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Mediação e Educação

em Direitos Humanos
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HILDA HELENA SOARES BENTES
SERGIO DE SOUZA SALLES
(Organizadores)

Mediação e Educação
em Direitos Humanos

Rio de Janeiro
2012
Copyright © 2012 by Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Categoria: Direito Humanos

Produção Editorial
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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Agradecimentos

Os organizadores agradecem o apoio financeiro concedido pela FAPERJ


para a realização do projeto de pesquisa Direitos Humanos e Mediação,
que propiciou o desenvolvimento das condições institucionais de pes-
quisa através do aprimoramento da infraestrutura do Núcleo de Direitos
Humanos e Mediação (NDHM), em consonância com o Programa de
Mestrado em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade
Católica de Petrópolis (UCP). Os organizadores agradecem aos autores
que aderiram ao projeto deste livro, idealizado a partir da I Jornada de
Direitos Humanos e Mediação, ocorrida em abril de 2011 na Universida-
de Católica de Petrópolis.
Sumário

Apresentação .................................................................................................................... ix
Prefácio ............................................................................................................................. xi
O Reconhecimento do Outro como Pressuposto e Fundamento dos Direitos Humanos
em Paul Ricoeur............................................................................................................. 1
Alejandro Bugallo Alvarez
Cultura da Paz, Mediação e Justiça Restaurativa: Ferramentas para Repensar a Relação
Sociedade-Cárcere ........................................................................................................ 27
Ana Gabriela Mendes Braga
A Mediação Frente à Reconfiguração do Ensino e da Prática do Direito: Desafios e
Impasses à Socialização Jurídica .................................................................................... 45
Camila Silva Nicácio
Sentido de Vida, Direitos Humanos e Educação Moral ................................................... 69
Cleia Zanatta Clavery Guarnido Duarte
José Augusto Rento Cardoso
Constituição: Cultura e Democracia Social ..................................................................... 85
Eliane Romeiro Costa
Direitos Humanos e Mediação ......................................................................................... 97
Hilda Helena Soares Bentes
A Mediação como Instrumento de Efetivação do Direito Humano e Fundamental do
Acesso à Justiça em uma Nova Face: o Ser Humano como seu Construtor e Protago-
nista ............................................................................................................................... 113
Ivan Aparecido Ruiz
Luís Fernando Nogueira
O Futuro dos Núcleos de Práticas Jurídicas nas Universidades Brasileiras: um Passo no
Exercício dos Direitos Humanos em Prol da Cidadania ............................................... 139
Mônica Souza Liedke
Taysa Schiocchet
A Construção da Exclusão como Processo Histórico-Cultural ........................................ 155
Pedro Benjamim Garcia
Roseli Marques Grazinoli

| vii |
Educação e Igualdade de Oportunidades: Pressupostos para a Justiça Social no Estado
Democrático .................................................................................................................. 169
Roberto Bueno
Mediação e Educação em Direitos Humanos na Educação Profissional: para a Cultura
de Paz ............................................................................................................................. 205
Simone Henrique

| viii |
Cultura da Paz, Mediação e Justiça
Restaurativa: Ferramentas para
Repensar a Relação Sociedade-Cárcere
Ana Gabriela Mendes Braga*

Introdução

O caminho para repensar o sistema de justiça criminal passa por uma mudança
profunda na forma com que o indivíduo e a sociedade olham os comportamentos pro-
blemáticos e reagem a eles. A definição do que é crime e da respectiva resposta por
parte do sistema de justiça são determinantes na construção social da criminalidade
e dos criminosos.
Para a construção de uma sociedade mais inclusiva e compreensiva, é impres-
cindível que seja desnaturalizada a demanda pela punição. E que seja questionado o
lugar de protagonista da prisão, que há mais de 200 anos figura como principal res-
posta social aos comportamentos problemáticos nas sociedades ocidentais.
Foucault, ao narrar o surgimento da prisão em Vigiar e Punir1 mostra como a pri-
são se fixou a partir do séc. XIX como a pena por excelência, em detrimento de outras
formas de punição. A emergência da prisão naquele momento só foi possível a partir
das mudanças na forma de exercício do poder, na maneira de se conceber o tempo e
das necessidades econômicas da época.
A prisão não é uma realidade ontológica às organizações sociais. Foucault ataca
essa evidência (relação necessária crime - encarceramento) ao discorrer sobre a prá-
tica dos suplícios- forma de punição que antecedeu as prisões.

* Doutoranda em Criminologia pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Uni-
versidade de São Paulo. Gozou de bolsa CAPES de doutorado sanduíche no Departamento de Antropologia
da Universitat de Barcelona de setembro/2010 a junho/2011. Professora universitária. Coordenadora adjunta
do GDUCC (Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade) do Depto. de Direito Penal – FDUSP;
pesquisadora do NADIR - Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo. E-mail: anaga-
brielamb@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2586480165949878.
1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2002.

