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Epistemologia e Pesquisa

em Direito
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Alexandre Bernardino Costa
Eduardo Gongalves Rocha

Epistemologia e Pesquisa
em Direito

Editora Lumen Juris


Rio de Janeiro
2017
Copyright © 2017 by Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha
Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Rômulo Lentini

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Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
Agradecimentos

Agradecemos aos amigos e amigas, estudan-


tes e colegas de trabalho que, por meio de
suas críticas e sugestões, contribuíram para
o aprimoramento deste livro.
Prefácio

Uma grande dificuldade para se tratar o direito como ciên-


cia é de não desenharmos os limites e possibilidades do direito, nos
atendo a uma visão redutora tratando tão somente do dever ser nor-
mativo, classificando-o como fruto de uma hipótese condicional,
ou uma prescrição, ou ainda uma definição de condutas. Isso lança
o direito numa hipótese ahistórica e despolitizada que se esforça
em reduzí-lo a dimensões abstratas, geométricas e descarnadas, não
conseguindo captar a dimensão dinâmica da vida jurídica.
Por outro lado, os grandes sistemas regulatórios e suas teorias
não atingem nem a complexidade viva do direito, nem a com-
plexidade das sociedades dentro das quais se originam. É tudo
muito limpo, estático e previsível, com se vivêssemos em um mun-
do paralisado. O problema está no fato de que nosso mundo é
turbulento, caótico e imprevisível, não podendo ser normatizado
por regularidades repetitivas e fechadas. O âmbito do direito é o
da construção de sociedades na direção da maior liberdade. Ele faz
parte da velocidade turbulenta que caracteriza nosso tempo.
O mínimo que podemos dizer é que a pretensão de seu co-
nhecimento tem de ser multidisciplinar, plural e dialogante, não
podendo haver a precedência de um saber sobre outro. Nem mesmo
devemos colocar a ciência antes da filosofia e esta sobre os saberes
tradicionais, pois estes prefiguram visões anarquistas de sociedades
sem estado ou, como querem alguns antropólogos, contra o estado.
Além do que foi dito, os focos da juridicidade positiva tendem
muito mais para o exercício do poder e suas inúmeras manifestações
normativas, as características normativas da segurança social e a
possibilidade de controle social. Daí podermos afirmar que a prática
jurídica é criada e desenvolvida por poderes de sociedades desiguais,
como o texto ressalta. No mínimo, tais sociedades têm guardiões da
ordem e apresentam grupos que vivem fora dessa ordem.
Muito importante neste texto é, de forma elegante, descartar
o mito da neutralidade do direito que ainda passa por nossas facul-
dades, introduzindo o conceito de relação entre ciência e poder,
algo que já vinha sendo tratado há algum tempo pela Teoria do
Conhecimento. Esse mito, não somente divulga afirmações falsas,
como também desborda para a positividade jurídica.
A complexidade do fenômeno jurídico força-nos a lançar
mão da multidiciplinariedade para compreendê-lo. Só o texto
não oferece elementos que possibilitem captar sua totalidade.
Ele orienta as condutas, impõe comportamentos exercendo sua
natureza política, isto é, uma forma de exercício de poder. Daí,
para visualizarmos o direito, impõe-se uma contextualização de
suas operações. Isso nos envia ao diálogo no campo das ciências
humanas e das ciências naturais, resvalando nas tecnologias, nas
relações com as máquinas e nas constantes modificações da ética,
em suas contradições econômicas e sociais.
Nossa sociedade é veloz, caótica e turbilhonante, não ad-
mitindo ordenamentos e teorias mecânicas e estáticas, quando
o mundo estrutura seus poderes em redes, cria novas formas de
dominação que não podem ser controladas pelo velho direito po-
sitivo. Para estudarmos o direito contemporâneo, temos de lançar
mão dos domínios de ponta do conhecimento e do diálogo com as
ciências naturais e os saberes tradicionais.
O impacto da tecnologia no mundo contemporâneo possibi-
litou, dentre outras coisas, a imersão no mundo virtual. Mas não
podemos afirmar que o direito, tal como o conhecemos, tem o
condão de regular essa nova dimensão do mundo. O próprio direi-
to deve transformar seus instrumentos, conceitos e práticas para
se inserir nesse mundo tecnológico, sendo ele mesmo uma faceta
dessa nova organização do saber. Há uma dúvida a ser lançada:
será que os nossos conceitos comuns de estado, de democracia e
de justiça irão sobreviver nesse novo mundo?
Com o desenvolvimento das ciências, os sujeitos de direito
já não serão os seres humanos tais como hoje os entendemos. Es-
taremos caminhando para androides. O mundo de hoje já mostra
jovens hipnotizados por jogos virtuais, alheios ao resto do mundo.
Nossos cérebros estão sendo limitados pela tecnologia midiática
retornando a humanidade à situação de escravos. Essa evidente
dominação ainda não pertence as prioridades do direito.
Ao lado dessas urgências levantadas, o direito atual não tra-
balha com a sobrevivência dos seres humanos. Ele vira as costas
para a tragédia da fome oriunda de vários fatores bélicos, ambien-
tais, dentre outros. Daí haver simpatia pela afirmação marxista
segundo a qual o direito é somente superestrutura. A vida deve ser
a maior preocupação para um direito supostamente justo.
Os denominados direitos humanos, para terem significação,
precisam estar atentos as manobras para a despersonalização dos ho-
mens. Não há operatividade se trabalharmos com conceitos antro-
pológicos e jurídicos pertencentes a outras fases da história, que não
gerarão intervenções operativas sobre a dinâmica das sociedades.
Esse destempo impõe a aplicação de penas cruéis aos cida-
dãos, mesmo que esse fenômenos não recebam esse nome, pois a
alienação forçada de populações, o envenenamento industrial, a
censura de obras artísticas, a imposição de currículos selecionados
nas escolas de todos os níveis, a orientação dos modos corretos das
condutas, sob pena de marginalização social, configuram-se como
punições que se dão sem a percepção dos destinatários.
O direito vive uma dualidade que, às vezes, chega a ser con-
traditória. Ele cristaliza os seus conceitos paralisando o mundo
dinâmico e fragmentado da contemporaneidade. Ele pretende ser
um escudo protetor da nacionalidade, quando as sociedades enfra-
quecem suas soberanias e vivem sendo atacadas por golpes contra
suas identidades e seus graus de democracia.
O mundo atual e, em especial, o mundo jurídico necessitam de
novos tratamentos e novas teorias para dar conta de seus fenôme-
nos emergentes. Esses problemas já foram sentidos pelo pensamento
analítico, que para solvê-los constituiu um mundo lógico à parte do
direito, ao mesmo tempo que o descontextualizou, construindo a ju-
ridicidade para todos ou ninguém, onde as características e peculia-
ridades humanas não eram mais tratadas. A partir daí, o sujeito de
direitos não é mais considerado, configurando-se como um espaço
onde as normas jurídicas são hipoteticamente concretizadas.
Um aspecto que deve ser tratado é o da simbiose entre direito
e religião. De certo modo as formas religiosas foram absorvidas
pelo direito, seja pela admissão da origem divina do poder, seja
pela imperatividade dos textos religiosos. Enquanto havia uma or-
dem hierárquica entre religião e poder temporal, o direito antigo
sobreviveu. Quando a religião católica dominante fragmentou-se a
partir da Reforma, o direito caminhou para outras direções, apre-
sentando outras ordens de poder e disciplina.
Atualmente a clivagem é mais profunda: as religiões oficiais se
apresentam como mensageiras da paz ou da guerra. Todas elas rei-
vindicando uma ortodoxia e legitimidade que desembocam no fana-
tismo. Assim, os princípios religiosos perdem sua força unificadora
para ser um problema internacional de conflitos e terror que já não
tem força de legitimação de poderes e direitos. A juridicidade se vê
perante um caleidoscópio de crenças que não podem normar, seja por
ausência de fundamentos legitimadores, seja por tratar de sociedades
que não apresentam a hegemonia nacional, seja pelas novidades de
enfrentamento e destruição para as quais não existem instrumentos
eficazes de planejamento estratégico e tático de controle.
A tradição jurídica é antropocêntrica e voltada para a in-
terioridade nacional. Daí podermos afirmar que os instrumentos
jurídicos internacionais ainda não tem força cogente, sendo mais
declarações de princípios do que normas efetivas. A pluralidade
ainda não entrou nos direitos positivos e na teoria jurídica, apesar
das tentativas. O antropocentrismo limita o desenvolvimento de
estudos e intervenções na natureza.
Em verdade, a natureza é uma desconhecida por mais que as
ciências naturais pesquisem e descubram. O cosmos, o universo, as
profundidades abissais dos mares, o nosso sistema solar são desconhe-
cidos, embora tenham papel importante em nossa natureza. Mas, a
grande falha é que essa dimensão necessária para o entendimento
de nossa espécie é dada como inexistente para o direito, que procura
normar artesanalmente o micromundo das questões ambientais.
Este trabalho que ora tenho a alegria de apresentar procu-
ra enfrentar problemas que aqui citamos apresentando uma nova
dimensão de pensar direito, fruto, dentre outros fatores, da dedi-
cação, competência e coragem de juristas como Alexandre Ber-
nardino Costa e Eduardo Gonçalves Rocha.
Roberto A. R. de Aguiar
Sumário

Introdução....................................................................................1
Pesquisa em Direito em uma Sociedade Complexa......................9
1 – Conhecimento científico.................................................. 10
2 – A hipercomplexidade da sociedade contemporânea........ 14
3 – Teoria do Direito.............................................................. 21
Ciência e Direito: entre a Igualdade, a Segurança e o Controle.35
1 - (Des)igualdade e realidade: normatividade
e produção (as)simétrica do conhecimento................... 39
2 – Direito, Ciência, racionalidade e política soberana.......... 53
2.1 – Interdependências entre o
Direito soberano e a Ciência......................................... 61
3 – Análise micropolítica entre o Direito
e a Ciência: um projeto aberto...................................... 67
Ciência, Comunicação, Relações de Poder
e Pluralismo Epistêmico....................................................... 69
1 – Semiologia, ciência e relações de poder........................... 71
2 – Ciência e sua pretensão hierárquica................................. 76
3 – Ciência e pluralidade epistêmica...................................... 79
Epistemologia, Conhecimento e Direito:
é Possível Questionar Thomas Kuhn?................................. 81
1 – Ciência(s) e poder: problematizando
com base em Thomas Kuhn..........................................84
2 – Indissociabilidade entre ciência
e relações de poder........................................................ 93
3 – Ciência e sociedade.......................................................... 97
4 – O sujeito e a linguagem.................................................. 102
5 – Politizando a comunidade e o paradigma....................... 107
6 – Direito, ética e normatividade ...................................... 109
Projeto de Pesquisa................................................................... 111
Referências Bibliográficas......................................................... 123
Introdução

Este livro nasce do nosso profundo interesse pela Epistemo-


logia e sua relação com o Direito. Suas reflexões foram lentamen-
te amadurecidas nas matérias de Metodologia e Pesquisa Jurídica
que ministramos nos Programas de Pós-graduação em Direito da
Universidade de Brasília e da Universidade Federal de Goiás. Não
é fruto de um trabalho recente, ao contrário, ele já vem sendo
ruminado, digerido, há alguns anos. Foi lentamente construído e
isso diz muito sobre ele.
Cada capítulo foi escrito, inicialmente, como artigo isolado.
Foi submetido a eventos, revistas, discutidos em salas de aula e audi-
tórios mais amplos e, com base nas críticas e sugestões recebidas, fo-
ram revisitados, seja em partes substanciais, seja alterando detalhes.
Assim, uma versão preliminar de cada um dos capítulos pode ser
encontrada publicada em outros espaços. A despeito de os capítulos
terem sido escritos isoladamente, o livro, como verão, não deixa de
ter uma sistematicidade e uma coerência entre as diversas partes.
Busca-se enfrentar temas relevantes para a discussão episte-
mológica contemporânea, bem como apresentar suas interfaces com
o Direito. Assim, visa-se ir um pouco além da comum, e ainda ne-
cessária, crítica ao positivismo jurídico, aprofundando as reflexões
em temas como o papel do Direito em uma sociedade complexa; a
pouco analisada relação micropolítica entre o científico e o jurídico;
a necessidade de se analisar a ciência com base em sua historicidade
e seus sujeitos; a imperatividade de se problematizar o pensamento
de Thomas Kuhn, assumindo suas contribuições, mas questionan-
do seu formalismo; e expondo, de forma didática, as etapas de um
projeto de pesquisa, bem como a importância de cada uma delas.

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Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

O primeiro capítulo dedica-se a pensar os desafios da teoria


do Direito em uma sociedade hipercomplexa. Para isso, inicia-se
questionando a superespecialização científica decorrente do modelo
disciplinar. Apresenta-se, então, os riscos e incertezas de sociedades
pós-tradicionais e suas consequências para o Direito. Por fim, utili-
za-se de alguns elementos de teoria do Direito para se pensar o jurí-
dico em um contexto complexo em que se busca maior democracia.
A hiper-especialização, decorrente do que Boaventura (1989)
nomeou como primeira ruptura epistemológica, gerou a separação
entre ciência e o senso comum, privilegiando a racionalidade cog-
nitivo-instrumental em desfavor da racionalidade moral-prática.
Elevou o discurso científico a um patamar considerado privilegia-
do em relação a outras formas de saber e a consideração da dimen-
são ética como algo externo ao conhecer.
Sociedades pós-tradicionais, em que os riscos se evidenciam,
exigem o questionamento sobre uma concepção de ciência que
se compreende como asséptica, demandando, igualmente, uma
teoria do Direito aberta ao risco e à complexidade, que ofereça
respostas não apenas com base em uma racionalidade cognitivo-
-instrumental, mas também moral-prática.
Diante da evidência do risco, de um futuro que se coloca
cada vez mais imprevisível, é preciso buscar respostas radicalmen-
te democráticas, questionando concepções jurídicas que se afir-
mam simplesmente técnicas.
No segundo capítulo, procura-se fazer uma análise micropolítica
da relação entre Direito e Ciência, ou seja, demonstrar que a atual
subjetivação do Direito moderno, soberano e positivado, é indisso-
ciável de uma teia de verdades que viabiliza e privilegia uma forma
específica de conhecer, a científica. Não há uma hierarquia, mas o
compartilhamento de uma mesma rede de símbolos, emocionalidades
e sentidos que geram sistemas, jurídico e epistêmico, específicos.

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Epistemologia e Pesquisa em Direito

O capítulo emprega como estratégia de análise a micropolíti-


ca, metodologia pouco utilizada dentro do campo do Direito, que
não tem como foco o instituído, mas sim as verdades e sentidos ins-
tituintes do sistema do real. Para promover a investigação, utilizou-
-se a categoria igualdade como zona de inteligibilidade. Por meio
dela, procurou-se demonstrar como o sistema de direitos modernos
somente pode estabelecer-se em uma realidade em que as pessoas
assumem-se como iguais, mas, ao mesmo tempo, que o próprio regi-
me de saber moderno depende dessa mesma pressuposição.
A forma de conceber a realidade transforma-se com a subje-
tivação do Outro como um sujeito igualmente racional. É em um
mesmo contexto histórico-social que o sujeito do contrato, fonte
de ações e responsabilidade, e o sujeito do conhecimento, fonte
de verdades, podem ser instituídos como realidade. Não são insti-
tuições dissociadas, mas ao compartilharem uma mesma rede de
verdades, tornam-se duas faces de uma mesma moeda.
Se a igualdade está no centro do sistema normativo e do sistema
epistêmico, duas perguntas semelhantes adquirem relevância: se to-
dos são iguais, quem vai impor o que é o legítimo? Se todos são iguais
quem vai definir o que é o verdadeiro? Nesse sentido, que o Estado
e as ciências surgem como instituições agenciadoras da legitimidade
e da verdade, cumprindo propósitos micropolíticos muito próprios.
Àquele garantir maior controle e segurança. Àquelas produzir maior
transparência e certezas. Propósitos que se reforçam e necessitam-se
na trama de sentidos instituinte do sistema do real moderno.
No terceiro capítulo, procura-se evidenciar a relação entre ci-
ência e poder, utilizando para isso das contribuições da semiologia.
A estratégia de análise seguiu o seguinte percurso. Em um primeiro
momento, explorou as contribuições de Thomas Kuhn, procurando
ir um pouco além de suas conclusões. Se, como disse esse autor,
a ciência desenvolve-se em um paradigma compartilhado por uma

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Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

comunidade, esse paradigma e essa comunidade devem ser interpre-


tados concretamente, não abstratamente, de forma formalista.
Toda linguagem possui seu jogo próprio, suas visibilidades e
seus ocultamentos, seja nos seus signos, seja em sua lógica. Os sig-
nos linguísticos não são neutros, não são representações lineares
das coisas, um retrato da realidade. Cada palavra é marcada por
uma historicidade social, é resultado de um longo processo de in-
clusão e de exclusões socialmente produzidas. Não há neutralidade
no vocabulário, e é por meio dele que as ciências se desenvolvem,
perpetuando exclusões e realizando novas inclusões.
Kuhn estava correto ao afirmar que um paradigma é indissociável
de uma comunidade. Entretanto, essa comunidade, seus integrantes,
somente podem participar do jogo científico a partir de lugares histó-
ricos que determinam sua fala. As relações de gênero, de raça, geo-
políticas, certamente, não são externas à credibilidade e à repercussão
dos discursos de quem fala. Como exposto no capítulo em questão: “A
ciência não se desenvolve por meio de cientistas que enunciam bons
argumentos e provas racionais despidos de poder”. Dissimetrias sociais
não são externas às ciências, mas constitutivas delas.
Em um segundo momento, argumenta-se e questiona-se a
“superioridade” do saber científico sobre outras formas de conhe-
cer. Se todo conhecimento é comensurável, o que garante a supe-
rioridade da ciência sobre outras formas de saber? Nada, a não ser
a própria ciência e a legitimação social moderna em torno dela.
Certamente, o saber científico moderno trouxe enormes conquis-
tas e retumbantes fracassos. Da mesma maneira, outras formas de
conhecer também ensinaram muito, tiveram suas contribuições,
bem como suas faltas e insuficiências.
Todavia, o grande problema é que o saber científico imputa-
-se o local de “grande juiz”, parâmetro para o conhecer. Claro,

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Epistemologia e Pesquisa em Direito

tendo como base sua própria lógica, suas próprias valorizações e


exclusões. A consequência primeira é seu auto-reconhecimento e
o rebaixamento de outras formas de saber. Permite-se julgar outras
racionalidades, mas não se permite ser julgada por elas. Afirma-se
como o local do diálogo, das refutações, dos falseamentos, desde
que assumidos seus critérios e sua lógica. Assevera-se como saber
laicizado ao apagar seus próprios mitos.
O quarto capítulo parte da exposição das contribuições de Tho-
mas Kuhn para fazer uma crítica aos seus pressupostos epistêmicos,
procurando demonstrar que o físico filósofo norte-americano possui
uma teoria sobre a ciência deveras formalista, o que gera como con-
sequência principal o ocultamento do lugar do sujeito na pesquisa.
A motivação inicial para escrevê-lo está relacionada ao forte
impacto que Kuhn ainda possui no campo jurídico brasileiro, seja
na graduação, seja na pós-graduação. Sua teoria é comumente apre-
sentada como o ápice, um ponto de chegada epistêmico, invisibili-
zando, assim, a necessidade de crítica. A Estrutura das Revoluções
Científicas possui enormes contribuições ainda válidas, mas, igual-
mente, limitações, algumas reconhecidas pelo próprio autor. Após
mais de 40 anos da publicação daquele livro, Kuhn e seus conceitos,
como o de paradigma, merecem ser apropriados de forma um pouco
mais crítica pelos juristas brasileiros. Em especial o conceito para-
digma, que foi abandonado pelo próprio autor em obras posteriores,
continua sendo utilizado de forma bastante abrangente no Brasil.
O capítulo critica os pressupostos epistêmicos de Thomas
Kuhn, qual seja, uma visão formalista da linguagem, já fortemente
questionada. Com isso, Kuhn limita o paradigma a uma dimensão
sincrônica, a um sistema que fornece sua própria lógica, reduzin-
do a comunidade científica a sujeitos assujeitados ao paradigma,
produzindo uma teoria que serve ao ocultamento de múltiplas dis-
simetrias entre os sujeitos que pesquisam. Nega, dessa forma, a

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Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

dimensão diacrônica de toda linguagem, dissociando o paradigma


da história e das relações de poder que lhe é constituinte.
Thomas Kuhn teve uma enorme importância histórica, pois
sua teoria demonstrou como mesmo as ciências “duras”, Física,
Química, Biologia, são permeáveis às contribuições da linguagem.
Por meio do seu estudo sobre as famílias naturais e dos referen-
tes, aproximou os dados físicos dos signos linguísticos. Foi além,
demonstrou como todo conhecer não é universalizável, mas sim
comensurável. Ou seja, permitiu desnudar as últimas fronteiras
resistentes à linguagem. Contudo, não pode ser compreendido e
ensinado como um ponto de chegada epistêmico, mas sim como
um novo ponto de partida para a crítica.
A crítica à teoria Kuhniana possibilita pensar que toda teoria
sobre a ciência é uma tentativa normativa de dizer o científico, de
determinar o que significa determinado campo; que não há pureza
lógica. Todo cientista é um sujeito que joga um jogo a partir de um
local social próprio, que reproduz o paradigma, mas também oferece
resistência a ele. Se não há pureza lógica, perguntas como a dimensão
ética do conhecimento, bem como uso social dado a ele não são ques-
tões externas, mas instituintes do próprio campo científico.
O último capítulo teve como propósito explicar, de forma didá-
tica, o que é um projeto de pesquisa, sua importância e a relevância de
cada uma de suas etapas. Procurou-se demonstrar que um projeto não
é apenas uma fase formal a ser cumprida, mas algo vivo e um tanto
impreciso. Ele é de grande relevância para se ter maior nitidez sobre a
pesquisa. Permite um caminhar mais preciso, sabendo que toda cami-
nhada, por mais que se busque a precisão, é sempre aberta ao outro, às
descobertas, às próprias reconstruções do sujeito da pesquisa.
Não há pesquisa se não há abertura, flexibilidade. Não há
uma precisão metódica que leve à verdade. Não há caminho que

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Epistemologia e Pesquisa em Direito

não esteja suscetível às incertezas do mundo. A busca pelo rigor


científico não deve ser abandonada no paradigma complexo, em
que se abdica da pretensão de neutralidade e apreende-se que todo
saber é precário e marcado por contradições sociais.
O rigor científico em um paradigma complexo está associa-
do em admitir a precariedade de todo conhecer; em assumir que
cientistas são sujeitos que enunciam com base em lugares de fala
marcados por relações de poder; em acolher que a ética, a política
não são exteriores ao saber, mas constitutivos dele; em aprender
que toda pesquisa é uma grande viagem e que não há viagem que
não esteja aberta para as incertezas da vida.
Na pesquisa, assim como na vida, quando se está aberto para
a precariedade, para a insegurança, para a incerteza, tem-se, não
apenas maiores chances de se obter êxito, mas, também, de cami-
nhar com maior satisfação, pois pesquisar, assim como viver pode
–e por que não?!-, deve ter uma boa dose de prazer.

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Pesquisa em Direito em uma
Sociedade Complexa

As constantes modificações da sociedade contemporânea e,


sobretudo, a velocidade em que elas ocorrem, estão intimamente
ligadas à maneira como vemos o mundo e nos enxergamos. Uma
das formas básicas dessa visão é o conhecimento científico, sujei-
to, portanto, às mesmas modificações e alterações constantes. A
rapidez e a frequência das alterações dos possíveis modos de ver a
ciência termina por exigir do pesquisador um instrumental ade-
quado a esses novos tempos.
Por sua vez, o conhecimento jurídico, ou a ciência do direito, não
estão alheios aos processos de mudança social. Ao contrário, as inova-
ções tecnológicas, as mudanças políticas, as modificações de comporta-
mento, as constantes alterações na economia, a pluralidade de modos
de ver e de se inserir no mundo contemporâneo vêm a exigir um direito
que dê conta da complexidade crescente da sociedade atual.
Paradoxalmente, o surgimento de novas necessidades faz nascer
novos direitos e novas formas de conhecê-lo e novas disciplinas. Ao
mesmo tempo, se exige um conhecimento cada vez mais amplo, trans-
disciplinar, para que possamos lidar com os novos problemas.
O presente texto tem por objetivo apresentar àqueles que se
aventuram na pesquisa em direito os desafios impostos à produção
do conhecimento em uma sociedade que se sabe complexa.
O texto foi dividido em três partes. Na primeira, desenvolve-se
uma discussão epistemológica sobre o que é o conhecimento científico.
Demonstra-se a superação do paradigma disciplinar-positivista, centra-
do na razão “cognitivo-instrumental”, e a necessidade de abertura para
um saber que se sabe precário, indissociável de uma dimensão ética.

9
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Na segunda parte, apresentam-se elementos da hipercomple-


xidade da sociedade contemporânea. Vive-se em uma sociedade
que busca a segurança, mira o futuro, mas o que encontra pela
frente é a evidência cada vez maior do risco e a imprevisibilida-
de quanto ao porvir. Sendo esse um dos paradoxos constitutivos
da modernidade. Diante desse quadro, defende-se que o conhe-
cimento científico torna-se indissociável de um pluralismo social
democratizante. Algo em permanente perigo de retrocesso, em
especial, frente às atuais ameaças econômicas e políticas.
Por fim, breves apontamentos são feitos sobre a Teoria do
Direito em uma sociedade complexa. Qual seja, a necessidade de
produzir conhecimento jurídico e tomar decisões diante um saber
que se sabe precário. Menos que cair em um ceticismo em que
qualquer decisão é possível, recorre-se à possibilidade de comu-
nicação e à democracia como pano de fundo para a produção de
uma teoria jurídica que, certamente, não será uma fórmula má-
gica para tomar decisões precisas, mas poderá servir como norte
crítico-reflexivo que permitirá o caminhar frente aos desafios da
sociedade hipercomplexa.

1 – Conhecimento científico
O discurso científico da modernidade caracteriza-se por um
pretenso distanciamento das demais formas de conhecimento: o re-
ligioso, o filosófico e o senso comum. Especialmente em relação ao
conhecimento vulgar ou senso comum, o distanciamento ocorreu as-
sociado à ideia de que a ciência era a detentora da verdade, enquanto
as demais formas de conhecimento ocupavam-se de outro objeto ou
percebiam somente a aparência dos fenômenos, impossibilitando sua
utilização para a elaboração de um conhecimento verdadeiro.

