminal nº 2006.050.00362 da 6ª Câmara
Criminal, da lavra do Desembargador Moacir Pessoa de Araújo, vejamos:

CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO, Roubos qualificados.


Sentença condenatória. Absolvição. Insuficiência de provas. Não
ocorrência. Coação moral irresistivel, Inadmissibilidade. Tentativa.
Reconhecimento. Impossibilidade. Circunstância atenuante.
Confissão espontânea. Presença. Não verificação. Regime prisional,
Abrandamento. Descabimento. Demonstrando as provas constantes
dos autos que o agente, de forma clara e inequívoca, com consciência
e vontade mediante grave ameaça e emprego de arma de fogo,
participou, ativa e eficazmente. da subtração dos pertences dos
lesados. irretocável se mostra a solução condenatória encontrada.
Por outro lado. aquele que pretende se socorrer de unia causa de
exclusão de culpabilidade para eximirBse de responsabilidade
criminal assume o ônus de prováBla cabalmente, do que não se
desincumbiu o agente, eis que a coação que alega ter sofrido por
parte de um dos comparsas não saiu da esfera da mera alegação

206 Direito Penal da Negligência, 2 edição, Editora Lumen Juris, página 376.

395
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vazia e estéril. Mesmo que os agentes tenham sido presos logo


após a prática da infração penal, impossível o reconhecimento
da tentativa se não houve a recuperação da totalidade dos bens
subtraídos dos lesados. Tendo sido as penasBbases estabelecidas
em seus mínimos legais, irrelevante se revela o reconhecimento da
confissão espontânea (aliás, inexistente), eis que, a teor da Súmula
n” 231 do Superior Tribunal de Justiça, não podem as mesmas sofrer
redução pela presença de qualquer, ou de todas. as circunstâncias
atenuantes elencadas na Lei Penal. O regime fechado é o que mais
se amolda ao roubo cometido com o concurso de várias pessoas
e com o emprego de armas de fogo e o que mais se concilia com
a necessidade e exigência de severa repressão e prevenção de tão
grave infração penal, que tem causado séria intranqüilidade e
repulsa na sociedade.

Neste sentido, a doutrina de forma pacífica leciona que para que fique
caracterizada a coação moral irresistível é imprescindível que o autor do fato
tenha sido acometido de um temor de tal monta, que lhe seja inevitável a prática
de ato contrário ao direito.
NÉLSON HUNGRIA207 leciona que a coação irresistível há de se entender a
situação na qual o agente, coagido, “contribui com sua vontade”, para a realização da
conduta típica, mas, “como esta (vontade) não é livre deixa de ser censurável e, portanto,
culpável”. Salienta a doutrina do ilustre mestre que “A isenção de pena decorre, aqui,
tão/somente da ausência de culpabilidade, por inexistência de vontade livre, isto é, de uma
condição indispensável, sub species júris, ao nexo de causalidade psíquica.”
CLAUS ROXIN208 igualmente destaca que a culpabilidade é excluída quando
o agente pratica o delito para “afastar de si ou de alguém que lhe seja próximo um
perigo para a “integridade física, a vida ou a liberdade” que não pode ser evitado de outra
forma.” Continuando, afirma209 que “cada uma das muitas guerras demonstrou que
o ser humano é capaz de suportar perigos de vida, quando for preciso. Se apesar disso o
legislador dispensa de sanção as ações praticadas quando existente um sério perigo para a
integridade física, tal se dá porque a irrepetibilidade de tais situações torna desnecessária

207 Comentários ao Código Penal, Volume I, Tomo II, Rio de Janeiro, 1958, Editora Forense, páginas
256/257.
208 Gunther Arzt, Klaus Tiedemann, Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, 2007,
Editora Del Rey, página 25.
209 Claus Roxin, Política Criminal e o Sistema JurídicoB Penal, 2000, Editora Renovar, página 70.

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a prevenção, tanto geral como especial, e a –diminuta – culpabilidade, por si só, não
consegue justificar a pena.”
LUIZ REGIS PRADO210, a propósito, aduz que “irresistibilidade da coação
significa que o constrangimento deve ser impossível de ser vencido pelo coagido. O mal de
que é ameaçado deve ser grave, certo e inevitável, de modo a não permitir que se conduza
conforme o direito.” Prosseguindo, destaca o autor que “através da coação moral
irresistível, o coator obriga o coacto a praticar um delito contra um terceiro (vítima),
suprimindo/lhe a capacidade de resistência pela ameaça.”
Na mesma linha, igualmente, segue o Superior Tribunal de Justiça,
convindo referir em acórdão da 5ª Turma, proferido no HC nº 34912/SP, julgado
em 25/05/2004, cujo relator foi o Ministro José Arnaldo da Fonseca, vejamos:

“HC. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE.


ABSOLVIÇÃO EM 1ªINSTÂNCIA. APELAÇÃO MINISTERIAL.
RÉU REINCIDENTE. MANDADO DE PRISÃO. PEDIDO DE
LIBERDADE PROVISÓRIA. A coação física ou moral, para ser aceita
como excludente de culpabilidade, há de ser irresistível, inevitável
e insuperável, devendo ficar substancialmente comprovada por
elementos concretos existentes dentro do processo. Ademais, é
incabível a análise do conjunto fáticoBprobatório na via do habeas
corpus. A alegação da falta de credibilidade no depoimento das
testemunhas não foi matéria examinada no Tribunal a quo. Portanto,
não pode ser conhecido nessa parte o pleito, sob pena de supressão
de instância.”

Na hipótese dos autos, não existe sequer um elemento de prova que


demonstre ter a apelante atuado sob forte temor de que alguma ameaça pudesse
se concretizar.
Diante do que se viu, afiguraBse imprescindível a menção do trecho do
interrogatório da apelante, à fl. 88, onde ventilaBse ter a acusada agido não sob
coação, mas sim com o propósito de auferir vantagem financeira, vejamos:

“embora não tenha recebido dinheiro algum para transportar a droga,


havia a promessa de que a interroganda ganharia cento e
cinqüenta reais após fazer o serviço; que estava na companhia de
uma amiga que era menor, sendo que o dinheiro a ser recebido seria

210 Curso de Direito Penal Brasileiro, Volume I, 8ª edição, Editora Revista dos Tribunais, página 381.

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com ela dividido; que a proposta feita por Nyke foi dirigida a ambas,
interroganda e sua amiga.”

Corroborando o fato de não existir ameaça contra a apelante ou alguém de


sua família, vale trazer à colação trecho do depoimento do pai da apelante, à fl.
94, vejamos:

“que a partir deste epísódio, não teve problemas de ameaças contra


a sua família, já que, graças a Deus, sua filha nunca foi envolvida com
traficante”

Convém alertar para o fato de que se realmente tivesse existido ameaça, não
haveria o porquê de o traficante da favela ter prometido à apelante o valor de
cento e cinquenta reais para transportar a droga. Isso porque a coação exercida,
por si só, tem o condão de fazer com que o agente pratique o fato delituoso por
receio da concretização da ameaça, razão pela qual a referida coação é tida por
irresistível.
Em verdade, o que houve foi um “acordo” celebrado entre a apelante e o
traficante da favela. Este pagaria uma remuneração para que a apelante atuasse
como “mula” e realizasse o transporte da droga do Complexo do Alemão para o
Engenho da Rainha, conforme se depreende do depoimento do policial, à fl. 90.
Desta forma, cai por terra a tese defensiva de que a apelante teria
transportado a droga em razão de ameaça, motivo pela qual estaria excluída a
culpabilidade.
Sendo assim, não há que se falar em coação moral irresistível no presente
caso. Correto, portanto, o juízo de censura.

Da pena.
Da causa especial de diminuição de pena prevista no artigo 33, § 4º da Lei
nº 11.343/06.

É curial assinalar de início que o legislador ao elaborar a Lei nº 11.343/06


diferenciou o traficante habitual do traficante ocasional.
Para tanto, inseriu no artigo 33, § 4º da Lei nº 11.343/06, uma causa especial
de diminuição de pena para àquele traficante que não se dedicasse às atividades
criminosas, nem integrasse organização criminosa, além de ser primário e de
bons antecedentes.

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Evidentemente, o legislador fez tal distinção com o intuito de observar o


princípio da proporcionalidade, uma vez que não há como punir o traficante
ocasional com a mesma intensidade com que se pune aquele que realiza o tráfico
como uma empresa, de forma profissional e habitual.
Ainda segundo a lição de MARIÂNGELA GOMES211 “o significado do
princípio da proporcionalidade em sentido estrito relaciona/se com a necessidade de que
todos os delitos sejam punidos com uma pena justa, proporcional à gravidade da ação
punível, particularmente considerada, e ao mesmo tempo congruente com as outras
penalidades previstas para o resto dos delitos existentes na legislação penal.”
Cabe esclarecer que, neste caso, a quantidade da droga, por si só, não pode
impedir o emprego da causa de diminuição prevista na lei. Cumpre dizer, que a
quantidade da droga é critério a orientar à definição da pena base.
Nessa linha de raciocínio, é necessário citar decisão proferida pelo Egrégio
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na apelação nº 2008.050.00164, cujo relator
foi o Desembargador Marcus Basílio, vejamos:

EMENTA: PENAL - TRÁFICO DE ENTORPECENTES - SEN-


TENÇA - NULIDADE - PENA - CONFISSÃO TRAFICANTE
VIRGEM - CAUSA DE DIMINUIÇÃO DO § 4º DO ARTIGO
33 – APLICAÇÃO. Sendo enfrentadas na sentença as questões
trazidas pelas partes e não havendo dúvida com relação à
materialidade e autoria do delito, até porque confessado pelas
acusadas, inteiramente descabido o pedido de nulidade por
violação ao princípio constitucional do artigo 93, IX.O Juiz possui
manifesta discricionariedade no calibramento da pena base,
devendo o aumento respectivo se escorar nas circunstâncias
elencadas no artigo 59 do Código Penal, com observância da regra
da proporcionalidade. A grande quantidade de entorpecente
apreendida justifica o aumento da pena base, com posterior redução
na fase intermediária por força da confissão judicial. A norma do §
4º do artigo 33 da Lei 11343/06 procura atenuar a pena do traficante
ocasional, aquele que não se dedica a qualquer organização
criminosa. Não basta a primariedade e bons antecedentes. Somente
se justifica a redução quando reconhecido que se trata de um fato
episódico na vida da acusada. A quantidade da droga, por si só,
não impede o reconhecimento da causa de diminuição respectiva.

211 O princípio da proporcionalidade no direito penal, Editora Revista dos Tribunais, 2003, página 176.

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Na hipótese, nada afastando a alegação de que as acusadas seriam


mulas episodicamente e mediante remuneração eventual usadas
para transportar a droga, a redução da pena na terceira fase do
critério trifásico se justifica em concreto.

O magistrado a quo, quando da aplicação da causa especial de diminuição


de pena na sentença (fl. 115), optou pela redução mínima, ao argumento de ter
a apelante praticado todos os atos de execução, quase atingindo a consumação
do crime.
Ocorre que evidencio um equívoco no referido decisum. O artigo 33, § 4º
da Lei nº 11.343/06 não condiciona o percentual a ser diminuído ao iter criminis
percorrido.
É preciso destacar que a apelante foi processada e condenada pelo transporte
de drogas, crime de mera conduta e, pois, de consumação antecipada.
Tivesse o magistrado reconhecido a modalidade tentada definida no artigo
14, II do Código Penal, isso haveria de constar do dispositivo da sentença (fls.
115), naturalmente com a operação da conseqüência jurídica inafastável: a
redução da pena.
Por este ângulo a sentença é contraditória e a ausência de outro fundamento
para a limitação da fração de diminuição de pena importa em fazer incidir a
maior redução, esta sim compatível com a culpabilidade atenuada da apelante.
De fato, cabe salientar que a lei não estabeleceu um parâmetro a justificar
a diminuição da pena, se no máximo ou no mínimo. Não obstante, cabe ao
aplicador do direito, utilizandoBse do princípio da razoabilidade estabelecer o
percentual da diminuição no caso em concreto.
Neste sentido, leciona o professor SALO DE CARVALHO212 “A necessária
relação de simetria entre o meio e fim, segunda a doutrina, deve orientar o operador do
direito para constatar se houve ou não ruptura da razoabilidade.”
Sem embargo, várias situações devem ser analisadas pelo magistrado para
concluir pela maior ou menor diminuição. Se assim não fosse, não haveria a
necessidade do legislador estipular uma margem percentual para a diminuição
da pena, bastaria estabelecer uma fração fixa.
Conforme se depreende do conjunto probatório, a apelante é primária, pois
sua folha de antecedentes criminais (fl. 97/100) encontraBse sem anotações, tendo
este fato sido reconhecido na sentença, à fl. 115; também não há nos autos notícia
de qualquer ato, fora a prática do crime, que desabone a conduta da apelante.

212 A Política Criminal de Drogas no Brasil, 3ª edição, 2006, Editora Lumen Juris, página 180.

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No mais, cumpre dizer que não há nos autos qualquer elemento sequer que
demonstre ou comprove ser a apelante integrante de organização criminosa ou
se dedicar à atividade criminosa.
No que se refere ao ônus da prova, este, nos termos do artigo 156 do Código
de Processo Penal é da acusação.
Segundo a lição de AURY LOPES JR213 “ É importante recordar que, no processo
penal, não há distribuição de cargas probatórias: a carga da prova está inteiramente nas
mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória
(denúncia ou queixa), mas também porque está protegido pela presunção de inocência.”
Continuando, o Ilustre autor afirma: “O processo penal define uma situação
jurídica em que o problema da carga probatória é, na realidade, uma regra para o juiz,
proibindo/o de condenar alguém cuja culpabilidade não tenha sido completamente
comprovada.”
Por derradeiro, a acusação não provou estar a apelante envolvida em
atividade ou organização criminosa. Ao contrário, o que ficou provado foi que
o fato delituoso consistiu em um fato esporádico, isolado na vida da apelante.
Neste viés, destaca ALEXANDRE BIZZOTTO214 “como o comando vinculante
é o do princípio da inocência, não é admissível a presunção da dedicação em atividade
criminosa. São necessárias provas demonstradas em fundamentação para se reconhecer
a existência desta circunstância e a respectiva vedação à causa de diminuição de pena.”
Continua o autor ao estabelecer que “a mesma situação rege o reconhecimento de que
o julgado integra uma organização criminosa. Acredita/se que é de difícil caracterização
a retratação da participação em organização criminosa.”
No que tange à culpabilidade, vale destacar que levandoBse em consideração
a condição socioeconômica da apelante, o fato de ter menos de vinte e um anos à
época do fato, é forçoso concluir que sua culpabilidade é atenuada.
Não se pode imaginar que uma pessoa que apresenta essas características
forme juízo de censura equivalente ao de uma pessoa que possui grau completo
de escolaridade e que tenha boas condições sociais e econômicas.
Certo é que pessoas que vivem em áreas carentes e não dispõem de maiores
recursos econômicos e que atuam como “mulas”, não podem ser confundidas
com traficantes que introduzem drogas em território nacional e procedem a sua
distribuição entre os diversos lugares.
O criminólogo ALESSANDRO BARATTA215 alertou que “A posição precária
no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação profissional)

213 Direito Processual e sua Conformidade Constitucional, Vol. 1, editora Lumen Juris, página 519 e 520.
214 Andréia de Brito Rodrigues, Nova Lei de Drogas, 2007, Editora Lumen Juris, página 74.
215 Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, 2ª edição, 1999, Editora Freitas Bastos, página 165.

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e defeitos de socialização familiar e escolar, que são características dos indivíduos


pertencentes aos níveis mais baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte
da criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade,
revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.”
Continuando o criminólogo sublinhou216 que “só aparentemente está a disposição
do sujeito escolher o sistema de valores ao qual adere. Em realidade, condições sociais,
estruturais e mecanismos de comunicação e de aprendizagem determinam a pertença
de indivíduos a subgrupos ou subculturas, e a transmissão aos indivíduos de valores,
normas, modelos de comportamento e técnicas mesmo ilegítimos.”
A crimilóloga LOLA ANIYAR DE CASTRO,217 neste sentido, menciona em
sua obra a aplicação do “princípio da exigibilidade social de outro comportamento”
sendo este a “a avaliação da desigualdade social das alternativas disponíveis, para o não
exigibilidade de outra conduta.”
Evidentemente, que não está a se defender que a situação carente da
apelante servirá de fator justificador de sua conduta, nem tampouco a ensejar
a sua absolvição. Todavia, não há como fechar os olhos para a realidade social
em que vivemos e não aceitar o fato de que tais pessoas, que se encontram à
margem da sociedade, tenham uma culpabilidade atenuada em comparação
com pessoas que possuam grau completo de instrução e melhores condições
socioeconômicas.
No mais, é de supor que a imposição de pena tenha como objetivo afastar a
apelante da criminalidade e não inseriBlo ainda mais profundamente.
Neste contexto, cabe frisar que a Lei de Execuções Penais prevê em seu
artigo 1º o caráter preventivo especial da pena, a saber: a ressocialização, ao
dispor que “a execução tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão
criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado
e do internado”. Todavia, é sabido que a pena privativa de liberdade não vem
cumprindo o seu papel ressocializador.
Desse modo, a quantidade de pena privativa de liberdade a ser aplicada
deve ser a estritamente necessária aos fins almejados, sob pena de se produzir
efeitos contrários à reeducação e à reinserção do condenado.
Apesar da crise no sistema prisional ser fato notório em vários países e,
em especial no Brasil, não custa trazer à colação o magistério de WINFRIED
HASSEMER218 “o preso é privado amplamente dos seus contatos íntimos e sociais.

216 Alessandro Bara[a, Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal, 2ª edição, 1999, Editora Freitas
Bastos, página 74.
217 Pensamento Criminológico, 2004, Editora Mandamentos, página 69.
218 Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, 2005, Sergio Antonio Fabris Editor, página 378.

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Ele é levado a um ambiente social que o mantém afastado dos problemas, nos quais ele
fracassou fora do estabelecimento. Ele desaprende as técnicas sociais de convívio e de
aprovação. E ao término da pena ele volta, desabituado e estigmatizado a um mundo que,
fora dos muros da prisão, se desenvolveu de acordo com as suas próprias leis.”
CLAUS ROXIN219 destaca que “existe consenso no sentido de que, em todo caso,
a pena é limitada pela medida da culpa do ato ou seja, ninguém, por razões de prevenção
geral ou especial, pode ser punido mais severamente do que o corresponde à gravidade de
sua conduta e de sua culpa pessoal.”
No sentido de que sempre que as circunstâncias do fato autorizarem
deverá a pena ser fixada no mínimo previsto pela lei, a fim de se favorecer à
ressocialização do preso, manifestouBse o Supremo Tribunal Federal220 no HC
72842, cujo relator foi o Ministro Marco Aurélio, vejamos:

PENABBASE B CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS B RÉU PRIMARIO E


DE BONS ANTECEDENTES. Diante de vida pregressa irreprovável,
o juiz deve, tanto quanto possível e quase sempre o será, fixar a
penaBbase no mínimo previsto para o tipo, contribuindo, com
isso, para a desejável ressocialização do condenado. PENABBASE
B EXACERBAÇÃO B REVELIA. O comparecimento em juízo, ônus
processual mitigado quando em questão a liberdade, e desinfluente a
determinação da penaBbase. PENA B DETENÇÃO B RESTRITIVA DE
DIREITO B SUBSTITUIÇÃO B ATUAÇÃO DE OFÍCIO. Estabelecida
pena privativa de liberdade inferior a um ano ou sendo o crime
culposo, incumbe ao juízo o exame de oficio, dos demais pressupostos
autorizadores da substituição pela restritiva de direitos B artigo 44
do Código Penal. SURSIS B REVELIA B EXAME DE OFÍCIO. Tanto
vulnera a lei aquele que inclui no campo de aplicação hipótese não
contemplada, como o que exclui espécie por ela abrangida. A revelia
não e fato jurídico idôneo a obstaculizar o deferimento de suspensão
condicional da pena B artigo 77 do Código Penal. SURSIS B PENA
RESTRITIVA DE DIREITOS B IMPROPRIEDADE. O instituto da
suspensão condicional da pena e incompatível com a pena privativa
de direitos B inteligência dos artigos 44, 77 e 80 do Código Penal.

219 Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, 2007, Editora Del Rey, página 12.
220 HC nº 72842/MG, 2ª Turma, Ministro Marco Aurélio, julgamento 18/12/1995.

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Por derradeiro, em razão de a apelante ser primária, ostentar bons


antecedentes, não se dedicar à atividades criminosas nem integrar organização
criminosa, bem como por ter culpabilidade atenuada, ante às razões já esposadas;
considerando que a pena privativa de liberdade não tem cumprido o seu papel
ressocializador, entendo razoável a diminuição da pena em dois terços. Assim,
feita a diminuição temBse um quantitativo de um ano e oito meses de reclusão e
cento e sessenta diasBmulta.

Da delação premiada.

Com reserva da posição pessoal deste Relator, a delação premiada não foi
acolhida.
Sem embargo disso, registreBse que a apelante pleiteou o reconhecimento
da delação premiada e a conseqüente diminuição da pena, nos termos do artigo
41 da Lei nº 11.343/06.
Cabe esclarecer, que o legislador, na Lei nº 11.343/06, repetiu a tendência
adotada em outras leis brasileiras, no sentido de beneficiar àquele que colabora
com a justiça.
Com a delação premiada firmaBse um “pacto” entre o autor do fato ilícito e
o Estado. Se de um lado o Estado obtém informações para desvendar infrações
penais, que só seriam solucionadas após árdua e longa investigação; de outro
lado, o autor do fato ilícito consegue diminuir a quantidade da pena, já que não
é possível retirar o caráter aflitivo da mesma.
O aludido dispositivo legal prevê os requisitos para a concessão da delação
premiada, a saber: identificação dos demais colaboradores e recuperação total
ou parcial do produto do crime.
Não obstante, cabe mencionar que o que acarreta o benefício é colaboração
do agente, pois não seria razoável que o benefício legal decorrente da delação
ficasse “nas mãos” da polícia, dependendo da sua atuação posterior.
No mais, o artigo 41 da Lei nº 11.343/06 não exigiu a efetividade da
colaboração. Cabe esclarecer, que o legislador quando quis condicionar a
concessão do benefício à efetividade da colaboração, o fez expressamente, como,
por exemplo nas Leis nº 9.034/95 e 9807/99.
Neste sentido leciona ALEXANDRE BIZZOTO221 “observa/se que a comentada
previsão é menos rígida do que a que está prevista no artigo 14 da Lei 9.807/99 (de expressa
incidência na problemática das drogas, conforme dita o artigo 41 da lei 11.343/06), ao

221 Nova Lei de Drogas, 2007, Editora Lumen Juris, página 97.

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não exigir que o acusado seja primário e nem a efetividade da colaboração, como
reclama a lei de proteção às testemunhas.”
In casu, a apelante forneceu, em sede policial, o nome do outro traficante
conhecido como Nyke, permitindo sua identificação. Tal informação foi ratificada
em juízo, quando de seu interrogatório de fl. 89, vejamos:

“que além do traficante Nyke conhece apenas de vista outros elementos


relacionados ao tráfico, isto devido a comunidade onde reside; que os nomes
apontados na delegacia pela depoente são pessoas que conhece apenas de
vista, sobre os quais sabe da relação com o tráfico local.”

Neste sentido também foi o depoimento do policial que efetuou a prisão em


flagrante da apelante, in verbis:

“que não presenciou o depoimento da ré em sede policial, entretanto soube


que ela teria delatado outros nomes de elementos envolvidos com o tráfico
já procurados pela polícia.” (fl. 21).

Finalmente, convém explicitar que de acordo com o laudo de fls. 26, foi
apreendida com a apelante toda a droga que se destinava à comercialização no
Engenho da Rainha.
Entretanto, cumpre esclarecer que, em juízo, a apelante não identificou os
demais partícipes.
Desta feita, ante aos fatos acima esposados, a meu sentir, a apelante faria jus
ao benefício legal da delação premiada, com a conseqüente diminuição da pena
em um terço.
Todavia, o entendimento dominante foi no sentido de que não houve
qualquer resultado prático da conduta da Apelante, motivo pelo qual este Relator,
com reserva de sua posição pessoal, rendeuBse ao mencionado entendimento.

Do sursis.

Inicialmente, cumpre destacar que o artigo 44 da Lei nº 11.343/06 veda a


aplicação do sursis a alguns tipos penais descritos no aludido diploma legal.
Neste sentido, destacaBse que a justificação legal se dirige apenas ao artigo
33, caput e § 1º e aos artigos 34 ao 37, todos da Lei nº 11.343/06.

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Deste modo, conforme se depreende do texto do artigo 44 da Lei nº 11.343/06,


não é permitida a suspensão condicional da pena ao traficante habitual, ou seja,
aquele que faz do tráfico sua profissão.
A este respeito, vale destacar que o artigo 33, § 4º da referida Lei de Drogas
previu tratamento mais brando ao traficante ocasional, conferindo a este uma
causa especial de diminuição de pena, em razão de sua menor culpabilidade.
No entanto, apesar de o legislador ter concedido “tratamento” penal menos
severo ao traficante ocasional, manteve sua conduta inserida dentro do artigo 33.
Por esta razão, alguns juízes passaram a defender a tese de que o artigo 33,
§ 4º não constitui crime autônomo e, portanto, não estaria sujeito ao tratamento
penal diferenciado. É mister esclarecer que este argumento é secundário e se
fundamenta apenas em critérios de topografia normativa.
A cominação de penas pelo legislador não se faz arbitrariamente, mas
por força da Constituição da República ao guardar correspondência com a
culpabilidade dos agentes.
NILO BATISTA222, neste sentido, esclarece que “a ciência do direito penal tem
por objeto o ordenamento jurídico/penal positivo e por finalidade permitir uma aplicação
equitativa (no sentido de casos semelhantes encontrarem soluções semelhantes) e justa
da lei penal.”
DepreendeBse da lição do mencionado autor que, a contrario sensu, em se
vislumbrando diferentes graus de culpabilidade, o legislador deverá atribuirB
lhes diferentes sanções, atendendoBse, assim, ao postulado da proporcionalidade.
Em outras palavras, o legislador não está totalmente livre para tratar de
forma idêntica condutas que em seu standart claramente revelam culpabilidade
distintas a ponto de remeter a juízo de reprovação diametralmente opostos.
Desta feita, o legislador, ao elaborar a norma, encontra limites nos princípios
da razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de configurarBse o “abuso do
poder de legislar”.
Esses limites possuem suas raízes no princípio constitucional da isonomia,
inserido no artigo 5º, caput da Constituição da República.
Tal comando, vale frisar, é também direcionado ao legislador.
LUÍS ROBERTO BARROSO223 destaca que “reproduzindo o conhecimento
convencional, costuma/se afirmar que a isonomia traduz/se em igualdade na lei – ordem
dirigida ao legislador/ e perante a lei/ ordem dirigida ao aplicador da lei. Em seguida, é de

222 Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, 11ª edição, Editora Revan, página 117.
223 Interpretação e Aplicação da Constituição, 4ª edição, Editora Saraiva, página 235.

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praxe invocar/se a máxima aristotélica de que o princípio consiste em ‘tratar igualmente


os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que eles se desigualam.”
Assim, infereBse, de forma inequívoca, do artigo 33, § 4º da Lei nº 11.343/06
que o legislador quis tratar de forma menos severa o traficante ocasional, não
profissional, justamente por reconhecer a sua menor culpabilidade em relação
ao traficante habitual ou profissional.
Por conseqüência, não seria razoável dar o mesmo tratamento às condutas
tipificadas no caput e no parágrafo quarto do artigo 33 da Lei de Drogas,
unicamente por razões topográficas em detrimento da sistemática penal.
A topografia cede lugar à harmonia do sistema.
A conduta como tipo autônomo ou sua manutenção na condição de tipo
derivado configura eleição de política legislativa, desvinculada dos métodos
pertinentes à dogmática penal.
Este elemento não dominado pelo intérprete/aplicador da norma não
poderia erigirBse em critério de definição das respostas penais, nas hipóteses em
que a proposta da lei em si revela tratarBse de comportamentos orientados em
culpabilidades distintas.
Deste modo, deve o legislador, na elaboração das leis, observar o princípio
da proporcionalidade de forma a determinar que as respostas penais sejam
proporcionais aos graus de culpabilidade ou no dizer de ULFRID NEUMANN224
“não é razoável atirar em pardais com canhões.”
Continuando, o mencionado autor alemão referindoBse ao princípio da
proporcionalidade como instrumento de limitação do direito penal assim dispôs
“ele proíbe infligir ao indivíduo ônus que são quanto aos objetivos perseguidos, em
sentido instrumental, desnecessários e, sob aspectos normativos, inadequados.”
ROGÉRIO JOSÉ BENTO225afirma que “a jurisdição precisa ser exercida contra
o arbítrio e não se admite nem o arbítrio do legislador nem do julgador.”
Em verdade, trataBse de encontrar ponto de equilíbrio que não converta o
poder de punir do Estado em algo meramente retributivo, pois, com maior ou
menor sucesso em cada caso, é certo que a própria Lei de Execuções Penais fixa
entre seus objetos primordiais a ressocialização.
A proporcionalidade configura, também, repúdio ao excesso punitivo226. E o
ângulo que combina os interesses do Estado na manutenção da ordem e disciplina

224 Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 71, 2008, Editora Revista dos Tribunais, página 210/211.
225 Nascimento, Rogério José Bento Siares, Abuso do Poder de Legislar, 2004, Editora Lumen Juris,
página 128.
226 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição.
São Paulo. Malheiros. 2005, p. 133B137.

