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O Direito à cidade

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Claudio Carvalho
R aoni Rodrigues

O Direito à cidade

editoraLumen Juris
Rio de Janeiro
2016
Copyright © 2016 by Claudio Carvalho/Raoni Rodrigues

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Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Rosane Abel

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________________________________________
Sobre os autores

CLAUDIO CARVALHO
Advogado. Doutor em Desenvolvimento Regional e Planeja-
mento Urbano. Mestre em Direito. Docente na Universidade Estadu-
al do Sudoeste da Bahia (UESB) das disciplinas Direito Ambiental,
Urbanístico, Agrário. Integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica
Alternativa (NAJA) e Coordenador do Grupo de Pesquisa Direito e
Sociedade (UESB).
E-mail: ccarvalho@uesb.edu.br

RAONI RODRIGUES
Advogado. Especialista em Direito Urbano. Docente em
Cursos Preparatórios das disciplinas Direito Ambiental e Urbanís-
tico. Membro do Grupo de Pesquisa Direito e Sociedade (UESB).
E-mail: raoniarodrigues@gmail.com
Sumário

1 Introduções........................................................................................ 1
2 A cidade e a sua lei............................................................................ 5
2.1 A Cidade .................................................................................... 10
2.1.1 Origens.................................................................................. 10
2.1.2 Industrialização..................................................................... 13
2.1.3 A cidade contemporânea e o seu capitalismo....................... 16
2.1.4 Mas, enfim, o que se entende por cidade?............................ 18
2.2 O Direito..................................................................................... 20
2.2.1 Distorções conceituais.......................................................... 22
2.2.2 Estabelecendo conceitos e contextos.................................... 24
2.2.3 Consumismo como fonte de Direito..................................... 27
2.2.4 As leis urbanísticas............................................................... 29
3 A luta de classes – Um ponto de partida para se compreender
a cidade contemporânea................................................................... 35
4 De que direito à cidade estamos tratando? isolando o nosso
objeto de análise................................................................................. 39
4.1 Palavras de plástico..................................................................... 39
4.2 As características de um direito à cidade real............................ 40
4.3 Os princípios do direito à cidade................................................ 42
5 Uma sistematização do direito à cidade........................................ 45
5.1 Direito de viver na cidade........................................................... 48
5.2 Direito de viver a cidade (vida urbana, bens de consumo coleti-
vo)..................................................................................................... 49
5.3 Direito de participar do planejamento futuro..............................51
6 Fundamentos estratégicos do direito à cidade.............................. 53
7 Os desafios de uma nova política................................................... 57
7.1 Sozinho na multidão – o enfraquecimento político do cidadão
moderno............................................................................................ 57
7.2 A evolução urbana no Brasil....................................................... 62
7.3 A política na cidade global......................................................... 65
8 Conclusões....................................................................................... 69
Referências.......................................................................................... 73
1 Introduções

Por que “introduções” e não simplesmente “introdução”?


A cidade não é um objeto de análise dotado de apenas uma
via de entrada. Podemos ingressar em seu território das mais diversas
formas: pelo sistema viário, pelas linhas férreas, por um aeroporto, por
um cais... Não se trata, pois, de uma “casa com apenas uma porta”.
Do mesmo modo, os diferentes “cômodos” dessa complexa mo-
radia chamada cidade possuem inúmeras portas que os ligam entre si
e são percorridos de diferentes formas, em diferentes tempos e inten-
sidades, seja a pé, de ônibus, de metrô ou por outra via. Alguém que
chega de avião em uma cidade como São Paulo e passa dois dias tran-
sitando apenas nos elitizados bairros do quadrante sudoeste da capital
não terá uma impressão semelhante à de quem chegou de trem em
uma grande estação de transbordo e se dirigiu a algum bairro da peri-
feria, sempre disputando milímetros de espaço com a multidão.
Mesmo para aqueles que transitam pelos mesmos espaços, a
cidade poderá ser interpretada, vista e sentida de diferentes for-
mas1. As experiências de vida, o conhecimento de mundo, o meio
de locomoção, são alguns dos fatores que interferirão na leitura
desses espaços. Mesmo que atravessem as mesmas portas, as pes-
soas lançam seus olhares para diferentes janelas e constroem dife-
rentes ideais de vida urbana.
No campo teórico, a cidade também revela ser uma realidade
de muitas portas. Os recantos urbanos são exemplos perfeitos de
como um mesmo fenômeno pode ser objeto dos mais diversos ramos

1 PAOLA Berenstein Jacques entrevista Alessia de Biase. Redobra, Salvador, ano 3, n.


10, p. 5-21, out. 2012. Disponível em: <http://goo.gl/G7KlkZ>. Acesso em: 18 ago. 2014.

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Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

do conhecimento. Na verdade, a interdisciplinaridade não é apenas


um mecanismo de efetivação metodológica; trata-se, na maioria dos
casos, da única forma possível de as Ciências Humanas captarem as
particularidades do objeto analisado. É necessário que os diferen-
tes agentes que abordam a realidade urbana (arquitetos, urbanistas,
sociólogos, operadores do Direito, antropólogos, geógrafos, econo-
mistas, militantes de movimentos sociais, administradores públicos
e tantos outros) ingressem conjuntamente nesse campo teórico e
prático, cada um por sua porta, para que as particularidades dos
fenômenos citadinos não escapem pela abertura que se revelar deso-
cupada. Na fluidez da cidade, o conhecimento é fugidio.
Não por acaso, temos grandes exemplos de cientistas que, ao
procurar compreender a realidade urbana, irão encontrar boa par-
te das respostas em áreas distintas do seu ramo de conhecimento
– ou seja, aprenderão a atravessar outras portas. David Harvey2,
geógrafo estadunidense, irá explorar a fundo as questões econômi-
cas que movem a especulação imobiliária e acabam por compro-
meter a produção de cidades mais justas; Alessia de Biase3, arqui-
teta italiana, utilizará procedimentos da Antropologia para propor
novas formas de se visualizar e interpretar o fenômeno urbano; e
o que dizer de Santos4,5, outro geógrafo, cujas abordagens sobre as
cidades da periferia do capitalismo são carregadas de princípios
metodológicos da Antropologia, da Sociologia e da História?

2 HARVEY, David. Direito à Cidade. Tradução Jair Pinheiro. Lutas Sociais, São
Paulo, n. 29, p. 73-89, jul./dez. 2012. Disponível em: <http://goo.gl/mwBpDm>.
Acesso em: 14 jul. 2013.
3 PAOLA Berenstein Jacques entrevista Alessia de Biase, 2012.
4 SANTOS, Milton. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. São
Paulo: Record, 2001.
5 Id., 2008.

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O Direito à cidade

A própria expressão “Direito à Cidade” não foi criada por


um jurista, mas por um sociólogo – o francês Henry Lefebvre6,
que, em 1968, lançou obra homônima. Desde então, o Direito à
Cidade tem sido debatido por cientistas das mais diversas áreas,
que o tomam não apenas como objeto de estudo, mas, acima de
tudo, como bandeira e como utopia.
E o que seria o Direito à Cidade? Ele é tratado mundialmen-
te como um inovador direito fundamental ligado às condições de
dignificação da existência humana, da igualdade, da liberdade. Ele
também é um direito continente, que carrega dentro de si conte-
údos dos principais direitos sociais, como moradia, educação, tra-
balho, saúde, dentre outros. O Direito à Cidade, ao mesmo tempo
em que sustenta que as pessoas devem se instalar devidamente
na cidade e ter acesso à infraestrutura urbana (direito de apreen-
são), defende que cada indivíduo seja um idealizador de sua pró-
pria urbe, possibilitando a construção de realidades externas mais
compatíveis com seus anseios e expectativas (direito de obra).
Buscando um enfoque mais crítico, a presente obra não se
ocupará apenas da delimitação do conteúdo do Direito à Cidade.
De fato, antes mesmo da discussão conceitual, é imprescindível
que nos debrucemos sobre a contextualização do cenário onde se
busca a sua realização, bem como lançar luzes sobre os principais
obstáculos a sua materialização.
Pensando no cenário global e nos obstáculos interpostos ao
pleno exercício do Direito à Cidade, constatamos que o enfoque so-
bre a efetivação de qualquer direito fundamental não pode se disso-
ciar de uma teoria crítica que questione o próprio modelo de desen-
volvimento econômico vigente. Como concretizar valores de justiça

6 LEFEBVRE, Henri. El derecho a la ciudad. Tradução J. Gonzalez. Barcelona, ES:


Ediciones Península, 1978.

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Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

social e qualidade de vida nas cidades, se os valores dominantes de


nosso tempo são a concorrência, a individualidade, o consumismo?
O sistema capitalista, ao se apropriar da cidade, mercanti-
liza seus espaços e transforma a qualidade de vida em um bem
de elevado preço, que poucas pessoas conseguem obter. A vida
urbana se torna um mero item de consumo7, já que as condições
mais básicas para a sobrevivência são constantemente negadas à
população desfavorecida economicamente: habitação, saneamen-
to básico, serviços de saúde e segurança pública. É um sistema que
costuma cobrar um preço para cada porta que se queira atravessar.
E o que é o Direito à Cidade, se não a possibilidade mais real de
tornar essas travessias mais acessíveis?

7 HARVEY, 2012.

4
2 A cidade e a sua lei

O homem no íntimo é um animal selvagem, uma fera. Só


o conhecemos domesticado, domado, nesse estado que se
chama civilização: por isso recuamos assustados ante as
explosões acidentais do seu temperamento. Se caíssem os
ferrolhos e as cadeias da ordem legal, se a anarquia reben-
tasse, ver-se-ia então o que é o homem. 8

Arthur Schopenhauer9 não foi o único filósofo a considerar


o homem um ser essencialmente malévolo e egoísta, cuja sociali-
zação só se torna possível quando ele ingressa num espaço civili-
zado e se submete a uma ordem legal. Antes dele, Thomas Hobbes
já havia se tornado o principal crítico da natureza primordial do
homem, considerando-a como sendo ilimitadamente violenta, or-
gulhosa e traiçoeira, mergulhada em um estado permanente de
guerra10. Somente com o fito de preservar a sua própria vida é que
os indivíduos abdicam dessa liberdade ilimitada e ingressam em
uma sociedade, criando o artifício que o filósofo denomina de “O
Grande Leviatã”, uma representação demoníaca do Estado, que,
por mais que exerça um poder de faces cruéis, acaba por tirar as
pessoas de uma realidade dotada de muito mais demônios.

8 SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo: o amor, a morte, a arte, a moral,


a religião, a política, o homem e a sociedade. Tradução José Souza de Oliveira. São
Paulo: Edipro, 2014. p. 127.
9 Ibid.
10 HOBBES, Thomas. Leviathan. Disponível em: <http://goo.gl/ypdo2Y>. Acesso
em: 23 ago. 2014.

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Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

Voltemos alguns muitos séculos e veremos que o pensamento


de Aristóteles referente à essência humana não se distingue muito
do que foi mencionado por Hobbes e Schopenhauer. Para o filóso-
fo grego, a cidade é o ambiente natural onde o seu animal político
encontra a subsistência e o bem-estar.11 A plena realização do ho-
mem estaria condicionada, assim, “[...] à sociabilidade, à politici-
dade, à autoridade, ao relacionamento, à reciprocidade.”12. Essa é
a razão para a pena de banimento na Grécia Clássica, assim como
entre outros povos, ser mais grave do que a própria pena de morte,
pois entendia-se que “[...] o homem, quando não aperfeiçoado, é
o melhor dos animais; mas quando isolado da lei e da justiça, é o
pior de todos.”13. Ao se retirar da esfera da cidade e da lei, portan-
to, o homem retornaria ao seu estágio mais primitivo.
A obscuridade da natureza humana não é tema da presente
obra, é claro. Coube a nós fazer referência a essas teorias políticas
para demonstrar o quanto a cidade e as leis possuem semelhanças,
desde as suas concepções mais remotas. Ambas são construções
culturais altamente sofisticadas, que conferem ao homem a ca-
pacidade de modificar a natureza que encontra a sua volta, ou
mesmo aquela que guarda dentro de si. Esse objetivo comum é
atingido a partir de vetores de ação diferenciados.
A cidade é uma realização externa que inspira os homens a mu-
darem sua condição interna. O Direito, por sua vez, é um artifício
através do qual o homem busca alterar o seu íntimo primeiramente,
para que, assim, se torne capaz de transformar o ambiente externo.
O caráter disciplinar do Direito é mais facilmente concebível
do que o da cidade. As leis são um conjunto de regramentos que

11 ARISTÓTELES. A política. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 2005.


12 DELBONI, Mônica. Apostila de Filosofia do Direito. Disponível em: <http://goo.
gl/gR4yX1>. Acesso em: 23 ago. 2014. p. 1.
13 ARISTÓTELES, op. cit., p. 16.

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O Direito à cidade

impõe limites de ação que não devem ser ultrapassados de forma


alguma, sob pena de se receber sanções impostas pelo poder co-
ercitivo do Estado. Mas a cidade também guarda características
disciplinadoras muito próprias, como se a própria lei fosse escrita
na linguagem das formas urbanas.
Para um exemplo bem brasileiro, podemos tomar como base
a chegada dos jesuítas a território colonial, nos idos do século
XVI. Ao desembarcarem no Brasil, identificaram que os índios
ocupavam suas aldeias de maneira muito peculiar. Primavam
pelas formas circulares, que conferiam maior paridade entre os
membros. Não havia uma divisão muito clara entre famílias, de
modo que algumas atividades que na Europa se restringiam ao
âmbito domiciliar eram executadas por toda a comunidade, como
o cuidado com as crianças e os doentes, a preparação do alimen-
to ou a solução de conflitos interpessoais. Também não havia
uma delimitação clara entre elementos humanos e naturais. Os
índios se integravam cotidianamente com os rios, a vegetação, os
animais. Isso fazia com que a sua própria humanidade fosse ques-
tionada pelos jesuítas. Na época, os missionários chegaram a se
interrogar: “De que parte do mundo vieram? ...Como chegaram
a degenerar de seus costumes e a estado tão grosseiro alguns dos
seus, [...] que pode duvidar-se deles, se nasceram de homens, ou
são indivíduos da espécie humana?”14.
A catequização imposta pelos jesuítas não se restringiu à
construção de templos ou à elaboração de obras de arte sacra.
A própria forma das aldeias foi refeita, para que fossem estabele-
cidos na colônia os valores cristãos reinantes na Metrópole. As
pessoas foram distribuídas em grupos menores, que ocupariam
habitações de dimensões reduzidas, totalmente separadas das

14 VASCONCELOS, S. de. Noticias curiosas, e necessarias das cousas do Brasil.


Lisboa, PT: Oficina de Ioam da Costa, 1968. p. 77.

