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ESMA-DF – Escola de Magistratura do Distrito Federal

Professor: Dr. Fábio Francisco Esteves


Aluno: Daniel Gallo Pereira
Data: 20 de outubro de 2020.
Matéria: Direito Constitucional

Resenha da tradução de texto acadêmico:


A Constituição como Aquisição Evolutiva de Niklas Luhmann.
Tradução de Menelick de Carvalho Netto, Giancarlo Corsi e Raffaele De Giorgi

No texto “A Constituição como Aquisição Evolutiva”, Niklas Luhmann realiza


uma análise sociológica do fenômeno do constitucionalismo moderno, discorrendo sobre
a seguinte questão: Seriam as Constituições resultado de um planejamento intencional ou
um processo evolutivo natural das civilizações modernas?
Entre o planejamento intencional ou processo de evolução social, os juristas
costumam considerar as Constituições como objeto de uma construção planejada que
admite o replanejamento posterior, através das interpretações, e eventualmente através
das mutações constitucionais. Entretanto, os sociólogos tendem a conceituar a formação
do constitucionalismo como um processo evolutivo.
A argumentação de Luhmann parte de um ponto de consenso histórico entre
juristas e sociólogos. As Constituições modernas nasceram no final do século XVIII. Elas
não seriam um ato inovador de planejamento intelectual como pensam os juristas, apesar
de inovações normativas de forma e no texto Constitucional. Por exemplo, nos Estados
Unidos, o “Bill of Rights” não inovou. Ele descreveu uma situação jurídica já existente,
fundamentada em direitos individuais consolidados na Inglaterra do século XVII que
tutelava direitos individuais mediante a limitação do poder estatal.
O conceito do termo Constituição possui conotações jurídica e política diferentes.
Na concepção jurídica, o termo constituir refere-se a decretos normativos do direito
positivo com força de lei. Na concepção política, a Constituição é formação corpórea do
Estado e de seu poder soberano seja com indivíduos ou com o corpo político. Pensando
de uma forma sistêmica política e jurídica, o termo Constituição refere-se a um texto
normativo jurídico que fixa a criação política do Estado. Ou seja, a Constituição cria uma
ordem jurídica e uma ordem política que se diferenciam e se interagem.
Na Constituição, a política e o direito aparecem unidos como um sistema jurídico,
e separado como um sistema sociológico em que o direito é a reação aos inconvenientes
políticos. A tese do autor é “o conceito de Constituição, contrariamente ao que parece
à primeira vista, é uma reação à diferenciação entre direito e política, ou dito com uma
ênfase ainda maior, à total separação de ambos os sistemas de funções e à consequente
necessidade de uma religação entre eles.”
A constituir a Constituição é o ato de ruptura política do legislador constituinte, é
a revolução do sistema político travestida de ruptura do direito conforme o direito. Para
isso, é necessária uma criação conceitual que diferencie o texto constitucional dos demais
textos legais. Pois, na revolução política, é necessário limitar juridicamente as
possibilidades de ação futura à ruptura da onipotência do parlamentar constituinte.
Uma inovação necessária ao processo de constituir foi ter uma lei constitucional
que servisse de medida da conformidade ou não-conformidade ao direito, das outras leis
e atos jurídicos. Conforme palavras do autor: “... a Constituição, por sua vez, relaciona-
se com o demais direito e contém uma regra de colisão para a hipótese de uma
contradição entre ela e o demais direito.”
O processo de constitucionalização foi uma evolução cega. Pois, não era possível
prever as evoluções e nem as condições em que o processo de constitucionalização
levaria. No processo de evolução, a situação histórica casual passa, mas a aquisição
evolutiva fica, se convalidada.
O sistema jurídico constitucional possui a característica de ser autoreferencial. Ou
seja, ele mesmo tem a capacidade se auto criar ou auto reproduzir com base nas suas
próprias regras. Segundo o autor: “Todos os sistemas autoreferenciais são caracterizados:
(1) por uma circularidade fundamental, e (2) pela impossibilidade de se reintroduzir
operativamente a unidade do sistema em seu interior.” A primeira característica é
