Você está na página 1de 21

SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA JURÍDICA

INTRODUÇÃO À ANTROPOLOGIA E À
SOCIOLOGIA JURÍDICA
Marcus Vinicius de Freitas Teixeira Leite

-1-
Olá!
Você está na unidade. Conheça aqui as abordagens de dois campos de estudos: a Sociologia do Direito e a

Antropologia Jurídica. Para tanto, estudaremos o significado, o objeto e âmbito da Sociologia geral, a partir de

uma perspectiva histórica, além do objeto e do significado da Antropologia Jurídica e da Sociologia aplicada ao

Direito. Essas noções serão fundamentais para os conceitos estudados ao longo da disciplina e também para uma

melhor compreensão do fenômeno jurídico e suas implicações sociais.

Bons estudos!

-2-
1. Significado, objeto e âmbito da Sociologia
Neste tópico, a proposta é compreender do que trata a Sociologia Geral, qual o seu objeto de estudo e o que ela

aborda. Além disso, veremos sua origem histórica, com enfoque na figura de Augusto Comte e no Positivismo.

Veremos que a Sociologia tem uma enorme relevância para os estudos sobre a sociedade, o que fortalece a

pertinência da Sociologia do Direito para qualquer aprofundamento no campo jurídico.

Assista aí

https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/746b3e163a5a5f89a10a96408c5d22c2

/4613dac9622527172a170f05c00db277

-3-
1.1 Concepção e objeto da Sociologia

A Sociologia pode ser considerada uma ciência que tem por objetivo analisar os processos e as estruturas

sociais, ou seja, como se dá a vida humana em sociedade. A partir de diferentes perspectivas, o que os principais

teóricos da Sociologia fizeram foi oferecer explicações para se compreender a sociedade como um todo, em

análises sobre alguns aspectos da estrutura social e das relações que se estabelecem no seu interior.

Ao estudar as formações sociais e suas causas, a Sociologia se insere em uma análise acerca do desenvolvimento

histórico de tais formações, na medida em que tenta compreender os fatores que levaram a uma dada situação

social vivida em determinados contextos. Assim, pode-se dizer que a Sociologia está comprometida com os

processos de transformação social, desvendando mistérios da vida social do passado e, através desse

conhecimento, intervindo na realidade e contribuindo para a compreensão e construção do futuro. Dito de

maneira simplificada, o objeto de estudo da Sociologia seria, então, as formações sociais passadas, presentes e

uma espécie de projeção sobre as futuras (ROCHA, 2019. p. 10).

O sociólogo José Manuel de Sacadura Rocha destaca também necessidade de que a Sociologia, para ser ciência,

seja pensada em um contexto de liberdade. Isso porque, para o autor, como a Sociologia está comprometida com

a reflexão sobre as transformações sociais, seria difícil defender esse papel de agente de mudanças em um

contexto de autoritarismo e estados de exceção (ROCHA, 2019. p. 10).

Além disso, é importante pontuar a extrema relevância da Sociologia para a compreensão do ser humano acerca

de si mesmo. Historicamente, o ser humano constitui-se de maneira social, isto é, em relação com outros seres

humanos e com o ambiente que os cerca. Essas relações ajudam a moldar, condicionar e até determinar a forma

como agimos, vivemos e somos.

Mesmo que nós possamos agir de maneira isolada e individual, o comportamento continua sendo social, na

medida em que sobre ele “recai o peso da orientação coletiva de determinado grupo” (ROCHA, 2019. p. 11).

Evidentemente, há sempre certo espaço para a ação individualizada e nem tudo é absolutamente determinado e

condicionado socialmente. Mas não se pode negar a influência dos fatores sociais na constituição dos

comportamentos humanos. Como exemplo, podemos pensar na forma de utilização do tempo pelas pessoas. Por

que tantas pessoas habitualmente acordam em uma faixa de horário similar, se locomovem ao trabalho e

retornam em horários semelhantes? A influência dos modos de produção de trabalho estabelecidos é

perceptível, na medida em que somos condicionados a utilizar nosso tempo dessa forma.

Assim, quando se diz que a Sociologia estuda processos e estruturas sociais, concretamente seu objeto está

presente em comportamentos sociais variados, como os modos de produção, a utilização do tempo, as

hierarquias sociais, as estruturas de raça e gênero, por exemplo, que implicam na vivência de determinadas

-4-
experiências, as regras sociais tácitas e explícitas que ditam nossa forma de viver, dentre tantos outros exemplos

possíveis.

