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Constitucionalismo Achado na Rua

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José Geraldo de Sousa Junior Débora Donida da Fonseca
Daniela de Macedo B.R.T. de Sousa Janaína Carvalho Simões Patriota
Daniella de Oliveira Torquato

Constitucionalismo Achado na Rua


uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e
dos Direitos Humanos Constitucionais
1ª Edição – Volume 8

Editora Lumen Juris


Rio de Janeiro
2023
Copyright © 2023 by
José Geraldo de Sousa Junior
Daniela de Macedo B.R.T. de Sousa
Daniella de Oliveira Torquato
Débora Donida da Fonseca
Janaína Carvalho Simões Patriota
Categoria:

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Rômulo Lentini


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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
________________________________________
Apresentação

José Geraldo de Sousa Junior


Daniela de Macedo B. R. T. de Sousa
Daniella de Oliveira Torquato
Débora Donida da Fonseca
Janaína Carvalho Simões Patriota

Este Livro, Constitucionalismo Achado na Rua: uma Contribuição à


Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais, volume
8, da Coleção Direito Vivo, da Editora Lumen Juris, é mais um resultado
coletivo de esforços reflexivos sob uma perspectiva teórica e prática sobre
a temática do constitucionalismo achado na rua. Desenvolvidos por pes-
quisadores e pesquisadoras, estudantes, professores e professoras, em am-
biente de ensino, pesquisa e extensão, serão apresentados aqui trabalhos
que constituem o acervo crítico da Coleção, demarcada pela perspectiva
teórico-crítica de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.
A publicação consolida a reunião de ensaios elaborados por pesqui-
sadores, pesquisadoras e participantes do programa acadêmico de O Di-
reito Achado na Rua, dando continuidade aos 7 volumes já publicados, a
partir do trabalho desenvolvido nos últimos meses de 2022 e no primeiro
semestre de 2023 nos Programas de Pós-graduação em Direito – FD e em
Direitos Humanos e Cidadania – CEAM da Universidade de Brasília, sob
a coordenação e regência dos Professores José Geraldo de Sousa Junior e
Alexandre Bernardino Costa, vinculados aos respectivos Programas.
Considerando a diversidade das trajetórias acadêmicas e profissionais
dos autores e das autoras, o ponto de conexão entre os ensaios foi a participa-
ção profícua e coletiva nos debates, reflexões e seminários sobre temas e reali-
dades que atravessam o debate sobre o Constitucionalismo Achado na Rua a
partir de uma perspectiva teórica crítica do Direito e dos Direitos Humanos.
A obra se apresenta, então, como um conjunto de reflexões e de diálo-
gos teóricos e práticos a partir da fortuna crítica das categorias do Direito
Achado na Rua.
Os ensaios foram organizados em quatro eixos temáticos, construí-
dos tanto singular quanto coletivamente, com diferentes abordagens que
se aproximam em relação à perspectiva de proteção e de promoção dos
direitos humanos à luz de um Constitucionalismo Achado na Rua.
Autores, autoras, organizadores e organizadoras do presente livro
agruparam os trabalhos da seguinte maneira:
Eixo 1 – reflexões teórico-filosóficas;
Eixo 2 – constitucionalismo, movimentos e achados;
Eixo 3 – insurgências e emergências;
Eixo 4 – constitucionalismo e democracia.

Ainda que o fio condutor das reflexões a partir do Direito Achado na


Rua seja a concepção do Direito enquanto “a enunciação dos princípios de
uma legítima organização social da liberdade”, consoante a formulação de
Roberto Lyra Filho, é importante registrar que a singularidade da forma-
ção acadêmica dos autores e das autoras da presente obra poderá traduzir
uma perspectiva que não esteja plenamente alinhada a este enunciado.
Entretanto, os ensaios foram elaborados com o respeito à autono-
mia autoral e acadêmica dos que os subscrevem, com o alinhamento à
perspectiva da emancipação do humano, da proteção e da promoção de
direitos em prol da superação da opressão e da espoliação, no fortaleci-
mento da pauta democrática.
Feito esse breve panorama da coletânea, apresentamos os resumos
dos textos que compõem a presente publicação:
Em Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crí-
tica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais, na condição de texto
de Introdução ao livro, o Professor Dr. José Geraldo de Sousa Junior apre-
senta o percurso das reflexões que entrelaçam o Constitucionalismo com a
perspectiva do Direito Achado na Rua, com referências teóricas e conceituais
fundamentadas na Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos.
Em Constitucionalismo Achado na Rua no Contexto do Pluralismo Ju-
rídico Emancipatório Latino-americano, Eduardo Xavier Lemos, Vercilene
Dias, Daniele Gonzales, Euzilene Morais e Valdivina Costa abordam a ori-
gem e a proposta de emergência do coletivo O Direito Achado na Rua, que se
explica a partir da dialética de Roberto Lyra Filho, partindo da insurgência
das camadas populares e que procura evidenciar a apropriação e redução
do Direito, do constitucionalismo na figura única do Estado. Uma redução
à norma que produz um engessamento da sociedade, criando um Direito
que não responde adequadamente às crises, inerentes de todas as sociedades.
Em A constituição rizomática de O Direito Achado na Rua, Margareth
Conceição Batista discute a teoria de O Direito Achado na Rua sob a Di-
mensão Filosófica do conceito do rizoma de Deleuze e Guattari. Discute-se
o direito dentro da trama rizomática, que não é centralizado e nem hierar-
quizado, mas está aberto a novas possibilidades de teorização, a partir da
percepção de que o direito está inserido na realidade histórica dos sujeitos
e, portanto, passível de reelaboração para atender às necessidades contidas
na realidade cotidiana dos sujeitos. O conceito filosófico desses autores vai
ao encontro das bases epistemológicas e metodológicas da teoria do Direi-
to Achado na Rua que está assentada na historicidade e na complexidade
do homem. O conceito rizomático pode ser explorado nas investigações
sobre o Constitucionalismo Achado na Rua, o Pluralismo Jurídico e, ain-
da, na metodologia de ensino de O Direito Achado na Rua.
Em Direito Achado na Rua: críticas e esperanças, Fernando La Roque
faz uma reflexão crítica das leituras e das aulas da disciplina O Direito
Achado na Rua. A partir das inquietações trazidas por essas vivências, fo-
ram feitas digressões, sempre que possível aplicando ao objeto concreto da
pesquisa que é a dignidade humana, mais especificamente, questionando
o porquê da nossa passividade em relação à constante violação de direitos
de que somos vítimas cotidianamente.
Em O constitucionalismo negro e a contribuição de Sérgio Martins,
Benjamin Xavier de Paula apresenta pesquisa qualitativa baseada em fontes
bibliográficas e documentais sobre a produção intelectual dos/as pesquisa-
dores/as negros que tratam do Direito Constitucional e do Constituciona-
lismo no Brasil, a partir das teorias e metodologias científicas que inserem a
negritude e o racismo como foco de análise das suas investigações, dentre os
quais, o panafricanismo e as teorias da negritude com as contribuições re-
centes dos/as intelectuais brasileiros/as à Teoria Crítica Racial. A imersão no
pensamento do advogado, jurista, e ativista negro brasileiro - Sérgio Martins
- responsável pela primeira produção científica realizada na pós-graduação
stricto sensu na área do Direito, após a Constituição Federal de 1988, de-
monstra como seu estudo busca desmistificar as nuances que permeiam a
nossa tradição constitucional, bem como, indicar caminhos para uma outra
tradição que incorpore os direitos fundamentais da população negra.
Em Direito Achado na Rua e Movimento Negro: Ferramentas consti-
tucionais para a concretização das lutas políticas, Danielle de Castro Silva
Lobato explora como O Direito Achado na Rua dialoga com as demandas
e a luta política da população negra para a concretização de políticas pú-
blicas e avanços para o movimento negro. As diferentes visões a partir de
um pluralismo jurídico se entrelaçam na construção de direitos constitu-
cionais através dos sujeitos coletivos de direitos. Sendo assim, é uma das
questões da contemporaneidade importantes para o campo das Ciências
Sociais e do Direito, ao explicitar e compreender o racismo como fenôme-
no estruturante da sociedade, que gera opressões e determina lugares so-
ciais numa matriz de dominação. O movimento negro e O Direito Achado
na Rua remam contra a maré de opressões na esperança de dias melhores
e ferramentas para o alcance da dignidade humana.
Em Crianças, adolescentes e jovens como sujeitos coletivos de direito:
diálogos e reflexões à luz do constitucionalismo achado na participação, os
autores Alisson Oliveira da Silva, Carolina Rodrigues, Daniela de Macedo
Britto Ribeiro Trindade de Sousa e Daniella de Oliveira Torquato, con-
siderando as diferentes experiências profissionais dos autores, realizam
uma conexão entre os direitos de crianças, adolescentes e jovens com o
constitucionalismo achado na participação. Para tanto, o ensaio propõe
um olhar decolonial, que considera a diversidade social e cultural como
fatores essenciais para enxergar esses sujeitos em sua integralidade, garan-
tindo sua proteção integral e seu desenvolvimento como cidadãos ativos e
capazes de transitar e de contribuir para uma sociedade democrática.
Em O Direito Achado nas Imagens, Débora Herszenhut parte do levan-
tamento do acervo filmográfico desenvolvido ao longo de 1987 e 2014 pela
ONG Vídeo nas Aldeias com grupos indígenas de diversas etnias ao redor do
Brasil, bem como da produção bibliográfica já produzida sobre este acervo
fílmico. Ela apresenta algumas das questões que foram propostas acerca des-
tes filmes relacionando-as com teorias antropológicas e cinematográficas,
ao passo que propõe a articulação destas teorias e questões levantadas acerca
desta produção com a história do indigenismo brasileiro ao longo deste pe-
ríodo. As questões apresentadas referem-se principalmente ao papel desem-
penhado pela imagem na construção de relações e de elaboração de identi-
dades étnicas no contexto político-social contemporâneo, especialmente no
que tange à história da constituição dos direitos legislativos das populações
indígenas brasileiras em diálogo com a teoria do Direito Achado na Rua.
Em A opressão feminina no Brasil como um resquício da colonialidade
e reflexo na representatividade política, Janaína Carvalho Simões Patriota e
Raquel Martins de Arruda Neves registram a presença contínua do poder e
da dominação ao longo da história humana, particularmente evidenciados
na subjugação do feminino desde as primeiras sociedades. No Brasil, essa
dinâmica remonta aos tempos da colonização, quando as mulheres eram
relegadas a um papel secundário, confinadas a atividades privadas e excluí-
das da esfera pública. No entanto, desde o início do século XX, movimentos
feministas emergiram com a intenção de reconstruir o papel da mulher na
busca de equidade. Essas iniciativas encontram respaldo na perspectiva do
Constitucionalismo achado na rua, que almeja transformar o modelo orga-
nizacional do Estado de modo a reconhecer e apoiar as lutas emancipatórias.
O processo de conquista do espaço público pelas mulheres perpassa a ne-
cessidade de uma maior representatividade no Congresso Nacional, que não
reflete apenas uma luta por paridade, mas o reconhecimento histórico de sua
subjugação, com reflexo em diversos aspectos da sociedade contemporânea.
Em Insurgência e disputa de narrativas no campo da segurança públi-
ca: propostas a partir da experiência maranhense de construção de uma as-
sembleia popular pelo desencarceramento, Cristian de Oliveira Gamba busca
descortinar o viés ideológico do populismo penal, ao mesmo tempo em que
apresenta os obstáculos e dificuldades para formação de movimentos de re-
sistência que propiciem às condições para pensar uma nova política crimi-
nal, tudo isso a partir dos aportes teóricos da criminologia crítica e de O Di-
reito Achado na Rua. Por fim, é apresentado e descrito o desenrolar de uma
experiência concreta de insurgência da sociedade civil contra o uso abusivo
do sistema penal, em Assembleia Estadual pelo Desencarceramento, ocor-
rida no Maranhão, cujos trabalhos resultaram na aprovação de parâmetros
para o desencarceramento e para o enfrentamento da violência nas prisões.
Em Entregadores de aplicativo e o Constitucionalismo Achado na Rua:
uma interpelação à Liberdade Sindical, Paulo Fontes de Resende e Silvia
Angélica Tavares Santos trazem apontamentos sobre a forma representa-
tiva coletiva da classe trabalhadora pelo sistema corporativista em cotejo
com as experiências de paralisação das atividades de entrega por trabalha-
dores e trabalhadoras de aplicativo durante a pandemia de Covid-19. O in-
tuito é interpelar a estrutura sindical e o princípio constitucional da Liber-
dade Sindical, inicialmente com uma breve abordagem histórica atinente
à conformação da referida estrutura no Brasil, adiante pondo em destaque
as articulações coletivas que emergiram a partir dos trabalhadores e traba-
lhadoras em tela para, ao fim, entrelaçar tais questões a partir do elo con-
cernente à concepção do Constitucionalismo Achado na Rua, do exercício
do direito de greve e da concretização da Liberdade Sindical plena.
Em Entre os escombros do nosso tempo e o Constitucionalismo Achado
na Rua, Luiz Felipe de Oliveira Pinheiro Veras tem como objetivo inves-
tigar o desenvolvimento, o significado e o alcance do Constitucionalismo
Achado na Rua e sua relação com o Estado Democrático de Direito. Exami-
na as construções jurisprudenciais e doutrinárias sobre o tema, pontuando
algumas observações e recomendações gerais atinentes a esta novíssima
abordagem teórica constitucional. Analisa as contribuições dos demais
constitucionalismos, em especial a corrente atrelada ao Direito Achado na
Rua e a relação entre constitucionalismo, povo e democracia.
Em Das Manifestações de Junho de 2013 à intentona de 8 de janei-
ro: breve análise sob a perspectiva d´O Constitucionalismo Achado na Rua,
Aderruan Tavares discute como a concepção de um direito emancipatório
pode e deve atuar como escudo de proteção contra processos desconsti-
tuintes e desestruturantes da sociedade democrática, notadamente, a bra-
sileira. O Constitucionalismo Achado na Rua se apresenta como poderoso
arsenal teórico e prático no sentido de compreender, pela via do direito
emancipatório, o lapso temporal das Manifestações de Julho de 2013 à
Intentona de 8 de Janeiro de 2023. Além de compreender o momento, o
Constitucionalismo Achado na Rua possui condições de apresentar um
novo projeto de percepção da realidade constitucional que vai além das
possibilidades normativas advindas da Constituição de 1988, bem como
de enfrentar no plano institucional e social as vozes raivosas de turbas que
se apresentam, na esfera pública e nas redes sociais, como se fossem as úni-
cas possibilidades de reprodução do social no campo político.
Em Constitucionalismo Ambiental e Coletividade: Um Estudo sobre a
Subjetividade Diante do Colapso, Ricardo Carmo e Débora Donida abor-
dam a conjuntura de colapso ecológico iminente sob a ótica das experiên-
cias de constitucionalismo ambiental na América Latina, entendendo em
que medida as cosmovisões andinas refletem sobre a ideia de coletividade.
Em seguida, transpõem essa conjuntura às subjetividades humanas, refle-
tindo sobre processos sociais e ecológicos que nos demandam a capacidade
de reaprender a sofrer. Concluem que, para a inauguração de um novo
constitucionalismo “achado na rua”, é preciso, necessariamente, construir
subjetividades humanas capazes de se mobilizar diante da perda de forma
transformadora, superando a melancolia própria do individualismo para
dar lugar ao trabalho de luto em coletivo. Ainda, que o constitucionalismo
achado na rua precisa avançar sobre a agenda ambiental e climática para
atender às necessidades das populações do Sul Global.
Em A Democracia Achada na Rua: o Orçamento Participativo como
uma proposta de discussão popular dos gastos públicos e espaço de fala dos
sujeitos coletivos de direito, José Felicio Dutra Júnior registra que há deman-
das sociais que não podem ser satisfeitas apenas com um modelo de de-
mocracia representativa, mas exigem um processo democrático de ampla
participação popular. Isto porque se discute a racionalização dos gastos pú-
blicos para efetivar direitos que se referem às demandas sociais prestacio-
nais, dentre elas, as previstas no art. 6º da Constituição da República (saúde,
educação, habitação, lazer, por exemplo), a superação da crise ético-política
do sistema representativo, a superação da miséria, a identificação de no-
vos sujeitos coletivos de direito, dentre outras contingências complexas. Os
integrantes da sociedade, neste contexto, além de exercerem o direito de
votar e serem votados no sistema eleitoral representativo, também exercem
o direito de participar no processo de tomada de decisões, principalmente
no destino de verbas públicas nas comunidades locais, destacando-se, por-
tanto, a experiência do Orçamento Participativo (OP).
Sumário

Constitucionalismo Achado na Rua: uma Contribuição à


Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos.................................1
José Geraldo de Sousa Junior

Eixo I
reflexões teórico-filosóficas
Constitucionalismo Achado na Rua no Contexto do
Pluralismo Jurídico Emancipatório Latino-Americano.......................31
Eduardo Xavier Lemos
Vercilene Dias
Daniele Silva da Silva Gonzalez
Euzilene Rodrigues Morais
Valdivina Aparecida Martins Costa

A Constituição Rizomática de O Direito Achado na Rua.....................51


Margareth Conceição Batista

Constitucionalismo Achado na Rua: Críticas e Esperanças.................65


Fernando de La Rocque Couto

Eixo II
constitucionalismo, movimentos e achados
O Constitucionalismo Negro e a Contribuição de Sérgio Martins......85
Benjamin Xavier de Paula

Direito Achado na Rua e Movimento Negro: ferramentas


constitucionais para a concretização das lutas políticas.....................101
Danielle de Castro Silva Lobato
Crianças, Adolescentes e Jovens como Sujeitos Coletivos de Direitos:
Diálogos à Luz do Constitucionalismo Achado na Participação........ 117
Alisson Oliveira da Silva
Carolina Rodrigues
Daniela de Macedo B.R.T. de Sousa
Daniella de Oliveira Torquato

O Direito Achado nas Imagens............................................................137


Debora Herszenhut

Eixo III
insurgências e emergências
A Opressão Feminina no Brasil como um Resquício da Colonialidade
e Reflexo na Representatividade do Congresso Nacional......................... 161
Janaína Carvalho Simões Patriota
Raquel Martins de Arruda Neves

Insurgência e disputa de narrativas no campo da segurança pública:


propostas a partir da experiência maranhense de construção de
uma assembleia popular pelo desencarceramento..............................183
Cristian de Oliveira Gamba

Entregadores de aplicativo e o Constitucionalismo Achado


na Rua: uma interpelação à Liberdade Sindical..................................207
Paulo Fontes de Resende
Sílvia Angélica Tavares

Eixo IV
constitucionalismo e democracia
Entre os escombros do nosso tempo e o
Constitucionalismo Achado na Rua....................................................223
Luiz Felipe de Oliveira Pinheiro Veras
Das Manifestações de Junho de 2013 à intentona
de 8 de janeiro: breve análise sob a perspectiva
d´O Constitucionalismo Achado na Rua.............................................237
Aderruan Tavares

Constitucionalismo Ambiental e Coletividade: Um Estudo


Sobre a Subjetividade Diante do Colapso............................................265
Débora Donida da Fonseca
Ricardo Luiz Oliveira do Carmo

A Democracia Achada na Rua: O Orçamento Participativo


como uma proposta de discussão popular dos gastos públicos
e espaço de fala dos sujeitos coletivos de direito.................................281
José Felicio Dutra Júnior

Minibiografias......................................................................................307
Constitucionalismo Achado na Rua:
uma Contribuição à Teoria Crítica do
Direito e dos Direitos Humanos

José Geraldo de Sousa Junior1

O projeto ora apresentado, elaborado originalmente para fundamen-


tar aplicação ao sistema de Produtividade e Pesquisa – PQ, do CNPQ, para
habilitação na Chamada CNPq nº 09/2023 Bolsas de Produtividade em
Pesquisa e Bolsas de Produtividade em Pesquisa Sênior, é a continuidade
de um percurso de investigação, iniciado em 1982 quando pela primeira
vez me inscrevi e fui habilitado nesse sistema. Já no seu esboço se deixou
nutrir pelos diálogos que animaram grupos de ensino, pesquisa e extensão
que se reportam, política e epistemologicamente, a O Direito Achado na
Rua, sua concepção e prática, conforme as bases dessa linha de pesquisa
inscrita no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ.
Essa continuidade de investigação proporcionou a institucionalização
na Universidade de Brasília (Faculdade de Direito, Programa de Pós-Gra-
duação em Direito, Mestrado e Doutorado; CEAM – Centro de Estudos
Avançados Multidisciplinares/Programa de Pós-Graduação – Mestrado e
Doutorado – em Direitos Humanos e Cidadania), desse Grupo de Pesqui-
sa, certificado, vinculado ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ,
com a denominação de O Direito Achado na Rua, do qual sou co-líder.
Derivação das atividades contínuas do Grupo de Pesquisa O Direito
Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ, dois progra-
mas de Pós-Graduação da UnB, o Programa de Pós-Graduação em Direito
(Faculdade de Direito) e o Programa de Pós-Graduação em Direitos Hu-
manos e Cidadania (CEAM) instituíram em suas bases epistemológicas
linhas de pesquisa com a mesma denominação: O Direito Achado na Rua.

1 Professor Titular (jubilado); pesquisador colaborador voluntário da UnB. Membro da Comissão


Justiça e Paz de Brasília; membro benemérito do Instituto dos Advogados Brasileiros; ex-Reitor
da UnB (2008-2012); Co-Líder do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de
Grupos de Pesquisa do CNPQ).

1
Constitucionalismo Achado na Rua

Resultado da atuação de pesquisa no âmbito dessa linha de pesquisa,


além de monografias, dissertações e teses, são as publicações coletivas carac-
terizando duas séries de um importante catálogo de títulos, muitos dos quais
originados de fomento em projetos ou em bolsas de produtividade e pesquisa,
com o apoio de várias Instituições (Fiocruz, OAB, OEA, OPAS) da FAP-DF
(Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal) e do próprio CNPQ.
A primeira publicação (série) se inscreve na sequência de títulos ao lon-
go desse tempo, desde então formando uma Série: vol. 1 – Introdução Crítica
ao Direito; vol. 2 – Introdução Crítica ao Direito do Trabalho; vol. 3 – In-
trodução Crítica ao Direito Agrário; vol. 4 – Introdução Crítica ao Direito
à Saúde; vol. 5 – Introdução Crítica ao Direito das Mulheres, com uma 2ª
edição lançada em 2015, vol. 6 – Introducción Critica ao Derecho a la Salud,
esta, com a intenção de expandir para o continente a perspectiva emancipa-
tória do projeto, numa área – a saúde – na qual o Brasil, com a experiência da
Constituinte de 1987-1988 e das conferências e processos de participação que
a conduziram, pôde inscrever na Constituição um modelo de saúde como
direito de todos e dever do Estado, com um modelo – o SUS (Sistema Único
de Saúde), exemplar. Em 2015, também, o 7º volume: Introdução Crítica ao
Direito e à Justiça de Transição na América Latina. Em 2016, o 8º. Volume:
Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Em 2019, o 9º.
Volume: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico; e, por fim, em 2021, o
volume 10, Introdução Crítica ao Direito como Liberdade.
A segunda linha é a Coleção Direito Vivo, publicada pela Editora Lu-
men Juris. A Coleção teve início, com o Volume 1 – Direito Vivo: Leitu-
ras sobre Constitucionalismo, Construção Social e Educação a Partir do
Direito Achado na Rua, org. Alexandre Bernardino Costa, com o selo da
Editora UnB, em 2013.
Já na Lumen seguiram-se: volume 2 – O Direito Achado na Rua: Con-
cepção e Prática, 2015; Volume 3 – O Direito Achado na Rua: Nossa Con-
quista é do Tamanho da Nossa Luta, 2017; Volume 4 – O Direito Achado
na Rua: Lendo a Contemporaneidade com Roberto Aguiar, 2019; Volume
5 – O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Tra-
vessias, 2021. E logo, volume 6 - O Direito Achado na Rua. Do Local ao
Universal – A Proximidade Solidária que Move o Humano para Reagir e
Vencer a Peste. Organizadores: Alexandre Bernardino Costa, José Geraldo
de Sousa Junior, Sabrina Cassol. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022;

2
Constitucionalismo Achado na Rua

agora, em 2023, o volume 7, O Direito Achado na Rua: Sujeitos Coletivos.


Só a Luta Garante os Direitos do Povo!.
A presente proposta é, segue-se a mesma metodologia de observação-
-participante, senti-pensante (Fals Borda), decolonial (Quijano, Roberto
Lyra Filho, Boaventura de Sousa Santos, David Sanchez Rubio), em face
das interpelações de movimentos sociais que caracterizam o grupo-movi-
mento (assim definido por Gomes Canotilho), nessa dimensão instituinte
de um constitucionalismo de transformação, designado já em consistente
fundamentação, como se verá a seguir, caracterizado como constituciona-
lismo achado na rua. A partir do Grupo de Pesquisa, há o lançamento de
disciplinas nos programas de pós-graduação (Direito e Direitos Humanos
e Cidadania), nos quais os pesquisadores do Grupo atuam como desenvol-
vedores sob a coordenação do proponente. A disciplina é também denomi-
nada O Direito Achado na Rua. A cada edição das respectivas disciplinas
os participantes são organizados em grupos de pesquisa e co-autorais e se
distribuem pelas referências temáticas que resultam na titulação das obras
que vêm formando o acervo das duas séries O Direito Achado na Rua.
Os temas balizam o protocolo da pesquisa inscrita no plano de dis-
ciplina (plano de curso), envolvendo a seleção bibliográfica a eles relacio-
nados, as resenhas desses textos, seminários sobre os temas, em mesas de
debate abertas e produção dos ensaios. Um grupo organizador é constituí-
do, sob a coordenação do proponente, para a prorrogação do processo de
pesquisa e de organização dos resultados, nos períodos subsequentes até a
finalização do processo e edição do relatório da pesquisa. Assim têm sido
os processos de pesquisa e de publicação dos resultados, reunidos nas duas
coleções. O programa atual se organiza em torno do tema que é designado
para definir a presente proposta: Constitucionalismo Achado na Rua: uma
Contribuição à Teoria Crítica do Direito.
Um exercício atualizado de fundamentação aparece na obra que re-
cebi de meu colega, amigo e co-autor em muitas incidências editoriais o
PDF do livro “Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano:
debates e desafios contemporâneos”2, que tem como organizadores Gusta-
vo Menon, Maurício Palma, Douglas Zaidan.

2 São Paulo: Edições EACH, 2022.1 ebook ISBN 978-65-88503-38-6 (recurso eletrônico)
DOI 10.11606/97865885033861 Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/
portaldelivrosUSP/catalog/view/939/851/3088. Acesso em 15 set. 23

3
Constitucionalismo Achado na Rua

Na nota noticiosa diz Gladstone Leonel da Silva Junior: “A destituição


do presidente Castillo no Peru e a crise gerada nos permite refletir sobre
uma Constituição peruana que inviabiliza um governo sem maioria no
Congresso”. Esta conjuntura e o debate recente ressalta a importância da
obra, e sobre ela, imediatamente, preparei uma recensão para a minha Co-
luna Lido para Você3, publicada semanalmente no Jornal Estado de Direito
E o fiz instigado pela mensagem de meu colega e co-autor Gladstone
Silva Junior, publicada no seu instagram:

Tive a satisfação de escrever com o grande parceiro e professor @


josegeraldosousajr, o artigo que abre essa obra e traz reflexões rea-
lizadas há alguns anos cujo título é: CONSTITUCIONALISMO
ACHADO NA RUA A PARTIR DA AMÉRICA LATINA: ELE-
MENTOS INICIAIS. Existem vários outros artigos importantes e
consistentes ao debate proposto. O acesso ao livro é integral e gra-
tuito, disponível no link na Bio nos stories.

Gladstone vai ao ponto em sua nota. Em toda a América Latina vive-


mos tempos interpelantes, tensos, no embate entre o horizonte histórico de
descolonização e as recrudescências autoritárias do processo capitalista de
acumulação, que em sua exacerbação neoliberal, fomenta a emergência de
radicalismos políticos ao extremo da direita ideológica.
No Brasil, felizmente, e em método democrático movido pelo sufrágio,
estamos agora na transição para o resgate da democracia e dos direitos hu-
manos ao impulso utópico da emancipação. Na Argentina, que mais cedo
encaminhou-se para esse movimento, há ainda sobressaltos e a vice-presi-
dente Cristina Kirchner acaba de ser sentenciada com o acréscimo de “ina-
bilitação perpétua” de seus direitos políticos, em outra extravagância do law-
fare, que embora desmascarado em sua ocorrência no Brasil para impedir o
Presidente Lula de participar de eleições, ainda produz consequências graves.
Gladstone anota o que se passa nesse instante no Peru. Ainda que a
comunicação corporativa e muitos analistas, entre eles progressistas, convir-
jam para uma interpretação que desabona Castillo, caracterizando-o como
protagonista de um autogolpe, na América Latina há vozes que identificam
mais um movimento da direita para arrancar da governança um dirigente

3 O texto referido pode ser visualizado no link: http://estadodedireito.com.br/sociologia-do-novo-


constitucionalismo-latino-americano-debates-e-desafios-contemporaneos. Acesso em 18 set 2023.

4
Constitucionalismo Achado na Rua

de extração popular. A acadêmica peruana, quéchua, Shyrley Peña (aliás,


minha orientanda no doutoramento em Direitos Humanos e Cidadania da
UnB), considera ter havido uma ação destituinte contra a esquerda latino-a-
mericana, entendendo que “Pedro Castillo foi vítima de um contra-golpe da
extrema-direita”, ela afirma em depoimento para o canal Expresso 614.
Nesse mesmo diapasão, a manifestação do presidente mexicano An-
drés Manuel López Obrador, que vê na crise política do Peru “os interesses
das elites económicas e políticas que, desde o início do governo de Pedro
Castillo, mantiveram ‘um clima de confronto e hostilidade’ contra ele”,
conforme reportagem publicada pelo jornalista Rodrigo Soriano (2023).
Assim que, pondo sob suspeição uma difundida convergência de po-
sicionamentos que se associaram para afastar o presidente, numa orques-
tração de hostilidades que nunca disfarçou a rejeição das “elites de la Costa,
contra la gente de la Selva y de la Sierra” (campesinos e indígenas), já come-
çam a crescer os protestos no Peru que pedem a dissolvição do Congresso
e a liberação de Pedro Castillo. Conforme se lê em reportagem publicada
no Jornal peruano Actualidad (2023):

Los seguidores de Castillo demandan que lo liberen y lo restituyen en


la Presidencia, que Dina Boluarte salga de la jefatura de Estado tras
su designación como mandataria por el Parlamento, que el Congreso
sea disuelto, que se convoque a una Asamblea Nacional Constituyen-
te para reformar el país y se realicen elecciones generales.

Dadas as características da obra replico o texto da Apresentação as-


sinada pelos Organizadores Gustavo Menon, Maurício Palma e Douglas
Zaidan, que a explicam e sumariam o conteúdo de cada texto e respectiva
autoria ou co-autoria:

A partir das décadas de 1980 e 1990, com os movimentos de rede-


mocratização, o constitucionalismo latino-americano observou a
promulgação de constituições em diferentes países em que novas
demandas se expressaram para a afirmação do princípio da digni-
dade humana e a materialização de direitos fundamentais, afastan-
do-se de experiências ditatoriais. Por outro lado, as formações do
mais recente constitucionalismo latino-americano merecem uma
análise sociologicamente distinta. Com efeito, elas parecem ser fru-

4 Disponível em https://youtu.be/nVmqTUDURFM. Acesso em 15 set. 23

5
Constitucionalismo Achado na Rua

to de um processo de engajamento da Sociedade civil e da articu-


lação de diferentes classes sociais, havendo a proposição de novas
categorias de direitos constitucionais e de tentativa de se romper
com dinâmicas imperialistas. Ao lado disso, em determinados Es-
tados da região, crescem forças conservadoras políticas e jurídicas
de oposição aos novos horizontes oriundos de constituições e orga-
nizações de movimentos sociais. Nesse diapasão, influenciadas por
categorias europeias, as constituições latino-americanas surgidas a
partir dos anos 1980 podem ser compreendidas como expressões
do processo de redemocratização, disputas e rearranjos entre as
frações de classes dominantes e reproduziram, em grande medida,
“compromissos institucionais e respostas jurídicas forjadas a partir
de problemas formatados pelo discurso jurídico europeu, reeditan-
do na América Latina uma ideologia constitucional que apresen-
ta dificuldades quanto à realização de suas promessas. Exemplos
são os constitucionalismos brasileiro de 1988, o guatemalteco de
1985 e o argentino, nos termos de sua reforma constitucional de
1994. Com a ascensão de governos de esquerda na América do
Sul, diante do contexto da virada do milênio, novas cartas cons-
titucionais foram promulgadas a partir de processos com notória
participação popular. As atuais constituições da Venezuela(1999),
Equador(2008), Bolívia(2009) e, mais recentemente, de Cuba(2019),
buscam apresentar perspectivas inéditas para o constitucionalismo
da região, objetivando romper com o legado e a herança do consti-
tucionalismo europeu. Impulsionadas por demandas populares, as
novas constituições e os debates constituintes levam em considera-
ção elementos de multiculturalidade, plurinacionalidade e, ao mes-
mo tempo, tentam superar as dinâmicas entre países ricos e pobres.
(BARBOSA, Maria Lúcia; TEIXEIRA, João Paulo Allain, 2017).

Em seguida os organizadores sumariam as contribuições da obra, e desse


sumário ponho em relevo a síntese que fazem de meu texto com Leonel da
Silva Júnior. Conforme os organizadores, esse texto que abre o livro, traz

uma reflexão sobre o constitucionalismo latino-americano à luz


da corrente do Direito Achado na Rua, um “Constitucionalismo
Achado na Rua”, como propõem. Realizam tal tarefa por meio de
uma ampla reconstrução teórica, sociológica e histórica, iniciando
com uma revisão da própria noção de Direito Achado na Rua, esta
entendida como espaço de criatividade democrática, jurídica e po-
lítica. O Constitucionalismo Achado na Rua parte da tensão entre
democracia e constituição e alça a pluralidade de sujeitos ao pata-
mar de poder constituinte. O novo constitucionalismo latino-ame-

6
Constitucionalismo Achado na Rua

ricano, enquanto popular, é colocado ao lado de experiências revo-


lucionárias históricas, como a Constituição de 1976 que se seguiu à
Revolução dos Cravos. Para os autores, deve a constituição prover
sentido político ao direito, garantindo legitimidade a sujeitos subal-
ternos inseridos na luta de classes, num processo de construção e
modificação social do direito posto, o que poderia culminar, inclu-
sive, em uma “constituinte achada na rua”.

Tenho que, de qualquer maneira, o constitucionalismo latino-ameri-


cano deve decolonizar-se, garantindo espaço constitucional a movimentos
ligados a lutas políticas populares. Passam os autores, a partir do texto
de Fajardo (2011), a analisar experiências do constitucionalismo latino-a-
mericano desde a década de 1980, concordando que o mais recente mo-
vimento na região formou atores constituintes concretos vindo debaixo,
especialmente se analisadas as constituições equatoriana, boliviana e ve-
nezuelana. O caso brasileiro passa a ser enfocado. Neste, a constituição
encontrar-se-ia aberta a certos sujeitos populares, devendo a luta social ser
reconhecida, academicamente, como a constituir a soberania popular: “O
constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional
que percorre o caminho do retorno à sua função social em um primeiro
momento, para quem sabe constituir força para extravasá-la”. Para os au-
tores, após o “soluço” de 2016 a 2019, o Brasil deveria retomar os rumos do
constitucionalismo achado na rua, e o constitucionalismo latino-america-
no estar “a serviço” da população subalterna.
Fiquei muito contente de ter um texto meu em co-autoria com Glads-
tone Leonel da Silva Junior. Ele abre a edição afinado com o recorte socio-
lógico que foi o seu fio condutor. Os Organizadores se empenharam na
Apresentação em atribuir relevo ao nosso enfoque, reconhecendo a con-
sistência que O Direito Achado na Rua já logrou estabelecer, a partir da
fortuna crítica de suas contribuições para a teoria do direito em 30 anos de
construção de formulação teórico-política.
Não é emulativa essa distinção. Agora ao final de 2022 a Revista de
Direito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UnB
lançou edição especial inteiramente dedicada a O Direito Achado na Rua

7
Constitucionalismo Achado na Rua

e sua Contribuição para a Teoria Crítica do Direito5. Nesse e em outros


trabalhos vai transparecer que muito da fortuna crítica dessa proposta teó-
rica se concentra no cuidado de perceber os “achados” que têm permitido
a atualização de suas linhas de pesquisa. O Constitucionalismo Achado na
Rua pode ser considerado um desses achados.
Na edição comemorativa da Revista Insurgência 8 n. 2 (2022), no
Dossiê: “IPDMS, 10 anos de história e desafios”, tive o ensejo, a propósito
dessa designação, de alinhar os pontos que foram demarcando sua
origem e desenvolvimento.
A partir da publicação, no Dossiê, do artigo de Leura Dalla Riva, que
tem como título Bem viver e o “Constitucionalismo Achado na Rua”: um
olhar a partir da teoria da ruptura metabólica, fui fazendo o alinhavo desse
percurso, inteiramente aberto. Meus alunos de graduação na UnB, da dis-
ciplina Pesquisa Jurídica, neste semestre 2/2022, estão preparando para a
wikipedia o verbete Constitucionalismo Achado na Rua (assim como seus
colegas de semestres anteriores já editaram os verbetes Direito Achado na
Rua, Roberto Aguiar e Sujeito Coletivo de Direito. Na mesma agenda pro-
gramática os alunos de pós-graduação (Mestrado e Doutorado), da disci-
plina O Direito Achado na Rua, da Faculdade de Direito e do Centro de
Estudos Avançados Multidisciplinares, da UnB, estão preparando o volume
7 da Coleção Direito Vivo, da Editora Lumen Juris, cuja retranca é O Direito
Achado na Rua (o vol. 2 da Coleção é O Direito Achado na Rua: Concepção
e Prática; o vol. 5 O Direito Achado na Rua: Emergências, Revisitações e
Travessias; o 7, em edição O Direito Achado na Rua: Sujeitos Coletivos de
Dirteito; o 7º O Direito Achado na Rua: Constitucionalismo Achado na Rua.
Voltando ao meu ensaio de recensão sobre o Dossiê do IPDMS, tomo
o Resumo do artigo de Leura Dalla Riva. Assim, temos que a Autora par-
te de uma análise da crise ecológica hodierna como resultado da ruptura
metabólica existente entre seres humanos e natureza e suas consequên-
cias, este artigo focaliza o desenvolvimento do novo constitucionalismo
latino-americano como um movimento “achado na rua”. A pesquisa tem
como problema de pesquisa: em que medida o novo constitucionalismo

5 Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito
Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://
periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503).

8
Constitucionalismo Achado na Rua

latino-americano abre caminhos para a superação da ruptura metabólica


ao consagrar a ideia de Bem Viver? Para tanto, utiliza-se abordagem de-
dutiva. Primeiramente, aborda-se a categoria “ruptura metabólica” com
especial foco na exploração da natureza na América Latina, o que envolve
a abordagem de questões como capitalismo dependente no continente e
o histórico extrativismo. Num segundo momento, analisa-se qual o pa-
pel das constituições da Bolívia e do Equador como construtoras de um
constitucionalismo achado na rua e apresentam-se as origens, conceitos e
aspectos principais da ideia de “Bem Viver” a partir dos povos latino-ame-
ricanos. Por fim, aborda-se em que aspectos essas constituições apontam
para a superação da ruptura metabólica em prol da ideia de Bem Viver.
Esse texto vem se agregar a um bem constituído modo de pensar o
constitucionalismo, enquanto constitucionalismo achado na rua, tal como
temos os pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação,
O Direito Achado na Rua, tal como o mais atualizado, até aqui, percurso
dos estudos com essa concepção, conforme descrito a seguir.
Desde logo, uma mais estendida e circunstanciada aproximação en-
tre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente foi apresentada pelo
professor De la Torre Rangel (2021), durante o Seminário Internacional O
Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em
sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua en Mé-
xico: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno.
As experiências registradas no México, tendo como base as lutas so-
ciais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historio-
grafia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de
direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações
de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de
sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação cons-
titucional que os caracterizam.
Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (2011), aferindo as
experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há
um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural”
(Canadá, 1982, Guatemala, 1985, Nicarágua 1987 e Brasil, 1988). O segun-
do ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991,
México e Paraguai, 1992, Peru, 1993, Bolívia e Argentina, 1994, Equador,
1996 e 1998, e Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhe-

9
Constitucionalismo Achado na Rua

cido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das


inovadoras Constituições do Equador, 2008 e Bolívia, 2009, nas quais, diz
Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas
quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos
órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen (2021), que já inscrevera em sua concepção a tese de
um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu
diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em di-
reção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo sem,
contudo, abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico,
desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como
pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escri-
tos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria,
de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS
-, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S.
Wolkmer, (2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção,
orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança
também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido:
Outro claro exemplo de racionalidade jurídica diferente resulta em
palavras de Yrigoyen, “la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em
uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente
al robo y el abigeato se traduce finalmente, en prácticas sociales de auto ad-
ministración de justicia” (SONZA, Bettina, 1993).
Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (2019),
mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertu-
ra à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efe-
tiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais
não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional
dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.
Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituin-
tes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta
de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um cons-
titucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer
(2022, a novidade agora vem do Chile, e aponta para o que ele identifica
como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global

10
Constitucionalismo Achado na Rua

referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boa-


ventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, hori-
zontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda,
do constitucionalismo achado na rua.
É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor
para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colo-
cava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmen-
te, com as experiências constituintes em curso na América Latina, apro-
fundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.
Para Wolkmer (2022, p. 87-112),

la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur


global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la pro-
puesta del constitucionalismo transformador de Sousa Santos, B.
de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemo-
logías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino,
ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen
Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitu-
cionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constituciona-
lismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constituciona-
lismo crítico de la liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo
ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hal-
lado en la calle (Leonel Júnior, 2018).

Realmente, Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda


sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado, intitulado “Novo Cons-
titucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia”. Na segunda
edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um
projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bo-
lívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Edi-
tora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate
“O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma
conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade
de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Consti-
tucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então,
o Constitucionalismo Achado na Rua.
O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa di-
mensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em

11
Constitucionalismo Achado na Rua

sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense,


criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias
do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional
na UFF6. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, já
inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar que

Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo


Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas des-
ses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesi-
nas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historica-
mente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas
de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos. (2015, p. 224).

Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua


mais precisa enunciação, valendo o resumo:

A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, en-


seja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sis-
tema político é necessária e uma das formas de viabilizá-la é por
meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os
movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da
América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilida-
des dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado
na rua. (LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA
JUNIOR, José, 2017).

Quase que simultaneamente, também com Gladstone, publiquei em


La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016, o artigo La lucha
por la constituyente y reforma del sistema político en Brasil: caminhos ha-
cia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com
Antonio Escrivão Filho (2016), enuncio, vale dizer, que o Constituciona-
lismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o
caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução con-
ceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido
político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta

6 O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.
ly/2NqaABn. Esse percurso também foi resenhado por mim em http://estadodedireito.com.br/
novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/.

12
Constitucionalismo Achado na Rua

social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro en-


tre a Teoria Constitucional e o Direito compreendido como a enunciação
dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua,
organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisi-
tações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), sendo um capítulo dedicado ao
tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os eixos A Democracia Cons-
titucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de
Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo,
Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo
Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na
ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto,
Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.
É sempre estimulante poder construir com os compromissos de en-
gajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas
emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas
orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com
aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos
de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.
É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que
acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de
análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos ní-
veis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, encontra-se o
texto de Antonio Carlos Bigonha (2023). Bigonha foi subprocurador-Geral
da República, atua na 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo
pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos
Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Po-
pulações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além
de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de
Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para
Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso
61, com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:

A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistra-


tura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de
suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria
corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referi-

13
Constitucionalismo Achado na Rua

da pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF.


Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto
talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivoca-
da da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito
Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico,
uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalis-
mo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação
da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento
dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os
interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado
Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.

Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo acha-


do na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liber-
dade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carva-
lho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua,
a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de
enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Vi-
são dicotômica do Estado e do Direito”7, também extraem consequências
dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.
É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O
Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, reali-
zado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma se-
ção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Acha-
do na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na
Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/
Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos:
Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descoloniza-
ção desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito
Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick
de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los
acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio
de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Co-
letivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucio-

7 O trabalho pode ser encontrado na Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF,
2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado
na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras.

14
Constitucionalismo Achado na Rua

nalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior,


Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021).
Uma nota singular é tributada a meus alunos da disciplina Pesquisa
Jurídica, que integra a base curricular do primeiro semestre do curso de
Direito, da Faculdade de Direito da UnB. Com esses jovens debutantes da
educação jurídica tenho exercitado a diretriz sugerida pelo colega e soció-
logo Pedro Demo para quem não há aprendizagem sem que se conjuguem
dois fundamentos: a pesquisa e a autoria. Por isso, tenho aplicado esse duplo
fundamento em meu plano de curso, o que já valeu duas premiações confe-
ridas pela Fundação Getúlio Vargas (Direito SP), em seu prestigioso prêmio
Esdras de Ensino do Direito fundado em metodologias ativas. Assim, na 4ª
edição (2022), com o prêmio destaque: Hermenêutica- Sociedade de Debates
da Universidade de Brasília: Metodologia Ativa na Aprendizagem do Direi-
to, José Geraldo de Sousa Junior e Julia Caroline Taquary dos Reis.
Mas quero dar relevo à 3ª edição (2020), também com o Prêmio Des-
taque: Pesquisa em (qual) direito, José Geraldo de Sousa Júnior, Eduardo
Xavier Lemos, Renata Carolina Corrêa Vieira, Maria Antônia Melo Be-
raldo, Julia Caroline Taquary dos Reis, Rafael Luis Muller Santos, Juliana
Vieira Machado, Lucca Dal Soccio. Brasília, DF:

No desenho da disciplina Pesquisa Jurídica (1º semestre do curso


de Direito da Faculdade de Direito da UnB), regida pelo professor
proponente e equipe e, seguindo o roteiro programático (Programa
e elementos metodológicos), se habilitam, com autonomia cogniti-
va, teórica e ética, “a desentranhar dos discursos teóricos e técnicos
operados, as pré-compreensões neles inscritas, consciente ou in-
conscientemente”. Projetada para o desempenho regular de curso,
a atividade foi atingida dramaticamente pela pandemia de Covid19.
Inserida nesse contexto, a atividade passou a ter dupla finalidade:
acadêmica e subjetiva. De um lado, proporcionou a/ao estudante
a reflexão teórica e epistemológica sobre os fundamentos da dis-
ciplina, e de outro, favoreceu o acolhimento, na medida em que
proporcionou um espaço orgânico de troca de experiências e vi-
vências por meio da atividade “Cartas da Quarentena”, em que as e
os estudantes foram convidados a refletirem criticamente a conjun-
tura vivenciada, compartilhando suas angústias, dores, esperanças
e sentimentos sobre o momento atual. Ao escreverem cartas ao
grupo, as/os estudantes foram estimulados a manterem o vínculo
coletivo durante o período e não se dispersarem ou se sentirem de-

15
Constitucionalismo Achado na Rua

samparados no começo da sua vida acadêmica, tendo em vista que


a disciplina Pesquisa Jurídica é ofertada no primeiro semestre do
curso. Aplicada em: Graduação. Palavras-chave: Ensino e Pesquisa
Jurídica; Autonomia Cognitiva Teórica e Ética; Pesquisa e Autoria;
O Direito Achado na Rua. (FGV, 2023).

Num retrospectivo e circunstanciado esboço os estudantes-autores


demarcam a inserção decolonial do enunciado, na senda de um constitu-
cionalismo de transformação, intercultural, ecológico, latino-americano,
achado na rua. Para arrematarem:

O Direito Achado na Rua, de cujos fundamentos e prática deriva o


conceito do Constitucionalismo Achado na Rua, trouxe uma série de
noções e categorias para a teoria do Constitucionalismo Achado na
Rua. No âmbito acadêmico, encontrou lastro em inúmeros projetos
que visavam enriquecer o universo jurídico para além de seus vícios
estruturais. A corrente de pensamento originada na década de 80
encontra relevância na atualidade, visto que, no cenário contempo-
râneo da política brasileira é nítido a ausência de representatividade
política que contribui para a perpetuação de problemas crônicos e
estruturais da sociedade brasileira, carecendo de um maior “consti-
tucionalismo achado na rua” em suas dimensões sociopolíticas.
O surgimento do Constitucionalismo Achado na Rua é resultado da
necessidade de romper com o histórico de colonialismo, que está in-
trinsecamente presente na formação econômica, social, política, jurí-
dica e burocrática do Estado. Além disso, o Constitucionalismo Acha-
do na Rua visa, também, superar a concepção positivista e estatal do
direito, que não assegura os direitos dos grupos coletivos e mantém
uma opressão e espoliação em relação aos grupos socialmente desfa-
vorecidos, portanto, a iniciativa popular nas políticas públicas atuais
é considerada um instrumento crucial para transformar a realidade e
garantir a efetivação dos direitos que devem ser assegurados a todos.
O Constitucionalismo Achado na Rua representa um avanço na
justiça social, já que se realiza enquanto teoria crítica de Direito,
que extrai a problemática sobre as estruturas sociais e políticas, que
perpetuam a desigualdade. Portanto, a teoria em questão possibili-
ta maior visibilidade para a justiça, a qual se realiza de forma eman-
cipatória e transformadora. (FGV, 2023).

É importante recordar que o constitucionalismo é permanente ten-


tativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante

16
Constitucionalismo Achado na Rua

que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma socieda-


de complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por
isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que
os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas
que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua
e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e
inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante
a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebis-
citário e nada democrática, pois infensa a qualquer eficaz debate.
Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho (2008) em sede
de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias consti-
tucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem
no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de
diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando, na expressão
dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e
formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de apro-
vada a constituição luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois

do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue


vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de
um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis,
compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não
seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder (CA-
NOTILHO, 2008, p. 23, nota 27).

Um pouco do que se expressa nessa disputa por posições interpretativas


é o que procurei fazer incidir em meu artigo Uma Promessa Vazia?, publicado
como parte do Dossiê organizado pela Revista Humanidades, da Universidade
de Brasília (30 Anos da Constituição Cidadã), acentuando o quanto

no debate público atual sobre importantes questões sociais, econô-


micas e políticas em tempos de dissolução de direitos, que há três
décadas foram garantidos pela aprovação da Constituição Brasilei-
ra, fica a reflexão de qual papel estratégico e político devem os mo-
vimentos sociais assumir neste projeto ainda em construção para
romper o atraso ainda colonialista do País”, para concluir que fazer
avançar essas posições e dar completude às promessas da própria
Constituição, significa caminhar “em direção a um constituciona-
lismo achado na rua (SOUSA JUNIOR, 2018, p. 71-76).

17
Constitucionalismo Achado na Rua

Ao final uma nota para novas aproximações a partir do diálogo que a


instigante reflexão do professor Jesús Antonio de la Torre Rangel provoca,
considerando que a sua obra atual, em ser uma continuidade adensado-
ra de pressupostos epistemológicos para a crítica jurídica, é um completo
catálogo de experiências confirmadoras do direito alternativo, do uso al-
ternativo do Direito, do pluralismo jurídico e, ao fim e ao cabo, do direito
insurgente, que surge do povo, pela emergência de sujeitos coletivos de di-
reitos (SOUSA JUNIOR, 1990), que se inscrevem nos movimentos sociais,
protagonistas de sua própria experiência de humanização e de emancipa-
ção, já que o humano é projeto, experiência na história (ESCRIVÃO FI-
LHO; SOUSA JUNIOR, 2019a):

El derecho insurgente, del que trata este libro, forma parte de um


processo de liberación de la alienación u opresión; se opone a la
legalidade de la injusticia. Em el texto hemos destacado, sobre todo,
las luchas indígenas y campesinas, por la autonomia y la defensa del
território, como uma práctica jurídico-política de pueblos índios y
campesinos; práctica en que [se materializa] el derecho que nace del
pueblo como derecho insurgente.

Minha colaboração com Gladstone Silva Junior portanto, vem de an-


tes e recorta algumas das direções que dão densidade ao conceito. O nosso
capítulo em Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: de-
bates e desafios contemporâneos, não é nem a última, nem a única palavra
nesse tema. Faço aqui referência a abertura de espaços críticos que Glads-
tone vem abrindo no âmbito acadêmico, a partir de sua docência na Uni-
versidade Federal Fluminense, com o programa de Direito Constitucional
no qual inclui o tema proporcionando debates instigantes, tal como esse
Constitucionalismo Achado na Rua: Gladstone Leonel Jr e Lívia Gimenes
Dias da Fonseca. Grupo de Pesquisa Crítica Jurídica Contemporânea –
UFF, disponível no Canal Youtube de O Direito Achado na Rua.
De minha parte, na mesma programação audiovisual, participei com
Gladstone também de discussão com seus alunos, conforme O Direito
Achado na Rua. UFF: Constitucionalismo Achado na Rua e Epistemologias
do Sul. Participação na disciplina regida pelo Professor Gladstone Leonel
Silva Junior. Gladstone, aliás, tem sido um divulgador sempre presente em
nossos espaços midiáticos, assim, por exemplo, no Programa O Direito

18
Constitucionalismo Achado na Rua

Achado na Rua produzido pela TV 61, do Canal Expresso 618, exatamente


figurando o tema O Direito Achado na Rua: O Constitucionalismo Achado
na Rua. Entrevista com o Gladstone Leonel.
Bem mais recentemente, com a publicação de da coleção “Direito cons-
titucional ambiental e teoria crítica na América Latina”, que recebi de meu
colega Gladstone Leonel Silva Junior, me deparei com importante indicação.
Me diz Gladstone: “A conjuntura atual nos permite desaguarmos formu-
lações represadas nos últimos anos”. Pudemos assim organizar e publicar
nesse momento a obra “Direito Constitucional Ambiental e Teoria Crítica
na América Latina” organizada pelos professores da UFF, Gladstone Leonel
Jr., Pedro Curvello e Enzo Bello. Replicar essas temáticas e as formulações
de pesquisadores/as é fundamental9.E ele continua, em nossa familiarida-
de: “Zé, boa parte do capítulo 2 tem como marco pesquisas relacionadas ao
direito achado na rua, a partir da disciplina do mestrado aqui na UFF. Vale
conferir pra ver a turma replicando o DANR aqui no Rio”.
A Nota dos organizadores explica o alcance da edição e sintetiza o
núcleo articulador das contribuições que dão conteúdo à obra:

Essa publicação traz uma amostra qualitativa, em certa medida


também representativa, da produção discente voltada para a te-
mática socioambiental a partir das disciplinas que abordaram a
temática entre os anos de 2019 e 2021, cada qual com a sua perspec-
tiva. Reúne trabalhos dos hoje mestrandos e mestrandas, alguns
já egressos e egressas do Programa de Pós-Graduação em Direito
Constitucional (PPGDC/UFF), alguns professores/pesquisadores
de outras universidades, bem como de alunos de outras instituições
que cursaram as disciplinas: Direito Constitucional Ambiental Ibe-
ro-Americano, Constitucionalismo Achado na Rua e epistemolo-
gias do Sul e Teoria Constitucional Crítica.

No Eixo I estão reunidos alguns dos artigos escritos como parte da ava-
liação na disciplina Direito Constitucional Ambiental Ibero Americano, ofe-
recida nos anos de 2020 e 2021 pelo prof. Pedro Avzaradel. Este eixo reúne
também alguns artigos assinados por professores que contribuíram para a

8 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=V7gQXdu-GNA. Acesso em 15 set. 23


9 Por isso estamos circulando o livro gratuitamente! Neste link é possível baixá-lo! https://www.
academia.edu/104885458/Direito_Constitucional_Ambiental_e_Teoria_Cr%C3%ADtica_
na_Am%C3%A9rica_Latina”.

19
Constitucionalismo Achado na Rua

disciplina, fosse participando diretamente de algum encontro, fosse viabili-


zando o êxito da mesma. De início, citamos a professora Giulia Parola, que fez
seu pós-doutorado no PPGDC e lecionou disciplinas voltadas para a temática
ambiental entre os anos de 2016 e 2018. A professora Parola participou, de for-
ma remota, nos anos de 2020 e 2021, apresentando às turmas suas pesquisas
recentes sobre o legal design, os povos originários e a democracia ambiental.
É o caso de citar a participação do prof. Víctor Rafael Hernández
Mendible, que participou de forma remota em 2021, apresentando sua pes-
quisa sobre o direito à energia como um direito humano. Por fim, parti-
cipam, com os justos agradecimentos, os professores Talden Farias e José
Irivaldo Alves de Oliveira Silva. Ambos colaboraram com a divulgação e
o êxito da disciplina para além dos muros virtuais da UFF, uma vez que,
graças a eles, foi possível receber alunos e alunas de outras partes do Brasil,
sobretudo da Região Nordeste.
Podemos dizer sobre os artigos selecionados que, além da consistên-
cia acadêmica, relevam o recorte dado à disciplina, visto que privilegiam,
na sua imensa maioria, uma abordagem voltada para a compreensão das
questões socioambientais a partir da perspectiva, das análises e dos re-
ferenciais latino-americanos. Direito Constitucional Ambiental e Teoria
Crítica na América Latina
Por sua vez, no Eixo II, estão reunidos artigos das disciplinas Teoria
Constitucional Crítica – lecionada em conjunto por nós três em 2019 – e
Constitucionalismo Achado na Rua e Epistemologias do Sul - ministrada
em 2019, 2020 e 2021 pelo professor Gladstone Leonel Jr. Além de mestran-
das(os) e egressos do PPGDC/UFF, contamos com artigos de professores
de outras instituições, que gentilmente cederam artigos relacionados às
suas pesquisas para a publicação, como é o caso dos professores Alexandre
Araújo Costa, da Universidade de Brasília, e Douglas Zaidan, da Universi-
dade Católica de Salvador.
Folgo encontrar no livro elementos que me foram dados contribuir
para construir com os organizadores, sentido expandido para alavancar
um tema em contínua elaboração.10 Com Gladstone Leonel da Silva Junior,

10 Remeto, conforme os enlaces a seguir, alguns registros midiáticos dessa interlocução: https://
www.youtube.com/watch?v=nF-yMWyFqKk Constitucionalismo Achado na Rua: Gladstone
Leonel Jr e Lívia Gimenes Dias da Fonseca

20
Constitucionalismo Achado na Rua

principalmente, de resto por sua vinculação ao Grupo de Pesquisa O Di-


reito Achado na Rua, e por seus vínculos com a UnB onde, aliás, exercitou
estágio pós-doutoral (CAPES), a perspectiva do Constitucionalismo Lati-
no-Americano em sua variante de Constitucionalismo Achado na Rua, sob
o arranque das Epistemologias do Sul, tenho percorrido um caminho de
demarcação e de enunciação, no sentido empírico, mas também teórico.11
Chamo especial atenção para a coluna na qual faço uma recensão de
Sociologia do novo constitucionalismo latino-americano: debates e desa-
fios contemporâneos. O que posso acrescentar é que fiquei muito contente
de ter um texto meu em co-autoria com Gladstone Leonel da Silva Junior,
nessa coletânea. O texto, aliás, abre a edição afinado com o recorte socio-
lógico que foi o seu fio condutor. Os Organizadores se empenharam na
Apresentação em atribuir relevo ao nosso enfoque, reconhecendo a con-
sistência que O Direito Achado na Rua já logrou estabelecer, a partir da
fortuna crítica de suas contribuições para a teoria do direito em 30 anos de
construção de formulação teórico-política.
Não é emulativa essa distinção. Agora ao final de 2022 a Revista de
Direito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UnB
lançou edição especial, em seu 6º volume, inteiramente dedicada a O Di-
reito Achado na Rua e sua Contribuição para a Teoria Crítica do Direito.
Nesse e em outros trabalhos vai transparecer que muito da fortuna crítica
dessa proposta teórica se concentra no cuidado de perceber os “achados”
que têm permitido a atualização de suas linhas de pesquisa. O Constitu-
cionalismo Achado na Rua pode ser considerado um desses achados.

https://www.youtube.com/watch?v=V7gQXdu-GNA O Direito Achado na Rua. UFF:


Constitucionalismo Achado na Rua e Epistemologias do Sul
https://www.youtube.com/watch?v=ORDRHwx17cg “América Latina e Crise do Progressismo”. Aula
de encerramento da disciplina Constitucionalismo Achado na Rua e Epistemologias do Sul (UFF) com
os professores Gladstone Leonel Silva Junior (Responsável) e Juliano Medeiros (Convidado).
11 Alguns registros que divulguei a partir de minha Coluna Lido Para Você (Jornal Estado de Direito:
http://estadodedireito.com.br/derecho-a-la-agroecologia-uma-concepcion-transformadora-
para-america-latina/; ver também, no mesmo sentido, http://estadodedireito.com.br/sociologia-
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21
Constitucionalismo Achado na Rua

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27
Eixo I – reflexões teórico-filosóficas

29
Constitucionalismo Achado na Rua
no Contexto do Pluralismo Jurídico
Emancipatório Latino-Americano

Eduardo Xavier Lemos


Vercilene Dias
Daniele Silva da Silva Gonzalez
Euzilene Rodrigues Morais
Valdivina Aparecida Martins Costa

1. Origem de O Direito Achado na Rua


O Direito Achado na Rua, um coletivo de pesquisa que surge no ano
de 1987 como legado dos trabalhos de Roberto Lyra Filho para levar adian-
te o projeto denominado Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR). Em sua
derradeira obra – “Desordem e Processo: posfácio explicativo” (LYRA FI-
LHO.1986), Roberto Lyra Filho já fazia menção ao projeto O Direito Acha-
do na Rua, que seria a síntese de sua teoria dialética do Direito (denomina-
da humanismo dialético), a base de cálculo de uma nova filosofia jurídica:
O Direito Achado na Rua (atualmente em preparo) constitui a mais recente
versão, atualizada, de algo que se pode chamar a NAIR in nuce (o mais
apertado resumo, entretanto global, isto é, compreendendo o sumo teórico
e as principais aplicações práticas) (LYRA FILHO, Roberto. 1986. p. 320).
Na mesma obra, Lyra Filho explicará que seu projeto, o humanismo
dialético seria condensado em um compêndio alternativo de Introdução à
Ciência do Direito (LYRA FILHO, 1986, p. 312), sob o título de O Direito
Achado na Rua, e remeterá essa nomenclatura à peculiar passagem da vida
e obra de Karl Marx, os poemas do jovem Marx – Kant e Fichte buscavam o
país distante, / pelo gosto de andar lá no mundo da lua, / mas eu tento só ver,
sem viés deformante, / o que pude encontrar bem no meio da rua. (MARX,
Karl.; ENGELS, Friedrich. in LYRA FILHO, Roberto. 1986, p. 312).

31
Constitucionalismo Achado na Rua

O projeto, O Direito Achado na Rua, é coordenado por seu orientador e


pupilo, José Geraldo de Sousa Junior, para quem Lyra confessou que queria —
aplicar no meu campo de conhecimento, que é o Direito, essa disposição do jovem
Marx, e achar o Direito na rua (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. 2008, p. 26).
O Direito Achado na Rua (ODANR) trata de um projeto interdiscipli-
nar baseado nas experiências teórico-práticas desenvolvidas por Roberto
Lyra Filho e seus colegas da Nova Escola Jurídica Brasileira, transportando
até os tempos presentes os conteúdos desenvolvidos em NAIR. No entanto,
com o passar do tempo, o coletivo foi desenvolvendo, o Aufhebung hegelia-
no (negação-conservação-elevação), tão inspirador de Roberto Lyra Filho.
Assim, ao imbricar-se em um contínuo projeto de Assessoria Jurídica
Popular junto aos movimentos sociais, a força desses coletivos passou a
atualizar e a mover O Direito Achado na Rua, de maneira que a força ins-
tituinte dos sujeitos coletivos de direito passou a pautar as demandas, lutas
e análises do coletivo O DANR.

2. O Pluralismo Jurídico Emancipatório


Tomando por conta que o pluralismo jurídico é um fato, seja pelas
correntes internacionalistas, pela visão do direito comercial/empresarial
(que escancara a força do direito não estatal), nos cumpre refletir sobre a
classificação proposta por Antonio Carlos Wolkmer entre o –pluralismo
jurídico conservador e o pluralismo jurídico emancipatório.
Dessa maneira, o primeiro se enquadra em um prisma autoritário e
despótico, inviabilizando a organização de grupos sociais e impedindo a
participação cidadã; nele estariam o pluralismo, o corporativismo medie-
val, o pluralismo liberal burguês e o pluralismo transnacional, balizado
sob a lógica do mercado, imposto pelo neoliberalismo e pela visão impe-
rialista dos países do norte (WOLKMER, Antonio Carlos, 2018, p. 141-240)
(SÁNCHEZ RUBIO, David. 2018, p. 9-18).
A segunda concepção, onde se enquadra O Direito Achado na Rua,
espelha um pluralismo jurídico participativo e inclusivo, que projeta a in-
tegração progressiva, buscando promover e estimular a participação múl-
tipla dos segmentos populares e dos novos sujeitos coletivos de direito.
Essa proposta, que é de baixo para cima, tem base nas lutas sociais, nas

32
Constitucionalismo Achado na Rua

pautas e reivindicações dos movimentos sociais, nos cotidianos dos povos


tradicionais e originários. (WOLKMER, Antonio Carlos. 2018, p.141-240)
(SÁNCHEZ RUBIO. 2018, p. 9- 18).
Como explica David Sánchez Rubio, essa proposta parte de uma
cultura particular em países colonizados, um traço marcante na cultura
jurídica da América Latina, devido à relação conflitante entre as ordens
jurídicas originárias do continente americano e o ordenamento imposto
pelo colonizador e, ao refletir com Boaventura de Sousa Santos, o autor
espanhol ainda explica que o pluralismo jurídico emancipador reflete si-
tuações extremas de exclusão social a partir da teoria da abissalidade do
autor lusitano (SÁNCHEZ RUBIO, David. 2018, p. 9-18).
Nesse caminho, Alexandre Bernardino Costa situa o Direito Achado
na Rua no Contexto teórico do pluralismo jurídico crítico:

O projeto teórico-prático O Direito Achado na Rua, criado na UnB,


está inserido no eixo do pluralismo crítico, ora discutido, em uma
perspectiva emancipatória, por desenvolver uma crítica jurídica de
perspectiva dialética a partir do método histórico-crítico, apresen-
tando uma proposta de compreensão do Direito – enquanto mode-
lo de uma legítima organização social de liberdade (COSTA, Ale-
xandre Bernardino. 2010, p. 3).

O conceito pluralista de Direitos, proposto pelo coletivo ODANR,


projeta o Direito na história, assim sendo, o Direito estaria relacionado
com processos de estabilização e desestabilização, com transições, em um
movimento dialético de transformação da realidade e, por esse motivo,
o positivismo e o subsequente processo de redução do Direito à norma,
significariam um inviável engessamento social, não respondendo às crises
que são inerentes à própria sociedade, explica Lyra Filho (1980):

O Direito como processo e em constante devenir constitui um feixe


dialético em que atuam formalização (o âmbito normativo), eficá-
cia (o aspecto da vigência social, e não apenas formal, das normas)
e legitimidade (o pólo axiológico, em que as normas formalizadas
e eficazes passam pelo crivo duma estimativa). Não há, nesta ve-
rificação, um mero tridimensionalismo moda realiana (que, como
vimos, acaba reduzido a um tipo mais requintado de positivismo)
ou qualquer das outras que, de GENY a SAUER ou, deste, a FECH-
NER ou REALE; manifestam a tentativa de coordenação dos dife-

33
Constitucionalismo Achado na Rua

rentes aspectos jurídicos, em pauta idealista e não dialética (LYRA


FILHO, Roberto. 1980b, p. 39-40).
É evidente que, para não evolar-se em nuvens metafísicas, maneira
dos iurisnaturalismos fixistas, os parâmetros à da estimativa hão de
ser todos ao nível histórico da práxis social, conforme a dinâmica
da verdade em processo. Isto, sem perder-se nos descaminhos da
medição da consciência real, mas levando em conta o pólo teleoló-
gico da evolução para a qual se volta a consciência possível (LYRA
FILHO, Roberto. 1980b, p. 39-40).

No mesmo sentido, José Geraldo de Sousa Júnior, a partir de João Man-


gabeira, explica que o Estado não teria um fim em si mesmo e mesmo as
sociedades primitivas têm concepções de juridicidade, pois o próprio Estado
seria –apenas um meio, uma organização social e, por isto mesmo, submetido
ao Direito. (MANGABEIRA, João. 1945, p- 15-16, in SOUSA JUNIOR, José
Geraldo de. 1984, p. 32). Ainda em José Geraldo de Sousa Junior, dessa vez
refletindo com Goerges Gurvitch se faz importante perceber a concepção de
ordem jurídica a partir da interligação da –pluralidade de ordenamentos au-
tônomos de agrupamentos particulares, excluído o Estado. (GURVICHT, G.
in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. 1984 p. 51). Dessa forma, a sociedade
demonstra ser o verdadeiro centro da formação do Direito e o Estado tem
aspecto de relevância reduzida, novamente com Gurvitch:

a Igreja, o sindicato, o partido, a família, o truste ou outro grupo,


a perda de uma situação, de um crédito, de uma clientela são os
meios mais reais para lutar contra uma infração do Direito. O que
empreende, demais, o Estado para sancionar, por sua vez, o Direito,
tem uma importância infinitamente menor (GURVITCH, in SOU-
SA JUNIOR, José Geraldo de.1984, p. 51).

Outro fundamento do pluralismo jurídico emancipatório de O Direi-


to Achado na Rua é a tese doutoral de Boaventura de Sousa Santos, apre-
sentada à Universidade de Yale em 1973 sob o título Law Against Law:
Legal Reasoning in Pasargada Law, traduzida posteriormente no Brasil
como O Direito dos Oprimidos, uma pesquisa realizada na Comunidade
do Jacarezinho do Rio de Janeiro:

Favela é um espaço territorial, cuja relativa autonomia, decorre, en-


tre outros fatores, da ilegalidade coletiva da habitação à luz do Di-

34
Constitucionalismo Achado na Rua

reito oficial brasileiro. Esta ilegalidade coletiva condiciona de modo


estrutural o relacionamento da comunidade enquanto tal com o
aparelho jurídico-político do Estado brasileiro. No caso específico
de Pasárgada, pode detectar-se a vigência não-oficial e precária de
um Direito interno e informal, gerido, entre outros, pela associação
de moradores, e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no
seio da comunidade decorrentes da luta pela habitação. Este Direito
não-oficial – o Direito de Pasárgada como lhe poderei chamar – vi-
gora em paralelo (ou em conflito) com o Direito oficial brasileiro e é
desta duplicidade jurídica que se alimenta estruturalmente a ordem
jurídica de Pasárgada. Entre os dois Direitos estabelece-se uma re-
lação de pluralismo jurídico extremamente complexa, que só uma
análise minuciosa pode revelar (SOUSA SANTOS, Boaventura de.
in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. 1984, p. 52-53).

