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A ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL A PARTIR DA ATIVIDADE

HERMENÊUTICA: SOBRE O PAPEL DE DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA NA


ADEQUAÇÃO DO CÓDEX À CONSTITUIÇÃO

Marcos Bonfim. Pós-graduado em Direito das Famílias e Sucessões pela


Academia Brasileira de Direito Constitucional. Mestre em Direito das Relações
Sociais pela Universidade Federal do Paraná.

Seria intuitivo concluir que, tendo tramitado já após a edição da Constituição


Federal de 88, o Código Civil de 2002 densificaria as disposições
constitucionais e o renovado humanismo que a sociedade pretendia fosse
edificante das relações interprivadas.

Todavia, a esperança de um Código que prestasse efetividade aos princípios


constitucionais se esvaiu quando da apresentação de seu texto final.

Tem-se, no Código Civil de 2002, hoje vigente, um conjunto de regras centradas,


ainda, na tutela do patrimônio e no individualismo, com pontuais concessões à
pessoa humana e à solidariedade constitucional. Tem-se uma verdadeira
colcha de retalhos. Um Código permeado pelos valores de outrora – mais
especificamente, da década de 70 -, que recebeu algumas modificações ad hoc,
pretendendo, sem muito sucesso, adequá-lo ao espírito das disposições
constitucionais.

Nesse sentido, bem assevera FACHIN que o Código Civil de 2002 tem “forte
assento histórico”1 na figura conceitual do sujeito proprietário em torno do qual
erigiam-se as codificações oitocentistas, trazendo uma carga de valores ainda
vigente em nossa sociedade quando da elaboração do projeto que deu corpo
ao Código, na década de 70:

“O código civil de 2002 é produto do pensamento


jurídico sistematizado na década de 70 de um Brasil que restou
sepultado, em boa parte, pela Constituição de 1988 [...] um
projeto de asas fabricadas para voar mais ventos soprados do
pretérito [...] o evento da vigência em 2003 do Código Civil
brasileiro se alinha, em boa parte, com a presentificação do
pretérito e sem grandes contributos à realidade efetiva do
programa constitucional [...] não se transformou, ele mesmo,
em extraordinário instrumento de realização constitucional, eis
que seu ideário foi moldado sob outra ordem [...] o modo
1
FACHIN, Luiz Edson. Sentidos, Transformações e fim. p. 16.
codificador do começo deste século deveria chamar à colação,
contudo, outro patamar de preocupações. Não o fez no projeto,
nem dialogou, no transcurso da elaboração legislativa, com o
novo programa constitucional”2.

Na mesma toada vai MORAES que, noticiando haver quem sustentasse, durante
o trâmite do Projeto de Código Civil, que a doutrina do direito civil-
constitucional tinha data de validade, pois o novel compêndio já viria permeado
pelos valores e princípios constitucionais, sublinha que:

Tal falácia pôde ser desfeita já a partir da análise


dos diversos anacronismos e deficiências que o texto,
elaborado na década de 1970, traz em seu corpo, consagrando,
em numerosos dispositivos, entendimentos que se opõem ao
movimento de personalização que vinha se operando em
doutrina e jurisprudência3.

É salutar o alerta que faz a autora, no sentido de que, após a edição do Código
Civil de 2002, em descompasso com o programa constitucional, “mais
firmemente do que antes, será preciso persistir no esforço de conferir aos
institutos civilísticos a interpretação condizente com a tábua axiológica
prevista na Constituição”4.

Nesse sentido, deve-se relembrar que, com a promulgação da Constituição


Federal de 88, a dignidade humana foi consagrada enquanto valor-fundante do
ordenamento jurídico brasileiro.

Para a sua concretização, todas as normas devem convergir.

Dessa maneira, ganham primazia as soluções que, sob o influxo da


principiologia constitucional, melhor realizem, no caso concreto, o norte que a
sociedade democrática elegeu como estruturante tanto das relações estatais
quanto das relações entre os particulares.