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Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

vizinhas por ruas ou cercados que impediam a livre circulação


entre os ambientes. Estariam, assim, formadas as famílias, base
da socialização cristã. As novas vilas também deveriam perder
a sua integração plena com a natureza circundante, assim como
os corpos dos seus habitantes, que a partir daquele momento
precisariam ser cobertos com vestimentas que os diferenciassem
dos animais e monstros demoníacos que, segundo os jesuítas,
habitavam as florestas. Deste modo, a aldeia foi “vestida” de ele-
mentos civilizatórios até o ponto de poder ser chamada de vila,
e essa profunda reformulação espacial acabou por transformar a
própria essência das pessoas que nela habitavam.
Outro exemplo pode ser extraído do caso do Barão Hauss-
man, o “artista demolidor”, governante de Paris no século XIX15,
que realizou profundas modificações urbanas nos bairros centrais
da cidade, com o pretexto de eliminar a insalubridade e a deterio-
ração física e social que dominavam o local. Na verdade, a haus-
smanização de Paris escondia motivações menos virtuosas. Havia
uma clara intenção de organizar as ruas e passeios, de modo que
a polícia e o exército pudessem facilmente transitar e vigiar os
espaços mais valiosos da cidade. Assim, o novo desenho urbano
dificultaria as possíveis ações insurgentes, já que impossibilitava
a colocação de barricadas, grande motivadora da vitória dos re-
volucionários de 178916. Ao conceber a cidade como um espaço
controlável típico de um panóptico de Bentham, Haussman pos-
sibilitaria um controle social capaz de tornar a sociedade menos
revoltosa e, por conseguinte, mais produtiva.

15 BENJAMIN, Walter. Paris, die hauptstadt des XIX. Frankfurt, DE: Suhrkamp
Verlag, 1982.
16 LABORIT, Henri. O homem e a cidade. Tradução Alberto Paes Salvação. Mira-
Sintra, PT: Publicações Europa-América, 1971.

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O Direito à cidade

Nos exemplos descritos nota-se que o homem cria a cidade, para


depois se tornar modelável por sua própria criação. É como se os limi-
tes entre criador e criatura não existissem, já que um tem a capacida-
de de moldar o outro. Ou, como bem salientou Robert Park:

A cidade é a tentativa mais bem-sucedida do homem de


refazer o mundo em que vive de acordo com os desejos
do seu coração. Mas, se a cidade é o mundo que o ho-
mem criou, é também o mundo onde ele está condenado
a viver daqui por diante. Assim, indiretamente, e sem ter
nenhuma noção clara da natureza da sua tarefa, ao fazer a
cidade o homem refez a si mesmo. 17

Mas será que o Direito não operaria por essa mesma lógica?
Se tomarmos como base a Teoria Tridimensional do Direito, de
Miguel Reale18, veremos que a norma, os fatos sociais e os valo-
res são aspectos que se entrelaçam e se influenciam mutuamente.
Assim como os fatos sociais e os aspectos valorativos interferem
constantemente na construção de um sistema legal, as normas
jurídicas têm o poder de influenciar os aspectos fáticos e axioló-
gicos do meio social, consubstanciando, deste modo, uma relação
dialética entre o mundo jurídico e as relações humanas. Pode-se
afirmar, por isso, que a realidade social tem a capacidade de con-
dicionar o Direito e, por sua vez, o Direito tem a capacidade de
condicionar a realidade social.
Nos tópicos seguintes, nos aprofundaremos um pouco mais
no estudo desses dois grandes produtos da disciplina humana: a
cidade e o Direito.

17 PARK, R. Um roteiro de investigação sobre a cidade. In: VELHO, G. (Org.). O


fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. p. 3.
18 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito: situação atual. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 1994.

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Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

2.1 A Cidade
2.1.1 Origens

O homem descobre a semente e inventa o Estado.19

Até a era paleolítica, o ser humano não dominava as técnicas


da agricultura e da pecuária, o que o impedia de se firmar ao solo.
Isso só veio a ocorrer no período conhecido como Revolução Ne-
olítica (7.000 a 6.000 a.C.), momento pré-histórico no qual os an-
tepassados do homem se tornaram capazes de extrair seu sustento
da terra e dos animais domesticados, permitindo o surgimento das
primeiras vilas e cidades20.
De início, a implantação dos primeiros grupos habitacionais
levava em conta elementos ecológicos que facilitariam a produção
agrícola e pecuária, além de fornecer elementos de defesa contra
invasores.21 A permanência em localidades fixas permitiu que os
homens e mulheres do neolítico compreendessem melhor os fe-
nômenos naturais, dando início a uma fase de grandes invenções:
construções mais elaboradas, fundição de metais, barcos, ferra-
mentas movidas a tração animal, calendário solar, etc.22 As pai-
sagens habitadas passaram a sofrer grandes transformações, ini-
ciando-se uma fase de maior domínio do homem sobre a natureza.
Deve-se frisar que os agrupamentos humanos mais extensos
não foram resultado do crescimento de um único grupo organiza-

19 DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos – vol. 1: descoberta e


invenção. Rio de Janeiro: Sextante, 2005. p. 1.
20 Ibid.
21 LABORIT, 1971, p. 134.
22 CHILDE, V. Gordon. Los orígenes de la civilización. Santiago, CL: Fondo de
Cultura Económica, 1981.

10
O Direito à cidade

do que foi se alastrando aos poucos, mas, ao contrário, foi fruto da


agregação de pequenos grupos. À medida que se associavam, esses
grupos não perdiam a individualidade nem a independência. Eram
vários governos contíguos organizados por um governo comum,
detentor de soberania extremamente frágil23. Não tardou até sur-
girem motivos para a formação de uma comunidade urbana mais
politizada: a realização de grandes obras de infraestrutura (como a
construção de grandes canais de irrigação) e a militarização para
a defesa das terras foram alguns dos principais motivos para que
se formassem estruturas sociais verticalizadas, com uma divisão de
trabalho mais organizada, que não se restringia apenas a um gru-
po familiar, mas a todos que conviviam no mesmo território pré-
-urbano. Uma nova ordem social foi fundada. Surgiu a concepção
de nação e de Estado, ideias que levariam todos os indivíduos a
seguirem as mesmas leis, o mesmo código moral, a mesma religião,
a mesma autoridade soberana24. A cidade estava, enfim, formada.
Também no período neolítico ocorreu um evento que muito
interessa à presente obra. Com a evolução das tecnologias produ-
tivas, as populações passaram a acumular excedentes de produção.
De início, tais excedentes serviam para atender às demandas da di-
visão de trabalho, além da necessidade de estocagem para prevenir
períodos de baixa produtividade. Mas as reservas foram se tornando
tão abundantes que permitiram a realização de trocas por produtos
originados de outras terras, de outros povos. Por mais que as trocas
não se voltassem, via de regra, para a satisfação de necessidades
fundamentais, elas permitiram ampla difusão de conhecimento,
que levou a alto desenvolvimento tecnológico. Com isso, as cida-
des que mais se desenvolveram foram aquelas situadas em zonas de

23 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução Jean Melville. 2. ed. São
Paulo: Martin Claret, 2008.
24 DE MASI, 2005.

11
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

passagem, como encruzilhadas de vales e portos naturais – enfim,


aquelas dotadas de estrutura apropriada para as migrações. Esses
centros urbanos de comércio se tornaram pontos de convergência
para as atividades humanas, permitindo associações cada vez mais
ricas, mais complexas, abrindo espaço para profundas modificações
culturais.25 A escrita, a matemática e as navegações são alguns dos
muitos exemplos de conhecimentos que foram aprimorados pelos
povos mercantilistas. Esses conhecimentos, além de aperfeiçoarem
o comércio, produziram avanços sociais dos mais importantes para
a solidificação das civilizações urbanas.
“O consumismo faz a cidade [...]”, afirma Robert Auzelle26.
Por suposto, desde o neolítico, as cidades humanas foram predo-
minantemente um espaço de trocas de mercadorias. O arquiteto
e urbanista francês, ao definir a cidade como um “lugar de tro-
cas”, não procura reduzir o objeto de sua análise, contudo. Isso
se explica pelo fato de Auzelle ampliar o alcance do termo, que
não se limita a meras trocas materiais (consumo de bens e serviços
dos mais diversos). Ao mercantilismo se liga a figura das trocas de
espírito, ou seja, a cidade é um espaço privilegiado para a função
educadora e lúdica, para o desenvolvimento de sólidos sistemas
sociais e políticos, graças à reunião de uma densa multidão, que
tem o poder de gerar grandes projetos.27
Pensar em como as cidades ganharam vida é se debruçar so-
bre as motivações que fazem o homem desejar viver em comunhão
com os seus semelhantes. Necessidade de sobrevivência? Prote-
ção contra ameaças naturais ou de grupos rivais? A possibilidade
de mercantilizar bens e serviços? Por trás de qualquer interesse

25 LABORIT, 2005.
26 AUZELLE, Robert. Chaves do urbanismo. Tradução Joel Silveira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1972. p. 10.
27 AUZELLE, 1972.

12
O Direito à cidade

mais visível se encontram as teias de relacionamento que man-


têm os homens coletivamente abrigados no seio de uma cidade.
Alinhando suas semelhanças e negociando suas diferenças, eles
mergulham na sociabilidade, por acreditarem que é ali que pode-
rão concretizar uma vida mais digna e feliz.

2.1.2 Industrialização
A compreensão da problemática urbana contemporânea
perpassa pelo entendimento do papel da Revolução Industrial nas
transformações sociais, políticas e econômicas das cidades. “A in-
dustrialização nos oferece, pois, o ponto de partida da reflexão
sobre nossa época [...]”, asseverou Lefebvre28, em sua obra “O Di-
reito à Cidade”. Para o autor, embora a cidade preceda a indus-
trialização, ela ganha novos contornos com esse processo. Milton
Santos também considera a Revolução Industrial como “[...] um
novo ponto de partida para a urbanização no mundo” 29, levando
ao incremento populacional nas grandes cidades, além da própria
multiplicação de grandes conglomerados urbanos.
A concentração urbana sempre tendeu a acompanhar a con-
centração de capital, bens e serviços30. Vimos que a cidade fornece
(ou “é”) um espaço privilegiado para as trocas dos excedentes de pro-
dução. Notando essa peculiaridade comercial, as indústrias modernas
tenderam a se instalar no terreno das cidades para lhes acentuar o
potencial produtivo, modificando profundamente a sua estrutura.31

28 LEFEBVRE, 1978, p. 17.


29 SANTOS, 2008, p. 14.
30 LEFEBVRE, op. cit.
31 SPOSITO, Maria E. B. Capitalismo e urbanização. São Paulo: Contexto, 2004.
(Coleção Repensando a Geografia).

13
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

Não havia porque criar fábricas em outro lugar que não na


cidade. Esta forneceria àquelas não apenas mão de obra, mas tam-
bém vasto mercado consumidor. Deste modo, a indústria se apro-
pria da cidade, modelando-a conforme suas necessidades.32 As
obras de infraestrutura, a distribuição de áreas residenciais, enfim,
todos os recantos da cidade foram moldados conforme os interes-
ses da produção industrial. Os centros históricos, assim como ou-
tros espaços pouco aferíveis economicamente, tiveram sua impor-
tância mitigada. No início do século XIX, as principais metrópoles
europeias já tinham sido absorvidas pela indústria, demonstrando
o potencial econômico do casamento indústria/cidade.
Mas houve também indústrias que precisaram se localizar
longe dos principais centros urbanos, motivadas pela necessidade
de estarem próximas às matérias-primas utilizadas nos seus produ-
tos.33 E como a concentração de capital é a motivadora das con-
centrações populacionais, novas cidades foram construídas nos
arredores dessas fábricas.
Henry Lefebvre34 afirma, sem hesitação, que, independente-
mente de a cidade preceder ou não a fábrica, a industrialização a
degenera profundamente, pelos mais diversos motivos: a popula-
ção se aglomera e se precariza; o meio ambiente é comumente le-
sado; a concentração de poder nas mãos de quem detém os meios
de produção ocasiona exploração social; as dimensões culturais
da realidade urbana são menosprezadas. Com o tempo, a cidade
adquire uma dependência da indústria tão marcante que, caso as
fábricas deixem seu território, isto ocasionará um colapso urbano
aparentemente insanável. É o caso de muitas cidades que pratica-

32 LEFEBVRE, op. cit.


33 SPOSITO, 2004.
34 LEFEBVRE, 1978.

14
O Direito à cidade

mente foram riscadas do mapa, após terem sido abandonadas pelas


indústrias que as “sustentavam”.
Um horizonte de possibilidades se abriu para os homens, princi-
palmente se eles optassem por se entregarem ao fulgor da vida urbana.
Eram as grandes cidades os cenários dos espetáculos do progresso: as
linhas férreas, que cortavam paisagens e mudavam rotinas, símbolos
do domínio do homem sobre o espaço e sobre o tempo; as grandes
fábricas, que fumegavam invenções; os mercados, recheados de mer-
cadorias, que ficavam cada vez menos raras e custosas, já que a exube-
rante produção fabril ampliava as possibilidades de consumo.35
A imagem de progresso advinda das grandes cidades foi fun-
damental para aplacar o desespero dos homens, que abandonavam
o campo por falta de oportunidades, já que a produção rural foi
fundamentalmente mecanizada. O resultado destas migrações se
fez sentir intensamente. Entre 1800 e 1950, a população mundial
se multiplicou por dois e meio, enquanto a população urbana se
multiplicou por vinte. Até o início do século XIX, os habitantes
das cidades não chegavam a 2% da população mundial. Pouco mais
de cem anos depois, já superava os 20%, sendo que, no continente
europeu, que assistiu ao nascimento da Revolução Industrial, a
população urbana era superior à rural.36 Cabe aqui o exemplo de
Londres, que passou de 864 mil habitantes, em 1801, para mais de
4,2 milhões em 1891 – ou seja, a população quintuplicou em um
intervalo de 90 anos. No mesmo período, o número de cidades
inglesas com mais de cem mil habitantes saltou de duas para 30.37

35 MANTOUX, Paul. A Revolução Industrial no século XVIII: estudo sobre os


primórdios da grande indústria moderna na Inglaterra. Tradução Sônia Rangel. São
Paulo: Hucitec, 1979.
36 SANTOS, 2008.
37 ABIKO, Alex Kenya; ALMEIDA, M. A. P. de; BARREIROS, M. A. F. Urbanismo:
história e desenvolvimento. São Paulo: EPUSP, 1995.