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carcerárias com o interesse da cidadania, pela valorização do trabalho, permite


que se faça leitura mais atual da própria Lei de Execuções. É indispensável ajustar
a interpretação e a execução da pena às normas constitucionais e ao regime de
postulados que procura fazer da ordem jurídica instrumento de efetivação dos
direitos fundamentais, lançando o olhar ao horizonte futuro.
Convém aqui destacar o entendimento dominante na doutrina no sentido
de que ao cominar “...as margens penais, o legislador não apenas arca com
todas as conseqüências advindas de tal opção, mas, antes disso, as considera
e as avalia, de modo que aquelas acabam mesmo por auxiliar a orientação da
atividade elaborativa do ordenamento punitivo do Estado.”227
TrataBse, pois, não apenas de uma questão de razoabilidade, mas também
de proporcionalidade.
Por isso cabe reafirmar que a exigência de congruência do ordenamento
jurídico impõe a interpretação conforme a Constituição em virtude da qual o
agente responsável pela prática de crime de menor gravidade não pode ser
punido de forma mais severa que aquele outro para o qual desde o princípio a
lei reconhece ser responsável por infração penal de maior gravidade
Caso o legislador não paute seu atuar observando o princípio da
proporcionalidade, o intérprete/aplicador da norma deverá fazêBlo, porquanto o
Poder Judiciário não é simplesmente aplicador da norma ao caso concreto e sim
deve perseguir o real alcance da norma.
O Supremo Tribunal Federal,228 em decisão recente, criou importante
precedente ao aplicar o princípio da proporcionalidade para solucionar a questão
do “abuso” do Poder Legislativo no artigo 180, § 1º, do Código Penal, vejamos:

EMENTA: RECEPTAÇÃO SIMPLES (DOLO DIRETO) E RE-


CEPTAÇÃO QUALIFICADA (DOLO INDIRETO EVENTUAL).
COMINAÇÃO DE PENA MAIS LEVE PARA O CRIME MAIS
GRAVE (CP, ART. 180, “CAPUT”) E DE PENA MAIS SEVERA PARA
O CRIME MENOS GRAVE (CP, ART. 180, § 1º). TRANSGRESSÃO,
PELO LEGISLADOR, DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
DA PROPORCIONALIDADE E DA INDIVIDUALIZAÇÃO
“IN ABSTRACTO” DA PENA. LIMITAÇÕES MATERIAIS QUE
SE IMPÕEM À OBSERVÂNCIA DO ESTADO, QUANDO DA
ELABORAÇÃO DAS LEIS. A POSIÇÃO DE ALBERTO SILVA

227 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São
Paulo. Revista dos Tribunais, 2003. p.176.
228 STF, MC em HC nº 92525B1 RJ, Min. Celso de Mello, julgamento 31/05/08.

408
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FRANCO, DAMÁSIO E. JESUS E DE CELSO, ROBERTO, ROBERTO


JÚNIOR E FÁBIO DELMANTO. A PROPORCIONALIDADE COB
MO POSTULADO BÁSICO DE CONTENÇÃO DOS EXCESSOS
DO PODER PÚBLICO. O “DUE PROCESS OF LAW” EM
SUA DIMENSÃO SUBSTANTIVA (CF, ART. 5º, INCISO LIV).
DOUTRINA. PRECEDENTES. A QUESTÃO DAS ANTINOMIAS
(APARENTES E REAIS). CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO. INB
TERPRETAÇÃO ABBROGANTE. EXCEPCIONALIDADE.
UTILIZAÇÃO, SEMPRE QUE POSSÍVEL, PELO PODER JU-
DICIÁRIO, DA INTERPRETAÇÃO CORRETIVA, AINDA QUE
DESTA RESULTE PEQUENA MODIFICAÇÃO NO TEXTO
DA LEI. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. DECISÃO

Com efeito, o sursis é permitido àquele cuja conduta encontraBse tratada


no artigo 33, § 4º da lei nº 11.343/06, sendo de menor importância o fato de tal
conduta estar prevista no artigo 33 do aludido diploma legal.
Pelo exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e, no mérito, darBlhe
parcial provimento para reduzir a pena para um ano e oito meses de reclusão e
cento e sessenta e seis diasBmulta e conceder o SURSIS pelo prazo de dois anos,
mediante as condições dos artigos 77 e 78 do Código de Processo pena, com
prestação de serviços à comunidade no primeiro ano do prazo.
ExpeçaBse alvará de soltura.
Audiência Admonitória a ser realizada no Juízo da Execução, ao qual caberá
o detalhamento das referidas condições.

Rio de Janeiro, 03 de julho de 2008.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

409
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Roubo com emprego de arma

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL 2008.050.01996
APELANTE: XXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO: 1ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE DUQUE DE CAXIAS
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigo 157, §2°, incisos I e V, do Código Penal.

EMENTA: APELAÇÃO. PENAL. APELANTE DENUNCIADO


E CONDENADO PELA PRÁTICA DO CRIME DEFINIDO NO
ARTIGO 157, § 2º, INCISOS I E V, DO CÓDIGO PENAL. PROVA
SEGURA DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA DO CRIME DE
ROUBO MAJORADO PELO EMPREGO DE ARMA DE FOGO.
FRAGILIDADE PROBATÓRIA, CONTUDO, NO QUE TOCA
À CAUSA ESPECIAL DE AUMENTO DE PENA RELATIVA À
RESTRIÇÃO DE LIBERDADE DA VÍTIMA, CUJA EXCLUSÃO
SE IMPÕE. PENA QUE NÃO MERECE REPARO. AJUSTE DO
REGIME FIXADO NA SENTENÇA. Apelante condenado à pena de
cinco anos e quatro meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente
em regime fechado, e ao pagamento de treze diasBmulta pela prática
do crime definido no artigo 157, § 2º, incisos I e V, do Código Penal.
Defesa que, conformada com a condenação, postula tãoBsomente o
afastamento das causas de aumento de pena relativas ao emprego
de arma de fogo e de restrição da liberdade da vítima, a redução da
penaBbase para o mínimo legal, bem como a alteração do regime
fixado para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade.
Recurso que deve ser parcialmente provido. Manutenção do juízo
de censura. Confissão do acusado convergente com a conclusão
judicial sobre autoria e materialidade da infração penal. Prova oral
que confirma a autoria do crime de roubo majorado pelo emprego
de arma de fogo. Tese defensiva para excluir a majorante referente
à restrição da liberdade da vítima que prospera. Majorante que

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somente deve ser reconhecida quando, após a subtração, o agente


mantém a vítima sob seu poder para assegurar ou facilitar a
vantagem. Entendimento dominante no sentido de que o tipo de
injusto derivado tutela a liberdade da vítima do roubo. Majorante
que, portanto, deve ser excluída. PenaBbase mantida em patamar
mínimo e exasperada na fração de um terço que não merece reparo.
Arma não apreendida e por essa razão não examinada. Prova
testemunhal que supre a ausência do exame e, com relação a isso, é
indiscutível o emprego de arma. Versão do apelante de que a arma de
fogo não passava de um brinquedo que, ao final, não tomou forma,
mostrandoBse dissociada do conjunto probatório. Ajuste do regime
de cumprimento da pena privativa de liberdade para o semiaberto.
Regime que se mostra adequado à atenuada culpabilidade do agente
que investe contra exBempregador, sendo previsível sua posterior
identificação e responsabilização. Conduta que, nestes termos, beira
ao rudimentar. Apelante primário (fls. 44/7) e, por isso, justificaBse a
adoção do regime semiaberto.
PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Criminal nº


2008.050.01996, em que é apelante XXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que integram a Quinta
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão
de julgamento realizada no dia 17 de setembro de 2009, dar parcial provimento
ao recurso, para excluir a causa especial de aumento de pena relativa à restrição
da liberdade da vítima, mantida, porém, a pena, abrandandoBse o regime de
início de cumprimento da sanção privativa de liberdade para o semiaberto.
A sessão de julgamento foi presidida pelo Desembargador Nildson Araújo
da Cruz e participaram do julgamento como revisor o Desembargador Cairo
Ítalo França David e como vogal a Desembargadora Rosa Helena Guita.

Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

411
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VOTO

TrataBse de recurso de apelação interposto por XXX contra sentença que


o condenou à pena de cinco anos e quatro meses de reclusão, a ser cumprida
inicialmente em regime fechado, e ao pagamento de treze diasBmulta pela
prática do crime definido no artigo 157, § 2º, incisos I e V, todos do Código Penal.
A Defesa postula a reforma parcial do julgado de sorte a excluir as causas
de aumento de pena relativas ao emprego de arma de fogo e de restrição da
liberdade da vítima, bem como a redução da penaBbase para o mínimo legal e a
imposição de regime menos gravoso (fls. 163/5).

O recurso deve ser parcialmente provido

Inicialmente, sobreleva notar que não há discussão a respeito da autoria


nem da materialidade do crime praticado, razão pela qual o juízo de censura
fica mantido.
Com efeito, as provas produzidas neste processo demonstram o acerto
do juízo de censura à luz da confissão do acusado (fls. 88/9 e 107/8), do
reconhecimento da vítima ZZZ (fls. 111/2) e do depoimento da testemunha YYY
(fls. 109/110), que confirmam que o apelante, com emprego de arma de fogo,
subtraiu determinada quantia em dinheiro, cujo montante não se pode precisar,
do interior de uma gaveta do estabelecimento comercial denominado “Drogaria
Expedicionário.”
Nesse contexto, a confissão do acusado, confirmada pelo depoimento
prestado em juízo pelas vítimas, é capaz de esclarecer de forma pormenorizada
a dinâmica do evento delituoso e converge com a conclusão judicial sobre a
materialidade e a autoria da infração penal.
Assim é que o acusado, ao ser interrogado, confirmou os fatos narrados na
denúncia. Esclareceu que trabalhou cerca de um ano na “Drogaria Expedicionário”
e que quatro meses antes da prática do delito foi demitido. Alegou, ainda, que não
recebeu seus direitos trabalhistas e que “desesperado, pois não tinha como sustentar sua
família e filhos, resolveu pegar o que lhe era devido na drogaria”.
Declarou, ainda, que como sabia que a drogaria tinha segurança entrou e
conversou com as funcionárias, saiu em seguida e retornou posteriormente para
cometer o crime.
Afirmou que “resolveu prender os presentes dentro do depósito para que pudesse
proceder ao assalto sem maiores percalços” e, ainda, “que desde o momento em que
anunciou o assalto durou o tempo de aproximadamente 4 minutos.”

412
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A vítima ZZZ, a seu turno, em depoimento pormenorizado, confirmou


em juízo que no dia dos fatos “o acusado anunciou o assalto e determinou para que
todos os presentes se trancassem dentro de um depósito da Drogaria”. Declarou que o
referido depósito somente é trancado pelo lado de fora e que como o acusado não
conseguiu abrir a gaveta onde estava o dinheiro, retornou e determinou que a
depoente assim procedesse. Declarou, ainda, “que os presentes ficaram trancafiados
no depósito por aproximadamente 20 minutos”.
A testemunha YYY, por sua vez, em depoimento judicial, esclareceu que
“Patrícia comentou com a depoente que o Senhor que entrou na Farmácia e pediu um
copo de água se chamava Santana e era um ex/funcionário da Farmácia; que se recorda
de ter ouvido Patrícia comentar que ele perguntava sobre a existência de um segurança”.
Afirmou, ainda, que “ouviu sendo anunciado o assalto; que o acusado falou “perdeu”
e mandou que todos fossem para um depósito”.
Narrou, finalmente, que “o acusado pegou dinheiro da gaveta e alguns
medicamentos de venda restrita” e que “tinha algo em torno de R$ 2.000,00.”
Se a prova, todavia, justifica a manutenção do juízo de censura, o mesmo
não se pode dizer no que toca à majorante referente à privação da liberdade da
vítima.
Com efeito, a alegação autodefensiva, no sentido de que a ação do acusado
não durou mais do que quatro minutos, foi corroborada por YYY, que, às fls.
109/10, declarou que “ficou trancada durante 5 minutos” no depósito onde o
apelante determinou que todos permanecessem.
É verdade que ZZZ menciona o período de vinte minutos. A informação
trazida pela vítima, contudo, em, confronto com as declarações de YYY, colocam
no mínimo dúvida sobre o tempo durante o qual as vítimas ficaram trancadas
no depósito.
Isso impõe, em respeito ao princípio da presunção de inocência (artigo 5.º,
inciso LVII, da Constituição da República), a exclusão da causa de aumento de
pena correspondente (inciso V do § 2.º do artigo 157 do Código Penal).
Em relação ao emprego de arma não se pode extrair a mesma conclusão.
A esse respeito, tenho afirmado que a melhor doutrina não contesta tratarB
se o corpo de delito do conjunto de elementos físicos ou sensíveis do fato
criminoso, quer os que constituem o delito, quer os que serviram para praticáBlo,
assim divididos e designados de corpus criminis, corpus instrumentorum e corpus
probatorium (Rogério Lauria Tucci B Do Corpo de Delito no Direito Processual
Penal Brasileiro; Nélson Hungria B A Prova no Anteprojeto de Código de Processo
Penal; e, principalmente, João Mendes de Almeida Junior B Direito Judiciário
Brasileiro). A lei, por sua vez, condiciona o acertamento dos fatos típicos que

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deixam vestígios ao exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo


supriBlo sequer a confissão dos réus (artigo 158 do Código de Processo Penal).
Desse modo, sempre que a infração deixar vestígios, a prova da sua
existência estará condicionada ao citado exame, substituível apenas, em casos
excepcionais, pela prova testemunhal (artigo 167 do Código de Processo Penal).
É certo que a exigência da lei não alcança necessariamente o exame dos
instrumentos do crime, muito embora se trate também de corpo de delito.
Contudo, a restrição da lei não incide, naturalmente, se, por si só, o uso dos
instrumentos constituirBse em circunstância penalmente relevante, influindo no
arbitramento da pena.
Quando isso ocorre, como é o caso do emprego de arma no crime de roubo,
verificaBse aí a elevação da utilização do instrumento à categoria relevante
à configuração típica, cuja ausência, é claro, não retira a adequação típica da
conduta, mas a remete a outro modelo jurídicoBpenal.
No caso sob julgamento, a versão autodefensiva, no sentido de que o
acusado “pegou uma arma de brinquedo que tinha em casa e se dirigiu até a drogaria”,
sem que a tenha apontado contra ZZZ, não tomou forma quando cotejada com
a prova oral.
Com efeito, ZZZ não só declarou que “o acusado apontou a arma de fogo para
a depoente” como soube precisar a distância existente entre ela e o instrumento
de coação, utilizando como parâmetro a mesma entre a cadeira dos depoentes e
a do Magistrado na sala de audiências, arrematando com a informação de que o
apelante a ameaçou de morte (fls. 111/2).
YYY confirma essas declarações ao relatar que, de dentro do depósito, foi
possível ouvir a ameaça de morte feita pelo apelante a ZZZ, caso ela não abrisse
a gaveta do caixa.
Depoimentos tão minuciosos elidem, mesmo à ausência do exame pericial,
qualquer alegação no sentido de se tratar de arma de brinquedo.
Assim, mesmo a exclusão da causa de aumento relativa à restrição da
liberdade das vítimas não redunda em redução da sanção penal, uma vez que
a penaBbase foi aplicada no mínimo legal e aumentada de um terço, a menor
fração prevista no § 2.º do artigo 157 do Código Penal.
Assim, à míngua de dados concretos que autorizem a exasperação da
pena em percentual superior ao mínimo, persistindo tãoBsomente uma causa
de aumento (emprego de arma de fogo), a fração incidente será mantida em
1/3 e a pena final permanece aquietada em 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de
reclusão e 13 (treze) dias-multa.

414
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O regime será ajustado, na medida em que é atenuada a culpabilidade


do agente que investe contra exBempregador, sendo previsível sua posterior
identificação e responsabilização. A conduta, nestes termos, beira ao rudimentar.
Além disso, o apelante é primário (fls. 120/4) e, por isso, está justificado a
adoção do regime semiaberto.
Posto isso, dirijo meu voto no sentido de dar provimento parcial ao
recurso para excluir a causa especial de aumento de pena relativa à restrição da
liberdade da vítima e para ajustar o regime de cumprimento de pena fixado na
sentença para o semiaberto, na forma da fundamentação acima, mantendoBse a
pena concretizada em cinco anos e quatro meses de reclusão, a ser cumprida
inicialmente em regime semiaberto, e ao pagamento de treze dias-multa, em
valor equivalente a um trigésimo do salário mínimo vigente à época do fato.

Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

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Roubo: pena e proporcionalidade

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL 2008.050.03201
APELANTES: (1) XXXX
(2) YYYY
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO: VARA CRIMINAL DA COMARCA DE CABO FRIO
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigo 157, §2°, incisos I e II c/c artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal e
artigo 1º da Lei 2.252/54, na forma do artigo 70 do Código Penal.

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. ROUBO MAJORADO PELO


EMPREGO DE ARMA DE FOGO E CONCURSO DE PESSOAS
E CORRUPÇÃO DE MENORES. PROVA DA AUTORIA E
MATERIALIDADE DO CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO.
MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO. ABSOLVIÇÃO DOS
APELANTES PELA PRÁTICA DO TIPO DE INJUSTO DEFINIDO
NO ARTIGO 1º DA Lei 2.252/54. CRIME DE RESULTADO.
AUSÊNCIA DE SUPORTE PROBATÓRIO. REDUÇÃO DA
PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E FIXAÇÃO DE REGIME
COMPATÍVEL COM A CULPABILIDADE DOS APELANTES.
Apelantes processados e condenados pela prática dos crimes
definidos no artigo 157, §2º, incisos I e II, c/c artigo 14, inciso II, ambos
do Código Penal e artigo 1º da Lei 2.252/54 (duas vezes), na forma
do artigo 70 do Código Penal. Prova da autoria e materialidade do
crime patrimonial retratada no laudo de apreensão e entrega e no
depoimento das testemunhas. Vítima que reconheceu os apelantes
como autores do programa criminoso e auxiliou na apreensão dos
agentes com os policiais militares. Absolvição dos apelantes no
que toca ao tipo de injusto definido no artigo 1º da Lei 2.252/54.
Necessidade de que a acusação se desincumba do ônus de provar
a conduta do agente, o efetivo resultado e o nexo causal entre
esses elementos, eis que se trata de crime de resultado. Ausência

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de elemento de convicção com o objetivo de demonstrar que os


acusados estavam vinculados aos adolescentes há tempo suficiente
para influenciáBlos e, pois, pervertêBlos, viciáBlos ou degradáBlos.
Indispensável, ainda, que se produzisse prova deste atuar doloso
no sentido de corromper os adolescentes. Redução do incremento
da pena por conta das causas de aumento de pena do crime de
roubo. Modo como a empreitada criminosa foi realizada, a vítima
abordada e também o modo como se deu a fuga dos apelantes, em
pequeno espaço de tempo, são reveladores de que culpabilidade
dos apelantes não é extraordinária. SomeBse a isto que a “aplicação
da pena ao caso concreto não se encontra orientada apenas pelo
princípio da legalidade. Ao contrário, neste momento de aplicação
do direito ao fato histórico, cabe ao intérprete da lei adequar
a pena a este; significa que o órgão julgador deve promover a
individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF) a partir de situações
de fato apuradas, referentes à gravidade do fato e à culpabilidade do
agente”. Manutenção da redução na fração de 1/3. Tentativa perfeita.
Menoridade relativa ao tempo do crime, circunstâncias judiciais
favoráveis aos apelantes, ausência de agravantes, quantidade de
pena fixada e ausência de elemento que justifique o reconhecimento
de culpabilidade acentuada que autorizam a fixação de regime
aberto para o cumprimento da pena.
PROVIMENTO PARCIAL DOS RECURSOS.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº. 2008.050.03201,


em que são apelantes XXXX e YYYY e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores da Quinta Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão de
julgamento realizada em 03 de setembro de 2009, em conhecer os recursos para
dar parcial provimento aos apelos das Defesas para absolver os acusados da
imputação pela prática do crime no artigo 1º da lei 2.252/54, nos termos do
artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, reduzir a pena privativa de
liberdade imposta pela prática do crime definido no artigo 157, §2º, incisos I e
II, c/c artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal para três anos, seis meses e
vinte dias de reclusão e oito diasBmulta e para alterar o regime de cumprimento

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da pena para o aberto. Mantida, no mais, a sentença penal condenatória, nos


termos do voto do Desembargador Relator.
Presidiu a sessão o Desembargador Sérgio de Souza Verani. Participaram
do julgamento os Desembargadores Cairo Ítalo França David e Rosa Helena
Penna Macedo Guita.

Rio de Janeiro, 03 de setembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

VOTO

TrataBse de recursos de apelação interpostos pelas Defesas de XXXX e YYYY


em face da sentença proferida no juízo da Vara Criminal de Cabo Frio que os
condenou como incursos nas sanções do artigo 157, §2º, incisos I e II, c/c artigo
14, inciso II, ambos do Código Penal e artigo 1º da Lei 2.252/54 (duas vezes), na
forma do artigo 70 do Código Penal, às penas de quatro anos, cinco meses e
vinte e dois dias de reclusão e sessenta e oito dias-multa, em regime fechado
(fls. 178/88).
Com efeito, a Defesa de XXXX (fls. 196 e 207/10) postula a absolvição do
apelante quanto ao crime de corrupção de menores e a fixação do regime mais
brando para o cumprimento da pena privativa de liberdade.
A Defesa de YYYY (fls. 200/5), por seu turno, postula a absolvição da
apelante e, subsidiariamente, a redução da pena aplicada em fração superior
àquela reconhecida na sentença por conta da tentativa.
Está correto o juízo de censura relativo ao crime patrimonial praticado
contra a vítima ZZZZ.
Assim é que a materialidade do delito encontraBse retratada pelo auto de
apreensão e entrega de fls. 05/6, no qual é descrita parte da res furtiva, e no laudo
de avaliação indireta de material. A lesão patrimonial é, igualmente, confirmada
em juízo pelo lesado ZZZZ (fls. 135/6).
A autoria do delito foi, em parte, confessada pelo apelante XXXX (fls. 63/4).
Este acusado confirma que em comunhão de ações e desígnios com o adolescente
WWWW abordou e subtraiu da vítima um aparelho de telefonia celular. A grave
ameaça foi exercida mediante emprego de arma de fogo, que era empunhada

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pelo adolescente. Após empreenderem fuga, encontraram a adolescente EEEE,


para quem teria sido entregue o aparelho celular.
Ainda nos termos do interrogatório do acusado XXXX (fls. 63/4), com a
prisão dos acusados, EEEE teria se dirigido à delegacia, onde entregou o aparelho
celular produto da subtração.
O apelante nega a todo instante a participação de YYYY no evento ao
argumento de que ela estaria na praia na companhia de FFFF, quando o acusado
e o adolescente a encontraram. Nesta ocasião, WWWW teria posto “na cintura
de YYYY a arma de fogo”.
O interrogatório de YYYY vai ao encontro da tese de defesa de XXXX
ao afirmar que estava na praia com FFFF quando WWWW e o apelante se
aproximaram. WWWW, então, teria dito para YYYY “segurar a arma de fogo
que portava. A interroganda inicialmente se recusou, sendo certo que WWWW
enfiou a arma em sua cintura” (fls. 65/6).
Em que pese a homogeneidade das versões apresentadas pelos acusados,
a vítima (fls. 135/6) confirma a participação de quatro pessoas no programa
criminoso e não duas, como quer fazer parecer XXXX.
ZZZZ foi abordado na porta de sua casa de veraneio, na cidade de Cabo
Frio “pelos réus e pelo casal de adolescentes”.
Mediante emprego de arma de fogo que trazia em suas mãos, o apelante
mandou que a vítima lhe entregasse o aparelho celular e, em seguida, todos fugiram.
Houve perseguição e, com o auxílio dos policiais militares AAAA (fls.
109/10) e BBBB (fl. 111) B os supostos autores do crime B foram presos na praia.
A participação do acusado XXXX está retratada na sua confissão e nas
declarações da vítima, que não teve dúvida em reconhecêBlo como aquele que
portava a arma.
À participação de YYYY se chega pelas declarações da vítima em juízo e
pela confirmação de têBlos reconhecido (fls. 135):

“que os quatro elementos foram presos, mas só uma arma foi


recuperada; que o informante reconheceu os quatro como autores
do crime e recuperou o celular; que não conhecia nenhum dos
quatro anteriormente”.

Não menos importante é o depoimento do policial AAAA ao declarar


que, logo após encontrar os autores do fato na praia, teria “determinado que os
envolvidos parassem a segunda acusada largou a arma de fogo” (fls. 109).

419
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Da análise de todos os elementos que formam o conjunto probatório chegaB


se à conclusão de que efetivamente os apelantes foram os autores do delito
praticado.
Com isso, a tese de YYYY é inverossímil e não há como ser acolhida.
É, portanto, induvidosa a participação de YYYY o que justifica o
reconhecimento da causa especial de aumento de pena decorrente do concurso
de pessoas, prevista no inciso II do §2º do artigo 157 do Código Penal.
A causa de aumento de pena decorrente do emprego de arma de fogo
está retratada no auto de apreensão de fls. 05, na confissão do apelante e nas
declarações da vítima.
No que toca à condenação pela prática do crime definido no artigo 1º da Lei
2.252/54, melhor sorte assiste à Defesa.
A sentença ora impugnada reconheceu a responsabilidade dos apelantes
como incursos nas sanções do artigo 1º da Lei 2.252/54.
Ocorre que as provas produzidas nos autos não comprovam outro fato
senão a participação dos apelantes no crime de roubo em concurso com os
adolescentes WWWW e FFFF e a conduta imputada aos adolescentes deve ser
analisada no juízo competente.
A verdade é que sobre o crime de corrupção de menores atribuído aos
apelantes o que há são indícios de que os adolescentes teriam, em conjunto com
XXXX e YYYY, se envolvido na empreitada criminosa ora analisada.
Este fato, por si só, não configura a prática do tipo de injusto definido no
artigo 1º da Lei 2.252/54.
É pressuposto inafastável para o reconhecimento da responsabilidade
penal pela imputação do crime de corrupção de menores que a acusação se
desincumba do ônus de provar a conduta do agente, o efetivo resultado e o nexo
causal entre esses elementos, eis que se trata de crime de resultado.
Nenhum elemento de convicção foi trazido ao processo com o objetivo de
demonstrar que os acusados estavam vinculados aos adolescentes há tempo
suficiente para influenciáBlos e, pois, pervertêBlos, viciáBlos ou degradáBlos.
De tudo quanto se apurou a única evidência denunciaBse por meio do
confronto entre as declarações dos autores da infração patrimonial, incapaz de
positivar a iniciativa corruptora.
É verdade que parte da doutrina entende que o crime em questão é formal e
se caracteriza pela simples participação do menor inimputável em um só delito,
ao lado de maiores. Entretanto, essa compreensão do delito, dispensando a
produção de prova efetiva do agir voltado à corrupção, representa verdadeira
presunção que a Constituição não permite.

420
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Ademais, trataBse de crime doloso e, portanto, indispensável que se


produzisse prova deste atuar doloso no sentido de corromper os adolescentes. E
esta prova não foi produzida.
Por isso, impõeBse a absolvição dos apelantes da mencionada imputação
com a reforma da sentença neste ponto.
Passo, neste ponto, à dosimetria da pena.
A pena privativa de liberdade imposta aos apelantes pela prática do crime
de roubo foi fixada em três anos, oito meses e vinte e quatro dias de reclusão e
quarenta e quatro diasBmulta.
A penaBbase foi arbitrada no mínimo legal, reconhecida a atenuante prevista
no artigo 65, inciso I, do Código Penal e incrementada na fração de 2/5 por conta
do emprego da arma de fogo e concurso de agentes.
Neste ponto, a pena merece reparos, devendo o incremento ser de apenas
1/3, haja vista a rapidez na execução do crime, conforme narrou a vítima.
O modo como a empreitada criminosa foi realizada, a abordagem da
vítima e a fuga em pequeno espaço de tempo denotam que a culpabilidade dos
apelantes não é extraordinária.
É importante que se diga que no incremento da pena pelo reconhecimento
de qualquer das causas especiais de aumento de pena previstas no §2º do artigo
157 do Código Penal deve o magistrado levar em consideração a culpabilidade
do agente.
Não basta mero cálculo aritmético!
Esta postura decorre do postulado da proporcionalidade que orienta o juiz
na fixação das penas, juntamente com o princípio da legalidade.
Dito de outra maneira, o princípio da legalidade não apenas define os
critérios legais que deve se pautar o magistrado e sobre o qual há de se fundar o
analise da proporcionalidade.
MARIÂNGELA GAMA DE MAGALHÃES GOMES229, ao tratar do
princípio da proporcionalidade na aplicação da pena, destaca a importância de
não se levar ao extremo a aplicação do princípio da legalidade, sob pena de, a
pretexto de assegurar o “mais elevado grau de precisão legal sobre a quantidade
de pena a ser aplicada no caso concreto”, acabar por criar um sistema de penas
fixas, “isto é, por penas que indicassem grandezas numéricas específicas para
cada tipo de delito”.
Em seguida, conclui a autora que “a aplicação da pena ao caso concreto
não se encontra orientada apenas pelo princípio da legalidade. Ao contrário,

229 O princípio da proporcionalidade no Direito Penal. RT. São Paulo. 2003. p.158.

421
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neste momento de aplicação do direito ao fato histórico, cabe ao intérprete


da lei adequar a pena a este; significa que o órgão julgador deve promover a
individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF) a partir de situações de fato
apuradas, referentes à gravidade do fato e à culpabilidade do agente”.
Assim, repitaBse, o incremento da pena há de ser de 1/3, fixandoBse a pena
intermediária em cinco anos e quatro meses de reclusão e treze diasBmulta.
A redução por conta da tentativa permanecerá em 1/3, malgrado as
alegações da Defesa de YYYY.
Com efeito, o iter criminis é o critério utilizado para o cálculo da minorante,
observados os limites estabelecidos no parágrafo único do artigo 14 do Código
Penal. Quanto mais próximo da consumação, menos significativa deve ser a
redução da pena.
Nesse sentido, a doutrina divide a tentativa entre imperfeita e perfeita. A
primeira ocorre quando o agente interrompe a realização da conduta típica,
pouco tendo realizado os atos executórios, e a redução aproximaBse ou equivale
ao limite máximo (2/3).
Na tentativa perfeita, também denominada de crime falho, o agente esgota a
fase executória, realizando a totalidade da conduta típica. O resultado, neste caso,
somente não se realiza por circunstâncias alheias à vontade do autor do crime230.
Partindo desta premissa verificaBse que a hipótese dos autos se amolda
perfeitamente ao que a doutrina classifica como tentativa perfeita.
Os acusados conseguiram empreender fuga e a ação foi abortada após a
perseguição, quando os agentes tinham em seu poder o aparelho de celular
subtraído da vítima.
Houve com isso a realização de todos os atos executórios que compõem o
injusto penal que se imputa, tendo os apelantes esgotados os meios que estavam
ao seu alcance com vistas à consumação.
Somente com término da fase executória e início da fuga ocorreu a captura
dos criminosos, não tendo o delito se consumado por circunstâncias alheias à
sua vontade.
Assim é que a redução aplicada pelo magistrado sentenciante se mostra
adequada ao iter criminis percorrido, em consonância aos atos praticados pelo
apelante, próximos à consumação do delito.
A pena privativa de liberdade se aquieta em três anos, seis meses e vinte
dias de reclusão e oito diasBmulta.