Tem-se, assim, um papel de protagonismo da doutrina e jurisprudência em


fazer o Código descer da abstração à concretude da vida material, e indicar os
caminhos para a sua constante releitura à luz da axiologia constitucional,
ditando a prevalência das situações jurídicas existenciais em detrimento das
situações jurídicas patrimoniais.
2
Ibidem, passim.
3
MORAES, Maria Celina Bodin de. op. cit., p. 236
4
Idem.
Um primeiro e decisivo passo nesse sentido é introjetar, na cultura jurídica
brasileira, a necessidade de abandono da ideia de que há, no sentido vigente
dado ao texto do Código, respostas prontas e acabadas.

Ao texto do compêndio civilista, conforme uma dada apreensão da realidade,


em uma atividade interpretativa, é atribuído um significado. O que se quer aqui
destacar é que esses significados não são imutáveis, mas fruto das influências
que o tempo e o lugar exercem sobre o intérprete5.

Partindo dessa premissa, e de que a lei não é mero objeto de interpretação,


mas já fruto de dada compreensão do legislador 6, faz-se necessário,
atualmente, interpretar o texto positivado e ir além. É preciso construir um outro
sentido para o texto a partir dessa interpretação, o que passa pela percepção,
pelo artífice da norma, dos fatos da vida subjacentes ao texto, ou seja, a
realidade da vida material a que ele intenta, hoje, responder, e a necessidade de
a partir do texto positivado edificar uma ordem jurídica voltada a realização dos
princípios constitucionais.

O texto é apenas uma das matérias de que o Código é feito. Não se erige,
entretanto, em obra acabada pelas mãos do legislador, mas cujos sentidos de
seus conceitos e fins de seus institutos são construídos com as mãos também
de doutrina e jurisprudência, em um trabalho de constante “reconstrução dos
significados que compõem os significantes”7 do compêndio civilista.

Esse desígnio hermenêutico, é certo, volta-se para um fim, que é o de, dentre os
possíveis sentidos do texto positivado, construir aquele que seja mais funcional
a dar uma resposta aos problemas da sociedade contemporânea e que esteja
permeado com os valores expressos na constituição.

Tem-se, assim, que doutrina e jurisprudência constroem a dogmática do código


a partir do diálogo aberto entre texto positivado, sociedade e os princípios
constitucionais, funcionalizando-o para a concretização do norte da dignidade
humana.

Nessa atuação hermenêutica de construção e reconstrução jurídica e cultural


dos sentidos do código, faz-se seu reenvio constante ao núcleo axiológico

5
FACHIN, Luiz Edson. op. cit., p. 144.
6
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13 ed. Coimbra: Almedina, 2013, p.
39
7
FACHIN, Luiz Edson. op. cit., p. 83.
constitucional. Ante a inércia do legislador em atualizar um Código cujo texto é
fruto de uma compreensão da realidade em descompasso com os valores
constitucionalmente eleitos como os de nossa sociedade, deve-se adotar as
seguintes tarefas: a) onde lia-se liberdade individual deve-se reler igualdade
substancial; b) onde lia-se sujeito proprietário atomizado deve-se reler pessoa
humana na concretude das relações sociais em que ela se encontra inserida; c)
onde lia-se individualismo deve-se reler solidariedade social.

Nesse processo, deve-se ter a percepção de que os institutos clássicos do


direito civil, tal como o contrato, a propriedade, e a família, nas codificações
oitocentistas voltados à uma tutela patrimonial – e desse objetivo não se
descurando no Código Civil de 2002 -, devem ser redimensionados e
funcionalizados em torno do norte da dignidade humana.

As transformações de significados dos conceitos do Código e de funções de


seus institutos clássicos, propostas pela doutrina e levadas a cabo pela
jurisprudência em sua atividade interpretativa da dogmática civilista, vão,
assim, gradativamente, imprimindo-lhe conteúdo conforme a axiologia
constitucional e dissipando o legado liberal-clássico que nele ainda se faz
presente.

O limite dessa atividade, no entanto, encontra-se na possibilidade de sentidos


que se pode extrair do texto do Código, de sorte que não é possível, através tão
somente desse exercício hermenêutico, promover a desejada expurgação dos
valores individualistas e centrados no patrimônio que a codificação de 2002
ainda traz consigo.

Dessa forma, sob pena de o compromisso constitucional de tutela da pessoa


em sua dignidade ver-se frustrado no âmbito das relações interprivadas, a
mudança deve ser não só de conteúdo, mas também de método.

