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Coordenação

Berenice Reis Lessa e


Maria Christina dos Santos

CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:


Sexualidade, Violência e Família
da Pessoa com Deficiência

2a Edição Ampliada

Coleção Comissões
ADVERTÊNCIA: É totalmente proibida a comercialização e a reprodução parcial
ou total desta obra, sem a devida autorização.

SELO EDITORIAL LIVROS LEGAIS


NCA COMUNICAÇÃO E EDITORA LTDA.
CNPJ: 13.226.606/0001-91
Editora: Maria Isabel Maranhão Ritzmann (Bebel Ritzmann)
Projeto Gráfico e Edição: Roberto Costa Guiraud – Designer
Diagramação: Equipe Edição por Demanda
Revisão: André Braga
Foto Da Capa: Advogados participantes do II Fórum Nacional dos Direitos da Pessoa com Defi-
ciência, em Curitiba, sob o olhar sensível de Evany Gabriela C.S. Marques

261 p.

A realização desta edição deu-se em Curitiba-PR, em Março 2021


OAB/PR
DIRETORIA E CONSELHO

DIRETORIA

Presidente CASSIO LISANDRO TELLES


Vice-Presidente MARILENA INDIRA WINTER
Secretário(a)-Geral RODRIGO SANCHEZ RIOS
Secretário(a)-Geral Adjunto CHRISTHYANNE REGINA BORTOLOTTO
Tesoureiro(a) HENRIQUE GAEDE
Diretor de Prerrogativas ALEXANDRE SALOMAO

CONSELHO SECCIONAL - TITULARES


ADRIANO MOREIRA GAMEIRO JOSE CARLOS CAL GARCIA FILHO
ALAIM GIOVANI FORTES STEFANELLO JOSE CARLOS VIEIRA
ALDO HENRIQUE ALVES JULIO CESAR BROTTO
ANA CARLA HARMATIUK MATOS KELLY CRISTINA DE SOUZA
ANA CLAUDIA FINGER KLEBER CAZZARO
ANA PAULA PAVELSKI LARISSA STELA BOLDRINI
ANDERSON DONIZETE DOS SANTOS LAURY ANGELO FURLAN FAGUNDES
ANDRE FRANCO DE OLIVEIRA PASSOS LEIDIANE CINTYA AZEREDO
CARLOS EDUARDO PIANOVSKI RUZYK LILIANE MARIA BUSATO BATISTA
CESAR AUGUSTO MORENO LUIZ FERNANDO CASAGRANDE PEREIRA
CIRO ALBERTO PIASECKI MARCELO COSTA
CONSUELO GUASQUE MARCOS ANTONIO MAIER CARVALHO
CRISTINA BICHELS LEITÃO MARIANGELA CUNHA
DANIEL AUGUSTO GLOMB MARION BACH
DANIELA BALLAO ERNLUND MAURÍCIO BARROSO GUEDES
DORA MARIA DAS NEVES SCHULLER MAURO JOSELITO BORDIN
EDUARDO MUNERETO MELISSA FOLMANN
EDWARD FABIANO ROCHA DE CARVALHO PEDRO PAVONI NETO
ELITON ARAUJO CARNEIRO ROBERTO ALTHEIM
ELIZANDRO MARCOS PELLIN ROBERTO CEZAR VAZ DA SILVA
EROULTHS CORTIANO JUNIOR RODRIGO LUIS KANAYAMA
EVARISTO ARAGAO F. DOS SANTOS RUI DA FONSECA
FABIO ARTIGAS GRILLO SABRINA MARIA FADEL BECUE
FLAVIO GOTARDO C. DE S. FURLAN SABRINA ZEIN
JAIDERSON RIVAROLA PEREIRA TANIA NICELIA IZELLI
JAZIEL GODINHO DE MORAIS VALTER CANDIDO DOMINGOS
DIRETORIA

Presidente BERENICE REIS LESSA


Vice-Presidente SOLANGE TEIXEIRA CARRILHO FILON
Secretário GABRIEL OTÁVIO DOS SANTOS

MEMBROS

Christhiane Kulibaba Ishi


Erelisa de Souza Vieira Bazan
Eva Janini Moraes da Silva
João Paulo Zuchi Fagundes
Luiz Cesar Alencar Ribeiro
Luiz Marlo de Barros Silva
Marcos Vinícius Moraes Kleinowski
Pedro Batista Marques
Rogério Luis Silva Rosa
Samantha Tisserant Siqueira dos Santos
Valéria Mendes Siqueira
Melize Oliveira Pontes
D
edicamos este livro às pessoas com deficiência,
mães, pais e demais familiares que se mantêm
em constante busca de seus direitos, alcançando
vitórias e sucessos, apesar das adversidades.
AGRADECIMENTOs

A o Dr. Cássio Lisandro Telles, presidente da OAB/PR, cujo apoio irrestrito


viabilizou a concretização deste projeto.

Aos integrantes do Setor de Comissões, os quais com sua habitual


disponibilidade e eficiência têm assessorado a Comissão dos Direitos da Pessoa
com Deficiência, em questões administrativas, desde a sua origem.

Aos membros da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da


OAB/PR, pelas ricas propostas e ações para que a ideia, inicialmente apresen-
tada por sua presidente, se ampliasse, tomasse corpo e, finalmente, chegasse
ao formato ora apresentado aos leitores.

Aos autores dos artigos e depoimentos por sua pronta disposição


para compartilhar os seus saberes e as suas vivências, sem os quais esse
trabalho não existiria.

À equipe de colaboradores desta publicação pelas significativas


contribuições, pelo esforço e pelas incontáveis horas de trabalho.

Ao Dr. José Lúcio Glomb, ex-presidente da OAB/PR, que em sua


gestão (2010-2012) teve a sensibilidade de instituir a primeira Comissão dos
Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/PR.
FICHA TÉCNICA

COORDENAÇÃO:
BERENICE REIS LESSA
MARIA CHRISTINA DOS SANTOS

COLABORADORES:

Cristhiane Kulibaba Ishi Pedro Batista Marques


Gabriel Otávio dos Santos Rogério Luiz Silva Rosa
João Paulo Zuchi Fagundes Samantha Tisserant S. dos Santos
Luiz Cesar Alencar Ribeiro Solange Teixeira Carrilho Filon
Marcos Vinícius Moraes Kleinowski Valéria Mendes Siqueira
Melize Oliveira Pontes

AUTORES DOS ARTIGOS: AUTORES DOS DEPOIMENTOS:


Berenice Reis Lessa Adriana M. Kaiser Tamarozi
Bruna Homem de Souza Osman Berenice Reis Lessa
Carliane de Oliveira Carvalho Enio Rodrigues da Rosa
Cristhiane Kulibaba Ishi Gabriel Otávio dos Santos
Erelisa de Souza Vieira Bazan Izildinha A. de Paula Gomiero
Fatine Conceição Oliveira Jacob Cachinga
Jessica Aparecida Soares Josiane Maria Poleski
Laureane Marília de Lima Costa Marinette Costa Navea
Maria Christina dos Santos Rita de Cássia F. Luz Suenaga
Mário César da Silva Lima Rogério Luiz Silva Rosa
Mariana Rosa Samantha Tisserant S. dos Santos
Melize Oliveira Pontes Sandra Mara Aparecida do Prado
Roberto Wanderley Nogueira Thiago Córdova
Valéria Mendes Siqueira Valéria Mendes Siqueira
Vania Lucia Girardi Wilson Roberto Gomiero

Os autores e coautores são responsáveis pelo inteiro teor de seus


respectivos artigos. No conteúdo dos depoimentos, foi mantida a
autenticidade de expressão de cada depoente.
INTRODUÇÃO

D
e modo geral, os projetos elaborados pela Comissão dos Direitos da
Pessoa com Deficiência da OAB/PR surgem de ideias simples, abstraí-
das de um contexto social, notadamente de situações do cotidiano das
pessoas carentes de um olhar diferenciado sobre questões que lhes são afetas.
Assim foi concebido o livro CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Vio-
lência e Família da Pessoa com Deficiência.

A ideia inicial nos levaria a produzir conhecimento apenas sobre a


Sexualidade da pessoa com deficiência. Queríamos desmistificar certos tabus,
mitos, através de perguntas que iriam encorajar respostas, inclusive, sobre
nossos próprios questionamentos.

A escolha do tema nos levou a dar voz aos protagonistas os quais


trouxeram valiosas informações, inicialmente, com o depoimento de um
homem cego, que viveu um relacionamento amoroso com uma mulher
tetraplégica. Seu relato desenvolve, com reverência, a cumplicidade de uma
vivência com direito à sedução, carícias, fantasias, contadas com detalhes
surpreendentes. Disse ele que as pessoas com deficiência têm seus desejos
sexuais, seus afetos, amores e que a sexualidade independe de qualquer tipo
de deficiência. A partir daí, decidimos ampliar o alcance de nossa proposta.

Entendemos que o tema Violência contra as pessoas mais vulneráveis,


sem proteção, não poderia passar ao largo dessa discussão, vez que ela não
se manifesta apenas por agressões físicas, pela discriminação, pelo abandono,
mas também por atitudes, palavras e até mesmo por omissão, como, por
exemplo, a falta de acessibilidade nas universidades, apontada em alguns
depoimentos. Era preciso levar em conta a violência dentro dos lares dessas
pessoas; o bullying sofrido nas escolas, nos ambientes sociais e a rejeição de
familiares, simplesmente pelo fato de um deles ser uma pessoa diferente…
Estas questões, muito bem colocadas, estão contextualizadas nos relatos
dos autores com surdez, hemiplegia, tetraplegia, paralisia cerebral, cegueira,
esclerose múltipla... Eles expressam sentimentos de parceiros, pais adotivos e
pais de pessoas com Síndrome de Down, com Transtorno do Espectro Autista
– TEA, entre outros. Todavia, fomos além. Trouxemos à baila o indispensável
tema Família. É na célula familiar onde, na maioria das vezes, se concentram
todas essas questões aqui destacadas. Receber um diagnóstico de um filho
com deficiência intelectual, no mínimo, é desafiador! A responsabilidade dos
pais passa por referências que se misturam, em razão da incerteza de como
educar o filho e administrar o seu processo de crescimento até a vida adulta;
como o orientar quanto à sexualidade; o que fazer diante das consequências do
bullying... Como contornar todas essas questões que se concentram no convívio
familiar? Com certeza o leitor vai obter as respostas, conhecer e identificar, nas
páginas a seguir, os aspectos da sexualidade, violência e família, nas formas
vivenciadas. Também irá descobrir, em outras situações apresentadas, a
recuperação de um pai, pelo amor incondicional, pela resiliência, pela entrega,
através da adoção de uma criança com autismo, nos levando a compreender
que um casal também pode se doar e, em contrapartida, receber o amor do
filho que não gerou.

Além disso, é imperioso ressaltar que antecedem a esses depoimentos,


questões práticas e orientadoras do Direito, que nos são apresentadas por
autores altamente qualificados, através de artigos de leitura fácil e acessível,
os quais não poderiam faltar. Precisamos “Conscientizar para Incluir” na
sociedade pessoas com deficiência e familiares que, certamente, carecem
de esclarecimentos e de conhecimento dos direitos que lhes são garantidos.
Neste sentido, este livro foi idealizado, especialmente, para ajudar ao leitor. Os
exemplos de vida trazidos nos depoimentos levam a acreditar que, apesar das
adversidades, existem meios e soluções para se buscar a qualidade de vida, a
igualdade de oportunidades e, à medida do possível, enfrentar os desafios que
lhe são propostos, podendo até alcançar o sucesso. Por que não?

Finalmente, tivemos a intenção de proporcionar ao leitor uma


interessante leitura, além de atingi-lo sentimentalmente, com lições de vida, de
amor maternal, de determinação, de garra para vencer os obstáculos, através
de uma abordagem verdadeira, simples e impactante que nos emociona e
envolve nos relatos daqueles que tiveram a coragem de se mostrar, através de
suas histórias de vida, aqui registradas.

Boa leitura!

Berenice Reis Lessa


Coordenadora
APRESENTAÇÃO

U
m dos méritos desta obra intitulada “Conscientizar para Incluir: sexua-
lidade, violência e família da pessoa com deficiência”, realizada pela
Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Ordem dos Advo-
gados do Brasil Seção Paraná, é sistematizar, em forma de diálogo, textos de
conteúdo técnico de qualidade e depoimentos que retratam a vida, a luta, os
sentimentos e a realidade das pessoas com deficiência e suas famílias. Organi-
zada em duas partes justapostas para promover esse diálogo entre abstração
e realidade, todos os textos se complementam com o propósito de interagir
com o leitor. É, portanto, ao mesmo tempo produto e matéria-prima, fruto e
semente. Convida o leitor a conhecer o resultado do trabalho da Comissão,
a interagir com uma realidade invisível para a maioria, instigando-o fazer seu
próprio juízo de valor sobre a efetividade dos direitos plasmados nesse ver-
dadeiro microssistema jurídico, e, por fim, convoca-o a fazer (sua) parte na
construção de uma sociedade mais justa e menos preconceituosa.

