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Manual Politicamente

Incorreto do Direito no Brasil


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Paulo FerrareZe FilHo

Manual PoliticaMente
incorreto do direito no Brasil
2ª edição reVista e aMPliada

PreFÁcio: aMilton Bueno de carValHo


PosFÁcio: aleXandre Morais da rosa

editora luMen Juris


rio de Janeiro
2017
Copyright © 2017 by Paulo Ferrareze Filho

Categoria:

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Renata Chagas

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


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emitidas nesta obra por seu Autor.

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meio ou processo, inclusive quanto às características
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de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e
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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
________________________________________
Aos tortos.
Sumário

Prefácio........................................................................................1
Amilton Bueno de Carvalho

Introdução...................................................................................5

1. A Sogra como Fonte do Direito.......................................... 13

2. Um Almoço de Domingo.................................................... 17

3. Tomando um Chá de Fita Vhs com Warat........................ 21

4. Movimento Feminino........................................................... 25

5. A Hermenêutica Jurídica da Sogra É Circular................... 29

6. Toda Verdade Maiúscula Será Castigada........................... 33

7. O Direito É um Site de Encontro........................................ 37

8. Permitir que a Constituição Seja


Descumprida Dói Menos......................................................... 41

9. Narrar Direito....................................................................... 45

10. Como se Pode Narrar uma Decisão Judicial.................... 47

11. Caos..................................................................................... 51

12. Assim Falou a Inocência: Apologia de


Zaratustra à Presunção Constitucional de Inocência............ 53

13. Seduzir o Rebanho............................................................. 57

VII
14. Aprender-se É Ensinar Direito.......................................... 61

15. Pedagogia Jurídica e Sedução............................................ 65

16. Como o Direito Pode Chutar Deus................................... 69

17. Nelson Rodrigues e Warat: Poetas Incorretos.................. 75

18. A Indigência dos Corpos................................................... 79

19. O Direito Não Sabe Rebolar.............................................. 85

20. O Jurídico e o Jeito............................................................. 87

21. A Era das Quantidades...................................................... 89

22. Juizite É Mais Comum que Ovni no Céu......................... 93

23. Julgar Quem Julga.............................................................. 95

24. A Função do Orgasmo no Direito Ocidental................... 97

25. Sentidos Estuprados?........................................................ 103

26. Levando o Direito nas Coxas.......................................... 105

27. Súmulas: Comer, Rezar, Amar........................................ 111

28. Um Hambúrguer de Carne Humana............................. 115

29. Direito e Masoquismo...................................................... 119

30. Decência............................................................................ 123

31. Idealismo........................................................................... 127

32. Suspense............................................................................ 129

33. Contratualismo e Persuasão............................................ 131

VIII
34. It’s Only Juridiquês, But They Like It............................. 135

35. Desobediência Civil.......................................................... 139

36. Amanhã Não Vai Ser Outro Dia.................................... 145

37. Um Olhar Para as Partes................................................. 149

38. A Fraternidade Constitucional do Demônio.................. 151

39. Samba da Maldade........................................................... 159

40. Como Pensam os Juízes Brasileiros?............................... 161

41. Ideologia e Partidarismo na Decisão Judicial................. 163

42. Lula, Moro e os Juristas Engajados................................. 169

Epílogo Para Fantasmas Autoritários.................................... 173

Posfácio.................................................................................... 181
Alexandre Morais da Rosa

Referências.............................................................................. 183

IX
Prefácio

Livro, isso não é: o que há em livros!


Nessas mortalhas e nesses esquifes!
O passado é a presa que eles devoram:
Mas neste aqui mora um eterno agora.

Nietzsche, Fragmentos do Espólio, julho-agosto de 1882,


p. 56, n. 1(104), ed. UNB, tradução Flávio R. Khote.

Ao ler o livro que o leitor tem agora em mãos, a primeira e


mais forte palavra que me veio foi ironia: fina ironia, agressiva
ironia, insuportável ironia. Não tenho claro se este é o sentimento
que Paulo pretendeu colocar em nós, mas isso não importa – o que
importa é aquilo que nós, leitores, recebemos, aquilo que suporta-
mos receber, aquilo que a nossa vivência nos permite receber.
A provocação – irmã da resistência – que diz sim-à-vida,
explode em todos os momentos, apta a gerar desconforto na-
queles que estão sentados num gozo desbotado, cinzento e, por
vezes, catatônico.
A ironia pauliana deverá, por certo, agredir muitos – ora, se
assim não o for, de ironia não se trata, porque ela, por origem, não
é destinada a pacificar, embotar, neutralizar sentimentos. Seu des-
tino: causar mal-estar, desconforto, muitas vezes ira, raiva, asco.
O ranger de dentes virá porque “pode-se falar de modo al-
tamente adequado e, no entanto, de tal modo que todo o mundo
grite o contrário: ou seja, quando não se fala para todo mundo”
(Nietzsche, mesmo local, aforisma 24, p. 268).

1
Paulo Ferrareze Filho

E desses para os quais não se fala, há se ficar atento: “É pre-


ciso tomar cuidado com os moralistas indignados: eles têm o fer-
rão da malvadez covarde, mascarada diante de si mesma” (idem,
p. 81, aforisma 147).
Mas a ironia, para aqueles que a suportam, destina-se a um
abrir de olhos (ou assim mantê-los), despertar profunda atenção,
remoer “verdades” que se alojaram em nós e se tornaram a partir
de algum momento algo quase imperceptível. Deve, enfim, apon-
tar para o novo: instrumento criativo apto a levar o leitor a ser ten-
tador de outras possibilidades (Nietzsche sempre gritou: “sejamos
criativos e tentadores” – eis a possibilidade de propiciar a chegada
do além-do-homem, para cuja vinda devemos ser “pontes”).
Maffesoli demonstra bem o revolucionário que existe na iro-
nia: “... o fato de destruir o que é obsoleto, pobre, inadequado,
é sempre a prova de uma construção vindoura. Nesse sentido,
o provocador, segundo a etimologia, “evoca adiante”. Refuta o
isolamento das situações e dos pensamentos estabelecidos. A iro-
nia é uma forma eficaz de resistência contra todos os poderes.
Pode ser discreta, nas conversações de vizinhança e nas de café,
pode ser devastadora, em escritos ou atos públicos, que imitam,
sub-repticiamente, os fundamentos que os espíritos sérios consi-
deram intangível e eterno” (“O Instante Eterno”, Zouk, 2003, p.
90, grifos meus).
Nietzsche, no “Humano, Demasiado Humano” I, tem reser-
vas quanto ao uso da ironia, sendo apenas adequada “como instru-
mento pedagógico, usada por um mestre na relação com alunos de
qualquer espécie: seu objetivo é a humilhação, a vergonha, mas do
tipo saudável que faz despertar bons propósitos...” (ed. Companhia
de Bolso, 2006, p. 195, aforisma 37).
Mas, para ele, “Tudo o que é humano merece, no que toca à
sua gênese, ser considerado ironicamente: por isso há tal excesso
de ironia no mundo” (idem, p. 160, aforisma 252).

2
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

Um alerta, se me é permitido, a ironia deve ser entendida em


toda sua extensão – se o leitor não tiver clareza disso, por certo,
não poderá saborear aquilo que talvez seja o mais precioso no tra-
balho do Paulo. Se, em algum momento, a dúvida alcançar você,
tenha ironia nos olhos.
Por quê? Ora, Nietzsche alerta: “O indício mais forte do es-
tranhamento de opiniões entre duas pessoas se dá quando dizem
uma à outra algo irônico, mas nenhuma delas percebe a ironia”
(idem, p. 185, aforisma 332).
Senti-me honrado pelo convite que Paulo me fez para prefa-
ciar este livro. Boa leitura.

Amilton Bueno de Carvalho


Desembargador aposentado do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul

3
Introdução

Há que empreender o negativo; o positivo já nos foi dado.


Adorno

O direito que se ensina e que se pratica hoje no Brasil apre-


senta um paradoxo: ao mesmo tempo em que a vida é um dos di-
reitos magnos protegidos pela Constituição, a pretensão educativa
e paradisíaca dessa mesma Constituição nega qualquer coisa que
possa se aproximar da vida e de sua inevitável humanidade. Não
há ilusão maior do que a ideia de que a Constituição possa ser
integralmente cumprida pelos milhares de juízes do Brasil.
Para que a Constituição se cumpra integralmente, seria pre-
ciso eliminar quase todo mundo. E, a partir daí, criar clones de
gente humana que não tenham ódio no coração, nem inveja em
relação aos outros, nem instintos de corromper, nem tesões fora da
agenda, nem raivas, nem ciúmes...
Este livro é uma ode às pessoas imperfeitas e aos juristas que
descumprem a Constituição, mesmo que pensem que estão sendo
fiéis a ela. O livro reclama o direito a incitar o suicídio do direito
politicamente correto, que tem na Constituição uma espécie de
livro sagrado.
Críticas que não certificam a morte do que está morto ser-
vem apenas para vender livros e ganhar likes patrocinados nas
redes sociais. Essa crítica quer dizer as virtudes do novo antes que
o sepultamento do velho aconteça. Assim, sou um vírus solitário
dessa virose que ataca esse grande Gulliver de toga espatifado no

5
Paulo Ferrareze Filho

chão. E o caminho que traço é avesso, atento ao ordenamento


poético de José Régio, em Cântico Negro:

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces

“Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse.

Quando me dizem: “vem por aqui!”.

Eu olho-os com olhos lassos

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços).

E cruzo os braços. E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade.

Com que rasguei o ventre à minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde.

Por que me repetis: “vem por aqui!”?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

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Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

7
Paulo Ferrareze Filho

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!

Claro que o poema é para que esse início seja charmoso. Para
que seduza leitores acostumados a desistir na quinta página, ba-
bando na cama com um pijama velho e uma esposa frígida do
lado. O leitor politicamente incorreto sempre exige ser seduzido
porque nunca vai por onde se lhe mande.
Julgo o direito com o mesmo preconceito dos juízes que cri-
tico ao longo do texto. O desejo de mudar o mundo é o impulso
antes da dúvida de saber se se trata de uma mudança para o bem
ou para o mal. Por isso indaguei o meu bem e o meu mal, sem
nunca pretender indagar o bem e o mal fora de mim.
Minhas fronteiras e incapacidades estiveram sempre fixadas
como limites do meu terreno de mirabolacões. Auxiliaram-me a
sugerir uma teoria antimaniqueísta do direito. Desde as primeiras
linhas, concedi a mim mesmo a anistia de praticar todo desape-
go teórico possível. E, por esse escape, fugir do embotado modo

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Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

acadêmico de pensar. A academia é um porre porque quer que as


imaginações tenham sempre nota de rodapé.
A indiferença em relação à forma é que fez os textos saírem
como ejaculações precoces – sem detenção, maturação, análise ou
preocupação em fazer o outro gozar para entrar em comum-união
com algum Deus, laico ou não. A rigidez da academia, o assujei-
tamento servil ao Estado e o ato de julgar foram os patos plásticos
que estiveram sob a mira da minha espingardinha de pressão.
Quando era menino, meu pai me levava acampar com tios e
primos na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Ele
era o irmão mais velho dos meus dois tios. Meu pai, pescador. Os
tios, caçadores. A prudência e a paciência tibetana de pescador
vieram no meu sangue psíquico através do meu pai. Cheguei a
nascer capricorniano – apesar desse tipo de comentário soar meio
Paulo Coelho na academia.
Escrever é como pescar: é preciso paciência... e nunca se
sabe se alguma coisa que preste vai abocanhar o anzol. Essas
duas coisas, o escrever e o pescar, são feitos de muita espera. Por
isso, à exceção do Twitter, toda escrita deve ser tântrica para que
haja prazer.
Testei a minha paciência esperando que fantasmas ditassem
os textos nos meus ouvidos. Fantasmas não tem agenda, são des-
compromissados e só aparecem quando querem. Ainda não sei se
há uma lei ou uma Constituição no mundo dos fantasmas.
Posso dizer com segurança que este é o primeiro livro psico-
grafado do direito. Foi ditado por gente morta que não sei o nome,
mas que gostam de beber vinho, fumar e escutar Paco de Lucía.
O ato de julgar foi um dos patos de plástico que mais re-
ceberam meus chumbinhos. O PUBLIQUE-SE/REGISTRE-SE/
INTIME-SE das decisões judiciais, consiste numa espécie de gozo
de poder que define o juiz politicamente correto. Sem conflitos
processuais a resolver, o juiz não poderia experimentar esse gozo,

9
Paulo Ferrareze Filho

donde se conclui que processos o excitam, apesar das reclamações


de excesso de trabalho fazerem a coisa parecer o contrário. O dis-
positivo de uma decisão é o quarto de motel barato onde a jurisdi-
ção ejacula sua vontade de se identificar com os deuses.
Ainda que se possa desculpar uma série de decisões judiciais
absurdas pelo argumento da democracia adolescente do Brasil,
mesmo assim, é preciso uma certa comicidade para que se possa,
pelo menos, rir da própria desgraça quando o politicamente corre-
to no direito, ainda que acarinhado pelo discurso dos bons e quase
sempre idiotas, prevalece sob a insígnia da segurança jurídica ou
do bem comum.
Ao mesmo tempo que este livro pede o direito fundamental
do direito de (aprender a) morrer, também pede que no velório que
antecipa o enterro haja comemoração, com direito a com sambão,
cerveja liberada e cinturinhas finas.
Lá pelas tantas, voltei aos textos para retirar a maiúscula
todas as vezes em que eu tinha escrito “Direito”. Optei por usar
apenas – direito, com minúscula. E o engraçado disso foi que me
peguei pensando, entre um cigarro aqui e um gole ali, na autorida-
de das palavras com letra maiúscula. Existem lapsos, no sentido
freudiano do termo, quando se resolve usar maiúscula em palavras
que não iniciam frases. A autoridade das coisas maiúsculas funcio-
nando como um totem da linguagem.
Warat, a quem também dedico a obra, falava que a sogra
era a fonte do direito. Esse é o texto que abre o livro. Detive-me,
porém, no sogro, para subverter o grande subversor que era Warat.
A revanche do sogro nasceu como uma espinha amarela bem no
meio da minha cara. Percebi que aquela figura monótona, broxa e
submetida ao poder matriarcal da sogra, devia ter o seu espaço na
alegoria surrealista do direito. A sogra sugerida por Warat era uma
sogra-dona-da-lei, uma espécie de condicionante do jurista, uma
figura muito mais máscula do que feminina. A sogra como força,

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Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

como mãe severa e cruel, como encarne do espírito da mulher-


-carrasco do masoquismo – que também ganhou ares incorretos
numa série de textos que o leitor encontrará pelo caminho – agora
substituída pela brochura do sogro. A fraqueza vista como potên-
cia de autorregeneração.
Subverter sempre foi um comando ao longo das madrugadas
em que me debrucei nos textos, uma vez que com amém não se
fazem revoluções.
Claro que criticar o direito está na moda. Há quem o critique
só pelo charme da atividade de criticar. Crítica séria é para quem
tem desejo de se tornar Deus. E estes textos, necessariamente in-
corretos, são mais uma homenagem ao Diabo do que a Deus, ape-
sar de ambos serem extremamente petulantes.
A necessidade de perceber os engodos do ato de julgar, de
qualificar a dimensão subjetiva da decisão judicial e de cons-
truir uma democracia madura figuram como horizontes de uma
idealidade necessariamente impossível. Há sempre metafísica de
sobra na esperança que se vende nos livros de direito e nesses
congressos chatos que só sabem ecoar um cansado: “devemos
cumprir a Constituição”.
Transformado em doutrinação religiosa, o direito acabou
como igrejas evangélicas – cada uma com um nome e um porém,
mas todas com um mesmo Deus. E para nós, juristas, esse deus é
a Constituição, ainda que ela seja esquecida sempre que a conve-
niência, a pressão popular ou o autoritarismo assim desejem. Os
juristas constrangedores ficam nauseados de perceber que o direi-
to é feito de desejos. E este sim-à-vida, já lembrado por Amilton
no prefácio, deve-se converter em um sim-ao-direito-que-é, sem o
ressentimento colérico dos que pregam o como-deveria-ser.
Esta intenção politicamente incorreta não quer atacar o pro-
jeto civilizador que é a Constituição, mas a ilusão de salvação reli-
giosa que se tem com a (futura) efetividade dela.

11
Paulo Ferrareze Filho

Ainda, o notável ceticismo deste apanhado de textos é resul-


tado de um outro paradoxo. Ao mesmo tempo em que concluí que
a satisfação plena da Constituição é um paraíso mentiroso, como
advogado trabalhista militante, percebi que o ato de julgar ainda
está em um estado pré-constitucional. E lutar pelo reconhecimen-
to de limites constitucionais é o que ainda se faz – e se deve fazer –
para que, mais tarde, seja possível superar a intenção soteriológica
que juristas percebem nas folhas da Constituição.
Que as salvações fiquei para ontem.
Salvação não há.
Boa leitura.

12
1. A Sogra como Fonte do Direito

As peculiares ligações da sogra com o direito podem ser


pensadas a partir de Freud que, em Totem e Tabu1, reconstruiu
a antropologia do tesão-primordial-pela-própria-mãe, analisando a
constituição dos interditos sexuais nas sociedades primitivas.
No poder místico das velhas sogras tribais, Freud percebeu
um dos fundamentos culturais e históricos do Complexo de Édi-
po, conceito repetido na clássica historieta da mitologia grega
em que Édipo, após matar o pai sem saber, casa-se com a mãe,
desgraçando o reino.
Para se ter uma ideia da chatice antropológica das sogras,
Freud lembra que “em Vanua Lava (Port Patterson) um homem
não segue a sogra na praia até que a maré tenha subido e desfeito
suas pegadas na areia. Mas eles podem falar um com o outro de
certa distância. De maneira nenhuma ele pronuncia o nome da
sogra ou ela pronuncia o nome dele.”
Além desse, outros exemplos primitivos recuperados por
Freud mostram o quanto se piorou de lá pra cá no quesito sogra:
“Nas Ilhas Salomão, o homem não pode ver nem falar com a sogra
depois do casamento. Ao encontrá-la, faz como se não a conhe-
cesse, afasta-se o mais rápido possível e se esconde.”
Depois de ler esse excerto, fui para o Google Maps desco-
brir onde ficam as Ilhas Salomão. E do Google Maps direto para
a Decolar.com, conferir se haviam voos diretos e com passagem
só de ida.

1 FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume II: totem e tabu, contribuição à história do
movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Cia das Letras, 2012.

13
Paulo Ferrareze Filho

A partir de um direito construído em bases patriarcais, pen-


sar na sogra como fonte do direito requer, antes, uma análise do
coadjuvantismo do sogro. Se o homem-chefe pode ser colocado
como figura ornamental da civilização ocidental, representante
por excelência da família no espaço público religioso, político e
intelectual; é a sogra que, racionalizando a ingenuidade da filha,
controlou privadamente o mundo até aqui.
Houston, Houston: AS SOGRAS ESTÃO NO CONTRO-
LE. E por uma simples razão: aquela que controlava o chefe-pai
com o rebolado sedutor de ancas e peitos, era controlada intima-
mente pela própria mãe.
Assim é que as sogras passaram a se tornar as grandes lati-
fundiárias dos desejos do patriarcado. No fundo, as sogras sempre
foram o STF do inconsciente coletivo, a grande máfia clandestina,
as que determinaram o final da festa.
Como mandatárias dos domínios do tesão macho, a palavra
de ordem, mesmo que em um olhar silencioso, pertenceu desde
sempre às sogras. Afinal, sua vitória de ter conquistado um ho-
mem (o sogro infeliz) e de ter se tornado mãe, demonstrava a
pujança de seu sublime e ardiloso poder. Tal qual uma organiza-
ção que tem chefes e chefiados, enquanto ao sogro coube a sub-
jugação, o servilismo, a brochura e a dócil escravidão, aos genros
restou a manipulação espiritual feita pelas sogras através de suas
filhas de peles macias.
A ideia da sogra como fonte do direito é de Warat, que, já
nos anos 80, sabia que todos os Manuais de Introdução ao Estudo
do Direito empoleiravam as clássicas fontes do Direito como pre-
textos para que os juízes pudessem, irresponsavelmente, decidir
sem perceber a fraude que cometiam. Ao deixar que suas parafer-
nálias pessoais entrecruzem a decisão, dolosa ou culposamente, os
juízes acabam ou como ingênuos ou como sabotadores.

14
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

O imaginário da sogra, antes de um efeito, apresenta-se


como causa complexa das decisões judiciais. Perceber que a de-
cisão judicial é um fenômeno complexo, deve(ria) ser o ponto de
partida que, para infortúnio de quase todo mundo, é o ponto de
chegada. Em geral, as pesquisas em direito se ocupam com aquilo
que os pesquisadores do direito já sabem: que o positivismo fra-
cassou porque sempre foi incapaz de apreender o real; que o lugar
de poder é que(m) diz o que o direito é; que a história chã do
Brasil constitui(u) cotidianamente, via Ctrl C/Ctrl V, um direito
patrimonialista, aristocrático no pior sentido do termo e, em gran-
de parte, autoimune à proposta de (re?)democratização feita pela
Constituição Federal (lá se vão 25 anos...).
É um direito que, de alguma estranha maneira, ressignifica
o ideal ético-medíocre do Rei do Camarote (se você ainda não viu
esse personagem-tipo tupiniquim, visite o youtube). Tal qual o Rei
do Camarote, que vive da maquiagem que faz de si mesmo, o di-
reito brasileiro sustenta-se na aparência das quantidades – do nú-
mero de decisões julgadas mês-a-mês nos mapas dos juízes Brasil
afora, ao número de ações da carteira de clientes dos grandes e dos
pequenos escritórios de advocacia – suplantando a necessidade do
mínimo, ou seja, de que haja alguma qualidade epistemológica na-
quilo que se faz.

15
2. Um Almoço de Domingo

Uma teoria da decisão judicial que deixe de ser subversiva


em relação às fontes do direito só é capaz de instruir juízes nor-
malpatas2. A normalpatia é a psicopatologia de todos os juízes que
acreditam que fazem decisões justas.
Eles são maioria. No domingo, almoçam com a família da
esposa. Chegam às onze e trinta pra ajudar com os preparativos.
Adoram os talheres em ordem porque amam etiquetas – faca de
um lado, garfo do outro, copo disso, copo daquilo. Tudo em perfei-
ta simetria. A simetria dos talheres é a materialização da autoima-
gem que produzem de si mesmos.
Ele – o juiz normalpata – com uma camisa polo comprada na
última ida a Miami, afinal, em Miami, as polos “de marca” sempre
estão em promoção, o que faz o juiz normalpata publicar no face-
book que o Brasil é uma porcaria por conta dos impostos.
Ela, a esposa, com um vestido florido e largo, de algodão,
para esconder as imperfeições da bunda. Depois dos filhos e do
tempo, não há bunda que resista... E os filhos... felizes! Correndo
por todos os lados. E GRITANDO. Com o DIABO no corpo. E
RANHO no nariz.
Depois do almoço, o juiz normalpata senta ao redor daque-
las mesinhas brancas de plástico. Toma uma cerveja... e outra
e outra e outras. Enche a cara. Parcimoniosamente. Afinal, ele
bebe socialmente, que é o nível de alcoolismo moralmente aceito.

2 BARROS, L. F. Os normalpatas, não matei Jesus e outros textos. Rio de Janeiro – Ed.
Imago, 1999.

17
Paulo Ferrareze Filho

Esse juiz-tipo bebe socialmente porque a virtude é um atributo


restrito aos virtuosos...
Então discute alguma notícia do jornal dominical com a
cunhada, que é mestre em Biologia pela Universidade de Pedro
Juan Caballero no Paraguai. Ela também odeia o Brasil porque o
MEC não reconheceu o diploma paraguaio que ela comprou, ain-
da que negue a si mesmo, só pra preservar o próprio ego, que odeia
saber que brasileiros não são tão bons quanto pensam.
Enquanto isso, a velha está lá, fuçando em alguma coisa. So-
gras estão sempre fuçando em alguma coisa. São rainhas da ni-
nharia. E falam pelos cotovelos. E porque falam, inevitavelmente
afetam os genros. Dessa afetação estão sujeitos todos os genros. O
fato é que, nos juízes, essa afetação tem efeitos apocalípticos, já
que são eles que decidem quantas vezes se terá que ver os filhos
durante a semana, ou se irá receber as horas extras trabalhadas ao
longo de uma vida toda ou se irá dormir em presídios fedorentos
ou do lado de esposas cheirosas.
A sogra então faz sua sustentação oral: uma fofoca do grupo
da missa, a preocupação com as netas que começaram a sair (e a
fumar a maconha – mas da maconha as velhas não sabem porque
pensam que suas famílias são abençoadas por Deus...), emitem al-
guma opinião maniqueísta e idiota sobre a corrida eleitoral ou,
ainda, decretam um comando despótico para o marido, o sogro,
que é um velho que já morreu mas ainda não sabe.
Depois, os juízes normalpatas passeiam com os filhos e assis-
tem ao futebol das 4 da tarde. De noite, depois de assistir ao Fan-
tástico, vão para a cama. Mas não transam... porque já transaram
no sábado, que é o dia oficial. Para os juízes normalpatas, transar
no domingo é preclusão consumativa, afinal, a coisa já se consu-
mou no sábado.
O domingo é o dia da formação ideológica do juiz que acre-
dita que é NEUTRO. Todas as decisões “neutras” das segundas-

18
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

-feiras têm o Fantástico como fonte do direito. O Fantástico e,


claro, a sogra, arquétipo da justiça na prudente consciência dos
julgadores. Mas a sogra é metáfora. É aquilo que se usa para dizer
o que não pode (ou não deve) ser dito.
E é, entre outros, pelo analfabetismo no trato com a metáfora,
que a virtude epistemológica gagueja pelos corredores da jurisdição.

19
3. Tomando um Chá de
Fita Vhs com Warat

Lamento que grande parte dos juristas do Brasil não conheça


Luis Alberto Warat. Em um depoimento feito antes de morrer,
Warat se vangloriou por ter sido o precursor da aproximação entre
direito e psicanálise. No fundo, ele mentiu. Antes dele, outros já
tinham cruzado os discursos psicológicos e jurídicos. Mas como
poeta que era, falava a verdade até quando mentia. Afinal, como
escreveu Nietzsche, o poeta que pode mentir é o único que pode
dizer a verdade.3
Warat foi um transgressor. Só um transgressor poderia fazer
uma tabela entre a literatura, a psicanálise e o direito para sugerir
a metáfora da Dona Flor, pinçada do romance de Jorge Amado,
como palco análogo da subjetividade dos juristas4.
Warat foi um plagiador de ideias sem o ressentimento acadê-
mico do plágio. Chamou esse pequeno furto corrupto de ideias de
intertexto. Plagiar uma ideia é estar no epicentro da autocriação
de sentidos. Toda a necessidade da ABNT parte do desamor e do
indício de má-fé de quem vai enunciar qualquer coisa. Todo meio
de controle é um medo que se engaiolou e se institucionalizou.
Warat foi um sedutor que fez da forma (um olhar, um discur-
so ou um texto) um meio de propagação de um pensamento emer-

3 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Companhia das Letras: São Paulo,
2010, p. 49.
4 WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares
do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2004, p. 61 e segs.

21
Paulo Ferrareze Filho

gente no direito. A sedução é um conceito cardinal na pedagogia


afetiva de Warat.
No prefácio do último livro publicado antes de morrer – A
rua grita Dionísio5 – Alexandre Morais da Rosa imaginou a con-
fissão de Warat: “sei que a sedução é um vício igual a qualquer
outro. E não existe nenhum Sedutores Anônimos. Se existisse,
talvez pudessem fazer algo por mim. Se bem que eu não tenho
tanta certeza. Seguramente eu inventaria pretextos para não
comparecer a suas sessões, e ter de ficar lá, na caradura na frente
de todo mundo, botar a mão na Bíblia e dizer serenamente: meu
nome é Luis Alberto Warat. Sou um sedutor. E hoje faz 27 dias
que não seduzo ninguém”.
Warat foi a encarnação nauseada pelo senso medíocre e pela
negação fajuta do lugar de poder. Foi também um mambembe,
um circense, um jurista andarilho. Como um missionário ateu,
pregou que chegar aos lugares é tão importante quanto deixá-los.
O espírito de quem vê sentido na sensação metafísica da rede
numa varanda, era a aura que circundava Warat, que se autoin-
titulava como o único jurista baiano do Brasil, por ter refletido o
direito a partir do pensamento de Jorge Amado. Tarde em Itapuã,
cantada por Vinícius de Moraes e Toquinho, é um retrato artísti-
co do espírito de vime dos balanços do calor baiano – um espírito
abstrato, aéreo e mercurial.
O elemento etéreo de Vadinho, personagem vagabundo do
romance Dona flor e seus dois maridos de Jorge Amado, representa
o feminino e a transgressão. Como produto do excesso, do espí-
rito festivo, da subversão do desejo de conforto e de acumulação,
Vadinho apostava tanto em jogos de azar quanto no próprio afeto
desejante e sensual. A subversão é o ponto G dessa obra literária

5 WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio: cartografia, surrealismo e direitos humanos.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

22
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

que Warat tomou emprestada para criticar, com ironia, os lugares


comuns do direito e sua festa chata e burocrática, transitada por
pinguins de terno e gravata.
A analogia da “pinguinização” do direito expõe dilemas con-
temporâneos que já eram tratados por Warat nos anos 80. Dos
juízes que decidem porque o Tribunal-superior-já-decidiu aos ad-
vogados que enxergam a guerra processual como meio de exaltar
um ego vencedor; a apoteose do senso comum teórico dos juristas
se materializa diariamente nos foros e revela o fracasso do direito
como instrumento de pacificação, reparação e restabelecimento
de vínculos afetivos.
Vadinho, o vadio da história, é o escape necessário e vital
para o cotidiano de Dona Flor e, claro, do direito. Enquanto
Vadinho é necessidade, Teodoro Madureira, o contraponto apo-
líneo de Vadinho, é contingência. E no direito, passados mais de
vinte anos do escrito de Warat, a gnose dos desejos permanece
retraída e recalcada.
Em 2010, nas Jornadas de Direito e Psicanálise da Universi-
dade Federal do Paraná – UFPR, encontrei-me com Albano Pêpe,
de quem pude provar uma dialética de poesia e saudade de Warat,
que deixaria sonhadores e seguidores no final daquele ano. Al-
bano não foi discípulo de Warat porque a pedagogia de Warat é
uma pedagogia de estímulo à autonomia. Afinal, como Nietzsche
escreveu, “é tão odioso guiar quanto seguir”. Após ter mostrado a
via-régia para o surrealismo jurídico e para a carnavalização do di-
reito, os que vieram depois dele, encontraram, no máximo, ruelas.
A autonomia da proposta waratiana é um treino para absol-
ver culpas a partir do assassinato do desejo de ocupação dos luga-
res de poder instituídos. O lugar de poder da proposta waratiana
pode ser identificado como um lugar de autopoder, de autolegiti-
mação, de liberdade sentida. Mesmo que o filho siga uma trilha
virgem na mata, ainda assim carregará os inexoráveis trejeitos do

23
Paulo Ferrareze Filho

pai. Albano é, portanto, o filho autônomo de um grande pai – e


talvez, em relação a Warat, Albano seja, senão o único filho, o
primogênito. Warat percebeu que o lugar de poder deve ser de
ocupação nômade.
Como índios, ciganos, aborígenes de sangue nômade, dançar
o baile de devires é a intenção da reconstrução da estagnante sub-
jetividade moderna. Há um velho adágio xamânico que diz algo
assim: não julgue teu vizinho até que não tenhas andado com
os sapatos dele.
O propósito da mediação de conflitos, tema caríssimo a Wa-
rat, associa-se a esse devir-xamânico. O devir é a força incontrolá-
vel que supera as imposturas do hábito. O impostor é, sobretudo,
alguém que impede a possibilidade de diálogo – caráter marcante
do julgador de direito instituído, que celebra, com a decisão, antes
de um vínculo, um corte, uma morte, um orgasmo fatídico.
Todo julgador que não se admite como um impostor, ainda
sobrevive nos ambientes sombrios e paranoicos da Justiça, da Ver-
dade e da Certeza (todos com letras maiúsculas, claro!).