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Mediação e Educação em Direitos Humanos

A crença de que seria impossível a sociedade abrir mão da forma prisão nos
paralisa, impedindo que pensemos outras soluções e ousemos experimentar formas
alternativas de resolução de nossos conflitos.
A proposta desse artigo é refletir em que medida algumas concepções teóricas e
práticas que envolvem cultura da paz, mediação e justiça restaurativa podem ajudar
na compreensão do conflito prisão-sociedade livre e incrementar a comunicação en-
tre as pessoas presas e as que estão fora do cárcere.
Não se trata aqui de pensar a aplicação desses conceitos no processo criminal
de conhecimento- que tem por objeto o conflito pontual vítima-ofensor, onde comu-
mente tem se aplicado os meios alternativos; tampouco de criar alternativas à forma
tradicional de resolução dos conflitos que surgem no cárcere (mediação na prisão);
mas, sobretudo compreender como essas ferramentas podem-nos ajudar a trabalhar o
conflito entre as pessoas que estão presas e as que estão fora do cárcere.
Para tanto, propomo-nos expor, sucintamente, alguns pressupostos e ferramen-
tas que possibilitam pensar uma outra forma da sociedade relacionar-se com o cár-
cere. Começaremos analisando a mediação, em especial a mediação no âmbito da
execução penal, elencando alguns limites e uma possibilidade dessa prática no am-
biente penitenciário. Em seguida, abordarmos a cultura de paz, e conceitos que lhe
são implícitos como a não-violência e a alteridade. Passaremos por uma brevíssima
comparação entre justiça retributiva e restaurativa, para ao final nos aproximarmos
da proposta da reintegração social, como uma possibilidade de restauração da relação
sociedade livre-cárcere.

1. Mediação

A mediação é um mecanismo não judiciário de administração de conflitos, o


qual pressupõe a intervenção de terceiro (estanho à relação conflituosa), a adesão
voluntária e a confidencialidade. Na mediação, o monopólio dos operadores do di-
reito de “dizer a justiça” é relativizado, à medida que as partes são convidadas a par-
ticiparem da elaboração dos parâmetros de justiça e da pacificação social.
Frente ao reconhecimento do alto grau de complexidade e profundidade que ge-
ralmente envolve a relação conflituosa, a prática da mediação não tem como objetivo
solucionar conflitos, mas administrá-los. Logo, nem sempre a mediação resultará em
acordo ou transação entre as partes, mas isso não significa seu fracasso.
A medida de eficiência da mediação não é a aptidão para por fim ao conflito,
mas a possibilidade de que as pessoas envolvidas o elaborem. Nesse sentido, busca-se
que o enfrentamento do conflito ocorra de forma pacífica e dialogada, permitindo às
partes tornarem-se protagonistas da relação conflituosa.

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Cultura da Paz, Mediação e Justiça Restaurativa: Ferramentas para Repensar a Relação Sociedade-Cárcere
ANA GABRIELA MENDES BRAGA

Porém, o alcance das propostas de mediação pode ir além de atender a de-


mandas individuais, como demonstra a teoria dos norte-americanos Robert Bush e
Joseph Folger2. Os autores analisam o movimento de mediação a partir de quatro
enfoques: I. satisfação das necessidades das partes; II. justiça social: união da comu-
nidade em torno de interesses comuns; III. opressão: possibilitada pela ausência de
garantias legais; e IV. transformação: impacto individual e social da mediação.
Sob o enfoque da satisfação3, o processo de mediação deve satisfazer as autênti-
cas necessidades das partes. A solução nesse caso é baseada na colaboração e integra-
ção das partes, sob a premissa do “ganha-ganha” (ambas as partes ganham com a so-
lução). O parâmetro para a solução do conflito é o grau de satisfação dos envolvidos.
Nesse caso, a solução alternativa busca reduzir os custos econômicos e emocionais na
resolução de conflito e a diminuir os conflitos individuais no judiciário.
Pela perspectiva da justiça social 4, a mediação oferece a oportunidade dos in-
divíduos se reunirem em torno de interesses comuns, e desse modo criar vínculos e
estruturas comunitárias mais sólidas. Nesse sentido, o objetivo da mediação está em
apoiar a organização comunitária na defesa de seus próprios interesses.
O enfoque da opressão5 é o único que critica a prática da mediação. Por esta
visão, o informalismo das práticas alternativas, com flexibilização das regras e garan-
tias, geraria um desequilíbrio entre as partes (manipulação da parte mais fraca pela
mais forte), o que levaria à produção de resultados injustos. Logo, uma vez que não
há garantia da legitimidade da mediação pela falta de observância das regras do devi-
do processo legal, uma sentença seria sempre preferível a um acordo.
Muitos dos paradoxos no nosso atual sistema de justiça, advindos das tentativas
do judiciário para implementação dos meios alternativos de resolução de conflitos,
têm origem justamente por se reduzir a uma ação pragmática e utilitária - no sentido
de “desafogar” o judiciário.
As garantias processuais e o devido processo legal são flexibilizados, sem que isso
represente um avanço rumo à pacificação. Mudam-se os procedimentos e a forma de res-
posta, ao mesmo tempo em que se preserva a antiga forma de se pensar o conflito. Logo,
o impacto da difusão de uma outra forma de resolução de conflitos mostra-se positivo na
cultura e no comportamento das pessoas, porém nem sempre no Judiciário.
Pela ótica da transformação6, a mediação seria capaz de gerar transformações no
caráter dos protagonistas individuais e da sociedade geral. A partir do reconhecimen-
to do outro como seu semelhante e do exercício de autodeterminação entre as partes,

2 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006.
3 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006, p. 40.
4 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006, p. 43.
5 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006, p. 50.
6 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006, p. 46.