Em Pasárgada (nome que a tese se referiu ao Jacarézinho) foram en-


contradas referências de uma pluralidade de sistemas, de um lado o Direito
Estatal, positivo, formal, representado pela Tríade Judicialização-Legisla-
ção-Administração Pública e suas consequências, exemplo do distancia-
mento do sistema de justiça, o engessamento, distanciamento e a não efe-
tivação das normas, além da presença do Estado em sua figura repressiva
(policial), também a ausência do Estado em sua figura prestativa social
(jurisdição, direitos sociais, respeito à dignidade, liberdade). Por outro
lado, Boaventura de Sousa Santos percebeu no sistema jurídico de Pasár-
gada/Jacarezinho, a insurgência, que se consolida a partir da realidade e
do cotidiano para propor solução dos conflitos urbanos e de vizinhança
dos moradores, com definição de parâmetros de legitimidade próprios de
meios de solução e mediação de conflitos.
É por essa razão que a proposta de emergência de O Direito Achado
na Rua parte da insurgência das camadas populares, que se explica a par-
tir do conceito dialético de Roberto Lyra Filho, que procura evidenciar a
apropriação da riqueza do fenômeno do Direito na figura única do Estado.
Para o autor, essa tentativa de confinamento, de apropriação, é a espoliação
da própria origem do Direito, nas palavras de Lyra Filho:

Para que o Direito positivado exista, é preciso um Direito não posi-


tivado, que vai constituí-lo, abrindo o leque de opções, entre o ins-
trumento jurídico posto a serviço da dominação e o fundamento
dos Direitos de libertação. A dialética social do Direito abrange, não

35
Constitucionalismo Achado na Rua

apenas a formação jurídica visando a estabelecer padrões de controle


social, mas o impulso jurígeno, que visa a delinear uma postura críti-
ca e fixar padrões de mudança. E isto inevitavelmente gera uma plu-
ralidade de ordenamentos em conflito e competição, cuja raiz está na
infraestrutura e na divisão da sociedade em classes (LYRA FILHO,
Roberto Apud SOUSA JUNIOR, José Geraldo de., 1984, p. 58).

Por esse motivo, como bem explica Roberto Lyra Filho, Direito for-
mal e Direito informal seriam umbilicalmente separados e não poderiam
ser metodologicamente divididos, situação que seria ilógica:

Para que qualquer Direito positivado exista, é preciso que o preceda


um Direito e não apenas lege ferenda, de toda sorte inseparável da
lege lata e, mais do que isso, dos Direitos em oposição na sociedade
global. O processo de nomogênese não se detém na hora do corte
umbilical de uma falsa epistemologia idealista, afinal consagrada,
com a separação entre fontes formais e fontes materiais do Direito.
O que a realidade uniu, no processo histórico, não pode a meto-
dologia separar, tomando o Direito fora do útero social e transfor-
mando-o em fantasma lógico-abstrato, para exercícios estrutura-
listas e qualificações deontológicas. Isto acaba transformando a
ciência do Direito num rendilhado que oculta o Direito integral,
a pretexto de analisá-lo; e confina o Direito ao que, com tal nome,
entendeu proclamar a classe dominante. Assim, é evidente, o Di-
reito é escárnio de dominação contra os Direitos populares (LYRA
FILHO, Roberto in; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de., 1984, p. 58).

A concepção pluralista emancipatória de O Direito Achado na Rua,


entende que o Direito se projeta no processo histórico, com a práxis so-
cial, relacionado com processos de estabilização e desestabilização, com
transições, em um movimento dialético de transformação da realidade,
conforme explica Lyra Filho:

[...] o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto des-


venda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos de-
mais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua fil-
tragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos
autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de cons-
cientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quan-
to produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo
de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como

36
Constitucionalismo Achado na Rua

as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretex-


to da consagração do Direito) (LYRA FILHO, Roberto. 1986, p. 312).

É por esse motivo que a redução do Direito à norma produz um in-


viável engessamento social, não respondendo às crises que são inerentes à
própria sociedade, razão pela qual o fenômeno da juridicidade e sua com-
plexidade só podem ser compreendidos pela pluralidade de ordenamentos.

3. O Constitucionalismo Achado na Rua e o


Novo Constitucionalismo Latino-americano
O Constitucionalismo Achado na Rua é, assim, a projeção dos traba-
lhos teóricos e práticos no campo do constitucionalismo, realizados por
uma corrente crítica do direito, situada na Universidade de Brasília, cujo
histórico remonta mais de três décadas de trabalho. Nesse sentido, é im-
portante especificar dois grandes pontos de reflexão: a) O Direito Achado
na Rua e sua história na luta pela democracia no Brasil; b) as relações de O
Direito Achado na Rua com O Novo Constitucionalismo latino americano.
Quanto ao primeiro ponto, é fundamental especificar que a história
de O Direito Achado na Rua, que é inseparável do legado da Nova Escola
Jurídica Brasileira, passa pela resistência democrática à ditadura militar no
Brasil e, nesse sentido, os trabalhos de Roberto Lyra Filho junto de seus en-
tão colegas, de instigar a reflexão, a crítica e a politicidade do Direito, ainda
em momentos autoritários, são um exemplo de movimento estrutural para
a compreensão prática da luta constitucional. Mesmo porque, o coletivo,
nessa transição Nova Escola Jurídica/O Direito Achado na Rua, construiu
importante reflexão e atuação para promoção e abertura à participação
cidadã junto ao processo constituinte de 1987.
Os registros históricos apontam que trabalhos como Constituinte e
Constituição, um curso promovido pela Universidade de Brasília, com forte
participação dos membros de O Direito Achado na Rua, especialmente José
Geraldo de Sousa Junior, que tinha por escopo –mobilizar e disputar protago-
nismo e a narrativa do momento constituinte (SOUSA JUNIOR, José Geraldo.
2020) demonstra o papel do coletivo na reconstrução democrática brasileira:

37
Constitucionalismo Achado na Rua

O curso, organizado em aulas, de modo plural mas com clivagem


estabelecida pela direção emancipatória que os movimentos sociais
imprimiram ao processo constituinte, pode ainda hoje ser tomado
como um repositório avançado de grandes questões civilizatórias
orientadas para um projeto de Nação, de Sociedade e de País e que
certamente se constituem como reservas utópicas para iluminar o
horizonte político obscurecido hoje pelo autoritarismo desdemo-
cratizante e desconstituinte, anti-povo, contra a civilidade e hostil
ao Direito (SOUSA JUNIOR, José Geraldo. 2020).

Outro exemplo é o da participação de José Geraldo como assessor


junto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, construindo portas
para recepcionar institucionalmente as emendas populares, esse –acompa-
nhamento da CNBB à Constituinte, é narrado por José Geraldo de Sousa
Junior em sua tese doutoral:

Para a preparação do Documento Assembleia de Itaici, a CNBB


contou com a colaboração de uma comissão de assessoria, coor-
denada pelo Bispo de Bauru – SP, Dom Cândido Padim, que é
também jurista... Esta comissão continuou disponível durante o
processo constituinte, mas se fazia necessário, também, uma equi-
pe executiva, com sede em Brasília... Para tanto, foi nomeada uma
comissão, composta por três Bispos acompanhantes: Dom Cândido
Padim, bispo de Bauru – SP, o coordenador Dom Benedito Ulhoa
Vieira, arcebispo de Uberaba, MG, e Dom Francisco Austregésilo
Mesquita, bispo de Afogados de Ingazeira, PE. Na equipe executiva:
José Geraldo de Sousa Junior (Professor da UnB) (SOUSA JUNIOR,
José Geraldo de. 2008, p. 28-29)
Depois que Jair Meneguelli, Avelino Ganzer, D. Cândido Padin e os
integrantes deste Seminário nos ajudaram neste Ver, crítico da Igreja
e Sociedade, onde atuamos como cristãos, trabalhadores e políticos,
nada melhor do que essa imersão nos bastidores do trabalho Consti-
tuinte. Isso foi feito com muita competência pelos painelistas: José Ge-
raldo de Sousa Junior, assessor jurídico da UnB e membro da C.A.C/
CNBB, João Gilberto Lucas Coelho, CEAC/UnB e José Carlos Libânio,
do INESC (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de.2008, p. 28-29).

De fato, a participação de José Geraldo de Sousa Junior como assessor


da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil demonstra a forte contribui-
ção de O Direito Achado na Rua no processo das 122 emendas apresenta-
das na Assembleia Constituinte de 1987- 1988, das quais 83 foram admiti-

38
Constitucionalismo Achado na Rua

das, e que democratizaram o processo constituinte, quando historicamen-


te passou-se a designar a carta brasileira como –Constituição Cidadã.
Vale ressaltar que a como processo de mediação e incentivo rua assem-
bleia, esteve a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, como bem registrou
a Gazeta Mercantil em matéria de junho daquele ano, sob o título –CNBB abre
campanha por emendas populares (GAZETA MERCANTIL, 1987).
Ainda, cumpre salientar o 1º Volume da Série O Direito Achado na
Rua, Introdução Crítica ao Direito, lançado no ano da constituinte, que
teve uma unidade específica para tratar desse tema - Unidade 8 – Cons-
tituinte e direito: um modelo avançado de legítima organização social da
liberdade?. O volume é mais um registro histórico de como o coletivo teve
efetiva participação na construção do processo constituinte brasileiro.
Quanto ao segundo ponto, da relação/inserção de O Direito Achado
na Rua, junto do movimento do novo constitucionalismo latino america-
no, é com o denominado Constitucionalismo Achado na Rua, por meio de
pesquisadores e dos coordenadores do coletivo que o coletivo vem acom-
panhando o novo ciclo constitucional da América Latina.
Nesse sentido, livros, artigos, dissertações e teses, inclusive com acom-
panhamento in locu, tem conectado O Direito Achado na Rua dos Movi-
mentos Constituintes do Equador, Bolívia, Chile e México. Ainda, o inter-
câmbio com institutos internacionais, que possibilitam que pesquisadoras e
pesquisadores daqueles países sejam recebidos pelo coletivo na Universidade
de Brasília, também que membras e membros do coletivo experienciem a
realidade constitucional internacional, têm fortalecido o conhecimento.
Outro ponto merece consideração, as divergências teóricas do campo
apontam que os novíssimos processos constitucionais apontados Equador
(2008), Bolívia (2009), México (2011), Constituinte Chile (2022), diferen-
ciam-se daqueles situados nos anos 1980 (Brasil e Costa Rica) e 1990 (Co-
lômbia, Paraguai, Peru, Argentina e Equador), por tratarem dos estados
plurinacionais, pela participação dos povos originários na construção das
pautas e pela construção de projetos de sociedade que rompem com a lógi-
ca do “bem-estar social” capitalista-desenvolvimentista, exemplo da cons-
trução “bem viver”, “sumak kawasay” e “sumak qamaña” cuja proposta de
vida baseia-se na integração entre ser humano e natureza.
Entendemos que de fato os novos processos têm peculiaridades his-
tóricas, ao tempo que não devemos afastar o Constitucionalismo Achado

39
Constitucionalismo Achado na Rua

na Rua e o processo constituinte de 1987 (e seu resultado na Constituição


de 1988) do processo emancipatório que culmina nos contemporâneos e
atualizados projetos andinos. Isso porque, em nossa concepção, as lições
retiradas da participação popular, cuja recepção das emendas foi conquis-
tada por forte pressão do povo, fazem parte de um legado civilizatório para
o povo latino-americano, especialmente no que tange sua construção de-
mocrática e, por consequência, constitucional. Em outras palavras, a luta
do povo brasileiro, escancarado as portas da Assembleia Constituinte,
popularizando e democratizando o processo, acabaram por impulsionar
processos redemocratizadores no continente.
É verdade que a constituinte brasileira não tratou de temas como a
soberania dos povos originários, por sua vez recebeu os debates que cul-
minaram na Convenção n. 169 da OIT, de maneira que seu capítulo VIII e
seus artigos 231 e 232, baseados na representatividade das falas dos povos
na Assembleia de 1987 (exemplo da emblemática fala de Ailton Krenak, de
terno branco, pintando seu rosto em plena Assembleia
Constituinte), reconheceu aos povos originários sua “organização so-
cial, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988).
De outro modo, a Constituição brasileira de 1988 foi a porta de entra-
da do processo de redemocratização das Américas, recém-violentadas por
ditaduras militares, também foi a porta de abertura da representatividade
popular no processo constitucional no continente, deixando importante
legado, o que, passadas mais de três décadas, não significa dizer que sua
abordagem, redação e temáticas sejam perfeitas ao século XXI, a franqueza
da reflexão não significa que lhe coloquemos como um processo deslocado
do fenômeno do novo constitucionalismo latino-americano, muito pelo
contrário, ele tem fases, iniciando-se nos 1980, marcado pela importante
conquista brasileira, passando pelos 1990 com novos processos constitu-
cionais também no marco redemocratizador, atravessando os anos 2000 e
projetando a cultura andina que é estendida para o começo dos anos 2010
e que agora começa a tomar nova fase com as novas constituintes, exemplo
da chilena, que apesar de não ter tido o texto final aprovado, demarcou
novos debates que atravessarão a próxima década.

40
Constitucionalismo Achado na Rua

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A Constituição Rizomática de
O Direito Achado na Rua

Margareth Conceição Batista

1. Introdução
Do ponto de vista da física, a força centrífuga existe apenas de um re-
ferencial não inercial. A força centrípeta, embora leve a alteração da direção
e/ou do sentido da velocidade do objeto em uma trajetória circular, sempre
apontará para o centro. Esta informação, embora seja parte do estudo da
física, (cinemática), Roberto Lyra Filho toma-a para observar o fenômeno
jurídico imbricado nas relações sociais (Gladstone Leonel et al.,202, p.263), e
para auxiliá-lo a construir a fortuna teórica do Direito Achado na Rua. Isto é
possível porque a escola do Direito Achado na Rua não tem seus fundamen-
tos nas teorias formais sobre o direito, mas é alternativa para que o fenôme-
no jurídico seja visto fora dos seus centros de produção. Ora, se é alternativa,
as possibilidades de construção de sua teoria emergem de várias dimensões,
como a física, a filosofia, a sociologia, a poética, as artes; não se fecha em um
único ramo de conhecimento. Tendo em vista que o Direito Achado na Rua é
uma ruptura com o “Direito subordinado ao Estado e como mecanismo ex-
clusivo de submissão de uma classe sobre a outra”, (GLADSTONE LEONEL
et al.,2021, p.263). Esse texto examina o Direito Achado na Rua, no diálogo
com as ideias de Deleuze e Guattari (1995) no conceito de rizoma. Não que-
rendo conformar o assunto nesta visão filosófica, mas apenas com o propósi-
to de enxergar a teoria lyriana, tão como ela é, ou seja, em constante processo
de construção, visto que é um processo dialético que se faz na historicidade.

2. Discussão
Considerando a física, se a força centrípeta busca sempre o centro
em um sistema circular, mesmo que mudem as suas trajetórias, a força

51
Constitucionalismo Achado na Rua

centrípeta remete sempre para o centro. A partir dessa referência da física,


observa-se a estrutura social; no centro se encontram as relações sociais
que estão padronizadas e estabilizadas, as forças do centro não admitem
que outras forças atuem sobre elas, um sistema de controle social atua em
conformidade, também, com o sistema jurídico, Lyra Filho (1995). Ao con-
trário, a força centrífuga age para desvincular-se do movimento circular,
fugir do centro. A força centrífuga é o referencial em que corpos se movi-
mentam e tendem a sair pela tangente.
Para Lyra Filho (1995), no ramo centrífugo surgem as ações das clas-
ses e grupos espoliados e oprimidos que se opõem a estrutura constituída
do direito estatal, estruturante e estruturado, conforme Bourdieu1 (1989).
Dessas formulações emerge o Direito Achado na Rua como, “fuga do cen-
tro”, do sistema de controle jurídico para a admissão de “outros centros de
produção normativa na esfera intraestatal” (SOUSA JUNIOR, 2021, p. 80).
Da mesma forma, pode ainda ser pensado como linha de fuga das segmen-
tarizações (DELEUZE; GUATTARI, 1995), que o sistema jurídico produz.
Se na força centrífuga há a fuga do centro, para atuação do Direito para si-
tuações concretas, em contraposição ao direito abstrato, como sugere Lyra
Filho, há no rizoma 2as linhas de fugas 3que da mesma maneira se con-
trapõem a permanência das normativas jurídicas que apenas conduzem o
Direito de forma que sejam aceitos, sem, contudo, produzirem efeito eficaz
para a maioria das populações subalternizadas.
Em primeiro lugar situamos os fenômenos jurídicos como um rizoma,
(consoante o pensamento de Deleuze e Guattari,1995). Uma trama com vá-

1 Os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem


exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder Simbólico é um poder de
construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do
mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo
lógico, quer dizer, ‘uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que
torna possível a concordância entre as inteligências. (BOURDIEU, 1989: 9)
2 Rizoma é um conceito filosófico que Deleuze e Guattari introduzem para questões essenciais. No
Volume I de Mil Platô, Deleuze e Guattari recorreram à botânica para explicar a organização da
multiplicidade. O rizoma preconiza uma forma de organização com um sistema de caules, é polimorfo,
não têm direções indicadas, são caules horizontais que se diferenciam em seu crescimento.
3 Deleuze e Guattari (1995) entendem que a realidade é apreendida a partir de linhas: linhas de
fuga, linha flexíveis, e linhas de segmentaridade. As linhas de fugas são novas apreensões feitas
através dos agenciamentos.

52
Constitucionalismo Achado na Rua

rias ramificações que crescem de forma horizontal e que não tem direção
definida. Para Deleuze e Guattari (1995), no rizoma não existe hierarquia. O
Direito moderno tem sua estrutura arbórea, “foi reduzido a uma noção de
ciência das leis, composta de normas estatais dotadas de sanção e imperativi-
dade”, (SOUSA JUNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 14). Está contido nas
linhas segmentaridade4, linhas duras. Esse Direito busca aprisionar todas as
ramificações que possam ser contrárias ao conhecimento centrado, busca
impor limites a todos os desdobramentos de conhecimento não equalizáveis
aos seus paradigmas teóricos. Tentam reduzir a multiplicidade; o Direito
Achado na Rua, através de Lyra Filho e depois com José Geraldo Júnior, em
oposição ao Direito estruturante, é rizoma. O rizoma, de acordo com Deleu-
ze e Guattari (1995), não é fechado, mas abre-se às várias direções, ele não
aprisiona e nem domina, “algo que pode se expressar por diversas formas de
conhecimento, inclusive artística, em uma ciência oficial, rígida, formal [...]”,
(SOUSA JÚNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 16).
O rizoma comporta várias ramificações, não tem um centro específico.
Nos rizomas todas as tramas se encontram. Enquanto no Direito Moderno
há o deslocamento dos sujeitos dos processos históricos, o Direito Achado na
Rua não reduz a realidade, pois a trama comporta todas as experiências hu-
manas, porque no rizoma o Direito não está separado das condições concre-
tas onde o homem cria e recria a sua história. O Direito na trama rizomática
não está separado, mas está engendrado na visão complexa que incorpora
os contextos; tanto simbólicos quanto físicos. Nesse sentido, esse Direito vai
falar e vai ouvir várias vozes, desde as vozes que vem do centro, quanto as
vozes que vem da periferia, vozes constituídas em outras dimensões sociais
onde as normativas jurídicas formais se desdobram em novas normativas, a
fim de atender as especificidades e diversidade de grupos sociais. Quanto a
isso, Gladstone Leonel et al. (2021), afirma que,

Lyra Filho formula uma teoria dialética sobre o direito, pautada por
um materialismo histórico. Isso implica dizer que cada momento
apontando pela teoria lyriana como constitutivo do fenômeno jurí-
dico determina e é determinado por todo o processo global em que

4 Linhas de segmentaridade são linhas imodificáveis. “Todo rizoma compreende linhas de


segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado,
atribuído” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.17)

53
Constitucionalismo Achado na Rua

ele está inserido. No modelo proposto, Roberto Lyra Filho (1995)


reconhece que a sociedade nacional está inserida no sistema mun-
do, razão pela qual a dialética desenvolvida na sociedade interna-
cional, que emerge da infraestrutura socioeconômica internacional
e que se manifesta nas lutas de libertação dos povos que compõem
o tal sistema, (LEONEL JUNIOR et al.,2021 p. 263).

Os fundamentos do Direito achado na Rua não rompem definitiva-


mente com o Direito formal, mas, a partir das escapatórias, abre linhas de
fuga para outras concepções de juridicidade que não estão presentes no Di-
reito Moderno. As linhas são possibilidades de lutas, lutas contra a coloni-
zação, lutas quanto as identidades indígenas, lutas antirracistas, de gênero
e das mais diversas lutas dos movimentos sociais populares, que não estão
contempladas pelo Direito Moderno, que é excludente, que têm limitações
constitucionais e não se integra com a política. No rizoma a possibilidade
de linhas se moverem por todas as partes constituem-se em agenciamentos5,
(DELEUZE; GUATTARI,1995). As linhas de fuga trabalham em oposição às
segmentarizações. Nesta oposição constrói-se o direito emancipatório.
Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro,
daí O Direito Achado na Rua se conectar com os vários campos do saber,
enquanto diálogo interdisciplinar, sobre discussões práticas e teóricas da
ordem jurídica e de sua legitimidade, (SOUSA JUNIOR, 2019). Dessa for-
ma, O Direito Achado na Rua não se fecha, exceto caso a razão seja a sua
impotência em criar e recriar na realidade concreta. Mas a multiplicidade6
pode mudar sua natureza, parte-se para outras ramificações como Cons-
titucionalismo Achado na Rua. Dessa forma, o Direito Achado na Rua,
se abre a novas rupturas. As rupturas não podem segmentarizar, não es-
tratificam, pois se estratificarem correm riscos de voltar a ser um direito
fechado. Não pode unificar, ou totaliza-se, pelo contrário, deve ter articu-
lação com o percurso que se coaduna com a busca da democracia (SOUSA
JUNIOR; ESCRIVÃO FILHO,2016).

5 Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que


muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões, (DELEUZE;
GUATTARI, 1995).
6 São a realidade respectiva, não são unidades e não totalidades e não dizem respeito a nenhum sujeito

54
Constitucionalismo Achado na Rua

No método rizomático de Deleuze e Guattari (1995), o Direito, (con-


siderando como objeto do estudo), deve ser analisado de forma descen-
tralizada. Deve ser analisado em outros registros e dimensões; evita-se a
centralização da ordem jurídica. Sem dúvida, os estudos de Lyra Filho nos
anos 60 abarca a análise descentralizada do Direito,

[...] a partir dos estudos desenvolvidos em perspectiva dialética orga-


nizou a seu turno uma sofisticada reflexão crítica ao positivismo jurí-
dico, [...], Para um Direito sem Dogmas –, no qual formulou os fun-
damentos de uma concepção de Direito livre dos condicionamentos
ideologizantes dos modelos antitéticos do juspositivismo empiricista
e do jusnaturalismo metafísico Lyra Filho entende o Direito, assim,
não como a norma em que se exteriorize, senão como “enunciação
dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”
(LYRA FILHO, 1980). (SOUZA JUNIOR et al., 2021, p.82)

O Direito sob este fundamento abre-se as multiplicidades, em agen-


ciamentos. (DELEUZE; GUATTARI,1995). O Direito que se abre a cone-
xões, articula-se e reorganiza-se para incluir as lutas sociais que Boaventu-
ra de Sousa (2003), afirma ser a conciliação da produção do conhecimento
e do sentido com as necessidades sociais, concretizando o sentido utópico
transformador do próprio direito (SOUSA JUNIOR, 2012, p. 7 apud SOU-
SA JÚNIOR, 2021, p. 75).
Assim, o Direito achado na Rua se abre para multiplicidades, para
a realidade histórica do homem; se histórica, as multiplicidades, dester-
ritorializações, linhas de fuga “mudam de natureza ao se conectarem às
outras”. (DELEUZE; GUATTARI,1995, p.16). Na realidade histórica o
tempo e o espaço interferem nas conexões, não é possível, pois, pensar na
produção do Direito sem fundamentá-lo na realidade, se concretizar na
ética da alteridade, em políticas participativas e democráticas que estão em
constante mudanças. As conexões deverão adaptar-se nas novas realida-
des; políticas, sociais, econômicas e as novas complexidades que os sujeitos
apresentam, tanto o sujeito individual quanto o sujeito coletivo.
A partir dessas conexões confere-se ao Direito um sentido político, e
com isso outra conexão se faz para garantir a concretude das teorias cons-
titucionais baseadas no que Lyra Filho considera humanismo dialético,
que se reconhece nas lutas sociais e nas práticas emancipatórias (SOUSA
JÚNIOR, 2021). Logo, a garantia da concretude das teorias constitucionais,

55
Constitucionalismo Achado na Rua

baseadas no humanismo dialético, vai encontrar ressonância no Constitu-


cionalismo Achado na rua, que tem sua dinâmica teórica a serviço dos es-
poliados e oprimidos. O Direito encontrado no Constitucionalismo Acha-
do na Rua, na trama rizomática, continua a romper, mudar de natureza,
no entanto, não deixa de ser Direito. “Há ruptura no rizoma cada vez que
linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz
parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter umas às outras”,
(DELEUZE; GUATTARI,1995, p.17).
Assim, as problematizações levantadas pelo Direito Achado na Rua,
quando faz a crítica às fontes originárias do Direito, permite que outras
fontes possam ser acionadas, não pelas próprias fontes originárias, as fon-
tes estatais, mas pelos movimentos sociais populares que não veem no con-
trato social seus direitos garantidos. As fontes do Direito tradicional são
questionadas porque as necessidades dos sujeitos na contemporaneidade
não são as mesmas e os próprios sujeitos estão em movimento. Esse aporte
trazido pelo Direito Achado na Rua permite que o privilégio do saber ju-
rídico, da detenção das teorias sejam questionadas, porque as fontes origi-
nárias do direito anulam as subjetividades dos sujeitos, considerando-os,
como as próprias leis constitucionais, abstratos.
O fechamento desse saber, por classes privilegiadas, eurocêntricas e
monopolizadas pelo estado subordinam tanto os indivíduos quanto toda a
produção de saber oriundas de fontes periféricas global e locais. Na pers-
pectiva de rupturas e conexões, os grupos em cooperação social se unem
para reivindicar o direito que diz respeito as suas formas de vida, as suas
crenças, seus territórios. A luta é para reconhecer os direitos de indiví-
duos, colocados em lugares indignos historicamente e o reconhecimento
das suas trajetórias, que são silenciadas; inclusive, os saberes das popula-
ções são colocados em lugares inferiores, por conta da segmentarização
e hierarquização das normas jurídicas, tanto quanto a posição geográfica
em que foram e são produzidas, quanto a hierarquização, de acordo com
centros de produção do saber.
Nessas condições, Wolkmer (2021) afirma que surge as produções epis-
temológicas “desde abajo”, que deixam as produções do centro para acomo-
darem os saberes que vem desde as “teorias do Sul” global (CONNELL, 2007;
COMAROFF; COMAROFF, 2013, apud WOLKMER, 2021). São condições
de espoliação da população que permitem “introduzir outros referenciais

56
Constitucionalismo Achado na Rua

que privilegiam o poder da comunidade e a satisfação de necessidades de no-


vos sujeitos coletivos que entram em cena” (WOLKMER 2021), desde o Sul
Global. Nesse sentido, as linhas de fugam estão configuradas na produção
de saberes contra os saberes hegemônicos; contrapõem-se aos instrumentos
epistêmicos usados para colonizar as vidas subalternas.
Quando existe o reconhecimento dos sujeitos, a partir dos seus luga-
res e territórios de origem, entende-se que as condições em que se dão sua
existência, com suas organizações de poder e suas peculiaridades não são
possíveis serem reconhecidas nas normas constituintes que não podem de-
terminar o que é direito para esses grupos, povos, populações. Nesse sentido,
o reconhecimento de que há diferenças na existência e vivência dos diversos
grupos sociais, abre a possibilidade para que normas jurídicas possam ser
constituídas em referência ao modo de viver desses grupos, de sorte que sur-
gem as linhas de fuga que se constituem no pluralismo jurídico.
Todavia, o pluralismo que se quer não é pluralismo jurídico que se en-
contra no Direito moderno, subordinado ao estado, que não abre mão de sua
soberania. O pluralismo que não permite o diálogo é muito mais engodo ju-
rídico, que objetiva o aprisionamento das leis para não permitir a mudança,
pluralismo jurídico, pensado do centro. Este não é o que dá espaço e lugar
para novas entrâncias (situação geográfica e fatores socioeconômicos de re-
levância), pois ele se baseia nas normas internacionais de Direitos Humanos
que determinam segmentarizações, pois “Toda vez que uma multiplicidade
se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma
redução das leis de combinação”, (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.13). Con-
trapondo-se a este pluralismo estatal, Wolkmer assinala:

Um pluralismo jurídico enquanto insurgência de práticas normati-


vas participativas e comunitárias vivenciadas e/ou produzidas por
sociabilidades excluídas e injustiçadas pelo Direito formalizado,
vinculado e legitimado pelo poder político estatal. Trata-se, por-
tanto, da opção por um pluralismo jurídico existente, preferencial-
mente, em sociedades periféricas, compreendido “de baixo para
cima”, enquanto expressão de normatividade informal, direito in-
surgente, paralelo ou do chamado Direito alternativo. Nessa moda-
lidade de pluralismo se insere experiências de normatividades que
vão além do Estado, como a justiça comunitária (urbana e agrária),
a justiça indígena, a justiça “quilombola” dos afrodescendentes,
das rondas campesinas, justiça itinerante e outras inúmeras expe-

57
Constitucionalismo Achado na Rua

riências práticas (legalidade consuetudinária, normatividades das


comunidades campesinas, regras internas de movimentos sociais
permanentes), (WOLKMER, 2021, p.221.)

O pluralismo pensado de cima, produz ele mesmo, é segundo De-


leuze e Guattari (1996), o decalque que injeta redundâncias. O decalque
quer estratificar, fazer do rizoma raiz, quer neutralizar, não legitima a luta
social, reprime a construção concreta da cidadania. Trata-se de pensar o
pluralismo jurídico dentro do debate descolonização; cultural, econômico
e político; uma vez que há o fortalecimento dos grupos, dos movimentos
sociais populares que, em conjunto, buscam pautar suas reivindicações até
mesmo ao nível global, a partir do Sul, a fim de romper a dependência e a
dominação dos países hegemônicos.
Neste mesmo debate, a importância dos movimentos sociais na luta
por direito, leva a questão do sujeito coletivo de direito, “aquele que adqui-
re fundamento jurídico por meio da ação coletiva dos movimentos sociais”
(WIKIPÉDIA, 2023). Ora, se no direito moderno, o sujeito é individual, no
Direito achado na Rua o sujeito coletivo de direito é alvo e autor da norma
jurídica. Para Wolkmer (2021), o pluralismo liberal e de mercado vê os in-
divíduos de maneira isolada, enquanto o pluralismo comunitário é carac-
terizado pela interatividade e relaciona-se às singularidades e às identida-
des coletivas, grupos organizados à volta de privações e anseios coletivos.
Nesse viés, o Direito Achado na Rua é fundação de territórios no pro-
cesso de construção do pensamento crítico para a constituição do pluralis-
mo jurídico, porque “envolve o esforço pedagógico de trazer para a discussão
práxis históricas de emancipação” (Wolkmer, 2021), pois funda territórios
no processo de criação dos movimentos sociais. Decerto que, ao assumir
que o Direito Achado na Rua se encontra dentro do processo de pensamen-
to rizomático, expressa sua metodologia de ensino, tanto na sua constitui-
ção ontológica como epistemológica nas teorias críticas pós-estruturalistas.
Sousa Júnior (2021) afirma que buscou desenvolver a pesquisa jurídica no
campo interdisciplinar, sem definir objetivo e problema, enxergando o co-
nhecimento em um deslocamento constante, contrário ao ensino tecnicista.

58
Constitucionalismo Achado na Rua

3. Metodologias rizomáticas para apreensão


do Direito Achado na Rua
Na perspectiva do conceito filosófico de Deleuze e Guattari, para a com-
preensão do Direito, leva-se em consideração a complexidade que lhe é ineren-
te. O conhecimento para esses autores é a construção do próprio devir. Isso
implica renunciar às próprias certezas do conhecimento. E em relação a teorias
do Direito, se está no devir, não pode condessar-se em normas acabadas.

[...] constituindo-se este processo, no tocante à pesquisa, o meio


para a superação da distância que separa o conhecimento do Direi-
to, de sua realidade social, política e moral, espécie de ponte sobre o
futuro, através da qual transitem os elementos para a estruturação
de novos modos de conhecer a realidade do Direito. Trata-se de um
trabalho crítico e consciente apto a afastar o jurista das determi-
nações das ideologias jurídicas, quebrar a unidade do mundo e do
pensamento jurídico constituídos nestas ideologias. Romper, em
suma, com a estrutura de um pensamento abstrato convertido em
concepção jurídica do mundo, por isto, ideologia jurídica, inapto
para captar a complexidade e as mutações das realidades sociais e
políticas, (SOUSA JUNIOR, 2021, p.84).

Fundado na complexidade das realidades sociais, constrói-se o en-


sino sobre o Direito Achado na Rua como um conhecimento que está em
constante ebulição e rompe a lógica que atravessa a pesquisa do direito po-
sitivista na modernidade. Analogamente, a metodologia de ensino, assim
como o próprio Direito Achado na Rua, está alicerçada nas experiências e
reflexões sobre a prática, por isso definir como metodologia rizomática. Na
metodologia rizomática a produção do conhecimento do campo jurídico
não está concluído, ao contrário, permite que as experiências de produção
de conhecimento, tanto acadêmico quanto produzido nos movimentos so-
ciais, na periferia, na favela, nos territórios indígenas, nos quilombos e nos
mais variados grupos sociais, se conectem e produzam novos agenciamen-
tos, “Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões
numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que
ela aumenta suas conexões”, (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.16).
O aumento das conexões, os agenciamentos não dão respostas às
questões que permeiam campo jurídico, mas é sua problematização.

59
Constitucionalismo Achado na Rua

Problematizar significa a possibilidade de romper o pragmatismo


decorrente do ensino tecnicista infenso à percepção da direção das
correntes de transformações e dos protagonismos que as impulsio-
nam, constituindo-se este processo, no tocante à pesquisa, o meio
para a superação da distância que separa o conhecimento do Direi-
to, de sua realidade social, política e moral, espécie de ponte sobre o
futuro, através da qual transitem os elementos para a estruturação
de novos modos de conhecer a realidade do Direito. Trata-se de um
trabalho crítico e consciente apto a afastar o jurista das determi-
nações das ideologias jurídicas, quebrar a unidade do mundo e do
pensamento jurídico constituídos nestas ideologias. Romper, em
suma, com a estrutura de um pensamento abstrato convertido em
concepção jurídica do mundo, por isto, ideologia jurídica, inapto
para captar a complexidade e as mutações das realidades sociais e
políticas (SOUSA JUNIOR, 2021, p.84).

A heterogeneidade na produção do conhecimento deriva da realidade


concreta e por isso reinventam percursos para participação comunitária,
territorialização dos espaços de produção de conhecimento e reinvenção
da “Educação Jurídica”, (COSTA, org., 2013, p.363), a conciliar a produ-
ção do conhecimento com as necessidades práticas da sociedade, para que
seja concretizada a utopia transformadora do próprio Direito (SOUSA JU-
NIOR, 2003), que está passível, constantemente, de transformação e dis-
cussão rumo ao inesperado. Disso decorre, o ensino de direito ser um pro-
jeto político pedagógico que firma a sua metodologia no reconhecimento
do homem em sua complexidade, pois este está imbricado das circunstân-
cias que o rodeia. Quanto a esse tema, Alexandre Bernardino assegura:

O conteúdo do ensino, determinado por ele mesmo, pela pesquisa


e pela extensão, tem, necessariamente, que extrapolar o currículo
fechado do positivismo jurídico e a formação limitada pela análi-
se dos códigos legislativos [...] cumpre, portanto, assumir o espaço
do ensino jurídico como mais adequado à elaboração teórica e (re)
produção de um saber aberto, interdisciplinar, estabelecido através
da relação permanente entre instituição escolar e sociedade (COS-
TA, 1992, p.210, apud, COSTA, 2013, p.371).

Decorre disso, assumir as diferenças tanto no que diz respeito aos


próprios sujeitos, alvos do processo educativo do campo jurídico, como as
diferenças e proximidades dos vários ramos do conhecimento, que faz da

60
Constitucionalismo Achado na Rua

universidade campo heterogêneo dos conhecimentos e estende os saberes,


(conexões), tanto para a divulgação na comunidade, quanto a absolver os
saberes comunitários; acomodando-os e contextualizando-os para solução
dos problemas jurídicos que nascem no cotidiano.
Assume-se assim a postura crítica, recriando possibilidades de reela-
boração do direito, “mudando a orientação tanto nos estudos desta ciência
quanto na prática jurídica” (FREIRE, 2023). Na ação e compartilhamento,
criação e em constante devir, que desterritorializa, (DELEUZE; GUATTA-
RI, 1995), o direito das elites que o condiciona, com fim territorializar com
o pensamento emancipatório, permitindo a participação e protagonismo;
dá voz aos discentes, aos movimentos sociais populares no dialogismo pe-
dagógico, próprio de uma pedagogia autônoma, (FREIRE, 1996).
Nesta fundamentação está o ensino do Direito Achado na rua, sua me-
todologia está nessa relação dialética com o mundo, conforme Nita Freire,

de natureza progressista, que tem como objetivo a igualdade de to-


dos e todas perante uma justiça equânime como fator que abre a
possibilidade de harmonia da vida social numa relação dialógica e
dialética entre contexto (a realidade), texto (a legislação) e os con-
flitos sociais. Tarefa gigantesca numa sociedade de classes, como a
brasileira marcada por fortes traços escravagistas, interditares, eli-
tistas e discriminatórios (FREIRE, 2014).

A dialética da proposta no Direito achado na Rua difere da dialética


das teorias críticas que fundamentam o direito moderno, (que separam o
homem da sua verdade material e histórica), mas apreende o caráter his-
tórico dos sujeitos; suas particularidades e singularidades, que não são
apreendidas pelo direito intransigente.

4. Considerações Finais
Diante da discussão apresentada, conclui-se que, que o conceito de
rizoma de Deleuze e Guattari (1995) traz importante contribuição para a
teoria lyriana de o Direito Achado na Rua, pois a teoria rizomática abarca
a complexidade do homem perante o fenômeno jurídico, não podendo ser
examinada apenas sobre a ótica eurocêntrica e centralizada, que não aten-
de as demandas do homem em sua complexidade. Dessa forma, a elabora-

61
Constitucionalismo Achado na Rua

ção contínua do conhecimento sobre o Direito, necessita tomar consciên-


cia dessa complexidade, tendo em vista que os modelos de conhecimento
desenvolvidos pelo direito não abarcam a realidade histórica. No rizoma,
percebe-se não uma realidade pronta, mas uma realidade que se constrói
continuamente, pois nenhuma produção humana pode ficar presa a um
único conceito ou a respostas previamente definidas.
Se com Lyra Filho temos o ponto de partida para a práxis do direito
emancipatório, a continuidade dessa pesquisa ramificou-se em discussões mais
complexas para o Constitucionalismo Achado para Rua, para as discussões
sobre o pluralismo jurídico emancipatório e sobre o sujeito coletivo de direito.
Ao aproximar-se das teorias do estudo da física, Lyra Filho apro-
pria-se da interdisciplinaridade, explicitando o conceito de multiplicidade
presente na filosofia de Deleuze e Guattari (1995). Posteriormente, outras
investigações sobre o Direito Achado na Rua, coordenadas pelo Profes-
sor José Geraldo Junior, discípulo de Lyra Filho, vão contribuir para que a
multiplicidade de agenciamentos dessa disciplina do Direito possa alcan-
çar o objetivo inicial da sua criação; que é reflexão sobre o Direito, não ape-
nas como norma, mas que exteriorize, segundo Lyra Filho (1980) a “enun-
ciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”,
(Apud, SOUZA JUNIOR, 2021, p.830).
Todavia, ainda há ainda desafios para a linha de pesquisa o Direito
Achado na Rua; dentre as várias ramificações que se formam em sua cons-
tituição interdisciplinar, necessita manter as bases epistemológicas em que
foi constituído, fortalecendo a ação e a reflexão como pressuposto, para que
novos agenciamentos não sejam segmentarizados e dominados apenas por
grupos específicos, que, ao desterritorializar o sistema jurídico dominante,
começa a se territorializar em um círculo específico de sujeitos e saberes e
constituir-se como novo centro de dominação do conhecimento e de produ-
ção do conhecimento jurídico, fechando-o a novos sujeitos e conhecimentos.
No pensamento rizomático, lida-se com incertezas, com continuidades
e descontinuidades, com saídas e entradas e com o inacabamento da teoria,
dos sujeitos alvos da receptividade da teoria, com o inacabamento dos pró-
prios pesquisadores do Direito, das tecnologias do saber e da própria socie-
dade mutante. A própria metodologia encontrada na produção da teoria do
Direito achado na Rua necessita se reinventar constantemente para atender
as demandas de novos sujeitos construtores dessa epistemologia. Portanto,

62
Constitucionalismo Achado na Rua

aqui se fala em uma metodologia rizomática, pois constantemente linhas


de fuga se constituem para aprender e apreender o Direito emancipatório
conforme a autonomia que lhes é dada. Mantêm-se, dessa forma, a postura
dialógica para conservar viva a reflexão e a ação, (FREIRE, 1996), na criação
do conhecimento sobre o Direito Achado na Rua. Exclui-se o constituir-se
Direito somente de centralidades para pensar o constituir-se Direito a partir
das necessidades cotidianas e, no cotidiano, não é possível uma metodologia
sem movimento, pois o movimento é inerente ao ensino que visa mudança,
a conquista de cidadania e o acesso aos direitos.

Referências

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COSTA, Alexandre Bernadino (Org.). Direito vivo: leituras sobre


constitucionalismo, construção social e educação a partir do achado na
rua. Brasília. Ed. Universidade de Brasília, 2013.

DELEUZE, Gilles; FÉLIX, Guattari. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia.


Vol. 1. Rio de Janeiro, Ed. 34. 1995.

______. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. tradução de Aurélio


Guerra Neto et alii. Vol. III. Rio de Janeiro. Ed. 34.,1996.

FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). “Acesso à Justiça e a pedagogia


dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação
com o Direito como prática para a libertação”. Disponível em: http://
odireitoachadonarua.blogspot. com/2014/09/acesso-justica-e-pedagogia-
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo; ESCRIVÃO FILHO, Antonio. Para um


debate teórico-conceitual e político sobre os Direitos Humanos. Belo
Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.

63
Constitucionalismo Achado na Rua

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de [et al.]. O Direito Achado na Rua:


Introdução crítica ao direito como liberdade. In: Pluralismo Jurídico
Comunitário-participativo: processos de descolonização desde o Sul.
Brasília: OAB Editora; Editora Universidade de Brasília, 2021.

______. O Direito Achado na Rua: Introdução crítica ao direito como


liberdade. Brasília: OAB Editora; Editora Universidade de Brasília, 2021.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. São Paulo.


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______. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In: A


gramática do tempo. Para uma nova cultura política. pp. 401-435. Porto,
Afrontamento, 2006.

______. Crítica de ciências sociais. N. 48. Faculdade de Economia da


Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais, 1997.

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v 1 6. Ed. São Paulo: Cortez, 2007

REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL:


Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na
Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras. Editor-Chefe
Defensor Público do Distrito Federal Alberto Carvalho Amaral, v. 1 n. 2,
Brasília, maio a setembro de 2019, p. 1-213, 2019.

SUJEITO COLETIVO DE DIREITO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre.


Flórida: Wikipedia Foundation, 2023. Disponível em: https://pt.wikipedia.
org/w/index. php?title=Sujeito _coletivo _de_direito&oldid=65255186.
Acesso em: 15 fev. 2023.

64
Constitucionalismo Achado na
Rua: Críticas e Esperanças

Fernando de La Rocque Couto

El constitucionalismo achado na rua,


es um proceso histórico de liberación de
sujetos colectivos, que puede, por excep-
ción, plasmarse en normas fundamentales
del Estado. Pero la mayoría de las veces su
función está en organizar las resistencias
e insurgencias de pueblos y comunidades
por defender la autonomía, el territorio y
las condiciones materiales de vida digna
(Jesùs Antonio,2021, p .243).

Vamos, nesse ensaio, fazer uma reflexão crítica das leituras da discipli-
na O Direito Achado na Rua, das discussões nas aulas e da nossa “vivência”
nesse primeiro semestre como estudante do PPGDH. A partir das reflexões e
inquietações trazidas por essa vivência, faremos algumas digressões, sempre
que possível aplicando ao nosso objeto concreto da pesquisa que é a dignida-
de humana, mais especificamente, o porquê da nossa passividade em relação
a constante violação de direitos que somos vítimas cotidianamente.
Chamar atenção para a passividade se relaciona com a perspectiva de
um constitucionalismo achado na rua, ou seja, é imprescindível que os su-
jeitos de direito exerçam suas prerrogativas para que a sociedade se modi-
fique e para que as políticas públicas sejam efetivadas, ou seja, será sempre
necessária a mobilização social, cidadãos atentos e sujeitos individuais e
coletivos de direito atuantes.
Nossa inquietação diz respeito à compreensão de possíveis mecanis-
mos de paralisação que cerceiam o ímpeto pela luta por direitos, condição
necessária para a constituição de um constitucionalismo achado na rua
enquanto liberdade e ação.

65
Constitucionalismo Achado na Rua

Estabeleceremos um diálogo com as ideias de Herrera Flores, uma


vez que nos identificamos com a sua visão de direitos humanos quando ele
afirma que: nosso livro se estrutura em torno da seguinte premissa teórica:
falar de direitos humanos é falar da “abertura de processos de luta pela
dignidade humana” (2009, p.21).
Sua perspectiva de Direitos Humanos como luta e emancipação, nos
faz pensar na formação de sujeitos coletivos, em um pluralismo jurídico e
nas condições para uma vida digna.
A dignidade humana é uma questão fundante dos direitos humanos
e dialoga com o direito achado na rua e com o constitucionalismo achado
na rua, na medida em que a vida digna é fruto das lutas e conquistas hu-
manas, ou seja, tanto para o direito achado na rua quanto para os direitos
humanos temos uma perspectiva de motivação/mobilização para que os
sujeitos de direito possam, e de fato efetivem, a instituição de direitos que
permitam a todos uma vida digna, sem privações materiais e opressivas em
função de subalternidades impostas por qualquer critério.
Herrera Flores complementa o seu entendimento de dignidade:

Entenda-se por dignidade não o simples acesso aos bens, mas que
tal acesso seja igualitário e não esteja hierarquizado “a priori” por
processos de divisão do fazer que coloque alguns, na hora de ter
acesso aos bens, em posições privilegiadas, e outros em situação de
opressão e subordinação. Mas, cuidado! Falar de dignidade huma-
na implica fazê-lo a partir de um contexto ideal ou abstrato. A dig-
nidade é um fim material. Trata-se de um objetivo que se concretiza
no acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem com que a
vida seja “digna” de ser vivida (2009, p.31).

Jesùs Antonio (2021) ressalta a importância de lutar por nossa dignida-


de e que o constitucionalismo achado na rua tem como uma de suas funções
organizar as resistências e insurgências para a defesa da nossa dignidade e de
nossos direitos, ou seja, a nossa acomodação enquanto sujeitos individuais e
coletivos de direito seria uma das causas da nossa cidadania passiva.
Essa passividade compromete a perspectiva de um direito achado na
rua, na medida que a rua é palco de protagonismo, manifestações e reivin-
dicações, enfim, a luta por liberdade exige cidadania ativa.

66
Constitucionalismo Achado na Rua

Dessa perspectiva, situações que desestimulem as lutas emancipató-


rias ou que coloquem obstáculos para que essa luta seja lutada comprome-
tem a dignidade humana e a luta constante para que ela se realize.
Essa resistência à ação que estamos designando genericamente aqui
como passividade, envolve uma teia de outros fatores objetivos e subjetivos
que não temos como explorar nesse trabalho.
Afirma Herrera Flores:

Não podemos entender a força emancipadora dos direitos – e mui-


to menos explica-los a quem não compartilha a visão ocidental do
mundo – se não somos capazes de introduzir em seu conceito e
em sua prática a pluralidade e a diversidade de formas de abordar
as lutas pela dignidade. É o único caminho para construir uma
aproximação intercultural que possibilite que todas e cada uma das
percepções da dignidade que habitam nosso mundo possam “fazer
valer” em condições de igualdade suas concepções acerca do que
deve ser uma vida digna de ser vivida (2009, p.22).

O questionamento da exclusividade do Estado como única fonte para


a origem das normas jurídicas com sua lógica formalista excludente que
pouco olha para o contexto efervescente das relações sociais aproxima as
duas visões, ou seja, a abertura para o pluralismo jurídico como afirma
Herrera flores: os direitos não podem se reduzir às normas (2009, p.17).
Não podemos entender a força emancipadora dos direitos sem pensar
no pluralismo jurídico, ou seja, pensar os direitos humanos numa perspec-
tiva decolonial, uma vez que eles são um produto da ideologia ocidental,
quando a Europa se auto infringe com o holocausto e o racismo, sendo um
movimento de reação a essas arbitrariedades. Dessa forma, a Declaração
Universal de Direitos Humanos é produto de uma visão europeia, patriar-
cal, proprietária em que a mulher foi excluída.
José Geraldo (2021, p. 83) afirma que:

O humanismo de O Direito Achado na Rua, como salienta o Pro-


fessor Roberto Lyra Filho (1982; 1983; 1986), formulador de seus
princípios, longe de se constituir numa idolatria do homem por si
mesmo, procura restituir a confiança de seu poder em quebrar as
algemas que o aprisionam nas opressões e espoliações que o alie-
nam na História, para se fazer sujeito ativo, capaz de transformar o
seu destino e conduzir a sua própria experiência na direção de no-

67
Constitucionalismo Achado na Rua

vos espaços libertadores. Mas a liberdade, ele acrescenta, “não é um


dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos
isoladamente, mas em conjunto.

Na mesma direção caminha David Sánchez Rubio (idem, p.93) ao


afirmar que:

a inclinação em relação ao eixo epistemológico que se constituinú-


cleo fundante do Direito Achado na Rua, pressupõe, não perder de
vista que “un direito achado na rua, (é) un derecho que nace en la
calle, popular, donde la calle es una metáfora del espacio público, el
lugar donde acontece la protesta de los nuevos sujetos colectivos ca-
paces de elaborar un proyecto reconocimientos recíprocos a partir
de una cidadania popular activa y autónoma.

No mesmo sentido, Antonio Carlos Wolkmer (idem, p. 264) “ao se


referir ao constitucionalismo achado na rua” evoca situações de ebulição
histórica que levariam ao nascer de uma nova constituição brotada das
ruas, cujo fermento é a mobilização social, o questionamento de estruturas
opressivas ao exercício da liberdade.

O que não se assume é que o fenômeno jurídico é apenas opressão.


Ao contrário: pode ser também a legítima organização social da
liberdade, um mecanismo que se constrói coletivamente para que
toda a liberdade possível naquele momento histórico possa se ma-
nifestar, em alguma medida, dando fôlego à luta social.

Raquel Fajardo (2015, p. 42) considera a constituição de um Cons-


titucionalismo Plurinacional que implica na refundação do Estado não a
partir do etnocentrismo nem das justificativas ideológicas que buscaram
justificar o colonialismo, mas baseada no reconhecimento da plurinacio-
nalidade para enfrentar a colonialidade do Estado-Nação.
Nesse sentido, Raquel Fajardo afirma que há de se fortalecer o respei-
to ao pluralismo jurídico e à interculturalidade para romper as desigualda-
des econômicas, sociais e políticas.
A colonialidade do Estado-Nação é um ponto que deve ser mais dis-
cutido na medida em que abre a perspectiva de constituição de um Cons-
titucionalismo Plurinacional. Essa combinação de Estado-Nação está bem
expressa no estabelecimento de um Estado capitalista, fundamentado nos

68
Constitucionalismo Achado na Rua

valores do mercado, patriarcal, racista e sexista que violentou as socieda-


des originárias, suas práticas e seus saberes.
O desprezo pelo outro aparece na recusa em aceitar percepções, ex-
plicações e vida social fora dos parâmetros do colonizador, resultando,
como diz Wolkmer, (2021, p. 220) em epistemes alternativas que foram
ocultadas, minimizadas ou inclusive negadas nas ricas tradições dos sabe-
res da América Latina, África” e alcançando o Sudoeste Asiático.
Acreditamos que a emergência da categoria indivíduo é uma mar-
ca do colonialismo contra o coletivismo das sociedades originárias. Uma
visão crítica do colonialismo mostra o genocídio desses povos, funda-
mentado nas teorias evolucionistas e racistas do século XIX com ênfase
na competição, no militarismo, e que fez emergir a atitude etnocêntrica
praticada pelos colonizadores que impunham sua cultura subalternizando
a diferença de modo pejorativo.
A diferença é vista como errada, anormal, desviante, primitiva, infe-
rior, doentia etc. O Etnocentrismo do colonizador adentrou ao direito na
forma de normas monolíticas, muitas vezes abstratas, pretensamente uni-
versais e cegas para o contexto das mobilizações e insurgências libertadoras.
Nesse sentido, Leonel Gladstone; Pedro Brandão e Magnus da Silva
Henrique (2019, p. 224), chamam atenção para a refundação do Estado na-
cional que seria mais limitado pelo poder da sociedade e pressionado não
só a reconhecer novos direitos, mas, sobretudo como garantidor de direi-
tos insurgentes e conquistados através de lutas por necessidades essenciais.
Essa questão do etnocentrismo e da colonialidade do Estado-Nação é
fundamental para se pensar na transformação da sociedade e na constituição
de sujeitos coletivos de direito. Um constitucionalismo Plurinacional vai ao
encontro da perspectiva de uma ética da alteridade “como afirma José Geral-
do” (2021, p.79), referindo-se ao pensamento de José Carlos Moreira da Silva:

Com efeito, com base em leitura rigorosa do pensamento emancipa-


tório do filósofo argentino Enrique Dussel e o emprego de categorias
desenvolvidas por Antonio Carlos Wolkmer, José Carlos Moreira da
Silva Filho (1998), chega a uma ética concreta da alteridade como
pressuposto de um pluralismo jurídico-comunitário-participativo,
para fundamentar a prática de novos sujeitos coletivos de direito.

69
Constitucionalismo Achado na Rua

A crítica de Wolkmer (2021, p. 220) à visão eurocêntrica, coloniza-


dora e racista, predadora do meio ambiente e profundamente desumana é
fundamental. Essa perspectiva eurocêntrica imposta pela dominação não
identificada com a ancestralidade, que não aceita o outro e hierarquiza
as diferenças que o autor bem traduz como “normatividade etnocêntrica”,
reproduz a cultura liberal individualista e o sistema capitalista.
Nessa visão míope, o “outro”, o diferente, o exótico não goza nem de
um estatuto humano perante ao colonizador que o deprecia para justificar
a sua dominação e exploração exatamente como fazem o racismo, o sexis-
mo e outros pretensos critérios de subalternidade.
Como poderia emergir um constitucionalismo achado na rua nessas
condições? Nesse sentido, “o pluralismo jurídico transformador, de tipo
“comunitário-participativo”, projeta-se como um paradigma para conce-
ber e tratar o direito na própria estrutura social, descentralizando e erra-
dicando o estatalismo universalista de colonialidade (Idem, p.220).
Dessa forma, uma síntese do pluralismo jurídico é a admissão que o
Estado não é fonte única e exclusiva de todo o Direito, mas, pelo contrário,
também nasce de baixo para cima como um grito dos excluídos constan-
temente oprimidos pela desigualdade social, privilégios e concentração de
renda e poder na mão das elites.
A seguir, transcrevemos um parágrafo elucidativo de Luis Carlos
Wolkmer (Idem, p. 221), em relação ao pluralismo jurídico:

Nessa modalidade de pluralismo se insere experiências denor-


matividades que vão além do Estado, como a justiça comunitária
(urbana e agrária), a justiça indígena, a justiça “quilombola” dos
afrodescendentes, das rondas campesinas, justiça itinerante e ou-
tras inúmeras experiências práticas (legalidade consuetudinária,
normatividades das comunidades campesinas, regras internas de
movimentos sociais permanentes).

A Revista de Direito da Universidade de Brasília (2022), edição co-


memorativa dos trinta anos de existência do O Direito Achado na Rua, ao
homenagear o professor José Geraldo de Sousa Junior, e ressalta que:

A categoria “sujeito coletivo de direitos” é gerada pela realidade vi-


venciada pelos movimentos sociais e aprendida pelo Direito Acha-
do na Rua e efetivada com o professor José Geraldo de Sousa Junior,

70
Constitucionalismo Achado na Rua

que passa a se dedicar à sua formulação”, que merece destaque no


campo das teorias críticas do direito.

Essa categoria de sujeito coletivo de direitos traz intrinsecamente a


ideia de participação e de mobilização social, e, portanto, de sujeitos ativos,
um remédio necessário ao combate à cidadania passiva, à inércia e à passi-
vidade, ao bug social da ausência de indignação. Como realizar mudanças
se predomina uma cidadania passiva e uma visão fatalista da realidade?
Gladstone Leonel; Pedro Brandão e Magnus Marques (2021, p. 262), cha-
mam atenção para os impasses e os limites do constitucionalismo moderno:

que não reconhece o fenômeno jurídico como processo permanente.


O resultado dessa insuficiência é o de conformar um constituciona-
lismo, por vezes, incapaz de jogar luzes às reais dimensões da potên-
cia constituinte que determina o fenômeno do constitucionalismo.

Essa perspectiva contraria os princípios de uma vivência jurídica fo-


cada na participação e na emancipação dos desiguais, de um direito que
se insurge contra a onipotência das normas descontextualizadas do pro-
cesso histórico e das necessidades humanas, contrariando o fundamento
dialético de compreender como se realizam as transformações no Direito
produzidas pelo processo histórico (Idem, p. 263).
Para os autores, o papel do Constitucionalismo Achado na Rua é o de
garantir a soberania popular. Nessa perspectiva a constituição deve confe-
rir sentido político ao direito reconhecendo o protagonismo da luta social.
Falar em Constitucionalismo Achado na Rua é compreender uma cons-
trução social em que o sujeito abstrato da Teoria Constitucional clássica dá
lugar aos sujeitos individuais e coletivos de direitos, o povo em sua forma
concreta, os quais ativam o poder constituinte por meio de uma verdadeira
soberania (Idem, p. 264 e 265).
Interessante a perspectiva do direito a serviço das pessoas excluídas
e trabalhadores, como instrumento para estimular a ruptura e a possibili-
dade da convocação de uma “constituinte achada na rua” com esses atores
políticos. Uma constituinte deverá nascer de um processo histórico em que
a práxis se une à emancipação dos povos historicamente dominados por
amarras econômicas, políticas, sociais e culturais (Idem, p.265).

71
Constitucionalismo Achado na Rua

Herrera Flores (2019, p.19) afirma que:

A universalidade dos direitos somente pode ser definida em função


da seguinte variável: o fortalecimento de indivíduos, grupos e or-
ganizações na hora de construir um marco de ação que permita a
todos e a todas criar as condições que garantam de um modo igua-
litário o acesso aos bens materiais e imateriais que fazem com que
a vida seja digna de ser vivida.

Pressupomos que parte da dificuldade para se alcançar uma vida digna


está relacionada com a desvalorização da nossa cidadania e da nossa atuação
como sujeito de direitos e partícipes do processo político. Essa perspectiva é
fundamental para que a luta por direitos não seja enfraquecida.
Para efetivar as transformações, é preciso volição para lutar por uma
sociedade sem desigualdades e discriminações. Ou seja, ao visualizar al-
guns como privilegiados e outros como sentenciados a viver numa condi-
ção de opressão e subordinação, acabamos por reforçar uma situação de
hierarquia criando uma situação constante de subalternização e intimida-
ção que se reflete em passividade.
Essa perspectiva fragiliza a democracia e suas instituições e o vigor
otimista e necessário para que possamos transformar a sociedade, e alcan-
çar a plenitude da dignidade humana. Se não temos esse vigor, isso acaba
por se refletir na nossa acomodação enquanto cidadãos.
Herrera Flores nos ensina que: A luta pela dignidade humana é a ra-
zão e a consequência da luta pela democracia e pela justiça (Idem, p.19).
Nesse sentido, as condições de um Estado democrático de direito são im-
prescindíveis para que a dignidade humana seja um fato. Da mesma forma,
a criação das condições para que essas lutas se perpetuem, é um bastião
para a dignidade humana e para a liberdade.
São muito pertinentes as considerações de Herrera Flores ao questio-
nar a globalização da racionalidade capitalista baseada em uma ideologia
baseada no individualismo, na competitividade e na exploração.

A globalização da racionalidade capitalista supõe a generalização


de uma ideologia baseada no individualismo e competitividade e
exploração. Essa constatação nos obriga a todos que estamos com-
prometidos com uma visão crítica e emancipadora dos Direitos
Humanos a contrapor outro tipo de racionalidade mais atenta aos

72
Constitucionalismo Achado na Rua

desejos e as necessidades humanas que as expectativas de benefí-


cio Imediato do capital. Os direitos humanos podem se constituir
numa guia ética jurídica e social para construção dessa nova racio-
nalidade. Mas, para tanto, devemos libertá-los da jaula de ferro na
qual foram encerrados pela ideologia do mercado e sua legitimação
jurídica formalista e abstrata (Idem, p.17).

Pensamos que essa ideologia perversa também nos ajuda a responder


a questão do porquê da nossa passividade frente a constante violação de di-
reitos de que somos vítimas. O consumismo, a ostentação, as substituições
da solidariedade pelo individualismo, da cooperação pela competição e da
empatia pela exploração, estimulam a conformação, na medida em que
não existem vencedores nessa competição insana.
Todos somos derrotados e perdedores enquanto perdurar a pobreza e
a fome, que acaba por minar nosso ânimo e, consequentemente, a luta para
que a emancipação e a dignidade possam se libertar da jaula de ferro em
que foi aprisionada pelas elites econômicas mundiais.
Observamos, como dito acima, que os direitos humanos podem nos
auxiliar a encontrar uma nova racionalidade menos imediatista, mais vol-
tada para as necessidades humanas e libertária em relação ao domínio dos
interesses sacrossantos do mercado e do capital.
Para que o constitucionalismo achado na rua possa vigorar, é preciso
construir as chaves da participação e da constituição de sujeitos coletivos
de direito que possam libertar os direitos humanos da jaula de ferro em
que estão aprisionados.
Nossa cidadania é pejorativa, como evidenciam os títulos das obras
de Pedro Demo “Cidadania menor” (1992), e Gilberto Dimenstein “Cida-
dania de papel” (1990). Em outras palavras, a passividade é reforçada pela
baixa qualidade da nossa mobilização que “por sua vez”, se reflete na baixa
qualidade da nossa cidadania.
Como seria uma “constituinte achada na rua”? Leis e políticas para serem
instituídas dependem da máquina pública. Até que ponto o empoderamento
para o que emana do social não pode efervescer matizes e direcionamentos
contrários aos princípios emancipadores que deveriam ser observados?
Até que ponto a ideia de um Direito Achado na rua não pode vul-
garizar a ideia de direito? Será que tomando apenas, ou principalmente,
como fundamento a emanação das relações sociais dentro do contexto da

73
Constitucionalismo Achado na Rua

rua não pode levar as pessoas a ideia de que podem (e acreditamos que em
muitas situações possa de fato) não se sentirem contidas pelo aparato legal
e, em última instância levar a um descrédito das leis e da própria justiça,
incentivando que se faça a justiça com as próprias mãos?
Até que ponto apenas a ênfase em um Direito Achado na Rua não
pode criar um universo que não considera a influência do formalismo ins-
titucional em todo o processo? O clamor social no final busca o reconheci-
mento e a efetivação de direitos em leis e políticas públicas, ou seja, para o
direito se transformar em política pública não pode prescindir das contra-
dições da máquina governamental e das normas estabelecidas.
Cabe esclarecer que a rica perspectiva trazida pelo direito achado na
rua, se por um lado acrescenta vida e dinâmica à lógica institucional, por
outro lado pode ser interpretada como relativização das fontes jurídicas
tradicionais. No entanto, quando se pensa em pluralismo jurídico emanci-
pador e abertura para as insurgências essa relativização se faz necessária.
Se, por um lado, essa abertura para a participação e criação de direi-
tos pode ser vista por alguns como um descrédito e vulgarização do siste-
ma jurídico como um todo, por outro lado, é a oportunidade de avançar no
esclarecimento das contradições dos que pensam que não existem limites à
liberdade, à livre iniciativa e às ganâncias do mercado.
Se a forma de mudar é a ativação do poder constituinte, como dito
acima, vai depender do momento histórico e da correlação de forças que
estão vigorando naquele momento.
Hoje, com uma sociedade altamente polarizada, onde as notícias fal-
sas e a formação de bolhas eletrônico-ideológicas fundamentadas em algo-
ritmos é a regra, seria muito temerário pensar no estabelecimento de uma
constituinte e o tiro sair pela culatra.
Ou seja, são grandes as possibilidades de uma pauta emancipadora
e libertária ser tragada pelo conservadorismo e pela ânsia desmedida das
elites manterem o status quo e ampliarem ainda mais suas posições neoli-
berais de exploração e destituição de direitos.
Pensar uma nova constituição que garanta ao povo brasileiro a parti-
cipação efetiva nos destinos do país focando no combate das nossas desi-
gualdades históricas é um ideal libertário que deve ser perseguido diutur-
namente. Mas, é interessante ressaltar que é difícil imaginar um processo

74
Constitucionalismo Achado na Rua

constituinte sem a pressão ou tutela dos poderes constituídos, mesmo que


baseado em uma “constituinte achada na rua”.
Cabe lembrar que o movimento do passe livre era legítimo e “achado
na rua”, mas acabou por ser manipulado e aparelhado por forças políticas
contrárias que ocuparam as ruas, desembocando na destituição de uma
presidente eleita democraticamente.
Com certeza a sociedade civil organizada poderia colocar na agenda po-
lítica do país a possibilidade de abertura do processo constituinte, mas o que
observamos no decorrer do processo histórico é que não conseguimos mobi-
lização suficiente para evitar o ataque às nossas instituições e aos pilares da
nossa democracia o que reforçou ainda mais as nossas contradições internas.
Nesse contexto, de um congresso conservador e retrógrado, Gladsto-
ne Leonel e José Geraldo (2017:1310) veem com pessimismo a aprovação de
qualquer reforma que caminhe na ampliação de direitos. Ao propor a ins-
talação de uma constituinte soberana para viabilizar as mudanças eman-
cipatórias, os autores chamam a atenção para o cuidado com o momento
para essa ação para não haver mais perda de direitos.
Se por um lado, do ponto de vista ideológico o caminho é esse, por
outro lado é preciso examinar com muito cuidado se existem as condições
objetivas para a sua plena efetivação, como afirmou o sociólogo Boaventura
Santos na defesa de tese de Eduardo Xavier Lemos: é preciso saber se a rua é
de direita ou de esquerda, e nos últimos anos ela esteve ocupada pela direita.
Nesse ponto precisamos seguir abertos para a diversidade. Não que a
rua não possa dentro da sua diversidade de atores políticos construir uma
“constituinte achada na rua”, mas dela também participam as chamadas
elites. Esse caudal político e social que denominamos como povo também
é muito suscetível de ser influenciado pelo que se chama de efeito manada,
ou seja, poucos pensando por muitos.
A potência constituinte do constitucionalismo é inegável, mas é difí-
cil pensar numa “Ágora” moderna. Lembremos que a “Ágora” grega conde-
nou o pai da filosofia a tomar cicuta. Ao lavar as mãos, Pilatos se afastou de
suas obrigações institucionais, transferindo ao coletivo a decisão que seria
de sua competência. Esse julgamento achado na rua não levou à condena-
ção daquele que era o mais desconfortável para as instituições da época? E
a ovelha foi sacrificada.

75
Constitucionalismo Achado na Rua

Muito importante o ponto do imobilismo ressaltado por Gladstone


Leonel; Pedro Brandão e Magnus Marques (2021, p. 262), próprio de um
constitucionalismo que nega a possibilidade de transformação da realida-
de com consequências negativas para a nossa cidadania. Desvaloriza-se a
participação, estanca-se a liberdade e a assunção de novos direitos que nos
proporcionam à superação das nossas desigualdades históricas. Tudo isso
enfraquece a perspectiva de um constitucionalismo achado na rua, eman-
cipador, participativo, cujo principal combustível é a liberdade humana.
Até que ponto a ideia de um Direito Achado a Rua não pode incenti-
var a ideia de uma justiça achada na rua, fora de qualquer normatividade
ou distorcendo as próprias normas da justiça positiva e levando a um vo-
luntarismo justiceiro como o caso da deputada Carla Zambelli?
A rua é um espaço que pode distorcer o sentido da justiça. No caso
dos linchamentos, mesmo que essa prática não seja direito, é um exemplo
de como a coletividade pode agir de forma violenta e sem nenhuma cons-
ciência do que seja direito, e muito menos do que seja constitucionalismo,
e, distorcidamente, achar que estão fazendo justiça.
O fortalecimento excessivo do livre arbítrio pode levar a situações
que, pela sua momentaneidade e efemeridade, promovam a relativização
predatória das normas instituídas e a não observância do regramento es-
tabelecido. Claro que isso não se confunde com a formação de sujeitos de
direito que lutam por sua dignidade. Mas até que ponto na rua vai existir
esse discernimento?
Por outro lado, o discernimento normativo pode estar também divor-
ciado das lutas libertárias por direitos, uma vez que se encontram domina-
dos pelos interesses das elites.
Nesse sentido, são muito importantes as colocações de Gladstone Leonel;
Pedro Brandão e Magnus Marques (2021, p. 262) sobre os impasses e os limi-
tes do constitucionalismo moderno que não reconhece o fenômeno jurídico
como processo permanente. O resultado dessa insuficiência é o de conformar
um constitucionalismo, por vezes, incapaz de jogar luzes às reais dimensões
da potência constituinte que determina o fenômeno do constitucionalismo.
Podemos encontrar muitos vetores que trabalham conjuntamente
para a falta de indignação, como o individualismo que vai corroendo a
ideia de coletividade, a competição que desfaz a cooperação, a impunidade
que faz diminuir o ímpeto pela transformação social e a luta pela liberdade.