capacidade do sistema se retroalimentar, inserindo a si mesmo novas normas com base
nas suas próprias normas procedimentais. A segunda característica promove a
estabilidade da unidade do sistema autoreferencial, ela é a impossibilidade de alterar a
essência do sistema jurídico.
A unidade do sistema jurídico está no reconhecimento que direito é direito,
reconhecendo a validade ou não validade da norma, e a circularidade está no processo de
se auto reproduzir. O sistema jurídico “sanciona-se” mediante a operações de inclusão e
exclusão de normas conforme a sua validade.
Apesar de auto referencial, a Constituição possui entradas externas hetero
referenciais pela política. Por isso, pode se afirmar que o direito é criado pelo próprio
direito e criado pela vontade política. Porém, pela estabilidade do sistema, a validação do
direito é dada por auto referência e autodeterminação do direito e não por um arbítrio das
entradas políticas. Assim, a positividade (validade) do direito implica na circularidade do
sistema, que permite a autocriação (autopoiese) e na inadequação de normas frente a sua
unidade. “A positividade é a única possibilidade de o direito fundar a sua unidade por si
mesmo”
No primeiro momento da evolução, a positivação do direito se qualificava como
o próprio direito posto. No segundo momento da evolução, foi necessária rigidez da
unitarização lógica da legislação, para que o conjunto de normas do sistema tivesse
sentido. Esta rigidez tornou intangível o núcleo do sistema jurídico e político. A
intangibilidade da unidade foi substituída pelo texto Constituição. Assim, pode-se afirmar
que o conceito de Constituição, criado pela revolução da positividade do direito, funda o
direito, a legislação e governo. “A Constituição é assim a forma mediante a qual o sistema
jurídico reage à sua própria autonomia.”
“A Constituição rompe com o regresso infinito da fundação - pelo
menos no que se refere ao próprio sistema jurídico. A Constituição
transforma a ideia já possível segundo a qual todo direito poderia ser
acorde com o direito (válido) ou não acorde com o direito (inválido),
na ideia de que todo o direito corresponde a - ou contrasta com - a
Constituição.”
Esta transformação evolutiva e normativa do sistema jurídico permitiu adequação
à evolução social temporal. No lugar do passado coloca-se a abertura para o futuro. A
abertura para o passado significa que os argumentos históricos do qual se gera o direito é
levado em conta no sistema. A abertura para o futuro significa o direito prevê a sua própria
modificabilidade, limitando-se pelas suas disposições procedimentais e permitindo a
influência política. “Todo o direito é submetido ao controle de constitucionalidade e o
velho direito torna-se facilmente obsoleto em face do novo direito positivado de acordo
com a Constituição.”
Na concepção da Constituição, institui-se os sistemas político e jurídico distintos,
diferentes e ortogonais, mas que se interligam e a auto referência e a hetero referência
afetam os dois sistemas. A constituição dos dois sistemas possui códigos binários
distintos, pelo lado do direito, o código direito/não-direito, e pelo lado político, o código
poder/não-poder. Eles são reciprocamente competentes, mas cada um em sentido
diferente.
Na teoria política clássica, a necessidade da Constituição é justificada em relação
ao problema da soberania. No Estado pré-moderno, a soberania do monarca era em face
Igreja, do Império e das relações estamentais da sociedade feudal. “Por isso a
organização geral era orientada para o monarca e todas as questões organizativas
revestidas da forma de um "conselho" real..... Até a metade do século XIV eram debatidas
no âmbito dos órgãos consultivos questões organizacionais que não se revestiam de um
nível constitucional.” A evolução da Constituição se deu pelo reconhecimento da
importância de uma legislação, deslocando a soberania real para povo que era
representado pelo Parlamento. A tendência era subordinar a jurisdição a legislação,
provocando uma assimetria entre o poder legislativo e poder judiciário. Mesmo após a
positivação do direito o problema da soberania política no parlamento continuou.