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Mediação e Educação em Direitos Humanos

a mediação teria o condão de tornar as pessoas menos temerosas e egocêntricas,


estimulando a confiança e empatia nas relações.
Este último enfoque ressalta a dimensão revalorizante do processo de mediação:
ao estimular a comunicação interpessoal, desperta a preocupação e a compreensão
recíprocas entre as pessoas, sensibiliza o indivíduo face ao outro e fortalece a capaci-
dade de relacionamento interpessoal.
As perspectivas da transformação e justiça social são as que mais interessam à
discussão proposta neste artigo, já que o enfoque de satisfação e opressão está mais
relacionado com a mediação a partir do conflito individual vítima – ofensor. Nossa
proposta é pensar em que medida a proposta de mediação aplicada ao conflito socie-
dade-cárcere pode impactar as formas da sociedade e indivíduo relacionarem-se com
a prisão e com o preso, e vice-versa.
Apesar da dificuldade de se auferir resultados concretos sob a perspectiva da
transformação, acreditamos que mudanças profundas na forma de relacionar-se com
o conflito e com o outro só podem ter lugar à medida em que as consciências indivi-
duais estejam acompanhando essas mudanças. A alternativa à resolução do conflito
deve encontrar correspondência na forma de pensar, sentir e agir dos sujeitos, indi-
viduais e coletivos.
Neste sentido, a mediação tem a potência de levar um refinamento da cons-
ciência em relação ao outro envolvido no processo. Conforme proporemos adiante,
viabilizar a comunicação das pessoas e entidades da sociedade civil com o cárcere
possibilita que esses dois segmentos (prisão e sociedade) consigam transcender o pa-
drão histórico-adversarial dessa relação.

1.1. Mediação e sistema de justiça criminal

O sistema de justiça criminal não tem por objetivo resolver o conflito que surge
da relação vítima-ofensor, mas antes responder às condutas desviantes, visando à re-
tribuição do mal causado e à prevenção de novos crimes. Dessa forma, a reação à conduta
criminosa é pautada pela demanda social e midiática, em detrimento dos interesses das
pessoas envolvidas no conflito advindo de um comportamento criminoso.
A necessidade de que o direito penal responda ao fato criminoso por meio da
punição é tão forte que a “pena” constitui a própria denominação desse ramo do
direito. A preferência pelo uso do termo penal em detrimento de criminal evidencia a
relação quase intrínseca entre crime e pena.
Além do sistema de justiça não permitir que o conflito pontual instalado entre
vítima e ofensor venha à tona, a resposta mais comum do Estado ao crime é a prisão.
A segregação do ofensor não contribui em nada para reconstruir os laços sociais afe-

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Cultura da Paz, Mediação e Justiça Restaurativa: Ferramentas para Repensar a Relação Sociedade-Cárcere
ANA GABRIELA MENDES BRAGA

tados pelo crime, ao contrário, ela re-atualiza antigos conflitos e faz emergir novos
realimentando, assim, a conflituosidade social.
Eugenio Raul Zaffaroni7, dentro de uma perspectiva minimalista do direito pe-
nal, propõe a redução do poder do sistema penal e a substituição deste por formas
efetivas de solução de conflitos. Segundo o autor, é ilusório achar que a prisão é a
resposta padrão aos atos considerados criminosos, por dois motivos: primeiro porque
a grande maioria dos crimes não chega ao controle formal do sistema de justiça (cifra
negra), e depois porque só alguns crimes e algumas pessoas são definitivamente san-
cionadas pelo sistema de justiça (seletividade do sistema penal).
No mesmo sentido, Louk Hulsman8 propõe que todo o complexo penal seja
substituído por instâncias que lidem diretamente com a resolução do conflito a partir
da participação direta das partes envolvidas, o que garantiria uma solução especifica
para cada conflito.
Por isso Hulsman, ao ser questionado sobre o que se colocaria no “grande lugar”
ocupado pelo direito penal hoje, não dá uma fórmula fechada. Cada caso ensejaria
a busca de uma solução própria. O enfrentamento de uma situação-problema9 deve
envolver diretamente aqueles que de alguma forma participaram do conflito: vítima,
ofensor, famílias etc, como condição para que a solução seja justa e humana.
Leonardo Sica10 propõe em sua teoria três modelos de justiça penal: retributivo,
reabilitativo e restaurativo. A linha demarcatória entre eles é a posição da vítima
dentro de cada um, sendo que o modelo restaurativo é o único que não incorpora a di-
mensão repressiva da justiça. Segundo o autor, a mediação em âmbito penal, um dos mais
importantes instrumentos do modelo restaurativo, pode ser compreendida como:

uma reação penal alternativa, autônoma e complementar à justiça for-


mal punitiva, cujo objeto é o crime em sua dimensão relacional, cujo
fundamento é a construção de um novo sistema de regulação social,
cujo objetivo é superar o déficit comunicativo que resultou ou que foi
revelado pelo conflito e, contextualmente, produzir uma solução con-
sensual com base na reparação de danos e da paz jurídica.11

7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
8 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993.
9 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdida: o sistema penal em questão. Niterói: Luam,
1993, p. 101.
10 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 45.
11 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 53.

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Mediação e Educação em Direitos Humanos

Nesse sentido, a mediação é um lugar simbólico alternativo à justiça retributiva,


oposto ao da reação penal punitiva e vertical. A mediação oferece a possibilidade
de uma resposta negociada e permite relações de reciprocidade e reconhecimento
mútuo; estando assim mais ligada à elaboração de conflitos do que à sua resolução.