Todas essas condições da vida humana são construções realizadas ao longo do tempo pelo próprio ser humano,

influenciado também pelas contingências contextuais. Isso traz à tona o papel constituinte do ser humano em

geral, já que os grupos acabam por ter a capacidade de construir seu conjunto de regras, normas e

comportamentos, que vão se modificando ao longo do tempo. Mesmo que seja possível entender o papel do ser

humano nessas transformações de maneira muito distinta conforme a perspectiva sociológica adotada, o fato é

que as sociedades são diferentes e sofrem modificações constantes (ROCHA, 2019. p. 12).

Como essas transformações são absolutamente pertinentes ao estudo sociológico, não há como negar a

importância crescente da Sociologia no contexto atual, tão marcado por mudanças e pelo dinamismo, através,

sobretudo, das transformações tecnológicas. É nesse sentido que F. A. de Miranda Rosa (2004, p. 23) destaca a

crise profunda em que se encontram as sociedades humanas, mas também o potencial transformador nelas

existente:

As contradições internas se manifestam em forma de explosões reveladoras de forças sociais

imensas, represas ou em curso; as populações aumentam aceleradamente e com isso as tensões

internas dos grupos sociais, ou as tensões entre grupos diferentes; a ideologia se apresenta com

enorme capacidade de polarização do pensamento e da ação; o sentido, mesmo, que deve ter a vida

humana, é posto em questão; mas em meio aos problemas e aos conflitos, há uma vitalidade imensa,

cheia de espírito criador, da solidariedade, em que um novo eclodir do humanismo se mostra, e

quando a procura de unidade no essencial rivaliza com a afirmação das diferenças inerentes à

personalidade.

É notável, portanto, a importância que se deve dar à Sociologia no mundo atual. Ao vivermos tantas mudanças

sociais, a tentativa de compreendê-las e sobre elas refletir é um imperativo.

Diante de tamanha complexidade da vida humana em sociedade, especialmente nos dias atuais, o objeto de

estudo da Sociologia mostra-se bastante abrangente. Para Anthony Giddens, então, a Sociologia é “o estudo da

vida social humana, dos grupos e das sociedades”, ou seja, seu objeto está centrado no nosso próprio

comportamento como seres sociais e sua abrangência é vasta, na medida em que inclui “desde a análise de

encontros ocasionais entre indivíduos na rua até a investigação de processos sociais globais” (GIDDENS, 2005. p.

24).

Ainda segundo Giddens, a Sociologia traz vantagens para as pessoas em geral, pois permite ao ser humano ter

mais consciência das diferenças culturais, já que dá subsídios para que nós vejamos o mundo a partir de pontos

-5-
de vista distintos do nosso. Além disso, o autor considera também que a Sociologia é uma importante aliada

prática na avaliação dos resultados de iniciativas políticas, na medida em que considera vários fatores

pertinentes à atuação estatal na construção de políticas públicas, por exemplo. Por fim, Giddens destaca que a

Sociologia pode nos fornecer certo auto-esclarecimento: “ (...) quanto mais sabemos por que agimos como

agimos e como se dá o completo funcionamento de nossa sociedade, provavelmente seremos mais capazes de

influenciar nossos próprios futuros. ” (2005. p. 26).

Percebe-se, portanto, que a Sociologia abarca uma variedade enorme de visões teóricas sobre a realidade, que

enriquece as análises e formas de compreensão do mundo. A Sociologia não é, então, um campo intelectual

abstrato, mas na verdade possui implicações prática de extrema relevância para a vida das pessoas, na medida

em que se debruça sobre os comportamentos, processos e estruturas sociais (GIDDENS, 2005. p. 36).

Figura 1 - Sociedade
Fonte: Karavai, Shutterstock, 2020

#PraCegoVer Vemos uma diversidade de pessoas diferentes, convivendo e interagindo no mesmo espaço,

configurando o que chamamos de sociedade

-6-
Assista aí

https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/746b3e163a5a5f89a10a96408c5d22c2

/e285dd498111cf23e1a54d13f930d979

-7-
1.2 Origem da Sociologia: Augusto Comte e o Positivismo

Para entender a origem da Sociologia, é preciso primeiramente esclarecer o contexto em que ela surgiu, na

França do século XIX. Àquela época, sentindo os efeitos da Revolução Industrial, a França se tornava pouco a

pouco uma sociedade industrial, marcada pela exploração de mão de obra barata, sobretudo de mulheres e

crianças, em condições nítidas de precarização, além de um fluxo desordenado de pessoas que saíam do campo

para as cidades, o que gerava problemas de habitação, higiene, alta mortalidade infantil, etc. (ROCHA, 2019. p.