230 José Antonio Paganella Boschi. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. Livraria do Advogado. 4ª Ed.
2006.

422
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As circunstâncias judiciais são favoráveis aos apelantes e não há agravantes.


Os apelantes eram menores de 21 anos de idade na data dos fatos (fls.
154 –YYYY 29/04/1987 e fls. 141 – XXXX 20/061986), são primários e, a partir de
determinado momento, responderam em liberdade ao processo.
Neste contexto entendo que não há fundamento legal que justifique a
aplicação de regime mais rigoroso daquele imposto pelo Código Penal.
Com efeito, no exercício de sua competência constitucionalmente delimiB
tada, o legislador estabeleceu no artigo 33 do Código Penal as proporções
que entendeu adequadas entre a quantidade da pena e o regime para o seu
cumprimento. Facultou ao magistrado, contudo, a possibilidade de graduáBla de
forma diversa, uma vez analisada as circunstâncias judiciais que expressamente
enumerou no artigo 59 do Código Penal.
A fixação de regime diverso daquele graduado na norma exige que o
magistrado aponte fundamentos idôneos e concretamente identificados no
processo para tanto. Não basta a gravidade do delito em tese. É necessária
motivação idônea para tanto (Verbetes 718 e 719 da Súmula do Supremo Tribunal
de Federal).
A doutrina mais autorizada não diverge deste posicionamento. Segundo
José Antônio Paganella Boschi231 “é vedado ao juiz ou tribunal, ainda, invocar a
gravidade do delito para individualizar regime mais gravoso que o cabível em
tese, pois, não fosse assim, todo e qualquer delito ‘grave’ teria que produzir o
início de execução em regime fechado”.
Com isso, nos termos do artigo 33, § 2º, alínea “c” do Código Penal, fixo
regime aberto para o cumprimento da pena privativa de liberdade.
Portanto, voto no sentido de dar parcial provimento ao apelo das Defesas para
absolver os acusados da imputação pela prática do crime no artigo 1º da lei 2.252/54,
nos termos do artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, reduzir a pena
privativa de liberdade imposta pela prática do crime definido no artigo 157, §2º,
incisos I e II, c/c artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal para três anos, seis meses
e vinte dias de reclusão e oito diasBmulta e para alterar o regime de cumprimento da
pena para o aberto, mantendoBse, no mais, a sentença penal condenatória.

Rio de Janeiro, 03 de setembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

231 Das Penas e seus Critérios de Aplicação. Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2006. pág., 342/3.

423
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Criminologia Crítica: posse de drogas,


princípio da lesividade e outras questões

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL 2009.050.01599
APELANTE: XXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO: 35.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DA CAPITAL
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigo 28 da Lei 11.343/06

EMENTA: APELAÇÃO. PENAL. CONDENAÇÃO POR POS-


SE DE DROGA PARA USO PESSOAL. DECLÍNIO DE COM-
PETÊNCIA POR FRUSTRAÇÃO DE UMA ÚNICA TENTATIVA
DE LOCALIZAÇÃO DO SUPOSTO AUTOR DO FATO. IN-
TERPRETAÇÃO CONFORME O ARTIGO 98, INCISO I, DA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA: NECESSIDADE DE ES-
GOTAMENTO DE TODOS OS MEIOS POSSÍVEIS DE
LOCALIZAÇÃO DO AUTOR DO FATO PARA AUTORIZAR A
REMESSA DO PROCEDIMENTO AO JUÍZO COMUM. ARTIGO
66, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 9.099/95 QUE NÃO EXCLUI
A APLICAÇÃO DOS INSTITUTOS DESPENALIZADORES
DA TRANSAÇÃO PENAL E DA SUSPENSÃO CONDICIONAL
DO PROCESSO. CONSEQUENTE RECONHECIMENTO DA
NULIDADE DA DECISÃO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA,
SEJA PELA INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO JUÍZO QUE A
PROFERIU, SEJA PELA INEXISTÊNCIA DE PRÉVIA PROPOSTA
DE TRANSAÇÃO PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
PELA PRESCRIÇÃO, NOS TERMOS DO ARTIGO 30 DA LEI
11.343/06. SUPORTE PROBATÓRIO INSUFICIENTE PARA A
CONDENAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE CONSIDERAÇÃO
DOS ELEMENTOS COLHIDOS NA FASE INVESTIGATIVA,
SOB PENA DE VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO, À PRE-
SUNÇÃO DE INOCÊNCIA E AO DEVIDO PROCESSO LE-

424
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GAL. INTERROGATÓRIO QUE CONSISTE EM MEIO DE


DEFESA E, PORTANTO, IMPÕE A RELATIVIZAÇÃO DA
CONFISSÃO COMO MEIO DE PROVA. INSIGNIFICÂNCIA
DO FATO CONSUBSTANCIADA NA QUANTIDADE DE
DROGA APREENDIDA NA POSSE DO ACUSADO (UM
GRAMA E OITO DECIGRAMAS DE CANNABIS SATIVA L.).
PRINCÍPIO DA LESIVIDADE. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE
MATERIAL, SEM A QUAL NÃO SE VERIFICA A TIPICIDADE
CONGLOBANTE E, PORTANTO, A TIPICIDADE PENAL.
ATIPICIDADE DA CONDUTA. Apelação interposta em face de
sentença que condena o recorrente pela prática do crime definido
no artigo 28 da Lei 11.343/06 à pena de três meses de prestação de
serviços à comunidade. Apelante morador de rua. Interpretação
conforme o artigo 98, inciso I, da Constituição da República
que impõe o esgotamento de todos os meios de localização do
autor do fato antes da aplicação do parágrafo único do artigo 66
da Lei 9.099/95. Precedentes desta Câmara Criminal. Remessa
do procedimento ao Juízo comum que, todavia, foi precedida da
frustração de uma única tentativa de intimação do autor do fato.
Incompetência absoluta. Deslocamento de competência que,
caso considerado válido, não exclui a aplicação dos institutos
despenalizadores da Lei 9.099/95, seja para quem os entenda como
direito público subjetivo do autor do fato, seja para os que os encare
como objeto de discricionariedade regrada do Ministério Público ou
para quem, como este Relator, enquadre a iniciativa do Ministério
Público para as medidas consensuais como elemento constitutivo
do direito de ação. Inexistência de manifestação do parquet quanto à
transação penal e à suspensão condicional do processo, não obstante
presentes os requisitos objetivos e subjetivos. Nulidade da decisão
do recebimento da denúncia, quer pela incompetência absoluta
do Juízo que a proferiu, quer pela inexistência de prévia proposta
de transação penal. Consequente reconhecimento da extinção da
punibilidade pela prescrição, nos termos do artigo 30 da Lei 11.343/06
(27/01/2006). Na eventualidade de vir a ser superada a arguição de
prescrição, registreBse que a prova é insuficiente para a condenação,
por restringirBse a um único depoimento, de três linhas, incapaz de
identificar as circunstâncias da abordagem do acusado e a conduta
por ele praticada, limitandoBse a “ratificar” os termos da denúncia.

425
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Vedação à consideração de elementos colhidos na fase investigativa


para a condenação, especialmente com o advento da Lei 11.690/08,
que modificou a redação do artigo 155 do Código de Processo Penal
para definir a prova como aquela produzida em “contraditório
judicial”, tornando taxativas as exceções legais a essa proibição.
Violação ao contraditório, à presunção de inocência e ao devido
processo legal (artigo 5.º, incisos LIV, LV e LVII, da Constituição da
República). Supressão hipotética do inquérito policial. Interrogatório
que consiste em meio de defesa e, portanto, relativiza a confissão
como meio de prova, de sorte a impor que ela esteja corroborada
por outros elementos do processo, o que não ocorre no caso. Além
disso, o acusado foi condenado pela posse de 1,8g (um grama
e oito decigramas) de cannabis sativa L. Princípio da lesividade.
Insignificância. Exigência da efetiva afetação ao bem jurídico, sem a
qual não se caracteriza a tipicidade material e, portanto, a tipicidade
conglobante, que condiciona, a seu turno, a tipicidade penal. Bem
jurídico imediatamente tutelado – Saúde Pública – cuja imprecisão
não impede o reconhecimento da insignificância da conduta do
apelante. Atipicidade. Por último, cabe sublinhar que a sentença
que aplica pena de prestação de serviços à comunidade, embora
reconheça a primariedade do acusado, por se tratar de morador
de rua, corroborando, provavelmente de forma inconsciente,
a constatação do fenômeno da seletividade do Sistema Penal,
voltada às parcelas mais vulneráveis da sociedade – ou detentoras
das mais “baixas defesas perante o poder punitivo”. Necessidade
de democratização do Direito Penal, por meio da orientação da
consciência do juiz aos parâmetros valorativos de sua decisão, de
sorte a encarar as normas penais e processuais penais não como
instrumentos destinados a efetivar o poder de punir, mas a contêB
lo, instituir garantias que dificultem o inevitável excesso inerente à
própria noção de poder. Aplicação da pena de advertência.
RECURSO PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Criminal nº


2009.050.01599, em que é apelante XXX e apelado o MINISTÉRIO PÚBLICO.

426
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ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que integram a


Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em
sessão de julgamento realizada no dia 17 de setembro de 2009, em conhecer do
recurso e, no mérito, dar-lhe provimento para reconhecer, de ofício, a nulidade
da decisão de recebimento da denúncia, declarando-se extinta a punibilidade
pela prescrição.
Presidiu a sessão de julgamento o Desembargador Nildson Araújo da
Cruz, que também participou do julgamento como vogal, assim como a
Desembargadora Rosa Helena Guita.

Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

RELATÓRIO

TrataBse de recurso de apelação interposto por XXX em face de sentença


que o condena pela prática do delito definido no artigo 28 da Lei 11.343/06 à
pena de 3 (três) meses de prestação de serviços à comunidade (fls. 95/100).
Designada audiência preliminar pelo Juízo do II Juizado da Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher e Especial Criminal da Comarca da
Capital, o apelante não compareceu, uma vez que não foi intimado por ser
morador de rua (fl. 06).
Diante dessa informação, foi oferecida a denúncia de fls. 02BA/02BB, na qual o
Ministério Público narra que o apelante, no dia 27 de janeiro de 2006, por volta das
14:10, na Estação Ferroviária da Central do Brasil, sem autorização e em desacordo
com determinação legal ou regulamentar, trazia consigo 1,8g (um grama e oito
decigramas) de cannabis sativa l., acondicionados em seis sacos plásticos.
Designada Audiência de Instrução e Julgamento e determinada a citação do
suposto autor do fato (fl. 21), ele não foi encontrado, razão por que foi declinada
a competência em favor de uma das varas criminais da Comarca da Capital (fl.
25), tendo o processo sido distribuído para o Juízo da 35.ª Vara Criminal.
Tendo em vista a informação de fl. 36, foi determinada a notificação do
apelante no Presídio Ary Franco (fl. 45), ao que se seguiu a regular tramitação do
processo, com a apresentação de defesa prévia (fl. 50), o recebimento da denúncia

427
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(fls. 52/3), o interrogatório do acusado (fls. 66/7) e a inquirição de testemunha


arrolada pelo Ministério Público (fl. 68).
À fl. 87, foi convertido o julgamento em diligências para determinar
o reinterrogatório do réu, a fim de que ele esclarecesse se era dependente de
drogas, o que foi feito às fls. 91/2.
Ao final, foi preferida a sentença de fls. 95/100, na qual a Juíza a quo afirma
não ser a advertência sobre os efeitos da droga “medida adequada e eficiente a
prevenção e repressão ao combate do delito praticado”. Por isso, foi aplicada a
pena de prestação de serviços
Inconformada, a Defesa apela arguindo a nulidade da intimação do
acusado por edital para ciência da sentença, haja vista que, no curso do processo,
foi esclarecido o local onde ele se encontra. Requer ainda o reconhecimento da
insignificância da conduta do apelante para efeitos penais e, subsidiariamente, a
aplicação de advertência sobre os efeitos da droga (fls. 108/13).
Em contrarrazões (fls. 114/8), o Ministério Público sustenta que a
interposição tempestiva de recurso de apelação supre a nulidade da intimação
do acusado por edital e repele a alegação de atipicidade de sua conduta pela
aplicação do princípio da insignificância, requerendo a manutenção da sentença
nos termos em que prolatada, inclusive no que toca à pena aplicada.
Instado a se manifestar, o Ministério Público, em parecer às fls. 125/8, da
lavra do Procurador de Justiça Antônio Carlos Coelho dos Santos, opinou pelo
conhecimento e improvimento do recurso.
É o relatório.

Rio de Janeiro, 17 de setembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

VOTO

XXX apela de sentença que, acolhendo a pretensão punitiva estatal, o


condena à pena de 3 (três) meses de prestação de serviços à comunidade pela
prática do crime definido no artigo 28 da Lei 11.343/06.
Em primeiro lugar, constataBse que houve uma única tentativa de intimação
do suposto autor do fato no então II Juizado de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher e Especial Criminal (fl. 24).

428
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Apesar – e à conta – disso, o procedimento, após o oferecimento da


denúncia, foi remetido ao Juízo comum para a localização do suposto autor do
fato e eventual citação editalícia.
Todavia, haja vista o que dispõe o artigo 98, inciso I, da Constituição da
República, que definiu a competência para processo e julgamento de infrações
penais de menor potencial ofensivo, não poderia o procedimento ter sido
remetido ao Juízo Comum antes que se esgotassem todas as possibilidades de
localização do apelante.
É assim porque, conforme o posicionamento de André Luiz Nicoli[, “não
pode uma regra infraconstitucional afastar a competência dos juizados para
os crimes de menor potencial ofensivo, competência esta estabelecida na Lei
Maior”.
O posicionamento do autor, porém, vai além do que se pretende neste
ensejo. Em verdade, cuidaBse aqui de reconhecer na Constituição força normativa
tal que, para que qualquer norma legal a excepcione – ainda que a título de
reguláBla –, é necessário que estejam presentes circunstâncias concretas que
identifiquem a impossibilidade de realizáBla.
Sob outro enfoque, se a Constituição da República definiu a competência
dos Juizados Especiais Criminais para processo e julgamento das infrações penais
de menor potencial ofensivo, a remessa do procedimento ao Juízo comum, na
forma do artigo 66, parágrafo único, da Lei 9.099/95, deve ser antecedida de
todas as tentativas possíveis de intimação pessoal do autor do fato.
Não se trata, portanto, de negar aplicação ao aludido dispositivo legal.
Ao contrário, cuidaBse, em vez de declarar a sua inconstitucionalidade – o que
certamente deveria observar o princípio da Reserva de Plenário (artigo 97 da
Constituição da República) –, de realizar interpretação conforme a Constituição.
Com efeito, o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma norma
implica “paralisar” sua eficácia232: ela é hipoteticamente eliminada do
ordenamento jurídico, em razão do reconhecimento de incompatibilidade
absoluta do seu conteúdo com o texto constitucional.

A conseqüência da declaração de inconstitucionalidade “é a ineficácia do


ato legislativo em face da recusa dos tribunais em aplicá/lo aos casos que
lhe são submetidos”. (...) Por isso, a decisão do tribunal, uma vez passada
em julgado é, em relação ao caso, final, inatacável, definitiva, produzindo,

232 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 3.ª Ed. Saraiva,
São Paulo, 2008, p. 29.

429
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quanto à lei, efeito ex tunc, tal como se ela (a lei declarada inconstitucional)
“jamais tivesse existido – is as though it never existed”.233

Por outro lado, se a este órgão jurisdicional fracionário não é dado afastar
a aplicação do parágrafo único do artigo 66 da Lei 9.099/95 sob a alegação de
sua inconstitucionalidade (artigo 97 da Constituição da República), neste
caso, é perfeitamente possível realizar, aplicando as técnicas de hermenêutica,
interpretação conforme a Constituição.
Nesse sentido, em passagem do trabalho entitulado Sistema Acusatório –
A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais234, faço breve exposição
sobre a possibilidade e necessidade de realização da interpretação das Leis
Processuais segundo o sentido Constitucional: diferentemente de afastar a
aplicação de uma norma, cuidaBse de atribuirBlhe significado conforme a opção
política externada no Texto Maior, e não de lhe negar validade, como ocorre na
declaração de inconstitucionalidade.
Dessa forma, quando se realiza interpretação conforme a Constituição, se
há o reconhecimento da incompatibilidade da norma com a Magna Carta, ela
é relativa e, portanto, sanável – não por meio da negação de sua aplicação, mas
pela sua incidência sobre a hipótese submetida ao Judiciário, desde que num
determinado significado ou sentido abrangido pela Carta Política.

Se não se pode contestar que o princípio da judicial review reconhece


apenas aos tribunais o poder de constatar a nulidade de uma norma legal
contrária à constituição e desaplicá/la no caso concreto, e que o controlo
concentrado abstracto é fundamentalmente (Kelsen) uma ´legislação
negativa` eliminadora das normas não compatíveis com a constituição,
nem por isso se pode deixar de reconhecer constituir a tarefa de controlo
também a uma tarefa de concretização e desenvolvimento do direito
constitucional.235

BuscaBse, portanto, por meio da interpretação conforme a Constituição,


uma harmonia entre a norma interpretada e a constitucional. Encontrar essa
compatibilidade pressupõe, evidentemente – e ao contrário das hipóteses em

233 CLÈVE, Clemerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2.ª Ed.
Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000, p. 112.
234 PRADO, Geraldo Luis Mascarenhas. Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das Leis
Processuais Penais. 4.ª ed. Lúmen Júris. Rio de Janeiro. 2006.
235 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª Ed.Almedina, Coimbra,
p. 891.

430
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que se declara a inconstitucionalidade – a existência de caminhos diversos à


disposição do intérprete, de sorte que, segundo o método que ele julgar mais
adequado – no caso o sistemático –, um deles será o eleito para dar solução ao
conflito entre os diferentes sentidos que a norma pode oferecer.

O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro


da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos
elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a
serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à
produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser
resolvido.236

É exatamente o que ocorre na hipótese.


Com efeito, dispõe o parágrafo único do artigo 66 da Lei 9.099/95:

Não encontrado o acusado para ser citado, o Juiz encaminhará as peças


existentes ao Juízo comum para adoção do procedimento previsto em lei.

O artigo 98, inciso I, da Constituição da República, a seu turno, definiu:

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:


I – juizados especiais, provido por juízes togados, ou togados e leigos,
competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas
cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial
ofensivo, mediante os procedimento oral e sumariíssimo, permitidos,
nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por
turmas de juízes de primeiro grau.

Dessa forma, embora a Constituição da República incumbiu o legislador de


definir as infrações de menor potencial ofensivo, deveBse reconhecer que não foi
facultado o deslocamento de competência, pois o poder constituinte atribuiu a
elas procedimento eminentemente oral e célere.
Nesse contexto, para a adoção dos procedimentos ordinário e sumário, nos
termos do artigo 66, parágrafo único, da Lei 9.099/95, em que caso poderá o Juiz
determinar a remessa do procedimento ao Juízo comum: naquele em que uma

236 BARCELLOS, Ana Paula de e BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História: a Nova Interpretação
Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In: Interpretação Constitucional. Org.
Virgílio Afonso da Silva. 1.ª Ed. 2.ª tiragem. Malheiros, São Paulo, p. 271B316.

431
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única tentativa de localização do autor do fato foi infrutífera ou naquele em que


todos os meios possíveis de localizáBlo foram esgotados?
Evidentemente, a resposta está na segunda hipótese. O deslocamento da
competência constitucionalmente estabelecida com fundamento em lei ordinária
– friseBse, não se quer aqui afastar a incidência do artigo 66, parágrafo único, da
Lei dos Juizados Especiais – só é admitido em último caso.
Por isso, na hipótese, não bastava uma única certidão do oficial de justiça
dando conta de que o autor do fato não é localizável, como foi feito à fl. 24. Em
verdade, o que o Juízo da 35.ª Vara Criminal fez – expedir ofício a órgãos públicos
e a empresas prestadoras de serviços a fim de localizar o suposto autor do fato
– deveria ter sido feito pelo Juízo do então II Juizado de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher e Especial Criminal.

(...) prevista ainda a modificação da competência quando verificadas


complexidade ou circunstâncias especiais (artigo 77, §§ 2.º e 3.º, da Lei
9.099/95), aqui também devendo esta modificação, necessariamente, estar
condicionada à inviabilidade de realização do objetivo de celeridade do
processo.237

Se é esse o posicionamento da autora na hipótese de complexidade da


causa, não se pode adotar solução diversa quando se trata de autor do fato não
localizado.
Nesse sentido foi o entendimento desta Câmara Criminal ao decidir o
Conflito de Jurisdição n.º 342/2002, da relatoria do e. Desembargador Sérgio de
Souza Verani:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUIZADO ESPECIAL.


CITAÇÃO.
Não se esgotando os meios para a localização do acusafo, no Juizado
Especial, não se pode declinar da competência para o Juízo comum.
Conflito procedente.

Por isso, tendo em vista a incompetência da 35.ª Vara Criminal, a decisão de


recebimento da denúncia (fls. 52/3) é nula, conforme preceituam os artigos 564,
inciso I, e 567, ambos do Código de Processo Penal.

237 KARAM, Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 4.ª Ed. Revista dos Tribunais, 2005, p. 60.

432
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Mas não é só esse o motivo para reconhecer a nulidade da decisão de


recebimento da denúncia.
Isso porque, conforme destacado por Maria Lúcia Karam, o deslocamento
da competência para o Juízo comum não exclui a aplicação dos institutos
despenalizadores da Lei 9.099/95.238
Com efeito, quer para quem pense a transação penal e a suspensão
condicional do processo como direito público subjetivo do autor do fato, quer
para quem as encare como objeto de discricionariedade regrada do Ministério
Público, deixar de propôBlas, quando não acarreta constrangimento ilegal –
no primeiro caso –, ao menos gera o dever de fundamentar a opção de assim
proceder.
Nesse sentido, em obra entitulada Lei dos Juizados Especiais Criminais
Comentada e Anotada, escrita em coautoria com o e. magistrado Luis Grandine[i
Castanho de Carvalho239, salientei a suspensão condicional do processo como
elemento constitutivo da ação penal.
Diante disso, embora o oferecimento da proposta de suspensão condicional
do processo esteja condicionado a uma prévia avaliação, pelo titular da ação
penal, da pertinência do instituto à culpabilidade do imputado, denotando
uma opção conferida pela política criminal adotada na Lei, isso não implica
confundir discricionariedade com arbitrariedade, de sorte que, para subtrair do
acusado a possibilidade de escapar de um decreto condenatório por meio da
solução consensual do conflito, é necessário que o Ministério Público justifique
essa atitude.
No caso da transação penal, porém, essa discricionariedade não é tão ampla
porque, “após o advento da Lei nº 9.714, de 25 de novembro de 1998, que alterou
o Código Penal, são raríssimas as hipóteses de não cabimento da substituição da
pena privativa de liberdade por medida de outra natureza, indicativo, por sua
vez, do cabimento da transação”240.
Nesta hipótese, era evidente, portanto, o cabimento da transação penal, que,
na esteira do entendimento que se adota, se revelava pela própria pena cominada
ao crime definido no artigo 28 da Lei 11.343/06: o apelante jamais poderia ter sido
condenado a pena privativa de liberdade, primário ou reincidente, morador de
rua ou não.
Vale consignar que, de acordo com a folha penal de fl. 73, o apelante foi
preso em flagrante no dia 15 de fevereiro de 2007.

238 Ibid.
239 4.ª Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 182B187.
240 PRADO, Geraldo. Transação Penal. 2.ª Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 156.

433
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Dessa forma, o recebimento da denúncia sem a oferta de transação penal


também é nulo, razão por que se reconhece a prescrição da pretensão punitiva
estatal pela pena em abstrato.
Isso porque, considerando que o fato ocorreu no dia 27 de janeiro de
2006, portanto há mais de 2 (dois) anos, e que o recebimento da denúncia, por
uma razão ou por outra, não é válido, encontraBse extinta a punibilidade pela
prescrição, nos termos do artigo 30 da Lei 11.343/06.
Caso, porém, o colegiado não venha a aderir a este entendimento, destaco
que não há prova consistente para embasar a condenação.
Com efeito, um dos fundamentos da sentença consistiu na confissão
realizada pelo réu em sede policial e em Juízo. Todavia, é preciso compreender
o lugar da confissão no sistema acusatório, adotado pelo artigo 129, inciso I, da
Constituição da República.
Assim é porque a estrutura do processo penal brasileiro claramente optou
pela constituição de estatuto jurídico singular peculiar aos acusados. Nesse
sentido, pelo menos desde 1941 a posição jurídica do acusado (artigos 185 e
seguintes do Código de Processo Penal) difere daquela ostentada por ofendidos
(art. 201 do mesmo diploma) e pelas testemunhas (artigos 202 e seguintes do
citado Código).
Ademais, a Constituição de 1988 assegurou aos acusados em processo
criminal o direito ao silêncio (art. 5º, inc. LXIII), o que equivale ao reconhecimento
de que o comportamento processual dos réus configura exercício do direito de
defesa e prática do correlato direito de argumentar (alegar), de que também é
titular o Ministério Público.
Nesses termos, operouBse a reforma das regras que disciplinavam o
interrogatório do acusado em juízo e, mais importante, a nova redação do
artigo 186, parágrafo único, do Código de Processo Penal sublinhou o caráter de
autodefesa que distingue o interrogatório dos demais atos processuais.
É evidente que tal mudança tem peso nas rotinas e práticas do processo
penal. É significativo que a confissão, antes extraordinariamente avaliada pelos
julgadores, tenha perdido seu status de prova (malgrado tenho sido assim tratada
contra todas as evidências do próprio sistema do Código de Processo Penal).
Muito embora se trate de caso regulado pela Lei 11.343/06, deveBse destacar
que isso se tornou mais evidente a partir da Lei 11.719/08, que transferiu o
interrogatório para o último momento da Audiência de Instrução e Julgamento,
apesar de mantêBlo anterior ao requerimento de diligências pelas partes no

434
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procedimento ordinário241, de forma que o acusado possa exercer sua autodefesa


sem ignorar as provas produzidas durante o processo.
O período de domínio intelectual da confissão, todavia, produziu e ainda
produz seus frutos. A permanência da idéia de que a confissão, especialmente
em juízo, revela com segurança a responsabilidade penal daquele que confessa
ainda mantém seu poder de sedução. Tanto é assim que há projetos de lei que
pretendem viabilizar o julgamento sumário, a partir das evidências da prisão em
flagrante associadas à confissão.
Independentemente das incontáveis discussões que o tema proporciona – e
que não cabem neste voto – é indispensável, diria verdadeiramente prioritário,
recolocar a confissão no lugar processual que lhe cabe no processo penal
brasileiro orientado pelas garantias processuais previstas na Constituição da
República e em tratados internacionais.
O réu pode calar a verdade. Pode também mentir em juízo. Não há
penalidades. Sua intervenção pessoal pode estar orientada por alguma estratégia
defensiva, pela disposição de diminuir seu papel no enredo criminoso ou em
simples desejo de vingança. Pode ainda estar falando a verdade.
O que o juiz não pode desconhecer – e sobre este ponto gira a sentença – é
que a “fala” do acusado nada prova. Quando muito indica a existência de meios
de prova, convertendoBse ela própria em mera fonte de prova.

(...) o interrogatório apresenta/se como oportunidade processual em que o


acusado poderá exercer a autodefesa, falando ou silenciando. Se ele fornecer
elementos probatórios, por meio de suas respostas, caberá ao juiz diligenciar
sobre as fontes de prova reveladas.242

A certeza íntima de que as pessoas somente assumem a responsabilidade


por atos que tenham realmente praticado é desmentida pela experiência
cotidiana. Ainda que assim não seja, esta certeza é “íntima”, isto é, não pode ser
alvo de questionamento por quem quer que seja e dessa maneira não é suscetível
de se submeter ao controle pelo contraditório.
Nesse contexto, sem meios de prova há tãoBsomente versões, e a garantia
da presunção de inocência incide para afastar toda e qualquer conclusão
desfavorável a acusado contra o qual não se tenha produzido prova.

241 Artigo 402 do Código de Processo Penal.


242 QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova contra Si Mesmo (o princípio do nemo tenetur
se detegere e suas decorrências no processo penal). Saraiva, São Paulo, 2003, p. 90.

435
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Em outra linha, a Juíza a quo fundouBse em elementos colhidos na fase


inquisitorial. Todavia, como sabido, os elementos recolhidos no curso do
inquérito policial ou do termo circunstanciado não podem ser valorados pelo
magistrado para sustentar um decreto condenatório.
A Magistrada, ao mencionar que “O Réu em sede policial e judicial
confessa a prática do delito (...), e sua confissão encontraBse corroborada pelos
depoimentos dos milicianos em sede policial” viola de forma clara o postulado
do devido processo legal.
Assim é porque, em um só momento, violou a presunção de inocência e a
garantia do contraditório.
TrataBse de uma interpretação equivocada que deve ser imediatamente
repelida.
AcrescentaBse, por oportuno, a lição de Aury Lopes Júnior243:

Esta presunção de veracidade gera efeitos contrários à própria natureza


e razão de existir do IP, fulminando seu caráter instrumental e sumário.
Também leva a que sejam admitidos no processo atos praticados em um
procedimento de natureza administrativa, secreto, não contraditório e sem
exercício de defesa. Na prática, essa presunção de veracidade dificilmente
pode ser derrubada e parece haver sido criada em outro mundo, muito
distinto de nossa realidade, em que as denúncias, coação, tortura, maus/
tratos, enfim, toda espécie de prepotência policial são constantemente
noticiados.

Destarte, como não há a possibilidade de supressão dos autos do inquérito,


impõeBse que o magistrado o faça de forma hipotética, de modo a não atribuir
valor probatório aos elementos ali coligidos, uma vez que a função probatória
do procedimento administrativo se exaure com a admissão da denúncia.
É essa a determinação do artigo 155 do Código de Processo Penal, com a
redação conferida pela Lei 11.690/08:

O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em


contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente
nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas
cautelares, não repetíveis e antecipadas.