15
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

O Brasil, vale dizer, também apresenta números surpreen-


dentes: no ano de 1900, a sua população urbana era de apenas
9,4%; no ano 2000, esse índice já atingia 81,23%; em 2010, chegou
a 84,36%. Hoje, mais de 190 milhões de brasileiros vivem nas ci-
dades, o que coloca o país entre os mais urbanizados do mundo.38

2.1.3 A cidade contemporânea e o seu capitalismo


As cidades da atualidade ainda são cenários repletos de mar-
cas da industrialização. Decerto que algumas de suas engrenagens
foram afiadas, enquanto outras se amaciaram, fruto das mudanças
que o sistema capitalista apresentou ao longo das últimas décadas.
Nascido da Revolução Industrial, o capitalismo moderno teve que
passar por adaptações, necessárias à sua sobrevivência. Crise após
crise, ele se reinventa e passa a explorar novas atividades, sem-
pre voltadas para a máxima produtividade e rentabilidade. A sua
capacidade de restauração, por sinal, é tida pelos seus defensores
como a grande força do sistema.
Deve-se mencionar, porém, que o capitalismo é um modelo
que vive se restaurando justamente por ser altamente agressivo nas
áreas que ousa explorar. Tendo a livre concorrência como valor
máximo, os capitalistas buscam prioritariamente o lucro de curto
e médio prazo, sem se preocuparem muito com aspectos ligados à
sustentabilidade do negócio e menos ainda com os impactos so-
ciais e ambientais provocados por suas atividades. Caso levem em
conta esses fatores, de menor resultado financeiro no curto prazo,
serão atropelados por empresas mais agressivas, o que levaria à
falência de seus negócios. A priorização do imediatismo, portanto,
é a base do seu sucesso particular, e a raiz dos prejuízos coletivos.

38 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse do Censo 2010.


Disponível em: <http://goo.gl/6mxrW9>. Acesso em: 21 de ago. 2014.

16
O Direito à cidade

Para Zygmunt Bauman, essa incapacidade de preservar a re-


alidade social, cultural e ambiental circundante faz do capitalismo
um sistema “parasitário”:

Como todos os parasitas, [o capitalismo] pode prosperar


durante certo período, desde que encontre um organismo
ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não
pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo
assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou
mesmo de sua sobrevivência.39

Edésio Fernandes coloca que “[...] se as cidades foram o palco


fundamental da industrialização no século XX, a base urbana tam-
bém é essencial para as novas formas de produção econômica.”40.
Sabe-se que a produção industrial sofreu sensível declínio ao longo
do século passado, fazendo com que a ordem econômica passas-
se a explorar outras áreas, aproveitando as tendências do fluxo
internacional de comércio e investimentos, além das mudanças
tecnológicas. Assim, para sobreviver no atual cenário, as cidades
se lançam em um mercado global de investimentos financeiros,
trocas comerciais e prestação de serviços.41
Hoje, não apenas as fábricas definem os rumos do planeja-
mento urbano. Outros elementos produtivos invadem a cidade,
deformando-a: escritórios-sede de multinacionais; centros comer-
ciais, como shoppings e edifícios empresariais; parques de grandes
eventos; complexos tecnológicos; áreas residenciais de alto padrão;
etc. Cada porção espacial da cidade pode servir de organismo hos-

39 BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário e outros temas contemporâneos.


Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 8.
40 FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e política urbana no Brasil.
Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 15.
41 Ibid., p. 15.

17
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

pedeiro para os capitalistas sedentos pela lucratividade imediata,


o que leva ao remodelamento de praças e ruas ou até mesmo do
próprio horizonte, cravejado por grandes edificações.
É importante frisar que o urbano não se tornou apenas um
espaço propenso ao consumo. A própria cidade se transformou em
uma mercadoria, que será consumida por quem for capaz de ad-
quirir algumas frações de seus territórios. Trata-se da consequên-
cia mais grave do capitalismo: a cidade se torna, ao mesmo tempo,
“[...] lugar de consumo e consumo de lugar”42.

2.1.4 Mas, enfim, o que se entende por cidade?


A cidade não se restringe ao seu aspecto físico espacial. Não
se restringe também ao território compreendido pelo Município,
ou mesmo a um conjunto de elementos urbanos ou de habitantes.
Citando o pensamento de Robert Park:

A cidade é algo mais do que um amontoado de homens


individuais e de conveniências sociais, ruas, edifícios, luz
elétrica, linhas de bonde, telefones etc.: algo mais também
do que uma mera constelação de instituições e dispositi-
vos administrativos – tribunais, hospitais, escolas, polícia
e funcionários civis de vários tipos. Antes, a cidade é um
estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e
dos sentimentos e atitude organizados, inerentes a esses
costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras pa-
lavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e
uma construção artificial. Está envolvida nos processos
vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natu-
reza, e particularmente da natureza humana.43

42 LEFEBVRE, 1978, p. 154.


43 PARK, 1987, p. 26.

18
O Direito à cidade

Esta compreensão da cidade, como multidimensional, reverbe-


ra de muitas formas. Um exemplo da visão multifacetada do urba-
no pode ser encontrado no texto da Carta Mundial pelo Direito à
Cidade. Trata-se de um documento sem status de lei que foi desen-
volvido a partir do Fórum Mundial Policêntrico, no ano de 2006,
em eventos que contaram com a participação de Organizações Não
Governamentais e representantes de movimentos sociais de todo
o mundo. Enfatizando o caráter democrático do espaço urbano, a
Carta se refere à cidade como “[...] um espaço coletivo culturalmen-
te rico e diversificado que pertence a todos os seus habitantes.”44.
Para o documento, o conceito de cidade possui duas acepções:

Por seu caráter físico, a cidade é toda metrópole, urbe,


vila ou povoado que esteja organizado institucionalmen-
te como unidade local de governo de caráter municipal
ou metropolitano. Inclui tanto o espaço urbano como o
entorno rural que forma parte de seu território. Como
espaço político, a cidade é o conjunto de instituições e
atores que intervêm na sua gestão, como as autoridades
governamentais, legislativas e judiciárias, as instâncias de
participação social institucionalizadas, os movimentos e
organizações sociais e a comunidade em geral.45

Mas o conceito de cidade não fica adstrito a suas característi-


cas intrínsecas e a suas possibilidades. Infelizmente, a cidade con-
temporânea ainda guarda características próprias de um espaço de
disciplina e, consequentemente, de opressão. A segregação sócio-es-
pacial que impera nas cidades de todo o mundo, sobretudo naquelas
localizadas na periferia do capitalismo, demonstra que a rede urba-

44 CARTA Mundial pelo Direito à Cidade. 2006. Disponível em: <http://goo.


gl/2l8vqY>. Acesso em: 21 de ago. 2014. p. 3.
45 Ibid., p. 3.

19
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

na, que deveria ser um espaço destinado às realizações coletivas,


acaba servindo aos interesses de um grupo restrito, que detém os
poderes econômicos e políticos locais. A cidade assume, com isso,
um conceito menos virtuoso: torna-se um território de exploração
do Capital, necessário para a perpetuação do seu poder, um negócio
lucrativo para os especuladores, uma empresa que divide seus lucros
de forma desequilibrada e, por fim, um território dividido, hierar-
quizado, que define quem terá acesso à cidadania e quem não terá.
Mirando por uma ótica mais crítica, vê-se que a cidade não
deve ser considerada apenas como um conjunto de monumentos
que solidificam a convivência humana. Muito pelo contrário. A
realidade urbana é fluida, dotada de planos diversos, dimensões
que podem guardar semelhanças ou paradoxos entre si. Ela é a
todo tempo construída e reconstruída a partir dos fatores econô-
micos, políticos e culturais que emanam do cotidiano social e pode
ser a todo tempo interpretada e reinterpretada, de acordo com as
crenças e interesses que motivem os olhares. Diante das infinitas
possibilidades de compreensão e de vivência que podem emanar
da realidade urbana, Lefebvre46 afirma que a cidade nunca poderá
ser caracterizada como uma obra já terminada, resultado de um
sistema natural imposto aos cidadãos. Do lado oposto do espec-
tro, a cidade é um livro que está sempre por fazer, renovando-se à
proporção que os destinos são (re)elaborados por seus habitantes.

2.2 O Direito
A palavra “Direito” deriva do termo latino directu, que signi-
fica “o que é rectu”, probo, justo. Se considerarmos uma definição
mais simplificada, guardando as críticas conceituais para momen-

46 LEFEBVRE, 1978.

20
O Direito à cidade

to posterior, o Direito pode ser considerado como um conjunto de


princípios e normas voltado para a regulação das relações sociais.
Direito não se confunde com “Justiça”, termo derivado do
latim justitia, e que significa “dar a cada um o que por direito lhe
pertence”. Apesar de não se confundirem, são termos que se com-
pletam: o Direito é tido como o instrumento destinado à concreti-
zação dos ideais da Justiça.
Por mais instrutivas que sejam essas acepções, elas ignoram
o peso que as ideologias possuem para delimitar os seus conteú-
dos. Na prática, Direito e Justiça acabam se tornando “palavras
de plástico”47, termo criado pelo linguista alemão Pörksen para
designar palavras que têm os seus significados modelados confor-
me a vontade dos seus manipuladores. A amplitude dos seus sig-
nificados é tão grande que algumas vezes as pessoas, mesmo em
posições contrárias em um conflito, alegam as mesmas palavras
para justificar sua posição e suas atitudes.
Tomemos como exemplo um conflito urbano entre os partici-
pantes de um movimento de sem-teto e os proprietários de um edi-
fício invadido. A “Justiça” será alegada pelos membros do movimen-
to, na medida em que “dar a cada um o que por direito lhe pertence”
representa a possibilidade de adquirir condições mínimas de vida e
dignidade, concretizando os valores de equidade. Uma casa vazia,
portanto, é algo que lhes pertence por direito. Os proprietários, por
sua vez, também clamarão por “Justiça”, só que a definição dada a
esta “palavra de plástico” será mais direta: se Justiça é dar a cada um
o que lhe pertence, e o prédio pertence a eles, não resta dúvida de
que o Direito deve primar pela devolução do imóvel.

47 NIETHAMMER, Lutz. Conjunturas de identidade coletiva. Projeto História,


São Paulo, v. 15, p. 119-144, jul./dez. 1997. Disponível em: <http://goo.gl/8x1F9d>.
Acesso em: 12 out. 2012.

21
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

A variabilidade de sentidos faz parte da natureza das pala-


vras. Certamente, uma mesma expressão pode ter significados
distintos, de acordo com o tempo e com o espaço em que circula.
Acontece que as “palavras de plástico” têm a particularidade de
se modelarem para atender aos interesses hegemônicos de uma de-
terminada sociedade. Elas são distorcidas até atingirem o formato
adequado para promoverem mecanismos de controle social.
Isso posto, torna-se necessário dedicar umas poucas páginas
para se conceituar e contextualizar o Direito, objetivando o de-
lineamento de uma teoria crítica que nos faça atravessar os véus
ideológicos que confundem a compreensão do fenômeno jurídico,
a fim de enxergá-lo mais claramente.

2.2.1 Distorções conceituais


A tarefa de conceituar o Direito nunca foi atividade simples.
Os romanos diziam, inclusive, que definir tal fenômeno era uma
atividade que gerava muitos riscos: “Omnis definitio in iure peri-
culosa est: parum est enim subverti possit”48 – ou, em uma tradução
livre, “Toda definição em direito é perigosa: rara é, na verdade,
aquela que não possa ser subvertida”. E, de fato, pensando nos
conceitos abrangidos pela área do Direito, não é difícil notar que
se abre um leque de possibilidades para a geração de distorções.
As Ciências Sociais, ramo do qual o Direito faz parte, re-
alizam abstrações que tentam simplificar a leitura do objeto em
um determinado tempo e espaço, criando teorias explicativas que
auxiliarão nas futuras experiências de observação. Mas as teorias
acabam interferindo de tal modo na forma como se lê a realidade
que, muitas vezes, os conhecimentos assimilados, que deveriam ser

48 MEIRELES, R. G. Direito e Filosofia. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, PR, ano 2,


n. 17, out. 2002. Disponível em: <http://goo.gl/6I8we2>. Acesso em: 12 out. 2013. p. 1.

22
O Direito à cidade

representações da realidade social, acabam por serem seus princi-


pais influenciadores. As Ciências Sociais procuram compreender
o meio circundante, mas acabam por modelá-lo conforme suas
próprias ideologias, sem perceber.
Pode-se dizer, portanto, que o observador das Ciências So-
ciais não age com neutralidade, pois analisa um objeto do qual ele
mesmo é parte. Sua visão estará contaminada pela cultura, defor-
mando a realidade social conforme suas experiências e interesses
pessoais, operação mental que se dá de modo consciente ou não.
O Direito, na qualidade de ciência social, sofre dessa mesma fra-
gilidade teórica. Ao longo do tempo, diferentes modelos ideológicos
se voltaram para a compreensão do fenômeno jurídico, deformando-
-o conforme suas próprias elucubrações, sendo o Jusnaturalismo e o
Positivismo Jurídico os principais exemplos dessa capacidade criativa.
As ideologias são amarras que não apenas impedem que o Direito seja
melhor compreendido, mas que acabam por transformá-lo em instru-
mento de dominação. Assim sendo, as categorias jurídicas não teriam
outra significação além da sua significação ideológica.
Para Pachukanis, o Direito estaria restrito a uma experiência
psicológica vivenciada “[...] sob a forma de regras, de princípios ou
normas gerais [...]”49, nada mais que um artifício elaborado para
disciplinar as relações humanas. Mas isso não torna o Direito um
objeto pouco perigoso. Por mais que seja um sistema de ordem
ideológica, ele reveste o Estado de poderes coercitivos capazes de
interferir em todos os aspectos da sociedade, regulando os com-
portamentos e concretizando mecanismos de estabilização social.
É deste modo que o Direito confere a legitimidade para realizar
ações limitadoras de direitos e impositivas de deveres.