14).

Nesse contexto repleto de transformações e dificuldades sociais, surge a Sociologia, com o intuito de

compreender, por exemplo, os motivos pelos quais a sociedade é estruturada assim e como e por que as

sociedades mudam (GIDDENS, 2005. p. 28), questões pertinentes até hoje nos estudos sociológicos.

Embora não seja possível atribuir a criação desse campo de estudo exclusivamente a uma pessoa, certamente o

francês Augusto Comte (1798-1857) possui grande destaque na origem da disciplina, já que ele foi o primeiro

teórico a usar o termo “Sociologia”.

A perspectiva adotada por Comte é a da ciência positiva. Para o teórico, a Sociologia deveria adotar os mesmos

métodos científicos que a Física ou a Química para o estudo do mundo físico. Assim, para o Positivismo, a

ciência deve se preocupar apenas com aquilo que pode ser observável e conhecido através da experiência. Tendo

por base as observações sensoriais, seria possível inferir as leis que regem as relações entre os fenômenos

observados (GIDDENS, 2005. p. 28).

Nas palavras do próprio Augusto Comte, “ (...) todos os bons espíritos repetem (...) que somente são reais os

conhecimentos que repousam sobre fatos observados” (COMTE, 1978. p. 4). Segundo Comte, o pensamento

humano teria passado por três estágios na tentativa de compreensão do mundo: teológico, metafísico e positivo.

No plano teológico, os esforços eram guiados pelas ideias religiosas e crença segundo a qual a sociedade era a

expressão da vontade divina. Já no estágio metafísico, ocorrido mais ou menos na época da Renascença, a

sociedade passa a ser vista da perspectiva natural, e não sobrenatural. Por fim, no estágio positivo, influenciado

pelas descobertas de Copérnico, Newton e Galileu, tem-se a aplicação de técnicas científicas (das ciências

naturais) ao mundo social (GIDDENS, 2005. p. 28).

Além disso, ainda no que diz respeito à primazia da experiência, preconizada por Comte, o autor considera

importantes dois principais fatores: a observação em si, ou seja, “o exame direto do fenômeno tal como ele se

apresenta naturalmente”, e a observação do fenômeno já “modificado em circunstâncias artificialmente

construídas” (SOUZA, 2008. p. 139).

-8-
Diante da influência decisiva das ditas “leis naturais”, a concepção positivista de Comte aduz que a evolução

social está, na verdade sujeita, a essas leis naturais, que não podem ser modificadas pela natureza humana. Isso

leva à inutilidade, do ponto de vista comteano, da resistência ao desenvolvimento inevitável da sociedade. Assim,

como consequência lógica da teoria de Comte, chega-se a um dos pontos mais importantes e também mais

polêmicos de sua teoria, que considera haver um determinismo no mundo social, em que os fatos estão “(...)

rigorosamente encadeados uns aos outros, segundo leis naturais, que a observação filosófica do passado pode

descobrir, e determinam, para cada época, de maneira inteiramente positiva, os aperfeiçoamentos que o estado

social deve experimentar” (SOUZA, 2008. pp. 139-140).

De todo modo, a teoria positivista teve e ainda tem uma forte influência na concepção de diferentes conceitos e

teorias nas mais diversas áreas do conhecimento, incluindo o Direito. Embora haja um grande determinismo na

explicação do mundo social, que deixa as análises herméticas em alguma medida, sem dúvida Augusto Comte

possibilitou importantes formas de análise da sociedade e dos processos e estruturas sociais inerentes à vida

humana.

-9-
2. Significado e objeto da Sociologia e da Antropologia do
Direito
Agora, é importante nos determos mais sobre a Sociologia já no contexto do Direito. Como veremos, há uma

enorme pertinência não só da Sociologia no campo jurídico, como também da Antropologia. Por isso, veremos o

que cada um desses ramos tem por objeto e sua relevância para o Direito, além de diferenciarmos a Antropologia

e a Sociologia do Direito.