1.2. Limites e possibilidades da aplicação do pressuposto da mediação na


execução penal

O fato da mediação poder ocorrer não só entre pessoas, mas entre sujeitos, abre
a possibilidade de mediar não só conflitos interpessoais, mas conflitos entre coletivi-
dades. É esse sentido que a proposta de aplicação dos princípios da mediação assume
em sede de execução penal.
A proposta consiste em deslocar o foco do conflito pontual vítima-ofensor para
o conflito preso-sociedade, retomando o diálogo entre segmentos da sociedade his-
toricamente alijados. Ao mesmo tempo compreensiva e dialética, a interação social
dialogal (tal como a mediação) possibilita a expressão dos sentimentos e o contato
com a perspectiva do outro, possibilidades raras no ambiente prisional.
Porém, a técnica de mediação não pode ser simplesmente transposta para o mo-
mento da execução penal, porque há ao menos três especificidades do conflito histó-
rico-social da execução da pena que o diferenciam do conflito individual do processo
de conhecimento: 1) não há um terceiro isento ao conflito para remover as barreiras
que impedem a comunicação, uma vez que todos (inclusive os presos) fazemos parte
da sociedade e nos relacionamos com a prisão, ainda quando a ignoramos; 2) não há
um único conflito em questão, são diversos pontos de atrito em jogo, com diversos
atores envolvidos; 3) as pessoas envolvidas no diálogo debatem mais em torno do que
elas representam enquanto grupo do que acerca de um comportamento individual.
Ainda com essas limitações, é possível aplicarmos os pressupostos da mediação
para restauração da relação prisão-sociedade livre. Ao menos, é isso que nos mostra
nossa experiência na coordenação de um projeto de intervenção no cárcere no âmbi-
to da Faculdade de Direito da USP.
Com o objetivo de implementar experiências de diálogo entre a universidade e
o cárcere e de consolidar o tripé universitário ensino-pesquisa-extensão, criamos o
Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade (GDUCC) 12.
O GDUCC desde 2006 desenvolve seus trabalhos em Penitenciárias do Esta-
do de São Paulo, na tentativa de possibilitar a construção ou o restabelecimento
do diálogo interpessoal (indivíduos), social (presos - representantes da sociedade

12 O Prof. Livre Docente Alvino Augusto de Sá foi o responsável pela idealização do projeto, e segue coordenação
geral do mesmo.

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Cultura da Paz, Mediação e Justiça Restaurativa: Ferramentas para Repensar a Relação Sociedade-Cárcere
ANA GABRIELA MENDES BRAGA

civil) e institucional (preso- instituição), interrompido pela desigualdade social


e infração penal.
A proposta do grupo13 passa pela tentativa de verticalizar a comunicação que
se propõe com o cárcere, abrindo espaço para que outros saberes (além do acadêmi-
co) ganhem legitimidade para falar sobre a prisão, e que as vozes dos presos tenham
algum eco na sociedade. A base teórica para a ação do grupo é a perspectiva da rein-
tegração social, a qual será explicitada no final deste artigo.

2. Cultura da Paz

A justiça na modernidade foi fundada pelo mito da necessidade de um Estado


imparcial garantidor da paz a partir do monopólio legítimo do uso da violência. En-
tretanto, para além do discurso da racionalidade dos procedimentos e da humanida-
de das penas, as injustiças permanecem, e as penas preservam uma violência, ainda
que sob uma forma mais sutil.
A cultura da paz tenta romper com a crença, tão arraigada em nossa sociedade,
de que a violência é inerente ao ser humano e que as ações punitivas e repressivas são
funcionais e indispensáveis à paz social. Para Francisco Muñoz14, a base para teoriza-
ção da paz está numa aproximação intersubjetiva, dialogada e cooperativa, que ele
denomina “campo transdisciplinar da paz”:

Así como la paz ha sido y será una de las formas más creativas de cons-
truir la historia, la Investigación para la Paz ha tenido como virtud am-
pliar los horizontes epistemológicos de las ciencias y dotar de un utillaje
nuevo e interdisciplinar a las mismas para que se produzca un avance
significativo en el tratamiento y las soluciones a los problemas vivencia-
les y reales, y por ende intelectuales, de los seres humanos.

Aceitando o conflito como integrante da vida social, a paz que é possível alcan-
çar é a chamada “paz imperfeita”15: inacabada, processual, condizente com a própria
condição humana. Nesse sentido, a paz não é um lugar a se chegar, mas antes é um

13 Especificamente sobre o trabalho do GDUCC, ver BRAGA, Ana Gabriela Mendes; BRETAN, Maria Emilia
Nobre. Teoria e prática da reintegração social: o relato de um trabalho crítico no âmbito da execução penal In:
SÁ, Alvino Augusto de; SHECARIA, Sérgio Salomão (Coords.). Criminologia e os problemas da atualidade. São
Paulo: Atlas, 2008, p. 255-275.
14 MUÑOZ, Francisco A. La paz imperfecta. Granada: Universidad de Granada, 2001, p.4.
15 MUÑOZ, Francisco A. La paz imperfecta. Granada: Universidad de Granada, 2001, p. 1.

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Mediação e Educação em Direitos Humanos

vetor, um caminho construído cotidianamente. Daí a célebre frase de Gandhi “não


há caminho para a paz, a paz é o caminho” 16.