49 PACHUKANIS, E. V. Teoria marxista do Direito. Tradução Sílvio Donizete


Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988. p. 30.

23
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

Não era por acaso que os romanos diziam que o exercício


de conceituar o Direito era (é) tarefa arriscada. Deve-se delimitar
da melhor forma possível a essência do seu conteúdo, analisando
a influência que a ideologia tem na sua leitura. Este é um ponto
crucial para o presente livro: é preciso buscar uma compreensão
crítica do conceito de Direito, para que depois possamos traçar
de maneira mais clara o conceito do Direito à Cidade. Proteger
essas definições das ideologias impostas é um grande passo para o
estabelecimento de uma ordem jurídica que realmente seja capaz
de produzir cidades mais justas.

2.2.2 Estabelecendo conceitos e contextos


Para Wolkmer, o Direito deve ser compreendido como “[...] a
manifestação simbólica da convivência social em um determinado
momento histórico, que, mediante um sistema de regulação nor-
mativa, garante a estabilidade e a ordenação da sociedade”50. O
conceito de Direito é muito mais amplo que o de lei, pois abrange
todos os princípios e regras de convivência que permeiam a socie-
dade, sejam eles formais ou não.
O sociólogo Ferdinand Lassalle51 talvez tenha nos dado um
dos conceitos mais precisos de Constituição, e que consequen-
temente servirá para que compreendamos a própria essência do
Direito. Para ele, existe uma Constituição Real, que é a soma dos
fatores reais de poder que acabam por determinar a vida em so-
ciedade, e uma Constituição Escrita, que não passa de uma folha
de papel com alguns pingos de tinta a traçar regras. Essa folha

50 WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3. ed. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2000. p. 152.
51 LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2001.

24
O Direito à cidade

de papel só terá importância caso se proponha a transcrever as


relações de poder que realmente existem no meio social. Caso não
seja assim, não servirá de nada, será como o manual teórico de um
jogo que poucos se propõem a jogar.
Segundo Pachukanis, o Direito não existe apenas nas teorias
e nas mentes dos juristas. Ele possui uma história real, paralela,
que se perpetua antes mesmo da criação das primeiras leis. O Di-
reito não surge a partir de uma operação consciente de criar nor-
mas de convivência. Sua existência precede a da lei, pois antes de
surgir qualquer tipo de regramento formal, já existia um sistema
particular que embasava as relações humanas. Onde existe rela-
cionamento humano, existirá o Direito52.
Se teóricos como Hans Kelsen53 enfatizaram o aspecto nor-
mativo do Direito, enquanto outros, como Ferdinand Lassalle54,
privilegiaram o seu caráter social, houve ainda aqueles que bus-
caram fórmulas teóricas que contemplassem ambas as diferentes
vertentes. Dentre elas se encontra a já brevemente citada Teoria
Tridimensional do Direito. Para Miguel Reale, o criador da refe-
rida teoria, o fenômeno jurídico é sustentado por três pilares: os
fatos, os valores e as normas. Por mais que os fatos sociais e as
questões valorativas sejam determinantes para estabelecer o con-
teúdo da norma jurídica, esta também consegue ter o poder fático
de influenciar os dois primeiros.
Toda estrutura jurídica reproduz o jogo de forças sociais e
políticas, bem como os valores morais e culturais de uma deter-
minada organização social. O Estado figura como o guardião e o
aplicador dessa ordem jurídica, atuando coercitivamente para tal.

52 PACHUKANIS, 1988.
53 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 8. ed.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
54 LASSALLE, op. cit.

25
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

Ninguém pode escusar-se de cumprir as determinações legais, sob


pena de receber sanções das mais diversas. Quando uma norma
social é positivada, o Estado passa a ter o poder/dever de aplicá-la,
mesmo que tal atitude se contraponha aos valores e aos costumes
reinantes, mas isso ocorre muito raramente.
A concepção teórica de Lassalle não perde sua importância
quando saímos do campo teórico e avançamos para a prática. Por
mais que as normas sejam instrumentos dotados de poder coerci-
tivo, a sua efetividade, na grande maioria dos casos, se torna de-
pendente dos interesses predominantes em uma dada sociedade.
O Estado não detém uma neutralidade durante a aplicação das
normas, pois os diferentes atores influenciam as decisões políticas
de forma desigual. Se uma determinada lei contraria os interesses
dominantes, ou ela será esquecida ou ela será aplicada apenas a
uma parcela da população. A lei pode “pegar” ou não, de acordo
com os fatores reais de poder nos quais ela intente interferir.
E quais as leis que realmente “pegam”? Pachukanis alega que, na
modernidade, o fenômeno jurídico se desenvolveu a partir da pressão
das relações de produção. Não que regramentos de outra natureza
não existam, mas aqueles voltados para a regulação das trocas de mer-
cadorias embasam o nosso Direito. A proteção ao sujeito detentor de
posses, o instituto da propriedade privada e a segurança da relação
contratual são os fundamentos jurídicos maiores da sociedade capita-
lista. Conforme a visão de Pachukanis, o Direito funciona como um
instrumento a serviço do Capital, cumprindo o duplo papel de poten-
cializar suas engrenagens e de responder energicamente aos óbices
que procuram comprometer o seu maquinário55.
Existe um paralelo entre a evolução do pensamento jurídico e
a evolução do pensamento econômico56. Desde a Revolução Fran-

55 PACHUKANIS, 1988.
56 PACHUKANIS, 0p. cit.

26
O Direito à cidade

cesa, a burguesia ascendeu socialmente graças ao acúmulo de poder


político e de poder econômico. Para se perpetuarem no topo, os
grupos dominantes tendem a lutar constantemente pela estabilida-
de das relações de produção e do acúmulo de riquezas, pois são esses
fatores que os mantêm como portadores de poder quase absoluto, já
que, na maioria dos casos, costuma superar o do próprio Estado. O
Direito, que deveria ser uma ferramenta de harmonização da socia-
bilidade humana, se torna uma ferramenta de dominação.
Quando tratarmos da ordem jurídico-urbanística propria-
mente dita, veremos que os valores sociais propagados por ela
confrontam diretamente os interesses de estabilidade dos grupos
dominantes. A cidade é um negócio muito rentável, e tentar subs-
tituir a sua mercantilização pela ótica humanizadora do Direito à
Cidade acaba por levantar muitas resistências.
Defendemos que a construção de um sistema jurídico base-
ado na dignificação do ser humano não é uma atividade vã. A
lei, enquanto estrutura que cristaliza valores humanitários, tem
importância inegável, como primeiro passo a ser dado rumo a uma
sociedade mais justa e solidária. Mas existem outros muitos passos
que precisam ser dados. Ocorre que os valores que ingressam no
mundo das normas precisam ser propagados também fora dele.

2.2.3 Consumismo como fonte de Direito


A relação entre o Direito e a economia não se restringe à
modernidade. Mesmo na Antiguidade, as primeiras leis positiva-
das tiveram uma vinculação estreita com as relações mercantis.
Quando os homens do Neolítico deixaram de se organizar em co-
munidades menos formais para formarem as primeiras cidades hu-
manas, na região do Crescente Fértil, a comercialização de produ-
tos diversos, advindos dos excedentes da produção, foi se tornando
cada vez mais abundante. A necessidade de cristalizar no tempo

27
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

as experiências cada vez mais diversificadas e as informações mer-


cantis cada vez mais complexas criaram a necessidade da escrita.
A cidade, como espaço privilegiado para a realização do co-
mércio e o domínio da escrita, forneceu as motivações principais
para a elaboração dos primeiros códigos legais da história humana.
Isso ocorreu devido ao fato de o Direito primitivo, baseado em nor-
mas que abrigavam valores místicos e religiosos transmitidos oral-
mente e aplicáveis apenas no seio de uma sociedade fechada, não ser
mais capaz de atender às demandas da sociedade que se urbanizava
e, com isso, se dinamizava. A partir do momento em que as relações
de troca foram estabelecidas entre indivíduos com diferentes hábi-
tos, interesses e códigos morais, foi necessário registrar as regras de
conduta, como forma de garantir a segurança dos negócios. Se o
consumismo fez a cidade, como bem sinalizou Robert Auzelle57, ele
foi responsável por ter criado também o próprio Direito positivado.
Como vimos em tópico prévio, a cidade e o Direito sempre
foram tidos como artifícios disciplinares que fizeram o homem ven-
cer os desafios impostos tanto por sua natureza interna quanto por
aquela que o envolve. Mas, historicamente, quais as implicações
desta perspectiva? Ou, em termos mais específicos, quais os aspec-
tos da natureza bruta que mais se procurava modificar? O Direito
atuava, internamente, para ofuscar qualquer impulso que impedisse
os homens de cumprirem com seus contratos, seus negócios; pari
passu, a cidade tentava renovar os cenários, substituindo as prime-
vas comunidades fechadas por espaços abertos favoráveis à troca.
Mas a troca, por mais que seja um componente fundamental
para a origem do Direito e da cidade, não poderia ser vista como
o único motivo para que ambos continuem existindo: “As relações
de troca envolvem algo mais que a mera atividade econômica [...],
o ‘homem econômico’, ao entrar no mercado, é um ser atuante e

57 AUZELLE, 1972.

28
O Direito à cidade

não exclusivamente um produtor, negociante ou mercador [...]”58


– afirmou Hannah Arendt, com o fim de se contrapor a qual-
quer teoria materialista que busque limitar a convivência humana
a aspectos econômico-mercantis. Se as relações mercantis foram
responsáveis pela origem do Direito e da cidade, o mercantilismo
excessivo será a razão maior do fim de ambos.

2.2.4 As leis urbanísticas


O poder coercitivo da lei permite que o Estado possa intervir na
realidade urbana, limitando direitos e delineando deveres, algo que se
torna necessário para evitar que as cidades sejam tomadas pelo caos.
Mas a organização racional do uso e ocupação do solo nunca foi a úni-
ca finalidade das leis urbanísticas. Lembremos que o sistema jurídico
facilmente se torna uma ferramenta a serviço da manutenção e am-
pliação do modo de produção vigente em determinada época. Hoje,
a lei, ao mesmo tempo em que favorece as atividades de exploração
do Capital, atua como mecanismo de segregação sócio-espacial, como
forma de garantir que a população em geral não ocupe as regiões de
interesse para os bons negócios privados.
Raquel Rolnik foi uma das que melhor avaliaram os meandros
da legislação urbanística, afirmando que: “Mais do que definir formas
de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efe-
tivamente regular o desenvolvimento de cidade, a legislação urbana
atua como linha demarcatória, estabelecendo fronteiras de poder”59.
A existência de uma fronteira urbana pode ser verificada em
textos de inúmeros teóricos que estudam a cidade. Diferentemen-

58 ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2007. p. 198.
59 ROLNIK, Raquel. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-
-1936). 2009. Disponível em: <https://goo.gl/Elc9OT>. Acesso em: 14 set. 2014.

29
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

te das “fronteiras invisíveis” que separam países, as fronteiras ur-


banas são verificadas a partir de um breve olhar, que facilmente
diferencia regiões da cidade dotadas de infraestrutura adequada
de outras, que convivem com a precariedade. A lei será determi-
nante para que essas fronteiras sejam delimitadas.
O sistema legal tem a característica, como vimos, de ser uni-
versal. Normalmente, a lei define parâmetros de organização que
deverão ser aplicados em toda a cidade, com algumas pequenas
diferenças territoriais. Mas a cidade ideal desenhada pelas leis se
diferencia em muito da cidade real. Quando existem regras que de-
limitam formas permitidas e formas proibidas de se ocupar a cidade,
há uma clara separação entre a cidade legal e a cidade ilegal60.
As leis urbanísticas costumam regulamentar modelos de uso
e ocupação do solo que só são possíveis de serem observados pelos
que detêm condições econômicas privilegiadas ou pelo menos re-
mediadas. Para um grande número de habitantes de baixa renda
que tentam sobreviver na cidade, resta a ilegalidade. Resta a fave-
la, a invasão, o cortiço irregular, a ocupação ilegal. Em nenhum
momento eles foram banidos da cidade, pois o modelo capitalista
vigente nos países da periferia precisa dessa mão de obra barata
o bastante para evitar gastar dinheiro com residências regulares
ou com outras benesses. O sistema precisa que eles continuem na
cidade – ou melhor, à margem da cidade – de modo que estes indi-
víduos só deverão ser removidos dali se algum interesse imobiliário
passar a admirar aquelas redondezas. Caso isso ocorra, eles serão
transferidos para uma periferia recém-inventada.
As leis, portanto, costumam ser aplicadas com rigor à parte mais
favorecida da cidade. A regulação racional, os investimentos em in-
fraestrutura, os serviços públicos e outras atividades relacionadas à
política pública urbana serão prioritariamente aplicados nas regiões

60 ROLNIK, 2009.

30
O Direito à cidade

privilegiadas contempladas pela lei. Como asseverou Raquel Rolnik,


“[...] não existir, do ponto de vista burocrático ou oficial para a admi-
nistração da cidade, é estar fora do âmbito de suas responsabilidades
para com os cidadãos.”61. Nasce, por conseguinte, a concepção de
uma “não cidade”62, que irá se unir perfeitamente ao conceito de “não
cidadania” proposto por Milton Santos63. A lei, que deveria ser um
veículo para a concretização da justiça social e da qualidade de vida,
se torna um divisor entre cidadãos e “não cidadãos”.
Para Edésio Fernandes, a cidade legal e a cidade ilegal “[...]
têm de ser entendidas como as duas faces do mesmo processo de
concentração econômica, exclusão sócio-espacial e política que
tem caracterizado o processo de crescimento urbano intensivo.”64.
Nesse sentido, a lei, enquanto aliada aos interesses dos mercados,
frequentemente demonstra sua natureza elitista e excludente,
transformando a cidade em um campo de exploração comercial.
Seguindo essa lógica, é inútil pensar que a cidade legal seja uma ci-
dade ideal, do ponto de vista dos seus habitantes. Ela reflete espa-
cialmente as características mais tristes da nossa sociedade capi-
talista: o individualismo, a concorrência, o consumismo; as largas
avenidas, os viadutos e túneis que impedem a circulação adequada
de pedestres; a dificuldade em se manter comércios de pequeno e
médio porte em regiões valorizadas e repletas de leis restritivas;
os altos preços cobrados por estabelecimentos comerciais situados
em áreas ditas “nobres” da cidade; os muros altos, que separam
condomínios com grande infraestrutura de uma cidade vazia e

61 Ibid., p. 2.
62 MARICATO, Ermínia. Globalização e política urbana na periferia do
capitalismo. 2009. Disponível em: <http://goo.gl/oMDiZd>. Acesso em: 18 ago.
2014. p. 12.
63 SANTOS, 2008, p. 34.
64 FERNANDES, 2000, p. 28.