Destaque-se a excelente contribuição da obra para a divulgação de


conteúdos atuais e relevantes, de forma didática, sem abandonar a necessária
crítica às muitas barreiras culturais e sociais a serem vencidas. Direitos funda-
mentais, como saúde e educação, mereceram acurada análise da advogada
Melize Oliveira Pontes no artigo “Planos de Saúde e Internação Domiciliar” e
no diálogo entre o Direito e a Educação das especialistas no tema, advogada
Maria Christina dos Santos e educadora Vania Lucia Girardi. Direitos previden-
ciários são objeto de análise pelas recentes e significativas alterações na legis-
lação sobre a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) após a
reforma previdenciária proporcionada pela Lei 13.982/2020 no cuidadoso tex-
to das advogadas Cristhiane Kulibaba Ishi e Valéria Mendes Siqueira. O direito
de acesso aos bens culturais e o modo como a proteção de direitos autorais
pode representar obstáculos ao acesso às obras literárias pelas pessoas com
deficiência no Brasil são tratados no texto compartilhado entre as advogadas
Bruna Homem de Souza Osman e Jessica Aparecida Soares. A advogada Bere-
nice Reis Lessa, no artigo “Design Acessível e o Emprego da Tecnologia Assisti-
va”, compartilha suas reflexões, fruto de larga vivência profissional, a partir de
uma interlocução com a área de Design e o emprego da tecnologia assistiva.
Delicadeza, sensibilidade e assertividade marcam o texto da publicitária Fatine
Conceição Oliveira, da psicóloga Laureane Marília de Lima Rosa e da jornalista
Mariana Rosa, que questiona o paradigma patriarcal estereotipado do gênero
feminino em “Procuro uma mulher: reflexões sobre violência contra a mulher
com deficiência a partir do filme ‘Maudie’”. Também voltado aos direitos das
mulheres, com clareza e objetividade, o artigo da advogada Maria Christina
dos Santos é amparado tanto na legislação como em jurisprudência atualizada,
“Mulheres submetidas à mastectomia e a Lei 13.146/2015”. A obra abre um
lugar de fala onde nós, leitores, somos colocados em contato com a abissal
diferença entre teoria e realidade, tema tratado no artigo “A implementação
de igualdade social para a pessoa com deficiência”, da Dra. Carliane de Olivei-
ra Carvalho, que aborda como a situação das pessoas com deficiência tratada
pelo direito, pela legislação e pelo Poder Público e como, tanto sua identidade,
como os estigmas e preconceitos são formados nesse contexto. Reduzir esse
abismo é a proposta do Professor e Juiz Federal Roberto Wanderley Nogueira
no artigo “A importância de um Ministro Pessoa com Deficiência no Supremo
Tribunal Federal”, como parte de um amplo processo emancipatório dos direi-
tos e valores da pessoa humana em uma sociedade mais justa. Nessa mesma
linha, outros dois textos escritos com primor colocam em debate o tema do
acesso sob um viés ainda pouco refletido, o da responsabilidade: a advoga-
da Erelisa de Souza Vieira Bazan no artigo “O acesso à Justiça pelas pessoas
com deficiência” identifica as barreiras físicas atitudinais persistentes no nosso
meio, e demonstra que sua redução e gradativa eliminação impõe responsa-
bilidades bastante definidas a cada um dos órgãos e entidades integrantes do
Sistema de Justiça, chamando a atenção, também, para o papel da advocacia;
e o Procurador de Estado Mário César da Silva Lima defende em seu artigo o
maior rigor em relação ao controle e disciplina no cumprimento das normas
de acessibilidade previstas na Lei 13.146/2015, apontando, de forma muito
instigante, fundamentos jurídicos para se inferir uma nova hipótese de impro-
bidade administrativa em face de seu descumprimento.

Impossível não se conectar de imediato com os depoimentos rechea-


dos de franqueza, mas profundamente sensíveis e provocativos que, na obra,
sucedem à primeira parte. Dividida em três sessões (Sexualidade, Violência e
Família), a segunda parte do livro chega a ser desconcertante, tamanho o seu
poder de despertar a empatia do leitor diante de cada uma das narrativas de
pessoas com deficiência ou de seus familiares, e uma certa sensação de de-
sonra diante da constatação de que as palavras recorrentemente empregadas
pelos autores para descrever o modo como muitas vezes se sentem recebidos
pela sociedade sejam: preconceito, estigma, vergonha, descaso, abandono,
solidão, segregação, violência, solidão, crueldade. Mas, redimido pela extraor-
dinária presença dessas pessoas e sua luta descomunal empreendida diaria-
mente por reconhecimento e inclusão, por sua resiliência e até pela compaixão
manifesta diante da ignorância generalizada, o leitor acaba sendo ajudado a
conhecer um pouco mais a fundo o sentido da palavra dignidade e provocado
a também ser parte da mudança, diante da conscientização de que é necessá-
rio e urgente agir, provocado pelos depoimentos de Enio Rodrigues da Rosa,
Thiago Córdova, Gabriel Otávio dos Santos, Rogério Luis Silva Rosa, Rita de
Cassia Fuentes Suenaga, Josiane Maria Poleski, Marinette Costa Navea, Valéria
Mendes Siqueira, Izildinha Aparecida de Paula Gomiero, Samantha Tisserant
Siqueira dos Santos, Sandra Mara Aparecida do Prado, Adriana Maria Kaiser
Tamarozi, Wilson Roberto Gomiero, Jacob Cachinga e Berenice Reis Lessa.

Talvez o grande desafio de cada geração seja o modo como, por nos-
sas ações, cumprimos nosso papel e escrevemos cada capítulo da história que,
no futuro, será lido pelas novas gerações, herdeiras (ou vítimas) de nossas
realizações. E, dentre tantos afazeres que constituem uma parte do que nos
definirá, encontra-se o modo como lidamos com o dever de concretizar a ideia,
o valor e o princípio de que todos os seres humanos são iguais em dignidade
e em direitos. O modo como, a cada nova geração, somos capazes, ou não, de
evoluir, depois de séculos construindo o significado da igualdade. Nesta obra
que tenho a honra de apresentar, observo, como testemunha, a importância
de cada esforço e cada vida envolvida na edificação de uma verdadeira evo-
lução. Parabéns e obrigada a todos os autores e autoras. A quem começa a
leitura, congratulações por esse primeiro passo, que é o interesse pelo tema,
e votos de proveitosa jornada.

Marilena Indira Winter


Vice-Presidente da OAB/PR
PREFÁCIO

O
trabalho realizado pelas 70 comissões temáticas da OAB/PR é notável,
envolvendo o debate de relevantes questões de cidadania. Comissões
que vão desde as principais áreas do direito, civil, penal, trabalhista,
tributário, previdenciário, consumidor, dentre outras, até as comissões que
envolvem direitos específicos, como os direitos das pessoas idosas, das crian-
ças e adolescentes, da diversidade sexual e a comissão dos direitos das pes-
soas com deficiência.

Todas procuram realizar um trabalho não apenas de estudo do di-


reito, mas, sobretudo, de busca efetiva pela concretização da cidadania, sur-
gindo de forma destacada as lutas pela igualdade, pela não discriminação e
pela inclusão.

A Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB/PR tem


se notabilizado pelas iniciativas inovadoras, que servem de modelo inspirador
para ações em âmbito nacional. Foi no seio da comissão paranaense que surgiu
a ideia da criação de um plano estadual de valorização da advocacia exercida
por pessoas com deficiência. A tenacidade dos membros dessa Comissão per-
mitiu elaborar um projeto que serviu de base para a aprovação dessa proposta
como modelo nacional, pelo Conselho Federal: o “Projeto Empregabilidade:
Inclusão da Advogada e do Advogado Pessoa com Deficiência na Advocacia”,
o qual tivemos a honra de apresentar quando éramos conselheiro federal, a
pedido da colega Dra. Berenice Reis Lessa, presidente da Comissão.

Com esta iniciativa da Comissão, o Paraná inovou com o Projeto Em-


pregabilidade, que procura conscientizar escritórios sobre a necessidade e im-
portância de darem oportunidade aos nossos colegas e que também funciona
como uma central de vagas. O projeto é dirigido pela colega Valéria Mendes
Siqueira, que tem deficiência visual e que se mostra incansável, persistente e
invencível nessa luta.

De fato, há uma distância muito grande ainda entre o que diz a Lei
13.146/2015, a lei básica dos direitos das pessoas com deficiência, e aquilo
que ocorre no cotidiano da nossa sociedade. Pouco do que a lei preconiza foi
concretizado, e no âmbito jurídico, para se ter uma ideia, ainda lutamos contra
as deficiências elementares das plataformas de processo eletrônico, que são
pouco amigáveis para grande parte das pessoas com deficiência visual.

A acessibilidade, que deve ser entendida num conjunto muito maior


do que a simplista visão de acessibilidade física a determinados locais, é um
desafio que deve ser enfrentado cotidianamente pela sociedade brasileira,
com vistas a incrementar aquilo que é preconizado pela Lei 13.146/2015, isto
é, a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e au-
tonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, trans-
portes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem
como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou
privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com
deficiência ou com mobilidade reduzida. Acessibilidade também é o direito
universal ao trabalho digno, à educação, aos desfrutes das mesmas oportuni-
dades que todas as pessoas têm. Algo que está bem sintetizado no artigo 53 da
Lei, ou seja: o direito que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade
reduzida viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e
de participação social.

A presente obra é mais uma das iniciativas pioneiras da nossa valo-


rosa Comissão dos Direitos das Dessoas com Deficiência, que procurou organi-
zar, com a contribuição de juristas de várias partes do País, um livro diferente
e atual. Um livro que, novamente, vem com a missão de conscientizar, uma
obra que precisa ser lida especialmente por aqueles que não têm deficiência
alguma, porque observamos nos textos jurídicos e, notadamente, nos relatos
das situações pessoais de pessoas com deficiência, de mães, pais e familiares
que com elas convivem, como, por vezes, simples questões se revelam grandes
percalços na concretização da dignidade humana.

A obra procura debater temas não comumente analisados na ques-


tão da inclusão das pessoas com deficiência, como sexualidade, violência e a
vida familiar, o que traz também um ineditismo capaz de instigar reflexões e
apontar caminhos nesses temas.
É de se cumprimentar essa forma de esquematização da obra, reu-
nindo textos com abordagem técnico jurídico, com relatos de experiências
reais. Ao ler o conjunto dos artigos, somos capazes de entender porque há
necessidade de uma lei de inclusão das pessoas com deficiência e mais do
que isso, porque precisamos, cada um de nós, fazer também a nossa parte, na
busca da igualdade, da quebra das barreiras e obstáculos, sem esperar apenas
dos órgãos governamentais as soluções, porque, como sempre temos dito, a
medida da felicidade de uma nação é relacionada ao grau de igualdade que ela
pratica no seu convívio social, e essa é uma tarefa da sociedade.

Parabéns à Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da


OAB/PR pela organização dessa fantástica obra. O agradecimento também a
todos o(a)s juristas que forneceram seus artigos, fruto de laboriosos e qualifi-
cados estudos e àqueles que deram seus depoimentos pessoais.

Boa leitura!

Cássio Lisandro Telles


Presidente da OAB/PR
Nota da Comissão dos Direitos da
Pessoa com Deficiência da OAB/PR

C
ertamente muitos leitores irão se perguntar quem são e o que fazem
os integrantes da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência na
Ordem dos Advogados do Brasil, no Paraná – OAB/PR. São advogadas
e advogados nomeados pela Presidência da Instituição para assessorar a Di-
retoria e o Conselho Seccional com a finalidade de formular, orientar e acom-
panhar a política de inclusão e acessibilidade em âmbito interno. Dedicam-
se, igualmente, à realização de eventos, trabalhos escritos e ações conjuntas
com entidades afins, voltadas à sensibilização e conscientização da sociedade
quanto à importância de se respeitar, promover e assegurar o exercício dos
direitos humanos das pessoas com deficiência, para que possam participar de
forma plena e efetiva na sociedade.

Acima de tudo, são pessoas como você, com algum tipo de deficiên-
cia. São também mães, pais, familiares ou profissionais que, de alguma forma
ou por algum motivo, de repente tornaram-se ou passaram a conviver direta-
mente com as complexidades e manifestações da deficiência. Nestas condi-
ções, enfrentam a discriminação, o preconceito, o descaso do Poder Público, a
exclusão, a falta de conscientização e, assim, “colocam-se no lugar do outro”,
usando o seu conhecimento jurídico em prol do direito dessas pessoas, na sua
coletividade.

Com este perfil, os integrantes da Comissão vêm desenvolvendo um


trabalho dinâmico, por meio de ações práticas e permanentes, como esta obra
a ser avaliada pelo leitor. Composta por artigos e depoimentos, é resultado de
iniciativas nascidas em reuniões de trabalho e abre oportunidade, tanto aos
seus membros quanto a outros profissionais e pessoas diretamente interessa-
das, para contribuir com seus conhecimentos técnicos e experiências pessoais.