Somente com a ideia de unidade do sistema jurídico e político é que se pode
conceber a "soberania do direito". “É exatamente por isso que uma solução para o
problema da soberania ainda não pode ser encontrada, pois ela se coloca no interior do
sistema político.” O sistema soberano requer um soberano, ainda que seja o Povo
representado pelo Parlamento. O soberano deve ser dotado da capacidade decisória e
controladora.
“O paradoxo da soberania não é acolhido em detrimento do direito positivo, mas,
ao contrário, é resolvido por seu intermédio.” O soberano é quem define o que é
requerido para o bem comum e que com isso é capaz de afirmar-se politicamente. Então,
a solução é o acoplamento dos sistemas político e jurídico na Constituição, tornando-a
soberana. Apesar do acoplamento, a diferenciação estrutural entre o sistema jurídico e
político não pode ser controlada.
“O conceito de acoplamento estrutural foi escolhido no sentido de
evidenciar contemporaneamente os limites dos encargos que é capaz de
suportar, e o que equivale a dizer o seu próprio não funcionamento. Esse
conceito, é claro, não pode eliminar a identidade e a autonomia dos
sistemas acoplados e não pode tampouco nem mesmo integrá-los em
uma ordem hieráquico-assimétrica.”
Graças ao acoplamento, o sistema jurídico passa a tolerar o sistema político que
tende para um Estado regulado por normas. O sistema político passa a tolerar o sistema
jurídico que possui os seus processos próprios de controle, protegido da interferência
política. Isto conduz a “uma teoria dos sistemas operativamente fechados sensíveis
apenas a perturbações mais do que a determinações recíprocas e obriga a que se recorra
à respectiva linguagem sistêmica para se poder reagir.” Assim, pela teoria dos sistemas,
na Constituição há conexões entre os sistemas ocasionais, contingentes e casuais que
possibilitam este acoplamento estrutural.
Segundo o autor: “os acoplamentos estruturais traduzem relações analógicas em
relações digitais.” O sistema social está sempre adaptado em política e direito na
constituição de forma analógica. As perturbações sociais se manifestam como eventos
perante os sistemas político e jurídico de forma digital.
“Através dos acoplamentos estruturais forma-se no interior das relações sistema-
ambiente um setor restrito com outras probabilidades de perturbações recíprocas”. As
perturbações entre os sistemas (jurídico e político) e o ambiente (sociedade) geram
aprendizado entre o ambiente e o sistema, ativando a memória dos setores do sistema.
Num momento posterior, as novas perturbações podem ser facilmente resolvidas com esta
memória. As perturbações são reguladas (normalizadas) entre os sistemas e saltam em
direção às alternativas disponíveis.
“... no contexto dos acoplamentos estruturais os distúrbios são algo
"familiar." Ou melhor, apresentam-se como "problemas" para os quais
já se encontram disponíveis soluções rapidamente utilizáveis mais ou
menos fáceis, mais ou menos plausíveis. Explica-se assim como os
acoplamentos estruturais tornam possível a construção de
regularidade interna ao sistema.”
Os acoplamentos estruturais são aquisições evolutivas. A sua formação não possui
causas específicas. Elas se pressupõem do próprio sistema em relação ao ambiente e a sua
própria estabilidade. Na aquisição evolutiva, as mutações estruturais decorrem de um
complexo mecanismo de variação, seleção e estabilização.
“No direito constitucional, a necessidade interpretativa torna-se particularmente
aguda uma vez que com a interpretação a soberania é transferida do legislador
constituinte para o intérprete, tanto mais quanto mais livre essa seja”. A interpretação é
um esquema de como os observadores intérpretes devem observar o que devem
considerar válido ou inválido no sistema.
A interpretação no contexto auto referencial busca a criar vínculos normativos e
não se limita ao próprio texto. O constitucionalista equivale ao “linguista que fala sobre
a linguagem e que por isso mesmo reconhece o seu comportamento no seu próprio
objeto”. A interpretação perturba ambos sistemas: jurídico e político a um só tempo, mas
com pressupostos e condições de efetuar a reconjunção diversa dos sistemas.

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