243 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. 1. Lumen Júris, Rio
de Janeiro, 2007, p. 290.

436
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É verdade que a nova previsão legal parece não vedar de forma absoluta
que o juiz fundamente sua decisão em elementos colhidos na fase inquisitorial.
Contudo, “vinculando a própria noção de prova ao atendimento do contraditório
judicial”244, impõe, na melhor das hipóteses, para que isso ocorra, a existência
de provas produzidas em Juízo, sob as garantias do contraditório e da ampla
defesa, que corroborem as informações – jamais provas, no novo conceito legal –
colhidas durante a investigação.
E a prova não foi produzida.
De fato, foi ouvida uma única testemunha, em razão da desistência operada
pelo Ministério Público à fl. 65 em relação às demais. O depoimento, entretanto,
nada revela, pois resumeBse a três linhas, que transcrevo:

(...) são verdadeiros os fatos narrados na denúncia; que sabe dizer que o
réu estava na Estação XI, que não se recorda da onde vinha o trem no qual
viajava o réu (...)
(fl. 68)

Assim, embora haja laudo atestando a materialidade delitiva (fl. 14), a


prova produzida no que concerne à autoria é lacônica: a testemunha limitouBse
a confirmar os termos da denúncia e não descreveu as circunstâncias do fato, tais
como a abordagem do acusado e o local onde foi encontrada a droga.
FriseBse que o depoimento do policial foi a única prova produzida no curso
da instrução criminal. Dessa forma, conforme ensinamento trazido por Perfecto
Andrés Ibáñez245, não há prova suficiente a embasar sentença condenatória,
pois o exercício necessário à elaboração de uma conclusão sobre o fato requer,
sempre, o cotejo entre elementos diversos de prova.
Isso porque, como sabido, a reconstituição processual do fato importa,
necessariamente, a assunção de determinados elementos subjetivos que
interferem na própria cognição por parte do juiz:

(...) não haverá de estar uma observação que sói acusar marcadíssimas
implicações emotivas, posto que se traslada ao processo pela via, sempre

244 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Reformas no Processo Penal. Coord. Maria Thereza Rocha de
Assis Moura. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, p. 251.
245 IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Sobre a Motivação dos Fatos na Sentença Penal. In: Valoração da Prova e
Sentença Penal. Trad. e Org.: Lédio Rosa de Andrade. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2006.

437
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contaminada, das impressões de testemunhas: terceiros afetados/inte/


ressados ou moralmente concernidos pelo tema do processo.246

Assim é que prossegue o autor, considerando a acusação como uma


hipótese lançada à apreciação do Juiz, que deve analisáBla sob todos os aspectos
e à luz de todas as demais hipóteses possíveis:

Contrastar uma hipótese é, como se sabe, pôr à prova seu valor explicativo,
neste suposto, do caso em exame. Tratando/se do processo, isso se faz
mediante o desenvolvimento da atividade probatória.
Para que a hipótese acusatória possa considerar/se válida, precisa/se de
uma pluralidade de confirmações. A fecundidade de uma hipótese requer
que a mesma seja confirmada por mais de um fato (O único fato de Fulano
ter estado no lugar do crime não lhe imputa, sozinho, a autoria do crime).247

Não se trata, no caso em exame, de ignorar a relevância das declarações


do policial. TrataBse, em verdade, de exigir, sem embargo disso, que elas sejam
contrastadas com outros elementos probatórios, tais como os depoimentos do
outro servidor público que efetuou a abordagem do acusado.
Dessa forma, não cabe a afirmação, feita na sentença, no sentido de que
a autoria restou “corroborada pelos demais elementos de prova”, porque a
coerência sustentada limitaBse às palavras do policial contrastadas entre si e com
a confissão, e não com outros elementos de prova.
De fato, não pode ser considerado incoerente o depoimento do policial
porquanto ele não possui referência com a qual cotejáBlo.
De todas essas considerações só se extrai uma conclusão: a de que a
condenação de XXX não possui base em elementos probatórios validamente
suficientes.
Se assim não se concluir, cabe acolher a tese defensiva da insignificância.
Isso porque, segundo Nilo Batista e Eugênio Raul Zaffaroni, o princípio
da lesividade preceitua que “nenhum direito pode legitimar uma intervenção
punitiva quando não medeie, pelo menos, um conflito jurídico, entendido
como a afetação de um bem jurídico total ou parcialmente alheio, individual ou
coletivo”248.

246 Op. cit., p. 71.


247 Op. Cit., p. 97.
248 Direito Penal Brasileiro. Vol. I. 2.ª ed. Revan, 2003, p. 226.

438
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TrataBse de expressão do princípio da intervenção mínima, que postula a


incidência das normas penais apenas aos casos que tenham efetiva relevância
jurídica e social.
Tal noção coadunaBse com a adoção do bem jurídico como paradigma que
estabelece o limite entre a legitimidade e o abuso do direito de punir, conforme
lição de Alessandro Bara[a249.
O problema concernente à posse de drogas para uso pessoal (artigo 28
da Lei 11.343/06), nesse contexto, reside no fato de que “ao estabelecer normas
proibitivas para proteção de determinados bens jurídicos, o Direito Penal tem
que, necessariamente, ter em conta a repercussão na esfera de terceiros das
condutas que irá criminalizar, não podendo, em qualquer hipótese, ter por objeto
condutas privadas, não podendo, em qualquer hipótese, esquecer da necessária
diferença entre Direito e Moral, entre crime e pecado”250.
Em primeira análise, portanto, a conduta do apelante, qualquer que fosse a
quantidade de droga com ele encontrada, não seria sequer passível de punição
porquanto causadora de malefícios exclusivamente à sua pessoa.
A adoção de política criminal diversa, no entanto, não implica retornar a
subsunção fria do fato à norma penal ao centro das atenções do Direito Penal, mas
avaliar, caso a caso, o limite da atuação estatal com base na lesão efetivamente
causada ao bem jurídico tutelado.
Nesse sentido, se o que a Lei 11.343/06 busca proteger é, de forma mediata,
a saúde individual – que, por si só, não tem o condão de gerar força normativa
a qualquer ato de criminalização – e, de forma imediata, a Saúde Pública251, é
necessário buscar, na conduta do acusado, a medida do ataque à saúde coletiva.
Essa tarefa, em geral, é evidentemente árdua, haja vista o caráter impreciso
desse bem jurídico:

(...) las nuevas leyes en el ámbito de nuestro Derecho penal material (Parte
Especial y leyes penales especiales) no tienen como objeto de protección
sólo bienes jurídicos universales sino asimismo que estos bienes jurídicos
universales están formulados de forma especialmente vaga. Ámbitos
específicos de promulgación de leyes son fundamentalmente el Derecho
penal económico, los impuestos, medio ambiente, acumulación de datos,

249 BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal: lineamentos de uma teoria do
bem jurídico. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 2, n.º
5, jan./mar., 1994, p. 05B24.
250 KARAM, Maria Lúcia. Aquisição, guarda e posse de drogas para uso pessoal: ausência de tipicidade penal.
De crimes, penas e fantasias. Luam, Niterói, 1999. p. 122.
251 GOMES, Luís Flávio (Coord.). Lei de Drogas Comentada. 2.ª Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007.

439
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terrorismo, drogas, exportación de materias peligrosas. Los bienes jurídicos


comprendidos en este ámbito son tan generales que no dejan ningún deseo
sin satisfacer.252

Não é árdua, contudo, neste caso, em que foi apreendido apenas 1,8g (um
grama e oito decigramas) de cannabis sativa L. (fl. 14), quantidade que, por óbvio,
não tem o condão de afetar a Saúde Pública, mas exclusivamente a saúde individual
do apelante, cuja conduta é, pois, impunível, já que atípica.
Com efeito, na esteira da noção do bem jurídico como paradigma da
criminalização, tanto primária quanto secundária, a tipicidade penal não
consiste em elemento meramente formal, de sorte que não se caracteriza a partir
da simples subsunção do fato à norma incriminadora. Assumir essa concepção
como verdadeira é incorrer na equivocada confusão entre tipicidade legal e
tipicidade penal – a qual se caracteriza não apenas por esse aspecto objetivo
(formal), mas também pela tipicidade conglobante, defendida por Zaffaroni253.
Por isso, esta última não pode ser ignorada e consiste no que o autor
chamou de antinormatividade – que se revela, em linhas gerais, pela coerência
sistemática da norma proibitiva – somada à tipicidade material, a qual se verifica
exclusivamente se o bem jurídico for relevantemente atingido.

(...) Embora seja certo que o delito é algo mais – ou muito mais – que a lesão
a um bem jurídico, esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade.
É por isto que o bem jurídico desempenha um papel central na teoria do
tipo, dando o verdadeiro sentido teleológico (de telos, fim) à lei penal. Sem o
bem jurídico, não há um para quê? Do tipo e, portanto, não há possibilidade
alguma de interpretação teleológico da lei penal. Sem o bem jurídico, caímos
num formalismo legal, numa pura “jurisprudência de conceitos”.254

Sem efetiva lesão ao bem jurídico tutelado – ou, bastaria dizer, sem afetação
ao bem jurídico, conforme destacado por Nilo Batista255 –, o fato é penalmente
atípico, pois, ausente a tipicidade material, também não se vislumbra a tipicidade
conglobante, a qual, a seu turno, condiciona a tipicidade penal.

252 HASSEMER, Winfried. Derecho Penal Simbólico y Protección de Bienes Jurídicos. Vários Autores. Pena y
Estado. Editorial Jurídica Conosur, Santiago, 1995, p. 23B36.
253 ZAFFARONI, E. Raúl e PIERANGELI, J. Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. I. 7.ª ed.
Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008.
254 Idem, p. 398B399.
255 Op. cit., p. 228.

440
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O Supremo Tribunal Federal também vem admitindo a aplicação do


princípio da insignificância aos casos de posse de droga para uso pessoal:

HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. USO DE SUBSTÂNCIA


ENTORPECENTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICA/
ÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. ART. 1º, III DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA. 1. Paciente, militar, preso em flagrante dentro
da unidade militar portando, para uso próprio, pequena quantidade de
entorpecentes. 2. Condenação por posse e uso de entorpecentes. Não/
aplicação do princípio da insignificância, em prol da saúde, disciplina e
hierarquia militares. 3. A mínima ofensividade da conduta, a ausência
de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade
do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem
os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação do princípio
da insignificância. 4. A Lei n. 11.343/2006 /// nova Lei de Drogas ///
veda a prisão do usuário. Prevê, contra ele, apenas a lavratura de termo
circunstanciado. Preocupação, do Estado, em mudar a visão que se tem
em relação aos usuários de drogas. 5. Punição severa e exemplar deve
ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem
ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá/los do vício. 6. O
Superior Tribunal Militar não cogitou da aplicação da Lei n. 11.343/2006.
Não obstante, cabe a esta Corte fazê/lo, incumbindo/lhe confrontar o
princípio da especialidade da lei penal militar, óbice à aplicação da nova
Lei de Drogas, com o princípio da dignidade da pessoa humana, arrolado
na Constituição do Brasil de modo destacado, incisivo, vigoroso, como
princípio fundamental (art. 1º, III). 7. Paciente jovem, sem antecedentes
criminais, com futuro comprometido por condenação penal militar quando
há lei que, em lugar de apenar /// Lei n. 11.343/2006 /// possibilita a
recuperação do civil que praticou a mesma conduta. 8. Exclusão das fileiras
do Exército: punição suficiente para que restem preservadas a disciplina e
hierarquia militares, indispensáveis ao regular funcionamento de qualquer
instituição militar.256

AÇÃO PENAL. Crime militar. Posse e uso de substância entorpecente. Art.


290, cc. art. 59, ambos do CPM. Maconha. Posse de pequena quantidade

256 HC 94524/DF. Segunda Turma. Rel. Min. Eros Grau. Julgamento: 24/06/2008.

441
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(8,24 gramas). Princípio da insignificância. Aplicação aos delitos militares.


Absolvição decretada. HC concedido para esse fim, vencida a Min. ELLEN
GRACIE, rel. originária. Precedentes (HC nº 92.961, 87.478, 90.125 e
94.678, Rel. Min. EROS GRAU). Não constitui crime militar a posse de
ínfima quantidade de substância entorpecente por militar, a quem aproveita
o princípio da insignificância.257

Por isso se impõe a absolvição do acusado.


Por fim, há que se rechaçar o fundamento utilizado pela Magistrada a quo
para deixar de aplicar a pena de advertência, prevista no inciso I do artigo 28 da
Lei 11.343/06.
Transcrevo o trecho (fls. 99/100):

(...) considerando a primariedade do Réu, seus antecedentes, estar condenado


por delito patrimonial com grave ameaça ou violência contra a pessoa, o
que demonstra maior periculosidade e ousadia em seu comportamento,
tratando/se de morador de rua que não possui qualquer vínculo social ou
familiar entregando/se ao consumo de entorpecente, os motivos do crime,
as circunstâncias e consequências que este tipo de delito gera em nossa
sociedade, a confissão espontânea, considerando que o trabalho construtivo
poderá trazer/lhe novos valores morais e sociais reintegrando/o ao seio
da sociedade e família, fixo a pena/base em 3(três) meses de prestação de
serviços à comunidade, a ser fixada pelo Juízo da Execução, que torno
definitiva à míngua de outras causas especiais ou gerais de aumento ou
diminuição da pena.

Primeiramente, cabe salientar que condenação posterior ao fato objeto


deste processo não configura reincidência, tampouco maus antecedentes (fl. 73),
de sorte que não pode servir de fundamento a aplicação de pena mais gravosa
que aquela prevista em lei, conforme se extrai do artigo 5.º, inciso LVII, da
Constituição da República:

ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença


penal condenatória

257 HC 94583/MS. Segunda Turma. Rel. Min. Ellen Gracie. Julgamento: 24/06/2008.

442
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Igualmente, deveBse reiterar que no fato em apreço não há consequências


tão gravosas à sociedade, como anteriormente demonstrado.
Restou exclusivamente o fato de se tratar de morador de rua como
fundamento para a aplicação de pena de prestação de serviços à comunidade
em detrimento da de advertência.
Qualquer das razões colacionadas pela Juíza a quo, especialmente a última,
revela a propensão do sistema penal – aqui envolvidos os poderes Legislativo,
Executivo, com a polícia Judiciária e o sistema penitenciário, e Judiciário258 – a
destinarBse às camadas mais vulneráveis da sociedade.
A constatação desse fenômeno, a depender de demonstração científica,
decorre da compreensão do Direito Penal a partir de uma perspectiva
interdisciplinar, conforme salientado por Andrei Zenkner Schmidt:

O Direito Penal é uma ciência normativa e social: normativa porque regula


juridicamente relações sociais com relativa dependência de outros sistemas
sociais de controle; social porque, ao desempenhar tal tarefa, fortalece a
integração social. (...) A sociologia, como ciência do ser, e a dogmática,
como o dever ser, devem fundir/se numa ciência social do Direito que, sem
abandonar o específico mundo das normas, conceba/as como formalização
de um processo social.259

É necessário, portanto, compreender o fenômeno social do crime, para além


da estrutura que a teoria jurídica finalista lhe conferiu, a fim de dar às normas
penais efetividade e eficácia.
Incluído nessa necessidade está o Princípio da Isonomia. O olhar sobre
ele, porém, deve sempre estar orientado para a noção de que não se trata de
realidade, mas de garantia formal, sem olvidar de que sua materialização é
necessária como mote de sua efetiva transformação em realidade.
Uma realidade que, todavia, dificilmente será atingida, haja vista o que a
criminologia, após longo processo histórico de evolução científica, identificou
como atributo inseparável e, por vezes, oculto – como se observa no presente
caso – do sistema penal: a seletividade.
Ela é observada a partir da noção de crime como conduta desviante de um
sistema de valores tido como legítimo, mas cuja legitimidade não é universal,
pois a multiplicidade axiológica é um dado social concreto.

258 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10.ª Ed. Revan, Rio de Janeiro, 2005, p. 24.
259 O Método do Direito Penal sob uma Perspectiva Interdisciplinar. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007, p. 168.

443
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Por isso, é na criminalização primária – consistente na definição legal do


crime – que se revela a primeira faceta da seletividade do sistema penal, uma vez
que os sistemas de valores não prevalentes são desconsiderados no momento da
tipificação penal e respectiva cominação de penas.

Por debaixo do problema da legitimidade do sistema de valores recebido


pelo sistema penal como critério de orientação para o comportamento
socialmente adequado e, portanto, de discriminação entre conformidade e
desvio, aparece como determinante o problema da definição do delito, com
as implicações político/sociais que revela, quando este problema não seja
tomado por dado, mas venha tematizado como centro de uma teoria da
criminalidade.260

DeslocaBse, assim, na linha adotada pela teoria do labeling aproach, o


paradigma epistemológico da compreensão do crime da ideia de comportamento
desviante para a de criminalização, normalmente orientada às camadas mais
vulneráveis da sociedade.

As classes sociais despossuídas constituem, assim, o objetivo principal das


instituições penais. A história dos sistemas punitivos é, nessa perspectiva,
uma história das “duas nações”, isto é, das diversas estratégias repressivas
de que as classes dominantes lançaram mão através dos séculos para evitar
as ameaças à ordem social provenientes dos subordinados.261

Isso se mostra ainda mais evidente quando se parte para o âmbito da


criminalização secundária – atuação da polícia, do Ministério Público, do Juiz e
dos estabelecimentos prisionais.
Nesse sentido, Augusto Thompson asseverou as diversas interrupções que
se vêem na linha cronológica da persecução penal, desde “crimes não relatados
à polícia” até os que “resultam em absolvição”262.
Aqueles sobre quem o poder punitivo é efetivamente exercido em geral se
identificam pela posição social que ocupam ou, como afirmado por Nilo Batista
e Eugênio Raúl Zaffaroni, pelas “baixas defesas perante o poder punitivo”263.

260 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. Tradução de Juarez Cirino dos
Santos. 3.ª Ed. Revan, Rio de Janeiro, 2002. p. 86.
261 GIROGI, Alessandro de. A Miséria Governada através do Sistema Penal. Trad. Sérgio Lamarrão, Revan,
Rio de Janeiro, 2006, p. 39.
262 THOMPSON, Augusto. Quem são os Criminosos?. 2.ª Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007, 178 f.
263 Direito Penal Brasileiro. Vol. I. 2.ª Ed. Revan, Rio de Janeiro, p. 47.

444
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Isso revela que a prática de crimes – assim definidos segundo sistemas


valorativos prevalentes – está atrelada a um recuo do Estado provedor e a um
recrudescimento do Estado policial.

No decorrer das três últimas décadas, ou seja, depois dos confrontos raciais
que abalaram os grandes guetos de suas metrópoles, a América lançou/
se numa experiência social e política sem precedentes nem paralelos entre
as sociedades ocidentais do pós/guerra: a substituição progressiva de um
(semi) Estado/providência por um Estado penal e policial, no seio do qual
a criminalização da marginalidade e a “contenção punitiva” das categorias
deserdadas faz as vezes de política social.264

Esse fato, sem dúvida, fazBse presente no contexto das drogas, conforme
assinalado por Vera Malaguti265, para quem a ausência de perspectiva da
juventude pobre tornaBse determinante para o recrutamento de cada vez maior
número de adolescentes por grupos dedicados ao tráfico ilícito de drogas.
Nesse contexto, observaBse, na história da política criminal antidrogas
brasileira, uma nítida diferenciação no tratamento penal conferido às camadas
socialmente desfavorecidas, a quem se atribui um discurso éticoBjurídico
atrelado à ideia de delinquência, e às mais privilegiadas, que sempre receberam
um tratamento penal médicoBsanitário, relacionado à noção de dependência266.
Não é distinta a hipótese em questão. O fundamento utilizado expressamente
pela Magistrada a quo para aplicar ao apelante pena mais rigorosa do que a
permitida em lei para o caso concreto foi justamente o fato de ele ser morador de
rua e ser desprovido de “vínculo social e familiar”, na contramão da finalidade
de democratização do Direito Penal.
Não se pode, obviamente, ignorar o fato de que, muitas vezes, essa espécie
de atitude não é deliberada, muito menos consciente das consequências que ela
pode acarretar. Todavia, é justamente essa ignorância que torna o Direito Penal
mais punitivo e menos garantidor. É o que o torna simbólico.267

264 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2.ª Ed. Revan, Rio de
Janeiro, 2003, 167 f.
265 MALAGUTI, Vera S. W. Batista. Difíceis ganhos fáceis: droga e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.ª Ed.
Revan, Rio de Janeiro, 2003.
266 OLMO, Rosa del. A face oculta da droga. Trad. de Teresa O[oni. Revan, Rio de Janeiro, 1990, p. 22.
267 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 8ª Ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,
2005. 322 f

445
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Nos nossos sistemas, a concessão de poder aos técnicos disfarça a violência,


mistificando/a através do tecnicismo, cujo objetivo é fazer com que o objeto
da violência se adapte sem chegar a ter consciência e sem reagir.268

E é na perspectiva simbólica do Direito Penal que outros fundamentos


para um maior rigor na punição – tais como a prática posterior de crime
patrimonial e as consequências que a posse de droga para uso pessoal gera à
sociedade – ainda encontram espaço no Poder Judiciário.
É necessário, porém, um esforço para evitar a potencialização desse
verdadeiro Direito Penal do autor e reconhecer que, não obstante os inúmeros
questionamentos que essas considerações trazem à tona – há quem defenda até
mesmo o fim do sistema penal –, a consciência daquele que aplica a lei penal
deve estar sempre atenta aos parâmetros valorativos que toma para fazêBlo269.
Portanto, haja vista o caráter inevitavelmente seletivo das instâncias formais de
repressão penal, a atuação do juiz deve sempre ser comedida e cautelosa, especialmente
no que toca à restrição de direitos e garantias fundamentais. Sob outro enfoque, o Direito
Penal e o Processo Penal devem ser encarados não como instrumentos destinados a
efetivar o poder de punir, mas, opostamente, a contêBlo, instituir garantias que dificultem
o inevitável excesso inerente à própria noção de poder.
Nessa perspectiva, se a lei admite pena menos gravosa que aquela aplicada
na sentença, por se tratar de réu primário, como salientado pela própria
Magistrada a quo, e de crime sem maiores consequências, não há porque deixar
de aplicar a pena de advertência, prevista no artigo 28, inciso I, da Lei 11.343/06.
Isto posto, voto no sentido de: a) declarar a nulidade da decisão de recebimento
da denúncia, seja por incompetência do Juízo, seja pela ausência de oferecimento de
proposta de transação penal; b) declarar a extinção da punibilidade; c) eventualmente
vencido, absolver o acusado, quer por carência de provas, quer por atipicidade da
conduta, considerada sua insignificância e d) superadas todas as questões aventadas
anteriormente, aplicar a pena de advertência.

Rio de Janeiro 17 de setembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

268 MALAGUTI, Vera S. W. Batista. Op. Cit..


269 O Supremo Tribunal Federal, em decisão recente, externou esse esforço ao ratificar liminar deferida pelo
Ministro Cezar Peluso para conceder liberdade provisória a um acusado cuja prisão cautelar havia sido
mantida, em decisão de pronúncia, sob o fundamento de ele ser morador de rua (HC 97177).

446
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Execução penal e o direito de visita à família

5ª CÂMARA CRIMINAL
RECURSO DE AGRAVO (Lei 7.210/84) nº. 2009.076.00725
AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO
INTERESSADO: XXXX
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

EMENTA: RECURSO DE AGRAVO. EXECUÇÃO PENAL.


VISITA PERIÓDICA AO LAR. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO
124 DA LEI 7.210/84. IMPLEMENTO DOS REQUISITOS PARA
OBTENÇÃO DA SAÍDA TEMPORÁRIA. PRINCÍPIO DA
RESSOCIALIZAÇÃO DO APENADO. Condenado que cumpre
pena de vinte anos de reclusão por prática do crime de latrocínio em
regime semiaberto. Cálculo de pena que demonstra o cumprimento
de um quarto da pena em 14 de abril de 2008. Ausência de outras
anotações criminais. Juízo da Vara de Execuções que deferiu saídas
diárias ao condenado, para efeito de visita periódica à família.
Recurso do Ministério Público. Agravante que sustenta que o juízo
não considerou a periculosidade do condenado e a gravidade do
crime por ele praticado para deferir o direito à visita periódica ao lar
(decisão acostada às fls. 48/9). Implementação dos requisitos legais
que garante ao condenado o direito à visitação periódica à família,
que constitui medida cuja finalidade é ressocializar o condenado.
Comportamento carcerário que recomenda o deferimento da
medida, de forma a contrariar o alegado pelo recorrente e confirmar
a compatibilidade entre o direito em questão e objetivos da pena.
NÃO PROVIMENTO DO RECURSO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do AGRAVO EM EXECUÇÃO nº.


2009.076.00725, em que é agravante o MINISTÉRIO PÚBLICO e interessado
XXXX.

447
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ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que compõem a


Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
em sessão realizada no dia 12 de novembro de 2009, em conhecer do recurso e
NEGARBLHE PROVIMENTO, mantendo a decisão combatida.
Presidiu a sessão o Desembargador Sérgio de Souza Verani. Participaram
do julgamento os Desembargadores Nildson Araújo da Cruz e Maria Helena
Salcedo como vogais.

Rio de Janeiro, 12 de novembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

RELATÓRIO

TrataBse de recurso de agravo em execução interposto pelo MINISTÉRIO


PÚBLICO com o objetivo de obter a reforma de decisão proferida no juízo da
Vara de Execuções Penais.
A citada decisão deferiu ao condenado o requerimento de visita periódica
à família, sem pernoite, nos termos do artigo 124 da Lei de Execuções Penais,
consistente em duas saídas por mês, de modo a não embaraçar atividade
laborativa, bem assim por ocasião de seu aniversário, Páscoa, dia das mães e
dos pais, Natal e festividades do Ano Novo, cujas saídas se darão a partir das
06:00 horas, com retorno até as 22:00 horas do mesmo dia, exceção feita ao Natal,
quando a saída se dará a partir das 06:00 horas do dia 24 e o retorno até as 22:00
horas do dia 25, e aos festejos do Ano Novo, quando a saída se dará no dia 31
de dezembro, e o retorno no dia 01 de janeiro, com o mesmo horário de saída e
retorno (fls. 48/9).
Aduz o Agravante, em síntese, que a decisão impugnada contraria a lei,
eis que deixa de examinar a grande quantidade restante da pena imposta ao
condenado, assim como a gravidade do crime e a periculosidade do agente,
sendo, pois, prematuras as saídas temporárias deferidas pelo juízo da execução.
A Defesa apresentou contrarrazões propugnando pela manutenção da
decisão agravada (fls. 52/4).
A decisão agravada foi mantida em sede de Juízo de retratação (fls. 55).
Instada a se manifestar a Procuradoria de Justiça, em parecer de fls. 61/4
da lavra da e. Procuradora de Justiça Maria Teresa de Andrade Ramos Ferraz,

448
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opinou pelo não provimento do recurso de agravo em execução para que seja
mantida a decisão impugnada.
É o relatório.

VOTO

O recurso não merece ser provido

A decisão impugnada deferiu ao condenado a visita periódica à família e a


reforma é pretendida porque, em resumo, a medida não se mostra compatível
aos objetivos da pena que vem sendo cumprida pelo condenado.
Inicialmente destaco que o condenado cumpriu os requisitos objetivos e
subjetivos exigidos legalmente para a obtenção do direito em questão, conforme
determina o artigo 123 da Lei de Execução Penal.
Assim é que em 14 de abril de 2008 completou o cumprimento de um quarto
da pena que lhe foi imposta (cálculo acostado à fl. 28), sendo certo que, em sendo
primário, o requisito objetivo já estaria cumprido desde 15 de agosto de 2006,
quando completou um sexto da pena.
Além disso, a transcrição de ficha disciplinar, cuja cópia está acostada às fls.
36/7, demonstra comportamento “excepcional”, “ótimo” e “bom” do apenado
durante toda a fase de cumprimento da pena.
O relatório elaborado pela assistência social da Secretaria de Administração
Penitenciária (fl. 38) confirma que o apenado recebe visitas de familiares, que
lhe proporcionam apoio psicológico com vistas à sua reinserção social, sendo
complementado pelo relatório acostado à fl. 40, que recomenda o deferimento da
visita periódica à família ao réu, eis que “contribuirá para estreitar os vínculos familiares.”
Por fim, o parecer técnico acostado à fl. 44 encontraBse no mesmo sentido,
de maneira a não deixar dúvida acerca da implementação do requisito subjetivo
para o exercício do direito pelo condenado, assim como pela compatibilidade
entre o exercício deste direito e os objetivos da pena.
FriseBse que, uma vez preenchidos os requisitos, não há possibilidade de o
juiz restringir norma em desfavor do réu.
Os elementos de prova analisados convergem no sentido de que a decisão
impugnada está funcionalmente dirigida à realização do propósito de reinserção
do condenado à sociedade.
Em linha de perspectiva que se extrai da Constituição da República, a
visita familiar dos condenados implementa direito fundamental consagrado na
máxima: “a prisão não passará da pessoa do condenado”.

449
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SabeBse que, em realidade, o chamado princípio da intranscendência da


pena (artigo 5º, inciso, XLV, da Constituição da República) somente pode ser
compreendido como “princípio da transcendência mínima”, uma vez que
inevitavelmente a sanção penal sempre passará da pessoa do condenado e
terminará por atingir os seus familiares.
Nesse sentido destacam E. Raúl Zaffaroni e Nilo Batista270:

“(..) essa transcendência do poder punitivo na direção de terceiros é,


de fato, inevitável: a comunicação, o conhecimento, a estigmatização,
a queda dos rendimentos etc., são todos efeitos que inevitavelmente
alcançam a família do simples acusado e mesmo outras pessoas.”