Assim, cientes do muito que ainda falta realizar na inclusão da pessoa


com deficiência, é aqui apresentado o trabalho “Conscientizar para Incluir –
sexualidade, violência e família da pessoa com deficiência”.
Com efeito, desde a sua criação, em 2010, pelo então Presidente da
Seccional, Dr. José Lúcio Glomb, a Comissão vem contribuindo e alcançando
credibilidade e, em 2018, foi honrada com seu reconhecimento regimental
como Comissão Permanente na estrutura institucional da OAB/PR, ou seja,
chegou para ficar!

Berenice Reis Lessa


Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/PR
SUMÁRIO

PARTE I - ARTIGOS JURÍDICOS 23

Importância de um Ministro pessoa com deficiência no Supremo


Tribunal Federal 25
Roberto Wanderley Nogueira
Design acessível e o emprego da tecnologia assistiva 35
Berenice Reis Lessa
A Implementação da igualdade social para a pessoa com deficiência 49
Carliane de Oliveira Carvalho
Mulheres submetidas à mastectomia e a Lei Brasileira de Inclusão 63
Maria Christina dos Santos
Tratado de Marraqueche: promoção da acessibilidade às obras literárias
pelas pessoas com deficiência no Brasil 75
Bruna Homem de Souza Osman e Jessica Aparecida Soares
Planos de saúde e internação domiciliar para pessoas com deficiência 87
Melize Oliveira Pontes
A excepcionalidade de aulas on-line para crianças e adolescente com
deficiência durante o isolamento social 101
Maria Christina dos Santos e Vania Lucia Girardi
O acesso à Justiça pelas pessoas com deficiência 111
Erelisa de Souza Vieira Bazan
Como ficou o Benefício de Prestação Continuada após a reforma
previdenciária e a Lei nº 13.982/2020 119
Cristhiane Kulibaba Ishi e Valéria Mendes Siqueira
“Procuro uma mulher”: reflexões sobre violência contra mulheres com
deficiência a partir do filme “Maudie” 131
Fatine Conceição Oliveira, Laureane Marília de Lima Costa e Mariana Rosa
Acessibilidade no Serviço Público: uma nova hipótese de improbidade
administrativa 143
Mário César da Silva Lima
SUMÁRIO

PARTE II - DEPOIMENTOS 151

SEXUALIDADE 153

Experiências de uma pessoa cega - Enio Rodrigues da Rosa 155

Vivências de uma pessoa com tetraplegia - Thiago Córdova 161

VIOLÊNCIA 169

O bullying e o trauma psicológico - Rogério Luiz Silva Rosa 171

O bullying e suas facetas - Gabriel Otávio dos Santos 177

Violência doméstica e patrimonial - Rita de Cássia Fuentes Luz Suenaga 179

Discriminação e conquistas no esporte - Josiane Maria Poleski 187

FAMÍLIA 195

Adoção de pessoa com deficiência - Anônimo 197

Cuidando do filho com Síndrome de Down - Marinette Costa Navea 203

Perda de visão por negligência - Valéria Mendes Siqueira 211

Viver como esposa, mulher e cuidadora - Izildinha A. de Paula Gomiero 219

Encarando a maternidade e o autismo - Samantha Tisserant S. dos Santos 225

De repente... autista - Sandra Mara Aparecida do Prado 229

Conhecendo a deficiência visual – baixa visão - Adriana M. Kaiser Tamarozi 233

Os desafios da deficiência na vida do casal - Wilson Roberto Gomiero 239

Um imigrante em busca de inclusão - Jacob Cachinga 249

Fazendo a diferença, por missão - Berenice Reis Lessa 257


23

PARTE I
ARTIGOS JURÍDICOS
25

IMPORTÂNCIA DE UM MINISTRO PESSOA


COM DEFICIÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL1

Roberto Wanderley Nogueira2

O
s acontecimentos que decorrem das escolhas políticas para funções
vitalícias da República, a exemplo dos cargos de ministro do Supremo
Tribunal Federal, geram dúvidas, algumas razoáveis, outras nem tanto,
mas que justificam, umas e outras, a exigência social pelo escrutínio dos can-
didatos a esses postos avançados do Poder Público no Brasil. Essa exigência
compõe o espectro político de uma democracia participativa e é importante
que esse exercício se torne uma prática costumeira nas sociedades politica-
mente esclarecidas.

O sistema constitucional brasileiro toma emprestado o norte-ameri-


cano para delegar à Presidência da República a responsabilidade dessa esco-
lha, efetivável após sabatina organizada e empreendida pelo Senado Federal.
Depois de aprovado pela maioria absoluta dos Membros da Câmara Alta, o
nome do(a) candidato(a) indicado(a) segue à nomeação por ato do(a) Presi-
dente(a) da República, desaguando na posse de um novo ministro do STF, de
acordo com um protocolo bem conhecido.

A própria Constituição Federal, em termos abertos, estabelece os


pressupostos para que um(a) brasileiro(a) nato(a) possa ser indicado(a) à
composição da Suprema Corte: deve contar entre 35 e 65 anos de idade, ter
notável saber jurídico e ser notabilizado por uma reputação ilibada. Compete

1 Artigo postado no Blog do Silvinho – o Foco da Política Pernambucana. Disponível em: <https://
blogdosilvinhosilva.blogspot.com/2020/09/importancia-de-um-ministro-pessoa-com.html>.

2 Pós-doutor. Doutor em Direito Público. Professor-adjunto da Faculdade de Direito do Recife


(UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco. Juiz Federal.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
26
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

à Presidência da República, mediante o adminículo do Senado Federal, portan-


to, a aferição desses predicados constitucionais sem cuja presença um nome
não é elegível à Suprema Corte do país (artigo 101 e seu parágrafo único).

Pode-se dizer, em primeiro lugar, que a resposta inicial para o supra-


mencionado escrutínio social diz respeito ao atendimento fiel dos pressupos-
tos da Constituição Federal. Cumpri-los, desse modo, importa em exame de
dados biográficos, curriculares, pretéritos de vida social, política, profissional e
intelectual, enfim. Aquele que se dispõe ao múnus público, sobretudo de carga
suprema, não tem o direito de se negar ao conhecimento público, exatamente
porque vai servi-lo e será pelo povo sustentado no encargo que lhe terá sido
confiado em caráter vitalício.

É grande a responsabilidade dessa empresa. A uma, porque importa


em um exercício de representação política com metodologia técnica para a
qual o candidato deve, sim, estar muitíssimo bem preparado. Esse preparo,
revelado nos títulos acumulados e na experiência, deve reunir na contempora-
neidade aspectos multifacetados do conhecimento humano, à luz do notável
saber jurídico que se lhe atribui, de sua ilibada reputação e da sensibilidade
especial ao fenômeno jurídico para que se torne uma cidadela real de susten-
tação dos direitos individuais e coletivos preconizados no Ordenamento Jurí-
dico da Nação. A duas, porque, mediante as próprias faculdades humanas, lhe
é confiada a exponencial atribuição de dar corporeidade ao Estado-Jurisdição
(no caso, em máxima instância no espaço interno), que é precisamente o papel
a desempenhar no cotidiano da vida judiciária, o qual se densifica e se mate-
rializa constantemente na medida em que se mantenha fiel ao Direito posto, à
Constituição e às Leis. Na Suprema Corte, suas decisões vão se integrar a um
Colegiado formado por 11 (onze) ministros, mas nem por isso devem ser ado-
tadas sem a consciência de tudo isso. O Supremo Tribunal Federal é a instância
máxima do Poder Judiciário da República Federativa do Brasil. Assim sendo,
trata-se de uma Instituição e não de uma corporação de ofício.

Desse modo todo ativismo judicial deve ser entendido como excep-
cional e, sobretudo, obtemperado em face dos permissivos legais. Fora da
Roberto Wanderley Nogueira 27

Lei não há solução pacífica para nada nesta vida, ainda que nobres sejam os
consideranda com os quais se empenhe o intérprete para fazer valer os seus
valores, e não os valores constitucionalizados. Para uma reflexão generalista
dos postulados primevos da sociedade a que o magistrado está a serviço, cum-
pre ter a sobranceira humildade científica de compreender que cabe ao poder
constituinte – originário e derivado – e também ao Poder Legislativo proceder,
consoante a dinâmica de seus funcionamentos político-jurídicos (clássicos). De
fato, o juiz não é um legislador e a consciência técnica que o forja como opera-
dor do sistema jurídico é que se lhe aperfeiçoa a dignidade da própria função
e o conserva, sobranceiro, na própria atividade jurisdicional como elemento
integrante da engrenagem do Estado de Direito. Esse perfil confere ao Ma-
gistrado plena legitimidade de ação, motivo pelo qual, dentro dessas balizas
lógicas, priva de faculdades formidáveis para produzir decisões livres, calcadas
na racionalidade do próprio sistema jurídico (independência funcional).

Adicionalmente, mas não menos importante, cumpre destacar uma


singularidade que compõe a agenda política da Nação brasileira desde o ad-
vento da mencionada Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-
cia, sob os auspícios da ONU, assinada pelo Brasil em Nova Iorque e mais tarde
internalizada com status de Emenda Constitucional, de acordo com a fórmula
do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal.

Sobre isto, parece claro que a deficiência, embora presente em ¼ da


população brasileira (IBGE 2010), não marca critério algum aferidor de atri-
butos, competências e habilidades, sobretudo para fins de inserção ou rea-
bilitação em algum posto mais ou menos importante, social e politicamente
falando, caso de uma até agora inédita investidura em cargo de ministro do
Supremo Tribunal Federal. Por que não?

A propósito, com ou sem deficiência, a pessoa dispõe de múltiplos ta-


lentos, virtudes, habilidades e competências não necessariamente associados
às limitações humanas, sejam elas físicas, psicossociais, sensoriais, intelectuais,
mesmo múltiplas ou de qualquer outra natureza ou grau de severidade, as quais
comumente não são superadas em razão de barreiras que a sociedade precisa
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
28
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

trabalhar para eliminá-las e saber como fazê-lo com máximo grau de eficiência e
operacionalidade. Para isso, carece de massa crítica e aparelhamento funcional
e atitudinal indispensáveis em todos os setores públicos e privados da socieda-
de. Essa pauta compõe o espectro de um status pós-moderno e contemporâneo
que marca as relações sociais doravante no Estado de Direito democrático, que
não prescinde da participação de todos na construção da felicidade geral e que
abandona a tutela e a opressão como mecanismos de conservação de privilé-
gios que não se podem validamente tolerar.

Desse modo, contar com um magistrado que conheça pela razão da


própria experiência da discriminação sofrida ao longo da vida e dos conheci-
mentos associados que hauriu e os pratica e também os leciona na atividade
judicial e acadêmica, ao par de suas competências e habilidades clássicas, re-
veladas em sua biografia curricular e calcadas numa experiência considerável,
sobretudo na própria magistratura e sem nódoas, além de produtiva, engajada
e racional, especialmente eficiente e notabilizada no próprio meio social des-
sa atuação e na atividade acadêmica, pedagógica, de pesquisa, na produção
científica aplicada bem assim noutros campos da atividade humana, tudo devi-
damente comprovado, faz toda a diferença para se dispor de ministro à Supre-
ma Corte de fato dotado de real sensibilidade para compreender o alcance, o
significado e as perspectivas normativas que hão de resultar de uma adequada
incidência da Convenção de Nova Iorque entre nós e de todas as disposições
por ela influenciadas.

Tem-se observado, outrossim, que a Convenção sobre os Direitos


das Pessoas com Deficiência, embora se trate de uma Constituição dentro da
Constituição Federal, é pouquissimamente conhecida entre os denominados
operadores jurídicos e, se conhecida, malferida, ante a crônica falta de sensi-
bilidade ao desate das questões que envolvem os direitos desse grupamento
social que se eleva, conforme esclarecido acima, ao patamar de ¼ da popu-
lação nacional, algo em torno de 47 milhões de brasileiros. Some-se a eles o
enorme contingente de seus parentes, cônjuges, simpatizantes e militantes do
campo dos direitos humanos que se terá uma noção dessa massa de interes-
Roberto Wanderley Nogueira 29

sados em soluções juridicamente adequadas, e em última instância, para esse


segmento nada desprezível do povo. Na Suprema Corte, um magistrado com
essa envergadura faria um contraponto formidável à densificação de todo esse
universo normativo, sem prejuízo das demais rotinas que o estariam a aguar-
dar no desate de suas funções de competência jurisdicional próprias. Parecem
fartas as vantagens sociais, políticas, filosóficas e institucionais pelas quais um
ministro pessoa com deficiência viesse a ser alçado aos quadros da Suprema
Corte do Brasil.

Realmente, vencidas as barreiras de gênero e étnicas, cumpre à Na-


ção brasileira, agora, vencer, também e principalmente, a barreira de atitude
que envolve o pressuposto de que todo aquele que tiver algum tipo de limi-
tação física, psicossocial, intelectual, sensorial ou múltipla deve ser tratado
como “peso social” e não se admite que exercite qualquer protagonismo
digno de nota e de transformação da própria sociedade. Ao par do descala-
bro que essa cultura silenciosa de exclusão suscita, convém esclarecer que os
talentos adormecidos de tão farta parcela da população brasileira precisam
despertar, também em face da especial simbologia que será o advento de um
ministro pessoa com deficiência ao Supremo Tribunal Federal que, natural-
mente, reúna todos os predicados constitucionais para assumir tão elevado
posto da República.