2.1. A visão do conflito pela cultura da paz

A cultura da paz propõe uma reinterpretação do lugar do conflito na sociedade


ao reconhecer que ele é estrutural e estruturante à vida psíquica e social, e, portanto,
inevitável - ela não intervém no conflito com o fim de erradicá-lo.
O conflito pode ser compreendido de forma dialógica à medida em que se ca-
minhe para responsabilização das partes, diminuição do uso da violência simbólica e
reflexão acerca dos padrões de conduta e valores.
O penalista espanhol Julián Carlos Rios Martin17, estudioso da aplicação da
mediação em âmbito penitenciário, ressalta alguns dos aspectos positivos do conflito.
São eles:

- tomar consciência das crenças e respostas individuais que perpetuam a con-


duta negativa (como se responde às situações de conflito? Que sentimentos
e reações surgem?);
- disposição para modificar os critérios pessoais diante do conflito (aborda-
gem, sistemas de crenças, etc.);
- aprender habilidades de expressar com clareza os sentimentos e necessidades;
- desenvolver habilidades de escuta (atitude empática, de respeito e não jul-
gamento da versão da outra parte).

Dentro da perspectiva da cultura da paz, o conflito constitui uma oportunidade


de crescimento e transformação, de desenvolvimento da capacidade de compreensão
do outro. Segundo Bush e Folger18, ele nos permite descobrir e reforçar recursos para
lidar com sentimentos despertados pela situação, esclarecer necessidades e deveres,
desenvolver e demonstrar respeito e considerações mútuas.
Nesse sentido, compreender o outro nos ajuda a compreender a nós mesmos.
A reflexão sobre nossas decisões e atos contribui ao nosso desenvolvimento ético.
Para Louk Hulsman19, um dos principais teóricos do abolicionismo penal, a abolição

16 GANDHI, Mahatma. Autobiografia- minha vida e minhas experiências com a verdade. São Paulo: Palas Athena,
1999.
17 RÍOS MARTÍN, Julián Carlos. La mediación penitenciaria: reducir violencias en el sistema carcelario. Madrid:
Editorial Colex, 2006, p. 5.
18 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006, p. 129.
19 HULSMAN, Louk ; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: sistema penal em questão. Niterói: Luam,
1993, p. 140.

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ANA GABRIELA MENDES BRAGA

do castigo começa dentro de cada um: primeiro ele é rompido individualmente para
então atingir a sociedade.

2.2. Não-violência

A base da cultura da paz é a atitude de não-violência. Ao contrário do que


parece ao senso comum, não-violência não é sinônimo de resignação, passividade,
mas pressupõe uma resposta ativa, uma ação a partir do reconhecimento do conflito
e da luta.
Para Jean-Marie Muller20, o objetivo da não-violência é a busca de um equilíbrio
através do próprio conflito. Logo, a estratégia da resistência não violenta consiste em
romper com a cumplicidade, com a “cooperação voluntária ou passiva da maioria dos
cidadãos com as ideologias, instituições, estruturas, sistemas, regimes e leis que geram
e mantém as injustiças” 21.
A cultura de paz está intimamente associada ao desenvolvimento da tolerância,
a qual pressupõe identificação com a subjetividade do outro (alteridade), o reconhe-
cimento da diversidade e abertura para o convívio (viver junto).
De acordo com a perspectiva de não-violência de Gandhi22, três respostas po-
dem ser dadas para a violência injusta: violência, covardia, e não violência. Para
Gandhi a covardia é a pior das saídas, atrás inclusive da alternativa da violência.
A democracia exige cidadãos responsáveis, não cidadãos disciplinados. “É ne-
cessário que haja muitos indisciplinados para fazer um povo livre”23.

2.3. Sombra e alteridade, o eu e o outro

A construção da alteridade está intimamente ligada ao reconhecimento da


sombra - conceito trazido pela psicologia analítica de Gustav Jung. Segundo Jung,
a sombra é constituída pelas características, sentimentos e atitudes que não aceita-
mos como nossos. Estes sentimentos e atitudes são então reprimidos e projetados no
ambiente e nos outros. Segundo Jung24, as sombras “tornam-se demônios quando
reprimidas” e, quanto mais reprimidas, mais espessas e negras elas se tornam, distan-
ciando-nos dos outros e de nós mesmos.
O processo de individuação - que é, para Jung, o caminho para a maturidade
psíquica do homem - necessariamente passa pela integração da nossa sombra, e não

20 MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência. São Paulo: Palas Athena, 2007, p. 53.
21 MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência. São Paulo: Palas Athena, 2007, p. 85.
22 GANDHI, Mahatma. Autobiografia - minha vida e minhas experiências com a verdade. São Paulo: Palas Athena, 1999.
23 George Bernanos apud MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência. São Paulo: Palas Athena, 2007, p. 89.
24 JUNG, Carl Gustav (org.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 96.