- 10 -
2.1 Concepção e objeto da Sociologia do Direito

Após tratarmos da Sociologia geral compreendendo seu escopo, seu objeto e sua origem, cabe agora melhor

analisar sua pertinência no estudo jurídico propriamente dito. Como já vimos, a Sociologia se debruça sobre os

comportamentos, as estruturas e os processos sociais, buscando entender o funcionamento da sociedade como

um todo. Nas sociedades contemporâneas, o Direito é entendido também como o conjunto de normas que

regulam a vida social, servindo para dirimir conflitos e estabelecer parâmetros de conduta (CAVALIERI FILHO,

2007. p. 7).

Segundo José Manuel de Sacadura Rocha, a Sociologia aplicada ao Direito interessa-se pelo estudo do Direito

com base nos fenômenos sociais. Isso porque as sociedades instituem regras e leis que orientam e obrigam os

indivíduos em sua sobrevivência conjunta. Para o autor, “o objeto da Sociologia Jurídica é a contribuição que o

determinado grupo humano empresta para a consagração e formalização dessas regras, ou seja, entender a

norma, escrita (aparelho jurídico formal), ou não escrita (extrajurídico) ”, a partir de da relação dos fenômenos

sociais com formações sociais específicas de cada sociedade (ROCHA, 2019. p. 23).

Rocha (2019, p. 23) aponta algumas perguntas sobre as quais a Sociologia Jurídica busca refletir, tais como: qual

a magnitude do Direito na sociedade?; o que existe no Direito além de códigos e dos conceitos meramente

legislativos?; como e por que se cria um conjunto de normas?

O que tem se observado já há bastante tempo é a insuficiência em relação à compreensão dos fenômenos sociais

pelo Direito, o que frequentemente implica em erros de julgamento e falhas sérias na efetivação da justiça. Isso

se dá também com a efetividade das normas jurídicas, por vezes produzida e interpretada com certo

distanciamento da realidade fática vivida pelas pessoas. Assim, é nítido que o Direito positivado – estabelecido

em normas, leis e códigos – não contempla toda a complexidade da vida em sociedade. Os fenômenos sociais

estão acima e antes dos códigos legislativos e da formalização no sistema jurídico (ROCHA, 2019. p. 23).

Rocha chama atenção, ainda, às confusões comumente feitas em relação à Sociologia Jurídica. Segundo o autor,

por vezes juristas tendem a subordinar a Sociologia ao Direito, o que implica em um privilégio equivocado da

norma em detrimento da formação social. Para ele, “não é um erro simples; é, simplesmente, a supressão da

ordem das coisas como estas são”, que pode resultar em um Direito desprovimento de movimento e flexibilidade

para adequação à vida concreta (ROCHA, 2019. pp. 23-24).

Erro semelhante é cometido, também, pelos cientistas sociais que retiram do Direito seu papel ativo na

sociedade e submete-o integralmente aos fenômenos sociais, tratando-o de como um mero conjunto de normas

para resolução de conflitos específicos (ROCHA, 2019. p. 24).

- 11 -
Trata-se, igualmente, de uma visão reducionista e empobrecedora em relação ao Direito. A relação entre os

objetos da Sociologia e o Direito é dialética e dialógica, de constituição mútua: da mesma forma que os

fenômenos sociais constituem o Direito, tais fenômenos são por ele constituídos. O Direito faz parte da realidade

social; não pode ser visto como letra fria e sem vida, como se sua existência não repercutisse diretamente na vida

das pessoas:

O Direito tem de observar de perto essa dinâmica, a interação entre sociedade e norma, encarar a

mudança na medida exata da mudança das estruturas sociais e de seu aparato jurídico, diante das

expectativas e tensões pertinentes na vida prática dos agentes sociais inseridos em um contexto de

modernidade. E, de forma igual, a Sociologia há de reconhecer a penetração do Direito na vida social

(ROSA, 2004. p. 25).

Nesse sentido, apesar dessa relação indissociável entre a Sociologia e o Direito, é possível dizer que a Sociologia

Jurídica goza de certa autonomia, já que seu objeto é mais específico em relação a outros campos do

conhecimento. Segundo Cavalieri Filho, a Sociologia Jurídica tem por finalidade o estabelecimento de “(...) uma

relação funcional entre a realidade social e as diferentes manifestações jurídicas, sob forma de regulamentação

da vida social, fornecendo subsídios para suas transformações, no tempo e no espaço” (CAVALIERI FILHO, 2007.

p. 58).