10
Epistemologia e Pesquisa em Direito

O aporte teórico supra é fundamental em metodologias que


buscam isolar o objeto de estudo, verificar o seu comportamento
sem interferir diretamente e, a partir de hipóteses formuladas para
responder às questões por ele propostas, enunciar uma verdade que
não se reconhece comprometida, seja com grupos e relações de po-
der (política), seja com valores morais vigentes na sociedade (ética).
Para essa visão, a construção do conhecimento científico é a
sua separação e distanciamento do senso comum e demais formas
de conhecimento. O senso comum é conjunto de saberes produzi-
dos a partir da prática cotidiana, assim, percebeu-se a elaboração
de um discurso que não tinha a preocupação em enunciar uma
verdade, e que se contentava com uma análise da aparência das
coisas, sem aprofundar as relações de causa e efeito, probabilida-
des, frequência, etc. Tudo isso porque o objetivo do senso comum
seria a resolução dos problemas do cotidiano humano, sem ela-
boração de leis universais e, portanto, permeado de pré-noções,
pré-conceitos, crenças fechados ao questionamento.
A fundamentação do conhecimento científico seria a busca
de um discurso verdadeiro e objetivo, que estaria isento de valores.
Consequentemente, ocorreu o que Boaventura de Sousa Santos cha-
ma de priorização da racionalidade “cognitivo-instrumental” sobre a
racionalidade “moral-prática” e a “racionalidade estético expressiva”.
A bomba atômica utilizada na Segunda Grande Guerra é o maior
exemplo desta ausência de valoração no conhecimento científico, que
se coloca à disposição, em nome de uma aparente neutralidade, de
qualquer uso, sem que seja possível inserir uma discussão eticopolítica
sobre seus fundamentos (SANTOS, 1997, p.223).
A diferenciação entre o senso comum e a ciência ocorreu, basi-
camente, pela reivindicação e questionamento desta última aos pre-
conceitos existentes no conhecimento vulgar. Contudo, reconhece-
-se, hoje, que o conhecimento científico também é constituído por

11
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

pré-conceitos e silenciamentos. A linguagem pressupõe, para que


haja comunicação, seja no direito, seja no conhecimento científico,
a existência de visões parciais e pré-noções, para que seja efetivada
a comunicação. A tentativa de expurgar os pré-conceitos do conhe-
cimento científico levam a um sem número de metadiscursos que
tentariam clarificar o significado do discurso anterior.
Santos (1989, p. 34) aponta a necessidade de realizar hoje o
que chama de segunda ruptura epistemológica. Após a primeira
ruptura, separação da ciência e do senso comum, impõe-se uma
reconciliação, para que seja possível haver um diálogo entre as
duas formas de conhecimento, para uma síntese inovadora, que
se perceba como provisória, uma verdade situada temporal e espa-
cialmente, que não se pretenda total.
Quanto à relação “ética-ciência”, Rubem Alves (1996, p.
168) indica a insuficiência do método científico para a elaboração
de um discurso verdadeiro e universal, opondo a ética como ele-
mento essencial à construção do conhecimento científico.
Pode-se resumir o papel desempenhado pelo conhecimento
humano a partir do Iluminismo da seguinte maneira: a única for-
ma de realmente conhecer a realidade e enunciar verdades sobre
ela, que serão aceitas por todos, é pelo discurso científico. A ci-
ência assumiu o papel antes desempenhado pela religião e, desta
forma, transformou-se em dogma.
Uma das bases do conhecimento científico consiste na possi-
bilidade de dividir o mundo real em caixas ou gavetas, para poder
olhá-las isoladamente, sem que o observador interfira no objeto de sua
elaboração discursiva. A estas caixas foi dado o nome de disciplinas.
No passado, a criação de disciplinas ou áreas do conhecimento cien-
tífico era absolutamente fundamental, uma vez que a multiplicidade
de formas de compreensão de um determinado objeto impossibilitava

12
Epistemologia e Pesquisa em Direito

a elaboração de um discurso rigoroso. Desde a criação de um ramo da


ciência seria possível aprofundar e precisar os conceitos para que as
verdades dali extraídas pudessem ser mais confiáveis.
Porém, a especialização do conhecimento gerou graves conse-
quências para a forma de racionalidade concebida, pois a fragmen-
tação do saber, na qual se sabe cada vez mais de cada vez menos,
impossibilita uma percepção do todo. A visão de uma realidade
compartimentada, e, sobretudo, a impossibilidade de comunicação
dos campos de conhecimento, na qual, por exemplo, os juristas des-
conhecem o que fazem os sociólogos ou os cientistas políticos, faz
com que o saber gerado torne-se cada vez mais verdadeiro na sua
especialidade e cada vez mais falso na sua totalidade. As disciplinas
fragmentaram os fenômenos científicos, estabelecendo trincheiras
acadêmicas, permitindo um “hiperaprofundamento” do conheci-
mento, mas uma “hiporrelação” com a realidade e com o saber.
Diante deste quadro, a interdisciplinaridade apresenta-se como
um caminho a ser seguido. Georges Gusdorf (1986) analisou bem
a temática ao afirmar que o saber interdisciplinar constitui-se pela
possibilidade de várias especializações do conhecimento científico
buscarem compreender uma mesma temática. Não se trata aqui da
superposição de várias ciências, ao contrário, a interdisciplinaridade
abre novas portas que não se confundem com as caixas ou gavetas
citadas anteriormente. A interdisciplinaridade, além de tornar mais
articulado o conjunto dos diversos “ramos” do saber, o amplia, cons-
tituindo novos espaços de investigação e campos de visibilidade.
Uma forma ainda mais ampla de lidar com o conhecimento e
com a realidade é a transdiciplinaridade que ultrapassa as frontei-
ras das disciplinas e das formas de conhecer, permitindo uma reno-
vação do pensamento e da cultura. Difere da interdisciplinaridade
porque promove um alargamento do saber, realiza um encontro das
múltiplas faces do humano, tanto no campo do conhecimento cien-

13
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

tífico, quanto da cultura, dos valores e da ética. Permite o diálogo e


o entendimento entre os opostos e os diferentes.
A teoria do direito necessita incorporar ao seu discurso a inter
e a transdisciplinaridade, caso pretenda estar adequada para acom-
panhar a modernização reflexiva e a problemática aqui proposta,
qual seja a produção de um conhecimento jurídico complexo. Nesse
sentido, a hermenêutica revela-se o campo propício para o desenvol-
vimento destas possibilidades diante de tamanhos desafios.
A produção do conhecimento científico exige uma discussão so-
bre o que se denomina ciência, considerando como se deu sua forma-
ção e sua homologação como discurso do verdadeiro. No século XXI,
a modernidade reflexiva convive com uma mudança do paradigma
científico, uma vez que a separação do conhecimento em disciplinas
e do saber científico das demais formas de saber continua não dando
conta de explicar a realidade, pelo contrário, em alguns aspectos, a
distorceu. Nesse sentido, a interdisciplinaridade e a transdisciplinari-
dade apresentam caminhos para uma possível reconciliação dos sabe-
res e para a produção de uma sintaxe inovadora.

2 – A hipercomplexidade da sociedade
contemporânea
Diante da variedade de abordagens possíveis para a problemáti-
ca proposta, faz-se necessário eleger algumas categorias e autores para
interlocução em razão da pertinência com a temática que é objeto
deste estudo. Porém, essa escolha revela também o lugar de onde se
fala, ou de onde se parte para tentar explicar tal ou qual fenômeno.
Dessa forma, a posição aqui adotada parte da ideia de que, apesar de
modificações tão radicais, o projeto de modernidade não está exau-
rido, ao contrário, várias características aqui apontadas revelam uma

14
Epistemologia e Pesquisa em Direito

radicalização dos processos jurídicos, políticos, sociais e epistemológi-


cos, ou seja, a modernização da sociedade moderna.
A modernidade da sociedade moderna exige que seja feita uma
reavaliação da possibilidade da qual o Iluminismo partiu: oferecer lu-
zes sobre as trevas, que faria com que o “homem” fosse autor e senhor
de seu próprio destino. Assim, chega-se a um ponto onde o homem
contemporâneo defronta-se com uma situação de risco cada vez
maior, ao mesmo tempo em que toma consciência desse risco pela
inevitável confrontação cotidiana. Isto pode ser sentido, por exemplo,
pela incerteza do emprego e desempenho profissional, ou pela impos-
sibilidade de previsão do futuro (GIDDENS, 1997, p. 18).
Agnes Heller (1999, p. 21) expõe o paradoxo de uma socie-
dade que se pretendia calculando adequadamente os seus riscos:

Com as experiências devastadoras dos regimes totalitários, de-


vemos pelo menos aprender que não temos nenhuma posição
privilegiada na história. Os modernos não têm mais oportuni-
dade que os pré-modernos de conhecer o futuro. Talvez tenham
até menos. Isto é uma descoberta intrigante, pois a moderni-
dade é um arranjo social orientado para o futuro, não para o
passado (HELLER, 1999, p. 21).

Anthony Giddens (1997, p. 38) aprofunda a ideia de risco ao


expor o conceito de “risco manufaturado”, que seria:

[...] resultado da intervenção humana na natureza e nas condi-


ções da vida social. As incertezas (e oportunidades) que ele cria
são amplamente novas. Elas não podem ser tratadas com remé-
dios antigos, mas tampouco respondem à receita do iluminismo:
mais conhecimento, mais controle (GIDDENS, 1997, p. 38).

Ressalte-se que a ideia de risco significa também o surgimen-


to de oportunidades. As potencialidades de realização dos valores
na sociedade pós-industrial são tão grandes quanto as incertezas.

15
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Não se trata aqui de propor um modo de ver os tempos atuais de


maneira otimista ou pessimista, trata-se sim de buscar compreen-
der melhor a situação em que se encontra a sociedade moderna
partindo do que lhe é peculiar.
Apesar da existência de algumas características estáveis da so-
ciedade pós-tradicional, é possível afirmar que estes são tempos de
crise, que, na definição de Antônio Gramsci (ano?), ocorre quando
o velho já morreu e o novo ainda não nasceu. A crise revela as
possibilidades e os limites de uma determinada época, sem que seja
possível prever, com exatidão o que ocorrerá no futuro, mas, ao mes-
mo tempo, alimenta os sonhos e utopias de uma nova sociedade, por
isso, faz-se necessária uma análise detalhada dos seus elementos.
A tentativa frustrada de aprofundar o conhecimento, e con-
sequentemente, de se obter o controle das possibilidades futuras,
gera sérios traumas, sobretudo quando se trata da incerteza de sig-
nificados de valores:

Talvez (homens e mulheres) estejam conscientes das suas responsa-


bilidades futuras, mas apenas em termos abstratos. (...) No mundo
pré-moderno todos podiam imaginar como seus netos viveriam e o
que fariam. Hoje, nenhum de nós sabe grande coisa sobre os netos.
Viver na incerteza é traumático (HELLER, 1999, p. 21).

Conforme será abordado adiante, o aprofundamento da ideia


de risco, e do risco manufaturado, terá influência direta sobre o
direito e sua tentativa de regulação das relações sociais e políticas.
Da mesma forma, a incerteza e a pluralidade de valores morais
gerarão novas formas jurídicas e, sobretudo, novos discursos de
fundamentação. Estas observações são confirmadas por autores
que partem de referências distintas, por vezes antagônicas, como
Boaventura de Sousa Santos, Habermas, Agnes Heller. Nesse sen-
tido, Rafaelle de Giorgi (1998, p.29) afirma que:

16
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Na sociedade moderna há mais Direito e, contemporaneamen-


te, menos Direito, do mesmo modo como há mais segurança e
maior risco, um mais alto grau de racionalidade e conjuntamen-
te um grau mais alto de incalculabilidade dos eventos.

A sociedade contemporânea define-se também como pós-tra-


dicional, não porque as tradições tenham desaparecido, mas porque
“Em uma sociedade globalizante, culturalmente cosmopolita, as tradições
são forçadas à visão aberta: razões ou justificativas têm que ser oferecidas
para elas.”, o que gera a necessidade de um discurso de fundamenta-
ção, inclusive na tradição jurídica (GIDDENS, 1997, p.40).
A afirmação de que a sociedade moderna caracteriza-se por
ser pós-tradicional não significa o fim das tradições. Estas são re-
cicladas de duas formas: a primeira pela reflexividade, que pos-
sibilita uma visão não conservadora das tradições, utilizando-as
como ponto de partida em direção ao futuro da sociedade; e a
segunda, que se mostra através de um profundo conservadorismo,
externado nos discursos nacionalistas, fundamentalismos religio-
sos, sectarismos regionais, étnicos, etc.
É curioso perceber que a Esquerda, que possibilitou enor-
mes avanços ao longo da era moderna (apesar de seus inúmeros
retrocessos), que tinha um discurso voltado para o futuro, hoje,
em sua maior parte, demonstra seu conservadorismo, buscando
a manutenção de tradições que têm de ser repensadas diante de
novas realidades. Tampouco se pode afirmar que a Direita con-
servadora tornou-se a vanguarda do pensamento político, pois a
superficialidade de um discurso sintonizado com as modificações
ocorridas na atualidade esbarra em uma forma de atuação política
que busca a manutenção de uma tradição nas relações no interior
da sociedade, tudo isto fundado em uma naturalização dos fatos.
Tome-se como exemplo os direitos sociais e sua manutenção de
maneira dogmática pela Esquerda, e pela Direita, uma crença qua-

17
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

se que religiosa no mercado como principal regulador das relações


sociais, as duas posições buscam ignorar, cada uma de uma forma,
a complexidade da história.
Todas estas mudanças geram também o que se pode chamar
de ‘modernização reflexiva’, processo que faz com que a sociedade
tenha consciência de seus próprios dilemas, colocando-se em situ-
ação de permanente questionamento sobre suas decisões jurídicas,
políticas, e, até mesmo, pessoais:

Informação produzida por especialistas (inclusive conhecimen-


to científico) não pode mais ficar inteiramente confinada a gru-
pos específicos, mas passa a ser rotineiramente interpretada e
ativada por indivíduos leigos no curso de suas ações cotidianas
(GIDDENS, 1997, p.41).

Deve-se ainda citar outro conceito que está presente em to-


das as discussões sobre os problemas contemporâneos da moder-
nidade que é o de “globalização”. A maior parte dos autores cuida
da globalização em termos econômicos, e as discussões giram em
torno de categorias tais como: eficiência, competitividade, merca-
do de capitais transnacionalizado, etc. Contudo, a globalização é
um fenômeno que afeta as mais diversas formas de manifestação
social, ao ponto de interferir na vida cotidiana das pessoas.
É especialmente importante para o direito a abordagem cor-
reta e aprofundada do fenômeno da globalização, que revela seus
contornos problemáticos ao tocar na temática da Soberania, funda-
mental para o direito, como demonstra José Eduardo Faria (1999):

Para cientistas políticos, especialistas em relações internacio-


nais, cientistas sociais e juristas, o grande desafio é, justamente
dar conta dessa ruptura entre a soberania formal do Estado e
sua autonomia decisória substantiva, por um lado, e da subse-

18
Epistemologia e Pesquisa em Direito

quente recomposição do sistema de poder provocada pelo fenô-


meno da globalização (FARIA, 1999, p.23).

Santos (1999) já apontou os riscos para a Democracia na


Europa devido ao esvaziamento dos foros tradicionais de decisão
política e jurídica pelo surgimento de foros econômicos, que não
se pautam pelas exigências procedimentais da democracia, como
determinantes de decisões que afetarão todos os habitantes daque-
le continente nas próximas décadas, inserindo este fato em uma
categoria a que chama de ‘fascismo societal’:

O caráter fascista do Acordo Multilateral de Investimentos


(AMI) reside em que ele é uma Constituição para os investido-
res, visando a proteger exclusivamente os interesses destes, com
total desprezo pela idéia de que o investimento é uma relação
social onde circulam outros interesses sociais que não os dos
investidores. Aliás, foi o próprio diretor-geral da Organização
mundial do comércio, Renato Ruggiero, quem caracterizou as-
sim as negociações em curso: ‘Estamos a escrever a constituição
de uma economia global única (SANTOS, 1999, p. 56).

A importância da teoria do direito na modernidade da socie-


dade moderna revela-se pela função que o direito assume no para-
digma do Estado Democrático de Direito, pois, se ele se constitui
como sistema relativamente autônomo, que deve ser considerado
de forma ampla, incluindo em seu âmbito desde as funções do
Estado até as regulações da esfera privada, ele também se mostra
como uma espécie de ‘fio condutor’ dos demais sistemas sociais,
como a economia e a política.
Habermas (1997), ao trabalhar a tensão entre facticidade e
validade, tendo como referencial básico a democracia, busca expli-
car a tensão permanente entre o princípio da segurança jurídica e
a pretensão de tomar decisões corretas. Para tanto ele compreende
o sistema jurídico para além de limites formais:

19
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Eu incluo no sistema jurídico em sentido amplo os sistemas de ação


regulados juridicamente, no interior dos quais surge uma esfera
nuclear da produção privada e autônoma de atos jurídicos, consti-
tuída através de um direito reflexivo, contra-discursos de ação diri-
gidos por normas jurídicas materiais (HABERMAS, 1997, p. 243)

O paradigma do Estado Democrático de Direito deve ser


trabalhado com a perspectiva do pluralismo, pois o sistema de re-
gulação social deixa de ser monopólio do Estado para estar disse-
minado por toda a sociedade, constituindo um sistema autônomo,
porém aberto, que tem como parâmetros básicos os conceitos de
Democracia e de Constituição, produzindo direito em todos os
subsistemas da sociedade.
Consequentemente, Habermas (1997, p. 244) vê a teoria do
direito como a tentativa de compreensão deste sistema jurídico:

A teoria do direito abrange, não somente a legislação e a admi-


nistração, portanto todos os sistemas parciais que se ocupam re-
flexivamente da produção e reprodução do direito, mas também
o sistema jurídico, em sentido mais amplo. Ela se distingue da
dogmática jurídica através da pretensão de produzir uma teoria
da ordem jurídica em sua totalidade. E nisso ela leva em conta
as perspectivas dos outros participantes, ao introduzir na pró-
pria perspectiva de esclarecimento, que é a do jurista especia-
lizado, os papéis do legislador político, da administração e dos
membros do direito (enquanto clientes ou cidadãos).

Estes são alguns dos elementos que devem ser ponderados


ao buscar-se uma reflexão sobre a teoria e prática do direito na
contemporaneidade. Também devem ser levadas em conta as mo-
dificações ocorridas na própria forma de pensar os problemas de
um ponto de vista que se afirma como científico.

20
Epistemologia e Pesquisa em Direito

3 – Teoria do Direito
As ciências sociais vivenciaram os problemas até aqui de-
monstrados, porém, afirmar o mesmo da teoria do direito é, no
mínimo, arriscado. Isto se deve ao fato de que, embora a sociedade
esteja já no século XXI, a elaboração e reprodução do conheci-
mento jurídico ainda está no século XIX, tendo passado o século
XX sem maiores questionamentos acerca de sua fundamentação
e (re)produção, salvo algumas poucas ressalvas a serem feitas para
Núcleos e pesquisadores de excelência.
O conhecimento jurídico ainda é hoje permeado por duas
noções básicas: o positivismo normativista e o jusnaturalismo. A
doutrina de direito natural dividiu-se em três bases desenvolvidas
ao longo da história: direito natural cosmológico, direito natural
teológico e direito natural antropológico. A primeira está de acor-
do com a visão grega de natureza, na qual o direito se integrava. A
segunda parte da necessidade da fé em um Deus que é a origem de
todas as coisas, inclusive do direito. As relações sociais e políticas
eram normatizadas e organizadas segundo uma ordem divina, que
permanecia rígida e inquestionável, fundada na tradição.
A terceira corrente, jusnaturalismo antropológico, estabelece
suas bases na razão humana, estando associada ao Iluminismo e à
Revolução Francesa, que na sua Declaração de Direitos adota esta
perspectiva para explicar e justificar a nova ordem, segundo a qual
todo homem é sujeito de direitos por sua própria condição huma-
na. Nesta época inicia-se a elaboração de uma doutrina jusnatura-
lista que se assemelha à ideia de ciência e permanece em discussão
por alguns autores até os dias de hoje. Este jusnaturalismo tem em
Hobbes, Locke e Rousseau seus principais sustentáculos.
O positivismo normativista revela-se em sua plenitude nos tra-
balhos de Kelsen, que pretendeu alçar o conhecimento jurídico ao

21
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

status de ciência segundo o modelo desenvolvido no século XIX.


Para tanto era necessário elaborar uma gaveta exclusiva para o di-
reito, para purificar a teoria de elementos estranhos ao seu objeto.
Pode-se partir deste estágio do desenvolvimento da teoria do
direito para avaliar a discussão proposta, pois, o positivismo kel-
seniano serviu, e serve de base até hoje, para um discurso preten-
samente científico do direito. A reprodução da ideia de Kelsen no
imaginário dos operadores jurídicos ocorre de tal forma marcante
que, mesmo sem ter lido uma linha sequer de sua obra, é possível
a um estudante de Direito, ou bacharel, reproduzir o pensamento
positivista sem grandes dificuldades.
A teoria do direito segue o modelo de ciência que lhe é con-
temporâneo (embora muitas vezes a impressão é de que ela não
consegue acompanhar a história), e o positivismo buscou adequar
a teoria do direito a um modelo epistemológico que vigia no início
do século XX. Tal modelo buscava, a partir de uma visão objetiva,
descrever e explicar seu objeto de estudo. Para tanto se fazia ne-
cessário isolar os diversos tipos de conhecimento, que na sua espe-
cialidade, possibilitariam uma melhor explicação do mundo real.
Kelsen (1991), no prefácio à primeira edição da Teoria Pura do
Direito, na tentativa de compor uma verdadeira ciência do direito:

Desde o começo foi meu intento elevar a jurisprudência que –


aborta ou veladamente – se esgotava quase por completo em
raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciên-
cia, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas
tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas ten-
dências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito,
e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de
toda ciência: objetividade e exatidão (KELSEN, 1991)

22
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Tal teoria do direito geraria, necessariamente, um modelo de


interpretação. Desta forma, Kelsen (1985, p. 364) volta-se contra o
modelo jusnaturalista de uma única decisão correta, que revela jus-
tiça, para conceber um quadro de decisões possíveis, que deve ser
levado em consideração na aplicação da norma. Para o positivismo,
existem duas espécies de interpretação, absolutamente distintas: “[...]
a interpretação do Direito pelo órgão que o aplica, e a interpretação
do direito que não é realizada por um órgão jurídico, mas por uma
pessoa privada e, especialmente, pela ciência jurídica”.
Caberia à interpretação da ciência jurídica, através de proces-
sos lógicos, estabelecer um quadro das significações possíveis de uma
norma jurídica, criando condições para que o aplicador do direito
pudesse fazer a escolha das opções possíveis. Contrapondo-se ao ar-
gumento das teses jusnaturalistas da única decisão correta, que visa
gerar segurança jurídica, Kelsen (1985, p. 371) propõe outra fórmula:

É que uma tal interpretação científica pode mostrar à autorida-


de, legisladora quão longe está sua obra de satisfazer à exigência
técnico-jurídica de uma formulação de normas jurídicas o mais
possível inequívocas ou, pelo menos, de uma formulação feita de
tal maneira que a inevitável pluralidade de significações seja re-
duzida a um mínimo e, assim, se obtenha o maior grau possível
de segurança jurídica.

Contudo, ao propor o conceito segundo o qual o aplicador


cria o direito, Kelsen (1985, p. 369) não obtém o controle da apli-
cação do próprio direito, e, consequentemente, possibilita um de-
cisionismo por parte do operador jurídico que não se vê obrigado a
seguir qualquer uma das opções possíveis fornecidas pela interpre-
tação da ciência jurídica:

A propósito é importante notar que, pela via da interpretação


autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo ór-

23
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

gão jurídico que a tem que aplicar, não somente se realiza uma
das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da
mesma norma, como também pode produzir uma norma que
se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar
representa (KELSEN, 1985, p. 369)

Na tentativa de construção de uma teoria pura do direito,


Kelsen sacrificou o que lhe era mais caro, a segurança jurídica,
ao possibilitar o decisionismo pelo operador jurídico, tornando a
ciência do direito um mero exercício especulativo, que em nada
contribui para a limitação do poder discricionário da autoridade
(CARVALHO NETTO, 1997, p. 243).
A condição paradigmática que o positivismo normativista
kelseniano obteve, gerou e gera efeitos perversos em uma cultura
jurídica autoritária, como se revela a brasileira. A crítica possível
à criação do direito no caso concreto esbarra em um decisionismo
que torna impossível o diálogo sobre as bases de fundamentação
das decisões jurídicas das autoridades competentes. Esta situação
tem resultados bastante graves para a democracia.
A teoria do direito de Ronald Dworkin (1997, p.49) surge
exatamente para contrapor-se ao positivismo ainda que atualizado
e sofisticado, na versão elaborada por J. L. Austin ou H. L. A.
Hart, que se traduz em tradicionalismo e decisionismo: “Direito é
verdadeiro em virtude dos fatos sobre os quais um povo em parti-
cular, seus soberanos, como no caso de Austin, ou as pessoas em
geral, no caso de Hart, decidiram ou pensaram”.
Dworkin estabelece a necessidade de uma teoria do direito
que avance para além do positivismo, utilizando-se da Herme-
nêutica como seu ponto central. Este autor contemporâneo busca
construir uma teoria do direito que esteja de acordo com o para-
digma dos dias atuais, com uma visão de ciência, e de democracia

24
Epistemologia e Pesquisa em Direito

para uma sociedade hipercomplexa e pós-tradicional. Segundo


Menelick de Carvalho Netto (1997, p.29):

Essas reflexões de Dworkin marcam o emergir de um novo para-


digma que vem, enquanto tal, de forma cada vez mais difundida
e internalizada se afirmando através da constituição de um novo
senso comum social, no qual são gestadas pretensões e expec-
tativas muito mais complexas, profundas e rigorosas no que diz
respeito ao Direito, seja como ordenamento ou esfera própria da
ação comunicativa, do reconhecimento e do entendimento mú-
tuo dos cidadãos para o estabelecimento e a implementação da
normativa que deve reger sua vida em comum, seja como simples
âmbito específico de conhecimento e exercício profissionais.

Dworkin (1999, p.18) parte de um conceito de direito que


busca unificar pontos de vista até recentemente divergentes, ou,
no mínimo, distintos: o ponto de vista externo, do sociólogo ou do
historiador; e o ponto de vista interno, do interessado na decisão
prática. Para o autor “As duas perspectivas sobre o direito, a exter-
na e a interna, são essenciais, e cada uma delas deve incorporar ou
levar em conta a outra”. Estas seriam duas formas de compreender
o aspecto argumentativo do direito, crucial na prática do direito:

O direito é, sem dúvida, um fenômeno social. (...) Ao contrário


de muitos outros fenômenos sociais, a prática do direito é argu-
mentativa. Todos os envolvidos nessa prática compreendem que
aquilo que ela permite ou exige depende da verdade de certas
proposições que só adquirem sentido através e no âmbito dela
mesma; a prática consiste, em grande parte, em mobilizar e dis-
cutir essas proposições (DWORKIN, 1999, p.17).

O autor dialoga com duas concepções que são antagônicas


à sua proposição, o convencionalismo, fundado na tradição, e o
pragmatismo, de caráter instrumental, para construir a ideia de

25
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

direito como integridade que, ao lado da justiça, da equidade, e


do devido processo legal constituem as bases de sua teoria.
A integridade política para Dworkin (1999, p. 213) se revela
no princípio legislativo, que determina aos legisladores a tentativa
de tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e no princípio
jurisdicional, que exige também esta coerência:

[…] a integridade se torna um ideal político quando nós faze-


mos a mesma exigência do Estado e da comunidade tomada
para ser um agente moral, quando nós insistimos para que o
Estado atue segundo um conjunto de princípios singular e co-
erente mesmo quando seus cidadãos estão divididos a respeito
do que os princípios corretos da justiça e honestidade realmente
são (DWORKIN, 1999, p.215).

Dworkin faz, então, o desenvolvimento de sua teoria do di-


reito fundada em princípios, que irão revelar-se diante da especi-
ficidade de cada caso concreto. Para tal intento, o autor norte-
-americano desenvolve duas premissas: a primeira, segundo a qual
a divergência sobre o significado do direito e a possibilidade de
construção de uma teoria hermenêutica funda-se no paradoxo da
comunicação, ou seja, nós nos comunicamos porque não nos co-
municamos, ou seja, apesar da completa ausência de probabilidade
que a comunicação seja feita, contrafactualmente, ela se realiza, e
o que possibilita isto é a existência de um pano de fundo compar-
tilhado por todos aqueles que integram a comunicação. Isto é pos-
sível a partir da ideia de paradigma, que compreende pré-noções e
pré-conceitos, que possibilitam uma trama construtiva do direito
(CARVALHO NETTO, 1999, p.476).
A segunda premissa de Dworkin é aquela na qual há uma
confrontação à Razão Prática de Kant guiada pelo imperativo ca-
tegórico da generalidade: devemos agir de tal modo que a máxima
de nossa ação possa ser sempre uma lei universal. O caráter prin-

26
Epistemologia e Pesquisa em Direito

cipiológico da teoria do professor norte-americano inverte a lógica


kantiana, pois coteja os princípios em relação ao caso concreto,
possibilitando uma decisão moralmente válida que se submete às
condições de aplicação. É clássico o exemplo do próprio Kant se-
gundo o qual ele teria sido procurado por um aluno perseguido
pela polícia política do Kaiser para se esconder, e ao ser indagado
pelos policiais apontou onde se encontrava o aluno. Neste caso, o
princípio moral “não mentir” foi aplicado de forma absoluta. Ao
contrário, segundo a tese da integridade, o princípio moral “não
mentir” seria confrontado com o “não delatar”, que dadas as situa-
ções específicas de aplicabilidade, deveria ser utilizado (CARVA-
LHO NETTO, 1999, p. 476).
Partindo destes pressupostos, Dworkin pode construir uma
teoria que se assemelha a uma redação coletiva de um romance,
na qual os aplicadores do direito escrevem cada capítulo da no-
vela jurídica, e devem fazê-lo construindo sua decisão a melhor
possível. Os capítulos do romance devem ser encadeados para que
haja uma lógica, mas, ao mesmo tempo, constituem a evolução
histórica do direito. O Juiz é simultaneamente crítico e autor da
construção do direito.
Por todos esses motivos, caberá ao aplicador do direito o co-
nhecimento de todo o conteúdo do passado do direito, para que
seja possível a reconstrução da ordem jurídica, ao mesmo tempo
há somente uma única decisão correta, aplicável ao caso concreto,
no qual o Juiz deve levar em conta todas as possibilidades para
todos envolvidos. Habermas (1997, p. 263) sintetiza a tarefa e a
capacidade deste operador do direito:

O Juiz Hércules dispõe de dois componentes de um saber ide-


al: ele conhece todos os princípios e objetivos válidos que são
necessários para a justificação; ao mesmo tempo, ele tem uma
visão completa sobre o tecido cerrado dos elementos do direito

27
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

vigente que ele encontra diante de si, ligados através de fios


argumentativos. (...) Hércules deve descobrir a série coerente
de princípios capaz de justificar a história institucional de um
determinado sistema de direitos (HABERNAS, 1997, p. 263)

Dworkin, ironicamente, desenvolve então uma figura: a que


chama de Juiz Hércules, que construirá o discurso de aplicação da
norma ao caso concreto. Segundo Chueiri (1997, p. 178):

Privilegia-se o ponto de vista do Juiz não por ser mais impor-


tante que o do cidadão comum, do professor de direito ou do
advogado, mas por servir de paradigma, em face da maior cla-
reza da estrutura da argumentação judicial que influi de forma
substancial no discurso jurídico como um todo.