Seria como que um primeiro passo concreto à inserção proativa des-


se contingente social nos negócios de Estado para estimular novas conquistas
até à completa igualdade social. Ora, em toda a história da Suprema Corte
brasileira, jamais foi incorporado em seus quadros alguém com algum tipo
de limitação tecnicamente definida como tal. Aliás, em nenhum momento da
história do Poder Judiciário nacional, Tribunal algum até muito pouco tempo
atrás incluiu a reserva de vagas para ingresso nas carreiras da Magistratura, a
despeito do comando constitucional preconizado no art. 37, inc. VIII, da Carta
Política, das disposições da Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989 e do art.
37, § 1º, do Decreto Federal 3.298, de 20 de dezembro de 1999, bem assim do
art. 5º, § 2º, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
30
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Enfim, do mesmo modo que foi a luta pelo advento da redentora


Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, um movimento na-
cional se eleva, vertiginoso, crescentemente, e que nada tem de ingênuo, mui-
to menos de maldoso, no intuito de desfraldar mais uma bandeira, firmada no
protagonismo de seus enredos funcionais e categóricos a suscitarem proati-
vidade, visibilidade e efetivação dos direitos das pessoas com deficiência no
Brasil. A presença firme e resoluta de um ministro com deficiência na Suprema
Corte vai acalentar os sonhos e os desafios dessa parcela não desprezível da
população, ante a certeza de que, doravante, as pessoas com deficiência es-
tarão sendo, finalmente, tratadas de igual para igual, e não como se fossem
desqualificadas para a vida social produtiva. O exemplo arrasta. Praticar sem
contingenciamentos os parâmetros acervados na norma convencional é resga-
tar a própria cidadania adormecida ou crudelizada dessas pessoas. É o que se
espera do Brasil em relação aos seus filhos da invisibilidade. Guarnecer essa
prática de uma visão compatível com o modelo normativo preconizado é fun-
damental, haja vista um lema que ressalta justamente dos fundamentos e va-
lores que cristalizaram essa norma universal de direitos fundamentais: NADA
SOBRE NÓS, SEM A NOSSA PARTICIPAÇÃO!

Pode-se, ainda, facilmente descrever o efeito simbólico de uma tal


indicação ao Supremo Tribunal Federal, espaço no qual todo debate jurídico se
aterma e em que toda solução legal encontra o seu epílogo no âmbito interno
da Federação. Uma tal indicação, além do mais, anunciaria ao país e ao mundo
que as pessoas com deficiência somos de fato capazes para realizar o desafio
da liberdade e de uma vida realmente autodeterminada, o mesmo que sucede
às demais pessoas sem traços de limitação permanente de qualquer natureza
ou intensidade. Redescobrindo-se a si mesmas, ainda que no aspecto por en-
quanto simbólico e dando mostras de que somos capazes, o bloqueio cultural
que deriva das diversas formas de atitudes preconcebidas tende a reciclar-se
na direção de sua eliminação. Um país grandioso não pode conviver com o
preconceito por muito tempo, pois esse quadro é autofágico.

A construção jurídica adequada sobre os novos paradigmas que já


Roberto Wanderley Nogueira 31

estão constitucionalizados no Brasil contribuirá para a emancipação social de


muita gente que aspira, com ansiedade tardinheira, por ser reconhecida como
protagonista do seu tempo, e não como mero contingente humano, subjugado
e pesaroso.

Querendo viver sem tutelas externas e internas, quer sejam corpora-


tivas, sociais, afetivas ou institucionais – e disso têm todo o direito – as pessoas
com deficiência no Brasil pedem passagem, enquanto cidadãs, em direção ao
futuro. Para isso, reclamam espaço, respeito e liberdade real para que possam,
juntamente com todas as demais pessoas, realizar-se plenamente em seus di-
reitos e em sua cidadania. Sobretudo, pretende-se vencer, talvez, a mais per-
versa de todas as barreiras: o preconceito!

É chegada a hora de quebrá-lo de um modo particularmente emble-


mático e eloquente.

Devemos todos estar prontos e preferencialmente unidos para en-


frentar mais esse desafio: a indicação, afinal, de um ministro com deficiência
para o Supremo Tribunal Federal, dado que a solução não encontra conjuntura
que seja desfavorável e que, pela postergação de décadas, realmente, não tem
mais e porque aguardar. Trata-se de uma questão de Justiça e de vida inter-
grupal e plenamente participativa. Outra inferência pressupõe a conservação
de privilégios que já vêm compondo a pauta da crítica social hodierna, sem-
pre baseada em recorrente desconhecimento de causa ou na obtusidade dos
agentes públicos e daqueles que atuam na iniciativa privada.

Outrossim, ganhamos todos os de boa vontade com a ascensão de


um representante das pessoas com deficiência conquanto jamais presentes na
Suprema Corte, um órgão essencial para os seus destinos e aspirações legais
para todos.

Importa realçar que não é a deficiência que qualifica o agente pú-


blico ou privado, mas, detendo qualidades e sendo pessoa com deficiência,
pode reunir melhores condições de trabalho e de aptidão funcional para o
exercício de múltiplas funções, exatamente por ser uma pessoa mais sensível
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
32
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

aos problemas humanos. A experiência forja. A dor humana faz crescer. Isso
tudo parece muito claro até mesmo ao senso comum. Só é preciso vencer o
preconceito ainda arraigado na sociedade brasileira.

Para concluir.

De tudo o que aqui se expõe, constata-se não só a pertinência con-


temporânea do tema, mas sua importância institucional na construção per-
manente de uma sociedade mais justa, qualificada e condizente com o seu
potencial de liberdade, emancipação e vida plena para todos, efetivamente
participada.

Do mesmo modo, considera-se que toda análise qualitativa de meios


e resultados, quanto à empregabilidade e ocupação funcional das pessoas
com deficiência física, intelectual, sensorial ou múltipla depende, sobretudo,
do exercício pleno da inclusão, enquanto pressuposto social de resgate das
desigualdades e das injustiças cronificadas no socius. Essa atitude de incluir
– ultima ratio – consiste em assegurar o acesso, a permanência e os recursos
assistivos às pessoas com deficiência no respectivo espaço de trabalho.

Cumpre, pois, sem obsessão identitária, eliminar as deficiências, eli-


dir as limitações, prevenindo-as, compensando-as ou reabilitando-as, em geral
e, muito especialmente, no âmbito do trabalho e das funções públicas mais
elevadas, nunca, porém, com diminuição das pessoas com deficiência, as quais
devem ter sua dignidade humana inteiramente respeitada, chamadas a parti-
cipar em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os espaços
no socius.

A inclusão emancipatória, vale a ênfase retórica, das pessoas com


deficiência, inclusive quanto à questão da empregabilidade nos mais amplos
segmentos, é dever da sociedade, das empresas e do Estado e direito delas,
enquanto persistirem as condições de desigualdade que marcam o perfil de
países periféricos como o Brasil.
Roberto Wanderley Nogueira 33

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05/10/


1988. In: Vade Mecum. 17 ed. rev. ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.
______. Decreto Federal 3.298, de 20/12/1999. Regulamenta a lei nº 7.853, de
24 de outubro de 1989, dispõe sobre a política nacional para integração da pes-
soa portadora de deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras pro-
vidências. Disponível em: <https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=DE-
C&numero=3298&ano=1999&ato=a55k3Zq5keNpWTe7a>.
_______. Decreto nº 6.949, de 25/08/2009. Promulga a Convenção Internacio-
nal sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
decreto/d6949.htm>.
______. IBGE. Censo Demográfico 2010 – Características gerais da população,
religião e pessoas com deficiência. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.
br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf>.
_______. Lei nº 7.853, de 24/10/1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas porta-
doras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para
Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde, institui a tutela jurisdi-
cional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação
do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7853.htm>.
______. Lei nº 8.112, de 11/12/1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servi-
dores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.
In: Vade Mecum. 17 ed. rev. ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.
_______. Lei nº 13.146, de 06/07/2015 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência. Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: Vade Mecum. 17 ed.
rev. ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.
35

DESIGN ACESSÍVEL E O EMPREGO


DA TECNOLOGIA ASSISTIVA

Berenice Reis Lessa1

1. INTRODUÇÃO

A
Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Estatuto da Pes-
soa com Deficiência, sob nº 13.146, de 6 de julho de 2015, atribui ao
Poder Público fomentar a capacitação tecnológica de instituições públi-
cas e privadas, além de estimular pesquisas e desenvolvimento científico, a fim
de orientar as políticas públicas para o acesso a tecnologias assistivas e sociais,
direcionadas a promover a democratização da tecnologia para as pessoas com
deficiência.

Volta-se à melhoria da qualidade de vida e à possibilidade de redu-


ção de desigualdades de oportunidades no trabalho, na educação, na saúde,
inclusive, na comunicação, entre outros.

Para viabilizar as ações de sustentação de um programa socioeconô-


mico no empenho de promover a inclusão dessas pessoas, fez-se necessário
elaborar uma normatização específica, a partir de um marco legal para o desen-
volvimento da tecnologia assistiva. Busca-se, assim, facilitar a vida dos que ne-
cessitam desses recursos ou ajuda técnica, através do estímulo para a adoção de
soluções que atendam às pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida.

1 Coordenadora deste livro. Advogada, escritora, pós-graduada em Direito Administrativo, es-


pecialista em Direito Previdenciário, presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com
Deficiência da OAB/PR, membro da Comissão Nacional congênere, no Conselho Federal da
OAB, representou o Conselho Federal da OAB, na 3ª Conferência Nacional dos Direitos da
Pessoa com Deficiência - CONADE, em 2012. Em 1986, idealizou e coordenou o Movimento
Pela Participação do Deficiente, na Constituinte.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
36
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Sem pretensão de esgotar o tema, essas questões e outras correlatas


são apresentadas neste trabalho, demonstra-se, inclusive, a quem a tecnologia
assistiva se destina e a sua aplicação na prática, à luz da legislação pertinente.

2. OS AVANÇOS CONSTITUCIONAIS PARA A INCLUSÃO


SOCIAL

A despeito da Emenda Constitucional nº 12, de 1978, “assegurar a


melhoria da condição social e econômica da pessoa com deficiência”, destaca-
se a partir daí a necessidade de instrumento legal para a promoção da aces-
sibilidade. Na forma do disposto no inciso IV de seu artigo único, que institui
a garantia da “possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos”, es-
ses direitos ficaram segregados, constando apenas como apêndice ao texto da
Constituição Brasileira de 1967 e, mesmo assim, como letra morta, sem surtir
os efeitos jurídicos esperados.

Contudo, a partir da Constituição Federal de 1988, pode-se finalmen-


te obter algumas conquistas e avanços, como se constata no parágrafo 2º do
seu artigo 227, que estabelece o início do marco legal desses direitos e a ma-
triz das leis posteriores direcionadas especificamente às pessoas com deficiên-
cia, de todas as áreas.

Diz o parágrafo 2º- A lei disporá sobre normas e construções de


logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veí-
culos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às
pessoas portadoras de deficiência.

Apesar da importância desse dispositivo, a imposição constitucional


não foi suficiente para alavancar o processo de efetivação das transformações
que clamavam por acessibilidade.

Todavia, na esteira desses direitos, seguiram-se outros. Atualmente,


existem, no ordenamento jurídico brasileiro, três principais instrumentos de
Berenice Reis Lessa 37

proteção aos direitos das pessoas com deficiência que constituem o arcabouço
legal para o embasamento de quaisquer medidas legislativas ou administrati-
vas. Em todo o sistema legal, há o propósito de assegurar o exercício pleno dos
direitos humanos, notadamente, dos direitos concernentes às pessoas com
deficiência. São eles: a Constituição da República Federativa do Brasil; a Con-
venção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência – Convenção da ONU e
seu Protocolo Facultativo; a Lei Brasileira de Inclusão – Estatuto da Pessoa com
Deficiência.

2.1 Constituição da República Federativa do Brasil

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5


de outubro de 1988 que, no seu artigo 24 e inciso XIV, trata de “estabelecer à
União, aos Estados e ao Distrito Federal a competência para proteção e inte-
gração social das pessoas portadoras de deficiência”, bem como a prevalência
dos direitos fundamentais e sociais.

Importa observar que, nesse modelo de proteção social de integração,


a sociedade é levada aceitar as pessoas com deficiência, com as suas diferentes
limitações, no entanto, sem que a ela fosse delegada a responsabilidade de lhes
proporcionar oportunidades, tampouco os meios de acesso aos espaços para a
sua inserção social. Nessa concepção, apesar da Constituição garantir direitos
específicos à pessoa com deficiência, como diz HAMZE (2020):

[...] o integrar constituía localizar no sujeito, o foco da mudança


e as reais dificuldades encontradas no processo de busca de “nor-
malização” da pessoa com deficiência... [isto é] ...as diferenças, na
realidade, não se aniquilam, mas devem ser administradas no con-
vívio social.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
38
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

2.2 Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência –


Convenção da ONU e seu Protocolo Facultativo

A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência – Conven-


ção da ONU – e seu Protocolo Facultativo, aprovados pelo Congresso Nacional,
com status de Emenda Constitucional, por meio do Decreto Legislativo nº 186,
em 9 de julho de 2008, diz, no seu artigo 9º, que:

a fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma inde-


pendente e participar plenamente de todos os aspectos da vida, os
Estados Partes tomarão as medidas apropriadas para assegurar às
pessoas com deficiência o acesso em igualdade de oportunidades
com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação
e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação
e comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos
ao público e ao uso público, tanto na zona urbana, como na rural.