É importante ter em mente, ainda, que a norma jurídica é resultado da realidade social. Conforme Rosa: “Ela

emana da sociedade, por seus instrumentos e instituições destinados a formular o Direito, refletindo o que a

sociedade tem como objetivos, bem como suas crenças e valorações”. Aliás, o próprio estudo histórico das

sociedades comprova isso, na medida em que é facilmente observável a existência de estruturas jurídicas bem

distintas no tempo e no espaço, conforme a realidade e o contexto do momento (ROSA, 2004. p. 44). Sem nos

determos sobre este ponto, basta pensarmos nas mudanças que o divórcio sofreu ao longo do tempo no sistema

jurídico brasileiro, com uma aceitação muito maior em relação às décadas passadas, acompanhando também

transformações sociais.

Além disso, de Acordo com Rocha (2019), a Sociologia Jurídica tem algumas premissas que merecem ser

destacadas brevemente:

Premissas da Sociologia Jurídica

Pluralismo Jurídico, ou se, a diversidade de concepções do que vem a ser o Direito, das fontes do Direito e das

formas de se sistematizar a juridicidade em uma sociedade.

Compreensão da função das normas

- 12 -
Eficácia normativa, ou seja, os efeitos produzidos pela norma.

Assim, o que se percebe com essas premissas é uma relação mais concreta que a Sociologia Jurídica estabelece

com os fenômenos jurídicos, já que se referem às formas de estruturação do Direito e às normas em sua

realidade prática e os seus efeitos possíveis. A Sociologia Jurídica, mesmo que através de diferentes perspectivas

teóricas, explora os fenômenos jurídicos em seus efeitos, causas, processos e estruturas sociais, focando o olhar

para o funcionamento da normatividade (em sentido lato) na vida social.

- 13 -
2.2 Concepção e objeto da Antropologia Jurídica

Além da Sociologia do Direito, há um outro campo de estudo social no Direito, a chamada Antropologia Jurídica

. Da mesma forma que ocorre com a Sociologia, o objeto de estudo antropológico é abrangente e de difícil

definição, já que se concentra também por aspectos da vida em sociedade.

Olney Queiroz Assis e Vitor Frederico Kümpel destacam esse caráter diversificado da Antropologia, que aborda

diferentes aspectos da realidade humana. No seu surgimento, em meados do Séxulo XIX, a Antropologia debruça-

se sobre as sociedades primitivas (ASSIS et al.,2010. p. 17), a fim de entender suas formas de organização,

costumes, evolução no tempo e no espaço etc.

Posteriormente, já no século XX, a Antropologia amplia seu objeto e passa a analisar não apenas as sociedades

primitivas, mas qualquer sociedade em qualquer tempo, de modo que seu objeto passaria a ser “o estudo do

homem inteiro”. Assim, ela visaria o conhecimento por completo do ser humano, implicando no estudo do

homem e da cultura em todas as suas dimensões (ASSIS et al.,2010. p. 17).

Diante da complexidade da vida humana, a Antropologia se divide em alguns ramos, com enfoques diferentes. O

primeiro ramo é o da Antropologia cultural, que consiste segundo Assis et al. (2010, pp. 17-18): “ (...) no estudo

de tudo que constitui as sociedades humanas: seus modos de produção econômica, suas descobertas e invenções,

suas técnicas, sua organização política e jurídica, (...) suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia (...)”.

Temos, ainda, a Antropologia biológica. Nesse caso, o enfoque de estudo está voltado para a evolução do homem,

sua distribuição em grupos étnicos, além da análise de relações entre patrimônio genético e espaços geográficos.

Já a Antropologia pré-histórica, por sua vez, envereda-se pelo estudo dos vestígios materiais deixados nos

ambientes ocupados pelo ser humano, na busca da reconstituição de sociedades e grupos desaparecidos. Por fim,

a Antropologia linguística ocupa-se da linguagem enquanto patrimônio cultural de sociedade, considerando a

relevância dos processos comunicacionais para a expressão de pensamentos, crenças e valores (ASSIS et al.,

2010).

Evidentemente, todos esses ramos se entrelaçam de alguma maneira e possuem uma relação de

complementaridade. Contudo, certamente os estudos da Antropologia cultural possuem maior repercussão no

campo jurídico, já que seu objeto relaciona-se mais com o Direito e com as estruturas e formações políticas,

normativas e sociais tão pertinentes ao Direito. Nesse sentido, a Antropologia cultural é dividida entre a

Etnografia e a Etnologia, consideradas métodos da pesquisa antropológica. Segundo Assis et al. (2010),

podemos defini-las como:

Etnografia diz respeito ao trabalho de campo de observação, descrição e análise de grupos humanos,

considerando suas particularidades.