76
Constitucionalismo Achado na Rua

A morosidade e os custos da nossa justiça repleta de recursos além do


estigma da impunidade vão minando a credibilidade da justiça, chegando
ao ponto da escancaração deslavada dos atores políticos como vemos hoje na
disseminação de ideias contrárias à democracia. Dessa forma, todo o ímpeto
acaba sendo utilizado apenas para questões de interesse pessoal e individual.
Nessa situação de inação, a politicidade assume fundamental impor-
tância nos incentivando a tomar as rédeas do nosso destino e agir como
sujeitos individuais ou coletivos de direito. “Politicidade é a habilidade de
não se manter como objeto de pressões externas e alheias, para tomar o
destino nas próprias mãos” (Demo, 2005, p.41).
A capacidade de nos indignarmos frente a todas essas arbitrariedades
põe em relevo a questão da ética como inquietação lapidar do ser humano.
Inquietude e sentimento de indignação são parte dos vigores da ética.
A dimensão ética se faz imprescindível como parte da politicidade:
Ética é, assim, parte da politicidade humana, ou da habilidade de poder
interferir no destino como sujeito, sem destruir o dos outros (Demo, p. 90).
O impulso ético, conforme Segato (2014), é um remédio eficaz para
abordar criticamente a lei e a moral e tomar em nossas mãos o leme do
nosso destino, e sair do berço esplêndido da passividade.

El impulso ético es lo que nos permite abordar criticamente la ley


y la moral. La pulsión ética nos permite no solamente contestar
ymodificar las leyes que regulan el “contrato” impositivo em que
se funda la nación sino también distanciarmos del echo cultural
que nos vio nacer y transformar las costumbres de las comunidades
morales de las que formamos parte(Segato, 2004, p.14).

Se a ética permite abrir em nós mesmos o vislumbre da evitabilidade,


a dimensão política se faz presente como impulso de transformação e luta
contra o automatismo da crença da inevitabilidade do mundo. El sujeto
ético sería (...) el ser en movimiento, abierto al futuro y a la transformación,
el ser exigido por una voluntad infatigable de transmutar valores y minar
certezas, o ser que duda y sospecha (Segato, 2003, p. 16).
Se por um lado a premissa crítica do direito achado na rua de ques-
tionar o formalismo jurídico e a onipotência das normas abre caminho
para o pluralismo jurídico e a constituição de sujeitos coletivos de direito,
por outro lado, enfraquece a noção de indivíduo base para a construção do
conceito de cidadania.

77
Constitucionalismo Achado na Rua

Até que ponto essa relativização do indivíduo não fortalece a ideia de


pessoa e a primazia das relações pessoais, de amizade e compadrio, colocando
o universo relacional com maior relevância do que o indivíduo e o universo
institucional? O polo tradicional é o polo da pessoa, o polo da modernidade é
o polo do indivíduo. Constituição federal ou constituição achada na rua?
A perspectiva é a mesma quer se fale de Direito Achado na Rua, Cons-
titucionalismo Achado na Rua, direito como arma de liberação, direito que
nasce do povo, direito alternativo, direito insurgente, ou seja, é necessária
a devida mobilização social para fazer frente às injustiças.
Chamar atenção para as possíveis razões da nossa passividade enquan-
to cidadãos tem importância na medida em que a passividade compromete
a transformação da sociedade e a perspectiva do constitucionalismo achado
na rua e do direito achado na rua, ou seja, é imprescindível que os sujeitos de
direito exerçam suas prerrogativas para que a sociedade se modifique e para
que as políticas públicas sejam efetivadas, ou seja, será sempre necessária a
mobilização social, cidadãos que se vejam como sujeitos individuais e coleti-
vos de direito atuantes, para que a dignidade seja um fato para todos.
Concluindo, a luta pela dignidade humana é essencial para a constru-
ção de uma sociedade justa. Como vimos acima, a questão do etnocentrismo
e da colonialidade do Estado-Nação é fundamental para se pensar na trans-
formação da sociedade e na constituição de sujeitos coletivos de direito.
Um constitucionalismo Plurinacional vai ao encontro da perspecti-
va de uma ética da alteridade. Como falar de um pluralismo jurídico-co-
munitário-participativo, sem refletir sobre os mecanismos que atuam no
sentido inverso da desmobilização e da passividade dos sujeitos, seja por
não garantir e reconhecer a legitimidade das insurgências, seja por não
reconhecer a dignidade da alteridade, ou ainda, pelo aprisionamento dos
direitos humanos, como apontou Herrera Flores, na jaula de ferro do for-
malismo jurídico e da ideologia do mercado que a nosso ver, estimulam a
conformação e a passividade.
Essa categoria de sujeito coletivo de direitos traz intrinsecamente a
ideia de participação e de mobilização social, e, portanto, de sujeitos ativos,
um remédio necessário ao combate à cidadania passiva, à inércia e à passi-
vidade, ao bug social da ausência de indignação. Como realizar mudanças
se predomina uma cidadania passiva e uma visão fatalista da realidade?

78
Constitucionalismo Achado na Rua

Finalmente, a inércia inibe a assunção de novos sujeitos coletivos, além


de minar o ímpeto de luta dos sujeitos de direito já constituídos, abrindo
espaço para que a dirigibilidade política por conta do silêncio e da passivida-
de acabem por favorecer o “establishment” político dominante, produzindo
danos psicológicos e cicatrizes profundas na autoestima da população. Esses
mecanismos de paralisação precisam ser descobertos e questionados.

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81
Eixo II – constitucionalismo,
movimentos e achados

83
O Constitucionalismo Negro e a
Contribuição de Sérgio Martins

Benjamin Xavier de Paula

1. Introdução
Na Edição do Jornal “Extra” do dia 5 de março de 2016, que circula no
estado do Rio de Janeiro, encontramos a seguinte nota,

A Polícia Civil divulgou, nesta sexta-feira, o retrato falado de um


dos responsáveis pela execução do advogado e professor universitá-
rio Sérgio da Silva Martins, de 49 anos.

Esta é a única nota da imprensa com menos de três linhas, que regis-
tra o bárbaro assassinato de um dos mais brilhantes juristas negros, Sérgio
da Silva Martins. Dizemos isso, não pela repercussão ou reconhecimen-
to da sua obra, mas pela originalidade e profundidade desconhecida do
grande público e dos/as pesquisadores/as do Direito nos diferentes níveis e
modalidades de desenvolvimento na carreira acadêmica.
Responsável por um dos primeiros trabalho de pesquisa sobre negritude
e racismo em um programa de pós graduação em direito intitulada “Afro-bra-
sileiros: uma questão de justiça”, Martins (1996) enfrentou a tarefa nobre digna
dos grandes juristas: o debate do campo da hermenêutica constitucional, sobre
os limites e possibilidades do enfrentamento ao racismo e de promoção da
igualdade e equidade racial em um tempo em que, na universidade e na pes-
quisa, falar deste assunto era “quase uma proibição”, e na área do direito, era
praticamente uma transgressão da norma, um “ilícito científico”.
Ativista e militante de primeira ordem dos movimentos sociais e do
movimento negro no Rio de Janeiro, Sérgio foi combativo, digno de citar e
ser citado por importantes lideranças nacionais como o Prof. Helio Santos,
o Advogado Humberto Adami, nossa ilustre Conceição Leal e muitos ou-
tros. Martins (1996) não escolhia frente de luta: jurista, militante, ativista,

85
Constitucionalismo Achado na Rua

advogado, estava em todas as frentes, era um “guerreiro de xangô”. Como


advogado atuou em diversas frentes tendo acumulado um vasto currículo
de processos judiciais no estado do Rio de Janeiro e em diversas outras
esferas do poder judiciário1.
Os manuais de boas práticas em pesquisa nos ensinam que uma tarefa
indispensável de um trabalho sério de investigação é o diálogo com a produ-
ção do conhecimento da área com vistas a situar os estudos anteriores a fim de
que não se desperdice a experiência, e que se potencialize os esforços futuros.
Ao nos debruçarmos sobre a tarefa de realizar um estudo sobre a
produção do conhecimento com as temáticas “negritude e racismo” nos
programas de pós-graduação em Direito no Brasil, a partir de uma base
de dados específica, fomos levados a realizar uma arqueologia mais ampla
destes estudos a partir dos trabalhos pioneiros realizados na área. Nosso
estranhamento foi quando, após a leitura e análise do texto integral de
mais de três dezenas de teses e dissertações de doutorado e mestrado, cons-
tatamos um silenciamento de estudos potentes em detrimento de outros.
Esta análise crítica do estudo de Martins (1996) representa uma con-
tribuição inédita para a área de Direito e do que aqui denominaremos de
Direito das Relações Raciais, de forma particular, para os/as pesquisado-
res/as que debruçam sobre a tarefa de investigar as temáticas relativas à
negritude e racismo. Esperamos com esta contribuição fazer jus ao texto
do autor que, frente aos apagamentos e silenciamentos aqui relatados, tem
o potencial de oferecer contribuições inéditas ainda não desenvolvidas, ou,
em desenvolvimento em outros estudos.

2. Constituição e constitucionalismo
Quatro modelos de constituição orientaram e orientaram a organiza-
ção dos estados constitucionais modernos: a constituição inglesa, a fran-
cesa, a alemã e a estadunidense. Essas constituições deram origem a dois
sistemas jurídicos distintos: o civil law e o common law.

1 Poucos são os registros sobre a trajetória deste importante jurista brasileiro, frente a esta
escassez de fontes, recorremos aos/às pessoas citadas/as nos agradecimentos do trabalho do
autor, acrescido de alguns diálogos com militantes e ativistas do movimento negro, dentre os
quais, Conceição Leal, Helio Santos e Osias Inocêncio, este último, juiz de paz no Estado do Rio
de Janeiro e que muito contribuiu com este estudo.

86
Constitucionalismo Achado na Rua

Souza Neto & Sarmento (2012) afirmam que a ideia de constituição


surge das revoluções burguesas inspiradas nos ideais iluministas que con-
sagram as liberdades individuais como direitos universais e inauguram a
primazia dos contratos. As origens da Constituição encontram-se no con-
tratualismo, concepção a partir da qual a sociedade é um corpo social regi-
do por normas estabelecidas por um consenso, denominado por Rousseau
(2017) de vontade geral.
Lassalle (2020) vê a ideia da Constituição como uma lei fundamental
que surge a partir do “espírito unânime dos povos”. Ela representa, muito
além de uma norma, o espírito que repousa em cada um daqueles que an-
seiam pertencer a uma determinada sociedade. Para ele, a constituição é
a Lei maior - a carta maior - que orienta todas as outras leis e instituições,
não porque se efetive como simples norma contratual, mas porque é fruto
das relações de poder que se confrontam no seio de uma sociedade, e como
elas se encontram amparadas no texto constitucional, todos os atores a
aceitam não como uma imposição da norma, mas como uma força vital.
Já o constitucionalismo é um movimento posterior às primeiras
constituições do mundo moderno, e tem no federalismo estadunidense o
seu marco temporal. Ele se origina nos Estados Unidos com a revolução
americana, e se diferencia da experiência inglesa, francesa, e alemã, por-
que, para além das declarações de intenção, ou mesmo defesa de princípios
orientadores de uma sociedade, assenta-se sobre a tradição de um texto
escrito com a redação das normas fundamentais que passam a reger as
formas de organização social de uma dada sociedade (Chueiri e Godoy,
2010; Bonavides, 2007). Ampara-se nas ideias iluministas que nascem das
revoluções burguesas do século XVII e XVIII e tem como um dos seus
principais propósitos neste contexto, a limitação do poder, a soberania po-
pular e a salvaguarda dos direitos individuais dos cidadãos.
Ao longo da curta História do Brasil a partir da sua independência
como Colônia de Portugal, vivemos diferentes experiências constitucio-
nais por meio da Constituição do Brasil independente de 1824, documento
inspirado nas constituições francesa e inglesa, ambas monarquias consti-
tucionais, que consagrou a emancipação jurídica do país. E, as constitui-
ções republicanas: a Constituição do Brasil República de 1891 - inspirada
na constituição dos Estados Unidos - cujo principal idealizador foi Rui
Barbosa, a de 1934, no início da era Vargas; a Constituição de 1937 (da Di-

87
Constitucionalismo Achado na Rua

tadura do Estado Novo); a de 1946, da primeira abertura política, a Cons-


tituição de 1967/1969 (instituída pelo regime Civil Militar, imposto em
1964; e, a Constituição de 1988, que é um marco para o processo de aber-
tura política e de (re)democratização do país (Paula, 2022; 2023, passim).
A nossa tradição constitucional e o nosso constitucionalismo são
analisados numa perspectiva crítica ao racismo e que incorpora a negritu-
de, em dois trabalhos inéditos produzidos na pós-graduação em Direito na
década de 1980, o estudo de Prudente(1980) e o de Bertulio (1989).
Na pesquisa conduzida por Eunice Prudente (1980) “Preconceito ra-
cial e igualdade jurídica no Brasil”, a autora analisa o texto constitucional
de 1824 e subsequentes. No texto constitucional de 1824 e nas normas in-
fraconstitucionais do período, o negro era tratado como pessoa quando se
tratava de aplicação da Lei Penal para efeitos de punição. Contudo, quando
se tratavam dos direitos fundamentais assegurados pela Lei Civil, pessoas
negras recebiam o tratamento jurídico destinado a objetos e animais. A
autora aborda como os textos constitucionais subsequentes reproduziram
esta estrutura social, que consagrava a subalternidade do negro.
No estudo conduzido por Bertulio (1989) “Direito e relações raciais:
uma introdução crítica ao racismo” ainda no bojo das convulsões que per-
mearam o processo de aprovação e implementação da Constituição Fede-
ral de 1988, a autora igualmente analisa o ordenamento jurídico brasileiro
no contexto anterior e posterior às leis de criminalização do racismo, bem
como a cultura jurídica e constitucional opera a favor da eficácia dessas
leis, e perpetuação do racismo.
A investigação realizada por Sérgio da Silva Martins (1996), “Afro-
-brasileiros: uma questão de justiça”, parte da mesma base crítica presen-
te nos estudos pioneiros citados de Prudente (1989) e Bertulio (1989).,Po-
rém, amplia a sua abordagem a partir de duas dimensões: a) deslocamen-
to do foco histórico para o foco político com maior ênfase para a área do
Direito Constitucional e da análise do texto da constituição federal de
1988; b) Diagnóstico da realidade brasileira após a Constituição Federal
de 1988 com vistas a propositura de um amplo plano de ações afirmati-
vas com vistas à reparação histórica dos efeitos do racismo e efetividade
da cidadania para a população negra.
Se os estudos pioneiros de Prudente (1980) e Bertulio (1989) foram
importantes na medida em que realizaram uma crítica às estruturas insti-

88
Constitucionalismo Achado na Rua

tucionais do racismo no Brasil, o Estudo de Martins (1996) avança na pers-


pectiva de uma base propositiva para os estudos do Direito da população
negra, ou seja, na perspectiva de um constitucionalismo negro.

3. O Constitucionalismo Negro de Sergio Martins


Sérgio da Silva Martins (1996), em seu trabalho de pesquisa “Afro-bra-
sileiros: uma questão de justiça” desenvolvido no Programa de Pós-Gradua-
ção em Direito da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro - PPGD/FD/PUC-RIO, orientado pelo Prof. Dr. Carlos
Alberto Plastino, realizou um estudo na área de Direito Constitucional e
Teoria Geral do Estado. O estudo consistiu em uma análise da margina-
lização dos afro-brasileiros a partir das consequências do racismo que se
manifesta por meio das práticas do preconceito e da discriminação racial
negativa a luz propostas de promoção da igualdade racial, designadas por
ele de “propostas de integração (MARTINS, 1996, p. 1). Tais propostas po-
dem ser visualizadas a partir dos anos 1990, como foram de questionamen-
to da ineficácia da aplicação da legislação constitucional e infraconstitucio-
nal pelos tribunais brasileiros, bem como da necessidade de proposição de
uma agenda positiva que articule políticas públicas de combate ao racismo
a políticas públicas de promoção da igualdade racial - segundo ele, os dois
pilares das demandas do movimento negro neste período.
Neste estudo, Martins (1996) trata, dentre outras, das seguintes temáti-
cas: o processo de marginalização do negro brasileiro; a formação histórica e
constituição do racismo brasileiro; a adoção da alternativa da criminalização
do racismo como estratégia adotada para o combate ao racismo, e as limita-
ções e obstáculos decorrentes dessa escolha; os caminhos para a integração do
negro na sociedade brasileira a partir de um amplo programa de ações afir-
mativas, designado pelo autor de “Plano de Integração Compensatória”; e, por
fim, propõe uma agenda de ações afirmativas com base no plano proposto.
Martins (1996) defende que a marginalização dos afro-brasileiros é
consequência direta da herança escravista e das suas consequências: o ra-
cismo como materialização do preconceito e da discriminação racial - e a
partir dessa constatação, indica quais são os caminhos para a integração,

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Constitucionalismo Achado na Rua

tendo como referência a atuação do movimento social protagonizado pela


população negra, denominado de movimento negro.
Em relação às estruturas institucionais do estado e do direito - ou do
estado democrático de direito - Martins (1996, p. 6-7) questiona a forma
como a norma constitucional, e a infraconstitucional, no texto da Lei Fe-
deral nº 7716/1989 (Lei Caó) conformam as reivindicações antirracistas do
movimento negro acerca da criminalização do racismo, cuja (in)eficácia
jurídica se pautava pela baixa aplicabilidade - para ser bastante modesto
nas palavras-, da referida norma legal.
A superação desta realidade para o autor implica em que o Estado,
por um lado, admita a responsabilidade sobre a existência do processo de
marginalização dos afro-brasileiros e do racismo; e por outro, promova
os princípios da equidade e da justiça por meio da “implementação de um
“Plano de Integração Compensatória” dirigida aos afro-brasileiros como
forma de efetivar a norma constitucional e infra-constitucional, em favor
da materialidade da igualdade do acesso aos direitos, como forma de pro-
mover a emancipação dos afro-brasileiros.

3.1. O Processo de marginalização do


negro na sociedade brasileira.
Para Martins (1996) o Direito, o Estado e as instituições jurídicas for-
mam o complexo arranjo que envolve o processo de exclusão e marginalização
do negro - afro-brasileiro - e do racismo em face deste seguimento da nossa
sociedade. O centro da questão está na ausência de integração do negro escra-
vizado no pós abolição à ordem livre de forma emancipada de fato, com acesso
aos direitos fundamentais (dignidade, educação, trabalho, moradia, etc).
O pensamento racista - estrutural e estruturante do velho e novo co-
lonialismo - constitui-se na base de toda produção intelectual, científica e
política do Brasil do século XIX que não garantiu aos ex escravizados aces-
so aos sistema de direitos e prerrogativas de cidadania, perpetuando nas
estruturas da sociedade e do Estado as velhas práticas racistas do modo de
produção escravista dos séculos XVI, XVII, XIII e início do XIX, marca-
do pela mercantilização do humano (coisificação do negro) e pelo recorde
étnico e racial (a negrofobia). Neste sentido, as doutrina racistas - racismo

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Constitucionalismo Achado na Rua

científico - produzidas na europa do século XIX, baseadas no evolucionis-


mo e no determinismo, se tornarão a base ideológica para a justificação da
estratificação social e não integração do negro a sociedade na transição do
século XIX para o século XX, e para a sua permanência na transição do
século XX para e século XXI.
Essa doutrina racista de base científica - e também liberal - foi a in-
fluência que marcou a tradição de produção do conhecimento jurídico nas
duas principais faculdades de direito fundadas ainda no século XIX. A
Faculdade de Direito de Olinda, inaugurada em 1828 e transferida para
Recife em 1854, em sua primeira fase, comprometida com o jusnatura-
lismo católico (racismo teológico) e posteriormente com o juspositivismo
científico (racismo científico), cuja principal influência foi o jurista Sílvio
Romero, e a linha de ação foi a via do Direito Criminal (criminologia) e
da criminalização do negro - e agora do mestiço - como forma de negação
da cidadania, a partir da ideia de que a criminalidade é uma característica
física do povo negro e “uma nação mestiça é uma nação invadida pela cri-
minalidade” (MARTINS, 1996, p. 26).
A Faculdade de Direito de São Paulo, inaugurada em 01 de março de
1928, é fundada na ideia de evolução e progresso do país cuja condução ca-
beria a um grupo de profissionais treinados para tal fim - os juristas/advoga-
dos, vocacionados a dirigir a nação. Com base no pensamento ilustrado dos
juristas do século XIX e XX, o Brasil pós abolição é marcado pela organiza-
ção das leis e do Estado, cuja premissa passou a ser a criminalização do povo
negro e a negação de direitos, seja nas cartas constitucionais e na norma
infraconstitucional - que possui na lei de imigração e na lei de terras dois dos
principais instrumentos de perpetuação da ordem racista - , seja da realidade
material vivenciada pela sociedade brasileira, a negação aos negros do acesso
aos direitos ou possibilidade de integração social, econômica e política, ou
seja, emancipação e cidadania plena. As vozes destoantes vieram de juristas
como André Rebouças e Joaquim Nabuco que identificavam a herança do
modo de produção escravista sobre a marginalização do negro, e a necessi-
dade/obrigatoriedade de políticas de integração.

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Constitucionalismo Achado na Rua

3.2. A formação histórica do racismo no Brasil


e as suas formas de manifestação
Martins (1996) defende que a democracia racial brasileira tem o mestiço
como principal referência e é fruto da mistura das raças (negra, branca e in-
dígena), e o mascaramento e invisibilidade dos conflitos raciais e do racismo,
seja por parte do Estado ou dos seus intelectuais - passa a ser caracterizado
não mais pela manifestação de ódio público, mas pela ação silenciosa que
denomina de “racismo tolerado” (MARTINS, 1996, p. 49) reproduzido por
meio de padrões de imagens públicas, estereótipos e piadas que conformam
a ideia de inferioridade do negro - e o principal meio de não tratar da questão
da reparação do legado do modo de produção escravista e da necessidade
de integração do negro como cidadão na esfera do estado democrático de
direito. A promoção da igualdade racial se torna um mito que nunca veio…
Em contraposição à farsa - a democracia racial - a exclusão do negro
e a desigualdade racial são constatadas nos indicadores de acesso ao em-
prego formal e padrão de renda, nos índices de analfabetismo e acesso á
educação, acesso a terra e moradia, dentre outros, conforme constatado em
importantes estudos como os conduzidos por Carlos Hasembalg e Nelson
Valle Silva (1992) dentre outros.

3.3. A solução para o problema


do racismo: a criminalização
A solução para o problema do racismo no Brasil a partir da sua crimi-
nalização segundo Martins (1996) foi a saída encontrada pelo Estado brasi-
leiro para tratar a questão do racismo a partir da década de 1950, remetendo
uma questão estrutural e estrutural para soluções na esfera individual e pri-
vada, sem atacar os problemas de integração à ordem democrática por meio
das reparações históricas dos dilemas herdados pelo modo de produção es-
cravista moderno implementado em nosso país no período colonial.
Essa ação estatal foi conformada na Lei Federal nº 1390/1950 (Lei Afonso
Arinos); no art. 5º inciso XLII da Constituição Federal de 1988; e, nas Leis nº
7716/1989 (Lei Caó) e 8.081/1990, por meio das quais o estado reconhece o
racismo como um problema crônico e estrutural da nossa sociedade, contudo

92
Constitucionalismo Achado na Rua

- combate a doença com o próprio veneno - ao apostar na via da criminaliza-


ção do racismo como principal forma de enfrentamento do problema, abrindo
mão de avançar na perspectiva das políticas de reparação histórica.
Essas medidas ao longo da história recente se evidenciaram inefica-
zes, inefetivas e inoperantes, tendo como principais obstáculos os sistemas
de segurança pública e de administração da justiça que prosseguem com a
prática da violência racista do Estado, seja por meio da violência policial,
seja por meio do racismo estrutural nas esferas dos tribunais e justiça e
demais órgãos de administração do Estado.
Embora a existência dessa legislação criminal na esfera constitucio-
nal e infraconstitucional evidencie o grau de impregnação do racismo nas
instituições sociais e do estado, as formas de compreensão do problema,
seja pela classe política e principalmente pela classe jurídica, compromete
a efetividade da norma, conforme demonstrado em outros estudos.
O reconhecimento do racismo pelo Estado não é medida suficiente
para combater os níveis de desigualdades raciais e a marginalização do ne-
gro na sociedade, é preciso que o Estado reconheça a sua responsabilidade
sobre definição de políticas de integração racial e promoção da cidadania
plena que materialize um projeto de democracia e consequentemente de
Estado Democrático de Direito.

3.4. A construção de uma agenda de ações


afirmativas de combate ao racismo
Martins (1996) analisa os diferentes diagnósticos realizados pela Co-
missão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas - ONU
e pelo documento elaborado pelo movimento negro brasileiro a partir da
marcha dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares e as diferentes ini-
ciativas de políticas de combate ao racismo e de reparação no período pós
constituição de 1988.
Em relação ao Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Orga-
nização das Nações Unidas, elaborado a partir do trabalho de uma missão
institucional que esteve no país em junho de 1995, o diagnóstico é de que
no plano oficial não existe racismo no Brasil, e que as autoridades brasi-
leiras reconhecem a existência de uma discriminação econômica e social

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Constitucionalismo Achado na Rua

em relação aos negros, mas que estes problemas afetam todos os brasilei-
ros. Exalta, ainda, a Constituição Federal de 1988 como um símbolo da
integração racial do país, mas cita que no Brasil, embora a discriminação
racial esteja proibida na constituição, essas autoridades possuem dificul-
dades de abordar o problema do racismo, que se manifesta principalmente
por meio de “práticas vexatórias que acentual a inferioridade dos negros”
(MARTINS, 1996, p. 92), e, portanto, um fenômeno de difícil solução, pois
é acima de tudo de vontade política.
O Documento da Marcha dos 300 anos de Zumbi dos Palmares de-
nominado “por uma Política Nacional de Combate ao Racismo e a Desi-
gualdade Racial” era mais preciso e apresentava um diagnóstico das con-
dições de vida da população negra marcada pela Escola como espaço de
hierarquias raciais e de produção e reprodução do racismo, principalmente
em função da reprodução e reprodução de um conteúdo eurocêntrico do
currículo escolar; pela divisão racial do trabalho marcada pelo racismo e
pela exclusão do negro do acesso à autonomia material; e, pelas menores
chances de vida em função do alto grau de mortalidade das crianças ne-
gras e de letalidade do racismo policial - ou seja, muitas das crianças que
não morrem no nascimento são assassinadas pelas forças de segurança pú-
blica na figura da polícia militar.
Em relação às iniciativas e propostas do campo político-jurídico, fo-
ram apresentadas, dentre elas, o Projeto de Lei nº 14/1995 de autoria da
deputada Benedita da Silva, que propunha a adoção de 10% de cotas para
negros e índios nas instituições públicas e particulares de ensino supe-
rior em todos os níveis (municipal, estadual e federal). O Projeto de Lei
nº 1239/1995, que institui reparação pecuniária e políticas compensatórias
para a população afro-brasileira em função do regime escravista e da au-
sência de medidas integradoras no pós-abolição; e, a Emenda Constitucio-
nal Florestan Fernandes - documento ousado que trata da defesa da eman-
cipação dos afro-brasileiros a partir do estabelecimento de um “estatuto
democrático” para o negro no Brasil.
No que se refere às ações governamentais, no dia 20 de março de 1996 foi
criado o Grupo de Trabalho para a eliminação da discriminação no emprego
no âmbito do Ministério do Trabalho, denominado de (GTEDEO), com o ob-
jetivo de definir ações de combate ao racismo nas relações de trabalho; e, em
maio do mesmo ano, 1996, o governo publicou a divulgação do Plano Nacio-

94
Constitucionalismo Achado na Rua

nal de Direitos Humanos que incluía a problemática do racismo para além das
abordagens genéricas que lhe atribuíam o caráter de excepcionalidade.
A Constituição como um sistema de regras e princípios jurídico cons-
titucionais é vista na perspectiva de Alexy (1987, apud CANOTILHO, 1993)
a partir de duas vertentes - como um sistema de regras que confere certa
segurança jurídica; e , como um conjunto de princípios que salvaguarda a
otimização do direito dentro da perspectiva do possível, capaz de absorver
os conflitos sociais, e traduzir os limites para a atuação do Estado, e, de for-
ma particular, para efetividade do princípio constitucional que preconiza a
eliminação do racismo por meio da promoção efetiva da igualdade formal
de direitos, ou seja, sua concretude e realização, o que implica em termos
jurídicos na igualdade material: um Plano de Integração compensatória.
Se a pobreza implica em ausência de recursos materiais, a marginali-
dade implica na construção histórica de fatores (cor/raça, gênero, etc.) que
demarcam os obstáculos para a integração de um grupo de indivíduos (ne-
gros/afrodescendentes) no sistema de acesso aos direitos constitucionais
assegurados na norma jurídica.
O estudo de Martins (1996) defende que a implementação de um Pla-
no de Educação Compensatória destinado aos afro-brasileiros sustenta-
-se nos princípios de constitucionalidade garantidos nas normas jurídi-
cas impositivas que definem tarefas e medidas de integração dos setores
marginalizados, fundadas na defesa e promoção do princípio da dignidade
humana. Para ele “O princípio da igualdade, não é apenas um princípio do
Estado de Direito, mas também, um princípio de Estado Social” (MAR-
TINS, 1996, p. 149) - de forma que, “uma ordem jurídico-constitucional
incapaz de garantia condições de igualdade no exercício dos direitos fun-
damentais “não deve ser levada a sério” (MARTINS, 1996, p. 157).
E, por fim, o autor (1996. p. 158-) afirma que

[...] reivindicar que o estado brasileiro reconheça o racismo e a


exclusão histórica como fatores de marginalização dos afro-brasi-
leiros, difere-se de solicitar ao estado qualquer tratamento privile-
giado em razão da identidade étnica ou cultural. Trata-se antes de
requerer ao estado Democrático que realize sua promessa funda-
mental de tratamento igualitário em direitos e oportunidades [...]
Buscando sim, a autonomia como elemento fundamental do indi-
víduos-cidadão, capazes de concorrer igualmente as oportunidades

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Constitucionalismo Achado na Rua

oferecidas em uma sociedade democrática, sob pena de colocar em


risco a sua legitimidade [...].

Conforme exposto no excerto, a implementação de um Plano de


ações afirmativas para negros no Brasil, denominado pelo mesmo de “Pla-
no de Integração Compensatória”, não trata de operar ações que choquem
com os objetivos do estado de direito e da Constituição Federal de 1988,
mas sim, de realizar os princípios declarados na norma constitucionais
que, em última instância, são a razão de existência do Estado.

3.5. Plano de ação


Martins (1996) defende que a adoção de um Plano de Integração
Compensatória dirigido aos afro-brasileiros deve ser presidida por dois
princípios orientadores: a razoabilidade e a proibição do excesso. Em re-
lação à razoabilidade, o estudo afirma a necessidade de um diagnóstico
social com vistas a identificar as áreas sociais onde se verificam os maiores
índices de desigualdades a que estão submetidos os afro-brasileiros, como
por exemplo o acesso à educação e a competição no mercado de trabalho.
Em relação à proibição do excesso, o estudo defende um ajuste necessário
entre as medidas a serem adotadas neste Plano de Integração Compensa-
tória e o sacrifício distribuído a todos os demais.
Também a ausência de uma classificação racial rígida no Brasil não é
impedimento para a adoção deste Plano de Integração Compensatória diri-
gida aos afro-brasileiros, uma vez que é possível pensar em novas categorias
de identificação racial a partir da realidade brasileira. No que se refere ao
discurso da meritocracia - crença no mérito individual - este não se sustenta
se as partes não têm as mesmas oportunidades a partir do lugar de partida,
constituindo-se como argumento falso dos que se beneficiam dos privilégios
conferidos por um sistema de desigualdades sociais (Martins, 1996).

4. Considerações Gerais
Boaventura de Sousa Santos (2002) denomina e fenômeno de exclu-
são social dos povos subalternizados e invisibilizados de “Sociologia das
Ausências”. Entendemos esta invisibilidade a partir da supressão da pre-

96
Constitucionalismo Achado na Rua

sença no negro do negro dos textos constitucionais, configurando um si-


lenciamento que trabalha a favor da perpetuação da condição do colonia-
lismo/escravismo na sociedade atual que, por um lado, não reconhece a
cidadania ao negro, e por outro, age a favor da perpetuação e agravamento
das condições desumanas na qual opera os mecanismos de perpetuação do
racismo nos dias atuais como mazelas da escravização.
O pluralismo jurídico funda consigo uma nova ideia de constitucio-
nalismo também chamado de neoconstitucionalismo, amparado numa
nova hermenêutica constitucional fundada nas prerrogativas e nas de-
mandas dos setores e grupos sociais de diferentes esferas da sociedade que
assumem certo protagonismo. É nesse contexto que se insere uma reinter-
pretação do constitucionalismo a partir das experiências negras de matri-
zes africanas que denominaremos de constitucionalismo negro.
As instituições do Estado e do direito construíram uma tradição ju-
rídica na qual a criminalização da pobreza, da juventude, da negritude, ou
mesmo da liberdade, são formas de atribuição de valor moral a condutas
de determinados grupos que passam a ser criminalizados no âmbito da
justiça, produzindo não somente processos de exclusão social de grupos
vulnerabilizados, como formas de violência nativas do próprio sistema de
direito a que Mbembe (2018) designa de necropolítica.
A estigmatização e punição dos segmentos sociais considerados pe-
rigosos e indesejáveis, cuja lógica é a da criminalização da miséria e sele-
tividade punitiva da parcela destacável da sociedade do consumo, identi-
ficadas por Pastana (2019) como gestão penal atuarial, insere o debate de
como as sociedades de consumo em tempos de neoliberalismo, conduzem
a gestão da crise do estado na esfera do direito.
Romper com o estado institucionalizado de necropolítica e racismo
institucional implica incorporar a ruptura com todo este sistema de coi-
sas para a organização de novas formas de sociabilidade amparadas numa
justiça polissêmica e antissistema que incorpore valores não eurocêntri-
cos e anticoloniais como ancestralidade, pluralidade e emancipação, como
base para uma nova organização política e social baseada em conselhos
comunitários de gestão social e política e numa ética da não violência e da
realização humana ao constitucionalismo fundado nesses valores denomi-
nados neste trabalho de constitucionalismo negro.

97
Constitucionalismo Achado na Rua

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100
Direito Achado na Rua e Movimento
Negro: ferramentas constitucionais para
a concretização das lutas políticas

Danielle de Castro Silva Lobato

1.Introdução
A Série O Direito Achado na Rua não só abre a possibilidade do cam-
po transversalizar o diálogo com operadores do direito, intelectuais e do
movimento negro como abre o debate sobre justiça social e suas ferramen-
tas para concretizá-las. A solidificação de teorias e pensamentos que pen-
sem a práxis e as demandas sociais sobre desigualdade e exclusão social
são essenciais para uma transformação social.
Portanto, as vivências e experiência dos indivíduos e dos movimen-
tos sociais enquanto sujeitos coletivos de Direito precisam estar elaboradas
nos paradigmas. A proposta do Direito Achado na Rua é um giro epistê-
mico para uma teoria que possua intervenção e transformação social, seja
em relação à responsabilidade dos operadores do direito, dos intelectuais
e dos movimentos sociais, na sociabilidade por detrás da construção de
conhecimento ou na interpretação e construção da constituição.
Ainda que existam disputas de narrativas entre um direito positivista
e um direito que se aproxime da realidade social, é possível pensar um pa-
radigma que reivindique por uma luta emancipatória de um sujeito plural,
situado em um contexto histórico e sociológico. Portanto, José Geraldo
aponta a contribuição de Roberto Lyra Filho (2021, p.77). “Para Lyra Filho,
incumbe à Sociologia procurar no processo histórico-social o aspecto pe-
culiar da práxis jurídica.”
O pensamento emancipatório da visibilidade de outras realidades, é
marcada muitas vezes, na relação entre um sujeito que não é único, in-

101
Constitucionalismo Achado na Rua

dividual e universal, a partir de um diálogo intercultural da existência e


reivindicação sobre os sujeitos coletivos de direito1.
Essa agência dos indivíduos, para nivelar a sociedade enquanto sujei-
tos coletivos de direito, se solidifica a partir de luta, compromisso e tarefa,
não sendo algo intrínseco aos indivíduos, mas uma organização social em
prol da liberdade (LYRA, 1982 apud JUNIOR, 2021, p. 83). Ou seja, não
basta apenas se situar em um período histórico e fazer um giro epistêmi-
co. É necessária uma intervenção e transformação social, seja em relação
à responsabilidade dos operadores do direito ou de todas as camadas da
sociedade, por detrás da construção e prática do conhecimento.
Ao ressignificar e propor esses pensamentos, abordamos sobre diferen-
tes etapas de um mesmo processo: Os antagonismos sociais, e como a dar luz
a essas relações de desigualdades, abordando sobre os mecanismos que ope-
ram as relações sociais. Afinal, ao transversalizar o que foi posto até aqui, é
possível formular subsídio para pensar a conjuntura do Brasil. A realização
de um conteúdo crítico e dialético com o campo sociológico, principalmente
a partir de 1994 com a alteração das diretrizes curriculares do Direito, reflete e
ressignifica conceitos e aspectos das teorias do direito, transversais a sociedade
brasileira e latino-americana permitindo repensar a história e a cultura.
Essa desconstrução histórica, delimitação de clareza dos conceitos,
situação no tempo, dos paradigmas, difusão do pensamento acadêmico e
do conhecimento positivista, propõe uma desconstrução, disputa e recon-
figuração. Consoante José Geraldo Filho Junior (2021, p.84) “Romper, em
suma, com a estrutura de um pensamento abstrato convertido em concep-
ção jurídica do mundo, por isto, ideologia jurídica, inapto para captar a
complexidade e as mutações das realidades sociais e políticas.”
Não é simplesmente um recontar de fatos históricos, é uma reescritu-
ra dessa história para os intelectuais, operadores do Direito e os movimen-
tos sociais, um convite ao reposicionamento ativo. Portanto, não se cabe
mais um projeto homogêneo do campo, não se aceita mais a não inclusão

1 Com efeito, com base em leitura rigorosa do pensamento emancipatório do filósofo argentino
Enrique Dussel e o emprego de categorias desenvolvidas por Antonio Carlos Wolkmer, José
Carlos Moreira da Silva Filho (1998), chega a uma ética concreta da alteridade como pressuposto
de um pluralismo jurídico-comunitário-participativo, para fundamentar a prática de novos
sujeitos coletivos de direito. (JUNIOR, 2021, p. 79)

102
Constitucionalismo Achado na Rua

de direitos nesse projeto. Logo, não é possível pensar em um projeto de


Estado que não inclua as minorias.
O Direito Achado na Rua busca democratizar o direito para se apro-
ximar com a realidade social. O Brasil é um país de contradições raciais
e a disputa que o o movimento negro já faz há algumas décadas, redefine
as normativas constitucionais a partir de outros parâmetros, aqui temos o
reconhecimento do outro na reescritura da história.
A sociedade brasileira é estratificada racialmente e a colonização ain-
da é sentida nos dias de hoje e diversos são os elementos que comprovam
essas divisões que são estéticas, simbólicas, epistemológicas e na análise
do encarceramento em massa da população negra2, mort1e por violência
policial3 e outros indicadores de desigualdade.
O movimento negro é uma contra hegemonia dessa realidade a partir
da articulação e organização para o avanço concreto de políticas públicas.
Por fim, o artigo é um chamamento para descolonizar cientificamente, uma
revolução cultural para dignificar a nossa história multiplural. Enquanto ob-
jeto-pesquisador os objetivos do tema estudado que se referem a motivações
pessoais, espontâneas e que apuram opiniões explícitas e reais sobre o estudo.

2. A importância do Pluralismo Jurídico


A colonização foi e é um processo violento com impactos históricos e
políticos de uma estrutura eurocêntrica. As relações sociais e econômicas
são construídas a partir de uma cultura individualista e capitalista que de-
terminam os modos de vida. São os liberais que propõem essa integração
das diferenças culturais, organizações por direitos culturais, e em volta dos
direitos de liberdade, igualdade, fraternidade entre outros como a questão
do direito às autonomias políticas. Entretanto, o debate proposto é que a

2 “Os dados sobre encarceramentos relativos à raça/cor disponibilizados pelo 14º Anuário
Brasileiro indicam alta concentração entre a população negra. Em 2019, os negros
representaram 66,7% da população carcerária, enquanto a população não negra (considerados
brancos, amarelos e indígenas, segundo a classificação adotada pelo IBGE) representou 33,3%.”
Disponível em: https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50418. Acesso em 16 de jun. de 2023..
3 Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FÓRUM BRASILEIRO DE
SEGURANÇA PÚBLICA, 2020, p.90), 79,1% das vítimas de intervenções policiais com resultado
em morte correspondem a pessoas negras, enquanto apenas 20,8% são brancas e 0,1% são indígenas.

103
Constitucionalismo Achado na Rua

própria construção dos direitos precisa ter o sujeito político envolvido nes-
sa construção. Nesse sentido afirma a autora:

Essa credibilidade também requer uma atenção maior para as cau-


sas básicas – o que nos obriga, entre outras coisas, a olhar para as
vendas da indústria americana em casa e no exterior. A globali-
zação não precisa ter conotações predominantemente negativas;
sabemos disso pela investigação histórica de antigos esforços pré-
-europeus de globalização (Abu-Lughod, 1989). Mas um grande
salto adiante nas conquistas de direitos humanos vai exigir que o
trabalho corpo a corpo, de grupo a indivíduo ou de grupo a grupo
mundo afora seja baseado num conhecimento da distribuição do
poder e das ações resultantes das iniquidades do poder tanto em
casa quanto no exterior. (NADER, 1999, p.79)

Logo no início dos anos 90 surge esse debate entre relativismo e uni-
versalismo dentro de uma multiculturalidade. A criação do acordo NAF-
TA é importante pois a partir dele se percebem as populações negras e
indígenas como passíveis de aplicação de políticas focais. Logo, traz à tona
o papel do multiculturalismo universal e neoliberal centrados em políticas
focais e políticas estruturais. A importância dos essencialismos, se posi-
cionando pelas suas categorias étnico raciais, é de um contexto no qual a
globalização traz a ideia das identidades múltiplas, essa necessidade que o
sujeito tem de se reconhecer nas suas dignidades.
Portanto, dentro dos pressupostos acima repensar qual o papel do
Direito dentro dessas disputas sociais de poder não deve ser limitada ao
campo que pressupõe universalidade e neutralidade. O próprio acesso ao
Direito não é feito de forma igualitária e enquanto instituição social defen-
de os interesses de uma classe específica. O Direito não é um epifenômeno
da cultura sujeito faz parte da perspectiva que estamos imersos e que cons-
truímos determina a maneira como os sujeitos se auto descrevem.

É a persistência de um paradigma de Direito que tem uma visão


restritiva, que compreende o conceito “justiça” como aplicação da
lei, a qual é previamente definida pelos órgãos estatais e com legi-
timidade pressuposta. Esse paradigma e Direito e Justiça que, em
se fundamentado no positivismo jurídico, pretende- se universal e
homogêneo. (IGREJA, 2012, p.33)

104
Constitucionalismo Achado na Rua

A lei não é vista como instrumento de proteção de todos porque é desi-


gualmente aplicada, e muitas vezes faz com que os indivíduos que trabalham
nessa área, os operadores do direito, se considerem como pacificadores de
conflitos sociais, e únicos entendedores dos processos e linguagens existen-
tes. Portadores, de certo modo, de uma exclusividade de conhecimento. No
Direito a realidade deve se adequar a teoria, as leis são padronizadores do
comportamento social e consequentemente, tudo o que está entrelaçado.
Entretanto, dentro dessa disputa de perspectiva é possível, a partir de
uma disputa de narrativa, formular, idealizar e analisar outras formas de
organização sociais que propõem a possibilidade de pensar novos sujeitos,
corpos, sistemas normativos, relações de poder em uma perspectiva de um
pluralismo jurídico, portanto pontua Wolkmer que “Assim, o pluralismo
jurídico transformador, de tipo “comunitário-participativo”, projeta-se
como “um paradigma para conceber e tratar o direito na própria estrutura
social, descentralizando e erradicando o estatalismo universalista de colo-
nialidade”. (WOLKMER, 2021, p. 220)
Essa possibilidade de transpassar as barreiras estatais, a partir de um
pluralismo jurídico, é também a análise de diferentes normatividades preo-
cupadas em perceber as demandas das localidades do Sul- global enquanto
ferramenta metodológica. Ampliar esse cenário é combater a ideia do Estado
como detentor da fonte e exclusividade do Direito. Logo, pontua o autor:

Nessa modalidade de pluralismo se insere experiências de nor-


matividades que vão além do Estado, como a justiça comunitária
(urbana e agrária), a justiça indígena, a justiça “quilombola” dos
afrodescendentes, das rondas campesinas, justiça itinerante e ou-
tras inúmeras experiências práticas (legalidade consuetudinária,
normatividades das comunidades campesinas, regras internas de
movimentos sociais permanentes). (WOLKMER, 2021, p. 220)

A sociedade se estrutura de forma pluricultural, pluriétnica e plu-


rinacional na comunicação inter-relacional e no acesso a recursos e bens
naturais. Essa cosmovisão para além de teórica precisa ser prática não só
identificando as barreiras aos pontos anteriores, mas encontrando manei-
ras de ultrapassar as mesmas com base autônoma, comunitária e partici-
pativa. (WOLKMER, 2021).

105
Constitucionalismo Achado na Rua

Alterar a matriz de referência do campo do Direito atualmente é es-


sencial para uma crítica epistemológica e transformadora sobre qual óti-
ca terá legitimidade para a construção social de outra sociedade. Nesse
sentido, o Direito precisa entender seus dogmas não universalistas e que
é estruturado e estruturante da sociedade em que se vive com aspectos
de classe, raça, gênero, etnias e geoeconômicos. Ou seja, que seja de fato
“capaz de germinar as sementes para uma nova teoria social do Direito.”
(WOLKMER, 2021, p.227)
Esse novo Direito que consiga romper com o jusnaturalismo, proposto
por Lyra Filho, José Geraldo, Nair Bicalho, é uma revolução no ensino jurídico
no Brasil na busca por um constitucionalismo democrático. Logo, “A demo-
cracia só é democrática quando constitucionalmente construída, a Constitui-
ção só é constitucional quando democrática. (NETTO, 2021, p. 232).
O que o professor José Geraldo fez e faz atualmente, é cumprir uma
demanda urgente dos povos oprimidos inseridos em uma lógica em que
normalmente são excluídos de forma sistemática. Ou seja, se o Direito é
produção do meio, e esse meio produz sujeitos sociais que são sujeitos de
direitos, o que se tem é uma luta e resistência contra uma hegemonia esta-
belecida e consolidada. (RANGEL, 2021)
Essas diversas formas de enfrentamento transpassam também um
Direito Insurgente, conceito apresentado por Jesús Rangel que dialoga com
o Direito Achado na Rua a partir da autonomia e resistência sobre a pos-
sibilidade de construir um novo futuro no contexto do México, mas que
é possível ampliar para a América Latina. “ El Derecho que se halla en la
calle y en el campo, no es el producido por el Estado, sino por procesos his-
tóricos de liberación” (RANGEL, 2021, p.243). Esses projetos de libertação
dos sujeitos coletivos de direitos são sobre condições materiais e o direito à
existência. O projeto aqui proposto é pelos direitos vinculados diretamente
ao direito à vida individual e coletiva, à existência física e cultural, à con-
sulta e ao consentimento prévio, livre e informado. (VIEIRA, 2021)
Se pensarmos uma conjuntura mais atual do último presidente do Bra-
sil, Jair Bolsonaro, existiam ameaças diretas à população negra e à democra-
cia brasileira. Isto é, a utilização da própria constituição contra o seu povo.
O Constitucionalismo achado na rua propõe aqui expor as relações de poder
e os privilégios de uma elite conservadora e a mobilização popular nessa
retomada democrática. (JUNIOR, BRANDÃO, MARQUES, 2021).

106
Constitucionalismo Achado na Rua

A relação entre política e Direito é estreita e o processo histórico dos


dois campos é ligado à liberdade humana e à ação política dos indivíduos
na busca de um constitucionalismo moderno que expõe as desigualdades
dos fenômenos jurídicos existentes. Melhor dizendo, o DANR dá lugar à
luta que rompe com essa soberania. A sociedade é dinâmica, e a Constitui-
ção está ligada a mesma, ou seja, é preciso que ela se dinamize na mesma
proporção de um projeto popular.

3. As desigualdades raciais no Brasil


O racismo opera na dimensão simbólica4, produzindo concepções de
mundo e interpretações hegemônicas que muitas vezes encontram abrigo
nas instituições do conhecimento. A responsabilidade com as pautas ra-
ciais começa a partir do reconhecimento da existência de um outro – con-
tribuindo para a inserção social e dar visibilidade aos sujeitos subalterni-
zados, evidenciando o racismo e ampliando as perspectivas e abordagens
sobre o mundo. Portanto, é preciso partir do pressuposto que existe uma
narrativa, até então hegemônica, que possui consequências e incidências
sobre aspectos políticos e sociais.
As relações raciais são determinadas pelas relações sociais construídas a
partir das experiências de cada país. A formação ideológica dos países torna os
corpos de indivíduos negros, através da violência racial, alvo da legitimação de
dominação do Estado. Portanto, o Estado possui uma função importante nes-
se processo, “Aquilo que atualmente consideramos as funções fundamentais
do Estado - o estabelecimento do direito legítimo (legislação), a proteção da
segurança pessoal e da ordem pública (polícia)” (WEBER, 1999, p.158).
No caso do Brasil, a prática discursiva que moldou essas relações é a do
mito da democracia racial, criada por Gilberto Freyre em Casa Grande e Sen-
zala (1933) e em Sobrados e Mucambos (1936), discussão que foi revista e pos-
ta em cheque por autores das Ciências Sociais como Abdias do Nascimento

4 O uso de atributos simbólicos próprios a tornar visíveis as diferenças e a manifestar as


posições, isto é, os signos distintivos da riqueza simbólica, como o vestuário ou a habitação,
ou os emblemas do reconhecimento social, como todos os atributos da autoridade legítima
(BOURDIEU, 2009, p.231).

107
Constitucionalismo Achado na Rua

(1978), Florestan Fernandes (1978), Darcy Ribeiro (1995), Roberto Damatta


(1984), Conceição Evaristo (2003), Kabengele Munanga (2010), entre outros/as.
Em outras palavras, a categoria de raça desde a colonização continua
operando como chave interpretativa, das construções sociais e culturais
em ambos os países na contemporaneidade. Corroborando esta ideia, Fa-
non (2008, p.84) pontua que “o problema da colonização comporta [ ] não
apenas a intersecção de condições objetivas e históricas, mas também a
atitude do homem diante dessas condições”.
A exclusão social com apoio jurídico interfere na constituição de sua
identidade, ao mesmo tempo em que interfere no seu cotidiano de uma for-
ma estruturada e estruturante. Os sujeitos políticos estão profundamente
racializados através das continuidades e descontinuidades das identida-
des. As narrativas, em geral, dão unidade a identidades diversas, pois seus
vínculos e marcas não são fenômenos pré-existentes, mas são resultado da
interação entre formas de poder. A construção das vozes subalternas, no
contexto institucional, este no qual elas se excluem devido a um projeto
político-social específico, nega-lhes a detenção deste poder. Como pontua
Foucault (1979, p.75), “onde há poder ele se exerce’’. Ninguém é, propria-
mente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determi-
nada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo
quem o detém; mas se sabe quem não o possui”.
Nesse sentido, as particularidades dessa estruturação, a partir de prá-
ticas discriminatórias, possuem como consequência uma exclusão de um
grupo social em específico. A formação ideológica dos países tornou os
corpos negros, por meio da violência, alvos da legitimação da dominação
do Estado. Portanto, as relações de poder no Brasil estão intrinsecamente
ligadas às dinâmicas sociais, se apoia aqui nos conceitos de dispositivo de
racialidade de Sueli Carneiro (2005, p.30). De acordo com a autora:

A hipótese desta tese é que um pressuposto dispositivo de racialidade5/


biopoder, do qual aqui propomos a existência, contém todos atribu-
tos definidos por Foucault, para o termo dispositivo, consistindo num
campo de significações que definem a especificidade das relações ra-

5 A nossa meta é demonstrar que o dispositivo de racialidade vem se constituindo historicamente


em elementos estruturais das relações raciais no Brasil e que, dentro os componentes do dispositivo
de racialidade que se articula, o epistemicídio tem se constituído instrumento operacional para a
consolidação das hierarquias raciais por ele produzidas (CARNEIRO, 2005, p.33).

108
Constitucionalismo Achado na Rua

ciais e as relações de poder nelas imbricadas no Brasil, articulando-se


e diferenciando-se de outros campos discursivos sobre esse tema em
função das particularidades de nossa formação social e cultural.

Para Carneiro (2005, p. 33. Adaptado.), este dispositivo se constituiu


historicamente “em elementos estruturais das relações raciais no Brasil e,
dentro dos componentes do dispositivo de racialidade que se articula, o
epistemicídio tem se constituído instrumento operacional para a consoli-
dação das hierarquias raciais por ele produzidas”.
A disseminação mundial da COVID-19 acirrou ainda variáveis de
desigualdade racial no Brasil, a pandemia contribui para aumentar as di-
ferenças sociais, raciais e de gênero. Houve o aumento da violência policial
nas periferias, famílias foram despejadas, existiu um descaso com a saú-
de sem acesso a serviços e materiais básicos. Frente a uma pandemia que
matou majoritariamente a população negra, os ativistas negros se organi-
zaram contra um sistema desigual de injustiças estatais. Segundo a Rede
de Pesquisa Solidária, a partir de dados do Ministério da Saúde, homens
negros morrem mais que os brancos, independente da ocupação social.
Portanto a mortalidade de homens negros é maior que a de homens bran-
cos até mesmo entre os advogados e engenheiros.“O trabalho aponta mor-
talidade maior até mesmo entre advogados, com risco de 43% maior, e en-
genheiros e arquitetos, com 44%” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2021, p. 01).
Mais uma vez o racismo tem se mostrado como estruturante da so-
ciedade brasileira. Logo, é preciso observar como este constitui os meca-
nismos de dominação e hierarquização social, os corpos subalternizados e
racializados é herança de nosso passado colonial escravista, o que, possi-
velmente interferiu na formação do Estado-nação nas Américas e na cons-
tituição dos arranjos sociais, raciais, institucionais, jurídicos, políticos, en-
tre outros das nações do continente. Isto nos leva a questionar quais seriam
os mecanismos ideias para se superar esta condição (e como a superar),
uma vez que os aspectos sistêmicos e estruturais que perpetuam o racismo
estão enraizados na cultura e nas relações societárias destes dois países.
A análise das categorias objetivas e subjetivas são importantes na luta
contra a discriminação étnico-racial tornando-nos sujeitos sociais conscien-
tes da nossa própria história. Esse enfrentamento só pode ser realizado de
forma conjunta com a finalidade de uma sociedade cada vez mais igualitária.

109
Constitucionalismo Achado na Rua

4. O movimento negro e o Constitucionalismo


O Movimento negro, é um movimento histórico, geracional, com
grandes referências que se unificam na sua estrutura junto com outras en-
tidades que surgem antes e após a sua construção. A pauta sobre as dife-
renças étnico-raciais coloca em evidência o enfrentamento e necessidade
de descolonizar o imaginário brasileiro. As políticas públicas em prol da
população negra, possuem suas bases nos movimentos políticos de rua.
Nesse sentido, pontua a autora:

A busca por igualdade racial, assim como por uma educação liberta-
dora e emancipadora, se constitui em um campo fértil para a cons-
trução de políticas públicas que possibilitem a criação de condições
para que as diferenças sociais, culturais e étnico-raciais sejam valori-
zadas e respeitadas na diversidade. Neste sentido, as práticas sociais
devem ser pensadas em termos de pluralidade e de encontro de dife-
rentes culturas, saberes e experiências. (GOMES, 2017, p. 23)

Portanto, existe uma luta por agendas negras onde a ótica política pre-
cisou transformar-se conjuntamente nas demandas da comunidade negra.
A mudança de perspectiva em reconhecer a autonomia, fortalecimento da
identidade racial política, comprometer-se com a luta antirracista, defesa
do princípio da igualdade racial e a existência de um racismo estrutural.
“O objetivo é refletir criticamente sobre o racismo estrutural presente na
nossa sociedade.” (HOOKS, 2013, p. 42)
As vozes geracionais do movimento negro são manifestadas em uma
importante conjuntura para a história a população negra no Brasil. Ou
seja, “O movimento negro brasileiro é geracional, e cada geração tem seus
desafios e suas respostas específicas a esses desafios” (VARGAS, 2014,
p.120). As experiências e modelos, que aumentam a visibilidade de casos
de racismo cobrando ações proativas por parte do estado em diferentes
momentos do tempo. Além de servir como exemplo para outras organi-
zações políticas, negras e de direitos humanos e até mesmo para o próprio
governo em uma organização histórica. De acordo com Moraes:

“Mais do que simplesmente um grupo de indivíduos com carac-


terísticas físicas em comum, os negros representam a história de
um povo que foi vítima da escravidão e de todas as formas de pre-

110
Constitucionalismo Achado na Rua

conceito, exploração e opressão que lhe sucederam. Nesse sentido,


o movimento negro no Brasil é uma forma de resistência e de luta
contra a marginalização, a desigualdade e a injustiça social que afe-
tam essa parcela da população.” (MORAES, 2010, p. 15)

A construção coletiva geracional da luta antirracista também é passa-


da para a juventude negra, através de ação política e a produção reflexiva e
interpretativa sobre relações raciais e sexismo. Logo a juventude negra pos-
sui um papel fundamental para a vitalidade da luta antirracista (DAVIS,
2016). Esse conjunto de experiências organizativas enraízam e cobram o
estado brasileiro com pautas que se assemelham a das décadas anteriores
sobre as questões do racismo.
Os mecanismos de dominação mantiveram padrões desde o período
colonial que reverberam em um racismo estrutural. Devido a essa questão
o autor Silvio Almeida (2020, p.136) discute que “a ascensão ao poder de
grupos políticos racistas colocou o direito à serviço de projetos de discri-
minação sistemática, segregação racial e até extermínio”. A nova roupa-
gem da colonialidade é o extermínio e a construção de sujeitos moldados
em hierarquias raciais. Portanto, continua o autor, “o direito não é apenas
incapaz de extinguir o racismo, como também é por meio da legalidade
que se formam os sujeitos racializados” (ALMEIDA, 2020, p.139).
Entretanto, é importante compreender a dualidade complexa que o
Direito tem de ser um mantenedor e uma ferramenta de transformação
social. Sendo assim, também pontua Almeida “O direito é a forma mais
eficiente de combate ao racismo, seja punindo criminal e civilmente os
racistas, seja estruturando políticas públicas de promoção da igualdade”
(ALMEIDA, 2020, p.139). Essa afirmação é tão real que alguns dos avan-
ços do movimento negro que poderiam ser vistos como um constitucio-
nalismo achado na rua, por exemplo a Lei 7.716/1989 que prevê os crimes
resultantes de preconceitos de raça e de cor, que são os crimes de racismo;
Lei no 9.394/1996 que estabelece cotas raciais e sociais; Lei 10.639/2003 que
torna obrigatório o estudo da história da África nos currículos básicos; Lei
12.288/2010 instituiu o Estatuto da Igualdade Racial.
O racismo produz e reproduz desigualdades sociais até os dias de hoje
e a violência simbólica e física decorrentes da ordem racial garante privilé-
gios a determinados grupos raciais hegemônicos. Esse processo violento de

111
Constitucionalismo Achado na Rua

uma formação econômica baseada em um sistema escravista, fruto de uma


violência colonial, precisa ser desconstruído de forma coletiva com toda a
sociedade. Nesse sentido pontuo em minha dissertação de mestrado que
as “Produções sobre a temática étnico-racial transformam o movimento
de mulheres, movimento negro, meio acadêmico, e a sociedade como um
todo. Portanto, a visibilidade, e reprodução do seu conhecimento põem em
prática a teoria (LOBATO, 2020, p.102)
A reconstrução teórica feita por intelectuais e ativistas negros no Bra-
sil, abordadas desde o período da colonização, atravessa os processos da
abolição e da centralidade da atuação de algumas pessoas negras for pri-
mordial para a libertação dos negros. O Direito Achado na rua em articu-
lação com o movimento negro transmuta a ação jurídica em luta política.

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116
Crianças, Adolescentes e Jovens
como Sujeitos Coletivos de Direitos:
Diálogos à Luz do Constitucionalismo
Achado na Participação

Alisson Oliveira da Silva


Carolina Rodrigues
Daniela de Macedo B.R.T. de Sousa
Daniella de Oliveira Torquato

1. Introdução
A perspectiva teórica de um constitucionalismo achado na rua dialoga
com uma concepção do Direito que emerge dos espaços públicos - a rua em
sentido metafórico - onde “se dá a formação de sociabilidades reinventadas
que permitem abrir a consciência dos novos sujeitos para uma cultura de
cidadania e de participação democrática” (Sousa Junior, 2019, p. 2785).
Partindo da valorização da potência do humano nos espaços sociais
em que emergem novos sujeitos que se apropriam da capacidade ativa e
criativa de gerar possibilidades diversas de uma existência com funda-
mento na dignidade da pessoa humana, reconhecemos nas crianças, ado-
lescentes e jovens um grupo de pessoas historicamente invisibilizadas em
suas demandas por direitos e que emergem, no Brasil, em um contexto
histórico permeado por tensionamentos demandantes de uma transição
democrática, como sujeitos coletivos de direitos.
O objetivo do presente ensaio é entrelaçar a potência das conquistas
historicamente contextualizadas com alguns dos desafios contemporâneos
de concretização de direitos de crianças, adolescentes e jovens numa realida-
de em que a desigualdade social se faz presente. Para tanto, os tópicos desen-
volvidos neste capítulo dialogam com as trajetórias profissionais dos autores
que compreenderam ser importante reunir breves diálogos sobre mobiliza-

117
Constitucionalismo Achado na Rua

ção social, sobre a marginalização de crianças e adolescentes, sobre a cate-


goria sujeitos coletivos de direitos e sobre a escola como espaço social para
o fomento da participação e da experiência plural de diversidade cultural.

2. A mobilização social pela proteção dos direitos das


crianças, adolescentes e jovens no Brasil: breves registros
O momento constituinte brasileiro na década de 80, que se consoli-
dou com a promulgação da Constituição Federal de 1988, foi permeado
por uma grande mobilização social e política. A emergência de novos ato-
res sociais implicados no processo constituinte para o debate de pautas e
reivindicações de direitos, garantias e espaços de construção de direitos foi
importante para a redemocratização do país.
Crianças, adolescentes e jovens estavam submetidos no cenário na-
cional, até então, a uma lógica menorista que transitava entre a caridade
filantrópica para os “menores abandonados”, sem perspectivas sólidas de
políticas públicas que reconhecessem o seu protagonismo subjetivo, e aos
encaminhamentos jurídicos e punitivistas para os “menores delinquentes”.
As crianças e os adolescentes eram considerados como objeto de tutela e de
vigilância na perspectiva de uma doutrina pautada pela “situação irregular”.
Segundo Garcia Mendez (1994, p. 17):

As diversas políticas de segregação dos menores, que começam a


adquirir caráter sistemático a partir do século XIX, são legitimadas
no contexto ‘científico’ do positivismo criminológico e nas conse-
quentes teorias da defesa social que derivam dessa corrente. Con-
forme demonstra a essência de muitos documentos da época, a pre-
servação da integridade das crianças está subordinada ao objetivo
de proteção da sociedade contra os ‘futuros’ delinquentes.

Integrantes de um grupo socialmente oprimido, excluído, invisível e


à margem, a pauta das crianças e dos adolescentes no Brasil passou a ser
fonte de mobilização de educadores, acadêmicos e trabalhadores sociais
progressistas no Brasil.
Movimentos sociais passaram a se articular nacionalmente em prol
da proteção das crianças e dos adolescentes. Um dos movimentos de gran-

118
Constitucionalismo Achado na Rua

de destaque e impacto no processo constituinte foi o Movimento Nacional


de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR). Em 1986 aconteceu, em Brasí-
lia, o I Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, oportunidade em
que crianças e adolescentes compartilharam as experiências de violência
a que estavam submetidos e começaram a falar, no contexto constituinte,
sobre suas demandas por direitos e garantias. Conforme os ensinamentos
de Garcia Mendez sobre o período (1994, p. 136):

As crianças e os adolescentes que compareceram ao encontro ti-


nham passado por um processo de discussão nos níveis local e
estadual, de modo que o grau de consciência política exibido por
eles nos debates em plenário e nas reuniões em pequenos grupos
surpreendia os observadores mais céticos.
Os meninos discutiram saúde, família, trabalho, escola, sexualida-
de, direitos e outros temas nesta linha. Em todos os grupos, porém,
uma palavra emergia com espantosa frequência e nitidez: violência.
Os meninos denunciavam a constante e sistemática violação de
seus direitos de pessoas humanas e de cidadãos. Denunciavam a
violência pessoal na família, nas ruas, na polícia, na justiça e nas
instituições de bem-estar do menor.
Mas denunciavam também a violência da falta de terra, de salário
digno para os pais, de trabalho, de habitação, de escolas, de pro-
gramas de capacitação para o trabalho e de condições dignas de
cultura, esporte, lazer e recreação.
Esse nível de maturidade e de organização espantou muitas pes-
soas. Aqueles que estavam juntos com os meninos e meninas aca-
baram por se convencer de que era chegada a hora de iniciar a luta
pelos direitos da criança e do adolescente no campo dos direitos. A
convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte configurava
um momento e uma oportunidade únicos de pôr o estado demo-
crático de direito, desde o início de sua construção, para funcionar
em favor das crianças e dos adolescentes do Brasil.

Crianças e adolescentes passaram a figurar na cena política como no-


vos atores capazes de trazer voz e força às demandas por direitos huma-
nos. Foram organizadas mini-assembleias constituintes em Minas Gerais
e no Mato Grosso com a participação de crianças que enviaram ideias aos
parlamentares constituintes. Segundo a historiadora Machieski, em junho
de 1987 foi entregue aos parlamentares uma emenda popular intitulada

119
Constitucionalismo Achado na Rua

“Criança e Constituinte” com um milhão e duzentas mil assinaturas de


crianças e de adolescentes brasileiros, inclusive com digitais marcadas com
tinta de muitos que não sabiam assinar seus nomes. Apesar da emocionan-
te entrega e das milhares de assinaturas, a emenda não preencheu o requi-
sito de admissibilidade de trinta mil eleitores (Machieski, 2020, p. 156).
Logo em seguida, ainda segundo a mencionada historiadora, foi apre-
sentada a Emenda Popular nº 96, “Criança, Prioridade Nacional”, assinada
por setenta mil e trezentos e vinte e quatro eleitores, mais do que o dobro
das assinaturas exigidas (Machieski, 2020, p. 157).
Durante o período constituinte em 1987, crianças e adolescentes brasi-
leiros estiveram presentes em ocasiões diversas em espaços plurais de arti-
culação e de organização política, como a escola e a rua, por exemplo, bem
como nos espaços institucionais do Congresso Nacional (Plenarinho, 2018).
Joaquín Herrera Flores destaca que os direitos humanos não são ca-
tegorias prévias à ação política ou às práticas econômicas, mas a “luta pela
dignidade humana é a razão e a consequência da luta pela democracia e pela
justiça” (Flores, 2009, p. 19). Falar sobre direitos humanos é falar da “abertu-
ra de processos de luta pela dignidade humana” (Flores, 2009, p. 21).
Nesse contexto, a fala de José Geraldo de Sousa Júnior - reconheci-
do como jurista atuante nas audiências públicas da Assembleia Nacional
Constituinte em reportagem especial da Rádio Câmara (Constituição de
88: os princípios da República e atuação do país no cenário internacional1
– dialoga com o cenário de emergência de novos sujeitos de direitos histo-
ricamente invisibilizados no contexto brasileiro:

e os direitos são expressões da emancipação da dignidade, são


avanços sobre formas ainda de negação opressora. Por exemplo, os
direitos das mulheres, das crianças, dos indígenas. Os direitos que
representam segmentos sociais que nunca tiveram reconhecimen-
to. Eles tiveram que fazer lutas dramáticas na história para se afir-
marem como sujeitos de direitos. (SOUSA JÚNIOR).

A mobilização social e política dos movimentos que contemplaram


a participação ativa de crianças, adolescentes e jovens durante o processo
constituinte brasileiro culminou com o artigo 227 da Constituição Fede-

1 Disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/541797-constituicao-de-88-os-


principios-da-republica-e-atua %C3%A7%C3%A3o-do-pais-no-cenario-internacional/

120
Constitucionalismo Achado na Rua

ral, o qual dispõe ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar


à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Nesse cenário
de conquista da titularidade subjetiva de direitos humanos é que encon-
tramos o diálogo de uma perspectiva teórico-prática de um constitucio-
nalismo achado na rua com o movimento em prol do reconhecimento das
crianças e dos adolescentes como sujeitos coletivos de direito.