31
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

sem vida, não mais caracterizada por promover a convivência dos


diferentes. Por este prisma, muitas vezes são os bairros nobres que
poderiam receber a denominação de “não cidade”, cada vez mais
higienizados e vazios, sem espontaneidade, sem humanidade.
Quando nos deparamos com os bairros mais populares, tende-
mos a encontrar uma vida urbana mais pulsante, ativa. As ruas não
servem apenas de passagem de veículos, guardam ainda um aspecto
de lugar de encontro, onde podemos observar crianças brincando,
pessoas ocupando as calçadas ou o espaço que lhes sobra para sentar
e interagir com os seus vizinhos. Mesmo com todos os problemas
sociais, ainda encontramos um lugar de sociabilidade. É um lugar
que a cidade e a sua lei, enquanto artifícios disciplinadores parasitá-
rios, ainda não alcançaram. Quando tratamos da luta pelo Direito à
Cidade, temos a clareza de que o objetivo é o de qualificar a cidade
como um todo, e não apenas nos restringir a lutar pelo acesso dos
menos favorecidos aos meios de vida e aos equipamentos urbanos.
Quando recobramos as reflexões feitas até aqui sobre o Direi-
to e as aplicamos à realidade das cidades contemporâneas, vemos
que Pachukanis65 estava certo, ao afirmar que o fenômeno jurídi-
co é prioritariamente um instrumento de regulação das trocas de
mercadorias. Por mais que se proponham a fornecer qualidade de
vida e justiça social, as únicas normas urbanísticas que costumam
ter eficácia são aquelas que viabilizam os negócios imobiliários e
outros ramos afins, transformando a cidade em um grande lotea-
mento a ser comercializado ao bel-prazer dos grandes empresários.
Embora vejamos a legislação urbanística falhar no que se refere a
sua atividade primordial, que é a de harmonizar a cidade aos seus
habitantes, ela tem conseguido grande sucesso em impor espa-
cialmente as relações de dominação social existentes nas relações
humanas. A crise, o caos e a desolação da cidade, contudo, não

65 PACHUKANIS, 1988.

32
O Direito à cidade

devem ser associados ao fracasso da sua gestão; pelo contrário,


trata-se do resultado mais grave do modelo de exploração capita-
lista. Essa noção ficará ainda mais clara depois que constatarmos
a existência de uma luta de classes em pleno solo urbano, assunto
a ser discutido no próximo capítulo.

33
3 A luta de classes – Um ponto
de partida para se compreender
a cidade contemporânea

Ao longo dos últimos séculos, o tecido urbano foi se tornan-


do extremamente complexo e vasto, agregando em um mesmo
espaço diversos ramos de atividades econômicas, permeado por
uma rede de interação e deslocamento físico e habitado por cres-
cente população. Essa teia intrincada passou a necessitar de meios
de consumo coletivos, destinados à manutenção de sua estrutura
(transportes, rede de distribuição de água e esgoto, energia elétri-
ca, educação, saúde, lazer e habitação). Neste contexto, diante da
incapacidade de tais assuntos serem administrados pelas relações
privadas, o Estado assumiu o papel de grande interventor da dinâ-
mica urbana, seja diretamente (através de políticas públicas, inves-
timentos, etc.), seja indiretamente (por meio de incentivos fiscais,
fomentos, legislações, etc.). Acrescente-se que o Estado ainda se
torna um conciliador dos interesses do capital e dos da massa ope-
rária, já que a luta de classes não se restringe mais aos espaços das
empresas, mas se espalha por toda a cidade.
Os donos dos meios de produção se preocupam em ordenar
o meio urbano como se fosse a extensão de suas fábricas, buscan-
do mecanismos que incrementem a sua produção66. É da natureza
mais primordial da empresa almejar sempre a eficiência produtiva
e, em toda situação possível, exercer pressão social para atingir suas

66 PAOLA Berenstein Jacques entrevista Alessia de Biase, 2012.

35
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

metas, como bem asseverou Henri Lefebvre67. Em contraposição a


este modelo de pensamento, está a massa de habitantes urbanos.
Para esta, os meios de consumo coletivo, antes de serem ferramentas
destinadas à produção econômica que lhes fornece empregos, são
itens fundamentais para a qualidade de vida, para a sua dignidade
diária. São duas forças concorrentes que tentam moldar a cidade
conforme seus interesses, principalmente no que se refere à ocupa-
ção do espaço. Diante de prioridades tão distintas, o Estado tem a
função de produzir e distribuir os bens de consumo coletivos através
de uma subtração feita ao capital ou de uma maior apropriação dos
rendimentos dos trabalhadores68. E essa subtração deve ser feita mo-
deradamente, sob pena de gerar grave insatisfação social.
Não há que se pensar que a intervenção do poder estatal é
um mecanismo regulador neutro aplicado a um sistema em de-
sequilíbrio. Ao mesmo tempo em que ele concilia os interesses
latentes na luta de classes, atua como indutor do crescimento eco-
nômico empresarial. O Estado, deste modo, se torna um aliado
precioso do Capital, já que a classe política municipal costuma
ser cooptada pelo poder econômico desde a campanha eleitoral,
tornando-se mais suscetível a favorecer os interesses dos grupos
dominantes, em detrimento do bem-estar da coletividade.
Enquanto as políticas públicas se tornam cada vez mais elitis-
tas, a grande maioria dos bens de consumo coletivos é relegada a
segundo plano, já que, comumente, eles não geram lucro privado:
“Daí nasce a crise urbana [...], da impossibilidade do sistema em
produzir aqueles serviços cuja necessidade ele suscitou.”69. Se, por
um lado, o Capital adquire uma série de privilégios, por outro a

67 LEFEBVRE, 1978.
68 CASTELLS, Manuel. Cidade, democracia e socialismo. Tradução Gloria
Rodríguez. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
69 Ibid., p. 23.

36
O Direito à cidade

população enfrenta problemas gravíssimos em serviços dos mais


essenciais, como moradia, saneamento, mobilidade urbana e tan-
tos outros. Trata-se de uma afronta à concretização de direitos
fundamentais protegidos pelas Constituições de todos os países
que se dizem democráticos.
Os principais estudiosos e militantes da área da Reforma Ur-
bana são uníssonos em afirmar que a crise urbana não pode ser
considerada como uma consequência da incapacidade gerencial
dos agentes políticos. O caos e a degradação das nossas cidades
não são decorrentes de um planejamento malfeito, mas sim repre-
sentam uma vitória dos grupos que procuram extrair benefícios
através da espoliação dos territórios urbanos. Não é, pois, sinal de
incompetência governamental, mas de uma competência dos gru-
pos de pressão que atuam nos bastidores do planejamento urbano.
Quando se procura desenvolver uma teoria crítica da cidade,
não devemos afastar os problemas urbanos dos aspectos relaciona-
dos à luta de classes. Não é possível superar a crise urbana sem um
enfrentamento dos interesses capitalistas que tratam a cidade como
fonte de especulação e espoliação. Ao longo desta breve obra, ficará
claro que a maior dificuldade para a efetivação do Direito à Cida-
de é justamente o fato de sua concretização contestar os vetores
de expansão territorial dos grupos hegemônicos. Efetivar direitos
de conteúdo amplo para todos os habitantes de uma cidade não é
tarefa fácil em um ambiente no qual reinam a competitividade, a
individualidade e a alienação diante dos interesses coletivos.

37
4 De que direito à cidade
estamos tratando? isolando o
nosso objeto de análise

4.1 Palavras de plástico


O linguista alemão Pörksen identificou características seme-
lhantes pertencentes a uma categoria de palavras. Observou que
certas palavras “entram na moda”, e passam a ser distorcidas até o
ponto de se encaixarem em qualquer ideologia, por mais opostos
que sejam os pontos de vista. São chamadas, como já vimos, de
“palavras de plástico”, justamente por conseguirem se moldar a
diferentes formas, e assim se encaixar em diferentes discursos70.
O Direito à Cidade é um dos mais novos exemplos de palavras
de plástico. Nos últimos anos, o conceito tem sido utilizado em va-
riados países, e, para cada lugar em que esta expressão é proferida,
toma conotações das mais distintas. No Egito, o Direito à Cidade
está ligado à luta pela emancipação dos Municípios do poder central;
em Jerusalém, o mesmo direito é invocado pela população palestina,
que luta pelo fim das atrocidades que Israel tem cometido contra
o seu povo; no Brasil e em outros países da América Latina, o seu
conteúdo se volta para o fim da segregação sócio-espacial e maior
participação na gestão urbana. Independentemente das acepções
que adquire nos locais citados e em muitos outros que poderiam
aqui figurar, entretanto, o Direito à Cidade é uma expressão que ex-
trapola a mera conceituação jurídica, reunindo tanto elementos de

70 NIETHAMMER, 1997.

39
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

ruptura da ordem social e econômica vigente, quanto da reconstru-


ção política, capazes de produzir cidades mais sustentáveis e justas.
Apesar de seu potencial renovador, não obstante, a expressão Di-
reito à Cidade tem sido utilizada de forma bem diversa, para não dizer
oposta. Gestores públicos cooptados pelas forças do Mercado têm cria-
do novos rumos para a aludida expressão. O Direito à Cidade, segundo
eles, assume a concepção de patriotismo urbano, que procura reunir a
população em prol do desenvolvimento econômico da cidade. Fala-se em
mudança de paisagem, fala-se em renovação dos aparelhos de transporte.
Campanhas publicitárias ocorrem aos montes, tratando da defesa do
meio ambiente, do respeito no trânsito, do resgate da cultura local, etc.
À parte quaisquer consequências positivas que estes enfoques possam
trazer, acabam por se tornar transformações cosméticas, já que os fa-
tores sociais e econômicos responsáveis pela segregação urbana e pelo
prejuízo ao meio ambiente e à qualidade de vida nunca são enfrentados.
O Direito à Cidade, então, tem adquirido matizes neolibe-
rais em muitas cidades. Identificar esse tipo de abordagem é sim-
ples, pois, ao mesmo tempo em que mudanças são prometidas, a
concepção neoliberal de Direito à Cidade não questiona os meios
capitalistas de produção do espaço, verdadeira origem da maioria
dos males urbanos. Torna-se necessário, portanto, especificar as
características e princípios de um Direito à Cidade mais realista e
mais condizente com o termo cunhado por Lefebvre e dissemina-
do por talentosos doutrinadores de várias ciências.

4.2 As características de um direito à cidade real


A Carta da Cidade do México pelo Direito à Cidade71, de
2014, fornece bons contornos teóricos para a democratização

71 CIUDAD DE MÉXICO. Carta de la Ciudad de México por el Derecho a la Ciudad.


2011. Disponível em: <http://goo.gl/g2Uz5J>. Acesso em: 12 out. 2013.

40
O Direito à cidade

e o desenvolvimento sustentável do espaço urbano. O referido


documento estipula que o Direito à Cidade é composto por
seis características essenciais: a universalidade, a indivisibilida-
de, a integralidade, a interdependência, a inalienabilidade e a
progressividade. Vale a pena comentar, brevemente, cada uma
destas características:

a. universalidade: os benefícios do desenvolvimento urbano


devem ser distribuídos a todas as pessoas;

b. indivisibilidade: o Direito à Cidade não pode ser


fracionado, dividido;

c. integralidade: todos os direitos ligados à dignificação da


vida urbana são igualmente importantes, não devendo
ser hierarquizados;

d. interdependência: todos os direitos que decorrem do


Direito à Cidade são extremamente coesos, e a satisfação
de um depende do cumprimento de todos os outros;

e. inalienáveis: é a qualidade de não poder ser perdido ou


de não ser passível de qualquer tipo de negociação;

f. progressividade: refere-se aos esforços de tornar a cidade


cada vez mais pertencente a todos os seus habitantes,
através de uma radical democratização do acesso aos bens
urbanos. A gestão urbana, baseada em um real Direito à
Cidade, deverá se compromissar com a concretização e
disseminação urgente dos direitos econômicos, sociais
e culturais, revertendo o quadro de segregação sócio-
espacial que marca a maioria das cidades.

41
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

4.3 Os princípios do direito à cidade


Nos últimos anos, inúmeros documentos e convenções sem
força de lei procuraram estabelecer alguns princípios fundamentais
do Direito à Cidade, vetores que devem orientar a elaboração de
leis e políticas públicas urbanas. Dentre as manifestações, podem
ser citadas as seguintes: “Por Cidades, Vilas e Povoados Justos, De-
mocráticos e Sustentáveis” (1992); “Carta Europeia de Garantia
dos Direitos Humanos na Cidade” (2000); “Carta Mundial pelo
Direito à Cidade” (2005); “Carta Agenda Mundial dos Direitos
do Homem na Cidade” (2011); “Plataforma Global do Direito à
Cidade” (2014); e, finalmente, a “Carta da Cidade do México pelo
Direito à Cidade” (2014). Os princípios mais pertinentes para o
desenvolvimento teórico foram selecionados e descritos a seguir:

a. autodeterminação: tendo em vista que a cidade é um


bem pertencente a todos os seus habitantes, os caminhos
a serem tomados durante o planejamento urbano devem
ser definidos por todos. As pessoas que habitam as cidades
devem, por conseguinte, estabelecer livremente a sua
condição política e o modelo de desenvolvimento social
que sejam mais capazes de atender às suas expectativas;

b. igualdade: os benefícios do desenvolvimento urbano


devem ser destinados igualmente a todas as pessoas. A
igualdade ainda deve abranger a possibilidade de todos,
em igual proporção, interferirem no delineamento do
futuro de suas cidades;

c. participação: a participação cidadã deve se sobrepor


a qualquer regime que restrinja os espaços de decisão
pública. O princípio da participação inspira a criação

42
O Direito à cidade

de mecanismos que se proponham a permitir que a


população participe das diversas etapas das políticas
públicas, seja durante a fase decisória, seja nas fases de
implantação e acompanhamento;

d. não discriminação: a cidade deve ser gerida de modo a


respeitar os direitos de todas as pessoas, sem desigualdade
de gênero, nacionalidade, cor, escolaridade, religião,
condição socioeconômica, orientação sexual, ocupação
ou qualquer outra. Para estudiosos como Milton
Santos72, a cidade acaba sendo uma reprodução espacial
das discriminações que marcam a sociabilidade humana.
A discriminação acaba se transformando em segregação
sócio-espacial, situação que está na raiz de muitas mazelas
sociais. Reconhecer que a discriminação molda o espaço
urbano é um primeiro passo para produzir cidades mais
amparadas pela justiça social;

e. transparência na gestão: os agentes públicos devem se


responsabilizar por divulgar as informações relativas à
gestão da cidade, sejam referentes a projetos estratégicos,
sejam relativas às finanças. O acesso à informação deve
ser garantido, permitindo que cada um dos cidadãos se
torne um fiscalizador da gestão de sua cidade;

f. corresponsabilidade: os diferentes atores da dinâmica


urbana devem se responsabilizar por seus destinos.
Governo, cidadãos, ONGs e empresas devem
assumir parcelas de responsabilidade pelos rumos do
desenvolvimento urbano, tanto para planejar os modelos
de desenvolvimento, como para colher os benefícios ou

72 SANTOS, 2008.

43
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

arcar com o ônus advindos de suas decisões. Sabe-se que,


no modelo neoliberal vigente, os benefícios costumam
ser absorvidos por uma minoria, enquanto o ônus das
más decisões é distribuído por toda a coletividade;

g. atenção prioritária às pessoas em situação de vulnerabilidade


social: princípio que se liga à noção de justiça distributiva.
Por dessa concepção, o poder público deve realizar
programas sociais e de desenvolvimento econômico
focados na redução das desigualdades, priorizando os
grupos em situação de pobreza e marginalidade.