- 14 -
Etnologia busca utilizar comparativamente os documentos apresentados pelo etnógrafo, integrando

conhecimentos de grupos, reconstituindo o passado de determinadas sociedades.

As conexões do Direito com a Antropologia são evidentes, visto que o ser humano constitui objeto central dessas

duas áreas do conhecimento, motivo pelo qual temas como igualdade e diferença são, ao mesmo tempo, jurídicos

e antropológicos. Além disso, o direito constitui um dos aspectos da cultura, e esta constitui objeto específico da

antropologia cultural. A antropologia, tal como o direito, também se interessa pelos conflitos sociais,

principalmente no que diz respeito à intervenção normativa na decisão jurídica desses conflitos, bem como pelo

desdobramento da ordem jurídica diante das transformações culturais, sociais, políticas e econômicas.

Quando inserida especificamente no estudo jurídico, então, a Antropologia tem por objeto o estudo do ser

humano enquanto “ser normativo”, isto é, “(...) a utilidade e eficiência das regras de conduta a partir do conjunto

de mecanismos culturais que cada grupo estabelece para sobreviver” (ROCHA, 2018. p. 36).

Além disso, a Antropologia jurídica permite descobrir e compreender o Direito encoberto pela legislação, pela

normatividade formal. Isso é importante também para que a sociedade acompanhe as evoluções jurídicas para

um Direito mais flexível e maleável, por exemplo. Nesse sentido, o Pluralismo jurídico (sobretudo do ponto de

vista normativo) ocupa igualmente um espaço de relevância para a Antropologia, na medida em que se aceita

com mais clareza a existência de normatividades diferentes daquelas legislativas e estatais (ASSIS, KÜMPEL,

2010. pp. 49-50).

Como exemplo, Assis e Kümpel destacam a normatividade existente em favelas do Rio de Janeiro, onde há uma

legalidade alternativa para resolução de conflitos e solução de outros problemas comunitários, o que representa

o exercício de um poder político alternativo, mesmo que de forma incipiente. Segundo os autores, a

preponderância de procedimentos com maior oralidade e informalidade tem inspirado mudanças no direito

estatal, sobretudo em tribunais de pequenas causas e na aplicação das penas ditas alternativas (ASSIS, KÜMPEL,

2010. pp. 50-51).

Assim sendo, embora a Antropologia pareça ser complexa, seu estudo é pertinente para o Direito justamente nas

formas mais simples e cotidianas de normatividades e legalidades, que mostram formas de organização de

condutas, bem como possibilitam a análise dos efeitos das normas estatais em grupos e comunidades, avaliando

a recepção da legislação na sociedade.

- 15 -
Figura 2 - Vista aérea da favela da Rocinha no Rio de Janeiro (RJ)
Fonte: Donatas Dabravolskas, Shutterstock, 2020

#PraCegoVerVemos uma foto aérea da cidade do Rio de Janeiro, destacando a favela da Rocinha, e a sua

proximidade com bairros nobres. Nota-se o contraste entre as construções da favela e dos bairros vizinhos.

Assista aí

https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/746b3e163a5a5f89a10a96408c5d22c2

/e46acfcc7232fad3e74e417f8819b1ea

- 16 -
3. Paradigmas do pensamento social
Ao refletirmos sobre os paradigmas do pensamento social, vamos focar em dois paradigmas principais: a

Modernidade e a Pós-modernidade. Embora a princípio possa parecer uma tarefa complexa, veremos que se

trata de entender os modelos e padrões de pensamento social em determinadas épocas, ou seja, compreender

basicamente como se estruturam os pensamentos sociais a partir desses paradigmas tão importantes

historicamente e na atualidade.

- 17 -
3.1 Paradigmas do pensamento social: a Modernidade

Historicamente, podemos afirmar que a Modernidade tem início com a Revolução Francesa, ocorrida no fim do

século XVIII. Esse contexto foi marcado pela tomada do poder pela burguesia, e pelo surgimento de novas

concepções filosóficas de mundo, como o Iluminismo, com a defesa da “(...) crença na razão como promotora de

progresso e da felicidade, a rejeição ao governo absolutista e aos privilégios da nobreza e do clero, e também a

crítica à interferência da igreja nas questões de Estado” (ESCOBAR, 2010. p. 72).