3. Entre a marginalização e a ressocialização:


a adolescência no contexto jurídico e social
Serão abordados aqui movimentos insurgentes anteriores à Consti-
tuição de 1988 que insuflaram a transição da teoria menorista para a teoria
integralista de cuidado aos jovens e adolescentes à luz do constitucionalis-
mo achado na rua, na perspectiva de sujeitos coletivos de direitos que cons-
troem os seus direitos e suas representatividades através das contradições
do tecido e da práxis social.
A marginalização da criança e do adolescente é um processo histó-
rico no Brasil que envolve vários fatores políticos e sociológicos que mos-
tram como os grupos à margem sofrem o processo de contradição na in-
surgência de suas categorias. No caso dos jovens e adolescentes, “o menor”
não era historicamente reconhecido como sujeito de direitos. Mesmo que
esse cenário seja permeado por complexos fatores que intensificam as de-
sigualdades sociais, vale atentar que os indivíduos que compõem o grupo
dos marginalizados não escolhem estar nessa posição e, na maioria das
vezes, sofrem discriminações, preconceitos e violências com múltiplas
consequências no processo de desenvolvimento biopsicossocial. A margi-
nalização, portanto, refere-se à exclusão do indivíduo numa perspectiva
social, cultural, política e econômica perante a sociedade.
A Doutrina de Proteção Integral, assimilada no Brasil a partir do ar-
tigo 227 da Constituição Federal de 1988, reconhece a criança e o adoles-
cente como sujeito de direitos e de garantias fundamentais, indispensáveis

121
Constitucionalismo Achado na Rua

à formação do indivíduo ainda em desenvolvimento, levando em consi-


deração a condição peculiar de cada um deles, resguardando tais direitos
com absoluta prioridade. Nesse sentido, os olhares são voltados para a pre-
venção e a superação dos problemas decorrentes da exclusão econômica,
social e cultural, como o processo de estar à margem. Entretanto, a teoria
se distancia da realidade, uma vez que, estando à margem, os jovens e os
adolescentes estão distantes da efetivação dos seus direitos básicos, sendo
muito difícil reverter o contexto de marginalização.
Para observar esses movimentos insurgentes à luz do constituciona-
lismo achado na rua, é necessário observar que todo processo de contra-
dição e suprassunção gera, em certo momento da dialética, uma forma
de aparecer e se valer pelo direito. Uma vez que essa marginalidade se
apresenta em contextos de exclusão, de negação, de opressão e de carência,
motiva o aparecimento plural de direitos que emergem na luta e na resis-
tência de novos sujeitos sociais. Nesse sentido, expressa de forma a apoiar
tal posição Antonio Carlos Wolkmer no texto “A legitimidade dos sujeitos
sociais e a construção plural de direitos”:

As contradições injustas experimentadas pelos diversos grupos


voluntários, organizações sociais e movimentos coletivos em suas
amplas dimensões, bem como as condições negadoras das neces-
sidades identificadas com a sobrevivência e a subsistência, aca-
bam produzindo reivindicações que exigem e afirmam direitos.
(WOLKMER, 2022, p. 13).

Quando se fala em legitimidade de sujeitos coletivos de direitos, tem-


-se que reconhecer que essa legitimidade é validada pela própria Consti-
tuição que lhe dá status de garantias. Outrossim, para se falar em sujeitos
coletivos de direitos é necessária, a princípio, a desconstrução metafísica e
liberal do sujeito em si, ou sujeito privado de direitos.
Tal visão, embora correta quando se aplica o princípio da individua-
lidade, na medida em que o sujeito em si é mediador dos seus interesses,
direitos e deveres, quando aplicada ao sujeito coletivo, entendido a partir
da práxis social insuflada por movimentos, grupos, e coletivos que juntos
se adequam às condições da realidade global estabelecida, se torna pro-
blemática. Segundo Wolkmer: “o ‘novo sujeito coletivo’ é um sujeito vivo,

122
Constitucionalismo Achado na Rua

atuante e livre, que participa, autodetermina-se e modifica a mundialidade


do processo histórico-social” (Wolkmer, 2022, p. 14).
As crianças e jovens, a partir do momento que tem sua legitimidade
em grupos que buscam o interesse comum de afirmar sua existência posta
na sociabilidade do ser, são detentores de uma nova cidadania, de uma
identidade construída apta a lutar pelo reconhecimento de direitos e a fa-
zer valer direitos já conquistados, quer como uma nova fonte de legitima-
ção da produção jurídica, quer como uma categoria estabelecida de sujeitos
que se organizam e exercem a sua coletividade no direito.
Nesse diapasão, a categoria “sujeito coletivo de direitos” é gerada pela
práxis popular vivenciada pelos movimentos sociais e apreendida pelo Di-
reito Achado na Rua à luz da atuação acadêmica, social e jurídica do pro-
fessor Dr. José Geraldo de Sousa Junior, que tem conduzido um grupo de
pesquisa com extensa produção teórica relacionada às experiências popu-
lares emancipatórias nos últimos 30 anos e que vem se consolidando como
referência nas reflexões sociais sobre o direito. Na sua formação acadêmi-
ca, podemos ver que a sintetização teórica pode ser conferida em sua tese,
intitulada “Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua”: Experiên-
cias Populares Emancipatórias de Criação do Direito”. Ela foi defendida
em 2008 sob a orientação do professor Luis Alberto Warat e é uma obra de
referência no campo do direito que mobiliza gerações de estudantes, ad-
vogados populares, membros das carreiras do Estado, movimentos sociais,
sociedade civil e todas e todos que lutam pela transformação e democrati-
zação de nossa realidade e fazem do direito uma verdadeira práxis social.
Portanto, quando se parte da formulação teórica da categoria das
crianças e jovens como “sujeitos coletivos de direitos”, que alcançaram sua
visibilidade política e social através dos movimentos sociais que se fizeram
valer de direitos e representatividade, merece destaque no campo das teorias
críticas do direito. Segundo David Sánchez Rubio, em “El Pueblo hace dere-
cho, abriendo espacios de libertad”, José Geraldo de Sousa Junior e Antonio
Wolkmer tem conseguido perceber as limitações do paradigma monista do
direito, paradigma incapaz de corresponder às novas realidades e aos novos
contextos complexos do Brasil e do restante dos países latinoamericanos.

123
Constitucionalismo Achado na Rua

Em se tratando do Direito Achado na Rua, analisa o autor:

“expresión jurídica instituyente del poder popular, que como de-


recho insurgente, combina la dimensión del derecho estatal con el
derecho no estatal, a partir de un paradigma de pluralismo jurídi-
co y una praxis de participación democrática radical que articula
y complementa el positivismo de combate, el uso alternativo del
derecho, expresiones de pluralismo jurídico, un derecho militante
y un derecho insurgente, dependiendo de los actores sociales y el
contexto social e histórico de cada lugar, momento y época.” (Sán-
chez Rubio, 2022, p. 122)

Conforme destaca o professor Antônio Carlos Wolkmer em seu ar-


tigo “A legitimidade dos sujeitos sociais e a construção plural de direi-
tos”, é necessário enaltecer “a relevância de se buscarem formas plurais
e alternativas de fundamentação para a instância convencional da justiça
institucionalizada, projetando uma construção relacional e comunitária
solidificada na realização material concreta e efetiva de novos sujeitos so-
ciais que entram em cena e inauguram autênticos processos instituintes”
(Wolkmer, 2022, p. 13).
Porquanto, os jovens e adolescentes como dotados de personalidade e
juridicidade da coletividade de sujeitos de direitos e tendo sua preservação
e práxis no constitucionalismo achado na rua, participam desse movimen-
to que é caracterizado como “O Direito Achado na Rua: práxis no percurso
de fortalecimento das lutas sociais”.
Segundo Euzamara de Carvalho, O Direito Achado na Rua “se apre-
senta como uma contribuição teórica e política importante e se fortalece
com o diálogo com as teorias críticas no campo dos direitos humanos”
(Carvalho, 2022, p. 134), e é evidenciada e fortalecida “pela práxis – forma-
ção, formulação, ação” – presente no horizonte acumulativo e agregador de
O Direito Achado na Rua. Práticas estas que se encontram e se configuram
como ações que reinventam os direitos humanos com base no fortaleci-
mento da luta dos movimentos sociais.

124
Constitucionalismo Achado na Rua

4.A escola como espaço de mobilização e protagonismo:


crianças, adolescentes e jovens e a complexidade dos
desdobramentos da exclusão social
A escola desempenha um papel fundamental na formação e no desen-
volvimento de crianças, adolescentes e jovens. Além de ser um espaço de
aprendizado acadêmico, a escola pode ser um ambiente propício para a mo-
bilização e para o protagonismo desses indivíduos, contribuindo para que
eles se tornem agentes ativos em suas próprias vidas e em suas comunidades.
No entanto, é importante reconhecer que essa perspectiva nem sempre é al-
cançada, devido à complexidade dos desdobramentos da exclusão social.
No processo de educação escolar em comunidades periféricas do DF,
normalmente são necessários esforços intensos de planejamentos coleti-
vos e criativos a fim de oferecer propostas pedagógicas eficientes, inclusive
com a promoção de atividades que visem à recomposição de conteúdos e
que levem ao desenvolvimento de habilidades e competências básicas em
relação às quais, geralmente, uma parcela significativa das crianças, ado-
lescentes e jovens estudantes costumam apresentar defasagens.
A situação desafiadora do contexto periférico foi agravada e se tornou
ainda mais evidente e complexa no período pós-pandemia Covid 19. Além
de limitar o acesso à educação de crianças, adolescentes e jovens, de afetar
negativamente sua autoestima, autoconfiança e capacidade de se engajar
ativamente na sociedade, também pode levar à marginalização, ao aban-
dono escolar precoce, à falta de perspectivas de futuro e até mesmo à vio-
lação de seus direitos humanos, o que exigiria muito mais da comunidade
escolar como um todo.
Com o retorno às aulas presenciais, as instituições escolares se de-
pararam com a problemática mais recente de também ter que lidar com
as graves consequências enfrentadas pelos estudantes e suas famílias em
decorrência da crise comunitária de saúde que se instalou, uma vez que
uma grande parte destes ficou praticamente dois anos afastada da escola,
participando somente de aulas remotas ou permanecendo excluída do pro-
cesso educativo por falta de acesso às mesmas, sujeita também aos sérios
problemas de precariedade econômica e social.

125
Constitucionalismo Achado na Rua

As instituições públicas de ensino encararam a urgente necessidade


de avaliar, repensar e fundamentar as ações pedagógicas como um todo
buscando maior envolvimento coletivo e multidisciplinar em prol da me-
lhoria do processo de ensino e aprendizagem, com o desafio de buscar
meios, estratégias, recursos e espaços para garantir a superação das limita-
ções identificadas pelo corpo docente, diante do clamor muitas vezes silen-
cioso de quem permaneceu invisível, carente de direitos e ainda subjugado
em seu desenvolvimento intelectual e social.
O grande desafio de como atender essa faixa etária com defasagens
de aprendizagem significativas agravadas voltou-se em parte para o Plano
Nacional de Educação - PNE, Lei nº 13.005/2014, que em sua meta seis
prevê que “até 2024, a educação em tempo integral deverá ser oferecida, em
no mínimo cinquenta por cento das escolas públicas” e na garantia desse
direito, como forma de contemplar significativamente as perdas educacio-
nais no período pandêmico especialmente àqueles mais prejudicados.
Contudo, a política de Educação Integral nestas comunidades encon-
tra-se diante de uma realidade ainda limitada quanto à estrutura física,
recursos humanos, dificuldade de mobilidade entre a escola e as residên-
cias dos estudantes além de acompanhamento familiar limitado, enquanto
é notório que uma predisposição para aprender de forma tranquila e com
desenvolvimento saudável passa pela vivência dos direitos básicos que pos-
sibilitam às crianças e adolescentes chegar à escola com maior disposição
e interesse para estudar.
É fundamental, pois, destacar que grande parte dos estudantes que
vivem em periferias estão inseridos em contextos sociais com marcadores
de raça, gênero, classe e deficiência e necessitam de um olhar interseccio-
nal a partir de cada realidade, considerando as desigualdades que se inter-
ceptam e criam novas e complexas vulnerabilidades a serem observadas.
De acordo com Cruz (diálogos abertos), se faz necessário trabalhar essa
integralidade para que as políticas não estejam fragmentadas, mas para que
haja uma articulação das mesmas com a vivência em várias instâncias da
comunidade de forma transversal, provocando-se a cidadania, para se ter
uma gestão democrática com preocupação em compor uma rede de interse-
torialidade pensada na política de educação integral de uma forma ampla e
compatível com as mudanças e os atendimentos necessários junto aos direi-
tos humanos (Cruz, 2020). Onde podemos ressaltar a importância de a edu-

126
Constitucionalismo Achado na Rua

cação também ser orientada pelos marcadores sociais a serem observados


para a aquisição das formas de desenvolvimento integral, pois é notório que
não há Educação Integral sem a proteção dos direitos humanos.
Inspirado em Paulo Freire, o educador Gadotti (2009) defende:

(...) uma escola integral, integrada e integradora, (…) com objetivos


de educar para e pela cidadania, visando a diminuição da desigual-
dade no Brasil, fala na Educação Cidadã com o apoio de toda socie-
dade em prol da educação, pois tudo está interligado à formação do
ser humano e as aprendizagens estão para além da sala de aula onde
a ampliação da jornada escolar exige imaginação, vontade política,
e integração de programas, buscando o conceito de qualidade so-
ciocultural onde professores e alunos aprendem juntos a mudar o
mundo a partir da leitura deste.

Ao percorrer esse cenário, envolvidos por complexas problemáticas e


mobilizados pelas demandas das crianças, adolescentes e jovens, as famí-
lias e demais agentes da comunidade escolar passam a reagir e movimen-
tar-se por um percurso que garanta o direito dos estudantes de aprender e
de estar no ambiente escolar com a potência desse espaço social.
A partir das reflexões acadêmicas, das discussões nas instituições es-
colares e de inúmeras reportagens realizadas durante o período da pan-
demia2, os debates se intensificaram, as necessidades falaram mais alto e

2 A título de exemplos:
PERES, Maria Regina. Novos desafios da gestão escolar e de sala de aula em tempos
de pandemia. In Revista Administração Educacional - CE - UFPE Recife-PE, V.11
N. 1 p. 20-31, jan-jun/2020. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/207d/
f210d69830944ec189d127895590bba2d9ff.pdf
BAHIA, Norinês P. Pandemia!!!! E agora? Reflexões sobre o cotidiano escolar à distância.
Cadernos CERU, 31(1), 116-125. https://doi.org/10.11606/issn.2595-2536.v31i1p116-125.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/174489
VIEIRA, Márcia de Freitas. SILVA, Carlos Manuel Seco. A educação no contexto da pandemia
de COVID-19: uma revisão sistemática de literatura. Revista Brasileira de Informática na
Educação – RBIE Brazilian Journal of Computers in Education (ISSN online: 2317-6121; print:
1414-5685) http://br-ie.org/pub/index.php/rbie.
Notícia: Pandemia ampliou desigualdade no ensino, evasão escolar e perda de aprendizagem.
Disponível em: https://cpers.com.br/pandemia-ampliou-desigualdade-no-ensino-evasao-
escolar-e-perda-de-aprendizagem/
Notícia: Evasão escolar de crianças e adolescentes aumenta 171% na pandemia, diz estudo.
Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/12/02/evasao-escolar-de-
criancas-e-adolescente-aumenta-171percent-na-pandemia-diz-estudo.ghtml

127
Constitucionalismo Achado na Rua

a mídia colocou-se a serviço de reverberar essas vozes. Inquietações no


campo do constitucionalismo, na busca incessante do direito que precisa
verdadeiramente ser achado também na escola e um fortalecimento inex-
plicável surge em toda comunidade escolar onde há pessoas que procuram
desempenhar com tamanha resiliência e da melhor forma possível o seu
trabalho, apesar das limitações.
Conhecer os desejos, valorizar e resgatar os sonhos. Não se conformar
com uma educação que oprime e que ajusta o indivíduo a uma realidade injus-
ta. É preciso contemplar a diversidade, ampliar as possibilidades, investigar al-
ternativas e problematizar soluções, resgatando com conscientização o diálogo
e a amorosidade em ensinar e aprender, como ensina Paulo Freire (1996), ten-
do a prática social como início e fim, a partir das relações humanas e culturais,
a transformação da realidade, a emancipação do sujeito com uma educação
que tem que ter mais sentido para quem aprende. Como ensina Freire:

O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto
a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curio-
sidade, como inconclusão em permanente movimento na História.
(Freire, 1996, p. 142)

Ações fundamentais para ampliar a participação e garantir os direi-


tos de crianças, adolescentes e jovens que são invisibilizados no processo
escolar e que se insurgem com sua subjetividade enquanto sujeito coletivo
de direito, relembrando a necessidade de superar as visões negativas sobre
as infâncias-adolescências populares e de reforçar seu protagonismo e suas
presenças de formas afirmativas.
Nesse contexto, a escola tem um papel crucial no combate à exclusão
social. Ela pode ser um espaço de acolhimento, de respeito à diversidade e
de promoção de oportunidades em busca da equidade. Por meio de práti-
cas pedagógicas inclusivas, que valorizam a participação ativa dos alunos,
a escola pode empoderar crianças, adolescentes e jovens, incentivando-os
a se tornarem agentes de mudança em suas vidas e em suas comunidades.

128
Constitucionalismo Achado na Rua

5. Crianças e jovens indígenas e a experiência


plural de diversidade cultural
Dentro da perspectiva pluralista e inclusiva do ECA em relação aos
direitos das crianças e adolescentes, um dos maiores desafios tem sido o
tratamento conferido pelo sistema de justiça às crianças e jovens indíge-
nas, em razão da imensa especificidade desse público, que requer um olhar
muito diferenciado dos agentes públicos.
A Constituição de 1988 também representou um inquestionável
marco na proteção aos direitos dos povos indígenas, bem como de suas
crianças e jovens. Sua promulgação foi muito festejada porque pôs fim a
um longo período de ditadura no país e estabeleceu as bases para um Es-
tado Democrático. Além disso, inovou diversos conceitos, acolheu direitos
emergentes e se propôs a fundar uma “sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social”.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um preceito basilar des-
se texto e visa garantir que todos os indivíduos tenham direito a tratamento
justo e digno pelo Poder Público e que seja preservada sua integridade física
e moral. Como um princípio conformador, traz identidade à Constituição,
orientando sua interpretação. Ao lado do princípio da dignidade da pessoa
humana, a propriedade e a igualdade são fundamentos do direito burguês
liberal e individualista. A igualdade jurídico-formal, no entanto, cedeu lugar
a uma compreensão vinculada ao ideal de justiça: a isonomia material.
Além disso, no que diz respeito à isonomia, José Afonso da Silva lem-
bra que “o princípio não pode ser entendido como individualista, que não
leve em conta as diferenças entre grupos” (SILVA, 1995, p. 211). A Carta
de 1988, portanto, rompeu a hegemonia individualista das legislações an-
teriores e passou a reconhecer direitos coletivos, ainda que sob uma pers-
pectiva eurocentrada.
Para WOLKMER (2015, p. 258), a Constituição de 1988, embora de
forma limitada, calcada em um perfil “republicano liberal, analítico e mo-
nocultural”, colaborou para a superação de uma “tradição publicista li-
beral individualista e socialintervencionista”, abrindo caminhos para um
constitucionalismo pluralista e multicultural, pautado pela ideia de convi-
vência e interdependência de diversos grupos sociais.

129
Constitucionalismo Achado na Rua

A Constituição representou também uma grande ruptura na política in-


digenista ao finalmente reconhecer a organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições dos povos indígenas, em seu artigo 231. A partir de sua
promulgação, o direito à diferença passou a ter um grande valor jurídico e
constitui um direito fundamental essencial ao Estado Democrático de Direito.
A Convenção 169 da OIT, incorporada à legislação brasileira por
meio do Decreto nº 10.088, também estabelece que os Estados signatários
devem respeitar a identidade social, cultural e as instituições dos povos
indígenas, além de ter de assegurar a participação plena das crianças na
vida de sua própria comunidade
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, prevê no artigo
100, como princípios basilares que norteiam o que deve ser considerado como
o melhor interesse da criança, os princípios da convivência familiar e comu-
nitária, da intervenção mínima e precoce, da privacidade, da responsabilidade
parental, da proporcionalidade e atualidade, da informação e da participação,
da proteção integral e prioritária e da prevalência da família, dentre outros.
Além disso, institui a responsabilidade primária e solidária do Poder Público
na efetivação dos direitos das crianças e adolescentes.
Nota-se, portanto, que o ECA combate a cultura de institucionalização
ao estabelecer o direito à convivência familiar e comunitária como diretriz de
proteção e ao excepcionar o acolhimento, tendo em vista as graves consequên-
cias psicológicas e sociais que advêm da institucionalização prolongada.
É importante entender, ainda, que o direito à convivência comunitá-
ria é um direito da criança e do jovem, e não apenas da comunidade. Em
se tratando de crianças e jovens indígenas, é preciso considerar que o re-
conhecimento da alteridade deve ser entendido transversalmente no texto
constitucional, de modo que o direito à convivência comunitária alcança
uma dimensão diferenciada por se referir a povos que têm uma compreen-
são cosmológica que privilegia a dimensão social coletiva.
O ECA estabeleceu ainda em seu artigo 28, parágrafo 6º, que a coloca-
ção em família substituta deverá sempre considerar e respeitar a sua iden-
tidade social e cultural, os costumes, tradições e as instituições indígenas.
A colocação familiar deve também ocorrer prioritariamente no seio de
sua comunidade, terra ou povo indígena, sendo obrigatória, em todos os casos,
que haja intervenção e oitiva de representantes Fundação Nacional dos Povos

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Constitucionalismo Achado na Rua

Indígenas - FUNAI, além de um antropólogo indicado pelo juízo, perante a


equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso.
Recentemente, o STJ se manifestou pela primeira vez acerca da obri-
gatoriedade de participação da FUNAI nesses processos, conforme mostra
um trecho da decisão:

“A intervenção da FUNAI nesses tipos de processos é de extrema re-


levância, porquanto os povos indígenas possuem identidade social
e cultural, costumes e tradições diferenciados, tendo, inclusive, um
conceito de família mais amplo do que o conhecido pela sociedade
comum, de maneira que o ideal é a manutenção do menor indígena
em sua própria comunidade ou junto a membros da mesma etnia. A
atuação do órgão indigenista visa justamente a garantir a proteção
da criança e do jovem índio e de seu direito à cultura e à manuten-
ção da convivência familiar, comunitária e étnica, tendo em vista
que a colocação do menor indígena em família substituta não indí-
gena deve ser considerada a última medida a ser adotada pelo Es-
tado.” (RECURSO ESPECIAL nº 1.566.808 - MS 2015/0288539-3)

Essas diretrizes legais resultam de uma longa história de luta dos po-
vos indígenas pelo reconhecimento do direito à diferença e se reflete na
proteção dos modos próprios dos povos indígenas de cuidar de suas crian-
ças e jovens, impedindo que o Estado adote políticas integracionistas que
interferem na própria sobrevivência física e cultural dos povos originários.

6. Considerações finais
As crianças, os adolescentes e os jovens são pessoas inseridas em um con-
texto cultural e histórico. É fundamental que sejam reconhecidas enquanto
titulares de direitos, porém, mais do que isso, como pessoas plenas, com voz e
com possibilidade de agir e de participar a partir das suas próprias experiên-
cias de vida. O paradigma da tutela precisa ser efetivamente superado em prol
do paradigma da titularidade de direitos, especialmente dos direitos humanos.
Destaca-se, portanto, o entrelaçamento feito nesse artigo entre a mo-
bilização social durante o processo constituinte brasileiro na década de
80 do século XX, com a ampla participação do Movimento Nacional dos
Meninos e Meninas de Rua, e a emergência das crianças, dos adolescentes
e dos jovens como sujeitos coletivos de direitos. Perspectiva que dialoga

131
Constitucionalismo Achado na Rua

com a luta pela superação da restrição dos espaços à margem da socieda-


de, bem como pela efetiva participação e atuação no ambiente escolar e
comunitário e, também, pela consideração da diversidade no âmbito do
estabelecimento das suas relações sociais e comunitárias, contemplando a
perspectiva relacional das comunidades e povos tradicionais.
É a partir dessa referência plural, diversa e emancipatória pela emer-
gência de direitos humanos e fundamentais que crianças, adolescentes e
jovens podem ser reconhecidos como sujeitos coletivos à luz do paradigma
de um constitucionalismo que reconhece o pluralismo em suas perspecti-
vas jurídica, social e cultural.
Assim, considerando uma perspectiva plural dos direitos humanos de
crianças, adolescentes e jovens os reconhecemos como sujeitos ativos e cuja
participação social e cultural é mais do que importante, é urgente. Reconhece-
mos as experiências e vivências plurais que contextualizam a luta por direitos.
Segundo Herrera Flores, é importante “distinguir o plano da realida-
de do que convencionalmente costumamos chamar de ‘direitos humanos’ e
o plano das razões que justificam sua existência e dos fins que pretendemos
conseguir com eles e através deles” (2009, p. 26). A perspectiva tradicional
e hegemônica dos direitos humanos nos “faz pensar que temos os direitos
mesmo antes de ter as capacidades e as condições adequadas para poder
exercê-los” (2009, p. 27). Herrera Flores critica o discurso tradicional que
enuncia que o conteúdo básico dos direitos humanos é “o direito a ter di-
reitos”. Para Flores, é preciso garantir as condições materiais para exigi-los
ou colocá-los em prática. É preciso mais do que apenas “ter direitos”.
Ao tempo em que reconhecemos a importância das normas que
enunciam os direitos, também pontuamos que a proteção integral depen-
de da implicação da sociedade, da família e do Estado no reconhecimento
das crianças, dos adolescentes e dos jovens como titulares de direitos em
sua completude, mas, além disso é importante que sejam reconhecidos a
partir da potência de suas experiências, vozes, vivências, participações e
contribuições sociais e culturais.
A perspectiva adultocêntrica e colonial de estar no mundo é um dos
desafios que devem ser superados para a promoção e para a proteção dos
direitos de crianças, adolescentes e jovens.

132
Constitucionalismo Achado na Rua

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134
Constitucionalismo Achado na Rua

Anexo

Fonte: https://plenarinho.leg.br/index.php/2018/11/as-criancas-na-constituinte/
Foto: Marcos Henrique

135
O Direito Achado nas Imagens

Debora Herszenhut

1.Introdução: O projeto Vídeo nas Aldeias


O vídeo nas Aldeias (VNA) é uma Organização não Governamental
criada em 1987 pelo indigenista Vincent Carelli. Este projeto de produ-
ção videográfica que surge no bojo de uma militância política em favor
da população indígena brasileira, traz objetivos claros relativos ao empo-
deramento e engajamento destas sociedades nas suas respectivas causas.
Dar visibilidade à histórica luta política dos indígenas brasileiros, através
da universalidade da linguagem audiovisual, é o ponto de onde partiu o
trabalho desenvolvido pelo projeto VNA.
No início, a metodologia de trabalho do projeto consistia em uma
equipe de filmagem composta por não indígenas dirigir-se às aldeias e “co-
locarem-se a serviço” da comunidade. Disponibilizavam as ferramentas
audiovisuais para que os indígenas propusessem as temáticas a serem fil-
madas e, imediatamente após as filmagens, todos reuniam-se para assisti-
-las. Em um segundo momento, esta produção era (e ainda é) comparti-
lhada com outros povos indígenas, e também nos circuitos de festivais de
cinema e nos eventos relacionados ao tema.
Após dez anos trabalhando com essa metodologia, o Vídeo nas Al-
deias entrou em uma nova fase, a formação de cineastas indígenas, com o
objetivo de dar autonomia às comunidades para as suas respectivas pro-
duções audiovisuais. O Vídeo nas Aldeias tornou-se uma escola de cinema
para indígenas com a proposta de capacitar lideranças na linguagem au-
diovisual. Foram mantidos os três tempos do processo metodológico apli-
cado desde a criação do projeto (registro, visualização e intercâmbio/com-
partilhamento de imagens). No entanto, neste novo momento os indígenas
passaram a participar também do processo técnico da criação.
O trabalho desenvolvido pelo Vídeo na Aldeias não é exatamente pio-
neiro no que se refere a filmagem e documentação de culturas indígenas

137
Constitucionalismo Achado na Rua

no Brasil, visto que antes da sua criação já haviam algumas produções re-
levantes neste sentido. Trabalhos estes que vão desde os filmes produzidos
pela comissão Rondon, atravé
s da documentação fílmica realizada pelo Major Thomaz Reis na últi-
ma década do século XIX, até a produção realizada pelo antropólogo Ter-
rence Turner, junto aos Kayapó, no Pará, ao longo de 30 anos de pesquisa
com o grupo. Passando por registros feitos pela equipe dos irmãos Villas
Boas, quando a criação do Parque do Xingu, entre outros. No entanto, a
relevância do trabalho realizado pelo Vídeo nas Aldeias, se encontra prin-
cipalmente no que se refere à sistematicidade exercida neste trabalho, que
ao longo de três décadas vem documentando ininterruptamente grupos
indígenas de diversas etnias ao redor do Brasil.
Em segundo lugar, a especificidade desta produção se encontra no
momento da criação deste projeto, fundado como um braço de atuação do
CTI (Centro de Trabalho Indigenista). Desde o momento de sua criação
em 1986, um grupo de antropólogos/etnólogos politicamente engajados,
estiveram diretamente ligados ao projeto, ao qual davam assessoria ao tra-
balho de tradução de línguas indígenas, assessoria/consultoria antropoló-
gica e ainda atuando diretamente na realização dos filmes.

2. Como desconstruir a ideia do índio genérico:


Os anos 90 e a nova política ambiental
A histórica invisibilidade das sociedades indígenas é um tema recor-
rente nas produções do Vídeo nas Aldeias. Não necessariamente como en-
redo principal do filme, mas através da narrativa descritiva sobre as formas
de ser e de fazer coisas de índio presentes na ampla maioria da produção do
VNA e presente principalmente nas produções realizadas pelos Cineastas
Indígenas. Estas imagens demonstram que, por trás de qualquer história,
que no simples enfoque nos detalhes do cotidiano, encontra-se a necessida-
de de afirmação, apresentação e representação de um modo de ser indígena.
A busca pela apropriação e reconhecimento de suas identidades in-
dígenas se dá através desta afirmação das diferenças evidenciadas em de-
talhes nos filmes. Sair do estereótipo do índio genérico para tornarem-
-se reconhecidos como indivíduos inseridos em contextos socioculturais

138
Constitucionalismo Achado na Rua

diversos, com seus próprios códigos, línguas e culturas distintos uns dos
outros é um esforço que pode-se notar a partir desta vasta documentação
realizada pelos Cineastas Indígenas do projeto VNA.
O esforço de inserir o índio na construção da sociedade e da identidade
brasileira já vêm de longa data1. Este empenho encontra-se em não somente
dar visibilidade a ancestralidade indígena brasileira, mas fazê-la notar-se em
suas especificidades étnicas através da história cultural do Brasil. No entan-
to, a novidade do presente, ao qual o Vídeo nas Aldeias se insere, é a possi-
bilidade de os índios participarem agora desta construção, contarem a sua
história e escolherem a forma como querem ser vistos e representados.
Gonçalves (2010) a respeito de sua experiência com os Paresi ao longo
de 20 anos em que acompanha a trajetória deste grupo no Mato Gros-
so, apresenta cenários construídos a partir das relações dos Paresi com os
brancos, para refletir sobre a elaboração do conceito de cultura pela antro-
pologia e sua apropriação enquanto uma categoria nativa. Ao trazer para
sua análise um recorte temporal de vinte anos, observa que em um primei-
ro momento de seu contato com os Paresi na década de 1980, no período de
demarcação de suas terras, eram frequentes as invasões de fazendeiros em
seus territórios, ao mesmo tempo em que a BR 364 atravessava a reserva
indígena. O contato deste grupo com os brancos se dava essencialmente a
partir de duas situações: muitos indígenas trabalhavam para madeireiros
no desmatamento e da proximidade da estrada com a aldeia que alavancou
a venda de artesanato Paresi aos viajantes que cruzavam a estrada.

Produziram um artesanato que constava basicamente de um rearranjo


dos materiais que tinham à disposição em seu território. Desse modo
reinventaram o arco, que agora era feito com madeira de palmeira de
paxiúba (bastante fraca para ser usada como arco) e enfeitadas com
penas de arara e tucano[ ] Criaram o espanador, um dos objetos mais
caros para a venda, confeccionado com penas de ema, enfeitado com
penas coloridas, tendo o cabo produzido a partir do pé do veado...
Para os Paresi era claramente uma invenção, nunca venderam os
artefatos como sendo peças tradicionais de sua cultura, nunca en-

1 Capistrano de Abreu já no início do século XX realiza um trabalho etnográfico minucioso


sobre diversos grupos indígenas brasileiros. Com o objetivo de colocar a história indígena na
história brasileira. Com muito rigor e exatidão, busca desfazer os equívocos históricos que
apagaram a herança indígena desta narrativa. (GONÇALVES, 2010).

139
Constitucionalismo Achado na Rua

fatizaram esse aspecto, eram “souvenir” de índio. [ ] Os Paresi não


estavam com isso afirmando uma identidade de índio genérico e
nem mesmo estavam ali inventando sua cultura indígena através
de artefatos que produziam e vendiam. Do seu ponto de vista, si-
mulavam ser índio quando vendiam coisa de índio, mas tinham
a consciência de estar devolvendo a imagem do índio ou do que
significava a cultura indígena para os brancos. Índio ou cultura
indígena era uma invenção dos brancos [ ] Os Paresi faziam seus
rituais, suas festas, contavam os seus mitos, comiam biju, tocavam
suas flautas, caçavam, pescavam, mas tudo isso não era concebido
como “atividade cultural” [ ] Assim o ser índio e “cultura indígena”
eram alheios ao universo Paresi, que remetia ao mundo dos bran-
cos e não ao mundo dos Paresi.

No entanto, esse cenário tende a mudar na década de 1990, a partir


das novas perspectivas sóciopolíticas brasileira. Esta década é marcada por
uma série de iniciativas de programas promovidos por órgãos governa-
mentais e por organizações internacionais para o reconhecimento de sabe-
res e modos de vida de populações tradicionais. Um marco neste sentido
foi a Eco 922, a segunda conferência mundial sobre meio ambiente que
reuniu no Rio de Janeiro representantes de cento e oito países do mundo.
Foi um encontro que buscou articular as urgências climáticas e ambientais
do planeta às formas de manejo e manutenção do ecossistema, de forma a
favorecer e prolongar a vida humana na terra. “A intenção, nesse encontro,
era introduzir a ideia do desenvolvimento sustentável, um modelo de cres-
cimento econômico menos consumista e mais adequado ao equilíbrio eco-
lógico.”3 Neste contexto foram aprovados muitos documentos e acordos, o
relatório oficial da Cúpula da Terra, a chamada “agenda 21” que expõe em
detalhes o programa de desenvolvimento sustentável para o século XXI e
apresenta princípios objetivamente direcionados às populações indígenas.

2 A Conferência de Estocolmo, realizada em junho de 1972, foi o primeiro grande evento sobre
meio ambiente realizado no mundo. Seu objetivo era basicamente o mesmo da Cúpula da Terra,
realizada em 1992. Esta conferência, bem como o relatório Relatório Brundtland, publicado
em 1987, pelas Nações Unidas, lançaram as bases para o ECO-92. Em 1992, vinte anos após a
realização da primeira conferência sobre o meio ambiente, no Rio de Janeiro, representantes
de cento e oito países do mundo reuniram-se para decidir que medidas tomar para conseguir
diminuir a degradação ambiental e garantir a existência de outras gerações. Ver: http://
pt.wikipedia.org/wiki/ECO-92
3 Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/ECO-92

140
Constitucionalismo Achado na Rua

É neste contexto de legitimação e legalização de culturas tradicionais


que Carneiro da Cunha proclama seu entendimento de “cultura”, dife-
rentemente de cultura. Onde compreende que cultura é algo intrínseco e
inerente aos seres humanos, que deve ser regida e organizada por funções
mentais, essenciais para a construção e organização de pessoas em grupos
sociais. Em outro sentido, o termo “cultura” (com aspas) faz referência a
apropriação deste conceito por populações nativas que, no contato princi-
palmente com antropólogos, tomam conhecimento desta categoria a pas-
sam a utilizá-la como instrumento de reivindicação política.

Noções como “raça”, e mais tarde, “cultura”, a par de outras como


“trabalho”, “dinheiro” e “higiene”, são todas elas bens (ou males)
exportados. Os povos da periferia foram levados a adota-las, do
mesmo modo que foram levados a comprar mercadorias manufa-
turadas, algumas foram difundidas pelos missionários do século
XIX, como bem mostraram Jean e John Comaroff, mas num perío-
do mais recente foram os antropólogos os principais provedores da
idéia de “cultura”, levando-a na bagagem e garantindo sua viagem
de ida. Desde então, a “cultura” passou a ser adotada e renovada
na periferia. E tornou-se um argumento central - como observou
pela primeira vez Terry Turner4 - não só nas reivindicações de ter-
ras como em todas as demais. A “cultura”, uma vez introduzida no
mundo todo, assumiu um novo papel como argumento político e
serviu de “arma dos fracos”. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, 312)

O que Gonçalves (2010) e Carneiro da Cunha (2009) demonstram é


que a partir da década de 1990 o mundo passou por transformações polí-
ticas e econômicas que favoreceram o desenvolvimento deste processo de
apropriação/indigenização do conceito de cultura, e como estas categorias
foram utilizadas e reelaboradas com objetivos específicos pelas populações
tradicionais, nativizando - ou, como colocou Sahlins (1997), “indigeni-
zando” o conceito de cultura. O que importava agora não era mais cons-

4 Quanto aos próprios povos indígenas amazônicos agora usam a torto e a direito o termo
“cultura”. Terence Turner chamou a atenção o fato em 1991, mostrando como “cultura”
se tornara um importante recurso político para os Kayapó. Um processo semelhante foi
extensamente descrito na Melanésia, onde a palavra Kastom, termo neomelanésio derivado do
inglês “custom”, adquiriu vida própria. Embora os Kayapó por vezes utilizem um termo mais
ou menos equivalente em sua língua, parecem preferir usar a palavra em português, Cultura.
(CARNEIRO DA CUNHA, 2009, 368)

141
Constitucionalismo Achado na Rua

truir-se índio por oposição e alteridade a outros povos, tratava-se de cons-


truir-se índio para eles próprios, não como categoria genérica, mas sim
em suas especificidades e singularidades (língua, cosmologia, mitologia,
conhecimentos tradicionais e cultura material). Conforme afirma Carnei-
ro da Cunha (2009, 313), “na linguagem marxista, é como se eles já tives-
sem ‘cultura em si’ ainda que talvez não tivessem ‘cultura para si’. De todo
modo, não resta dúvida de que a maioria deles adquiriu essa última espécie
de “cultura”, a “cultura para si”, e pode agora exibi-la diante do mundo”.

3. A “cultura”, os filmes e os cineastas indígenas


Os filmes realizados pelo cineasta Xavante Divino Tserewahu neste
período de formação dos cineastas indígenas, Wapté-Mnhõnõ: a iniciação
do jovem Xavante (1999), Wai’á Rini, O poder do sonho5 de 2001 e Daritizé,
Aprendiz de curador6 (2003) tratam de registrar e narrar em pormenores
os rituais de seu povo, com propósitos claros no que se referem a afirmação
cultural e a guardar esta memória cultural para as próximas gerações. A
partir destes momentos específicos de celebrações e rituais, os documen-
tários realizados por Divino buscam evidenciar o que é ser Xavante. Ou
como se faz Xavante, para eles próprios, para os outros povos Xavante,
para os diferentes grupos étnicos que terão acesso a esse material e para
os brancos envolvidos nestes circuitos de festivais de cinema e eventos re-
lacionados ao meio ambiente, a antropologia, ao cinema etnográfico e à
questão indígena por onde circulam estes filmes.
Takumã Kuikuro participou desde a primeira oficina de formação
de cineastas realizada em sua aldeia pelo projeto VNA em 2002. Esta ofi-
cina aconteceu em parceria com os antropólogos Bruna Franchetto e Car-

5 O documentário que narra A festa do Wai’á. Dentro do longo ciclo de cerimônias de iniciação
do povo Xavante, esta festa é a que introduz o jovem na vida espiritual, no contato com as forças
sobrenaturais. Em diálogo com seu pai, um dos dirigentes deste ritual, Divino revela o que pode ser
revelado desta festa secreta dos homens, onde os iniciandos passam por muitas provações e perigos.
6 Realizado por Divino a pedido do chefe de aldeia de Guadalupe, recém criada na Terra Indígena
São Marcos. “Com a divulgação do seu vídeo Wai´a Rini, O poder do sonho em outras aldeias
Xavante, os moradores da Aldeia Nova da reserva de São Marcos pediram ao Divino que
filmasse o mesmo ritual em sua aldeia. ‘Aprendiz de curador’ descreve o cerimonial do Wai´á,
no qual os jovens são iniciados ao mundo espiritual para desenvolver o seu poder de cura.”

142
Constitucionalismo Achado na Rua

los Fausto, que implementavam o projeto Documenta Kuikuro, visando a


documentação de rituais e conhecimentos tradicionais do povo Kuikuro.
“Conforme explica Carlos Fausto (in VÍDEO NAS ALDEIAS 25 ANOS,
2011), um dos coordenadores deste projeto de documentação, o cacique e
as lideranças da aldeia já tinham a demanda de documentação dos rituais,
cantos e mitos, para que pudessem “guardar a sua cultura.” (BELISÁRIO,
2014, 33). Os filmes realizados por este coletivo resultados desta primeira
oficina, Nguné elü: O dia em que a lua menstruou7 (2004) e Imbé gikegü:
Cheiro de pequi (2006), tratam de contar a história deste povo através de
seus rituais. A opção e demanda deste grupo em formar um coletivo de
cinema deixa evidente esta necessidade dos indígenas neste momento de
resguardarem esta memória através dos registros videográficos.
Sobre este processo de documentação de rituais sistemáticos, Mari
Corrêa (então umas das coordenadoras do VNA) comenta a respeito das
escolhas dos temas para os filmes e apresenta uma discussão em torno do
assunto que teve com os indígenas participantes da formação dos cineasta.

Durante um encontro que promovemos com os realizadores em


São Paulo, lembro-me de uma discussão sobre quais seriam os as-
suntos que eles gostariam de tratar em seus filmes. O tema recor-
rente era o de “filmar a cultura”: filmar a cultura para não perdê-la,
para mostrar para os mais jovens, para o homem branco respeitar
mais. Nesta conversa, e em muitas outras antes e depois desta, cul-
tura é muitas vezes identificada exclusivamente como ritual, é festa
tradicional e ponto. Começamos a questioná-los sobre esta idéia:
então um povo que não faz mais sua festa tradicional não tem mais
cultura? O conceito de cultura foi se ampliando na medida em que
aprofundávamos a discussão: falar sua língua, o jeito de cuidar dos
filhos, de fazer sua roça, de preparar sua comida, as coisas em que
se acredita, as histórias, os valores foram aparecendo como ele-
mentos e manifestações de cultura. A certa altura, um dos parti-
cipantes, um índio Terena, visivelmente aliviado, disse: Na minha
aldeia não se faz mais festa tradicional e só os velhos falam a nossa
língua. Estava achando que não ia ter o que filmar, que não tinha
filme para fazer lá.” (CORRÊA in VÍDEO NAS ALDEIAS, 2004)

7 Em uma das noites durante o período da oficina, em que assistiam no pátio central da aldeia à
projeção do filme A guerra do fogo (1981), ocorreu um eclipse lunar. A projeção foi imediatamente
interrompida e durante toda a noite e no dia seguinte, uma série de ações rituais foram realizadas.
Neste filme os Kuikuro também lançam mão da encenação para reconstituir algumas cenas que
não puderam ser registradas no momento mesmo em que aconteciam.” (BELISÁRIO, 2014, 34).

143
Constitucionalismo Achado na Rua

A busca pela individualização de identidades étnicas a partir da cria-


ção de uma estética comum me parece ser um aspecto bastante relevante
nesta produção. A opção em trabalhar apenas com a produção de docu-
mentários sobre temas que recorrentemente recaem sobre a reflexão da
“nossa cultura” e o “nosso modo” de fazer as coisas, seja a partir da docu-
mentação e registro de rituais, seja na observação das ações cotidianas da
aldeia, demonstram a tentativa destes indígenas de se apropriarem destas
ferramentas para produzirem a construção de identidades de si e para si.
Há, portanto, uma clara demanda dos indígenas por estes registros,
seja através da documentação sistemática da “cultura” como forma de
acesso e acervo destas histórias pelos próprios povos, seja para a legiti-
mação e afirmação dessa cultura para os brancos. Esta é, portanto, uma
“fórmula” de narrativa e de estética encontrada pelo projeto em conjunto
com os indígenas para dar conta desta demanda de produção de registros
videográficos das comunidades envolvidas. Ao mesmo tempo que tentam
produzir “bons” filmes que dialoguem com o mundo dos brancos, buscam
também atingirem seus objetivos políticos, no sentido de dar forma e re-
presentatividade para as suas respectivas lutas.

4. O processo de etnização através da produção de imagens


Tanto na filmagem de rituais, quanto na filmagem do cotidiano e
do ordinário, estes filmes demonstram a necessidade de representação
desta “cultura” e aquilo que Carneiro da Cunha apontou como a “cultura
para si”, pois representam a apropriação do conceito de cultura por estes
povos para fins políticos.
Performar para e com a câmera, é algo que perpassa a trajetória
do cinema documentário, esta é uma questão que já foi inúmeras vezes
repensada, ressignificada e reformulada8. A questão que me leva nova-
mente a refletir sobre este tema reside agora em outro ponto: neste con-
texto de produção fílmica realizado por cineastas indígenas no âmbito

8 Belisário (2014, 54) analisa as estratégias de mise-en-scène adotadas no filme As Hiper Mulheres
(2011), dirigido por Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette e apresenta o conceito de
mise-en-scene documentária discutido por Comolli (2008) e Amount (2006) como uma ação
performática inevitavelmente presente no gênero do cinema documentário.

144
Constitucionalismo Achado na Rua

do projeto VNA, busco compreender a partir do conteúdo apresentado


nestas imagens, quais os efeitos que estas provocam quando exibidas. Em
outras palavras, quais seriam estes significados específicos sugeridos por
Carneiro da Cunha (2009, 373) a propósito desta formulação de “cultura”
impressa nos filmes destes cineastas.

Falar sobre a “invenção da cultura” não é falar sobre cultura, e sim


sobre “cultura”, o meta discurso reflexivo sobre a cultura. O que acres-
centei aqui é que a coexistência de “cultura” (como recurso e como
uma arma para afirmar identidade, dignidade e poder diante de Esta-
dos nacionais ou da comunidade internacional) e cultura (aquela “rede
invisível na qual estamos suspensos”) gera efeitos específicos.

No esforço em realizar “bons” filmes percebemos que estes podem


facilmente cair na armadilha da ambiguidade apontada pela autora (2009,
313) a respeito dos efeitos produzidos pela apropriação do conceito de “cul-
tura” por seus possuidores. “Como vários antropólogos já apontaram des-
de o final dos anos 1960 (e outros redescobrem com estrépito de tempos
em tempos), essa é uma faca de dois gumes, já que obriga seus possuidores
a demonstrar performaticamente a “sua cultura”. E neste sentido, cultura e
“cultura” produzem efeitos diferenciados. Ou seja, na tentativa de produzir
um filme “autêntico” pode-se também estar inviabilizando a produção de
um filme “autenticamente” indígena.

5. Primeiros contatos, o VNA e os Guarani


O projeto Vídeo nas Aldeias chega aos Mbyá Garani no sul do Bra-
sil tardiamente, apenas em 2007 após vinte anos de projeto, dez anos de
formação de cineastas indígenas e incontáveis produções. O VNA aporta
na Aldeia Anhentenguá, localizada na Lomba dos Pinheiros, periferia de
Porto Alegre (RS), para a execução de um projeto de formação audiovisual
demandado pelos indígenas durante o processo de elaboração do INRC e
financiado pelo IPHAN do Rio Grande do Sul.
Mokoi Tekoá Petei Jeguatá - Duas Aldeias e uma Caminhada (2008, 63’)
é o filme resultado desta primeira oficina realizada com os Guarani Mbyá. O
filme está dividido em duas partes, a primeira parte se passa na aldeia Anhe-
tenguá, em Porto Alegre (RS), mostra o dia a dia dessa aldeia em profunda

145
Constitucionalismo Achado na Rua

angústia com a falta de terras que impossibilita a comunidade de continuar


praticando suas atividades tradicionais de caça e plantio de milho e man-
dioca, principalmente. A segunda parte do documentário se passa na aldeia
Koenju e trata da produção de artesanato para a venda a turistas no sítio
histórico de São Miguel das Missões. Por fim, estas duas partes se conectam
no destino final, as ruínas de São Miguel, para onde os moradores de ambas
as aldeias se deslocam para a venda de artesanato aos turistas.

6. A Cosmologia Guarani: algumas considerações


Hélène Clastres escreveu em 1978 o livro A terra sem mal, que se
tornou um clássico da literatura antropológica e grande referência para
a compreensão da cosmologia Tupi-Guarani. A autora, a partir de relatos
históricos de viajantes e posteriormente pesquisadores, linguistas e etnólo-
gos, busca desconstruir a ideia que esteve presente ao longo do processo de
catequisação dos índios nas Américas (especialmente entre os jesuítas) de
que os Guarani, por não apresentarem em sua cosmologia rituais suntuo-
sos e sistemas complexos de parentesco e de organização social (se com-
parados aos grupos indígenas de tronco linguístico Jê, por exemplo) não
teriam “cultura”. Neste livro, H. Clastres busca compreender onde apoia-se
de fato a cosmologia e a tradição deste povo. Desconstrói a idéia de assimi-
lação e messianismo, que alguns autores anteriores a ela propuseram a res-
peito dos Tupi-Guarani, de que, foi com o contato, na relação com o branco
e principalmente com os jesuítas, que estes povos edificaram a sua crença e
cosmologia. E busca, portanto, encontrar o ponto de “origem”, ou o que se
repete recorrentemente nestes relatos. Qual a informação a respeito desta
cultura e cosmologia que se encontra presente desde os primeiros escritos?
E chega, por fim, ao que apresenta como um “denominador comum” para
o qual aponta já no título do livro, “A terra sem mal”. Esta compilação de
dados históricos a partir de uma leitura antropológica trouxe novos ares
para a compreensão deste povo, que muitas vezes foi colocado na “peri-
feria” da etnologia, exatamente pela falta de ícones que evidenciam e gla-
mourizam a tal “cultura” indígena neste universo etnológico. Hélène trata
de deslocar o eixo do entendimento desta cultura para além destes ícones

146
Constitucionalismo Achado na Rua

e busca apontar para onde de fato está localizada a manutenção cultural


deste povo, o que, afinal, os fazem e refazem Guarani.
A busca da Terra sem mal, seria, portanto, esta síntese de uma cultura
que se apoia nas palavras, no discurso e no profetismo dos karaís. Estes povos
de largo conhecimento da agricultura, que caminharam de Norte a Sul do
continente em busca deste lugar. Estas peregrinações que levavam famílias e,
por muitas vezes, aldeias inteiras a abandonarem suas terras, seus cultivos,
para alcançarem este lugar na terra onde os homens poderiam enfim tornar-se
deuses, alcançar a imortalidade e viverem em abundância e festa constante,
fazia com que se privassem nesta jornada de conforto e abundância material.
O que representava também uma passagem pela purificação, abandonar os ex-
cessos, viver com o elementar, guiando-se através das palavras de seus karaís
que fazem a ponte entre a palavra/vontade dos deuses aos homens.
A propósito de um povo de tronco linguístico Tupi Guarani, os Ara-
weté, Viveiros de Castro, estabelece alguns conceitos para pensar esta su-
posta ausência de estruturas. Ao contrário de Hélène Clastres, que ao fim
e ao cabo, trata de resolver as questões que propõe através do mesmo fata-
lismo clássico que marcam os estudos sobre os povos Guarani, apenas des-
locando esta “morte da cultura” para além do contato com colonizadores
e padres jesuítas e trata de justificar esta “morte” como já anunciada cos-
mologicamente, pois conforme afirma, é na própria busca, na caminhada
para a terra sem mal, que terminam por dizimarem-se, de fome, cansaço
e no rompimento com estruturas sociais. Viveiros de Castro (1986, 22),
por sua vez, busca olhar por outro ângulo os pilares sobre os quais se edi-
ficam a cosmologia Tupi-Guarani. Que, afinal, sobrevive até os dias atuais
mantendo suas unidades linguísticas e práticas sociais. De acordo com o
autor, é no devir, no desejo de transformar-se em outro, que se apoia toda
a cosmologia dos povos tupi-guarani.
O esforço de Viveiros de Castro (1986, 49) localiza-se exatamente em
lidar com estas supostas ausências de estruturas dos povos tupi-guarani,
para formular uma questão que trouxesse esta ausência, como fato e não
como ausência de fatos. Ou seja, como realizar um estudo antropológico
que não caia neste fatalismo especulativo da história que minimiza a cos-
mologia destes povos a uma perda de cultura pós contato, ou mesmo uma
determinante ecológica que coloca estes povos em relativo atraso tecno-
lógico ou os associa a perdas territoriais. Trata-se, portanto, de perceber

147
Constitucionalismo Achado na Rua

que para realizar este trabalho antropológico deveria encontrar o que é de


fato estruturante para os Tupi-Guarani. Tendo em vista que estes povos
estão vivos, são praticantes de uma cultura e falantes de uma língua, que
se atualiza com frequência, mas, ao mesmo tempo, mantém conexão com
suas origens mais remotas.
É neste devir radicado no centro da construção da pessoa tupi-guarani
que Viveiros de Castro situa outros dois importantes conceitos para estas
populações, mesmo que muitas vezes externados apenas metaforicamente: o
canibalismo e a antropofagia. Se este devir localiza-se fora, em algum lugar a
ser alcançado, ele muitas vezes pode significar estar em contato, apropriar-se
de outras formas de ser, não por oposição, mas por apropriação do outro.
Fato que muitas vezes está negativamente também associado a esta “acultu-
ração” sugerida pela aparência destes povos de origem tupi-guarani.
A recusa destes povos à sociedade, como já apontada por H. Clastres
(1978), não deve ser tratada como ambiguidade ou ambivalência do para-
digma natureza/cultura. Este sobrenatural é o próprio gerador, formulador
de estruturas sociais, sendo a sociedade uma margem ou uma fronteira,
um espaço precário entre natureza (animalidade) e sobrenatureza (divin-
dade). Onde, portanto, a pessoa não propriamente existe, ela é um devir,
um entre, uma constante transformação. Conforme elabora H. Clastres
(1978) é uma lógica que recusa o princípio da contradição, pois, ao mes-
mo tempo em que opõe extremos, busca torná-los compatíveis. Ou como
afirma Viveiros de Castro (1986), nem contradição, nem identidade; opor
extremos para apenas dissolvê-los enquanto extremos. É neste contexto
que situa o conceito de devir como estruturante para as sociedades tupi-
-guarani: “é um devir-outro: devir-deus, -inimigo, -jaguar, onde se o Ou-
tro enquanto Objeto do Devir, é imaginário, o devir é real, e a alteridade
uma qualidade do verbo, não um predicado seu” (DELEUZE; GUATTARI,
1980: cap.X apud VIVEIROS DE CASTRO, 1986, 124).
Trazer para a discussão este desapego material dos Guarani, seja pela
ausência de rituais suntuosos e rigorosos, ou através da falta de rigidez nas
estruturas sociais, são, portanto, dados fundamentais para que se possa
interpretar esta estrutura cosmológica dos Guarani, não como falta, mas
como presença, pois é na desmaterialização e no desapego, que estes ritua-
lizam e atualizam suas práticas.

148
Constitucionalismo Achado na Rua

7. O Cinema Guarani
A sequência final da primeira parte do filme Mokoi Tekoá Petei Je-
guatá - Duas Aldeias e uma caminhada que encerra o período de imersão
na aldeia Anhetenguá, pode ser considerada paradigmática para pensar-
mos esta produção.
Uma mão em close mexe numa pequena roça de milho, ao fundo co-
meçamos a ouvir o som do violão. Corte para crianças no pátio da aldeia
cantando em guarani ao som desse violão acompanhado de uma rabeca:
“Queremos nossas terras de volta para construir as nossas casas de reza”.
Corte. Estas mesmas crianças estão agora em cima de um palco, vestidas
com túnicas brancas que muito se assemelham às vestes dos coroinhas da
igreja católica. Acompanhadas do violão e da rabeca seguem cantando em
guarani “Queremos nossas terras de volta para construir as nossas casas
de reza”. No contra plano vemos um escasso público. Alguns jovens da al-
deia registram em seus celulares esta apresentação, que parece fazer parte
de algum evento comemorativo da cidade de Porto Alegre. Muitos destes
jovens têm cabelos pintados, usam bonés na cabeça, mas também cocares
e muitos estão com a cara pintada. A câmera atenta ao público, flagra um
senhor branco da platéia que dança com bastante entusiasmo embalado ao
som dos Guarani e convida em gestos a platéia para dançar com ele. Novo
corte. Estamos agora em algum restaurante self-service da cidade, vemos
mulheres e crianças Guarani abastecerem (e porque não dizer abarrota-
rem) seus pratos com sanduíches, pães de queijo, tortas caramelizadas e
muitas coxinhas de galinha. Corta. Estamos de volta à aldeia onde o velho
xamã ao som novamente da rabeca e do violão incita os jovens a dança-
rem. Estes jovens entram um a um na dança e formam uma roda quando
começa uma longa sequência do Xondaro9. Ariel10 surge na imagem, deixa
a câmera num canto e adere também à dança. Uma mulher comenta ao
assistí-los dançar: “Quem dera fosse sempre assim”. A dança segue, numa
aparente brincadeira entre os dançantes, entremeadas por uma série de
conversinhas e gritos em guarani. Ao final o velho diz: “Podia ser sempre
assim para que todos vissem como é. Essa dança nos faz tanta falta.”

9 Dança tradicional dos povos Mbyá.


10 Ariel Ortega, realizador indígena formado neste contexto de oficinas oferecido pelo projeto VNA.

149
Constitucionalismo Achado na Rua

O primeiro ponto que desperta interesse nessa sequência trata da tal


perda da “cultura” que logo salta à vista neste filme. Será que os guarani,
por comerem coxinhas e tortas caramelizadas, estarem de cabelos pinta-
dos e celulares na mão representando a sua “cultura” para os brancos em
cima de um palco na cidade, com vestes que fazem a nós brancos não nos
deixarem esquecer da longa história de catequese dos indígenas brasileiros,
representam essa perda ou morte da cultura, tão extensamente discutida
neste universo dos filmes indígenas? Será que estamos mais uma vez dian-
te do fatalismo comumente atribuído aos Guarani, que supõe que se ainda
são índios em breve não mais o serão?
Vejamos esta sequência, plano a plano. A sequência das crianças can-
tando na aldeia suas músicas de militância, pode ser entendida em analo-
gia ao conceito de assimilação destacado por Viveiros de Castro (1986) no
que se refere ao contato com os brancos, a possibilidade de atualização dos
discursos e cantos xamânicos em contextos específicos. É o devir Guarani,
localizado na periferia da cidade de Porto Alegre. Os quais através dos seus
cantos “tradicionais” de militância, ativam o dispositivo, eterno e constante,
de construção da Pessoa Guarani. Desta mesma forma podemos compreen-
der a sequência seguinte. Quando as meninas se apresentam praticamente
como um coral de coroinhas no palco, vestidas com suas túnicas brancas,
mas cantando em Guarani suas músicas de militância para uma platéia de
outros poucos índios (com cortes de cabelos ocidentalizados que registram
em seus celulares esta apresentação). Eles não estão apenas sendo assimila-
dos pelos brancos, estão também assimilando os brancos. Da perspectiva de
Wagner (2010) e de Viveiros de Castro (1986), poderíamos dizer que estão,
transformando estes brancos e ou, os elementos dos brancos, em Guarani.
Quando a câmera, por sua vez, é absorvida pela presença do branco
na plateia em “transe”, com a dita apresentação, vemos o processo oposto,
também destacado por Castro (1986, 73) sobre a capacidade/vontade de
sucção dos Araweté sobre os brancos, conforme destaca: “Se ora os Arawe-
té pareciam prestes a se atirar cegamente no mundo dos brancos, ora pare-
ciam exigir não menos absolutamente que as brancos ‘virassem Araweté’”.
Desta forma, a presença emblemática deste branco na plateia aparece aqui
como o devir do branco em Guarani.
Quando na sequência seguinte a câmera está em plano fechado fla-
grando os pratos recheados de doces caramelizados e coxinhas de galinha,

150
Constitucionalismo Achado na Rua

assistimos o processo de apropriação/assimilação da cultura dos brancos


pelos Guarani ao Devir, neste caso o devir-branco. Como todo devir, é peri-
goso, pois pode representar uma viagem sem volta. Um transformar-se em
branco, de tal forma assimilado que correm o risco de não mais voltarem a
ser Guarani. Este processo de transformação definitiva, para os Guarani,
está profundamente associado aos excessos. Por exemplo, nos discursos pro-
féticos dos karaís encontramos muitas vezes a afirmação de que o consumo
carne de caça11 em excesso para um Guarani pode transformá-lo em onça.
Sobre os excessos, Viveiros de Castro (1986, 23) observa: “Ascese ou excesso:
vias de acesso ao além, heterotopia fundadora da cosmologia Tupi-Guarani”.
Estes excessos, no entanto, se não tratados adequadamente, correm o
risco de nunca mais voltarem a serem Guarani. É preciso, portanto, puri-
ficar, voltar ao lugar de origem, a ascese pela qual é necessário passar para
que de fato a transformação, este devir, possa se dar na direção correta, a
caminho da terra sem mal. É por isso que eles dançam. A longa sequência
de Xondaro na aldeia, que segue a estas já destacadas, representa, portanto,
esta ascese, a busca pelo devir Guarani, o devir Deus.
Esta sequência faz-se agora mais clara do que pode representar para
além do sentido da “aculturação” fatalista atribuída aos povos Guarani. E
deve, sim, ser compreendida como uma sequência ontológica para com-
preendermos os significados da cosmologia Guarani. Resume em poucas
imagens uma série de questões levantadas sobre a produção deste cinema
indígena. Vejamos estas questões agora, ponto a ponto.
A primeira afirmação possível de se fazer a respeito destes filmes
é que, de fato, eles são autenticamente indígenas. Pois, vistos sobre este
panorama cosmológico descrito acima, nada mais natural que os filmes
guarani apresentem “boas” imagens aceitáveis para um público ocidental,
pois é neste eterno devir assimilacionista que os Guarani se constroem e
se reconstroem historicamente, sem jamais deixarem de sê-los. Por outro
lado, se estivessem de fato apenas preocupados com a afirmação de suas
“culturas” no sentido descrito por Carneiro da Cunha (2009), ou seja, se
o acesso a esta possibilidade de produção cinematográfica representasse
apenas a externação do ser índio para os brancos, por oposições bem de-
marcadas, talvez os Guarani nunca pudessem de fato chegar a produzir

11 O ato de caçar é muitas vezes interpretado e associado nestes discursos ao ato sexual.

151
Constitucionalismo Achado na Rua

esses filmes. Pois esta representação cultural estaria fadada ao entendi-


mento generalizante de que estes índios não são mais índios, tanto para
eles próprios como para os brancos (não invalidando aqui a possibilidade
de interpretação feita possivelmente por muitos destes espectadores bran-
cos que provavelmente tiram estas conclusões ao final destes filmes). Mas
não é disso que se trata. Através desta sequência vemos a produção desta
cosmologia e cultura em ação. De um povo que está em constante limina-
ridade. São testados e passam por provações frequentes para a elaboração e
construção de suas identidades, ou fazendo referência a Viveiros de Castro,
para a construção da Pessoa Guarani.
A afirmação da mulher a respeito da falta que sente daquela dança e
do velho xamã da aldeia ao final da dança, quando afirma que se eles fizes-
sem sempre aquilo as coisas seriam diferentes, são fundamentais para en-
tendermos esta construção. Não negam o devir-branco, apenas necessitam
atualizá-lo constantemente através das suas próprias práticas de contato
com o sobrenatural, para que as coisas se restabeleçam, ou melhor, para
que possam continuar no devir-Guarani, que está em constante movimen-
to e trânsito com os outros seres mundanos.
Há outra sequência de Duas aldeias uma caminhada bastante emble-
mática para pensarmos a respeito destas relações de contato, das formas
de representações de ser Guarani através do fazer (e por que não dizer
do devir) fílmico. Um grupo de meninos vai à mata pegar madeira para
a produção do artesanato. A coleta desta madeira não é feita no território
da aldeia e sim dentro do terreno de uma fazenda. No caminho de volta,
já com as madeiras em posse, vêem um passarinho, pegam um estilin-
gue e atiram no passarinho, que após algumas tentativas, cai morto no
chão. A câmera acompanha esta caça ao passarinho com presteza e filma
o momento exato da queda do passarinho da árvore - um sabiá vermelho,
conforme afirmam. Um dos meninos pega o passarinho e a câmera em
plano fechado procura junto com o atirador no corpo do passarinho morto
onde este tinha sido acertado, quando concluem: “Acho que foi na cabeça”.
Os meninos preparam uma pequena fogueira com gravetos de árvores e
ouvimos a fala em voz off: “Ilegalmente”. Começam a depenar o dito sabiá
e detalhadamente mostram para a câmera como fazem para tirar as tri-
pas do passarinho, quando comentam: “Os brancos vão sentir muita pena
do passarinho quando assistirem isso”. Há um corte na imagem para um

152
Constitucionalismo Achado na Rua

plano aberto no qual vemos os meninos em volta da fogueira, quando um


deles exclama chamando a atenção do cinegrafista: “Câmera! Os nossos
avós assavam assim mesmo antigamente. Só que eles matavam animais
maiores como tatus... Agora estamos assando só um sabiá. Não estamos
judiando do passarinho nem morrendo de fome, só estamos mostrando
como era nas matas”. Segue a esta fala imagens dos meninos degustando
o passarinho. “Muito gostoso”, exclamam. Por fim, a câmera mostra uma
pequena disputa entre dois meninos pelo último pedaço.
Este pequeno trecho faz-nos pensar a respeito dessa relação dos Gua-
rani com os brancos, esta tensão tênue, que não pretende excluí-lo do seu
discurso e nem exatamente assimilá-lo por completo. Quando as perso-
nagens propõem o diálogo com o branco através desta câmera porta voz,
eles não estão buscando convencer o branco sobre o quão forte e presente
é a sua cultura, estão exatamente mostrando ao branco a tal prática da
antropologia reversa proposta por Wagner. Ao afirmarem que os brancos
sentirão pena do passarinho, ou ainda, no início da sequência ao coloca-
rem fogo na fogueira quando ouvimos a palavra “ilegalmente”, eles estão
colocando os brancos para pensar através dos paradigmas Guarani o que
é ser índio na sua cultura hoje. Dando uma espécie de “dica”, sobre como
os brancos devem passar a pensar as perspectivas que norteiam as políti-
cas públicas e as ditas construções identitárias. Pois se não possuem terras
suficientes e precisam exercer suas atividades “ilegalmente” como cortar
madeira, colocar fogo na mata e caçar fora de seus territórios demarcados.
Como os Guarani poderão produzir cultura?
Neste diálogo, entre a câmera e os Guarani, destinado aos brancos,
eles não pretendem construir grandes elaborações acerca desta identidade
Guarani, apenas um breve relato sobre a necessidade de tornar explícita e
crítica as possíveis interpretações que os brancos frequentemente fazem
acerca da sua “cultura”. Sentirão pena do passarinho, acharão que estamos
morrendo de fome. No entanto, a mensagem destes filmes não é nem uma,
nem outra, estão apenas sendo Guarani, como há séculos vêm fazendo. Ao
afirmarem que os brancos sentirão pena do passarinho e pensarão ainda
que estes povos estão morrendo de fome, eles desconstroem as hipóteses
que possivelmente podem ser produzidas pelos brancos acerca destas ima-
gens e inserem-nas em seus discursos dialeticamente. Produzindo, desta

153
Constitucionalismo Achado na Rua

forma, a dita antropologia reversa, que os serve como tática de argumenta-


ção para as discussões políticas.
Deste modo, a militância inegavelmente impressa em todos os filmes
do VNA aparece aqui de outra forma. Não precisam provar que plantam
para o seu consumo, ou neste caso, que caçam para a sua subsistência,
pois, já não o fazem há muitos anos, mas ainda assim plantam e caçam, e
assim pretendem continuar vivendo, enquanto possível for, caçar e plantar
em suas terras. Mas, para isso, é preciso que os brancos entendam que já
quase não se pode, e se o fazem ainda hoje, fazem “ilegalmente” em terras
invadidas e contra todas as leis de preservação ambiental.

8. O Direito Achado Nas Imagens


No artigo “O DIREITO ACHADO NA RUA: questões de teoria e
praxis”, Sousa Junior (2012) faz uma revisão histórica do processo de cons-
tituição deste que hoje se configura como um amplo campo de pesquisa
e ação do direito e que ocupa papel de destaque nas principais discussões
teóricas do gênero principalmente no que tangencia a validação, legitima-
ção e possibilidades de ação dentro do campo dos Direitos Humanos. O
autor recorre aos aportes teóricos trazidos pelo idealizador deste movi-
mento Roberto Lyra Filho, quando ainda no momento de institucionaliza-
ção deste, prenuncia: “(A liberdade) não é um dom; é tarefa, que se realiza
na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”,
sendo o direito portanto uma construção histórico-social “que acompa-
nha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso
tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as
liberdades estabelecidas (como a liberdade contratual, que as desigualda-
des sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização,
tem de estabelecer a desigualdade, com vista a nivelar os socialmente des-
favorecidos, enquanto ainda existam)”.
Os processos de formulação teórica do Direito Achado Na Rua (DANR)
são pioneiros, visto que “passaram a desenvolver de modo original no Brasil
estudos orientados para um reconhecimento político-constitutivo da prá-
xis dos movimentos sociais de luta por moradia, por terra e pelo combate à
violência e discriminação racial, de modo a inscrever tais práticas no campo

154
Constitucionalismo Achado na Rua

jurídico, desde uma perspectiva da legitimidade dos sujeitos coletivos que


desafiam a ordem estatal, para então inscrever nela o reconhecimento dos
seus modos de ser e de viver com liberdade e dignidade.”
Sousa Júnior, através da realidade vivenciada e apreendida pelos mo-
vimentos sociais conceitua a categoria de Sujeito Coletivo, a qual passa a
dedicar-se a sua formulação teórica no bojo dos estudos sobre movimentos
sociais e a merecer destaque no campo das teorias críticas do direito. Esta
Categoria foi resumida pelo professor Antônio Carlos Wolkmer como:
“formas plurais e alternativas de fundamentação para a instância conven-
cional da justiça institucionalizada, projetando uma construção relacional
e comunitária solidificada na realização material concreta e efetiva de no-
vos sujeitos sociais que entram em cena e inauguram autênticos processos
instituintes”. É a partir deste conceito que proponho também a mirada
sobre estes filmes como “porta vozes” desses sujeitos coletivos de direito
que reivindicam suas liberdades através da produção de imagens.
Através da filmografia do Vídeo Nas Aldeias vemos como se dá a
apropriação e reelaboração de conceitos para que façam sentido não ape-
nas no âmbito institucional, mas, que façam parte da elaboração das de-
mandas sociais. Compreendemos que há uma defasagem histórica no que
se refere aos direitos indígenas e este é fruto de uma relação também his-
tórica de hierarquização e sobreposições de valores. E por isso trazer estes
filmes para o campo do debate do Direito Achado na Rua, coloca uma
outra camada a estas produções, que aqui convencionamos chamar de “O
Direito Achado nas Imagens”, pois, através destas produções realizada ao
longo de três décadas, estes filmes contribuíram não somente para a elabo-
ração de identidades ou “culturas” como também constituíram-se enquan-
to importantes ferramentas de luta e reivindicação de direitos territoriais,
patrimoniais, culturais e ambientais.
Se na perspectiva antropológica compreender a “invenção das cul-
turas” é sobretudo um amplo e inesgotável exercício de aprendizado pois
leva-se tempo para “saber aprender”. Na perspectiva do DANR o direito
“se realiza permanentemente, sobre as três perspectivas que o balizam: de-
terminar o espaço social e político de sociabilidades vivas; compreender
e reconhecer os protagonismos que se movem nesses espaços, seus movi-
mentos e os sujeitos coletivos de direito que neles se manifestam; e aferir os
achados que desafiam inteligibilidade como categorias de um direito vivo.”