Esta tese é de fundamental importância, na medida em que


inclui no processo de construção coletiva do direito todos os atores
envolvidos, todas as partes interessadas, a associação do conceito
de direito com a Democracia.
Por fim, deve-se esclarecer que os princípios possuem caráter
deontológico, não são máximas que se constituem como diretrizes
da prática jurídica. Eles se densificam na aplicação no caso con-
creto, ao mesmo tempo em que possibilitam o desenvolvimento da
teoria democrática do direito. Ao contrário de diversas teorias que
ainda têm o paradigma kelseniano como base, os princípios não
são normas programáticas que informam ou orientam a atividade
de interpretação do direito, mas se constituem como normas jurí-
dicas que devem ser aplicadas no seu conjunto.
Contudo, algumas das considerações mais importantes sobre
a teoria de Ronald Dworkin são feitas por Jurgen Habermas, que
inicialmente se debruça sobre o juiz Hércules, que estaria conde-
nado a uma infinita solidão ao ter sobre si a tarefa de, consideran-
do todos os envolvidos no processo, conhecendo profundamente

28
Epistemologia e Pesquisa em Direito

a teoria e história do direito, e trabalhando o direito como um sis-


tema principiológico, chegar a uma única decisão correta. Afirma
Habermas (1997, p. 276) que:

Dworkin oscila entre a perspectiva dos cidadãos que legitima os


deveres judiciais e a perspectiva de um juiz que tem a pretensão
de um privilégio cognitivo, apoiando-se apenas em si mesmo, no
caso em que sua própria interpretação diverge de todas as outras.

Habermas (1997, p. 273) aplica, então, a teoria da ação co-


municativa à teoria do direito para que possa ser possível incluir
todos os envolvidos no processo de interpretação:

é possível ampliar as condições concretas de reconhecimento


através do mecanismo de reflexão do agir comunicativo, ou seja,
através da prática da argumentação, que exige de todo partici-
pante a assunção das perspectivas de todos os outros (HABER-
NAS, 1997, p. 273)

E, assim, constrói uma visão do magistrado de forma subs-


tancialmente distinta de Dworkin.
Autor importante na linha de raciocínio iniciada por Habermas
é Peter Häberle, na obra “Hermenêutica Constitucional – A sociedade
aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação
pluralista e ‘procedimental’ da constituição”, onde o autor desenvolve a
ideia de que, para que haja democracia, é necessário que todos os
cidadãos participem do processo de interpretação da Constituição,
sobretudo porque o conceito de democracia está mais atrelado à ideia
dos direitos fundamentais do que ao governo. Também se faz de ex-
trema importância para Häberle (1997, p.14) o conceito aberto de ci-
ência, extraído de Popper, como parte integrante da interpretação e
concretização da constituição. Desta forma, afirma o autor:

29
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Para uma pesquisa ou investigação realista do desenvolvimento da


interpretação constitucional, pode ser exigível um conceito mais
amplo de hermenêutica: cidadãos e grupos, órgãos estatais, o siste-
ma público e a opinião pública (...) representam forças produtivas
de interpretação; eles são intérpretes constitucionais em sentido
lato, atuando nitidamente, pelo menos como pré-intérpretes.

É interessante observar também que Häberle (1997, p. 37)


integra e recupera para a interpretação constitucional a ideia de
povo, contudo, para ele este conceito não fica limitado ao proces-
so político eleitoral democrático: “Povo é também um elemento
pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legiti-
madora no processo constitucional: como partido político, como
opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão”.
Outro autor que recupera a ideia de povo no processo demo-
crático e na teoria do direito é Friedrich Müller, para quem o povo
deve ser trabalhado como questão fundamental do Estado Demo-
crático de Direito, rejeitando o tratamento do conceito de povo
como ícone, como forma idealizada, ou a sua construção a partir
de processos de exclusão, sustenta o autor que a adequada apre-
ciação do conceito de povo está intimamente relacionada com a
prática dos direitos fundamentais. Desta forma, o povo não é uma
abstração pré-determinada, pois ele se constrói historicamente, a
partir dos movimentos sociais que passam a incluir cada vez mais
agrupamentos no conceito ampliado.
O que pode ser percebido da discussão até agora travada en-
tre os autores é a necessidade de inclusão democrática reflexiva
de todos os envolvidos no processo de interpretação e concreti-
zação do direito. O paradigma do Estado Democrático de Direito
tem que absorver a interpretação pluralista caso queira afirmar-se
como democrático. Outro ponto de fundamental relevância é que

30
Epistemologia e Pesquisa em Direito

o próprio paradigma tem que ser assumido como provisório e pre-


cário, sob pena de instaurar-se como dogma e figura de retórica.
Habermas (1997) busca preservar a discussão hermenêuti-
ca ao inserir a ação comunicativa na prática jurídica, sugerindo
um esforço para não permitir que o pano de fundo que existe em
relação à compreensão procedimentalista do direito seja confun-
dido como ideologia, para tal intento: “O juiz singular tem que
conceber sua interpretação construtiva como um empreendimen-
to comum, sustentado pela comunicação pública dos cidadãos.”
(HABERNAS, 1997, P. 278).
O autor almeja combater a ideia de uma dogmática jurídica
e afirma a necessidade de uma teoria do direito que busque seus
fundamentos numa teoria da argumentação jurídica, pois só assim
seria possível transpor o caráter monológico do juiz Hércules. Ha-
bermas (1997) também aplica a reflexividade à teoria do direito,
para recompor a ideia de certeza da decisão jurídica:

Uma vez que o ideal absolutista não é mais plausível sob condi-
ções do pensamento pós-metafísico, a ideia reguladora da ‘única
decisão correta’ não pode ser explicitada com o auxílio de uma
teoria, por mais forte que ela seja. A própria teoria tem que ser
vista como uma ordem de argumentos por enquanto coerentes,
construída provisoriamente, a qual se vê exposta à crítica inin-
terrupta. (HABERNAS, 1997, p. 282)

Os limites e possibilidades da teoria do direito na contempo-


raneidade revelam-se pelos mesmos pontos pelos quais ela é carac-
terística da modernidade da sociedade moderna, ou seja, sua re-
flexividade. A teoria argumentativa tem na compreensão de seus
limites, na sua precariedade e seu caráter provisório exatamente
sua força, pois não se pretende totalizadora e nem tampouco idea-
lista. Desta forma, pode desenvolver uma teoria calcada no para-

31
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

digma do Estado Democrático de Direito tendo em perspectiva a


permanente inclusão no debate democrático. Também porque, ao
trabalhar com um processo decisório que se estabelece mediante
suas condições discursivas diante do caso concreto, possibilita a
densificação de princípios de uma sociedade aberta e em perma-
nente incerteza em relação ao futuro.
A teoria de Dworkin, pelo seu alto grau de complexidade e
sofisticação, possibilita o aprofundamento da reflexão em torno
da hermenêutica e o direito. Sua superação do pragmatismo e do
tradicionalismo deve ser lida em conformidade com o contexto
social, político e epistemológico que se vive nos dias de hoje, pois
não é possível falar em sociedade pós-tradicional e trabalhar o di-
reito em uma perspectiva conservadora, seja o conservadorismo
de direita, que gera perigos graves à democracia com seus fun-
damentalismos, seja ao conservadorismo de esquerda, que busca
a superação e o futuro com o aprisionamento de formas sociais
passadas. A abertura do paradigma vigente possibilita uma refle-
xão radicalmente democrática centrada nos direitos humanos,
sem que isto signifique um estado de perplexidade e consequente
imobilismo frente aos processos sociais como a globalização, ao
contrário, a teoria reflexiva do direito insere a democracia como
elemento fundamental das decisões jurídicas que, por sua vez, por
pertencerem a uma sociedade plural, admite o pluralismo como
categoria central do direito.
A ideia de pluralismo, por sua vez, permite que seja discutida
a inclusão no direito de atores que, no paradigma anterior, sobretu-
do fundado no positivismo jurídico, não podiam ser considerados.
Ao mesmo tempo, o pluralismo obriga a uma discussão do papel
do Estado como regulador, e os limites do Estado Nacional como
centro da elaboração jurídica. Também se afasta a ideia de que o
pluralismo se constitui como normatividade jurídica em oposição

32
Epistemologia e Pesquisa em Direito

ao direito estatal, pois a compreensão do direito passa obrigatoria-


mente pela interpretação constitucional de forma aberta e plural.
O objetivo desta parte do trabalho foi iniciar uma discussão
sobre limites e possibilidades de se pensar o Direito em um para-
digma complexo. Desta forma, buscou-se explicitar alguns con-
ceitos que permeiam a discussão das ciências sociais, bem como
da epistemologia. Ademais, foram trabalhadas críticas à teoria
liberal de Ronald Dworkin, bem como tentativas de superação de
algumas das falhas apontadas. Mas isto não significa a superação
do pensamento do autor norte-americano, ao contrário, sua obra
permite o aprofundamento da reflexão contemporânea sobre o di-
reito, nas palavras de Vera Karam de Chueiri (1997, p. 195): “Com
isto, pode-se dizer que o direito recupera sua dignidade científica,
política e ética no âmbito das humanidades, enquanto via para a
fundamentação de um projeto de justiça social”.
A modernidade da sociedade moderna aponta novos limites
e novas possibilidades para a teoria do direito, uma delas, creio
que a principal é o reconhecimento do direito como campo privi-
legiado para a radicalização da democracia. A autocompreensão
do paradigma do Estado Democrático de Direito fornece ao cons-
titucionalismo instrumentos importantes no processo de inclusão
permanente a que se propõe.

33
Ciência e Direito: entre a Igualdade,
a Segurança e o Controle

A relação entre Ciência e Direito já foi e continua sendo um


campo bastante fértil para a investigação acadêmica. De forma
simplificadora e didática, pode-se afirmar que há duas zonas prin-
cipais de pesquisa. Uma primeira compreende essas instituições
como práticas sociais, perguntando qual papel que a Ciência e que
o Direito cumprem, qual o fim social atendem no funcionamen-
to das sociedades modernas. Uma segunda, indaga se o Direito é
uma ciência; ou ainda, quais os pressupostos epistêmicos para a
produção do conhecimento jurídico-científico.
Jürgen Habermas (2003b), em seu Direito e Democracia, de-
senvolve um complexo estudo sobre o Estado Democrático de Di-
reito, suas pretensões normativas e seus desafios contemporâneos.
Defende o Direito como fator de integração social, médiun social,
que deve regulamentar e impor limites aos sistemas sociais como
a economia e a ciência. Trabalha com a relação entre Direito e
Ciência, interpretando-os como instituições sociais estabelecidas,
procurando entender seus intercâmbios. É um exemplo de pesqui-
sa desenvolvida dentro da primeira zona problemática.
Autores brasileiros como Roberto Lyra Filho (1985) e Lucia-
no Oliveira (2004, p. 137 e ss.) têm entre o objeto de suas preocu-
pações o questionamento a um saber jurídico construído sob bases
dogmáticas e manualescas. Empenham-se em desenvolver uma só-
lida argumentação teórica no sentido de dizer o que é a produção
de um conhecimento jurídico academicamente rigoroso. O foco
é compreender ou mesmo desconstruir – como faz Luís Alberto
Warat (1983), em seu A pureza do poder – qual é a condição de

35
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

validade do conhecimento jurídico-científico. Investigações que


podem ser consideradas como exemplos do segundo campo.
Essa breve subdivisão, que tem fins meramente didáticos,
serve para situar o problema deste ensaio. Seguir-se-á aqui um ter-
ceiro caminho, pouco percorrido mesmo pela teoria jurídica crí-
tica. Será realizado um estudo micropolítico da relação existente
entre o Direito e a Ciência.
As análises micropolíticas dedicam-se a compreender os
processos instituintes dos sistemas simbólicos e emocionais es-
tabelecidos. Assim, se os estudos macropolíticos assumem como
pressuposto as cristalizações simbólicas modernas (Estado, indiví-
duo, Direito) e desenvolvem suas formulações tomando-as como
construções dadas, a micropolítica empenha-se em entender como
se deu o processo de institucionalização dessas verdades. Está re-
lacionada à política subjetiva produtora do real (ROLNIK, 2011,
p. 36, 50, 58-61, 108).
Não se questionará se o Direito é ou não uma ciência, ou
quais são as condições para a produção de um conhecimento ju-
ridicamente rigoroso, ou ainda como se deve comportar o Direito
frente a Ciência enquanto práticas sociais. Será indagado como o
sistema de verdades produtor do Direito está intimamente entre-
laçado com o sistema de verdades produtor da Ciência. Ambas as
instituições são criadas e criadoras do universo moderno, possuin-
do uma relação de interdependência epistêmica não verticalizada.
Elas dependem-se, e é sobre essa pressuposição, sobre essa zona
problemática, que se desenvolverá este estudo.
Se há uma horizontalidade instituinte entre o Direito e a
Ciência, há o compartilhamento de simbolizações e emocionalida-
des. Diante dessa hipótese, o jurídico carece das verdades produ-

36
Epistemologia e Pesquisa em Direito

zidas pelo científico, bem como o científico daquelas geradas pelo


jurídico. Esta será a pista perseguida.
Procura-se, dessa forma, investigar em que sentido o Direito
e a Ciência compartilham um mesmo regime de verdades e cren-
ças, tendo como base dois eixos de discussão: 1) como as ideias
igualitárias impactaram os pressupostos epistêmicos sobre o sujeito
e sobre o saber válido a respeito do real; 2) como o jurídico e o
científico, ao desenvolverem-se com base na individualidade e em
uma noção de realidade como objetividade, necessitam-se, e colo-
cam como horizonte a segurança e o controle.
Para demonstrar a interdependência micropolítica aqui de-
fendida, em um primeiro momento, argumentará que o sistema de
direitos medieval, marcado pela desigualdade, favorecia um regi-
me próprio de produção da verdade, em que o acesso ao real era
hierarquizado. Um grupo social, as autoridades eclesiais, detinha
o privilégio de dizer o verdadeiro. Com a expansão das ideias igua-
litaristas, rompe-se a hierarquia jurídico-social entre as pessoas,
todos começaram a ser vistos como abstratamente iguais, o que
gerou implicações na própria concepção sobre a realidade. O real
transformou-se, saindo da ordem do intangível e acessível para al-
guns, sendo subjetivado como objetividade apreensível por todas
as pessoas, consideradas detentoras de uma mesma racionalidade.
A Ciência e o Direito moderno somente puderam desenvol-
ver-se em um contexto social em que indivíduos assumem-se como
iguais. A subjetivação moderna em torno da realidade privilegia
um modo de produção do saber, a Ciência. Da mesma forma, a
modificação na compreensão sobre o sujeito (do religioso ao con-
tratual de direitos) precisa de um modelo determinado de norma-
tividade, a do Direito soberano.

37
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Em um segundo momento, será defendido que o Direito e a


Ciência compartilham os mesmos mitos fundadores, estruturan-
do-se em um mesmo tipo de racionalidade e demandando uma
mesma forma de verdade. A individualidade é uma cristalização
simbólica e emocional instituinte da modernidade, gerando como
demanda no campo jurídico a necessidade crescente de segurança
e paz e no científico de maior transparência.
O Direito e a Ciência, como consequência, fundam-se e
reafirmam um tipo específico de racionalidade: linear, coerente,
regular, não contraditória, negando toda ambiguidade da discursi-
vidade, tornando o contrato, o eu, o outro e o real tão cristalinos
quanto possível. Não necessitam de qualquer tipo de saber, mas
sim de um conhecimento que, ao menos pretensamente, torne o
intangível visível, o obscuro transparente. Não demandam qual-
quer tipo de normatividade, mas aquela que garanta, ou que, pelo
menos, prometa, controle, segurança e paz.
Se a primeira parte demonstrará como o universo simbólico
moderno1 exige uma forma específica de normatividade e de pro-
dução do saber, constituindo uma rede indissociável de verdades;
a segunda explicará como essas instituições são interdependentes,
constituem-se e necessitam-se. A Ciência precisa de um determi-
nado Direito e vice-versa.
Ao fazer esta análise micropolítica sobre a interdependência
entre o Direito e a Ciência, procura-se evidenciar como as institui-
ções sociais modernas possuem implicações sutis entre si, fazendo
parte de uma mesma teia instituinte do atual universo simbólico.

1 Quando membros de uma determinada comunidade compartilham configurações


simbólicas consumidas como uma realidade objetivada, formando um todo coerente,
define-se aqui que estão imersos e são reprodutores de um “universo simbólico”
(BERGER; LUCKMANN, 1990, p. 132-134).

38
Epistemologia e Pesquisa em Direito

1 - (Des)igualdade e realidade: normatividade e


produção (as)simétrica do conhecimento
A interdependência epistêmica entre o Direito e a Ciência
é múltipla. Os processos sociais de produção do real ocorrem em
rede. Os símbolos não podem ser analisados sozinhos, eles adqui-
rem existência em meio a configurações simbólicas indutoras de
emocionalidades. A realidade é uma teia complexa e fluida de
sentidos, em que símbolos apoiam-se, influenciam-se e contradi-
zem-se constantemente. Entretanto, também há seus lugares de
certeza temporários. São as configurações simbólicas instituídas,
territorializadas, que permitem a estabilização do sistema do real2
(BERGER; LUCKMANN, 1990, p. 87, 173).
Falar sobre a inter-relação entre Direito e Ciência é adentrar
nessa teia de sentidos que se apoiam. É evidenciar um aspecto des-
sa rede, ao mesmo tempo em que se negligencia tantos outros, por
vezes fundamentais. Não há portas fáceis, mas escolhas analíticas
com seus ganhos e perdas. O exame de algumas verdades decor-
rentes do processo de individualização será o caminho de entrada
deste estudo. As verdades que irradiam e constituem o indivíduo
estão intimamente associadas ao fenômeno jurídico moderno. O
Direito moderno institui-se conjuntamente com a formação da

2 O que se define por realidade é uma configuração de símbolos interdependentes


que favorecem a circulação de determinadas emocionalidades. Há espaços
simbolicamente instituídos que permitem o agir diário e a certeza quotidiana.
Contudo, se, por um lado, pode-se falar em estabilidade de determinadas
configurações simbólicas, por outro, não há que se achar que são estáticas. A
produção do real é processual, perpassada permanentemente por resistência, pois ao
mesmo tempo em que se constituem sistemicamente, são historicamente instituídas.
Para aprofundar no conceito de realidade assumido por este texto, consultar Beger
e Luckmann (1990) e Gonzalez Rey (2003).

39
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

individualidade3. No mesmo sentido, como se defenderá aqui, o


processo de individualização também faz parte das configurações
que estabeleceram a Ciência.
A construção da individualidade é um processo simbólico e
emocional que envolveu o rearranjo de diversos regimes de verda-
des. A teia social moderna decorreu de profundas transformações
da sociedade medieval europeia, sendo o crescimento das ideias
igualitárias um importante fator de desestabilização das relações
humanas e políticas medievais. Um elemento de crise e transfor-
mação (BENDIX, 1996, p. 83).
Como se verá, se hoje há um sistema normativo e epistêmico
que têm como pressuposto e que reafirmam a igual individualida-
de, na Idade Média o sistema jurídico e o regime de produção de
saber fundam-se na desigualdade.
Existia uma ordem normativa que reafirmava um sistema
de desigualdades naturalizado entre as pessoas, simbolizado nos
estratos sociais. Ao mesmo tempo, dentro da ordem de produção
do saber, a enunciação sobre o real era reservada a um seleto gru-
po religioso detentor do conhecimento verdadeiro. Se não existia

3 “[...] o direito moderno é positivo, cogente e estruturado individualisticamente. Ele


resulta de normas produzidas por um legislador e sancionadas pelo Estado, tendo
como alvo a garantia de liberdades subjetivas.” (HABERMAS, 2003, p. 153).
Cabe destacar que diversas teorias críticas, como o Pluralismo Jurídico de Antônio
Carlos Wolkmer (1997), contrapõem-se ao conceito de Direito apresentado, o qual
é uma expressão do monismo jurídico por vincular o Direito ao Estado.
Não se nega as críticas teóricas realizas ao monismo jurídico, as quais, muitas, são
compartilhadas pelos autores deste texto. Entende-se que o sistema do real possui
fenômenos jurídicos que escapam à formulação habermasiana. Contudo, este
trabalho assume a relação Direito-Estado-indivíduo como sendo um processo social
de extrema relevância para a compreensão das sociedades modernas ocidentais,
tendo consequências, inclusive, para o desenvolvimento da Ciência, como se
defende aqui. Como já se enunciou, é uma rede simbólica instituída e instituinte da
modernidade, sendo ela e seus efeitos de verdade objeto de análise deste estudo.

40
Epistemologia e Pesquisa em Direito

a igualdade abstrata perante a lei, semelhantemente, nem todos


tinham a capacidade para acessar a intangibilidade do real. O uni-
verso simbólico medieval constituía-se por meio inúmeras dissime-
trias jurídicas e epistêmicas.
As relações jurídicas medievais não eram territoriais nem
igualitárias. Não existia a noção moderna de sujeito abstrato de
direitos a quem é assegurado iguais obrigações e garantias dentro
de um mesmo Estado. Ao contrário das sociedades modernas, não
havia uma legislação genérica que atingia todos que habitavam
um determinado território.
Em um mesmo espaço havia uma pluralidade de regimes jurí-
dicos vinculados tanto ao status da pessoa como ao grupo ao qual ela
pertencia. Não eram relações que se pautavam pela igualdade, mas
mediadas, pessoalizadas. Um Senhor que possuía maior prestígio,
influência ou poder diante do rei gozava de prerrogativas diferencia-
das em relação àqueles que possuíam menor prestígio. Como os di-
reitos e as obrigações dos camponeses eram uma extensão daqueles
exercidos pelo seu Senhor, os plebeus também não possuíam o mes-
mo regime de direitos entre si, estavam vinculados à jurisdição do
seu amo, assim como os artesãos à sua guilda ou cidade (BENDIX,
1996, p. 78). Um mesmo território era marcado por uma pluralidade
de jurisdições assimétricas, que dependiam tanto do grupo social
o qual a pessoa fazia parte, como da própria relação de prestígio e
poder que os membros de diferentes estratos mantinham entre si4.

4 Ao mesmo tempo, os direitos de uma pessoa não se limitavam a uma jurisdição


territorial. A lei era, antes de tudo, um privilégio de uma pessoa pertencente a
um grupo específico. Ela levava consigo sua “professio juris”, sua lei pessoal, que
deveria ser respeitada onde quer que fosse. Não em razão de um território ou restrito
aos seus limites, mas em razão do seu status pessoal (BENDIX, 1996, p. 74-75).
O nobre deveria ser tratado como tal onde é que estivesse, bem como o plebeu,
diferenciando-se dos Estados modernos que asseguram iguais direitos abstratos
dentro dos limites de suas fronteiras.

41
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

As desigualdades jurídicas e epistêmicas eram naturalizadas


por meio de um discurso sacralizado. O sujeito medieval era o re-
ligioso, compreendido como extensão de determinado estamento
social, em que sua vontade e seu dizer não eram livres, fruto de sua
autonomia, mas o prolongamento de uma ordem transcendental.
O Direito não era entendido como reflexo da vontade hu-
mana, mas como produto divino, submetendo todos à tradição
jurídico-religiosa instituída, desde o plebeu ao rei. A sociedade
era subjetivada como um corpo, com múltiplas partes, que de-
sempenhavam distintas funções, sendo que nem todos possuíam
a mesma dignidade. Os estamentos agrupavam pessoas com igual
dignidade, que somente encontravam suas personalidades dentro
do estrato os quais faziam parte5 (HESPANHA, 2005, p.104-114).
A ordem jurídica instituída era produto e estabilizadora des-
sas dissimetrias, que, por sua vez, também constituíam o sistema
de saber. O sujeito medieval era desigual diante do Direito e frente
ao conhecimento, pois apenas aqueles que faziam parte do grupo
social capaz de acessar o real eram habilitados a fazê-lo (ORLAN-
DI, 2010, p. 51; ROCHA, 2013. p. 72).
Não era somente a compreensão em torno do sujeito que era
diferente da atual, o próprio entendimento sobre o real e as ver-
dades produzidas em torno dele eram distintas das do universo
moderno. Na Idade Média subjetivava-se o jurídico e o epistêmico
com base na pressuposição da desigualdade entre as pessoas.

5 Existia uma ordem desigual, hierarquizada, mas que se compreendia como um


corpo interdependente. Dentro da multiplicidade de suas partes, cada uma se
via desempenhando uma função necessária à outra, sendo sujeito de direitos e
obrigações recíprocos. Assim, se o rei exercia sua autoridade sobre seus súditos,
também tinha a obrigação de protegê-los e cuidar do bem-estar deles (BENDIX,
1996, p. 70).

42
Epistemologia e Pesquisa em Direito

O real não era percebido como objetivo, ao contrário, estava


na ordem do divino, assumindo suas características. O perceptível
era visto apenas como uma imitação de uma ordem sobrenatural
e superior. A própria acepção sobre a realidade distinguia-se da
atual, bem como o conhecimento produzido em torno dela.
No universo simbólico medieval, a natureza não era apreen-
dida como tendo existência por si, as coisas não eram percebidas
como se esgotassem nelas mesmas, portanto, acessíveis a qualquer
um, permitindo uma explicação exaustiva de si mesmas. Não ti-
nha que se falar em objetividade, pois o natural não exauria o
real, ao contrário, era entendido como uma pálida expressão da
ordem cósmica (ELIAS, 1994, p. 83-84; GILSON, 1921, p. 28-29;
HAROCHE, 1992, p.64).
A matéria última do saber era tida como contraditória em
aparência, indizível, inefável, implícita, sendo regulada “por” e
“para” uma elite religiosa, que retirava sua autoridade do acesso
privilegiado ao sagrado e exercia seu poder em nome dele. Somen-
te essa elite era capaz de traduzir aos demais os incompreensíveis
desígnios divinos, fazendo ver o que era invisível para todos (HA-
ROCHE, 1992, p. 64-65).
Conforme expõe Elias (1994, p. 83-84):

As observações individuais eram de muito pouca serventia e a


reflexão individual só contribuía na medida em que se apresen-
tasse como uma interpretação de uma das fontes de revelação.
E as pessoas, por conseguinte, sentiam-se parte de um reino
espiritual invisível [...] aquilo que podia ser percebido pelos
sentidos adquiria significação a partir de algo que não podia
ser descoberto e confirmado pela reflexão individual nem pelas
observações individuais.

43
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Dizer o verdadeiro era um privilégio de determinado grupo


de pessoas, pois o acesso ao real era hierarquizado. A realidade
não era entendida como um fato objetivo, acessível igualmente a
todos, mas uma prerrogativa religiosa de alguns, enunciada como
dogma, portanto inquestionável (HAROCHE, 1992, p. 55-57).
No sistema de verdades que instituía o universo medieval
existia uma forte interdependência jurídica, política, epistêmica e
religiosa estabilizadora de um regime de desigualdades cristalizado
simbolicamente e emocionalmente.
É necessário um esclarecimento neste ponto. Vai-se ao passa-
do não como um exercício histórico que se pretende profundo. O
resgate desses breves traços históricos, filosóficos e subjetivos me-
dievais, que podem ser aprofundados, caso consultadas as fontes
citadas, serve para demonstrar diferenças e gerar estranhamentos.
As atuais naturalizações podem ser melhores denunciadas quan-
do confrontadas com aquelas de outras épocas. As cristalizações
modernas não são mais verdadeiras que a de outros universos sim-
bólicos, são somente formas distintas de subjetivação do real com
seus arbítrios instituintes e suas consequências políticas próprias6.
Se parece absurdo pensar em uma forma de subjetivação em
que o sujeito via-se como a extensão de uma ordem cósmica ou que
o real era apreendido como intangível e acessível exclusivamente

6 Nas palavras de Elias (1984, p. 84): “Agora que todas essas ideias são tidas por
aceites, talvez não seja muito simples nos colocarmos na situação das pessoas que
viveram na época em que tais experiências constituíram uma inovação, a qual,
pouco a pouco, e não sem uma poderosa resistência, infiltrou-se nos processos de
pensamento humanos. Mas recordar uma época em que aquilo que hoje é quase
evidente ainda tinha o brilho e o ineditismo do desconhecido confere relevo
mais nítido a algumas características de nossas concepções fundamentais de nós
mesmos e do mundo, concepções essas que, por sua familiaridade, normalmente
permanecem abaixo do limiar da consciência clara”.