A partir dessa premissa, a Convenção da ONU incorpora no ordena-


mento jurídico pátrio, o princípio da “plena e efetiva participação e inclusão na
sociedade” e impulsiona a consequente transformação social no Brasil, confor-
me veremos a seguir.

2.3 Lei Brasileira de Inclusão – Estatuto da Pessoa com Deficiência

Em razão deste imperativo constitucional, a Lei Brasileira de


Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI promoveu a sua adequação à
Convenção da ONU, e também cuidou de determinar, nos seus acréscimos
finais, as mudanças em dispositivos legais, mediante alteração e revogação
de artigos e de leis vigentes que não estejam alinhadas àquelas diretrizes,
em relação à necessidade da proteção e do respeito à dignidade das pessoas
com deficiência.

Sendo assim, no seu artigo 5º, convoca a sociedade a rever os seus


conceitos, as atitudes, as interações no cotidiano, em relação à pessoa com
Berenice Reis Lessa 39

deficiência, a quem foi assegurada a proteção contra “toda e qualquer for-


ma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade,
opressão e tratamento desumano ou degradante”, em obediência ao princípio
da inclusão consagrado na Convenção da ONU.

Observe-se que, neste enfoque da inclusão, a Lei em comento res-


salta questões relativas à pessoa com deficiência, posicionando-a ao cen-
tro das preocupações, de forma a responsabilizar tanto o Governo, como as
instituições públicas e privadas e a sociedade em geral, como partes inte-
grantes das estratégias para a efetivação do desenvolvimento sustentável.

Isto faz refletir que, diferentemente do modelo de integração, como


assegurado na Constituição, a responsabilidade para viabilizar a inclusão, pas-
sou a ser compartilhada. De acordo com afirmação de HAMZE (2020):

a ideia de inclusão antevê influências decisivas e assertivas, em am-


bos os lados da situação: no processo de desenvolvimento do su-
jeito e no processo de reajuste da realidade social. Com isso, atua
no sentido de nelas causar as adequações e legitimações (físicas,
materiais, humanas, sociais etc.) indispensáveis ao cotidiano das
pessoas com deficiência.

3. DESIGN ACESSÍVEL E A INCLUSÃO SOCIAL

Parece oportuno alinhavar alguns comentários referentes à reação que


teve a autora ao receber convite para falar sobre “Os Aspectos Jurídicos do De-
sign”. A exposição seria para jovens universitários, alunos da disciplina que se
encontra na matriz curricular do Curso de Bacharelado em Design. No enfoque,
o curso está estruturado para formar um profissional capacitado para desenvol-
ver projetos e sistemas que associem, de forma harmoniosa, informações vi-
suais, artísticas, culturais e tecnológicas de modo contextualizado. Entre outros
princípios, o designer deve respeitar e valorizar a diversidade e o potencial de
todas as pessoas, em relação ao meio socioeconômico em que irá atuar.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
40
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Em estudos realizados pela autora até aquele momento, não se ha-


via deparado com a necessidade de fazer uma reflexão sobre o trabalho desse
profissional, em especial daquele com ideias criativas, inspiração e com uma
percepção sensível, o qual, com a colaboração do arquiteto, é capaz de con-
ceber o modelo de um protótipo com objetivo de proporcionar uma vida com
autonomia às pessoas com perda dos movimentos dos braços, tronco e pernas,
ou com amputação de algum membro do corpo. Também nesse contexto, estão
as pessoas com problemas neurológicos consequentes de paralisia cerebral, de
acidente vascular cerebral – AVC, as acometidas de cegueira, as com surdez e,
ainda, as com deficiências intelectuais, múltiplas deficiências e outras.

Todas essas pessoas usuárias de produtos aos quais são agregadas


ajudas técnicas e/ou recursos de tecnologia assistiva, personalizados ou não
e adequados às suas necessidades, desenvolvem as atividades diárias e pon-
tuais, da forma mais normal possível. Passam, então, a se beneficiar em razão
da igualdade de condições com as demais pessoas, em autonomia e indepen-
dência, devido ao resultado de um projeto que tem origem no desenho criado
pelo designer, embora seja desenvolvido e testado por outros profissionais.
Aos engenheiros, fisioterapeutas e ergonomistas e outros, cabe estudar a re-
lação do objeto com o ser humano, no sentido de adequá-lo às respectivas es-
pecificidades da deficiência e às características individuais do usuário, levando
em conta as funções que ele desempenha no seu cotidiano. Pode-se inferir
daí que se está diante de um processo para viabilizar a inclusão social de um
indivíduo, ao considerar que esse conjunto de ações auxilia na participação
igualitária de todos na sociedade, independente da classe social, da condição
física, da educação, do gênero, da orientação sexual, da etnia, bem como de
outros fatores.

Como ilustração ao texto, veja-se exemplos de peças inicialmente de-


senhadas por um designer e projetadas e testadas pelos demais profissionais,
conforme a necessidade do usuário e a especificidade da deficiência, onde
são detalhadamente estudadas as dificuldades, a finalidade de uso, medidas,
peso, altura do usuário, etc. Como exemplifica BERSCH (2020), as próteses
Berenice Reis Lessa 41

para escalada no gelo, pernas mecânicas para atletas... elas substituem partes
ausentes do corpo.

Por sua vez, as órteses vêm atender àquelas pessoas que perderam
a função de partes do corpo, são peças colocadas junto a um segmento do
corpo, ou seja, braços, mãos, dedos, botas ortopédicas, etc., muitas vezes
fixadas por talas, garantindo-lhe um melhor posicionamento, estabilização e/
ou função. São normalmente confeccionadas sob medida e servem no auxílio
de mobilidade, de funções manuais (escrita, digitação, utilização de talheres,
manejo de objetos para higiene pessoal), correção postural, entre outros
BERSCH (2020).

4. TECNOLOGIA ASSISTIVA: Conceito e objetivos

Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE rea-


lizou o censo demográfico e incluiu, em sua pesquisa, questionário para se
conhecer o quantitativo de pessoas com deficiência das áreas física, visual,
auditiva, mental e motora, e seus graus de severidade, o que permitiu subsi-
diar políticas públicas específicas, tendo-se declarado nestas condições 23,9%
da população brasileira, ou 45,6 milhões de pessoas. Tornou-se urgente maior
atenção do Governo Federal, que assume o protagonismo de referendar as
políticas específicas tracejadas nos textos constitucionais e inicia o processo
de resgate de cidadania dessa parcela da população, com a colaboração dos
Estados, Municípios e da população.

Entende-se que é preciso criar meios e condições para a participação


social, através das oportunidades de:

• Poder escolher a profissão que vai exercer, em instituições de ensino


que favoreçam a aprendizagem, com o suporte de materiais didáti-
cos, equipamentos e recursos de tecnologia assistiva;
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
42
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

• Competir em igualdade de condições a uma vaga de emprego com


provisão dos recursos de tecnologia assistiva, de agente facilitador e
de apoio no ambiente de trabalho;

• Poder utilizar transporte coletivo terrestre e aéreo com acessibilida-


de, e veículo adaptado que tenha, no mínimo, câmbio automático,
direção hidráulica, vidros elétricos e comando manuais de freio e de
embreagem;

• Ter acesso aos serviços de saúde, tanto públicos como privados, e às


informações prestadas e recebidas, por meio de recursos de tecno-
logia assistiva e de todas as formas de comunicação, que atendam às
especificidades das pessoas cegas e surdas, como o auxílio do Braille
e da Libras, dentre outros.

• Ter moradia com acessibilidade, submetido o projeto arquitetônico às


normas da Associação Brasileira das Normas Técnicas – ABNT NRB 9050.

Tudo isto e mais é objeto de estudo permanente, pela estrutura go-


vernamental, através de fomento às pesquisas científicas, com apoio das uni-
versidades e da capacitação técnica de recursos humanos, com a finalidade
de levar a efeito as políticas afirmativas delineadas nos artigos 74 e 77 da LBI:

Art 74. É garantido à pessoa com deficiência acesso a produtos,


recursos, estratégias, práticas, processos, métodos e serviços de
tecnologia assistiva que maximizem sua autonomia, mobilidade
pessoal e qualidade de vida.

Art 77. O Poder Público deve fomentar o desenvolvimento científi-


co, a pesquisa e a inovação e a capacitação tecnológicas, voltadas
à melhoria da qualidade de vida e ao trabalho da pessoa com defi-
ciência e sua inclusão social.

Conforme aqui demonstrado, a tecnologia assistiva viabiliza a apli-


cação de vários direitos já reconhecidos à pessoa com deficiência, e se faz
necessária ao seu cotidiano, tal qual as ajudas técnicas que fazem parte das
Berenice Reis Lessa 43

estratégias de acessibilidade, equiparação de oportunidades e inclusão das


pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida, na forma do que se en-
tende no inciso II do artigo 2º da LBI:

II – Tecnologia dispositivos assistivos ou ajuda técnica: produtos,


equipamentos, recursos, metodologias, estratégia, práticas e servi-
ços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à ativi-
dade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilida-
de reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade
de vida e inclusão social;

5. TECNOLOGIA ASSISTIVA, VOCÊ CONHECE A DISTINÇÃO?

Na esteira destes apontamentos, entende-se importante trazer à co-


lação algumas considerações sobre tecnologia assistiva, lembrando que são,
também, recursos criados pelo designer, para facilitar e ajudar o cotidiano das
pessoas que tenham redução ou perda da sua funcionalidade ou mobilidade.

Demonstrados os meios legais para se alcançar e instrumentalizar


a pretendida inclusão, é importante voltar no tempo para situar o início das
discussões sobre o emprego da Tecnologia Assistiva. Estudiosos do tema trou-
xeram diferentes visões quanto ao uso das inovações tecnológicas e o benefí-
cio trazido ao usuário final. Sem dúvida, estas discussões apontam caminhos
para conhecimento da aplicação desses recursos classificados como TA. Como
interessada no assunto, a autora atreve-se a contribuir com as seguintes inda-
gações: pode-se afirmar que um produto com recurso tecnológico, sendo utili-
zado por uma pessoa com deficiência, é identificado como um produto de tec-
nologia assistiva? Ou ainda, se uma pessoa tetraplégica faz uso de um relógio
inteligente, para medição do nível de oxigênio no sangue, este instrumento se
classifica como sendo tecnologia assistiva?

A autora se permite apropriar dos ensinamentos de GALVÃO FILHO


(2020) para compreensão, por analogia, das perguntas acima formuladas.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
44
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Estes exemplos relativos aos recursos tecnológicos de gravação ou


síntese de voz para o acesso ao texto são bastante úteis, a meu
ver, para que se perceba a diferença entre a utilização de recur-
sos tecnológicos como tecnologia educacional e estratégia peda-
gógica, para o estudante com dificuldade de leitura por questões
referentes à cognição e o aprendizado, diferente do seu uso como
Tecnologia Assistiva, para o estudante cego.
Ou seja, o mesmo recurso tecnológico sendo utilizado para fina-
lidades bem diferentes. Perceba-se, portanto, que, o que defi-
ne e caracteriza um recurso como sendo ou não um recurso de
TA, não são apenas as características particulares do recurso (“o
que”). Nem, tampouco, apenas as características do usuário (“para
quem”). Porém, também, a finalidade para a qual se está utilizando
o referido recurso (“para que”). No caso do estudante cego, a finali-
dade, o “para que”, refere-se ao uso da tecnologia como recurso de
acessibilidade ao texto impresso, inacessível devido ao problema
relativo à função visual. Penso, portanto, ser importante ter pre-
sentes todas essas três perguntas, na identificação e classificação
de um recurso como sendo ou não um recurso de TA: O quê? Para
quem? E também, para quê? (grifos nossos).

Com efeito, focada na visão do texto contido na transcrição acima,


BERSCH (2020) responde a estas perguntas, todavia, apresenta outros aspec-
tos sobre a mesma questão. Diz ela:

No campo educacional, por vezes, pode haver uma distinção sutil


entre TA e tecnologia educacional e para tirar dúvidas a respeito
disso, sugiro que se façam três perguntas:
O recurso está sendo utilizado por um aluno que enfrenta algu-
ma barreira em função de sua deficiência (sensorial, motora ou
intelectual) e este recurso/estratégia o auxilia na superação desta
barreira?

Pergunte-se aí, PARA QUEM? Ou, o recurso atendeu a finalidade de


auxiliar na funcionalidade desse usuário? “O recurso está apoiando o aluno
na realização de uma tarefa e proporcionando a ele a participação autônoma
no desafio educacional, visando sempre chegar ao objetivo educacional
proposto?” BERSCH (2020).
Berenice Reis Lessa 45

Pergunte-se aí, PARA QUÊ? Ou, o recurso se presta a atender a sua


necessidade pessoal específica? “Sem este recurso o aluno estaria em desvan-
tagem ou excluído de participação?” BERSCH (2020).