155
Constitucionalismo Achado na Rua

Assim, este Direito achado nestes filmes, deve ser compreendido também
como um processo inacabável, pois se por um lado pode ser visto como
possibilidades de positivação de direitos (Achado na Rua ou nas imagens)
como também, todo este processo de busca por liberdade pode (e deve) ser
considerado como um constante Devir.

Referências

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1986-2011 - Olinda, PE: Vídeos nas Aldeias.

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Constitucionalismo Achado na Rua

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HERSZENHUT, Débora Fernandes. 2014. Dissertação de Mestrado


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imagéticos: O cinema indígena brasileiro através das três décadas do
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Brasília: OAB Editora ; Editora Universidade de Brasília.

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WAGNER, Roy. 2010. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify.

157
Eixo III – insurgências e emergências

159
A Opressão Feminina no Brasil como um
Resquício da Colonialidade e Reflexo na
Representatividade do Congresso Nacional

Janaína Carvalho Simões Patriota


Raquel Martins de Arruda Neves

Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto, desses que
tocam trombeta, anunciou: vai carregar
bandeira. Cargo muito pesado pra mu-
lher, esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem
precisar mentir. Não sou feia que não pos-
sa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem
dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a
sina. Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura. Minha tristeza
não tem pedigree, já a minha vontade de
alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai
ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.1
(Adélia Prado)

1. Introdução
A história humana é marcada pela dominação.
Escravidão, colonialismo, patriarcalismo estarão presentes em mui-
tos movimentos políticos e serão força motriz de feridas ainda abertas.

1 PRADO, Adélia. Bagagem. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Cameron, 2021, p. 9.

161
Constitucionalismo Achado na Rua

Nas lutas insurgentes contra esses sistemas, vários são os atores e plurais
são as suas demandas. Como um recorte de um vasto cenário, o presente
trabalho será dedicado à pequena contribuição quanto aos impactos deste
jugo sobre as mulheres, com metodologia principalmente voltada à análise
bibliográfica e documental, na intenção de investigar a representação femi-
nina na política e os desafios do porvir.
O papel da mulher na sociedade, aqui entendido em aspecto amplo, é
relegado à segunda categoria.
Há muitos exemplos de eventos históricos que levaram à opressão.
Os indígenas viviam em seu território segundo as próprias leis até serem
espoliados de seus direitos e vidas. O imperialismo europeu tomou terras
africanas, despojou seus habitantes e transformou reis em escravos. Tam-
bém os brancos cristãos já foram cativos em algum momento. Contudo,
a distinção entre os referidos eventos e a subjugação feminina consiste no
fato de que, em algum momento, estes povos gozaram de autodetermina-
ção, enquanto as mulheres, dentro e fora de quaisquer sociedades, em sua
maioria, jamais exerceram o protagonismo.
Gerda Lerner, em seu livro “A Invenção do Patriarcado”, sugere que
os homens detinham prévio conhecimento quanto à experiência da subor-
dinação com as mulheres de seu próprio grupo, antes mesmo de concebe-
rem o sistema de escravidão. Com amparo nessa compreensão, puderam
empregar o conceito de categorização de pessoas e assim transformar os
escravizados em seres distintos dos demais (LERNER, 2019, p. 108-109).

2. Um olhar sobre o patriarcalismo como


força motriz de feridas abertas
Ao que se apresenta, não há elementos suficientes para afirmar, cate-
goricamente, como e quando surgiu o patriarcado, mas as correntes costu-
mam se alinhar no sentido de que, ao se fixarem em um território e estabe-
lecerem convivência, os humanos notaram a necessidade de “ser proprie-
tário”, o que, com o desenrolar da história, levou-os a objetificar a mulher.
As notícias de sociedades matriarcais são ínfimas e normalmente não se
colocam como exato contraponto ao patriarcalismo que conhecemos.

162
Constitucionalismo Achado na Rua

É óbvio que, ao longo da história, essa posição marginalizada da mu-


lher foi questionada. Não é possível esquecer que há relatos históricos de
figuras femininas cultuadas em várias sociedades ancestrais. Cleópatra re-
trata bem esse contexto: inteligente, culta, tinha o dom da oratória, falava
nove idiomas e governou o Egito por 22 anos. É um dos poucos nomes
femininos que desponta na história da antiguidade. No entanto, nos anais
da cronologia humana, escritos por figuras masculinas, a rainha é taxada
como uma mulher sedutora e atraente, menosprezada em seus principais
atributos. E, embora o seu nome tenha ficado marcado, sua condição de
mulher a impedia de assumir, de forma independente e autônoma, o pro-
tagonismo, tendo que se aliar aos homens poderosos de seu tempo.
Ainda que alguns nomes femininos tenham se destacado na história
de sociedades ancestrais, é no século XX que se dará a maior movimen-
tação em torno da conquista de direitos. Frei Betto, em artigo nomeado
“A marca do batom: como o movimento feminista evoluiu no Brasil e no
mundo”, assinala que no apagar das luzes do Século XIX o feminismo
despontou na Inglaterra como movimento de emancipação reivindicando
igualdade jurídica e direitos de cidadania e que esses novos ideais trouxe-
ram como consequência a dispersão do movimento feminista pelo mundo.
“Sutiãs foram queimados nas ruas; a libertação sexual tornou-se um fato
político; as palavras de ordem se multiplicaram: ‘Nosso corpo nos perten-
ce!’ ‘Direito ao prazer!’ ‘O privado também é político’ ‘Diferentes, mas não
desiguais!’” (BETTO, 2001, p. 6).
É interessante notar que, transcorridas tantas décadas, essas palavras
de ordem ainda necessitam ser apregoadas.
Inseridas em um cenário no qual a força que impulsiona decisões é
masculina, as mulheres foram aos poucos se percebendo como sujeito de
direitos. Simone de Beauvoir afirma que:

Opõe-se por vezes o ‘mundo feminino’ ao universo masculino, mas


é preciso sublinhar mais uma vez que as mulheres nunca consti-
tuíram uma sociedade autônoma e fechada; estão integradas na
coletividade governada pelos homens e na qual ocupam um lugar
de subordinadas; estão unidas somente enquanto semelhantes por
uma solidariedade mecânica; não há entre elas essa solidariedade
orgânica em que assenta toda uma comunidade unificada; elas se
esforçaram sempre – nos tempos dos mistérios de Elêusis com hoje

163
Constitucionalismo Achado na Rua

nos clubes, nos salões, nas reuniões beneficentes – por se ligar a fim
de afirmarem um ‘contrauniverso”, mas é ainda no seio do universo
masculino que o colocam. E daí vem o paradoxo de sua situação:
elas pertencem ao mesmo tempo ao mundo masculino e a uma
esfera em que esse mundo é contestado; encerradas nessa esfera,
investidas por aquele mundo, não podem instalar-se em nenhum
lugar com tranquilidade. (BEAUVOIR, 2019, p. 407-408).

No Brasil patriarcal a subjugação feminina não destoou do restante


do mundo. Pode-se dizer que o sistema que hoje conhecemos tem início
com o processo de colonização. Os povos adventícios trazem consigo con-
ceitos arraigados de predominância do masculino e, ao impor sua cultura,
mantém o status quo repressor.
Ao aqui chegar, nos idos de 1500, o português visualizou a riqueza e
a possibilidade de exploração do território em todos os aspectos, inclusive
humano. Após 30 anos, o território seria demarcado em faixas de terras
designadas de capitanias hereditárias, que eram divididas em faixas me-
nores denominadas sesmarias. Os grandes latifúndios concedidos a esses
homens lhes davam posição de poder. Junto à posição de poder está sempre
a figura da família tradicional, formada pelo patriarca, sua esposa e seus
filhos – o pronome entendido na verdadeira acepção de posse.
Outro elemento importante da colonização foi o religioso. A religião
sempre esteve intimamente ligada à política e à dominação e um dos gran-
des apagamentos da história feminina reside no estabelecimento de um
deus e dos patriarcas que o representavam na terra.
Em nome desse “deus”, as explorações militares por territórios es-
tavam legitimadas, como ocorreu, por exemplo, no território brasileiro.
Darcy Ribeiro escreve que:

sobre esses índios assombrados com o que lhes sucedia é que caiu a
pregação missionária, como um flagelo. Com ela, os índios souberam
que era por culpa sua, de sua iniquidade, de seus pecados, que o bom
deus do céu caíra sobre eles, como um cão selvagem, ameaçando de
lançá-los para sempre nos infernos (RIBEIRO, 2015, p. 34).

Esse mesmo deus assegurava que o papel da mulher era de reprodu-


tora, obediente ao esposo, fiel e cordata. A crença nesses dogmas também
atrai a dominação consentida. Frei Betto relata que São Tomás de Aquino,

164
Constitucionalismo Achado na Rua

questionado se um escravo liberto poderia ser sacerdote, afirmou que sim,


“pois o escravo é ‘socialmente inferior’, enquanto a mulher é ‘naturalmente
inferior’” (BETTO, 2001, p. 4).
No que se refere ao modelo político, era o mesmo adotado em Portugal.
Antônio Carlos Wolkmer registra a consolidação de um sistema de poder que
surgiu sem identidade nacional, incorporando o aparato burocrático e profis-
sional português, e “completamente desvinculada dos objetivos de sua popula-
ção de origem e da sociedade como um todo” (WOLKMER, 2015, p. 53).
Como bem lembrou Lívia Gimenes Dias da Fonseca, a ocupação das
terras no Brasil foi marcada pela dominação dos povos: inicialmente os
colonizadores dominaram os indígenas, dividindo os homens, que traba-
lhariam como escravos, e as mulheres, que serviriam como concubinas
ou trabalhadoras domésticas. Em seguida, com o tráfico e escravização
de pessoas negras, as mulheres, ao chegarem ao Brasil, eram separadas de
seus companheiros, colocadas para realizar trabalhos domésticos e muitas
vezes usadas para servir sexualmente os seus senhores, que poderiam in-
clusive alugá-las para essa finalidade (FONSECA, 2012, p. 18).
Ademais, o processo de independência do Brasil não foi fruto de uma
ruptura com o seu colonizador, nem houve o reconhecimento do sistema
de dominação ao qual o povo brasileiro foi submetido. Como bem res-
saltado pelos professores José Geraldo de Sousa Júnior e Lívia Gimenes,
a independência foi resultado de um acordo entre as elites, mantendo o
cenário social trazido pelos colonizadores. Assim, as bases históricas do
ordenamento jurídico brasileiro são o reflexo da estrutura social imposta
segundo o padrão de estratificação de raça, gênero e classe social, mantida
a subjugação do feminino (SOUSA JÚNIOR E FONSECA, 2017, p. 2.884)
Então, a partir desse processo, pode-se traçar o contexto histórico da
dominação feminina nacional. O que era a mulher naquele período? O que
sempre foi, uma figura sem poder. Ainda assim, estavam categorizadas: a
mulher branca, reprodutora, esposa, mãe de filhos legítimos e adminis-
tradora da casa; as mulheres indígenas e negras, serviçais e objetos de ex-
ploração sexual dos homens dominadores. Independentemente da posição
ocupada, não havia voz para a figura feminina.

165
Constitucionalismo Achado na Rua

3. Hierarquias de gênero e a luta pelo sufrágio


A história nacional nesse período é marcada por disputa territorial
com outros povos europeus e, depois, por revoltas internas, expedições e
descobertas de jazidas de ouro. Analisando todo esse cenário, é fácil com-
preender como ao longo dos séculos a figura feminina não detinha qualquer
importância que não fosse o cuidado com os filhos, tarefa que, aliás, as espo-
sas sequer exerciam, porque, como mencionado, era destinada às escravas.
As mulheres da época também não estudavam. Somente em 1827 foi
permitido que meninas fossem matriculadas em instituições de ensino e
apenas em 1887 o Brasil formaria a primeira médica2.
Sem instrução e sem qualquer papel relevante dentro do contexto de-
senhado até então, era muito simples que a sociedade patriarcal justificasse
o afastamento da mulher da vida pública e seu papel cada vez mais vincu-
lado à vida privada.
É fato que qualquer estudo a esse respeito estará fatalmente maculado
pela forma como a história é contada. São homens, e não mulheres, que
escreveram os eventos passados e sua ótica sobre os acontecimentos faz
grande diferença para projetar ideias pré-concebidas.
Contudo, sempre é possível buscar fontes históricas de quem pode falar
por si. Assim, em dossiê publicado na Revista Sociologia e Política e nomea-
do Feminismo, História e Poder, a historiadora Céli Regina Jardim Pinto
destaca que, “No Brasil, a primeira onda do feminismo também se manifes-
tou mais publicamente por meio da luta pelo voto” (PINTO, 2010, p. 15-16).
Com efeito, até 1932 as mulheres não eram consideradas aptas ao exercício
da cidadania, direito que só foi conquistado naquele ano, sendo inserido no
Código Eleitoral e, em 1934, na nova Constituição da República.

2 O primeiro Código Civil brasileiro, aprovado em 1916, reafirmou muitas das discriminações contra
a mulher. Escreveu a professora Maria Lygia Quartim de Moraes: “Com o casamento, a mulher
perdia sua capacidade civil plena. Cabia ao marido a autorização para que ela pudesse trabalhar,
realizar transações financeiras e fixar residência. Além disso, o Código Civil punia severamente a
mulher vista como ‘desonesta’, considerava a não virgindade da mulher como motivo de anulação do
casamento (…) e permitia que a filha suspeita de ‘desonestidade’, isto é, manter relações sexuais fora
do casamento, fosse deserdada”. As mulheres casadas – ou sob o pátrio poder – eram consideradas
incapazes juridicamente, como as crianças, os portadores de deficiência mental, os mendigos e os
índios.Pragmatismo Político. “A história das mulheres brasileira que foram à luta por seus direitos”.
Disponível em: <https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/03/historia-mulheres-brasileiras-
luta-direitos.html>, acessado em 16 de fev. de 2023.

166
Constitucionalismo Achado na Rua

Em toda a redação da Carta da República anterior, de 1891, não há


sequer a palavra “mulher” e, quando trata de cidadãos, por mais que o faça
no plural, a letra da lei não tem a menor intenção de abrigar a figura femi-
nina. Em verdade, para o texto legal, a mulher não existe.
Tanto é assim que não se deram ao trabalho de citá-las entre os cida-
dãos e nem entre aqueles que não poderiam se alistar como eleitores. Esse
“esquecimento” deu ensejo a um caso peculiar. Encontrando a brecha na lei,
a estudante de direito Diva Nolf Nazario tentou alistar-se. Com a negativa
do magistrado local e depois do órgão colegiado, em 1923, a discente pu-
blicou o livro “Voto feminino e feminismo”, no qual apresenta as decisões
impugnadas e traz à luz o pensamento que começava a se formar em publi-
cações periódicas relacionadas ao voto feminino. Em sua obra, Diva conclui:

Por mais assentados que sejam os receios daquele que detêm os po-
deres, de trazer tal concessão transformações (sic) a seus pontos de
vista, não poderão fugir a ella.
O suffragio feminino e as justas reivindicações da mulher serão,
em breve, uma realidade em toda a parte. (NAZARIO, 1923, p.
155, sem grifos no original).

A mudança era iminente. Ainda que quase dez anos tenham se passado
desde a publicação citada até a conquista do direito ao voto feminino, ali já se
traçavam as linhas que culminariam nesse ponto. Direitos não são bens dados
de bom grado a quem não possui poder: é preciso lutar por eles. Se hoje há
muitas pautas identitárias e a possibilidade de atingir garantias individuais,
há menos de um século sequer lhes era dada a oportunidade de combater. Se
essa conquista feminina for olhada mais de perto, será perceptível que foi uma
vitória de mulheres de elite, versadas em letras, e que detinham algum apoio
masculino. No entanto, isso não desmerece a batalha e não torna menos forja-
do na rua esse direito constitucional posteriormente reconhecido.
Lutas como a de Diva Nolf Nazario foram impulsionadas por alguns
movimentos feministas brasileiros do início do século XX, que buscavam
inserir a mulher no espaço político brasileiro e construir o papel feminino
em uma sociedade mais justa e igualitária. A movimentação mundial nes-
se sentido repercutia em nosso cenário.
Um olhar atento da história vai reconhecer o esforço de Leolinda
Daltro e Gilka Machado que fundaram o Partido Republicano Feminino

167
Constitucionalismo Achado na Rua

em 1910, quando sequer era reconhecido às mulheres os direitos de votar


e ser votada. Tinham como objetivo mobilizar a sociedade em torno dos
direitos políticos das mulheres. No entanto, este partido desapareceu no
final da mesma década. Ainda em 1918, Bertha Lutz publicou um artigo
conclamando as mulheres a se associarem em forma de liga. E, em 1922,
organizou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF), em
busca da defesa dos direitos políticos das mulheres, em especial o direito
ao sufrágio (COELHO E BAPTISTA, 2009, p. 89).
Outro marco na conquista das mulheres ao espaço público foi a elei-
ção de Luiza Alzira Soriano Teixeira, em 1928, para a prefeitura de Lages,
pequeno município do Rio Grande do Norte. O evento ocorreu antes que o
direito ao voto feminino fosse uma realidade nacional e somente foi possí-
vel porque aquele Estado contava com uma legislação inovadora.
Naquelas eleições também estariam alistadas as primeiras eleitoras
brasileiras.
O caso está divulgado em inúmeras publicações a respeito do voto fe-
minino, e do sítio eletrônico do Tribunal Regional Federal potiguar extrai-se:

No dia 25 de outubro de 1927, pela Lei estadual n.º 660, as mulheres


brasileiras puderam, pela primeira vez, no Rio Grande do Norte,
ter reconhecido o direito de votar e serem votadas. O Artigo 77
das Disposições Gerais do Capítulo XII da referida lei determinava:
“No Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinc-
ção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas
por esta lei”. (TRE-RN, Seção Memória e Cultura).

Alzira foi a primeira mulher a ser eleita prefeita de um município em


toda a América Latina. Filha mais velha de um influente líder político de sua
época, casou-se aos 17 anos com um promotor pernambucano, com quem
teve três filhas, e ficou viúva aos 22 anos, retornando à casa de seu pai. Lá
teve contato com importantes expoentes políticos (inclusive Bertha Lutz),
que reconheceram sua habilidade política e a incentivaram a disputar as elei-
ções. Sua campanha foi marcada por ofensas misóginas. No entanto, sagrou-
-se vencedora com mais de 60% dos votos e seu adversário político, um ma-
jor, deixou o estado por sentir-se humilhado após a derrota (LOPES, 2020).
Segundo dados colhidos do sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleito-
ral, Alzira esteve à frente da administração do Município por curto período

168
Constitucionalismo Achado na Rua

– pouco mais de sete meses –, porém demonstrou eficiência tendo realizado


construção de estradas, de mercados públicos distritais, de escolas e cuidado
da iluminação da cidade. A prefeita perdeu o seu mandato após a Revolução
de 1930, uma vez que não concordava com o governo de Getúlio Vargas.
Retornou à vida pública após a redemocratização do país (TSE, 2022).
Posteriormente, em 1931, a Federação Brasileira para o Progresso Fe-
minino conseguiu incluir no Código Eleitoral Provisório o direito de votar
e ser votada às mulheres solteiras ou viúvas, com renda própria, e casadas,
com a permissão do marido. Foram passos sucintos que culminaram, em
1934, na inserção constitucional do direito ao voto feminino. As prévias elei-
ções para a Assembleia Constituinte de 1933, registram a ascensão de apenas
uma mulher – num total de 214 pessoas – a um cargo político: Carlota Perei-
ra Queiroz. Desde essa época, a Federação pressionara o Poder Legislativo a
ampliar os direitos femininos (COELHO E BAPTISTA, 2009, p. 90-91).
Sempre que os clamores populares são mais fortes que a legislação
posta, o sistema se adapta, a fim de garantir a permanência no poder.
Como bem pontuado por Roberto Lyra Filho (1982), o direito não é algo
acabado, está sempre em evolução. Os movimentos sociais legítimos bus-
cam a libertação de minorias oprimidas. Nesse contexto, é preciso reco-
nhecer as mulheres enquanto sujeitos de direitos que buscam a igualdade
de gênero e essa busca se reflete, também, na necessidade de uma maior
representatividade feminina na esfera política.
Essa representatividade é importante para o empoderamento não
apenas de algumas mulheres, mas de toda a categoria social por elas re-
presentada. Nessa perspectiva, o incentivo ao protagonismo das mulhe-
res na política, esfera de grande visibilidade pública, almeja a emancipa-
ção e a plena equidade.
Esse processo de adaptação, ocorrido nos idos de 1934 com o voto
feminino, também se deu em 1988, quando, imbuídos por amplo senti-
mento de redemocratização, os parlamentares promulgaram a Consti-
tuição com a maior amplitude em concessão de direitos de que se tem
notícia em território nacional.

169
Constitucionalismo Achado na Rua

4. O papel das mulheres na política:


novos rumos ou a velha ordem?
Após o sufrágio feminino, a lei do divórcio, em 1977, talvez tenha sido
o próximo marco de liberdade até que a Constituição de 1988 considerou
a igualdade entre homens e mulheres. Esse papel não mudou substancial-
mente a realidade, pois, ainda que positivados, os direitos estão distantes
de serem plenamente consolidados.
O Código Civil de 1916 e o Código Penal de 1940, por exemplo, ainda
traziam em seu bojo conceitos arcaicos e preconceituosos, como a inca-
pacidade relativa da mulher no primeiro e o elemento normativo “mulher
honesta” no segundo, além de favorecer o exercício da violência doméstica
livremente. Pequenas regulações no direito penal realizadas ao longo des-
ses 35 anos pós-constituinte e a sanção de um novo Código Civil, é que
puderam trazer algum frescor a esses elementos. Ademais, somente em
2006 a Lei Maria da Penha criminalizaria os abusos cometidos dentro de
casa e, em 2015, o feminicídio é reconhecido como crime.
Voltando ao âmbito político, a Lei n.º 9.504/97 (normas para as elei-
ções), com a redação dada pela Lei n.º 12.034/09, estabeleceu a cota de gê-
nero com o percentual de 30% (trinta por cento) como o mínimo de vagas
que deveriam ser preenchidas para a candidatura de cada sexo (BRASIL,
2009). Uma vez que historicamente as candidaturas femininas sempre fo-
ram minoria, essa cota acabou sendo denominada como “cota feminina”.
Esse último regramento mencionado trazia ainda alteração do art.
44, inciso V, da Lei n.º 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), estabelecen-
do que recursos do Fundo Partidário sejam aplicados na criação e manu-
tenção de programas destinados a promover e disseminar a participação
política das mulheres “conforme percentual que será fixado pelo órgão
nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por
cento) do total” (BRASIL, 2009).
No ano de 2015, a Lei n.º 13.165 introduz regras para que os recursos
do Fundo Partidário sejam empregados no financiamento de campanhas
eleitorais femininas, salientando que a determinação seria empregada ape-
nas nas três eleições subsequentes, reservando-se entre o mínimo de 5% e
o máximo de 15% os valores para tal finalidade. O dispositivo fora ques-

170
Constitucionalismo Achado na Rua

tionado pela Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 5617/DF, julgada


procedente no ano de 2018, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, que
em aguçada exposição de fundamentos relacionados à igualdade entendeu
pela distribuição de recursos de forma proporcional às candidaturas que
houver. Eis as conclusões dispostas na ementa do acórdão proferido:

(i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “três ” contida no


art. 9º da Lei 13.165/2015; (ii) dar interpretação conforme à Cons-
tituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a (a) equiparar o pa-
tamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10,
§ 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao míni-
mo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que
deve ser interpretado como também de 30% do montante do fundo
alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais,
e (b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas
femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a
campanhas lhes seja alocado na mesma proporção; (iii) declarar a
inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 5º-A e do § 7º do art.
44 da Lei 9.096/95. (ADI 5617, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribu-
nal Pleno, julgado em 15/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-
211 DIVULG 02-10-2018 PUBLIC 03-10-2018).

Em 2021, a Lei n.º 14.192 organizou normas para prevenir, reprimir e


combater a violência política contra a mulher (BRASIL, 2021).
Em 2022, a Emenda Constitucional n.º 117, de 5 de abril de 2022, passou
a reservar o mínimo de 5% (cinco por cento) dos recursos do fundo partidário
na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação
política das mulheres, e de 30% (trinta por cento) do Fundo Especial de Finan-
ciamento da Campanha e do Fundo partidário para suas campanhas, bem
como a divisão do tempo de propaganda gratuita (BRASIL, 2022).
A medida constitucionalizou direitos já regulados na legislação infra-
constitucional, atendendo também ao que dispunha a ADI 5617.
Essa evolução legislativa e de precedentes é fruto de um inconformis-
mo social que luta para corrigir um fenômeno de opressão feminina e que
pode ser definido como uma das expressões do “constitucionalismo achado
na rua”. Considerando o pensamento hegeliano, em “Filosofia do Direito”,
constitucionalismo é basicamente o movimento que o corpo social executa
em direção a um fim. (HEGEL, 2021, p. 315). A conformação que será dada

171
Constitucionalismo Achado na Rua

a essa nova ordem estará atrelada a um determinado momento político e os


direitos daí advindos serão, ou deveriam ser, a positivação do clamor social.
O professor José Geraldo Sousa Junior, maior expoente da linha
de pesquisa “O Direito Achado na Rua”, e a professora Lívia Gimenes,
assinalam que:

No percurso teórico-conceitual e político da abordagem aqui pro-


posta denominamos Constitucionalismo achado na Rua uma prá-
tica de construção de direitos que expresse essa decolonialidade do
direito. Essa proposta emerge no âmbito dos estudos e pesquisas
desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua
para compreender por poder constituinte a emergência histórica de
sujeitos coletivos dotados de legitimidade política e capacidade so-
cial suficientes para irromper violações sistemáticas e instituir no-
vas condições concretas de garantia e exercício de direitos, expres-
sando-se com capacidade instituinte cuja legitimidade é recolhida
da luta social (SOUSA JUNIOR E FONSECA, 2017, p. 2.895 apud
ESCRIVÃO FILHO e SOUSA JUNIOR, 2016, p. 123-150).

A preocupação é de que esses movimentos auxiliem na construção de


uma sociedade mais livre e justa, busca a universalização dos direitos hu-
manos e a garantia da igualdade. O direito não está circunscrito à lei, mas
pulsa para além dela. Ainda que muitas mulheres não se sintam inseridas
em um contexto de quem está alijada do poder, todas estão sistematica-
mente relegadas, em maior ou menor medida, a um papel de inferioridade.
Conforme a ideia de pertencimento e a acolhida dos que se identificarem
nesse papel feminino crescer, as possibilidades de mudança aumentarão.
Lívia Gimenes e José Geraldo destacam que o constitucionalismo
achado na rua busca “uma transformação no modelo de organização esta-
tal moderno de modo a decolonizá-lo e despatriarcalizá-lo, abrindo-o para
o reconhecimento de suas mobilizações jurídicas emancipatórias” (SOU-
SA JÚNIOR E FONSECA, 2017, p. 2.883).
Essa busca é marcada pelo rompimento com uma identidade única,
que colocava o homem branco, de classe média, escolarizado e heterosse-
xual, como o padrão a ser perseguido pela sociedade, como o centro de todas
as leis e o detentor de todos os direitos. Abraçar a mulher como um desses
sujeitos oprimidos, detentora de demandas específicas e legítimas, em prol

172
Constitucionalismo Achado na Rua

da admissão de sua igualdade perante a sociedade brasileira, a torna parte


desse sujeito coletivo em busca da superação de sua opressão histórica.
Uma das facetas dessa transformação do modelo estatal é justamente
reconhecer o histórico de exclusão feminina do espaço público e impulsio-
nar as mulheres para assumirem papéis que lhe foram retirados no passado.
Esse processo de conquista pode ser observado na própria legislação
brasileira, que, como resultado de longas lutas, passou a reconhecer di-
reitos femininos antes impensados. Nesse aspecto, caracterizando o cerne
do presente estudo, destaca-se a necessidade de representação da mulher
no Congresso Nacional como reflexo da luta de um século pela paridade
e reparação histórica de sua subjugação em uma organização política que
sempre fora regulada observando apenas os interesses masculinos.
O Poder Legislativo é quem regulamenta as normas do país, dando
o direcionamento que aquela nação irá tomar. Por isso, a premência da
representatividade feminina é patente. Apenas as mulheres conhecem as
mazelas que lhes atormentam e o seu protagonismo no campo político
permitirá que algumas de suas necessidades básicas sejam reconhecidas e
respeitadas por toda a sociedade. Somente foi possível a elaboração de leis
como a nomeada “Maria da Penha” a partir da intervenção feminina. A
adoção de políticas públicas voltadas a este universo, como, por exemplo,
a Lei 14.214/2021, que cria o Programa de Proteção da Saúde Menstrual e
determina a distribuição de absorventes às mulheres de baixa renda, é a
luta de mulheres que chegam às casas legislativas (BRASIL, 2021).
Essas leis que trazem uma exigência mínima de participação do femi-
nino na esfera política e asseguram um percentual financeiro para incen-
tivar e possibilitar a participação de mulheres na busca pela representação
eleitoral estão convergindo com o ideais feministas.
A norma, nestes casos, é utilizada como um instrumento de luta das
mulheres para democratizar os seus direitos, reconhecendo a necessidade
de reverter um histórico processo de desigualdades étnico-racial e de gêne-
ro, que são produtos de uma construção social enviesada e não o resultado
natural da humanidade. A lei passa a ser o direito reconhecido de uma
classe, antes oprimida, como o resultado da luta pela sua libertação.
No entanto, esses movimentos que levaram às mudanças elencadas e
a tantas outras, sempre na busca pelo reconhecimento da legitimidade do

173
Constitucionalismo Achado na Rua

direito de as mulheres ocuparem o seu espaço dentro da sociedade, even-


tual e infelizmente, são obstados pelo sistema, são objeto de embustes.
Nesse ponto, a aplicabilidade das normas para as eleições no campo
feminino padece de diversas irregularidades.

4.1 A cota de gênero na prática


No sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, as eleições de
2016 têm um número expressivo de processos apontando para a fraude
relacionada à cota de gênero. Candidaturas inexpressivas e abandonadas
demonstrariam o uso de ardil contra o sistema estabelecido. O leading
case foi examinado pela Corte eleitoral, sob a relatoria do Ministro Jor-
ge Mussi, do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do REspe n.º 193-
92.2016.8.18.0018/PI, levado ao exame do órgão colegiado em 17 de setem-
bro de 2019. Naquela ocasião foram julgados três recursos especiais origi-
nados por interesses distintos, relacionados a certame eleitoral realizado
no Município de Valença do Piauí/PI.
No caso concreto examinado pela justiça eleitoral, as candidatas
vinculadas a determinada legenda que disputaram o cargo de vereadora
constariam ali apenas pro forma, sem realizar qualquer ato de campanha,
sequer comparecendo às urnas. Tinham, ainda, familiares do sexo mascu-
lino competindo nas mesmas eleições, o que tornava ainda mais factível o
viés fantasmagórico de sua concorrência.
O pleito foi inicialmente examinado pela justiça estadual e levado à
instância especial em grau de recurso. O Tribunal Superior Eleitoral partiu
de duas premissas: examinar a ocorrência de fraude e analisar as conse-
quências jurídicas do ilícito.
Cinco candidatas tiveram inscrições consideradas fraudulentas ante a
semelhança dos registros de campanha, aí incluídos “tipos de despesa, valo-
res, data de emissão das notas fiscais e, inclusive, a sequência numérica des-
tas” (TSE, 2019, p. 26-27). Havia todo tipo de artimanha e motivação: candi-
datas concorrendo com filho, com o esposo, uma que sequer compareceu na
data do sufrágio e outra que, tendo comparecido, não recebeu nenhum voto.
Para além da fraude, chama a atenção a posição desempenhada por
essas mulheres. Novamente citando Gerda Lerner, há uma interessante
passagem em seu estudo, na qual estatui que “este é o mundo feminino do

174
Constitucionalismo Achado na Rua

contrato social: mulheres cuja autonomia lhes é negada dependem de pro-


teção e se empenham para conseguir o melhor acordo possível para elas
mesmas e seus filhos” (LERNER, 2019, p. 107).
O ato não apenas configura burla ao sistema estabelecido como tam-
bém arruína as possibilidades de que mulheres comprometidas se habili-
tem ao pleito. Escancara a desigualdade e o desrespeito para com a mulher,
que muitas vezes são praticados dentro do seu próprio grupo, mantendo
intactas as estruturas coloniais de exclusão feminina do ambiente público.
A tolerância com este tipo de comportamento impede o rompimento da
herança colonial, mantendo e incentivando a cultura do patriarcado. É um
escárnio com o legislador, com o Estado e com a população.
O próprio voto condutor do acórdão, citando a doutrina de José Jairo
Gomes, menciona que, “Conquanto se aplique indistintamente a ambos os
sexos, a enfocada ação afirmativa foi pensada para resguardar a posição
das mulheres que, sobretudo por razões ligadas à tradição cultural, não
desfrutam de espaço relevante no cenário político brasileiro, em geral con-
trolado por homens” (TSE, 2019, p. 21).
Para finalizar a apresentação desse paradigma, o julgado considerou
que, no caso dos vereadores, toda a legenda foi maculada pela fraude da
cota, cassando todos os diplomas dos candidatos que compuseram aquelas
coligações, deixando para a avaliação subjetiva apenas as questões relacio-
nadas à inelegibilidade. Em ponderação bastante lúcida, salientou o relator
que o afastamento apenas das candidaturas fraudulentas e dos candidatos
menos votados, em recálculo, “ensejaria verdadeira e inadmissível brecha
aos partidos políticos e coligações para registrarem candidaturas ‘laran-
jas’, na medida em que seriam incentivados a ‘correr o risco’ de lançá-las.”3.
Semelhantes a esse feito, há diversos processos no Tribunal Superior
Eleitoral referentes às eleições de 2016 em muitos Estados da Federação apli-
cando o mesmo entendimento do citado leading case. O posicionamento não
constitui certeza quanto ao afastamento de fraudes, afinal a mente humana
é especialmente criativa para artimanhas, mas é um ponto de conquista a
positivação do direito, com a posterior aplicação prática e justa.

3 REspe n.º 193-92.2016.6.18.0018. Relator: Min. Jorge Mussi, julgado em 17 de setembro de 2019, p. 37

175
Constitucionalismo Achado na Rua

Como bem lembrado por José Geraldo e Lívia Gimenes,

a colonialidade do poder, do saber, do ser e de gênero, não se altera


somente com as produções normativas constitucionais, visto que se
manteve em distintos modelos. Como aponta abaixo Boaventura de
Sousa Santos, o maior desafio é romper com a centralidade de po-
der do Estado, a distinção por meio da nacionalidade fronteiriça, o
formato universalista, excludente e discriminatório das normativas
estatais, e o grau de violência permitido para a mão estatal (SOUSA
JÚNIOR E FONSECA, 2017, p. 2887).

Ou seja, o Estado somente romperá com a estrutura patriarcal quan-


do reconhecer a opressão histórica sofrida pelas mulheres e for capaz não
apenas de conceder-lhes formalmente direitos, mas assegurá-los quando
confrontados com os interesses colonialistas. Somente o fortalecimento do
estado plurinacional e pluricultural permitirá o reconhecimento da mu-
lher enquanto indivíduo e sujeito ativo de direitos, transformando o con-
trato social de um estado patriarcal, que esconde um contrato sexual, em
um Estado livre da opressão de gênero.
Se considerada toda a evolução histórica dos direitos políticos femininos,
desde o direito ao voto conquistado em 1932 e formalizado na Constituição
de 1934, passando pela igualdade entre os gêneros formulada na Carta da Re-
pública de 1988 e a recente inserção da Emenda 117/22, nota-se que, passados
mais de 30 anos desde a redemocratização, a igualdade não é concreta e neces-
sita de recursos na tentativa de ajustes mais próximos de uma equidade.
O patriarcado é praticado não só por homens, mas também por mu-
lheres quando reproduzem o seu conceito. Com efeito, ainda hoje, mesmo
com toda a legislação que busca tutelar o direito feminino, sua representa-
tividade é muito baixa. É um fato alarmante que apenas 15% do percentual
dos eleitos seja composto por mulheres, quando se observa que as eleitoras
correspondem a 52% de todos os votantes no Brasil (informações retiradas
no site do TSE – Mulheres, em 13/05/2023).
Nesse sentido, Lerner enuncia:

O que as mulheres precisam fazer, o que as feministas estão fazen-


do agora, é apontar para o palco, os cenários, os objetos, o diretor e
o roteirista – como fez a criança que gritou que o rei estava nu, tal
como no conto de fadas – e dizer que a desigualdade básica entre

176
Constitucionalismo Achado na Rua

nós encontra-se dentro dessa cultura. E depois elas precisam des-


truí-la (LERNER, 2019, p. 35).

Não se olvide que até mesmo esses direitos novos, garantidos, porém nem
sempre respeitados, serão reservados também a uma parcela da população fe-
minina, deixando de abranger, com igualdade, mulheres pretas, por exemplo.
Conforme ressaltado por Saffioti, a disputa entre as classes sociais
também é um fenômeno gendrado, influenciado pelo racismo, no qual se
pode observar três subestruturas de dominação, que se interligam como
um nó: gênero, classe social e raça/etnia (SAFFIOTI, 2015). Para exemplifi-
car, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral na última eleição,
das mulheres eleitas 48,19% são brancas e 36,15% são pardas.
É um caminhar que não deve excluir as pautas identitárias, mas que tam-
bém não precisa ser desprezado. Considerando os ensinamentos de Lyra Filho:

Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita,


perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos
de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explo-
rações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradi-
ções brotarão as novas conquistas (LYRA FILHO, 1982, p. 56).

5. Considerações finais
O presente artigo constitui um trabalho que foi elaborado ao longo de
um semestre dentro da linha de pesquisa da Universidade de Brasília denomi-
nada de “O Direito Achado na Rua” que, ampliando suas raízes para as muitas
searas do direito construído socialmente, chega à vertente do Constituciona-
lismo Achado na Rua e, dentro dessa diminuta contribuição, o papel político
feminino em um contexto opressor e, porque não dizer, ainda colonial.
Dito isso, com os pés no chão e a cabeça a sonhar com um cenário
maior, foram sendo evidenciadas as mazelas de outrora, as conquistas que
devem ser exaltadas e as mulheres a quem muito se deve, chegando a uma
conjuntura um pouco mais confortável – ainda que distante do ideal – que
agora é vivenciada. A figura feminina saiu da limitação do lar para a rua
e nessa estrada conscientizou-se, conquistou liberdades e logrou positivar
um pouco do que pretendia.

177
Constitucionalismo Achado na Rua

Constituiria profunda ingenuidade, todavia, imaginar que essas conquis-


tas seriam aceitas de bom grado. Como já dito e reiterado nesse estudo, é preciso
lutar pelos direitos e batalhar ainda mais para mantê-los e torná-los efetivos.
No fechamento desse trabalho, comparece ao cenário político a notí-
cia de que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados
aprovou a Proposta de Emenda à Constituição de n.º 9/2023, que, entre ou-
tras proposições, pretende alterar a EC 117/22 quanto à aplicação de sanções
aos partidos que não preencheram a cota de destinação de verba de gênero
na última eleição. A norma já vem sendo designada como “PEC da Anistia”.
Em sua justificativa, especificamente quanto à divisão dos recursos, o
deputado proponente da medida afirma que:

Nesse contexto, muitos dos entes partidários tiveram dificuldade em


se ajustar ao novo comando constitucional, em decorrência da ine-
xistência de outra regra que apresentasse as balizas ou uma maior
elucidação sobre a matéria pertinente à distribuição das referidas
cotas. Não se sabia ao certo, em meio ao processo eleitoral, se a con-
tagem da regra teria sua abrangência federal ou se deveria ser cum-
prida pelos partidos em âmbito nacional. Muitos partidos, agindo de
boa-fé e com o maior esforço para que as regras fossem cumpridas, se
viram inadequados após o período eleitoral, em virtude de muitas al-
terações de registro de candidatura em todo o país. (BRASIL, 2023).4

A norma é apenas uma proposta em tramitação, que inclusive está


sendo questionada perante o Supremo Tribunal Federal, e apesar de haver
ultrapassado mais um obstáculo dentro das comissões do órgão legislativo,
pode não vir a lume.
Sem embargo, o importante aqui é compreender que a postura deve
ser sempre vigilante. O projeto é apoiado por inúmeros partidos, vincu-
lados às mais diversas posições políticas, deixando claro que quando se
trata de manutenção de poder, quem dele sempre se deleitou sentar-se-á e
brindará com o inimigo e já não mais serão distintos, mas um só elemento
integrante de um sistema arcaico e vantajoso.

4 BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 09, de 2023. Altera a
Emenda Constitucional n.º 117, de 5 de abril de 2022, quanto à aplicação de sanções aos partidos
que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em
razão de sexo e raça em eleições, bem como nas prestações de contas anuais e eleitorais. Brasília,
DF: Câmara dos Deputados, 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra?codteor=2247263. Acesso em: 19 mai. 2023.

178
Constitucionalismo Achado na Rua

As pequenas vitórias, fruto do direito que nasceu primeiro da orga-


nização social, foi alçado à categoria de regramento ordinário e, por fim,
constitucional, devem ser vistas com o merecido valor. O sistema patriar-
cal ainda impera e, algumas vezes, faz essas pequenas concessões com-
pensatórias. Contudo, bases podem ser quebradas aos poucos até que o
contexto histórico estabelecido como meio de dominação seja derrubado.

Referências

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Beauvoir; tradução Sérgio Milliet. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

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2001. Disponível em: <https://pt.slideshare.net/julianasareidne1/a-marca-
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BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição


n.º 09, de 2023. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2023.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_
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______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de


fevereiro de 1891. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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______. Emenda Constitucional n.º 117, de 5 de abril de 2022. Altera o art.


17 da Constituição Federal para impor aos partidos políticos a aplicação
de recursos do fundo partidário na promoção e difusão da participação
política das mulheres, bem como a aplicação de recursos desse fundo e do
Fundo Especial de Financiamento de Campanha e a divisão do tempo de
propaganda gratuita no rádio e na televisão no percentual mínimo de 30%
(trinta por cento) para candidaturas femininas. Diário Oficial da União:
seção 1, Edição: 66, 06 abr. 2022.

179
Constitucionalismo Achado na Rua

______. Lei n.º 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as


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______. Lei n.º 14.192, de 4 de agosto de 2021. Estabelece normas para


prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. Diário
Oficial da União: Seção 1, Ed. 147, p. 1, 05 ago. 2021.

______. Lei n.º 12.034, de 29 de setembro de 2009. Altera as Leis nos 9.096,
de 19 de setembro de 1995 - Lei dos Partidos Políticos, 9.504, de 30 de
setembro de 1997, que estabelece normas para as eleições, e 4.737, de 15 de
julho de 1965 - Código Eleitoral. Diário Oficial da União: Seção 1, Ed. 187,
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Constitucionalismo Achado na Rua

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181
Constitucionalismo Achado na Rua

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182
Insurgência e disputa de narrativas no
campo da segurança pública: propostas
a partir da experiência maranhense
de construção de uma assembleia
popular pelo desencarceramento

Cristian de Oliveira Gamba

1. Introdução
Pensar uma nova política de segurança pública é uma árdua tarefa
imposta a gestores públicos, pesquisadores do campo criminal e movi-
mentos sociais. Isso decorre do enraizamento de um modelo de segurança
pública punitivo, violento e seletivo que se sustenta na narrativa de que o
criminoso é um inimigo social que deve ser combatido e eliminado. A este
não é mais reservado o estatuto de cidadão, trata-se de uma não pessoa,
de alguém descartável, cuja morte não é passível de lamentação, sendo, até
mesmo, objeto de comemoração.
O populismo penal1, assumido por espectros ideológicos de direita e
de esquerda, mas especialmente abraçado pela extrema-direita para justi-
ficar seu discurso neofacista de extermínio dos indesejáveis, é responsável
por apontar soluções simples, mas extremamente violentas, para o comple-
xo problema da segurança pública. Apostar na militarização das polícias,
equipá-las e ampliar seu contingente; aumentar excessivamente os orça-
mentos destinados à segurança pública sem o respectivo investimento em
políticas públicas preventivas; encarcerar massivamente; produzir leis pe-

1 O populismo penal se caracteriza pela propagação de discursos e práticas, destituídos


de qualquer fundamentação científica ou comprovação empírica, que apresentam o
recrudescimento punitivo (mais prisões, leis penais mais duras, fortalecimento das polícias,
legitimação de um direito penal subterrâneo) como solução para o problema do crescente
sentimento de insegurança pública.

183
Constitucionalismo Achado na Rua

nais mais rigorosas; criminalizar novas condutas e, quando necessário, até


mesmo matar, são as práticas que permeiam a política de segurança públi-
ca brasileira. Tratam-se de táticas de guerra. Nesse caso, uma guerra civil
contra o nosso próprio povo, porém, não contra todo o povo, mas contra
uma parcela específica da população brasileira, historicamente vulnera-
bilizada, negra, jovem e periférica, cuja falta de alcance estatal no campo
social é compensada pela presença intrusiva e violenta no campo penal.
Nesse cenário, o presente artigo voltará sua atenção para um dos
pontos nodais do modelo de segurança pública brasileiro: a política de en-
carceramento em massa. Para realizar essa discussão contaremos com o
auxílio das contribuições da criminologia crítica, cuja inspiração no ma-
terialismo histórico-dialético marxiano nos ajuda a compreender as reais
funções do sistema punitivo em sociedades capitalistas neoliberais, bem
como do Direito Achado na Rua, cuja ênfase no pluralismo jurídico e no
reconhecimento das práticas populares emancipatórias auxiliarão na defe-
sa da tese aqui proposta, cuja base centra-se na proposição de uma política
de segurança pública construída desde abajo, a partir dos movimentos so-
ciais. Processo este que exige, antes de tudo, um movimento de insurreição
contra a atual necropolítica de segurança pública.
Com esse objetivo o presente artigo se dividirá em duas seções. Na pri-
meira delas, trabalharemos as inter-relações entre a afirmação do modelo ca-
pitalista e a elevação da privação de liberdade ao patamar de principal meca-
nismo punitivo dos sistemas penais contemporâneos para, posteriormente,
apresentar os desafios que a propagação do populismo penal e o rompimen-
to dos sentimentos gregários, especialmente proporcionados pela faceta neo-
liberal do capitalismo, trazem para a formação dos sujeitos coletivos, aqui
entendidos na perspectiva do Direito Achado na Rua como movimentos
insurgentes capazes de disputar narrativas e de propor alterações na práxis
das instituições de justiça e segurança pública. Na segunda seção, apresenta-
remos uma experiência concreta de manifestação insurgente dos movimen-
tos sociais contra a violência do sistema de segurança pública. Trata-se da
realização de uma Assembleia Popular em prol do Desencarceramento no
Estado do Maranhão que resultou na aprovação de diversos parâmetros para
a adoção de uma política de segurança pública menos violenta e seletiva.
Deste processo participaram segmentos que, embora excluídos do processo
de formulação das políticas de segurança, são aqueles que mais sofrem os

184
Constitucionalismo Achado na Rua

impactos do recrudescimento penal. Acreditamos que essa experiência seja


uma manifestação concreta da teoria desenvolvida em O Direito Achado na
Rua e que práticas como essa devem ser visibilizadas e multiplicadas para
que, assim, possamos pensar em um outro modelo de segurança pública que
seja balizado pela participação popular.

2. Sistemas penais e sociedades capitalistas:


o encarceramento em massa como mecanismo
de controle da exclusão social
Para compreender a política brasileira de encarceramento é necessário
inverter o enfoque de análise e desconstruir um complexo conjunto de ideias
preconcebidas que transitam o campo criminal e contribuem para invisibi-
lizar os reais fatos geradores da criminalidade. O tradicional discurso co-
mum, constantemente amplificado por grande parcela da mídia e explorado
por segmentos da classe política com finalidades eleitoreiras, busca indivi-
dualizar a análise da conduta delitiva a partir da apresentação de um mo-
delo maniqueísta de sociedade, constituída, por um lado, por “cidadãos de
bem”, que merecem ser protegidos e amparados pelo campo jurídico, e, por
outro, de inimigos, pessoas que romperam o pacto social e que, por isso, tor-
naram-se dignas de sofrimento, perdendo o estatuto jurídico de humanas2.
Tentaremos nas linhas que se seguem evidenciar o caráter essencialmente
ideológico desse discurso. Para cumprir essa tarefa substituiremos a análise
individualizada por uma macrossociológica evidenciando que os sistemas
penais contemporâneos são um dos principais mecanismos utilizados para
neutralização e vigilância de vastos segmentos da população (BARATTA,
2011). Suas relações com o sistema capitalista, especialmente sua atual faceta
neoliberal, são inegáveis e devem ser abordadas e descortinadas.
Partindo do vasto referencial teórico constituído pela criminologia
crítica, compreendemos que a atual política de encarceramento em massa

2 A análise microssociológica do fenômeno não nos auxilia a explicar o caráter inegavelmente


seletivo e estigmatizante do sistema penal brasileiro. A quem cabe eleger os cidadãos de bem e
os inimigos? Por que determinados crimes são punidos com mais rigor que outros? Quem são
os indivíduos etiquetados como delinquentes?

185
Constitucionalismo Achado na Rua

do Brasil é consequência direta da importação de modelos de segurança


pública desenvolvidos em território estrangeiro. Contudo, a discussão aí
não se esgota, uma vez que às particularidades da constituição histórica
nacional possuem influência decisiva no desenrolar desse processo, sobre-
tudo os resquícios ainda presentes do autoritarismo herdado da ditadura
militar e a hierarquização racial proveniente do passado escravista.
Autores como Foucault (2011) e Melossi e Pavarini (2006) confeccio-
naram importantes trabalhos sobre a história dos mecanismos punitivos,
evidenciando que as características assumidas pelos sistemas penais sempre
estiveram atreladas à manutenção das relações de poder e opressão em cada
momento histórico. A decadência dos regimes absolutistas e a ascensão da
burguesia teve como seu correlato a atribuição de um papel importantíssi-
mo às prisões: cabia a elas impor aos trabalhadores a nova lógica produtiva
que, diferentemente dos períodos anteriores, não se pautava mais na simples
subsistência, mas exigia a produção desenfreada com o objetivo de maximi-
zação dos lucros. Assim, embora o cárcere, enquanto instituição, existisse
no período pré-capitalista, a utilização do encarceramento como principal
medida punitiva é uma inovação surgida no seio das sociedades capitalistas.
O projeto piloto do que hoje conhecemos como sistema prisional são
as work houses inglesas. Nesses locais eram colocados os indivíduos dis-
funcionais ao novo sistema produtivo. A vadiagem e a mendicância - e, de
forma ampla, a improdutividade - foram elevadas ao estatuto de crime e os
indivíduos eram conduzidos aos novos espaços prisionais onde eram for-
çadamente expostos à nova lógica produtiva. Tratava-se de uma forma de
desencorajar o ócio e com isso formar um exército de trabalhadores pron-
tos para reproduzir e maximizar o capital (MELOSSI; PAVARINI, 2016).
É justamente nesse contexto que Foucault (2011) apresenta o siste-
ma carcerário como um dos espaços privilegiados de reprodução do poder
disciplinar. Seu objetivo seria formar sujeitos dóceis e obedientes, verda-
deiras ferramentas à serviço do sistema. Isso seria alcançado através de
um modelo de coerção ininterrupta cujo objetivo principal era extrair a
máxima capacidade produtiva e, ao mesmo tempo, neutralizar o potencial
crítico dos sujeitos. Sendo assim, a tão propalada humanização do direito
penal, tão comemorada diante da substituição dos suplícios e das torturas
pelo aprisionamento - também outra forma de tortura -, deve ser vista com
cautela, uma vez que a nova faceta do sistema punitivo está atrelada direta-

186
Constitucionalismo Achado na Rua

mente as exigências de solidificação de um novo modelo em ascensão. Esse


modelo não mais necessitava do espetáculo lascivo da violência.
A utilização do cárcere como espaço de treinamento de grandes con-
tingentes de trabalhadores permaneceu vigente durante o Século XVII e a
primeira metade do Século XVIII. Contudo, posteriormente, a prisão come-
ça a passar por um gradativo processo de alteração de suas funções. O auge
da Revolução Industrial é marcado por um progressivo aumento da popula-
ção europeia, processo acompanhado pelo desenvolvimento da automação
do trabalho, bem como da penetração do capital no campo, desmantelando
os resquícios do antigo sistema feudal e, com isso, levando ao mercado uma
oferta de mão-de-obra nunca antes vista, mas da qual o sistema não mais
necessitava (MELOSSI; PAVARINI, 2016). O problema agora não se tratava
mais de treinar indivíduos para o trabalho, mas sim de gerenciar imensos
contingentes humanos que não possuíam espaço de inserção no mercado de
trabalho. É justamente nesse período que a prisão assume seu caráter mais
violento. O excedente humano rejeitado pelo sistema produtivo deve agora
ser silenciado e controlado através do cárcere. Aqueles que antes eram vistos
como potenciais trabalhadores a serem agregados ao mercado de trabalho,
verdadeiros explorados, agora são vistos como sujeitos descartáveis, incô-
modos e, assim, passam a ser desenvolvidos mecanismos para naturalizar o
exercício da violência estatal contra esses sujeitos. O descartável não é nem
mesmo alguém explorável. Trata-se da pura lógica da eliminação humana,
seja esta feita através da eliminação física das vidas ou então da imposição de
uma verdadeira morte-em-vida3, cuja prisão é seu maior exemplo.
Como o objetivo do presente trabalho não é de realizar uma reprodução
da história do sistema carcerário nos limitaremos a indicar que essa mudança
de paradigma foi desenvolvida e aprimorada nos séculos seguintes dando for-
ma ao sistema punitivo de hoje. A sua forma mais violenta e perversa é aquela
gestada e desenvolvida no seio dos sistemas capitalistas neoliberais.
Zaffaroni (2007) anuncia que o marco inaugural da política penal
neoliberal ocorreu nos Estados Unidos, no período posterior à guerra fria,

3 Para Goffman (1987) as prisões seriam espaços de mortificação do eu, sendo locais que operam o
apagamento das subjetividades daqueles que lá se inserem. O rompimento de vínculos passados,
bem como as estratégias de uniformização (cortes de cabelo padronizados, substituição do
nome por um número, vestimentas idênticas) são medidas que instrumentalizam o processo de
mortificação e que criam o terreno propício para a docilização dos sujeitos.

187
Constitucionalismo Achado na Rua

onde a derrocada do inimigo soviético fez emergir a necessidade de cons-


trução de novas figuras infaustas. Contudo, o inimigo, agora, não seria
mais apenas o estrangeiro, mas sim segmentos inteiros da própria po-
pulação norte-americana que, excluída do sistema produtivo, tornava-se
majoritariamente incômoda e precisava ser controlada. Wacquant (2003;
2011) destaca que nos anos posteriores à guerra fria ocorre uma progressi-
va atrofia dos investimentos americanos na área social e, ao mesmo tempo,
surgem incrementos expressivos nos aportes financeiros em segurança pú-
blica, tudo isso em um momento em que os índices de criminalidade esta-
vam estáveis e, em algumas regiões do país, até mesmo decrescentes. Por
isso, antes de alicerçar-se no real, como resposta à aumentos concretos da
criminalidade, a nova racionalidade punitiva é essencialmente discursiva
e simbólica, explora os medos e estimula os anseios populares por recru-
descimento punitivo, ao mesmo tempo que justifica suas violações a partir
da propagação de narrativas de desumanização daqueles que cometem cri-
mes4. Todo esse sistema opera no sentido de oprimir os excluídos sociais,
seja através do encarceramento ou mesmo do extermínio. O cárcere passa
a ser o mecanismo privilegiado de gerenciamento da exclusão social.
Esse período é marcado pela expansão de políticas de tolerância zero
nos Estados Unidos. Podemos citar o three strikes out, mecanismo que im-
punha automaticamente a pena de prisão perpétua aqueles que tivessem
cometidos três ou mais delitos, assim como a consolidação definitiva da
bargaining (mecanismo processual de negociação das penas), responsável
por imprimir um modelo empresarial ao sistema carcerário norte-ameri-
cano. Ao aceitar a negociação ampla e praticamente irrestrita das penas,
tudo isso a partir da assunção da culpa e da dispensa de direitos funda-
mentais como a ampla defesa e o contraditório, os Estados Unidos apre-
sentaram ao mundo um sistema através do qual se poderia prender um
grande quantitativo de pessoas de forma rápida e mantendo a aparência
de legalidade. Não é à toa que a população carcerária norte-americana co-

4 Zaffaroni (2007, p. 75) define que o novo modelo de política criminal norte-americano é
rapidamente expandido para o restante do planeta e se caracteriza por promover o discurso
penal como se fosse uma propaganda publicitária. Chama esse movimento de autoritarismo
cool, justamente devido ao seu caráter propagandista, marcado por um discurso fortemente
emocional e apelativo, ainda que suas principais propostas estejam descoladas de qualquer
efetividade prática empiricamente evidenciável.

188
Constitucionalismo Achado na Rua

meça a expandir-se desmesuradamente e a seletividade penal do sistema


carcerário se apresenta de forma escancarada. São justamente os excluídos
aqueles que sofrem o maior efeito dessa política penal. Negros, pobres e
imigrantes são a clientela preferencial dos cárceres americanos.
É esse novo sistema penal, pautado na busca por mecanismos de apri-
sionamento rápido e massivo, que é posteriormente distribuído para as pe-
riferias do mundo5. Harvey (2008) e Brown (2019), em seus estudos sobre
a expansão do modelo capitalista neoliberal, alertam para o papel funda-
mental que os Estados Unidos tiveram para a difusão desse novo modelo. O
alcance do poder imperial norte-americano, seja através do financiamento
de golpes de estado, como ocorreu no Chile, ou mesmo a partir da invasão
direta, como se deu no Iraque, é parte importante da imposição da raciona-
lidade neoliberal e, consequentemente, de sua nova racionalidade punitiva.
O desmantelamento e a demonização do Estado Social, uma das pautas cen-
trais do projeto neoliberal, exigirão um sistema punitivo forte, pronto para
acolher aqueles que não são mais dignos da política de inclusão.
As relações de colonialidade mantidas entre o norte e o sul globais
contribuem para disseminação desse sistema punitivo baseado na crimi-
nalização da pobreza. No Brasil, vários resquícios do autoritarismo erigido
durante a ditadura militar permanecem até hoje presentes na legislação
brasileira e, embora o modelo americano da bargaining não tenha pros-
perado em solo nacional - apesar de não terem faltado tentativas, como o
caso do famigerado pacote anticrime - outros institutos jurídicos cumprem
com louvor o objetivo de encarcerar em grande escala6. Além disso, o mo-

5 Wacquant (2011) demonstra que a expansão desse modelo se deu a partir de uma complexa rede de
engenharia ideológica, amparada por redes de consultoria e de aliados neoconservadores nos campos
jornalístico, burocrático e acadêmico, responsáveis por levar o novo modelo punitivo primeira a
Europa e, depois, ao restante do mundo. Tratava-se do novo senso comum penal neoliberal.
6 Um dos maiores exemplos desse fenômeno reside na disciplina legal da prisão preventiva
no Brasil que, ainda hoje, se utiliza do nefasto fundamento da garantia da ordem pública,
verdadeira cláusula aberta, capaz de aceitar qualquer tipo de preenchimento argumentativo,
para aprisionar centenas de milhares de brasileiros, tudo isso horas após o cometimento do
delito e sem direito à defesa. Soma-se a isso a falta de qualquer limitação temporal quanto à
sua duração, podendo estender-se indefinidamente. Trata-se de um modelo que opera por pura
presunção de periculosidade, destituído de qualquer fundamento cautelar, se configurando,
assim, como verdadeira antecipação da pena. Institutos como esse constituem a válvula através
da qual opera o processo de encarceramento em massa. Para maiores informações sobre o uso
abusivo da prisão preventiva consultar Gamba (2021).

189
Constitucionalismo Achado na Rua

delo militarizado de polícia, produzido na ditadura militar com a finalida-


de de conter os insurgentes, ainda hoje é responsável por manter a lógica
da guerra contra o povo pobre, reproduzindo uma seletividade penal que
se inicia com a eleição daqueles que são dignos de sofrer um “baculejo” por
estar em “atitude suspeita” e encerra-se com a imposição de uma sentença
condenatória. É justamente essa transição inacabada da ditadura para de-
mocracia que faz permanecer a figura do terrorismo de estado mantido ao
nível de normalidade institucional (SERRA; JUSTINO, 2022).
Quando transportamos esses estudos para o campo nacional é essen-
cial que acrescentemos a marca do racismo, constituinte da história bra-
sileira e ainda hoje estruturalmente reproduzido. Não é à toa que todos os
instrumentos por meio dos quais a política de segurança pública brasileira
instaura sua violência têm como alvo principal a população negra, jovem e
periférica. Os negros são a maioria nos presídios, são as maiores vítimas da
letalidade policial e também alvo prioritário da prática de tortura (SOA-
RES; GUINDANI, 2007).
O passado escravista deixou como herança uma estratificação ra-
cial que concebe o negro, o índio e o quilombola como objeto de explora-
ção, vidas não enlutáveis, descaracterizadas da condição de humanidade.
Theodoro (2022, p. 281) aponta três aspectos estruturais dessa sociedade
desigual: a institucionalização e à banalização da violência como forma
de sujeição, a consolidação de uma ordem jurídica ilícita informalmente
aceita e que se mantém em paralelo ao ordenamento jurídico e, por último,
o monopólio do Estado sobre a vida e a morte de vastos segmentos da po-
pulação. Nesse sentido, o autor sustenta que a violência é o mais evidente e
perigoso mecanismo pelo qual opera a manutenção da sociedade desigual.
Isso acontece, pois o discurso punitivista se apresenta como uma máquina
produtora de desumanização. Uma vez etiquetado com o estigma do cri-
minoso o indivíduo tem contra si os mais primitivos instintos vingativos
de uma sociedade que passa a não mais concebê-lo como cidadão, mas sim
como um inimigo que deve ser combatido, neutralizado e eliminado.
Esse discurso é extremamente funcional para manutenção das rela-
ções de desigualdade, principalmente quando compreendemos que o es-
tigma do criminoso é desigualmente distribuído na sociedade brasileira
que, para isso, conta com um papel fundamental da construção midiática e
sensacionalista acerca do delito. Os sentimentos mais profundos de indig-

190
Constitucionalismo Achado na Rua

nação são gerados pelos crimes tradicionalmente cometidos pelas parce-


las mais pobres da população brasileira, ao mesmo tempo que a formação
dos estereótipos criminais são responsáveis por formatar no imaginário
popular o discurso justificador da violência de Estado. Ao taxar negros e
pobres como criminosos, o Estado cria o terreno propício para o avanço
da violência contra esses grupos. É por isso que práticas recorrentes como
as chacinas em favelas, o uso da tortura, os baculejos injustificados, as in-
vasões em residências de bairros periféricos são facilmente justificadas a
partir do argumento do combate ao crime. Como bem salienta Theodoro
(2022, p. 302) o “ negro torna-se suspeito ao ser associado automaticamen-
te à condição de bandido potencial” e, com isso, toda violência exercida
contra ele torna-se justificável.
Fizemos essa breve reconstrução com o objetivo de apresentar o real in-
tento do processo de encarceramento em massa, cujo enfoque central baseia-se
na contenção da exclusão social. No tópico seguinte, iremos propor que pensar
uma nova política criminal, menos encarceradora, é tarefa que exige partici-
pação popular ativa e insurgente, mas que, antes disso, necessita de uma pro-
funda articulação no sentido de desconstruir o complexo aparato ideológico
que sustenta a manutenção dos modelos necropolíticos de segurança pública.

3. Racionalidade punitiva e ideologia: desafios para


pensar uma nova política criminal
Os sistemas punitivos sempre vieram acompanhados de um aparato
ideológico muito bem construído, capaz de justificar sua existência, suas
violências e injustiças. Contudo, diferentemente de outros períodos, o neo-
liberalismo é acompanhado por uma série de características que tornam o
pensar de uma nova política criminal muito mais desafiador e complexo.
Os movimentos de individualização extrema, o rompimento dos senti-
mentos gregários e a luta intensa contra o social ameaçam hoje até mesmo
a própria democracia e não podem ser ignorados pelo campo criminal.
O grande sucesso do neoliberalismo deve-se ao fato de que há muito
deixou de ser um mero modelo econômico, mas tornou-se um formador de
subjetividades que voluntariamente reproduzem os próprios modelos de do-
minação. Pautado em noções individualistas, reducionistas e meritocráticas,

191
Constitucionalismo Achado na Rua

o neoliberalismo é capaz de transferir para o indivíduo a responsabilidade


pelas opressões estruturais geradas pelo próprio sistema. A partir da forma-
ção da figura do homem empresarial, como designam Dardot e Laval (2016),
o indivíduo passa a se ver à semelhança de uma empresa, o sucesso ou o fra-
casso dependem apenas das suas escolhas. Quem fracassa na sociedade neo-
liberal do desempenho não questiona o sistema, mas considera a si mesmo
como responsável. O homem se torna vigilante da sua própria produtividade
e da dos demais. Esse processo contribui para o esvaecimento da consciência
de classe, ou seja, os indivíduos não se veem mais conectados por laços de
pertencimento. Os explorados não mais se transformarão em revolucioná-
rios, mas sim em depressivos, conforme salienta Han (2018) ao propor que o
neoliberalismo foi capaz de acabar com a luta de classes.
Essa nova racionalidade traz profundas implicações para o campo
da segurança pública. O homem empresarial passa a ver todos aqueles
que não produzem como fracassos e, assim, dignos de qualquer tipo de
punição. Esse é o terreno mais fértil para propagação das ideologias do
populismo penal. Aqueles que fracassam tornam-se dignos de sofrimento
e assim são inseridos dentro da narrativa da descartabilidade. Voltamos
aos suplícios, mas hoje eles não mais espantam, como espantavam atra-
vés da leitura das descrições trazidas por Foucault em Vigiar e Punir, mas
são defendidos, comemorados e exaltados. Qualquer forma de pensar um
novo sistema penal impõe, antes de mais nada, uma desconstrução das
ideologias que naturalizam a violência do aparato punitivo, bem como o
reavivamento da consciência de classe.
Esse projeto se faz necessário, uma vez que o grau de enraizamento do
discurso punitivista é tão profundo que parece escapar até mesmo às dife-
renças ideológicas no campo político. Nem mesmo o cenário de polarização
política vivido pelo Brasil nos últimos anos é capaz de distanciar significati-
vamente as políticas de segurança pública da esquerda e da direita. Violência
policial, seletividade penal, aprisionamento em massa, guerra às drogas e
investimentos massivos no aparelho repressivo são a tônica através da qual
direita e esquerda convergem na gestão dos sistemas de segurança pública.
Muitas vezes a distinção está apenas na forma de apresentação dos resulta-
dos, enquanto governos de extrema direita exibem mortes, torturas e violên-
cias como um troféu e, assim, insuflam sua base de aliados, os governos de
esquerda são menos efusivos, mas também tolerantes com tais práticas. Ao

192
Constitucionalismo Achado na Rua

que parece nenhuma candidatura que se pressuponha viável pode prescindir


do discurso da violência do sistema penal7.
Por isso, é que aqui propomos que pensar uma nova política criminal
pressupõe, antes de mais nada, disputar narrativas no campo penal. Ou seja,
desconstruir as ideologias que legitimam a manutenção de um sistema vio-
lento e seletivo. Esse trabalho só pode ser alcançado a partir de uma ativida-
de contínua de conquista de mentes e corações realizada pelos movimentos
sociais organizados. Atividade esta que deve começar desde abajo, ou seja,
trazendo para o cenário de discussão das políticas penais aqueles que mais
sofrem com as injustiças do sistema. É preciso que o povo negro, pobre e pe-
riférico seja não apenas alvo da política de segurança pública, mas também
seus propositores, isso exigirá uma reconstrução da consciência de classe,
tão duramente combatida pela racionalidade neoliberal, para que, a partir
disso, formem-se coalizões capazes de disputar frontalmente o direito de
dizer como a segurança pública brasileira deve ser conduzida.
É justamente aqui que acreditamos que o Direito Achado na Rua tra-
ga as contribuições necessárias para pensar o fenômeno jurídico sob outra
perspectiva. O direito não é apenas norma, não é apenas o direito estatal.
O direito é também insurgência, é também o antidireito que se erige contra
um sistema normativo injusto. Trata-se de uma concepção de direito como
modelo avançado da legítima organização social da liberdade, conforme
propugna Roberto Lyra Filho, e que “emerge, transformadora, dos espaços
públicos - a rua - onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas
que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de
cidadania e de participação democrática” (SOUSA JÚNIOR, 2021, p. 76).
Ao monismo estatalista contrapõe-se o pluralismo jurídico de tipo
comunitário-participativo, conforme proposto por Wolkmer (2021), uma
vez que o direito não é apenas aquele produzido pelo Estado, mas é tam-
bém aquele formulado através das práticas dos sujeitos coletivos insur-
gentes que, historicamente silenciados, reclamam sua participação nas
decisões da vida pública. Quando pensamos esse conceito para o campo
da segurança pública temos a certeza de que é necessário resgatar a par-
ticipação popular de grupos que têm sido sistematicamente excluídos dos
processos decisórios. As narrativas de desumanização servem como forma

7 Serra e Justino (2022) tratam sobre os punitivismos de esquerda.

193
Constitucionalismo Achado na Rua

de neutralizar as vozes da população carcerária, de seus familiares e da


população periférica que convive com o estigma do criminoso. As histó-
rias de vida e as vivências desses grupos precisam ser consideradas e am-
plificadas para que, assim, possamos pensar em um direito de baixo para
cima. Enquanto o direito for determinado por aqueles que historicamente
ocuparam lugares de privilégio, o sistema penal será um espaço reprodutor
das relações de colonialidade, servindo para violentar, torturar e desuma-
nizar os grupos sociais brasileiros historicamente vulnerabilizados.
Para que esse discurso não aparente ser meramente utópico e inal-
cançável apresentaremos no tópico seguinte uma experiência concreta de
insurgência contra a violência do sistema penal. Experiência produzida a
partir de anos de trabalho da sociedade civil organizada e que culminou
com a realização de uma Assembleia Popular em prol do desencarcera-
mento no Estado do Maranhão. Nesse evento foram pactuados 50 parâme-
tros, formulados a partir da sociedade civil, para enfrentamento da políti-
ca de encarceramento em massa maranhense.