24
4. Movimento Feminino

C. G. Jung cunhou dois conceitos importantes relacionando a


natureza ambivalente do psiquismo: a anima, como parte feminina
oculta no inconsciente dos homens, e o animus, como parte mas-
culina escondida no inconsciente das mulheres.6 Baseando-se na
estrutura oriental do milenar oráculo I-Ching, Jung observou a re-
lação dinâmica entre o feminino e o masculino não apenas na psi-
que, mas também na cultura: o yin como representação simbólica
do feminino e o yang como representação simbólica do masculino.
A dinâmica desses dois polos está associada a várias imagens
antagônicas colhidas na natureza e na vida social. Da mesma for-
ma que homens e mulheres passam por fases yin e yang, também a
cultura e o direito, como fenômenos dinâmicos, experimentam pi-
cos em que um aspecto se sobrepõe ao outro. A cultura patriarcal
do Ocidente, marcada por arrogantes cisões operadas pelo fajuto
Eu-cognoscente, reprimiu no inconsciente coletivo os aspectos fe-
mininos da cultura ocidental.
As letras e as artes têm infinitas narrativas e imagens que
demonstram o desequilíbrio de yin e yang na cultura Ocidental.
Entre tantas, merece transcrição a lembrança feita por Lídia Pra-
do7, citando Sêneca: “a mulher apenas ama ou odeia, e quando
pensa, pensa somente coisas malvadas; a mulher tem tendência
a delinquir em razão de sua ganância; as mulheres são fracas de
intelecto, quase como crianças.”

6 JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. 17a ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
7 PRADO, Lídia Reis de Almeida. O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão
judicial. 2a ed. Campinas, SP: Editora Milennium, 2003, p. 53-54.

25
Paulo Ferrareze Filho

Também o conhecido relato bíblico de Provérbios VII (25-


27) confirma o truculento repúdio à virtude feminina: “a mulher
é mais amarga que a morte porque é uma armadilha; seu coração,
uma cilada; suas mãos, cadeias; quem ama Deus foge dela, quem é
pecador é capturado por ela”.
Como dominador da natureza, da mulher e da palavra ins-
tituída, o homem invadiu o palco da história, notadamente a
partir do cristianismo, com a metáfora metafísica do Deus-pai
encalacrada no imaginário do Ocidente. Como personificação
da razão suprema e fonte do poder único, o Pai, que governa o
mundo do alto e impõe sua lei mágica, é um dos que merecem
não repúdio, mas perdão, afinal, julgando-o, estar-se-ia sendo de-
masiadamente patriarcal.
Os resultados da exagerada ênfase dada à polaridade yang na
cultura estão relacionados a múltiplos fatores. Nesse sentido, inca-
pacidade de manutenção de um ecossistema saudável, dificuldade
na administração das cidades, falta de recursos para uma adequa-
da assistência à saúde, à educação e aos transportes públicos, ris-
cos da ciência médica e farmacológica, aliados a um sistema jurí-
dico caótico, caríssimo, apto a garantir a propriedade privada e os
contratos sinalagmáticos, exemplificam alguns desses resultados.8
Por outro lado, movimentos contemporâneos apontam para
numa nova cultura feminina no direito. Direito Alternativo, Direi-
to Achado na Rua, movimentos de Assessoria Jurídica Popular, a
preocupação humanista posta na resolução 75/2009 do CNJ – que

8 CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 38. Alerta Capra
outra questão problemática que se desenvolveu em razão da supremacia da cultura do
patriarcado. “[...] a excessiva ênfase no método científico e no pensamento racional,
analítico, levou a atitudes profundamente antiecológicas [...] a compreensão dos
ecossistemas é dificultada pela própria natureza da mente racional. O pensamento
racional é linear, ao passo que a consciência ecológica decorre de uma intuição de
sistemas não- lineares.”

26
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

inseriu disciplinas propedêuticas nos concursos para a magistratura


nacional, direitos LGBT e também os ligados à descriminalização
da maconha, além da formosa cultura da mediação de conflitos
que emerge, exemplificam a posição que o direito busca ocupar.
Esses movimentos sensíveis, criativos e uterinos gestam o direito
emergente, marcado pelo antimaniqueísmo e pela pluralidade.

27
5. A Hermenêutica Jurídica
da Sogra É Circular

A hermenêutica da sogra é uma provocação surrealista que


pretende dar-a-deixa aos pinguins do direito sobre a complexida-
de do fenômeno jurídico. A decisão jurídica e a interpretação que
dela decorre estão ligadas ao julgador por alguns laços óbvios: seu
pandemônio psíquico, a cultura vigente, o mau humor das manhãs
de segunda, o movimento dos astros, as roupas mais ou menos de-
cotadas que partes, testemunhas e advogadas usam nas audiências,
as taxas de açúcar no sangue, os jeitinhos de bom moço dos ad-
vogados cordiais, a TPM infernal das juízas mal-amadas (e das es-
creventes que morrem de inveja das juízas), as vidas despedaçadas
pelos divórcios, o êxtase juvenil dos juízes recém-casados, o medo
abissal de não conseguir pagar as prestações do apartamento dos
sonhos, as tendências filosóficas – se bem que a normalpatia dos
juízes imuniza qualquer abalo filosófico de seus significantes – e
outras notas evidentes que atestam a teia de significações desper-
cebida que transitam nas margens da decisão judicial.
Daí que responder aos dilemas da decisão judicial dizendo
que a Constituição e as leis devem ser cumpridas é uma das críti-
cas mais óbvias (e cansadas) que as pesquisas em direito podem (e
continuam a) fazer.
Todo juiz que pensa que o Justo é igual à exatidão milimétri-
ca de uma régua, não terá capacidade de entender que a herme-
nêutica da sogra é um borrão disforme cuspido no acostamento de
uma rodovia em horário de pico.
A hermenêutica, com as mais variadas e dissidentes igreji-
nhas, é uma ferramenta importante para perceber a profundidade

29
Paulo Ferrareze Filho

do buraco em que o decidir judicial está metido. Não é preciso


lembrar que Platão e a história do conceito de Verdade têm parte
nisso tudo. Os Tribunais e a academia ainda respiram o fedor
das dicotomias platônicas. A overdose da gravata é um sintoma
que qualquer acadêmico iniciante é capaz de perceber, desde que
tenha exercitado e desenvolvido alguma sensibilidade propedêu-
tica. O platonismo nunca morreu, aliás, nunca esteve tão vivo.
Engana-se quem pensa que o tribalismo pós-moderno invadiu o
direito. No fundo (e também na superfície), ele está blindado a
esse tipo de viragem. A gravata, a barriguinha proeminente, o
anel vermelho de formatura e o cabelo lambido são os elementos
essenciais do Bom jurista, o Príncipe da República Jurídica (e pla-
tônica) das Bananas. Soma-se a esse arquétipo, os doutrinadores
“essenciais” que, preocupados mais com marketing pessoal do que
com diálogos democráticos, buscam avidamente o maior número
de likes em tudo que fazem.
Porque não pretendo repetir uma parafernália teórica que se
repete SEMPRE nos primeiros capítulos dessas pesquisas de mes-
trado e de doutorado que se tornam livros chatíssimos, deixo para
trás toda a história da hermenêutica jurídica9 para me apropriar
(arbitrariamente, afinal, essa é minha revanche arbitrária contra a
arbitrariedade dos arbitrários) de um postulado da hermenêutica
filosófica de Gadamer10: as pré-compreensões.
Pré-compreensões são a condição na qual está imerso o jul-
gador quando, primeiro, pensa idiotamente que está colhendo e
interpretando provas para, em seguida, enquadrar a “verdade” de
um fato às normas preestabelecidas. Os juízes são enganados pela

9 Para uma retrospectiva sobre a história da hermenêutica, consultar STRECK, Lenio


Luiz. Hermenêutica Jurídica. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário
de Filosofia do Direito. Editora Unisinos: São Leopoldo e Editora Renovar: Rio de
Janeiro, 2006, p. 430-434.
10 Filósofo que os juízes normalpatas não conhecem.

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Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

Fábula da Trindade Judicial, composta pelas três partes clássicas


da decisão, a saber: relatório, fundamentação, dispositivo.

5.1 Relatório
Sabe-se que são os estagiários que fabricam os relatórios das
decisões. Sabe-se também que, à exceção do estagiário que ficar
no lugar do estagiário que faz relatórios – para aprender o estilo do
estagiário antecessor – NINGUÉM MAIS lê a porra do relatório.
Por que o Estado gasta com estagiários que fazem relatório?

5.2 Fundamentação
É notório pelo volume de decisões dadas por dia que as fun-
damentações estão pré-prontas. Para o bastantão, os modelos.
Uma juíza que teve o desprazer de me ter como estagiário dizia:
“Paulinho, nessas mete o modelão...” Porque de manhã, ela queria
mesmo era dormir. E cuidar das crias. E fazer as unhas. E o cabelo.
E o buço. Todo mundo sabe que mulher precisa de TEMPO no sa-
lão de beleza. Acho justo que as juízas saiam durante o expediente
pra fazer o buço. Juíza com bigode é inconstitucional. Eu, no lugar
dela, faria o mesmo. Hobbes sempre esteve certo: quando alguém
precisa tirar o buço, foda-se o resto.
Então, a fundamentação das decisões acaba como essas lasa-
nhas congeladas da Sadia – estão sempre pré-prontas. E sem gos-
to. E geralmente frias no meio. Basta deixar no congelador ou no
prelo jurisdicional (as lasanhas e as decisões, respectivamente). Aí,
quando alguma barriga roncar ou algum direito gemer, e só des-
congelar no micro e pedir para o estagiário assar por 20 minutos.

31
Paulo Ferrareze Filho

5.3 Dispositivo
O dispositivo é o quarto de motel onde a jurisdição goza.
Local imaginário onde o poder ejacula. Há um certo sadismo nos
verbos que são usados no dispositivo das decisões judiciais - DE-
TERMINO, CONDENO, MULTO, ORDENO, entre outros. O
sadismo é uma perversão que eu indico para quem tem desejos se-
xuais acostumados à lógica quarta/sábado. Para que se possa julgar
democraticamente é necessário que o julgador abra mão do gozo
do lugar de poder que ocupa. Mas ele(s) quase nunca abre(m) mão.
A ideia de que a interpretação que constrói a decisão não
se dá pela linearidade da subsunção, ou pela divina capacidade
ponderatória, mas pela circularidade caótica de compreensão do
intérprete, é a primeira implosão do edifício das metodologias da
interpretação feitas pelos juízes normalpatas. E isso, de modo al-
gum, redunda nas certezas que a segurança jurídica sempre quis.
Segundo Nietzsche, toda verdade é curva. 11 Amém. A decisão ju-
dicial precisa ser autoconsciente de seu caos para estar mais pró-
xima das pessoas.

11 Para entender porque o direito é curvo, consultar GONZÁLEZ, José Calvo. Direito
Curvo, Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2013.

32
6. Toda Verdade Maiúscula
Será Castigada

O juiz normalpata, que separa o lixo seco do orgânico porque


é um homem de Bem, segue caudatário do paradigma da Verdade:
pretende descobrir a essência dos fatos para que, do produto dessa
descoberta, possa esquadrinhar o resultado fático nas hipóteses de
aplicação previstas nas normas.
Nesses orgasmos que são os Dispositivos da decisão, cada juiz
reestabelece uma certa conduta religiosa consigo mesmo. Isso por-
que a noção de poder está intimamente ligada à ideia de Deus. Or-
denar/Determinar/Intimar é próprio de quem manda, assim como
Condenar ou Absolver. Daí porque é preciso analisar como o au-
toritarismo cristão, baseado no preceito de Deus como o Caminho
(único), a Verdade (única) e a Vida (única) podem irromper nas
decisões judiciais.
Santa Teresa D`ávila, a famosa freira espanhola da Idade
Média, já dava mostras de que o gozo tem um quê de divino. Mes-
mo “sendo de Deus”, como são essas adolescentes virgens cheias
de tesão das igrejinhas evangélicas, Santa Teresa tinha espasmos
de prazer e orgasmos múltiplos com as visões erótico-religiosas que
tinha de Jesus, o Cristo. Claro que tentaram ferrar com ela, afinal,
bolinar com Cristo, nem em sonho! Se bem que essa Santa devia
fumar alguma coisa. Ou tomar chá de fita VHS no refeitório do
convento. Os juízes, mais laicamente que freiras como a Santa
Têre, também gozam quando mandam, por isso acabam viciados
na própria potência. Chamou-se isso de Juizite, mas penso que o
buraco é mais embaixo.

33
Paulo Ferrareze Filho

Alguém que vive pela ejaculada de poder a cada decisão judi-


cial, revela-se no número de letras maiúsculas que usa. Por isso não
se pode escrever o santo nome de Deus em vão (ou com minús-
culas). Todo julgador que escreve Verdade, assim com maiúscula,
tem algo de psicopata, ainda que não saiba. Para que a coisa não
se perca numa nuvem abstrata demais para os leitores chatos que
não estão entendendo onde pretendo chegar, cito a jurisprudência.
Um juiz gaúcho ficou famoso na internet porque usou a Re-
vista Marie Claire para fundamentar uma sentença penal, citando
uma bobagem que a atriz Paola de Oliveira disse para a revista.
A comunidade jurídica criticou ferrenhamente a fonte inédita do
direito e a doutrinadora global, que continua fazendo novelas com
aqueles mesmos enredos xaropes de todo o sempre. Ainda que ne-
cessária, a crítica se tornou óbvia. Como obviedades têm desejo de
adultério, concentrei minha atenção na seguinte frase da sentença
do tal juiz:

“Meu pai, Abel Custódio, Promotor de Justiça Jubilado,


sempre me diz isso, em nossas conversas sobre Verdade e
Justiça, citando o Padre Antonio Vieira: Juiz sem liberda-
de é como a noite que não segue a aurora.”

O que mais preocupa, do ponto de vista da psicologia rasteira


e antiacadêmica que faço, é esse monte de maiúsculas em uma fra-
se de só três linhas. São ONZE maiúsculas! Resolvi pesquisar ale-
atoriamente algumas frases esparsas na internet, pra tentar chegar
a uma média de letras maiúsculas em frases de três linhas. Minha
conclusão foi a seguinte: a média é que as maiúsculas aparecem
aproximadamente quatro vezes numa frase de três linhas. Ou seja
é 11 x 4. Prova cabal da psicopatia.
Resumindo: o maior problema do juiz que usou a Marie Clai-
re, não é a Marie Claire em si, mas a overdose de maiúsculas. Se

34
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

maiúsculas fossem droga, esse juiz seria preso por tráfico. É um psi-
copata julgando você, seus filhos, seus processos, suas pendengas.
É alguém que ainda confia demais em Deus, e em coisas coirmãs
de Deus como a Paola De Oliveira, a Verdade, um Time de Fute-
bol, a Justiça, o Destino, o Fantástico, a Energia Cósmica.
Pode-se dizer que o juiz Marie Claire é um caso sem salvação.
Alguém que nunca entenderá a hermenêutica da sogra porque
acredita em tudo que lê. E o faz pelo princípio da eficiência, algo
mais ou menos assim: já que nunca leio merda nenhuma, agora que
li, preciso aproveitar... E também porque se atiraria embaixo de um
caminhão se o Pai, Abel Custódio, Promotor de Justiça Jubilado
(para sorte da nação), mandasse.

35
7. O Direito É um Site de Encontro

[...] quem não sabe amar, fica esperando


alguém que caiba nos seus sonhos.
Como varizes que vão aumentando.
Como insetos em volta da lâmpada.
Cazuza

Tempos atrás me cadastrei em um site de encontros. Algo do


tipo: você informa dados pessoais como seu prato preferido, a ida-
de, a cidade que você mora, sua religião, se tem filhos e quantos,
se fuma ou não fuma ou se fuma só de vez em quando, se gosta
de esportes, de filmes, de yoga, de jogar videogame, de transar
bastante ou não, se prefere mais ou menos amorzinho, se come
ou não come sushi (porque hoje, amigo, se você não comer sushi,
suas chances são terrivelmente remotas, principalmente com es-
sas meninas que fazem biquinho no facebook fazendo parecer que
a boca é um cu).
Alguns sites aprofundam a pesquisa de identidade e solici-
tam a posição ideológica, as simpatias partidárias, o time de fute-
bol. Se você é um socialista-amoroso-bobmarley, é provável que as
primeiras opções do cardápio de encontros afastem os conserva-
dores-racionais-só-vou-em-showzinho-se-for-sentado.
O imaginário do mundo tem uma cerca invisível, wi-fi, que
separa maniqueisticamente quem tem esperança de um mundo
melhor e quem não tem. Utópicos e Descrentes. Os primeiros,
porque diagnosticam o passado para apostar num futuro diferen-

37
Paulo Ferrareze Filho

te. Os segundos, porque diagnosticam o passado para conhecer


o ser humano e atestar que, desde que o mundo é mundo, o
homem sempre conviveu com o seu lado FILHO DA PUTA. Por
cima desse novo muro de Berlim wi-fi, bombas, granadas e cartas
envenenadas com alguma bactéria do capeta. Vive-se uma era
que é, sobretudo, feita de argumentos que bombardeiam os sis-
temas racionais. O Ocidente é campeão em ver vitória em todo
tipo de oposição.
No site de relacionamento, pode-se definir qual o raio de
filtragem da busca pelo seu par ideal. Ou seja, você pode estar
disposto a ir até a cidade vizinha, até a puta-que-pariu, ou até o
interior do Acre, que é depois. (Se o pessoal do Acre ficar puto
comigo, gostaria de, usando o princípio constitucional do contra-
ditório, me defender dizendo que perco o amigo mas não a piada).
Se você aumentar o raio, as chances de você encontrar o Amor
da Sua Vida são maiores. Se postar uma foto, tratada ou não, as
chances também aumentam.
Se um site de encontros oferece maiores chances para que
se conheça um igual antes de um diferente, pode-se dizer que 1)
há uma necessidade psicológica de identificação e que 2) não se
tem intenção ou consciência dos efeitos de não treinar a diferença,
acossados pelo ímpeto da repetição.
Poder-se-ia perguntar: qual o fundamento do desejo de en-
contrar um par a partir de identidades? Mas isso não pretendo
responder aqui. A apoteose do desejo de encontro é um dado re-
velado com os sites de encontro.
A necessidade psicológica que sustenta a existência de site de
encontros é a mesma que sustenta a existência da Constituição: se
as promessas, de um e outro, forem cumpridas, a felicidade triun-
fará sobre a angústia humana!
Um espelhamento de cadastros perfeito para pares nem tão
perfeitos assim. Normas bem intencionadas para juízes indiferen-

38
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

tes, afinal, sem um ego minimamente narcísico, a estabilidade de


um bom salário é a causa da indiferença do julgador em relação ao
problema PROFUNDO de cada processo. Se juiz fosse cobrado por
mérito epistemológico e não quantitativo, e se o desempenho con-
dicionasse quanto se ganha, ter-se-iam mais juízes preocupados.
Sinto muito pelas exceções – e fora os psicóticos, todas as
exceções se sabem como uma, mas o caos da quantidade gerou um
sonambulismo jurisdicional altamente perdoável.
E a Constituição, como instituto platônico por excelência do
direito contemporâneo, permanece como a agenda do fracasso de
perceber a imperfeição dos amores eternos e a sofreguidão lenta
das normas que não acontecem.

39
8. Permitir que a Constituição
Seja Descumprida Dói Menos

Podemos voltar a ser uma ditadura militar, com o mesmo


salve-se quem puder que foi a de 1964? Penso que essa é uma per-
gunta fundamental para discutir a questão do (des)cumprimento
da Constituição. Fundamental porque, hoje, no Brasil, essa é a
agenda da juristocracia: cumprir a Constituição.
Você sabe como funciona uma agenda: os compromissos que
você não consegue fazer em um dia são remanejados para os dias
seguintes. Há quem escreva o mesmo compromisso na agenda du-
rante anos a fio. Por exemplo: parar de beber. Ou então: ser mais
paciente. O compromisso “cumprir a Constituição” está na agenda
dos juristas engajados. Esse compromisso é como uma espécie de
juramento bíblico. Não é a toa que, ainda hoje, testemunhas antes
das audiências são compromissadas a dizer a verdade. Esse negócio
de pedir a verdade chega a doer de tão mentira que é. Claro que
as testemunhas, por exemplo, prometem e, mesmo assim, mentem.
Umas vezes sabendo, outras sem se dar conta.
O sistema de crença das pessoas é um inferno cheio de mons-
tros sedutores. E a Constituição é o deus do sistema monoteísta
de crença da justiça. A Constituição é o guarda noturno que nos
protege contra o assalto de uma nova ditadura. Quem sabe o que
é uma ditadura e não é um imbecil que pede a volta dos militares,
sabe que uma ditadura é um osso duro e sem carne. Se você tiver
um tesão qualquer, você é torturado. Se você ser do contra em
qualquer coisa, você é massacrado. Vão enfiar um colar de arame
farpados em você. Agulhas embaixo das suas unhas. Comer seu cu
com um ferro quente. Mergulhar sua cabeça numa poça de merda.

41
Paulo Ferrareze Filho

O pior de uma ditadura é que você não pode dizer o que pensa.
E a gente sofre horrores quando não consegue dizer o que pensa.
A Constituição é um símbolo de transição: da impossibili-
dade para a possibilidade de poder dizer. É o medo de uma nova
ditadura que sustenta a adulação à esse deus-laico-jurídico que é
a Constituição. Será que daqui há 300, 400, 8.000 anos, os con-
gressos de direito ainda vão ficar ecoando discursos pedindo que a
Constituição seja cumprida para que nosso “projeto de civilização”
aconteça? E livros e mais livros nos estandes, com páginas e mais
páginas, e sumários cheios de títulos pomposos, todos, mas cada
um a seu modo, gemendo: efetividade constitucional – te quiero.
E aquele amontoado de condições previstas em artigos e
incisos e parágrafos dos códigos – todos agora constitucionaliza-
dos – para se fazer o Paraíso da Justiça na Terra, com passarinhos
assoviando e virgens de 20 anos rebolando as ancas?
O Alexandre Morais da Rosa um dia me disse que não se
pode ser iconoclasta dentro do sistema. Eu acho que se pode. Os
jogos (mortais) do direito são a prova de que uma boa estratégia
processual garante mais direitos que a Constituição. Isso faz dele
um juiz dos mais honestos que eu conheço. Que admite a huma-
nidade caótica implicada na ideia fajuta de que se pode interpre-
tar de modo correto a Constituição. No fundo, há dois grupos de
pessoas que pedem o cumprimento da Constituição: os que tem
medo de dormir com medo que a ditadura volte, e os papagaios de
pirata, que repetem aquilo que os caras com medo falam, sem sa-
ber exatamente porque falam. Claro que ninguém quer ser enfiado
num camburão de madrugada, de pijama e remela no olho, abaixo
de pauladas na nuca. Mas irmãos, escutem: o fato de termos tido
um ditadura em 64, não significa que venhamos a ter outra nos
mesmos termos, torturas e horrores.
Precisamos parar com esse clichê de universitário revoltado
que diz que é preciso conhecer a história para não repeti-la. Coi-

42
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

sa sonoramente chata. Esse tipo de frase é mantra de professor


enjoativo. À exceção de uma minoria de pulhas, ninguém mais
pede para que os militares voltem – meia dúzia de moralistas
com tetas caídas, mesmo entre aqueles idiotas que vão com a
camisa do Brasil na frente do MASP pedir a volta do valor da
“família” (margarina).
O que quero dizer é que apesar do Moro ser um narcisista e
provavelmente alguém com problemas mentais, ele é autocons-
ciente de que desrespeita as regras do jogo constitucional. Mas
a questão é: precisamos garantir as garantias à unha por medo
de que a ditadura volte? Jovens, a ditadura acabou. Não voltará
daquele jeito. Se voltar, será melhorzinha. Até as ditaduras ama-
durecem. Hoje mesmo vivemos uma que é a do consumo e poucos
conseguem arrefecer os efeitos dela na fatura do cartão de crédito.
Poucos são autoconscientes da ditadura do consumo. Uma famosa
de instagram come um pastel de carne num lugar e em poucos dias
a pastelaria começa a vender mais... A mesma velha moribunda
que segura uma faixa pedindo a volta dos militares é torturada
por autoritarismos mil introjetados espertamente no sistema de
desejos de consumo dela.
Os juízes decidem como quiserem. Se você não entender que
é assim vai morrer de câncer. Não se trata de resignação, mas de
observação. Por exemplo, uma pergunta: e só uma pergunta, sem
tentativa de induzir resposta: será que os índices de corrupção vão
aumentar, se manter ou diminuir depois da Lava Jato? Será que
que os índices de corrupção e de criminalidade vão aumentar, se
manter ou diminuir depois da possibilidade de enjaular os caras
depois da 2a decisão?
A Constituição diz que se deve presumir a inocência até o fi-
nal, assim como Deus nos diz para não cobiçar a mulher do próxi-
mo. Atentar contra esses preceitos é pecar contra a ordem de uma
sociedade justa e contra os mandamentos do poderoso chefão dos

43
Paulo Ferrareze Filho

Céus. Promessa feita, compromisso assumido, a vida começa a


acontecer. Ready! Set! Go! Você prometeu. Jurou na frente do
padre, assim como o Brasil fez em 88 no Congresso. Você tem que
ser imune a todas as bundas. Nenhum juiz do Brasil pode ferir ne-
nhuma das garantias do artigo 5o. Mas aí uma aparece uma bunda
dura, deliciosa, sadia de verdade numa calça legging última gera-
ção. A bunda vem vindo, aterradora, abissal, tsunâmica. A vida
começa e, com ela, os processos demoram, os ricos ficam soltos
com embargos declaratórios e regimentais. É duro dizer isto, mas
é necessário: assumir um sim-à-vida é permitir que a Constituição
seja descumprida. Essa paridade entre a ideia Deus e do Estado,
e, em paralelo, da bíblia e da Constituição, deveriam fazer com
que, por coerência, todo crítico à metafísica refutasse também a
metafísica jurídica que tem na Constituição a cartilha de uma
sociedade de santos. O cara que vai na igreja todos os domingos e
aplaude o STF descumprindo a Constituição é, no mínimo, bipo-
lar. Há muita gente bipolar entre nós. E até contra eles é preciso
jogar. Mas observem constitucionalistas: minha crítica não é à
Constituição, mas à ideia de que ela possa nos salvar e instalar a
justiça entre nós.

44
9. Narrar Direito

Misturar direito e literatura levou José Calvo González, fi-


lósofo e Juiz espanhol, a propor uma Teoria Narrativista do Di-
reito12. Para responder à pergunta: por que uma Teoria Narrati-
vista do Direito? é preciso lançar um olhar curioso para o medo.
O medo do desconhecido, instinto que a psiquiatria designou
de misoneísmo, é a necessidade que sustenta o princípio da se-
gurança jurídica, uma história da carochinha que a maioria dos
professores conta nas faculdades de direito por aí. A segurança
jurídica é o medo disfarçado de terno, gravata, abotoaduras e um
relógio de free-shop.
Querendo controlar o animal selvagem que é a decisão judi-
cial, é que se dão os maiores esforços das teorias da interpretação
jurídica. A necessidade de reinvenção de uma “teoria” da decisão é
o mesmo que um tiro no pé, com a diferença de que os tiros no pé,
em geral, são dados sem querer, enquanto as teorias da decisão são
autoconscientes... Pretender uma teoria da decisão é autodecretar
a incapacidade de uma teoria da decisão.
Para José Calvo, pretere-se a narrativa dos fatos em detri-
mento das adequações estruturais da norma. Em outra palavras, o
que Calvo sustenta é que a teoria e a jurisdição se detêm justamen-
te onde o direito não está, ou seja, na norma. Daí porque, pensar,

12 Ver, entre outros, GONZÁLEZ, José Calvo. Modelo narrativo del juicio de hecho:
inventio y ratiocinatio. In: Horizontes de la Filosofía del derecho – Homenaje a Luis
García San Miguel. Universidad de Alcalá Ed., 2002; GONZÁLEZ, José Calvo.
Derecho y Narración – materiales para una teoría y crítica narrativista del Derecho.
Barcelona: Editorial Ariel, 1996; e GONZÁLEZ, José Calvo. El discurso de los hechos.
Editorial Tecnos: Madrid, 1993.