Pergunte-se, O QUÊ? Ou, no que o recurso pode servir de auxílio ao


usuário?

Tendo respostas afirmativas para as três questões, eu ouso cha-


mar a ferramenta utilizada pelo aluno de Tecnologia Assistiva,
mesmo quando ela também se refere à tecnologia educacional
comum.
Podemos afirmar então que a tecnologia educacional comum
nem sempre será assistiva, mas também poderá exercer a função
assistiva, quando favorecer de forma significativa a participação
do aluno com deficiência no desempenho de uma tarefa escolar
proposta a ele. Dizemos que é tecnologia assistiva quando perce-
bemos que retirando o apoio dado pelo recurso, o aluno fica com
dificuldades de realizar a tarefa e está excluído da participação
BERSCH (2020).

Assertivamente, acredita-se que optar ao final, pelas palavras de


GALVÃO FILHO (2020), torna-se substancial. Diz ele, ainda:

Essa concepção ampla certamente favorece, fundamenta e incen-


tiva as pesquisas, o desenvolvimento e a inovação em TA nas dife-
rentes áreas, e o aperfeiçoamento de políticas públicas de fomen-
to, produção, disponibilização e concessão de TA.
Dessa forma, a Tecnologia Assistiva, como um tipo de mediação
instrumental, está relacionada com os processos que favorecem,
compensam, potencializam ou auxiliam, também na escola, as
habilidades ou funções pessoais comprometidas pela deficiência,
geralmente relacionadas às: Funções Motoras, Funções Visuais,
Funções Auditivas, e/ou Funções de Comunicação.
A partir dessa percepção, portanto, entende-se que a superação,
por um estudante na escola, das dificuldades referentes às Funções
Cognitivas, mesmo quando comprometidas por uma deficiência,
está relacionada às estratégias pedagógicas e à tecnologia educa-
cional para o acesso aos conhecimentos e ao aprendizado, e não à
Tecnologia Assistiva.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
46
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

6. CONCLUSÃO

Finalmente, a partir destes apontamentos, pode-se também enten-


der que tecnologia assistiva é um suporte ou instrumento de apoio concreto
e sustentável com a finalidade de promover, às pessoas com deficiência, a re-
dução de suas desigualdades sociais, compensar as suas limitações funcionais
motoras, físicas e sensoriais, dar-lhes qualidade de vida e autonomia no seu
cotidiano.

Com tantos desafios, percebe-se que ainda estamos num processo


de desenvolvimento onde diversas deficiências e profissionais precisam de es-
tudos e de pesquisas científicas permanentes, para se alcançar os benefícios
para uma vida de iguais oportunidades.

Perceba-se que, ainda que a pessoa se utilize de elementos tecnoló-


gicos construídos exclusivamente para seu uso pessoal, quer sejam conside-
rados como de tecnologia assistiva ou não, de qualquer sorte, são produtos
disponibilizados para atender a um segmento específico desses usuários, os
quais estão na dependência da eficácia desses recursos, para a efetividade de
sua inclusão social. Daí a importância desse trabalho transdisciplinar e, por-
tanto, multiprofissional, notadamente do designer e do arquiteto que, embora
“invisíveis” nas suas funções, são os responsáveis por idealizar e modelar a for-
ma desses produtos de inovação tecnológica. Neste sentido, a autora convida
aos que até aqui chegaram à uma reflexão consciente sobre o design acessível.

7. REFERÊNCIAS

ASSISTIVA Tecnologia e Educação. Disponível em: <https://www.assistiva.com.


br/tassistiva.html>. Acesso em: 17/08/2020.
BERSCH, Rita. Introdução à tecnologia assistiva. Disponível em: <https://www.
assistiva.com.br/Introducao_Tecnologia_Assistiva.pdf>. Acesso em: 24/08/2020.
Berenice Reis Lessa 47

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 12/09/2020.
______. Convenção da ONU Direitos das Pessoas com Deficiência. Disponível
em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496487/Direito_
das_pessoas_com_deficiencia.pdf?sequence=1>. Acesso em: 10/09/2020.
______. Emenda Constitucional nº 12 de 1978. Disponível em: <https://www2.
camara.leg.br/legin/fed/emecon/1970-1979/emendaconstitucional-12-17-ou-
tubro-1978-366956-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em 28/08/2020.
______. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com deficiência-Estatuto da Pes-
soa com Deficiência. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 14/09/2020.
GALVÃO FILHO, T. A. A construção do conceito de Tecnologia Assistiva: al-
guns novos interrogantes e desafios. Entre ideias: Educação, Cultura
e Sociedade, Salvador, v.2, n.1, p.25-42, jan./jun. 2013. Disponível em:
<www.galvaofilho.net/TA_desafios.pdf>. Acesso em: 28/08/2020.
HAMZE, Amélia. Educação especial no Brasil: síntese histórica. Disponível em:
<https://educador.brasilescola.uol.com.br/trabalho-docente/integracao.htm>.
Acesso em: 29/08/2020.
QUAL a diferença entre produto e projeto? Disponível em: <https://conectt.
com.br/blog/diferencas-projeto-e-produto-criar-um-site-novo>. Acesso em:
20/9/2020.
TECNOLOGIA assistiva e inovação como ferramentas de propulsão da inclusão
social e cidadania. Revista Espacios. ISSN 0798 1015 Vol. 38 (Nº 17) Año 2017.
Disponível em: <https://www.revistaespacios.com/a17v38n17/a17v38n17p29.
pdf>. Acesso em: 20/09/2020.
UTFPR/PR. Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Disponível em: <http://por-
tal.utfpr.edu.br/cursos/graduacao/bacharelado/design>. Acesso em: 16/08/2020.
49

A IMPLEMENTAÇÃO DA IGUALDADE SOCIAL


PARA A PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Carliane de Oliveira Carvalho1

1. INTRODUÇÃO

O
presente trabalho tem por fim fazer uma breve análise do processo de
mobilização social da pessoa com deficiência, iniciando com relatos
do século XIX, até os dias atuais, a fim de se reconhecer a necessária
atuação estatal institucional na proteção dessa minoria.

A verificação proposta requer uma preliminar identificação da for-


mação da autoidentidade e de como o conceito social de uma pessoa ou um
grupo de pessoas pode intervir de forma negativa na formação da identidade
individual e, por reflexo, na formação da identidade e da autopercepção de
toda uma comunidade.

Após essa breve verificação, passa-se a demonstrar como a união e


mobilização política em prol da igualdade social tem o potencial de alterar a
status inicial de todo um grupo de pessoas. E, a despeito das adiante demons-
tradas vitórias, muito ainda tem que se fazer a fim de se garantir a implemen-
tação de uma efetiva igualdade social.

A partir de uma construção histórica do processo de proteção legal

1 Procuradora Federal. Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia-


-UFBA. Mestre em Direito Público pela universidade Federal da Bahia-UFBA. Especialista
em Processo Civil. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia-UFBA. Autora
de livros jurídicos. Professora de Direito do Estado, com ênfase em Direito Administrativo e
Direito Constitucional em pós-graduações e cursos para concurso. Integrante da Comissão
de Advocacia Pública da OAB/PR.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
50
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

conferido à pessoa com deficiência no Brasil, o presente trabalho busca anali-


sar as possíveis contribuições da incorporação da teoria das identidades e do
empoderamento em oposição ao cenário estigmatizante atual. Assim, busca-
se analisar em que medida seria possível a construção de um contexto que
pudesse, democraticamente, promover a expressão mais profunda de isono-
mia aos grupos minoritários vulneráveis. Assim, por meio de um raciocínio de-
dutivo e de uma análise bibliográfica que inclui referências multidisciplinares,
desde uma construção identitária da pessoa com deficiência, é apresentada a
evolução histórica do Direito no sentido de promover uma releitura da inclu-
são, e ainda, possíveis medidas no sentido de aprimorar o panorama atual.

2. DA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE INDIVIDUAL

A fim de tratar da questão da inclusão do indivíduo com deficiência


à sociedade em todos os âmbitos de expressões humanas, é importante abor-
dar, ainda que brevemente, questões atinentes à formação da identidade do
indivíduo e como a percepção e projeções da sociedade a que se sente perten-
cente atuam nesse movimento.

Stuart Hall descreve o processo de formação da identidade do indi-


víduo como um “sujeito fragmentado”, que apresenta um complexo de iden-
tidades, algumas, inclusive, contraditórias entre si. Tal fato se coaduna com
a concepção que o autor tem da identidade pós-moderna, que, para ele, se
realiza por uma “‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente
em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2005, p. 12-13).

Entende-se que a composição da identidade individual ocorre, por-


tanto, por meio de um duplo itinerário de formação, um interno e outro exter-
no, os quais se realizam concomitantemente e preservam, cada um, suas pecu-
liaridades especiais. “Trata-se de processo conjunto e complexo. Há paulatino
desenvolvimento do entendimento e aceitação individual quanto ao mundo
Carliane de Oliveira Carvalho 51

externo ao mesmo tempo em que se reconhece valores internos individuais


em movimentos sociais” (CARVALHO, 2017, p. 298-299).

O que tal circunstância revela é que a percepção do indivíduo a partir


do grupo a que se sente pertencente corrobora para a formação de identidade
própria dele. Ao passo que tal percepção, deve se apresentar de forma verda-
deira, sob pena de interferir negativamente ou erroneamente na composição
da identidade do indivíduo.

Na lição de Nobert Elias (1994), não é possível pensar sujeito e socie-


dade como entidades ontologicamente diferentes. O ser humano singular não
deriva da condição de isolamento, bem como a sociedade não se estabelece
como mera acumulação desestruturada de pessoas. Existe uma relação entre
as pessoas que formam a sociedade, a qual possibilita transformações especí-
ficas na coletividade e, ao mesmo tempo, influência nos padrões de autorre-
gulação que o sujeito estabelece dentro de si.

Esses aspectos são importantes na medida em que o indivíduo, espe-


cificamente a pessoa com deficiência física ou intelectual, forma sua identida-
de numa parte desde si mesmo e noutra, desde a sociedade a que pertence.
Portanto, o que importa verificar é se a sociedade identifica o indivíduo como
capaz e competente, agindo de modo a integrá-lo ao seu âmbito, ou se o iden-
tifica como inferiorizado, afastando-o da vida social plena e interferindo nega-
tivamente para a formação de sua identidade.

Isso é relevante pois as interferências externas derivadas do grupo a


que o indivíduo se projeta, buscando e revelando o desejo de pertencimento,
contribuem para a formação da autoidentidade desse indivíduo, o qual passa a
ser ver desde o olhar da sociedade, como resultado reflexo da dupla formação
identitária.

Ressalte-se que, a concreção de um conceito inferiorizado e re-


duzido de si mesmo pelo indivíduo pode incapacitá-lo para desafios e me-
didas de melhoria em sua vida particular e social. Pois, ao se identificar
como incapaz, a partir de opiniões externas limitantes de suas habilidades,
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
52
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

o conceito individual sobre si mesmo sofre máculas reiteradas, gerando danos


à autoestima, podendo se tornar indivíduo apático e autodestrutivo (TAYLOR,
1994, p. 45).

Charles Taylor (1994, p. 45) identifica essa situação por meio do epi-
sódio vivenciado pelos negros norte-americanos, no século passado, originada
da imagem de inferioridade projetada pela sociedade branca por várias ge-
rações. Por essa razão, alguns indivíduos negros passaram a conceber-se a si
mesmos como reduzidos e inábeis, o que os tornaram instrumentos fortes de
manutenção da própria opressão, revivendo e perpetuando sentimentos de
incapacidade e de ódio sobre si mesmos.

Considerando a essencialidade do conceito social que a comunidade


de projeção de pertencimento do indivíduo projeta sobre ele para a forma-
ção de sua identidade própria, importa saber como a sociedade brasileira vê,
percebe e conceitua os indivíduos com deficiência, a partir, especialmente, da
análise da legislação para inclusão da pessoa com deficiência.

3. DO PROCESSO LEGAL DE FORMAÇÃO DA IDENTIDADE

O dano à formação da identidade pode ser gerado do não reconheci-


mento ou do reconhecimento equivocado, errôneo ou inferiorizado.

Outro aspecto que deve ser considerado no âmbito das relações hu-
manas é a noção de estigma, a qual pode provocar uma forte desaprovação de
características ou crenças pessoais, que vão contra as condições hegemônicas,
determinando, muitas vezes, a marginalização de um sujeito ou grupo a partir de
uma valorização que inviabiliza a aceitação social plena (COSTA, 2018), tal como
ocorreu com a pessoa com deficiência ao longo da História.

Quanto ao não reconhecimento, o Estado brasileiro, sociedade e insti-


tuições, tem um longo percurso de ausência e de postura de isolamento das pes-
soas com deficiência. A exemplo disso, tem-se que somente no final do século XIX
Carliane de Oliveira Carvalho 53

o Estado se dedicou à educação especial de cegos e surdos, como reflexo das me-
didas legais adotadas na Europa, incluindo aqui o sistema Braile de comunicação.