A saber, deve-se romper com a lógica formal da subsunção, que faz a regra
jurídica incidir imediatamente quando da ocorrência do fato do mundo da vida
nela previsto. Tal método, compromissado com a segurança formal,
cristalizando os valores que permeiam as regras de um código, erige-o
enquanto sistema fechado, tornando-o impermeável à intervenção da realidade
e ao poder criador da jurisprudência8.

8
MARTINS-COSTA, Judtih. op. cit., p. 115.
Dessa forma, o magistrado deve partir não mais da norma e sua resposta
abstrata e previamente elaborada, e sim do caso concreto. A partir da análise
do caso que se põe a seu julgamento, deve buscar no sistema, dentre as
respostas positivadas, a que oferece a solução mais consentânea ao princípio
constitucional que, em uma ponderação axiológica, entenda, motivadamente,
deva prevalecer9.

Trata-se de uma atividade criativa e, por vezes, integrativa – à falta da solução


jurídica positivada adequada ao princípio constitucional que deva prevalecer –
de pensar o direito “para além dos modelos abstratos” 10, prestando efetividade
à axiologia constitucional.

A tarefa de verificar os princípios constitucionais envolvidos – e não raro em


conflito – e encontrar a solução no ordenamento que atenda ao que, em
ponderação, deva prevalecer, não é das mais simples, e sobreleva em
importância a observância da proporcionalidade e o dever de fundamentação
das decisões.

Afirma MORAES, que nesse método tópico-sistemático, em que o juiz deve


levar em consideração, na análise do caso concreto, “uma multiplicidade de
exigências, de interesses e de necessidades com frequência conflitantes entre
si, a única constante a ser seguida encontra-se na prevalência da tutela da
pessoa humana”11.

Veja-se que há, nesse método, um abandono da centralidade das regras do


Código, que passam a tão somente fazer um background das relações
interprivadas, oferecendo-se como base para a resposta a ser ofertada pelo
ordenamento, mas cuja incidência ao fato não é automática nem fatal, mas
mediada pela interpretação do magistrado e pela prévia ponderação axiológica
que deve realizar.

Ao Código Civil é relegado um papel coadjuvante, mas que permite dotar as


respostas a serem dadas de certa previsibilidade, de um mínimo de segurança
jurídica.

Perde-se, é certo, em segurança formal, ao menos enquanto não há em nosso


ordenamento uma verdadeira jurisprudência, mas um conjunto de julgados com

9
FACHIN, Luiz Edson. op. cit., p.93-94.
10
Ibidem, p. 51-52.
11
MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização... op. cit., p. 238.
a mesma conclusão. Mas ganha-se, e muito, em efetividade na concretização
do programa constitucional.

Nesse panorama, reconhece-se a importância do código civil enquanto sistema,


dando base para as relações interprivadas, mas imprimisse-lhe sérias
transformações. Essas transformações o são tanto em conteúdo, a partir da
constante atuação hermenêutica de ressignificação de seus significados,
quanto em método, submetendo a resposta a ser ofertada pela norma “à
contraprova da realidade” e à axiologia constitucional 12.

Em conclusão, o papel da doutrina, nesse panorama, é o da crítica. É o de


apontar onde há fratura entre o programa da norma codificada e a dinâmica da
vida material. É o apontar onde o sonambulismo do legislador exige do
magistrado que integre a dogmática do Código. É o de apontar onde há espaço
para emprestar ao texto positivado sentidos mais conformes à constituição. É,
enfim, o de abrir os caminhos hermenêuticos.

A do magistrado, é o de tomar essas vias, a fim de construir o sentido da norma


na análise do caso concreto, dando efetividade aos comandos constitucionais.

12
“A interpretação jurídica desse porte não é, a rigor, operação estritamente jurídica e sim
fenômeno cultural. Pode-se verificar por aí que o Direito é um sistema aberto, mas não só. É
um sistema dialeticamente aberto, que deve ser compreendido por meio de uma hermenêutica
crítica, que submete perenemente as regras aos preceitos constitucionais, destacando-se neles
o princípio da dignidade da pessoa humana, e à contraprova da realidade”. FACHIN, Luiz
Edson. op. cit., p. 117.

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