Com a influência das ideias iluministas, cresceu também a defesa de um governo regido por leis, que protegeria

os cidadãos contra abusos de poder por parte dos governantes e consagraria a igualdade formal entre os

cidadãos. Além disso, o Racionalismo igualmente passou a ganhar importância, de modo a propugnar a razão

como instrumento de solução dos problemas vividos. Paralelamente a esses fatos, inovações tecnológicas foram

pouco a pouco implementadas na sociedade e o modo de produção capitalista substituiu as formas econômicas

feudais (ESCOBAR, 2010. pp. 72-73).

A Modernidade trouxe, portanto, uma orientação para o futuro, havendo um sentido de continuidade e

descontinuidade, ordem e caos, estabilidade e instabilidade (BEZERRA, 2011. p. 180). A potencialidade de

transformação da Modernidade veio não só das mudanças tecnológicas, mas também de aspectos

epistemológicos, isto é, em relação àquilo que passou a ser considerado válido como conhecimento e saber.

Antes, o ser humano estava de certa forma preso às certezas das perspectivas míticas e religiosas que

predominavam na maneira de se entender o mundo e o próprio ser humano.

Além da importância do Iluminismo na Modernidade, o Universalismo também apareceu como a dimensão

generalizadora do projeto civilizatório pensado nessa época, de modo que se levava em conta postulados com a

pretensão universalista acerca da natureza humana para se compreender o ser humano de maneira homogênea.

Assim, quaisquer conflitos poderiam ser resolvidos a partir dessas noções aplicáveis a todos em qualquer

contexto (BEZERRA, 2011. pp. 182-183).

É preciso ressaltar, ainda, que essa mudança na maneira de enxergar o mundo e o ser humano, com uma

valorização do papel da razão em detrimento do pensamento mítico-religioso, não era homogênea. Diferentes

perspectivas situadas na tradição moderna chocaram com abordagens diversas e até críticas a alguns aspectos

da própria Modernidade, como é o caso de Karl Marx e Max Weber, que veremos melhor nessa disciplina.

De todo modo, a Modernidade ficou caracterizada pelo surgimento de um sujeito autônomo, com pretensões

mais claras de liberdade e que passou a enxergar na sua existência com um potencial de transformação da

realidade posta, sobretudo através da racionalidade agora colocada em destaque.

- 18 -
3.2 Paradigmas do pensamento social: a Pós-Modernidade

Diante dos sérios problemas vividos na Modernidade, como as duas grandes Guerras Mundiais, a ascensão de

regimes Totalitários e as crises econômicas no mundo afora, os fundamentos do pensamento moderno

começaram a ser questionados e dar lugar a outras ideias e lutas até então relativamente silenciadas nos pelos

paradigmas dominantes. Assim, nas décadas de 1960 e 1970, apareceu o que se convencionou chamar de

pensamento pós-moderno.

Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, surgiram outras categorias de sujeitos e de entendimento em

relação à própria vivência humana. “Emergem novas categorias sociais: o colonizado, a raça, a marginalidade, o

gênero e similares”, além de uma crescente contestação por parte das populações de países tidos como

“periféricos” (BEZERRA, 2011. p. 191).

Assim, a Pós-Modernidade fundou-se na crítica à crença moderna na razão como instrumento para

emancipação universal do ser humano, como se a história fosse um processo unitário que, por meio de formas

universais, pudesse levar a humanidade ao progresso. Porém, “(...) pensar a história como processo unitário só

era possível porque tal pensamento se ancorava na existência de um centro a partir de onde se recolhiam e

ordenavam os acontecimentos” (BEZERRA, 2011. p. 195).

Na Pós-Modernidade, há um entendimento de que existem diversas narrativas nas sociedades e na humanidade

em geral, de modo que considerar a história como tal um processo unitário seria ignorar essas tantas e variadas

formas de vivências. Nesse sentido, alguns teóricos (como Vattimo) entendem que as mídias de massa

contribuíram para esse processo ao dar voz a essas novas narrativas, mesmo que essas mesmas mídias tenham

contribuído também para a massificação e hegemonia de determinadas estruturas culturais (BEZERRA, 2011. p.

196).