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Mediação e Educação em Direitos Humanos

pela sua negação na busca da perfeição. De acordo com o junguiano Von Franz25
(1996: 166) o processo de individuação consiste na harmonização do consciente com
o centro interior de cada um (self), o que não ocorrerá sem que haja algum sofrimento
psíquico por parte do indivíduo.
Ao se deparar com uma situação de conflito, a tendência comum é reagirmos
com hostilidade e em defesa da nossa posição. A partir daí surgem sentimentos de
incerteza, insegurança, ódio, desprezo, necessidade de autodefesa, o que resulta mui-
tas vezes em ataque.
Robert Bush e Joseph Folger 26 propõem uma visão relacional acerca da socieda-
de, a qual permitiria, além de resolver conflitos, promover uma transformação quali-
tativa de interação humana. Tal transformação ocorreria por três eixos: revalorização
(empoderamento); reconhecimento (aceitação e empatia com respeito à situação e
aos problemas de terceiros); e transformações das pessoas, a partir do crescimento
moral e do desenvolvimento das relações interpessoais.
O eixo da revalorização27 está relacionado com o que a literatura tem deno-
minado empoderamento (empowerment). Os sentimentos de insegurança, confusão,
medo que as partes sentem diante do conflito as faz sentir vulneráveis. A mediação
contribuiria para a superação da debilidade relativa, ao possibilitar que as pessoas
compreen dam as metas, interesses, sentimentos; e principalmente o que realmente
importa naquela situação.
Já o reconhecimento do outro permite que a pessoa compreenda a relação para
além de seus próprios interesses28. Nossa dificuldade de ver além de nossas necessi-
dades e desejos faz com que obscureçamos o outro. Nos momentos de conflito, essa
tendência é acentuada, estamos tão compenetrados nas nossas dores que não esten-
demos a vista ao outro.
O terceiro eixo29 estaria no desenvolvimento moral das pessoas a partir do reco-
nhecimento da sua própria humanidade no outro; a partir do diálogo, da expressão e
compreensão das emoções e sentimentos.

3. Justiça retributiva e justiça restaurativa

Diante da crise de legitimidade do sistema penal, é preciso que haja uma


redefinição da missão da justiça penal. Isso pode ser alcançado a partir da ela-

25 VON FRANZ, Marie-Louise. O processo de individuação In JUNG, Carl Gustav (org.). O homem e seus sím-
bolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 166.
26 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006.
27 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006, p. 135.
28 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006, p. 140.
29 BUSH, Robert; FOLGER, Joseph. La promesa de la mediacion. Buenos Aires: Gramica, 2006, p. 143.

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Cultura da Paz, Mediação e Justiça Restaurativa: Ferramentas para Repensar a Relação Sociedade-Cárcere
ANA GABRIELA MENDES BRAGA

boração de um novo paradigma, que traga ampliação dos espaços democráticos,


diminuição do caráter aflitivo da resposta penal, superação da filosofia dos casti-
gos e restauração da paz jurídica. Nas palavras de Leonardo Sica30, não adianta
pensar em penas alternativas à prisão se não reconsiderarmos a prevalência do
paradigma punitivo.
Essas duas maneiras de se fazer justiça, retributiva e restaurativa, sustentam formas
próprias de ver e analisar o mundo, e constituem dois paradigmas opostos que norteiam os
teóricos e aplicadores do direito no ofício de interpretar e responder ao conflito.
O termo paradigma é empregado aqui, de acordo com o sentido proposto por
Thomas Kuhn31, como “aquilo que os membros de uma comunidade cientifica parti-
lham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham
um paradigma”, com práticas e discursos próprios.
Um paradigma não só determina os métodos, valores e crenças de uma deter-
minada comunidade científica, mas também os problemas que deve enfrentar e seu
objeto de estudo; ele é constitutivo da atividade cientifica. Ainda segundo Kuhn32:

Ao aprender um paradigma, o cientista adquire ao mesmo tempo uma


teoria, métodos e padrões científicos [...] Por isso, quando os paradigmas
mudam, ocorrem alterações significativas nos critérios que determinam
a legitimidade tanto dos problemas quanto das propostas.

Enquanto o paradigma retributivo se pauta no afastamento, o restaurativo pro-


põe o encontro. A restauração, por meio da inclusão, do diálogo e da responsabiliza-
ção dos indivíduos, pode ter como consequência o “empoderamento” dos indivíduos,
à medida que estes desenvolvem autodeterminação e autonomia ética, e assumem
um papel ativo sob suas próprias vidas.
A Justiça Restaurativa reúne uma série de práticas alternativas, dentre as quais
a mediação, que, em âmbito penal, envolve o chamado encontro vítima-ofensor. A
mediação e é um dos mais importantes instrumentos da prática restaurativa, ao lado
de círculos restauradores e conferências em grupo.
A partir do quadro comparativo abaixo, presente na obra de Scuro Neto33, po-
de-se vislumbrar as diferenças entre um paradigma e outro, em relação à interpreta-

30 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 4.
31 KUNH, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 221.
32 KUNH, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 144.
33 SCURO, Pedro. Por uma Justiça Restaurativa “real e possível”. Justiça restaurativa: um caminho para os direitos
humanos? Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004.

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Mediação e Educação em Direitos Humanos

ção do comportamento criminoso, à forma de reação, aos envolvidos no processo, à


responsabilização, às suas finalidades e à própria forma de se pensar a punição.