Assim, ao se deferir ao condenado o direito de visita à família quando


presentes os requisitos, como no caso ora analisado, podeBse extrair que o
intérprete efetiva a Constituição.
ReitereBse que o poder de fiscalização não fica esvaziado, pois pode ser
exercido a posteriori. Isso em nada prejudica o Ministério Público. Por outro lado
a suposição de que o condenado fará mau uso do direito que lhe está assegurado
pela lei penal não pode ser oposta a quem cumpre a pena, salvo quando apoiada
em provas que demonstram não preenchidos os requisitos para o deferimento
do direito.
Portanto, não encontra respaldo na norma o argumento do Ministério
Público.
Por fim e não menos importante, convém acrescentar os argumentos
expendidos pelo e. Desembargador Maurílio Passos Braga271, no sentido de que:

“A família é a célula mater da sociedade, e assim, a ressocialização


tem que passar, primeiro, pela reinserção do apenado no seio
familiar. Em sede de Direito de Família, para a manutenção dos
laços decorrentes da relação de parentesco ou para a restauração de
tais laços, existe o denominado “direito de visitas” aos filhos, dos
quais aquele pai não tem a guarda. É um instituto tão importante
que há muito os psicólogos vem discutindo a denominada “guarda
compartilhada” que, em última análise, procura criar um sistema

270 Direito Penal Brasileiro – Volume I. Ed. Revan, Rio de Janeiro, 2003. pag. 232
271 Declaração de voto no agravo nª2007.076.001831, julgado pela e. 7ª Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 03 de abril de 2008, rel. Desembargadora Elizabeth Gomes
Gregory.

450
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de maior permanência dos filhos junto a ambos os pais. Em sede de


Direito Penal, a finalidade das visitas domiciliares é a mesma, isto é,
o estreitamento das relações entre pai e filhos ou o restabelecimento
dessas relações como condição para o aperfeiçoamento do caráter
do apenado. Penso que o amor e o respeito do pai para com os
seus filhos e destes para com aquele não podem ser vistos como
instantâneos, e assim, não será com visitação esporádica que se
atingirá a finalidade do instituto.
No Direito de Família, assim como no Direito Penal, essa visitação
buscando o estreitamento das relações familiares não pode ser
concedida de forma a impedir que os visitados percam ou suspendam
suas atividades normais, vez que, se assim o for, por certo, a visitação
imposta traduzirá um “tiro no pé”. Essa questão foi solucionada pelo
Direito de Família com proveito para ambas às partes, estabelecendoB
se que o “direito de visitas” seria exercido naquelas oportunidades
em que o visitante não estaria exercendo atividade laborativa e o filho
visitado não teria atividade escolar, e assim, um poderia entregarBse ao
amor do outro sem qualquer impedimento”.

Por tais motivos, voto pelo NÃO PROVIMENTO DO RECURSO DE


AGRAVO EM EXECUÇÃO, para manter a decisão de agravada.

Rio de Janeiro, 12 de novembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


Relator

451
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Psiquiatrização da execução penal

HABEAS CORPUS: 2009.059.06564


IMPETRANTE: XXX
PACIENTE: YYY
AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

VOTO VENCIDO

Em que pese o entendimento diverso adotado pela douta maioria,


voto vencido para JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO E CONCEDER
PARCIALMENTE A ORDEM para fixar o prazo de 10 (dez) dias a fim de que a
autoridade apontada como coatora decida sobre o requerimento de progressão
de regime.
Apresento em anexo a declaração de voto com ementa.

Rio de Janeiro, 05 de novembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

EMENTA: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PRO-


GRESSÃO DE REGIME. FATO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA
LEI 11.464/07. FRAÇÃO DE PENA EXIGIDA NOS TERMOS
DO ARTIGO 112 DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL. REQUISITO
OBJETIVO ATENDIDO. LEI 10.792/03. HARMONIA ENTRE O
DIREITO À DECISÃO EM PRAZO RAZOÁVEL E A ADOÇÃO DE
PROVIDÊNCIAS POR ORDEM JUDICIAL DETERMINADAS AO
ESCLARECIMENTO DO MÉRITO CARCERÁRIO. REQUISITOS
NECESSÁRIOS PARA A FRUIÇÃO DO DIREITO. ALTERAÇÃO
LEGISLATIVA QUE EXTIRPOU O EXAME CRIMINOLÓGICO
DO ROL DOS REQUISITOS PARA A PROGRESSÃO. PRINCÍPIO
DA LEGALIDADE E DA LAICIZAÇÃO DO DIREITO. DIREITO

452
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PENAL DO AUTOR. DIREITO CONSTITUCIONAL À DECISÃO


EM PRAZO RAZOÁVEL. ARTIGO 5º, INCISO LXXVIII, DA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. NÃO OBSERVÂNCIA DO
PRECEITO CONSTITUCIONAL EM RAZÃO DE DEFICIÊNCIA
DO ESTADO. IMPOSSIBILIDADE DE TRANSFORMAR EM
DEVIDO O INDEVIDO FUNCIONAMENTO DA JUSTIÇA.
AUSÊNCIA, PORÉM, DE PROVAS QUE ATESTEM O
ATENDIMENTO DOS REQUISITOS SUBJETIVOS PELO
APENADO. Paciente preso desde 18 de novembro de 2006,
possuindo em trâmite duas cartas de execução de sentença, uma
condenação pela prática do crime definido no artigo 157, § 2.º,
incisos I e II, e outra pela prática do delito definido no artigo 121, §
2.º, incisos I e IV, na forma do artigo 14, inciso II, todos do Código
Penal. Habeas corpus que ataca a demora na apreciação do pedido
de progressão de regime. Inconstitucionalidade do § 1.º, artigo 2.º,
da Lei 8.072/90. Declaração pelo Supremo Tribunal Federal pela
via de controle concreto. Eficácia da decisão. Lei posterior que,
reconhecendo a prevalência da Constituição da República, revoga a
proibição de progressão de regime, todavia impõe requisito objetivo
mais rigoroso, consistente em fração maior de cumprimento da
pena de prisão. Impossibilidade de exigência retroativa de requisito
mais rigoroso. Inciso XL do artigo 5.º da Constituição da República.
Artigo 112 da Lei de Execução Penal. Requisito objetivo cumprido
desde 17 de janeiro de 2008. Autoridade judiciária que requisitou,
além da transcrição da ficha disciplinar, o exame criminológico para
análise do requisito subjetivo. Exame que se fundamenta em uma
compreensão etiológica do delito, espécie de relação causal entre
conduta e resultado por meio do qual o resultado é visto como
algo anormal, doentio (oposto ao saudável). Exame criminológico
que supostamente serve para: a) diagnosticar a natureza da
doença moral; b) prognosticar o “enquadramento” do condenado
em um modelo moral que afaste a possibilidade de vir a cometer
novos delitos. Laicização do Direito que exclui do Direito Penal a
legitimidade de implementar pretensões moralizantes. Princípio
da legalidade. Psiquiatrização da decisão a ser proferida pelo Juízo
competente que, atrelado ao prognóstico destes profissionais,
limitavaBse a homologáBlos. Execução penal que passou a conB
formar modelo de direito penal do autor, questionável à luz da

453
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Constituição da República. Lei 10.782/03 que reconhece tudo isso


e substitui o parágrafo único do artigo 112 da Lei de Execuções
Penais por dois outros parágrafos sem aludir, contudo, ao referido
exame. Alteração que veio a expurgar essa exigência, que, viola
o princípio da laicização do Direito, o qual impede que o Estado
se imiscua nas liberdades de escolha e de autodeterminação dos
indivíduos. Inatividade da Defesa técnica e do órgão jurisdicional.
Direito subjetivo do acusado de exigir que o Estado se organize de
modo a prestar a tutela jurisdicional com qualidade e sem dilações
indevidas. Responsabilidade da autoridade judiciária que inclui
a fiscalização dos atos processuais, evitando abusos e inércia por
parte da Defesa. Fato que fere a dignidade do acusado e configura
situação jurídica inaceitável, especialmente à luz do artigo 5.º,
inciso LXXVIII, da Constituição da República. Omissão que não se
justifica, uma vez que o princípio da celeridade processual deve ser
observado e reinterpretado à luz da epistemologia constitucional
de proteção do preso, constituindo, portanto, um direito subjetivo
processual do condenado. Ausência, contudo, de provas que atestem
o atendimento dos requisitos subjetivos pelo apenado. Aplicação
analógica do artigo 800 do Código de Processo Penal.
ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.

VOTO

(...) é muito importante destacar a independência cultural em que


todos nos devemos movimentar para que, ao lado da liberdade
política e do prestigiamento das instituições, possamos construir
um direito penal liberto de tantas superstições e quantas opressões;
um direito penal que permita aos magistrados o exercício mais
livre da sensibilidade nos domínios da lei, do Direito e da Justiça. E
que todas as alternativas para alcançar esse nirvana em sua missão
profissional sejam para a nobilitante classe outras portas abertas
para fugir da clausura imposta por leis que atrofiam a liberdade de
criação; que sejam, ainda, janelas, também abertas para o mundo, a
vida e o Homem, deixando o juiz, de ser, em muitas circunstâncias,
a personagem da casa dos mortos, vista por Dostoievski em sua
Recordações.
René Ariel Do[i, in: Reforma Penal Brasileira.

454
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TrataBse de habeas corpus objetivando a concessão da ordem para assegurar


ao paciente o direito à progressão de regime, tendo em vista que ele cumpriu o
requisito objetivo no dia 17 de janeiro de 2008, quando completou o cumprimento
de um sexto da pena, conforme cálculo acostado às fls. 10/1.
A esse respeito, cabe destacar que o requisito temporal está efetivamente
atendido, nos termos do artigo 112 da Lei de Execuções Penais, em que pese uma
das cartas de sentença em trâmite ter por objeto condenação por crime definido
como hediondo.
Isso porque a edição da Lei 11.464/07 obedeceu ao comando do Supremo
Tribunal Federal, que, em fiscalização de constitucionalidade, declarou
inconstitucional a norma prevista no artigo 2º, §1º, da Lei n. 8.072/90.
O fato de a declaração de inconstitucionalidade ter sido proferida em
caso concreto não afetou os efeitos da declaração, sendo o principal deles
o reconhecimento da ineficácia da proibição de progressão de regime, nas
hipóteses citadas. Assim é porque na evolução das formas de controle de
constitucionalidade manejadas por nossa Corte Constitucional tornouBse
vitoriosa a tese de que, declarada a inconstitucionalidade de determinada norma
jurídica, esta não pode mais ser exigida em caso algum.
Afinal, não tem sentido supor que, para o Supremo Tribunal Federal, uma
determinada norma jurídica é inconstitucional em um caso e é constitucional em
hipótese simétrica.
Com isso, a aplicação da decisão que declarou a inconstitucionalidade do
artigo 2º, §1º, da Lei 8.072/90 não ofende o artigo 5º da Constituição da República,
mas na verdade lhe confere efetividade.
Neste contexto, com a supressão do obstáculo legal a disciplina jurídica da
progressão de regime em qualquer caso passou a ser ditada pelo que dispõe o
artigo 112 da LEP.
Destaco, ainda, que mesmo que se reconheça a aplicação retroativa da Lei
nº. 11.464/07 é necessário distinguir as normas que habitam o mesmo corpo
dispositivo.
Com efeito, a lei nova estabelece duas regras: a primeira delas prevê a
possibilidade de progressão de regime para o caso de crimes hediondos e
assemelhados; a outra estabelece a fração de cumprimento da pena privativa de
liberdade exigível como requisito objetivo, para progressão.
Este é o teor do novo §1º, da Lei nº. 8.072/90.

§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida


inicialmente em regime fechado.

455
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Ao contrário das normas penais incriminadoras, que distinguem claramente


preceito e sanção, esta norma jurídica deixa implícita a “sanção”, consistente em
não admitir a progressão de regime se não satisfeitas exigências de mérito e
cumprimento de pena.
Não se deve confundir o requisito objetivo com sanção. O tempo de pena
de prisão que se cobra traduz situação de fato que, constatada para os casos
adequados à situação em questão, gera o direito à progressão.
Assim, em realidade duas normas jurídicas convivem no preceito dispositivo
(possibilidade de progressão e fração de cumprimento da pena) e hão de ser
combinadas para os casos posteriores ao advento da lei, mas se separam, para
incidir a primeira, fruto de exigência constitucional, sem cobrar cabimento à
segunda, na hipótese de crime anterior.
Como se sabe a norma penal benéfica retroage (previsão da progressão de
regime) e a mais rigorosa só tem aplicação aos casos futuros (fração de pena).
Sobre esta matéria, cumpre destacar que assim decidiu o Superior Tribunal
de Justiça:

Habeas Corpus. Latrocínio. Crime hediondo. Réu condenado ao regime


integralmente fechado. Progressão. Inconstitucionalidade do artigo 2º, §1º
da lei 8.072/90. Aplicação retroativa da Lei 11.464/07. Impossibilidade.
Precedentes desta Corte. Ressalvada do ponto de vista do relator:
inexistência. Ofensa. Art. 5º, XL, da CF/88. Harmonização deste com os
princípios e as diretrizes constitucionais traçados nos incisos XLIII, XLVI e
XLVII do artigo 5º da Carta Magna. Ordem parcialmente concedida, tão/só
e apenas para determinar que a decisão do juiz da VEC sobre a progressão
de regime observe os requisitos objetivos e subjetivos do art. 112 da LEP.272

Assim, considerando a inexistência de expressa norma legal que exigisse o


cumprimento de lapso temporal maior para os condenados por prática de crime
hediondo e seus assemelhados antes da Lei 11.464/07, como é o caso, não há que
ser aplicado o requisito objetivo que ela define.
Por fim, vale registrar recente decisão do Supremo Tribunal Federal:

Progressão de Regime: Lei 11.464/2007 e Lei Penal mais Gravosa


– 1 Considerada a garantia da irretroatividade da norma penal mais
gravosa (CF, art. 5º, XL e CP, art. 2º), os critérios de progressão de regime

272 HC 92960/SP. Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho.

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estabelecidos pela Lei 11.464/2007 somente se aplicam aos fatos ocorridos


a partir de 29.3.2007. Com base nesse entendimento, a Turma deferiu,
de ofício, habeas corpus para que o juízo das execuções criminais aprecie
novamente o pleito de progressão de regime formulado pelo paciente, como
entender de direito, mas observando os critérios de progressão estabelecidos
no Código Penal e na Lei de Execução Penal / LEP, vigentes à época da
prática criminosa.273

Assim, cumprido o requisito objetivo, cabe indagar se os requisitos


subjetivos estão atendidos para reconhecer ao paciente o direito à progressão
de regime. E isso impõe esclarecer os meios que devem ser utilizados para a
aferição dessas exigências.
A esse respeito, a autoridade apontada como coatora entendeu ser necessária
a vinda do exame criminológico, a despeito de isso não ter sido requerido pelo
Ministério Público, sob o fundamento de que o paciente é reincidente em crime
praticado com violência ou grave ameaça à pessoa.
Todavia, com o advento da Lei 10.792/03, que alterou a redação do artigo 112
da Lei de Execuções Penais, o exame criminológico deixou de estar previsto como
requisito indispensável para o reconhecimento do direito à progressão de regime.
O exame criminológico se fundamenta em uma compreensão etiológica do
delito, uma espécie de relação causal entre conduta e resultado por meio do qual
o resultado é visto como algo anormal, doentio (oposto ao saudável).
Disso resulta que o autor da conduta era ou estava moralmente doente,
cumprindo ao processo de execução penal, visto por este ângulo, “tratáBlo” e
assim recuperáBlo moralmente.
O exame criminológico supostamente serve para: a) diagnosticar a natureza
da doença moral; b) prognosticar o “enquadramento” do condenado em um
modelo moral que afaste a possibilidade de vir a cometer novos delitos.
A laicização do direito exclui do Direito Penal (em sentido amplo e aí incluída
a execução penal) a legitimidade de implementar pretensões moralizantes. O
único limite é o da legalidade, que, evidentemente, também deve estar esvaziado
de pretensões moralizantes (artigo 5.º da Constituição da República).
A exigência do exame criminológico adotado pela antiga sistemática da
execução penal “psiquiatrizava” a decisão a ser proferida pelo juízo competente,
que, atrelado ao prognóstico destes profissionais, limitavaBse a homologáBlos.

273 HC 91631/SP. Rel. Min. Carmen Lúcia. 16/10/2007.

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Vera Malaguti Batista, ao analisar com profundidade e competência o


discurso levado a cabo pelas “equipes técnicas” e as inúmeras desigualdades
deles decorrentes, ressalta que “nos nossos sistemas, a concessão de poder aos
técnicos disfarça a violência, mistificandoBa através do tecnicismo, cujo objetivo é
fazer com que o objeto da violência se adapte sem chegar a ter consciência e sem
reagir. Sua função é ampliar as fronteiras da exclusão, descobrindo tecnicamente
novas formas de infração e produzindo a ação técnica reparadora, que adapte os
indivíduos à aceitação de sua condição de ´objetos de violência`, perpetuando o
processo de violência global”274.
A progressão de regime estava, pois, condicionada à prévia adequação do
apenado aos parâmetros socialmente aceitos e reveladores de sua submissão “às
regras prisionais e a sua boa relação de convivência com os demais apenados e
com os agentes penitenciários”, parâmetros estes aferidos segundo perspectiva
segregante e preconceituosa, levada a cabo pelos pareceres técnicos.
Nessa perspectiva, a execução penal deixou de se voltar para o fato, objeto
do processo de cognição que constitui parâmetro da culpabilidade, e passou a
conformar modelo de direito penal do autor, sobre o qual recaem prognósticos,
sempre imprecisos de periculosidade.
Tal inversão, na lição de René Ariel Do[i, exposta ainda quando da reforma
penal de 1984, é questionável à luz do Estado Democrático de Direito, que veio
a ser sedimentado na Constituição da República:

Um direito penal próprio de um Estado social e democrático de direito


rejeita a periculosidade como fundamento ou limite da pena, o que ocorre
nos regimes totalitários quando a indefinição das acusações criminais se
concilia com o caráter fluido do estado perigoso e permite a imposição de
sanção penal de cariz evidentemente preventivo. Ao reverso, nos regimes
inspirados pela democracia efetiva, a culpa pelo ato concreto deve ser a
base sobre a qual incidirão a quantidade e a qualidade da pena adequada. O
generoso princípio da culpa é extraído da dignidade da pessoa humana e do
seu direito à liberdade.275

A Lei 10.782/03, reconhecendo tudo isso, substituiu o parágrafo único do


artigo 112 da Lei de Execuções Penais por dois outros parágrafos sem aludir,
contudo, ao referido exame.

274 O proclamado e o Escondido: a violência da neutralidade técnica. In: Discursos Sediciosos (03). ICC/Revan.
Rio de Janeiro, 1997, p. 77/86.
275 Reforma Penal Brasileira. Forense. Rio de Janeiro, 1988, p. 269.

458
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A ausência de previsão expressa sobre a própria existência do exame


criminológico quando da apreciação do requerimento de progressão de regime
impede, por conta do princípio da legalidade, que o magistrado assim o exija.
Em verdade, não é dada ao magistrado a faculdade de determinar a sua
realização ou não conforme as circunstâncias do caso. A alteração veio a expurgar
esta exigência que, inegavelmente, viola o princípio da laicização do Direito,
defesa contra a tendência expansionista do Estado de se imiscuir nas liberdades
de escolha e de autodeterminação dos indivíduos.
Salo de Carvalho, ao referirBse à alteração provida pela Lei 10.792/03, que
excluiu os laudos e pareceres técnicos, destaca que “ao eliminar o elemento de
análise subjetiva do apenado, os quais postulavam extrair o grau de amoldamento
interno e arrependimento do apenado, retiramBse do processo de execução
signos de controle da identidade lesivos aos direitos humanos do preso”276.
É por certo incabível condicionar a análise da progressão de regime do paciente
à vinda do exame criminológico, e daí decorre a violação ao direito da parte à solução
de sua demanda – ou ao exame de sua pretensão – em prazo razoável.
Para se perquirir a presença dos requisitos a lei exige apenas o cumprimento da
fração de 1/6 e o bom comportamento carcerário, que é atestado por meio de declaração
subscrita pelo Diretor do Estabelecimento em que o paciente cumpre pena.
Nada mais pode ser exigido!
Julgando o Agravo em execução nº. 70007705221, em sessão realizada em
11 de fevereiro de 2004, a Quinta Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul, da relatoria do Des. Amilton Bueno de Carvalho, decidiu
que “o artigo 112, da LEP, alterado pela Lei nº. 10.792/03 (01/12/2003) exige, à
progressão, apenas o cumprimento do lapso temporal e bom comportamento
carcerário (desde que o sistema não vede: crime hediondo). Não se pode impor
outras condições, pena de imputação penal agredir princípio maior: prejudicar
cidadão sem base em lei”.
Por outro lado, de acordo com a autoridade judiciária, não foi trazida
ainda a transcrição da ficha disciplinar, esta sim exigida pelo artigo 112 da Lei de
Execuções Penais para analisar o requisito subjetivo da progressão de regime.
A impetrante, igualmente, não trouxe documento que atestasse o bom
comportamento do paciente, salvo aquele acostado à fl. 7, que, todavia, não
veio subscrito pelo diretor do estabelecimento prisional, como exige o aludido
preceito dispositivo.

276 O (novo) Papel dos “Criminólogos” na Execução Penal: As alterações Estabelecidas pela Lei 10.792/03. In:
Crítica à Execução Penal. 2.ª Ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro, p. 168.

459
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Em contextos como o presente, como tenho me manifestado, a solução a ser


adotada é, em geral, a denegação da ordem, pois a via estreita do habeas corpus
não comporta dilação probatória suficiente para que se analisem os requisitos
subjetivos exigidos para o reconhecimento do direito è progressão de regime.
O paciente, todavia, cumpriu período muito superior à fração de um sexto
prevista no artigo 112 da Lei de Execuções Peais, o que requer delicada análise,
nas peculiaridades do caso concreto, do direito à decisão em prazo razoável,
assegurado pelo artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República.
É verdade que a Defesa demorou a agir no sentido de requerer o
reconhecimento do apenado à progressão de regime.
Todavia, a ausência de decisão, especialmente quando eventual provimento
projeta tão significativos efeitos sobre a execução penal, ainda quando não há
requerimento visando o reconhecimento do direito em questão, deve ser tomada
em conta de sorte a não prejudicar o seu titular.
Nesse sentido, deveBse observar que a responsabilidade da autoridade
judiciária inclui a fiscalização dos atos processuais. Nisso se insere o dever de coibir
abusos e a inércia injustificada das partes, mesmo no exercício do direito de defesa.
Assim é porque o princípio da celeridade processual deve ser observado
e reinterpretado à luz da epistemologia constitucional de proteção do réu e do
preso, constituindo, portanto, um direito subjetivo processual do apenado277.
Por isso, é igualmente direito subjetivo do acusado exigir que o Estado se
organize de modo a prestar a tutela jurisdicional com qualidade e sem dilações
indevidas.
Nas lições de Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró:

(...) trata/se, sem dúvida, de responsabilidade do Estado, perante o cidadão.


Cumpre ao Estado prover o órgão judiciário para que o processo possa se
desenvolver sem retardos indevidos.278

Sob outro enfoque, a dificuldade estrutural é de responsabilidade do


Estado não cabendo impor ao apenado o ônus de suportar o excesso dramático
na execução.
É verdade que em termos de execução penal os sujeitos processuais que
estão no “pólo defensivo” são tais: o condenado (paciente), que muitas vezes
exerce a autodefesa, como neste caso, e o defensor profissional.

277 LOPES JÚNIOR, Aury e BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável.
Editora: Lumen Juris. 2006, p.60.
278 Idem, p.69.

460
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Ocorre que nem sempre é possível onerar o acusado por conta do


comportamento inerte de seu defensor. Isso porque, quando a principal
consequência dessa postura impõe ao apenado tamanho sacrifício – mais de um
ano na espera da atuação defensiva –, não é possível identificar condenado e
defensor para atribuir ao primeiro a responsabilidade pela demora na obtenção
do livramento condicional.
E, conforme ressaltado, incumbe à autoridade judiciária fiscalizar os atos
processuais praticados pelas partes no transcorrer do processo, evitando o
excesso na execução, mesmo quando a hipótese for de inércia no exercício de
direito de defesa.
Por fim, cabe destacar que a ausência de previsão legal de prazo para
deliberação sobre o pleito não deve obstar a resolução do caso.
Por isso, cabe que se decida a pretensão.
RejeitaBse, hoje, a doutrina do “nãoBprazo”, que confere ao magistrado
amplo espaço de discricionariedade para uma análise casuística, em prol da
busca de referenciais para delimitação do que seja “razoável duração” e “dilação
indevida” (Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró. Direito ao Processo Penal
no Prazo Razoável. Ed. Lúmen Júris, Rio de Janeiro: 2006, pág.41/2)
Assim é que a integração normativa há de ser levada adiante com recurso à
analogia, sob pena de a lacuna legalBprocessual fazer perecer o direito material
da parte.
O artigo 800 do Código de Processo Penal oferece paradigma adequado,
apontando o prazo de dez dias para a prolação de decisões semelhantes. Findo
este prazo, sem decisão, a manutenção do status quo deverá, de ordinário, ser
vista como causa de constrangimento ilegal.
Reputo suficiente o prazo para a juntada e análise da transcrição da ficha
disciplinar.
Pelo exposto, votei vencido no sentido de conceder parcialmente a ordem,
para determinar que o Juízo da Execução decida no prazo de dez dias acerca
do requerimento de progressão de regime, ainda que sob a ausência do exame
criminológico.

Rio de Janeiro, 05 de novembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

461
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Livramento condicional: controvérsia sobre o


prazo para revogação

5ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS 2009.059.05776
AUTORIDADE COATORA: JUIZ DE DIREITO DA VARA DE EXECUÇÕES
PENAIS
IMPETRANTE: XXXX
PACIENTE: XXXX
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO
Artigo 12 c.c artigo 18 da Lei 6.368/76.

EMENTA: HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. LIVRAMENTO


CONDICIONAL. NOTÍCIA DA PRÁTICA DE CRIME
COMETIDO DURANTE O PERÍODO DE PROVA. SUSPENSÃO
DO LIVRAMENTO. ARTIGOS 86, 88, 89 e 90 DO CÓDIGO
PENAL. COMUNICAÇÃO DA PRÁTICA DO NOVO CRIME
APÓS O TÉRMINO DO PERÍODO DE PROVA. LIVRAMENTO
CONDICIONAL QUE NÃO FOI REVOGADO ATÉ O DIA DO
SEU TÉRMINO. EXTINÇÃO DA PENA. INTERPRETAÇÃO
CONFORME A CONSTITUIÇÃO. Paciente que cumpre pena
referente a uma condenação expressa na carta de execução de
sentença nº 2005/10847B7. Livramento condicional deferido em
13/03/2006. Término de pena previsto para 06/06/2007. Novo crime
datado de 13/01/2007. Informação trazida aos autos em 06/01/2009,
ou seja, após o término do período de prova. Decisão que suspendeu
o livramento condicional proferida em 12/02/2009. A notícia da
prática de novo delito durante o período de prova suspende o curso
do livramento condicional independentemente de decisão judicial.
A ciência do fato pelo juiz, todavia, há de ser anterior ao fim do
período de prova. De outro modo caberia ao juiz declarar extinto o
livramento. Notícia inoportuna.
CONCESSÃO DA ORDEM.

462
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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº. 2009.059.05776,


em que é impetrante XXXX e paciente XXXX.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que compõem a
Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em
sessão realizada no dia 03 de setembro de 2009, em julgar procedente o pedido
e CONCEDER A ORDEM para revogar a decisão que suspendeu o livramento
condicional e declarar extinta a pena pertinente à execução corporificada na
carta de número 2005/010847B7.
Presidiu a sessão o Desembargador Sergio de Souza Verani. Participaram
do julgamento os Desembargadores Cairo Ítalo França David e Rosa Helena
Penna Macedo Guita como vogais.

Rio de Janeiro, 03 de setembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

RELATÓRIO

TrataBse de habeas corpus impetrado em favor de XXXX, apontando como


autoridade coatora o Juiz da Vara de Execuções Penais, pois, de acordo com
a inicial, o livramento condicional do paciente foi suspenso devido à notícia
de prática de novo crime durante o período de prova. Entretanto, a referida
informação sobreveio aos autos após o término do período de prova, motivo
pelo qual a suspensão do livramento se deu de forma ilegal.
Assim, requer a impetrante a concessão da ordem para reformar a decisão
que determinou a suspensão do livramento condicional e declarar extinta a pena
privativa de liberdade, nos termos do artigo 90 do Código Penal.
Não houve pedido liminar.
Requisitadas as informações, estas vieram aos autos às fls. 16/7.
A autoridade coatora informou que existem duas execuções de sentença
contra o paciente, corporificadas nas cartas de nº 2005/10847B7 e 2008/09750B3.
Esclarece que o paciente teve deferido o direito ao livramento condicional no
dia 13 de março de 2006, com o término da pena privativa de liberdade previsto
para 06 de junho de 2007.

463
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Ocorre que em 06 de janeiro de 2009 foi certificado o apensamento da carta


de execução referente ao delito praticado pelo paciente em 13 de janeiro de 2007.
Conseqüentemente, o Ministério Público, em 08 de janeiro de 2009, requereu
a revogação do período de prova.
Em razão disso, o livramento condicional foi revogado no dia 12 de fevereiro
de 2009.
O Ministério Público apresentou parecer, da lavra da e. Procuradora de
Justiça Simone B. Ferolla, no sentido da concessão da ordem (fls. 22/5).

VOTO

A ordem deve ser concedida.