44
Epistemologia e Pesquisa em Direito

por uma elite religiosa, cabe realçar que a modernidade também


é baseada em seus mitos, sendo a igual individualidade um deles.
Como explicou Foucault (1998), a discursividade possui sua
ordem, favorecendo a circulação de determinados discursos e proi-
bindo outros. Cada universo simbólico possui seu regime próprio
de verdades que permite a propagação de certas discursividades e
coíbe outras, o que não é exclusividade do sistema medieval e sua
negação do igualitarismo. A modernidade, como alertou o próprio
Foucault, possui seus interditos e seus instituídos.
Assim, não há que se falar que o tempo moderno aproximou-
-se mais da verdade que o medieval. Tal crença faz sentido para
homens e mulheres modernos produtos e produtores deste momento
social. Cabe indagar: não seria a igual individualidade uma ficção
na mesma proporção da desigualdade cosmológica? A modernidade,
bem como a Idade Média possuem suas enunciações e seus silêncios.
Em uma análise micropolítica parte-se do pressuposto de que
instituições são interdependentes. O universo moderno estabiliza-
-se apoiado em um sistema horizontal de verdades que se susten-
tam. Defende-se aqui que a igual individualidade é fundante da
modernidade. Tal premissa deve ser lida como uma zona de sen-
tido para compreender as instituições que são próprias do atual
universo simbólico e seus efeitos micropolíticos.
A individualidade não necessita de qualquer Direito ou de
qualquer forma de produção do conhecimento. O mesmo pode
ser dito seguindo o caminho inverso: a Ciência e o Direito moder-
no demandam e produzem não qualquer tipo de sujeito, mas um
específico, o individual. São instituições que se retroalimentam,
cristalizando-se, sendo que seus cúmulos são consumidos como
estereótipo. O universo moderno foi constituído sob a crença na
igual individualidade. O modo como se subjetivava as pessoas e a

45
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

realidade transformou-se. As mitologias modificaram-se. Passa-se


do sujeito religioso para o do contrato, de uma realidade tida como
intangível para outra concebida como objetiva e acessível a todos
(LAGAZZI, 1988, p. 19-21).
A normatividade moderna foi instituída com base na pressu-
posição da existência de indivíduos abstratamente iguais, autores
de uma vontade autônoma e responsáveis por ela, portanto sujei-
tos capazes de relações contratuais e de um pacto social criador
do Estado. Da mesma forma, no campo epistêmico os indivíduos
começaram ser subjetivados como possuidores de uma mesma ra-
cionalidade, detentores de igual capacidade de acessar o real, tido
como objetivo para todos. Não por outra razão, o Direito moderno
é o soberano e a forma legitimada de criação do saber é a Ciência
(LAGAZZI, 1988, p. 20).
No processo de instituição do universo moderno o regime de
verdades vai lentamente modificando-se, surgindo novas simboli-
zações e emocionalidades circulantes. O sujeito religioso medieval,
que se compreendia como a extensão de determinado estamento
social, estando sua personalidade, sua história e sua vontade as-
sociado ao grupo que fazia parte, vai sendo substituído por uma
nova forma social de subjetivação, nascendo o sujeito individual,
contratual e de direitos.
A institucionalização desse sujeito moderno envolveu a des-
conexão da personalidade, da vontade e da história das pessoas
– apreendidas, agora, gradativamente como autônomas – dos es-
tamentos medievais. O indivíduo começou a ser paulatinamente
subjetivado como realidade em si, autoevidente e dissociado do
outro, abrindo caminho para a dicotomia entre a internalidade do
eu e a externalidade do mundo, o que contribuirá para a modifica-
ção na concepção de realidade, que passou a ser entendida como
externa e objetiva (ELIAS, 1994, p. 35, 77, 81).

46
Epistemologia e Pesquisa em Direito

A crescente individualização significou a institucionalização


de uma nova forma de subjetivação em torno da pessoa. Houve a
transição de uma personalidade fortemente associada ao grupo, de
uma consciência dependente da autoridade religiosa, para outra
mais individual. O desfazimento das tramas medievais estamen-
tais levou à centralização da vontade, bem como o deslocamento
do centro das decisões para o eu. Na presente cosmologia, não
apenas se pode, como se deve ser mais autônomo. O Eu, entendido
como internalidade dissociada do Outro externo, torna-se sujeito
de suas decisões e responsável por elas. Desvincula-se de um des-
tino comum ao grupo, virando autor de uma trajetória singular,
o que transformou sua relação com o tempo. O futuro passou a
ser visto como algo aberto, sendo o indivíduo chamado a decidir
(ELIAS, 1984, p. 85, 102, 110).
A consciência como individualidade surge por meio da ilusão
de que se é a origem do que se pronuncia, identificando-se com
o que é dito, portanto, criador de um discurso próprio. O sujeito
passou a ser subjetivado como causa e responsabilizável por seus
atos e gestos. Apaga-se tudo aquilo que determina ou está para
além do eu, permitindo sua compreensão como fonte de uma dis-
cursividade e produtor de sentidos.
Por mais que a consciência individual possa parecer auto-
evidente, ela é um produto histórico tal qual a ausência de algo
semelhante no período medieval. Foi instituída, não sem resistên-
cia, em razão da reconfiguração das relações simbólicas e do sur-
gimento de uma nova experimentação emocional do eu diante do
outro (LAGAZZI, 1988, p. 20, 24-26; ORLANDI, 2010, p. 35, 36).
A expansão das ideias igualitárias gerou uma crise no sistema
jurídico e social medieval, destruindo as relações tradicionais. Pro-
cesso que está associado ao aumento do individualismo e à centra-
lização do poder, nivelando velhas diferenças e enfraquecendo a

47
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

pluralidade de jurisdições locais. A crise das relações tradicionais


envolveu a desestabilização da ideologia de direitos e obrigações
naturais e recíprocas pertencentes aos diferentes extratos sociais,
em favor de um sistema marcado pela igualdade abstrata garantida
por um poder central, o Estado moderno (BENDIX, 1996, p. 85,
87; WOLKMER, 1997, p. 46, 61).
Com o abalo da cosmovisão medieval, houve a modificação das
relações de lealdade pessoais naturalizadas para um sistema de obriga-
ções contratuais. Há a desresponsabilização progressiva dos senhores
sobre seus deveres de proteger e remunerar para uma responsabilidade
individualizada, em que os sujeitos devem assumir suas ações e gestos,
sendo considerados responsáveis exclusivos por seus destinos7. O sis-
tema de deveres recíprocos entre as múltiplas partes do corpo social
é desfeito em favor de uma igualdade abstrata em que a proteção e o
controle vão, cada vez mais, sendo transferidos para o Estado (BEN-
DIX, 1996, p. 94; ELIAS, 1994, p. 102).
Houve um amplo e lento processo de desfazimento de antigas
simbolizações cristalizadas e emocionalidades circulantes. O sistema
de direitos reconfigurou-se instituindo e sendo instituído por um sis-
tema normativo subjetivado com base no ideal contratual, tendo no
indivíduo uma de suas verdades fundantes, produto e produtora da
modernidade capitalista nascente (BENDIX, 1996, p. 88, 135, 138).
Com o desfazimento do sujeito religioso surgiu o sujeito con-
tratual de direitos, tido como autônomo: possuidor de uma vonta-
de e responsável por ela. Sujeito capaz de negociações econômicas
e sociais, podendo, inclusive, criar e controlar o seu futuro, não
mais concebido como predeterminado, mas sim como algo aberto.

7 “[…] a ênfase recai na suposição de que o rico não pode ajudar o pobre, mesmo
que o queira, e ainda de que as ordens inferiores devem depender de si mesmas.
A rejeição da responsabilidade da classe superior caminha de mãos dadas com a
pretensão de que o pobre deve ser autodependente” (BENDIZ, 1996, p. 94)

48
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Porvir que deve ser escrito por meio do exercício da liberdade,


mas garantido pela segurança oferecida pelo contrato, em razão da
desconfiança em relação ao outro.
A mudança do regime de verdades e a cristalização de um
novo universo simbólico transformou o processo de subjetivação
em torno do sujeito, ocorrendo o desfazimento da trama que cons-
tituía o sujeito religioso medieval e a institucionalização de uma
nova rede estabilizadora do sujeito individual e contratual de di-
reitos. Não à toa, o Direito moderno não é um direito qualquer,
existe um conjunto de simbolizações estabelecidas e de emociona-
lidades circulantes que privilegiam uma forma específica de nor-
matividade, a do Direito soberano. Esta é uma primeira conclusão.
Tais transformações, no mesmo sentido, possibilitaram a re-
configuração da ordem do saber, transformando o modo de enun-
ciar o real. Sujeitos iguais possuem igual capacidade de acessar a
realidade, subjetivada, agora, como objetiva. É nesse novo contex-
to jurídico-epistêmico que pôde surgir a ciência, ou seja, ela não
é um empreendimento humano atemporal, ao contrário, depende
de uma cadeia específica de verdades que lhe confere sustentação.
Esta é a segunda conclusão, melhor defendida abaixo.
Nesse contexto de transição epistêmica, novas instituições co-
meçaram a se cristalizar, produzidas e produtoras do igualitarismo.
Não há que se falar em hierarquia entre elas, mas em interdepen-
dência. Como vem se argumentando aqui, há uma teia de símbolos
que se apoiam permitindo a circulação de determinadas emocio-
nalidades, favorecendo a cristalização de um universo simbólico
específico. A expansão da igualdade permitiu o aparecimento da
verdade laicizada e a institucionalização da individualidade.
Uma vez que o sujeito começou a ser subjetivado como indiví-
duos iguais, capazes de compartilhar o real externo e acessível a to-

49
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

dos, a natureza passou a ser entendida como possuidora de existência


por ela mesma, possibilitando uma explicação exaustiva de si, caso
seja objeto de uma investigação metódica (DESCARTES, 2000). Ao
mesmo tempo, o próprio sujeito que observa também começou a ser
compreendido como realidade em si, individualizado, capaz de enun-
ciar verdades sobre o objeto investigado. Surge o “dentro” do “eu” e o
“fora”. Cria-se a dicotomia entre o sujeito e a natureza/objeto (ELIAS,
1994, p. 84, 90, 92-95, 162; 2011, p. 233-238).
Houve a transição do sujeito religioso para o sujeito do co-
nhecimento, ocorrendo o desfazimento da teia simbólica e emo-
cional instituinte do medievo* e a produção de uma nova rede
constitutiva da modernidade, processo fundamental para o aflora-
mento da Ciência (ELIAS, 1994, p. 82, 83; 2011, p. 230).
Com a expansão do igualitarismo e a formação da individua-
lidade, ocorreu o enfraquecimento da verdade religiosa e a subse-
quente valorização de outro tipo de verdade, a laicizada, pautada
na pressuposição da igual acessibilidade à realidade por indivíduos
tidos como identicamente racionais. Não há mais que se falar em
um grupo privilegiado de pessoas que podem ter acesso com ex-
clusividade a um conhecimento com características divinas. Uma
vez que todos começaram ser considerados igualmente racionais,
podem, por meio do exercício de suas faculdades, terem acesso ao
real, agora entendido como objetivo e acessível a qualquer um.
Nesse novo contexto epistêmico, a pluralidade de pontos de vista
tornou-se uma verdade fortemente instituída.
O sujeito marcado pela igualdade é capaz de extrair sentido
das coisas. Pode produzir conhecimento por si próprio, por meio
da investigação metódica, sem recorrer às autoridades eclesiais.
A institucionalização de um sistema hierarquizado de pro-
dução do saber, enunciado dogmaticamente, desvalorizava estru-
turalmente a multiplicidade de pontos de vista. Em um contexto

50
Epistemologia e Pesquisa em Direito

social em que apenas alguns possuíam a autoridade para dizer o


verdadeiro, a pluralidade de opiniões era, a princípio, um equívo-
co. Era uma possibilidade interditada pelo conjunto de instituições
fundantes do universo simbólico medieval; uma discursividade que
não era permitida circular. Não havia pontos de vista, mas sim o
conhecimento correto proferido dogmaticamente por aqueles que
podiam fazê-lo (FOUCAULT, 1998; HAROCHE, 1992, p. 55).
A criação da verdade laicizada possibilitou a pluralidade de
vozes e a contradição, pressuposições sem as quais não há Ciência,
mas grupos privilegiados que podem acessar o real com exclusividade.
Nesse sentido que se pode afirmar que o igualitarismo, essa constru-
ção jurídico-político-social, é instituinte da Ciência moderna.
É importante deixar claro para o leitor que a rejeição da plu-
ralidade de opiniões não é algo que se dava somente no campo
da vontade. Era mais profundo do que isso, existia um universo
simbólico cristalizado constituinte da racionalidade medieval, ins-
tituindo um regime próprio de produção da verdade. Não é que
não se queria admitir a capacidade de todos de ser sujeito do saber.
Dentro do sistema de desigualdades medieval, era inconcebível,
inapreensível, a igualdade entre as vozes.
Na modernidade, o discurso religioso perdeu o privilégio
sobre a enunciação do verdadeiro. Tornou-se uma opinião entre
tantas outras. O real transformou-se em algo que pode ser apro-
priado por qualquer um no uso de sua racionalidade. A laicização
da verdade permitiu a pluralidade de olhares sobre o real, tido
como objetivo, e a discordância em torno dele.
Se antes a autoridade religiosa detinha o privilégio sobre a
forma de conhecer, tornam-se necessárias novas instituições para
que, diante da conflituosidade de pontos de vistas contraditórios,
possa-se determinar a verdade sobre a realidade objetivada. Com

51
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

a transformação no modo de subjetivação do real, modifica-se não


apenas a forma de ter acesso a ele, mas, igualmente, o conjunto de
instituições que regulam as enunciações que deverão ser conside-
radas válidas, papel ocupado pela(s) Ciência(s).
É em um universo simbólico constituído com base na pressu-
posição de igual racionalidade, na capacidade de todos serem pro-
dutores de discursos verdadeiros, que se pode supor a pluralidade de
enunciações e a consequente conflituosidade entre elas. Assim, se
os antigos “guardiões das verdades” perderam seu lugar epistemica-
mente privilegiado, necessitou-se instituir novos “guardiões” sob ou-
tras bases, agora igualitárias, processo produtor das ciências. Se to-
dos são iguais, a quem competirá impor as verdades a serem aceitas?
No mesmo sentido, foi em razão do desfazimento das rela-
ções jurídicas assimétricas medievais e a constituição do sujeito
de direito – marcado pela igualdade abstrata, pela materialização
do eu em oposição ao outro, pela individualidade da vontade, pela
capacidade contratar e de responsabilizar-se pelo que foi contra-
tado – que surgiu uma forma específica de subjetivação, o direi-
to moderno e soberano. Uma vez que todos são iguais, torna-se
necessária uma nova instituição que detenha o poder de dizer e
impor a “ordem legítima”, o Estado.
Diante do que foi exposto, conclui-se que é com base no
desfazimento do universo medieval e na formação de uma nova
teia horizontal de verdades que surgiu a modernidade. Esta possui
instituições que lhe são próprias e atuam de forma interdependen-
te. Micropoliticamente pode-se afirmar: a teia subjetiva moderna
demanda e favorece não qualquer Direito senão o soberano, não
qualquer forma de validação do saber senão a científica.

52
Epistemologia e Pesquisa em Direito

2 – Direito, Ciência, racionalidade


e política soberana
Se há uma interdependência epistêmica entre Direito e a Ci-
ência, analisar a racionalidade jurídica pode ser um exercício elu-
cidativo para entender as pretensões científicas, bem como alguns
de seus propósitos políticos. Será defendido que ambos demandam
e fomentam uma mesma forma de racionalização: linear, regular,
não contraditória e desambiguizada. Simbiose constitutiva que
possui enormes implicações.
A análise micropolítica do modelo de razão compartilhado
entre o Direito e a Ciência será muito reveladora. Neste tópico,
será estudado como o jurídico e o científico compartilham uma
forma específica de racionalização, intimamente associada com a
pretensão de maior controle e segurança.
A racionalidade moderna é propagada como universal. Essa
afirmação que, a princípio, pode ser compreendida como simplista
e ultrapassada, ainda possui uma enorme força epistêmica e precisa
ser micropoliticamente desconstruída. Não há uma mesma razão
que opera em diferentes universos simbólicos, mas sim distintas
lógicas de compreensão do mundo, com seus propósitos políticos
específicos. Dessa forma, se na Idade Média a linguagem instituí-
da e, por consequência, a racionalidade eram fundamentalmente
metafóricas, buscando o intangível, na modernidade instituiu-se a
linearidade que procura, incessantemente, a transparência.
A seguinte citação de Nietzsche (1900, p. 94) pode deixar o
raciocínio um pouco menos abstrato e demonstrar a pertinência
da discussão:

[…] a longa história da origem da ‘responsabilidade’. Esta tarefa


de educar e disciplinar um animal que pode fazer promessas

53
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

tem como condição prévia, como já vimos, uma outra tarefa:


a de ‘tornar’, antes, o homem determinado e até certo ponto
uniforme, semelhante entre os semelhantes, regular e, conse-
quentemente, apreciável... 8

O processo de individualização moderno envolve a ruptura


com um modo de subjetivação que compreendia o sujeito, religio-
so, como extensão de um estamento, em que seu destino estava
associado à ordem a qual fazia parte. Igualmente, abrange a pro-
dução de uma nova forma de subjetividade, a de um sujeito que se
descobre livre do seu grupo e do outro, portanto, responsável por
seu próprio futuro. Na citação acima, Nietzsche problematiza essa
transição histórica questionando-se sobre as condições para que o
homem moderno possa fazer promessas.
A individualização é indissociável da constituição de um sujei-
to de direitos, capaz de estabelecer contratos, de assumir seus atos,
gestos, comportamentos e sua vontade. Ou seja, da formação de
um ser responsável, aquele que é apto a comprometer-se com suas
atitudes futuras. Contudo, nietzscheanamente pode-se perguntar: o
que é necessário para que o sujeito possa responder por si? Em ou-
tras palavras, quais são as condições históricas da responsabilização?
Comprometer-se consigo e com o futuro não é algo a-histórico.
É no universo simbólico moderno que se pode falar dos sujeitos do
contrato social (ROCHA, 2013). O processo de individualização
não envolve apenas a formação da dicotomia entre o eu e o outro,
mas, igualmente, a constituição da unidade do eu interno como
algo coerente, uno. O sujeito de direitos, contratual, deve ser capaz
de assumir e ver-se como responsável por suas ações, além de torna-

8 A despeito de terem sido utilizadas como obras de referência para citação a tradução
francesa (Nietzsche, 1900) e a tradução brasileira (Nietzsche, 2009), fez-se a opção
por transcrever, em razão da qualidade, a tradução contida na versão brasileira do
livro de Claudine Haroche (1992, p. 29).

54
Epistemologia e Pesquisa em Direito

-se objeto de atribuição e cobrança, pelo outro, de suas responsabili-


dades. O outro aqui é entendido como pessoas físicas, mas também
jurídicas, a exemplo do Estado (HAROCHE, 1992, p. 29-30).
Já é possível deixar mais claro o porquê da individualização
ser um processo indissociável da produção do sujeito de direitos.
Ela permite a formação de uma linearidade e coerência internas,
ao mesmo tempo em que torna a pessoa, física ou jurídica, fonte
identificável de ações, vontades e gestos. Por se reconhecer e por
poder ser atribuída como a origem de determinados comporta-
mentos, pode ser responsabilizada. O sujeito constitui-se como
sujeito de direitos ao individualizar-se.
Para fazer promessas, o indivíduo enuncia-se e é visto como
verdade linear, coerente. É preciso que o sujeito seja subjetivado
como regular, uniforme, mas também como previsível, mensurável.
Não basta que seja fonte de vontade e de ações, deve ser possível
atribuí-lo determinada conduta, torná-lo especificável. Transforma-
-se em autor livre de seu futuro ao responsabilizar-se e ser responsa-
bilizado por ele. Esse é um importante mecanismo de instituição e
captura do sujeito pelo poder soberano (ROCHA, 2013).
Como diz Nietzsche (1900, p. 94):

Para poder assim dispor do futuro, quanto não teve o homem


de aprender a separar o necessário do acidental, a penetrar a
causalidade, a saber dispor seus cálculos com certeza; e até que
ponto não teve o homem de começar, ele próprio, a tornar-se
‘apreciável’, ‘regular’, ‘necessário’ tanto para os outros como
para si mesmo e suas próprias representações, para poder enfim
responder por sua pessoa enquanto futuro, assim como faz aque-
le que se liga por uma promessa.9

9 Aqui se faz a mesma ressalva da nota anterior.

55
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

A regularidade do indivíduo decorre da negação da irregu-


laridade. Toda incoerência é colocada em segundo plano, como
algo secundário, que deve ser desconsiderado em razão de sua ir-
relevância, ou como algo que deve ser combatido, por contrariar o
projeto de verdade que o eu enuncia para si. Subjetiva-se de forma
individualizada ao atribuir-se e ao ser atribuído para si uma autoi-
magem, uma identidade, linear e coerente.
Entretanto, tornar sujeitos complexos, contraditórios, instá-
veis em indivíduos regulares e mensuráveis não é fácil. “O homem,
no Ocidente, tornou-se um animal confidente” (FOUCAULT,
1988, p. 68). Procura, incessantemente, dizer a verdade de si para
si e para os outros. “A obrigação da confissão nos é, agora, imposta
a partir de tantos pontos diferentes, já está tão profundamente
incorporada a nós que não a percebemos como efeito de um po-
der que nos coage” (FOUCAULT, 1988, p. 68). Foucault (1988, p.
68), então, conclui: “parece-nos, ao contrário, que a verdade, na
região mais secreta de nós próprios, não ‘demanda’ nada mais que
revelar-se”. A incoerência, a contradição passam a ser entendidas
como meros desvios de um projeto de sujeito necessariamente li-
near, responsável, dizível.
Foucault (2005), Norbert Elias (1994, 2011), Poulantzas
(2000), entre outros, analisaram com enorme profundidade diver-
sas técnicas de poder responsáveis por instituir a forma de sub-
jetivação moderna. Fizeram estudos densos sobre como o poder
disciplinar trabalha o detalhe de corpos, comportamentos, forjan-
do condutas regulares, previsíveis, calculáveis, homogeneizadoras
de indivíduos, tornando-os especificáveis e lineares. Com Elias
(1994, 2011) aprende-se que o processo civilizador é instituinte
de padrões psíquicos e emocionais em que as pessoas moldam-se
cada vez mais ao olhar alheio e são demandadas a terem mode-
los emocionais mais estáveis, autocontroláveis, ou seja, uniformes.

56
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Poulantzas (2000), por sua vez, demonstra como a disciplina e a


soberania não são poderes contraditórios, mas trabalham conjun-
tamente especificando, responsabilizando e permitindo a captura
do sujeito pelo poder10.
Faz-se essa breve consideração para evidenciar que são mui-
tos os caminhos que corroboram com a relação entre regulari-
dade, responsabilidade e a instituição do sujeito individualizado
de direitos. Na imperiosidade de delimitar, trabalhar-se-á, agora,
uma reflexão específica: a linearidade moderna envolve a busca
por uma linguagem e uma racionalidade que prima cada vez mais
pela certeza, pela transparência e pelo controle.
Até este ponto, estabeleceu-se a conexão entre dois concei-
tos: a individualização e o sujeito de direitos. O sistema jurídico
moderno, marcado pela lógica soberana, depende da individuali-
zação e vice-versa. Não por outra razão, falou-se do “sujeito indi-
vidual de direitos”. São duas verdades constitutivas da rede insti-
tuinte do atual universo simbólico (ROCHA, 2013).
O sujeito pode ser responsabilizado ao constituir-se a origem
determinável de vontade e ações que lhe geram compromissos
presentes e futuros. O sujeito de direitos torna-se autor de contra-
tos ao ter a capacidade de comprometer-se e ser demandado em
virtude deles. Nesse sentido, o Estado moderno e soberano de-
sempenha um papel permanente na especificação, bem como na
atribuição e na cobrança das responsabilidades (ROCHA, 2013).
É possível dizer que a lógica jurídica é marcada pela relação
entre o eu e o outro que se simbolizam como sujeitos contratu-
ais, qual seja, capazes de fazer compromissos e serem cobrados em
razão deles. O Estado é o grande Outro, o Soberano. Ao mesmo
tempo em que faz parte da relação com o eu, é subjetivado como

10 Para aprofundar nessas discussões, ler Rocha (2013).

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Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

o guardião dela, responsável por garanti-la. O ideal de proteção


e controle vai progressivamente transferindo-se para o Estado, o
que demanda maior individualização: especificação, regularidade,
transparência, mensuração. Ciclo que se retroalimenta (BENDIX,
1996, p. 94; ELIAS, 1994, p. 102).
Em um universo simbólico em que o futuro apresenta-se como
algo aberto e que o outro torna-se objeto de desconfiança, a dúvida e o
medo são emoções permanentemente estimuladas. A busca incessante
por maior transparência e controle é apresentada como remédio, mas é,
simultaneamente, uma das causas dessas emocionalizações.
Nesse sentido, segundo Haroche (1992) o projeto jurídico-
-político é indissociável do epistêmico: “tornar visível a interio-
ridade e o corpo por inteiro. Pelo viés da transparência, o poder
procura tornar o sujeito ‘sem defesa’, procura disciplinar e norma-
lizar sua subjetividade” (p. 21-22). A gramática e a linguagem, em
sintonia com esses objetivos, adquirem uma nova forma/função:
“é preciso fazer aparecer o ‘espírito’, a interioridade, o não visível,
pelas palavras: pela imposição da transparência, a exigência de clare-
za, o ideal de completude que se inscrevem diretamente na subjeti-
vidade” (HAROCHE, 1992, p. 21-22).
Se Vygotsky (2008) estava correto, pode-se dizer que há uma
íntima relação, mas não confusão, entre linguagem e pensamento.
Aquela oferece a cadeia simbólica lógica para o desenvolvimento
deste. Com o surgimento do sujeito de direitos, em contraposição
ao religioso, outras verdades, a exemplo da gramática e da lin-
guagem, assumem novas formas, reformulando, por conseguinte,
o pensamento. Há a tentativa incessante de produção de uma ra-
cionalidade cada vez mais linear.
Já no século XVII, os gramáticos franceses começaram a de-
senvolver a concepção de que a atividade da linguagem estava as-

58
Epistemologia e Pesquisa em Direito

sociada ao ideal de clareza e transparência, em que a ambiguidade


era compreendida como um grande problema. Há constantes bus-
cas por uma língua cada vez mais perfeita, mais cristalina, onde a
polissemia, o equívoco, o obscuro da expressão deveriam ser eli-
minados. Há o apelo por uma linguagem metálica, sem emoções
que torne o sujeito sem resistência, que, por meio do olhar sobre o
dito, pudesse enxergar todo pensamento do homem (HAROCHE,
1992, p. 27; LAGAZZI, 1988, p. 26).
A ambiguidade, a polissemia, o equívoco são lugares da falta;
espaços que o poder não alcança ou, ao menos, tem dificuldade de
atingir. Quanto mais transparente a linguagem, maior a possibili-
dade de minar resistências e tornar o sujeito translúcido ao poder,
qual seja, responsabilizável, controlável e previsível.
O sujeito de direito não é apenas demandado a confessar-se
incansavelmente, como expôs Foucault. Deve dizer-se incessan-
temente por meio de uma linguagem, portanto de uma raciona-
lidade, instituída que permita a captura pelo poder, isto é, que
prima pela regularidade, cadencialidade, uniformidade e nega a
possibilidade de obscuridade e contradição. Não é desejável que se
enuncie, que se pense, que aja de forma ambígua.
Estabelece-se a racionalização linear sobre si e sobre o outro,
em uma tentativa permanente de objetivação, de redução da po-
lissemia, de literalização do eu e do mundo. O Poder Soberano, o
poder disciplinar precisam e atuam na construção da literalida-
de do sujeito e do real, tornando-os identificáveis, aprisionáveis.
Tenta-se incessante a unificação de um significante a um signi-
ficado específico. “A literalidade é produto da história, ou seja,
é o resíduo do poder. O senso comum, que faz o mundo parecer
literal, quer que o sujeito seja transparente, assim como o sentido
institucionalizado” (LAGAZZI, 1988, p. 32).

59
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

A literalidade é um efeito e uma necessidade do Direito moder-


no soberano, mas igualmente, como se verá, da Ciência. Essa também
atua incansavelmente na diminuição das dúvidas, na eliminação da
ambiguidade, na formulação de certezas, mesmo que probabilísticas.
Contudo, como ensina os estudos sobre a linguagem, não
existe literalidade, mas sim sentidos dominantes. Fazer o sujeito
dizer-se de forma exata é exigir que ele fixe-se em uma objetivida-
de, negando toda a ambiguidade que o constitui. A literalização
do mundo, do eu, da razão é mais uma estratégia para a institucio-
nalização do sujeito individual de direitos e mais um fio que com-
põe a teia de verdades estabilizadora do universo simbólico atual.
A busca pelo sentido único, indubitável da lei, do eu, do mundo é
uma estratégia de controle (WARAT, 1994, p. 19-29).
A valorização da linearidade é sempre a desvalorização da
descontinuidade, bem como o enaltecimento da regularidade põe
em segundo plano toda irregularidade. A literalidade somente é al-
cançada com o apagamento da ambiguidade. Somente se consegue
atribuir um sentido único ao significante ao apagar sua polissemia.
A criação da exatidão sobre o sujeito e sobre a realidade gera a in-
tensificação da falsa dicotomia entre a objetividade e a subjetivida-
de, sendo esta apreendida no plano do inefável, do particularizado,
portanto secundarizada. Na busca pelo visível, sempre resta o in-
visível; na procura do poder pela totalidade do sujeito, sempre há
a incompletude; na reivindicação da certeza total, sempre sobrará
a insegurança; ao tentar atingir o controle pleno, o descontrole se
evidenciará. Ao lado do poder, sempre há a resistência.
Com base nessas conclusões prévias, pode-se evidenciar algumas
verdades que constituem o sujeito individual de direitos, criando as
condições para demonstrar como o jurídico e o científico estão poli-
ticamente entrelaçados na busca por maior controle, segurança e paz.