Elementos JUSTIÇA JUSTIÇA


RETRIBUTIVA RESTAURATIVA
Infração noção abstrata, violação da lei, ato contra pessoas, grupos e comuni-
ato contra o Estado. dades
Controle justiça penal justiça, atores, comunidade
Compromisso do pagar multa ou cumprir pena. assumir responsabilidades e compensar
infrator o dano.
Responsabilização exclusivamente individual dimensões individuais e sociais
Eficácia da pena a ameaça de castigo altera condu- castigo não muda condutas, prejudica a
tas e coíbe a criminalidade harmonia social e a qualidade dos rela-
cionamentos
Vítima elemento periférico no vital para o encaminhamento
processo legal do processo judicial e a solução
de conflitos
Infrator definido em termos de suas defi- definido por sua capacidade de reparar
ciências danos

estabelecer culpa por resolver o conflito, enfatizando deve-


Preocupação prin- eventos passados res e obrigações futuras
cipal “Você fez ou não fez?” “O que precisa ser feito agora?”
Ênfase relações formais, adversativas, Diálogo e negociação
adjudicatórias e dispositivas

Finalidade impor sofrimento para punir e restituir para compensar as partes


coibir e reconciliar
Comunidade Marginalizada, representada pelo viabiliza processo restaurativo
Estado
FONTE: SCURO, Pedro. Por uma Justiça Restaurativa “real e possível”. Justiça restaurativa: um caminho para os
direitos humanos?.Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004, p. 33-44.

Alguns dos elementos que compõem a Justiça Restaurativa podem ser aplicados
às propostas de interação social. Entre eles, a ênfase no diálogo em detrimento de
relações formais e adversativas; deslocamento do foco do comportamento passado
do apenado para pensar em perspectivas futuras; envolvimento de diversos atores na
execução penal com ampla participação comunitária.

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ANA GABRIELA MENDES BRAGA

4. Reintegração social: a restauração em âmbito de execução penal

De acordo com Sica34, a Justiça Restaurativa visa “superar o déficit comunicati-


vo” entre vítima e ofensor, e entre este e o Estado. Seu objeto não é o crime em si, a rea-
ção social ou os delinquentes, mas as consequências dos atos e as relações sociais afetadas.
De tal sorte que, na ótica restaurativa, o crime não é somente uma ofensa ao
Estado, mas um comportamento problemático que envolve o ofensor, a vítima e a
comunidade. Logo, em uma abordagem complexa do fenômeno criminal cabe iden-
tificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação, suas consequências e as
relações que devem ser restauradas.
Da mesma forma, a prisão também não diz respeito somente ao Estado e ao ape-
nado, mas à sociedade como um todo. A despeito do reconhecimento do fracasso de
algumas de suas finalidades declaradas, a pena privativa de liberdade persiste nas nossas
sociedades e ocupa um papel importante na dinâmica social. Ao instituir a retribuição
por meio da segregação, a sociedade expele suas sombras, projetando-as em determinadas
pessoas e responsabilizando-as inteiramente pela conflituosidade social.
O psicólogo Alvino Augusto de Sá, no âmbito da Criminologia Clínica, concebe
o crime como expressão de uma história de conflitos. Alguns crimes seriam expressão
de conflitos intra-individuais (do indivíduo com ele mesmo) e situados em núcleos
problemáticos da personalidade. Porém, em sua maioria, os crimes seriam expressão
de uma história de conflitos inter-individuais, ou seja, das relações (de antagonismo,
de oposição, de exclusão e de rivalidade) que se estabeleceram entre o indivíduo e
outros sujeitos sociais, no decorrer de sua história. Nesse sentido 35:

a conduta socialmente desviada, selecionada e tipificada pelo Direito


Penal como crime, é a concretização, a atualização de uma rivalidade
histórica na vida do indivíduo entre ele e a sociedade, uma sociedade
que o rejeitou e a quem ele também conseqüentemente rejeitou, peran-
te cujos critérios de valor, de ética e de dignidade ele foi desvalorizado
e se desvalorizou a si mesmo. Daí que a chamada “recuperação” desse
indivíduo não seria uma transformação do mesmo, mas sim uma recu-
peração do mesmo “para a sociedade” e uma recuperação da sociedade
para ele. Seria portanto uma reintegração social, entendida esta como
uma pista de duas mãos.

34 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação pena: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do Crime. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 24.
35 SÁ, Alvino Augusto de. Justiça restaurativa: uma abordagem à luz da criminologia crítica no âmbito da
execução da pena privativa de liberdade. Revista magister de direito penal e processual penal, v. 16, p. 28-37,
2007-A, p.32.

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Mediação e Educação em Direitos Humanos

Sob essa perspectiva, o crime não é concebido como uma falha moral indi-
vidual, mas como resultado de uma relação conflituosa historicamente construída.
Logo, qualquer ação em termos de reaproximar o condenado e a sociedade não se
pode centrar na figura do apenado, mas deve “abranger as relações historicamente
deterioradas entre ele e a sociedade”.
É nesse sentido, de construção de uma perspectiva dialógica que aproxime seg-
mentos historicamente distantes, que o instrumental das medidas alternativas à reso-
lução de conflito pode ser pensado.
Cabe esclarecer que nossa proposta não consiste na aplicação direta da media-
ção ou da Justiça Restaurativa a esses conflitos inter-individuais. O que buscamos é
reinterpretar seus pressupostos, para aplicá-los na construção de um diálogo verda-
deiro - que seja ao mesmo tempo dialético e compreensivo- entre sociedade e cárcere.
A (re) integração entre sociedade e prisão, só é possível a partir do envolvimen-
to e co-responsabilização da comunidade pelos conflitos surgidos em seu seio. A aber-
tura da sociedade para o cárcere, e do cárcere para a sociedade, garantiria que ambos
dividissem a responsabilidade por restaurar a relação entre a sociedade e aqueles que
possuem com ela uma história de conflito.
Mais do que alcançar resultados pontuais - como a redução da criminalidade- a
justiça restaurativa busca reduzir o impacto dos crimes na sociedade. Da mesma for-
ma, mais do que buscar resultados na Execução Penal - como, por exemplo, diminuir
os índices de reincidência - temos que pensar como minimizar o impacto da prisão
sobre o condenado e sua função na sociedade - como já dizia Alessandro Baratta36
como “fazer do cárcere menos cárcere”.
Para que mudanças ocorram, tanto em sede de processo quanto de execução pe-
nal, é necessário uma reavaliação do paradigma punitivista, no qual nossa sociedade
tem se apoiado há algum tempo.
Um caminho para essa reavaliação é a busca da reintegração social, “não por
meio da prisão, mas apesar dela”37. A reintegração social, assim como a Justiça Res-
taurativa, busca restaurar os relacionamentos ao invés de simplesmente concentrar-
-se na determinação de culpa.
Outro objetivo da reintegração social é fortalecer o condenado perante o siste-
ma de justiça criminal, compreendendo sua história de fragilização e possibilitando
que o indivíduo se aproprie de sua história de vida, e faça suas escolhas com auto-