A inicial veio instruída com cópia da Carta de Execução de Sentença, cálculo
da pena, sentença de livramento condicional, Termo de Livramento Condicional
e decisão de revogação do livramento condicional.
Não há controvérsia acerca da matéria de fato.
Assim é que o impetrante teve deferido livramento condicional o paciente
no dia 13 de março de 2006, com o término da pena privativa de liberdade
previsto para 06 de junho de 2007.
Ocorre que em 06 de janeiro de 2009 sobreveio aos autos a notícia da prática
de novo crime, este praticado em 13 de janeiro de 2007, motivo pelo qual o
Parquet requereu a suspensão do período de prova em 08 de janeiro de 2009.
Diante disso, a medida de livramento condicional foi revogada no dia 12 de
fevereiro de 2009 (fls. 18/20).
É contra esta decisão e seus efeitos que investe a impetrante.
A redação confusa dos artigos 86, 88, 89 e 90 do Código Penal tem sustentado
decisões dos tribunais, algumas proferidas neste Tribunal, afirmando que se
não houve suspensão da medida durante o período de prova, deve ser extinta a
punibilidade.
Por todas vale observar a seguinte ementa:

Habeas corpus. Vara de Execuções Penais. Penas unificadas. Suspensão


do livramento condicional pelo cometimento de novo delito durante
o período de prova. Pedido de reforma do decisum, com conseqüente
extinção das penas. Alegação de que durante o período de prova
não se suspendeu ou se revogou o benefício. Ocorrência. Decorrido
o período de prova sem que tenha havido suspensão ou revogação
do benefício, devem ser declaradas extintas as penas, nos termos do

464
E! "#$%# &' ()$*+&*-.# / 2ª P'$"0

artigo 90, do Código Penal. Concessão da ordem, a fim de que seja


desconstituída a decisão que suspendeu o livramento condicional,
julgandoBse, desde já, extintas as penas privativas de liberdade
em execução. (2006.059.05637 – Habeas Corpus Des. Maria Helena
Salcedo B Julgamento: 07/11/2006 B QUINTA CAMARA CRIMINAL)

É certo que, em minha opinião, a origem desta interpretação está ditada por
algumas consideráveis razões.
Em primeiro lugar, como sublinha CEZAR ROBERTO BITENCOURT
(Tratado de Direito Penal, Parte Geral 1, Saraiva, 10ª Edição, 2006, p. 821),
a prática de novo crime durante o período de prova denota o insucesso “da
tentativa de possibilitar ao apenado o retorno antecipado ao convívio social”.
Disso resulta que, supostamente à luz do artigo 89 do diploma repressivo,
que prega a impossibilidade de o juiz declarar extinta a pena, enquanto não
passar em julgado a sentença em processo a que responde o liberado, por crime
cometido na vigência do livramento, o fim do período de prova sem revogação
não se apresenta como obstáculo instransponível à extinção da pena.
Este segundo argumento amparaBse em tese que combina, de um lado, os
objetivos do livramento, e de outro a idéia de que é dispensável qualquer decisão
judicial para suspender o curso do livramento. A mera existência de crime
praticado durante a vigência do livramento importaria em causa de revogação
automática, tornando ineficaz decisão declaratória de extinção da pena.
Esta é também a lição de LUIZ RÉGIS PRADO (Curso de Direito Penal
Brasileiro, Volume 1, Parte Geral, RT, 5ª Edição, 2005, p. 714), que defende tratarB
se de causa de suspensão do livramento, a influir na revogação do direito ou na
extinção, conforme o caso, a falta de sentença definitiva acerca do novo processo.
Em vista disso o trânsito em julgado da sentença que condenar o liberado à pena
de prisão pelo novo crime é tratado como condição suspensiva.
Em que pese à posição dos citados juristas e os argumentos de algumas
relevantes decisões dos tribunais, entendo que a matéria há de ser solucionada
de modo diverso quando examinada à luz do sistema constitucional e da maneira
como o Direito Penal globalmente organiza suas regras.
É que a função pacificadora da jurisdição está calcada em certeza jurídica
acerca das condições que podem privar o cidadão de sua liberdade, convindo
interpretar e aplicar as normas penais levando em conta esta importante função,
cujo alicerce fundamental é o princípio da legalidade.
Neste caso, ao se cuidar de restringir direitos fundamentais, a interpretação
e aplicação das normas jurídicas há de ser igualmente restritiva. Não se pode

465
E! "#$%# &' ()$*+&*-.# / 2ª P'$"0

ampliar a incidência de causas de limitação ao exercício de direitos fundamentais


– e a liberdade é direito fundamental – para além dos limites traçados pelo
legislador. Portanto, quando a lei assinala que é a condenação definitiva que
se constitui como causa de revogação obrigatória do livramento, não está
constitucionalmente abrigada a interpretação que assevera que a causa é a
prática do crime!
Afinal, para o bem ou para mal o artigo 86 do Código Penal estatui que o
livramento condicional é revogado se o liberado vem a ser condenado à pena
privativa de liberdade, em sentença irrecorrível! A causa da revogação está dada
na lei e não cabe ao intérprete ampliáBla. É de ampliação que se trata quando
se sustenta que a causa em questão é constituída da prática do novo delito e o
trânsito em julgado da condenação seria mera condição suspensiva!
A interpretação que agasalha a idéia da condição suspensiva contribuiria,
sem dúvida, para incrementar o grau de incerteza acerca da validade concreta
da decisão declaratória de extinção da pena. É o que ocorre quando se aplica o
artigo 89 do Código Penal de forma automática.
Não custa sublinhar que, a se levar adiante automática aplicação do
artigo 89, consoante preconiza LUIZ RÉGIS PRADO, por exemplo, o arrastar
do novo processo tornaria imprevisível a extinção do livramento. A seguir este
caminho seria de se considerar inválida a decisão declaratória de extinção da
pena, fundada no artigo 90 do Código Penal, por conta de posterior advento de
sentença condenatória. Muito embora a decisão sobre o fim do livramento se
trate de sentença meramente declaratória, a solução de admitir sua invalidade
por força do advento de condenação (por novo crime) coroaria o estado de
insegurança jurídica.
Tal forma de aplicar o direito importa em converter em instrumento de
incerteza as normas jurídicas que cerceiam direitos fundamentais!
CEZAR ROBERTO BITENCOURT (obra citada, p. 819) lembra que outros
ordenamentos, diferentemente do nosso, adotam o sistema da revogação
automática do livramento, com base na simples prática da infração penal.
O nosso, vale frisar, exige a condenação definitiva em processo pelo novo
crime para que haja revogação (artigo 86 do Código Penal). Isso está expresso
em lei, pois que o citado dispositivo trata de condenação transitada em julgado
como causa de revogação obrigatória!
Portanto, a simples existência de crime praticado no curso do livramento não
constitui condição suficiente para a revogação. ExigeBse a condenação definitiva.
Tal exigência impõe limites temporais ao juiz da execução, porque se o
magistrado não pode declarar extinta a pena antes de transitar em julgado a

466
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sentença em processo a que responde o liberado (artigo 89 do Código Penal),


há para este o direito de ver declarada extinta a pena quando até o seu término
o livramento não é revogado (artigo 90 do mesmo estatuto). O concurso destes
dispositivos não pode (ou deve) conduzir à solução contraditória, por meio da
qual um deles seria sempre ineficaz!
Ora, se a combinação dos referidos dispositivos normativos não leva a crer
em hipótese de suspensão do período de prova, como assinala a autoridade
apontada como coatora, citando como exemplo crime cometido no último dia
do livramento, que ficaria impune sem a suspensão, a necessidade de garantir
um mínino de segurança jurídica exige traçar limites a esta possibilidade.
Em minha opinião os limites estão dados pela aplicação do postulado
da proporcionalidade. É que, se de fato não faz sentido admitir para o réu a
ausência de conseqüência jurídica, caso o crime seja praticado no último dia do
livramento, tampouco é razoável supor que após o fim do período de prova a
notícia da existência de crime praticado durante o livramento possa invalidar
uma decisão judicial estruturada na ausência de oportuna revogação! Afinal,
mesmo as sentenças proferidas no processo de execução estão sujeitas à eficácia
preclusiva!
Releva notar, uma vez mais, que a decisão de extinção do livramento é
meramente declaratória.
Assim, a única interpretação compatível com a Constituição, porque não
importa em ampliação das causas de revogação (para nelas incluir a prática do
crime) é a que assenta no reconhecimento de que é indispensável a oportuna
notícia de nova investigação ou processo criminal, levada ao juiz da Vara de
Execuções Penais, para configurar causa de suspensão do livramento.
Por oportuna comunicação entendeBse aquela apresentada ao juiz da
execução antes do fim do período de prova!
Cometido o crime pelo liberado, no período de prova, porém somente
depois de passado o período foi comunicado o fato ao juiz da execução, o curso
do livramento está terminado. Somente diante da notícia de que o liberado é
suspeito ou está sendo processado pelo novo crime é que surge para o Estado a
expectativa de revogação do livramento. Sem esta notícia não caberia ao juiz agir
no sentido de determinar que se aguarde a extinção do novo processo – e mesmo
assim por prazo razoável a considerar o saldo de pena do condenado, para efeito
de prescrição. Afinal, não pode haver suspensão por prazo indeterminado!
Vale dizer, também, que se não há notícia do novo crime veiculada no curso
do prazo do livramento o Estado, pelo juiz, não teria como saber da existência

467
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de investigação que poderá originar o processo e a condenação (definitiva) que,


esta última, constituirá a causa da revogação.
Assim, quando o artigo 89 do Código assevera que o juiz não poderá declarar
extinta a pena isso pressupõe que o juiz saiba antes do término do período de
prova que o liberado era, pelo menos investigado, por um crime cometido no
curso do livramento. De outro modo, bastaria o artigo 90 do citado estatuto!
Sem a notícia oportuna o fim do prazo do livramento gera para o juiz o
dever de declarar extinta a medida. E, querendo ou não, o artigo 90 do Código
Penal brasileiro fala em considerar “extinta a pena privativa de liberdade”, de
sorte que mesmo a ausência de decisão declaratória não impede que se tenha a
pena por extinta, tornando ineficaz posterior decisão de suspensão, prorrogação
ou revogação do livramento.
Na hipótese do processo ora analisado a suspensão do livramento foi
decidida em 12 de fevereiro de 2009, depois da data do término do livramento
(06 de junho de 2007). Porém, sem embargo de ser desnecessária a decisão de
suspensão, sequer mencionada na lei, o flagrante foi noticiado em 06 de janeiro
de 2009. Portanto, o juiz soube da existência de investigação em face do liberado
depois do termo final do livramento. A partir daí o magistrado não poderia mais
declarar a revogação do livramento condicional.
A declaração de revogação, pois, caracterizou constrangimento ilegal.
Desta forma, meu voto é no sentido de julgar procedente o pedido para
conceder a ordem e declarar extinta a pena pertinente à carta de número
2005/10847B7.

Rio de Janeiro, 03 de setembro de 2009.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO


RELATOR

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Execução penal: progressão,


falta grave e cálculo da pena

7ª CÂMARA CRIMINAL
RECURSO DE AGRAVO nº. 2007.076.0605
AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO
AGRAVADO: XXXXX
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

EMENTA: EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME


PRISIONAL. FALTA GRAVE E CÁLCULO DA PENA. RE-
QUISITOS DISTINTOS QUE NÃO SE CONFUNDEM E
DECORREM DE EXIGÊNCIA LEGAL. CONSIDERAÇÃO
DO TEMPO DE PENA CUMPRIDO. IMPOSSIBILIDADE DE
CONSTRUÇÃO DE ENTENDIMENTO CONTRÁRIO AO TEXTO
EXPRESSO DA LEI. LIMITAÇÃO IMPOSTA PELO NULLA
POENA SINE PRAEVIA LEGE. Os requisitos objetivo e subjetivo
para a aquisição do direito à progressão de regime são estabelecidos
em lei e não se confundem. Superveniência de falta grave que
altera o mérito carcerário e constitui impedimento à progressão
enquanto o condenado não recupera o comportamento prisional
adequado. Tempo de pena, porém, computado objetivamente, em
consideração ao período aquisitivo definido no art. 112 da LEP.
Pleito de progressão que não se subordina ao cumprimento de um
sexto da pena a partir da falta grave, à míngua de previsão legal.
RECURSO IMPROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso de agravo nº.


2007.076.00605, em que é agravante MINISTÉRIO PÚBLICO e agravado XXXX.
ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores da Sétima Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão realizada no

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dia 24 de julho de 2007, em conhecer o recurso e negar provimento, para manter a


decisão que indeferiu o pleito de correção do cálculo da pena do agravado.

Rio de Janeiro, 02 de outubro de 2007.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

RELATÓRIO

TrataBse de recurso de agravo em execução interposto pelo Ministério


Público em face da decisão que indeferiu pleito do recorrente visando a correção
do cálculo da pena de XXXXXX.
Aduz o agravante, em síntese, que com o cometimento de falta grave pelo
apenado, o cálculo de 1/6 da pena, como requisito objetivo para o reconhecimento
do direito à progressão de regime, deve ser computado a partir da data em que
foi praticada a transgressão (fls. 02/08).
Em suas contraBrazões (fls. 83/7), a Defesa alega que a Lei de Execuções
Penais não prevê o reinício da contagem da fração da pena para fins de
reconhecimento do direito à progressão de regime após a última falta disciplinar
cometida, conforme pretende o Ministério Público. Aduz, ainda, haver confusão
entre os requisitos necessários à concessão da progressão de regime, sendo certo
que o bom comportamento, decorrente da prática ou não de infração disciplinar,
é matéria afeta ao requisito subjetivo, nada influindo quanto ao objetivo.
A decisão agravada foi mantida em sede de Juízo de retratação (fls. 88).
Instada a se manifestar, a douta Procuradoria de Justiça, em parecer da
lavra do Procurador de Justiça Maurício Assayag, opinou pelo provimento do
recurso de agravo em execução (fls. 94/6).

VOTO

Inicialmente, destaco que é no mínimo controvertida a hipótese de se


guerrear, pela via do Agravo, o pronunciamento judicial que indeferiu o pleito
de recorrente.
É que a Lei de Execução Penal prevê o manejo do recurso de agravo
para impugnar as decisões proferidas pelo juiz da Execução (art. 197), não
configurando instrumento hábil para atacar pronunciamento judicial que não se
revista das qualidades de decisão.

470
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Sob este ângulo o que se extrai do sistema processual, de que é parte


integrante a execução penal, é o fato de se preservarem os recursos apenas para
a impugnação de decisões. PossibilitaBse, assim, o regular desenvolvimento dos
atos processuais, liberados de interrupções que posterguem, indevidamente, o
exercício quer da tutela de conhecimento, quer da executiva, assegurandoBse a
satisfação dos direitos – e implementação dos deveres – derivados do comando
emergente da sentença.
Neste sentido vigora o princípio da legalidade dos recursos, em sua
dimensão de tipicidade e taxatividade processual. Será conhecido o recurso que,
à luz da disciplina legal, esteja previsto para impugnar certa e precisa decisão279.
As partes não têm, pois, o poder de inovar na matéria e impugnar
pronunciamentos ou manifestações judiciais para as quais o legislador não haja
definido com anterioridade o recurso cabível.
E por decisão há de ser entendido o pronunciamento judicial que resolve uma
controvérsia. Não basta isso, porém, para caracterizar como decisão a manifestação
judicial. É necessário que o pronunciamento possa ser afetado pela preclusão – para
as partes e aí quase sempre o recurso disposto será o agravo (ou o em sentido estrito)
– ou também para o juiz, como é o caso da sentença. É a possibilidade de que se
estabilizarem os efeitos de determinado pronunciamento que justifica a previsão, a
critério do legislador, de meio de impugnação que impeça esta estabilidade quando
em virtude de error in judicando ou error in procedendo a parte haja de suportar
indesejáveis e ilegais conseqüências do ato judicial.
Assim, pronunciamentos judiciais esvaziados de conteúdo decisório que
tenha a marca em questão (da estabilidade) não são considerados decisão e,
portanto, a rigor não são impugnáveis.
Não cabe às partes, pois, em linha de raciocínio, construir controvérsias
artificiais para extrair uma “declaração” judicial a que se apelide de “decisão”
para, então, buscar nova orientação dos atos judiciais – ou nova direção dos atos
processuais – por intermédio do arsenal legal de recursos!
Observo que a controvérsia que no caso dos autos é tomada como matéria
objeto da decisão impugnável é artificial, uma mera homologação dos critérios
de cálculo de pena. DigaBse de passagem – e adiante o tema retornará B, trataBse
de mera reprodução pelo juiz do texto do art. 112 da LEP!

279 Isso não significa que as decisões impugnáveis sejam sempre enumeradas de forma taxativa. A
taxatividade aqui se refere ao gênero do pronunciamento judicial atacável pela via recursal. Daí
que no processo penal de conhecimento a apelação é residual e serve à impugnação de sentenças
em geral (excetuadas as que são impugnadas por recurso em sentido estrito) e demais decisões
definitivas ou com força de definitiva. Quando a manifestação judicial não se enquadra no modelo
acima indicado não se presta à alteração por meio de apelação.

471
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O potencial de “estabilidade” dos efeitos deste pronunciamento é nenhum!


Não há no caso (fl. 08) nada que imponha ao próprio juiz o dever jurídico de
seguir esta orientação no momento oportuno, isto é, quando realmente for
apreciar o cabimento da progressão de regime. E é a decisão que defere (ou não)
a citada progressão que constituirá o objeto de eventual agravo!
Repito: a “fala” judicial não se submete à preclusão pro judicato ou para
as partes. Consiste em mera sinalização de critério, indicado em enunciado, e,
pois, a rigor não sujeito à impugnação. SeguiBla ou não é questão de coerência,
mas não decorre de qualquer dever jurídico oriundo de (inexistente) eficácia
normativa da manifestação judicial.
Conheço, porém, excepcionalmente, o recurso de agravo porque semelhantes
recursos têm sido conhecidos e julgados no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Parece conveniente, pois, que antes de dar às impugnações do gênero a solução
merecida (de não conhecimento), haja de se criar a oportunidade para que sejam
conhecidos os fundamentos do critério corretamente adotado pelo e. magistrado
da execução.

No mérito.

Entendo que a questão posta deve ser resolvida na forma da Lei, pois
que no caso não haveria espaço para criação jurisprudencial, em termos de
interpretação/aplicação do direito, que possa levar à restrição da liberdade do
apenado.
Com efeito, não é ocioso sublinhar que a tarefa de interpretação de normas
jurídicas que restringem direitos fundamentais está ditada pelo primado
constitucional da liberdade. Em outras palavras, o gozo das liberdades públicas
é a regra; a exceção consiste na restrição ao exercício destas liberdades. Deste
modo, sempre que o Direito estabelecer regras restritivas estas haverão de ser
interpretadas/aplicadas no menor raio possível. Para a definição deste perímetro
o juiz deverá se valer sempre do princípio da legalidade e do sentido consensual
que as palavras empregadas na lei recebem no meio comunitário ou jurídico.
O poder de criação do juiz, inevitável em muitos casos, não lhe autoriza a
compor sentidos que ampliem o espaço de limitação ao exercício dos direitos em
manifesta oposição às palavras da Lei.
Nestes termos está expresso o ensinamento de J. J. Gomes Canotilho, para
quem a tarefa de interpretar e aplicar princípios jurídicos encontra insuperável
obstáculo no sentido comum das palavras. Isto é, leciona o mestre português,

472
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não é válida a interpretação/aplicação da norma que construa sentido contra o


texto expresso do preceito dispositivo, isto é, do artigo de lei280.
Por essa razão, a consideração de que é possível interromper a contagem
do lapso temporal, em caso de cometimento de falta grave pelo apenado, para
efeito de progressão de regime, termina por contrariar a Constituição. Seria aqui
legislar, estipulando exigências que a lei não impôs o que ao nosso juízo não é
possível admitir.
Ademais, estarBseBia violando princípios basilares do Direito Penal, como
o princípio da legalidade, em especial no seu aspecto nullum crimem nulla poena
sine lege stricta, que proíbe a analogia e o emprego de expressões cujo conteúdo
não pode ser juridicamente definido, seja para criar condutas criminosas ou
mesmo para fundamentar a aplicação ou o agravamento de penas.
Sendo assim, o apenado fará jus à progressão do regime se atendidos os
requisitos (cumprimento de pelo menos um sexto da pena e bom comportamento).
Não há que se falar, pois, em interrupção de prazo no caso de cometimento de
falta grave.
Há, sim, mera suspensão, que não importa no reinício da contagem, sob
pena de uma atuação legiferante do órgão julgador.
Ainda, não há que se falar que o condenado autor de falta grave fica sem
punição, uma vez que este condenado perde a condição de mérito carcerário que o
habilitaria ao gozo de vários dos “benefícios” instituídos pela Lei de Execução Penal.
O mérito carcerário configura o segundo requisito exigido no artigo 112 da
LEP para que o condenado possa progredir de regime. A não recuperação do
mérito daquele que é punido por falta grave constituirá obstáculo ao processo
progressivo de readaptação ao mundo livre, objetivo e finalidade do sistema de
execução em vigor.
Por isso, independentemente do período de pena efetivamente cumprido,
que em nenhuma hipótese será “repristinado”, o condenado sancionado
em virtude de falta grave será tratado com mais rigor que aquele outro que
implementou o requisito temporal e, além disso, comportouBse de maneira
satisfatória! Não há o risco de igualar os desiguais e beneficiar ou estimular o
descaso e desrespeito com a disciplina carcerária!
Os distintos requisitos combinamBse como elos de uma corrente sem a qual
o condenado não se beneficia do implemento de direitos na execução, sendo o
fato decorrência da lei, único parâmetro normativo a poder, de maneira válida,
restringir o acesso (ainda que paulatino) à liberdade.

280 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 1988.

473
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Nesse sentido, é salutar trazer à colação o seguinte julgado do Superior


Tribunal de Justiça:

EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL.


REGRESSÃO. NOVO PEDIDO DE PROGRESSÃO. CONDIÇÕES.
Em sede de execução penal, deferido o benefício de progressão de
regime prisional e decretada a regressão em face da ocorrência de
fuga do condenado, o novo pedido de progressão não se subordina
ao cumprimento de um sexto da pena a partir da falta grave, à
míngua de previsão legal. Habeas Corpus deferido.281

Ainda sobre este ponto, também possuem relevo as seguintes decisões do


Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

1 - (...) Desconheço o fomento legal e jurídico para que se exija


o reinício da contagem do prazo, de modo a que o apenado deva
cumprir metade do tempo que falta, a partir da recaptura.
Diversamente, o afastamento do tempo em que foragido, para
o cômputo para obtenção do benefício. É óbvio que o apenado,
enquanto em fuga, não pode pretender que tal prazo seja
computado. Mas disso não tratou a decisão agravada.
De modo que só resta prover ao agravo, na medida em que a
exigência posta na decisão guerreada não tem base no direito.
Nos termos do agravo, a cognição em segundo grau está limitada
à questão da contagem do lapso temporal, após recaptura,
devendo merecer exame, em primeiro grau, a presença dos demais
requisitos para o benefício.282
2 - Acompanho o entendimento desta egrégia 8ª Câmara Criminal
de que o novo pedido de progressão de regime não se subordina
ao cumprimento de 1/6 da pena a partir da falta grave, por ausência
de previsão legal. (...).
Por tais fundamentos, dou parcial provimento ao agravo,
considerado, para aferição do tempo de cumprimento de pena,

281 HC nº 13332/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Vicente Leal, DJ 05.03.2001.


282 Desembargador Tubinambá Pinto de Azevedo, decisão nº 70.002.467.845, julgada em outubro de
2001.

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todo o período em que o agravante esteve recolhido, antes e após


a(s) fuga(s), verificada a presença dos demais requisitos.283

Essa mesma linha de entendimento também encontra abrigo no Tribunal


de Justiça do Estado de São Paulo, como se pode depreender da análise dos
seguintes julgados:

1 - A falta grave cometida pelo condenado somente poderá


repercutir em seu desfavor na avaliação do mérito do pedido
de progressão de regime prisional, mas não tem o condão de
interromper a contagem do tempo previsto no art. 112 da Lei
7.210/84, para a concessão do benefício.284
2 - O cometimento de falta grave não interrompe a contagem de
tempo para a progressão de regime prisional, pois sua conseqüência
será considerada apenas no exame do mérito do sentenciado, não
podendo repercutir na constatação do preenchimento de requisito
objetivo.285
3 - A prática de falta grave, para o condenado que cumpre a pena no
regime fechado, não pode acarretar a interrupção do prazo aquisitivo
para o fim de progressão. Ora, a razão é simples, inexistência de
previsão legal para tal medida. Em homenagem ao princípio da
legalidade, por ausência de norma que determine a interrupção da
contagem do tempo necessário à progressão, não se pode lançar mão
de uma interpretação da qual verteria analogia in malam partem.286

Por tais motivos, voto pelo NÃO PROVIMENTO DO RECURSO DE


AGRAVO, acolhendoBse a decisão que indeferiu o pleito do Ministério Público
para correção do cálculo da pena de XXXXX.

Rio de Janeiro, 02 de outubro de 2007.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

283 Desembargador Roque Miguel Frank, decisão no agravo nº 70.005.807.599, julgado em junho de
2003.
284 Desembargador Vico Mañas, HC nº 513722/6B00, 12ª Câmara, julgado em 1º/07/2005.
285 RT 763/600.
286 Desembargador Ary Casagrande, TACrimSP, AE 1.367.533/3, 10ª Câmara, julgado em 17/09/2003.

475
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Nemo tenetur e direito à imagem

5ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS 2009.059.5388
AUTORIDADE COATORA: JUIZ DE DIREITO DA 36.ª VARA CRIMINAL
DA COMARCA DA CAPITAL
IMPETRANTE: XXXXX
PACIENTE: XXXXX
CORRÉUS: XXXXX
RELATOR: DESEMBARGADOR CAIRO ÍTALO FRANÇA DAVID

VOTO VENCIDO

TrataBse de habeas corpus impetrado em favor de XXXXX, denunciado pela


suposta prática dos crimes definidos nos artigos 35 da Lei 11.343/06 e 16 da Lei
10.826/03, na comunidade de Vigário Geral, no período compreendido entre o
ano de 2006 e o mês de março de 2007 (fls. 08/11).
De acordo com a inicial, o direito de o paciente não produzir prova contra
si está sendo ameaçado pelo deferimento de produção de prova requerida pelo
Ministério Público, consistente em perícia videográfica, com o intuito de elaborar
laudo biométrico por meio da comparação entre imagens captadas pela Polícia
Civil durante a investigação preliminar e a imagem do acusado.
Em que pese o entendimento diverso adotado pela douta maioria, votei
vencido para CONCEDER A ORDEM, não para proibir a produção da prova,
que se mostra relevante e pertinente ao deslinde da causa, nos termos em que
delimitada na denúncia, mas para limitáBla aos direitos constitucionais do réu.
Não há como negar que são persuasivos os fundamentos utilizados pela d.
maioria para denegar a ordem, especialmente quando se fala na necessidade de
adequação da lei ao desenvolvimento tecnológico, na similaridade da perícia em
questão com o reconhecimento pessoal e na incoerência revelada pela exigência de
aparelhamento das instituições policiais, com a finalidade de acabar com técnicas
truculentas de investigação, em confronto com a tese sustentada pela Defesa.
O próprio entendimento defensivo, a propósito, carrega ligeiro equívoco ao
postular que a simples realização da perícia requerida pelo Ministério Público

476
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é capaz de ferir os direitos fundamentais do acusado. O reconhecimento do


constrangimento ilegal, neste caso, exige algo mais.
Exigir algo mais, contudo, não é sinônimo de estabelecer como requisito da
coação ilegal a pretensão de se produzir prova invasiva, a exemplo da colheita
de dados genéticos. Se assim entendesse, este Desembargador acompanharia a
d. maioria, pois foi nesses termos que se fundamentou o acórdão.
Ao contrário, conforme ensinamento de Maria Elizabeth Queijo, o princípio
nemo tenetur se detegere também engloba a produção de provas tidas por não
invasivas, tais como o fornecimento de padrões gráficos ou vocais para a
realização de perícia comparativa287.
Não fosse assim, não faria sentido, do ponto de vista jurídico, a positivação
do direito ao silêncio, consagrado no artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição
da República. A lógica da qual decorre o enquadramento do interrogatório
como meio de defesa é justamente a de que, ao declarar, o réu pode vir a se
autoincriminar.
Por isso o que se veda, de fato, não é exclusivamente a transformação
do corpo do imputado em objeto do qual se possa extrair meio de prova, mas
também a objetivação da própria personalidade.
É esse substrato políticoBjurídico que coloca, ao lado da intangibilidade do
corpo, a “liberdade do acusado de encontrar uma decisão autônoma sobre se
ele quer colaborar ativamente com o esclarecimento dos fatos ou não”288 como
critério norteador do princípio nemo tenetur se detegere289.
O que se proíbe, pois, é o ato compulsório do acusado, que restringe essa
liberdade, verdadeira face de sua dignidade como pessoa humana dotada dos
direitos inerentes à personalidade, tais como a titularidade de sua própria imagem.
Nessa perspectiva, não é exclusivamente a produção de prova invasiva em
desacordo com a vontade do réu que caracteriza o desrespeito ao seu direito
fundamental, mas a exigência de que ele assuma determinado comportamento
– positivo ou negativo – para permitir a produção de prova, ainda que não
invasiva, em seu desfavor.
Assim, se o acusado, no exercício daquela liberdade de escolha, optou por
não fornecer dados de sua imagem, ele não pode ser obrigado a assumir esse
comportamento – por meio da condução coercitiva, por exemplo –, sob pena de

287 O Direito de Não Produzir Prova Contra Si (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no
processo penal). Saraiva. São Paulo, 2003, p. 251B255.
288 Suprema Corte Alemã. Decisão BGHSt 40, 71. Apud ROXIN, Claus. “Nemo tenetur”: La jurisprudência
em La encrucijada. In: Pasado, Presente y Futuro del Derecho Procesal Penal. p. 163B178.
289 LOPES JR. Aury. Palestra proferida no dia 25/06/2009, na 13.ª Reunião do Fórum de Especialização e
Atualização do Direito e do Processo Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

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efetiva violação ao direito de não colaborar com a condenação290 e de não ajudar


o Ministério Público a se desincumbir do ônus da prova291.
Isso não significa, porém, que as autoridades públicas estejam proibidas
de, por outros meios que não a coação do réu, obter os dados necessários
à elaboração do laudo de comparação biométrica, que realmente se mostra
pertinente e relevante à demonstração da autoria do fato a ele imputado.
O processo é público e, por isso, nada impede que, em audiência, por
exemplo, a imagem lhe seja extraída por meio de fotografia, desde que, para
tanto, ele não seja compelido a fornecêBla.
É o que ensina Maria Elizabeth Queijo292 e corrobora o Supremo Tribunal
Federal, que, em relação ao exame grafotécnico, decidiu desta forma:

HABEAS CORPUS. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. RECUSA A


FORNECER PADRÕES GRÁFICOS DO PRÓPRIO PUNHO, PARA
EXAMES PERICIAIS, VISANDO A INSTRUIR PROCEDIMENTO
INVESTIGATÓRIO DO CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE
DOCUMENTO. NEMO TENETUR SE DETEGERE. Diante do
princípio nemo tenetur se detegere, que informa o nosso direito de punir,
é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do art. 174 do Código de
Processo Penal há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado
compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames
periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê/lo a seu alvedrio. É que
a comparação gráfica configura ato de caráter essencialmente probatório,
não se podendo, em face do privilégio de que desfruta o indiciado contra a
auto/incriminação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova capaz
de levar à caracterização de sua culpa. Assim, pode a autoridade não
só fazer requisição a arquivos ou estabelecimentos públicos, onde
se encontrem documentos da pessoa a qual é atribuída a letra, ou
proceder a exame no próprio lugar onde se encontrar o documento
em questão, ou ainda, é certo, proceder à colheita de material, para o
que intimará a pessoa, a quem se atribui ou pode ser atribuído o escrito,
a escrever o que lhe for ditado, não lhe cabendo, entretanto, ordenar que o
faça, sob pena de desobediência, como deixa transparecer, a um apressado
exame, o CPP, no inciso IV do art. 174. Habeas corpus concedido.293

290 QUEIJO, Maria Elizabeth. Op. cit., p. 268.


291 LOPES Jr., Aury. Op. cit.
292 QUEIJO, Maria Elizabeth. Op. cit., p. 317.
293 HC 77135/SP. Primeira Turma. Rel. Min. Ilmar Galvão. Julgamento: 08/09/1998. Grifei.