60
Epistemologia e Pesquisa em Direito

2.1 – Interdependências entre


o Direito soberano e a Ciência
A individualização é um processo que possibilita a criação e
o desenvolvimento do jurídico e do científico. Contribui para uma
forma específica de subjetivação do real em que as pretensões epis-
têmicas associam-se à dúvida e em que, paralelamente, a moralida-
de reafirma a desconfiança e o medo do outro. São duas faces de
uma mesma moeda. Não à toa, é um dos pressupostos epistêmicos do
cartesianismo, mas também da filosofia política hobbesiana, dois dos
grandes teóricos que criaram importantes campos de inteligibilidade
para que os modernos se interpretassem e, assim, se constituíssem.
A dúvida radical cartesiana encontrou na individualida-
de o seu porto seguro epistêmico11. No mesmo sentido, a teoria
político-jurídica moderna inaugurou seu campo problemático sob
as mesmas bases: a pressuposição da igualdade abstrata diante da
lei; o desfazimento das relações desiguais e das obrigações recípro-
cas medievais; e a relação direta, não mediada, estabelecida entre
indivíduos e o Estado. Se, por um lado, questionava-se a quem
competiria impor as verdades diante da igualdade de todos, por

11 Descartes (2000, p. 61, 62) impôs-se o seguinte desafio: “[…] por desejar então
dedicar-me apenas à pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao
contrário, e rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor
a menor dúvida”. O limite da desconstrução foi a própria ideia de consciência e
a individualidade “[…] percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que
tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao
notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo [...]”. A
individualidade do eu é inquestionável, é estereotipada, pois é consumida como algo
natural. O pensador isolado compreendeu-se como a única realidade indubitável.
A dúvida radical cartesiana pôde seguir em frente tendo como base a certeza na
existência do indivíduo, realidade em si, independente da teia de relações sociais
que o constitui (ELIAS, 1994, p. 162; ROCHA, 2013, p. 73)

61
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

outro, indagava-se, se todos são igualmente racionais, quem seria


o sujeito legítimo para governar12 (FOUCAULT, 1999, p. 49 e ss.;
STRAUSS, 2006, p. 90, 214, 213).
A laicização da verdade proporcionou a pluralidade discur-
siva e a contradição, ao mesmo tempo, em que conduziu à dúvida
radical. Uma vez que todos podem igualmente dizer o verdadeiro,
qual enunciação estaria correta? No paradigma filosófico da lin-
guagem, pode-se indagar: se a ninguém é conferida a possibilidade
de alcançar o signo original, qual o limite para a interpretação?13
Entretanto, a dúvida radical não significou o desfazimento
de todas as certezas. O universo simbólico moderno inaugurou um
regime de verdades em que seu campo problemático somente pôde
instituir-se com base em silenciamentos próprios.
O que não se pode ignorar, é que a dúvida radical cartesiana
tem no medo compulsivo hobbesiano seu equivalente moral. Em
um universo simbólico emergente, em que o indivíduo é entendido
como a única certeza, suspeita-se das intenções, das ações e das
vontades alheias. A dúvida radical, a desconfiança permanente é
uma condição epistêmica, mas também político-jurídica (HOB-
BES, 2006, p. 98; STRAUSS, 2006, p. 90-91).

12 Como aponta Foucault (1999), a soberania é, antes de tudo, um problema que nasce
decorrente da crença na igualdade entre os indivíduos.
13 Como expôs Foucault (1999, p. 458 e ss.), no paradigma da linguagem descobre-se
que os sentidos não tem uma origem, não é possível alcançar o signo original, o grau
zero, ponto sólido que independe de contestação. Tal pressuposição somente pode
se desenvolver em um contexto histórico-social em que a verdade é laicizada. É a
recusa do divino que permite rejeitar o sentido original. Esse não deixa de ser um
ponto de inflexão, um mito fundante moderno.

62
Epistemologia e Pesquisa em Direito

A inter-relação entre dúvida e medo é reveladora. O fato de


Hobbes ter aprendido com a teoria cartesiana não é algo menor14.
O diálogo entre os pais fundadores da ciência política e do pen-
samento epistemológico modernos ajuda a evidenciar que ambos
formularam suas teorias compartilhando uma mesma teia de ver-
dades. Duvida-se obstinadamente, na mesma medida em que se
sente compulsivamente medo15.
O compartilhamento das mesmas bases fundantes gera, como
consequência, uma proximidade nas pretensões políticas entre o Di-
reito e a Ciência. A resposta para a dúvida radical é a perseguição
obstinada pela certeza. A solução para o medo compulsivo é o esta-
belecimento de um horizonte em que predomina a paz e o controle16.
A modernidade institui-se cristalizando a igualdade como
verdade, encontrando na individualização uma de suas expres-
sões. Na sociedade dos indivíduos, o “eu”, realidade em si, é uma
verdade estereotipada, naturalizada. São entendidos como sujeitos
do conhecimento, mas também possuidores de uma vontade autô-
noma, originada no próprio eu, podendo ser responsabilizados por
suas ações e gestos.

14 Para aprofundar na relação entre o pensamento cartesiano e hobbesiano, consultar


Leo Strauss (2006, p. 90-91).
15 A relação que Bauman (2008, p. 7) estabelece entre medo e incerteza é ilustrativa.
O medo “[...] é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça
e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou
enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance.”
16 Hobbes expressa muito bem os pressupostos do atual universo simbólico. A
segurança é o fim político, jurídico e epistêmico último de uma sociedade moderno
burguesa nascente, que despreza a “virtude heroica” aristocrática e reafirma a
prudência, o (auto)controle, a paz entre indivíduos abstratos e iguais, tomados
misticamente como certezas inquestionáveis (ELIAS, 2011; BAUMAN, 2008, p.
48; STRAUSS, 2006, p. 160-163).

63
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Se há o desfazimento de laços sociais de reciprocidade me-


dieval e a criação da individualidade abstrata, pautada na descon-
fiança e no temor, concomitantemente, emerge o sujeito de direito
que deve ser previsível, linear, capaz de responsabilizar-se indivi-
dualmente enquanto futuro. A incerteza e a desconfiança em rela-
ção ao outro, demanda um sujeito regular, não contraditório, que
possa ser a origem de uma vontade coerente, responsabilizado por
ela e, portanto, autor de um contrato.
O desfazimento do sujeito religioso medieval proporcionou o
surgimento do sujeito que duvida e tem medo, que conhece e que
porta direitos. São simbolizações que se apoiam, reafirmam-se. As
demandas jurídicas de segurança e paz estão intimamente relaciona-
das com as pretensões científicas de verdade que deve gerar certeza.
O sujeito que duvida e teme, tem a si como o seu porto se-
guro. Torna-se a origem de um eu que conhece, bem como um
sujeito autor de uma vontade. Demanda não qualquer tipo de ra-
cionalidade, mas uma instituída e instituinte de indivíduos que se
compreendem como iguais e que se relacionam como comunidade
política com base no medo, buscando a segurança no contrato.
A dúvida latente exige um saber-poder que promova a trans-
parência do corpo e da mente do outro. A dicotomia eu-outro gera
uma forma de subjetivação fomentadora da desconfiança. Cria-se a
necessidade de banir a ambiguidade da discursividade, das relações
e do contrato, transformando o outro, tanto quanto possível, em
algo transparente, sem defesa e controlável. Trata-se de aumentar a
visibilidade ao máximo dos comportamentos, dos corpos, das ideias,
dos gestos alheios, tornando os riscos, a princípio, difusos, incon-
troláveis, imprevisíveis em algo estatístico, probabilístico, aceitável,
produzindo segurança17 (HAROCHE, 1992, p.19-30).

17 Diante do medo compulsivo, o Estado soberano, pessoa desigual entre indivíduos


iguais, aquele que nada teme, é apresentado como uma resposta. Se a pista

64
Epistemologia e Pesquisa em Direito

A vinculação entre dúvida e medo, ensina muito sobre a cone-


xão institucional entre Direito e Ciência. A insegurança não está no
passado, no que foi vivido, mas naquilo que não se sabe, no que está
por vir. O Estado moderno, bem como o Direito não miram o passa-
do, mas a produção do presente e, em especial, a tentativa de cons-
truir um futuro controlado, em que os riscos deixem de ser difusos,
incertos, imprevisíveis, incomensuráveis, tornando-se mensuráveis,
limitados e aceitáveis (STRAUSS, 2006, p. 103; ROCHA, 2013).
As pretensões institucionais de controle e paz do Direito são
indissociáveis da Ciência moderna, mas também constitutivas
dela, meio instituído e legitimado para produção da verdade (lai-
cizada) em uma sociedade em que indivíduos se veem como iguais.
Nesse sentido, há uma íntima interdependência entre o Direito,
política e a Ciência, mais profunda do que se costuma imaginar18.

hobbesiana estiver correta, a individualidade, a desconfiança e o temor em relação


ao outro, portanto o desfazimento dos laços de solidariedade e confiança, estão
entre os elementos instituintes do Estado. Ele surge do medo, para afastar o medo
cada vez mais líquido e compulsivo, utilizando como principal tática para isso o
próprio medo. O Estado é esperança de segurança, na mesma medida em que é
peça chave promotora do temor, contínua e progressivamente (HOBBES, 2006;
GINZBURG, 2008;. STRAUSS, 2006, p. 103, 214, 213).
18 Em sociedades modernas laicizadas o Direito não apenas regula a Ciência e tenta
impor-lhe limites, mas também eleva-a a uma condição privilegiada diante de outras
formas de conhecer o mundo. Da mesma forma, o Estado utiliza-se dela e a promove
por meio de vultosos recursos financeiros.
Institucionalmente, há o apoio financeiro, político, bem como a tentativa de
regulamentação jurídica e de direcionamento da Ciência pelo Estado. Ela é privilegiada
como saber especial e superior diante de outras formas de compreender e explicar o
mundo, a exemplo dos conhecimentos tradicionais. Concomitantemente, ele utiliza-
se dela como fonte de verdades (FOUCUALT, 2010, p. 288; ROCHA, 2013, p. 106).
O privilégio da Ciência em relação a outras formas de conhecimento não deve
concebido simplesmente como se ela oferecesse os melhores argumentos, os
melhores resultados, ou mesmo, como se fosse sempre mais eficiente. Isso nem
sempre prova ser verdadeiro. A expansão da Ciência é indissociável do avanço do

65
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

A Ciência, instituição moderna que detém o poder de dizer


a verdade, é utilizada como fonte de certeza e segurança. Produz
verdades que podem visibilizar riscos, controlar incertezas, atu-
ando para a construção de um campo de ação político-jurídico
mensurável, portanto controlável e seguro, permitindo o exercício
mais eficiente do Direito e da Política19 (FOUCUALT, 2010, p.
288; ROCHA, 2013, p. 106).
Não é apenas o Direito soberano que precisa, busca e produz
a literalização do sujeito, do outro e do mundo. A ciência moder-
na nasce com base nesse pressuposto e, em grande medida, atua
seguindo esse ideal: explicar incessantemente o mundo, diminuir
dúvidas, eliminar contradições e gerar certezas probabilísticas.
Compreende-se a recursividade entre o normativo e o epistêmico.
O Direito exigirá um discurso linear, coerente, regular, não
contraditório, rejeitando qualquer ambiguidade. Ou seja, deman-
da um tipo específico de racionalidade. A verdade determinada
pelo Direito deve ser não contraditória, objetiva, sendo alcançada
ao aumentar, tanto quanto possível, a transparência sobre o incer-

universo simbólico moderno e do poder econômico, político e militar produzido por


suas instituições, a exemplo do Estado (FEYERABEND, 2010, p. 110, 353).
Como foi dito, a Ciência somente pode ser desenvolvida dentro da cosmovisão
moderna, que é tão precária quanto qualquer outra concepção e tentativa de
explicação do real.
Para aprofundar na crítica dada ao conhecimento científico diante de outras formas
de saber, ler Feyerabend (2007, 2010).
19 No entanto, há um paradoxo que marca a pretensão moderna de segurança, pois
quanto maior a necessidade de estabilizar o futuro, maior a possibilidade de algo sair
imprevisível, maiores são as probabilidades e as evidências dos riscos. Quanto maior o
empenho em livrar de todas as ameaças, mais elas aparecem, mais os perigos se realçam
e o medo se liquidifica (BAUMAN, 2008; BECK, 1997, p. 17; GIDDENS, 1997, p. 76).
Na busca compulsiva por certeza, o que se encontra é uma quantidade cada vez
maior de riscos; na busca permanente por um futuro previsível e controlável, o que
se evidencia são os medos, cada vez mais fluidos. As respostas aos temores modernos
também são a origem deles.

66
Epistemologia e Pesquisa em Direito

to, permitindo (ou, ao menos, almejando) maior previsibilidade e


controle sobre o presente e sobre o futuro.
A teia de verdades constitutivas do universo simbólico mo-
derno instituiu um modo de subjetivação que privilegia uma forma
determinada de Direito, o moderno-soberano, e de produção do
saber, o científico. Ambos atendendo pretensões macro e micro-
políticas específicas: maior controle, paz e segurança.
Na sociedade dos indivíduos, que se simbolizam como contra-
tantes, a dúvida, o temor ao outro é a regra, exigindo uma forma es-
pecífica de conhecimento que produza verdades que afastem qualquer
tipo de incerteza, em uma busca incessante para tornar o invisível
visível, o mundo transparente e o outro sujeito confiável e responsa-
bilizável, inter-relação instituinte do Direito e da Ciência modernos.

3 – Análise micropolítica entre o Direito e a


Ciência: um projeto aberto
Há implicações mais profundas entre o Direito e a Ciência
do que costuma ser evidenciado. As instituições modernas surgem
com base em um conjunto de verdades próprias, sendo profunda-
mente interdependentes.
O pensamento científico somente pôde nascer em um para-
digma social que tem como pressuposto jurídico-político a igual-
dade entre os indivíduos. Sujeitos que possuem o mesmo acesso a
um real que se coloca objetivamente para todos, nascendo a cren-
ça de que ele pode ser revelado com base em procedimentos e
métodos apropriados por qualquer um.
Em um mundo em que todos são iguais, os “mestres da verdade”
não são os sacerdotes. O acesso ao real não se dá por meio de uma

67
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

condição místico-religiosa própria de algumas pessoas ou de deter-


minado grupo social. O mito transformou-se. Todos começaram a
ser compreendidos como sujeitos do conhecimento, enunciadores e
produtores de saber sobre o real. Diante deste contexto social, foi que
surgiu uma instituição produtora e normalizadora das verdades so-
cialmente aceitas, a Ciência. Com base nesse raciocínio que se pôde
chegar a uma primeira conclusão: sem igualdade não há Ciência.
O texto avançou em uma segunda interdependência. Há de-
terminada racionalidade, linear, regular, que busca o controle e a
segurança por meio da visibilização das coisas e das pessoas, que
é constitutiva e constituída pelo Direito e pela Ciência. Ou seja,
a inter-relação entre essas instituições sociais está em um nível
mais profundo e sutil do que se pode imaginar em um primeiro
momento, ambas compartilham e são produtoras de um mesmo
sistema de racionalidade.
Outras relações são possíveis para além das exploradas por
este texto, a exemplo, daquelas exploradas por Feyerabend (2007,
2010) e que aqui foram objeto de nota. Com base em uma compre-
ensão complexa do real, pode-se afirmar provocativamente que a
Ciência é um pouco Direito e que o Direito é um pouco Ciência,
pois ambos compartilham o mesmo regime de verdades, em uma
interdependência epistêmica instituinte.

68
Ciência, Comunicação, Relações de
Poder e Pluralismo Epistêmico20

Este artigo trabalhará a relação existente entre ciência e rela-


ções de poder. O científico é uma forma específica de comunicar-se
no e sobre o mundo, sendo indissociável do contexto político, social
e simbólico que permite sua formação. É uma linguagem entre ou-
tras, replicada por uma comunidade de falantes que enuncia “bons
argumentos” a partir de posições assimétricas. Ao mesmo tempo, o
privilégio que é dado à ciência sobre outras formas de estar e conhe-
cer o mundo encobre os fracassos e as fragilidades dela, sem dizer
que nega o pluralismo epistêmico que tem muito a ensinar.
Na primeira parte utilizará as ideias de Thomas Kuhn para
aprofunda as reflexões sobre as relações entre ciência e poder. Esse
autor enuncia uma concepção paradigmática da ciência normal,
defendendo que ela desenvolve-se quando uma determinada comu-
nidade (grupo de iniciados) compartilha um paradigma (conceitos
comuns, crenças e pressupostos que oferecem soluções modulares).
As ideias de Kuhn trazem duas definições indissociáveis e
que atuam de forma recursiva: o paradigma e a comunidade. O
artigo, utilizando-se dessa pista, recorre às contribuições da se-
miologia do poder e da análise do discurso realizadas por autores
como Barthes, Warat e Orlandi para afirmar que o paradigma é
uma linguagem compartilhada por um grupo de falantes.

20 Parte deste artigo já foi publicada e melhor desenvolvida em: ROCHA, E. G. Sujeito
de direito e subjetividade: reflexões críticas sobre o constitucionalismo democrático.
Rio de Janeiro: LumemJuris, 2014.

69
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

A semiologia dirá que toda linguagem é uma entre outras


formas de simbolização do mundo, com suas seleções e exclusões,
o que permite a compreensão, mas que também gera suas invisi-
bilidades. Não há linguagens melhores, piores ou universalizáveis,
elas são indissociáveis de um tempo social, o qual possibilita que
elas existam e que se beneficia delas. A ciência é uma forma de
saber que nasce e privilegia o ser e o conhecer modernos em de-
trimento de outras formas de apreender e realizar-se no mundo.
Se o paradigma é indissociável da cosmovisão de mundo
que o institui, a comunidade que o compartilha somente pode
replicá-lo com base no lugar de fala que ocupa. A ciência não se
desenvolve por meio de cientistas que enunciam bons argumentos
e provas racionais despidos de poder. Ao contrário, toda comuni-
cação está intimamente associada ao lugar de fala do enunciador,
isso determinará se o que é dito deverá ser levado em considera-
ção ou não, bem como o nível de credibilidade e repercussão de
um “bom” argumento. Discursos são indissociáveis de relações de
poder. Dissimetrias sociais encontradas em outros espaços sociais
como o sexismo, o racismo, as desigualdades de classe possuem
repercussão e são constitutivas do científico. Com isso se conclui:
se o paradigma não é uma estrutura neutra ou que permite um
conhecimento universalmente comensurável, sua própria forma
de replicação também é indissociável do contexto social que faz
parte.
Na segunda parte fará um questionamento à pretensão hie-
rárquica da ciência sobre outras formas de saber e estar no mundo.
Não se negará os avanços e a própria importância da ciência mo-
derna para a vida contemporânea. As contribuições médicas, físi-
cas geraram enormes ganhos. Contudo, fazem-se duas perguntas:
por que os seus fracassos e suas inconsistências são minimizados?

70
Epistemologia e Pesquisa em Direito

O que se perde ao desconsiderar o que outras formas de ser e co-


nhecer o mundo podem ensinar?
Em um mundo em que a crise ambiental e a crise nas relações
humanas são cada vez mais evidentes e insustentáveis, o pluralis-
mo epistêmico, ir ao encontro de uma ecologia de saberes, poderá
auxiliar na busca por alternativas politicamente invisibilizadas.
Em última medida, questionar o privilégio da ciência significa am-
pliar escutas e tornar mais plural e democrática a sociedade.

1 – Semiologia, ciência e relações de poder


Kuhn (2011, p. 312-313) pode ensinar muito sobre a relação
entre ciência e relações de poder. Para ele a definição de “paradig-
ma” é indissociável da categoria comunidade21. “Um paradigma é
aquilo que membros de uma comunidade científica, e apenas eles,
compartilham. Reciprocamente, é a posse de um paradigma em
comum que institui a comunidade científica a partir de um grupo
de pessoas com outras disparidades”.

21 Definir paradigma para Kuhn não é uma tarefa fácil. A par da multiplicidade
de acepções e das amplas divergências suscitadas, o próprio autor constata a
existência de 22 sentidos, faz-se menção a uma concepção principal: os compromissos
compartilhados por uma comunidade científica. Assim, pode-se afirmar que o conceito
de “comunidade científica” e “padrões aceitos”, que permitem “soluções modelares”,
são-lhe as características centrais (KUHN, 2006, p. 13, 30, 43, 222; 2011, p. 312, 313).
Um paradigma governa primeiramente um grupo de pesquisadores que compartilha
um conjunto de crenças comuns, o que lhes permite pensar o objeto e as soluções
para os problemas apresentados. Possibilita a construção de preocupações comuns,
além de constituir uma determinada forma de raciocinar. Antigas inquietações
podem manter-se vivas, porém revistas, compreendidas fundamentado no novo
paradigma. Pressupõe a reconstrução de teorias anteriores e revalidação de fatos
precedentes (KUHN, 2006, p. 26, 147, 226).

71
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Uma comunidade científica constitui-se como tal ao com-


partilhar um paradigma, ao mesmo tempo, um paradigma somen-
te pode existir caso seja compartilhado por uma comunidade.
Kuhn (2006, p. 13, 30, 43, 222; 2011, p. 312, 313) explica muito
bem as consequências da inter-relação entre paradigma e comuni-
dade, pois, ao compartilhar crenças, compromissos comuns, é possí-
vel produzir um campo de inteligibilidade específico, comensurável
obtendo soluções modelares. Porém, para além desses resultados,
como alerta o próprio autor (2006, p. 250), a escolha de um pa-
radigma é a opção por uma linguagem, por uma forma específica
de ver, compreender e dizer o mundo. Como consequência, não há
uma linguagem neutra que perpasse a pluralidade de comunidades
científicas e permitam que desenvolvam um conhecimento univer-
salmente comensurável. Todo paradigma é uma linguagem entre
outras, é uma forma determinada de conceber o mundo.
Se um paradigma constitui uma comunidade científica, o
próprio conceito de comunidade não é de menor relevância. A
ciência somente pode ser reproduzida por uma comunidade, ou
seja, cada cientista torna-se ator da reprodução do conhecimento
ao ocupar um lugar de fala próprio, qual seja, um status específico
dentro do seu grupo que conferirá a ele maior ou menor credibili-
dade e repercussão ao que diz.
Como ensina a semiologia (BARTHES, 2006, p. 17 e ss.,
SAUSSURE, 1999, p. 27), são dois os elementos da linguagem: a
língua, parte social, elementos compartilhados, as estruturas que
permitem o jogo; e a fala, rearranjo constante por parte dos habili-
tados no jogo proporcionado pela língua. Ambas as dimensões são
indissociáveis e possibilitam-se mutuamente22.

22 A língua e a fala serão trabalhadas aqui para fins analíticos dissociadamente, mas são duas
dimensões estritamente ligadas e constitutivas da linguagem (SAUSSURE, 1999, p. 27).

72
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Estabelecer o paralelo entre língua e paradigma, bem como


entre fala e comunidade pode contribuir para entender melhor a
dinâmica de poder instituída pela ciência.
A língua e a fala são lugares de poder. A conceitualização
permite a linguagem, mas também é campo da dominação, pois
toda classificação é uma seleção, um corte que exclui outras pos-
sibilidades de expressão. Pressupõe um jogo arbitrário de poder
que antecede a comunicação em que o sujeito falante está inevita-
velmente imerso. Cada conceito científico não é apreensão linear
da realidade, mas um corte arbitrário que evidencia determinados
aspectos e encobre outros (BARTHES, 1975, p. 49; 2007, p. 12).
A língua é local de possibilidades, de criação, mas também
obriga a fazer, por exemplo, a escolha necessária entre o mascu-
lino e o feminino, entre sujeito e objeto, entre eu e tu, em outras
palavras, induz os participantes a jogar o seu jogo como o único
possível. Há o fechamento em si e a rejeição de outras linguagens,
outras estruturas, outros desejos, outros projetos de poder e de re-
alidade (BARTHES, 2007, p. 27).
Ao comunicar-se em determinada língua já se está imerso em
uma estrutura de poder pré-programada, em determinado sistema de
coerção e escolhas postas que serão assumidas e realizadas simplesmen-
te por ser participante do jogo (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 55, 56).
Não se tem uma visão maniqueísta desses fenômenos de po-
der que perpassam a linguagem, não se pretende simplificar a dis-
cussão em termos de bom ou mau. Quer-se enfatizar que todas as
linguagens são fenômenos de poder e é exatamente isso que lhes
permite constituir-se como estruturas comunicativas (BARTHES,
2007, p. 12). Por outro lado, assumir isso não exclui que se pos-
sam identificar alguns efeitos perversos presentes nelas e, assim,
denunciá-los; por exemplo, o machismo em seus signos, ou no caso

73
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

em questão, a pretensão de superioridade da modernidade sobre


outros discursos (WARAT, 2003, p. 7).
A língua é jogo de poder que confere suporte para o desenvolvi-
mento da fala, mas essa também não se desenvolve de forma neutra.
As falas, os discursos, nunca são impermeáveis ao poder, sempre estão
inseridos em um conjunto de sutilezas retóricas, em lugares de fala
privilegiados, e é isso que determinará a existência e o sucesso de uma
formação discursiva. Se a ciência é uma prática comunicativa, cada
um dos seus membros ocupará um lugar específico de poder.
Segundo Foucault (1998, p. 7, 15, 38; 2005b, p. 140), des-
de Sócrates há uma promessa de pureza discursiva, associando os
discursos à verdade e não ao poder, contrapondo-se, assim, aos
sofistas. Essa tradição coloca os discursos em um lugar de hon-
ra, mas, ao mesmo tempo, pretende que eles sejam desarmados,
neutros, objetiváveis, imparciais. Em síntese, dissociados do poder.
Para essa visão, o poder não vem deles, mas são externos a eles.
São inseridos por interesses escusos aos próprios discursos, traindo
sua neutralidade e isonomia.
No entanto, em toda sociedade, a produção discursiva é sele-
cionada, organizada, controlada e distribuída. A própria transmis-
são depende de códigos linguísticos, corporais, gestos, circunstân-
cias e posições dos interlocutores. Por exemplo, em um evento aca-
dêmico, a fala de um professor titular goza de maior credibilidade
e importância que a de um doutorando. Os interlocutores estarão
mais abertos ao primeiro, tendo suas afirmações muito mais força
de produzir verdades e convencer que as do segundo. A fala de um
homem, comumente, goza de maior crédito que a de uma mulher.
Enfim, quem e de onde se fala é determinante para a credibilidade
e para a repercussão de algo: homem ou mulher, negro ou branco,
criança ou adulto, doutor ou mestre, culto ou inculto, iniciado ou
não iniciado. “Ninguém entrará na ordem do discurso se não sa-

74
Epistemologia e Pesquisa em Direito

tisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para


fazê-lo” (FOUCAULT, 1998, p. 37).
Quer-se enfatizar aqui que os discursos vão além de traduzir
o jogo de poder presente na língua, são eles mesmos campos de
batalhas. A comunidade científica não se desenvolve por meio de
um diálogo franco, sincero composto por bons argumentos. Não
apenas e não por má fé. Todo diálogo é indissociável do lugar de
poder dos falantes e das disputas deles decorrentes.
Há um sistema de exclusão que determina quais discursos
podem circular. Não se exerce o controle apenas sobre o que en-
trará e o que ficará fora da partida linguística, mas dentro do pró-
prio jogo também há os mecanismos “internos” de seleção. São
ferramentas que ordenam, classificam, unificam, hierarquizam e,
assim, exercem o controle. Pode-se exemplificar com a ideia de
autoria, que impõe a exigência de coerência, fazendo com que o
texto seja interpretado com base em uma ideia de unidade, des-
prezando as incongruências como erros. Todo aquele conjunto de
ideias que soarem como absurdas serão ou excluídas ou reinter-
pretadas para que soem coerentes (FOUCAULT, 1998, p. 21 e ss.;
ORLANDI, 2010, p. 74-77).
Sujeitos que partilham o mesmo jogo linguístico sempre es-
tarão imersos nos jogos de poder discursivos, sendo questionável a
ideia de simetria. Ocupam diferentes posições, diferentes lugares
de fala; sendo assim, seus discursos inevitavelmente terão efeitos
díspares na produção de verdades.
Ao fazer essas afirmações, defende-se que não há linguagem
pura, seja a língua, seja a fala. Dessa forma, a ciência jamais será
neutra, pois nem o paradigma nem a comunidade podem ser des-
pidos das relações de poder que lhe é instituinte.