44
5 Uma sistematização do
direito à cidade

Constantemente se diz que o mundo globalizado encurtou dis-


tâncias e tempos, tornando o planeta muito menor do que ele já foi um
dia. Diz-se que a velocidade dos meios de transporte e da transmissão
de informação possibilita relações instantâneas entre pontos extre-
mos do planeta. Ocorre que, do ponto de vista prático, essa noção de
aldeia global ainda é uma grande falácia. Para a maioria absoluta da
população mundial, a Cidade ainda é o mundo imediato, o mundo
concreto, a verdadeira Nação onde as pessoas erguem suas vidas73. Ela
é a interface que liga seus corpos à natureza bruta ou cultural e que
liga suas rotinas a um complexo sistema de interação social.
É a cidade um suceder de espaços que surge e ressurge cons-
tantemente perante seus habitantes: a casa em que se mora, a rua
onde as crianças brincam, caminhos onde se transita a pé ou em
veículos, edifícios onde se trabalha ou se estuda, espaços de re-
alizações diversas, como a política, a espiritualidade, o lazer e a
arte. Nos dizeres de Wilheim, as cidades “[...] são palcos servindo
de abrigo, de base, para o desenrolar da ação individual, tendo ao
fundo os cenários que compõem a paisagem urbana.”74.
Do ponto de vista relacional, a cidade é o espaço onde se
realizam encontros reais. Por mais que as redes sociais e outras fer-
ramentas virtuais forneçam aos indivíduos relacionamentos com
pessoas de todos os cantos do mundo, é na cidade que eles encon-

73 SANTOS, 2008.
74 WILHEIM, Jorge. São Paulo: uma interpretação. São Paulo: Editora Senac São
Paulo, 2011. p. 23.

45
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

trarão seus pontos de apoio, suas amizades cotidianas e tentarão


resolver suas diferenças. Enquanto os contatos virtuais são seleti-
vos, separando pessoas por grupos de interesse, a cidade confronta
pensamentos distintos, sendo por isso um lugar privilegiado para a
troca de experiências e de evolução de perspectivas.
É ingenuidade pensar que a efetivação da dignidade huma-
na pode ser estruturada sem considerar o espaço onde as pessoas
passam a quase totalidade de suas vidas. A própria Carta Mundial
pelo Direito à Cidade estabelece que “[...] as cidades devem ser um
espaço de realização de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais, assegurando a dignidade e o bem-estar coletivo a
todas as pessoas”75. Além disso, a noção de cidadania em si guarda
relação direta com o componente territorial.
“O valor do indivíduo depende do lugar em que está [...]”76,
asseverou Milton Santos, e os pressupostos para uma vida digna e
igualitária supõem uma acessibilidade semelhante aos bens e ser-
viços urbanos, como moradia, transporte, lazer, saúde, postos de
trabalho, segurança pública, dentre tantos outros elementos. Pro-
porcionar um ambiente urbano capaz de atender às necessidades
políticas, econômicas, culturais e sociais das pessoas é o ponto de
partida para a tão desejável concretização dos direitos humanos. É
essa a essência maior do Direito à Cidade: um ramo do pensamen-
to jurídico voltado para a consubstanciação das relações harmo-
niosas entre os indivíduos e o ambiente circundante.
É enganoso imaginar, entretanto, que o conceito de Direito à
Cidade, apesar da carta de intenções sinalizada acima, possa ser ex-
traído tão facilmente. Em primeiro lugar, não se trata de um conjun-
to de normas e princípios que regem as relações sociais no âmbito ci-
tadino, delimitando sua organização espacial, as regras de conduta,

75 CARTA Mundial pelo Direito à Cidade, 2006, p. 4.


76 SANTOS, 2001, p. 144.

46
O Direito à cidade

o funcionamento das instituições, os mecanismos de participação


popular, etc. Estes aspectos se referem ao Direito Urbanístico. O
“Direito” contido na expressão Direito à Cidade não se refere ao ca-
ráter objetivo do termo, mas ao subjetivo, já que trata da pretensão
que o indivíduo tem de ter acesso a determinado bem jurídico. Isso
quer dizer que não se refere ao “Direito” como corpo principiológico
e normativo, mas, pelo contrário, à “[...] faculdade ou possibilidade
que tem uma pessoa de fazer prevalecer em juízo a sua vontade.”77.
Do mesmo modo como existe o “direito à indenização”, o
“direito de ser convocado para ingressar no serviço público” e o
“direito de usucapir determinado imóvel”, existe um “direito à ci-
dade”. Mas, levando em consideração tudo o que já foi discutido
aqui, ao que precisamente ele se refere? De forma lógica, não se
trata da possibilidade de adquirir a cidade toda para si, como al-
guns parecem acreditar. Vimos em capítulo anterior que a cidade
é um bem que pertence a todos os seus habitantes e, por isso, deve
ser usufruída e gerida por todos eles. Deste pressuposto se extrai as
bases conceituais do Direito à Cidade.
Caso nos proponhamos a sistematizar de forma breve o refe-
rido direito, veremos que ele possui três dimensões distintas, mas
complementares: a primeira se refere ao direito de permanecer na
cidade; a segunda, por sua vez, aponta para o direito de usufruir
plenamente da vida urbana, tendo acesso aos benefícios do desen-
volvimento que se distribuem pela cidade; a última, por fim, reza
que subsiste o direito de participar politicamente dos projetos que
desenham o futuro da cidade. É um direito cujo conteúdo nasceu
dos diversos movimentos populares de democratização da cidade,
seja nas frentes populares pelo acesso à moradia, na luta pela qua-
lificação do transporte público, nas marchas onde se clama por

77 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. 30. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2007. p. 77.

47
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

segurança, ou mesmo nos embates diários por melhores condições


de educação e saúde. Trata-se de um direito que, como veremos,
permanece em desenvolvimento.

5.1 Direito de viver na cidade


Partindo do princípio de que a cidade pertence a todos os
seus habitantes, a primeira dimensão do Direito à Cidade se refere
à possibilidade de permanência nos seus espaços, ou seja, a possi-
bilidade de garantir para si uma “parcela de cidade”. Essa dimen-
são avalizadora não está dissociada da cidadania. Vale destacar
que o sujeito, antes de se voltar para a vida política de sua cidade,
precisa ter acesso às bases de sua sobrevivência: uma casa, um
emprego, condições adequadas de saúde e educação, etc.
Os direitos fundamentais são comumente tratados de modo
isolado pelas doutrinas das mais diversas áreas. Mas, quando
adentramos na temática do Direito à Cidade, tais direitos preci-
sam passar por releituras. Isso se explica pelo fato de a sua rea-
lização espacial depender de um equilíbrio constante, tanto no
que se refere ao exercício de diferentes direitos, quanto no que diz
respeito à efetivação dos direitos de diferentes pessoas.
Não se pode imaginar viver na cidade sem uma casa para ha-
bitar. Por isso o direito à moradia é um dos direitos fundamentais
elencados nas Constituições da maioria dos países. Reconhece-se que
o direito à moradia faz parte de um mínimo existencial necessário à
dignificação da existência humana, pois o lar é o local onde os víncu-
los sociais mais importantes costumam ser formados, além de servir
de verdadeira oficina para que as famílias construam os cidadãos do
futuro. Até poucas décadas atrás, a ideia de moradia não passava de
mera busca por um teto, um abrigo. Hoje, a sua concepção se amplia e
passa a englobar possibilidades de inserir a moradia em locais dotados
de serviços públicos dignos e de uma vida urbana mais segura.

48
O Direito à cidade

O conteúdo do direito à moradia, abarcando esse novo enten-


dimento, foi ampliado, principalmente depois dos movimentos de
reforma urbana. Em primeiro lugar, o direito à moradia não pode
mais ser amparado apenas pelos mecanismos tradicionais, posto que
são limitadores da intervenção do Estado na propriedade privada.
Os mecanismos de defesa devem ser destinados, sobretudo, a con-
trabalancear os abusos cometidos pela própria interferência merca-
dológica na produção do espaço. Em outras palavras, os avanços dos
grupos econômicos não podem impedir as pessoas de construírem
seus lares em áreas dignas da cidade. Sabe-se que esse é o momento
formador da segregação sócio-espacial: a instalação de habitações
precárias distantes das regiões mais nobres da cidade, que afastam
as pessoas dos centros urbanos de serviços, cultura e cidadania.
Os direitos à educação, saúde, segurança pública, acesso à
justiça, dentre outros, são também peças-chave para a vida na ci-
dade. Não basta que eles sejam prestados de forma qualificada,
os serviços públicos precisam ser distribuídos de forma equitati-
va e eficiente pelo território urbano, para que seus efeitos sejam
sentidos pela totalidade da população. Infelizmente, este pressu-
posto não costuma ser uma realidade nas cidades brasileiras, que
concentram postos de saúde, escolas, universidades, delegacias,
equipamentos de saneamento básico, sistema de coleta de lixo e
tantos outros serviços em bairros mais abastados, algo que impede
que os direitos mencionados atinjam as localidades mais pobres. A
distância é uma inimiga em potencial do Direito à Cidade, e por
isso deve ser vencida por um planejamento espacial distributivo.

5.2 Direito de viver a cidade (vida urbana, bens


de consumo coletivo)
Quando se argumenta que o cidadão deve possuir o direi-
to à cidade, deve-se entender que, além do direito a um lote,

49
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

ou a uma casa para morar, esse cidadão tem o direito à vida


urbana. A cidade é um conjunto de lugares. Por mais que a vida
das pessoas costume se desenvolver nas imediações de sua casa,
a cidade deve oferecer oportunidades para ser completamente
explorada por seus cidadãos.
Os direitos que permitem que se viva a cidade estão ligados,
sobretudo, ao acesso a bens públicos de uso coletivo, como praças,
parques, centros culturais e espaços de eventos, permeados por uma
efetiva segurança pública que incentive que as pessoas percorram os
mais diferentes cantos de sua urbe. Por isso, talvez a questão central
nessa dimensão do Direito à Cidade seja justamente a mobilidade
urbana, consubstanciada pela problemática do transporte público.
A maioria da população urbana depende do transporte pú-
blico para se deslocar entre pontos distintos da cidade, permitindo
que as pessoas tenham acesso aos benefícios materiais e imateriais
que são desenvolvidos por elas mesmas. A partir do momento em
que a qualidade do transporte se torna precária ou a limitação de
trajetos (principalmente nos fins de semana) prejudica que parte
da população acesse algumas regiões determinadas, a segregação
espacial se intensifica. O próprio preço das tarifas costuma ser um
obstáculo para que o trabalhador e sua família se desloquem para
centros de lazer, eventos culturais, unidades de saúde especializa-
das em determinadas patologias, dentre outros. A quase totalidade
dos deslocamentos que as pessoas realizam no transporte público
se refere à ida e à volta do trabalho, de forma que é retirado delas
o status de cidadania, sendo elas relegadas à condição unidimen-
sional de mão de obra78.

78 MOVIMENTO PASSE LIVRE. Não começou em Salvador, não vai terminar em


São Paulo. In: HARVEY, A. et al. Cidades rebeldes. São Paulo: Boitempo, 2013.

50
O Direito à cidade

5.3 Direito de participar do


planejamento futuro
Henry Lefebvre é responsável por ampliar a definição do Di-
reito à Cidade para algo que vai além de sua conotação espacial.
A cidade passa a ser considerada como um verdadeiro projeto co-
letivo, no qual os habitantes constroem possibilidades de moldar
o território urbano conforme suas expectativas e necessidades.
Dentro da presente lógica, o Direito à Cidade não se limita a dis-
tribuir para os cidadãos os elementos urbanos que já existem, mas
a garantir que sejam distribuídos também os elementos que ainda
irão existir. Na verdade, o próprio surgimento desses elementos vai
depender da manifestação da vontade coletiva.
A criação de novos modelos de exercício dos direitos políti-
cos talvez seja a questão central abordada pelos movimentos de
reforma urbana. Radicalizar os mecanismos de participação de-
mocrática, de modo que a população tenha capacidade fática de
interferir no planejamento e na gestão de sua cidade, é uma for-
ma de garantir o ponto essencial de qualquer intervenção urbana:
considerar a cidade como espaço de riquezas econômicas e cultu-
rais pertencentes a todos os seus habitantes.
O planejamento urbano pautado pela participação popular
garante ainda dois benefícios fundamentais que é necessário dis-
cutir. Em primeiro lugar, faz com que a cidade seja gerida e plane-
jada por aqueles que realmente percorrem os seus espaços rotinei-
ramente, e não apenas por especialistas que se fecham em gabine-
tes para elaborar plantas e projetos idealizados por suas ciências.
Não se nega a importância dos técnicos, mas estes são colocados
no papel de condutores, e não de protagonistas do planejamento.
Outro benefício que a participação popular ocasiona é a redução
de distorções advindas da corrupção. Os lobbies empresariais, se-

51
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

jam eles oficiais ou não, encontram mais dificuldade para corrom-


per as centenas ou milhares de membros de comitês populares, se
comparados à meia dúzia de pessoas que compõem um gabinete
da câmara municipal ou um órgão interno do Executivo local.