4. Insurgência e movimentos de luta:


a experiência maranhense da Assembleia
Popular pelo Desencarceramento
A proposta de articular e realizar uma Assembleia Estadual pelo De-
sencarceramento no Estado do Maranhão surgiu no âmbito do projeto
“Enfrentando o seletivismo penal e suas consequências” executado pela
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) desde o ano 2017.
Esse projeto tinha como proposta inicial a produção de conhecimento e a
realização de pesquisas sobre a situação carcerária maranhense, mais es-
pecificamente visava monitorar o processo de implantação das audiências
de custódia no Estado8. Durante essa fase, foram realizadas duas pesquisas

8 A SMDH é uma entidade da sociedade civil organizada com lastro histórico de atuação em relação às
questões carcerárias maranhenses, tendo sido peticionária internacional de denúncias de violações
de direitos humanos ocorridas no presídio de Pedrinhas. Uma dessas ações teve como resultado a
determinação da implementação imediata das audiências de custódia, tanto que o Maranhão foi
o primeiro Estado a contar com a implementação do instituto, ao final do ano de 2014, enquanto
este só se tornaria obrigatório para o restante do país no início do seguinte. A audiência de custódia

194
Constitucionalismo Achado na Rua

que acabaram por demonstrar que o Maranhão seguia uma perspectiva


progressiva de encarceramento em massa, tendo ampliado significativa-
mente sua população carcerária nas últimas décadas. Tais estudos foram
realizados não apenas com base em análise quantitativa, mas também de-
bruçaram-se sobre o discurso dos julgadores, partindo da análise de cen-
tenas de decisões judiciais exaradas em audiência de custódia, e evidencia-
ram a permanência da cultura do encarceramento, lastreada na seletivida-
de penal e na criminalização da pobreza, o uso abusivo da prisão provisó-
ria, bem como a persistência da complacência com a prática da tortura que,
apesar de presente nos relatos de centenas de presos, gerou pouquíssimas
apurações e resposabilizações (SMDH, 2017; 2019)9.
Em posse dos resultados a SMDH articulou reuniões com diversos
representantes das instituições de justiça, do Poder Executivo e órgãos de
segurança pública a fim de apresentar aquilo que havia sido constatado.
Contudo, enfrentou uma forte resistência na aceitação dos resultados. Os
argumentos utilizados transitavam entre alegar as dificuldades estruturais
das instituições (excesso de demanda, poucos profissionais, etc.), outros que
falavam das pressões sociais que reivindicavam prisões, além de discursos
propriamente punitivistas, que partilhavam da ideia de que as condutas
aprisionadoras eram o único ou o melhor caminho para o enfrentamento da
violência. Em suma, o resultado das pesquisas, por si só, não serviu para mo-
bilizar mudanças efetivas na realidade do sistema carcerário maranhense.
Essa primeira fase do projeto perdurou entre os anos de 2017 a 2019.
Contudo, apesar da importância dos estudos realizados, a pouca produção
de resultados práticos tornou necessária uma redefinição das estratégias
institucionais. Ao invés de focalizar apenas nos diagnósticos era neces-
sário promover um amplo processo de mobilização popular em torno da
temática do desencarceramento. As propostas de apenas uma instituição,

constitui o direito do preso de ser apresentado a uma autoridade judiciária logo após a sua prisão,
o prazo máximo varia entre 24 e 72 horas, a depender da localidade. Tal ato tem como objetivo
principal evitar a prática de maus tratos ou tortura no ato de apreensão, possibilitando à fiscalização
imediata por parte do juiz, e, em segundo lugar, evitar o aprisionamento desnecessário, trazendo
mais racionalidade ao uso das prisões provisórias (BRASIL, 2015).
9 Os relatórios das pesquisas podem ser encontrados através dos seguintes hiperlinks: http://smdh.org.
br/wp-content/uploads/2019/09/Relat%C3%B3rio-Pesquisas-Audi%C3%AAncias-de-custodia_I-
edi%C3%A7%C3%A3o_2019-_SMDH.pdf e http://smdh.org.br/wp-content/uploads/2019/12/
Relat%C3%B3rio-Final-da-Pesquisa-Audi%C3%AAncias-de-Cust%C3%B3dia.pdf

195
Constitucionalismo Achado na Rua

ainda que possuidora de uma reconhecida trajetória, seriam facilmente


descartadas, mas a união de diversos segmentos, organizados ou não, gera-
ria uma pressão maior por mudanças práticas na política carcerária mara-
nhense. Foi assim que, a partir de meados do ano de 2019, o projeto mudou
seu enfoque de atuação, partindo para uma atividade constante de mobi-
lização popular que tornou possível a construção coletiva de parâmetros
para o desencarceramento no Estado do Maranhão. O resultado final desse
processo ocorreu ao final do ano de 2022, com a aprovação em Assembleia
Popular de 50 parâmetros para o desencarceramento. Aqui realizaremos
uma breve suma das atividades que gestaram esse importante evento.
Antes de mais nada, é necessário destacar que a equipe do projeto “En-
frentando as consequências do seletivismo penal” era constituída exclusiva-
mente por profissionais voluntários, recebendo apenas uma ajuda de custo
para despesas essenciais. Compunha-se de dois advogados, uma comunica-
dora, um articulador social, três estagiárias e cinco voluntários que atuavam
em outros projetos da entidade, dentre eles outros (as) três advogados (as),
uma assistente social e um psicólogo. Esses profissionais dividiram-se entre
as diversas atividades do projeto ao longo dos quase três anos de trabalho.
A proposta de formar uma base social em torno da temática do de-
sencarceramento exigia a realização de atividades em várias frentes e,
também, urgia por uma reaproximação com as parcelas da população que
tradicionalmente foram silenciadas e expurgadas dos processos decisórios.
Com isso, as atividades centraram-se em torno da mobilização de quatro
grupos: criação de espaços de diálogos com outras instituições organiza-
das que possuíam interesse na temática do desencarceramento; formação
de grupos de diálogos periféricos; realização de oficinas em escolas da rede
pública; e formação de grupo de pesquisadores em ciências criminais.
A criação de espaços de diálogos entre entidades da sociedade civil
foi, sem dúvida, o maior desafio enfrentado pelo projeto. Essa atividade
teve como foco central a tentativa de formar uma Frente Estadual pelo De-
sencarceramento, movimento que possui congêneres no plano nacional e
também em outros estados. Contudo, nunca se conseguiu um efetivo enga-
jamento das demais instituições, o que levou à paralisação das atividades
da Frente no ano de 2021. Dois fatores ajudam a explicar esse processo, um
deles, de ordem local, refere-se ao fato do Maranhão não contar com enti-
dades compostas por familiares de presos que se mantenham em funcio-

196
Constitucionalismo Achado na Rua

namento ativo e constante, sendo que a maior parte das Frentes de outros
estados é sustentada por essas organizações. Já um segundo fator, esse de
ordem mais global, refere-se à própria dificuldade histórica de articulação
dos movimentos sociais quando se trata do fortalecimento de pautas relati-
vas à segurança pública10. Muitas entidades tratam as pautas de segurança
pública apenas de forma acessória, aderindo a elas em momentos especí-
ficos, sem uma continuidade orgânica. Mesmo diante das dificuldades, a
realização da Assembleia Popular contou com a participação de diversas
entidades, articuladas individualmente, que prestaram sua contribuição
para constituição do documento.
No que tange a formação de grupos de diálogos periféricos foram
constituídos quatro grupos de trabalho em diferentes bairros de periferia
da região metropolitana de São Luís, sendo eles: Aurora-Anil (Residen-
cial João do Vale), Liberdade, Itaqui-bacanga e no município de Paço do
Lumiar. Todos esses bairros são marcados pelo uso abusivo do aparelho
repressivo do Estado e convivem diariamente com prisões arbitrárias, tor-
turas, revistas vexatórias, bem como outras práticas degradantes. Para o
trabalho nesses bairros foram estreitados os contatos com lideranças co-
munitárias que designaram grupos de moradores para participarem das
rodas de diálogo propostas pelo projeto. Já em relação aos trabalhos de
formação em escolas públicas, foram realizados trabalhos em oito escolas
de diversas localidades da capital maranhense.
Nesses dois espaços as atividades eram realizadas através do formato
de rodas de diálogo pensadas a partir dos princípios freireanos da educa-
ção popular visando, sobretudo, auxiliar o despertar crítico dos partici-
pantes, convocando-os assim para uma participação ativa na vida pública.
Todos os grupos passaram por um ciclo de atividades composto por cinco
oficinas. Em cada oficina foram discutidos dois temas considerados prio-
ritários, congregando o total de dez temáticas trabalhadas com os partici-
pantes. Os temas eleitos foram: “o que é encarceramento em massa?”; “en-

10 Nesse sentido, Abers, Serafim e Tatagiba (2021) já demonstraram que o nível de organização dos
movimentos sociais em relação à temática da segurança pública é mínimo quando comparado
a outros campos de interesse, como o desenvolvimento agrário e a política urbana. O fato de
apenas poucas organizações da sociedade civil trabalharem com o tema, a falta de tradição no
diálogo com o Estado e o histórico de conflito entre organizações civis e a polícia ajudam a
explicar essas dificuldades.

197
Constitucionalismo Achado na Rua

carceramento e seletividade”; “você sabe o que são prisões provisórias?”;


“como a política de guerra às drogas contribui para o aprisionamento em
massa?”; “a ressocialização fracassou?”; “por que desencarcerar?”; “violên-
cia policial no Brasil”; “tortura é crime”; “alternativas penais” e “estratégias
de mobilização popular contra o encarceramento em massa”. O material
base para o trabalho consistiu em cinco cartilhas, com no máximo uma
lauda cada, elaboradas pela equipe do projeto e revisadas para uma lingua-
gem popular, evitando a presença de termos jurídicos ou jargões acadêmi-
cos que manifestassem uma barreira à participação dos indivíduos.
Também foram realizados dois módulos do curso de formação de Agen-
tes Populares de Direito (APDs), contando com a participação de lideranças de
bairros populares da capital. Esses cursos trabalharam temas como encarcera-
mento em massa, violência urbana, exclusão social, dentre outros. Seu objeti-
vo central era instrumentalizar as lideranças para que promovessem, em suas
localidades, a multiplicação de narrativas favoráveis ao desencarceramento,
abrindo portas para pensar uma nova política de segurança pública.
Deve-se destacar que esses espaços, longe de serem caracterizados
pela transferência de conhecimento, foram locais de uma troca ativa de
vivências entre os sujeitos participantes. Ao conhecimento teórico, mui-
tas vezes distanciado da vivência das relações de violência, somaram-se
importantes aprendizados e reivindicações que possivelmente não seriam
imaginados por gestores e profissionais que desconsideram a vida real das
comunidades, ou seja, os espaços concretos onde o direito ganha vida.
Já em relação ao grupo de pesquisadores (as) foi realizado um mapea-
mento prévio visando identificar indivíduos que pesquisassem as temáticas
criminais, com especial ênfase nos processos de encarceramento em massa
e que compartilhassem a necessidade de repensar as práticas de segurança
pública locais partindo de um viés menos violento, seletivo e punitivista. A
partir daí, foram convidados professores (as) universitários, alunos (as) de
pós-graduação e de graduação, bem como pesquisadores autônomos para
que pudessem integrar a rede. Essa união culminou com a formação da
Rede de Pesquisadores (as) em Ciências Criminais cuja composição é, em
sua maioria, de pesquisadores (as) locais, mas também com participantes
de outros estados. No mês de julho de 2022 foi realizado o primeiro seletivo
para ingresso de membros externos que contou com o acréscimo de mais 8
integrantes ao grupo que, atualmente, conta com 33 participantes. Em sua

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Constitucionalismo Achado na Rua

composição estão pesquisadores de diversas áreas: direito, psicologia, ciên-


cias sociais, antropologia e história. Trata-se de um espaço de troca de ex-
periências de pesquisa, sendo que suas reuniões ocorrem mensalmente, a
partir da apresentação da trajetória de produções de algum dos membros
da rede. Durante os anos diversas temáticas passaram pelo espaço: encar-
ceramento juvenil, feminino e da população LGBTQIAP+, saúde mental no
cárcere, acesso à informação no campo da segurança pública e tortura.
Paralelamente, foram realizadas diversas atividades publicitárias,
partindo principalmente do uso das redes sociais, com o intuito de sensibi-
lizar as pessoas quanto à necessidade de discutir a questão carcerária ma-
ranhense. A escolha pelo uso das redes sociais teve um caráter estratégico,
uma vez que, após o ocorrido nas eleições de 2018, foi avaliado interna-
mente que o potencial dessas plataformas como ferramenta de promoção
de narrativas favoráveis aos Direitos Humanos, de combate às fake news
e de desconstrução do discurso de ódio ainda não havia sido completa-
mente explorado pelo campo progressista. Por isso, era necessário que os
movimentos sociais se apropriassem dessas novas ferramentas, essenciais
para a atividade de mobilização, sobretudo da população jovem. Dentre
as atividades podemos citar a realização dos “22 dias de ativismo contra a
tortura e pelo desencarceramento”11, bem como a promoção da campanha
“Desencarcera já!”12. Além disso, foram realizadas 12 lives13 tratando sobre

11 A escolha dessa data se deve ao fato de que o dia 22 de março é o dia estadual de combate
à tortura no estado do Maranhão. Trata-se de uma data essencialmente simbólica, uma vez
que esse foi o dia do assassinato do artista popular maranhense Gerô, torturado e morto
brutalmente no dia 22 de março de 2007 pela polícia após ser confundido com um assaltante. A
campanha iniciou-se no dia 1 de março e culminou com um ato-show no dia 22. Durante cada
dia eram veiculados conteúdos publicitários, cards, bem como realizadas lives que tratavam
sobre a temática da tortura e do encarceramento em massa no Maranhão.
12 Oito entidades da sociedade civil maranhense (Centro de Integração Sócio Cultural Aprendiz do
Futuro, Grupo de familiares e amigos de pessoas privadas de liberdade do Maranhão, Missionários
Combonianos, NAJUP Negro Cosma, Centro de Cultura Negra do Maranhão, Pastoral Carcerária
de São Luís, União Estadual por Moradia Popular e Pastoral do Menor) comprometeram-se com os
termos da campanha, a partir de uma carta de adesão. As atividades consistiam na multiplicação
de narrativas em prol do desencarceramento, cada qual em seus espaços de atuação, bem como na
divulgação compartilhada das produções de comunicação da campanha.
13 As lives consistiam em discussões com expositores sobre temas previamente definidos, exibição
e discussão de filmes e documentários, bem como lives culturais com artistas populares
maranhenses. Grande parte delas encontram-se disponíveis a partir em: https://www.facebook.
com/smdh.vida/live_videos/?ref=page_internal

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Constitucionalismo Achado na Rua

temáticas afetas ao campo carcerário, foi produzido um mini-documentá-


rio sobre a situação prisional maranhense14, bem como foram publicados
diversos artigos de opinião15.
Essas diversas ações ocorreram paralelamente ao longo de três anos de
trabalho, sendo que o esboço dos parâmetros era constantemente apresenta-
do, discutido, reelaborado e incrementado. As contribuições oferecidas por
um dos espaços eram sempre apresentadas aos demais grupos que debatiam
a melhor forma de conciliar os interesses e demandas. Ao final, o trabalho
realizado deu origem aos 50 parâmetros levados para aprovação na Assem-
bleia Popular. Inclusive, por uma exigência dos próprios grupos, o documen-
to teve seu escopo ampliado, uma vez que a ideia original previa que o texto
trataria exclusivamente de parâmetros para o desencarceramento. Contudo,
surgiram diversas provocações pleiteando a inclusão de ações preventivas
ao encarceramento, bem como de medidas voltadas ao combate da violência
ocorrida no interior dos presídios, ou seja, que fossem capazes de propor-
cionar condições de vida mais dignas para aqueles que se encontram presos.
Com isso, a nomenclatura final do documento foi definida como “Pa-
râmetros para o desencarceramento e combate às violências no âmbito do
sistema penitenciário maranhense” e conta com 8 seções cujas principais
proposições serão abaixo descritas:
Seção 1 - Ações Preventivas ao encarceramento, Alternativas Pe-
nais e Ressocialização: as propostas construídas e incluídas nessa seção
centram-se em alguns pontos principais: primeiramente, que as questões
relacionadas ao consumo de drogas sejam tratadas como problemas de
saúde pública e que seja evitado o uso de medidas privativas de liberdade
como resposta; em segundo lugar, propõe-se uma reformulação das ativi-
dades de formação dos agentes de segurança pública, adotando um modelo
que privilegie o diálogo com as comunidades; em terceiro lugar, ampliação
da oferta de políticas públicas em bairros de periferia, bem como daquelas
voltadas aos presos - principalmente visando sua reinserção social - e suas
famílias; em quarto lugar, interlocução junto à imprensa para definição de
parâmetros para uma cobertura humanizada e menos estigmatizante no

14 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SAnXSMy0qa0&t=430s


15 Os artigos podem ser encontrados no site http://smdh.org.br/

200
Constitucionalismo Achado na Rua

que diz respeito ao tema do encarceramento; em quinto lugar, ampliação


da oferta de alternativas penais não encarceradoras.
Seção 2 - Encarceramento provisório: esse tópico previu uma série
de medidas destinadas a combater o uso abusivo das prisões provisórias no
estado do Maranhão. Para isso, opõe-se a decretação da prisão preventiva
com base em meras presunções de periculosidade, caracterizando verda-
deira antecipação da condenação, reforçando, assim, à excepcionalidade
de sua utilização e atentando para necessidade de que as prisões provi-
sórias decretadas sejam revisadas periodicamente, a cada 90 dias, e que
não seja decretada com base exclusivamente no depoimento dos policiais
responsáveis pelo ato de apreensão16.
Seção 3 - Controle Social e Transparência: essa seção foi fruto de in-
tensos debates e reivindicações, sobretudo do grupo de pesquisadores, que
alertavam para a dificuldade de obter dados acerca do sistema de seguran-
ça pública maranhense. A presença de dados desencontrados, bem como
a fragmentação dos dados em múltiplos sistemas de consulta, alguns deles
privados, dificultava a realização do controle social sobre a atuação estatal.
A maior reivindicação desta seção consiste na criação de um Sistema Uni-
ficado e Centralizado de Dados que congregue informações oriundas das
instituições de justiça e dos órgãos de segurança pública, em plataforma
única e pública. Além disso, reclama a participação popular na formula-
ção de políticas públicas de enfrentamento ao encarceramento em massa,
tortura, dentro e fora do ambiente prisional, e violência policial com base
em interlocuções com representações da periferia.
Seção 4 - Tortura e Violência policial: nesse campo estão reinvidi-
cações que zelam pela manutenção da realização presencial de audiências
de custódia, entendendo que esse instituto constitui relevante instrumento
de averiguação de maus tratos e tortura, indo contra movimentos inter-
nos do sistema justiça que pleiteavam sua realização por videoconferência,
principalmente para ocorrências de localidades mais longínquas. Trata da
adoção de câmeras de monitoramento no fardamento policial, bem como
a necessidade de reorganização do Comitê Estadual de Combate à Tor-

16 Esse ponto foi identificado em pesquisas da SMDH (2017; 2019) que evidenciaram que grande
parte das decisões de decretação de prisão preventiva em audiência de custódia eram tomadas
com base exclusivamente no relato dos policiais responsáveis pelo ato de apreensão.

201
Constitucionalismo Achado na Rua

tura e a contratação de peritos para integração do Mecanismo Estadual


de Prevenção e Combate à Tortura. São previstas, ainda, a necessidade de
articular políticas de prevenção e combate aos linchamentos, bem como a
promoção de eventos alusivos à memória e à verdade, resgatando os efeitos
maléficos da ditadura militar.
Seção 5 - Sistema socioeducativo; Seção 6 - População LGBT-
QIAP+; Seção 7 - Encarceramento feminino: Essas três seções tratam
de demandas específicas de cada um dos segmentos destacados e buscam,
primordialmente, o oferecimento de condições de vida mais dignas para
aqueles que ingressam no cárcere.
Seção 8 - Saúde mental no cárcere: esse tema foi, sem dúvida, um dos
mais recorrentes nas discussões ocorridas em todos os espaços de articu-
lação. As propostas principais residem na superação da lógica manicomial
que permeia as medidas de segurança, bem como na inadequação da uti-
lização da ideia de periculosidade e do modelo biopsicológico, pautado na
realização dos exames criminológicos, como norteadores de decisões judi-
ciais. Também pleiteia o oferecimento de atendimento multidisciplinar aos
presos que necessitem de cuidados quanto à sua saúde mental, superando a
lógica de tratamento exclusivamente medicamentosa.
É de se destacar que nem todos os parâmetros formulados estão
acompanhados de estratégias concretas para sua implementação, uma vez
que o objetivo principal do documento, antes de propor do zero um novo
modelo de política criminal, consistia em manifestar uma posição de in-
conformismo com as práticas institucionais para que, assim, fossem aber-
tos os canais para uma (re)discussão da política de segurança pública a
partir da participação ativa da sociedade civil. Embora o documento conte
com algumas propostas de aplicação imediata, como é o caso da imple-
mentação de um Sistema Unificado de Dados e a adoção de câmeras no
fardamento policial, em outros campos a solução dos problemas indicados
necessita de uma construção dialogada de soluções.
Assim, após diversos diálogos, revisões e acréscimos, o texto final do
documento foi levado para aprovação em Assembleia Popular realizada no
dia 07 de dezembro de 2022. Realizado no Palacete Gentil Braga, no centro
histórico de São Luís, o evento contou com a participação de 94 represen-
tantes de diversos segmentos, inclusive alguns que não haviam integrado
às atividades preliminares, mas que solicitaram sua inscrição para partici-

202
Constitucionalismo Achado na Rua

par da assembleia, como foi o caso de lideranças indígenas, trabalhadores


rurais, defensores de direitos humanos ameaçados e lideranças religiosas.
Esses grupos trouxeram a necessidade de pensar os parâmetros para além
da violência urbana, englobando também o uso abusivo do aparato de se-
gurança pública, inclusive através do encarceramento, como instrumento
de silenciamento de pequenos proprietários rurais e lideranças indígenas
e quilombolas. Essas demandas foram acrescidas à redação final dos parâ-
metros e geraram novas seções.
Após a formulação e aprovação deste documento a estratégia se-
guinte é que ele seja levado para apresentação em audiência pública que
conte com representantes dos três poderes, em especial dos órgãos de
segurança pública e do sistema de justiça. Nesse evento, com previsão de
realização para o primeiro semestre de 2023, espera-se que seja firmado
um termo de compromisso quanto ao cumprimento da totalidade - ou
pelo menos, de parte significativa - dos parâmetros e que, a partir daí,
seja destacada uma comissão para acompanhamento do cumprimento
dos pactos assinados. Trata-se do embrião de um espaço de controle po-
pular da política carcerária maranhense.
Acredita-se que um documento robusto, assinado por diversas en-
tidades da sociedade civil, pesquisadores, líderes comunitários, jovens,
lideranças indígenas e religiosas, seja capaz de opor um movimento de
resistência frente ao avanço da violenta política carcerária maranhense.
Embora não se possa ainda dimensionar os efeitos concretos dessa emprei-
tada, é de se dizer que, sem dúvidas, trata-se de uma proposta de resistên-
cia, ousada e insurgente, construída, refletida e assinada por sujeitos his-
toricamente despotencializados, mas que unidos e atuantes são capazes de
enfrentar a lógica opressora de um estado que se utiliza do argumento da
segurança pública para extirpar vidas pobres, negras e periféricas. Além
disso, evidencia um movimento de resistência nas periferias do nosso país.
O Maranhão não está nos principais holofotes e manchetes nacionais, mas
os movimentos contra a opressão seguem atuantes, vivos e potentes, em
busca de uma realidade menos desigual e violenta para o nosso estado.

203
Constitucionalismo Achado na Rua

5. Considerações finais
Há décadas o Brasil vivencia o desenrolar de um processo de encar-
ceramento massivo cujas principais vítimas são as parcelas mais pobres de
nossa população. Esse fenômeno encontra-se alinhado às necessidades do
capitalismo neoliberal que, promotor de exclusão social em larga escala,
elegeu o sistema penal e o cárcere como mecanismos promotores de sua ló-
gica de descartabilidade. A partir de uma distribuição desigual do estigma
do criminoso e de sua taxação como inimigo social opera toda uma infra-
-estrutura simbólica e discursiva que desumaniza os indivíduos e torna a
violação de seus direitos algo natural.
Combater esse fenômeno é uma tarefa árdua que exige, como vimos,
a desconstrução das ideologias que legitimam o funcionamento deste apa-
rato repressivo. A proposta que aqui delineamos é a de que o enfrenta-
mento do atual modelo de segurança pública, baseado na violência seletiva
do estado contra seus próprios cidadãos, apenas pode ser feito a partir de
uma ampla mobilização popular que privilegie a retomada do trabalho de
base e o florescimento da consciência de classe para que, assim, sejam es-
cancaradas as reais facetas do aparato punitivo. Essa tarefa exige que as
discussões acerca do sistema de segurança pública saiam dos gabinetes e
cheguem às ruas. Enquanto a população que sofre os efeitos da violência do
sistema penal for excluída dos processos decisórios, o sistema penal per-
manecerá sendo um espaço de reprodução de relações de desigualdade.
É por isso que a experiência aqui apresentada manifesta-se como uma
verdadeira prática insurgente. Basta conversar sobre segurança pública
com jovens estudantes de escolas públicas, moradores de periferia, inte-
grantes de movimentos sociais organizados e pesquisadores para enten-
der que a violência do aparato punitivo marca fortemente a subjetividade
daqueles que a vivenciam. Não ouví-los significa aceitar que naturaliza-
mos a violência ou, pior, que aceitamos que determinados grupamentos
humanos só podem existir como se vivessem em uma guerra constante,
em territórios sem lei, onde a violência é sempre exercitável e aceita-se que
o Estado de Direito seja constantemente suspenso, tudo isso a partir da
justificativa de supostamente protegê-lo.

204
Constitucionalismo Achado na Rua

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206
Entregadores de aplicativo e o
Constitucionalismo Achado na Rua:
uma interpelação à Liberdade Sindical1

Paulo Fontes de Resende


Sílvia Angélica Tavares

1. Introdução
Este texto propõe o debate sobre a estrutura de representação coleti-
va da classe trabalhadora pelo sistema corporativista e as experiências de
paralisação das atividades de entrega por trabalhadores e trabalhadoras
de aplicativo, durante a pandemia de Covid-19, como fato que interpela a
forma representativa de tal sujeito coletivo e o próprio princípio constitu-
cional da Liberdade Sindical em seu alcance amplo.
Logo no primeiro ponto é feito um breve resgate histórico sobre a dis-
puta acerca da conformação da estrutura sindical no Brasil e os resquícios
que ainda prevalecem do modelo corporativista, os quais, nos dias atuais,
permitem distanciamentos entre a abertura democrática que a Carta Polí-
tica de 1988 abraça com a realidade laboral de quem vivencia o serviço de
entrega por aplicativos.
Na sequência, o enfoque é voltado para a articulação coletiva de pa-
ralisação das atividades de entrega dos trabalhadores e trabalhadoras de
aplicativo no contexto pandêmico causado pelo Covid-19. O movimento
paredista evidenciou as condições de precariedade laboral existente, de-
monstrou que tal cenário causa desconcerto à premissa de proteção ao tra-
balho, além de questionar os moldes do sindicalismo brasileiro ao efetivar
a diretriz constitucional da Liberdade Sindical sem percalços endossando,

1 Ensaio fruto dos ricos debates em sala de aula na disciplina Direito Achado na Rua proposta
pelo Professor Doutor José Geraldo de Souza Júnior, no 2º semestre do ano letivo de 2022,
ofertada no curso de Pós-graduação em Direito da Universidade de Brasília – UnB.

207
Constitucionalismo Achado na Rua

inclusive, pautas políticas que implicam na condição laboral, na condição


de vida, bem como na compreensão de necessidade de incorporação da
diversidade do ser e do gênero.
Por último, os ímpetos são direcionados para entrelaçar pontas como
a luta destes trabalhadores e destas trabalhadoras contra a espoliação das
condições dignas de trabalho com a concepção de um Constitucionalismo
Achado na Rua, por meio do exercício do direito de greve e da concreti-
zação da Liberdade Sindical em plenitude, sem as barreiras estruturais do
modelo corporativista – unicidade e definição por categoria, para reivindi-
car direitos, denunciar opressões, espoliações, e delinear a genuína reivin-
dicação por emancipação da classe trabalhadora e dos sujeitos coletivos.

2. Estrutura sindical em disputa


De certo que a luta trabalhista brasileira não se iniciou na década de
30 do século passado. Há uma importante e rica história emancipatória de
sujeitos oprimidos. Contudo, a estrutura sindical, tal como a conhecemos
hoje, tem a sua origem na “Nova República”.
Durante o governo provisório, transferiu-se do Legislativo para o
Executivo a competência de elaboração de leis, oportunidade em que fo-
ram estabelecidos novos direitos, entidades sindicais e conceitos trabalhis-
tas. O encargo de acalmar os ímpetos insurgentes da classe trabalhadora
do início do século XX foi atribuído ao recém criado Ministério do Traba-
lho, Indústria e Comércio.
O primeiro Governo Varguista enxergou no sindicalismo a dimensão de
solidariedade dos trabalhadores e trabalhadoras que se expressava pela expe-
riência social que os atingia (VIANNA, 1943). A forma como se organizavam
e conciliavam os seus interesses comuns, acima dos interesses individuais, re-
presentava para o governo a verdadeira democracia a ser exercida por todo
o país (VIEIRA, 2010). O sindicato de classes oficializado pelo Estado seria,
assim, uma autêntica escola de solidariedade social (VIANNA, 2019).
Antes, contudo, é preciso compreender que o sistema de sindicato de
classes oficial fez parte de um projeto de Teoria de Estado de Democracia-
-Autoritária, que ficou conhecido como Corporativismo (VIEIRA, 2010).
Nele, o Chefe de Estado concentraria o poder máximo de Líder da Nação

208
Constitucionalismo Achado na Rua

(Poder Executivo), haveria órgãos como o Conselho da Economia Nacio-


nal (órgão consultivo e pré-legislativo) e o Ministério do Trabalho, Indús-
tria e Comércio em estrutura de poder inferior, para que ao fim chegassem
aos sindicatos oficiais. Haveria uma distribuição de força em estrutura de
cebola (ARENDT, 2012), em que no centro encontra-se o Poder Executivo
Autoritário e demais camadas de poderes distribuídas até chegar ao cida-
dão povo-massa (VIANNA, 1939).
É neste momento que a unicidade sindical se torna imprescindível
para o modelo de governança autoritária estatal. Para o Governo Vargas,
o sindicalismo plural poderia dividir os sindicatos em múltiplas correntes
ideológicas, religiosas, por questões pessoais de seus dirigentes, entre ou-
tros motivos, ao ponto de serem pequenos demais e não conseguir produ-
zir o efeito de interlocução desejado pelo governo.
Contudo, o maior temor de um sindicalismo fora da estrutura montada
pelo “Estado Novo” é que ele se tornasse grande o suficiente e fosse utilizado
como instrumento revolucionário. A obrigação dos sindicatos se formarem
a partir de “categorias” e restritos a ela busca atingir duas funções: i) a pri-
meira delas é a limitação de abrangência e, consequentemente, de poder; ii)
e a segunda é construir uma estrutura voltada para a economia em que se
possa fazer negociações coletivas. Sob essas circunstâncias nasce o modelo
de sindicato oficial, o sindicato cooperador (VIANNA, 1943).
Mesmo com a queda do regime, o sistema sindical corporativista e
fascistizante permaneceu no contexto social, mesmo nos regimes demo-
cráticos subsequentes. Nesse sentido, vislumbra-se que a reivindicação de
Liberdade Sindical e de Autonomia Sindical sempre foram oposição à es-
colha estatal de controle da classe trabalhadora.
O regime ditatorial iniciado em 1964 só aumentou o rigor, não ape-
nas com o fechamento de sindicatos e perseguição aos sindicalistas, mas
também em norma, através da Lei de Greve n. 4.330/1964 que, em prática,
inviabilizava qualquer movimento paredista.
Com a abertura democrática e a confluência com a mobilização da
sociedade civil organizada (MELLO FILHO; DUTRA, 2022) emerge a
Constituição de 1988, a qual finalmente consagrou a hermenêutica pela
Liberdade Sindical e a elevou à alçada de Princípio Constitucional, confor-
me art. 8º, além do Direito de Greve como Direito Fundamental de caráter
coletivo, consoante previsão do art. 9º. Contudo, permaneceu os pilares do

209
Constitucionalismo Achado na Rua

velho sistema corporativista que não se harmonizam com o projeto demo-


crático abraçado pela Constituição.
A manutenção de figuras jurídicas corporativistas permitiu efeitos
danosos aos trabalhadores e trabalhadoras. O financiamento compulsório
dos sindicatos, em um modelo de plena liberdade associativa estimulou o
fracionamento das entidades (DELGADO, 2017).
Muitas amarras do corporativismo foram revisitadas e abandona-
das, a exemplo: i) a representação corporativista na Justiça do Trabalho
(EC n. 24, 1999); ii) a força normativa das decisões judiciais nos conflitos
coletivos (EC n. 45, 2004); iii) o fim da contribuição compulsória (Lei n
13.467/2017). Entretanto, a espinha dorsal permanece intacta, qual seja: a
unicidade sindical e o enquadramento sindical à base do critério de cate-
goria (CARVALHO, 2016).

3. Entregadores de aplicativo e a
interpelação da estrutura sindical
A despeito da continuidade dos traços corporativistas no sindicalis-
mo brasileiro, não há como olvidar que as metamorfoses provocadas no
mundo do trabalho, sobretudo na classe trabalhadora com o advento da
indústria 4.0 (ANTUNES, 2020), desconcerta institutos jurídicos combi-
nados para a estrutura sindical tal como conformada atualmente.
Isso porque, se por um lado o labor na era digital evidencia ausência
de proteção social aos “trabalhadores com ou sem carro que arcam com
as despesas dos seguros, gastos de manutenção (...), alimentação, limpe-
za, etc., enquanto o “aplicativo” se apropria do mais-valor agregado pelo
sobretrabalho” (ANTUNES, 2020, p. 12), de outro, impulsiona no tecido
social novas formas de “lutas sociais, de auto-organização e (...) de repre-
sentação” (ANTUNES, 2020, p. 22).
As experiências de mobilização de coletivos de entregadores de apli-
cativo em 1º, 25 de julho e 15 de setembro do ano de 2020, conhecidas como
Breque dos apps – bloqueio de entregas (DUTRA; FESTI, 2021), mediante
paralisação nacional das atividades, agitação nas ruas dos grandes centros
urbanos (com transmissão pela internet mesmo em um contexto de con-
tágio do Covid-19), ausência nas plataformas iFood, Uber Eats e Rappi, e a

210
Constitucionalismo Achado na Rua

conscientização dos consumidores para não utilizarem os aplicativos nos


dias articulados para interrupção do serviço (LOURENÇO FILHO, 2021)
é materialização de novas formas de lutas sociais, da auto-organização e da
representação destes trabalhadores e trabalhadoras.
E, diante de tais fatos, impossível não observar que referidas articula-
ções e paralisações coletivas por trabalhadores e trabalhadoras de diversos
coletivos forjadas no novo contexto laboral não perpassam pelo crivo do en-
quadramento da unicidade sindical e do critério de categoria profissional
para acontecer, pois indene de dúvidas que os entregadores e as entregado-
ras, em resistência à própria conjuntura de precarização laboral, culminam
por questionar à própria estrutura sindical do nosso ordenamento jurídico.
A luta social da classe trabalhadora reivindicou: i) a visibilidade so-
cial; ii) as condições mínimas de trabalho em perfeita confluência com a
concepção do Direito Fundamental ao Trabalho Digno (DELGADO, 2006)
ao pautar realidades de exploração e opressão de jovens trabalhadores, em
maioria, ante a redução da remuneração média de “R$ 500,00 mensais lí-
quidos” (DUTRA; FESTI, 2021, p. 121), as extenuantes jornadas de traba-
lho, a exposição aos riscos de acidentes, a ausência de distribuição de EPIs,
o assédio sexual dos clientes e representantes sobre as entregadoras de apli-
cativos, pondo em evidência o marcador do gênero no contexto laboral, a
gritante reivindicação ao alimento para os trabalhadores que são entrega-
dores de refeições para toda a sociedade (LOURENÇO FILHO, 2021); e iii)
o reconhecimento do trabalho de entrega como de suma importância para
o momento de isolamento social, principalmente.
Por esses contornos, fato é que a mobilização deste novo sujeito co-
letivo de direito (SOUZA JÚNIOR, 1990) rompeu o cotidiano de entregas
dos pedidos por aplicativo como forma de resistência à forma exploratória
da força laboral que banaliza condições mínimas de trabalho por meio
da prática da greve, no sentido compreendido por Viana (LOURENÇO
FILHO, 2021, p. 45 apud VIANA, 2009, p. 115). Digno de nota, é que tais
paralisações ocorreram durante o contexto pandêmico, no qual os servi-
ços de entrega a domicílio tornou-se atividade crucial para o momento de
contenção do contágio do Covid-19.
Diante desta conjuntura, cumpre repisar e ressaltar que a prática
da greve ocorreu independentemente da estrutura sindical, da unicidade

211
Constitucionalismo Achado na Rua

sindical, e do enquadramento formal dos entregadores e entregadoras en-


quanto categoria profissional.
A luta pôs em destaque: i) a efetivação do próprio princípio da Li-
berdade Sindical e seu desdobramento - Autonomia Sindical; e ii) de uma
outra forma de representação diversa da estrutura sindicalista, a partir da
experiência do trabalho precário que forjou o vínculo de solidariedade en-
tre os entregadores e entregadoras de aplicativo como classe trabalhadora
que reivindica proteção através da prática grevista (DUTRA; FESTI, 2021).
Além disso, e como já sinalizado acima, as reivindicações não se li-
mitaram às pautas típicas do contrato de trabalho formal. Nos repertórios,
precipuamente do coletivo dos “Entregadores Antifascistas”, houve junção
de denúncias e interpelações acerca da política autoritária e econômica do
governo federal à época do surto do Covid-19, assim como dos próprios
aplicativos (LOURENÇO FILHO, 2021).
Nesse panorama, o encontro entre o contexto pandêmico e a política
de austeridade provocou grandes impactos no seio social e foram os en-
tregadores e as entregadoras de aplicativo, enquanto classe trabalhadora
que assim se reconhece e de rosto juvenil em grande parte, que impuseram
voz para questionar os discursos negacionistas, neoliberais e fascistas que
pretendem não só a precarização do trabalho, do trabalhador e da traba-
lhadora, mas também do tecido social (DUTRA; FESTI, 2021).
Para além disso, os repertórios refletiram anseios de entregadores e
entregadoras por processos democráticos e condições laborais fora da pre-
cariedade, na busca da emancipação laboral.
Coadunando com Lourenço Filho (2021) tais repertórios ressaltam
a pertinência da greve política (LOURENÇO FILHO, 2021), seja pelo res-
paldo no texto constitucional, seja pela própria mobilização como “uma
prática que tem uma dimensão constituinte, de luta por reconhecimento
de condições mínimas de dignidade” (LOURENÇO FILHO, 2021, p. 17
apud PAIXÃO; LOURENÇO FILHO, 2020, p. 6) bem demonstrada pelas
reivindicações por “fornecimento de alimentação e instalações sanitárias”
(PAIXÃO; LOURENÇO FILHO, 2020, p. 6).
Essa dimensão constituinte enfatizada por Paixão (2020) no entendi-
mento de Lourenço Filho (2021) expressa diversos desdobramentos, entre
eles, a resistência dos entregadores “que se volta não apenas à afirmação
imediata de direitos na relação de trabalho, mas se projeta para o campo

212
Constitucionalismo Achado na Rua

democrático como espaço de reivindicação e participação política” (LOU-


RENÇO FILHO, 2021, p. 18).
Assim, o que se verifica de todo o apanhado teórico aqui feito no es-
forço de entrelaçar as mobilizações dos entregadores e das entregadoras
de aplicativo como interpelação da estrutura sindical é que esta classe tra-
balhadora, informal e resistente ao contexto de extrema precarização das
condições laborais e da super exploração do modo de produção capitalista,
efetivou o princípio constitucional da Liberdade Sindical, enquanto auto-
nomia para se constituírem sem a intervenção estatal, e reivindicou, por
meio da greve, condições de dignidade e de participação democrática e po-
lítica, sem contudo se valer da estrutura sindical corporativista para tanto,
a qual a atuação se resvala nos enquadramentos regulatórios da unicidade
sindical e de enquadramento sindical à base do critério de categoria.
A interpelação da estrutura sindical e da Liberdade Sindical, nesse
sentido, sugere que àquela é limitada e limitante deste, ao sustentar res-
quícios do sindicalismo corporativista. Tanto é, que a mobilização dos en-
tregadores e das entregadoras deu voz e vez para pautas que interessam
tanto às condições dignas de trabalho, assim como aos anseios de vontade
constituinte dos entregadores e das entregadoras por participação demo-
crática e política para afirmação dos direitos já conquistados e criação de
outros, à medida que os sujeitos sociais vão se dando conta das realidades
de opressão, exploração e espoliação do social.
Por esse raciocínio, a Liberdade Sindical, aqui defendida em sua am-
plitude, é “condição necessária para a afirmação democrática” (LOGUÉR-
CIO, 1993) como bem delineou as mobilizações coletivas dos entregadores
e das entregadoras de aplicativo.

4. O Constitucionalismo Achado na Rua para


encontro entre a realidade laboral dos trabalhadores e
trabalhadoras de aplicativo e a norma constitucional
Do cotejo entre esses dois aspectos abordados, quais sejam, os res-
quícios na estrutura sindical do modelo corporativista e a dinâmica rei-
vindicatória dos breques dos apps, que interpela a referida estrutura como

213
Constitucionalismo Achado na Rua

limitada, além da efetividade do próprio princípio constitucional da Liber-


dade Sindical, sugere o percurso analítico que desemboque na construção
de um Constitucionalismo Achado na Rua.
De antemão, cumpre ressaltar que o objetivo do Constitucionalismo
em si não é neutralizar as tensões políticas. Pelo contrário, o seu papel é
justamente regular democraticamente essas disputas. O entrincheiramen-
to dos direitos na Constituição, para os donos do poder, sempre represen-
tou uma ameaça aos seus privilégios e um entrave à expansão da economia
de mercado. É previsível, portanto, que a Constituição esteja sob ataque
pela retomada conservadora.
É nesse contexto onde está inserida nossa reflexão sobre a necessidade
de resgatar os fundamentos de um Constitucionalismo Achado na Rua, sendo
fundamental pensar uma teoria desde baixo que agregue elementos da mobi-
lização popular com instrumentos de intensa participação democrática.2
Pela teoria crítica do Direito Achado na Rua, a qual epistemologica-
mente posiciona o direito como elemento para emancipação social (SOU-
ZA JÚNIOR, 2021) é possível atentar para a noção de sujeito de direito
como aquele que não só reivindica a titularidade do direito, mas a titulari-
dade atrelada ao espírito libertador de condições espoliadoras e explorado-
ras (SOUZA JÚNIOR, 2021). No contexto dos entregadores e das entrega-
doras por aplicativos as políticas neoliberais, de austeridade e capitalistas
surrupiam o direito ao trabalho em condições dignas.
Os Breques dos apps que emergiu no contexto pandêmico e de trans-
bordamento dos limites da exploração do trabalho que não resguardou,
sequer, direitos básicos aos trabalhadores e trabalhadoras como alimenta-
ção, higiene e aparato protetivo contra o contágio do Covid-19, é exemplo
ilustrativo de uma articulação pelo sujeito coletivo de direito (SOUZA JÚ-
NIOR, 1990) em prol das amarras de exploração pela lógica capital.
Para além da reivindicação de condições básicas de trabalho, a prática
da greve por meio dos Breques interpelou, ainda, a titularidade da repre-
sentação coletiva fora dos moldes estabelecidos no ordenamento jurídico
brasileiro, como já assinalado.
Assim, a reivindicação dos entregadores e das entregadoras não se
limitou às condições de trabalho. Houve e há anseio, também, à liberdade

2 O Direito Achado na Rua, v. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, 262.

214
Constitucionalismo Achado na Rua

de organização coletiva ao ponto de disputar o padrão de regulação da


representação (estrutura sindical), que como atualmente configurada não
comporta as experiências de articulação e de greve dos entregadores e das
entregadoras de aplicativo3.
Tal questão, demonstra, em certa medida, a ausência de entrelace
entre o direito posto normativamente que regula a estrutura sindical, a
realidade social de condição laboral desta classe e a articulação coletiva
construída a partir do vínculo de solidariedade provocado pela realidade
de exploração, que por sua vez deflagrou movimentos no social como de-
núncia e anseio por libertação dessas condições de exploração.
Assim, pertinente aventar que tais movimentos coletivos evidenciam
a permanência da disputa do sentido da norma constituinte (SOUZA JÚ-
NIOR, 2021). Isso porque, ainda que do texto constitucional se extraia
respaldo para condições dignas de trabalho e de liberdade sindical, a di-
nâmica econômica e política forja combinações que denotam realidades
de extrema exploração do trabalho humano, assim como uma estrutura
sindical que limita o alcance da amplitude do próprio princípio constitu-
cional da Liberdade Sindical pelos perfis regulatórios da unicidade e do
enquadramento sindical à base do critério por categoria. Por certo, a di-
nâmica de articulação dos entregadores e das entregadoras de aplicativo
expressou ação que ultrapassa os limites da regulação jurídica quanto à
projeção da liberdade sindical, por exemplo.
Dessa forma, de suma importância trabalhar as premissas do Direito
Achado na Rua quais sejam, i) determinação dos espaços social e político das
experiências sociais; ii) reconhecimento dos protagonistas, dinâmicas, sujeitos
coletivos de direito formados; e iii) os achados que confrontam a lógica do-
minante e que forjam categorias para o direito fruto da luta social, para com-
preensão de toda dimensão da ação dos entregadores e das entregadoras.
Dadas essas bases teóricas, importante analisar os Breques dos apps
como coletividade que ao se expressar no espaço público para fins de visi-
bilidade social e política protagoniza e dinamiza, enquanto sujeito coletivo

3 Para ilustrar a permanência desta disputa os entregadores de aplicativos anunciaram nova


greve para o dia 25/01/2023, o que forçou o Governo Lula a propor uma reunião com os líderes
do movimento para discussão da regulamentação da categoria, conforme matéria jornalística
disponível em: https://odia.ig.com.br/economia/2023/01/6558193-entregadores-de-aplicativos-
suspendem-greve-apos-reforco-da-promessa-de-lula.html. Acesso em 02/03/2023

215
Constitucionalismo Achado na Rua

de direito, processos de luta frente à extrema precarização e exploração do


trabalho, dando voz e materialidade ao instituto da greve e à Liberdade
Sindical de forma ampla, o que intui a necessidade da concepção do Cons-
titucionalismo Achado na Rua para sedimentar caminho por processos
democráticos e um encontro entre a norma constituinte e o anseio liberta-
dor da classe trabalhadora em sua diversidade e totalidade.
Para Carvalho Neto “A democracia só é democrática quando constitu-
cionalmente construída, a Constituição só é constitucional quando demo-
crática” (2021, p. 232). Para ser democrática, é preciso enxergar uma “teoria
desde baixo” (LEONEL JÚNIOR; BRANDÃO; MARQUES, 2021, p. 262)
em que se possa agregar elementos de mobilização popular como forma de
participação democrática. Isto, para que seja possível que o sujeito oprimido
enxergue na norma o reflexo das suas pretensões coletivas emancipatórias.
No mesmo sentido, se deve jogar luz aos abusos institucionais sendo
preciso, assim, negá-los como democracia, direito e mesmo como consti-
tucional. Como visto na dinâmica do Breque dos Apps, o Estado não os
enxerga como sindicato por limitações fundadas pelo corporativismo da
unicidade sindical e definição de categoria, extirpando a sua participação
na construção de sua própria emancipação.
O Constitucionalismo Achado na Rua reconhece que as tensões po-
líticas são inerentes à convivência social, contudo, é necessária a “regu-
lamentação democrática das disputas” (LEONEL JÚNIOR; BRANDÃO;
MARQUES, 2021, p. 262). Ao assim fazê-lo, os trabalhadores e trabalhado-
ras de aplicativo poderiam se amparar no Direito como elemento emanci-
patório, dando sentido hermenêutico próprio à Constituição.
Ademais, ao seguirmos pela corrente Lyriana e realizarmos o encon-
tro do Constitucionalismo Achado na Rua com a realidade laboral, inevi-
tavelmente transcorreremos em uma estrutura sindical livre que possibi-
lite que a classe trabalhadora defina a sua própria natureza jurídica, sua
forma de organização, seus meios de reivindicação e que tipo de pauta irá
postular. Não se trata apenas de Liberdade Sindical, mas de plena autono-
mia sindical que possibilite dar novas respostas civilizatórias ao avanço
neoliberal e à pauta conservadora da extrema direita.

216
Constitucionalismo Achado na Rua

5. Considerações finais
A dinâmica coletiva dos entregadores e entregadoras de aplicativo é
recente, mas potente do ponto de vista analítico. A emergência do sujei-
to coletivo de direito, a disputa regulatória pela representação coletiva, as
pautas políticas, as pautas de gênero, de discriminação racial, de pobreza,
entre outras opressões, apontam o quanto esta classe trabalhadora resiste e
luta ao contexto de opressão e exploração capitalista.
E não é só isso, ela disputa espaços regulatórios da representação co-
letiva e institucional ao dar visibilidade à sociedade da realidade de preca-
rização do trabalho e ao confrontar as estruturas institucionais pelas suas
paralisações coletivas.
Tal conjuntura reforça a ideia que a luta social é algo permanente, ela
nunca cessa diante dos arranjos políticos e jurídicos que conformam pa-
drões regulatórios excludentes e opressores não só de trabalhadoras e traba-
lhadores urbanos e rurais, mas também das mulheres, da população negra,
dos povos originários, da comunidade LGBTQIAP+, entre tantas outras.
Por essa razão, a leitura crítica do Direito, pelas premissas teóricas do
Direito Achado na Rua, e a reivindicação de vontade constituinte, pautada
no Constitucionalismo Achado na Rua como linha condutora, deve ser a
estrutura necessária para o diálogo democrático de emancipação social.

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219
Eixo IV – constitucionalismo e democracia

221
Entre os escombros do nosso tempo e o
Constitucionalismo Achado na Rua

Luiz Felipe de Oliveira Pinheiro Veras

1. Introdução
Refletir sobre o constitucionalismo na contemporaneidade é, sem dú-
vida, um exercício legítimo e indispensável. A expressão foi, ao longo dos
tempos, apropriada por diferentes grupos e, evidentemente, alberga sen-
tidos, formas, intenções e projetos societários distintos. Entretanto, con-
tinua sendo uma temática cada vez mais emergente nas agendas de todos
aqueles que se interessam pelo futuro da sociedade, melhor dizendo, da
vida na terra. Sobretudo, após as experiências golpistas vividas no século
XXI, sem contar os inúmeros conflitos étnicos e religiosos espalhados por
todo o Brasil e da crescente exclusão social e jurídica de grandes contin-
gentes populacionais. Estes são fenômenos que tentam calar os sujeitos,
suprimindo sua capacidade de sentir, pensar e de agir politicamente. En-
tretanto, apesar das interdições, os sujeitos individuais e coletivos parecem
resistir e lutar pela instalação de mecanismos que possibilitem a constru-
ção de um Constitucionalismo Achado na Rua.
No imaginário popular, constitucionalismo, via de regra, está asso-
ciada à presença de uma lei suprema, lida e interpretada por juízes únicos
em um Supremo lugar. Porém, esse é apenas uma visão superficial e leiga
que, por si só, não expressa o real conteúdo do dito constitucionalismo.
Logo, surge a necessidade de qualificar o termo, caso contrário, pode-se
contribuir para a banalização e o esvaziamento de seu significado. Logo,
em um mundo cada vez mais pragmático, é preciso saber, de que constitu-
cionalismo se está falando, bem como distinguir entre a forma, os proce-
dimentos, e o seu conteúdo.
As características de uma Constituição são determinadas, em grande
parte, pela configuração e pelos interesses dos grupos sociais que apoiaram a

223
Constitucionalismo Achado na Rua

implementação da norma fundamental. Porém, em numa sociedade demo-


crática, de composição plural e diversa, que abarca vários conceitos de justi-
ça, que tutela diversos interesses e reivindicações, que garante, a alternância
e o exercício do poder, com projetos políticos contraditórios até, a Constitui-
ção não pode ser, a manifestação de uma certa concepção de sociedade, de
um certo projeto político hegemônico, mais sim, um espaço normativo que
garante uma maior participação e deliberação política popular, que alberga
um direito achado na rua. Não pode ser concebido de outra maneira.
Neste sentido, nos ensina o ilustre professor Doutor José Geraldo
Sousa Junior:

No percurso teórico-conceitual e político da abordagem aqui pro-


posta denominamos Constitucionalismo achado na Rua uma prá-
tica de construção de direitos que expresse essa decolonialidade do
direito. Essa proposta emerge no âmbito dos estudos e pesquisas
desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua1
para compreender por poder constituinte a emergência histórica de
sujeitos coletivos dotados de legitimidade política e capacidade so-
cial suficientes para irromper violações sistemáticas e instituir novas
condições concretas de garantia e exercício de direitos, expressando-
-se com capacidade instituinte cuja legitimidade é recolhida da luta
social (ESCRIVÃO FILHO e SOUSA JÚNIOR, 2016, p. 123-150).

Deste modo, este pluralismo e diversidade que caracterizam a sociedade


contemporânea, podem conduzir a implementação de um Constitucionalis-
mo Achado na Rua, que permitirá uma superação progressiva dos elementos
do constitucionalismo clássico e suas derivações, para tornar-se um elemento
garantidor, que permite a participação ativa e se coloque como defensor de um
“direito derivado da ação dos movimentos sociais por meio de uma perspecti-
va que o entende como uma legítima organização social da liberdade”2.

1 Para uma mais completa visualização do Grupo de Pesquisa e suas linhas de investigação,
entre elas O Constitucionalismo Achado na Rua, conferir o espelho: dgp.cnpq.br/dgp/
espelhogrupo/9125279471352609.
2 https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_Achado_na_Rua

224
Constitucionalismo Achado na Rua

2. Constitucionalismos: do latino-americano à rua


O constitucionalismo é um tema complexo que envolve o estudo e a aná-
lise das constituições, suas normas e princípios. É um conceito fundamental
para entender a organização do poder em um Estado democrático de direito.
Como afirma José Joaquim Gomes Canotilho em seu manual Direito
Constitucional e Teoria da Constituição3:

“(...) não existe hoje uma situação clássica em sede da teoria da


Constituição, entendendo-se por situação clássica aquela em que
se verifica o acordo duradouro em termos de categorias teóricas,
aparelhos conceituais e métodos de conhecimento. Decorre-se dis-
to, o fato de que nos encontramos sem uma verdade dita pura, vi-
venciamos ao contrário uma divergência profunda quer quanto aos
problemas constitucionais da contemporaneidade quer quanto às
respostas dadas a esses problemas”.

Assim, é possível encontrarmos diversos exemplos de constituciona-


lismos na atualidade, tais como:
O constitucionalismo latino-americano, que é um movimento que
surgiu nas últimas décadas, em resposta às lutas sociais e políticas que
ocorreram em todo o continente latino. Esse movimento tem como ob-
jetivo transformar as constituições dos países da América Latina em ins-
trumentos mais efetivos para a promoção dos direitos humanos, da justiça
social e da democracia.
Baseia-se em uma abordagem crítica do direito, que busca questionar
as relações de poder existentes na sociedade e tornar as leis mais justas e
igualitárias. Diferenciando-se bastante do constitucionalismo clássico, que
se concentra principalmente na estrutura e no funcionamento das institui-
ções políticas do Estado.
Um dos aspectos centrais do constitucionalismo latino-americano é
o reconhecimento da diversidade cultural e étnica da região. Isso se reflete
na inclusão de direitos coletivos e de povos indígenas nas constituições de
vários países, como México, Bolívia, Equador e Peru. Esses direitos reconhe-

3 J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra:


Almedina, 2003, p. 1333

225
Constitucionalismo Achado na Rua

cem a importância das culturas e tradições ancestrais dos povos indígenas e


seu papel na construção de uma sociedade mais justa e democrática.
Além disso, enfatiza-se a importância dos direitos sociais e econô-
micos, como o direito à educação, à saúde, à moradia e ao trabalho dig-
no. Sendo estes vistos como fundamentais para garantir a igualdade de
oportunidades e reduzir as desigualdades sociais e econômicas da região.
Outro aspecto importante do constitucionalismo latino, é a participação
cidadã na tomada de decisões políticas. A lei básica de muitos países lati-
nos, incluem mecanismos de democracia participativa, como o orçamento
participativo e as consultas populares. Esses mecanismos permitem que os
cidadãos tenham voz nas decisões que afetam suas vidas e comunidades.
O constitucionalismo latino-americano também se preocupa com a
proteção dos direitos humanos e a luta contra a impunidade. Isso é espe-
cialmente importante em países que sofreram com violações graves dos
direitos humanos no passado, como Argentina, Chile e Brasil. As cons-
tituições desses países incluem disposições para garantir a justiça para as
vítimas dessas violações e responsabilizar os perpetradores.
Há também o Constitucionalismo Decolonial, que é uma abordagem
crítica e transformadora que questiona o legado colonial presente no direi-
to e nas constituições dos países da América Latina. Essa abordagem surge
como uma resposta à necessidade de superar a lógica colonial que perpetua
a desigualdade e a exclusão social em nossas sociedades.
Para entender este conceito, é preciso compreender que a colonização
trouxe consigo uma série de práticas e valores que são contrários à democra-
cia e à justiça social. A colonização foi marcada pela exploração dos povos
e das terras, pela imposição de uma cultura e de uma religião hegemônica e
pela negação da autonomia e da diversidade cultural dos povos originários.
Assim, propõe uma crítica radical à forma como o direito e a constitui-
ção foram construídos a partir dessa lógica colonial. Para isso, é necessário
desconstruir os conceitos e as categorias jurídicas que foram impostos pelos
colonizadores, bem como promover a incorporação das práticas e valores dos
povos originários e afrodescendentes em nossa legislação e constituição.
Essa abordagem crítica do Constitucionalismo Decolonial busca pro-
mover a transformação das estruturas sociais e políticas que perpetuam a
desigualdade e a exclusão social em nossas sociedades. Nesse sentido, é fun-
damental que a constituição seja entendida como um processo contínuo de

226
Constitucionalismo Achado na Rua

construção e transformação, que deve levar em consideração as demandas e as


necessidades das diferentes comunidades e povos que compõem a sociedade.
Algumas das principais propostas do Constitucionalismo Decolonial in-
cluem a promoção da pluralidade cultural e do reconhecimento dos direitos
dos povos originários e afrodescendentes, a incorporação da perspectiva de
gênero e da diversidade sexual na legislação e na constituição, a promoção da
igualdade e da justiça social como valores fundamentais do Estado e a luta
contra o racismo, o machismo e todas as formas de opressão.
Outra importante concepção, é a de Constitucionalismo Achado na
Rua, que como conceito, foi melhor desenvolvido pelo jurista e professor
José Geraldo de Sousa Junior, procurando promover uma maior participa-
ção popular na elaboração e interpretação das Constituições.
Segundo o eminente autor, o constitucionalismo achado na rua refe-
re-se às práticas informais e formais de resistência e luta dos cidadãos pela
defesa de seus direitos e pela promoção da justiça social. Essas práticas
surgem na sociedade civil, fora dos espaços institucionais tradicionais, e
podem incluir desde manifestações públicas até ações de solidariedade co-
munitária (SOUSA JUNIOR, 2016).
Assim, o constitucionalismo achado na rua seria uma forma de pres-
são popular sobre as instituições políticas, que muitas vezes se encontram
distantes dos interesses e necessidades da população, afinal, a participação
popular no processo constitucional pode ser vista como uma forma de corri-
gir deficiências e garantir uma maior efetividade dos direitos fundamentais.
Este modelo de constitucionalismo, portanto, terá um papel impor-
tante na construção de uma sociedade mais democrática e justa, ao am-
pliar a participação popular e promover uma maior inclusão social, con-
tribuindo para a construção de uma cultura constitucional mais forte e
consciente, na qual os cidadãos possam se reconhecer como sujeitos ativos
na defesa de seus direitos e na promoção do bem comum.
É importante ressaltar que o constitucionalismo achado na rua não se
opõe às instituições políticas e jurídicas, mas, busca ampliar o seu alcance
e efetividade por meio da participação popular. Desse modo, ele pode ser
visto como uma complementação necessária ao constitucionalismo formal,
que se concentra nas regras e procedimentos jurídicos estabelecidos pelas
instituições e pela burocracia, representando uma escolha importante, ao
ampliar o alcance e a efetividade dos direitos fundamentais na sociedade.

227
Constitucionalismo Achado na Rua

Em suma, o constitucionalismo achado na rua é uma expressão que


pode ser utilizada para designar a aplicação prática dos princípios consti-
tucionais no dia a dia. A rua é um espaço público, que deve ser protegido
pelo Estado e que deve garantir o pleno exercício dos direitos fundamen-
tais. Dessa forma, como a “rua” é organizada e gerenciada pelos cidadãos,
pode revelar muito sobre o constitucionalismo em uma sociedade.

3. As lições do momento
Como todos nós já sabemos, o constitucionalismo contemporâneo é
um modelo de organização política e jurídica que busca garantir a prote-
ção dos direitos fundamentais dos cidadãos é uma mínima organização
estatal, por meio de uma Carta Constitucional. Embora esse modelo tenha
se mostrado eficaz em muitos países, em outros (como o Brasil) ele tem
falhado em garantir a proteção mínima, quiçá a básica, dos direitos funda-
mentais. Aqui, vamos explorar algumas das razões pelas quais o constitu-
cionalismo pode ser falho hoje em dia.
Em primeiro lugar, destaca-se que muitas vezes a Constituição é inter-
pretada de forma restritiva pelos órgãos encarregados de aplicá-la. Isso ocorre
porque esses órgãos, em geral, são compostos por pessoas que têm uma for-
mação jurídica e cultural específica, é que tomam decisão como ilhas isoladas,
o que pode limitar sua capacidade de entender e lidar com as questões sociais
e políticas mais amplas, como ver, conhecer e aplicar um Direito Achado na
Rua. Dessa forma, a interpretação da Constituição acaba sendo feita de forma
burocrática, formalista e muitas vezes descolada da realidade social.
Entre aplausos, críticas e objeções, o controle interpretativo tem se
expandido no contexto constitucional brasileiro. Enquanto alguns consti-
tucionalistas4 compreendem essa expansão da jurisdição cognitiva consti-
tucional e do papel da Corte Constitucional como um avanço em termos
de proteção da Constituição, outros5 veem nela um verdadeiro retrocesso
em termos democráticos e de efetividade.

4 Nesse sentido, por exemplo, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo
Gustavo Gonet Branco (Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009).
5 Conrado Hübner Mendes defende a ideia de que “a revisão judicial não garante a supremacia
da Constituição, mas da Corte. Ou melhor, da leitura que a Corte faz da Constituição.” E

228
Constitucionalismo Achado na Rua

Outra razão pela qual o constitucionalismo moderno pode ser falho é


a falta de efetividade6 das normas constitucionais. Muitas vezes, as Cons-
tituições são dotadas de normas que garantem direitos fundamentais, mas
essas normas não são efetivamente aplicadas na prática. Isso pode ocorrer
por vários motivos, como falta de recursos, de vontade política ou de uma
cultura institucional forte que promova a proteção dos direitos humanos.
Destaca-se em especial, que a morosidade na tramitação dos proces-
sos, a falta de recursos para o sistema judiciário e a ausência de mecanis-
mos eficientes de execução das decisões judiciais são alguns dos fatores
que contribuem para a ineficácia das normas constitucionais, ademais, há
uma enorme falta de vontade política dos governantes e dos legisladores
em implementar as políticas públicas previstas na Constituição. Muitas
vezes, as leis e políticas públicas são criadas, mas não são adequadamente
implementadas ou financiadas, o que prejudica a efetivação dos direitos
previstos nas cartas políticas dos Estados.
Além disso, há um problema cultural em relação à importância das nor-
mas constitucionais. Muitas vezes, tais normas são vistas como meras declara-
ções de intenção, sem eficácia concreta. Isso gera uma cultura de descaso com
a Constituição e de impunidade para aqueles que violam seus preceitos.
Outro fator que contribui para a falha do constitucionalismo moderno
é a influência dos interesses políticos e econômicos no processo de elabora-
ção e aplicação da Constituição. Em muitos países, as elites políticas e econô-
micas exercem uma influência significativa na elaboração da Constituição e
na nomeação dos juízes e demais órgãos encarregados de aplicá-la. Isso pode
levar a uma interpretação seletiva da Constituição, que prioriza os interesses
das elites em detrimento dos direitos fundamentais dos cidadãos, em detri-
mento de um Direito e de uma Constituição Achado e Vivida na Rua.

continua: “Supremacia da Constituição é um ideal político substantivo. Requer que alguém


o operacionalize. Deve-se pensar, então, qual instituição merece supremacia decisória,
a prerrogativa de dizer a última palavra” (MENDES, Conrado Hübner. Controle de
constitucionalidade e democracia. Rio de Janeiro : Elsevier, 2008. p. 159).
6 Sua efetividade depende da adequação do conhecimento jurídico à ordem e anseios sociais
modernos. Tal conhecimento adequado é, em princípio, alcançável.” (BAUMAN, Zygmunt.
Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. (trad. Renato
Aguiar). Rio de Janeiro : Zahar, 2010. p. 17/18)

229
Constitucionalismo Achado na Rua

Por fim, é importante mencionar que o constitucionalismo pode ser


falho por causa da falta de participação popular no processo constitucio-
nal. Em muitos países, a elaboração e a interpretação da Constituição são
realizadas de forma exclusiva pelos órgãos institucionais, sem a participa-
ção efetiva da sociedade civil. Isso pode levar a uma falta de legitimidade
e representatividade das normas constitucionais, que não refletem os an-
seios e necessidades reais da população.
Para superar esses obstáculos, é preciso investir em uma reforma do
sistema constitucional brasileiro, com o objetivo de torná-lo mais ágil, po-
pular, eficiente e participativo, sendo necessário promover uma mudança
na cultura jurídica do Brasil, de forma a aumentar a conscientização sobre
a importância da constituição e seu papel na proteção dos direitos. Enfim,
codificar uma constituinte feita pelo povo, para o povo e com o povo, um
verdadeiro constitucionalismo achado na rua.
A par disto, algumas lições importantes podem ser aprendidas, no
intuito de pensarmos um Constitucionalismo Achado na Rua:

1. A constituição não é apenas um documento jurídico, mas sim


um projeto político. As constituições brasileiras foram ela-
boradas em contextos de luta contra regimes autoritários (na
sua maioria), e refletem a aspiração de construir sociedades
mais justas e democráticas. Por isso, é importante entender
que a constituição é um projeto político que deve ser constan-
temente defendido e aprimorado.
2. A participação popular é fundamental na elaboração e na
aplicação de um Constitucionalismo Achado na Rua, deven-
do ele ser construído de forma participativa, a fim de refle-
tir os valores e as necessidades da sociedade. Além disso, a
participação popular é fundamental, a fim de garantir que os
direitos nela previstos sejam efetivamente respeitados.
3. No constitucionalismo Achado na Rua, a interpretação cons-
titucional tem de ser feita de forma dinâmica, de acordo com
as transformações sociais. As constituições são elaboradas em
contextos históricos específicos, mas devem ser interpretadas

230
Constitucionalismo Achado na Rua

de forma dinâmica, a fim de refletir as transformações sociais


e políticas que ocorrem ao longo do tempo.
4. O Constitucionalismo Achado na Rua deve ser uma ferra-
menta de promoção da justiça social. Por isso, é fundamental
que a carta constitucional seja aplicada de forma a garantir os
direitos fundamentais das pessoas, bem como a garantia de
igualdade e equidade entre todos os cidadãos.
5. O constitucionalismo deve ser visto como um processo con-
tínuo de construção e aprimoramento. O Constitucionalismo
Achado na Rua deve esboçar documentos que reflitam o con-
texto histórico e político em que foram elaborados, mas de-
vem ser aprimoradas constantemente. Por isso, é fundamen-
tal que haja um processo de revisão e atualização da consti-
tuição, a fim de refletir as transformações sociais e políticas
que ocorrem ao longo do tempo.