75
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Não é possível eliminar os múltiplos sistemas de coerções da


linguagem. Se isso fosse possível não se chegaria à neutralidade,
mas ao fim da própria linguagem, ou da própria ciência, pois são
eles que ao restringirem a viabilizam: “A troca e a comunicação
são figuras positivas que atuam no interior de sistemas complexos
de restrição; e sem dúvida, não poderiam funcionar sem estes”
(FOUCAULT, 1998, p. 38).
É importante mostrar as sutilezas do poder para romper com
a falsa ideia de objetividade e de neutralidade que o conhecimento
moderno atribui-se. Voltando a Kuhn (2006, p. 250, 251), o para-
digma estabelece uma língua, estrutura de poder que permite a
comunicação de uma comunidade. Igualmente, os lances produzi-
dos por seus interlocutores são determinados por uma rede sutil de
coerções, mantendo hierarquias e vozes privilegiadas no interior
de uma mesma comunidade.
A ciência, caso se admita os pressupostos kunianos e as con-
tribuições da semiologia do poder, bem como da análise do dis-
curso é uma forma de produzir conhecimento entre tantas outras,
indissociável de um contexto social específico. É uma linguagem
com suas coerções e limitações próprias, ao mesmo tempo, é de-
senvolvida por uma comunidade que expõe seus “bons argumen-
tos” em um jogo em que a simetria é impossível ser alcançada.

2 – Ciência e sua pretensão hierárquica


A epistemologia moderna dedicou substanciais esforços para
produzir um conhecimento objetivo que não tivesse influência da
subjetividade; vale dizer, um sistema de verdades que não perpas-
sasse o sujeito, que ficasse imune aos jogos de verdade e de poder.

76
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Ignorando, assim, que o contexto político, social e institucional


está diretamente associado à construção do conhecimento.
Ao tentar dissociar-se da política, em última medida, o dis-
curso científico procurou ocultar suas pretensões de poder e, por
consequência, invisibilizar a sua fragilidade ao colocar-se como
saber superior a outras formas de conhecer e estar no mundo. A
ciência ocidental é inseparável, constituída e constitutiva da visão
ocidentalizante de mundo; o privilégio e a hierarquia que confere
a si não é nada além da superioridade que a modernidade atribui-
-se diante de outros modos de vida (FEYERABEND, 2007, p. 29;
RESTREPO, 1998, p. 29-37).
Como explica Feyerabend (2007, p. 309; 2010, p. 352), a ciên-
cia não é uma tradição isolada. Existe uma multiplicidade de outros
saberes igualmente importantes para a sociedade e que conseguem
oferecer respostas satisfatórias ao que se propõem. Não é possível
dizer que a técnica moderna de produção do conhecimento é a me-
lhor ou superior às demais, apenas possui propósitos diferentes.
A expansão da ciência é indissociável da expansão do modo
de vida ocidental, dos seus costumes e do seu ethos. A valoriza-
ção das conquistas obtidas pelos conhecimentos disciplinares não
deixa de ser um elogio autorreferencial da modernidade sobre si.
É verdade que o conhecimento ocidental levou o homem à Lua e
conseguiu descobrir a cura de múltiplas doenças. No entanto, não
se pode afirmar que é a única, ou a melhor, forma de saber que
pode melhorar a vida daqueles atingidos por ele.
Não se desconsidera a importância e as conquistas do conhe-
cimento disciplinar ocidental, o que se questiona é o porquê de
esse saber ser privilegiado em detrimento de múltiplas tradições,
sendo considerado superior ou universal. Alguns podem responder
que a hierarquia deve-se ao fato de ele apresentar os melhores ar-

77
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

gumentos. Contudo, sabe-se que não foram apenas bons argumen-


tos que impuseram e continuam impondo a modernidade, mas
também as armas e a força (FEYERABEND, 2010, p. 110, 353).
Maior poder não significa que algo possa ser considerado me-
lhor. Confundir a capacidade de se impor com ter ascendência
sobre algo é consequência de um modo de produção do conheci-
mento que encobre as relações de poder que estão por trás de toda
verdade. O saber é indissociável das relações políticas. O mundo é
constituído por “verdades” precárias produtoras do sistema dinâ-
mico do real, ocultadas em um mito de objetividade que dissocia
o saber do poder (WARAT, 1982, p. 48-49). Existem tecnologias
de produção do mundo, sendo o inquérito científico a técnica le-
gitimada pela modernidade (FEYERABEND, 2010, p. 105; FOU-
CAULT, 1979, p. 12; 1999, p. 28; 2005, p. 51).
Apesar de a ciência ser um único conceito, faz referência a
uma multiplicidade de objetos distintos (FEYERABEND, 2007, p.
319). Assume como ponto de partida a existência de conhecimen-
tos paradigmáticos comensuráveis, sendo o inquérito seu método
de produção de verdades. No entanto, Feyerabend (2007, p. 37-43)
demonstra que não há unidade, uma teoria geral, um caminho
único sobre como esse inquérito deve proceder, consistindo nisso a
garantia do seu sucesso. Do mesmo modo, não há garantia de que
caminhos anteriormente percorridos darão novamente certos. Em
outras palavras, é o inquérito que confere legitimidade à ciência,
mas ele mesmo é uma fórmula vazia (FOUCAULT, 2005b, p. 78).
Atribui-se superioridade à ciência diante de outros sabe-
res em razão da forma que produz seu conhecimento, o método.
Contudo, autores como Feyerabend (2007, p. 37-43) defendem a
inexistência do “método”, mas sim de caminhos incertos, impre-
visíveis e sempre novos trilhados pelos pesquisadores. É isso que
permite às múltiplas ciências atingirem seus resultados. O para-

78
Epistemologia e Pesquisa em Direito

doxo é: a ciência legitima-se como superior em relação a outras


formas de conhecer por meio do método, mas o método em si é
uma fórmula vazia.
A indagação ética que o discurso de superioridade da ciência
não deixa vir à luz, considerando-a tola, ingênua ou inútil é: por
que privilegiar o científico? Outras formas de conceber e estar no
mundo também têm muito a ensinar, em especial, em relação aos
grandes desafios desta sociedade: a redefinição da relação do ho-
mem com a natureza e com o outro.

3 – Ciência e pluralidade epistêmica


Sendo a ciência uma construção linguística entre tantas ou-
tras, cabe indagar o que se reivindica ao dizer que “se faz ciência”?
O que ou quem se pretende minimizar? Desejam-se os efeitos de
poder que o Ocidente “[...] atribuiu e reservou aos que fazem o dis-
curso da ciência” (FOUCAULT, 1999, p. 15), o que é indissociável
da defesa da própria modernidade sobre outros modos de vida.
Não se pode ver com ingenuidade o local superior que o
discurso científico atribui-se, buscando um espaço de fala privi-
legiado e o rebaixamento de outros saberes. Permite-se julgar os
demais conhecimentos, mas não se permite ser julgado por eles.
Legitima-se como espaço do diálogo e da refutação, porém somen-
te para aqueles que cumprem os critérios definidos por ele (FEYE-
RABEND, 2007, p. 361; 2010, 196, 197, 355-361).
Apesar de a crítica ser direcionada à ciência, tem-se clareza
de que todo sistema linguístico é uma estrutura de poder. Onde há
linguagem, há poder (BARTHES, 2007, p. 12).
O problema é que a ciência coloca-se como o espaço do
diálogo, mas é extremamente seletiva com os saberes com que

79
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

conversará. Obteve sim grandes conquistas, mas também cotidia-


namente obtém enormes fracassos. Sua história não é marcada
somente por vitórias, são precisos milhões em investimentos pú-
blicos e privados e muitos erros para se conseguir avanços. Muitos
são úteis, muitos inúteis e outros, ainda, maléficos para a socieda-
de (FEYERABEND, 2007, p. 330). O que se quer evidenciar com
isso é o efeito perverso que o discurso de superioridade da ciência
(indissociável da Modernidade) tem sobre outros saberes e outras
formas de vida. Exclui-se o plural e, assim, perdem-se escutas.
Desprivilegiar a ciência não é reduzi-la a nada, é reconhecer sua
importância, mas também a de outras formas de produzir o mundo. É
o chamamento para a participação democrática mais plural e aberta.
Outras tradições possuem muito a oferecer e igualmente acumulam
enormes conquistas. Ampliar as escutas é aumentar os caminhos que
podem ser seguidos, escapando dos destinos que se apresentam como
únicos (FEYERABEND, 2007, p. 17, 60, 308, 361).

80
Epistemologia, Conhecimento
e Direito: é Possível Questionar
Thomas Kuhn?23

A pergunta presente no subtítulo deste capítulo vem acom-


panhada de alguma ironia, sendo importante explorá-la logo no
começo desta introdução.
Inicialmente, procura-se colocar em evidência a narrativa já
bastante conhecida e típica: começa-se questionando Descartes, Ba-
con, os positivistas e chega-se em Thomas Kuhn, expondo-o como
ápice da teoria científica. Certamente, Kuhn desenvolveu um pen-
samento primoroso, desestabilizou a crença na objetividade do dado
e ofereceu formidáveis zonas de inteligibilidade para a compreensão
da precariedade do conhecer. Não à toa, é o autor de epistemologia
mais lido e citado atualmente. Contudo, os esforços epistemológicos
precisam ir além. É necessário abandonar a narrativa que inicia em
Descartes e chega a Kuhn e começar indagar: como se pode avan-
çar para além da teoria paradigmática da ciência?
O segundo ponto irônico é: se Thomas Kuhn desenvolveu
uma primorosa teoria sobre a precariedade científica, pode-se afir-
mar, tendo como base o próprio pensamento do autor, que suas
explicações não são verdades últimas, mas raciocínios precários
sobre o que significa o conhecimento científico. Ou seja, a própria
teoria de Kuhn evidencia a falsidade, ou a ironia, da pergunta do
subtítulo deste texto. Entretanto, o grande problema não é se é

23 Uma versão preliminar deste artigo foi publicada sob o título “Epistemologia
e pesquisa em Direito”, In: BELLO, Enzo; ENGELMANN, Wilson (ORGs).
Metodologia da pesquisa em direito. Caxias do Sul, RS: Educs, 2015.

81
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

possível ou não questionar a teoria do autor norte-americano, mas


sim conseguir apresentar insuficiências substanciais que permitam
que as discussões avancem.
O objetivo do texto não é fazer um estudo descritivo, ao con-
trário. Utiliza-se das ideias de Kuhn e das críticas feitas a ele para
realizar uma reflexão um pouco mais ampla: a relação entre o epis-
temológico e o político.
Tem-se a compreensão que na segunda metade do século
XX, ocorreu uma mudança epistêmica na forma de conceber o
conhecimento científico, questionando a matriz indutivista que
dominou a episteme científica moderna por três séculos (KUHN,
2006, p. 243; FOUCAULT, 2008, p. 40-55).
O abalo à tradição indutivista, da qual o positivismo faz par-
te, não foi obra de apenas um autor. Ao lado de Kuhn, poderiam
ser citados inúmeros outros, como Nietzsche e Foucault24.
Kuhn foi um marco no enfrentamento às pretensões episte-
mológicas positivistas, as quais buscavam alcançar o “realmente
ai” por meio da observação. Ele ofereceu um rico campo de inte-
ligibilidade para se pensar os limites e possibilidades da ciência.
Enfrentar o positivismo é uma tarefa importante, em especial,
quando se dialoga com pesquisadores que estão sendo iniciados na
ciência sobre o Direito, como, em parte, é o objetivo deste traba-
lho. No entanto, o atual contexto epistêmico coloca, em evidên-
cia, questões novas que precisam ser analisadas.

24 Para aprofundar em uma discussão filosófica sobre a superação epistêmica


do pensamento cartesiano e o surgimento do paradigma da linguagem, ver:
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas. Tradução Salma Tamus Muchail. 8º ed. São Paulo: Martins Fontes,
1999. Ver também: NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira. Tradução e
organização de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2008.

82
Epistemologia e Pesquisa em Direito

O texto apresentará alguns questionamentos acerca do pensa-


mento de Thomas Kuhn ao criticar seu pressuposto linguístico, ainda
bastante formalista, que gera como consequência mais evidente a se-
paração entre atividade científica e contexto político-social, bem como
a eliminação do cientista como sujeito da ciência. Defender-se-á que a
ciência é uma linguagem entre tantas outras, portanto, indissociável de
um contexto social, de relações de poder e de discussões éticas.
Seguiu-se o seguinte caminho. Em um primeiro momento,
defende-se que a grande contribuição de Kuhn foi explicar as ci-
ências físicas com base na teoria da linguagem. Ou seja, coloca em
evidência a questão dos referentes, aproximando o dado físico da
palavra. De forma indireta, deixar-se-á suposto que, ao contrário,
do que se costuma defender, a noção de paradigma é bastante pro-
blemática, inclusive foi abandonada pelo próprio autor, não sendo,
portanto, sua principal contribuição.
Utilizando-se de Kuhn para aproximar a ciência da linguagem,
procura-se demonstrar as consequências que isso produz na relação
entre conhecer, contextos sociais e relações de poder. Não há uma
linguagem neutra, não há conhecimento incomensurável. Conhecer
é sempre um olhar precário, portanto, histórico-social sobre o mundo.
Com base em contribuições linguísticas pós-estruturalistas, vol-
ta-se ao pensamento de Thomas Kuhn, demonstrando que sua teoria
pode remeter a um ideal de pureza interna e eliminação do cientista
enquanto sujeito do conhecer. Fronteiras que precisam ser enfrenta-
das no desafio de aproximar a ciência das relações históricas e sociais.
A discussão sobre Direito é apresentada de forma bastante
superficial na conclusão, mais como uma provocação. Com base
no que foi desenvolvido no corpo do texto, defender-se-á a dimen-
são sempre aberta sobre o que significa o jurídico e o científico, o
que impõe ao jurista uma reflexão político-epistêmica permanente
sobre o que significa Direito para ele.

83
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

1 – Ciência(s) e poder: problematizando com


base em Thomas Kuhn
Desde o Iluminismo as ciências físicas foram estabelecidas
como o parâmetro para o conhecimento científico. Era a régua
que se usava para medir a cientificidade de outras ciências, sendo
o ideal a ser alcançado. Thomas Kuhn segue um trajeto novo ao
demonstrar que as ciências físicas eram mais próximas da conver-
sação ordinária, e das ciências humanas, do que aquilo que vinha
se afirmando há trezentos anos pela cultura europeia ocidental
(RORTY, 1988, p. 252, 258).
Segundo a crença indutivista, quanto maior a observação,
mais acurada ela fosse e em maior quantidade, maior a possibi-
lidade de aproximar-se do “real nu”. As ciências eram um cami-
nho quase linear em direção ao “realmente ai”, que existiria de
forma autônoma em relação ao olhar do pesquisador. Em síntese,
procurava-se a objetividade presente no mundo real, buscando a
produção de dados independente da teoria. Dissociava-se o obser-
vador, sujeito, da observação, objeto, com a pretensão de chegar a
verdades universalizáveis, suscetíveis a serem refutadas por obser-
vações mais aprimoradas (KUHN, 2006b, p. 252).
Thomas Kuhn faz o caminho oposto dos epistemólogos po-
sitivistas ao evidenciar que até mesmo nas ciências consideradas
“duras” (Física, Química, Biologia, etc.) a produção dos dados é de-
pendente da teoria. A partir do seu lugar de fala privilegiado, pois
era físico teórico, utiliza-se da filosofia da linguagem para demons-
trar como percepção e observação são indissociáveis. Propõe que a
produção de dados, mesmo na Física, é indissociável da teoria, não
sendo possível separar o sujeito do objeto como a perspectiva epistê-
mica indutivista pretendia. A teoria não possibilita apenas acessar o
“real nu”, ao contrário, é parte constitutiva dele, “[…] os chamados

84
Epistemologia e Pesquisa em Direito

fatos demonstraram jamais ser meros fatos, independente das cren-


ças e teorias existentes” (KUHN, 2006b, p. 136).
Quando se afirma a interdependência entre o sujeito e o ob-
jeto não se está negando a importância da experiência, ou, que a
teoria independerá de qualquer fato, chegando a qualquer conclu-
são. A experimentação continua sendo de especial relevância para
as ciências físicas, contudo, a percepção que se terá dos fatos ditos
concretos jamais será dissociada do conjunto de crenças por meio
da qual ocorreu a observação. O que se consegue ver depende do
que é observado, como também daquilo que a experiência visual-
-conceitual prévia ensina a enxergar25 (KUHN, 2006, p. 150).
É interessante a circularidade entre dado e teoria existente
nas ciências consideradas duras. Mesmo quando a produção dos
dados necessita de aparelhos, eles próprios dependerão de uma te-
oria para que possam ser úteis. Serão os conhecimentos prévios
que permitirão enxergar os problemas, direcionando os experi-
mentos e possibilitando as testagens (KUHN, 2006b, p. 136). A
produção do objeto é resultado de uma educação científica ante-
rior que ensinará quais são os aspectos relevantes e os irrelevantes,
o que será percebido e o que não será notado em uma experiência.
Os dados não são inequivocamente estáveis. O cientista, ao
mudar de teoria, não troca apenas as lentes que enxerga a rea-
lidade, interpretando os mesmos fatos de diferentes formas. Ele
transforma a própria percepção sobre a realidade. O que antes
fazia parte de uma família natural passa a fazer parte de outra,

25 Os apontamentos de Thomas Kuhn (2006b, p. 253) sobre a interdependência entre


experiência e linguagem são precisas: “O que é o mundo, pergunto, caso não inclua
a maioria dos tipos de coisas a que se refere a língua real falada em determinada
época?”. A linguagem deve acomodar ao mundo ou o mundo à linguagem? Não seria
essa distinção ilusória? “Seria aquilo a que nos referimos como ‘o mundo’ talvez o
produto de uma acomodação mútua entre experiência e linguagem?”

85
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

as positividades do mundo modificam-se conjuntamente com o


próprio olhar26 (KUHN, 2006, p. 159-160).
Para entender melhor a “instabilidade” dos dados, como eles
são produtos socialmente construídos, foi importante para Thomas
Kuhn ir à filosofia da linguagem e centrar sua atenção na questão
das “famílias naturais”. O autor alerta, em textos posteriores à Es-
trutura da Revolução Científica, para importância dessa discussão:

Tenho hoje a impressão de que esse tipo de redistribuição de


indivíduos entre famílias ou espécies naturais, com sua conse-
quente alteração das características relevantes para a referência
é uma característica central (talvez a característica central) dos
episódios a que anteriormente rotulei de revoluções científicas.
(KUHN, 2006b, p. 251, Itálico de Thomas Kuhn)

Uma família natural seria toda a rede de similaridades agre-


gada em torno de uma palavra ou de um exemplo-paradigmático27.
Seguindo a ilustração clássica do autor (KUHN, 2011, p. 325-337),
a família natural “pato” agregaria todos os animais que compor-
tam em si as características necessárias para serem considerados
patos. Em um exemplo hipotético, ter pena branca e possuir mais
de trinta centímetros. Entretanto, caso ocorra a mudança de teo-

26 Há uma tentativa desde Descartes de dissociar estimulo e percepção como etapas


distintas de um processo linear. Ter-se-ia os estímulos, que seriam iguais para todos
independente do contexto, e somente em um momento posterior, por meio de um
processo consciente-inconsciente, produzir-se-ia as percepções de distintas formas.
Para Thomas Kuhn não é apenas a interpretação que se modifica com a troca de teoria,
mas a própria percepção (KUHN, 2006, p. 238-246). Para quem desejar aprofundar
nessa interdependência dado-teoria, sugere-se a leitura do capítulo “9” de “A estrutura
das revoluções científicas”: “As revoluções como Mudanças de concepção de Mundo”.
27 De forma simples, “exemplos-paradigmáticos” ou “exemplares” seriam soluções
padrões que reuniria em torno de si um grupo de situações similares. Para
compreender melhor esse conceito sugere-se a leitura do capítulo 12 de “A tensão
essencial”:”Reconsiderações acerca dos paradigmas”.

86
Epistemologia e Pesquisa em Direito

ria, pode ser que se modifiquem os referentes necessários para que


algo seja considerado um pato. Agora, precisaria ter mais de trin-
ta centímetros e menos de cinquenta. O que antes era percebido
como um representante legítimo dessa família natural, passa a ser
compreendido em outra, por exemplo, é visto como um “ganso”28.
A mudança da teoria altera os próprios dados ao modificar os cri-
térios necessários, ou seja, os referentes, para que algo seja agrega-
do a uma família natural29. Apesar de ser uma constatação apa-
rentemente simples, ela possui implicações profundas.
Um dos pilares epistêmicos do indutivismo cartesiano reside
na articulação linear entre palavra e objeto. O “cogito” traz como
pressuposição implícita a evidência da passagem do “Eu penso”
para o “Eu sou”. Há a junção não problematizada entre o pensar e
o ser, ou seja, há a crença de que por meio do pensamento pode-
-se chegar à realidade nua das coisas, aos fatos primeiros, aos da-
dos imutáveis, que, por sua vez, seriam representados por palavras
(DESCARTES, 2000, p. 62; FOUCAULT, 1999, p. 417-418, 429;
JAPIASSU, 1982, p. 206-207).
O “cogito” é a expressão de uma tradição epistemológica
clássica que assume a existência de dados fixos, bem como da ca-
pacidade de palavras espelharem a totalidade da realidade. Nesse
contexto epistêmico, as divergências científicas centrar-se-iam nas
interpretações de um mundo pronto e acabado, sendo o papel da

28 Um outro exemplo, os astrônomos convertidos ao pensamento de Copérnico veem


a lua como pertencente a família natural dos satélites e não à dos planetas como os
seus opositores. Por consequência, assumem a lua como sendo um satélite e não um
planeta (KUHN, 2006, p. 147-174; 2006b, p. 251).
29 O problema das famílias naturais coloca em destaque a questão dos referentes, ou
seja, quais são os critérios necessários para que algo seja considerado pertencente
a uma palavra ou a um dado. Para aprofundar na discussão que Thomas Kuhn
desenvolve em torno dos referentes, sugere-se a leitura do terceiro capítulo, “Mundos
possíveis na história da ciência”, de O caminho desde a Estrutura.

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Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

ciência chegar à origem das coisas, ordenando-as em um grande


quadro coerente (FOUCAULT, 1999, p. 429).
Como nenhum saber é dissociado de relações de poder, pode-
-se afirmar que as consequências políticas mais evidentes dessa for-
ma de conceber o conhecimento é a defesa do acesso às verdades
primeiras. Por conseguinte, pode-se organizar a realidade em um
quadro inalterável, fixado por meio de uma lógica única das coisas.
Verdades primeiras, ordem permanente, lógica única, categorias
que são as bases para o não reconhecimento de outras formações
sociais e para a afirmação de um saber exclusivista ocidental.
Entretanto, a relação entre palavras e coisas não é tão sim-
ples, muito menos consiste em uma articulação linear. É certo que
o pensamento conhece por meio de palavras, sendo um eterno no-
mear. Contudo, cada palavra é antes de tudo uma generalização,
algo que foi arbitrariamente seccionado, abreviado, delimitado e
estabelecido como unidade. Uma palavra não se refere a um objeto
isolado, mas a um conjunto de objetos, seja conceitualmente, seja
visualmente. É uma generalização, uma metáfora visual, conceitu-
al, sonora30 (NIETZCHE, 2012, p. 58; VIGOTSKI, 2008, p. 5-6).
As palavras não são a expressão de uma coisa em si, ao con-
trário, elas são o distanciamento da experiência singular, surgin-
do da igualação do não-igual. Iguala-se ao omitir as diferenças
existentes entre objetos distintos, ao eliminar as especificidades
de cada um deles, considerando-as irrelevantes ou de pouca im-
portância e ressaltando suas semelhanças. Somente se pode assu-
mir que duas árvores são os referentes concretos de uma mesma
palavra quando todas as distinções entre ambas são tornadas in-

30 Como expõe Nietzsche (2012, p. 31), as palavras são combinações de metáforas: “De
antemão, um estímulo nervoso transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A
imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metáfora. E, a cada vez, um
completo sobressalto de esferas em direção a uma outra totalmente diferente e nova.”

88
Epistemologia e Pesquisa em Direito

significantes. É a inobservância da singularidade que permite a


generalização (NIETZCHE, 2012, p.31-36, 85).
Surge, então, a pergunta: o que deve ser considerado relevan-
te? O que deve ser entendido como irrelevante? Nada disso é pré-
vio, está posto ou é anterior à linguagem. Thomas Kuhn (2006b,
p. 77-114) demonstra que, mesmo na Física, um conceito não é
algo que está dado, mas é produzido socialmente em uma comu-
nidade. Ao perderem toda singularidade, as palavras tornam-se
domínio comum de um grupo. Não há que se falar em origens
ou essências, o que há são relações sociais. É socialmente que se
estabelece o corte arbitrário, as relevâncias e as insignificâncias
que permitem formar a unidade metafórica sintetizada na palavra
(BARROS, 2012, p. 16; NIETZCHE, 2012, p. 87).
O mundo não pode ser nomeado individualmente, indepen-
dente de um contexto ou de um lugar, pois a linguagem somente
se realiza como propriedade individual e coletiva. Não se pode no-
mear fora de uma história, de um grupo, de uma complexa teia de
relações sociais. Descartes (2000, p. 62) diz: “eu penso, logo exis-
to”, no entanto, somente se pode pensar por meio da linguagem e
a linguagem é fruto de um tempo, de uma sociedade, é constituída
por realces e apagamentos. Não há que se buscar a essência das
coisas, o dado primeiro ou o real nu, tudo que se encontrará são
generalizações socialmente produzidas e em produção (BARROS,
2012, p. 16; FOUCAULT, 1999, p. 429, 473).
A descoberta da linguagem não é nova, Nietzsche (2012) foi
um dos seus protagonistas (FOUCAULT, 1999, p. 472-473). Tho-
mas Kuhn (2006) possui uma grande contribuição ao levar essa
discussão para as ciências consideradas “duras”, mostrando que
mesmo elas são produções relacionais e que os dados não estão
prontos e acabados, eles dependem do olhar, dos referentes que lhe
darão significação. Assim como as palavras, os dados físicos são

89
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

unidades conceituais arbitrárias, metafóricas; são sempre a gene-


ralização da experiência singular. São produzidos a partir de uma
teoria, que por sua vez é desenvolvida em uma comunidade.
Quando se diz que não há linearidade entre palavra e coisa,
procura-se expressar que sempre há algum elemento da realidade
que é esquecido ao ser expresso como um dado científico ou como
uma palavra verbal. Não é possível captar a totalidade da realidade,
por consequência, não há uma linguagem única, atemporal, univer-
sal, neutra, mas sim linguagens, simbolizações, dados, generaliza-
ções arbitrárias produzidas em determinado contexto social. Sem-
pre há simplificações, apagamentos. “Todo conhecimento surge por
meio de separação, delimitação e abreviação; não há conhecimento
absoluto de uma totalidade” (NIETZCHE, 2012, p. 64).
Conhece-se a realidade nomeando-a, produzindo classi-
ficações, criando afinidades e dessemelhanças. Classificar é um
processo em que se estrutura coisas, fatos e objetos em grupos.
Decidir se dois objetos pertencem a um mesmo conjunto, a uma
mesma família natural, é dar maior ênfase ao que eles possuem em
comum do que às suas diferenças. Formam-se classes e subclasses,
nomeia-se o mundo recortando-o, realçando e apagando, criando,
assim, um edifício conceitual por meio do qual se torna possível
conhecer (NIETZSCHE, 2012, p. 45; WARAT, 1994, p. 32).
Todo saber somente se dá por meio de uma linguagem e seus
respectivos recortes. É uma forma de produzir dados entre diversas
outras, de classificar entre múltiplas outras, de produzir a realida-
de entre infindáveis outras. Conhece-se nomeando, mas sempre
há uma possibilidade diferente de nomear. Conhecer, também é
desconhecer. É a negação de outras possibilidades de entendimen-
to, de outros aspectos da realidade, de outros mundos. Sempre há
algo vazio, ilusório, mentiroso na produção do saber (NIETZS-
CHE, 2012, p. 36-37).