45
Paulo Ferrareze Filho

antes, a coerência das narrativas fáticas e, depois, a coerência das


normas segundo sua criteriologia.
De que vale ponderar normas ou encontras respostas consti-
tucionais se a arbitrariedade originária pode estar, justamente, na
conclusão fática a que chega o julgador?

46
10. Como se Pode Narrar
uma Decisão Judicial

A teoria da decisão judicial é atravessada por uma aporia


incontornável. Se de um lado, parece idílico, no atual estágio, ex-
terminar por completo a discricionariedade da decisão judicial,
embora não se desista; de outro, o samba-do-crioulo-doido herme-
nêutico, que faz do é-porque-é fonte do direito por excelência, tor-
na a atividade judicante um jogo. Esse jogo requer dos seus jogado-
res destreza, estratégia e sorte, elementos que passam ao largo do
ensino jurídico professado nas escolas de graduação e das teorias
hermenêuticas salvadoras que existem no mercado consumista e
narcisista do direito.
Claro que essa discricionariedade fode com direitos e garan-
tias. Os dramas que envolvem a construção de uma teoria da de-
cisão judicial estão presentes tanto nas (i) narrações do fenômeno
jurídico feitas em âmbito acadêmico, quanto na narratividade, que
é materializada na (ii) atividade judicante, por todos os que parti-
cipam do processo judicial (desde a narração do Poder Legislativo,
passando pela prática narrativa dos profissionais que atuam repre-
sentando as partes nos processos, até a narratividade dos julgado-
res nas decisões judiciais).
Na academia, digladiam-se diferentes narrações do fenôme-
no jurídico que oferecem aos juristas um manancial de instrumen-
tais teóricos acerca da decisão judicial que prometem, lado a lado,
o controle (ou amenização dos efeitos) da discricionariedade.
Nos foros e tribunais, o drama da discricionariedade se mate-
rializa tanto por conta da ignorância do senso comum dos juristas,
como pela utilização retalhada das propostas de interpretação e

47
Paulo Ferrareze Filho

aplicação presentes nas teorias contemporâneas da decisão judicia.


A primeira, pelo fato de, definitivamente, não se ancorar decisões
em teoria nenhuma. A segunda, por não se inserirem as condicio-
nantes da pré-compreensão e do inconsciente que se antecipam ao
dilema da discricionariedade na atividade jurisdicional.
Essa pulga-atrás-da-orelha de todo jurista foi o mote para que
José Calvo, estudioso da intersecção direito e literatura, utilizasse
a teoria literária para fazer com que a decisão deixasse de, paranoi-
camente, buscar Verdades Maiúsculas, para, a partir das narrações
produzidas lado a lado no jogo do processo, pudesse extrair, não
Verdades, mas verossimilhanças narrativas.
A Teoria Narrativista do direito proposta por José Calvo está
inserida na dimensão interdisciplinar de estudos de aproximação
entre o direito e a literatura e se filia à noção de um direito on-
dulado, que busca amenizar a rigidez do direito tradicional por
meio de propostas de inserção de características como a flexibi-
lização (Carbonier) e a ductibilidade (Zagrebelsky). Ela se situa
precisamente dentro de um dos sintagmas gramaticais que, segun-
do Calvo, funcionam como pontes capazes de articular o jurídico
e o literário. Muito embora se possam contemplar as perspectivas
do Direito na Literatura e do Direito da Literatura, é o Direito
como Literatura que aproxima a narratividade literária da decisão
judicial, pois apresenta os produtos jurídicos como criações literá-
rias (literatura legislativa, judicial, doutrinária outras) e submete
a perspectiva metodológica de cânone literário à análise crítica e
compreensiva dos discursos, das experiências, dos critérios inter-
pretativos e construtivos jurídico-dogmáticos.
Essas novas virtudes revelam a elasticidade, a adaptabilidade
e a fluidez como propriedades ou condições das formas figuradas
do direito contemporâneo. Para Calvo, tais características “des-
tacaram parâmetros figurativos do direito que a purificação do
normativismo jurídico kelseniano havia ocultado e, desde logo,

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Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

impedido. Foi, nesse ponto, precisamente, que a linha reta do di-


reito começou a riçar-se, de modo a formar uma linha ondulada.”13
A Teoria Narrativa do direito desloca a ênfase geralmente
dada à decisão judicial, que se preocupa, antes, com uma coerên-
cia de caráter normativo, e não com a coerência das narrativas
feitas pelos jogadores. Dito de outro modo: Calvo percebe a over-
dose de teorias acerca da norma jurídica e a carência da análise
dos fatos do processo judicial.
Assim, a coerência narrativa dos fatos no processo judicial é
o produto jurídico extraído a partir do uso da narratividade, que é
um instrumento originariamente literário.
Como uma fábrica de relatos, a análise da produção dos tex-
tos elaborados pelo Poder Judiciário e da narratividade aí embuti-
da, segue a trilha das demais teorias da decisão, já que pretende,
igualmente, constituir-se como tentativa de controle do poder de
arbítrio do julgador.
Ainda que parcialmente conhecida no Brasil, a hipótese
da justificação judicial, a partir do conceito de coerência narrati-
va, transformou-se ao longo da obra de Calvo. Na obra Derecho y
Narración, o autor afirma que a coerência narrativa se relaciona
com a teoria da argumentação jurídica, para proporcionar o de-
senvolvimento da atividade jurisdicional como teste de verdade ou
probabilidade nas questões de fato ou dos fatos controversos que
carecem de uma prova diretamente observável. Uma vez que “a
verdade não pode ser dada”, cabe ao produtor da verdade a tarefa
da redescrição, como sugere o filósofo Richard Rorty14, dado que
a linguagem, além de sustentar o ser-no-mundo, dá sustentação
ao próprio mundo. Rorty se aproxima de Calvo tanto pela simili-
tude que a proposta de redescrição tem com a de narratividade,

13 GONZÁLEZ, José Calvo. O Direito Curvo. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2013.
14 RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Editorial Presença: Lisboa, 1992.

49
Paulo Ferrareze Filho

quanto pelo fato de que Rorty, assim como Calvo, percebe que a
cultura literária, muito mais do que a ciência, oferece uma multi-
plicidade de alternativas para ampliar os vocabulários capazes de
redescrever e narrar os fatos, estejam eles ou não dentro do espec-
tro jurídico. Além disso, quando Calvo elogia a verossimilhança
como pressuposto de validade da coerência narrativa nas decisões
judiciais15, também se aproxima de Rorty, para quem a redescrição
é a narração fragmentada de uma verdade que está condenada à
parcialidade de quem a descreve.
Calvo afirma que “um enunciado fático acaba sendo discur-
sivamente coerente como resultado, também, do influxo de subsis-
temas de sentido como são a memória individual ou os imaginários
sociais.”16 E desse complexo processo se fazem decisões, embora,
na maioria das vezes, não se saiba.

15 GONZÁLEZ, José Calvo. El discurso de los hechos…, p. 75-77.


16 GONZÁLEZ, José Calvo. O Direito Curvo..., p. 38.

50
11. Caos

A crença fixa de que o constitucional e o inconstitucional


representam, juridicamente, o moralmente bom de um lado, e o
moralmente mal de outro, coloca o direito em um manicômio.
Algo do tipo ter-que-usar-remédio-faixa-preta. Para os remédios fai-
xa preta não há outro jeito: ou se tem que subornar o farmacêuti-
co para que venda sem receita, ou se tem que comprar a receita,
pagando, antes, o médico. Se nada disso der certo, o jeito é apelar
para um placebo, que é quando não se tem a capacidade de enten-
der que se está definitivamente enganado. E louco.
Seja como for, nenhuma doutrina psicojurídica tratou dos
métodos para ajudar juristas a enfrentar, no dia a dia, o fato de
ter que trabalhar em uma instituição doente como o Judiciário e
a (louc)academia jurídica. Para manter a sanidade em um lugar
doente, é preciso treinar habilidades. E fazer meditação. A maioria
prefere encher a cara no final de semana, ou usar remédios pra
dormir, que são drogas que dão menos problema com a Justiça e
com gente de moral intocada...
Uma perspectiva terrena do direito está ocupada com a saú-
de do técnico que trabalha no sistema operacional, e não com a
saúde do próprio sistema operacional. É preciso fazer uma psicolo-
gia social para o direito. E outra individual para os juristas.
Descer ao inferno do inconsciente é tarefa fundamental em
qualquer processo terapêutico. Para Jung, enfrentar o inferno psí-
quico (o inconsciente) é necessário se você não quiser permanecer
ressentido, mimado e fazendo-se eternamente de vítima. O caos
infernal da discricionariedade da decisão judicial é a permissão
que juristas devem conceder para que o bisturi corte a carne de

51
Paulo Ferrareze Filho

suas verdades. A discricionariedade é um caminho sem volta en-


quanto homens e mulheres julgarem uns aos outros. Pelo menos
até que a Apple não crie um aplicativo de Justiça que se possa
baixar no celular.

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12. Assim Falou a Inocência:
Apologia de Zaratustra à Presunção
Constitucional de Inocência

I
Aos 32 anos de idade, Ulisses abandonou sua profissão e foi
refugiar-se em um ermo, com pouco som, mas muita luz. Ali es-
cutou em silêncio os sons da grande boca do mundo. Gozou de
alguma paz enquanto conhecia meticulosamente o fato de que não
havia uma natureza intrínseca ou extrínseca, nem dos homens,
nem do cosmo, nem do direito, nem das ideologias, nem da lingua-
gem. Deus-se conta que nem mesmo a própria natureza, com seus
gorjeios, ondas e ventos tinha uma natureza que se lhe pudesse
chamar de própria.
Um dia sua paciência acabou e resolveu mandar aquele ermo
à merda. Levantou-se e foi tomar um café forte e sem açúcar com
o Sol, que era dono do ermo e, desde 1988, sonhava com um mun-
do melhor: “Ó grande Sol! Que seria de teu sonho, se não fosse o
medo de quem tu iluminas?”
“Há 28 anos vens até todas as janelas sonhar teus sonhos.
Durante todos esses anos, tomamos do teu supérfluo e mastigamos
tuas nuvens distantes da Terra. Escuta bem! Estou farto da tua
ingenuidade mentida. E farto dos teus sonhos – pois toda expecta-
tiva é uma frustração antecipada.”
“Quero doar e distribuir tua mentira vestida de paraíso até
que os sábios juristas voltem a levar as entranhas do homem a

53
Paulo Ferrareze Filho

sério, e até que uns pobres presos possam ensinar a liberdade re-
signada que há em suas entranhas.”
“Para que isso possa, devo remar em direção à profundidade
escura do mar. Tal qual tu fazes à noite, quando te escondes depois
que o mar acaba no horizonte para levar tua quentura até o frio
das escuridões. É a saudade do dia que torna a noite charmosa,
assim como é a saudade do sonho que torna o dia desperto.”
“Então me protege, ó olho sonhador, capaz de dar espe-
rança edênica até mesmo a quem a perde – numa desesperança
de amor, num desejo contido, numa jogatina perdida ou num
coma insuportável.”
“Abençoa a taça de vinho da vida que quer transbordar, para
que ele possa manchar as páginas do teu livro juvenil com as mar-
cas de uma vida viciada de vida”

II
Ulisses remou sozinho pelo alto mar, e quando ondas já não
haviam, sem deparar com homem, ave ou peixe, o mar se abriu até
que a terra pudesse, mesmo úmida, ser vista no chão. E da parede
imensa de água que se fez, encontrou um jumento marinho gigan-
te que se chamava Leviatã. Assim o bicho falou a Ulisses:
“Não me és estranho remador: passou por esses mares há
muitos anos. Chamava-se Ulisses; mas está mudado. Levavas nos
olhos a esperança de que um decreto constituído pudesse mudar
os medos, e nas mãos a espada enferrujada de uma revolução.”
“Mudado estás Ulisses; tornou-se adulto. E a ciência da vida-
-como-ela-é fez de ti um desperto: que queres – de novo – entre os
sonâmbulos do paraíso?”
Respondeu Ulisses: “eu amo o caos dos homens, e por
isso retorno”.

54
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

“Por que”, disse o jumento, “fostes ao ermo em solidão, se


amas o caos dos homens”?
E respondeu Ulisses: “só se ama grandemente o que se co-
nhece, e só se pode conhecer guardando distância, para que os
olhos circundem de todos os lados, e mesmo embaixo e em cima,
aquilo que amam”.
“Eu há 28 anos amo uma ideia” , disse Leviatã. “Não amo os
homens porque, para mim, são caóticos, incoerentes e sem integri-
dade. E porque não os amo, vendo-lhes papéis de esperança. Man-
tenho-me não à distância, mas acima deles, para que minha palavra
de ordem possa ir direto para suas moringas cheias de cabelos. Não
vás junto aos homens Ulisses, e, se fores, fica acima deles. Só assim
poderás ser visto. Por que não queres ser como eu: uma estrela aci-
ma das estrelas, uma centelha dominante sobre as centelhas?”
“E o que faz o Senhor no fundo do alto mar?”, perguntou
Ulisses. Ao que respondeu o jumento: “eu falo, digo, escrevo, pro-
fesso, repito, repito, repito: assim louvo a Deus. Falando, escreven-
do, professando e repetindo, eu louvo ao deus que é o meu Deus.
Mas e tu Ulisses, o que trazes de presente?”
Ao ouvir essas palavras, Ulisses bateu continência ao jumen-
to e disse: “Deixai-me partir para que a esperança do teu Deus
não me seduza.” – E assim se despediram um do outro, Ulisses e
Leviatã, rindo como riem dois idiotas.
Mas quando Ulisses se achou novamente só, assim falou para
o seu coração: “Como será possível? Esse velho jumento, em seu
barco portentoso, ainda não soube que a Constituição está morta!”

55
13. Seduzir o Rebanho

Para G. Deleuze, a jurisprudência é uma pulsão do sistema


jurídico que dá folego e mantêm vivos, a cada nova decisão, o múl-
tiplo e o contingente. Para Warat, por outro lado, acreditar que a
jurisprudência possa materializar a diferença em cada decisão é o
mesmo que acreditar nas desculpas que as adúlteras contam para
seus maridos fiéis quando chegam em casa tarde da noite, ofegan-
tes e enrubescidas de tesão e culpa.
Quando Deleuze elogia a jurisprudência como locus de ma-
terialização de cada parte do múltiplo, esquece que o fundamento
casuístico, realizado por quem está afundado em significados da-
dos de antemão, não cumpre com sua virtuosa tentativa de com-
preensão da complexidade.
A jurisprudência só é plural como conjunto. Como multipli-
cidades de (juris)produção de um mesmo julgador, a complexidade
é isolada, reduzida, vilipendiada pela constituição personalíssima
do círculo de compreensões de cada um que julga. Dito de outro
modo: ao se pesquisar a jurisprudência na internet, pode-se fa-
cilmente concluir que é múltipla, pois oferece variáveis infinitas
sobres assuntos iguais e diferentes. Mas, se se pesquisarem as deci-
sões de um mesmo juiz, percebe-se, antes de uma série de diferen-
ças, uma série de repetições.
Daí que imaginar a jurisprudência como multiplicidade é
esquecer o imobilismo mental do grande rebanho de julgadores.
Esse imobilismo comprova uma infantilização que nasce do fra-
casso de matar, psiquicamente, as referências ligadas ao Pai, de
acabar com o ideário das hierarquias e de superar a falsa noção
de que, a cada nova decisão, está-se diante de marco zero de

57
Paulo Ferrareze Filho

sentido capaz de alimentar a noção de imparcialidade que habita


o imaginário de quem julga.
A possibilidade de julgar representa a aquisição da potência
formal de realizar uma observação. Uma natural inflação do ego
de quem alcança êxito nos concursos públicos da magistratura,
tende a transformar a mera potência formal de realizar uma obser-
vação, em uma potência substancial de realizar uma observação,
ou seja, na capacidade empática necessária para julgar. Empatia
é uma capacidade mágica de amenizar os sentidos próprios para
indagar os sentidos que vêm do olhar alheio. Estar formalmente
apto não significa deter a aptidão necessária. O primeiro passo – a
aprovação –, muitas vezes, transforma-se em último, o que faz da
aprovação uma unidade de qualificação para julgar.
O risco desse ponto cego, que arranca um olho da esma-
gadora maioria dos julgadores em direito, é que a capacidade de
coerência na narrativa dos fatos e de coerência das normas em um
processo, depende da potência substancial de observar, e não só da
potência formal obtida com a aprovação no certame.
Observar é deslocar-se. Deslocar não significa descer de onde
se está, mas visitar vizinhanças, próximas e distantes. O sentimen-
to de vizinhança facilitado hoje pela internet, demonstra como o
fato social pode transformar fatos psíquicos.
Na medida em que se substituem genealogias por geologias,
altera-se eticamente a possibilidade de observação. A ética possí-
vel em qualquer julgamento é deter a possibilidade de deslocar-se
para a pele de quem é julgado, indagando seus motivos, analisando
a complexidade que o cerca, seus boicotes pessoais.
Quando as teorias da decisão são atropeladas diariamente
pela contingência caótica das decisões em cada Fórum ou Tribu-
nal, é preciso, além de criticar a incapacidade do julgador comum,
detectar a pouca força transformadora da crítica. A inflação do
ego de quem critica constitui uma agressão à inflação do ego do

58
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

julgador que foi aprovado no concurso. Esse é o alvo de uma me-


tacrítica necessária. O modo como a noção de ego é tratada pelo
pensamento oriental faz desse tema, portanto, um marco teórico
importante em qualquer pretensão ética de realizar críticas malan-
dras. Como crítico é preciso ser, sobretudo, um estrategista, algo
que, definitivamente, não sou.
Deslocando-se, o julgador poderá ver sua casa de sentidos a
distância – e dessa distância poderá ver como ela se assemelha,
por diminuta, às demais casas. Esse deslocamento é a virtude fu-
gitiva da potência substancial de observar. Daí a importância do
fôlego, do caminhar, de pernas grossas que sustentem um corpo de
olhos andarilhos e perspectivos. No Império Romano, os pretores
peregrinos eram julgadores ambulantes. Tinham, ao choque da
vista, a multiplicidade da rua. O julgador capaz de caminhar pela
internet (desde que transcenda a internet como mesa de bar sem
mesa, buffet de amigos, notícias sobre futebol e filmes pornô antes
de dormir), poderá ser uma reedição bem-vinda dos pretores pe-
regrinos de Roma, depois do fim das lágrimas sobre a lápide desse
direito. “Nos processos emancipatórios o sujeito não se constitui
autônomo como uma configuração fechada, precisa de um espaço
de relações com o outro. E a partir do outro, reconhecido como di-
ferença, que o sujeito descobre o sentido de sua própria identidade
como alteração de sentidos e desejos”, diz Warat. Também já foi
dito pela poesia de Antonio Machado: caminhante, o caminho não
existe, o caminho acontece ao caminhar.
Necessárias, portanto, críticas horizontais, pedagogias hori-
zontais e julgamentos horizontais. Uma crítica vertical só pode
modificar santos, essa raça de gente em extinção, se é que me
entendem a ironia. Críticas verticais são o mesmo que estar ape-
nas formalmente apto a julgar: no fim, ambas modificam pouco a
realidade que pretendem atingir. São produtos de balaio.

59
14. Aprender-se É Ensinar Direito

Talvez seja esta a razão por que não encontres a paz:


o excesso de palavras.
Herman Hesse

A experiência de aprender passa pelo caminho da humilda-


de. A humildade é a condição de possibilidade para que o ego,
minúsculo, ajoelhe-se diante daquilo que não sabe.
Fernando Pessoa diz que o espelho desgraçou a raça humana
porque fez com que o homem deixasse de se ajoelhar nas margens
dos rios para ver sua imagem refletida. Ajoelhar-se é perceber que,
mesmo que tudo se saiba, ainda assim, muito pouco se sabe (um
plágio bastante vagabundo do só-sei-que-nada-sei de Sócrates).
Sempre desconfiei de quem não consegue dizer que não sabe.
Assim como desconfio de quem berra altissonante: “EU SEI”. A
vida tem me ensinado a elogiar o silêncio. E também a admirar
os que ensinam em silêncio. Ver em silêncio uma velha corcunda
que caminha semimorta na rua, ver em silêncio como o poder vai
se tornando o combustível da vida, ver em silêncio o universo dos
olhos de alguém, depois que a gente é capaz de ter amado alguém.
Não se pode ensinar sem que antes se compreenda a alteri-
dade até suas últimas consequências beneficentes, curativas e po-
éticas. Entender que o charme do mistério é o de nunca se revelar,
também é um atributo de quem quer aprender. Isso torna o ensi-
nar não só um horizonte possível, mas um exercício horizontal. Se

61
Paulo Ferrareze Filho

for utopia, que nos faça caminhar. Eduardo Galeano escreveu essa
beleza sobre a saúde das utopias.

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos,


ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o hori-
zonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para
que eu não deixe de caminhar.

O aprender só se apresenta no silêncio de pensar e de sentir


o que antes se experimentou. Primeiro, é preciso ser uma testemu-
nha ambivalente. Logo se está autorizado à fala potencialmente
legítima de um encenar simbólico de professar. Todo professor que
não se percebe como ator não pode dizer nada legítimo. Quem
pensa ser o que é, mente. Só depois de autorizada uma fala legíti-
ma é que se pode penetrar nos sulcos selvagens, úmidos e mágicos
do silêncio. O símbolo, o mito, a metáfora são pontes que levam
o discurso em direção ao silêncio. Todo julgamento acontece si-
lenciosamente, porque todo julgamento é espelho de uma escolha
interna, sempre viciada por escolhas pessoais.
O julgamento só se produz quando altera realidades psíqui-
cas. Aprender é poder julgar, é exercício de autonomias que se
relacionam. É no símbolo que mora a possibilidade de o ouvinte
incrementar o saber com seus próprios ingredientes. Não há co-
nhecimento legítimo sem sincretismo com o outro. É preciso que a
carne doa e sinta para que se grave a tatuagem do saber. 
Aprender é estar nessa roda viva que tem o enunciar e o ou-
vir como condições do silêncio pedagógico. Para entrar na roda, é
preciso operar-se. Como se você fosse, ao mesmo tempo, o pacien-
te anestesiado e o cirurgião que segura o bisturi. Você está sozi-
nho na sala cirúrgica de um hospital criado pela sua imaginação.
Não há uma esquipe de apoio. É você que está ali, moribundo e
anestesiado. Assim como também é a sua intuição curativa que

62
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

está ali, fazendo os cortes e as costuras necessárias na carne con-


valescente. Só você pode se operar, e será preciso abrir-se com o
fio da lâmina, ver os músculos vivos, as vísceras pulsando, os ossos
recobertos pelas mucosas.
Operar-se é encarar essa realidade escondida. Ver o bruto
e o fantástico que existem por dentro. Ver a tragédia no espelho,
entender o sentido escorrendo entre os dedos e o sangue pela boca
bafenta incapaz de beijar. O confronto com a natureza bárbara é
uma das condições para ouvir e aprender-se.
Em geral, as pessoas odeiam tudo que não entendem. Se
não entendem, acreditam ser ou inútil ou idiota. Uns dizem que
é abstração demais. Outros dizem que é exatidão demais. Essa
arrogância é a miopia do processo de se tornar ouvinte. Não há
desperdício. Os idiotas da objetividade chamam de loucos os di-
ferentes. Os loucos padecem como eternos estrangeiros. Os que
pensam, pensam que sentir é bobagem. Os que sentem, sentem
que existe algo de errado e frio nos argumentos da razão. Os que
bebem não entendem a abstinência dos abstêmios. Os abstêmios
rezam para que os bêbados sejam salvos pela salvação fajuta que
já sorriu (?) a eles. As religiões pecam na origem do aprendizado
porque castram.
Instituir é uma tesoura para a alteridade dos significados. Os
paradoxos são os personagens estúpidos do conhecimento dos que
falam sem ouvir. São os que brigam com o mundo de fora porque
não suportam o confronto com o selvagem que está por dentro.
São margens que brigam pelo domínio da ponte, sem perceber que
o conhecimento é a coragem de enfrentar o rio selvagem que corre
e que urra logo ali.

63
15. Pedagogia Jurídica e Sedução

A educação é um procedimento, uma maturação, uma paci-


ência, um estado de latência pronto a irromper. Warat me ensinou
que a sensibilidade foi prostituída pelos processos pedagógicos.
Todo mostrar é uma castração, por isso a necessidade de fazer com
que o aluno seja, antes de uma sombra que se ilumina com luz
alheia, um descobridor de cores. O romance orientalista Sidarta,
de Herman Hesse17, indica que encontro com si-mesmo se dá com
um caminho tão personalíssimo que qualquer indicação de itine-
rário por alguém é engodo. 
O Manifesto do Surrealismo Jurídico de Warat mostra o va-
lor pulsante do inconsciente e sua importância no processo peda-
gógico. O inconsciente é a fonte de toda a sensibilidade e de toda a
razão. Sem dor não há criação, e sem criação não há possibilidade
que valha a pena se os destinos forem altos, onde o ar é rarefeito e
calmo. Aprender é, sobretudo, um desaprender. É a possibilidade
de permitir o intertexto, o plágio transcendente, aquele que se
apropria de percepções sem literalidade e sem o cancro da culpa.
Quem pretende educar precisa antes educar-se. Precisa tam-
bém desengatilhar os mecanismos cruéis da máquina da culpa
que carrega dentro de si. Quem educa deve se des-culpar. Es-
quecer a obrigação de educar por um querer-bem despropositado.
A academia, não só no direito, tem formado máquinas, androi-
des moribundos. Operadores que só conhecem soluções com os
escâneres da inteligência artificial. São como matemáticos que
precisam de calculadora para fazer operações básicas. Se a tecno-

17 HESSE, Herman. Sidarta. São Paulo – Ed. Objetiva, 2010.

65
Paulo Ferrareze Filho

logia nos facilitou a vida, no mesmo grau e fundura também nos


assassinou o pedaço bicho.
A figura de Ganesh é representado por imagens de um ser
mítico do Oriente que mistura feições humanas e animais. Pode-
-se dizer que a figura de Ganesh, assim como tantas outras da
mitologia, são símbolos de totalidade que lembram a herança ani-
mal, demoníaca e irracional que vive no sujeito. Demonstrações
da ambivalência da natureza humana.
Notável, porém, que a parte bicho do ser-humano tenha
sido condenado em praça pública. A animalidade humana foi
levada à forca pela história da indústria, da técnica, do raciona-
lismo, do capitalismo e das mercadorias dos sentidos. A overdose
é uma reação humana para todos os entusiasmos juvenis. A tec-
nologia foi esse entusiasmo.
Os saberes autorizados pela razão pegaram carona com o
processo educacional que se iniciou com a proposta de evangeli-
zação universal da Igreja Católica no medievo. A onipotência e
a onisciência do Deus católico se estenderam às Uni-versidades,
que inventaram um padre secular e a ele deram o nome de pro-
fessor. E o professor, de lá pra cá, teme a perda do emprego por-
que acaba como um intermediário entre consumidores e forne-
cedores de ensino. Se, no medievo, os padres seguiam a cartilha
de Deus com medo de irem para o inferno, hoje, os professores
seguem a cartilha do Consumo com medo de não poderem pagar
a conta do cartão de crédito.
Todo medroso é resultado de necessidades mal resolvidas: ou
de ir para o céu, ou de pagar as contas. O paraíso medroso da
maioria dos professores é assegurar que nada escape do polígrafo
chinfrim escrito durante as férias em Balneário Camboriú, ou em
qualquer outro lugar que entupa de gente no verão.
Mas o estudante de hoje, que se propõe a perder a nove-
la, a convivência com a família, a vagabundagem, os tesões da

66
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

juventude, já é um super homem em relação ao sujeito crescido


no paradigma das educações medieval e disciplinar próprias dos
regimes autoritários.
O autêntico estudante de hoje sabe, intuitivamente, mais
que muitos professores, porque sabe que só saber é apenas me-
tade do caminho. Sabe que precisa encontrar sozinho seu cami-
nho. Sabe que precisa de degustação para encontrar a comida
que mais agrade seu paladar exigente. Por isso, abre mão de todo
tipo de regurgitações teóricas. O estudante de hoje quer fruta
fresca, sabe que o futuro lhe cobrará criatividade, inclusive de
seu próprio paladar. Sabe que terá que ser referência – não a de
alguém, mas de si mesmo.
A carne, o choro, a meditação, o abraço, a sedução – eis o
que se inconscientizou nos processos educacionais. Sobretudo, a
sedução. Educação precisa de toque. E de orgasmos. Além de um
reajuste do salário dos professores que não dão sono aos alunos.