52
6 Fundamentos estratégicos
do direito à cidade

Os principais documentos mundiais que consagram o Direito à


Cidade costumam estabelecer fundamentos estratégicos que se rela-
cionam com a concretização do referido direito. São breves descrições
de atitudes que deverão ser tomadas para que os princípios citados
no capítulo anterior possam ser aplicados à realidade social de forma
equânime. Analisemos os principais fundamentos que costumam ser
defendidos pelos militantes da área de reforma urbana:

a. exercício pleno da cidadania e gestão democrática da


cidade: A luta em torno do Direito à Cidade preza pela
construção de mecanismos de participação democrática
que consigam captar as expectativas da população urbana.
A cidadania se concretiza de fato quando os seus portadores
adquirem status de partícipes dos rumos que toma a sua cidade.
Buscando orientações que visem uma operacionalização
do presente fundamento estratégico, a Carta Mundial pelo
Direito à Cidade, de 2006, estabelece que:

Todas as pessoas têm direito a participar através de for-


mas diretas e representativas na elaboração, definição,
implementação e fiscalização das políticas públicas e do
orçamento municipal das cidades, para fortalecer a trans-
parência, eficácia e autonomia das administrações públi-
cas locais e das organizações populares.79

79 CARTA Mundial pelo Direito à Cidade, 2006, p. 4.

53
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

b. função social da cidade e da propriedade privada: A


ocupação e os usos dos espaços devem se dar de modo
a respeitar os aspectos culturais, ambientais e sociais da
realidade urbana. A propriedade urbana não deve ser
exercida de forma absoluta, pois a convivência humana,
sobretudo em ambientes restritos como o urbano, faz com
que o interesse público limite a amplitude das liberdades
individuais. O solo urbano, assim, deverá ser alvo de uma
distribuição e de uma regulação que permitam que todos
tenham acesso a algumas de suas parcelas. A cidade
não pode continuar sendo um espaço dotado de alta
concentração de propriedades imóveis na mão de poucos,
nem um palco de práticas especulativas que afetam
diretamente a dignidade de todos os seus habitantes;
c. exercício pleno dos direitos humanos, de forma equitativa,
por todos os habitantes: O objetivo desse fundamento
estratégico é estabelecer uma vida digna e com qualidade
para todos os atores sociais que habitam ou apenas transitam
pela cidade. A cidade deve ser um espaço de realização dos
direitos humanos, sem qualquer discriminação;
d. manejo sustentável dos bens naturais: O desenvolvimento
urbano deve se realizar a partir de um uso sustentável
dos recursos naturais, permitindo que a salubridade, as
paisagens e o bem-estar da população não sejam afetados.
Cabe salientar que tal fundamento se volta não apenas
para os interesses da presente geração, mas também para
os das futuras, que dependem de um manejo ambiental
racional em nome de sua própria sobrevivência.
e. proteção especial aos grupos em situação de
vulnerabilidade: O conceito de vulnerabilidade utilizado
aqui é amplo. São vulneráveis todas aquelas pessoas e grupos

54
O Direito à cidade

[...] em situação de pobreza, em risco ambiental (ameaça-


dos por desastres naturais), vítimas de violência, com in-
capacidades, migrantes forçados, refugiados e todo grupo
que, segundo a realidade de cada cidade, esteja em situa-
ção de desvantagem em relação aos demais habitantes.80

As cidades devem suprimir os obstáculos sociais, econômicos e


culturais que limitam o desenvolvimento dos grupos vulneráveis. Há,
por isso, uma necessidade de prestações estatais positivas de serviços,
capazes de proporcionar melhorias qualitativas para os aludidos grupos.

80 CARTA Mundial pelo Direito à Cidade. 2006, p. 5.

55
7 Os desafios de uma nova política

Cidadania, participação popular na gestão urbana e demo-


cratização da cidade são termos sempre citados por todos aqueles
que lutam pela construção do Direito à Cidade. Todos concordam
que novos rumos políticos serão necessários para que a cidade real-
mente se torne um projeto em contínuo desenvolvimento, do qual
toda a coletividade deve estar imbuída. Caberá ao presente tópi-
co tratar de alguns dos principais desafios políticos para a cidade
contemporânea, já que muitos são os obstáculos à formulação de
um projeto de gestão urbana realmente democrática e progressista.

7.1 Sozinho na multidão – o enfraquecimento


político do cidadão moderno

[...] [A]ngústia, repugnância e espanto despertou a mul-


tidão metropolitana naqueles que pela primeira vez lhe
fixaram o rosto.81

Antes da Revolução Industrial, as cidades não possuíam


mais do que algumas centenas ou milhares de pessoas. Mesmo as
grandes metrópoles, até o século XVII, estavam bem distantes de
alcançarem o seu primeiro milhão de cabeças humanas. A rede
de interação entre os habitantes dessas “metrópoles pouco habi-
tadas” era intensa, marcada por encontros entre pessoas de longa
convivência, fato semelhante ao que ocorre nas pequenas cidades

81 BENJAMIN, 1982, p. 48.

57
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

interioranas. Não se deparava comumente com desconhecidos. A


única hipótese de anonimato advinha da presença de “forastei-
ros”, o que sempre levantava suspeitas de todos os moradores. Por
mais que as estruturas de poder (e as de exploração deste poder)
existissem, a proximidade entre os habitantes possibilitava uma
maior participação e observância nos assuntos da coletividade.
Com o surto populacional ocorrido nas principais cidades
europeias do século XVIII, os habitantes dos grandes centros ur-
banos se defrontaram, pela primeira vez, com multidões. Lídia
Moreira82 ressalta que, para um indivíduo que nasceu no século
XX, a multidão é fato corriqueiro, a ponto de se estranhar os es-
paços onde ela não se mostra. O oposto ocorreu com o homem do
século XVIII: a multidão era uma coisa absolutamente nova, que
reunia excitação e temor.
Edgard Allan Poe e Charles Baudelaire foram os primeiros
grandes divulgadores dos efeitos da multidão na alma e na socieda-
de humanas. E tinham que ser mesmo eles, grandes escritores e po-
etas que eram, já que, no dizer do próprio Baudelaire: “Não é dado
a todo o mundo tomar um banho de multidão: gozar da presença
das massas populares é uma arte” 83. O maior assombro decorria
do fato de se esbarrar a todo instante com milhares e milhares de
anônimos: “Isto que os homens denominam amor é bem pequeno,
bem restrito, bem frágil comparado a esta inefável orgia, a esta solta
prostituição da alma que se dá inteiramente, poesia e caridade, ao
imprevisto que se apresenta, ao desconhecido que passa.”84.

82 MOREIRA, Lídia. Uma leitura da temática das multidões em Poe e Baudelaire.


[2008-2013]. Disponível em: <http://goo.gl/RGvMnP>. Acesso em: 12 abr. 2013.
83 BAUDELAIRE, Charles. As multidões. In: BAUDELAIRE, Charles. Poesia e
prosa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 289.
84 Ibid., p. 289.

58
O Direito à cidade

Como se sentir em casa numa cidade onde não se conhece nin-


guém? Por mais vivazes que fossem as sensações oriundas do contato
com a massa, os habitantes das metrópoles industrializadas começa-
vam a não se sentir pertencentes a um lugar. E isso não ocorria apenas
com os recém-chegados do campo, que buscavam subsistência nas
fábricas, mas com as pessoas que haviam nascido na cidade. Ao anali-
sar os escritos de Baudelaire sobre a Paris da época, Walter Benjamin
afirmou que, através da multidão, a cidade onde nascera o poeta nem
sempre lhe aparecia como um ninho acolhedor, já que havia momen-
tos em que ela tomava a aparência de mera paisagem85.
Poe86 também descreveu o “mar tumultuoso de cabeças hu-
manas” que enchiam as pessoas com “uma emoção deliciosamente
inédita”. Em seu conto “O homem na multidão”, o escritor faz uma
pintura da multidão londrina:

[...] [Há] carregadores de anúncios, moços de frete, var-


redores, tocadores de realejo, domadores de macacos en-
sinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos esfarrapa-
dos e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies
– tudo isso cheio de bulha e desordenada vivacidade, fe-
rindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos
uma sensação dolorida nos olhos.87

Assim como Baudelaire – e ainda antes deste –, Poe descre-


veu a solidão profunda que se sente quando se está em meio a uma
multidão. Era como se a cidade tivesse deixado de ser o habitat do
animal político aristotélico, marcado pela sociabilidade, para se tor-
nar um agregado de seres individualistas. A construção de laços

85 BENJAMIN, 1982.
86 POE, Edgar Allan. O homem das multidões. In: POE, Edgar Allan. Ficção
completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. p. 392.
87 Ibid., p. 394.

59
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

interpessoais não fazia mais parte da essência de uma urbe. Ao


retratar o turbilhão emocional que surgia das multidões de rostos
desconhecidos, os dois escritores acabaram sendo dos primeiros a
detectar as mazelas que assolavam a vida urbana pós-industrial,
mais precisamente aquelas ligadas à fragilidade dos laços interpes-
soais e ao esmaecimento da sensação de pertencimento à cidade.
Outro grande pensador que se debruçou sobre os efeitos da
multidão urbana foi Georg Simmel, que viveu na transição entre os
séculos XIX e XX. Segundo ele, “[...] em nenhum lugar alguém se
sente tão solitário e abandonado como precisamente na multidão da
cidade grande.”88. Ao relatar que a proximidade corporal é seguida
de uma “explícita distância espiritual”, Simmel, assim como Baude-
laire e Poe, abordou os efeitos que os princípios liberais provocaram
nas relações interpessoais. Se os encontros rápidos e raros tornam
as pessoas estranhas entre si, o espírito capitalista concorrencial as
transformam em rivais: “O decisivo é que a vida citadina transfor-
mou a luta com a natureza em vista da obtenção do alimento numa
luta entre os seres humanos, de sorte que o ganho que se disputa
não é aqui concedido pela natureza, mas pelos homens.”89.
Para Georg Simmel, é o individualismo espiritual a principal
(e mais grave) consequência do contato entre indivíduo e multi-
dão. Viver entre milhões significa mergulhar no anonimato e, para
se salvar da degeneração da personalidade advinda desse mal, o
homem adota uma postura de luta pelo ego, exagerando os ele-
mentos atinentes às suas peculiaridades e particularização, o que
levará, posteriormente, a uma indiferença pelo outro ainda maior.
A coletividade que o cerca, a história que o precede, o futuro pú-

88 SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, Rio de


Janeiro, v. 11, n. 2, p. 577-591, out. 2005. Disponível em: <http://goo.gl/KuvAWD>.
Acesso em: 19 ago. 2013. p. 585.
89 Ibid., p. 587.

60
O Direito à cidade

blico que o aguarda... nada tem mais sentido do que a sua própria
realização pessoal. É com base nesse raciocínio que Simmel abre a
sua obra “As grandes cidades e a vida do espírito”: “Os problemas
mais profundos da vida moderna provêm da pretensão do indiví-
duo de resguardar a autonomia e a peculiaridade da sua existência
em face das prepotências da sociedade, da herança histórica, da
cultura exterior e da técnica da vida.”90.
Urge frisar que a indiferença não se dava apenas com as pes-
soas, mas também com os próprios elementos urbanos, sejam eles
físicos (áreas públicas, monumentos, elementos naturais, como ár-
vores milenares, pedras e rios, etc.) ou abstratos (as instituições
políticas, os símbolos culturais da região, os valores adquiridos pe-
los antepassados, etc.). Tudo mudava rápido demais: os cenários
se alternavam todo o tempo, com construções e reconstruções de
prédios que se elevavam cada vez mais aos céus; os bens e serviços
mais visíveis se modificavam constantemente, de acordo com as
necessidades que iam surgindo em meio à população; enfim, a so-
ciedade a todo o momento se via diante de novidades que surgiam
e desapareciam da noite para o dia, como artigos de moda, máqui-
nas, hábitos, papéis sociais, de maneira que nada podia prender a
atenção do homem da multidão por muito tempo.
Os primeiros homens que viveram essa intrigante aventura
de estímulos descrevem a indiferença desesperadora que assolava
o homem moderno. Rilke foi um deles: “Percebo com um senso
de horror que ficamos insensíveis em relação até mesmo às coisas
mais maravilhosas quando elas se tornam parte das interações e
dos ambientes diários.”91.

90 Ibid., p. 572.
91 RILKE, Rainer Maria. Cartas do poeta sobre a vida. Tradução Milton Camargo
Mota. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 112.

61
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

Nos dias de hoje, é notável que essas temáticas permaneçam


vivas nas ruas da maioria das grandes cidades no mundo. A des-
graça humana “[...] é encarada apenas como um aspecto repulsivo
do espetáculo do mundo [...] [na medida em que] os miseráveis se
tornam transparentes aos nossos olhos, formando uma verdadeira
casta de milhões de intocáveis.”92.
É fácil perceber que, ao se encontrar numa multidão de pes-
soas estranhas, e se deixar dominar pelo egocentrismo e pela in-
diferença social, o homem deu um primeiro passo para dilapidar o
lado público de sua personalidade. A cidade deixou, com isso, de
ser um espaço privilegiado para a política. Não existe mais povo
soberano ou nação unida pelos mesmos ideais. O que existe é uma
grande multidão apolítica a se debater no espaço público.
E como a multidão participa da gestão de uma cidade? É co-
mum notar que as audiências públicas, que deveriam dizer respeito
ao planejamento da cidade como um todo, acabam se tornando
locais de embate entre pessoas de diferentes bairros, diferentes ca-
tegorias ou diferentes interesses econômicos. Não existe um pro-
pósito de criar uma cidade para todos. Cada pequeno grupo se
volta para aspectos particulares de uma rua, de uma praça, de um
evento que ocorrerá nas proximidades de sua casa.

7.2 A evolução urbana no Brasil


O Direito à Cidade no Brasil tem o grande desafio de enfren-
tar uma cultura urbanística que, desde os primórdios, esteve ligada
à segregação e à espoliação das cidades. A história da formação das
cidades brasileiras foi determinante não apenas para a consolida-

92 VERÍSSIMO, Luis Fernando et al. O desafio ético. Rio de Janeiro: Garamond,


2001. p. 9.