90
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Não há uma linearidade entre palavra e coisa, mas sim re-


lações sociais que as perpassam. Uma representação não é capaz
de alcança a totalidade do objeto. Por consequência, não há um
mundo que possa ser apresentado como se fosse um quadro per-
manente. A ordenação da realidade em edifícios conceituais não é
algo que está posto a priori, são construções humanas. O conheci-
mento é produzido nomeando o mundo, classificando-o e estabe-
lecendo as compatibilidades e incompatibilidades entre as classi-
ficações produzidas, seja pela experimentação ou não. Constrói-se
uma ordenação entre tantas outras possíveis.
O real em sua complexidade não é coerente. O mundo so-
mente pode ser visto de forma regular, lógico a partir de um olhar
antropomórfico, que deixa em segundo plano, esquecido, apagado,
mas imanente, toda irregularidade, incoerência e falta de lógica
(NIETZSCHE, 2012, p. 38-40).
A coerência é simplificadora, é o estabelecimento de uma ló-
gica entre tantas outras. Uma linguagem institui um conjunto de
similaridades próprias, classificações que lhe são exclusivas e, com
isso, transforma não apenas a percepção, mas a própria forma por
meio da qual se pode pensar. Chegada a essas conclusões, não há
como admitir uma racionalidade atemporal, mas sim dependente
de um universo simbólico ossificado que lhe confere sustentação
(BERGER; LUCKMANN, 1990, p. 135-141; KUHN, 2006, p. 147-
158). A linguagem oferece a coerência necessária para o desenvol-
vimento da racionalidade.
Não é possível chegar a verdades primeiras, não há uma re-
presentação inalterável da realidade, muito menos uma única lógi-
ca, uma racionalidade exclusiva. Não há um único signo que capte
a totalidade da realidade, como não há uma única linguagem que
seja a representação exclusiva do real. A ciência, dessa forma, é

91
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

uma linguagem entre outras, uma expressão da realidade entre


outras, portanto, um sistema produtor de verdades entre outros.
Não há que se falar em Conhecimento, universal, absoluto,
mas em saberes que não possuem nenhum privilégio, nenhuma
hierarquia entre si. Não há que se referir à ciência como o conhe-
cimento por excelência, mas sim como uma forma de conhecer
diante de múltiplas outras, pois, assim como os demais saberes,
possui suas luzes e seus esquecimentos, suas possibilidades e suas
limitações, seus privilégios e, também, seus fracassos.
O status adquirido pela ciência é indissociável da forma mo-
derna de produzir o real, de suas motivações políticas e sociais, um
privilégio autorreferencial de uma saber específico.
A consequência política desse privilégio é transformar-se na
forma de conhecer legítima, ou, ao menos, mais legítima que as
demais. Torna-se absurdo assumir qualquer outro saber que não
esteja validado por ela. Apagam-se possibilidades, alternativas em
uma pretensão exclusivista. Assumir que a ciência é apenas mais
um saber dentre tantos outros é fundamental para questioná-la
politicamente, eticamente, epistemicamente. Tornam-se legítimas
indagações como: quais seriam esses outros modos de vida e de
produção de conhecimento que são recusados, que são colocados
em um status secundário? O que se tem a aprender com aqueles
que tiveram suas vozes e existências negadas? Como esses outros
saberes podem contribuir socialmente e eticamente para esta so-
ciedade? Como podem questionar a pretensão exclusivista moder-
na e ensinar que há alternativas melhores, mais saudáveis e mais
éticas? (FEYERABEND, 2007, p. 354).
É necessário retirar o privilégio epistêmico da ciência e,
assim, lutar pela democratização dos saberes, assumindo que há
outras formas de vida e conhecimentos que também tem muito

92
Epistemologia e Pesquisa em Direito

a ensinar, resgatando a radicalidade ética do conhecer. Um dos


caminhos que pode ser seguido nesse sentido é a politização do
conhecimento científico, procurando trazer luz aos seus interdi-
tos, aos seus campos ocultos não politizados. Essa é uma tarefa
árdua que vem sendo desenvolvida com sucesso por autores como
Feyerabend (2007), Chalmers (1993), Foucault (2005), Boaventu-
ra (1989), Gonzalez Rey (2003), entre tantos outros. Este trabalho
aproveitará as contribuições desses autores, suas chaves de leitura,
seus campos de inteligibilidade, procurando seguir seus passos.
Muitas poderiam ser as estratégias a serem aqui adotadas,
procurar-se-á politizar a ciência tendo como base as contribuições
de Thomas Kuhn.

2 – Indissociabilidade entre ciência


e relações de poder
Acredita-se que a principal contribuição de Thomas Kuhn
para a epistemologia foi a aproximação das ciências consideradas
“duras”, em especial, da Física, com a filosofia da linguagem31. Ele

31 Thomas Kuhn ofereceu outras contribuições como os conceitos de “paradigma” e de


“revoluções científicas”. Apesar de serem extremamente relevantes e terem gerado
uma enorme repercussão teórica, acredita-se aqui que, após mais de quarenta
anos da publicação de “A estrutura das revoluções científicas”, eles assumiram
uma dimensão secundária em termos epistemológicos. A própria posição do
autor é uma prova disso. Em relação ao primeiro conceito, Kuhn (2011, p. 311-
312) ficou profundamente incomodado com a dimensão alargada que assumiu,
abandonando-o, por fim, como relata: “[...] paradigma. Embora raramente empregue
esse termo hoje em dia, tendo perdido por completo o controle sobre ele, irei, a
bem da verdade, usá-lo aqui algumas vezes (KUHN, 2006b, p. 271)” Em relação
ao segundo, fez revisões contínuas, até atingir uma dimensão bastante moderada e
não tão importante. Escreveu “Kitcher pensa que a incomensurabilidade é comum
demais para ser um critério de mudança revolucionária, e suspeita que eu, de todo
modo, já não esteja preocupado em distinguir, precisamente, desenvolvimento

93
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

colocou em evidência a questão do referente, mostrando que o


próprio dado físico não é um espelho da realidade, pois não a re-
presenta em sua totalidade. Assim como a palavra, o dado é uma
generalização, é o apagamento de singularidades, é o agrupamento
de objetos que possuem características semelhantes, após descon-
siderar tudo o que eles possuem de diverso (KUHN, 2006b, p. 44).
É generalizando o mundo, esquecendo parte dele, que se
pode captá-lo, nomeá-lo e classificá-lo; que se pode criá-lo e in-
terpretá-lo por meio de dados, palavras e fatos (KUHN, 2006b, p.
268, 270). Cientistas, até mesmo os físicos ou os químicos, inseri-
dos em distintos paradigmas veem e sentem o mundo de maneiras
diversas, possuem percepções diferenciadas sobre ele. A mudança
de teoria não é apenas a modificação da interpretação sobre um
conjunto de fatos e dados previamente postos, mas a transforma-
ção da percepção e da cognição sobre a realidade, é a criação de
novos mundos. “Após o processo de aprendizado, o mesmo estímu-
lo evoca um dado diferente” (KUHN, 2006, p. 327).
A partir da aproximação com a Filosofia, Thomas Kuhn
adentra em um exercício histórico-interpretativo procurando des-
crever o que é a ciência e como ela se desenvolve. Busca enunciar
sua estrutura, o que a caracteriza e seu funcionamento. Como é
próprio da epistemologia, analisa os critérios que devem ser leva-
dos em conta para que algo possa ser considerado científico, ou
seja, o que diferencia a ciência de outras formas de saber (KUHN,
2006, p. 259). Essas afirmações merecem alguma atenção.

normal de desenvolvimento revolucionário, na ciência (p. 697). Reconheço a força


dessas posições, pois minha própria concepção da mudança revolucionária tem
se tornado cada vez mais moderada, como Kitcher supõe (KUHN, 2006b, p. 75,
grifo dos autores).” Continua na página seguinte: “Se eu estivesse reescrevendo agora
‘A Estrutura’ [A Estrutura das revoluções científicas], enfatizaria mais a mudança
de linguagem e menos a distinção normal/revolucionário (KUHN, 2006b, p. 76)”.
Por não ser o foco deste trabalho, não essas discussões não serão aprofundadas.

94
Epistemologia e Pesquisa em Direito

A busca por entender o que é a ciência e como ela funciona é,


antes de tudo, um exercício histórico-interpretativo. Como foi dito,
não é mais possível acreditar que se possa ter acesso a verdades pri-
meiras, a uma linguagem neutra que capte a essência das coisas.
Toda definição é gerada e reproduzida em uma comunidade, sendo
produto de relações sociais, por consequência, de suas disputas e
conflitos (FOUCAULT, 1999, p. 473; KUHN, 2006b, p. 268).
Ao tentar compreender o que é a ciência e o que a carac-
teriza, Kuhn não está inserindo-se em um exercício meramente
descritivo, metainterpretativo, mas também em uma disputa po-
lítico epistemológica, pois a epistemologia sempre é política. Está
ingressando em um jogo social que procura definir quais são os
critérios, os referentes, que devem ser levados em conta para dar
cientificidade a um determinado conhecimento. Com isso, enfa-
tiza determinadas práticas e apaga outras, podendo estabelecer a
coerência e o sentido do que nomeia como científico.
Toda definição é produto de um tempo e de um contexto
social, todo significado é político (BAKHTIN, 2010, p. 31, 33, 42,
45, 47, 67). Dizer o que a ciência é, não é captar a essência de
uma tradição. Vai muito além. É enunciar que um determinado
campo é científico e não outro. É interpretar e poder dizer o que
essa tradição significa, quais características possui e o que deve ser
mantido para que ela possa continuar sendo o que é. É dizer o que
ela é, mas, também, lutar pelo que ela deve ser, ou, pelo que ela
deve continuar sendo (KUHN, 2006, p. 257).
Toda definição busca captar e explicar a realidade, contudo,
desempenha um papel muito além do meramente descritivo, possui,
também, uma função normativa. É uma disputa sobre o que a rea-

95
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

lidade significa, bem como o que ela deve significar. As discussões


sobre a ciência não estão fora desse jogo pelos sentidos do real32.
É interessante como Thomas Kuhn (2006, p. 257) admite a di-
mensão normativa de sua teoria. Nas últimas páginas do posfácio de
«A Estrutura das revoluções científicas», aborda de forma precisa a
tensão entre o «ser» e o «dever-ser»: «O ‹é› e o ‹deve› não estão sem-
pre tão completamente separados como pareciam». Admite, igual-
mente, as críticas de autores, como Feyerabend, de que sua teoria tem
a pretensão de dizer como os cientistas se comportam, mas também
como eles devem se comportar (KUHN, 2006b, p. 158). «Devem as
observações de Kuhn a respeito do desenvolvimento científico (...) ser
lidas como descrições ou prescrições? A resposta, é claro, é que devem
ser lidas de ambas as maneiras ao mesmo tempo» (KUHN, 2006b, p.
163). Kuhn não apenas descreve a prática científica, mas sim se insere
em uma disputa sobre o que é a ciência, em uma luta para que um
determinado tipo de prática seja considerada científica.
Falar sobre o sentido normativo de toda teoria epistemológica,
dentre elas a de Thomas Kuhn (2006 p. 257; 2006b, p. 158, 162-163),
tem como propósito enunciar que o campo do “dever ser” sempre está
presente nas discussões epistemológica. Sempre há uma competição

32 Qual é a disputa sobre o real que, por exemplo, Thomas Kuhn ingressa? O autor
recorreu à história para elucidar o que a prática científica significa. Para isso,
descreveu as ações desenvolvidas por determinadas tradições, como a Física e a
Química, assumindo-as como parâmetro de cientificidade. Ou seja, está defendendo
que determinado conhecimento e não outro é científico.
A disputa não se restringe a quais conhecimentos devem ser considerados científicos,
mas também como aqueles que assim são considerados devem ser compreendidos,
procurando, inclusive, influenciar seus praticantes. Perspectiva normativa que
Thomas Kuhn (2006b, p. 158) não rejeita. É uma teoria descritiva e prescritiva.

96
Epistemologia e Pesquisa em Direito

pela realidade, pelo que ela é e pelo que ela deve ser. Falar sobre ciên-
cia é ingressar em um conflito político, descritivo e prescritivo33.

3 – Ciência e sociedade
Até aqui, tentou-se deixar claro que a epistemologia vai mui-
to além de definir o que é a ciência, é uma competição constante
sobre o seu significado. Os epistemólogos fazem mais do que des-
crever algo, disputam, permanentemente, quais práticas devem ser
consideradas científicas e como devem se comportar aquelas assim
consideradas. São descritivos, mas também normativos. Dizer o
que é a ciência é também produzi-la, pois o olhar é indissociável
da construção do objeto.
A linguagem não é o espelho da realidade, mas uma produ-
ção social, portanto, jamais neutra ou atemporal. Thomas Kuhn
(2006b, p. 124, 233, 250-251, 270) esforça-se para demonstrar que
a neutralidade não está em nenhum lugar, nem mesmo nas ciên-
cias físicas. Não há uma linguagem comum a todas as teorias que

33 Essa disputa fica muito clara no posfácio de “A estrutura das revoluções científicas”,
pois imediatamente após assumir que sua teoria é normativa, Kuhn (2006, p. 257)
assevera: “Embora essa teoria não necessite ser correta, não mais que qualquer outra
(...) uma das razões para que se tome a teoria a sério é a de que os cientistas, cujos
métodos foram desenvolvidos e selecionados em vista de seu sucesso, realmente
comportam-se como prescreve a teoria”.
Logo após dizer que sua teoria é normativa, tenta justificar porque ela deve ser
levada mais a sério do que outras. Kuhn (2006, p. 257) procura justificar a
superioridade de sua teoria com base em uma análise explicativa: os cientistas “...
realmente comportam-se como prescreve a teoria”. No entanto, pode-se perguntar:
quais cientistas comportam-se como prescreve a teoria? Aqueles “...selecionados em
vista de seu sucesso...”. Entretanto, o que pode definir o que é sucesso e fracasso é
a própria teoria que Kuhn adota e utiliza. Tal parágrafo comprova não apenas a
circularidade entre dado e teoria, ser e dever ser, mas, também, como a teoria de
Thomas Kuhn é mais uma disputa pelo significado da ciência.

97
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

possa explicá-las indistintamente. Não há um nível mínimo, não


teórico, em que os termos sejam neutros34.
A linguagem é um produto social, podendo desenvolver-se
somente como propriedade de uma comunidade. Ao mesmo tem-
po, ela é um pré-requisito para a existência da comunidade que a
detém, pois apenas se pode conviver socialmente compartilhando
sentidos sobre o mundo. É um depósito de sedimentações coletivas
que podem ser transmitidas como totalidades coerentes, sem que
seja necessário reconstruir seus processos originais de formação
(BARROS, 2008, p. 10-12; BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 97,
209-211; NIETZSCHE, 2008, p. 29).
A interdependência entre linguagem e comunidade não é es-
tranha à ciência. Kuhn (2011) compreende e explora muito bem esse
aspecto ao colocar no centro de sua teoria os conceitos “comunidade
científica” e “paradigma”35. É a posse de um paradigma que institui a
comunidade, ao mesmo tempo, é a comunidade que por meio de suas
práticas reproduz o paradigma36 (KUHN, 2011, p. 312-313).

34 “Não há nenhuma linguagem neutra na qual tanto ambas as teorias quanto os dados
relevantes possam ser traduzidos para fins de comparação” (KUHN, 2006b, p. 250-251)
35 Como já foi dito em nota anterior, em um momento posterior à publicação de “A estrutura
das revoluções científicas”, Kuhn (2006b, p. 271) abandona o termo paradigma.
36 Thomas Kuhn (2011, p. 311) desenvolve um enorme incomodo com o termo
paradigma, pois para ele o conceito se tornou “...quase tudo para qualquer pessoa...”.
Acredita que ele mesmo foi um dos principais responsáveis por essa confusão ao abusar
das metáforas, usando, por exemplo, com frequência, o verbo “ver” em um duplo
sentido “visual” e “conceitual” (KUHN, 2006, p. 241; 2006b, p. 49, 80). Procura,
então, rever sua definição caminhando para um sentido mais limitado do termo, até
abandoná-lo. Ao revisar sua própria teoria, Kuhn aproxima a definição de paradigma
de uma imagem restritiva de linguagem, entendendo-a a partir de uma perspectiva
sintático/semântica, excluindo ou colocando em uma dimensão secundária outros
modos de simbolização do real, como por exemplo, as metáforas visuais. Isso pode
ser exemplificado na seguinte citação: “Minha discussão original descrevia formas
tanto não-linguísticas quanto linguísticas de incomensurabilidade. Penso agora que
isso foi uma ampliação exagerada, resultante de minha falha em reconhecer que uma

98
Epistemologia e Pesquisa em Direito

A ciência é uma forma de entender o mundo, de classificá-lo,


de hierarquizá-lo, de nomeá-lo. É uma linguagem específica sobre
ele, estabelecendo uma lógica e moldando cognições, permitindo
que uma comunidade científica possa sedimentar suas conclusões
e transmiti-las aos novos membros sem ter a necessidade de re-
construir os pressupostos iniciais. O aprendizado de uma ciência
é o aprendizado de uma linguagem (KUHN, 2006, p. 177-178;
2006b, p. 44, 69, 86, 268).
Historicamente, a Física foi considerada como o grande sím-
bolo de cientificidade, pois era vista como neutra e universal. Era
o paradigma do conhecimento, por meio do qual se podia medir
o restante da cultura. No entanto, com base nas contribuições de
Kuhn, compreendeu-se que ela possuía enorme semelhança com
a comunicação ordinária, pois, ao contrário do que se pensava,
não capta a essência das coisas, mas é uma forma de compreen-
der diante de tantas outras. É uma linguagem produtora de uma
comunidade e produzida nela (RORTY, 1988, p. 252). Epistemo-
logicamente, tais contribuições permitiram apresentar poderosos
argumentos contra as crenças positivistas mais profundas.
Ao aproximar o dado físico do signo, Kuhn coloca em evidên-
cia a questão do referente, podendo compreender a Física com base
nas contribuições da linguística. Essa conclusão é relevante, pois os
estudos sobre a linguagem não são estáticos nem se assentam sobre
pressupostos únicos, ao contrário, possuem inúmeras divergências
que vêm sendo desenvolvidas desde antes e para além da década de
1960, quando foi publicado “A estrutura das revoluções científicas”.
Dizer que Kuhn aproxima a Física da linguística permite que
seja feita uma importante indagação, geralmente negligenciada

grande parte do componente aparentemente não-linguístico era adquirida junto com


a linguagem durante o processo de aprendizagem” (KUHN, 2006b, p. 80)

99
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

quando se estuda esse autor: qual é a concepção de linguagem que


está assentada a teoria kuhniana? O valor desse questionamento
está em tentar entender quais são os pressupostos assumidos por
Thomas Kuhn e nem sempre explicitados. Revelar as pré-compre-
ensões desse autor permitirá aprofundar na crítica à própria ideia
de cientificidade, não apenas da Física, mas de todas aquelas con-
cepções que ainda procuram separar a verdade de relações sociais
e, portanto, de relações de poder.
Não é necessário ir longe para entender de onde Thomas
Kuhn parte. Já no título do seu principal livro “A ‘Estrutura’ das
revoluções científicas” (grifo nosso), ele deixa claro suas inclinações
estruturalistas37. Essa pressuposição tem influência em toda sua teo-
ria. É por compreender a linguagem como estrutura, portanto, assu-
mindo uma perspectiva formalista, que Kuhn adota um vocabulário
binário para explicar o desenvolvimento científico. Não é à toa que,
com frequência, parte de dicotomias que reforçam o binômio “estru-
turado/não estruturado”, a exemplo do normal/revolucionário.
Explicitar o formalismo linguístico kuhniano gera consequ-
ências para a compreensão da relação entre epistemologia e políti-
ca. Sendo a ciência semelhante a uma conversação ordinária, por-
tanto a uma produção social como qualquer outra, sua linguagem
e sua comunidade somente podem ser instituídas, como quaisquer
outras comunidades e linguagens, ou seja, com base em relações
sociais complexas. Uma linguagem ou o paradigma científico são
indissociáveis do contexto que os produziram.
A produção do conhecimento científico é inseparável do seu
tempo. Ela é fruto e, igualmente, geradora de um momento social,

37 A tendências estruturalistas de sua teoria são enunciadas pelo próprio autor


(KUHN, 2006b, p. 82): “Ao contrário de muitas pessoas que compartilham minhas
inclinações, em geral estruturalistas […]”.

100
Epistemologia e Pesquisa em Direito

com suas relações econômicas, simbólicas, emocionais, culturais


próprias. Não é possível dissociar a produção de saberes, sejam eles
quais forem, dessas interações.
Thomas Kuhn (2006, p. 14-15, 97; 2006b, p. 139, 350) não des-
considera a relevância dos “fatores externos”, tais como a economia e
a política, para o desenvolvimento científico, entretanto, esforça-se em
enunciar a história “interna” da ciência, suas particularidades e sua ló-
gica. Está preocupado em demonstrar que a ciência possui sua especi-
ficidade, para além das relações de poder, de interesse e de autoridade,
sem desconsiderar a importância delas38.
Pode-se, contudo, indagar: será realmente possível fazer uma his-
tória interna da ciência dissociada ou mesmo colocando em segundo
plano o contexto social, cultural, emocional, simbólico, político que
essa linguagem está inserida? A pergunta não é retórica, mas uma in-
quietação real. Este ensaio mantém sua desconfiança, como se verá39.

38 Thomas Kuhn (2006, p. 14-15) não explora profundamente a importância dos


fatores sociais para o desenvolvimento da ciência: “...com exceção de breves notas
laterais, eu nada disse a respeito do papel do avanço tecnológico ou das condições
sociais, econômicas e intelectuais externas ao desenvolvimento científico”. No
entanto, reconhece a importância deles: “Embora sejam imensamente importantes,
questões dessa natureza estão além dos limites deste ensaio” (KUHN, 2006, p. 97).
As análises interna e externa do desenvolvimento científico não podem ser
dissociadas, muito menos consideradas dimensões estanques. Em alguns momentos,
como resultado da sua pré-compreensão linguística, Thomas Kuhn acaba exacerbando
essa dicotomia: “Uma das leis mais fortes, ainda que não escritas, da vida científica
é a proibição de apelar a chefes de Estado ou ao povo em geral quando está em jogo
um assunto relativo à ciência” (KUHN, 2006, p. 212). Esse pode até ser um senso
comum interno às comunidades científicas, mas jamais um pressuposto válido e
correspondente a suas práticas, como se esforça em demonstrar Feyerabend (2007).
39 Kuhn acha possível, bem como necessário, que a história interna da ciência
seja produzida. Enfrenta permanentemente o que chamou de “programa forte”,
aqueles teóricos que não conseguem dissociar, em momento algum, as verdades
científicas das políticas, tornando-se o conhecimento científico apenas “a crença
dos poderosos”. Assume que interesses, poder e autoridade possuem seu papel no

101
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

4 – O sujeito e a linguagem
O movimento estruturalista assume a linguagem como uma
estrutura fechada e autorreferente, como um jogo que segue suas
próprias regras40 (DOSSE, 2007, p. 12, 86; 2007b, p. 61-62). O xa-
drez é uma metáfora bastante usada por seus teóricos. A língua, a
exemplo de um jogo, é um sistema que conhece e funciona exclu-
sivamente com base em sua lógica interna e suas leis, podendo ser
apreendido somente como uma totalidade41 (SAUSSURE, 1999,
p. 31-32; KUHN, 2006, p. 61; 2006b, p. 56).
O xadrez, o baralho e qualquer outro jogo possuem suas es-
truturas, por meio das quais podem ser jogados. São regras, pa-
drões, interdependências que se condicionam, que apenas fazem
sentido quando analisadas como um todo. Pode-se alterar as pe-
ças ou os jogadores, isso é indiferente, o jogo continuará sendo o
mesmo, mas todo ele irá transformar-se em outro caso uma única
norma seja modificada. Não será mais aquele anterior, torna-se
um novo. Troca-se uma estrutura por outra, uma linguagem por
outra, um paradigma por outro, uma totalidade por outra42. Não

desenvolvimento científico, mas está preocupado em demonstrar o que mais, além


disso, pode possuir um papel relevante (KUHN, 2006b, p. 139, 145, 147).
40 É difícil e até um pouco simplista uniformizar a visão de linguagem assumida pelo
movimento estruturalista. Há uma multiplicidade de autores que frequentemente
discordam entre si. Não se entrará nessa discussão por não ser o objetivo deste
trabalho. Para os interessados, sugere-se a leitura de DOSSE, François. História do
estruturalismo: o campo do signo. Tradução de Álvaro Cabral. Revisão técnica de
Marcia Mansor D´Alessio. Bauru, São Paulo: Edusc, 2007.
41 O principal autor dessa forma de compreender a linguagem é Ferdinand Saussure (1999).
42 Em um jogo uma regra não pode ser vista de forma isolada, pois uma determina a outra,
sendo na interação, no autocondicionamento, entre todas que a lógica do sistema será
instituída. “Se eu substituir uma peça de madeira por uma de marfim, a troca será
indiferente para o sistema; mas se eu reduzir ou aumentar o número de peças, essa
mudança atingirá profundamente a gramática do jogo” (SAUSSURE, 1999, p. 32).

102
Epistemologia e Pesquisa em Direito

há transições sutis, mas revolucionárias, pois estruturas são assu-


midas ou abandonadas como um todo43 (BAKHTIN, 2010, p. 81;
DOSSE, 2007, p. 86).
O olhar estruturalista assume a linguagem como sendo re-
sultado de um processo social, no entanto, confere importância
somente à lógica interna, desconsiderando os fatores considerados
externos. Como afirma Saussure (1999), a língua só conhece sua
própria ordem. Não importa o que a levou a transformar-se no que
ela é, mas sim qual é a lógica que permite o seu funcionamento e
que produz suas significações (DOSSE, 2007, p. 86, 87, 171, 276,
284, 311-312; SAUSSURE, 1999, p. 31, 105).
Dissocia-se a linguagem da história. São criadas duas dimen-
sões distintas, a interna e a externa. Para a análise da língua como
sistema significante e coerente deve-se ater aos fatores internos,
à sua racionalidade, sendo desnecessário, bem como prejudicial,
levar em consideração sua historicidade, entendida como externa
à lógica linguística. O sistema é um objeto acabado, estagnado,

43 Por adotar uma perspectiva formalista da linguagem, Kuhn compreende o processo


de desenvolvimento da ciência com base na dicotomia normal/revolucionário. O
processo cumulativo de conhecimento somente pode ocorrer no interior de uma
mesma estrutura, quando ela é substituída por outra, quando um paradigma
é substituído por outro, todo o tesouro linguístico perde-se, abandonando as
aquisições anteriores e inaugurando um novo jogo com sua lógica própria e
aquisições particulares. As revoluções científicas são episódios de desenvolvimento
não-cumulativos (KUHN, 2006, p. 125; SAUSSURE, 1999, p. 21, 143).
Estruturas devem ser assumidas ou abandonadas como um todo, pois são unidades
lógicas, assim, para Thomas Kuhn (2006b, p. 41-43) as revoluções científicas possuem
três características centrais: 1) são holísticas, não ocorrem de forma gradual; 2) Há
a transformação na forma que as palavras ligam-se à natureza, na maneira em que
são determinados seus referentes; 3) Há a alteração na rede de similaridades. O que
pertencia a uma família natural deixa de pertencer, passando a integrar outra.
A mudança da estrutura é entendida como um processo holístico, que altera
integralmente a lógica do jogo, bem como as redes de referentes e similaridades que
permitem que o conhecimento possa acumular.

103
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

formal, já a história é o domínio do irracional, capaz de corromper


a pureza lógica da língua. Em síntese, a estrutura é um sistema for-
mal e autorreferente, acepção que gera como consequência mais
evidente a negação da história e sua despolitização44 (BAKHTIN,
2010, p. 84, 90, 107).
Kuhn, por possuir influências estruturalistas, constrói um
modelo de ciência normal despolitizado. Ao cientista cabe obe-
decer exclusivamente à lógica interna do sistema. Uma vez que
o paradigma instituiu-se, compete ao jogador assumir suas regras
e procurar complementar o quebra-cabeça. A história deixa de
ser importante. Os fatores políticos, sociais, culturais que estão
envolvidos nessa prática ou que geraram sua produção tornam-

44 É importante ressaltar duas importantes razões históricas que contribuíram para o


advento da linguística formalista, base do estruturalismo. A primeira é o paralelo
entre o código linguístico e o código matemático, fruto de um momento epistêmico
fortemente marcado pela visão de cientificidade positivista, com suas pretensões de
universalidade e objetividade (neutralidade, formalidade) (DOSSE, 2007, p. 42, 242,
292-293, 380). Bakhtin (2010, p. 86) sintetiza muito bem essa influência: “Ao espírito
orientado para a matemática, dos racionalistas, o que interessa não é a relação do
signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo que o engendra, mas a
relação de signo para signo no interior de um sistema fechado, e não obstante aceito e
integrado. Em outras palavras, só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de
signos; este é considerado, assim como na lógica, independentemente por completo
das significações ideológicas que a ele se ligam (...) o signo matemático era, para os
racionalistas, o signo por excelência, o modelo semiótico, inclusive da língua.”
A segunda razão é a origem dos estudos linguísticos, fortemente marcados pela
filologia, ou seja, elaborados com base em línguas mortas conservadas em textos
escritos. A linguística nasce da filologia e elabora suas conclusões, seus métodos e
categorias, trabalhando com monólogos fechados encontrados, por exemplo, em
monumentos antigos. Tais escritos são vestígios de línguas mortas, que para serem
desvendados devem ser interpretados com base em suas relações internas, como todos
isolados que bastam a si mesmos desvinculados do contexto social complexo que os
geraram. Nesse contexto, não apenas a dimensão política da estrutura que se perde,
mas também, todo papel ativo do indivíduo na produção da língua. O indivíduo que
vivência a língua não é visto como um sujeito ativo na transformação da estrutura,
mas sim como um jogador passivo e submetido a ela (BAKHTIN, 2010, p. 100-103).