67
16. Como o Direito Pode Chutar Deus

- Você acredita em milagres


- Hoje não.
Do filme Amélie Poulain

Aliar arte e direito é uma maneira de pensar o direito para


além dos cursinhos esquizofrênicos que formam NÃO juízes, pro-
motores, defensores, delegados, etc. etc. etc., mas concurseiros
que, em geral, são circuncidados intelectuais, afetados que foram
pelo desejo-de-memória requisitado nos concursos públicos.
O concurseiro é um cagão de plantão. Todo concurseiro nas-
ce com a vocação de pagar contas (se bem que, nesse quesito,
estão todos fodidos!) – quase sempre de dívidas que (no fundo)
não precisaria ter. Depois da morte de Deus, estar salvo significa
estar com as contas em dia. Estabilidade é o norte da bússola dos
que morrem de medo de ser subjugados por um empréstimo em
qualquer um desses Bancos de merda.
Os filhos da geração I-phone vão escrever redações assim:
Quando eu crescer, quero ser concurseiro. E a famosa redação de
volta às aulas dos aristocratinhas da jurisdição vai ter este título:
Nos 3 meses das minha férias, papai ficou 2 comigo. Na democra-
cia do Brasil, juízes têm 1 mês de férias a mais que todo mun-
do. Claro que, na dimensão pessoal, meu comentário é invejoso
(porra, quem não quer ficar coçando UM MÊS INTEIRINHO A
MAIS?), mas, na dimensão coletiva, tem-se uma flagrante merda

69
Paulo Ferrareze Filho

fedendo aos quatro ventos. Será que os narizes se acostumaram


com o fedor a ponto de não sentirem mais?
Para a corja dos objetivistas da quantidade (as faculdades de
administração e de direito estão lotadas de gente assim...), a arte
é um grande saco de merda se rasgando, como já escreveu Buko-
wski, um dos maiores filósofos contemporâneos. Todo imbecil da
objetividade odeia arte. Aliás, tudo o que não se conhece parece,
a primeira vista, inútil. Tende-se a fazer um julgamento moral da
ignorância quando se rechaça aquilo que a capacidade de compre-
ensão não alcança.
Mesmo assim, as alianças do direito com a literatura, com
a música, com o cinema e com a poesia começam a pulsar tími-
das. A sopa de letrinhas do direito agora tem imagens, sons e um
gosto melhor. Por falar em sopa, visto exclusivamente como nor-
matividade, o direito é como aquelas sopas de hospital: sem gosto,
aguada e incapaz de produzir até mesmo uma cagada consistente.
O melhor ingrediente das sopas de hospital são as enfermeiras gos-
tosas que chegam com aquela bandejinha e uma cara de esperança
montada que pretende passar a ideia de que não vai morrer. Por
outro lado, visto como fato social, psíquico, político, econômico e
(por que não?) artístico, o direito é um banquete igual a esses que
a gente só come em casamento de gente rica.
Germano Schwartz foi um dos primeiros no Brasil a pensar
intermediações do direito com o rock18. Apoiado na teoria dos
sistemas de Niklas Luhmann, a pesquisa dele apontou as diver-
gências aparentes entre os dois temas. De um lado, o direito, pre-
ocupado em manter o status quo a partir dos efeitos na norma e,
de outro, o rock, como elemento transgressor e contrário ao esta-
blishment. Germano mostrou a influência que o rock brasileiro dos

18 SCHWARTZ, Germano. Direito e Rock: O Brock e as expectativas normativas da


Constituição de 1988 e do Junho de 2013. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

70
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

anos 80 teve no processo de construção do rol de direitos e garan-


tias fundamentais da Constituição de 88 (a palavra fundamental é
resquício do medo de que a ditadura voltasse, afinal, só os medos
sustentam coisas FUNDAMENTAIS...). Gente com mais autono-
mia dispensaria tudo o que é FUNDAMENTAL. Germano ainda
fez uma crítica ao rock contemporâneo – pós anos 2000 – em
função do esvaziamento das intenções políticas de bandas como
Restart, NXZero e outras tão ruins quanto essas.
Mas, de qual status quo se fala quando se fala de status quo?
Ainda que a norma pretenda-se fixa, estável e com efeitos re-
paradores para o futuro, em tempos de protagonismo do Poder
Judiciário, é inegável que há uma produção jurisprudencial que
em nada reproduz a pretensão de estabilidade, certeza e seguran-
ça – expectativas por excelência de todos os modelos dogmático-
-positivistas. Toda decisão judicial alimenta o caos no direito e
retira a possibilidade de que se fale de um status quo capaz de
se estender além da abstração da norma. O samba-do-crioulo-
-doido-hermenêutico torna o direito, via produção judicativa, um
discurso ambulante, acriterioso, instável, inseguro e tribal. Pro-
duto de um mosaico-recorta-e-cola feito, em grande escala, por
estagiários e por assessores.
O rock dos anos 80 antecipou os direitos da Constituição
brasileira porque a manifestação raivosa, própria do rock, encon-
trava naquela juventude tolhida de liberdade de expressão pela
ditadura, uma aliada privilegiada. Sem o interdito da ditadura,
qual será, hoje, a motivação da música de manifesto? Dostoiévski
sabia disso quando escreveu: Se Deus não existe, tudo é permitido.
Se o grande pai castrador da ditadura não existe, toda forma de
expressão acaba permitida. A proibição sempre foi a maior aliada
do desejo. Por isso que a mulher do próximo embala nossos de-
sejos (in)conscientes e é sempre mais interessante do que se tem.
Só a força de um interdito cruel e torturante é capaz de gerar a

71
Paulo Ferrareze Filho

quantidade de dor necessária para que a arte grite, ou conte, ou


cante, ou pinte. Arte e dor são irmãs que nunca puxaram o ca-
belo uma da outra. Num tempo em que sentir dor é auto-heresia,
não se pode pretender que o rock contemporâneo produza discur-
sos de ordem política ou social. Mas a pergunta é: para onde se
deslocou a arte de cariz político, social e filosófico nesses tempos
de relativização das proibições?
Meu pitaco é que não se pode mais compartimentar gêneros
musicais como se fazia nos anos 80. Renato Russo já dizia: o futuro
não é mais como era antigamente. Como exemplo privilegiado da
desconstrução dos escaninhos da música, penso nos Tribalistas,
uma das marcas da nova codificação do tempo em que vivemos.
Em 2002, Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown
juntaram-se. Um, poeta-rockeiro-com-jeito-de-sonso. A outra,
meio-MPB-meio-samba-de-raiz. E o Carlinhos Brown. Que além
de dancinhas de verão, inventou aquele instrumento musical para
a Copa do Mundo que caiu em desuso depois da derrota para a
Alemanha em 2014.
Os Tribalistas como a nova cara de uma subversão que só
poderia ser subversiva se não tivesse uma identidade diretamente
detectável. Cantaram a carnavalização, tema caro ao pensamento
de Warat, com a música Carnavália. Cantaram também o empate:

Eu não quero ganhar / eu quero chegar junto / Sem perder


eu quero um a um com você [...] Muito além do tempo
regulamentar. Esse jogo não vai acabar.

Esse trecho seria uma pontual epígrafe de uma pesquisa sobre


mediação no direito. Afinal, hoje, ninguém nega que, mesmo depois
do divórcio, é possível convidar a ex-esposa pra tomar um drink.
Os Tribalistas criaram um álbum no inicio dos anos 2000.
Depois, só em 2013, criaram o single Joga Arroz, que defende o

72
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

direito dos gays serem donos do próprio rabo. Dois anos depois
do julgamento procedente da união homoafetiva pelo STF, os
Tribalistas criaram. A arte reproduz ou antecipa a vida? Essa é
uma pergunta crucial de uma crítica bem intencionada que se
pode fazer ao trabalho do Germano, que é bonito e importante.
De 1988 até 2013, não se pode dizer com segurança se a resposta
se mantém intacta.
Minha análise é rápida. E inconsistente como um tiro que
erra o alvo porque a vítima escorregou numa casca de banana. A
grande novidade dos Tribalistas é terem sido criados para não per-
manecerem. Além disso foram deleuzianos quando trocaram gene-
alogias por geologias ao cantar a magistral Pé em Deus, Fé na tábua.
Essa é a explicação filosófico-musical de tudo o que se anda
falando por aí sobre mediação e métodos alternativos de solução
de conflito. Mediar conflitos é, sobretudo, destruir hierarquias e
fazer os envolvidos caminharem em direção às perspectivas de
novas geologias, ou seja, outros belvederes de sentido. A dester-
ritorialização dos sentidos representa a conquista da aptidão para
reconciliar afetos. Matar Deus, ou seja, eliminar o superior hie-
rárquico na empresa da vida significa estar livre para escolher as
novas geografias dos próprios desejos. Só a fé na tábua pode ajudar
a encontrar essas novas geografias do sentido desejante.
Será que os juízes têm fé na tábua? Será que eles deslocam seus
olhares perspectivos? Será que têm disposição de caminhar a outros
relevos de sentido? Eu, nem depois de um bule de chá de fita, consi-
go imaginar o rebanho de juízes mexendo suas bundas (de sentido)
do lugar (dos sentidos) onde estão. Poucos o fazem. Pouquíssimos.
Se eu acredito em milagres? Hoje, não.

73
17. Nelson Rodrigues e
Warat: Poetas Incorretos

Criticar é apontar o dedo para o lado que ninguém olha. Há


na inclinação do espírito crítico, a personificação de um traidor.
Perceber a traição como componente das relações humanas, o si-
lêncio como componente da enunciação e o esgoto como compo-
nente das cidades, é postular a poesia de uma negação. Os taoístas
orientais, conscientes da dinâmica incessante que reúne o podre e
o delicioso, fazem o sujeito ocidental, cego às ambiguidades funda-
mentais, comer a poeira que vem do Oeste do mundo.
Nelson Rodrigues postulou essa “filosofia da negação” por
meio de um autopersonagem que olhava uma trepada pela fecha-
dura da porta. Esse que olha sorrateiramente pelo buraco da fecha-
dura é, sobretudo, o transgressor de um interdito. Para Bataille, o
mundo que privilegia – quase que religiosamente – o trabalho, faz
dos interditos um meio seguro de excluir a violência.19
Em Nelson Rodrigues, o sorrateiro olheiro é alguém que pu-
lou um muro e que não sabe se no pátio invadido existem cães
raivosos. Alguém que se coloca afirmativamente diante da bruma
escura do encoberto. Alguém que não foge nem presta continên-
cia às feras. Essa potência viva e topetuda, esse redirecionamento
da lanterna do chão para a frente, é a afirmação de um próximo
passo que deve ser dado em direção ao devir-direito (Deleuze).
O encare da possibilidade transcendente, ou seja, a cogitação
de que a falibilidade do corpo é sinônimo de um erro fundante, faz
Nelson traçar uma linha de fuga quando dirá: a cama é um móvel

19 BATAILLE, Geroges. O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

75
Paulo Ferrareze Filho

metafísico! Como lugar do sono e do sonho, a cama é, ao mesmo


tempo, a sepultura do sexo e o útero rompido do corpo. A morte
da consciência e a petit mort do corpo ofegante reunidas no mes-
mo esquadro. Sonhar e gozar como mesma apoteose a confundir
corpo e consciência. É o caminho em direção à apoteose que irá
inspirar toda narrativa rodrigueana. A narrativa do gozo é recor-
rente em Nelson Rodrigues.
Primeiro, no êxtase do gol. O gozo do futebol como dester-
ritorialização do lugar comum do brasileiro, que se desloca de seu
estado de aparência cordial para um devir-animal (Deleuze) com
a apoteose do gol, revela a proposta de Nelson de reintroduzir a
animalidade, o negativo e a mentira numa sociedade domesticada a
negá-los. O êxtase do gol cria sentido pela sensação apoteótica, des-
colonizando o lugar de sentido não captado pela razão sistemática.
Segundo, no êxtase da traição. Ainda que a conhecida mu-
lher traidora de Nelson Rodrigues possa representar uma trans-
gressão, é a paixão pela sogra que faz do personagem rodrigueano
um anti-herói, alguém que restaura a mentira como parte inte-
grante da complexidade humana. Arroubar-se pela sogra, numa
teia de traições que começa quando o pai rouba do filho a noiva
prestes a casar, é transgredir. A sexualidade/afetividade que o ho-
mem desloca da mulher jovem em direção à sogra, revela a foto-
grafia do canto escuro evitado pela racionalidade jurídica.
Nelson, como Warat, restaura o negativo, o lunar e o yin –
torturados pela história da cultura patriarcal do ocidente. Ao abrir
mão das carnes durinhas do corpo da filha, o personagem de Nel-
son atira-se nas carnes flácidas da sogra, contaminando toda a
assepsia moral da burguesia brasileira. O anti-herói rodrigueano
dá um salto quântico: sensibiliza-se, pelo sentimento de vingança,
mais com a maturidade abstrata da mãe velha, do que pelo rabo
de saia que trepida embaixo da saia curta da filha.

76
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

Tanto a linha de fuga do gol com o gozo do futebol, quanto


do tesão com o gozo com a sogra, tornam a filosofia de Nelson
Rodrigues um escape da decência social. A ruptura da norma que
estabelece o pacto nupcial como necessidade, fruto do cristianis-
mo e da ordem burguesa, somada à negação da institucionalização
dos afetos é a palavra de ordem de Warat e de Nelson.
A curiosidade é a pulsão de um nascimento que se dará no
momento em que Nelson olha para o buraco da fechadura que
guarda o que não se trouxe à cena. Olhar o buraco da fechadura é
admitir o primeiro passo em direção à porta pela qual se pretende
ver o não-sabido. Há um certo voyeurismo nessa postura, já que
o voyeur é um sujeito que tem prazer por não participar do que
vê. O prazer do voyeur é metafísico, psíquico, intelectual. Não há
interesse nele em fazer seu próprio corpo gozar. Não seria exagero
dizer que o voyeur sonha acordado quando se delicia em ver. “A
contemplação do corpo nu de uma mulher só é possível dentro
de condições místicas”, dirá Deleuze em Sacher-Masoch. O voyeur
goza, portanto, em outra superfície, que não é melhor, nem além-
-corpo, mas outra, de geografia diversa. Ser outra é que faz com
que a postura escape da repetição.
Toda vez que os discursos jurídicos pós maio de 68 trataram
de minorias como mulheres, negros, gays, estrangeiros, indígenas,
usuários de drogas, deficientes ou animais, reconheceram a ne-
cessidade de construir uma unidade na complexidade humana a
partir da escuta dos gritos mudos da história.
Desde lá, atravessa-se esse penoso processo de inclusão. Há
gente ocupada com isso na prática e na teoria, como gostam de di-
vidir os chatos. O que ainda falta é des-culpar a maioria de menor
quantidade inventada pela história.

77
18. A Indigência dos Corpos

Depois que morrem, os indigentes são levados para o IML. O


IML fuça um pouco nas gororobas dos corpos e depois os enterra
numa vala coletiva.
Indigentes sofrem e têm prazer em abandonar tudo e todos.
O tesão deles é se tornar um estrangeiro, um outsider. Em geral
enchem a cara e dormem em qualquer beco. Não tomam banho
e matam a fome quando é possível matar a fome. Tocam punhe-
ta atrás dos muros, procurando um canto privado em um lugar
que, em tese, não é privado. Um indigente é indigente, sobretudo,
porque não tem uma família. Não ter família, em geral, fode as
pessoas. E o indigente é esse cara que não tem família. Ninguém
quer saber dele. É um solitário. Vai vivendo fugitivamente sem
deixar rastro. Não quer o passado da família, assim como a família
não quer o seu presente. Entre o indigente e a sua família – ou o
que sobrou dela – há um combinado não-dito, um acordo de cava-
lheiros afiançado por fios de bigode. Trata-se de um contrato não
escrito ungido pela gota pura da boa-fé.
Nietzsche escreveu uma frase avassaladora. Ela diz o seguin-
te: “onde encontrei algo vivo, ali encontrei vontade de poder.” Um
indigente, buscando o anonimato a todo custo, é o contrário da
vontade de poder avassaladora e narcísica que se manifesta como
um enxame de abelhas na vida pública wi-fi. A vontade-de-apa-
recer, inserida como fatia da vontade-de-poder nietzschiana, es-
conde, portanto, um desejo instintivo, ocupado unicamente com

79
Paulo Ferrareze Filho

seu fim. Adolf Adler20 disse que Freud não sabia nada com a his-
tória de Édipo. Enquanto Freud olhava para trás, pensando que
as ações são condicionadas ao passado, Adler pensou no instinto
de poder como conjunto de manobras condicionadas por um fim.
Uma teoria dos instintos, pode-se dizer, menos mimada.
Se, por um lado, o indigente é alguém que nega parte da
vontade de poder pelo anonimato, por outro, escolher a indigência
pode ser uma manifestação do poder de se tornar aquilo que se
deseja. Se o “Torna-te o que tu és” da Antiguidade até Nietzsche
acerta, é preciso perguntar: qual o exercício de poder que faz o
indigente quando resolve sê-lo?
Primeiro, penso o indigente como um réptil silencioso, maso-
quista e interior. E também profundo e vadio. Ele prefere o escuro,
antes da luz. O desaparecer ao mostrar-se. Prefere silenciar, e não
dizer. O charme do indigente é pertencer aos bastidores. O in-
digente é comandado pelo pensamento-de-bastidor: o artista que
ocupa o palco não é nada! O artista só acontece porque há uma
parafernália que o sustenta E é a qualidade do background que
determina a potência do show.
O indigente se exercita observando. Nelson Rodrigues tam-
bém observava. Com o seguinte detalhe charmoso: observava pela
fechadura da porta. Nelson era um filho da puta charmoso. É,
assim como Warat, uma espécie de indigente intelectual. O indi-
gente, além de negar o modo de vida regular (casa-trabalho-sono),
também os ritos fúnebres da morte. Abre mão do choratel melan-
cólico dos velórios. Assim como também passa batido pelo cortejo
de gente que vai levando o caixão dentro do cemitério. (Sobre
esse cortejo, uma nota rápida: só acredito em igualdade entre ho-
mens e mulheres quando as mulheres se oferecerem para carregar

20 Conforme JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2007,


p. 22 e seguintes.

80
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

o caixão. Ah, e também quando dividirem a conta do motel, com


a condição de que ambos tenham gozado).
Mas, voltando ao indigente, também é notório que ele não
liga para o túmulo, nem em ser enterrado ao lado da falecida mãe.
Ele quer uma vala comum. Se, aos olhos de todos, a morte é um
coroamento, o indigente é quem nega a coroa. Quer um apagar
de luzes imperceptível. Sai, literalmente, de fininho. Mas afinal, o
que rejeita o indigente quando nega o corpo, com suas necessida-
des vitais e seu enterro final?
Antígona21 é um relato mitológico sobre o respeito ao corpo
morto e todas as honrarias rituais que o acompanham. Quando
Etéocles e Polinices se matam mutuamente, lutando pelo trono de
Tebas, Creonte, depois de assumir o poder disputado mortalmente
pelos dois irmãos, estipula que o corpo de Etéocles deve receber
todos as cerimônias. O de Polinices, no entanto, deve ser abando-
nado aos abutres, funcionando como aviso aos estrangeiros que
tentassem se opor ao seu governo. Ainda que o mote da tragédia
não seja especular sobre o desejo de Polinices quanto ao destino
do próprio corpo morto, a pergunta sobre o desejo pessoal de cada
um sobre o próprio corpo morto ainda não foi bem feita. Não se
trata de doar ou não órgãos, ou de ser enterrado ou cremado, mas
de querer que o corpo seja tratado com indiferença. Há quem pos-
sa abrir mão do velório, da totemização do corpo, da sacralização
da cruzada de margens da vida para a morte. O corpo de um indi-
gente, assim como o de Polinices, não quer ibope.
Porque buscava o trono, em nada Polinices pode ser compa-
rado a um indigente. Senão em relação ao desleixo com o próprio
corpo que, depois de morto, ficou entregue às ordens institucio-
nais, que sequer indagaram, nem antes – e muito menos depois –,
sobre a destinação do cadáver, que é de propriedade de cada um

21 SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Martin Claret, 2012.

81
Paulo Ferrareze Filho

que o usa em vida. Polinices é diferente de um indigente porque


não imagina, e talvez nem queira, que seu corpo seja deixado a
esmo por aí. Já o indigente, como se sabe, quer que sua carcaça
seja descartada como um celular Motorola dos anos 90.
Antígona crava, na consciência coletiva do ocidente, a ne-
cessidade idiota de honrar a morte do corpo. A justiça pretendida
por Antígona, que roga pelo direito de enterrar o irmão, é a prova
do modelo de negação do corpo que sabota (inclusive) o direito
desde a Antiguidade. A tragédia de Antígona, ainda que reforce
a ambivalência da natureza humana, resvala ao sacralizar o corpo.
Contra o espírito gregário, o indigente é alguém que morre
sem lenço, sem documente e sem o cd do Caetano. O nome, tido
como patrimônio imortal de quase todo mundo, é também negado
pelo indigente. O desejo-de-anonimato é a vontade de poder de
unir-se à fantasia do Uno. Na cabeça do indigente, o anonimato
é o passaporte para o céu. O anonimato como meio. A miséria do
corpo como destino. E a salvação depositada na conta-corrente no
último dia de vida. Por TED, claro! Para que alguém possa ganhar
seus 14 reais a mais.
O autoabandono é um exercício de liberdade. Mesmo esque-
cido, o indigente sabe que alguém tratará de não deixá-lo apo-
drecendo morto por aí. Enterrar o corpo passa a ser, antes de um
ritual sagrado de louvor ao cadáver frio, uma faxina cotidiana.
O persistente louvor ao corpo é a prova final do capitalis-
mo liberal. O direito, quem faz o curso e quem é jurista, deve(ria)
saber que hoje, o direito fica de quatro, como uma puta velha e
barata, e acaba enrabado pela economia. Há bons livros sobre esse
assunto. O que gostaria de deixar registrado é que, boa parte de
uma nova consciência sobre o papel do direito pode ser refeita a
partir do momento em que, como indigente, fica-se mais liberado
desse apego ao corpo, esteja ele vivo ou morto.

82
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

Emil Cioran tem uma reflexão muito acertada, que diz tudo
o que não pude dizer: “Entre tanta mentira e tanta fraude é re-
confortante contemplar um mendigo. Ele, pelo menos, não mente
nem se engana: sua doutrina, se é que a tem, a encarna ele mes-
mo; não gosta do trabalho e o prova. Como não deseja possuir
nada, cultiva seu desprendimento, condição de sua liberdade. Seu
pensamento se resolve em seu ser e seu ser é seu pensamento. Sua
preguiça, de uma rara qualidade, faz dele um autêntico “liberado”,
perdido em um mundo de bobos e enganados. Sobre a renúncia,
sabe muito mais que numerosas de vossas obras esotéricas.”22

22 Vou ficar devendo essa referência bibliográfica. Não me processem, vou alegar
inocência até o cadafalso.

83
19. O Direito Não Sabe Rebolar

De acordo com Aristóteles, a mulher era um macho defor-


mado. Isso porque, aelas, faltava-lhes a alma. As artes plásticas
eram um reino proibido para esses seres desalmados. Em Bolonha,
no século XVI, havia 524 pintores e 1 pintora. No século XVII, em
Paris, havia 435 pintores e 15 pintoras, todas parentes de pintores.
No século XIX, Suzane Valadon foi verdureira, acrobata de circo,
modelo e pintora. Ninguém se espantou que ela fosse a primeira a
pintar homens pelados, afinal, só podia ser pancada da cabeça.23
Para Paulo Leminski, um dos fundamentos metafísicos do
patriarcalismo está no livro do Gênesis, na Bíblia, depois que o
Senhor Deus tirou uma costela de Adão para fazer a mulher. No
mito, há uma inversão da realidade, já que é o homem que sai da
mulher, e não a mulher do homem. Os antigos hebreus, o juda-
ísmo, o islamismo e o cristianismo são, fundamentalmente, pa-
triarcalistas. Jesus tinha uma espécie de harém pessoal. Jesus era
alguém que gostava de bacanais metafísicos. Era cortejado por um
monte de mulheres anônimas.

“Acompanhavam-no os doze e algumas mulheres que ti-


nham sido curadas de espíritos malignos e enfermidades”,
diz o Evangelho de Lucas. As mulheres não tinham acesso
às funções sacerdotais e, por isso, a castidade do homem-
-deus devia ser vencida pela eminencia de uma vida teó-

23 GALEANO, Eduardo. Espelhos. Porto Alegre, RS: L&PM. 2008, p. 237.

85
Paulo Ferrareze Filho

rica sobre a prática – apesar de um mestre zen achar exa-


tamente o contrário.24

Mesmo Medéia, na tragédia grega, tornou-se heroína por-


que atentou contra o patriarcalismo. Ficou eterna porque enca-
rou os barbudos com, no máximo, um bom buço. De Medéia até
hoje, mesmo depois de maio de 68, ainda há falos (ou pintos,
se assim ficar menos acadêmico) atrás dessas mulheres como a
Dilma e a Angela Merkel. Há uma (maldita) historicidade pa-
triarcal que permanece.
Século XXI, ano de 2014. Em um grande Seminário Inter-
nacional de Direito Constitucional, o mais bam-bam-bam do
Brasil, 36 juristas estavam por palestrar: 33 eram homens, e 3
eram mulheres.

24 LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski – 4 biografias. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013, pp. 207-215.

86
20. O Jurídico e o Jeito

O direito virou uma baderna. Basta participar do Judiciário


de algum jeito pra saber disso. São processos demais, informações
demais, folhas demais, gente demais, demandas demais, advoga-
dos demais, mega bytes demais.
Os recursos escritos, ou não são lidos, ou são lidos com pres-
sa, o que, quase sempre, é como não ser lido. O processo obedece
a um certo esquema de retribuição: uma parte retribui as farpas
da outra e vice-versa. Advogados retribuem falsidades pomposas
entre si e também com os juízes. Advogados retribuem, jogando o
jogo do processo25, com ou sem malandragem.
A malandragem é a virtude do advogado que se dá conta de
que só a malandragem não basta. Por isso a regra escrita, as pres-
crições idiotas da OAB e a CONSTITUIÇÃO FEDERAL não
valem muita coisa.
Esse esquema de retribuições é coisa antiga. As trocas e os
contratos, entre civilizações arcaicas de todos cantos do globo,
sempre se deram com retribuições, em geral de presentes. Os sis-
temas jurídicos, religiosos e econômicos, desde sempre, baseiam-se
na retribuição. Dos livros de autoajuda à filosofia e à física quân-
tica, o dar-para-receber sobrevive intacto. Ainda que a aparência
das retribuições tivesse um caráter voluntário, livre e gratuito, tra-
tava-se de uma obrigatoriedade forjada com uma regra não escrita,

25 Ver ROSA, Alexandre Morais da. O Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos.
Empório do Direito: Florianópolis, 2015.

87
Paulo Ferrareze Filho

portanto etérea, ética e interna. Que força existe na coisa dada


que faz com que o donatário a retribua?26
O jeito, carinhosamente chamado de jeitinho, vem dessa
pulsão arcaica das retribuições. Isso, no direito, não funciona en-
tre papéis. A petição em papel, dificilmente, dialoga de verdade
com as outras petições e mesmo com as sentenças dos juízes. Elas
são um fluxo impessoal de burocracias processuais. O ímpeto re-
tributivo só é estabelecido no momento em que se pessoaliza a
relação. Um conchavo com o advogado da outra parte ou uma
puxada no saco do juiz são jeitos extremamente funcionais. Uma
caixa de bombons ou um espumante de Natal, mesmo que seja
comprado em camelô, são mais eficientes que um recurso bem es-
crito. O agravo de orelha com o juiz é o Remédio Constitucional
entre os remédios constitucionais.
Na academia do direito brasileiro, o jeito está encravado.
Na academia só se respira se houver PUBLICAÇÃO. É preciso
PUBLICAR. Todo tipo de prostituição vale para PUBLICAR
qualquer merda. Há uma classificação das revistas científicas que
exigem regras de formatação dos textos: tantas páginas, sumário,
propósitos. Professores fazem alunos escrever e publicar com seus
nomes. Uma espécie de escravidão intelectual não prevista nos
direitos sociais da Constituição.
Um curso rápido de psicologia, um curso de vendas ou uma
terapia com um coaching valem mais que uma faculdade de di-
reito. Enquanto as faculdades de direito ainda estão indo, o jeito
já voltou. A obrigação de retribuir, para quem estudou o assunto
das retribuições, é uma dádiva. Coisa divina e, portanto, além
da razão humana.

26 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão de troca nas sociedades arcaicas.
Em Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro, Cosac & Naify, 2004.

88
21. A Era das Quantidades

Grandes empresas fodem a vida dos funcionários por conta


do atingimento de metas. Os Bancos, por exemplo, apesar das pro-
pagandas da TV remeterem o espectador a um paraíso de gente
que é sempre feliz, são campeões nessa arte de fazer a bondade
dadivosa esconder a crueldade das quantidades.
Não se vê propaganda de Banco que mostre o caixa eletrôni-
co de um shopping “EM MANUTENÇÃO”. Ou com aquela tela
possuída pelo demônio: “DIRIJA-SE A OUTRO TERMINAL”,
ainda que não haja OUTRO TERMINAL no mesmo shopping.
Não se vê propaganda de Banco com gente que não conseguiu
pagar a fatura do cartão de crédito. Ou com mulheres que andam
sem vontade de dar pro marido. Ou com aqueles velhos lentos
que precisam deixar o orgulho macho de lado e pedir ao neto que
pague, pela internet, as contas do mês.
Nos Bancos é preciso VENDER PRODUTOS. Vender
todo tipo de porcaria. Convencer o cliente. Seduzir o cliente.
Fazer vendas casadas. Enfiar goela abaixo do cliente sorteios
mais difíceis que a mega-sena de fim de ano. Em nome disso,
vale-tudo: depressões em massa, competição selvagem entre co-
legas, entrega de chocolate Talento para os mais demorados,
silicones explodindo em camisas com poucos botões. Os sili-
cones, aliás, são mais eficientes que MBA na FGV. Ou mesmo
trepadas, que fazem a economia andar no meio das trevas da
atual crise econômica.