Assim, o Imperial Instituto dos Meninos2 Cegos3 foi a primeira institui-


ção voltada à educação dos meninos com deficiência visual, na segunda metade
do século XIX (LEÃO, 2019).

Apesar da aparente evolução, esse processo repercutiu na proibição


de que os surdos utilizassem a língua de sinais para se comunicarem entre si, o
que denota a hegemonia excludente dos falantes e a não aceitação por eles de
uma minoria de pessoas com deficiência auditiva, que dificultava ou impossi-
bilitava o conhecimento dos sons e a consequente repetição (LANNA JÚNIOR,
2020, p. 19-20).

2 Destaque-se que as meninas cegas continuaram excluídas do método educacional pelo


Sistema Braile, o que expressa mais uma luta de minorias. Embora seja importante o des-
taque, o assunto requer atenção especial, razão pela qual reserva-se tal debate para outra
oportunidade. Neste sentido: DHANDA (2008, p. 51) afirma que: “Outra questão que tem
perseguido constantemente a jurisprudência sobre direitos humanos gira em torno da dupla
discriminação. Como tratar da vulnerabilidade daqueles que estão em desvantagem em mais
de um parâmetro? Seja gênero combinado com raça, ou deficiência combinada com etnia,
idade ou gênero”.

3 Lanna Júnior destaca que “O Instituto atendeu apenas três pessoas surdas em 1856. Com o
tempo, esse atendimento se expandiu. A princípio, eram alunos provenientes do Rio de Janei-
ro, sobretudo da capital do Império, onde o Instituto estava instalado; posteriormente, vieram
alunos de outras províncias: Alagoas, Bahia, Ceará, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte,
São Paulo, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco e Santa Catarina. A crise na insti-
tuição foi exposta em 1868, quando o chefe da Seção da Secretaria de Estado, Tobias Rabello
Leite, realizou inspeção nas atividades e condições do Instituto. Em seu relatório, apontou
que o desvio seus propósitos originais, transformando-se em um verdadeiro asilo de surdos.
Tobias Leite tornou-se diretor da Instituição até 1896 e deu-lhe o impulso definitivo como re-
ferência na educação de surdos no Brasil. [...] Com o advento da República, o Hospício Dom
Pedro II foi desanexado da Santa Casa de Misericórdia e passou a ser chamado de Hospício
Nacional de Alienados. Somente em 1904, foi instalado o primeiro espaço destinado apenas
a crianças com deficiência – o Pavilhão-Escola Bourneville. [...] Apesar do pioneirismo, am-
bos os institutos ofertaram um número restrito de vagas durante todo o Período Imperial. O
conceito dessas instituições se baseou na experiência europeia, mas diferentemente de seus
pares estrangeiros, normalmente considerados entidades de caridade ou assistência, tanto o
Imperial Instituto dos Meninos Cegos quanto o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos encontra-
vam-se, na estrutura administrativa do Império, alocados na área de instrução pública. Eram,
portanto, classificados como instituições de ensino. A cegueira e a surdez foram, no Brasil do
século XIX, as únicas deficiências reconhecidas pelo Estado como passíveis de uma abor-
dagem que visava superar as dificuldades que ambas as deficiências traziam, sobretudo na
educação e no trabalho.” In.: LANNA JÚNIOR. 2020, p. 19-20.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
54
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Tal episódio da cultura legal e social brasileira interferiu de forma ex-


tremamente negativa no desenvolvimento de meios de comunicação para os
surdos, consolidando a exclusão da convivência social e a vulnerabilidade de
uma minoria já fragilizada pelo histórico negativista de direitos.

No início do século XIX, por meio de ações voltadas à educação, fo-


ram instituídas escolas paralelas para alunos com deficiência intelectual. Além
de serem escolas específicas para pessoas com deficiência, por isso chamadas
de educação paralela, não representando um ato de inclusão social em si, essa
atuação era originada da sociedade, sendo postura alheia à estrutura do Esta-
do brasileiro, especificamente por meio da Associações de Pais e Amigos dos
Excepcionais (APAE) e das associações Pestalozzi (MAIOR, 2020).4

Acerca desse período, Izabel Maior destaca o uso de expressões ina-


dequadas e reducionistas, a exemplo dos termos “excepcionais” e “portadores
de necessidades especiais” para identificar as pessoas com deficiência, ter-
minologias que persistem na atualidade, expondo as dificuldades do modelo
integrador da deficiência no Brasil.5

Também como ato voltado à percepção de pessoas com deficiência,


após a epidemia da poliomielite, nas décadas de 50 e 60, bem como após os
resultados decorrentes da II Guerra Mundial, as pessoas com deficiência física
(à época denominados de “deficientes físicos”) passaram a ter atendimento as-
sistencialista, conquanto, ainda afastada da inserção social (FIOCRUZ, 2020).6

4 “Até a metade do século XIX, a deficiência Intelectual era considerada uma forma de loucura
e era tratada em hospícios. Durante a República, iniciaram-se as investigações sobre a etio-
logia da deficiência intelectual, sendo que os primeiros estudos realizados no Brasil datam
do começo do século XX.” (LANNA JÚNIOR, 2020, p. 23).

5 MAIOR, Izabel, p. 01.

6 “A monografia sobre educação e tratamento médico pedagógico dos idiotas, do médico Car-
los Eiras de 1900, é o primeiro trabalho científico sobre a deficiência intelectual no Brasil.
Após a metade do século XX, dois trabalhos científicos produzidos por psiquiatras tornaram-
se referências: a tese Introdução ao estudo da deficiência mental (oligofrenias), de Clóvis de
Faria Alvim, publicada em 1958, e o livro Deficiência mental, de Stanislau Krynski, publicado
em 1969.” In.: LANNA JÚNIOR, 2020, p. 24.
Carliane de Oliveira Carvalho 55

Só em meados finais do século XX, como reflexo dos movimentos de


minorias em outros países ocidentais, o Brasil apresentou políticas assistencia-
listas, contudo, ainda sem cotejo da inclusão social, tema que só recentemen-
te veio à baila no contexto jurídico-político do país.

A situação de “segregação” silenciosa bem como a evidente ausência


do Estado no trato das questões de educação e de inclusão social, somada ao
estopim em países ocidentais de lutas de minorias, fizeram com que, no Brasil,
culminasse o movimento político das pessoas com deficiência, na década de
70 do século passado (LANNA JÚNIOR, 2020, p. 33-34).

Lanna Júnior (2020, p. 33-34) descreve esse momento nos seguintes


termos:

Nessa época, surgiram as primeiras organizações compostas e diri-


gidas por pessoas com deficiência contrapondo-se às associações
que prestavam serviços a este público. Esta dicotomia, que mais
adiante será abordada neste capítulo, permanece como modelo até
os dias atuais. As primeiras organizações associativistas de pessoas
com deficiência não tinham sede própria, estatuto ou qualquer ou-
tro elemento formal. Eram iniciativas que visavam o auxílio mútuo
e não possuíam objetivo político definido, mas criaram espaços de
convivência entre os pares, onde as dificuldades comuns poderiam
ser reconhecidas e debatidas. Essa aproximação desencadeou um
processo da ação política em prol de seus direitos humanos. No fi-
nal dos anos 1970, o movimento ganhou visibilidade, e, a partir daí,
as pessoas com deficiência tornaram-se ativos agentes políticos na
busca por transformação da sociedade. O desejo de serem prota-
gonistas políticos motivou uma mobilização nacional. Essa história
alimentou-se da conjuntura da época: o regime militar, o proces-
so de redemocratização brasileira e a promulgação, pela ONU, em
1981, do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD). (sic)

A redemocratização, nas décadas de 70 do século passado, foi pe-


ríodo fértil para a reorganização social e emergência das demandas popu-
lares. Lanna Júnior (2020, p. 34) relata que a retomada de voz pelos movi-
mentos populares “antes silenciados pelo autoritarismo, ressurgiram como
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
56
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

forças políticas. Vários setores da sociedade gritaram com sede e com fome de
participação: negros, mulheres, índios, trabalhadores, sem-teto, sem-terra e,
também, as pessoas com deficiência.”

Somou-se a esse momento histórico de identificação, reorganização


e fortalecimento das demandas sociais, especialmente para as pessoas com
deficiência, o fato de a ONU proclamar o ano de 1981 como Ano Internacional
das Pessoas Deficientes (AIPD), com o tema Participação Plena e Igualdade.

Como exemplo desse novo momento, demanda de inclusão básica


eram trazidas a debate, como se pode observar o ato público convocado pela
Associação Brasileira de Deficientes Físicos (Abradef), realizado em 21 de julho
de 1980, na Praça da Sé, em São Paulo, para protestar contra a discriminação
das pessoas com deficiência. Nessa oportunidade, foram explicitadas necessi-
dades básicas das pessoas com deficiência, como por exemplo a impossibilida-
de de votar para pessoas com deficiência física em razão da falta de rampa de
acesso nas sessões eleitorais.

Todo esse movimento marcado por encontros e debates a fim de


tratar das questões atinentes aos direitos da pessoa com deficiência teve um
ponto forte no contexto jurídico-político brasileiro com a participação do mo-
vimento das pessoas com deficiência na Assembleia Nacional Constituinte.

Desse momento, Lanna Júnior (2020, p. 66) relata que:

A Emenda Popular n° PE00086-5 foi submetida à ANC sob a respon-


sabilidade de três organizações do movimento das pessoas com de-
ficiência, a Onedef, o Movimento de Defesa das Pessoas Portadoras
de Deficiência (MDPD) e a Associação Nacional dos Ostomizados,
e contou com 32.899 assinaturas. A proposta continha 14 artigos
sugerindo alterações no projeto da Constituição, onde coubessem
temas como igualdade de direitos, discriminação, acessibilidade,
trabalho, prevenção de deficiências, habilitação e reabilitação, di-
reito à informação, educação básica e profissionalizante.
Carliane de Oliveira Carvalho 57

Todo esse breve histórico demonstra a quebra da invisibilidade em


que se inseriam as pessoas com deficiência. Oficialmente, antes da Constitui-
ção Federal de 1988, as questões das pessoas com deficiência foram tratadas
pela Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Defi-
ciência (CORDE), 1986, e da Política Nacional para Integração da Pessoa Porta-
dora de Deficiência, 1989.

A institucionalização do movimento político em órgãos institucionais


destinados a dar voz e concretude às demandas dessas pessoas fortaleceu a
mobilização, refletindo em vitórias, ainda que insuficientes para gerar igualda-
de, essenciais como passos em uma trajetória de lutas.

Mais adiante, em 04 de agosto de 2010, o Decreto nº 7.256 criou a


Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, re-
vogado, em 2013, pelo Decreto nº 8.162, depois, pelo Decreto nº 9.122/2017.
Atualmente a secretaria da pessoa com deficiência está atrelada ao Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

No âmbito legislativo, destaca-se a Lei nº 13.146, de 6 de julho de


2015, denominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, e tem por fim as-
segurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das
liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão
social e cidadania.

Referida Lei resulta da inserção da Convenção sobre os Direitos das


Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em 30 de mar-
ço de 2007, em Nova Iorque, ratificadas pelo Congresso Nacional, por meio do
Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008.7

7 Ressalte-se, inclusive, que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e
seu Protocolo Facultativo detêm do status de Emenda Constitucional, por terem sido aprova-
das pelo Congresso Nacional brasileiro com o quórum previsto no § 3º do art. 5° da Constitui-
ção Federal de 1988, tendo sido o primeiro diploma de direitos humanos a cumprir o referido
rito no Brasil.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
58
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Tais normativas representam um marco no movimento de inserção


social e luta por igualdade da pessoa com deficiência.

As medidas legislativas implementadas pelo Estado instituição re-


presentam uma proteção dos direitos da pessoa com deficiência e deve ser
feito de forma institucionalizada, de modo a iniciar o processo de reversão da
exclusão social a eles imposta. Nesse sentido, Amartya Sen destaca que “a re-
lação entre a regra da maioria e a proteção dos direitos das minorias, que são
elementos constitutivos da prática democrática, depende especialmente da
formação de valores e prioridades que sejam tolerantes” (SEN, 2009, p. 276).

Assim, a despeito da previsão legal de atos que viabilizem um trata-


mento mais igualitário, tal medida não representa a inserção da pessoa com
deficiência no cotidiano da sociedade. Isso porque uma normativa não tem o
condão de alterar instantaneamente anos de invisibilidade e descaso. Não há
um ato de mágica.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A efetividade dos direitos da pessoa com deficiência deve ser anali-


sada a partir da perspectiva da igualdade, isso no sentido de que se deve res-
guardar “a garantia do norte decisório reflexivo igualitário direto e fiscalizável,
único meio capaz de viabilizar a estruturação de uma sociedade justa e, por
consequência, igual” (CARVALHO, 2020, p. 155).

A busca pelos movimentos das pessoas com deficiência é por igual-


dade, aquela representada por meio da metodologia da igualdade reflexiva
direta, segundo a qual, “o homem se identifica reflexivamente em seu seme-
lhante, ao passo em que se submeteria à mesma decisão de forma direta e
imediata” (CARVALHO, 2020, p. 156).

A decisão, normativa ou em concreto, deve ser justa segundo a lógica


Carliane de Oliveira Carvalho 59

do decisor e do destinatário da norma, de modo a viabilizar a paz social em


maior âmbito e garantir maior eficácia à decisão.