104
Epistemologia e Pesquisa em Direito

-se irrelevantes para os seus praticantes, ou secundários, pois são


considerados externos. Levá-los em consideração não é bem-visto,
como pode ser danoso à prática científica normal. Não faz parte
da atividade científica ordinária questionar a estrutura ou refletir
sobre seus pressupostos, mas sim assumir o jogo, o quebra cabeça,
instituído por ela. O bom jogador não é aquele que questiona a
língua, mas aquele que possui enorme desenvoltura nela (KUHN,
2006, p. 177-178; 2006b, p.122; 2011, p. 241-255).
Ao cientista cabe compreender a lógica interna e, então, agir,
sendo desimportantes os fatores externos, despolitizando sua ação.
Para que o conhecimento gerado servirá? Quais os jogos de poder
e as hierarquias que determinam o que será produzido? Tudo isso
será considerado uma dimensão externa ao saber científico. Dico-
tomia que reforça a possibilidade de pureza interna.
Não é apenas a relação entre sistema e história que merece
atenção, a relação entre indivíduo e linguagem, cientista e ciência,
também deve ser analisada. Os estudos epistemológicos não são
apenas descritivos, mas também normativos, ao falar sobre qual
papel compete ao cientista, não está meramente descrevendo uma
prática, está induzindo e lutando por um determinado ponto de
vista. Está dizendo o que o cientista faz e como se porta, bem
como o que ele deve fazer e como deve portar-se.
A teoria estruturalista notabilizou-se pela negação do sujeito
diante da estrutura, o que ficou conhecido como “a morte do sujei-
to” (DOSSE, 2007, p. 91-92, 175, 334). Kuhn (2006b, p. 130-131),
no mesmo sentido, nega (limita fortemente) o papel do cientista
diante do paradigma. O paradigma é a estrutura, o léxico, o “[...]
módulo na mente de um membro individual do grupo”, que ofere-
cerá as precondições das experiências possíveis. Ao cientista não
cabe questionar o jogo, mas assumi-lo, deixar-se guiar por ele. É

105
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

indivíduo passivo, sujeitado, que age dentro de uma estrutura vi-


venciada conscientemente e inconscientemente.
A língua como estrutura formal, intersubjetiva, impõe-se
como norma peremptória ao indivíduo, cabendo-lhe aceitá-la
como tal. Essa afirmação não deve ser encarada de modo sim-
plista. Como já dizia Thomas Kuhn, o paradigma não é apenas a
aceitação consciente de um conjunto de regras, é bem mais do que
isso, é um conjunto de crenças, é uma forma de pensar e compre-
ender a realidade que molda, inclusive, a percepção do cientista.
O paradigma não produz apenas o objeto ao rearticular os refe-
rentes e as redes de similaridades, mas gera o próprio sujeito, ao
estruturá-lo e permiti-lhe existência.
As regras linguísticas produzem o jogo, contudo, geram
igualmente o jogador ao estruturar seu pensamento e percepção,
criando as precondições das experiências possíveis. Irá pensar e
perceber com base no léxico paradigmático. A prática científica
normal kuhniana é a imersão em um jogo em que se é constituído
e determinado por ele. O cientista não existe externamente ao
jogo, mas vivencia-o como sendo a única realidade possível. Na
prática científica normal kuhniana não importa quem é o cientis-
ta, ele é meramente uma peça que poderá ser substituída sem pre-
juízo algum para o paradigma, é a estrutura o realmente relevante,
pois ela que definirá a prática científica normal.
O estruturalismo mata o sujeito ao transformá-lo em um jo-
gador meramente passivo, ao retirar-lhe qualquer capacidade de
enunciação, de modificação da língua, pois qualquer mudança no
interior do sistema ultrapassa os limites de sua consciência indivi-
dual (BAKHTIN, 2010, p. 81). A análise epistemológica kuhniana
incorre na mesma falta, relegando ao cientista a solução de um
quebra-cabeça e a produção de soluções padrão.

106
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Enfim, pode-se concluir que a despeito de Thomas Kuhn


produzir um conhecimento fundamental para o enfrentamento do
positivismo, ao aproximar o dado físico do signo linguístico, explici-
tando a importância do referente para a Física, ele alicerça sua teo-
ria em uma pré-compreensão linguística formalista, bastante marca-
da por influências positivistas (DOSSE, 2007, p. 42, 380, 489-490).

5 – Politizando a comunidade e o paradigma


O movimento estruturalista foi duramente questionado em
razão do seu formalismo e do apagamento do sujeito. Como rea-
ção a ele, tentou-se politizar a linguagem, enfrentando sua pureza
lógica, demonstrando que relações de poder não são externas à
língua, mas constitutivas dela, bem como que o sujeito não é ex-
clusivamente determinado pela estrutura, mas, igualmente, enun-
ciador, modificando permanentemente as redes semióticas em que
está imerso. Para isso, foi fundamental romper a dicotomia histó-
ria/língua (diacronia/sincronia), demonstrando que todo sistema
somente pode ser pensado em um contexto social complexo e pro-
cessual (DOSSE, 2007b, p.63-64).
Com base nos questionamentos ao formalismo linguístico,
pode-se problematizar duas noções centrais em Thomaz Kuhn
(2011, p. 312-313), a de paradigma e a de comunidade científica.
Para esse autor, são conceitos indissociáveis. É a posse de um pa-
radigma que institui uma comunidade científica, ao mesmo tempo
em que um paradigma é aquilo que os membros de uma comuni-
dade científica, e somente eles, compartilham.
Relações de poder não são externas, mas instituintes, indis-
sociáveis de toda produção de saber, e em relação à ciência não
é diferente. Defender a dicotomia entre a pureza lógica interna e
os fatores políticos externos é mais uma forma de compreender o

107
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

científico como possuidor de um status epistemológico privilegia-


do sobre outras formas de conhecer. É permanecer na ideia de que
há o científico para além do político.
Dizer que o paradigma é uma experiência comunitária não é
pouco. Porém, para compreender a importância dessa afirmação,
deve-se entender de forma recursiva a relação entre o paradigma
e a comunidade. Deve-se enfrentar a acepção formalista que eli-
mina o sujeito ao sujeitá-lo a um conjunto de regras intersubjeti-
vas em que ele não tem papel algum na sua produção. A língua
como sistema sincrônico e a-histórico existe apenas como uma
abstração teórica. Não há um léxico, uma estrutura estática que é
pré-condição do pensar e condição de toda experiência possível.
Todo sistema simbólico, entre eles o paradigma científico, é desen-
volvido de forma comunitária, em relações humanas complexas,
indissociáveis do seu tempo social (BAKHTIN, 2010, p. 94-95).
Pode-se, assim, reafirmar que a ciência é indissociável da sua
ocidentalidade. A valorização dela é a valorização de uma forma
de conhecer, de sentir, de corporalidade e de produção que per-
mite o desenvolvimento das sociedades moderno-civilizadas. É
indissociável de uma forma particular de relacionamento humano
(ELIAS, 2011, p. 70).
Não há como desvincular o privilégio concedido à ciência
da expansão da racionalidade técnica-instrumental; das relações
de poder disciplinares; de uma forma específica de produção de
corpos e sentimentalidades civilizadas; do modo econômico ca-
pitalista. Seu privilégio epistêmico é indissociável da autorrefe-
rencialidade moderna, que compreende seu conhecimento como
melhor, bem como sua forma de relacionar, sua forma de sentir
e sua forma de pensar como superiores (ELIAS, 2011, p. 70, 111,
116, 118; FOUCAULT, 2005, p. 143).

108
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Enfrentar a pureza lógica estruturalista não é apenas uma


discussão filosófica vazia. É romper com a dicotomia externo e
interno e, assim, poder apresentar novas bases epistêmicas para
dizer que a ciência é um produto de relações humanas, devendo
ser analisada de forma complexa e ética.

6 – Direito, ética e normatividade


Procurou-se demonstrar que a grande contribuição de Tho-
mas Kuhn foi aproximar o dado físico do signo linguístico, ofere-
cendo poderosos argumentos para o ataque ao positivismo indu-
tivista. No entanto, o autor ainda está preso a uma perspectiva
formalista de linguagem, que tem como consequência a reafirma-
ção da dicotomia entre sistema da ciência, com sua pureza lógica,
e fatores externos, a exemplo da política e da ética.
A ciência é uma linguagem entre tantas outras, portanto, um
produto social que somente se realiza em disputas éticas e políticas que
são próprias de todas as relações humanas. A ética e o poder não são
externos, mas constitutivos, implícito a toda linguagem. Defender o
contrário é continuar agarrado ao purismo lógico abstrato formalista.
Por fim, o texto trouxe que a discussão sobre epistemologia
não é apenas descritiva, mas normativa. Os epistemólogos procu-
ram descrever a prática científica, mas, também, lutam por seu
significado. Isso possui consequências profundas para se pensar
a pesquisa em Direito. Não é possível chegar ao significado ori-
ginal, pois não há linearidade entre palavras e coisas, mas uma
permanente disputa pelos significados. Não é apenas o conceito
de ciência que está imerso em uma prática descritiva e normativa,
mas o próprio conceito de Direito.

109
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Desenvolver pesquisa em Direito é antes de tudo adentrar


em uma batalha ético-política permanente sobre o que é a ciência
e o que é o Direito, sendo impossível chegar ao termo final.

110
Projeto de Pesquisa

A elaboração de um projeto de pesquisa assemelha-se a uma


viagem. Os primeiros passos dizem respeito à escolha do roteiro,
quais lugares visitar, em quanto tempo, etc. Evidentemente, as es-
colhas se dão por preferências pessoais, tais como: mar ou monta-
nha, passeios ecológicos ou urbanos, luxuosos ou rústicos, etc. Em
seguida deve-se adequar as escolhas possíveis ao orçamento, meio
de transporte e tempo disponível. Logo, algumas limitações devem
ser consideradas: caso o desejo seja ir de São Paulo à Patagônia de
carro, será impossível fazê-lo em uma semana; se a disponibilidade
financeira for de dois mil reais não será viável um cruzeiro pelo
Caribe com a família; se o viajante não tiver noções básicas de
alpinismo, não é recomendável que opte por uma escalada ao Pico
da Bandeira. Pode-se perceber que a definição inicial da viagem
corresponde à definição do tema de pesquisa.
Uma vez identificada a opção básica de viagem, é possível
iniciar o seu planejamento, que para os efeitos aqui desejados,
equivale ao projeto de pesquisa. Definido, hipoteticamente que
a viagem será de Brasília até Porto Alegre, devem ser decididos
alguns dos elementos citados anteriormente: o meio de transporte
será o automóvel; o viajante irá sozinho; o dinheiro destinado é
cinco mil e cem reais; o roteiro mesclará partes de praias, monta-
nha e cidades grandes; a viagem será feita no verão.
Diante desse quadro já é possível fazer o roteiro de viagem,
que será o seguinte:
Brasília – São Paulo (um dia de viagem) – cinco dias na capital;
São Paulo – Curitiba (um dia de viagem) – cinco dias na capital;
Curitiba – Camboriú (três horas de viagem) – três dias;

111
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Camboriú – Florianópolis (uma hora de viagem) – quatro dias;


Florianópolis – Garopaba (uma hora de viagem) – dois dias;
Garopaba – Gramado (três horas de viagem) – dois dias;
Gramado – Porto Alegre (três horas de viagem) – cinco dias
na capital;
Porto Alegre – Brasília (dois dias de viagem).
Total – trinta dias.
É possível, a partir desse roteiro básico, detalhar ainda mais
o plano de viagem, calculando, por exemplo, o gasto médio diá-
rio, que terá de ser de cento e setenta reais. Esse valor deverá ser
dividido entre alimentação, gasolina, hospedagem e passeios. Em
algumas cidades, a hospedagem ficará sem custo, pois será feita
na casa de amigos. O dinheiro restante ficará como reserva. Por
fim, será feito o planejamento dos passeios, conforme informações
obtidas em várias fontes (guias de viagem, internet, pessoas que já
fizeram roteiro semelhante, etc.).
Ao final do processo acima, iniciam-se as tão esperadas fé-
rias, com o compromisso do viajante de relatar detalhadamente o
ocorrido, para elaborar um diário de viagem, com textos e fotos.
Inicia-se a viagem, conforme programado. Logo o viajante
está na capital de São Paulo e a programação de passar ali cinco
dias é abreviada para dois dias em função de ele perceber que a
cidade grande não oferecia a ele o desejado descanso.
Três dias depois ele está em Curitiba. Hospeda-se na casa de
amigos, conhece a cidade e é convidado a visitar a Ilha do Mel, no
litoral do Paraná. Ali percebe aquilo que realmente buscava: paz e
tranquilidade fora da agitação dos grandes centros urbanos.
Desse ponto em diante, o roteiro inicial é alterado com o ob-
jetivo de propiciar ao viajante descanso e contato com a natureza.

112
Epistemologia e Pesquisa em Direito

Privilegiou-se praias pouco ocupadas e montanhas, dando-se ên-


fase a passeios ecológicos. Suprimiu-se a passagem por Camboriú,
a estada em Porto Alegre foi reduzida, e o retorno a Brasília foi
feito com mais calma, em três dias.
Ao retornar, o viajante reúne seus amigos para fazer um re-
lato da viagem e mostrar as fotos tiradas no passeio. No grupo de
amigos há outro viajante, que no inverno anterior fez percurso
muito semelhante, e passa a contar sua experiência.
Ao confrontarem os relatos, os viajantes percebem que fize-
ram viagens muito distintas. Enquanto o primeiro fez o percurso
no verão, privilegiando praias e montanhas, o segundo fez o per-
curso no inverno, dando maior atenção às grandes cidades. Um
fez passeios ecológicos e bucólicos, outro roteiros culturais e gas-
tronômicos. Um tinha muitas fotos de paisagens e pessoas, outro,
poucas fotos, a maioria tirada à noite.
Os dois viajantes perceberam perspectivas totalmente dife-
rentes das mesmas cidades que visitaram, e puderam trocar expe-
riências e enriquecer seu conhecimento sobre os locais visitados.
O primeiro passo para a elaboração de um projeto de pes-
quisa e consequente realização é a escolha do tema, a exemplo da
viagem, a escolha do destino. Identificar a área em que se deseja
trabalhar envolve diversos fatores: conhecimento prévio do assun-
to; disponibilidade de material; possibilidade de realização; ade-
quabilidade às linhas de pesquisa da instituição; possibilidade de
orientação; limitação de tempo de pesquisa, etc. Porém, o primeiro
e mais relevante fator a influenciar na escolha do tema é a paixão
do pesquisador pelo seu objeto de estudo. O envolvimento efetivo
com a pesquisa a ser realizada é o primeiro passo a ser dado na
concretização de uma pesquisa acadêmica de qualidade.

113
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

É comum que o pesquisador iniciante tenha dúvidas sobre


qual ramo do conhecimento, qual área, qual tema lhe desperta
mais interesse. O primeiro mecanismo para a escolha se dá por
exclusão: o estudante deve afastar de seu leque de opções aqueles
temas que despertem resistência à possibilidade de realização de
um trabalho acadêmico, bem como aqueles que lhe pareçam indi-
ferentes. Uma vez cumprida esta etapa, o pesquisador deve elencar
os temas que ele tem mais interesse em desenvolver, para em se-
guida confrontá-los com os demais fatores determinantes na esco-
lha. Ressalte-se que já nessa etapa o estudante pode ter definido
um tema pelo qual ele tenha interesse prioritário, devendo, então,
realizar o mesmo processo.
A primeira pergunta a ser feita é a seguinte: eu tenho possi-
bilidade de realizar uma pesquisa sobre esse assunto?
A profundidade do tema é um aspecto da pergunta acima,
pois o aluno deve escolher para si um assunto no qual ele possua
os pressupostos para pesquisá-lo. Por exemplo, um estudante do
quinto ano do curso de Direito, que deve apresentar sua mono-
grafia final de curso em, no máximo, seis meses, dificilmente terá
condições de realizar uma pesquisa sobre psicanálise e direito se
não conhecer previamente o tema. Como dito, não tem como pla-
nejar uma viagem de férias para o Pico da Bandeira se não tiver
noções de alpinismo nem tempo ou disponibilidade para aprender.
Logo, o pesquisador deve ter em mente o prazo e as condições de
que disporá para desenvolver o trabalho.
Quanto ao conhecimento básico sobre o tema a ser escolhi-
do, deve-se dar relevância aos assuntos nos quais o estudante já te-
nha um mínimo de desenvoltura, até porque normalmente sabe-se
mais daquilo que mais agrada, ou, caso o tema desperte interesse
e o aluno ainda não o conheça suficientemente, que aprofunde
os estudos iniciais antes de optar pelo tema. Ou seja, qualquer

114
Epistemologia e Pesquisa em Direito

que seja o assunto, para que seja possível avaliar a possibilidade


do desenvolvimento de uma pesquisa, é necessário dominar o seu
conteúdo através de um conhecimento preliminar ou exploratório,
antes de iniciar a elaboração do projeto de pesquisa, faz-se neces-
sário aprofundar o conhecimento do tema.
Uma vez definido o tema a ser trabalhado, outro ponto
fundamental da pesquisa é a problematização. Normalmente, ao
pensar em um tema, o pesquisador tem em mente uma pergunta
a ser respondida pelo trabalho. Essa pergunta é o Problema que
norteará todo o caminho a ser percorrido. A problematização é
também uma forma de delimitar a temática a ser trabalhada, pois
os temas são muito amplos para serem desenvolvidos em trabalhos
acadêmicos de duração limitada.
Os pesquisadores iniciantes tendem a buscar assuntos mui-
to amplos, que, se não forem problematizados, gerarão trabalhos
genéricos, superficiais. É como em uma viagem em que se almeja
conhecer diversos lugares em um curto período. Ela será corrida
e rasteira. Não se conhecerá, de fato, lugar algum com profun-
didade, realizando um roteiro superficial, limitando-se ao “senso
comum turístico”.
Além da problematização, a delimitação temática se dá por
duas outras formas: espaço e tempo. Nessas duas, a delimitação
da pesquisa decorre da escolha do próprio objeto de estudo, por
exemplo: uma pesquisa de como o Judiciário analisa as questões de
direito sanitário pode resultar muito ampla. O pesquisador então
passa a analisar as decisões judiciais no Estado de São Paulo (de-
limitação espacial) ocorridas após a promulgação da Constituição
de 1988 até os dias de hoje (delimitação temporal).
A problematização definirá também os objetivos pretendidos
com a pesquisa, pois ao buscar responder a uma determinada per-

115
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

gunta sobre o tema proposto, o pesquisador atinge metas com seu


trabalho, e esses objetivos não são caracterizados de forma aleató-
ria, há um planejamento a ser feito no projeto, ainda que não se
tenha controle total sobre eles.
Outro ponto a ser ressaltado no projeto de pesquisa é o mar-
co teórico que o pesquisador utilizará como base de seu trabalho.
O referencial teórico partilhado pelo pesquisador deve ser expli-
citado na pesquisa, para que o resultado possa ser analisado em
confronto com o marco teórico.
O referencial teórico oferecerá as categorias básicas que per-
mitirão que a pesquisa seja desenvolvida. Por meio dele, o autor
constituirá seu campo de inteligibilidade, tornando-se possível ex-
plorar o objeto. Por exemplo, um viajante que deseja fazer turismo
gastronômico deve possuir uma definição prévia sobre o que signi-
fica esse tipo de viagem. Essa definição básica, que será implícita
ou explícita, oferecerá ao viajante uma compreensão sobre o que
realizará. Permitirá dizer se turismo gastronômico é conhecer os
restaurantes dos moradores locais ou frequentar as praças de ali-
mentação dos shoppings das cidades visitadas.
A ausência de explicitação do referencial teórico em boa par-
te da bibliografia jurídica nacional leva os estudantes a pensarem
que este processo é desnecessário, contudo, constitui uma etapa
fundamental do projeto e da própria pesquisa. Um grande número
de obras jurídicas produzidas nas últimas décadas no Brasil seguiu
um referencial teórico de cunho positivista, porém, esses autores
não expuseram seu posicionamento nesses trabalhos, o que difi-
culta muito a análise de seus fundamentos. Os manuais utilizados
na maior parte dos cursos de Direito, e exigidos nos concursos
públicos possuem o mesmo problema, gerando nos estudantes e
profissionais a sensação de que a fundamentação é dispensável.

116
Epistemologia e Pesquisa em Direito

O marco teórico consiste no conjunto de assertivas de um ou


de vários autores, que irão nortear o encaminhamento da pesquisa.
Ele é produto do posicionamento teórico do autor, ao mesmo tempo
em que define metodologicamente a pesquisa a ser feita. A utiliza-
ção de um referencial teórico positivista fundamentado na teoria
de Hans Kelsen, por exemplo, gerará um resultado completamente
diferenciado de um trabalho que tenha por referência a obra mais
recente de Habermas ou de Boaventura Santos. Contudo, não basta
afirmar a filiação e este o aquele autor, esta ou aquela corrente do
pensamento jurídico, é necessário expor minimamente os argumen-
tos que serão determinantes para a pesquisa em curso.
O projeto de pesquisa deve conter também um tópico que
demonstre a relevância de se realizar a pesquisa pretendida, em
um texto que justifique o esforço a ser despendido. Esse tópico de-
nomina-se justificativa, e nele pode-se expor uma ideia básica do
tema e da proposta de pesquisa. Esse item revela-se especialmente
importante se o projeto for dirigido a alguma agência de fomento
para solicitação de financiamento da pesquisa.
Suponha que fará uma viagem para o litoral com toda a fa-
mília. Um dos seus irmãos deseja ir para o Nordeste, você deseja
conhecer as praias do Sul do país. Ambos terão que convencer o
restante da família sobre qual é a melhor opção, para isso oferecerão
justificativas sobre a relevância, importância e prioridade de ir para
um lugar e não para o outro. A proposta que oferecer os melhores
argumentos, qual seja, que se adéque mais aos interesses da família
ou, no caso da pesquisa, ao edital de fomento, sairá vencedora.
Outro ponto importante do projeto é o plano do trabalho, no
qual o pesquisador deve expor a organização provisória do texto
final da pesquisa. Esse ponto tem por objetivo facilitar a organiza-
ção da redação que virá em seguida, além de permitir uma melhor
visualização do trabalho.

117
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

Da mesma forma que a justificativa, a solicitação de finan-


ciamento exige um orçamento dos gastos a serem realizados ao
longo da pesquisa. Embora o pesquisador iniciante faça os primei-
ros trabalhos com seus próprios recursos, a previsão de despesa
ajuda a manter a pesquisa dentro do orçamento disponível.
Na fase de planejamento contida no projeto é essencial de-
senvolver um cronograma. A sequência das atividades da pesqui-
sa, de acordo com o prazo disponível, torna-se bastante útil para
a realização do trabalho, inclusive para as possíveis correções nos
prazos das fases da pesquisa. É o roteiro da viagem.
A bibliografia do projeto de pesquisa contém todas as obras
que o pesquisador utilizou para fazer o projeto, bem como aquelas
que ele sabe de antemão que são pertinentes ao assunto e deverão
ser lidas para um possível aproveitamento.
Uma vez terminado o projeto, inicia-se a pesquisa propria-
mente dita, buscando-se cumprir todas as etapas previstas. Deve-
-se ressaltar sempre, que a pesquisa só se define totalmente quan-
do o pesquisador termina seu trabalho, pois ao longo de todo o
processo o projeto inicial pode ser alterado.
Outro ponto a ser observado é a escolha do orientador. O
primeiro passo é identificar os pesquisadores que têm interesse na
área de estudo escolhida. O orientador deve ter experiência em
orientar e desenvolver trabalhos sobre o tema proposto. Apesar
dos pesquisadores iniciantes buscarem os professores com quem
têm mais afinidade, essa não é a característica mais importante
para o desenvolvimento do trabalho, ao contrário, a escolha fun-
dada em afinidade pessoal em detrimento da competência na área,
gera normalmente resultados negativos. O trabalho de orientação
é fundamental para uma boa pesquisa, pois eliminas dúvidas, es-
forços inúteis e erros que o pesquisador iniciante costuma come-

118
Epistemologia e Pesquisa em Direito

ter. A relação a ser desenvolvida é de caráter profissional, tendo


deveres e obrigações de ambas as partes.
Cumpridas as etapas da pesquisa, inicia-se a fase de redação
do relatório. Essa fase, nas pesquisas de cunho jurídico, como as
demais pesquisas das ciências humanas, confunde-se com a pró-
pria realização do trabalho, na medida em que a construção do
texto final inicia-se com os primeiros passos da pesquisa. Ou seja,
ao iniciar a leitura e fichamento dos textos a serem utilizados, o
pesquisador já está trabalhando na redação final. Todo processo
de interpretação feito pelo pesquisador está presente em todas as
fases da pesquisa. O que normalmente ocorre é uma fase de orga-
nização do texto final do trabalho.
O texto final de uma pesquisa tem, relativamente a seu conte-
údo, as seguintes partes: introdução, desenvolvimento e conclusão.
A introdução, como o próprio nome diz, serve para introduzir
o trabalho realizado. O leitor deve ter a noção exata do que cons-
titui a pesquisa ao ler a introdução, portanto, ela deve conter uma
descrição do tema, da delimitação temática da problematização, da
forma como foi feita a pesquisa, além de uma descrição sucinta de
cada um dos capítulos e das conclusões. Torna-se claro que boa par-
te do projeto de pesquisa, caso tenha sido seguido, será incorporada
à introdução. Porém deve-se destacar uma observação importante:
a introdução somente deve ser escrita de maneira definitiva após o
término de todo trabalho, pois qualquer alteração no roteiro deve
estar incluída. Usualmente, a introdução é redigida no tempo futu-
ro, pois descreve o trabalho que o leitor vai ter contato em seguida.
O desenvolvimento constitui-se na parte mais importante do
trabalho. Nele é desenvolvida toda argumentação do autor em re-
lação ao tema e sua problematização. Normalmente é dividido em
capítulos e deve ser redigido de forma clara e precisa. Os capítulos

119
Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gongalves Rocha

são divididos conforme a pertinência de seus conteúdos e a neces-


sidade de divisão das etapas da pesquisa. A redação do desenvolvi-
mento segue uma sequência lógica de explicação da pesquisa que
venha a resultar nas conclusões do trabalho.
A conclusão é decorrência natural de todo trabalho. Nela
são retomados os argumentos principais dos capítulos e encadeada
uma explicação lógica dos resultados da pesquisa realizada.
Deve-se ainda observar a forma de redação do texto final.
Usualmente recomenda-se que a redação seja impessoal. Contudo,
já se admite que os textos acadêmicos sejam feitos na primeira
pessoa do singular, o que demostra um envolvimento direto do
pesquisador com o trabalho, ou na primeira pessoa do plural, caso
seja resultado do esforço de uma equipe de pesquisadores. Em todo
caso deve-se evitar a primeira pessoa do plural quando for traba-
lho individual, para que não seja entendido como plural majestáti-
co. A redação na primeira pessoa do plural é admitida em alguns
ambientes acadêmicos quando é feita no intuito de cativar o leitor,
apesar de tratar-se de redação tipicamente literária.
Aspecto importante na redação do texto que merece atenção
especial é a utilização de notas, sobretudo para fazer citações. As
notas surgem ao longo do texto para fornecer ao leitor alguma
informação que não cabe no corpo do trabalho. Elas podem ser
de cunho explicativo, conter um dado relevante do que está sendo
dito no texto, referir-se à tradução ou qualquer outro tipo de in-
formação adicional, mas são usualmente utilizadas para fazer cita-
ções de trechos de obras de autores que foram inseridos no texto.
Ressaltando-se que as citações não são feitas somente no sistema
de notas, é importante descrever sua função e importância.
As citações possuem várias funções, a primeira delas é iden-
tificar a autoria do texto que está sendo transcrito, dessa forma

120
Epistemologia e Pesquisa em Direito

o leitor poderá buscar mais informações caso tenha interesse. A


segunda função é preservar a autoria, para que não seja atribuído a
outro o pensamento de determinado autor. A terceira, que aqui é a
mais importante, é a função de separar o pensamento do pesquisa-
dor iniciante do autor citado, pois os pesquisadores iniciantes, por
um vício de formação, tendem a copiar trechos longos de obras
de vários autores e não identificar a autoria, dando possibilidade
ao leitor para que ele pense ser do pesquisador iniciante a autoria
do texto. Isso tem resultados perversos na elaboração da pesqui-
sa, bem como na formação do estudante, pois ele não aprende a
desenvolver um raciocínio próprio. Evidentemente que a obrigato-
riedade da citação das fontes não pode gerar o resultado contrário,
ou seja, inibir a criatividade do pesquisador, pois sua finalidade
básica é distinguir o que está sendo dito pelo autor do texto e o
que está sendo citado.

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