89
Paulo Ferrareze Filho

No Judiciário e na vida a lógica é a mesma: julgar o máximo


possível de processos e gozar muito, consumindo coisas ou pessoas.
O paraíso está reservado para quem consome sem parar. E Deus
estará lá, fechando as contas do mês numa planilha excel.
O mundo ficou paranoico com essa coisa de ser eficiente
para ganhar dinheiro sem limites. E esquizofrênico. Esses dias
uma frase no facebook me deixou chapado. O cara escrevia algo
assim: “terceiro turno de trabalho, ficar rico ou morrer tentan-
do”. O mundo está com câncer. Por isso as quimioterapias estão
enchendo os bolsos dos oncologistas. Para a oncologia, quanto
mais câncer melhor. Quanto mais câncer, mais quimioterapia,
mais falta de apetite, e mais maconha. A maconha ainda vai
salvar o mundo. A legalização da maconha não escapa da lógica
da quantidade. Há gente demais que consome, há gente demais
interessada em tributar a venda, a gente demais interessada em
poder ganhar com a cura dos malefícios ou com os benefícios de
outros males.
Mas vou voltar a explodir dinamites nos Bancos pra ver se
gozo um pouco. Odeio Bancos. Advogo contra eles com tesão. O
engraçado de advogar contra Bancos é que as pessoas que defen-
dem eles num dia, entram com ações contra eles tempo depois. Os
Bancos são o retrato de um filho da puta que entrou sem pagar e
sentou no melhor lugar. O Banco sobrevive da ignorância e da mi-
séria dos outros. Os Bancos passam o conto do bilhete premiado
sem risco de ir pra cadeia. Afinal, o problema da vida dos idiotas
de agora, é que os moleques com 16 anos que são do mal, conti-
nuam soltos. Pobres idiotas. Só odeio mais os Bancos do que o
Judiciário porque os juízes não ganham por sentença feita. Se fosse
assim, a coisa seria uma Hiroshima bombardeada.
Na academia tudo é igual. O Conselho Nacional de Pesquisa
e a CAPES traçam uma estratégia quantitativa de produção. O
pesquisador é um operário intelectual empilhando parágrafos que

90
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

ninguém lê. Se Eric Hobsbawm estivesse vivo diria que a Era dos
Extremos se transformou na Era das Quantidades.
Eu vou tomar meu chá de fita VHS. E depois pra minha
sessão de Candomblé. Fumar charutos e receber espíritos. (O pa-
rênteses da epígrafe é meu.)

91
22. Juizite É Mais Comum
que Ovni no Céu

Organizando uma dessas obras jurídicas que reúnem um


monte de textos, de um monte de gente que precisa PUBLICAR e
justificar suas bolsas e os empregos ligados ao Estado, convidei um
juiz para compor a obra com um texto que, como os demais, muito
provavelmente ninguém leria.
Entre o convite e a espera do aceite, li um artigo do mesmo
juiz dizendo que era ridículo que eles, os juízes, não pudessem ex-
pressar suas posições político-partidárias por conta de um tal arti-
go da Constituição que fala sobre isso. O juiz dizia que era preciso
ter consciência de que eles, juízes, não deixavam de ser humanos
pela função que exerciam...
Achei engraçado o e-mail dele: juizfulanodetal@gmail.com.
Claro que não vou divulgar o nome porque suspeito que essa gente
participe de alguma seita secreta e passe a perseguir minha famí-
lia. Nunca vi nenhum email assim: faxineiramaria@yahoo.com.
br, ou puta300completocomcu@hotmail.com. O mundo fica es-
tranho se se suspendem uns conceitos pré-formados que a gente
carrega. Esse lance do e-mail do JUIZ, ou melhor, do J-U-I-Z fez-
-me lembrar um outro juiz trabalhista que escreve uma coluna va-
gabunda num jornal também vagabundo de Balneário Camboriú/
SC. O cara assina a coluna assim: Juiz Sicrano de Tal. Porque o
cara não escreve só – Sicrano de Tal?
Aos sensitivos, aos filósofos, aos psicanalistas e aos sábios
orientais-que-não-comem-carne, a palavra.

93
23. Julgar Quem Julga

Poderemos nós, juristas malditos, julgar os que julgam?


Poderemos nós, malditos, julgar o fato de que eles deixam de
julgar como deveriam?
Poderemos nós, malditos, invocar que cumpram a promessa de-
mocrática de assegurar o que se convencionou como fundamental?
Poderemos nós, malditos, deixar de perceber que a eles foi
negada a experiência com a maldição e que, por isso, o fundamen-
tal deles não é o mesmo fundamental angelical de um maldito?
Poderemos nós, malditos, antecipar-lhes a mensagem de que,
no conflito, reina uma maldição incognoscível que parte de suas
próprias mãos primitivas, pueris e ingênuas?
Poderemos nós, malditos, deixar de escutar a gagueira ansio-
sa daquilo que diz o julgador quando julga?

95
24. A Função do Orgasmo
no Direito Ocidental

Nenhuma civilização conheceu uma


sexualidade mais charlatã que a nossa.
M. Foucault

Coitados de nós que precisamos da mentira para amar.


Luiz Felipe Pondé

O homem ocidental tarda em média uns 8 minutos numa


trepada. Na Índia oriental, com o tantrismo, sabedoria milenar de
tempos arcaicos e matriarcais, uma trepada não é só uma trepada,
mas um complexo ritual que não necessariamente começa e ter-
mina. O sexo tântrico é um processo contínuo, sem começo nem
fim. Claro, um “processo” diferente dos nossos de juristas, sem in-
timações, oficiais de justiça e escreventes feias com inveja da juíza.
O tantra entende a vida como exercício erótico e como se-
xualidade contínua. Resumindo, afirma que o prazer sexual está
em tudo: lendo um livro, tirando cera do ouvido, no meio de uma
reunião, esfregando o clitóris numa boneca de plástico, comendo
uma lata de sardinha. Assim como os filmes pornôs são para maio-
res de 18, o tantrismo é para quem compreende além de uma certa
graduação, que não pode ser medida cronologicamente. É uma
espécie de experiência mágica do espírito. (Se nada disso estiver
fazendo sentido, é sinal de que você ainda é só o coelho da cartola.
Mas não se entristeça – todo mundo um dia foi esse coelho.)

97
Paulo Ferrareze Filho

Dá pra se compreender que hoje, com dois ou três empregos,


facebook, instagram, twitter, snapchat, whatsapp, LinkedIn, fi-
lhos, banhos, cagadas, almoços, reuniões e academia, sobre pouco
tempo para se fazer do sexo um ritual tântrico. O tempo para o
sexo é agendado e deve durar o necessário para que se goze.
A ejaculação precoce é, portanto, um fato ocidental. O gozo
é um compromisso com hora marcada e, por isso, um ponto de
partida para pensar o sujeito jurídico do ocidente. O desespero
pela quantidade e, o que é pior, pela exposição dessa quantidade,
tornam a coisa horrível. O que pode ser pior que uma ejaculação
precoce? Talvez uma broxada.
Além do desespero pela quantidade e sua exposição, há ou-
tro: o de ser causa do gozo alheio. Muito broxante a ideia de que
devemos nosso gozo a alguém. Imposição de culpa que não cabe
entre lençóis. Ideais de altruísmo e culpa devem ser reservados ao
espaço religioso.
Cláudio Pfeil fala que “os gatos sempre nos fascinaram e conti-
nuam a nos fascinar. Mas por que os gatos nos fascinam tanto? Eles
nos fascinam porque não estão numa relação de demanda, de espera
em relação ao seu dono. Eles são domésticos, mas não se deixam do-
mesticar. Desde sempre são a imagem da independência, da liberdade,
do gozo. O gato está sempre a nos dizer: o meu gozo, eu não devo a
ninguém!”. Miemos e ronronemos, pois!
Com a pressão pelas quantidades e a espetacularização do
gozo, corre-se o risco tanto da ejaculação precoce quanto de bro-
xar. Se o mundo broxar, não há útero que salve a humanidade.
Por isso, é preciso reestabelecer contato com o masculino medroso
de hoje. Dar um F5 nele. Os antidepressivos fazem o tesão macho
despencar. Ter que tomar antidepressivo é, portanto, uma espé-
cie de broxada forçada que se deve dar para que o sujeito não
fique com a sanidade comprometida. O engraçado é que a Era
das Quantidades e do Altruísmo Inventado está acabando com

98
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

o tesão do mundo. O sexo exposto tem feito com que o sexo em


si, geralmente guardado para o espaço privado, ou broxe, ou goze
rápido demais.
Claro que, no direito, as consequências são horríveis, como
o leitor pode imaginar, afinal, os juristas também amam, apesar
de trepar pouco. Quem não transa com alguma regularidade,
geralmente é insuportável. Os cartórios e as varas (afinal, quan-
do vamos mudar esse nome: varas?) estão cheias de gente assim.
Funcionário público que faz sempre o mesmo trabalho, meca-
nicamente, por vinte, trinta, quarenta anos, ou é insuportável
porque já não transa muito, ou então se agarra a alguma coisa:
marxismo, bichinhos de pelúcia, coleção de selos, ciclismo, ioga,
carros, seriados, torneios de canastra, boliche, mochilão, gastro-
nomia, literatura, filmes, camping, bebida, suicídio, satanismo,
caminho de Santiago de Compostela, dança de salão, parreiras
de uva, seitas evangélicas.
Quem não conhece alguma tia azeda que não transa des-
de que Ulisses disse que a Constituição de 88 ia salvar o Brasil?
Aquelas tias que, como a raposa das uvas verdes, lidam com sua
frustração sexual desqualificando ou moralizando o desejo dos ou-
tros. O mundo é injusto, hierárquico e patriarcal. Por isso, essa
castidade imposta atinge mais as mulheres. Elas sempre sofreram
mais com a própria sexualidade por conta de uma sacanagem da
história, por terem menos força nos músculos e por gozarem muito
mais demorado que os homens, que morrem de inveja disso e fize-
ram do pênis o fundamento da própria arrogância.
Que alegria contagiante é a marcha das vadias. Elas têm essa
função de democratizar o gozo livre do clitóris do mundo. Picha-
ções nos muros com inscrições do tipo: Meu clitóris, meu país, são
um alento. É um direito fundamental pichado num muro e não
escrito na Constituição. O povão entende mais os direitos funda-
mentais escritos nos muros do que na Constituição.

99
Paulo Ferrareze Filho

Em Viena, no século passado, reuniram-se, durantes alguns


anos, intelectuais que formaram o que ficou conhecido como Cír-
culo de Viena. Imaginamos esse tal Círculo de Viena como uma
reunião de velhos em pleno inverno europeu, fedendo a uísque e
charuto, e sem muito interesse em sexo. Wilhem Reich, que par-
ticipou desse círculo, escreveu um livro chamado “A função do
orgasmo”. Reich provavelmente deve ter se dado melhor com as
mulheres do que os outros tios do tal círculo.
Para Reich27, “a saúde psíquica depende da potência orgiás-
tica, do ponto até o qual o indivíduo pode entregar-se e experi-
mentar o clímax de excitação no ato sexual natural. Baseia-se na
atitude de cunho não neurótico da capacidade do indivíduo para
o amor. As enfermidades psíquicas são o resultado de uma pertur-
bação da capacidade natural de amar.”
Uma reviravolta só pode acontecer recuperando-se a sensibi-
lidade do corpo, liberto de noções classificatórias ou de categorias
maniqueístas e agonizantes. Warat reconhecia que o direito tinha
roupado o corpo dele porque sabia que a origem da justiça no oci-
dente passava pela negação do arrepio, do prazer e do orgasmo
livre. Agostinho, o monge chato do medievo, defendia que o sexo
devia ser feito sem prazer. Também Ambrósio, na Idade Média,
alinhou mil razões para sustentar o seu Discurso sobre a Castidade.
A sexofobia nasce patrocinada pelo diabo no medievo e resis-
te, ainda hoje, sustentada pelos discursos políticos de natalidade.
O sexo virou um negócio estético – uma modelo linda de revista
que é frígida na cama porque não foi educada pra ter prazer, afinal,
sexo descabela, faz suar, suja, gruda, borra e até tira maquiagem.
O jurista não foge do cabresto e é formado nessa mesma estrutura
de castração. O ímpeto por julgar vem da miopia em relação à

27 REICH, Wilhem. A função do orgasmo – problemas econômico-sexuais da energia


biológica. Círculo do Livro: São Paulo, 1990, p. 14.

100
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

própria sexualidade. Este instinto de dizer que “algo é...” vem de


um canto escuro, não sabido pelo jurista-tipo-normalpata. E todo
julgamento precisa dizer que algo é...ou que não é. E Warat sabia
que só as partes podem dizer, mas nunca um terceiro como o juiz.
É preciso se apoiar na mentira para que a política, o direito e os
relacionamentos fiquem de pé.
Estupradores, pedófilos, dementes sexuais e outros persona-
gens do direito penal são produto da incompetência humana com
o sexo, da teoria à prática. Uma civilização de analfabetos em rela-
ção aos poderes curativos das sensações laicas que vêm do respeito
ao tesão. São pedófilos latentes julgando pedófilos manifestos. E
dizendo no final: cumpra-se!
Daí se explica a delicadeza de elefante de alguns promotores
de justiça quando perguntam para crianças de oito anos se elas
foram ou não penetradas pelo pai bêbado e, se dessa penetração,
restaram fissuras anais. Apesar de crianças de 8 anos já saberem
onde fica o cú, em geral não conhecem a palavra “fissura”...Na
concepção técnica deles a criança deveria saber a distinção entre
encostar o pênis, penetrar ou tentar penetrar... Qual a pertinência
jurídica da penetração? Qual a diferença jurídica entre penetra-
ção, toque peniano ou só-a-cabecinha? Faltam teses de doutorado
sobre essas relevantíssimas diferenças conceituais para o direito...
Não há como não pensar nos conflitos sexuais latentes do opera-
dor do direito que se apega à perfeição do que é transcrito numa
ata de audiência, quando pensa que ela é um livro sagrado capaz
de vingar a maldade dos homens maus mediante a confissão pura
de criancinhas boas. Freud28, esse desconhecido da burrocracia ju-
rídica, em “Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, desvela
a existência latente da sexualidade infantil, informação útil para

28 FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Rio de Janeiro:
Imago, 1996.

101
Paulo Ferrareze Filho

operadores do direito que teimam em não encarar seus fantasmas


sexuais sedutores.
Quais os monstros sexuais de uma promotora que pergunta
para uma menina de sete anos, vítima de estupro gravado por câ-
meras, se ela havia gostado? Ou de um delegado que se diz tarado
por investigar crimes sexuais? Coisas assim acontecem todos os
dias, ora explícitas, ora veladas, na jurisdição brasileira e nos seus
órgãos de apoio.
De noite, caçadores lançam sobre o animal que encontram
um canhão de luz que vem de um celebrim potentíssimo. A luz,
diretamente nos olhos do bicho, além de iluminar o local, deixa-
-o estático, esperando pela bala da morte. É a luz em excesso que
causa medo e que o paralisa completamente, deixando-o indefeso
e coitado diante do caçador. O foco de luz colocado no grão do
olho da sexualidade ocidental também a deixa cega, parada e me-
drosa. Desumaniza. Afasta. Impede de ver. Impede de dar uma
boa transada tântrica.

102
25. Sentidos Estuprados?

Uma mulher sentada sozinha em um bar é a metáfora do


mundo. Há três possibilidades: 1o) Você pode não querer nada
com ela. 2o) Você pode querer, tentar e continuar querendo. 3o)
Você pode querer e poder. Se o nosso próprio desejo é escorrega-
dio e a possibilidade de satisfazê-lo nos escapa, o desejo do outro
foge absolutamente do nosso controle.
Os juristas que pretendem corrigir o direito, a decisão judi-
cial ou o problema-dos-direitos-humanos, para ficar apenas nesses
exemplos, com a sua TEORIA já deixaram o conhecimento escor-
rer por entre os dedos. No rastro do desejo de justiça eternamente
irrealizado, estão as marcas de sangue desse animal teórico ferido
pelas balas do pragmatismo.
Imitando a vida, a jurisdição é bafenta, incômoda, imper-
feita, caótica, ordinária, insegura, contingente, ambígua, feito
de homens sem paciência e prestes a explodir. Keanu Reaves, no
filme O Advogado do Diabo, ao preterir o poder e a fama, renun-
ciando aos grandes júris do escritório em que trabalhava, acabou
aceitando a publicação de suas fotos no jornal da cidade. Livrou-
-se de um buraco da vaidade, e logo caiu em outro. Dos palcos dos
júris aos palcos das colunas sociais. Renunciar é um recalque pelo
poder. A moral da história é que a vaidade, levada ao extremo,
pode sempre corromper.
A vaidade, antes de uma verdade, é um instrumento de con-
vencimento, uma intenção de conquista, um sedutor modo-de-ser
que, maquinicamente, ocupa-se de colonizar a atenção do outro.
Os sofistas foram os primeiros sedutores de que se tem notícia na
história do ocidente. Sabiam que verdades eram feitas através de

103
Paulo Ferrareze Filho

acordos entre mentiras sinceras, exatamente como são feitas as


sentenças judiciais.
É preciso ser um perito criminal para que se possa analisar
o sangue que escorre pelas teorias ressentidas que tentam tratar o
direito, incutir culpa e corrigir a prestação jurisdicional.
Esse livro é esse laudo pericial. Só que rasgado.

104
26. Levando o Direito nas Coxas

Há dois elefantes de Salvador Dalí numa sala de cristais. Um


é macho. O outro é fêmea. E na sala, está todo o direito que você
conhece: leis, uma constituição e juristas tomando vinho chileno
contrabandeado do Paraguai. Acho que o nome desse crime de
trazer vinhos do Paraguai chama-se descaminho, mas, como fiz a
faculdade nas coxas, melhor não garantir. Os elefantes estão ali,
desgovernados. A fêmea no cio. E o macho também.
Na sala de cristais, acontece um jogo de azar que é o direito.
É como se apostar na Loteria Esportiva: as chances de êxito estão
assujeitadas muito mais à sorte do que a alguma qualidade téc-
nica do time de futebol do apostador. Essa qualidade técnica, no
discurso politicamente correto do direito, denomina-se qualidade
epistemológica de petições e sentenças. Só que não. Explico.
Quem já viu aquele documentário da NatGeo mostrando a
produção frenética de coca-colas em lata, sabe que as produções
em grande escala exigem um sistema de controle de qualidade
hiper-racionalizado. Só assim, há garantia de que nenhuma lata
fique com um vermelho-não-coca-cola, nem com o número de
bolinhas de gás abaixo do ideal e por aí vai. As latas e a coca-cola-
-em-si, mesmo que minimamente imperfeitas, são descartadas pela
máquina louca de fazer cocas.
As latas de coca estão para as sentenças assim como os juí-
zes estão para o maquinário de uma fábrica de cocas. Isso porque
sentenças, assim como cocas, precisam ser produzidas em larga
escala. Há sede de coca assim como há sede de direitos. Há quem
odeie a democracia porque ela democratiza direitos entre pessoas

105
Paulo Ferrareze Filho

que não são iguais29. Assim como existe a lata de coca ideal, dizem
que também existem sentenças ideais. Às sentenças ideais pode-se
dar o nome de coerentes, ou de adequadas, ou até de justas, caso
a pessoa seja mais da justeza. Quando esse milagre da coerência
acontece, então o direito é levado a sério. E já há gente bastante
ocupada com isto – de que a coisa deve ser assim, e não assado.
A questão é que uma coca é coisa simples. Custa três reais e
se encontra em qualquer bodega suja. Mesmo um mendigo, com
uma hora de dedicação no semáforo, consegue derrubar uma coca
gelada na goela. Comparadas a uma coca, as sentenças são mais
aristocráticas. Primeiro, porque não se encontram em qualquer lu-
gar, só em foros, tribunais e, claro, na internet. Segundo porque
custam mais que 3 reais. Bem mais. Entre juízes com 2 meses de
férias por ano, assessores, estagiários sem 13o, luz, água, cafezinho,
prédios, folhas, algemas, sistemas informatizados e todo o diabo-a-
-quatro, a conta vai longe. E deve ter 10% do garçom de Tribunal
incluso. Quem já foi em sessão de julgamento em Tribunal sabe
que os desembargadores têm garçom particular.

– Mais um cafezinho, Excelência? Eles falam baixinho, pra


não atrapalhar.

Na plataforma brasileira da senzala no direito, serviçal que


fala baixinho um dia acaba promovido a gerente do cafezinho. Se
não é promovido, ganha um bolo e festa de despedida na aposen-
tadoria. E, se nada disso acontecer, acaba coroado, finalmente, no
velório: DESCANSE EM PAZ – TURMA DA 4a VARA. Aquelas
coroas de flores são horrendas e caras, mas ninguém pede des-
conto para a floricultura porque a morte deve ser respeitada. É

29 RENCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

106
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

a senzala servindo a Casa-Grande-de-Súplicas com cafezinhos e


cordialidade. O poder conquista até sorriso sincero.
A produção de sentenças é complexa porque é como se
cada partícula do processo de produção de uma coca fosse pen-
sada por uma pessoa diferente. Do xarope de coca ao encaixo-
tamento das latas. As respostas que a jurisdição dá a um mesmo
caso passam na mão de muita gente. O caso, no final, quando
está pronto para ser julgado, está esfolado, destruído e ninguém
mais lembra o que aconteceu direito. É como acordar de um por-
re de Drurys no dia seguinte.
A incomunicabilidade e mesmo a divergência dos juízes que
decidem um mesmo caso, conformam as virtudes da democracia.
Não sou contra a democracia, mas, considerando-se que as maio-
rias são feitas de gente idiota (basta ir num sertanejo universitário
e constatar com os próprios olhos), há que se pensar se a demo-
cracia é mesmo o melhor método de sociedade civil. Ainda prefiro
essa forma de governar a um cara querendo enfiar gente numa
câmara de gás, mas minha intuição apita dizendo que deve haver
outro jeito, mesmo que eu não saiba qual seja.
Estabelecida nos limites da razão humana, a tentativa de
empregar uma técnica para produção de sentenças é, justamente,
o tiro-no-pé tanto da prática quanto da teoria. O ter que JUL-
GAR sempre e mais – o CNJ importuna a vida de todos os juízes
preguiçosos30 e dos que demoram porque fazem sentenças arte-
sanais – isso me faz lembrar dos iogues orientais, que treinam
justamente para NÃO-JUGAR nada nem ninguém. Sou levado a
pensar que, teorizando o julgamento e julgando casos, a jurisdi-
ção está cagando fora do penico com o seu arremedo de democrá-

30 Sugiro que a preguiça seja arrolada como um direito humano e que vá para a
Constituição do Brasil. A referência teórica é LAFARGUE, Paul. O Direito à Preguiça.
3 ed. Ed. Achiamé, mas a minha preguiça é sempre prática.

107
Paulo Ferrareze Filho

tico feito, basicamente, com juízes playboys. Claro que, quando


um manobrista vira juiz, torna-se notícia. A massa de julgadores
é feita de gente mimada que foi criada em carpete.31
Aquilo que escapa à razão fica de fora de um sistema pro-
cessual que preestabeleça como um julgamento deve ser. Jung
percebia a psique como uma quaternidade, ou seja, um órgão
com quatro funções.32 Dividindo espaço com a função racional-
-pensante, estavam também as funções que cuidam dos senti-
mentos, das sensações e das intuições. É de se duvidar que um
sistema de julgamento que julgue homens e mulheres com QUA-
TRO FUNÇÕES, possa dar certo usando apenas UMA das qua-
tro. Talvez por isso, antiteoricamente, seja melhor levar o direito
nas coxas, talvez prescindindo dele. Claro que não se faz isso de
chofre. É provável que nunca funcione no ocidente, principal-
mente depois que as notas de dólar ocuparam o lugar do Deus
que morreu esganado pelas mãos de Nietzsche. Na China, há
registros de que a maioria das pendengas termina em câmaras
de conciliação antes que o processo judicial se inicie.33 Talvez
precisemos estagiar na China.
Educar as funções esquecidas pode ser uma maneira, a longo
prazo, de sair do buraco. Mas não há nada pior que o longo prazo
na Era da Ejaculação Precoce. Talvez seja preciso mesmo aprender
o tantrismo. Transar infinitamente para curar o direito. E fazer
mediações de conflitos logo depois do sexo, como se fossem o
cigarro do depois.

31 Ver estudo realizado por ALMEIDA, Frederico. As elites da Justiça: instituições,


profissões e poder na política da justiça brasileira. Disponível na Revista de Sociologia
e Política v. 22, n. 52, pp. 77-95, 2014.
32 JUNG, C. G. Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. Petrópolis - Rio de
Janeiro: Vozes, 2011.
33 ÁVILA FAGUNDEZ, Paulo Roney. Direito e Taoísmo – elementos para a compreensão
do sistema jurídico à luz do princípio único universal. São Paulo: LTr, 2004.

108
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

Warat dizia que os juristas precisam praticar ginástica emo-


cional. Quando racionalizo ou sonho com o direito, encontro sem-
pre Warat sentado ao pé de uma árvore coçando aquela pança
gorda que ele tinha.

109
27. Súmulas: Comer, Rezar, Amar

Edir Macedo, o pastor que aceita débito, crédito e parcela-


mento, construiu em São Paulo uma Igreja gigantesca. A cons-
trução tem 54 metros de altura. É maior que o Cristo no Rio que,
apesar de Bom, Belo e Justo, não dá conta de terminar com os
arrastões, o tráfico e os engarrafamentos de lá. É provável que
qualquer ovelha evangélica, ao pôr o pé no Templo de Salomão de
Edir Macedo, sinta-se intimamente temerosa, subjugada e forçada
a exercitar a humildade.
Medo, assujeitamento e extorsão da vontade última de po-
tência (Nietzsche), são as notas constitutivas do que se pode cha-
mar de arquétipo do jurista brasileiro. Como tendência, o arqué-
tipo é o acampamento mental das maiorias, lugar onde o senso
comum dorme, trabalha, transa e se diverte.
Freud34 postulou que as projeções internas de sacralização
remontam o medo original de desamparo, desde o momento em
que deixa-se o paraíso úmido e sem contas pra pagar do útero.
Daí que a sujeição aos grandes Pais invisíveis ao longo da história
ocidental – do Cosmos antigo ao Capital contemporâneo, passan-
do pelo Deus medieval e pelo Estado moderno, constitui-se como
reação inconsciente do medo fundante de seguir a escuridão de
um caminho sem milhos pelo chão. Essa vontade-pelo-Pai é, para
Freud, reedição do totemismo arcaico, que já antecipava a máqui-
na subjetiva de sentido das religiões instituídas.
Quando Nietzsche mata Deus está, sobretudo, interrogando
a necessidade psicológica de poder que se expressa nos discursos

34 FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. L&PM Editora. Porto Alegre, 2013.

111
Paulo Ferrareze Filho

metafísicos de autoridade, não só da religião cristã, mas também


do Estado, o novo ídolo que nasce na modernidade europeia. É
como se uma adolescente trocasse o Bruno Gagliasso pelo Cauã
Raymond por conta da última capa da Capricho. “Nada existe
sobre a terra que seja maior do que eu: sou o dedo ordenador de
Deus – assim ruge o colosso. E não apenas aqueles de vista curta e
orelhas compridas se ajoelham!”, diz o Grande Bigode.35
O dever de obediência é uma pulga velha atrás da orelha do
ocidente. Na Epístola de São Paulo aos Romanos (12, 1-7), está dito:

Que toda pessoa se submeta às autoridades superiores;


porque não existe autoridade que não venha de Deus e as
autoridades que existem foram instituídas por Deus. É por
isso que aquele que resiste à autoridade resiste à ordem
que Deus estabeleceu e aqueles que resistem atrairão uma
condenação sobre si próprios. Desejas não temer a autori-
dade? Pratica o bem e terás sua aprovação. O magistrado
é servidor de Deus para teu bem.

Burlar o valor dessa virtude metafísica de assujeitamento é


um exercício praticamente irrealizado no direito. O dever de obe-
diência às súmulas dos tribunais se insere como sermão entoado
por textos que ganham aspecto totêmico diante dos juristas. Pode
ser pertinente lembrar uma das características que Freud dá ao To-
tem: “espírito guardião e auxiliar que envia oráculos e, embora pe-
rigoso para os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos.”36
Outro dia, ouvi nos corredores da jurisdição, que o número
de decisões reformadas pelo Tribunal representa um dos critérios
para atravancar promoções por merecimento... Não sei se a infor-
mação procede. Se algum leitor, amigo ou inimigo do Judiciário

35 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. – São Paulo. Cia das Letras, 2011, p. 49.
36 FREUD, Sigmund. Totem e Tabu – Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 21.

112
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

quiser se pronunciar a respeito, sou grato desde já. Fato é que a


submissão ao discurso autoritário-do-Pai, algo que Pierre Legen-
dre37 já observou no livro O Amor do Censor, constitui o caminho
com menores custos pessoais. Uma questão fulcral que se coloca é:
assistiremos placidamente, como animais domésticos, a preguiça
privada se sobrepor aos deveres públicos?
A ficção de O Senhor das Moscas, de William Golding, mos-
tra a necessidade psicológica e infantil de instituir o lugar-do-Pai.
Depois de um acidente aéreo, um grupo de meninos encontra-se
perdido em uma ilha. A narrativa se desenvolve da civilização à
barbárie, já que o grupo de meninos, inicialmente organizado e
regrado a partir das virtudes democráticas, passa a assumir ca-
racterísticas pulsionais como o gosto pela caça, o desejo de matar
e os gritos de guerra. Na narrativa, esse processo de barbarização
está identificado com o “Senhor das Moscas” – figuração totêmica
instituída pelos meninos a partir de uma cabeça de Porco cravada
com uma estaca no chão que, rapidamente, é povoada por moscas
atraídas pelo cheiro doce do sangue. Há algo bárbaro e infantil na
necessidade-de-Totem, se se quiser seguir a pista de Golding.
Há quem diga que a submissão dos juristas aos pequenos to-
tens sumulares é uma postura adquirida por conta de um caquéti-
co habitus dogmaticus. Isso, na realidade, é preguiça. Há processos
demais. É preciso restaurar o debate sobre a overdose de processos.
As críticas feitas pelas teorias da decisão judicial são tão necessá-
rias quanto ressentidas, ou seja, formulam pílulas imunes aos cor-
pos gripados do senso comum. O senso comum, além de comum,
é preguiçoso. E não quer deixar a zona de conforto das súmulas
porque dói. É como recuperar um viciado em drogas: a condição

37 LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor – ensaio sobre a ordem dogmática. Colégio


Freudiano do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária: Colégio
Freudiano, 1983.