36 BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou Controle Social: Uma abordagem crítica da “reintegração social”
do sentenciado, 1990. Disponível em <http://www.eap.sp.gov.br/ pdf/ressocializacao.pdf>. Acesso em 02/11/
2010, p. 2.
37 BARATTA, Alessandro, Criminologia crítica e crítica do direito penal. In: Introdução à Sociologia do Direito
Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

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nomia e responsabilidade. Zaffaroni38 denominou “clínica da vulnerabilidade” esse


saber que permite as pessoas criminalizadas reduzirem seus níveis de vulnerabilidade.
A segregação realizada pela prisão exerce não só a função prática de neutralizar
o criminoso, mas é revestida de grande conteúdo simbólico, por confinar indivíduos
em determinados espaços sociais e psíquicos. A lógica restaurativa em âmbito peni-
tenciário pode contribuir para que os papéis tradicionalmente ocupados pela vítima,
ofensor, sistema de justiça e sociedade possam ser revistos.

5. Considerações finais

A forma tradicional que nossa sociedade tem escolhido para tratar da realidade
criminal não tem trazido qualquer impacto positivo na reconstrução das relações
sociais afetadas pelo crime e pelo sistema de controle. Ao contrário, a aposta pela
exclusão e segregação de (alguns) desviantes tem contribuído para aprofundar ainda
mais os conflitos e afastar qualquer possibilidade de responsabilização, e, por conse-
guinte, de restauração dos laços sociais.
Ainda que a reação social e institucional ao crime siga pautada pelo paradigma
da retribuição, outros saberes estão disputando o modo de fazer a justiça criminal e as
formas de se relacionar com a prisão. Neste artigo, buscamos passar brevemente por
alguns desses saberes, concepções teóricas e práticas afinadas a uma perspectiva res-
tauradora, que possam contribuir à restauração das relações entre sociedade-cárcere.
A partir dessas leituras, reunidas sob a perspectiva da reintegração social, pro-
pomos um redimensionamento do papel que a prisão ocupa na sociedade, assim como
do papel que a sociedade ocupa na prisão. De tal sorte que pensemos a relação socie-
dade-cárcere a partir de uma perspectiva restaurativa, integradora, questionadora da
“vontade de punir” e das práticas de exclusão social.
Os resultados das propostas de diálogo em âmbito da execução penal, assim
como o impacto das práticas alternativas de resolução de conflito, não são facilmente
quantificáveis, como tampouco o é o perdão, a proximidade, a dor.
Após cinco anos de experiência no GDUCC, em um projeto de diálogo entre
universidade e cárcere, podemos vislumbrar a potência das práticas restauradoras e
dialógicas no contexto prisional. A interação entre presos e pessoas da sociedade civil,
instaura a reatualização do conflito entre esses segmentos, e, por isso, permite que ambos
e de forma conjunta criem outras possibilidades de relação entre sociedade e cárcere.
Seguimos apostando nessas alternativas como possibilidades de experimentar
uma outra forma de relacionar-se com o outro e consigo mesmo. Talvez somente sob

38 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

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Mediação e Educação em Direitos Humanos

essa perspectiva integradora a aplicação da justiça possa resultar em alguma forma de


pacificação social.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan,
1991.

Resumo: A proposta desse artigo é refletir em que medida algumas concepções teóricas e
práticas que envolvem cultura da paz, mediação e justiça restaurativa podem ajudar na
compreensão do conflito prisão-sociedade livre e incrementar a comunicação entre as pes-
soas presas e as que estão fora do cárcere. Propomos a leitura desses três eixos temáticos
à luz da proposta de reintegração social, com a finalidade de reunir conceitos e práticas
aplicáveis às propostas de restauração da relação entre sociedade-cárcere.

Palavras-chave: Mediação; Justiça Restaurativa; Cultura da Paz; Reintegração Social; Pri-


são.

Abstract: The purpose of this paper is to reflect the extent to which some theoretical concepts
and practices that involve culture of peace, mediation and restorative justice can help in
understanding the conflict prison-free society and to increase communication between the
prisoners and those outside the prison. We propose the reading of these three themes in the
light of the proposed rehabilitation, in order to bring together concepts and practices applica-
ble to the proposed restoration of the relationship between society-jail.

Keywords: Mediation; Restorative Justice; Peace Culture; Prison; Social Reintegration.

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