4. O multiverso do direito e o
futuro do constitucionalismo
Shakespeare, profeticamente a tempos já nos dizia, em uma de suas
obras7 clássicas, quando Hamlet se dirigindo a Horácio fala: “Há mais coisas
entre o céu e a terra do que supõe sua vã filosofia”. Baseado nesta concep-
ção surge o multiverso do direito, uma teoria que se baseia na ideia de que
existem múltiplas possibilidades de interpretação e aplicação do direito em
um mesmo caso. Ou seja, a partir de uma mesma situação fática, diferentes
juristas podem chegar a conclusões distintas, com base em suas perspectivas
teóricas, visões de mundo, experiências, cultura e outros fatores.
Essa teoria se opõe ao positivismo jurídico, que defende a existência
de uma única resposta correta para cada caso, determinada pela lei ou pela
jurisprudência. Porém, os defensores do multiverso do direito, argumen-
tam que sua perspectiva leva em conta a complexidade da realidade social

7 Lins, M. I. A. (2002). O mistério de Hamlet. Natureza Humana, 4(1), 33-57


Shakespeare, W. (2003). Hamlet São Paulo: Planeta DeAgostini. (Trabalho original publicado em 1601)

231
Constitucionalismo Achado na Rua

e as diferentes formas como as pessoas interpretam e vivenciam o direito


em suas vidas cotidianas, sendo que o debate em torno do multiverso é im-
portante para questionar pressupostos e estimular a reflexão crítica sobre a
natureza do direito e o papel dos juristas na sociedade.
Assim, pode-se inferir do enunciado, que o direito e o constituciona-
lismo estão em constante evolução e adaptação às mudanças sociais, po-
líticas e tecnológicas, sendo possível identificar algumas tendências que
moldarão o futuro desses conhecimentos.
Uma dessas tendências é a globalização do direito e do constituciona-
lismo. Com a crescente interdependência entre os países, as normas e prin-
cípios jurídicos estão cada vez mais transcendendo fronteiras nacionais.
Isso pode ser observado, por exemplo, na criação de tribunais internacio-
nais e na adesão de países a tratados e convenções internacionais.
Outra tendência é o uso crescente da tecnologia na prática do direito
e do constitucionalismo. A inteligência artificial, a automação e a block-
chain são exemplos de tecnologias que podem ser utilizadas para aumen-
tar a eficiência e a transparência do sistema jurídico. Além disso, a tecnolo-
gia também pode ser utilizada para facilitar o acesso à justiça, por meio de
plataformas online de resolução de conflitos e de serviços jurídicos.
A proteção dos direitos humanos também continuará a ser uma preo-
cupação central do constitucionalismo. Com a crescente conscientização
sobre questões como a igualdade de gênero, a diversidade e a inclusão, é
provável que os sistemas jurídicos se tornem mais sensíveis a essas ques-
tões e adotem medidas para garantir a sua proteção.
A par disto, é necessário um conjunto de ações e iniciativas que pos-
sam levar à adequação do sistema constitucional (em especial) às necessi-
dades e realidades cidadãs e sociais atuais. Algumas medidas podem con-
tribuir para sua modernização, por exemplo:

▶ Reformas legais e constitucionais: atualizando a constitui-


ção existente e criando novas leis que abordem questões
emergentes e atuais.
▶ Utilização de tecnologia: incorporação de tecnologia na prá-
tica jurídica para tornar o processo mais eficiente e acessível.

232
Constitucionalismo Achado na Rua

▶ Educação jurídica atualizada: investimento em formação e ca-


pacitação dos profissionais do direito para que estejam atuali-
zados em relação às novas molduras jurídicas e as tecnologias.
▶ Participação popular: inclusão da população no processo de
modernização do direito, por meio de consultas públicas, au-
diências e outras formas de participação.
▶ Harmonização do direito internacional: trabalhar para a har-
monização das leis e regulamentos internacionais, no intuito
de garantir maior eficácia e coerência no sistema jurídico glo-
bal (tendência atual do direito como um todo).
▶ Desenvolvimento de alternativas para resolução de conflitos: fo-
mentar a utilização de meios alternativos de resolução de con-
flitos, como a mediação e arbitragem, para descongestionar o
judiciário e tornar a solução de conflitos mais rápida e acessível.

Essas são algumas medidas que podem contribuir para a moderniza-


ção do direito constitucional com fins de instalar um Constitucionalismo
Achado na Rua, mas é importante ressaltar, que o processo de moderni-
zação é contínuo e deve ser adaptado às necessidades e realidades de cada
sociedade, sendo importante destacar que o direito e o constitucionalismo
sempre serão moldados pelas mudanças sociais e políticas. Assim, é difícil
prever com precisão o futuro dessas áreas, mas é certo que elas continua-
rão a evoluir e se adaptar às demandas da sociedade.

5. Considerações finais
O direito à informação é um direito humano, um componente chave
do direito à liberdade de pensamento e expressão. Consistindo no direito
da pessoa de buscar e receber informações em poder de órgãos, entidades
e empresas públicas, exceto nos casos onde a informação seja classificada
como segredo de Estado ou de acesso restrito pela Constituição. O direito à
informação é um direito fundamental, pois, para o pleno desenvolvimento
de uma sociedade democrática e transparente, seu exercício é vital para a
responsabilização das autoridades, sendo um direito que multiplica outros

233
Constitucionalismo Achado na Rua

direitos, mas, para isso, é necessário que possamos obter, sem restrições, as
informações que avaliarmos necessárias.
Como vimos, o desenvolvimento efetivo do conceito de “Constituciona-
lismo Achado na Rua” foi melhor esboçado pelo professor José Geraldo, e re-
fere-se a um tipo de Constitucionalismo que não é criado a partir das institui-
ções estatais, mas sim a partir da luta dos movimentos sociais e da sociedade
civil organizada. Trata-se de uma forma de reconhecer que a Constituição não
é algo dado, mas sim algo que é construído por meio das relações sociais.
Para sua implantação, será preciso antes de mais nada reconhecer a
sua importância e legitimidade. Isso implica em um compromisso político
e social em defesa desse direito, que deve ser construído a partir do diálogo
entre os movimentos sociais e as instituições estatais.
Ademais, o processo de implantação de um Constitucionalismo
Achado na Rua é complexo e envolve diversas etapas. Em primeiro lugar,
é necessário que o direito seja reconhecido pela sociedade e pelos órgãos
responsáveis pela sua aplicação. Para isso, é importante que haja uma mo-
bilização social em torno do tema, com a realização de manifestações, au-
diências públicas, debates e outras formas de atuação social.
Em seguida, é necessário que o Constitucionalismo Achado na Rua seja
efetivamente implementado e incorporado ao ordenamento jurídico. Isso
pode ser feito por meio de uma nova constituinte, da criação paulatina de leis
ou por meio de sucessivas decisões judiciais que reconheçam o direito como
válido e legítimo. Para que isso aconteça, é importante que os movimentos
sociais tenham acesso aos órgãos responsáveis pela criação e aplicação das
leis, como o Congresso Nacional, o Ministério Público e o Poder Judiciário.
Por fim, é preciso garantir a efetividade do Constitucionalismo Acha-
do na Rua. Isso significa que o direito deve ser aplicado na prática, de for-
ma a beneficiar as pessoas que dele necessitam. Para isso, é importante
que haja uma fiscalização efetiva por parte dos órgãos responsáveis pela
aplicação das leis, bem como uma conscientização da sociedade em geral
sobre a importância desse direito.
Implantar um Constitucionalismo Achado na Rua não é um processo
fácil, e requer um compromisso político e social por parte de todos os en-
volvidos. No entanto, trata-se de um processo essencial para a construção
de uma sociedade mais justa e democrática, que reconheça a importância
da participação social na construção do direito.

234
Constitucionalismo Achado na Rua

Referências

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Constitucionalismo Achado na Rua

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TOURAINE, Alain. O que é democracia? Petrópolis. Vozes, 1996.

236
Das Manifestações de Junho de 2013
à intentona de 8 de janeiro:
breve análise sob a perspectiva
d´O Constitucionalismo Achado na Rua1

Aderruan Tavares

1. Introdução: o que se esperar de uma Constituição


Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
(Carlos Drummond de Andrade)

Toda Constituição é uma grande aposta no futuro. E, por isso, possui


funções estruturais e metafísicas na sociedade, pois deve ser mais que uma
ideia e mais que um texto. A Constituição, então, é vista como uma Cons-
tituição viva, que nada mais é do que uma estrutura organizacional política
e jurídica que permite incorporar continuamente pautas democráticas, com
o fim de se adequar ao seu tempo. Para James Tully, a Constituição deve ser
concebida como o resultado de um permanente diálogo intercultural, em que
os cidadãos põem à mesa as suas formas de organização, que serão canaliza-
das constitucionalmente pelo reconhecimento mútuo, pelo consentimento e

1 Artigo produzido como requisito para aprovação do para aprovação na disciplina “O Direito
Achado na Rua” do Prof. José Geraldo de Sousa Junior, no Programa de Pós-Graduação em
Direito da UnB. A maioria das ideias desenvolvidas neste texto, após o devido lapidamento e
maior reflexão teórica, fará parte da tese final de doutoramento, que abordará o patriotismo
constitucional voltado à realidade brasileira, partindo dos requisitos teorizados por Habermas
de “memória” e “militância democrática”.

237
Constitucionalismo Achado na Rua

pela continuidade cultural2. Assim, a Constituição viva não é nem apenas uma
Constituição em concreto e nem apenas uma Constituição em abstrato.
Caso contrário, se a Constituição não fosse capaz de ser texto e rea-
lidade, estrutura organizada e abertura à irregularidade social, para Frie-
drich Müller, a concretização da Constituição não seria plenamente racio-
nalizada, uma vez que seria enviesada, deixando de lado a complexidade
dos fenômenos jurídicos e extrajurídicos e a relação que eles encontram na
Constituição3. Não por outro motivo, Marcelo Neves destaca que “quanto
maior é a complexidade social, tornam-se mais intensas as divergências
entre as expectativas em torno do texto constitucional e vai mais ampla-
mente o seu significado no âmbito da interpretação e aplicação”4. A Cons-
tituição, ao tempo que é fato histórico e texto escrito, é o vínculo autocon-
cedido pela própria comunidade, com o fim de preservar as suas unidades
jurídicas reconhecidas e de se abrir para o futuro5.
Para Konrad Hesse, “a Constituição de uma comunidade política
concreta, seu conteúdo, a singularidade de suas normas e os seus proble-
mas hão de ser compreendidos de uma perspectiva histórica”; para ele
“Toda Constituição é Constituição no tempo”6. No mesmo sentido, Jorge
Miranda afirma que “a modificação das Constituições é fenômeno inelutá-
vel da vida jurídica, imposta pela tensão com a realidade constitucional e
pela necessidade de efetividade que as tem de marcar. Mais do que modifi-
cáveis, as Constituições são modificadas”7.
Nas sociedades complexas e multiculturais, apenas a Constituição tem
o poder de integrar socialmente. Ela substitui todas as demais formas de inte-
gração: religião, nacionalidade, identidade política etc. Essas demais formas de
integração viraram apenas pontos parciais de encontros; a Constituição, em
um Estado democrático de direito, tem sido e é o único lugar comum delas.
Daí porque a luta pela interpretação constitucional configura um campo de

2 Tully, 1995, p. 30
3 Müller, 2008, p. 241-242
4 Neves, 2011, p. 90
5 De Giorgi, 2015, p. 109
6 Hesse, 2019, p. 2
7 Miranda, 2016, p. 279

238
Constitucionalismo Achado na Rua

batalha em que narrativas se sobrepõem com o fim de definir a única interpre-


tação possível da Constituição e, a partir daí, capturar o poder político.
A conclusão que se pode tirar até aqui é a necessidade de a Constituição
possuir mecanismos de abertura (input), de incorporação e de resultados
(output) das diversas possibilidades que surgem da realidade social subja-
cente. A rigor, nenhuma Constituição tem a possibilidade de se perpetuar
caso não esteja conectada com o espírito de seu tempo (Zeitgeist) e com a
subjetividade coletiva da comunidade8. A desconexão entre os compromis-
sos constitucionais e os valores que estão em constante mudança pode levar
à desconfiança social da Constituição, o que refletiria muito além do des-
compasso entre norma escrita e fatos sociais, uma vez que a Constituição
perderia a sua base de sustentação elementar: a confiança popular9.
A vivicidade de uma Constituição, pressuposta no acoplamento com o
seu tempo, permite a incorporação dos resultados dos momentos sociais que
provocam grandes mudanças nos processos de tomada de decisão, nas rela-
ções institucionais entre os principais atores da estrutura constitucional e da
sociedade de forma ampla e evidente do ponto de vista político. A evidência
aqui se caracteriza não apenas por manifestações sociais, que podem ocorrer
ou não, mas também, e principalmente, por mudanças substanciais na forma
de expressão do sentimento político da sociedade, seja através de uma nova
Constituição, seja pela reordenação das forças políticas que representem tal
sentimento, no Parlamento ou mesmo na Presidência de um país. Na medi-
da em que a sociedade plural, diversa e multicultural pressupõe uma rede de
comunicação livre e desembaraçada de opressões e constrangimentos que
possam macular a circulação da comunicação e a participação dos membros
da comunidade na tomada de decisões políticas e sociais vinculantes, o sis-
tema de direito deve ser o medium para a pulverização das demandas sociais
no campo de satisfação das necessidades pessoais e sociais10.
No contexto nosso, a formação do Estado brasileiro se deu exclusiva-
mente no campo institucional e muito pouco teve de participação popular.
Com a maioria da sua população composta por escravos, que não eram
nem reconhecido como “gente”, primeiro se cria o Estado e a ideia de na-

8 Tavares, 2022, p. 196


9 Tavares, 2021 (a)
10 Tavares, 2022, p. 56-57

239
Constitucionalismo Achado na Rua

ção fica postergada. Segundo Anne-Marie Thiesse, uma nação se caracteri-


za pela transmissão, entre as gerações, de uma herança coletiva inalienável;
a criação das identidades nacionais consistirá em inventariar esse patrimô-
nio comum, isto é, de fato, em inventá-lo11. As únicas heranças coletivas
herdadas pelo Brasil de hoje foram o racismo, o clientelismo e patriarcado.
A criação do Estado antes da nação, demonstrou que o Brasil foi (e é ainda,
sobremaneira) um projeto colonial bem-sucedido.
Não se pode esquecer que a república brasileira se iniciou com um gol-
pe de Estado orquestrado por militares, sem qualquer participação popular;
tanto que logo depois os militares se transformaram em tiranos, tendo na
censura implacável à imprensa uma das suas principais medidas de gover-
no12. A história constitucional brasileira desde então não conseguiu se livrar
das amarras institucionais desse espectro político. A diferença que particu-
lariza a Constituição de 1988 em relação às constituições pretéritas é justa-
mente a presença de pautas que abarcam todas as camadas sociais do Brasil,
daí o seu caráter compromissório e pluralista13. É com a Constituição de
1988 que o projeto militar que fundou a república brasileira deixa de ser o
principal (e quase exclusivo) projeto ordenador do Estado brasileiro e pas-
sa a ser mais um entre tantos outros projetos. Gustavo Zagrebelsky ressalta
que as Constituições pluralistas são frutos de compromissos e inclusões; o
compromisso constitucional é, para o autor, o “mínimo comum denomina-
dor constitucional” que dá suporte fático e normativo à Constituição, sem o

11 Thiesse, 2008.
12 Gomes, 2013, p. 312
13 “Constituições “pluralistas” ou “compromissórias” são aquelas que possuem normas inspiradas
em ideologias diversas. Geralmente resultam de um “compro misso” entre os diversos grupos
participantes do momento constituinte. O conceito de Constituição compromissória foi
formulado a propósito da Constituição alemã de 1919, a chamada Constituição de Weimar.
Quando, no momento constituinte, nenhum grupo tem força suficiente para, sozinho, tomar
a decisão soberana, a Constituição resulta de um compromisso entre as correntes antagônicas.
A Carta de 1988 é exemplo típico de Constituição compromissória. Durante a constituinte de
1987-1988, atuaram as mais diversas forças políticas, inspiradas em diferentes ideologias. Na
verdade, a constituinte foi a mais plural da história do Brasil. Era natural que dela resultasse
uma Constituição pluralista.132 Observem-se, por exemplo, os princípios constitucionais da
ordem econômica (art. 170). A Constituição contempla, de um lado, a livre iniciativa e o direito
de propriedade — princípios de índole liberal —, e, de outro lado, os valores sociais do trabalho,
a função social da propriedade, a defesa do consumidor e a busca do pleno emprego, inspirados
em ideologias mais intervencionistas.” (Souza Neto e Sarmento, 2012, p. 40)

240
Constitucionalismo Achado na Rua

qual o reconhecimento generalizado dos projetos de vida da sociedade não


encontra espaços adequados e livres de reprodução14.
Nesse cenário, O Direito Achado na Rua, concepção oriunda dos es-
tudos do Professor Roberto Lyra Filho na chamada Nova Escola Jurídica
Brasileira, e que tem atualmente como principal expoente o professor da
Universidade de Brasília, José Geraldo de Sousa Júnior, surge como im-
portante ferramenta de análise de um direito emancipatório, do qual uma
sociedade plural necessariamente pressupõe. Daí a escolha pela epistemo-
logia jurídica que O Direito Achado na Rua nos propõe para analisar even-
tos políticos nacionais mais recentes, tais como as Manifestações de Junho
de 2013 e a Intentona de 8 de Janeiro de 2023.
O Constitucionalismo Achado na Rua apresenta-se, sobremaneira,
como a vertente epistemológica d´O Direito Achado na Rua mais potente
para analisar o atual momento histórico, em que a internacionalização do
direito e a globalização interferem nas relações políticas internas. O “escu-
do protetor” e “ponta de lança” da sociedade é a Constituição. Logo, discu-
tir um constitucionalismo adaptado às necessidades locais, como forma de
inscrição das identidades no mundo e de preservação das formas culturais,
é essencial para o desenvolvimento plural da sociedade, e O Constituciona-
lismo Achado na Rua tem essa preocupação que lhe é ínsita, constitutiva.

2. O Constitucionalismo Achado
na Rua: Potência e Projeções
Você bem que podia vir comigo
Para além do final dessa rua
O outro lado da cidade
Ou algo parecido
(Skank)

Rua, cuja etimologia latina significa “sulco, caminho”, por certo, não
é um local estático. Há referências modernas: placas de sinalização, deli-
mitação pelas ou nas calçadas, semáforos, guardas de trânsito. Mas é mais

14 Zagrebelsky, 2008, p. 140

241
Constitucionalismo Achado na Rua

que isso: locais das pessoas, dos espaços de fé, dos jogos entre amigos e dos
espaços de lutas sociais, as mesmas divididas por quem clamava por inter-
venção militar e, por outro lado, respeito à democracia e às instituições,
durante o período da pandemia do Covid-19.
Contemporaneamente, a rua se envereda por meios digitais. Tem disso
cada vez mais desafiador dissociar espaço público e espaços digitais, notada-
mente as redes sociais. É social (e muito) o que também está na rede. As lutas
por reconhecimento identitário, por exemplo, nas ruas das redes sociais, en-
contram espaço fértil para a reprodução das respectivas subjetividades cole-
tivas: nova trincheira de luta. Ou seja, as ruas digitais do mundo da vida se
libertam como campo autônomo de análise social, política e jurídica. O direito
achado aí ou por aí surge transformador, pois nesses espaços, “se dá a forma-
ção de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos
sujeitos para uma cultura de cidadania e da participação democrática”15.
Para José Geraldo Sousa Júnior, a legitimidade democrática está em
conceber que o direito surge das ruas, da periferia, da informalidade das
relações sociais, encetadas em uma esfera pública plural, em um mundo da
vida pluralizado; porquanto, são desses espaços que surgem as lutas por re-
conhecimento, as lutas identitárias e as diversas demandas por inclusão16.
O nascimento d´O Direito Achado na Rua, em 1987, se dá a partir da
necessidade premente de abertura da Universidade (especificamente, para
o caso: a UnB) ao diálogo com os movimentos sociais e suas assessorias
jurídicas, os profissionais do Direito e os atores de sociais de diversas ori-
gens e destinos. É fruto reflexivo, prático e acadêmico do movimento Nova
Escola Jurídica Brasileira, cujo protagonista foi o professor Roberto Lyra
Filho, tendo por sucessor legítimo e intelectual o professor José Geraldo de
Sousa Junior, um dos fundadores d´O Direito Achado na Rua. Tal projeto
carrega em si uma perspectiva emancipatória não só do que é jurídico no
social, mas também do que é social no jurídico. É próprio dele ainda, sendo
marca essencial, a interdisciplinaridade e interinstitucionalidade, a ponto
de abarcar diversos campos do conhecimento (com suas respectivas insti-
tuições acadêmicas) em um mesmo ponto de encontro, que é também um
ponto de partida. O projeto não se satisfaz simplesmente na discussão e no

15 Sousa Júnior, 2015, p. 9


16 Sousa Junior, 2015, p. 41

242
Constitucionalismo Achado na Rua

diálogo; prima igualmente pela produção de conhecimento e espraiamen-


to de suas perspectivas emancipatórias, adotando um caráter propulsor
de conhecimento a partir de diversos pontos de vistas. Daí ser notável a
produção bibliográfica que tem discutido as bases de um direito emanci-
patório decorrente d´O Direito Achado na Rua.
O projeto, desde o nascedouro, centra-se em três eixos bem definidos:
1) identificação do espaço sociopolítico onde se reproduzem práticas so-
ciais que dão vida a novos direitos; 2) definição do sujeito coletivo portador
de projeto político emancipatório; e 3) percepção desse projeto político por
meio da estruturação institucional de novas concepções e categorias jurí-
dicas17. Como bem destacado pelo professor José Geraldo de Sousa Junior,
“O Direito Achado na Rua construiu uma fortuna crítica e enraizou-se no
ensino, na pesquisa e na extensão em direito e em direitos humanos, moti-
vando estudiosos e pesquisadores que o incorporaram, enquanto paradig-
ma, em suas escolhas temáticas e nos objetivos de seus estudos e trabalhos
de pesquisa e de divulgação científica”18.
A conexão teórica entre o pensamento e prática jurídica de Roberto
Lyra Filho com a prática acadêmica e a fortuna crítica d´O Direito Achado na
Rua é, nas palavras do professor José Geraldo de Sousa Junior, “incindível”19.
E é justamente nessa incindibilidade que O Direito Achado na Rua se apre-
senta a perspectiva emancipatória do Direito, com o fim de dar respostas à
somatizão social que o sistema político provoca nos diversos outros sistemas
sociais, notadamente no sistema jurídico, que é, segundo Habermas, o único
locus em que a integração social na atualidade é possível. O professor José
Geraldo de Sousa Junior ainda ressalta a proximidade teórica e emancipado-
ra entre a pedagogia da autonomia de Paulo Freire e o direito emancipatório
da Nova Escola Jurídica Brasileira e d´O Direito Achado na Rua20.
É certo que esse movimento pluralista do direito se inscreve na crise
de paradigmas do conhecimento jurídico. A partir dos anos 1960, movi-
mentos de tal jaez colocam em xeque a concepção positivista do direito e
a sua inerente redução amorfa da complexidade das relações sociais, no-

17 Sousa Junior, 2021, p. 72


18 Sousa Junior, 2021, p. 73
19 Sousa Junior, 2021, p. 74
20 Sousa Junior, 2021, p. 75-76

243
Constitucionalismo Achado na Rua

tadamente, na perspectiva da região latino-americana. A busca por uma


normatividade legítima que provoque a reordenação do jurídico no social
é a marca desse processo de abertura à pluralidade que um direito eman-
cipatório pode apresentar21.
Nessa perspectiva, o direito, em nova roupagem, apresenta-se como
liberdade, e, assim, possibilita a abertura do sistema jurídico ao pluralismo
jurídico, isto é, ao direito forjado por baixo de forma participativa e am-
pliada no trajeto mundo da vida-sistemas. Daí que o sujeito coletivo de di-
reito surge como catalisador das demandas sociais e as representa nos pla-
nos institucionais. Muito mais do que uma caixa de ressonância, o sujeito
coletivo de direito é o ator que intenta materializar a liberdade pública dos
grupos/pessoas representados/as; é aquele que busca a inclusão dos excluí-
dos, dando-lhes voz para que possam interferir no processo de formação
da vontade pública, geral e vinculante da sociedade no qual está inserido,
seja a partir do surgimento de novas categorias jurídicas, seja através da
reorientação ou reinterpretação institucional das atuais categorias.
A liberdade que o direito proporciona, nessa nova concepção, tem
íntima proximidade com o humanismo, com os direitos humanos, em que
o homem, não visto pelo prisma meramente individual de feição neoli-
beral, atua coletivamente para emancipação própria, mas conjugada com
a emancipação do grupo, isto é, uma libertação pública. É a procura de
“restituir a confiança de seu poder [do homem] em quebrar as algemas que
o aprisionam nas opressões e espoliações que o alienam na História, para
se fazer sujeito ativo, capaz de transformar o seu destino e conduzir a sua
própria experiência na direção de novos espaços libertadores”22. Afinal, pa-
rafraseando Tom Jobim, ninguém é livre sozinho.
Se compreendida bem, a concepção material d´O Direito Achado na
Rua se conecta profundamente a um direito como liberdade, e, como tal,
como liberdade pública, em uma sociedade justa e pluralista, com requisitos,
parâmetros e métricas de justiça social muito bem definidos. Assim, a liber-
dade “carrega em sua designação um sentido de positividade material, inde-
pendentemente de ser fixada por normas jurídicas impostas pelo Estado”23

21 Sousa Junior, 2021, p. 82


22 Sousa Junior, 2021, p. 83
23 Sousa Júnior, 2015, p. 27

244
Constitucionalismo Achado na Rua

Sob outra vertente, O Direito Achado na Rua contribui para um cons-


titucionalismo do tipo democrático, ao permitir que vozes da rua (essa no
sentido da esfera pública, em que o reconhecimento recíproco ganha relevo
político, sendo ao mesmo tempo, nas palavras de Habermas, a “antessala do
complexo parlamentar” e a “periferia geradores de impulsos”) participem
da construção diária do projeto aberto e inacabado que é a Constituição.
A conexão entre tempo e espaço no constitucionalismo contemporâneo é
essencial para que os campos sociais, as ruas, as redes, as noites, as selvas,
tenham proeminência na interpretação da Constituição, advindo daí a le-
gitimidade social e política constitucional. Uma nova frente de pesquisa e
tomada de perspectiva, pois, surge com O Constitucionalismo Achado na
Rua, uma variante epistemológica d´O Direito Achado na Rua, e conecta-
do, temporal e espacialmente, com as lutas por reconhecimentos no con-
texto do novo constitucionalismo latino-americano. É que se deve ter em
mente que a Constituição é a “institucionalidade” máxima das liberdades
públicas, liberdades que advêm das ruas, até porque, conjugando os pen-
samentos de Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Junior, Konrad
Hesse e Jünger Habermas, dentre outros, a Constituição não é, ela se faz.
Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão e Magnus Henry da Silva
Marques, em um texto de autoria coletiva, propõem-se a pensar reflexões
necessárias d´O Constitucionalismo Achado na Rua, dentro de um con-
texto em que a extrema-direita e o conservadorismo possuem muita força
operacional e simbólica no imaginário político de parte significativa da
população e nas forças de segurança do país. Para os autores, a retomada
conservadora no Brasil foi possível a partir da instrumentalização do cam-
po jurídico, com a Operação Lava Jato, com a destituição da Presidente
Dilma Roussef e com a prisão do então candidato à Presidência da Repú-
blica Luiz Inácio Lula da Silva24.
Nesse contexto, o constitucionalismo se vê refém de narrativas que
utilizam de mecanismos constitucionais para o enfraquecimento da de-
mocracia e do sistema político democrático; levadas às últimas consequên-
cias, tais narrativas podem resultar na exclusão total do “outro” que não
seja o homem branco, católico, conservador e de bens, o que denota matri-
zes racistas, patriarcais e neoliberais. As possibilidades materiais para o

24 Leonel Júnior et al, 2021, p. 261

245
Constitucionalismo Achado na Rua

surgimento dessas narrativas estão no anacronismo do constitucionalismo


moderno, que perdeu significa força normativa para resolver os problemas
de uma sociedade plural e complexa. O constitucionalismo moderno tem
sido incapaz de conceber a liberdade como processo decisório, como con-
dição de emancipação, como fator determinante para a reprodução dos
mais variados projetos de vida25.
Daí porque O Direito Achado na Rua se apresenta como ferramenta
teórica e prática para a superação das bases do constitucionalismo moder-
no, porquanto, ao contrário daquele, não tem nenhum compromisso com
as lutas por reconhecimentos inscritas na historicidade da comunidade.
Conforme ensinamentos de Roberto Lyra Filho, e com os devidos aprofun-
damentos de José Geraldo de Sousa Júnior, contra a ingenuidade consen-
tida do constitucionalismo moderno, o direito deve se apresentar como o
legítimo organizador da liberdade pública, construído coletivamente atra-
vés de condições materiais históricas da comunidade26.
É no chamado novo constitucionalismo latino-americano que O
Constitucionalismo Achado na Rua encontra seu principal porto teórico
e prático: um constitucionalismo que prima pela soberania e participação
popular, em que o permanente processo constituinte ocorre essencialmen-
te no sentido das ruas (mundo da vida) para as estruturas institucionais
estatais. É desse contexto que constitucionalismo multicultural e consti-
tucionalismo plurinacional ganham importância no debate do constitu-
cionalismo contemporâneo e por propostas inovadoras advindas do Sul
Global. Em tais bases, O Constitucionalismo Achado na Rua, na perspecti-
va da região latino-americana, apresenta-se como um constitucionalismo
decolonial, emancipatório, popular e libertador27.
A principal característica do novo constitucionalismo latino-ameri-
cano é a centralidade que a participação popular adquire na reconstrução/
refundação do Estado. Embora não totalmente revolucionário, até porque
adota a proteção dos direitos fundamentais e a separação dos poderes, ca-
tegorias próprias do constitucionalismo moderno de matriz europeia, é
certo que tal roupagem constitucional se inscreve no de constitucionalis-

25 Leonel Júnior et al, 2021, pp. 261-262


26 Leonel Júnior et al, 2021, p. 263
27 Leonel Júnior et al, 2021, pp. 265-266

246
Constitucionalismo Achado na Rua

mo contemporâneo, a partir de uma concepção de acordo com a realidade


constitucional e social, a partir do Sul Global, historicamente materializa-
da. Trata-se de um constitucionalismo que vai além das bases epistemo-
lógicas e propedêuticas obsoletas e anacrônicas, em razão de suas raízes
eurocêntricas, individualistas e universalistas. Portanto, o próprio novo
constitucionalismo latino-americano se inscreve na perspectiva do cons-
titucionalismo contemporâneo, quando parte da compreensão de que a
Constituição é locus onde todas as formas de reprodução dos projetos de
vida individuais ou coletivos, considerando as suas particularidades, de-
vem encontrar ponto de partida seguro no texto constitucional.
Assim, a emancipação da América Latina se materializa contra a im-
posição e dominação cultural, por vias institucionais, senão disruptivas,
ao menos criativas e autênticas, porque sedimentadas no solo dessa região,
região essa, como está no trecho do refrão da canção “America Latina”
interpretada pelo argentino e brasileiro naturalizado Dante Ramon Ledes-
ma: “América Latina, Latinoamérica, Amada América de sangue e suor”.
Trata-se de tentativa de retomar o que é “ser latino”, da vontade de resgatar
os deixados para trás.
Essa nova demanda constitucional dos países da América Latina ir-
rompe durante o período de redemocratização dos anos 80 e 90 do século
passado, devida às necessidades (1) de reformas constitucionais em países
que passaram por períodos autoritários, como o Brasil, (2) de refundação
do Estado liberal para a inclusão de povos negligenciados pela história
constitucional, e (3) de aplicação dos programas de ajuste econômico e
reação institucional às crises sociais geradas pelas políticas neoliberais28.
Os principais teóricos desse novo constitucionalismo elencam uma sé-
rie de características das novas experiências constitucionais da região, que
as tornam significativas do ponto de vista da teoria constitucional: (1) am-
pliação e fortalecimento dos direitos de participação, direita ou indireta (re-
ferendo, plebiscito, revogação de mandato, iniciativa legislativa, audiências
públicas etc), em todas as esferas institucionais do Estado, coexistindo com o
sistema representativo; (2) esmero pela igualdade material, liberdade pública
e diversidade cultural; (3) adoção de ferramentas legais aptas a abarcarem
o pluralismo legal; (4) reconhecimento de novos atores sociais (povos indí-

28 Gargarella, 2017, p. 43; Avritzer, 2017, p. 27

247
Constitucionalismo Achado na Rua

genas, tradicionais e afrodescendentes) com o fim de que possam exercer


direitos políticos; (5) nova função do Poder Judiciário, o que tem provocado
alterações na concepção clássica da separação de poderes; (6) capacidade de
articulação de elementos complexos, novos em relação à teoria constitucio-
nal liberal, a partir de linguagem simples e mais adequada às lutas sociais;
(7) mudança constitucional a partir do poder constituinte, este visto como a
extrema materialização da soberania popular; (8) abertura aos direitos hu-
manos contidos nas cartas internacionais; (9) redistribuição interna do po-
der político; (10) extensas e detalhadas disposições constitucionais29.
Com a participação social sendo essencial para a configuração dos
novos processos constituintes na região, o pluralismo jurídico e a necessi-
dade de participação efetiva no processo de interpretação da Constituição
aparecem como mecanismos procedimentais e institucionais que elevam a
participação social a patamares nunca visto nas sociedades contemporâneas.
Antonio Carlos Wolkmer destaca tendências inovadoras surgidas nos
contextos sociais e jurídicos a partir de processos descolonizatórios do Sul
Global, notadamente o surgimento de novos sujeitos coletivos de direito e da
força normativa da participação popular na formação da vontade geral da
comunidade. Em tal processo, o autor enfatiza o contexto normativo latino-
-americano como exemplo dessas novas tendências30. Antonio Carlos Wolk-
mer defende assim o que chama de “giro decolonial” do direito, em que o
pluralismo jurídico assume a vanguarda da crítica e da teoria, mas com um
cabedal instrumental analítico que permite a compreensão das novas formas
de produção do social e do jurídico, “desde baixo”; isto é, apreender (e apren-
der) o que o jurídico tem a oferecer tendo por ponto de partida o social31.
O que Antonio Carlos Wolkmer quer deixar claro é que o pluralismo
jurídico é essencialmente descolonizador, porque questiona o monismo
jurídico do direito moderno eurocêntrico. Daí o reconhecimento de que o
plano normativo estatal não pode se satisfazer com o direito positivo-for-
mal, porquanto há que haver espaços de institucionalidades para a justiça

29 Avritzer, 2017, p. 28; Mota, 2017, p. 79; Tarrega e Freitas, 2017, p. 109; Grijalva, 2017, p. 119-120;
Torres, 2017, p. 144-145; Pereira e Assis, 2017, p. 190; Tully, 2000, p. 470; Gargarella, 2018, p. 116;
Leonel Júnior, 2015, p. 121-122; Mendonça e Marona, 2015, p. 275
30 Wolkmer, 2021, p. 219
31 Wolkmer, 2021, p. 220

248
Constitucionalismo Achado na Rua

comunitária, a justiça indígena, a justiça “quilombola” etc32. Sendo assim,


o pluralismo jurídico assume o papel de “princípio fundante” do Estado, o
que está sendo sintetizado pelo constitucionalismo latino-americano, es-
pecialmente pelas Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009)33.
A adoção do pluralismo jurídico desemboca na concepção contemporânea
de um “Estado plurinacional” e de um “Constitucionalismo Pluralista”.
Ele ainda ressalta que o pluralismo concebido como projeto demo-
crático “comunitário-participativo” é essencialmente contrário ao projeto
neoliberal, que solidifica a concentração do capital ao mesmo tempo em
que exclui projetos de cunho participativo-democrático, o que, em última
instância, desconsidera as lutas por reconhecimento de novos sujeitos co-
letivos de direito. Não se trata de negar o Estado, mas antes de refundá-lo
sob paradigmas participativos, em que o poder regulamentar do Estado
incorpore dimensões sociais que se espraiam para além do direito positivo.
Assim, o pluralismo jurídico ”comunitário-participativo” é descolonizan-
te, porquanto materializa o exercício crítico contra a racionalidade capita-
lista e neoliberal, com o fim de inscrever a perspectiva descolonizadora na
própria reprodução da normatividade estatal34. O autor conclui destacan-
do o caráter disruptivo das experiências plurais e participativas, enquanto
refundadoras do Estado, na perspectiva do Sul Global. Não só pela po-
tência do instrumental metodológico que pode apresentar na construção
de novas categorias sociais e jurídicas, tal tipo de pluralismo é resistência
colonial, porque descolonizante, mas também dialógico, porque não refuta
totalmente os atuais processos culturais e econômicos globalizantes35.
No processo descolonizante da América Latina centra-se o que vem
se chamando de “giro biocêntrico”, que traz para o nível constitucional
o valor central da vida, da vida boa, que renega o consumo exagerado e
selvagem, dá concretude à harmonia e ao equilíbrio da relação do homem
com a natureza, como bens essenciais para a própria reprodução da subje-
tividade humana36. Ou seja, conceber a natureza como sujeita de direitos.

32 Wolkmer, 2021, p. 221


33 Wolkmer, 2021, p. 222
34 Wolkmer, 2021, pp. 223-225
35 Wolkmer, 2021, pp. 226-227
36 Tavares, 2022, p. 78

249
Constitucionalismo Achado na Rua

Assim, esse processo descolonizante perpassa por todos os mecanismos de


defesa do meio ambiente. No estrutural, com o fim de evitar a ruptura me-
tabólica entre homem e natureza que a lógica da acumulação infinita que
os processos capitalistas geram na sociedade mundial37. No procedimen-
tal, a América Latina passa a não mais aceitar as externalidades ambientais
negativas dos países europeus38.
Por outro lado, a formação de uma esfera pública plural passa pela au-
tocompreensão dos cidadãos do seu papel constitucional, no qual expressam
o que se passa na realidade constitucional da sociedade, resultando na per-
manente interpretação do texto constitucional a partir das relações sociais
travadas no ambiente constitucional. Assevera Peter Häberle que não existe
qualquer tipo de Constituição sem uma interpretação pública de cunho plu-
ralista, muito menos desvinculada dos seus próprios contextos. Assim, a ver-
dadeira Constituição é resultado da interpretação constitucional entendida
como processo público39. Nessa perspectiva a interpretação constitucional
é um processo público amplo a ponto de abarcar não apenas os processos
jurídicos (interpretação estrita), mas igualmente a práxis política e social (in-
terpretação amplificada e ressonante); isto é, a formação e a transformação
que surgem dos “processos públicos muito complexos” dão vida a um con-
ceito de “sociedade aberta dos intérpretes constitucionais”40, de onde brotam
novos sujeitos de direitos. A abertura do processo público de interpretação
constitucional, assim, é fundamental para o reconhecimento perene de no-
vos sujeitos coletivos, na perspectiva que O Constitucionalismo Achado na
Rua (e o novo constitucionalismo latino-americano) permite, qual seja, a au-
tocompreensão de que eles são atores constitucionais e possuem importante
função no processo de interpretação constitucional.
Como exemplo dessa abertura ao interpretar o que é constitucional,
dessa proximidade entre práxis social e norma constitucional, tem-se o

37 “A unidade original entre seres humanos e natureza foi rompida pela lógica de acumulação
infinita do capitalismo.” (Dalla Riva, 2022, p. 412)
38 “En este sentido, externalización significa explotación de recursos ajenos, transferencia de los costes
a personas ajenas, acaparamiento de las ganancias en el interior, fomento del ascenso propio a base
de obstaculizar (e incluso llegando a impedir) el progreso de otros.” (Lessenich, 2019, p. 16)
39 Häberle, 2013, p. 97; no mesmo sentido Habermas, 2020, p. 562
40 Häberle, 2013, p. 89

250
Constitucionalismo Achado na Rua

reconhecimento da legitimidade ativa da Articulação dos Povos Indígenas


do Brasil (APIB), para figurar no polo ativo da ADPF 70941. O Supremo
Tribunal Federal considerou que a APIB era materialmente uma “entidade
de classe de âmbito nacional”, o que lhe conferia a prerrogativa de iniciar a
jurisdição constitucional de forma autônoma, nos termos do art. 103, inc.
IX, da Constituição de 198842. Com esse processo de abertura pública à
interpretação constitucional, O Constitucionalismo Achado na Rua reforça
o senso de pertencimento à Constituição do país, pois reconhece nela a
potencialidade, no sentido espinosiano, de canalizar os problemas sociais
a partir do instrumental político-jurídico que a Constituição dispõe.
O ponto de inflexão provocado pela Constituição de 1988 refletiu o
princípio da inclusão na história constitucional brasileira, que, para Mar-
celo Neves, está na concepção mais básica da democracia; a inclusão po-
lítica, que produz efeitos jurídicos a partir da “relação da pessoa ou de um
grupo de pessoas com a sociedade e seus subsistemas”, parte do pressupos-
to de que aquele que depende e/ou está sujeito (os “afetados”) às decisões
coletivamente vinculantes deve participar dos procedimentos formação
dessas decisões43. A inclusão dos “afetados” nesses procedimentos quali-
fica a esfera pública política, pois a sobrecarrega de complexidade possui o
potencial de gerar expectativas e frustrações. A esfera pública, nesse sen-
tido, “é concebida não somente como antessala do complexo parlamentar,
mas como uma periferia geradora de impulsos que envolve o centro político:
promovendo um balanço das razões normativas”, e o faz “por meio dos ca-
nais das eleições gerais e de formas específicas de participação44, onde as
opiniões públicas se transformam em um poder comunicativo que autoriza
o legislador e legitima a administração reguladora”45.

41 Burum et al., 2021


42 Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de
constitucionalidade: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
(...)
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
43 Neves, cap. 2, no prelo.
44 Sobre a experiência da formação da Constituição da Islândia de 2012, em que houve a
participação popular direta em várias da construção do texto normativo, embora não sem
percalços nessa trajetória, cf. Landemore, 2015.
45 Habermas, 2020, p. 558

251
Constitucionalismo Achado na Rua

3. As Manifestações de junho de 2013 à intentona de 8


de janeiro e o que ainda sobra da democracia brasileira
Vem vamos pra rua
Pode vir que a festa é sua
Que o Brasil vai tá gigante
Grande como nunca se viu
(O Rappa)

As manifestações de junho de 2013 deixaram fissuras profundas no


sistema político brasileiro, com as quais ainda hoje, 10 anos depois, convi-
vemos; a intentona de 8 de janeiro de 2023 é um exemplo clarividente que,
dessas manifestações, o Brasil enfrentou poderoso processo de desconsti-
tucionalização do processo político, jurídico e social.
O contexto das manifestações de junho de 2013 é precedido de uma
ampla melhoria na qualidade de vida individual da população brasilei-
ra (programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, a saída
do Brasil do mapa da pobreza, programas de inclusão), mas dissociado
de uma melhoria estrutural nos campos da saúde, educação, transporte
público etc.46. Não houve melhoria também no campo político, que ficou
amarrado às mesmas cordas do pacto democrático que antecedeu a As-
sembleia Constituinte de 1987/1988. Com isso, a crise no sistema político
arrastou multidões para as ruas em busca de maior participação democrá-
tica nos processos decisórios vinculantes do país.
Junho de 2013, em uma análise retrospectiva, é utilizado para expli-
car a recessão econômica de 2015-6, o impeachment da presidente Dilma
Roussef, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro. Para Marcos Nobre, isso
é um erro porque desconsidera as alternativas que poderiam ter surgido e,
inclusive, alternativas no momento atual; visto assim, junho de 2013 teria
desconstituído o que não era bom e não teria colocado nada no lugar47. Essa
avaliação desconsidera que o período 2011-13 foi responsável por impulsos
para a consideração e a ampliação de lutas sociais, no Brasil e no mundo. O

46 Leonel Junior e Sousa Junior, 2017, p. 1311


47 Nobre, 2022, p. 16-17

252
Constitucionalismo Achado na Rua

que ocorreu no Brasil não foi algo isolado se considerarmos o contexto mun-
dial. Manifestações populares ocorreram, entre 2010 e 2012, na Islândia, no
mundo árabe (Primavera Árabe), na Espanha e nos Estados Unidos da Amé-
rica (EUA) e marcaram o início de um novo tipo de movimentos sociais,
com diferenças importantes em relação aos movimentos sociais tradicionais.
Apesar das amplas possibilidades que as manifestações de junho de
2013 dispuseram para os movimentos sociais e para o sistema político, é cer-
to que o espectro político tradicional (velhas esquerda e direita) se encastelou
e perdeu o controle dos movimentos e da própria política, dando espaço para
o surgimento das “novas direitas” (canalização das energias dos movimen-
tos) que desafiaram as instituições democráticas; o braço institucional (o que
é paradoxal) foi a Lava Jato, que impediu que a política retomasse o controle
da política e da sociedade. Não se pode esquecer que, de 2014 a 2019, a Lava
Jato foi amplamente apoiada pelo Supremo Tribunal Federal48.
Assim, por total inoperância do sistema político, e com a conivência
do sistema jurídico, a pulverização, sem controle, de demandas sociais na
esfera pública, na “antessala” legislativa, foi praticamente toda ela canali-
zada para fins de desestruturação institucional do Estado brasileiro, tendo,
esse ápice desestruturante, durante a pandemia do Covid-19, em que o go-
verno de então se mostrou despreparado em razão do desmonte produzido
intencionalmente pelo então Presidente. Durante a pandemia da “gripezi-
nha”, Jair Bolsonaro deu suporte a movimentos anti-democráticos, com
conclames contra o Supremo Tribunal Federal e pela intervenção militar49.
A (má ou falta de) gestão da pandemia foi um dos principais motivos pelos
quais Bolsonaro não foi reeleito, sendo o único Presidente a não conseguir
a reeleição desde a redemocratização.
Contemporaneamente a esses fatos, houve a discussão se precisaría-
mos de uma nova constituinte, uma constituinte que condensasse os an-
seios populares manifestados naquela quadra histórica. Mas evidente ficou
o fato de que o sistema político necessitaria urgentemente de uma reforma,
até porque estava sendo suplantado por processos despolitizantes advindos
da extrema-direita. Uma das propostas foi a PEC 113/2015, que se preten-

48 Nobre, 2022, p. 18-19; p. 132


49 Para maior aprofundamento entre a gestão da pandemia do Covid-19 e o populismo de
Bolsonaro, cf. Tavares, 2021 (b)

253
Constitucionalismo Achado na Rua

deu a reformar a política, mas que, em sua essência, tratou-se de uma “con-
trarreforma”, pois não ampliava a participação popular e nem resolvia as
deficiências da democracia no país, até porque proposta em um ambiente
de maioria parlamentar conservadora50.
Nessa conjuntura para remediar a grave crise política que neutraliza-
va a busca pela solução dos problemas mais essenciais à sociedade brasi-
leira, uma nova constituinte “torna-se opção real na possibilidade de alte-
ração da correlação de forças políticas em disputa”. Tanto que, em setem-
bro de 2014, foi realizado plebiscito popular, que contou com cerca de oito
milhões de votos a favor da constituinte. A consulta se caracterizou por
três funções básicas: 1) gerar espaço de reflexão política na sociedade; 2)
estabelecer ambiente político para diálogo com o povo; 3) buscar unidade
dos atores sociais que almejam mudanças estruturais no sistema político
brasileiro. Contudo, as eleições de 2014 trouxeram para o parlamento, o
corpo legislativo mais conservador desde a redemocratização, o que freou
os anseios de uma nova constituinte nos termos acima propostos51.
O direito vivo, o direito “sendo” é a mola propulsora de um Constitu-
cionalismo achado na rua e, especificamente ao contexto dos fatos analisa-
dos, de uma “constituinte achada na rua”. Trata-se, como já vimos, de uma
derivação ontológica d´O Direito Achado na Rua. Tal constituinte seria
fruto da pressão e organização social de sujeitos coletivos, que foram, des-
de a redemocratização, excluídos pelo sistema político decorrente, embora
seus direitos estivessem normativamente assegurados pelo texto constitu-
cional52. Com isso, a nova constituinte seria mais do que simplesmente um
mecanismo institucional de reforma política, mas antes forma legítima,
porque essencialmente popular, de reorientação do projeto constitucional
democrático inaugurado em 1988. O que uma “constituinte achada na rua”
tem mais de mais potencial é ver a Constituição não como texto (embora
também), mas como projeto aberto de um futuro comum.
Uma nova constituinte não surgiria do nada e para o nada não poderia
ir. O olhar retrospectivo é importante para estabelecer as condições mate-
riais e históricas da reprodução do sistema político dentro de um contexto

50 Leonel Junior e Sousa Junior, 2017, p. 1310


51 Leonel Junior e Sousa Junior, 2017, pp. 1312-1313
52 Leonel Junior e Sousa Junior, 2017, pp. 1314-1315

254
Constitucionalismo Achado na Rua

constitucional democrático, como o nosso instaurado após a derrocada do


regime militar. A partir dos movimentos Diretas Já, a democratização e a
organização social em torno do sistema político foram inevitáveis, quando
se olha para aquele momento depois de quase 40 anos. Contudo, o momento
constituinte (1983-1988) não resultou necessariamente na “construção e or-
denação de uma sociedade solidária e homogênea”53. Tal análise não poderia
ser melhor apropriada, quando se verifica que processos desconstituintes,
tais como a emenda constitucional do Teto de Gastos (EC 95) e a reforma
trabalhistas (Lei 13.467/2013), justamente a partir das manifestações de ju-
nho 2013, tomaram as rédeas do sistema político, em um processo autofági-
co que quase nos levou à autocracia em pleno século XXI.
Assim, embora constatada a ampliação popular no processo consti-
tuinte da Constituição de 1988, a exigência de inclusão de novos sujeitos
de direito é essencial para a manutenção da democracia. Trata-se de um
processo de inclusão sem fim, porque o fim desse processo seria o fim da
democracia. A Constituição de 1988, nesse sentido, inaugurou uma nova
era de inclusão social, mas que está sob riscos por processos desconsti-
tuintes. Daí porque a luta por inclusão e participação popular, por deman-
da de novos sujeitos coletivos de direitos e dos “afetados” pelas decisões
vinculantes, ganha novo sentido no atual momento histórico, qual seja,
um sentido reformista das bases constituintes, com o fim de sedimentar
“processos sociais novos e direitos conquistados”54.
Contudo, se levarmos em conta as possibilidades que emergiram com
as manifestações de junho de 2013, o essencial não seria necessariamente a
fabricação de uma nova Constituição, mas antes o reforço de pertencimento
popular às bases principiológicas de inclusão social que a Constituição de
1988 carrega. Encontra-se nela a abertura democrática que reforça o sentido
constitucional da participação popular; basta que as instituições públicas se
abram à participação social e não visualizam nos cidadãos meros eleitores de
2 em 2 anos. Desde o período das manifestações, houve intensa disputa so-
bre a narrativa do que seria de fato a Constituição. Uns pediam intervenção
federal, com base na própria Constituição (art. 142), enquanto outros defen-

53 Leonel Junior e Sousa Junior, 2017, p. 1320


54 Leonel Junior e Sousa Junior, 2017, p. 1322

255
Constitucionalismo Achado na Rua

diam a exclusão de perfis falsos nas redes sociais e de fake news com base na
livre manifestação do pensamento e na liberdade de expressão55.
A disputa narrativa sobre a Constituição, com uma parcela da socie-
dade deturpando o seu real sentido, desencadeou o processo de repulsa
às instituições públicas e governamentais do país, agravado pela eleição
de Jair Bolsonaro, o que conduziu o país a uma “situação de emergência
democrática duradoura”56. A destruição formal e material dessas institui-
ções é uma das formas de atuação política do fascismo, que prega pela des-
constitucionalização da sociedade57. Umberto Eco diz que o fascismo se
faz presente embora com vestimentas civis e democráticas; por isso, saber
como o fascismo opera é importante para desmascará-lo e impedir que ele
se manifeste por qualquer de suas formas58.
Está no âmago do fascismo a destruição da democracia. Democracia e
fascismo são concretamente opostos. Os movimentos de extrema direita, des-
de junho de 2013, têm uma intenção clara: destruir a democracia brasileira e,
naturalmente, o pacto constitucional firmado na Constituição de 1988. Con-
tudo, não pretendem colocar nada de melhor em seu lugar, mas tão somente
reviver as bases integralistas como propostas por Plínio Salgado, cujo lema era
Deus, pátria e família. Não nos esquecemos que, em 11 de maio de 1938, justa-
mente um movimento integralista tentou retirar Getúlio Vargas da presidên-

55 Marcos Nobre (2022, p. 235) destaca positivamente a concentração partidária, como pilar
institucional necessário para a sobrevida da democracia no país: formação do União Brasil e o
surgimento das Federações Partidárias (art. 11-A da Lei 9.096/1995 e Resolução-TSE 23.670/2021):
“a eventual derrota reeleitoral de Bolsonaro não significará apenas o afastamento - mesmo que não
definitivo - da possibilidade de que a forma-limite do pemedebismo leve à destruição da democracia
no país. Poderá significar também um reeorganização do sistema político que lhe permita sair da
situação de quase completa descoordenação em que se colocou no período 2013-22”.
56 Nobre, 2022, p. 11
57 As demais formas de atuação da política fascista, segundo Jason Stanley (2018), são: passado
mítico, reescritura do passado através da propaganda, anti-intelectualismo (ataques aos sistemas
educacional e universitário), irrealismo, hierarquia (através da estratificação social), vitimismo,
lei e ordem, ansiedade sexual (traço ameaçado pelas questões de gêneros), apelo emocional,
desmantelamento da saúde pública e da unidade; exclusão e/ou desumanização de determinados
grupos, tratamento desumanos, repreensão da liberdade, encarceramento e expulsão em massa,
genocídios e campanhas de limpeza étnica. O sintoma mais claro das políticas fascistas é a
divisão que elas provocam na sociedade: “nós” contra “eles”, utilizando esta divisão, com apelo a
distinções étnicas, religiosas e raciais, para sedimentar ideologias e a sua práxis política.
58 Eco, 2018, p. 50

256
Constitucionalismo Achado na Rua

cia. Atualmente, o fascismo sequestrou os símbolos nacionais, como a ban-


deira nacional, e quer reinterpretar a Constituição em suas bases excludentes.
Assim, a intentona de 8 janeiro de 2023 tem seu germe nas manifes-
tações de junho de 2013, embora não se possa afirmar que essas foram as
causas necessárias e suficientes daquela. A tentativa de golpe de Estado foi,
até o momento, o ápice da manifestação de parte da sociedade que, sob a
desculpa do combate à corrupção, escolheu explicitamente o caminho do
retrocesso democrático ou de sua aniquilação. O 8 de janeiro não pode ser
apreendido como um movimento espontaneamente surgido no seio da so-
ciedade civil. Não se trata de um sujeito coletivo de direito como O Direito
Achado na Rua teoriza e reproduz. Na verdade, trata-se de um movimento
golpista que ainda não foi totalmente dizimado. A turba raivosa que inva-
diu, depredou e vilipendiou os prédios dos três poderes da República brasi-
leira, é representante de um ressentimento profundo de parte da sociedade
brasileira, que tem sido alimentado por fake news em série, pela repulsão
ao “outro” (indígenas, negros, mulheres, homossexuais, pobres etc.), e pelo
desacreditamento nas instituições democráticas.
A medida do Governo Lula de decretar a intervenção federal na área
de segurança do Distrito Federal se mostrou acertada, quando a outra op-
ção era a decretação de uma Garantia da Lei e da Ordem, mais conhecida
por GLO (art. 142 da Constituição Federal, Lei Complementar 97/1999 e
Decreto Federal 3.897/99); isso transferiria o poder civil para as mãos dos
militares, podendo resultar na consumação do golpe, como bem ressaltou
o próprio Presidente Lula59.
Por fim, como alertam Marcelo Cattoni e Diogo Bacha, “a ausência
de responsabilização favorece a que propósitos antidemocráticos e autori-
tários de ruptura institucional sempre retornem mesmo em uma sociedade
democrática”60. O que há mais de democrático e constitucional a se fazer,
pois, é não permitir a impunidade da turba raivosa e dos seus mentores.
Tal mister não cabe apenas ao Supremo Tribunal Federal, pelos Inquéritos
4781, 4874 e 4923, mas sim a toda parcela democrática que almeja um país
que assegure liberdade pública para todos os sujeitos de direitos.

59 https://www.poder360.com.br/governo/lula-diz-que-glo-em-brasilia-resultaria-em-golpe/
60 https://www.academia.edu/95154668/A_tentativa_do_putsch_bolsonarista_o_8_de_
janeiro_de_2023_visto_por_uma_teoria_constitucional_a_servi%C3%A7o_do_Estado_
Democr%C3%A1tico_de_Direito

257
Constitucionalismo Achado na Rua

4. Conclusão: a esperança em forma de luta


Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã.
(Cora Coralina)

Com base na visão crítica d´O Constitucionalismo Achado na Rua, a dé-


cada 2013/2023 não pode ser considerada perdida. Apesar de haver um ápice
desestruturante no conturbado governo Bolsonaro e na intentona de 8 de ja-
neiro, o período foi marcado por um forte sentimento de resistência constitu-
cional, de militância democrática. Por tudo que O Constitucionalismo Achado
na Rua propõe, a Constituição não pode ser reduzida ao texto escrito, muito
menos ser apreendida por uma única matriz, porque ela se constrói na e a
partir da realidade social, ou seja, das relações privadas, socais, políticas e eco-
nômicas, de onde surgem e se desenvolvem as lutas por reconhecimento”.
O Constitucionalismo Achado na Rua não se confunde com as “vozes
da rua”. Byung-Chul Han possui uma extensa obra filosófica questionando
a relação direta entre uma suposta “indignação” com temas públicos e a
crise da democracia. Para o filósofo alemão, as atuais ondas de indignação,
que geralmente surgem de fatos com pouca relevância social ou política, são
impassíveis de organizarem a esfera pública. São imprevisíveis e efêmeras,
porque com a mesma virulência que são criadas, igualmente são desfeitas.
Por isso não sustentam qualquer debate público sério. A sociedade da indig-

258
Constitucionalismo Achado na Rua

nação (fugidia e dispersa) é, sobretudo, a sociedade do escândalo; a comu-


nicação anárquica, sem respeito e diálogo, daí advinda, em nada contribui
para a formação de uma identidade pública séria ou pelo cuidado com os
bens públicos61. Essas “vozes da rua” (e das redes), na verdade, minam o pro-
cesso democrático, pois não escutam o “outro” e instalam obstáculos aos
pleitos de novos sujeitos coletivos constituintes. E sendo de tal modo elas não
condizem com O Constitucionalismo Achado na Rua, por este operar em
um sentido emancipatório, libertário e popular e não submisso, opressivo e
individual, como pregam as doutrinas neofascistas que têm pavimentado os
caminhos de determinados setores da nossa sociedade.
A Constituição de 1988 é um projeto inacabado. Há ainda um longo pas-
sivo normativo de concretização pela frente. Apenas em um ambiente demo-
crático e plural é possível realizá-lo62. Trata-se, nestas bases, de entender o pro-
cesso de efetivação das normas constitucionais como uma demanda constan-
temente aberta, isto é, uma constituinte viva e dinâmica, que instaura, todos
os dias, a constituição. Konrad Hesse chama isso de “vontade de Constituição”
(Wille zur Verfassung), que nada mais é do que a vontade de realizar, concreta
e historicamente, os conteúdos normativos constitucionais63.
Lutas por reconhecimento, vontade de Constituição e O Constitu-
cionalismo Achado na Rua possuem relação intrínseca. E, acaso sejam
mecanismos para a concretização de um Estado Democrático de Direito,
forjam-se como obstáculos a processos desconstituintes e, no fim do dia,
como uma resistência cívico-democrático-constitucional a projetos fascis-
tas, como a intentona de 8 de janeiro. Daí porque a punição a esses projetos
faz parte da necessidade de proteção do projeto de vida comum democráti-
co estabelecido pela Constituição de 1988.
Em 2026, depois de mais de 40 anos, encerrar-se-á o que podemos
denominar de “a primeira fase” da Nova República, que se caracteriza pela
instauração e consolidação da democracia popular no Brasil. De certa for-
ma, as eleições de 2022 foram o ressurgimento, por meios institucionais,
do espírito das Diretas já, que foi sedimentado na Constituição de 1988,
qual seja a constante demanda por participação social nos processos de-

61 Han, 2018, pp. 21-22


62 Sousa Júnior, 2015, p. 37
63 Hesse, 2019, p. 97

259
Constitucionalismo Achado na Rua

cisórios vinculantes da sociedade. Desta vez, estão em disputa o primado


da consolidação das instituições democráticas, da separação dos poderes
e das eleições livres: de uma vida em sociedade em termos democráticos e
inclusivos, e O Constitucionalismo Achado na Rua possui a missão histó-
rica de defender o Estado Democrático de Direito e a constituição demo-
crática, assegurando-se de que os canais de comunicação e participação
sociais estejam permanentemente abertos, para que novos sujeitos coletivos
constituintes possam submergir no plano social.

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264
Constitucionalismo Ambiental e
Coletividade: Um Estudo Sobre a
Subjetividade Diante do Colapso

Débora Donida da Fonseca


Ricardo Luiz Oliveira do Carmo

1. Introdução
As recentes crises ambientais vivenciadas no sul global, e tão evidencia-
das como em casos recentes como o dos povos Yanomami, parecem apontar
para o esgotamento de um modelo de normatividade ambiental que, a des-
peito de sua presença em diversas cartas internacionais e constituições, não
parece estar à altura do desafio civilizatório decorrente da proteção ao meio
ambiente, neste incluído seus povos, suas florestas, suas águas e sua cultura.
O modo de acumulação experimentado pela contemporaneidade, com
especial olhar para o atual estágio de desenvolvimento do neoliberalismo,
avança de forma violenta contra o meio ambiente e os povos originários em
um modelo extrativista que ignora elementos mínimos de sustentabilidade
socioecológica. Em meio à ameaça de um colapso ecológico global, são expe-
rienciadas formas de sofrimento inteiramente novas, que, ainda que intrin-
secamente generalizantes, sob o modo de vista capitalista, são incapazes de
despertar a construção de solidariedades transformadoras.
Nesse sentido, o que se mostra paradoxal é que nas últimas décadas ocor-
reu uma relativa expansão dos catálogos de direito ambiental, notadamente no
que diz respeito aos direitos fundamentais de 3ª geração, mas que apresentam
baixa efetividade nos resultados que conduzam à proteção do meio ambiente
e que consigam frear as mudanças climáticas de larga escala. Somos assom-
brados por um histórico normativo de fracassos na temática ambiental que
conduz a diversas formas de niilismo e fatalismo, e esconde que as soluções
possíveis não estão ausentes - elas apenas não agradam o grande capital.

265
Constitucionalismo Achado na Rua

Na base desta análise estão questões que dialogam com necessidades


que avançam para além do protagonismo do direito, mas que se encontram
em fronteiras econômicas, sociais e políticas. Buscaremos compreender em
que medida o fracasso das soluções apresentadas pelo capitalismo verde e
pelo desenvolvimento sustentável se relacionam à impossibilidade de romper
com as formas de vida individualistas sob o sistema capitalista neoliberal.

2. Diálogos sobre Constitucionalismo Ambiental


e O Direito Achado na Rua
A América Latina se encerra dentro de um novo contexto histórico de
reconhecimento de pluralismos, como é o caso do que ocorreu no Equa-
dor e na Bolívia, que apontam para um mundo de novas subjetividades
(GARGARELLA, 2014) originadoras de outros processos de legitimação
dos vulnerabilizados e invisibilizados dentro de uma perspectiva decolo-
nial e libertadora. Daí, é possível perceber a importância de lutas mais re-
centes - a exemplo das ocorridas na Bolívia, Equador, México e Chile - nas
quais se reivindicou uma nova subjetividade que transcende o ambiente
comunitário imediato, demonstrando o potencial de radicalização da for-
ma-comunidade. (RIVERA LUGO, 2016).
Assim, a influência política desses povos e comunidades se desenvol-
veu ao ponto em que puderam desempenhar um papel de protagonismo
em processos constituintes do chamado ‘novo constitucionalismo latino-
-americano’, transformando essas Cartas em significativas fontes mate-
riais de seus princípios e disposições. Foram introduzidas novas ideias de
transição a um futuro de alternativa ao capitalismo, propondo uma verda-
deira ruptura no sentido de uma nova proposta civilizacional. É esse o caso
do princípio andino do ‘sumak kawsay’, ou buen vivir, como um modelo
alternativo de sociedade baseado na forma-comunidade.
Em seu livro ‘O bem viver’, Alberto Acosta descreve o bem-viver
como uma proposta inerentemente anticapitalista, e distinta também de
todas as formas de socialismo real, pois remete à adoção de uma postura
sociobiocêntrica. O bem-viver, ao se opor ao desenvolvimento capitalista,
o entende como um valor ocidental, e portanto, colonial. Assim, ele é, ne-

266
Constitucionalismo Achado na Rua

cessariamente, anti-colonial. É uma tarefa de descolonização, e também de


despatriarcalização. (ACOSTA, 2016).
Dentro dessas renovadas cosmovisões salta aos olhos uma transver-
salidade entre um direito construído de forma antropocêntrica para inclu-
são de percepções mais biocentradas, em que a natureza passa a ser reco-
nhecida como sujeito e não mais como objeto, e então, apta a uma proteção
com maior qualidade.
Existe uma libertação conceitual nova nesse ponto, pois ressignifi-
ca-se a visão tradicional liberal e individual de direitos para uma noção
pluralista que reconhece como indivisíveis os povos da floresta e a própria
natureza, devendo ser resguardado todo o sistema socioecológico. A partir
desse reconhecimento, é de se questionar se os modelos de produção de-
senvolvimentistas verdadeiramente atendem a natureza, enquanto sujeito
e com a dignidade tutelável, já que sacrificam diversas vivências em nome
de um ritmo acelerado de produção e desgaste dos recursos naturais.
Na própria Constituição equatoriana, o bem-viver coexiste com a
ideia de desenvolvimento. A apropriação do termo para se adequar ao mo-
delo institucional e legislativo resultou nessa perda simbólica. Mas, cabe
dizer que os debates na Assembleia Constituinte foram no sentido de abor-
dar o buen vivir como alternativa ao desenvolvimento, além de incluir ou-
tros termos sensíveis aos saberes originários. (ACOSTA, 2016).
Sobre a presença da Pacha Mama em uma Constituição, o antropólogo
colombiano Arturo Escobar, citado por Acosta, diz: “que este artigo apareça
na Constituição equatoriana é um evento político-epistêmico que revolve
a história moderna e os políticos que a habitam – incluindo as esquerdas –
porque desafia o liberalismo, o Estado e o Capital” (ACOSTA, 2016, p. 79).
Assim, surge em potencial um novo episteme jurídico que propõe
socializar e multiplicar as fontes materiais principais do que se conside-
ra como normatividade válida. Enquanto na forma jurídica tradicional o
Direito é universal e único, a normatividade relacionada à forma comunal
extrai sua força constitutiva de um poder alheio ao governamental.
A experiência neoliberal na América Latina, e em uma boa medi-
da, no mundo, reduziu massivamente os direitos sociais, induzindo uma
nova racionalidade (DARDOT; LAVAL, 2016) que teve como resultado o
aprofundamento das desigualdades sociais e ambientais, decorrentes da
apropriação e maximização dos lucros (riqueza social) e concentração nas

267
Constitucionalismo Achado na Rua

mãos de poucos privilegiados. Esse intenso fluxo de capitais transforma


recursos naturais em matérias-primas e energia, em dissonância com os
sistemas biológicos, a favor do lucro, do mercado e do capital financeiro.
Carlos Saldanha Machado apresenta, no caso brasileiro, que a força
contemporânea mais devastadora aos ecossistemas terrestres, os povos in-
dígenas, as comunidades quilombolas e a agricultura familiar são os rura-
listas (MACHADO, 2018). Para o autor:

os ruralistas são responsáveis pela destruição aniquiladora da bio-


diversidade e pelo esgotamento impiedoso dos solos e dos recur-
sos hídricos, com suas monoculturas extensivamente mecanizadas
(soja, cana-de-açúcar, milho, algodão, eucalipto, etc), nos biomas
Cerrado e Amazônia. Esses agentes econômicos e políticos são her-
deiros da secular tradição brasileira de destruição ambiental e de
assassinato no campo; são verdadeiros racistas homicidas e ecoci-
das no território nacional; são neoliberais que querem sobreviver
com a implementação do capitalismo livre de risco porque apoia-
dos pelo Estado, em um ambiente de negócios competitivo e cujas
cadeias produtivas globais estão em constante mudança.

Nesse sentido, a busca pela reconstrução do modelo de produção pa-


rece estar na ordem do dia, de forma a desobjetificar a natureza e de dar
novo sentido, conferindo dignidade à sua condição de sujeito dentro de
uma nova ética ambientalista. Para se combater esse neosujeito explorador,
pautado pelo consumismo, individualismo e produtivismo, deve-se tam-
bém analisar as condições psíquicas dessa racionalidade extrativista que
será abordada em capítulo próprio neste breve ensaio.
Por óbvio, isso inaugura um desafio único para as sociedades que de-
vem abrir-se à forma-comunidade, não sem a existência de conflito, devido
ao fato de que as sociedades são formadas por totalidades heterogêneas,
assimétricas e contraditórias. Afinal, as Constituições servem de incentivo
a um projeto de democracia participativa que vai além de seus textos e
sua interpretação sob a cultura jurídica burguesa que ainda impera. Nesse
caso, pode-se reivindicar a necessidade de forjar uma nova normatividade
constituinte, que supere as possibilidades do marco atual do Direito cons-
titucional. (RIVERA LUGO, 2016).
Faz-se necessário evidenciar aqui que as elaborações do novo cons-
titucionalismo latino americano se perfazem em um terreno de contradi-

268
Constitucionalismo Achado na Rua

ções. Ao mesmo tempo em que elas buscam pavimentar os caminhos para


uma juridicidade pós-neoliberal, o faz dentro das limitações permitidas
pelo próprio sistema capitalista. A efetividade do esforço desempenhado
pelas formulações do novo constitucionalismo é atravessada pelas forças
desse sistema, que buscam trabalhar para que o processo rumo a uma or-
dem social comunitária se esgote no campo do formalismo.