113
Paulo Ferrareze Filho

do êxito é que o doente queira ser tratado. Juristas não querem re-
cuperação pois não sabem que estão viciados em súmulas. Juristas
querem outras coisas. Querem viajar com as suas milhas. Querem
cafezinhos da Nespresso. Querem finais de semana em Punta. Mas
essa é uma outra história. Por enquanto, tratemos de converter em
Súmula a primeira orientação da doutrina maldita.
Súmula Maldita número 1: Usar súmula na jurisdição é
como pingar água benta nos dedos na porta de uma Igreja Evan-
gélica lotada de gente com esperança. Se é que me entendem.

114
28. Um Hambúrguer de
Carne Humana

No início dos anos 2000, numa sala de bate-papo na inter-


net, dois alemães incomuns combinaram um encontro. Quando
um visitou o outro depois que tudo estava combinado, fizeram
o seguinte: como uma HIENA NA CARNIÇA DE UM ANTÍ-
LOPE, um tentou arrancar o pau do outro com mordidas. Como
um pênis, ao que consta, é borrachudo e fibroso, foi preciso usar
uma faca de cozinha pra cortá-lo. Em seguida, tentaram comer
a carne de pinto crua, mas conta-se que estava algo intragável.
A essas alturas, o alemão sem pinto não se sentia muito bem.
Tontura. Hemorragia. Morte – nice to meet you. Resolveram fri-
tar o pinto com azeite, sal e pimenta. Ainda assim não ficou
tragável. Até que o alemão sem pinto, já muito tonto e com dor,
pediu que o outro o matasse, ao que foi prontamente atendido.
O alemão canibal que ficou vivo, decepou as carnes do parceiro
e estocou num freezer. Comeu mais de 20kg de carne humana
no decorrer dos meses.
Levado aos tribunais, o canibal alemão foi condenado. Na
época da primeira decisão, a Folha de São Paulo publicou a man-
chete com o seguinte título: “Canibal pega apenas 8 anos de pri-
são”. O “apenas” da Folha quer dar a seguinte sugestão ao leitor:
“puta merda, como um CANIBAL, pega apenas 8 anos de pri-
são?” Mesmo tendo sido condenado por crime culposo, a Promo-
toria alemã bradou pela pena máxima do Canibal: HOMICÍDIO

115
Paulo Ferrareze Filho

DOLOSO. PRISÃO PERPÉTUA! Isso só porque, desde Hitler,


já não há pena de morte na Alemanha. Pois foi o que deu: pri-
são perpétua.
O discurso senso-comum que resiste à assunção de uma pe-
dagogia pela autonomia, como pedia Paulo Freire, só prepondera
porque se retroalimenta: pais que ensinam medo aos filhos que en-
sinam medo aos netos dos seus pais. Gerações e gerações de gente
medrosa que se empoleira nos túmulos dos cemitérios.
O caso do canibal revela como o medo impede a constru-
ção de uma comunidade de gente mais autônoma. O descompasso
entre a aurora de um projeto civilizacional em direção à autono-
mia e a exigência do senso-comum-medroso pelo extermínio do
canibal, esclarece que ao Estado, como repositório das ideologias
medianas, cabe exterminar os desejos não autorizados, mesmo que
consentidos e incapazes de causar danos a terceiros.
É preciso conversar com os canibais habitam o homem para
poder absolver, intimamente, um canibal de verdade. A sensação
de pertencimento que se tem com a dor alheia é a baba de uma
moral mantida por gente ressentida. Com um pouco de despren-
dimento, um canibal e um amante de churrasco não são assim
TÃO diferentes. Quando duas autonomias consentem e não in-
comodam outras autonomias, dever-se-ia, antes de punir, estudar.
Estudar a diferença dos desejos humanos é o que construirá uma
comunidade de gente mais elegante.
Haverá hereges capazes de admitir que a vida pode ser um
circo ou um parque de suicidas ou um desprezível respiro entre
dois nadas? E serão ouvidos pelos que sonambulam pelo mun-
do? E se o louvor à Vida for apenas o grito de uma criança que
acorda subitamente na madrugada depois de ter tido um pesadelo
com monstros? Tantos mortos-vivos já ensinaram o caminhante
a andar com as próprias pernas – e a respeitar o passo de pernas

116
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

alheias. Mas, prostrados e horrorizados com um canibal, resta ape-


nas as requisições protocolares de enjaulamento. O que o direito
quer enjaular quando tira a liberdade de alguém que satisfez seu
desejo com outra pessoa que consentiu?

117
29. Direito e Masoquismo

- Se eu te pedisse para tirar a minha


virgindade, isso seria um problema?
Joe,
questionando um jovem rapaz no filme Ninfomaníaca

Perceber sintomas é o pressuposto da capacidade de narrar


fatos com alguma riqueza de detalhes e perspectivas inéditas. Algo
que poetas fazem como ninguém. A coisa dita está ali. Ninguém
a vê durante anos, milênios, uma vida toda. Até que um poeta
tropeça na coisa. Olha no fundo dos olhos dela e narra aquilo
que vê. Disso sai a arte de uma poesia. Toda poesia é a narrativa
do que ainda não tinha sido visto. O despercebido, do direito às
perversões sexuais, é uma tarefa da poética.
Para Nietzsche, os filósofos são médicos da civilização. De-
leuze acrescentou a este rol de médicos, também artistas e escrito-
res. É a partir da perspectiva de que a literatura narra os sintomas
da vida que escapam do olhar medíocre, que Deleuze vai refle-
tir, numa espécie de filosofia clínica, a literatura de Leopold von
Sacher-Masoch, autor que, agremiando características subjetivas
inéditas nos personagens de seus romances, batizou o que depois
se conheceu como masoquismo.38
Os impulsos desejantes dos heróis de Masoch, recorrentes
em obras como Vênus das Peles, A pantufa de Safo e A pescadora de

38 DELEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

119
Paulo Ferrareze Filho

almas, fazem dele o médico diagnosticador do masoquismo. Consi-


derado uma perversão sexual pela psiquiatria atual, o masoquismo
é conhecido por diagnosticar a relação entre dor e prazer, conci-
liando um par acostumado a ser, em tese, antitético. Os livro de
Masoch, junto com os de Sade, inauguram uma série de literaturas
subversivas na aurora da modernidade europeia.
Esse tipo de escrita foi usado para produzir um discurso psi-
copatológico com eficácia e significação tanto na psiquiatria e na
psicologia quanto no direito. É de se imaginar como o conserva-
dorismo moral do direito veio a incorporar, nas suas positivações e
prescrições, as relações entre sujeitos masoquistas. Seja por conta
das lesões corporais ou psíquicas, seja pelo contrato estabelecido
entre vítima e carrasco, seja pelo eventual canibalismo e até pelo
suicídio, o direito irá repudiar por completo o masoquismo, im-
pondo punições jurídicas a algumas práticas e morais a todas.
Amilton Bueno de Carvalho39 sempre lembra que o jurista
é um ser amaldiçoado. Depois que se é jurista, tudo o que se lê,
o que se pensa e o que se reflete, faz-se com o olhar de jurista. A
gente lê qualquer besteira do facebook e logo interpreta do ponto
de vista do direito. Isso é muito mais uma maldição do que uma
virtude. É engraçado ver alunos de 1o semestre do curso de direito,
no primeiro dia de aula, dizendo que estão ali para se tornarem
mais capazes de defender seus próprios direitos, para que não se-
jam “passados pra trás”. Eu fiz direito, depois mestrado, e ainda sou
passado pra trás, geralmente por juízes, mulheres e empresas que
vendem combo de TV + telefone + internet. A vantagem da pós-
-modernidade é que ela inventou o COMBO. A grande facilidade
dos combos é que se é passado pra trás uma vez só, já que telefone,
TV e internet fazem parte de um só pacote.

39 CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas – algo sobre Nietzsche e
o Direito. Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2012.

120
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

Essa certa desgraça de ver tudo sob o viés do direito me fez ler
a análise do masoquismo feita por Deleuze como um pequeno mapa
do direito no Brasil. Percebi semelhanças nas duas coisas – direito e
masoquismo, direito com masoquismo, papai-e-mamãe, mordaças,
um dando chicotada no outro. A conclusão antecipada poderia me
levar tanto a definir o direito como uma perversão, quanto aliviar a
culpa ínsita dos masoquistas com uma boa defesa jurídica.
No livro sobre Masoch, Deleuze desconstrói a unidade dia-
lética do sadomasoquismo, demonstrando que um sádico não ne-
cessariamente se junta, de modo perverso, com um masoquista,
como um leito costuma pensar. Assim como inautênticamente
se convencionou, na psiquiatria, a associação sadomasoquista;
no direito de hoje, há uma certa unidade moral entre a ideia de
justiça e aquilo que está prescrito na Constituição. Como se a
efetividade da Constituição fosse a condição para a realização da
justiça, o que, do ponto de vista social, poderia significar a insti-
tuição definitiva da felicidade do povo. A felicidade que nasce do
respeito integral das garantias constitucionais e da efetivação dos
direitos fundamentais.
Deleuze estabelece, além do binômio dor/prazer próprio da
estrutura sadomasoquista, outras quatro características funda-
mentais presentes nas relações masoquistas, a saber: 1) decência,
2) idealismo, 3) contratualismo/persuasão e 4) suspense. É a partir
dessas características que subversivamente associo o direito à prá-
tica masoquista nos textos a seguir.

121
30. Decência

A relação masoquista e o ambiente em que ela acontece são


marcados pela decência, pela educação e por uma certa organiza-
ção protocolar. Ainda que a aparência do ritual mostre a vítima
como lado fraco da relação, profundamente, sabe-se que é justa-
mente ela, a vítima, quem sopra as palavras duras de ordem para
que o carrasco as diga.
Subvertendo as relações tradicionais de poder e dominação,
marcadas pela supremacia física ou moral do forte sobre o fraco,
no masoquismo, a força moral da vítima é usada para que ela expe-
rimente a sensação de subjugação, tortura física e vexame moral.
Dito de outro modo, no masoquismo, o forte deseja experimentar
a miséria do fraco como uma espécie de gozo avesso, mesmo que,
para isso, tenha que experimentar rasgos na própria carne.
É no semblante de sua fraqueza que a vítima masoquista –
ou o herói masoquista, como dirá Deleuze – vai ditar as regras do
ritual. Como em toda relação vertical, a relação masoquista é atra-
vessada por um tom professoral e ritualizada em um ambiente em
que as regras do jogo estão sempre preestabelecidas. O jogo maso-
quista é revestido de uma certa sacralidade, exatamente como são
as regras numa sala de aula inspirada no formato escolástico das
catequeses. No masoquismo, assim como no direito, a decência
está no fato de que as regras só podem ser modificadas ou com a
nobreza de um novo consenso ou com um rígido, burocrático e
seguro procedimento legislativo.
As cenas masoquistas do filme Ninfomaníaca confirmam o
respeito às decências protocolares quando o carrasco, calmamen-
te, ajusta as cordas para prender as mãos de Joe no sofá, afivela

123
Paulo Ferrareze Filho

a cinta em torno da sua cintura e levanta, com livros empilha-


dos, a bunda dela, na altura perfeita para que o chicote coce com
violência seus lábios íntimos lambuzados de tesão e sangue. Essa
ordenação metódica do ritual de espancamento lembra, com al-
gum esforço, as sessões de julgamento nos Tribunais. Em geral, as
partes e os seus advogados são como a bunda da ninfomaníaca Joe:
estão sempre esperando uma chicotada.
Em 2014, a comunidade jurídica brasileira assistiu perplexa
à expulsão, pelo então presidente do STF Joaquim Barbosa, de
um advogado da Tribuna do Plenário no caso Mensalão. A cena
ganhou destaque não apenas porque nela estava contido, além dos
excessos de Barbosa, uma exacerbação do advogado, mas porque
o descumprimento da regra protocolar quebrou os ares de decên-
cia da Corte. Aliás, todo o desassossego que girava em torno das
manifestações de Joaquim Barbosa, quando ainda era presidente,
vinha do fato de ele romper com as tradicionais regras de cordia-
lidade da jurisdição. A cena incomodou os juristas sobretudo por
lembrar o velho medo da falta de regras.
O anarquismo sempre foi o fantasma dos medrosos. E a ju-
risdição, assim como a vida, está cheia de medrosos. A requisição
de um ambiente ritualístico e moralmente decente – em que as
pessoas precisam se tratar como “Excelência” ou “Doutor”, ain-
da que, na realidade, queiram mandar o colega à puta que pariu
– constitui os espaços do Judiciário, de escritórios de advocacia,
de repartições públicas entre outros. A proibição institucional do
desrespeito se transformou, no Brasil, em proibição da divergência
sem puxa-saquismo. Antes de criticar, é preciso pedir desculpas,
mesmo que em línguas mortas. A overdose de datas venias confir-
ma empiricamente minha tese. Se, pelo menos, se dissesse a coisa
em bom Português... A inflação da proibição do desrespeito – tal-
vez uma herança do patriarcalismo e das ditaduras recentes – é a
incapacidade de divergir com contundência.

124
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

Pela manutenção da aparência de decência na jurisdição,


vale tudo, até se fantasiar. Nos romances de Masoch, geralmente
o corpo da mulher carrasco está coberto de peles. No direito, para
manter a decência, também é preciso estar adequadamente vesti-
do – e coberto – para participar dos ritos. Não custa lembrar que o
uso de terno e gravata há pouco foi relativizado no verão tropical
do Rio de Janeiro. Nos Tribunais, ainda é preciso colocar uma
capa estilo-Batman pra se fazer sustentação oral. Pela manutenção
da aparência de decência na jurisdição, vale tudo, até falar para as
paredes. Sabe-se que os estagiários – sujeitos que fazem relatórios
de práticas de estágio que o professor nunca lê – são os únicos que
escutam as sustentações orais. É preciso falar para as paredes em
sustentações orais e – o que é mais importante – não reivindicar
atenção das Excelências quando elas, sem dar a menor atenção,
conversam entre si durante a explanação.
Os desembargadores, em geral, escutam os advogados pen-
sando em outra coisa. Mario Quintana dizia que os chatos argu-
mentativos são melhores que os chatos perguntativos, já que, com
os primeiros, pode-se ouvir pensando em outra coisa. Advogado
que fala em Tribunal classifica-se, do ponto de vista dos desembar-
gadores, como um chato argumentativo, portanto, um chato que
não fede e nem cheira.
A decência no direito nega a exposição crua de motivos. An-
tes de dizer da tribuna:

– Seus Filhos da Puta, vocês devem estar recebendo algum


por fora pra decidir essa merda desse jeito...

É preciso começar dizendo:

– Nobre Desembargador Presidente desta Egrégia Turma,


data máxima venia, não pode prosperar o julgado de origem.

125
Paulo Ferrareze Filho

Vejam bem Excelências, etc. etc. etc. (ad infinitum – porque


no infinito do jurista cordial, fale-se latim...)

Se a coisa não for velada, não só não vale, como dá cadeia.


O direito está mais pra filme erótico estilo só-os-peitos-aparecem do
que pornô. Se mostrar é contra a regra, insinuar é lei na perversão
masoquista do direito. A insinuação, no campo do não dito, fun-
ciona como regra de decência não escrita que deve ser observada
sob pena de vingança imediata do órgão controlador. Qualquer
semelhança do direito com o masoquismo, talvez não seja uma
mera coincidência perversa...

126
31. Idealismo

Deleuze, o filósofo suicida, observa que “a empreitada peda-


gógica dos heróis de Masoch, a submissão à mulher e a morte por
que passam, são momentos de ascensão ao Ideal, [...] uma ascen-
são que se dá à base de chicotadas”40.
O idealismo, desde Platão, forjou o paraíso da ideia de Jus-
tiça. A justiça da jurisdição é construída em veredas, sortes, tra-
moias, contingências, jurisprudências dissonantes, complexidades
subjetivas entrechocadas. O discurso da justiça, das salas de aula
às cortes, quando chegada a hora de acontecer, geralmente esque-
ce o que tinha se disposto a fazer. A Constituição, como promessa
do idílio da Justiça e, portanto, de Felicidade, funciona na mesma
lógica do idealismo platônico – promete algo que, entre humanos,
não se pode cumprir. Nietzsche sabia que os idealistas são incorri-
gíveis, pois se desconfiassem do céu, colocariam o inferno no lugar
dele. A negação da vida e das sensações do agora compõem os ver-
sos do discurso idealista. Deleuze lembra que o suprassensual, o
supracarnal e o desejo místico são motes dos sujeitos masoquistas.
O problema de todo ideal é que ele nasce com a potência
de frustrar. Como um pacote da CVC ou uma prostituta de site,
os ideais nunca são bem aquilo que se imagina. O gozo da expe-
riência masoquista não está no gozo em si, mas no calvário a ser
enfrentado até o gozo. Esse caminho em busca do ideal me leva ao
terceiro elemento masoquista do direito, o suspense.

40 DELEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel… p. 23.

127
32. Suspense

O prazer é uma espécie de ritmo de sucessão de dores míni-


mas e em grau relativo, uma excitação que resulta de rápidas
variações de intensidade, como quando se irrita um nervo,
um músculo, mas com uma curva geral ascendente; a tensão
é tão necessária quanto a distensão. Uma coceira.
A dor é o
sentimento de um obstáculo; mas como a potência não toma
conhecimento de si mesma a não ser pelo obstáculo, a dor é
“parte integrante de toda atividade”, (toda atividade é dirigida
contra algo de que se deve triunfar). A vontade de potência
aspira, portanto, a encontrar resistências, dor. Há uma von-
tade de sofrer no fundo de toda vida orgânica. (contra a “fe-
licidade” tomada como “fim”).
Nietzsche, A Vontade de Potência

O direito se aproxima do masoquismo também pela expec-


tativa lúdica e tenebrosa do jogo do processo41. O calvário do pro-
cesso institui um ambiente de suspense que é ameno para o jul-
gador, tragado com desgosto por advogados e insuportável para as
partes, notadamente as de carne e osso que têm CPF.
Como em todo bom jogo, torcida é necessária. Para que as
condições de jogo sejam favoráveis, vale reza, pensamento positivo
e até meditação. Alguma técnica até pode ajudar. Se o processo
“cair” com o juiz da base-epistemológica-aliada, as chances au-

41 Ver MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a


Teoria dos Jogos. 2a. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014; e L. A. BECKER. Qual
o jogo do processo? Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2013.

129
Paulo Ferrareze Filho

mentam. Se “cair” na Turma com posição concordante, também.


Mas há mais, porque também o campo de jogo – sabe-se desde
tempos ancestrais42 – influencia no resultado da partida. É sempre
melhor jogar em casa. Estar em paz com a torcida, também ajuda.
No direito, isso se chama tratar bem os servidores. Grandes escri-
tórios são conhecidos por pagar lanches semanais para cartórios e
secretarias da jurisdição. O direito das pessoas na dependência de
um pão de queijo com coca.
Essas contingências, que acabam sendo mais relevantes que
a narrativa fática e a prova produzida em um processo, criam uma
aura de suspense que não acaba nem quando termina porque, ao
fim de tudo, há possibilidade de uma AÇÃO RESCISÓRIA. A
ação rescisória é inspirada em Jesus que, como ela, pode voltar.
Se, para o juiz, o gozo de decidir é sádico, para advogados e
partes, o trâmite do processo é um suspense masoquista. O sus-
pense alinha as características de apostadores, especuladores e
garimpeiros de toda ordem... A estética masoquista do suspense
tanto física (com corpos presos a ganchos) quanto espiritual repete
o flagelo da extensa linha de enquantos do processo judicial. A
expectativa do processo acaba como fim em si mesmo. Agravos
para que se admitam recursos são, cotidianamente, a prova disso.
O gozo do herói masoquista é o de não saber se, a qualquer
momento, poderá suportar a dor de flertar com a morte.

42 Conforme HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2008.

130
33. Contratualismo e Persuasão

Nos romances de Masoch, os ritos sexuais são sempre nor-


matizados por um contrato entre a vítima e o carrasco. É preci-
so formalizar, prometer. Enquanto o sádico impõe e institui, é a
vítima masoquista quem, antes de ter que aceitar uma condição
imposta pelo carrasco, negocia e persuade.
Não posso deixar de identificar, a partir da cisão deleuziana
da estrutura sadomasoquista, Judiciário e julgador como sádicos, e
advogados e partes como masoquistas.
A persuasão, desde os sofistas gregos, é uma virtude conhe-
cida dos bons defensores. Ainda hoje, é comum ouvirem-se alunos
de primeiro semestre de direito justificando a escolha do curso
porque, entre amigos e familiares, eram considerados pessoas com
boas qualidades retóricas e elevado poder de persuasão. A retórica
e a capacidade persuasiva estão fundadas na premissa de que a ver-
dade só pode se mostrar através de indícios. A retórica, então, tem
a função de agremiar indícios para que seja possível se aproximar
da verdade. Quando surge a retórica na Grécia, surgem também
os Jogos, que são um modo de resolver contraditórios. Os Jogos
surgem para costurar os contraditórios e nascem juntamente com
a arte das mulheres gregas que teciam o manto para as deusas. As
tecedeiras são sempre mulheres de cidades antagônicas (como os
fios que, antagônicos, permitem o fortalecimento do tecido). A
retórica é esta arte que permite o fortalecimento do tecido social a
partir da resolução de contraditórios e conflitos.43

43 Conforme exposição de Mario Flaig no Programa Direito e Literatura sobre “A Arte


da Retórica”. Disponível no youtube, caso você tenha paciência para procurar.

131
Paulo Ferrareze Filho

No direito, a teoria dos jogos é, antes de uma tentativa de


racionalizar a decisão, uma demonstração de que tentativas de ra-
cionalização do ato decisório são incapazes de prosperar. Se Jung
acerta sua teoria quaternária das funções psíquicas, a saber, de
que o psiquismo tem duas funções racionais (pensamento/senti-
mento) e duas irracionais (sensação/intuição); pretender apenas
racionalizar a decisão é esquecer, no mínimo, da metade. Dito
de outro modo, pretender racionalizar a decisão é construir um
método de solução de contraditórios inumano. A briga de Warat
pela mediação significou, no direito, essa revelação de que a ra-
cionalidade não basta(va). Talvez venham daí os ares sagrados e
proféticos do velho gordo Warat para todos os que, assim como
eu, foram seduzidos por ele.
Contratos sobrevivem do êxito da persuasão – funciona as-
sim no masoquismo, no direito e, arrisco dizer, na vida e na morte.
Pensar a hipossuficiência, e mesmo as Constituições como lei do
débil (Ferrajoli)44, é importantíssimo para entender como o direito
pode atender demandas sob a insígnia da democracia, caso ela
ainda seja um coringa aceito no jogo de cartas. Novas vertentes
da teoria da hipossuficiência contratual devem questionar a vul-
nerabilidade psíquica, o efeito das mídias de massa, a expansão da
consciência individual com a internet e a influência da teoria dos
sonhos nos processos de persuasão intermitentes (ou isso poderia
se chamar: Os Processos de Persuasão Persistente no Direito – tá
aí um nome pomposo para TCC45). Esse TCC pode aprofundar
o modo desses processos funcionarem tanto masoquista quanto
sadicamente, entre contratantes, na imposição das determinações

44 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: La ley del más debil. Madrir: Trotta, 1999.
45 Envie um email de agradecimento para ferrarezefilho@yahoo.com.br. Grato.

132
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

judiciais. Uma nova função social do contrato, a partir daí, pode-


ria ser alinhada. Tal qual uma função social do Contrato Social46.
A persuasão, convertida em convencimento, gera consenso.
Mesmo entre os que atendem quando lhes chamam perversos, há
consenso. E a paz é feita disso.
Um Oráculo de Delfos num Shopping que cobra R$ 40,00 pela
1 hora de estacionamento diz: CONVENCE-ME OU TE DEVORO.
a

46 Se ainda não leu o clássico O Contrato Social, de J. J. Rousseau, sorte sua.

133
34. It’s Only Juridiquês, But They Like It

Minha língua – é a do povo:


falo de modo grosseiro e franco demais para os delicados
Nietzsche, Assim Falou Zaratustra

Conta a lenda que Rui Barbosa, o dinossauro, ao sofrer uma


tentativa de furto de galinhas no quintal de casa, disse para o
ladrão o seguinte:

— Não o interpelo pelos bicos de bípedes palmípedes, nem


pelo valor intrínseco dos retrocitados galináceos, mas por ou-
sares transpor os umbrais de minha residência. Se foi por mera
ignorância, perdoo-te, mas se foi para abusar da minha alma
prosopopeia, juro pelos tacões metabólicos dos meus calçados
que dar-te-ei tamanha bordoada no alto da tua sinagoga que
transformarei sua massa encefálica em cinzas cadavéricas.

Sem entender porra nenhuma, o ladrão perguntou:


— Mas como é, seu Rui, eu posso levar o frango ou não?

Essa historieta mitológica do direito brasileiro faz parte do ar-


quétipo do jurista fundamental. Outro dia eu conversava com um
advogado que, a cada 10 palavras que falava, 5 eram cediço. Jurista
adora dizer CEDIÇO e escrever MORMENTE. 90% da popula-
ção não faz a mínima ideia do que isso significa. A linguagem é a
uma potência de charme, uma vontade de ser poderoso. Quem se

135
Paulo Ferrareze Filho

comunica quer, inevitavelmente, participar do baile charmoso da


história da eternidade.
Ter filhos ou deixar grandes obras – os antigos já sabiam so-
bre essa dupla poção da eternidade. Aquilo que o jurista diz ou
escreve em petições e decisões é um caminho que trilha em dire-
ção ao seu ideal. O bacharelismo, entre nós, nasceu da aristocracia
portuguesa que veio pra cá e se aliou com as filhotas Calvin Klein
dos Senhores de Engenho, que eram a elite da época.47
O instinto do juridiquês funciona assim: quanto mais difíceis
forem as palavras, mais charmoso se é. E, com charme, mulheres,
clientes, sushis, idas pra Cancun pela CVC e fígados de pato al-
bino em algum restaurante chique da zona sul do Rio, se tornam
possíveis. Claro que, às vezes, simplificar significa deixar escapar
o sentido. Não se trata de reduzir a linguagem à pobreza de um
léxico capenga. Definitivamente não.
O problema é que no juridiquês – a língua do jurista funda-
mental – está implícito um interesse contrário: o de complicar. Não
se fazer entender é o propósito. Há uma intenção de incompreen-
são. Rui Barbosa não morreu! Químicos, engenheiros e astrólogos
usam suas linguagens técnicas. Tudo bem com a linguagem técni-
ca de quem é técnico, inclusive juristas. A diferença dos juristas é
que eles DESEJAM que ninguém entenda porra nenhuma do que
eles falam. Que um biólogo fale PROTOZOÁRIO e que ninguém,
além de técnicos nisso, saibam o que é um protozoário, é compre-
ensível. Como se referir a um protozoário sem dizer protozoário?
Mas um jurista que faz questão de escrever MORMENTE, isso
ninguém entende.

47 Ver SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: O Tribunal


Superior da Bahia e seus desembargadores. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

136
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

O desejo de ser charmoso pode ser a primeira justificati-


va rasteira que se pode dar para o juridiquês. Mas penso que o
buraco é mais embaixo. Lembro de um colega de mestrado que
defendia a ideia de que, em aulas e palestras, era preciso emba-
ralhar a compreensão dos ouvintes para que se pudesse plantar
neles a dúvida. Só a dúvida, dizia ele, poderia mover os ouvintes
em direção ao conhecimento.
Essa pode ser uma boa desculpa pra quem não tem muita
segurança em relação àquilo que diz – e pouca gente tem. Quem
enuncia alguma coisa morre de medo de que haja, entre os ouvin-
tes, um ouvido capaz de captar suas incongruências. Esse temor
de ser expulso da zona de conforto epistemológico48 é o motivo
profundo do jurista fundamental. Falar difícil se torna uma estra-
tégia: ao mesmo tempo em que protege-se de quem possa saber
mais, também confere-se algum respeito ou status. O brasileiro
ama status. E por isso está lotando faculdades de direito. Em geral,
gente que sonha em pendurar uma gravata no pescoço e um diplo-
ma numa salinha alugada, só pra poder ser chamado de doutor e
pra não ser (mais) “passado pra trás”. Doce ilusão. Se bem que sem
ilusão, a vida é um osso duro. E sem carne ao redor.
Esse instinto faz advogados gozarem internamente quando
são chamados de doutor, ainda que seja pelo estagiário do escri-
tório que não sabe quando é dia ou quando é noite. Antigamente
os bacharéis de direito, logo na formatura, eram presenteados com
um anelão vermelho estilo Gandalf (Senhor dos Anéis). No início
dos anos 90 lembro que via, na mão dos advogados da minha fa-
mília, esse anelão mágico com ares de filme da Disney. É verdade
que esse adereço do jurista fundamental dos anos 90 já saiu de

48 Se você não sabe o que é epistemológico, foda-se, não serei cordial com você meu
selvagem leitor. Se chegou até aqui, trata-se de um leitor selvagem, politicamente
incorreto, amém.

137
Paulo Ferrareze Filho

moda, mas o propósito dele se ramificou em adesivos gigantes-


cos que advogados usam no carro, e-mails do tipo drAdvogado@
advocaciasemlimites.com.br e, em casos clínicos, um busto do Rui
Barbosa na entrada do escritório.