478
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No mesmo sentido, Aury Lopes Junior294 defende que a recusa do indiciado


em fornecer dados genéticos para a produção de determinada prova não impede
que a autoridade policial os colha de outra forma, como a realização de busca e
apreensão em sua residência, desde que autorizada judicialmente, ou até mesmo
o aproveitamento da saliva do investigado deixada no copo em que ele bebeu
água ou no toco de cigarro descartado no cinzeiro.
TrataBse do que o autor chama de prova dispensada, cuja utilização não está
vedada e, portanto, não acarreta qualquer nulidade. É o que ocorreu num caso
alemão por ele citado, em que, diante da ausência de fornecimento voluntário
de dados genéticos, a polícia colheu no lixo, descartado na rua pela investigada,
material para a realização do exame pericial.
Portanto, é forçoso reconhecer que, do ponto de vista prático, o acolhimento
da tutela pretendida neste writ não teria efeito algum, pois o acusado não está
imune à obtenção de seus dados de imagem por meios que não exijam qualquer
comportamento seu, quer positivo, quer negativo, até mesmo em local público.
Se estivesse, o próprio vídeo produzido pela Polícia Civil estaria
contaminado pela ilicitude. Não é o caso.
Assim, colhida a imagem do acusado sem a contribuição de ato compulsório
dele, a prova não poderia ser reputada ilícita e, portanto, o laudo produzido
poderia perfeitamente exercer influência sobre o convencimento do juiz e servir
de fundamento para a sentença.
Todavia, a falta de razoabilidade da tese defensiva não se confunde
com tutela dos direitos fundamentais, que devem ser respeitados em sua
integralidade, mesmo que, em determinadas ocasiões, não seja possível evitar
que de outras formas o resultado indesejado pelo acusado possa ser obtido.
Pelo exposto, votei vencido no sentido da concessão da ordem, para proibir
qualquer exigência de comportamento, positivo ou negativo, do acusado a fim
de colaborar com a produção da prova requerida pelo Ministério Público.

Rio de Janeiro, 24 de setembro de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

294 LOPES Jr., Aury. Op. cit.

479
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Direito à prova e oralidade

5ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS 2009.059.04919
AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DA 16.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA
DA CAPITAL
IMPETRANTE: XXXX E YYYY
PACIENTE: ZZZZ
RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

VOTO VENCIDO

Em que pese o entendimento diverso adotado pela douta maioria, voto


vencido no sentido de CONCEDER PARCIALMENTE A ORDEM, para
determinar a exibição de mídia em audiência.
Apresento em anexo a declaração de voto com ementa.

Rio de Janeiro, 16 de julho de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. PRISÃO EM


FLAGRANTE. ARTIGO 16, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO IV,
DA LEI 10.826/03. ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA,
CONSUBSTANCIADO NA NÃO PRODUÇÃO DE PROVA
ANTES DEFERIDA PELO JUÍZO APONTADO COMO COATOR
E NO INDEFERIMENTO DE PEDIDO DE ACAREAÇÃO E DE
ANÁLISE DE MÍDIA POR PSICÓLOGO. RECONSIDERAÇÃO
DO ATO JUDICIAL QUE DEVERIA ESTAR FUNDAMENTADA
NA EVIDENTE INIDONEIDADE DO MEIO DE PROVA OU
NA SUA IMPERTINÊNCIA. IMPRESCINDIBILIDADE DA
PROVA. POSSIBILIDADE DE O CONTEÚDO DA MÍDIA VIR A
TRANSFERIR A RESPONSABILIDADE PENAL DO PACIENTE

480
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PARA TERCEIRAS PESSOAS. SUBSTITUIÇÃO DA PROVA


REQUERIDA PELA DETERMINAÇÃO DE TRANSCRIÇÃO DO
CONTEÚDO DO VÍDEO POR PERITOS QUE FAZ PRESUMIR
QUE A JUÍZA A QUO ADMITIU A PROVA NO PROCESSO E,
PORTANTO, A CONSIDEROU LÍCITA. INCOERÊNCIA COM
A LÓGICA DA ORALIDADE ADOTADA PELAS LEIS 11.689,
11.690 E 11.719, TODAS DE 2008. PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO.
REPERCUSSÃO NA AMPLA DEFESA, NO CONTRADITÓRIO,
NO DIREITO À PROVA, NO LIVRE CONVENCIMENTO
DO JUIZ E NA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL. DÚVIDA SOBRE A ORI-
GEM DAS AMEAÇAS À TESTEMUNHA QUE IMPÕE A
MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA CAUTELAR. Paciente
preso em flagrante no dia 16 de março de 2009 e posteriormente
denunciado, em razão da suposta prática do crime definido no
artigo 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei 10.826/03. Alegação de
cerceamento de defesa consubstanciado na não exibição de vídeo
anteriormente deferida pelo Juízo apontado como coator e pelo
indeferimento de pedido de acareação e da análise do conteúdo
da mídia por um psicólogo. Reconsideração do ato judicial de
admissão do meio de prova que deverá estar fundamentada na
sua evidente inidoneidade ou impertinência. Isso porque o juiz
natural, presidente do processo e responsável por sua ordem
interna, atua filtrando os meios de prova propostos pelas partes,
admitindo apenas aqueles que se prestem à demonstração dos
fatos alegados. Ao deferir a exibição de vídeo em audiência, a
magistrada reconheceu sua importância para o desfecho da causa,
bem como sua licitude. Conversa gravada clandestinamente,
mas divulgada por um dos interlocutores. Ausência de vedação
específica à revelação do conteúdo do diálogo (artigo 154 do Código
Penal). “Justa causa” configurada na possibilidade de o vídeo
constituir prova da inocência do acusado (artigos 152, 153, 154, 155,
325 e 326 do Código Penal). Ainda que se possa especular com a
ilicitude da prova, o postulado da proporcionalidade atua como
critério norteador para o seu ingresso no processo, na medida em
que a presunção de inocência incrementa o valor da ampla defesa,
do contraditório e da liberdade em detrimento da intimidade
e da vida privada. Impossibilidade de substituição da exibição

481
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da mídia pela transcrição do seu conteúdo diante das alterações


trazidas ao Código de Processo Penal pelas Leis 11.689, 11.690 e
11.719, todas de 2008, que consagraram o princípio da oralidade.
Premissa axiológica que veio para concentrar os atos em audiência,
evitando dilações temporais inerentes à forma escrita, e garantir a
ambas as partes mais efetiva influência no resultado do processo e,
sobretudo, de maior fidelidade da sentença ao fato caracterizador
do crime. Princípio da imediação. Repercussão em diversas esferas,
tais como a ampla defesa, o contraditório, o direito à prova, o livre
convencimento do juiz e a inafastabilidade da jurisdição. Análise
da mídia por psicólogo que perde sentido com o contato direto
entre o juiz e o conteúdo do vídeo. Requerimento de realização
de acareação que deverá ser (re)apreciado pela juíza de primeiro
grau após colher suas impressões pessoais sobre as declarações
extrajudiciais da testemunha WWWW. Pedido de liberdade que
não deve ser acolhido, diante da alegação da testemunha no sentido
de estar sendo ameaçada pelo acusado. Artigo 312 do Código de
Processo Penal.
VOTEI VENCIDO PARA CONCEDER PARCIALMENTE A
ORDEM.

VOTO

O paciente foi preso em flagrante e denunciado em razão da suposta prática


do crime definido no artigo 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei 10.826/03 e, em
resposta preliminar, alegou tratarBse de estado de flagrância forjado por seus
“desafetos”, arrolando como testemunhas WWWW e HHHH.
A Audiência de Instrução e Julgamento, designada para o dia 07 de maio de
2009, não foi concluída em razão da ausência de uma das testemunhas arroladas
pela acusação (fl. 83 do Doc. 1 do Anexo).
Na ocasião, a Defesa requereu a juntada de termo de entrevista concedida
por HHHH em procedimento administrativo da Corregedoria Geral Unificada
das Polícias Civil, Militar e Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro.
Nas declarações da testemunha, acostadas à fl. 89 do Doc. 1 do Anexo,
consignouBse que WWWW teria procurado HHHH para informáBlo de que seu
exBcompanheiro, Tenente RRRR, do Exército, teria forjado a situação de flagrante
que ensejou a prisão de ZZZZ.

482
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HHHH gravou a conversa, e a mídia correspondente foi juntada ao processo


originário.
Na data designada para a continuação da Audiência de Instrução e
Julgamento, contudo, WWWW compareceu ao gabinete da Promotora de Justiça
com atribuição junto à 16.ª Vara Criminal e declarou que foi coagida por HHHH
a gravar o vídeo (fls. 167/8 do Doc. 1 do Anexo), o que foi confirmado no mesmo
dia em Juízo (fls. 174/7 do Doc. 1 do Anexo).
Após a suspensão da audiência, a pedido do patrono do acusado (fl. 169 do
Doc. 1 do Anexo), foi determinada a requisição de Técnicos de Telecomunicações
deste Tribunal de Justiça a fim de viabilizar a exibição da mídia quando da
continuação da instrução, o que foi feito às fls. 180/1 do Doc. 1 do Anexo.
À fl. 199/200 do Doc. 1 do Anexo foi requerida ainda a transcrição do
conteúdo do vídeo por peritos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli.
Em petição constante de fls. 55/7 deste habeas corpus, a Defesa ratificou os
pedidos anteriormente formulados e acrescentou requerimentos de análise do
vídeo por um psicólogo e de acareação entre as testemunhas HHHH e WWWW.
No dia 18 de junho, contudo, a e. Juíza Cláudia Pomarico indeferiu os
pedidos de análise do vídeo por um psicólogo e de acareação. Deferiu apenas a
transcrição do conteúdo da mídia e, sob esse fundamento, deixou de exibiBla em
audiência.
Diante desses fatos, votei vencido para conceder parcialmente a ordem.
Assim é, em primeiro lugar, porque a toda evidência, a não produção da
prova requerida pela Defesa e deferida pelo juiz configura violação ao direito de
defesa e ao contraditório, caracterizado como o “direito de ação e reação”.
Com efeito, quando a juíza deferiu o pleito defensivo, determinando a
exibição da mídia em audiência, reconheceu que a produção daquela prova
era necessária e imprescindível para formação de seu convencimento e que,
portanto, sem ela não se encontraria apta a formar sua convicção e prolatar a
sentença.
É verdade que o requerimento de produção de determinada prova
postulada pelas partes pode ser indeferido pelo magistrado sempre que ele,
fundamentadamente, entender por prescindível a sua realização.
Essa não é, contudo, a hipótese, pois a juíza entendeu por pertinente o
pleito defensivo e, ao assim proceder, a prova pretendida deixou de ser um ato
da parte, no exercício de seu direito de defesa, para ser um ato animado pelo
contraditório.
De fato, o juiz natural, presidente do processo e responsável pela sua ordem
interna, atua filtrando os meios de prova propostos pelas partes, só admitindo

483
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aqueles que se prestem à demonstração dos fatos por elas alegados e que terão
de guardar pertinência com o objeto do processo: a acusação e o álibi.
Nesse sentido é o ensinamento de Antônio Magalhães Gomes Filho, para
quem a superação do óbice da preclusão para o fim de produção de prova
depende da mínima demonstração da sua pertinência e relevância295.

Embora freqüentemente empregados indistintamente, com a utilização do


termo relevancy para indicar também a materiality, esses dois critérios
não se confundem: a expressão materiality diz respeito à conexão entre
a prova oferecida e os fatos controvertidos; não concerne à idoneidade da
prova, mas tão somente à sua pertinência com os fatos controvertidos; já
através do teste de relevancy, verifica/se se a prova oferecida tem aptidão
para estabelecer a existência ou inexistência, verdade ou falsidade, de um
outro fato, através do qual seja possível realizar uma inferência lógica; sua
aplicação é, portanto, tipicamente relacionada a prova indireta.

E ao admitir, a priori, o meio de prova, que sob o ângulo das partes está
instrumentalmente conexo à ação e ao direito de Defesa, o juiz está reconhecendo
justamente essa pertinência.
Dessa forma, a reconsideração do ato judicial de admissão do meio de
prova, deverá estar fundamentada na evidente inidoneidade do referido meio ou
na sua impertinência, isto é, na impossibilidade de demonstrar o fato alegado
que tem relevância processual.
A hipótese sob julgamento é a oposição perfeita desse requisito.
A uma porque, embora, para indeferir o pedido de análise do vídeo por um
psicólogo, a juíza tenha afirmado que WWWW sequer presenciou o fato, não
sendo testemunha apta a esclarecêBlo, tomou por verdadeiras as declarações por
ela prestadas no Ministério Público e em Juízo.
Cabe destacar que, se é verdade que WWWW não é testemunha presencial
do fato, há possibilidade de que seja testemunha de fato muito mais grave do que
aquele imputado ao paciente, capaz até mesmo de transferir a responsabilidade
penal do porte de arma de uso restrito do acusado para outras pessoas.
E, como a alegação defensiva cingeBse a isso, tal possibilidade configura a
relevância e pertinência da exibição do vídeo em audiência.
A duas porque, não obstante tenha deixado de proceder à exibição do
vídeo, a e. Juíza determinou a transcrição de seu conteúdo por peritos da Polícia

295 Direito à prova no Processo Penal. Revista dos Tribunais. São Paulo. 1997. p. 131.

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Civil do Estado do Rio de Janeiro, reconhecendo, ainda que implicitamente, a


relevância e pertinência da prova cuja produção foi requerida.
Mais que isso, a determinação da realização de perícia sobre a mídia
revela que foi desconsiderado o fato de a gravação do vídeo ter se dado sem o
conhecimento de WWWW, a denotar que a magistrada considera a prova lícita.
A esse respeito, embora a matéria não tenha sido ventilada em primeiro
grau, é pertinente destacar que de fato não se cuida de prova obtida por meios
ilícitos, já que foi sob esse fundamento que a douta maioria fundamentou a
improcedência do pedido.
Com a ressalva das homenagens que rendo a meus pares, saliento que a
meu ver o caso sob julgamento não está abarcado pelas vedações previstas nos
artigos 5.º, inciso LVI, da Constituição da República e 157 do Código de Processo
Penal, com a redação conferida pela Lei 11.690/08.
Assim é porque há dois únicos fundamentos que podem sustentar a
ilicitude da prova em questão.
O primeiro diz respeito à coação de que WWWW teria supostamente sido
vítima para que gravasse o vídeo em que exclui a responsabilidade penal de
SÉRGIO e a atribui a outras pessoas.
Nesse caso, a ilicitude do meio por que obtida a prova não está comprovada
e sua demonstração depende justamente da exibição do vídeo em audiência.
Cumpre salientar que, caso tenha efetivamente havido coação por parte do réu
sobre a testemunha, isso não trará qualquer prejuízo à parte acusadora e, ao
contrário, poderá servir de base para o convencimento do juiz no momento em
que for proferir a sentença.
O segundo consiste na proteção da intimidade e da vida privada (artigo 5.º,
inciso X, da Constituição da República).
Todavia, a restrição que se faz ao acesso a informações de cunho pessoal
se dá exclusivamente a terceiros, e não aos titulares do direito fundamental
tutelado. É isso o que fundamenta a vedação à interceptação telefônica sem
autorização judicial e a diferencia da gravação clandestina.

A reprovabilidade jurídica da interceptação vem do seu sentido radical


de intromissão que, operada sem anuência dos interlocutores, excludente
de injuricidade, nem autorização judicial na forma da lei, rompe o sigilo
da situação comunicativa, considerada como proprium dos respectivos
sujeitos, que, salvas as exceções legais, sobre ela detêm disponibilidade

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exclusiva, como expressão dos direitos fundamentais de intimidade e


liberdade.296

Sob outro enfoque, os interlocutores de determinada conversa, desde que


não o façam “em razão de função, ministério, ofício ou profissão” (artigo 154 do
Código Penal), podem perfeitamente dispor do respectivo teor, uma vez que são
eles próprios os titulares do direito de impedir que terceiros tenham acesso a ele.
Tanto é assim que HHHH revelou em juízo diversos trechos do diálogo
que gravou com WWWW sem que qualquer das partes impugnasse validade de
suas declarações como meio de prova.
A esse respeito, salientou ainda o Ministro Cezar Peluso:

O que, em resumo, se sustenta é que, tida acaso por ilícita, em caráter


absoluto, a gravação de conversa telefônica realizada por um dos
interlocutores, sem a ciência do outro, debaixo do pretexto de, em última
instância, constituir também violação do sigilo garantido às comunicações
telefônicas, então deveria predicar/se igual restrição ou interdição jurídica
ao campo retórico da prova oral, embora a custo do seu completo e absurdo
aniquilamento.297

O Ministro Eduardo Ribeiro, do Superior Tribunal de Justiça, a seu turno,


após afirmar o mesmo entendimento, complementaBo:

Considero que, em regra, quando alguém mantém determinada conversação,


seja pessoalmente, seja com o uso de meios eletrônicos, arrisca/se a ver a
mesma divulgada, o que configurará, quando muito, uma inconfidência,
cujo grau de censurabilidade não chega a tornar ilícita a prova.298

E se o material resultante da gravação de uma conversa telefônica pode


ser utilizado sem objeção à sua validade como meio de prova, menos ainda é
possível proibir o ingresso de um diálogo pessoal entre os interlocutores na
forma de gravação, ainda que clandestina, porque não se cuida de objeto de
tutela do artigo 5.º, inciso XII, da Constituição da República.

296 Supremo Tribunal Federal. Voto condutor do acórdão proferido no RE n.º 402.717B8/PR. Segunda
Turma. Rel. Min. Cezar Peluso. Julgamento: 02/12/2008.
297 Ibidem.
298 Voto proferido no Resp n.º 9.012/RJ. Terceira Turma. Julgamento: 24/02/1997.

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Isso porque, mesmo naquelas hipóteses em que o Código Penal tipifica


a divulgação de segredo, ela deve ocorrer “sem justa causa” (artigos 152, 153,
154, 155, 325 e 326), elementar cuja ausência impede a configuração dos delitos
correspondentes.
No caso em apreço, que sequer se subsume a norma penal incriminadora, a
justiça da causa está suficientemente demonstrada, uma vez que a tese defensiva
gira em torno da negativa de autoria, que pode ser comprovada – ou não,
conforme o convencimento do juiz sentenciante – por meio da exibição do vídeo
que reproduz o diálogo entre HHHH e WWWW.
É evidente que a admissibilidade de meios de prova semelhantes se
restringe àqueles casos em que a sua utilização tenha a finalidade de resguardar
a ampla defesa, o contraditório e, em última análise, a liberdade do acusado –
e é apenas neste ponto que divirjo da jurisprudência dominante no Supremo
Tribunal Federal, que admite a utilização dessa espécie de recurso em favor da
acusação.
A propósito, é sob esse mesmo fundamento que, se há ainda algum modo
de especular com a ilicitude dessa prova, se justifica a excepcionalidade de
admitiBla no processo.
Com efeito, o reconhecimento, no caso concreto, do conflito entre a intimidade
e a vida privada, de um lado, e a ampla defesa, o contraditório e a liberdade de
ir e vir, de outro, implica estabelecer o postulado da proporcionalidade como
critério de solução.
Daí porque a presunção de inocência atua como um peso a mais na balança,
dando maior relevância aos interesses do acusado299, “porque a condenação de
um inocente é a mais abominável das violências e não pode ser admitida ainda
que se sacrifique algum outro preceito legal”300.
No mesmo sentido asseverou Antônio Magalhães Gomes Filho:

(...) no confronto entre uma proibição de prova, ainda que ditada pelo
interesse de proteção a um direito fundamental, e o direito à prova da
inocência parece claro que este último deva prevalecer, não só porque a
liberdade e a dignidade da pessoa humana constituem valores insuperáveis,
na ótica da sociedade democrática, mas também porque ao próprio Estado

299 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 16.ª Ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2009, p. 438.
300 GRECO FILHO, Vicente. Apud LOPES JR., Aury. Direito Penal e sua Conformidade Constitucional. V. I.
Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2007, p. 567.

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não pode interessar a punição do inocente, o que poderia significar a


impunidade do verdadeiro culpado (...)301

Não se trata de assumir, desde logo, como verdadeira a alegação defensiva


de flagrante forjado – que deverá ser apreciada pelo juiz natural por ocasião
da sentença –, mas de reconhecer o seu direito a vêBla provada, ainda que,
posteriormente à exibição da mídia, o juiz venha a se convencer do contrário.
Por isso, conforme ensinamento de Fernando da Costa Tourinho Filho,
“uma interceptação telefônica, mesmo ao arrepio da lei, se for necessariamente
essencial a demonstrar a inocência do acusado, não pode ser expungida dos
autos”302. Se é assim em relação à proteção das conversas telefônicas, às quais se
atribui proteção constitucional expressa, ainda mais se deve admitir a exibição
do vídeo.
Dessa forma, a intimidade e a vida privada de WWWW cedem lugar à
ampla defesa, direito de que ZZZZ é titular.
Não cabe a alegação segundo a qual o cerceamento de defesa foi superado
pela determinação da realização do exame pericial. Em verdade, a substituição
da exibição da mídia em audiência pela transcrição do seu conteúdo vai de
encontro à lógica adotada pelas recentes alterações trazidas ao Código de
Processo Penal, por meio das Leis 11.689, 11.690 e 11.719, todas de 2008.
A propósito, cumpre destacar que não foi casual a opção do legislador
pela estruturação oral dos novos procedimentos, pois dentre os princípios que
informam o sistema acusatório, eleito no artigo 129, inciso I, da Constituição da
República, está o da oralidade, que tem por objetivo, dentre outros, a aceleração
do processo pela concentração dos atos processuais em audiência.
Nesse contexto, é incoerente com a nova sistemática adotada a determinação
de realização de exame pericial, que demanda tempo, quando é possível em
poucas horas dirimir a dúvida levantada por uma das partes.
Além disso, a contraposição desse princípio com a escritura conduz à
constatação de que a relação entre sistemas autoritários e a forma escrita de
instrução probatória e manifestação das partes no processo não é rara, a exemplo
dos tempos de Inquisição303.
Não se trata, evidentemente, de coincidência histórica, pois “a alternativa
axiológica entre as formas oral e escrita, assim como aquela entre publicidade

301 Op. Cit., p. 106B107.


302 Código de Processo Penal Comentado. 12.ª Ed. Saraiva. São Paulo, 2009, p. 531.
303 Ferrajoli, Luigi. Trad.: Zomer, Ana Paula; Tavares, Juarez; Choukr, Fauzi Hassan e GOMES, Luiz
Flávio. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, p. 451B454.

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e segredo, reflete a diversidade dos métodos probatórios próprios do sistema


acusatório e inquisitório: enquanto a forma escrita é inevitável em um sistema
penal baseado nas provas legais, a forma oral o é, ao invés, nos sistemas
informados pelo contraditório e pelo livre convencimento”304.
O efeito prático da oralidade no contraditório é de fato evidente porque,
ao implicar necessariamente maior grau de publicidade dos atos, ela “abrevia a
distância”305 entre os sujeitos processuais e, portanto, proporciona a imediação
do diálogo entre eles: cientes do conteúdo das provas eventualmente produzidas
em processo, as partes possuem maior liberdade e possibilidade de manifestação
e interferência no convencimento do juiz.
Não seria de grande valia, no entanto, a imediação entendida apenas como
método de convencimento do juiz. Segundo Iacovello, o binômio oralidadeB
imediação deve antes ser concebido como “técnica de formação das provas”306.
Assim é porque o Juiz que não participa da produção das provas abre mão
do contato com detalhes e sutilezas que escapam à frieza dos papéis que as
reproduzem.

(...) o essencial do processo se cifra na relação direta do juiz com as fontes


pessoais de prova, que na experiência do processo criminal são muitas
vezes as únicas e, em geral, as de maior rendimento. E, ademais, vigente o
princípio da livre convicção, não existiria outro modus operandi possível,
posto que o julgador deve formar convicção com materiais de primeira mão,
em virtude de uma apreciação personalíssima.307

Não basta, portanto, que o Juiz ouça diretamente as partes; também não é
suficiente que ele presencie a produção das provas. Ambas as situações devem
estar presentes para que o resultado do processo tenha fidelidade mínima à
realidade dos fatos.
A esse respeito, Bentham, em ponto de vista contrário à estrutura mista do
processo penal francês, destacou que “O juiz que não ouviu as testemunhas,
nunca estará seguro de que as atas representam fielmente o testemunho oral,
nem de que este tenha sido exato e completo em sua origem” 308.
Continua o autor, ao justificar a necessidade da identidade física do juiz:

304 Idem, p. 494.


305 Carnelu[i, Francesco. Diri_o e Processo. Morano, Napoli, 1958, p. 151.
306 Apud Ibáñez, Perfecto Andrés. Valoração da Prova e Sentença Penal. Org. Lédio Rosa de Andrade.
Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 9.
307 Idem, p. 5.
308 Tratado de las Pruebas Judiciales. V. I. Trad. Manuel Ossorio Florit. Dumont, Buenos Aires, 1959, p. 92.

489
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O juiz não pode conhecer por observações próprias os caracteres de verdade


tão vivos a tão naturais, relacionados com a fisionomia, com o tom de
voz, com a firmeza, com a prontidão, com as emoções do temor, com a
simplicidade da inocência, com a turbação da má fé (...).309

Tal lição, embora se refira à prova testemunhal, tem perfeita aplicação ao


caso sob julgamento: não se pode determinar a transcrição do conteúdo de um
vídeo quando é possível exibiBlo em audiência.
É evidente que há aquelas provas cuja interpretação não prescinde da
análise por profissional técnico.
Há outras, porém, a que o julgador tem acesso pelo mesmo meio – a perícia –
apenas porque usualmente, em razão da mesma cultura inquisitória da escritura,
assim se convencionou. É o caso, por exemplo, dos laudos de transcrição de
conversas telefônicas interceptadas e de vídeos.
A esse respeito, porém, Antônio Magalhães Gomes Filho destaca que, “se
de um lado esse grande manancial de informações pode servir a uma mais exata
apuração da verdade, por outro também é maior o risco de que as eventuais
distorções da realidade, nesse tipo de prova, não seja percebidas pelas partes ou
pela sociedade”310.
É por isso que Hélio Tornaghi311 rechaçou a noção de perícia como meio de
prova, para conceituáBla como meio de acesso aos meios de prova. Isso porque,
segundo o autor, como o perito não presenciou o fato, a ele cabe apenas analisáB
lo do ponto de vista técnico, para cumprir uma função de auxiliar do juiz na
interpretação da prova.
Nisso ela se diferencia do testemunho oral, conforme lição do autor, ao citar
Carnelu[i:

A testemunha recorda, o perito relata: “a primeira é um meio de reconstrução,


o segundo de comunicação da verdade”. E compara a testemunha ao
fonógrafo, e o perito ao telefone. A testemunha ressuscita o fato passado tal
qual como o fonógrafo ressuscita a voz; o perito transmite a voz de quem
está falando.312

309 Ibidem.
310 Op. Cit., p. 155.
311 Instituições de Processo Penal. V. 4. 2.ªa Ed. Saraiva. São Paulo, 1977, p. 169B173.
312 Idem, p. 171.

490
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Nessa perspectiva, quando a perícia tem por objetivo exclusivamente


reproduzir aquilo que o meio de prova, por si só, é capaz de informar, não há
por que recorrer a ela, se o juiz tem a possibilidade de ter contato imediato com
aqueles dados.
É por isso mesmo que este relator considera, ao mesmo tempo em que
relevante e pertinente a exibição da mídia, desnecessária a sua análise por um
psicólogo. O contato direto do juiz com essa prova é suficiente para conferirBlhe
segurança para proferir sentença, e essa é a razão de ser o princípio da livre
convicção motivada.
Nesse passo, deve ser exibida a mídia, a fim de concretizar a ampla defesa, o
contraditório, o livre convencimento motivado e inafastabilidade da jurisdição.
No que tange ao requerimento de acareação entre as testemunhas, entendo
que a juíza de primeiro grau deverá (re)apreciáBlo após a exibição do vídeo em
audiência, momento em que, uma vez colhidas suas impressões pessoais sobre
os declarações extrajudiciais da testemunha, terá maiores condições de avaliar
se tal diligência é ou não necessária.
Por fim, não merece ser acolhido o pedido de liberdade provisória do
paciente.
Com efeito, apesar de as impetrantes terem comprovado primariedade,
residência fixa e atividade laborativa por parte de ZZZZ, o quadro em que a
testemunha alega estar sofrendo ameaças e coação advindas do réu e de HHHH
não autoriza a liberdade provisória. A manutenção da custódia cautelar, nesse
contexto, impõeBse, sobretudo para assegurar a instrução criminal (artigo 312 do
Código de Processo Penal).
Votei vencido, pois, no sentido conceder parcialmente a ordem, para
determinar a exibição da mídia em audiência.