3. Reconexão dos sujeitos naturais e


emancipação coletiva: contribuições para
O Constitucionalismo Achado Na Rua
Essas recentes emergências de novas subjetividades emancipatórias, tão
bem representadas pelos movimentos populares e pelos povos originários,
cria a necessidade de atualizar a racionalidade jurídica para compreender o
direito para além dos regulamentos e o recepcionando em todas as dimen-
sões de sua representação enquanto luta social (SOUSA JUNIOR, 2021).
À toda evidência, o que se nota na análise de José Geraldo de Sou-
sa Júnior é um esgotamento da confiança epistemológica no positivismo,
sendo importante “escapar do positivismo, abrir-se às leituras críticas do
XIX sobre o pluralismo jurídico, sobre a possibilidade de ler no social e
emergência de novas subjetividades.”
Esse parece ser um dos desafios epistemológicos para um novo tipo
de constitucionalismo ambiental achado na rua: o de reconhecer a natureza
como um sujeito, reivindicando a sua reconexão com os demais seres da flo-
resta, para que, lastreada nessa condição indivisível, perceber que sua eman-
cipação apenas pode ser realizada coletivamente. Existe (ou sempre existiu)
um novo espaço coletivo natural que precisa, a partir de suas próprias vivên-
cias e representações, encartar seus direitos coletivos e reflorestar a noção de
constitucionalismo para além das opções até hoje experimentadas.
A partir da concepção de Rivera Lugo (2016), é possível sedimentar que a
noção de ‘comum’, além de abranger nossas terras e riquezas naturais, abran-
ge também todas as construções comuns dos homens enquanto sociedade. O
‘comum’ compreende as lutas populares, bem como os saberes de um povo. Se
realiza na socialização igualitária do produto do trabalho dos homens, bem

269
Constitucionalismo Achado na Rua

como na implementação de um sistema democrático e participativo. O ‘co-


mum’ possui implicações ontológicas: é uma potencialização do ser e da liber-
dade humana que se coloca além das imposições individualistas.
A expansão do novo constitucionalismo trata de um processo con-
tínuo de construção e transformação criativa e crítica, com o objetivo de
contribuir para a produção de um novo modo hegemônico de estruturação
e regulação da sociedade. Para garantir o sucesso desse projeto, será neces-
sário promover a desconstrução e desfetichização das categorias jurídicas,
assim como formular um novo arcabouço de conceitos que deverão guiar
a sociedade civil. (RIVERA LUGO, 2016).
Esse arcabouço composto por experiências alternativas deverá ser ca-
paz de representar efetivamente a sociedade. Além disso, é preciso ir além
de propor uma mera valoração das diferenças que caracterizam as diferen-
tes concepções do comum, comunal ou comunitário. A normatividade do
comum deverá ser capaz de identificar suas contradições, como também
os campos de afinidade estratégica a fim de promover uma normatividade
emancipadora. Novos marcos constitucionais devem não apenas expressar,
mas também ser produto do conjunto das dignidades dos sujeitos naturais,
que precisarão necessariamente participar e orientar essa nova compreensão
epistemológica de soberania, natureza e bem viver. (RIVERA LUGO, 2016).
A normatividade do comum insinua um encontro entre teoria e prática
no sentido de aceitar as potencialidades humanas e a sociedade em sua for-
ma heterogênea. São um acordo efetivamente consensuado entre seus mem-
bros, e constitutivo de um modo específico de participação política. (RIVERA
LUGO, 2019) O desafio que se apresenta a nós, nesse ponto, é o de construir
essa normatividade pautada na solidariedade entre seres humanos, e deles com
a natureza, nos limites de uma racionalidade econômica e social que necessita
do individualismo e da competitividade entre os homens para prosperar.

4. Colonização das subjetividades:


aprendendo a sofrer em meio ao colapso
O impacto causado pela progressiva deterioração da solidariedade na
socialização dos homens sob o neoliberalismo, que prioriza a centralidade
do indivíduo em todas as esferas, envolve dinâmicas micro e macro físicas

270
Constitucionalismo Achado na Rua

que são difíceis de serem explicadas. No que tange à psique humana sob a
ameaça de um colapso ecológico, é intuitivo reconhecer que nossa forma de
sofrer também é individualista, e composta por objetos que podem ir além
da compreensão humana - como analisar, com o devido rigor científico, uma
ideia que nos atinge tão violentamente como a de nossa própria extinção?
Imbuídos nesse desafio, no presente tópico, pretendemos analisar a
faceta individualista que acomete as formas de sofrimento sob o capita-
lismo, em especial, no que diz respeito às mudanças climáticas e a ameaça
de um fim para a espécie humana. Ao fim, esperamos compreender de que
maneira nossas formas de sofrer poderiam ser aprimoradas pelo cultivo da
solidariedade nas soluções apresentadas para o enfrentamento das mudan-
ças ecológicas e climáticas.

4.1 Luto, melancolia e niilismo climático


Pesquisadores ao redor do mundo vêm denominando os processos
de adoecimento psíquico em razão de uma sensação de desamparo frente
a um possível colapso ambiental como “depressão climática” ou “desespe-
ro climático”. Quando esse quadro vem acompanhado de um sentimento
exacerbado de fatalismo e impotência diante da realidade, torna-se possí-
vel falar de um “niilismo climático”. (VICE, 2019).
Em sua modalidade neoliberal, o niilismo assume uma potencialidade
destrutiva muito além do que poderia ter sido imaginado por Nietzsche, que
o abordou como um resultado da superiorização acidental do homem sobre o
divino (SCHMITT, 2015). Ele jamais imaginou que o esvaziamento de sentido
próprio do niilismo, em nossos tempos, seria decorrente da superiorização do
homem em relação a ele próprio: da destruição dos homens por si mesmos.
Marcuse, ao trabalhar com Freud e Marx para radicalizar formula-
ções de Hegel, entendeu que a instrumentalização das demandas sob o
neoliberalismo, através da transformação dos desejos em commodities,
torna o prazer obrigatório e subverte o funcionamento do superego. Se an-
tes podíamos falar de uma “consciência infeliz”, em que o superego funcio-
nava como um mecanismo de punição ou restrição de condutas com base
na moralidade social, que pressupunha a capacidade do sujeito de conde-
nar suas próprias atitudes, agora, reproduz-se uma “consciência feliz” que
impõe o gozo como regra, e o sofrimento como tabu. (BROWN, 2019).

271
Constitucionalismo Achado na Rua

A “consciência feliz”, assim, é um alívio da censura oferecida pelo su-


perego: a consciência relaxa não só em relação à conduta do próprio sujeito,
mas também quanto à destruição da sociedade. Menos demanda do supe-
rego, em uma sociedade individualista, significa menos preocupação ética e
política dos sujeitos, até um ponto em que eles aceitam, com a ajuda de uma
dose de cinismo, a inevitabilidade de seu desaparecimento. (BROWN, 2019).
Essa normalização do risco de desaparecimento é o que dá espaço
ao surgimento de patologias como o niilismo climático. Um cenário de
capitalização crescente da vida, destruição de florestas e genocídio de po-
pulações inteiras deveria nos conduzir ao luto, mas, imersos em uma racio-
nalidade social pautada pela obrigatoridade do desejo, não há espaço para
sofrer diante da perda. Deveríamos nos perguntar, assim, se a saída está
em sofrer melhor, e não em sofrer menos.
No ensaio “Luto e melancolia”, Freud (2011) entende que o luto com-
preende um processo normal de elaboração por algo que foi perdido, enquanto
a melancolia é uma disposição patológica. Na psicanálise, o luto é compreen-
dido como um trabalho a ser realizado pelo sujeito, que precisa se situar no
processo da perda para se reinserir no mundo sem o objeto que foi perdido.
Já a melancolia representa uma tendência patológica porque conduz
à rejeição da realidade como ela é, passando o sujeito a reconstruí-la por
meio de pressupostos que podem ser delirantes (ROCHA, 2008). A nega-
ção climática, composta por expressões como o não reconhecimento do
aquecimento global como uma realidade, poderia ser categorizada em al-
gumas de suas manifestações como resultado de uma forma de melancolia
política, decorrente da dificuldade em conceber uma perda que recai tão
profundamente sobre o sujeito.
O luto patológico, assim, desencadeia sentimentos de culpa e respon-
sabilização diante da morte do objeto. Benjamin (1974) analisa a melanco-
lia política como ligada ao fatalismo, conectado ao abandono dos ideais: a
conclusão de que nada mais pode ser feito, o que pode conduzir à resigna-
ção, ao cinismo, e à sensação de desamparo.
A perda de sentido na melancolia faz com que a raiva e o ódio inaugu-
rados pela perda não tenham onde desaguar. A inexistência desse espaço leva
a pulsão de morte a ser direcionada contra si mesmo, o que cria uma relação
entre melancolia e suicídio. No patamar da socialidade, a patologização do
luto se dá pela exclusão do elemento de conflitualidade diante das perdas:

272
Constitucionalismo Achado na Rua

A individualização do conflito, sua transformação em forma de


culpa em associação com o fracasso e a potência produtiva faz a
agressividade contra o outro, que motivaria um desejo de transfor-
mação da realidade, ser introvertida em uma agressividade contra
o próprio eu. (DUNKER, 2021, p. 85).

Destruições deliberadas são apreendidas pelo tecido social como “tragé-


dias”, mortes calculadas são veiculadas pela mídia como acidentais. A inter-
rupção do luto, através da exclusão da conflitualidade dos fenômenos, confun-
de nossa visão quanto ao direcionamento da raiva e da tristeza pelas perdas
evitáveis, restando direcioná-las a nós mesmos. Desse interregno, surge um
monstro que pode ser ainda mais perigoso que a depressão climática.
Sartre (1995, p. 36) entende que o sentimento antissemita se apode-
rou com facilidade da pequena burguesia europeia no período que an-
tecedeu a segunda guerra porque foi uma forma que esse grupo encon-
trou de realizar sua qualidade de proprietários. Movido por frustração
e medo, “não dos judeus, mas de si mesmo, de sua consciência, de sua
responsabilidade, das mudanças, da solidão; de tudo, menos dos judeus”,
o pequeno burguês europeu, que inicialmente sentia-se apenas solitário,
passou a se identificar com valores nazistas.
De forma semelhante, o movimento denominado de “ecofascismo” se
consolidou por um encontro entre pautas ambientalistas e políticas euge-
nistas. Madison Grant, seu fundador, era um defensor da preservação do
meio ambiente que afirmava ser necessário, para frear as mudanças climá-
ticas, se opor radicalmente às políticas migratórias e ao aumento da po-
pulação. A ideia de que há uma conexão mítica de cada pessoa à sua terra
de origem, combinada a argumentos cientificamente eugenistas, formam a
base da teoria ecofascista. (THE INTERCEPT, 2019).
É o que se extrai do discurso de Marine Le pen de que os “nômades
não se importam com o meio ambiente”, e da declaração do neo-nazista
Richard Spencer de que os seres humanos podem escolher ser “o mordomo
o ou destruidor” da natureza. É, ainda, parte do manifesto publicado pelo
atirador do massacre de El Paso, que defendeu a prática de um assassinato
em massa em nome da necessidade de barrar a “invasão hispânica” no
Texas, e da fala do ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, de que idosos e
crianças, por serem parte da “população mais fraca”, precisariam morrer
no genocídio da Covid-19. (THE INTERCEPT, 2019; UOL, 2020).

273
Constitucionalismo Achado na Rua

A destruição do homem pelos poderes criados pelo próprio homem


é o que faz com que o niilismo se encontre com o fatalismo e o desespe-
ro, sentimentos capazes de mobilizar reações fascistas com uma facilidade
impressionante. A escolha de um “inimigo a ser combatido” é uma arma-
dilha retórica historicamente repetitiva na extrema-direita, que se legitima
através da visão de problemas sociais por perspectivas individualistas.

4.2 Sofremos melhor quando sofremos juntos


Timothy Morton (2013, p. 113) entende que fenômenos como o da
mudança climática fazem parte da categoria de “hiperobjetos”: objetos tão
abrangentes em escala e temporalidade que transcendem a capacidade de
compreensão humana. Assim como o capitalismo, as grandes pandemias,
a tecnologia, a ideia de um mundo que possa suceder nossa extinção, a na-
tureza também é um hiperobjeto, e “a estranheza desse fato confronta-nos
com as formas como ainda acreditamos que a Natureza está ‘ali’ - que ela
existe para além da tecnologia, para além da história. Longe delas.”
A dificuldade de conceber fenômenos grandiosos como os hiperobje-
tos, para Morton, se relaciona a nossa tendência a negar sua existência ou
a forma como eles operam. No caso da mudança climática, essa negação
se dá por não compreender que natureza e sociedade não são manifesta-
ções separadas, mas sim, que fazem parte de um mesmo metabolismo. É a
dificuldade de conceber a sociedade como parte da natureza que nos dá a
ilusão de que existe uma hierarquia entre uma e outra.
Em seu “ideias para adiar o fim do mundo”, Krenak (2020) conta a
história de um pesquisador europeu que, ao visitar uma aldeia da etnia
Hopi, nos Estados Unidos, pede a um morador que facilite seu encontro
com uma anciã que ele deseja entrevistar. Ao ir até seu encontro, percebe
que ela está parada diante de uma pedra e aguarda, até que pergunta ao
morador se a anciã não iria falar com ele. “Ela está conversando com a
irmã dela”, ele diz. “Mas é uma pedra”, diz o pesquisador, ao que seu faci-
litador responde: “e qual é o problema?”

Assim como aquela senhora hopi que conversava com a pedra, sua
irmã, tem um monte de gente que fala com montanhas. No Equador,
na Colômbia, em algumas dessas regiões dos Andes, você encontra
lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem

274
Constitucionalismo Achado na Rua

uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as pessoas


que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão comi-
da, dão presentes, ganham presentes das montanhas. Por que essas
narrativas não nos entusiasmam? Por que elas vão sendo esquecidas
e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que
quer contar a mesma história para a gente? (pp. 10 - 11).

A história contada por Krenak ajuda a ilustrar o fato de que o desa-


parecimento da coletividade dos nossos afetos hegemônicos, bem como a
cisão entre natureza e sociedade, são criações coloniais. Esse tipo de “hu-
manidade zumbi” que se normaliza a cada dia é fruto da criação de capita-
listas interessados em transformar uma sociedade de cidadãos capazes de
viver em alteridade, colonizando-os para criar meros consumidores.
A destruição da sociedade é um objetivo próprio do neoliberalismo,
afirma Brown (2019). O neoliberalismo não pode prosperar sem extinguir
o fundamento principal da democracia, que é a igualdade política. O fim
da igualdade política inaugura um novo sistema moral, pautado no ressen-
timento e na incapacidade de ver uns aos outros como iguais, e enquanto
parte de uma ecologia que nos precede e que nos sucederá, ou, como dito
por Krenak (2020, p. 13): “o nosso tempo é especialista em criar ausência - do
sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida”.
É necessário refletir: se retiramos o senso de comunidade da vida em
sociedade, o que nos resta? Brown (2019, p. 140) explica que esse novo siste-
ma moral do neoliberalismo é pautado na vingança e no medo, e que “a cria-
tura de ressentimento, na sua incapacidade de fazer o mundo, censura-o e o
culpa pelo seu sofrimento e humilhação, anestesiando assim o seu aguilhão”.
Para ressignificar os afetos que nos constituem, precisaremos abrir mão do
ressentimento e da vaidade humana, e em troca, recobrar uma relação de
afetividade com a natureza, que nos foi alienada pelo capitalismo.
Tendo essas reflexões em vista, o que se extrai é que a construção de
uma racionalidade sociobiocêntrica passa pela destruição da racionalidade
colonial e capitalista que atualmente é imperativa. A defesa de um consti-
tucionalismo ambiental para todos os países do Sul global é parte impres-
cindível desta tarefa, pois define um núcleo de proteção do que não pode
ser negociado ou alienado aos interesses capitalistas.

275
Constitucionalismo Achado na Rua

A criação de uma nova ordem constitucional não é o início nem o fim


da luta pela justiça climática, mas é uma ferramenta jurídica importante
para desassociar os ecossistemas naturais dos interesses capitalistas. Krenak
(2020) visualiza que parte do resgate do sentido de coletividade pode estar
em enxergar a natureza de forma não hierárquica em relação à população
humana, criando uma relação de troca e alteridade, e não de dominação.
Para ele, a “despersonalização” dos seres da natureza se relaciona diretamen-
te à disposição de montanhas, florestas e rios nas mãos do grande capital.
A desconstrução das dicotomias homem-natureza e cidade-campo se
constituem como uma tarefa anticolonial e anti-capitalista, que deve ter a
solidariedade humana como um fundamento inegociável, sob pena de ser
cooptada por interesses políticos racistas. A inauguração de uma nova mo-
ralidade passa pela destruição desta, e pela substituição do ressentimento e
do medo pela solidariedade.
O arcabouço jurídico proporcionado pelo constitucionalismo achado
na rua, a exemplo do que foi construído nas experiências constitucionais
equatoriana e boliviana, não é a solução para os desafios civilizatórios que
enfrentamos. Contudo, se acompanhado por outras reformas institucionais
alinhadas aos pressupostos da normatividade do comum, além da mobiliza-
ção constante por atores políticos engajados na defesa da justiça climática, é
um instrumento de luta necessário para fazer com que a natureza e os povos
que a defendem possuam legitimidade institucional, e para cultivar, através
dessas legislações, o início de uma nova cultura pautada na solidariedade e
na democracia participativa, contrária ao individualismo capitalista.
A superação da colonialidade exige de nós que percamos o medo de
cair, deixando algumas vaidades para trás. É necessário assim, como en-
sina Krenak (2020), refazer o mundo em coletividade, encarando a queda
do céu como uma oportunidade para construir um paraquedas colorido.

5. Considerações finais
Conclui-se que o resgate do sentido coletivo da solidariedade, ten-
do o constitucionalismo achado na rua como um instrumento normativo
na construção de sujeitos coletivos de direito, necessariamente passa pela
superação do individualismo capitalista, que dará lugar ao cultivo da alte-

276
Constitucionalismo Achado na Rua

ridade. No que diz respeito às formas de sofrer, entendemos que é preciso


superar a estagnação da melancolia política para encarar o trabalho de luto
coletivo demandado pelo reconhecimento das imensas perdas civilizató-
rias causadas pelo modo de produção capitalista.
O sistema moral pautado no ressentimento, hegemônico sob o neo-
liberalismo, precisou se fincar sobre o imaginário individualista para
possuir alguma legitimidade. De outra forma, não seria possível conven-
cer-nos da realidade alienante que separa homem e natureza, e atribui a
grupos socialmente vulneráveis, que são as maiores vítimas da destruição
voraz do meio ambiente, a responsabilidade por sua própria extinção.
Dessa forma, a imaginação de uma realidade capaz de adiar o fim do
mundo precisa passar pela construção de uma subjetividade humana que exis-
ta em comunhão com a natureza, extraída de saberes dos povos originários.
O constitucionalismo ecológico “achado na rua”, aliado fundamental nesse
desafio civilizatório, vem sendo bem-sucedido na tarefa de inaugurar uma
normatividade capaz de fomentar um novo sistema moral solidário e coletivo.

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Constitucionalismo Achado na Rua

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Constitucionalismo Achado na Rua

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Nova Cultura no Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 410-411.

279
A Democracia Achada na Rua:
O Orçamento Participativo como
uma proposta de discussão popular
dos gastos públicos e espaço de fala
dos sujeitos coletivos de direito

José Felicio Dutra Júnior

1. Introdução
Este artigo tem por objeto entender os processos de tomada de deci-
sões nos Orçamentos Participativos (OPs) a partir da crítica dialética de “O
Direito Achado na Rua”.
Segundo José Geraldo de Sousa Júnior (SOUSA JÚNIOR, 2022), “O
Direito Achado na Rua” é fruto dos trabalhos cotidianos, do fazer acadêmi-
co e político, o contínuo desse projeto se realiza permanentemente, atento
às emergências, revisitações e discernimentos próprios de uma travessia
que responde a urgências de discernimento sobre as três perspectivas que
balizam o projeto, quais sejam, determinar o espaço social e político de
sociabilidades vivas; compreender e reconhecer os protagonismos que se
movem nesses espaços, seus movimentos e os sujeitos coletivos de direito
que neles se manifestam; e, aferir os achados que desafiam inteligibilidade
como categorias de um direito vivo.
“O Direito Achado na Rua” tem funcionado como uma importante
plataforma para o desenvolvimento e a difusão de estudos no campo das
teorias críticas do direito. Desde a sua fundação, com sua institucionaliza-
ção como grupo de pesquisa no Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq),
na década de 1980, tem acolhido e formado dezenas de pesquisadoras e
pesquisadores atuantes nas mais diversas áreas temáticas e com engaja-
mento nas lutas populares que são travadas para denunciar e fazer cessar
violências, violações e opressões, em suas variadas dimensões. Nesse mo-

281
Constitucionalismo Achado na Rua

vimento, constitui, ele próprio, um instrumento de transformação social


necessário à experiência de disputa e construção da experiência democrá-
tica brasileira (Revista de Direito da UnB, 2022).
Como afirma Antônio Carlos Wolkmer no artigo “A legitimidade dos
sujeitos sociais e a construção plural de direitos”, é preciso enfatizar “a
relevância de se buscarem formas plurais e alternativas de fundamenta-
ção para a instância convencional da justiça institucionalizada, projetando
uma construção relacional e comunitária solidificada na realização mate-
rial, concreta e efetiva de novos sujeitos sociais que entram em cena e inau-
guram autênticos processos instituintes” (WOLKMER, 2022, p. 30-34).
É fundamental entender as bases epistemológicas e propedêuticas da
Teoria Crítica do Direito que permite a superação do monismo jurídico
para um jusalternativo – pluralismo jurídico – no qual, o “sujeito coletivo
de direito” é um agente transformador da realidade jurídica, por meio dos
movimentos sociais e grupos identitários, e, nesta perspectiva, a corrente
“O Direito Achado na Rua” é uma grande colaboradora para a Nova Escola
do Direito e a crítica sociológica jurídica.
Essa crítica ajuda a entender a importância dos OPs como instrumen-
tos emancipadores para um humanismo fundado em uma “ética da al-
teridade comunitária-participativa” (WOLKMER, 2001), em que Antonio
Carlos Wolkmer defende a superação da corrente monista do Direito de
origem colonial, segundo a qual, a única fonte do Direito é o Estado, ressal-
tando as novas fontes epistemológicas extraídas do recente Constituciona-
lismo latino-americano e do ressurgimento do pluralismo na perspectiva
dos estudos da descolonização, na direção de uma postura de ruptura, mas
sem perder o diálogo democrático, intercultural e construtivo que viabili-
za não só uma cosmovisão conectada com outro tipo de desenvolvimento
da vida, mas também capaz de germinar as sementes para uma nova teoria
social do Direito.
Portanto, a compreensão dos processos de tomada de decisões popu-
lares nos OPs ajuda a superar o monismo jurídico, por meio de uma con-
cepção jusalternativa, plural e comunitária do Direito, em que são criados
instrumentos de emancipação humanista dos espoliados que compõem
sujeitos coletivos, e, consequentemente, tem-se um “Constitucionalismo
Achado na Rua”. Então, é fundamental para entender a construção de es-
paços de fala e atuação das lideranças comunitárias, dos movimentos so-

282
Constitucionalismo Achado na Rua

ciais, e dos grupos identitários, na construção de um constitucionalismo


amplo, plural e democrático que possa atender demandas sociais e efetivar
políticas públicas, a fim de superar os privilégios de um pequeno grupo, e,
sim, favorecer um povo espoliado por meio de um humanismo emancipa-
dor, e uma discussão plural e aberta dos gastos públicos e efetivação das
políticas públicas que tem por objetos direitos fundamentais sociais.

2. A Democracia Achada na Rua


A democracia, na conjuntura da sociedade brasileira, não pode ser
entendida apenas como um método institucional para se chegar a decisões
políticas, em que os indivíduos adquirem o poder de gerir a “coisa pública”
por meio de uma luta competitiva pelo voto popular.
A sociedade brasileira apresenta demandas que não podem ser satis-
feitas apenas com um modelo de democracia instrumental ou representa-
tiva, mas exige uma democracia substancial, isto porque se discute a racio-
nalização de gastos públicos, para efetivar direitos sociais, que se referem
às demandas sociais prestacionais, dentre elas as previstas no art. 6º da
Constituição da República (saúde e educação, por exemplo), superação da
crise ético-política representativa, superação da miséria, dentre outras de-
mandas e contingências sociais complexas.
Nesta perspectiva, os integrantes da sociedade não apenas passam a
exercer o direito de votar, mas também o de participar, exigindo o aten-
dimento de suas prioridades e cobrando a efetiva transparência das ações
dos governantes.
O crescente nível de participação representa o sucesso do esforço con-
junto da população e do Governo na construção de uma gestão pública
verdadeiramente democrática (SANTOS, 2002, p. 512).
Nesse processo democrático participativo destacam-se as práticas or-
çamentárias participativas em vários municípios brasileiros (Orçamento
Participativo – OP), que mobilizam cidadãos e promovem a boa governan-
ça local (MARTINS DE SOUZA, 2011, p. 249).
O processo de rearticulação dos movimentos populares, ocorrido na
década de 1970, seguido pela baixa do regime político ditatorial militar bra-
sileiro e a formação de um Estado Democrático de Direito, nos final dos anos

283
Constitucionalismo Achado na Rua

80, deu origem a uma grande riqueza de propostas de participação popular


na gestão pública, como formação das lideranças comunitárias, os Conse-
lhos de Saúde nos Municípios, associações comunitárias, etc., e, na década
de 1990, proliferaram experiências concretas, desenvolvidas por governos
locais, dentre elas, o Orçamento Participativo (OP), que proporcionam a
base àqueles que, antes, sempre foram estranhos ao sistema político.
Segundo Robert A. Dahl (DAHL, 2001, p. 108), em qualquer com-
preensão sobre democracia, seja em sistemas democráticos mais recentes
ou mais consolidados ao longo do tempo, a democracia apresenta desafios
que estão no cotidiano social. Para os países recentemente democratiza-
dos, a questão que se apresenta é saber como as novas instituições e práti-
cas democráticas podem ser reforçadas. Para as democracias mais antigas,
o problema é aperfeiçoar e aprofundar a sua democracia.
A democracia participativa, por meio de seus princípios organizati-
vos decorrentes dos princípios constitucionais, que podem ser compreen-
didos como a síntese das ideias republicanas e democráticas de todos os
tempos, pode ser a solução para o combate aos abusos e aos obstáculos que
inviabilizam o Estado Democrático de Direito.
Conforme sustenta Gisele Cittadino (CITTADINO, 2010, p. 50), no
processo de reabertura democrática ocorrido na sociedade brasileira na
década de 1980, destacam-se três correntes constitucionalistas, que in-
fluenciaram a constituinte de 1988, quais sejam: i) A liberal, destacando-
-se alguns autores como Robert Nozick e Friedrich Hayek (diversidade de
concepções individuais sobre a vida digna); ii) a crítico-deliberativa, desta-
cando-se o autor Habermas (fazem menção à contextualização de valores
universalistas); e, iii) a comunitarista, destacando-se os autores Michael
Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel e Alasdair Maclntyre (apresentam
a multiplicidade de formas específicas, pluralismo).
Os comunitaristas, dentre eles, Michael Walzer, Charles Taylor, Michael
Sandel e Alasdair MacIntyre, sustentam que a democracia contemporânea
participativa recupera a tradição aristotélica ao, por em questão a pressupo-
sição de um sujeito universal e não situado historicamente, enfatizar a mul-
tiplicidade de identidades sociais e culturais étnicas presentes na sociedade
contemporânea, e conceber a justiça como a virtude na aplicação de regras
conforme as especificidades de cada meio ou ambiente social, criticando os

284
Constitucionalismo Achado na Rua

liberais por não serem capazes de lidar com as situações intersubjetivas e de


ver os diálogos apenas como uma “sucessão alternada de monólogos”.
A proposta comunitarista corrobora o modelo de Orçamento Parti-
cipativo - OP, na medida em que esta parte do pressuposto da autorregu-
lação pelos próprios integrantes das comunidades locais na determinação
das prioridades orçamentárias mais relevantes e setores das cidades mais
carentes de ações implementadoras de políticas públicas. Em face disso, a
autonomia da pessoa é possível, em sociedades pluralistas e democráticas,
nos processos participativos de tomada de decisões, como, por exemplo, o
que ocorre no OP, sendo impossível a proposta da corrente liberal, isto é, a
autonomia da pessoa concebida abstratamente como livre e igual.
Contudo, assim como existe crítica ao modelo de democracia delibera-
tiva defendido por Jürgen Habermas (HABERMAS, 1996, p. 23-24), por não
trazer uma solução para a precária deliberação por parte de pessoas que não
têm acesso à educação, renda satisfatória, informação, etc., em sociedades
que passam por um processo de marginalização social e desigualdade na
distribuição de renda; também existe crítica ao comunitarismo, como, por
exemplo, a questão de gênero, formulada por Maria João Silveirinha (SIL-
VEIRINHA, 2023, p. 3-4), que questiona, por exemplo, a situação de exclu-
são das mulheres ao se perguntar: “Quem é o ‘nós’ da comunidade?”.1
Fatos sociais como a história da exclusão das mulheres de muitas es-
feras e a importância quase exclusiva do homem em círculos exclusivos e
poderosos, contudo, levantam dúvidas sobre as implicações para as mu-
lheres de uma teoria que faz “nossa” a pertença às “comunidades” como o
seu ponto de partida.
Nancy Fraser (FRASER, 2003, p. 71) sustenta que os comunitaris-
tas não deram uma explicação adequada do poder de institucionalizar as
compreensões da comunidade.

1 MacIntyre sustenta que as instituições políticas e jurídicas são bens determinados justamente a partir
da especificidade histórica e cultural da comunidade – “tradição”. Trata-se de conectar a moralidade
com a institucionalidade própria a cada sociedade, à existência de um entendimento comum, um
consenso quanto ao bem a ser buscado pela coletividade (MACINTYRE, Alasdair. After virtue: a
study in Moral Theory. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame, 1984). E, Charles Taylor
vai além, ele sustenta a “obrigação de pertencer” a uma sociedade (TAYLOR, Charles. Argumentos
filosóficos. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Edições Loyola, 2000. P. 187/210).

285
Constitucionalismo Achado na Rua

Além da questão do gênero, outro problema que os comunitaristas


não respondem é a marginalização social, e o déficit na distribuição de
renda em sociedades que enfrentam a miséria, como, por exemplo, a socie-
dade brasileira.
Não existe a possibilidade de afastar, em termos de justiça social e
equalização, o elemento econômico, ou a necessidade de políticas de re-
distribuição de renda, conforme ressalta Nancy Fraser (FRASER, 2011, p.
332-333), porém, este não é o único critério para a compreensão das desi-
gualdades sociais advindas da miséria.
A superação de injustiças e a dignidade da pessoa humana, portanto,
são viáveis por um processo de equalização e inclusão social, que se dá tan-
to pela redistribuição de recursos econômicos e bens sociais, quanto pelo
reconhecimento do outro (BRESSIANI, 2011, p. 332).
Então, destaca-se que a prática do OP pode romper padrões hierárqui-
cos de valoração cultural, na medida em que é um instrumento democrati-
zante e de inclusão social, permitindo que todas as pessoas integrantes dos
vários setores da comunidade local sejam igualmente reconhecidas, mesmo
em suas diferenças, como, por exemplo, permitir que as lideranças comu-
nitárias feministas possam se manifestar sobre os critérios de relevância da
implementação e gastos com as políticas públicas voltadas para os direitos
das mulheres em determinadas localidades, e, por isso, que a base epistemo-
lógica para entender o OP deve ser a crítica de “O Direito Achado na Rua”.
Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer (SANTOS e AVRIT-
ZER, 2002, p. 81-92) afirmam que o OP é um instrumento de cessão da
soberania por aqueles que a detêm enquanto resultado de um processo
representativo local. A soberania é cedida a um conjunto de assembleias
regionais e temáticas que operam a partir de critérios de universalidade
participativa. O OP, então, baseia-se no princípio da autorregulação sobe-
rana, ou seja, a participação envolve um conjunto de regras definidas pelos
próprios participantes, vinculando o OP a uma tradição de reconstituição
de uma gramática social participativa na qual as regras da deliberação são
determinadas pelos participantes.
Portanto, a participação popular na elaboração orçamentária pode
ser um instrumento eficiente na vinculação da execução das despesas
com os programas e políticas públicas apontadas no projeto orçamentário
anual, pois pressiona politicamente os governantes na observação das pro-

286
Constitucionalismo Achado na Rua

postas orçamentárias, até porque a abertura da participação popular tam-


bém incentiva a fiscalização e a implementação de meios de justificação
das despesas, como, por exemplo, os portais eletrônicos de transparência.
De modo geral, o OP permite a participação de cidadãs e de cidadãos não
eleitas/os na elaboração e/ou alocação das finanças públicas.

3. Pluralismo, diversidade, participação e


democratização dos gastos públicos
Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer (SANTOS e AVRIT-
ZER, 2002, p. 53-54) sustentam que as sociedades latino-americanas pas-
sam por um momento de refundação da democracia, e têm em comum a
possibilidade de redefinição, através da via democrática, de uma identida-
de que havia lhes sido imposta pelos regimes autoritários ou coloniais a
que estavam sujeitas.
Os autores sustentam que somente um conceito de democracia que
coloque a possibilidade de redefinição contínua do político permitirá o
surgimento destas identidades subjugadas pelos colonialismos e autorita-
rismos (SANTOS e AVRITZER, 2002, p. 55).
Nesta perspectiva, a participação política possui um papel fundamental
no processo de redescoberta das práticas societárias dessas sociedades, porque
é por meio dela que aqueles deixados à margem poderão ser incluídos den-
tro do processo democrático, colaborando na própria definição da comuni-
dade em que estão inseridos. A democracia, então, é “um projeto de inclusão
social e de inovação cultural que se coloca como tentativa de instituição de
uma nova soberania democrática” (SANTOS e AVRITZER, 2002, p. 58-59).
A participação social tem sido salientada nas últimas décadas como
elemento importante na consolidação da democratização das políticas pú-
blicas no Brasil.
Trata-se de um movimento intencional de sujeitos interessados, tendo
como objeto central recursos disponibilizados nos espaços públicos, e que
supõe a construção de relações comunicativas em prol do bem comum, da
equidade e da justiça social, principalmente na alocação de recursos públicos
em obras e serviços sociais em comunidades das diversas cidades brasileiras,
o que permite um espaço para a identificação de sujeitos coletivos de direito.

287
Constitucionalismo Achado na Rua

Ressalta-se que não se trata de um espaço deliberativo para a forma-


ção de um consenso sobre o melhor discurso, mas sim um processo em
que vários integrantes de comunidades em regiões urbanas e rurais, dentre
eles as lideranças comunitárias, conselhos de bairros, representantes de
associações civis e ONGs, etc., discutem contingências locais e alocações
de recursos públicos para resolução destas, discutindo inclusive a autorre-
gulação do processo participativo.
Chantal Mouffe, opondo-se ao consenso que a teoria do agir comu-
nicativo de Habermas objetiva, questiona sobre qual de fato é o modelo de
democracia em sociedades contemporâneas e complexas, isto é, ela ques-
tiona sobre o que é uma sociedade democrática, se é uma sociedade pacifi-
cada e harmoniosa onde as divergências básicas foram superadas e onde se
estabeleceu um consenso imposto a partir de uma interpretação única dos
valores, ou se é uma sociedade com uma esfera pública vibrante onde mui-
tas visões conflitantes podem se expressar e onde há uma possibilidade de
escolha entre projetos alternativos legítimos (MOUFFE, 2003a, p. 11-26).
Mouffe (MOUFFE, 2003b, p. 11) defende que é um equívoco acreditar
que uma “boa sociedade” é aquela na qual os antagonismos foram erradi-
cados e onde o modelo adversarial de política se tornou obsoleto. Para ela,
a crise da democracia liberal se deve à redução do político a uma atividade
instrumental, isto é, o esvaziamento do sentido do político decorreu da li-
mitação da democracia a um mero conjunto de procedimentos neutros, da
transformação dos cidadãos em consumidores políticos, e da insistência li-
beral em uma suposta “neutralidade” do Estado (MOUFFE, 1996, p. 19-26).
Na perspectiva democrática defendida por Chantal Mouffe (MOUF-
FE, 1995, p. 3), a elaboração de uma cidadania democrática é crucial para
aquilo que ela chama de “democracia radical”, ou seja, é imperioso reafir-
mar a visão de cidadania com “um sistema de direitos constitucionalmente
garantidos a todos os membros da comunidade política”, e direitos que
devem ser “não apenas políticos, mas também sociais”, de modo a resta-
belecer a ligação entre cidadania política e social, uma contribuição da so-
cial-democracia que o neoliberalismo refuta.
Para Mouffe o objetivo da democracia radical e plural “não é criar um
tipo completamente novo de sociedade, mas usar os recursos simbólicos
da tradição democrática liberal para lutar contra relações de subordina-
ção” (MOUFFE, 1996, p. 20).

288
Constitucionalismo Achado na Rua

A proposta de Chantal Mouffe, então, consiste na radicalização dos


princípios éticos-políticos da democracia moderna, a saber, a ideia de li-
berdade e igualdade para todos. Um projeto que deve ser encarado não
“como uma ruptura com as ideias da democracia moderna, mas como a
realização desses ideais” (MOUFFE, 2002a, p. 10).
Chantal Mouffe critica o pensamento democrático contemporâneo mar-
cado por uma concepção política racionalista, universalista e individualista,
cuja principal fraqueza é manter-se cego à especificidade do político na sua
dimensão de conflito/decisão e não poder apreender o papel construtivo do
antagonismo na vida social. Em face disso, a democracia radical refuta a ideia
de que a noção de antagonismo poderia ser dispensada, e assevera que uma
tal ideia representa um risco à própria democracia, uma vez que nos deixa
desprevenidos perante a manifestação de antagonismos não reconhecidos.
No ensaio “Democracia, cidadania e a questão do pluralismo”, Chan-
tal Mouffe afirma:

O argumento central que buscarei sustentar neste ensaio é que o tipo


de teoria política democrática dominante atualmente não pode nos
ajudar a entender a importância do dissenso numa sociedade demo-
crática. Ela é incapaz de captar as diferentes formas de antagonismos
que emergem em nosso mundo globalizado, pós-guerra fria, e de en-
frentar um tipo de política democrática que poderia dar conta deles.
Isto porque considero que é necessário desenvolver um novo modelo,
ao qual denomino “pluralismo agonístico” e sobre o qual gostaria de
apresentar algumas reflexões (MOUFFE, 2003b, p. 20).

Ao analisar a crítica da democracia liberal de Carl Schmitt, Chantal


Mouffe destaca “o papel central da relação amigo/inimigo em política” e nos
torna conscientes “da dimensão do político que está ligada à existência de um
elemento de hostilidade entre os seres humanos” (MOUFFE, 2003, p. 13). Ela
assevera que Carl Schmitt já advertia “acerca da incapacidade do pensamento
liberal de pensar em termos políticos e do redirecionamento do político para
os discursos econômico, moral e jurídico” (MOUFFE, 2002b, p. 2-3).
O aspecto central do debate entre Schmitt e Chantal Mouffe é, então,
a indagação acerca da possibilidade de estabelecimento de consenso em
um ambiente democrático e liberal, tangenciando a questão do pluralis-
mo e de como poderia o liberalismo coexistir com a democracia. Mouffe,
conclui, que o pensamento liberal é “cego” para o político, que o individua-

289
Constitucionalismo Achado na Rua

lismo liberal não entende “a formação das identidades coletivas” e, acima


de tudo, que “o político em sua dimensão antagônica não desaparecerá
simplesmente por sua negação” e que “uma tal negação conduzida à im-
portância” da própria democracia, como vem acontecendo na “sua inabi-
lidade para compreender a natureza e as causas dos novos fenômenos do
populismo de extrema-direita” (MOUFFE, 2002b, p. 5).
Mouffe defende que a democracia deve permitir a abertura, o reco-
nhecimento da contingência, a aceitação de que os sentidos são plurais,
irredutíveis a uma única possibilidade significativa, eis a proposta da “de-
mocracia radical” (KOZICKI, 2003, p. 142).
A partir do entendimento, segundo o qual, o “adversário” não é um
“competidor”, como defende o liberalismo, mas deve ser entendido como “o
oponente com quem se divide uma lealdade comum aos princípios democráti-
cos de liberdade e igualdade para todos, enquanto discordam a respeito de sua
interpretação”, Chantal Mouffe (MOUFFE, 2002b, p. 8-9) desenvolve a pro-
posta de um pluralismo agonístico, que é uma tentativa de enfrentar os assun-
tos que o modelo democrático deliberativo e o modelo agregativo, com seus
sistemas racionalista e individualista não conseguiram solucionar, em que a
principal tarefa da política democrática não é eliminar as paixões à esfera pri-
vada e estabelecer um consenso racional na esfera pública; mais do que isso,
é domesticar as paixões e mobilizá-las para os fins democráticos, bem como
criar formas coletivas de identificação ao redor de objetivos democráticos.
Chantal Mouffe afirma que:

As conseqüências das teses acima mencionadas para a política de-


mocrática são de longo alcance. Elas nos provêm um terreno teóri-
co necessário para formular um modelo alternativo de democracia,
mais apropriado às tarefas que nos confrontam hoje e que chamei
de “pluralismo agonístico”.
Para esclarecer as bases desta visão alternativa, proponho uma distin-
ção entre “o político” e “política”. Por “político” refiro-me à dimensão
do antagonismo que é inerente a todas as sociedades humanas, an-
tagonismo que pode assumir formas muito diferentes e emergir em
relações sociais diversas. “Política”, por outro lado, refere-se ao con-
junto de práticas, discursos e instituições que procuram estabelecer
uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições
que são sempre potencialmente conflituosas, porque afetadas pela
dimensão do “político” (MOUFFE, 2003b, p. 15).

290
Constitucionalismo Achado na Rua

Mouffe (MOUFFE, 2003b, p. 20) sustenta que é apenas quando ad-


mitimos esta dimensão do “político” e entendemos que “política” consiste
em domar a hostilidade e tentar neutralizar o antagonismo que existe nas
relações humanas, que podemos posicionar a questão fundamental para a
política democrática.
Em face disso, para Chantal Mouffe, a questão fundamental não é al-
cançar um consenso racional, onde não existiriam exclusões, e consequen-
temente, um “eles”, que significaria a própria destruição do conceito de
“nós”. Pelo contrário, a democracia moderna deve reconhecer e legitimar
a existência dos conflitos e criar mecanismos capazes de garantir que os
“outros” sejam vistos como “adversários” e não “inimigos”. Nesta perspec-
tiva, os conflitos, ao invés de tomarem formas antagônicas, de “lutas entre
inimigos”, serão “agonísticos”, com “lutas entre adversários”. O objetivo da
democracia política, para Mouffe, será, portanto, transformar o potencial
antagonismo em agonismo (MOUFFE, 2002b, p. 9).
Essa crítica de Chantal Mouffe sobre o diálogo plural e agonístico
ajuda a entender o processo de tomada de decisões no Orçamento Parti-
cipativo (OP) no Brasil, e dialoga com a crítica de “O Direito Achado na
Rua”, pois permite a identificação dos vários sujeitos coletivos de direito.
Fedozzi argumenta, em artigo científico, que o OP é importante no
cenário político brasileiro, pois, ao longo de anos, a prática orçamentária
não era levada a sério, isto é, o orçamento público, no cenário da política da
sociedade brasileira, foi discutido e planejado enquanto um instrumento das
práticas patrimonialistas, corriqueiras na gestão do Estado. Verifica-se uma
dualidade entre o que está orçado no papel e aquilo que é implementado de
fato, até porque o orçamento público sempre foi “um instrumento privilegia-
do de acesso clientelístico aos recursos públicos através de processos de ‘bar-
ganha’ – seja como troca de favores entre os próprios poderes do Estado, seja
como distribuição de recursos mediante critérios particularistas decorrentes
de interesses pessoais ou privados” (FEDOZZI, 2005, p. 144).
Para Fedozzi (FEDOZZI, 2005, p. 144), este tipo de prática baseada em
regras pessoais dificultam a consolidação e a consumação da cidadania en-
quanto um valor democrático. Desta forma, a discussão sobre os orçamentos
com segmentos excluídos da sociedade civil, pode ser considerada como um
avanço democrático, um processo inclusivo e legítimo, ou seja, o OP ocupa

291
Constitucionalismo Achado na Rua

uma posição importante no sistema decisório da gestão, em face disso a sua


idealização, aceitação e implementação tornam-se um desafio constante.
O processo de tomada de decisões no OP corrobora aquilo que Chan-
tal Mouffe defende no modelo de “democracia radical”, porque possibilita
a existência de identidades coletivas para a viabilidade de projetos de po-
lítica orçamentária (essencial para as contingências de políticas públicas,
como, por exemplo, sistema público de saúde, mobilidade social, sistema
público de educação, saneamento básico, urbanização, etc.), tratando-se
de uma cidadania como “ação coletiva”, e também dialoga com “O Direito
Achado na Rua”, já que funciona em uma estrutura de conselhos ou assem-
bleias realizadas nas comunidades de várias regiões das cidades – seja na
área urbana ou rural, o que fortifica a concepção de cidadania baseada na
permanente e regular participação em atividades políticas que, dada a con-
tingência e a relatividade de todo o sentido ou identidade das sociedades
contemporâneas, não pode admitir o “estabelecimento de uma fundação
única ou de um único centro para funcionar como base de coesão social”
(KOZICKI, 2003, p. 143), até porque existem vários modelos de OP que
respeitam as peculiaridades econômico-financeiras, políticas, culturais,
etc., de cada município que adota esta política orçamentária.

4. A dinâmica do Orçamento Participativo (OP)


No Brasil – país pioneiro na adoção das práticas participativas de
gestão orçamentária – as administrações municipais participativas se
tornaram realidade a partir da experiência inicial realizada em Lages-SC
(ALVES, 1988), no final da década de 1970, a qual se seguiram, nos anos
80, as experiências de Boa Esperança-ES (SOUZA, 1982), de Diadema-SP
(SIMÕES, 1992) e de Recife-PE.
Conforme analisa James Giacomoni (GIACOMONI, 2009, p. 229-
230), o OP ganha força nas administrações comandadas pelo Partido dos
Trabalhadores (PT) e iniciadas em 1989. Além do Município de Porto Ale-
gre-RS, o PT tinha vencido, neste período, as eleições em diversos mu-
nicípios, alguns muito grandes, e, pela falta de uma sistematização desta
experiência orçamentária, tiveram que encontrar caminhos próprios.

292
Constitucionalismo Achado na Rua

Na década de 1990, apesar desta gestão orçamentária prevalecer nas


administrações municipais do PT, outros partidos políticos também ado-
taram o OP, conforme a seguinte tabela (AVELINO e SANTOS, 2014):
Quantidade de experiências de orçamento participativo no Brasil, se-
gundo o partido autor da iniciativa – Brasil, 1989-2000

GESTÃO % OUTROS % OUTROS


OP % PT % PMDB % PSDB
POLÍTICA (DIREITA) (ESQUESRDA)

1989 - 1992 13 92 3,4 - - -

1993 - 1996 53 62 - - - -

1997 - 2000 120 43 11,7 15,9 9,1 20,3

VII Congresso CONSAD, 27 de março de 2014, Painel 01/003,


Participação social e transversalidade, 2014

A tabela também mostra um aumento, no decurso do tempo, do nú-


mero de municípios brasileiros que adotam a prática orçamentária parti-
cipativa. A partir de 2000 era possível encontrar municípios realizando
algum tipo de OP em diversas regiões brasileiras.
A difusão dessa experiência pelo território nacional evidenciou a
sucessiva adoção dos modelos de OPs por cidades com contextos sociais
muito diferentes, peculiarizando a prática no cenário urbano brasileiro,
ao mesmo tempo, em que, trouxe destaque para sua flexibilidade procedi-
mental de acordo com a realidade de cada cidade.
Essa diversificação e expansão dos OPs pelo território brasileiro são
destacadas na pesquisa realizada pelo Projeto Democracia Participativa do
Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Ge-
rais – DCP/UFMG, referente ao período de 1989-2004, conforme a seguin-
te tabela, o gráfico e o mapa2:
Evolução das experiências de OP no Brasil por gestões municipais
(1989/2004)

2 Fonte: AVRITZER, Leonardo; e PIRES, Roberto Rocha C. O Orçamento Participativo e seus


efeitos distributivos sobre a exclusão territorial. SBS – XII Congresso Brasileiro de Sociologia,
GT 24 – Transformações do Estado, 17 de julho de 2011, Belo Horizonte – BH, Sociedade
Brasileira de Sociologia.

293
Constitucionalismo Achado na Rua

Gestões Nº de OPs

1989 - 1992 12

1993 - 1996 36

1997 - 2000 103

2001 - 2004 194

Fonte: Pesquisa OP Brasil – Projeto Democracia Participativa DCP/UFMG, 2004.

Evolução das experiências de OP no Brasil por gestões municipais


(1989/2004)

Fonte: Pesquisa OP Brasil – Projeto Democracia Participativa DCP/UFMG, 2004

Distribuição Territorial das Experiências de OP no Brasil 2001-2004

Fonte: Pesquisa OP Brasil – Projeto Democracia Participativa DCP/UFMG, 2004.

294
Constitucionalismo Achado na Rua

Grazia e Ana Clara Ribeiro (GRAZIA e RIBEIRO, 2003) desta-


cam que grande parte dos OPs tem operado em municípios com mais de
100.000 (cem mil) habitantes, e em importantes capitais e polos regionais
brasileiros (Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Belém, Goiânia, Re-
cife, dentre outras), ainda que se tenha um número pequeno dessas expe-
riências orçamentárias participativas em relação à quantidade de municí-
pios brasileiros (aproximadamente 5.500).
Dessa forma, as autoras concluem que um considerável contingente
populacional está em contato (participa ou conhece) com essa experiência
democrática, demonstrando sua relevância como instrumento de gestão
pública no Brasil, no início do século XXI (GRAZIA e RIBEIRO, 2003).
Como argumentam Marcus Abílio e Ernani Carvalho (PEREIRA
e CARVALHO, 2008), os defensores da democracia participativa, dentre
eles Boaventura Santos, sustentam que o real sentido da democracia foi
esvaziado com o passar dos tempos, e foi reduzido ao simples modelo de
seleção de representantes via voto, isto é, sem participação efetiva da socie-
dade civil organizada (democracia formal). Eles sustentam a necessidade
de mecanismos de controle da sociedade civil sob os atos do governo, prin-
cipalmente no que diz respeito à democracia para a esfera social, em que
um bom exemplo seria o OP.
Boaventura de Sousa Santos denominou o OP de uma concepção dis-
tributiva da democracia e caracterizou-o a partir de três elementos:

Todos os cidadãos têm direito de participar, sendo que as organi-


zações comunitárias não detêm [...] status ou prerrogativas espe-
ciais; a participação é dirigida por uma combinação de regras de
democracia direta e democracia representativa [...]; os recursos de
investimento são distribuídos de acordo com um método objetivo
baseado na combinação de critérios gerais [...] e de critérios técni-
cos (SANTOS, 1998, p. 461-509).

Para Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer, o OP é uma


forma de rebalancear a articulação entre a democracia representativa e a
democracia participativa baseada em quatro elementos:

A primeira característica do OP é a cessão da soberania por aque-


les que a detêm enquanto resultado de um processo representativo
a nível local. A soberania é cedida a um conjunto de assembleias

295
Constitucionalismo Achado na Rua

regionais e temáticas que operam a partir de critérios de universali-


dade participativa. Todos os cidadão são tornados, automaticamen-
te, membros das assembleias regionais e temáticas com igual poder
de deliberação; em segundo lugar, o OP implica na reintrodução de
elementos de participação a nível local, tais como as assembleias
regionais e de elementos de delegação, tais como os conselhos, a
nível municipal representado, portanto, uma combinação dos mé-
todos da tradição de democracia participativa; em terceiro lugar,
o OP baseia-se no princípio da auto-regulação soberana, isso é, a
participação envolve um conjunto de regras que são definidas pelos
próprios participantes, vinculando o OP a uma tradição de recons-
tituição de uma gramática social participativa na qual as regras
da deliberação são determinadas pelos próprios participantes; em
quarto lugar, o OP se caracteriza por uma tentativa de reversão das
prioridades de distribuição de recursos públicos a nível local atra-
vés de uma fórmula técnica (que varia de cidade para cidade) de de-
terminação de prioridades orçamentárias que privilegia os setores
mais carentes da população. As principais experiências de OP asso-
ciam o princípio da carência prévia no acesso a bens públicos a um
maior acesso a esses mesmos bens (SANTOS, AVRITZER, 2002).

Roberto Rocha e Leonardo Avritzer (PIRES, 2005, p. 38) defendem


que o Orçamento Participativo (OP) representa uma alternativa à dinâ-
mica clientelista de alocação de recursos públicos na sociedade brasileira,
porque, por meio do OP, aqueles setores tradicionalmente excluídos po-
dem participar diretamente da disputa pelos investimentos públicos. Nes-
se sentido, o OP pode ser encarado enquanto uma ferramenta útil para o
combate da exclusão territorial, uma vez que possibilita a participação dos
afetados por tal processo e que tem como objeto principal a distribuição de
ativos infraestruturais urbanos.
O OP proporciona a inserção dos cidadãos em instâncias de parti-
cipação social ligadas a processos decisórios em políticas públicas, assim
como também os Conselhos Gestores de Políticas Públicas e Conferências
Temáticas. Este fenômeno de institucionalização da participação politica
tem se diversificado e aumentado no Brasil, servindo de base e aporte ao
desenvolvimento da cultura social de fiscalização sobre a gestão de recur-
sos públicos e cobrança aos que exercem cargos políticos por uma atuação
mais transparente, ética e eficiente.

296
Constitucionalismo Achado na Rua

A diversificação e difusão dessas instancias em municípios do país


sugere que elas já conformam realidade inevitável a gestores e formulado-
res de políticas de uma maneira geral.
Sem desconsiderar a legitimidade e o alcance que outras formas de
participação social têm sobre o desenho das políticas e a atuação da Ad-
ministração Pública, os OPs são atualmente o principal espaço de inserção
da população no processo de tomada de decisões em cidades brasileiras,
oportunizando a inúmeros atores sociais vivências de aprendizagem e in-
teração com outros atores e organizações interessados na construção da
agenda pública de gastos orçamentários.
Os conselhos e assembleias dos OPs têm se revelado como espaços em
potencial à maior organicidade e continuidade da participação social, tan-
to na definição de prioridades e estratégias para a formulação das políticas
públicas, quanto no controle e na fiscalização de sua execução, quando se
verifica a atuação de diferentes atores sociais na reivindicação e fiscaliza-
ção de ações orçamentárias por parte de gestores públicos.
Nos municípios brasileiros, em geral, o OP surge para ampliar a
transparência nas ações orçamentárias dos governos locais, estreitar os
laços com a população e contribuir com o planejamento e gestão dos re-
cursos públicos, além de possibilitar a fiscalização por parte dos cidadãos
sobre a administração municipal dos gastos públicos.
Uma característica dos OPs no Brasil é a condução pelas prefeituras
que convocam as assembléias regionais de maneira a possibilitar a opor-
tunidade de manifestação e participação. O processo de escolha dos can-
didatos a conselheiros realiza-se no interior do movimento comunitário e
caracteriza-se por uma grande informalidade.
Os dirigentes comunitários, as lideranças das diversas entidades en-
volvidas e, especialmente, os integrantes do Conselho cumprem papéis re-
levantes, seja na mobilização da comunidade e na identificação de proble-
mas, seja na fixação das prioridades. Os integrantes do Conselho, principal
instancia do OP, não deixam de contar com certa liberdade.
Analisando o OP do Município de Porto Alegra (RS), Leonardo Avrit-
zer (AVRITZER, 2003, p. 13-60) apontou a importância de essa prática orça-
mentária ser capaz de conciliar no momento da sua implantação propostas
de desenho institucional feitas por diversos atores. Ele afirma que as assem-
bleias regionais, em Porto Alegre, eram praticadas anteriormente pelos mo-

297
Constitucionalismo Achado na Rua

vimentos comunitários, e a forma de conselho foi uma proposta do Partido


dos Trabalhadores, sendo que alguns órgãos, como a Coordenação de Rela-
ções com as Comunidades (CRC) e o Gabinete de Planejamento (GAPLAN),
foram resultados de propostas específicas da Administração municipal. Nes-
se sentido, a originalidade em termos de desenho do OP foi a sua capacidade
de integrar propostas de desenho institucional feitas por diferentes atores.
Luciano Fedozzi (FEDOZZI, 1998, p. 3-4) analisa que o OP de Porto
Alegre está assentado em uma estrutura e em um processo de participação
comunitária guiado por três princípios básicos:

a. regras universais de participação em instâncias institucionais


e regulares de funcionamento;
b. um método objetivo de definição dos recursos para
investimentos, referentes a um ciclo anual de orçamentação
do Município; e
c. um processo decisório descentralizado tendo por base a divi-
são da cidade em 16 regiões orçamentárias.

O autor destaca ainda que, além do crescente número de moradores


e de entidades civis envolvidas com o processo de discussão do orçamento
público de Porto Alegre, o processo é formado basicamente por três tipos
de instâncias mediadoras da relação entre Executivo Municipal e morado-
res da cidade. Então, na primeira instância destacam-se os órgãos internos
do Executivo, Gabinete de Planejamento (GAPLAN) e a Coordenação de
Relações com as Comunidades (CRC). A segunda instância que o autor
destaca é a comunitária, autônoma em relação à Administração Muni-
cipal, formada por organizações de base (Conselhos Populares), Articu-
lações Regionais, União de Vilas, etc., que articulam a participação dos
moradores. Por fim, a terceira instância é formada pelo Conselho do Or-
çamento Participativo, Assembleias Regionais, Fórum Regional, Plenárias
Temáticas e Fórum Temático do Orçamento.
A estrutura do Orçamento Participativo em Porto Alegre pode ser
representada no seguinte diagrama (GIACOMONI, 2005, p. 231):

298
Constitucionalismo Achado na Rua

Luciana Andressa Martins de Souza (SOUZA, 2011, p. 246-247), ao


analisar, em artigo científico, os desdobramentos das relações de conflito
entre o orçamento participativo e o Executivo, o Legislativo e os partidos
políticos no âmbito do governo municipal, e o grau de abrangência de
três experiências de OP desenvolvidas no interior do estado de São Paulo
– Municípios de Matão, São Carlos e Rio Claro – que se assemelham em
vários aspectos, mas se distinguem pelas variações em suas trajetórias.
Destaca que esses mecanismos participativos poucas vezes sobrevivem
às mudanças de governo. E, quando isso ocorre, suas regras de funciona-
mento e até mesmo seu nome geralmente se alteram, evidenciando que
existem processos políticos acontecendo no interior deles que ainda não
foram suficientemente esclarecidos.
O estudo sobre o fenômeno do OP deve utilizar perspectivas mais realis-
tas, por meio da incorporação gradativa de elementos institucionais, eviden-
ciando cada vez mais a necessidade de se analisar o papel das instituições e

299
Constitucionalismo Achado na Rua

dos seus respectivos atores políticos locais na emergência e consolidação des-


sas reformas participativas. Entretanto, Luciana A. M. de Souza verifica que a
relação dessa literatura com as instituições e com os atores que as ocupam é
extremamente superficial (MARTINS DE SOUZA, 2011, p. 254).
A autora evidencia que a sobrevivência ou não do OP depende basica-
mente da existência de uma forte tradição associativa, da “vontade política”
dos governantes de implementá-lo e da influência do desenho institucional,
observado por meio dos elementos organizacionais incorporados a essa práti-
ca. Ela ainda ressalta que a implantação da prática participativa em governos
locais não altera os trâmites institucionais pelos quais o processo orçamentá-
rio se desenvolve, o que inclui o parecer da Câmara de Vereadores (Legislativo
local) em várias etapas dessa “negociação” (SOUZA, 2011, p. 246-255-256).
Luciana Andressa Martins de Souza (SOUZA, 2011, p. 282), analisa
que os desdobramentos dos padrões de relações de cooperação e de confli-
tos entre atores políticos locais explicam em parte a sobrevivência e o grau
de abrangência do OP.
Ela conclui que as variações nos padrões de relações com os poderes Exe-
cutivo, Legislativo e Municipal, além dos partidos que compõem o governo,
mostram as trajetórias da prática orçamentária participativa, nos três casos
estudados, bem como o alcance dessas experiências em termos qualitativos.
Portanto, verifica-se que quanto maior a mobilização social para a
participação no processo orçamentário, quanto mais organizada a socie-
dade civil e as lideranças comunitárias, aliado a uma organização insti-
tucional, com a criação de órgãos permanentes autônomos, por exemplo,
os Conselhos do OP e os Delegados, além da criação de uma agenda que
permita reuniões periódicas nas comunidades, mais eficiente, coesa e du-
radoura é a prática orçamentária participativa.

5. Considerações finais
A efetivação ou execução satisfatória do OP ocorre quando o político
se encontra aberto às práticas participativas, porque o OP é um instru-
mento de política democrática participativa que visa neutralizar o anta-
gonismo que existe nas discussões orçamentárias sobre contingências por
políticas públicas.

300
Constitucionalismo Achado na Rua

Como se verificou neste artigo, apesar de essa ser uma diretriz des-
tacada nas políticas sociais brasileiras, a efetivação da democratização da
gestão pública por meio da participação social nos OPs ainda apresenta
muitos desafios, se considerarmos as mudanças culturais e estruturais
que requer. E, esse instrumento participativo de definição de prioridades
orçamentárias viabiliza a solução de demandas por políticas públicas em
municípios brasileiros, quando se verificam instrumentos institucionais
de acompanhamento, fiscalização e cobrança dos conselheiros e delegados
do OP sobre a destinação de recursos públicos, licitações e contratos ad-
ministrativos das obras e serviços de efetivação de prioridades orçamen-
tárias. Entretanto, torna-se mero instrumento de legitimação das decisões
dos agentes políticos eleitos pelo sistema democrático representativo, afas-
tando-se do ideal de democracia participativa, quando não existem estes
instrumentos fiscalizatórios, ficando a cargo do ordenador de despesas
(agente do Estado) a escolha de implementação ou não das prioridades de-
cididas em plenárias do OP.
Portanto, se o OP for apenas utilizado como um instrumento de legi-
timidade de escolhas orçamentárias do gestor público eleito, então, é ine-
ficiente a participação popular na definição orçamentária pública, por ser,
nesta hipótese, apenas meio de legitimação do discurso do gestor público,
eleito pelo sistema democrático representativo.

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305
Minibiografias

Aderruan Tavares é doutorando e Mestre em Filosofia Política e Teo-


ria Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasí-
lia (UnB), com intercâmbio na Universidade de Bolonha/Itália (UniBo).
E-mail: aderruan87@gmail.com

Alisson Oliveira da Silva é mestrando em Filosofia do Direito pela Uni-


versidade de Brasília- UnB (2022), com pesquisa em descolonização da fi-
losofia dos Direitos Humanos. Formado em Filosofia pela UnB e Direito
pelo UDF. Advogado Criminalista e Professor da Secretaria de Educação
do DF. E-mail: magister.alisson@gmail.com

Benjamin Xavier de Paula é Pós-Doutorando na Faculdade de Direito da


Universidade de São Paulo (FDUSP) e Doutorando em Direito na Univer-
sidade de Brasília (PPGD/FD/UnB). E-mail: benjamin.ufu@gmail.com

Carolina Augusta de Mendonça Rodrigues é Doutoranda em Direitos


Humanos e Cidadania pela UnB e Mestre em Sustentabilidade junto a Po-
vos e Terras Tradicionais pela UnB. Especialista em Direito Público pela
UnB. Procuradora Federal desde 2002, atualmente em exercício na Procu-
radoria Federal Especializada junto à FUNAI. Foi Membro Consultora da
Comissão Especial de Defesa dos Povos Indígenas do Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Tem experiência profissional e de
docência em Direitos Indígenas. E-mail carolaugusta@hotmail.com

Cristian de Oliveira Gamba é Doutorando em Direitos Humanos e Ci-


dadania pela Universidade de Brasília (UnB), Mestre em Direito pela Uni-
versidade Federal do Maranhão (UFMA). Advogado e Psicólogo. E-mail:
cristianjr34@gmail.com

307
Constitucionalismo Achado na Rua

Daniela de Macedo B.R.T. de Sousa é doutoranda em Direitos Humanos


e Cidadania pela Universidade de Brasília (PPGDH/UnB). Mestre em Di-
reito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (PPGD/UnB).
E-mail: danielademacedo@uol.com.br

Daniella de Oliveira Torquato é aluna especial do Programa de Pós- gra-


duação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília
(UnB). Pós-graduada em Psicopedagogia e Orientação Educacional pela
Faculdade Santa Therezinha e Instituto Étikhos. Graduada em Arte Edu-
cação pelo Instituto de Artes-IdA da Universidade de Brasília e em Peda-
gogia pela Universidade Castelo Branco. Professora na SEEDF desde 1996,
tendo atuado na Educação Infantil, Ensino Fundamental Anos Iniciais e
Anos Finais, Educação e Alfabetização de Jovens e Adultos, Ensino Espe-
cial com turmas inclusivas, Coordenação Pedagógica e Educação em Tem-
po Integral. E-mail: dani.dot2023@gmail.com

Daniele Silva da Silva Gonzalez é mestranda em Direitos Humanos e


Cidadania na Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora vinculada
ao Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP/CEAM).
E-mail: danielesilva.direito@gmail.com

Danielle de Castro Silva Lobato é doutoranda e mestra em Ciências So-


ciais pela Universidade de Brasília. Pós-Graduada Lato Sensu em Orientação
Educacional pelo Instituto de Ciências Sociais e Humanas (ICSH). Pós-Gra-
duada Lato Sensu em Docência para a Educação Profissional e Tecnológica
pelo Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). Bacharela e licenciada em
Ciências Sociais pela UnB. E-mail: dani.castro.lobato@gmail.com

Débora Donida da Fonseca é mestranda em Direito, Estado e Constituição


pela Universidade de Brasília (UnB) e graduada em Direito pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: deboradonidaa@gmail.com.

308
Constitucionalismo Achado na Rua

Debora Herszenhut é mestre em antropologia (PPGSA/UFRJ) e douto-


randa em desenvolvimento sustentável (PPGCDS/UNB), documentarista,
produtora e educadora popular. Sua dissertação de mestrado “Militância,
performance e devires: O cinema indígena brasileiro ao longo de três dé-
cadas do projeto de vídeo nas aldeias”, trata do papel desempenhado pela
imagem na construção de relações e da elaboração de identidades étnicas
no contexto político-social contemporâneo, especialmente no que tange à
história da constituição dos direitos legislativos das populações indígenas
brasileiras. Guarda profundo respeito e admiração pelos guardiães da me-
dicina popular, hoje sua grande inquietação tanto artística quanto acadê-
mica. E-mail:deborafh@gmail.com

Eduardo Xavier Lemos é Doutor em Direito, Estado e Constituição pela


Universidade de Brasília em cotutela acadêmica junto à Faculdade de
Direito da Universidade de Sevilha. Professor e pesquisador vinculado à
Universidade de Brasília e ao Instituto de Educação Superior de Brasília
(IESB). E-mail: xavierlemos.adv@gmail.com

Euzilene Rodrigues Morais é aluna especial de mestrado do Programa


de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Pedagoga pela
Universidade Católica de Brasília. E-mail: euzilener@gmail.com

Fernando de La Rocque Couto é doutorando em Direitos Humanos pela


UnB realizando pesquisa sobre a Dignidade Humana. Mestre em Antro-
pologia Social. Bacharel em Sociologia e Antropologia e Licenciado em
Ciências sociais, todos obtidos pela UnB. Professor de sociologia da SEE-
DH. E-mail: larocquefernando@gmail.com

Janaína Carvalho Simões Patriota é aluna especial do Programa de Mes-


trado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduada em Di-
reito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Bacharel
em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Servidora pú-
blica do Superior Tribunal de Justiça. E-mail: janapatriota@gmail.com

309
Constitucionalismo Achado na Rua

José Felicio Dutra Júnior é doutorando no Programa de Pós-Gradua-


ção em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH) do Centro de Estudos
Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB).
Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, De-
senvolvimento e Pesquisa (IDP). Bacharel em Direito pela Universidade
Católica de Brasília (UCB). É advogado criminalista licenciado, e, atual-
mente, ocupa o cargo público de assessor jurídico no Superior Tribunal de
justiça (STJ). E-mail: josefeliciodutra@gmail.com

José Geraldo de Sousa Junior é Professor Titular jubilado, colaborador dos


Programas de Graduação e de Pós-Graduação em Direito e em Direitos Hu-
manos e Cidadania da UnB. Co-coordenador do Grupo de Pesquisa O Direito
Achado na Rua. Ex-Reitor da UnB (2008-2012). E-mail: jgsousa@terra.com.br

Luiz Felipe de Oliveira Pinheiro Veras é Advogado, Cientista Social e Ad-


ministrador. Especialista em Direito Público e em Compliance e Integridade
Corporativa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MI-
NAS), Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Humanidades, Direitos e
Outras Legitimidades da Universidade de São Paulo (USP), Doutorando pelo
Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universi-
dade de Brasília PPGDH/UNB. E-mail: felipe.lfop@hotmail.com

Margareth Conceição Batista é Doutoranda em Direitos Humanos na linha


de pesquisa: O Direito Achado na Rua na Universidade de Brasília, Mestra em
Arte educação, graduada em Pedagogia, licenciada em Artes Visuais, ambas
pela Universidade de Brasília. E-mail: margaretunbbr@gmail.com

Paulo Fontes de Resende é aluno especial do Programa de Mestrado em


Direito pela Universidade de Brasília (Unb). Pós-graduado em Direito Sin-
dical pelo IESB. Advogado. Bacharel em Direito pelo IESB. E-mail: paulo@
fontesderesende.adv.br

310
Constitucionalismo Achado na Rua

Raquel Martins de Arruda Neves é aluna especial do Programa de Mes-


trado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduada em
Ordem Jurídica e Ministério Público pela Escola Superior do Ministério
Público do Distrito Federal. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário
de Brasília (UniCEUB). Servidora pública do Superior Tribunal de Justiça.
E-mail: raquel.neves80@gmail.com

Ricardo Luiz Oliveira do Carmo é Advogado Público, Especialista em Di-


reito Público e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direitos
Humanos e Cidadania da UnB. E-mail: ricardogarra@hotmail.com

Sílvia Angélica Tavares Santos é mestranda em Direito, Estado e Consti-


tuição na Universidade de Brasília (UnB), especialista em Direito do Tra-
balho e Processo do Trabalho pela Faculdade Estácio, graduada em Di-
reito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do Grupo
de pesquisa Trabalho, Interseccionalidades e direitos. Advogada. E-mail:
silviangelicacle@hotmail.com

Valdivina Martins é aluna especial do curso de mestrado do Programa de


Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Assistente Social
pela Universidade Anhanguera. E-mail: val.vcosta@gmail.com

Vercilene Francisco Dias é Quilombola do Quilombo Kalunga, de Caval-


cante (GO). Advogada Popular Quilombola, Bacharel em Direito e Mestra
em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Doutoranda
em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Diplomada em Estudo Inter-
nacional em Litígio Estratégico em Direito Indígena e afrodescendente pela
Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP). Coordenadora da Asses-
soria Jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Associada da Associação Brasileira
de Pesquisadoras (es) Negras (os) (ABPN). Fundadora da Rede Nacional de
Advogados e Advogadas Quilombolas - RENAAQ. Conselheira e Pesqui-
sadora colaboradora do Observatório de Protocolos Comunitários de Con-

311
Constitucionalismo Achado na Rua

sulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado. Representa a CONAQ no


Global Fórum of Communities Discriminated on Work Descent (GFOD).
Coautora do Livro Mulheres Quilombolas Territórios de Existências Negras
Femininas (2020). E-mail: vercilenekalunga@gmail.com

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