138
35. Desobediência Civil

Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura


do meu mister, [...]reentrei de vez na posse plena do meu
Génio e na divina consciência da minha Missão. [...] A su-
perioridade não se mascara de palhaço; é de renúncia e de
silêncio que se veste.
Fernando Pessoa

Em um seminário sobre desobediência civil que aconteceu


no meio de um festival de carnaval neohippie, conheci o Mario Be-
serra. Mario se diz um desobediente civil. Conta que era bancário
e que custava 3 mil reais por mês.
Depois de sofrer um infarto quando já estava com 50 anos,
resolveu mudar de vida. Segundo relatou para meia dúzia de gatos
pingados, “saiu do sistema” mas não deixou de interagir no meio.
Era petista de base e não “das cabeças”, na época em que ser do
PT (Partido dos Trabalhadores) significava participar do projeto
de um mundo melhor.
Longe de ser um relato autoajuda de superação, a vida do
Mario é o fenômeno vivo de um cara que resolveu pagar o preço
para conquistar um pouco mais de autonomia em relação ao Esta-
do e ao que ele chama de “Sistema”. Isso porque a lei e o sistema
financeiro, via dogma do consumo, são as autoridades que tolhem
parcela significativa da nossa liberdade. Enquanto o Estado in-
centiva e determina o voto, as leis de mercado criam necessidades

139
Paulo Ferrareze Filho

idiotas de consumo. Para Mario (e para quem mais se dê conta),


“essa pressão psicológica é muito foda!”
Além de não votar, apesar daquelas multinhas e das penden-
gas burocráticas que se tem, para Mario, desobedecer é aprender
a reconhecer as reais necessidades de consumo. Por isso, é um de-
fensor da prática do desconsumo e da consequência que ela traz:
resgatar as pessoas do estado-de-zumbi, ou seja, quando já não per-
cebem porque precisam daquilo que pensam que precisam.
A obesidade do mundo, materialização de um tipo de exces-
so de consumo, fomentou o ideal da alimentação saudável. Porém,
os excessos do discurso da boa-saúde, atravessado pela virtude do
mundo empresarial, transformou até a alimentação saudável em
um ideal de serviços e produtos consumíveis. O excesso de obesi-
dade gera a overdose do ideal da alimentação saudável. Esse é ape-
nas um exemplo de como a imposição de necessidades, propagada
pelas mentes geniosas das novas escolas sociológicas de marketing,
acabam por estimular uma espécie crack social, como se fosse ne-
cessário inventar doenças para que remédios sejam vendidos.
Porque o consumo dita a moda, Mario criou uma grife cha-
mada UM PASSO FORA DA MODA, que vende ou doa (a de-
pender da capacidade de quem queira) tudo aquilo que não está
mais na vitrine: celulares stupidphone sem wi-fi ou aplicativos mo-
derninhos, televisões com aqueles tubos de imagem pesadíssimos,
roupas de brechó, etc. Com a grife e com um táxi clandestino,
Mario diz que sobrevive numa boa.
A religião do consumo é um sistema de crenças híbrido entre
o monoteísmo e o politeísmo, afinal, ela tem deuses transitórios:
geralmente únicos quando nascem, mas logo assediados por vários
concorrentes do panteão que se forma do dia para a noite. Seja
com celulares, carros ou roupas, qualquer boa ideia é copiada com
a rapidez de um espirro. Um deus consumível é trocado por outro,
ainda que o altar permaneça e sempre peça uma certa postura

140
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

submissa do crente que, sem perceber, precisa trocar a direção de


sua oração, geralmente em parcelas de um dinheiro que ainda não
tem, sob pena de se sentir um herege.
A crueldade da ética consumista alimenta, segundo Mario,
a culpa, o medo e o pecado. Infartado na cama de um hospital,
Mario se sentiu limpo e longe dessas tranqueiras que todo mundo
sente. Renascido, tomou posse de ser o que era. E mudar da água
para o vinho dentro de um mesma vida é uma jurisprudência com
ares divinos. Por isso, hoje, com 55 anos, Mário diz que tem apenas
5. “Depois dos 50, vá viver” – essa é a dica do Mario. Aí uma meni-
na lésbica, de apenas 20, antídoto geração Y correndo pelas veias,
perguntou: - Só depois dos 50?...
Segundo Mario, o que ele mais ganhou com a nova vida foi
tempo. Antes tinha que manter 2 empregos para bancar os 3 mil
reais que custava. Por isso, depois que renasceu, resolveu que pre-
cisava custar menos para poder ter mais tempo – de ler um livro,
de passear, de viajar, de estar com os filhos biológicos ou adotivos,
já que ele tem 4 no total. Além disso, conta que a nova vida tirou
dele a raiva. Quando jovem foi militante do movimento estudan-
til, pertencia aos pelotões de frente e era uma espécie de atira-
dor de elite de molotov. De 10 que atirou, diz que errou apenas 3.
Mas depois de renascido do infarto, passou a compor músicas de
denúncia, fantasiado de jegue e tocando um triângulo. Uma das
várias músicas diz o seguinte:

Seu doutor da justiça e da lei


Doido é doido e político é político
Lei é lei e obedece quem quiser
Eu não sou quem o senhor está pensando
Já fui fulano, fui beltrano e fui ciclano

141
Paulo Ferrareze Filho

Agora não quero mais ser de vocês


Eu agora estou maluco
Estou um ser humano eu não estou mais cidadão
Seu doutor da justiça e da lei
O senhor feriu a democracia
Impedindo que a Lei da Ficha Limpa
Enterrasse os corruptos e os ladrões
Que coisa feia, mal exemplo seu doutor
Mas o recado pro senhor eu tô deixando
Eu prefiro fumar meu baseado
Do que ser obrigado a votar em sua eleição
É minha vez de escolher o meu destino
Esse direito eu não deixo com você
Eu agora estou maluco
Estou um ser humano eu não estou mais cidadão.

Para Mario, praticar a desobediência civil é, além de resistir


contra o dever de votar e consumir, também praticar a sonegação
de impostos. Se o Estado promete e cobra, retribuir se torna um
dever. Na medida em que o Estado promete dar assistência de saú-
de à população e, ao mesmo tempo, ignora (ou faz de conta que
ignora) a pressão para que se contrate um plano de saúde parti-
cular, sonegar impostos se torna um direito, pelo menos para um
desobediente civil que se preze.
No final da palestra que deu, me contou como lida com os
oficiais de justiça chatos e com os vários processos de cobrança
de Bancos e empresas de telefonia que parecem, à primeira vista,

142
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

mais obedientes que Mario...Mas isso não vou contar, pois as es-
tratégias são produto de um know how valiosíssimo.
Mario sonega, não vota e consome pouco. Se lixar para a lei,
resistir, estar al lado del caminho, fumando el humo mientras todo
pasa, como cantou Fito Paez, é isso que Mario faz, tendo apenas
5 anos de idade. Fora das rodas de chá das Universidades, e sem
nunca ter lido Henry Thoreau49 na graduação.

49 Henry Thoreau, assim como Mario, também sabia que a lei jamais torna os
homens mais justos. Por meio do respeito a ela, mesmo os mais bem intencionados
transformam-se diariamente em agentes de injustiça. Conforme THOREAU, Henry
David. A Desobediência Civil. Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 11.

143
36. Amanhã Não Vai Ser Outro Dia

A Dilma caiu. Escrevo da Cinelândia, Rio de Janeiro, casa


dos revoltosos, palco dos indignados. Depois de um cafezinho
ruim que custou 5 reais, caminho pela praça. As bandeiras cor de
sangue dos vermelhos tremulam. MST, CUT e PT se misturam
com o arco-íris dos gays. Você ter que ir a praça pública defender
direitos ligados ao próprio cu é uma espécie de santa inquisição
medieval, só que filmada com smartphones e com o VLT passando
do lado. Aliás, agora que terminaram as Olimpíadas de quem não
tem nenhuma deficiência, o VLT passou a ser pago. Além disso,
a moto da polícia que vinha na frente dele, pra evitar que algum
desatento morresse atropelado caçando pokemóns, também não
aparece mais. Resumo: que se danem os deficientes e os brasilei-
ros. A preocupação e o desconto eram só para os estrangeiros com
corpo funcionando 100%. 
Gente barbuda, velhos, novos, cigarros, sindicalistas, profes-
sores. Me sinto estranho ali, com a gravata enrolada no pescoço.
Não é o uniforme adequado. No fundo, não sei se me identifico
com o negócio. Não sei se concordo, se discordo, se me resigno ou
se acho um lugar com um café melhor. Vejo no alto da escadaria
o Salo de Carvalho, professor que admiro, ativista e coisa e tal.
Gosto dele, sobretudo, porque conseguiu largar a gravata. Lembro
do Amilton, pai do Salo. E Amilton me faz lembrar da conversa
do café da manhã com meu amigo Estevan, quando falávamos
que Nietzsche e abolicionismo penal não combinam. Lembro de
amigos tão intelectuais quanto Salo e Amilton que tem bons fun-
damentos contra os vermelhos. Penso ser inegável o fato de que a
intelectualidade brasileira é talhada com o pensamento de esquer-

145
Paulo Ferrareze Filho

da e que, grosso modo, não se fomenta o estudo dos contrapontos.


Nesse sentido, pode-se dizer que a ideologia universitária no Brasil
tem quê de antidemocrática.
A Constituição foi para o direito um Deus que nasceu no
dia em que os militares morreram. Eu, como uma espécie de ateu
light, nunca confiei em coisas que deveriam ser. O mundo é trági-
co se tivermos os dois olhos abertos. É preciso lutar? Acho que é,
mas me sinto resignado. Houve um Golpe. Há manifestação. Mas
amanhã o curso tedioso dos dias seguirá. Suas contas, suas bro-
xadas, sua barriga horrenda, suas rugas, sua felicidade depositada
no final de semana, nos filhos, nos vinhos ou no relaxamento de
depois do Yoga.
Não sei se queria comprar outra gravata para o dia de tra-
balho seguinte, ou se queria uma camiseta do Che. Gritei Fora
Temer duas vezes. Depois cansei. Contribuí com a luta… Há em
mim sempre uma espécie de pasmo bipolar. Lembro – já me afas-
tando da grande massa – que não tomei meu remédio do dia. E
talvez minha grande sonolência em relação aos ratos do Congresso
se deva à falta de Setralina. 
O Direito é um jogo de xadrez, só que sem peões. Quem joga
sabe do que falo. Se você não joga, dane-se. Torres trucidando-
-se logo no início do jogo. Reis e rainhas em posição de ataque.
Cavalos relinchando. Um caos fodido. Dos dois lados desse xadrez
jurídico está a morte. Bergman só não foi mais genial porque colo-
cou a morte em apenas um lado do tabuleiro. Uma das mais sábias
palavras que li até agora é de um cara anônimo das redes que
disse: “dois grupos de pessoas comemoraram o Golpe: os que vão
tirar os direitos dos trabalhadores; e os que ainda não se deram
conta que vão perder direitos trabalhistas.” Do escritório escuto
o coro engrossar. Talvez se esse povo do FORA TEMER fosse ao
Beira-Rio, pudessem livrar o Inter do rebaixamento. Talvez faça-se
uma revolução, mas provavelmente não se faça.

146
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

A coisa seguirá assim – lá de cima, o ouvido do grande si-


lêncio praticamente não escutará o eco dos indignados. De lon-
ge, as coisas mais desimportantes é que permanecem: seu bicho
de estimação, um vento na cara, um instante de amor, um porre
inesquecível. As regras existem para que o nosso afã arcaico por
segurança fique minimamente em paz. Quando lembro que Hob-
bes, o primeiro contratualista, postulou o Estado porque morria de
medo (de uma nova Guerra), me dou conta que o fato de termos
uma Constituição não serve para além da ficção de um conforto
uterino. A política vence o direito. A retórica vence o direito. O
dinheiro vence o direito. E, se você sair para as ruas para gritar,
apenas, sairá vencido e sem voz para o dia de amanhã. Se as regras
democráticas não são respeitadas, que se faça uma manifestação
antidemocrática: com violência inteligentemente bem empregada.
Talvez assim, amanhã, possa ser outro dia.

147
37. Um Olhar Para as Partes

No Brasil existem em torno de 1.300 faculdades de direito.


Transformada pela lógica de consumo, a educação jurídica busca
capacitar o profissional para as necessidades do mercado.
Juristas, para sobreviver, precisam das “partes dos processos”:
clientes, réus, reclamantes, autores, demandantes, demandados,
etc. Ou seja, é preciso que o mundo tenha problemas, caso con-
trário, juristas estariam desempregados. Um cara que foi preso já
disse isso pra um jornalista nesses programas estilo Datena-a-ho-
ra-sanguinária. Um verdadeiro gênio, preso. Como um Sade preso
à masmorra. Um gênio que deve estar comendo muito mal e sendo
estuprado em algum presídio podre do Brasil.
A questão é que são boas partes que fazem um bom direito. E
não bons juristas. As escolas do direito nunca procuraram treinar
as partes, só os juristas. Penso que não se trata de má-fé, mas de
ingenuidade, apenas.
Um homem velho, raiando os 60 anos, se dizia incapaz tole-
rar e de suportar a traição da esposa, que era 20 anos mais nova.
Dizia que só de imaginar ela com outro, perdia o chão. Alertava
que se descobrisse qualquer coisa, simplesmente viraria as costas
para nunca mais voltar. O mal da educação técnico-racionalista,
no direito pensada para alunos-juristas e não para alunos-partes,
é criar a ilusão de que a justiça (em geral vingadora) é o suficiente
para estarmos em paz.

149
38. A Fraternidade
Constitucional do Demônio

Sou um espião na casa do amor


Jim Morrison

Na consciência coletiva do Ocidente há um discurso vitorio-


so que se intitula - Das Boas Intenções. Nietzsche é um restaurador
da maldade, da desmesura e do espírito embriagado e onírico de
Dionísio. Michel Mafessoli50 chamou de sabedoria demoníaca as
virtudes ligadas a sensorialidade de Dionísio. Se Hobbes imaginou
a possibilidade de interditar e depurar a natureza bárbara do ho-
mem com o Contrato Social, Nietzsche problematizou a incapaci-
dade do Estado que, fazendo as vezes do deus morto, sempre quis
amansar a besta e elevar o anjo dos súditos.
No filme O Advogado do Diabo, Al Pacino, o Diabo, coloca
a culpa de toda a maldade e de toda não-fraternidade em Deus.
Como criador de tudo, Deus criou também o ser humano e seus
desejos. Daí porque o Diabo, em Al Pacino, questiona:

Deus é aquele que está no céu ou eu que estou aqui? Em


nome do ser humano, Deus criou os desejos, mas também
criou a regra de que é preciso reprimi-los: olhe mas não
toque, toque mas não prove, prove mas não engula.

50 MAFESSOLI, Michel. A Parte do Diabo. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Record, 2004.

151
Paulo Ferrareze Filho

O deus cristão, literalmente dando o tapa e escondendo a


mão, criando o homem, criou sua integridade mas, ao mesmo tem-
po, determinou que o homem a negasse. Transportada integral-
mente para a lei civil e para as Constituições de hoje, a lei mosaica
permanece encrustada na moral do Ocidente.
Por isso é possível pensar a fraternidade como um agencia-
mento que liga, no Ocidente, a lei do Estado à lei cristã, identifi-
cando os valores de cada uma delas. De um lado, A lei cristã pro-
pugna: Sejamos fraternos! Sejamos felizes! Sejamos justos! Seja-
mos como o deus encarnado que preteriu a si mesmo por amor ao
Outro! Quando se lê na Constituição do Brasil que a liberdade, a
justiça e a solidariedade são objetivos da República, está-se diante
de uma releitura dos princípios cristãos, só que laicizados no texto
democrático. Uma sociedade civil que objetiva, em linhas gerais,
ser constituída exclusivamente por anjos.
O reajuste da humanidade negada tanto no homem medieval
quanto no sujeito moderno, é que fez o psiquiatra suíço C. G. Jung,
possivelmente influenciado por Nietzsche, a postular a necessida-
de de integração, tanto no psiquismo quanto na sociedade civil, da
sabedoria demoníaca. O mal, o egoísmo, a violência e a animalida-
de reanimados como parte do fator humano.
Claro que não se pretende substituir o homem angelical que
se pretende construir a partir do discurso constitucional pelo ho-
mem egoísta e pérfido, mas tão somente demonstrar que a inten-
ção deste mundo constitucional que deve-ser, é um ideal inumano,
já que propõe um mundo feito, não de homens, mas de semi-deu-
ses que se negar a tomar um trago com seus próprios demônios.
A busca desse humano perfeito e completo, capaz de ne-
gar seus instintos obscuros, é sintoma de uma doença histórica.
A idealidade do homem fraterno esconde os traços paranoicos

152
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

de alguém incapaz de reconhecer a “impureza” do lobo que hi-


berna dentro dele. A sofreguidão do paranoico esta justamen-
te no fato de fixar na consciência um ideal do qual não pode
se livrar. Quem cria uma autoimagem de homem fraterno ou
bondoso – o famoso cidadão de Bem que não transgride as leis
“clericais” do Estado – mostra-se como paranoico, já que imune
ao seu próprio anverso.
É por isso que, por meio da filosofia pré-cristã dos gregos trá-
gicos, Nietzsche vai perceber que a civilização ocidental se desen-
volveu por meio de um sistema metafísico de sentido que fez da
ambiguidade humana um erro, denegrindo o humano do homem,
tolhendo seus desejos, ainda que cruéis, egoístas e terríveis. Por
isso que é preciso ter cuidado com algumas leituras acerca dos
Direitos Humanos. Quando instrumentos normativos, da Decla-
ração Universal às Constituições, pretendem traçar a felicidade
como objetivo, estão construindo Direitos Inumanos. Isso alimen-
ta a ideia de que teoria e pratica são coisas separadas.
Uma sociedade que impõe o dever-ser de liberdade, igualda-
de e fraternidade como condição de bem-estar social, quer man-
ter a ideia de um homem celestial que participa de uma socieda-
de de anjos. No retrato cristão da última ceia está contemplado,
na inteireza da tela, a existência do mal da traição. Visto como
símbolo de totalidade, a pintura retrata o elemento negativo de
Judas presente na totalidade. Um elemento menor, mas presen-
te. Logo, com Nietzsche, o cristianismo é um platonismo para
as massas. O sistema de sentido cristão se valeu do platonismo
para deixar tragável aos não aristocratas, o ideal de um homem
capaz de purificar-se. Isso está presente em Agostinho, o portei-
ro da cidade de Deus, que só autorizava a daqueles capazes de,

153
Paulo Ferrareze Filho

negando seus desejos, sair da caverna da animalidade para habi-


tar uma cidade iluminada pelos valores Bons, com pessoas Boni-
tas e Gostosas e juízes Justos.
Nietzsche demonstra a consequência dessa intenção cristã
na moral do ocidente. Quando se discute direito e moral, há
que se interrogar: qual moral? Hoje ainda se debate, diante de
teorias contemporâneas sobre o constitucionalismo, se o direi-
to admite a moral, se a moral influencia o processo legislativo,
se a moral pode influenciar ou não o juiz, se o positivismo, em
sua vertente inclusiva, pode ser complementado pela moral etc.
Todas essas discussões esquecem da interrogação – qual moral?
Importante se diga que, para quem amarra pensa o direito exclu-
sivamente a partir do paradigma constitucional, essa pergunta
não serve pra nada.
Essa resposta é dada por Nietzsche na 1a dissertação do livro
Genealogia da Moral, ao investigar as atitudes moralmente boas.
Apressadamente, acredita que ser bom é não ser egoísta, ou ter
atitudes úteis. Porém, detidamente, Nietzsche faz uma análise
linguística do termo bom. O bigode é o primeiro a fazer filoso-
fia através da linguagem, indagando o significado etimológico das
palavras, o sentido oculto da linguagem através de suas origens
histórica, bem como as fontes de radicaiss, prefixos etc.
É a partir dessa análise da linguagem que Nietzsche percebe
a duplicidade de antagonismos da palavra bom, isso porque, o bom
pode se contrapor tanto ao ruim, quanto ao mau. O julgamento
da atitudes de pessoas fortes que se relacionam, porque se dá a
partir de critérios técnicos, opõe sempre o bom ao ruim. Assim,
aos que têm menos capacidade técnica em relação a algo, resta a
resignação. Neymar é melhor que Gabiru. À Gabiru resta aceitar
sua condição de fraco. O lobo forte, adora a carne macia da ove-
lha, dirá Nietzsche.

154
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

A moral ocidental é cunhada a partir do ressentimento das


ovelhas fracas, na medida em que percebem que não poderão ja-
mais ganhar do lobo. Na natureza, o destino é trágico: ovelhas
sempre serão devoradas pelo lobo. A ruína do discurso da igualda-
de, a partir da premissa de que existem homens fortes e homens
fracos, faz Nietzsche concluir que a moral preponderante no Oci-
dente é a moral dos fracos, na medida em que culpam a aristocra-
cia do forte. Por isso a ovelha, assim como o fraco, é um animal de
rebanho ressentido, pois se dá conta que jamais poderá vencer o
forte. Quando o ruim (ou tecnicamente mais fraco) busca culpar o
forte pelo uso que faz da sua melhor técnica ou força; e, na medida
em que o forte se deixa abater pela imputação de culpa feita pelo
forte, este passa deixa de ser tecnicamente bom para se tornar o
moralmente mau.

BOM --- RUIM (critérios técnicos)


BOM --- MAU (critérios morais)

O tecnicamente bom será sempre o moralmente mau na


medida em que aceita a culpa imposta pelo tecnicamente ruim
que, ressentido, vê a preponderância da melhor técnica como
estratégia maldosa.
Um empresário que, reunindo técnicas para bater a concor-
rência, torna-se líder de mercado, pode ser um bom exemplo disso.
Na medida em que grandes empresas globais como a Nike ou a Zara
migram parte do processo de produção para países onde as leis são
mais favoráveis às suas lógicas do lucro, seguindo o esquema mais
com menos; estão se valendo de sua própria força. Pode-se dizer que
Nietzsche, nesse sentido, nunca seria alguém de esquerda.

155
Paulo Ferrareze Filho

Com Nietzsche, concluo que a moral que forma o direito é a


moral de um homem ressentido, doente e invejoso. ASSUMA-SE
FRACO E SUBMISSO DIANTE DE DEUS – essa é a ordem
do cristianismo! A exaltação de uma atitude moral que elogia a
submissão do homem diante de algo mais forte que ele, funda, não
apenas a ordem cristã no Ocidente, mas também todas a neces-
sidade envolvida na concepção do Contrato Social. Daí porque
a aposta do constitucionalismo, como uma espécie de auto-ajuda
democrática, é tão salvador quanto os paraísos religiosos, da Cida-
de de Deus de Agostinho ao Céu de virgens dos homens bomba.
A utopia constitucional é uma tentativa de reproduzir o esta-
do anterior ao pecado de Adão, antes da maçã da vida ter feito ele
conhecer o bem e o mal. O propósito de fundo do constituciona-
lismo é restaurar esse estado pré-maçã, ou seja, o gozo permanente
de comunhão com Deus...
Mas a homens humanos não é possível gozar eternamente.
Pelo contrário, a ejaculação precoce é a disfunção sexual por
excelência do homem internético e applemaníaco. O transe é
sempre transitório.
A fraternidade, que aparece na revolução francesa e cai de
paraquedas na nossa Constituição a partir do ideal de solidarieda-
de e das compensações em busca da igualdade material, é essa eja-
culação precoce. A fraternidade é esse momento de iluminação,
quase mágico, em que é possível, na carne e no osso, olhar para
o outro, sentir compaixão, e necessidade de abrir o ouvido para a
coisa que o outro diz. Modificar as próprias fundações ou transva-
lorar valores como diria Nietzsche, a partir do outro e da relação
de irmandade que se pode estabelecer com ele.
Em que pese já constar no livro do Gênesis no Velho Testa-
mento que irmãos começam odiando de morte um ao outro, a sede

156
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

da fraternidade boa, bela e justa, ainda permanece na nossa Cons-


tituição. Em que pese nossas árvores genealógicas hierarquizarem
as relações de parentesco, segundo a Constituição, é possível negar
a aristocracia hierárquica em nome de uma solidariedade fraterna,
justa e igualitária.

157
39. Samba da Maldade

Assim como Nietzsche, Jung também desvela a parte es-


quecida da psique humana. Daí porque vai avaliar o Dogma da
Trindade e perceber que, para além dos três elementos Pai , Filho
e Espírito Santo, há um 4o elemento esquecido. Por isso Jung vai
falar de uma quaternidade, e não de uma trindade, como símbolo
da totalidade psíquica. Mas, qual é este 4o elemento? Tanto Niet-
zsche, com Dionísio, o deus terreno, quanto Jung, irão postular
que o Diabo ou o anticristo é o quarto elemento esquecido. Por
isso é preciso recuperar a sabedoria do traidor, da subversão e
dos filhas da puta de toda ordem. Michel Mafessoli mostra como
a pós-modernidade é o momento histórico de recriação da sabe-
doria demoníaca.51
Jung confirma Nietzsche quando diz que a Trindade cristã
é uma copia, novamente, de Platão, notadamente em duas obras.
A primeira o Timeu, em que Platão faz uma filosofia geométri-
ca, influenciado por Pitágoras, mostrando que a Trindade nasce
quando o Uno se divide em dois – o Uno e seus dois desdobramen-
tos. E também no Banquete quando postula o Andrógino como
estado arcaico do ser humano. No Banquete há uma explicação
humanoide da filosofia do Uno presente no Timeu. O Andrógino
é aquele que possui 4 braços, 4 pernas, 2 cabeças e é o único que
detinha capacidade de atentar contra os deuses do Olimpo, já que
unificava masculino e feminino. O amor platônico nada mais é do
que a possibilidade de voltar a unir as partes de um mesmo todo,
separados pela fúria dos deuses. É juntando masculino e feminino

51 MAFESSOLI, Michel. A Parte do Diabo… p. 1-190.

159
Paulo Ferrareze Filho

que a natureza humana se reestabelece a ponto de se tornar equi-


parável aos deuses.
A psicologia vai olhar para essa junção como algo que se dá
não com o encontro romântico entre homem e mulher, mas na
intimidade do plano psíquico. Por isso Jung propõe os conceitos de
animus e anima. O primeiro como parte masculina das mulheres.
O segundo como parte feminina nos homens. Mas, independen-
temente de indagar qual o local dessa união, se externo (do ponto
de vista platônico) ou interno (do ponto de vista junguiano), fato
é que essa ideia trinitária de amor, confirmada também nas vari-
áveis gregas eros, ágape e filia, ainda que pretenda ser um resumo
da totalidade (caminho, verdade e vida), esquece quarto elemento
que a constitui.
A totalidade cristã, em suma, é uma fria, uma cegueira, um
estelionato do qual a civilização ocidental foi vítima. Como víti-
mas inconscientes, postulamos uma sociedade livre, justa e fraterna
como um lugar a se construir. Ao deixar de dar lugar, no espectro
humano, ao mal, aos desejos cruéis, egoístas e violentos, deixamos
nossa humanidade pela metade. Por isso Al Pacino, chefe-Diabo do
advogado, diz: sou um humanista, talvez o primeiro humanista!
Entre nós, países que tratam delicadamente o elemento sub-
versivo, como é o caso da Holanda, acabam pioneiros em estra-
tégias de integrar e tratar a natureza humana de quem se deixa
submeter aos próprios fantasmas. Advertências públicas, custeadas
pelo governo, instruindo usuários de Cocaína, são um tiro no pé
daqueles que ainda não foram capazes de compreender uma frase
crucial de Nietzsche aos penalistas da vingança: “há que se tratar
o criminoso com delicadeza, como se fosse um doente”. Capicci?

160
40. Como Pensam os Juízes Brasileiros?

A decisão judicial é o estabelecimento de um marco. Um


divisor de águas. A estaca que determina o chão de um terreno, o
comando que define o destino de um cabaço no presídio, de um
direito de cartório ou da guarda do gato de estimação depois do
divórcio. O Estado é o Deus do monoteísmo jurídico – único capaz
de julgar as intenções pérfidas dos nossos pecados laicos. Os juízes
são os padres. E os escreventes de audiência, que morrem de inveja
do salário dos juízes, são os coroinhas.
Não há escapatória: há que se dizer amém, ou simplesmen-
te lamentar, depois do sacramento judicial. Principalmente com a
Ação Rescisória que, nos limites da política judiciária, é a verda-
deira overdose do direito de ação (com direito a tremelicos cênicos
e espuma na boca no melhor estilo Pulp Fiction). Com os mais
de cem milhões de processos que tramitam no Brasil, conforme
dados divulgados em importantes portais jurídicos na internet, os
juízes têm literalmente cansado de decidir.
Passei por uma experiência sociológica do direito instigante.
Numa sessão de julgamentos do Tribunal do Trabalho de San-
ta Catarina, presenciei, por diversas vezes, uma desembargadora
agradecer a todos os advogados que deixavam de fazer suas susten-
tações orais. O engraçado é que ela nunca agradecia aos advogados
que FAZIAM as suas sustentações. Antes que se possa fazer des-
se texto um manifesto classista de advogados contra juízes, quero
apenas noticiar esse fato: há desembargadores que ficam gratos
quando os advogados abrem mão de fazer suas sustentações orais.
Por certo aquela calhorda filha da mãe não há de ser a única!

161
Paulo Ferrareze Filho

Ainda que se possa criticar a postura da desembargadora, é


preciso ser fiel à sinceridade, e elogiar a manifestação pura – tal-
vez ingênua – do verdadeiro lapso-freudiano-jurisdicional, afinal,
é um material e tanto para quem tem a devida paciência de pes-
quisar o esse fenômeno: a decisão judicial.  
A teoria da decisão tem coisas como esta – a vontade, por
parte do julgador, de que aquela porra toda acabe logo. Afinal,
quem não gosta de sair 1 ou 2 horas antes do trabalho, que atire a
primeira pedra (na desembargadora calhorda).
Óbvio que não vou dizer o nome dela. Corro o risco de es-
cancarar a antipatia que a gente nutre um pelo outro. O direito a
sentir antipatia é um dos tantos esquecidos pela Declaração Uni-
versal, que foi pensada não para gente humana, mas para parentes
da linhagem genealógica do arcanjo Miguel.
Quê significa o agradecimento de um juiz aos advogados que
deixam de fazer sustentações orais?
Por essas e tantas outras, é preciso pensar a complexidade da
decisão judicial sem hipertrofiar teorias e sem criar um coágulo na
percepção de um ou de alguns doutrinadores. Há gente demais ocu-
pada em salvar o direito a partir do controle das decisões judiciais e
professar a remição-dos pecados-e-a-salvação-da-carne-amém.