62
O Direito à cidade

ção de uma realidade urbana desigual, mas também para a própria


constituição de modelos de desenvolvimento urbano despolitizados.
A forma evolutiva das cidades que se desenvolveram no en-
contro entre Europa, Ásia e África, para depois se espalharem
pelos interiores de cada continente, foi bem diversa do processo
ocorrido no Brasil. As primeiras cidades criadas em território bra-
sileiro não foram formadas por agregados de grupos humanos inte-
ressados em ver prosperar seus próprios negócios e em cercar suas
vidas de obras urbanas destinadas ao seu bem-estar. O colonizador
português, diferentemente do espanhol e inglês, estava interessado
unicamente na extração de commodities, algo que tornava as suas
terras americanas basicamente rurais. As primeiras vilas criadas
pela Coroa portuguesa tinham as claras funções de “[...] fornecer
uma base para a conquista de territórios e a de manter, na era do
mercantilismo, seu poder na colônia.”93. A cidade brasileira surge
como um elemento simbólico de dominação portuguesa sobre os
ocupantes da colônia. Raymundo Faoro menciona que esse mode-
lo de município “[...] foi instrumento vigoroso, eficaz, combativo
para frear os excessos da aristocracia [local] e para arrecadar tri-
butos e rendas.” 94. Portanto, as cidades brasileiras não passaram de
núcleos administrativos e políticos destinados a representar os inte-
resses da monarquia portuguesa95.
Frei Vicente, no início do século XVII, comentava o desin-
teresse (ou incompetência) de Portugal por uma ocupação mais
organizada da colônia. Ao descrever a geografia das terras brasi-
leiras, comentou:

93 WILHEIM, 2011, p. 19.


94 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político
brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1987. p. 147.
95 WILHEIM, 0p. cit., p. 20.

63
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não tra-


to, porque até agora não houve quem a andasse, por negli-
gência dos portugueses que, sendo grandes conquistadores
de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de
as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos.96

Desinteressados em construir uma vida urbana dotada de maior


infraestrutura, os portugueses permitiram formas de ocupação da terra
que beiravam o aleatório, tamanha era a liberdade e a desorganização
com que foram realizadas97. As únicas intervenções urbanas da Co-
roa se referiam a fatores que mantivessem o poderio comercial e bélico
das cidades coloniais. Foi assim que, mesmo com a escassez de recursos
voltados para a colônia, espaços destinados às cerimônias de comemo-
ração pela invasão portuguesa e aos valores da Cruz e da Coroa foram
enaltecidos, dentre eles “[...] a praça do Palácio, a Alfândega, a Igreja
Matriz, a praça do Pelourinho, a Casa de Câmara e Cadeia.”98. Dizia
Milton Santos que a cidade era “[...] uma emanação do poder longín-
quo, uma vontade de marcar presença num país distante.” 99.
Diferentemente de outras nações europeias, Portugal não pos-
suía um conjunto sistemático de regras para o desenho da cidade.
As normas aplicadas eram as oriundas das Ordenações Afonsinas
(1446) e Manuelinas (1521), sendo que em nenhuma delas existiam
regramentos para a estruturação e organização dos povoamentos: “A
legislação portuguesa intervinha em questões muito mais de ordem
judiciária e fiscal do que propriamente urbanística ou política.”100.

96 SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil. Disponível em: <http://goo.gl/


ujQ2i5>. Acesso em: 24 ago. 2013. p. 5.
97 ROLNIK, 1997.
98 WILHEIM, 2011, p. 20.
99 SANTOS, 2008, p. 19.
100 ROLNIK, 1997, p. 17.

64
O Direito à cidade

Outro fato marca a criação urbana no Brasil: os primeiros


municípios fundados na colônia precederam ao povoamento. O
explorador das terras conquistadas recebia uma carta régia que o
designava capitão-mor, estipulando onde seria a área que daria vida
à futura vila ou cidade. Tratava-se, assim, de uma espécie de cons-
trução jurídica que inaugurava um estabelecimento empresarial101.
É notável que as primeiras cidades brasileiras não surgiram sob
a égide de qualquer pacto social dos seus habitantes. Oportunistas,
escravos, detentos, exilados – os primeiros residentes da colônia não
tinham interesse (ou possibilidade) de realizar uma união que res-
peitasse a vontade coletiva. Algumas pessoas nem poderiam ceder
parte de sua liberdade, pois não possuíam qualquer fração desta.
Outras (uns pouquíssimos) comandavam expedições que lhes ga-
rantiam a exploração de áreas vastíssimas segundo sua própria von-
tade (sem deixar de considerar a vontade última da Coroa, é claro).
A frágil formação das primeiras cidades e vilas brasileiras
provocou consequências funestas no processo de urbanização
ocorrido ao longo dos últimos séculos. A falta de projetos comuns
talvez seja a principal causa para problemas cristalizados na histó-
ria do Brasil, como a corrupção, a desigualdade econômica, o bai-
xo capital social, a despolitização e a alienação que recaem sobre a
população. O “sentimento de não pertencimento” é incompatível
com a ideia de um desenvolvimento urbano pleno e sustentável.

7.3 A política na cidade global


Os impactos provocados pela globalização não são verificá-
veis apenas na estruturação das empresas e dos mercados. Ao se
tornar global, o capitalismo acaba por promover alterações nas

101 FAORO, 1987.

65
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

funções e dinâmicas de uma cidade, além de influenciar na sua


própria política102.
A busca por novos mercados e por mecanismos mais van-
tajosos de produção e distribuição de serviços, mercadorias e ca-
pitais fazem os processos econômicos se dispersarem no espaço,
promovendo a criação de um mercado global organizado em rede.
Mas, independentemente dessa expansão mundial, existe a neces-
sidade de criar pontos nodais em tal rede, pois a multiplicação de
sistemas de comando não é interessante por dois motivos cruciais:
o primeiro deles se refere ao fato de as tecnologias da informa-
ção permitirem que a coordenação se concentre em apenas uns
poucos pontos, que emitirão ordens e colherão feedbacks remo-
tamente; em segundo lugar, muitos centros de comando podem
acabar por comprometer negativamente as organizações, já que
as decisões estratégicas devem ser tomadas de forma harmoniosa
para todos os pontos que compõem a rede.
As empresas, sobretudo as grandes empresas, necessitam da
implantação de alguns poucos centros de comando em diferentes
pontos do mundo, para que eles cuidem de controlar o fluxo de
mercadorias, serviços e capitais em determinadas regiões. E esses
centros de comando precisam ser instalados em locais dotados de
inúmeros serviços de suporte, como os de contabilidade, jurídicos,
de engenharia, etc. Além disso, necessitam que, em seu entorno,
exista mão de obra qualificada para executar os serviços necessários.
A cidade, naturalmente, costuma ser o local mais adequado
para que a empresa contemporânea instale seus centros de co-
mando. Obviamente, fala-se aqui de uma cidade capaz de oferecer
infraestrutura urbana, serviços adequados, formação de mão de

102 SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA


BAHIA. Metrópole baiana: dinâmica econômica e sócio-espacial recente.
Salvador: SEI, 2012.

66
O Direito à cidade

obra, dentre outros quesitos. Deste modo, as cidades se lançam em


um grande cenário de competição global pela atração de empresas.
A lógica da atração de empresas também se aplica à atração
de megaeventos (a exemplo da Copa do Mundo e das Olimpíadas)
e de turistas. Do mesmo modo que as grandes empresas competem
no mercado global pela conquista de clientes, as cidades também
lutam entre si pela conquista de clientes, de megaeventos e de
turistas. Caso a cidade não se adeque a essa realidade, corre o
risco de perder muitos investimentos. É aí que residem os maiores
problemas das cidades globais.
As cidades globais costumam apresentar uma peculiaridade:
o planejamento urbano tem sido direcionado para atender aos an-
seios e às necessidades das grandes empresas, das entidades pro-
motoras de megaeventos e dos turistas. E como fica a população?
Como ficam as pessoas que têm na cidade o palco para a sua pró-
pria vida? Como a construção política pode se sobressair quando o
planejamento não se direciona para as pessoas, mas apenas para a
lógica competitiva mundial? Esses são alguns dos maiores dilemas
do planejamento urbano contemporâneo. A cidade, ao tentar se
moldar para sobreviver em um mercado global altamente competi-
tivo, acaba por negar os interesses e necessidades dos seus próprios
habitantes. O global supera o local e a lógica de fluxos de merca-
dorias, serviços e capital supera a própria política.

67
8 Conclusões

Na cidade existem vários tempos, várias memórias, várias


histórias, várias verdades: ela não é homogênea, como
também não o é a sua leitura. Toda vez que a observamos
com novos olhos, com outras referências e preocupações,
descobrimos outras cidades, que se somam ou contradi-
zem à primeira percepção.103

Woody Allen, cineasta que levou as paisagens nova-iorquinas


às telas por diversas vezes, conta que as pessoas sempre lhe dizem
que não conhecem a Nova York sobre a qual ele escreve, que elas
não sabem nem mesmo se essa Nova York realmente existiu104.
Ora, mas essa não seria a característica mais genuína de um cine-
asta, apontar a câmera para uma determinada direção e realizar
um corte retangular da realidade, de modo a tornar invisível tudo
o que não caiba em tal enquadramento? É inevitável que o cinema
seja elaborado com base em escolhas arbitrárias, que recortam a
realidade em pedaços para depois reuni-la em renovados sistemas
de imagens e sons. Ancorado nesta linha de raciocínio, Woody
Allen foi capaz de criar uma Nova York diferente para cada filme
que dirigiu e, mesmo assim, nenhuma dessas cidades coincide com
aquela que os habitantes, em geral, entendem como sendo a real.

103 ANDRADE, Antônio Luiz Morais de. Fragmentos de uma Leitura da Cidade.
1992 90 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo)–Faculdade de
Arquitetura, Salvador, 1992. p. 17.
104 FAVERO, Paulo. A Nova York de Woody Allen e o ensaio dentro de Manhattan.
2011. Disponível em: <http://goo.gl/mc5nae>. Acesso em: 24 ago. 2013. p. 1.

69
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

Ao longo das últimas décadas, muitos urbanistas demons-


traram que a cidade não deveria ser vista apenas como um espaço
construído, um mero conjunto de edificações capazes de aglome-
rar as mais diversas atividades humanas. A realidade urbana pos-
sui elementos mais amplos e ao mesmo tempo sutis, dotados de
uma subjetividade que fluidifica o que aparentemente é concreto.
Surge, deste modo, a concepção da cidade como um texto que é
constantemente escrito e lido pelos habitantes que a compõem. E,
como qualquer texto, será interpretado e reinterpretado conforme
as particularidades temporais e espaciais de cada sociedade. Den-
tro desse paradigma, os cineastas não são os únicos a recortar a re-
alidade para criar suas próprias cidades. Esse é o papel de qualquer
habitante. Cada sujeito da multidão carrega a sua própria urbe, e
essa produção urbana difusa faz com que uma metrópole agregue
milhões de cidades que se debatem entre si a todo o tempo.
Eis que qualquer leitura sobre a realidade urbana acaba não
sendo encerrada apenas com uma conclusão. Naturalmente surgi-
rão diferentes “conclusões” sobre as páginas de uma obra como a
presente, e cada uma delas se originará de diferentes motivações,
anseios e ações. Pode--se até questionar se é possível haver con-
clusões sobre qualquer leitura que trate de uma cidade, criação
humana que se modifica diariamente, formando e deformando
lugares e habitantes a cada instante. Já afirmava Henri Lefebvre
que a cidade e os direitos que dela emanam, enquanto conjunto de
elementos que precisam ser lidos e interpretados cuidadosamente,
não podem ser considerados como um texto imposto e concluído.
Melhor seria considerá-los como um livro que está sempre para
ser feito, uma obra sempre inacabada, que deve ser remendada ao
longo dos anos por todos os sujeitos que anseiam colher felicidade
e dignidade de uma vida urbana.
Pelo exposto, toda leitura que aborde o Direito à Cidade aca-
ba tomando mais ares de manifesto do que de estudo científico.

70
O Direito à cidade

Mais do que apresentar pareceres técnicos e fórmulas prontas,


as obras que tratam do Direito à Cidade são verdadeiros atos de
convocação dos citadinos, para que estes exerçam sua parcela de
poder político e remodelem a cidade conforme suas expectativas.
Trata-se, pois, de uma ruptura com o modelo capitalista de pro-
dução e apropriação da cidade, que é pautado pelos interesses de
uma minoria hegemônica que obstrui o exercício da verdadeira
democracia, tornando os arredores urbanos estranhos e hostis
para os seus próprios habitantes.
Não por acaso, Henri Lefebvre concebeu o Direito à Cidade
não apenas como possibilidade de apropriação do que já existe,
mas sobretudo como um reconhecimento de que a cidade per-
tence a todos os seus habitantes, e deve ser criada e remodelada
de acordo com as suas necessidades e interesses. Cada citadino,
por isso, tem o direito de participar da construção dessa grande e
complexa obra chamada cidade.
O Direito à Cidade tem, portanto, uma conotação de convi-
te. E convite para que tipo de evento necessariamente? Audiências
públicas, reuniões de associações de bairro, votações de projetos
de lei nas câmaras municipais, marchas populares, debates nas
universidades, dentre tantos outros espaços nos quais se debate
e se decide os rumos de uma cidade. Quanto mais a população
citadina se conscientizar das causas das mazelas urbanas, quanto
mais se apropriar das diversas instâncias de participação popular,
mais a cidade será um reflexo de suas perspectivas.
Por mais que no cinema seja natural assistirmos imagens de
cidades saídas de olhares geniais como os de Woody Allen, não
podemos acreditar que a cidade real, a nossa cidade, possa ser re-
sultado de projetos também individuais. Nesses assuntos, a vida
não pode imitar a arte. No cinema, é possível ser protagonista,
ser autor da própria história e criador do próprio cenário, mas na
cidade dita real não é assim. Essa experiência precisa ser compar-

71
Claudio Carvalho /Raoni Rodrigues

tilhada. A realidade urbana não deve ser o resultado do projeto de


uns poucos, mas sim uma obra de todos. Um lugar de encontro, de
confluência, de conflito e de convivência. É daí que surge a maior
riqueza da cidade, a sua maior força.

72
Referências

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