Para Jean-François Lyotard, a Pós-Modernidade é caracterizada pela incredulidade em relação aos

“metarrelatos”, ou seja, a uma grande narrativa que explica o ser humano e o mundo, como a da Modernidade a

respeito da razão como instrumento para o progresso histórico. Assim, a função narrativa “(...) se dispersa em

nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos etc., cada um

veiculando validades pragmáticas sui generis” (LYOTARD, 2009. p. xvi).

Como consequência dessas alterações que decompuseram os “grandes relatos”, Lyotard acredita que houve a

dissolução do vínculo social e a passagem de coletividades sociais a uma massa composta por átomos

individuais. Nesse processo, a comunicação e os jogos de linguagem ganham cada vez mais centralidade

(LYOTARD, 2009. p. 30), como foi dito a respeito das mídias de massa, por exemplo.

- 19 -
Segundo Bauman, há um amontoamento das diferenças, que se tornam objeto de disputa, com estilos e padrões

concorrentes. Trata-se de um suposto amor à diferença, em que todos devem se mostrar seduzidos pela “(...)

infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de

vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações”

(BAUMAN, 1998. p. 23).

Dessa forma, é importante pensar a Pós-Modernidade como a época da relativização das grandes narrativas e

de certos valores que eram tidos como pretensamente universais, como a crença no progresso natural da

humanidade e na razão como instrumento para tal. E, nesse contexto, surgem novas identidades sociais, novos

comportamentos que brigam por espaço, sendo que o. O caráter cibernético e informatizado da sociedade é um

traço marcante das novas formas de comunicação e entendimento da realidade, tornando essa nova realidade

fluida e mais mutável.

Há no Brasil, nos últimos anos, novas correntes sociológicas que vêm apresentando visões
diferentes sobre a realidade brasileira, com noções de interseccionalidade e as problemáticas
de raça, gênero, classe etc, além das perspectivas chamadas de “decoloniais”, que buscam
construir um conhecimento a partir de paradigmas próprios da vivência brasileira e periférica.

é isso Aí!
Nesta unidade, você teve a oportunidade de:
• aprender que a Sociologia busca estudar as estruturas, processos e comportamentos sociais, de modo a
tentar entender o funcionamento da sociedade;
• compreender o Positivismo, como uma das formas originárias da Sociologia, marcado pela crença de que
a sociedade é regida por leis universais, tal como as ciências naturais;
• entender a Sociologia do Direito como uma disciplina que foca na análise da normatividade na vida
social, observando os fenômenos jurídicos em seus efeitos e causas nas estruturas e processos sociais;
• analisar as diferenças entre a Sociologia do Direito e a Antropologia do Direito que foca na análise da
normatividade na vida social, observando os fenômenos jurídicos em seus efeitos e causas nas estruturas
e processos sociais;
• compreender que a Antropologia jurídica tem por objeto o ser humano enquanto ser social, a partir da
observação de comportamentos de grupos e sociedades;
• analisar a Modernidade e a Pós-Modernidade como como paradigmas do pensamento social, em que a
primeira diz respeito à primazia da razão como forma de compreender o mundo e como instrumento

para o progresso da humanidade, e a segunda é fortemente marcada pela fluidez e relativização de

- 20 -
para o progresso da humanidade, e a segunda é fortemente marcada pela fluidez e relativização de
identidades e comportamentos, bem como pela inexistência de metanarrativas para a sociedade.

Referências
ASSIS, et al. Manual de antropologia jurídica – São Paulo: Saraiva, 2011.

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BEZERRA, T. C. E. “Modernidade e pós-modernidade: uma abordagem preliminar”. In: Textos e Debates (UFRR),

v. 1, p. 176-202, 2011.

CAVALIERI FILHO, S. Programa de Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

COMTE, A. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

ESCOBAR, K. Modernidade e pós-modernidade: promessas, dilemas e dafios a condição humana. Cadernos

UniFOA (Impresso), v. 12, p. 71-80, 2010.

GIDDENS, A. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.

LYOTARD, J. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

ROCHA, J. M. de S. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras – 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

ROCHA, J. M. de S. Antropologia Jurídica: Geral e do Brasil. 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2018.

ROSA, F. A. de M. Sociologia do direito: o fenômeno jurídico como fato social – 17ª ed. rev. e atual. – Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

SOUZA, R. L.de. A ordem e a síntese: aspectos da sociologia de Auguste Comte. In: Revista Cronos, Natal-RN, v. 9,

n. 1, p. 137-155, jan./jun. 2008.

- 21 -

Você também pode gostar