162
41. Ideologia e Partidarismo
na Decisão Judicial

No Rio Grande do Sul há uma espécie de fronteira espiritual


que faz com que se misture o espírito trágico do povo portenho
com o espírito cordial do brasileiro.
O gaúcho é marcado por uma ambivalência hereditária entre
portugueses e espanhóis. Até hoje vigem duas facções de maraga-
tos e chimangos no futebol, na política e nos tomadores de chi-
marrão – afinal, ou você toma ou não toma.
A dupla Grenal torna também esportiva a ambivalência do
gaúcho. O povo briga e brinca sobre o Grenal, de Erechim ao
Chuí, de Porto Alegre a Alegrete. Assunto de elevador e de ca-
chorro quente de Igreja. Não há quem esteja, de fato, neutro: a
simpatia é o ponto alto de qualquer indiferença.
A fidelidade futebolística é uma espécie de Deus olímpico do
esporte. A metafísica que fundamenta as paixões animais do esporte.
Para Freud52, a ambivalência é a caraterística que marca a
relação que temos com os fundamentos metafísicos. Ao mesmo
tempo em que a determinação dos limites legais, morais e reli-
giosos santificam o lugar depois da transgressão, também tornam
excitante, diabólico e impuro o desejo de transgredir.
Petistas e tucanos mantêm esticada a corda entre a santidade
e a diabice de suas propostas falsamente maniqueístas. Esse esboço
vagabundo da nossa polaridade política reflete, com nuances mais
ou menos extremadas, as ideologias da esquerda e da  direita que

52 FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume II: totem e tabu, contribuição à história do
movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Cia das Letras, 2012.

163
Paulo Ferrareze Filho

foram construídas no Brasil, sem prejuízo dos conceitos chatos da


academia sobre o que é a esquerda ou a direita.
A democracia do Brasil é um Grenal mal jogado, com chu-
va e pênalti roubado. Com a diferença de que o resultado do
jogo não nos faz perder apenas a cerveja da aposta com o amigo
do bar. Tucanos e petistas representam, atrás do rótulo de suas
legendas, o discurso de duas visões de mundo que, de fato, são
muito semelhantes.
O pseudo-liberalismo dos tucanos, fundado no discurso de
elogio ao mérito, ao ego e ao lucro; em contraposição ao discur-
so moral-assistencial dos petistas, estilo lobo-em pele-de-ovelha.
Conforme Agostinho Ramalho53, as políticas sociais do PT para
minorar um pouco a miséria dos excluídos (bolsa-família, bolsa-
-escola etc.), por mais bem intencionadas que sejam não deixam
de ser medidas paliativas, de cunho paternalista, que não alteram
o sistema de exclusão dominante, mesmo porque, a ideia de pater-
nalismo traz consigo a existência de um povo carente, sofrido e
injustiçado, logo, um povo facilmente manipulável.
Apesar das aparentes divergências discursivas, ambos têm a
mesma veia oligárquica. O petismo é um projeto político do ar-
quétipo de Judas, o traidor. O projeto petista vai se concluir como
o vexame do fraco que se tornou forte (e bandido)54. Orwell55 e a
fábula dos porcos na política brasileira pós-democrática. Amilton
Bueno de Carvalho, um dos poucos juristas que sobraram no Bra-
sil, postou: “o poder filhadaputiza as pessoas”. Grande Amilton! O

53 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Neoliberalismo e Gozo. In: A Lei em Tempos


Sombrios, organizado pela Escola Lacaniana de Vitória e pela Faculdade de Direito
de Vitória. Rio de Janeiro: Cia. De Freud, 2009.
54 Ver GAGLIETI, Mauro. PT: ambivalências de uma militância. Editora da Casa, 2003.
55 ORWELL, George. A revolução dos bichos. Vargina-MG. Editora Qualquer Uma, 2007.

164
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

pior é que suspeito que grande parte dos juízes criminais do Brasil
escutam o Amilton e fazem cara de nojo. Estamos mesmo fodidos!
Antes de aprofundar ou criticar essas polaridades, o que in-
teressa, nos limites dessas anotações, é apontar a ingenuidade de
pensar que a decisão judicial passa incólume por esse inevitável
maniqueísmo do discurso político, afinal, ele é apenas discursivo
e não efetivo.
Para G. Deleuze, a identificação com a esquerda ou com a
direita esta relacionada a um modo-de-perceber: enquanto o espí-
rito da esquerda percebe antes a  generalidade e depois a particu-
laridade, a direita percebe o particular em detrimento do geral. A
percepção de alguém de esquerda tende a vitalizar fundamentos
metafísicos, coletivos e nacionais, assim como a percepção de al-
guém de direita tende a vitalizar fundamentos egoísticos, singula-
res e idiossincráticos.
Como ressaca da ditadura, a Constituição inscreve o soli-
darismo como grande novidade na proposta democrática que fez
oposição ao autoritarismo da razão militar burra. O monoteísmo
imbecil da ditadura é uma colônia de bactérias que remanesce e,
às vezes, se aglutina para dar vida à gente como o Bolsonaro. O
pior do Bolsonaro é que ele não é autoconsciente de que já morreu.
Esses dias um professor de direito que é meu amigo no Face-
book foi pra Brasília. Tirou uma foto para mostrar que estava lá,
afinal, se não houver fotos, você não foi. Aproveitou a ida para
Brasília para gravar um vídeo com o filho (da puta) do Bolsona-
ro. Ir para Brasília e entrevistar o filho do Bolsonaro é como ir
no banheiro e, ao invés de dar a descarga depois de uma cagada,
comer o próprio cocô.
Essa questão não saiu da minha moringa: como um professor
de direito, 194 anos depois do fim da Santa Inquisição, 70 anos
depois de Hiroshima e 27 anos depois da Constituição de Ulisses,
pode endeusar o (filho do) Bolsonaro?

165
Paulo Ferrareze Filho

Quê pretende dividir com os alunos um professor que apoia


um sujeito que chama imigrantes de escória humana?
E que acha que o próprio pinto é um raio Jeday capaz de
estuprar as mulheres que merecem?
E que acredita que é diferente dos “bandidos” ainda que de-
seje torturar cada um deles com armas medievais como os amassa
testículos, a cadeira de espinhos e o torniquete de dedos?
As redes sociais são uma fonte de pesquisa transdiscipli-
nar fenomenal. É possível pesquisar idiotas que ovacionam os
extremos ingênuos do Grenal político, um dos quais Bolsonaro
é timoneiro. Ao mesmo tempo em que a rivalidade é um signo
cultural do Rio Grande do Sul, também conforma a ingenuidade
da oposição cega. O nojo da prepotência autoritária, que elimina
violentamente a diferença, faz par de oposição com a falsa do-
çura do solidarismo que é vendido como virtude que cobra juros
altamente abusivos.
A identificação dos postulados solidaristas da Constituição
com o discurso que levou o PT às cabeças, hoje atravessado pela
chaga da corrupção viral, impede que se perceba a intenção cons-
titucional como possibilidade. É ingênuo associar o solidarismo
constitucional com corrupção.
Nesses dois polos das fajutas esquerda e direita que se digla-
diam hoje no Brasil, estão a maioria de quase todos os idiotas, que
estão cada vez mais velhos e mais próximos de morrer – fato que
confirma a Teoria da Evolução da Espécie.
A virtude que faz ode à justiça social e aos limites da autono-
mia da vontade, acabam por inspirar muito mais julgadores afeitos
à percepção da esquerda do que da direita. Assim, inevitável que
juízes com posições ideológicas inspiradas na percepção direitista,
em geral com viés conservador, encontrem mais obstáculos pesso-
ais para cumprir as promessas solidaristas da Constituição. Assim

166
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

como juízes simpáticos aos princípios da direita fazem beiço toda


vez que têm que fazer valer as garantias dos mais débeis56.    
Ainda com Deleuze, a percepção se torna uma fonte do di-
reito na medida em que a tendência ideológica da esquerda ou da
direita conforma o desequilíbrio que vem da idiossincrasia posta
em cada decisão judicial.
Em processos criminais, esquerdistas perceberão, antes, as
razões sociais e estruturais que levaram à consequência do delito.
Em processos trabalhistas juízes esquerdistas perceberão, antes, as
influências do modelo econômico nas relações de emprego. Em
processos cíveis, esquerdistas perceberão, antes, o caráter social da
propriedade e do contrato, em detrimento da autonomia arrogan-
te da vontade, inevitavelmente manipulada pelas imposturas do
mercado. O viés direitista, em todos os casos aqui exemplificados,
também ordenará o destino das decisões judiciais.
Juízes com vieses ideológico-políticos de esquerda e direita
utilizarão o caldeirão normativo de princípios, regras, burlas e
arbitrariedades, para vincular suas posições ideológicas às deci-
sões que proferem.
Isso porque um juiz do Inter, na dúvida ou na certeza, lá
nos limbos de seu íntimo, nunca favorecerá o Grêmio. Ou será
que me engano?

56 Conforme FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: La ley del más debil. Madrid:
Trotta, 1999.

167
42. Lula, Moro e os Juristas Engajados

Este texto de encerramento não é jurídico, mas político. Que


meus amigos do processo penal não venham, portanto, encher
meu saco os deveres-ser do dirieto. Se a política vem antes, dando
diretrizes normativas para que um juizote diga sim ou não, pensar
a política é um esforço para mudar o direito.
Digo isso porque meia dúzia de leituras são suficientes
para tornar as pessoas clarividentes de que o direito, tal qual
o concebemos hoje, simplesmente não atinge seus objetivos de
reparação, compensação, restauração de equilíbrio, garantias e
punhetices congêneres.
O caso Lula marcará a história do direito no Brasil. Enquan-
to escrevo, Lula ainda não está condenado. Para juristas ele ainda
é presumidamente inocente.
Eu, por exemplo, tantas vezes presumi que não era corno
quando na verdade era. Acho que desacredito o direito por con-
ta da minha primeira namorada. Eu amava ela. Ou achava que
tesão era amor. Um dia percebi que ela não me dava com muita
vontade; olhava pro teto durante uma chupada etc. Ela tinha ou-
tro. Descobri através da conta telefônica. Naquela época retrô, no
início dos 2000, em que se recebia a conta telefônica pelo correio,
toda discriminadinha. A pós-modernidade nasceu no dia em que
as empresas de telefonia deixaram de mandar a relação de liga-
ções pelo correio.
Abri a conta dela e lá estavam várias ligações e SMS’s para
um mesmo número que respondia dizendo Alô e depois Marcelo.
Quando esse cara atendeu o telefone, toda a nossa regra de fide-

169
Paulo Ferrareze Filho

lidade foi atropelada pela realidade incontornável do desejo dela.


No fim das contas: todas putas? Não. A única puta é o desejo.
Quando os juristas veem o Moro querendo foder o Lula a
todo custo e sem cuspe, nem que para isso ele tenha que mandar
as regras à puta que pariu, sofrem a mesma dor de um corno que
não suporta a infidelidade humana. Há uma religiosidade escondi-
da nas posturas de quem grita e esperneia pelo cumprimento FIEL
das regras e da Constituição...
Mas voltemos ao Lula. Leitor, aprenda de uma vez, o Lula
é como todos nós: corrupto. Não conheço ninguém que repu-
die o Lula e que tenha a ficha COMPLETAMENTE limpa.
Grosso modo, pode-se dizer que há dois grandes grupos de
apoiadores do Lula.

1o) o grupo de apoiadores que se identifica com a cor-


ruptibilidade do Lula e, perdoando a si-mesmos, perdoam
também o Lula.

2 o) o grupo de apoiadores que julgam que ele é, de


fato, inocente.

Ao 1o, meu respeito. Ao 2o grupo, meus pêsames pela ingenuidade.


As regras do direito devem ser seguidas? Claro, quem haverá
de discordar que uma condução coercitiva não precisa, antes, da
ausência injustificada do depoente? O sonho de cumprimento to-
tal das regras democráticas é uma espécie de Nirvana dos juristas
engajados. Tenho um imenso respeito pela figura contemporânea
do jurista engajado. E até sou amigo fiel de muitos. Jurista engajado
não tem preguiça, como eu, de sair na rua pra pedir que  a Consti-
tuição seja cumprida. E de ir a congressos de direito, falar e ouvir,
aos balbucios, que a Constituição deve imperar aqui e ali e acolá.
É duro não ter alguma coisa que diga como devemos fazer as
coisas. À isso a psicanálise chama de sensação de desamparo. Sem

170
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

amparo normativo, como poderemos dormir de noite? Esse é o fan-


tasma do jurista engajado. Os riscos da falta de regras democráticas
são sabidos, sendo as ditaduras o mais fodido de todos esses riscos.
Mas, considerando que a maioria das pessoas no Brasil é meio
analfabeta funcional, temos que começar a pensar bem se a demo-
cracia é um bom negócio. Talvez Platão tenha acertado com aquele
negócio de filósofo-legislador. Mas Platão e Deus já morreram.
O passado que resolva seus problemas. Mas, você já pensou
em quem vai votar na próxima eleição? Se direito se faz de política
e de políticos, é isso que temos que começar a pensar. Ainda há
tempo de você pesquisar. Minha criteriologia é rechaçar políticos
e partidos em que haja algum fedor, tenha ou não merda escondi-
da. É uma sugestão, apesar de sobrarem poucas opções.
Ir atrás de informações é o único jeito de ser um pouco me-
nos vítima do marketing político. Ah, seja crítico com as fontes e,
sobretudo, consigo mesmo.

171
Epílogo Para Fantasmas Autoritários

Quanto tempo dura o que, na alternância de regimes po-


lítico-jurídicos, se pode chamar de período de transição? As
décadas que se seguiram a partir da redemocratização do Bra-
sil, demonstraram de que modo a consciência político-jurídica
brasileira se comportou, bem como revelou o trato do Brasil e
dos brasileiros com a democracia – seja como exercício, como
modelo ou como ideologia.
Com Márcia Tiburi57, pode-se afirmar que “nada do que pos-
samos chamar de conhecimento pode ser concebido fora de seu
registro político”. Mais do que um regime político do Estado ou
um valor social, a democracia funda-se a partir de dimensões de
ordem subjetiva, em que estão ocupados, entre outros, os saberes
do psiquismo social e individual, além das ramificações dos estu-
dos de neurociência e da ciência comportamental.
O espírito democrático idealizado em predeterminações
normativas é construído a partir da subjetividade profunda que
constitui os sujeitos. Warat costumava chamar as subjetividades
de territórios selvagens. E por falar em Warat, é preciso lembrar
que ele, sozinho – de modo especial no sul do Brasil, mas também
em Brasília, Salvador e Goiás – promoveu a viragem crítica do
Direito no Brasil.
Penso não ser desprezível, mesmo cientificamente, o fato de
que, no Brasil, a geração atual de juristas que fazem crítica ao Di-
reito, especialmente quanto aos critérios de coerência normativa

57 TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. 5a ed. Rio de Janeiro: Record,
2016, p. 41.

173
Paulo Ferrareze Filho

e de produção jurisprudencial, é caudatária dos modos de percep-


ção de mestres que viveram o “olho do furacão” entre o regime
militar e a democracia.
A experiência pela qual passou essa atual geração de juristas
(ou seja, de ter sido a plateia que experimentou o último regime
totalitário instituído no Brasil), fatalmente forjou a subjetividade
de quem, hoje, tem interesse e dever de fazer uma teoria da deci-
são judicial à brasileira.
Em que pese haver farta bibliografia sobre as questões ligadas
à constituição do que se pode chamar de subjetividade autori-
tária; sua principal marca é a incapacidade de abertura ao outro,
fechada por motivos cognitivos e culturais, impedindo, assim, o
exercício por excelência da democracia – o diálogo. É assim que
se criam o que, tomando emprestada a expressão de Tiburi, pode-
-se chamar de sacerdotes autoritários58 do Direito. Eles estão na
jurisdição e na academia.
Claro que, após a ditadura, o conforto das garantias, dadas
sempre a amenizar medos fundamentais, se tornam o leitmotiv
republicano. Por isso o afã pela soteriologia constitucional, por
sumular a vida e por homogeneizar decisões em casos análogos
(ou nem tão análogos assim). O desejo de fornecer fundamentos
seguros àquilo que se enuncia, seja na doutrina ou na jurisdição
é, no fundo, desejo de impor limites e indicar caminhos dos quais
não se possa desviar, plasmando na consciência do público ao qual
se direciona a fala, representações e imagens que não pode(riam)
ser refutadas sob pena de heresia teórica. Esse desejo é produto de
velhas superstições e inseguranças humanas.
O caminho que leva o juiz a adequar narrativas processu-
ais aos limites da normatividade é que faz toda a diferença. So-
bre como devem ser as decisões ou as decisões em cada caso,

58 TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista…, p. 27 e 48.

174
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

há teorias de sobra e para todos os gostos. A necessidade prag-


mática de analisar e esclarecer os resultados do pensamento em
sua origem passada59, bem como a necessidade de encontrar o
triunfo narrativo dos fatos de acordo com a perspectiva de Calvo,
tornam perigoso o caminho entre o inconsciente, a subjetivida-
de, a pré-compreensão, o juízo consciente e a materialização do
julgamento. Inevitável que nesse “processo” haja falha, ou uma
série delas. Claro que essas etapas são apenas pedagógicas. Ser-
vem para demonstrar que se trata de um procedimento contí-
nuo, caótico e excessivamente humano. Apontar uma falha, o
que não se faz sem que, inevitavelmente, fatos sejam julgados, é
um procedimento mental que atende necessariamente a um ou
mais paradigmas de determinação. E os perigos nesse itinerário
existem pela certeza de que não são tais paradigmas que, por si só,
garantem a ausência de falhas.
Se numa religião como o cristianismo, por exemplo, o res-
peito aos dez mandamentos é uma prova de virtude do fiel, falhar
significa deixar de observar seus comandos. Em última análise,
desrespeitar um mandamento – como cobiçar a mulher do próxi-
mo, por exemplo – significa falhar com Deus e suas promessas de
vida boa (não só em vida mas também além dela...).
É esse ideal de vida boa que as constituições contemporâ-
neas, imitando a filosofia grega, desenharam nas nuvens da nor-
matividade. A hipótese de satisfação plena das normas constitu-
cionais é uma intenção ingênua de retorno ao paraíso edênico.
Deus e sua cartilha é, portanto, um paradigma de determinação.
Daí porque as Escrituras condicionam o julgamento que padres
fazem a partir da confissão dos pecadores cristãos. Ainda que

59 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos


fundamentos jurídico-científicos. Tradução Kelly Alflen da Silva – Porto Alegre: Sergio
Fabris Ed., 2008, p. 110.

175
Paulo Ferrareze Filho

cobiçar a mulher do próximo seja um preceito fundamental e


pétreo para a normativa cristã, múltiplos espaços narrativos, ao
pé do confessionário, haverão para que pré-juízos e juízos de mil
matizes sejam enunciados.
Daí que o Direito brasileiro pós-democrático, fortemente
marcado pelo protagonismo do Judiciário60, em meio a um am-
biente social líquido, contingente e tribal; não pode esperar cer-
tezas ou segurança jurídica pelo mero advento da Constituição.
Ainda que os diversos caminhos hermenêuticos salvacionistas
vendam a Terra Prometida das certezas constitucionais e da au-
sência completa de falhas de todos os julgadores, a certeza das
respostas adequadas à Constituição – como se se pudesse ter uma
interpretação unívoca dela – são meras pílulas de conforto teóri-
co. As controvérsias fático-narrativas, como se demonstrou, são
apenas uma das premissas esquecidas na tentativa de manter into-
cadas as respostas constitucionais. Aliás, não é desprezível o fato
de que a jurisdição brasileira, em um número gigantesco de casos,
permita que mais de 15 juízes possam julgar um mesmo processo –
do início até as últimas fases recursais e executórias.
Logo, pensar a decisão judicial brasileira a partir de uma
perspectiva efetivamente humana significa admitir falhas, lapsos,
incompreensões silentes, decisões reativas etc.
Essa posição pragmática fica clara quando Gullota afirma
que “concedendo a impunidade, o juiz tem muitas vezes a sensa-

60 Para TOSCANO JÚNIOR, Rosivaldo; STRECK, Lenio. Vontade de Poder versus


Normatividade: O quê o Nazismo nos ensina? Revista Prima Facie. V. 13, n. 24. João
Pessoa/PB, 2014, p. 8-9, “a centralidade do Poder Judiciário hoje é inegável. Pode-se
dizer que, na mudança paradigmática proporcionada pelo Estado democrático de
Direito a partir de 1949, ocorreu um deslocamento do polo de tensão dos demais
Poderes em direção à Justiça Constitucional. A judicatura entrou, definitivamente,
no dia-a-dia da vida administrativo-política brasileira, interagindo, interferindo ou
condicionando tanto a efetivação de direitos fundamentais das três gerações, quanto
a definição de quais as políticas públicas para o atingimento desses fins pelo Estado.”

176
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

ção de permitir ao culpado aquilo que a si mesmo proíbe.” Tal qual


a lei, que tem função de controlar a ansiedade gerada pela incerte-
za e o medo que provém de sua não tutela, também a psique toma
medidas para evitar seu desequilíbrio. Um representante do Minis-
tério Público, em luta contra a própria agressividade, será severís-
simo nos casos de violência contra as pessoas. Citando Servadio,
Gulotta aduz que os mesmos motivos de autocondenação de um
magistrado, que podem levá-lo a se limitar e se punir, também são
os que o levam, inconscientemente, a dirigir a espada da justiça
(uma latente vontade de poder) contra seus semelhantes. Quem,
porventura, tenha reprimido sua excessiva agressividade infantil,
será severo contra toda forma de agressão; o tímido guardará ódio
em relação ao atrevido, a hostilidade pode esconder uma admi-
ração oculta, assim como o excesso de soberba pode denunciar a
insegurança de si mesmo.61
O ativismo dos juízes é marcado pelo uso de fundamentos
não-jurídicos (religiosos, morais, políticos etc.) na decisão62. Ain-
da que sejam saudáveis para a democracia o estabelecimento de
mecanismos de controle do ativismo judicial, qualquer objetivo de
erradicação, próprio das teorias salvacionistas da decisão judicial,
mostra-se não somente insuficiente como também ingênuo.
Essa incoerência entre a dimensão subjetiva autoritária e
suas inevitáveis manifestações comportamentais/teóricas e o regi-
me democrático institucionalizado; é rescaldo abrasivo de algo que
se pode chamar aqui de modelo-de-pensamento totalitário.
É conhecido o autoritarismo de quem, no Direito, detém o
poder da última palavra, da palavra de ordem. Há um sem número

61 Conforme GULOTTA, Guglielmo. Dinâmica psicossocial da decisão judicial. In: Revista do


Ministério Público do Rio Grande do Sul. – Porto Alegre: Nova Fase. V. 1, n. 22, 1989.
62 TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 29-32.

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Paulo Ferrareze Filho

de obras, textos e pesquisas que criticam os modos-de-produção


autoritária no Direito. Desde os discursos que pretendem pôr em
xeque a legitimidade da legislatura feita pelo Judiciário por inter-
médio das Súmulas e Precedentes, passando pelo ativismo judicial
das decisões até chegar às posturas arrogantes de juízes e desem-
bargadores em salas de audiência e Tribunais país afora.
Mesmo as escolas críticas do direito no Brasil, muitas delas
que encabeçam verdadeiras cruzadas contra todos os tipos de au-
toritarismos no Judiciário, não escapam do cancro da subjetivida-
de autoritária. E, nesse sentido, o contrassenso é entre o discurso
de ode à democracia constitucional e o autoritarismo teórico que
(quase sempre) se prega.
Tais posturas chocam-se, do ponto de vista político, com o
regime democrático e, do ponto de vista jurídico-constitucional,
com o viés solidarista da Constituição. Afinal, como a liberdade
e a solidariedade prescritas na Constituição podem vir desacom-
panhadas de um regime de tolerância? Que permita, enfim, a
inserção da diferença através da escuta atenta da fala e da nar-
rativa alheia?
Se, institucionalmente, a única intolerância da democracia é
não aceitar a volta do totalitarismo; subjetivamente, a intolerância
de um colóquio, como manifestação de subjetividades, do mais
pomposo ao mais rueiro, é não aceitar que ideias calem.
As faculdades de Direito e especialmente os programas de
mestrado e doutorado em Direito no Brasil são formados, em gran-
de maioria, por guetos de autoritarismo teórico. Se Warat teve que
criticar o autoritarismo do Estado, a nós, hoje, resta denunciar
todas as formas de autoritarismo, por mais aristocrático que sejam
ou pretendam ser. Qual o papel da jurisdição e da doutrina dentro
de um regime democrático senão o de incorporar dissensos?
O autoritarismo, tanto de viés subjetivo quanto institucional,
é fundado em uma concepção rígida de “verdade”, que atraves-

178
Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil

sa o Direito ao longo da história ocidental e chega até nós com


linguagens escamoteadas. “Decisão justa”, “Resposta correta” ou
“Interpretação legítima” são as novas roupas que vestem a senhora
idosa e caquética que é a “verdade” no Direito.
Claro que a ansiedade em assegurar direitos e conter as trevas
das arbitrariedades depois dos massacres físicos, morais e jurídicos
da ditatura, fizeram das promessas constitucionais uma espécie de
Éden político-jurídico no Brasil pós-88.
Ainda que de teor democrático, a necessidade intrínseca de
assegurar na Carta Política direitos considerados fundamentais,
não veio acompanhada de um manual que fosse capaz de elimi-
nar as subjetividades autoritárias que, inevitavelmente, deixaram
rastro não apenas entre os juristas que enfrentaram o “olho do
furacão”, mas também nos que foram, por estes, influenciados.
Daí porque a questão que inaugura esse fecho (Quanto tem-
po dura um período de transição?), é importante na medida em
que problematiza, primeiro na dimensão política, tanto o retardo
da efetivação de obviedades constitucionais, quanto, nas Teorias
da Decisão Judicial, a teimosa mantença de redutos autoritários
em meio a um regime (também teórico) em que deveria viger, com
garbo e majestade, a mais fina tolerância.

179
Posfácio

Abusado, impenitente, incorreto, incorrigível, recalcitrante,


agoníclito, inarrependido, irregenerável, inemendável, inexpiável,
desobediente. Todos os adjetivos que o leitor, cidadão de bem, pos-
sa vaticinar contra Paulo, são merecidos e acolhidos com certo or-
gulho, afinal de contas, no fundo, ele fala o que não pode ser dito.
Sua escrita faz arder verdades que não podem ser sequer sus-
surradas. Retira a pompa e circunstância da podridão de fachada
e dos jogos mortais que o direito apresenta. A moral vedete, a
mulher honesta e o sujeito cumpridor de suas obrigações que se
autocapa, podem ficar ruborizados, embora normalmente fiquem
com ódio de quem aponta o furo na lei dos desejos.
Joga com o que há de mais sombrio no sujeito, na imensidão
de sua imundície maquiada de moralismo, projetado, com ódio e
volúpia, no bode expiatório da vez, para usar a expressão de René
Girard. As sogras, tão bem explicitadas por ele, seguindo a indi-
cação de Luis Alberto Warat, sonham com um homem bom, de
boa ralé, paradigma, protótipo, herói, alguém que possa salvar sua
filha das agruras da vida. Almejam um homem pérola, de boas
entranhas, capaz de colocar o sapatinho de cristal e de fazê-las
viver felizes para sempre.
Esse homem é crucificado de ponta cabeça por Paulo, que
mostra que as ilusões infantis permeiam o ambiente do direito, na
luta imaginária contra a fruição, o gozo e o devir.
O mercado do amor anda com muitas opções, e o capeta
apresenta muitos objetos de consumo, diriam alguns; enquanto
outros podem pensar desde a erosão do outro, permeada pelo ex-
cesso de narcisismo, em que Eros está fora de moda. O argumento

181
Paulo Ferrareze Filho

de Byung-Chul Han, coreano de nascimento e Professor de Filo-


sofia da Universidade de Artes de Berlin, em seu livro “La agonia
de Eros” (Barleona: Herder, 2014), pode nos servir de norte. Diz
ele que Eros se dirige ao outro e, atualmente, diante da sociedade
do idêntico, sem a dimensão da assimetria e da exterioridade, per-
dermos a capacidade de nos fascinar pelo outro.
Paulo se nega a ocupar o lugar do idêntico que consome. Busca
se fascinar, nos desvarios de um tipo de amor que a sociedade do
consumo nega a proporcionar. É, assim, fora de seu tempo, como
são os visionários. Aliás, além de Warat, Nietzsche, L. F. Barros,
Deleuze, Amilton Bueno de Carvalho, outros desfilam no seu livro.
Se você, caro leitor, chegou até aqui, é porque algo interna-
mente se mexeu. Alguma coisa fez sentido ou incomodou. Pode-
ria terminar com o nosso amigo Warat, que tanta falta faz, mas
prefiro seguir as pegadas de Roland Barthes: “Desacreditada pela
opinião moderna, a sentimentalidade do amor deve ser assumida pelo
sujeito apaixonado como uma forte transgressão, que o deixa sozinho e
exposto; por uma inversão de valores, é pois essa sentimentalidade que
faz hoje o obsceno do amor.”
Obsceno por amar, incorrigível na sedução, quem sabe
Paulo nos possa auxiliar a deixar o lugar de normalpatas (L.F.
Barros), renunciando ao exílio do amor, porque, diz Barthes: “Ao
decidir renunciar ao estado amoroso, o sujeito se vê com tristeza exi-
lado do seu Imaginário.”
Melancólico, depressivo e ferino, como a maioria de tudo que
as pessoas escondem atrás dos sorrisos das redes sociais. Que pos-
samos nos fascinar pela diferença.

Alexandre Morais da Rosa


Juiz de Direito no TJSC.
Pós-Doutor em Direito – COIMBRA/Unisinos.

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