Rio de Janeiro, 16 de julho de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR RELATOR

491
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Crime de receptação e interpretação conforme


a Constituição

5ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL 2006.050.00544
APELANTE: XXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
JUÍZO: VARA ÚNICA DE IGUABA GRANDE
CO–RÉU: YYYY
Artigo 180, §1º, do Código Penal

VOTO VENCIDO

Em que pese o entendimento diverso adotado pela douta maioria, votei


vencido para conhecer o recurso e lhe dar provimento e declarar extinta a
punibilidade do fato em virtude do reconhecimento da prescrição da pretensão
punitiva, nos termos do artigo 107, inciso IV c/c artigo 109, inciso V, todos do
Código Penal.
Votei ainda no sentido de estender esta decisão ao acusado YYYY cuja
pena foi igualmente atingida pela prescrição, nos termos do artigo 109, inciso
V, do Código Penal e assim deve ser declarada extinta a punibilidade porque o
trânsito em julgado encontra impedimento objetivo no disposto no artigo 580 do
Código de Processo Penal.
Com efeito, XXXX foi processado e condenado, juntamente com YYYY,
como incurso nas sanções do artigo 180, §1º, do Código Penal (fls. 214/221). Ao
apelante foi imposta a pena de três anos e seis meses de reclusão, a ser cumprida
em regime semiaberto, e quinze diasBmulta e, ao correu, YYYY, a pena de três
anos de reclusão, a ser cumprida em regime semiaberto, e dez diasBmulta.
A pena privativa de liberdade de XXXX deixou de ser substituída por
restritiva de direitos. O magistrado entendeu que não estariam presentes os
requisitos subjetivos, tendo em vista os maus antecedentes do acusado.
No que toca a YYYY, porém, a sua pena foi substituída por duas restritivas
de direitos.

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Com efeito, o apelante foi condenado porque no exercício de sua atividade


comercial, ao adquirir mercadorias – caixas de margarina QUALY – sabia ou
deveria saber que estas mesmas mercadorias eram produtos de crime.
Por ocasião do recurso de apelação de XXXX, interposto em 01 de novembro
de 2005, a Defesa postulou o reconhecimento da inconstitucionalidade do §1º do
artigo 180 do Código Penal sob o argumento de que o dispositivo violaria os
princípios da harmonia e da proporcionalidade.
A douta maioria deixou de acolher a mencionada tese e o Desembargador
revisor destacou a limitação que o princípio da reserva de plenário – artigo 97 da
Constituição da República – impõe aos órgãos fracionários dos tribunais.
Entendo, porém, que a análise da compatibilidade do preceito secundário
do §1º do artigo 180 do Código Penal, hoje e em razão da evolução jurisprudencial
do e. Supremo Tribunal Federal, não está adstrita àquela cláusula. TrataBse, em
verdade, de técnica de interpretação, no caso a interpretação conforme, a que
todos os intérpretes/aplicadores das normas jurídicas estão vinculados.
A distinção é importante, pois que a declaração de inconstitucionalidade
tem contornos próprios e está situada em outro âmbito.
Sobre o tema da declaração de inconstitucionalidade LUÍS ROBERTO
BARROSO313 destaca a impossibilidade de os órgãos fracionários a declararem “a
menos que essa inconstitucionalidade já tenha sido anteriormente reconhecida
pelo plenário ou pelo órgão especial do próprio tribunal ou pelo plenário do
Supremo Tribunal Federal, em controle incidental ou principal”.
É certo, porém, que os órgãos fracionários, contudo, poderão deixar de
submeter a causa ao órgão especial, nos termos do artigo 97 da Constituição da
República, sempre que houver decisão deste mesmo órgão ou do plenário do
Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria (artigos 480 e 481 do Código de
Processo Civil).
Isso, todavia, reflete a existência de uma “causa constitucional”. Coisa
diversa, e que se enquadra na hipótese que aqui se examina, diz com “causa
ordinária” cuja solução está na dependência da (correta) interpretação sobre a
norma jurídica de nível inferior, como é o caso da definição do preceitoBsanção
do crime de receptação.
Sobre isso, com efeito, em decisão proferida monocraticamente pelo
Ministro Celso de Mello na Medida Cautelar em Habeas Corpus 92.525B1/RJ,
deliberouBse pela suspensão da aplicação do preceito secundário definido no §1º
do artigo 180 do Código Penal:

313 O controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. Ed. Saraiva. 3ª Ed. 2009. p. 89.

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EMENTA: RECEPTAÇÃO SIMPLES (DOLO DIRETO) E


RECEPTAÇÃO QUALIFICADA (DOLO INDIRETO EVENTUAL).
COMINAÇÃO DE PENA MAIS LEVE PARA O CRIME MAIS
GRAVE (CP, ART. 180, “CAPUT”) E DE PENA MAIS SEVERA PARA
O CRIME MENOS GRAVE (CP, ART. 180, § 1º). TRANSGRESSÃO,
PELO LEGISLADOR, DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
DA PROPORCIONALIDADE E DA INDIVIDUALIZAÇÃO “IN
ABSTRACTO” DA PENA. LIMITAÇÕES MATERIAIS QUE
SE IMPÕEM À OBSERVÂNCIA DO ESTADO, QUANDO DA
ELABORAÇÃO DAS LEIS. A POSIÇÃO DE ALBERTO SILVA
FRANCO, DAMÁSIO E. JESUS E DE CELSO, ROBERTO, ROBERTO
JÚNIOR E FÁBIO DELMANTO. A PROPORCIONALIDADE
COMO POSTULADO BÁSICO DE CONTENÇÃO DOS
EXCESSOS DO PODER PÚBLICO. O “DUE PROCESS OF LAW”
EM SUA DIMENSÃO SUBSTANTIVA (CF, ART. 5º, INCISO LIV).
DOUTRINA. PRECEDENTES. A QUESTÃO DAS ANTINOMIAS
(APARENTES E REAIS). CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO.
INTERPRETAÇÃO AB-ROGANTE. EXCEPCIONALIDADE.
UTILIZAÇÃO, SEMPRE QUE POSSÍVEL, PELO PODER
JUDICIÁRIO, DA INTERPRETAÇÃO CORRETIVA, AINDA QUE
DESTA RESULTE PEQUENA MODIFICAÇÃO NO TEXTO DA LEI.
PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MEDIDA
CAUTELAR DEFERIDA.

Conforme se infere da ementa da referida decisão, a análise do preceito


secundário do §1º do artigo 180 do Código Penal sob o prisma do postulado da
proporcionalidade é reveladora de seu descompasso com o preceito secundário
adotado no caput deste artigo 180.
Mais até – e este é ponto: o e. magistrado e jurista sublinhou tratarBse de
hipótese de interpretação corretiva, à semelhança do que decidiu o Supremo
Tribunal Federal314 por ocasião do julgamento sobre a Lei dos Crimes Hediondos
e o crime de associação definido pela Lei nº 6.368/76.
E a correção tem lugar, necessariamente, porque se elegeu, em abstrato,
sanção penal mais gravosa para hipótese de crime que, a rigor, retrata categorias
normativas de censurabilidade menor.

314 HC 68793 – RJ. Relator Designado Moreira Alves. Primeira Turma. Data do julgamento: 10/03/92.

494
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É importante destacar, ainda fazendo referência à decisão do e. Supremo


Tribunal Federal, que o postulado da proporcionalidade, como instrumento de
contenção dos excessos do Poder Público e racionalidade na eleição dos bens
jurídicos penalmente tuteláveis num Estado Democrático de Direito, dirigeBse
igualmente – ao lado do Poder Judiciário B ao Poder Legislativo.
A adoção, portanto, de preceitos normativos que estão em desarmonia
interna, pois violadores do postulado da proporcionalidade, não subsistem
quando submetidas à filtragem constitucional e não se revelam em conformidade
com a Lei Maior.
Nesse contexto, valendoBse da técnica da interpretação corretiva B que visa
promover a eliminação de incompatibilidades dentro do sistema normativo e,
com isso, conservar ambas as normas tomadas como incompatíveis, por meio
da “introdução de leve ou de parcial modificação no texto da lei”, o Ministro Celso de
Mello assim propôs:

Em conseqüência desse entendimento, e buscando viabilizar


“a eliminação da incompatibilidade”, o Supremo Tribunal Federal
(cuidava-se, então, de regras normativas constantes da Lei dos
Crimes Hediondos), mediante exegese restritiva das normas legais
em exame, promoveu uma conciliação sistemática dos preceitos
legais, “(...) deixando ao primeiro, a fixação da pena (...) e ao segundo,
a especialização do tipo do crime (...)” (RTJ 166/493), na linha do que se
preconiza nas lições que venho de referir, que propõem, para solução
do conflito, a subsistência do preceito primário consubstanciado
no § 1º do art. 180 do Código Penal, embora aplicando-se-lhe o
preceito sancionador (preceito secundário) inscrito no “caput” do
referido art. 180 do CP.

Dentro dessa lógica, o caso é de se reconhecer como parâmetro aferidor


da pena imposta ao apelante o preceito secundário do caput do artigo 180 do
Código Penal.
Este artigo comina a pena de um a quatro anos e multa.
Certo é que em julgamento recente a segunda turma do e. Supremo Tribunal
Federal denegou a ordem em habeas corpus que tratava do tema por entender

495
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que não havia incompatibilidade entre o referido preceito secundário e a sanção


prevista para o crime de receptação315.
Isso, porém, somente confirma o estado de incerteza em que se encontra
envolvida a questão, pois que ainda em vigor a decisão liminar da lavra do e.
Ministro Celso de Mello, a justificar, nessa quadra, a escolha pela solução mais
favorável ao acusado.
A tese defendida no presente recurso de apelação, qual seja, aquela adotada
pelo e. Ministro Celso de Mello deixou, porém, de ser acolhida por esta e. Câmara
Criminal.
No mérito, destaco que a prova é segura a propósito do emprego de “notas
frias” para conferir aparência de regularidade à aquisição dos produtos de
origem criminosa.
Esta situação é reveladora, simultaneamente, da autoria e existência da
conduta, como também do fato, indicado pelo recurso ao citado mecanismo de
“lavagem”.
O auto de apreensão atesta a existência de 4.004 caixas de margarinas tipo
Qualy e a nota fiscal e a alegação do apelante de que somente teria encomendado
500 caixas destoa dos relatos dos policiais.
Assim é que havia 12 funcionários para realizar a descarga do material e
este número de homens não é necessário em se tratando de apenas 500 caixas.
O caso, pois, é de exame da pena.
O apelante é primário e seus antecedentes mencionados na sentença devem
ser desconsiderados porque XXXX não havia sido julgado por ocasião de sua
condenação no presente processo.
O emprego da nota “fria” (falsa – fls. 98) exprime de forma contundente o
dolo, mas isso não serve, de maneira isolada, para acentuar a pena. Ainda que se
queira ponderar a grande quantidade de produtos apreendidos – 4.004 (quatro
mil e quatro caixas de margarina tipo Qualy, da marca Sadia) B , o conjunto
favorável das circunstâncias judiciais não autoriza punição acima dos dois anos
de reclusão, pena que é tomada como parâmetro.
Por isso, a prescrição da pretensão punitiva está consumada, pois superado
o prazo de quatro anos, tendo como marcos a sentença e o julgamento da
apelação (artigo 109, inciso V, do Código Penal).
No que toca ao acusado YYYY não houve apelação (fl. 271).

315 Habeas Corpus 97344/SP – 2ª Turma – Rel. Min. Ellen Gracie. Pacientes Cláudio Roberto Manoel e
Vicente Silva Gomes Oliva e Impetrante Antônio Roberto Barbosa.

496
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Nada obstante, este acusado deve ser beneficiado pela extensão dos efeitos
da presente decisão.
Com isso, sua pena há de ser reduzida para um ano de reclusão e dez diasB
multa. A redução, neste caso, é maior quando comparada àquele reconhecida
em relação a XXXX para que seja preservada a proporcionalidade da sentença.
Nesse contexto, a pena de YYYY está igualmente prescrita, nos termos
do artigo 109, inciso V, do Código Penal e assim deve ser declarada porque o
trânsito em julgado encontra impedimento objetivo no disposto no artigo 580 do
Código de Processo Penal.
Posto isso, voto no sentido de dar provimento ao recurso defensivo
para declarar extinta a punibilidade, ante o reconhecimento da prescrição da
pretensão punitiva, nos termos do artigo 107, inciso IV c/c artigo 109, inciso V,
todos do Código Penal. Com fulcro no artigo 580 do Código de Processo Penal,
estendo esta decisão ao acusado YYYY cuja pena está igualmente prescrita, nos
termos do artigo 109, inciso V, do Código Penal.

Rio de Janeiro, 20 de maio de 2009.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

497
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Chamada de corréu e supressão hipotética do


inquérito policial

7ª CÂMARA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL Nº. 2007.050.03084
APELANTE: XXXX
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO
CO-RÉU: YYYY
JUÍZO DE ORIGEM: 2ª VARA DE BOM JESUS ITABAPOANA
RELATOR: DESEMBARGADOR GILMAR AUGUSTO TEIXEIRA

VOTO VENCIDO

Em que pese o entendimento diverso adotado pela douta maioria, voto vencido
para dar provimento ao recurso defensivo e, consequentemente, absolver o acusado
com fulcro no artigo 386, inciso VI, do Diploma Processual Penal.
O apelante foi denunciado pela prática da conduta delituosa prevista no
artigo 155, caput, do Código Penal.
E isto porque, no dia 4 de abril de 2005, teria subtraído com vontade livre e
consciente a bicicleta modelo Tropical FI, cor violeta, ano 2004, avaliada em R$
180,00 (cento e oitenta reais) de propriedade de MMMM.
Consta ainda que, no mesmo dia, o apelante vendeu o mencionado bem a
YYYY, tendo este conhecimento de tratarBse de produto de furto, uma vez que
pagou pela bicicleta a módica quantia de R$ 25,00 (vinte e cinco reais).
A r. sentença, proferida pela Juíza Fabiola Costalonga (fls. 168/173),
reconheceu a responsabilidade penal do réu e o condenou à pena de oito meses
de reclusão, a ser cumprida em regime inicial aberto, e ao pagamento de seis
diasBmulta, pela prática do crime de furto privilegiado.
O réu, ao ser intimado da r. sentença (fl. 176), manifestou seu desejo de
recorrer, sendo o apelo recebido à fl. 177, e com razões recursais entranhadas às
fls. 178/184.
A Defesa pleiteou, em preliminar, a nulidade do ato jurisdicional, sob o
argumento de falta de fundamentação na redução de pena aplicada, em razão
do reconhecimento do furto privilegiado.

498
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No entanto, tal preliminar foi devidamente rejeitada, consoante


fundamentação explicitada no voto vencedor acostado às fls. 202/208.
No mérito, a Defesa pugna pelo reconhecimento da absolvição, com fulcro
no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal. Alega que o magistrado
a quo se valeu do interrogatório do réu em sede policial para respaldar a
condenação.
De fato, ao analisarmos a fundamentação exarada na sentença condenatória,
é possível perceber com clareza meridiana que a condenação ancorouBse no
depoimento prestado pelo apelante, em sede policial, e no interrogatório do coBréu.
Todavia, como sabido, os elementos recolhidos no curso do inquérito
policial não podem ser valorados pelo magistrado para sustentar um decreto
condenatório.
O magistrado a quo, ao mencionar que – “O acusado não compareceu em Juízo
para ser interrogado, ficando revel, porém em sede policial confessou a prática do crime
(...)” – viola de forma clara o postulado do devido processo legal.
E assim porque, em um só momento, violou a presunção de inocência, a
garantia do contraditório e, ainda, interpretou a revelia em desfavor do réu.
Mas não é só, o magistrado de primeiro grau conferiu ao inquérito policial
presunção de veracidade até prova em contrário. E isso porque, como o réu
não compareceu em juízo para elidir tal presunção – não prevista em lei – foi
condenado com esteio em seu depoimento em sede policial.
TrataBse de uma interpretação equivocada que deve ser imediatamente
repelida.
AcrescentaBse, por oportuno, a lição de AURY LOPES JÚNIOR316:

“Esta presunção de veracidade gera efeitos contrários à própria natureza


e razão de existir do IP, fulminando seu caráter instrumental e sumário.
Também leva a que sejam admitidos no processo atos praticados em um
procedimento de natureza administrativa, secreto, não contraditório e sem
exercício de defesa. Na prática, essa presunção de veracidade dificilmente
pode ser derrubada e parece haver sido criada em outro mundo, muito
distinto de nossa realidade, em que as denúncias, coação, tortura, maus/
tratos, enfim, toda espécie de prepotência policial são constantemente
noticiados.”

316 AURY LOPES JÚNIOR. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. 1, Editora
Lumen Juris : Rio de Janeiro, 2007, p. 290.

499
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Assim, como não há a possibilidade de supressão dos autos do inquérito,


impõeBse que o magistrado o faça de forma hipotética, de modo a não atribuir
valor probatório aos elementos ali coligidos, uma vez que a função probatória
do procedimento administrativo se exaure com a admissão da denúncia.
Em um segundo momento, o magistrado fundamentou o juízo de censura
inserido na sentença recorrida no interrogatório do coBréu YYYY (fls. 117/118).
Assim dispôs: “O co/réu YYYY, em seu interrogatório, confirmou ter adquirido a
bicicleta do acusado XXXX, pagando por ela a quantia de vinte e cinco reais, bem como
concedendo perdão de uma dívida existente com o acusado no valor de cinqüenta reais.
Afirmou, ainda, ter o acusado XXXX dito que a bicicleta lhe pertencia.”
Vale destacar que os fundamentos para a condenação de XXXX consistiram
na confissão realizada pelo réu em sede policial e na denominada chamada de
coBréu, por força da qual o apelante é apontado por YYYY como o responsável
pela subtração da referida bicicleta.
A título de enfrentamento inicial do tema é conveniente destacar que a
chamada de coBréu ou a delação premiada, ainda quando confirmadas em juízo
pelos que confessaram, não constituem meios de prova.
A estrutura do processo penal brasileiro claramente optou pela constituição
de estatuto jurídico singular peculiar aos acusados. Neste sentido, pelo menos
desde 1941 o Código de Processo Penal a posição jurídica do acusado (artigos
185 e seguintes) daquela ostentada por ofendidos (art. 201 do mesmo diploma)
e das testemunhas (artigos 202 e seguintes do citado Código). Ademais, a
Constituição de 1988 assegurou aos acusados em processo criminal o direito
ao silêncio (art. 5º, inc. LXIII), o que equivale ao reconhecimento de que o
comportamento processual dos réus configura exercício do direito de defesa e
prática do correlato direito de argumentar (alegar), de que também é titular o
Ministério Público.
Nestes termos, operouBse a reforma das regras que disciplinavam o
interrogatório do acusado em juízo e, mais importante, a nova redação do
artigo 186, parágrafo único, do Código de Processo Penal sublinhou o caráter de
autodefesa que distingue o interrogatório dos demais atos processuais.
É evidente que tal mudança tem peso nas rotinas e práticas do processo
penal. É significativo que a confissão, antes extraordinariamente avaliada pelos
julgadores, tenha perdido seu status de prova (malgrado tenho sido assim
tratada contra todas as evidências do próprio sistema do CPP).
O período de domínio intelectual da confissão, todavia, produziu e ainda
produz seus frutos. A permanência da idéia de que a confissão, especialmente
em juízo, revela com segurança a responsabilidade penal daquele que confessa

500
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ainda mantém seu poder de sedução. Tanto é assim que há projetos de lei que
pretendem viabilizar o julgamento sumário, a partir das evidências da prisão em
flagrante associadas à confissão.
O timbre sedutor da confissão soa mais alto quando, ao lado da assunção da
própria culpa, o réu aponta outro ou outros parceiros de empreitada, fornecendo
motivos “razoáveis” para se dar crédito à “imputação”.
Independentemente das incontáveis discussões que o tema proporciona – e
que não cabem neste voto – é indispensável, diria verdadeiramente prioritário,
recolocar a chamada de coBréu, esta forma de confissão com distribuição de
responsabilidade, no lugar processual que lhe cabe no processo penal brasileiro
orientado pelas garantias processuais previstas na Constituição da República e
em tratados internacionais.
O réu pode calar a verdade. Pode também mentir em juízo. Não há
penalidades. Sua intervenção pessoal pode estar orientada por alguma estratégia
defensiva, pela disposição de diminuir seu papel no enredo criminoso ou em
simples desejo de vingança. Pode ainda estar falando a verdade.
O que o juiz não pode desconhecer – e sobre este ponto gira a sentença, no
que concerne ao apelante – é que a “fala” do acusado nada prova. Quando muito
indica a existência de meios de prova, convertendoBse ela própria em mera fonte
de prova!
A certeza íntima de que as pessoas somente assumem a responsabilidade
por atos que tenham realmente praticado é desmentida pela experiência
cotidiana. Ainda que assim não seja, esta certeza é “íntima”, isto é, não pode ser
alvo de questionamento por quem quer que seja e dessa maneira não é suscetível
de se submeter ao controle pelo contraditório.
Nestes termos, se é assim no que toca à confissão, este descontrole é ainda
mais potencialmente lesivo das garantias quando o autor da confissão aponta
outro indivíduo como igualmente responsável pelo crime!
O duelo intelectual entre versões apresentadas em interrogatório, pelos
acusados, somente é resolvido pelos meios de provas que as partes introduzem
no processo e que servem ao propósito de alicerçar seus argumentos, suas
alegações.
Voltamos, pois, ao ponto central: sem meios de prova há tãoBsomente
versões e a garantia da presunção de inocência incide para afastar toda e qualquer
conclusão desfavorável a acusado contra o qual não se tenha produzido prova.
A chamada de coBréu, isoladamente, pode até afetar a convicção íntima
do julgador. Por essa razão é denominada de inferência probatória. Não pode,
todavia, converterBse naquilo que não é, ou seja, não pode se transformar em

501
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meio de prova como não se pode converter réu em testemunha (só por meio de
alguma alquimia jurídica!).
Por este ângulo a absolvição de apelante constitui imperativo categórico.
As demais testemunhas ouvidas no curso da instrução criminal nada
acrescentaram.
AAAA, em depoimento retratado à fl. 128, nada esclarece em relação à autoria
do furto, apenas se limita a afirmar que viu a bicicleta com YYYY (coBréu).
Da mesma forma, MMMM (vítima), em depoimento espelhado à fl. 129,
apenas descreve a dinâmica fática, sem nada acrescentar em relação à autoria.
Informou: “que YYYY disse ter comprado a bicicleta de XXXX; (...) que a depoente
acha que YYYY disse que tinha uma dívida com XXXX no valor de cinqüenta reais,
tendo XXXX dado a bicicleta para pagamento da dívida e recebido vinte reais de volta.”
Ora, a prova oral produzida sob o crivo do contraditório limitaBse a atestar
que o bem subtraído estava na posse de YYYY (coBréu), mas em momento algum
se presta a comprovar que o furo fora praticada pelo apelante.
Neste tocante, o princípio in dubio pro reo funciona aqui como critério de
resolução da incerteza, impondoBse como expressão do princípio da presunção de
inocência.
NoteBse que, diante de hipóteses explicativas viáveis, mas contraditórias
e excludentes entre si, não pode o juiz optar por aquela posta em desfavor do
acusado.
Como destaca GUILHERME DE SOUZA NUCCI317:

“A prova insuficiente para a condenação é outra consagração do princípio


da prevalência do interesse do réu – in dubio pro reo. Se o juiz não possui
provas sólidas para formação de seu convencimento, podendo indicá/las na
fundamentação de sua sentença, o melhor caminho é a absolvição.”

Por tais motivos, voto vencido para dar provimento ao recurso e,


consequentemente, absolver o apelante, com fundamento no artigo 386, inciso
VI, do Código de Processo Penal.
Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2007.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

317 GUILHERME DE SOUZA NUCCI. Código de Processo Penal Anotado. 5ª Edição, Ed. Revista dos
Tribunais

502
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Prescrição em medida de segurança

7ª CÂMARA CRIMINAL
HABEAS CORPUS 2007.059.05668
AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS
IMPETRANTE: XXXX
PACIENTE: YYYY

DECLARAÇÃO DE VOTO

Em que pese o entendimento diverso adotado pela douta maioria, votei


vencido para julgar procedente o pedido, conceder a ordem e declarar extinta
a medida de internação imposta ao paciente por conta do reconhecimento da
prescrição da pretensão executória.
Com efeito, trataBse de habeas corpus impetrado em favor de YYYY por
meio do qual se pretende a declaração de nulidade da decisão que deixou de
reconhecer a prescrição da medida de segurança de internação imposta ao
paciente e que, uma vez declarada a referida nulidade seja, ao final, reconhecida
a prescrição.
O paciente foi processado no Juízo da 1º Vara Criminal de Volta Redonda,
acusado da prática do delito definido no artigo 129, §1º, inciso I, na forma do
artigo 69, ambos do Código Penal, por duas vezes, tendo sido imposta medida
de segurança pelo prazo de um ano.
Nos termos das informações prestadas pela digna autoridade judiciária
apontada como coatora, o fato teria ocorrido em 06 de setembro de 1994 e a
denúncia teria sido recebida em 15 de setembro de 1994. A sentença absolutória
imprópria foi proferida em 20 de maio de 1999, transitada em julgado em 26 de
maio daquele mesmo ano. Por ocasião da sentença foi expedido mandado de
internação, não cumprido até a presente data.
Por conta do lapso temporal transcorrido – mais de quatro anos – a
impetração alega ter ocorrido a prescrição da pretensão executória da medida
de internação.

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Entendo que a ordem deve ser concedida para, declarando a nulidade da


decisão proferida pela digna autoridade apontada como coatora, reconhecer a
prescrição da pretensão executória da medida de segurança.
Em verdade, entendo que é possível o reconhecimento da prescrição das
medidas de segurança, tendo em vista que a Constituição da República veda
expressamente a existência de penas de caráter perpétuo (artigo 5º, inciso XLVII,
alínea b).
A medida de segurança, ao lado das penas, é espécie de sanção penal e assim
deve ser tratada, com a aplicação das normas disciplinadoras da prescrição,
notadamente o artigo 96, parágrafo único, do Código Penal.
Dúvidas há, porém, quanto ao cálculo da prescrição das referidas medidas,
vale dizer, se estas são calculadas levandoBse em conta o máximo ou o mínimo
da pena privativa de liberdade cominada em abstrato para o delito em tese
praticado por aquele indivíduo tido como inimputável.
CEZÁR ROBERTO BITENCOURT, após reconhecer a aplicabilidade do
instituto da prescrição às medidas de segurança, posicionaBse no sentido de que
o seu cálculo “deve ser regulado pelo máximo da pena abstratamente cominada,
já que não existe pena concretizada” (Tratado de Direito Penal. Parte Geral.
Volume 1. Ed. Saraiva, 10ª Edição. 2006. pág. 843).
Vale destacar que o entendimento adotado pelo referido autor deve
ser visto com reservas, sob pena de se violar os princípios da isonomia e da
proporcionalidade.
Assim é porque o Código Penal relaciona três categorias de pessoas, quais
sejam os imputáveis, os semiBinimputáveis e os inimputáveis.
Em relação aos imputáveis a prescrição tanto da pretensão punitiva,
como da pretensão executória estatal são calculadas segundo máximo da pena
privativa de liberdade, nos termos do artigo 109 do Código Penal. Ao revés,
aos semiBimputáveis que, segundo a sistemática adotada pelo legislador penal
também praticam crime, a prescrição é calculada após a aplicação do redutor
legal (1/3) previsto no artigo 26, parágrafo único, do Código Penal.
NotaBse, desta forma, a existência de uma graduação entre a capacidade
de compreensão do ilícito, a reprimenda penal e o prazo para a sua imposição/
execução.
A sistemática acima referida deve ser igualmente aplicada àqueles que se
encontram despidos de qualquer compreensão do caráter ilícito de sua conduta.
Releva notar que as penas privativas de liberdade são fixadas entre o mínimo
e o máximo legal levando em conta a medida de culpabilidade do agente. Como
o inimputável não tem capacidade de configurar o juízo de censura, em hipótese

504
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alguma a sua situação pode ser equiparada à do agente imputável ou semiB


imputável, ainda que portadores da mais atenuada culpabilidade.
A existência desta capacidade de formação do juízo de censura deve ser
ponderada como estágio antecedente à culpabilidade e, pois, a prevalecer entre
nós a compulsória aplicação de medida de segurança, em hipótese alguma esta
haverá de ser exigida por tempo superior ao cominado como o de pena mínima
atribuída ao crime.
É neste contexto e levandoBse em conta o quadro prescricional definido no
artigo 109 do Código Penal que são calculados os prazos de prescrição no que
toca à medida de segurança.
Julgando o recurso em habeas corpus nº. 6.071, de relatoria do Ministro Luiz
Vicente Cernicchiaro, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que:

“o máximo da pena cominada é a regra geral. O Código,


expressamente, registra exceção para os semi-imputáveis. Silencia
quanto aos inimputáveis. O intérprete, entretanto, apreende a
solução: sem dúvida, não pode ser o prazo regente das espécies
literalmente disciplinadas. O princípio da proporcionalidade
reclama que os inimputáveis gozam de prazo menor. Sem dúvida
o mínimo da cominação legal. Com isso, coerência absoluta: crime
mais grave/prazo maior; crime menos grave/prazo intermediário;
inexistência de crime/prazo menor”.

Na hipótese ora versada ao paciente foi imposta medida de segurança por


conta da prática do crime definido no artigo 129, §1º, inciso I, Código Penal, cuja
pena cominada em abstrato é de um a cinco anos de reclusão e a prescrição,
levandoBse em conta a pena mínima, operaBse após o decurso do prazo de quatro
anos (artigo 109, inciso V, do Código Penal).
O referido injusto penal foi cometido pelo paciente em 06 de setembro de
1994, e a respectiva denúncia foi recebida em 15 de setembro de 1994.
A sentença absolutória imprópria, contudo, somente foi proferida em 20 de
maio de 1999, transitada em julgado em 26 de maio de 1999.
Por ocasião da sentença foi expedido mandado de internação, não cumprido
até a presente data.
VerificaBse, pois, que entre a data do recebimento da denúncia e a prolação
da sentença absolutória imprópria decorreu prazo superior àquele fixado no
artigo 109, inciso V, do Código Penal, qual seja quatro anos.

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Como se não bastasse, também houve transcurso de prazo superior a quatro


anos para a execução da referida medida levandoBse em conta que a sentença
absolutória imprópria transitou em julgado em 26 de maio de 1999, não tendo
sido cumprida até a presente data.
Observo, portanto, que a medida de segurança imposta ao paciente
encontraBse prescrita, razão pela qual voto no sentido de julgar procedente o
pedido e conceder a ordem para, declarando nula por falta de fundamentação
a decisão proferida pela digna autoridade judiciária apontada como coatora,
reconhecer a prescrição da pretensão executória da medida de segurança.

Rio de Janeiro, 07 de janeiro de 2008.

GERALDO PRADO
DESEMBARGADOR

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