Destarte, importa ressaltar que decisões que buscam igualdade so-


cial para minorias devem ser fiscalizadas e implementadas pelo Estado em
maior grau enquanto tais medidas ainda não integram a cultura da sociedade a
que aquele grupo minoritário se destina. “Isso porque as matérias de proteção
de direitos fundamentais de minorias, exigem, por sua própria natureza, uma
atuação contramajoritária em nome da preservação da igualdade reflexiva di-
reta” (CARVALHO, 2020, p. 176).

Parte da doutrina, inclusive, compreende que, no âmbito do Direi-


to Administrativo, a luta por uma repartição isonômica, e não igualitária, dos
interesses e recursos constituiria o que vem se convencionando denominar
“direito administrativo inclusivo”. Trata-se de ramo que atua em favor de uma
discriminação positiva (MACERA, 2016), a qual promove direitos àqueles que
se apresentam como mais vulneráveis como, por exemplo, as pessoas com
deficiência e a sua recente inclusão nas políticas de cotas no Brasil.

Por todo o exposto, resta demonstrado o movimento político social


por igualdade implementado pelas pessoas com deficiência, desde o total es-
quecimento pelo Estado até o reconhecimento da omissão e a tentativa de
reinclusão social por meio de legislação específica.

O processo aqui rapidamente evidenciado é longo e ainda perdurará


visto que a eficácia da decisão político legislativa ainda não é uma realidade
inclusiva por toda a sociedade brasileira. Por fim, o texto milita no sentido de
que, o debate e a luta ainda são imperiosos para fins da necessária alteração
da realidade social.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
60
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

5. REFERÊNCIAS

CARVALHO. Carliane de Oliveira. O Poder nas Mãos do Povo. A Realização do


Direito em Tempos de Crise e a Revisão das Funções do STF. Curitiba: Editora
Juruá, 2020, p. 155.
_______. Identidade fenotípica de negro e retrocesso social. análise crítica da
ON MPOG nº 03/2016 Revista Jurídica Luso Brasileira Ano 3, (2017), nº 3.
COSTA, Jessica Hind Ribeiro. Para além da redução de danos: a alteridade como
paradigma na relação médico-paciente em casos de uso problemático de dro-
gas. Tese de doutorado. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2018.
DHANDA, Amita. Construindo um novo léxico dos direitos humanos: Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências. Sur, Rev. int. direitos human.
São Paulo, v. 5, n. 8, p. 42-59, June 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452008000100003&lng=en&nrm=-
iso>. Acesso em: 22/09/2020.
ELIAS, Nobert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro; Jorge Zahar Ed., 1994.
FIOCRUZ. Brasil. Cronograma da Poliomielite. Século XX. Disponível em: <http://
www.bvspolio.coc.fiocruz.br/pdf/cronologia_poliomielite.pdf>. Acesso em: 22/
09/2020.
HALL. Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro:
DP&A editora, 2005.
LANNA JÚNIOR, Mário Cléber Martins (Comp.). História do Movimento Políti-
co das Pessoas com Deficiência no Brasil. - Brasília: Secretaria de Direitos Hu-
manos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiên-
cia, 2010. 443p. Disponível em: <https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/211/o/
Hist%C3%B3ria_do_Movimento_Pol%C3%ADtico_das_Pessoas_com_Defici%-
C3%AAncia_no_Brasil.pdf?1473201976>. Acesso em: 22/09/2020.
LEÃO. Gabriel Bertozzi de Oliveira Souza; SOFIATO. Cássia Geciauska. A Educa-
ção de Cegos no Brasil do Século XIX: Revisitando a História. Revista Brasileira
de Educação Especial. Rev. bras. educ. espec. vol.25 no.2 Bauru Apr./June 2019,
Epub June 13, 2019.
Carliane de Oliveira Carvalho 61

MACERA, Paulo Henrique. Direito administrativo inclusivo e princípio da isono-


mia: critérios para o estabelecimento de uma discriminação positiva inclusiva
constitucional. In: RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.
271, p. 143-191, jan./abr. 2016.
MAIOR, Izabel. Breve Trajetória histórica do movimento das pessoas com defi-
ciência. Programa Estadual de Prevenção e Combate à Violência contra pessoas
com Deficiência. São Paulo. Disponível em: <http://violenciaedeficiencia.sedp-
cd.sp.gov.br/pdf/textosApoio/Texto2.pdf>. Acesso em: 21/09/2020.
SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. Denise Bottmann e Ricardo Doninelli
Mendes. São Paulo: Companhia das letras, 2009.
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento.
Trad. Marta Machado. Lisboa: Instituto Pieget, 1994.
63

MULHERES SUBMETIDAS à MASTECTOMIA


E A LEI Nº 13.146/2015

Maria Christina dos Santos 1

1. INTRODUÇÃO

E
ste ensaio tem o propósito de contribuir na reflexão acerca da possibi-
lidade de as mulheres submetidas à mastectomia serem tuteladas pela
Lei Brasileira de Inclusão (LBI) – Lei nº 13.146/2015, por se tratar de
tema caro, delicado e atual.

Inicia com observações sobre a previsão legal da criação de instru-


mento de avaliação biopsicossocial da deficiência – seja ela de natureza físi-
ca, mental, intelectual ou sensorial. Destaca as dificuldades decorrentes da
falta desse referencial ainda não elaborado, e faz alusão às iniciativas mais
recentemente adotadas para a sua criação. Na sequência traz ponderações
sobre a mastectomia e suas sequelas, bem como discorre sobre a possibili-
dade de a mulher mastectomizada ser reconhecida como pessoa com defi-
ciência. Ao final, apresenta jurisprudência sobre casos de pedidos de tutela
jurisdicional diante do indeferimento de direitos/benefícios solicitados ad-
ministrativamente.

1 Mestre em Planejamento e Governança Pública. Especialista em Direito Educacional. Espe-


cialista em Proteção Integral a Crianças e Adolescentes. Especialista em Direito Aplicado.
Graduada em Direito e Serviço Social. Advogada. Na Comissão da Criança e do Adolescen-
te da OAB/PR: Membro Consultor – gestão 2019/2021 e 2016/2018; Presidente – gestão
2013/2015. No Instituto de Tecnologia & Dignidade Humana: Advogada – 2015/2017; Conse-
lheira Fiscal – 2018/2022.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
64
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

2. A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A AVALIAÇÃO


BIOPSICOSSOCIAL

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com De-


ficiência – CDPD,2 incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com sta-
tus de emenda constitucional, tem o propósito de “promover, proteger e
assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e li-
berdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o
respeito pela sua dignidade inerente.”

Segundo o artigo 1º, da CDPD, pessoas com deficiência “[…] são


aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras,3 po-
dem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de
condições com as demais pessoas”.

A LBI, por sua vez, amplia a definição acima, referindo-se não so-
mente à interação com várias, mas com uma ou mais barreiras. Ainda, pre-
vê, quando necessário, a realização de avaliação da deficiência por equipe
multiprofissional e interdisciplinar, utilizando-se para tal, de modelo único a
ser criado pelo Poder Executivo. Na hipótese de sua realização, devem ser
analisados: a) os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; b) os
fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; c) a limitação no desempe-
nho de atividades; e d) a restrição de participação. Em outros termos, essa
avaliação há de levar em conta o contexto social, além das condições físicas,

2 A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), assina-
da em Nova York, em 30 de março de 2007, foi ratificada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo
nº 186, de 9 de julho de 2008, promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25/08/2009.

3 Art. 3, IV – Barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou


impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus di-
reitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso
à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros […].
São classificadas em: a) barreiras urbanísticas; b) barreiras arquitetônicas; c) barreiras nos
transportes; d) barreiras nas comunicações e na informação; e) barreiras atitudinais; f) bar-
reiras tecnológicas.
Maria Christina dos Santos 65

psicológicas e os fatores ambientais em que a pessoa está inserida.

Apesar disso, esse modelo referencial específico ainda não existe,


uma vez que o art. 2º, da LBI, que prevê a sua criação, não foi regulamen-
tado. Diante dessa lacuna, órgãos ou equipamentos públicos responsáveis
pelas políticas afirmativas vinham utilizando processos, parâmetros e instru-
mentos diferenciados, muitas vezes resultando na impossibilidade de acesso
de pessoa com deficiência a políticas afirmativas.

Ao tomar como exemplo o Benefício de Prestação Continuada (BPC),4


inserido no contexto constitucional da Seguridade Social como parte da As-
sistência Social, observa-se que “(…) sua administração e operacionalização
foram delegadas ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), entidade que
tem como principal finalidade administrar os direitos previdenciários e não
os assistenciais” (SILVA e DINIZ, 2012, p. 262). A Portaria Conjunta MDS/
INSS nº 2, de 30 de março de 2015, baseando-se – inclusive – na CDPD, dis-
põe sobre critérios, procedimentos e instrumentos para a avaliação social5
e médica6 da pessoa com deficiência, realizada por integrantes do quadro
do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS). Contudo, ainda não há a
previsão de psicólogo e de outros profissionais na composição dessa equipe.

Em breve pesquisa sobre medidas mais recentemente adotadas


para suprir a falta do referencial anteriormente citado, foi possível consta-
tar que a Câmara de Deputados, por meio do Decreto nº 8.954, de 10 de

4 Trata-se de política de transferência de renda garantida à pessoa com deficiência que não
possua meios de prover sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

5 Art. 5º – Compete ao Assistente Social avaliar e qualificar [...]: I - Fatores Ambientais, por
meio dos domínios: [...] b) Condições de Habitabilidade e Mudanças Ambientais; c) Apoio e
Relacionamentos; d) Atitudes; e e) Serviços, Sistemas e Políticas; II - Atividades e Participa-
ção, por meio dos domínios: a) Vida Doméstica; b) Relações e Interações Interpessoais; c)
Áreas Principais da Vida; e d) Vida Comunitária, Social e Cívica […].

6 Art. 6º – Compete ao Perito Médico Previdenciário avaliar e qualificar [...]: I - Funções do


Corpo, por meio dos domínios: a) Funções Mentais; […]; d) Funções Sensoriais Adicionais e
Dor; [...] n) Funções Neuromusculoesqueléticas e Relacionadas ao Movimento; [...]; II - Ati-
vidades e Participação, por meio dos domínios: [...]; b) Tarefas e Demandas Gerais; […]; d)
Mobilidade; e e) Cuidado Pessoal […].
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
66
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

janeiro de 2017, criou o “Comitê do Cadastro Nacional da Inclusão da Pessoa


com Deficiência e da Avaliação Unificada da Deficiência”.7 Esse Comitê realizou
amplos debates envolvendo universidades e especialistas sobre o tema. Suas
atividades culminaram com a aprovação do Índice de Funcionalidade Brasileiro
Modificado – IFBr-M,8 como instrumento adequado de avaliação da deficiência
a ser utilizado pelo Governo Brasileiro, segundo consta da Resolução nº 01, de
05 de março de 2020, emitida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa
com Deficiência – CONADE.

Posteriormente, o Presidente da República, por meio do Decreto


nº 10.415, de 6 de julho de 2020, instituiu o “Grupo de Trabalho Interinsti-
tucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência”.
Esse Grupo tem por atribuição formular propostas de regulamentação do
art. 2º da LBI, que conterá os instrumentos e o modelo único de avaliação
biopsicossocial da deficiência. Tem por incumbência, também, criar e alterar
atos normativos necessários à implementação unificada da avaliação biop-
sicossocial da deficiência em âmbito federal. Destaca-se que o IFBr-M será
o instrumento balizador para a elaboração do mencionado modelo único de
avaliação.

É nesse contexto que se encontram as pessoas que carecem de ava-


liação para o reconhecimento de sua deficiência, entre elas, as mulheres
submetidas à mastectomia.

7 Esse Comitê foi composto por integrantes do Poder Público Federal e do Conselho Nacional
dos Direitos da Pessoa com Deficiência – CONADE.

8 O IFBr-M avalia o domínio da aprendizagem e aplicação de conhecimento; comunicação;


mobilidade; cuidados pessoais; vida doméstica; educação, trabalho e vida econômica; e rela-
ções e interações interpessoais, vida comunitária, social, cultural e política. (BRASIL, 2019).
Maria Christina dos Santos 67

3. A MULHER SUBMETIDA à MASTECTOMIA PODE SER


CONSIDERADA PESSOA COM DEFICIÊNCIA?

A resposta, em tese, é positiva. Todavia, deve ser submetida à avalia-


ção para que se possa aferir o grau da limitação – grave, moderado ou leve – e
se o impedimento de longo prazo, em interação com uma ou mais barreiras
– quer urbanísticas, arquitetônicas, atitudinais, tecnológicas, nos transportes,
nas comunicações e na informação – é capaz obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. Em
suma, não basta a existência da limitação, há de se observar se o fato concreto
se subsume à norma jurídica.

Há vários procedimentos cirúrgicos mais ou menos invasivos para a


retirada da(s) mama(s), a saber: a) mastectomia radical; b) mastectomia radical
modificada; c) mastectomia total com radioterapia; d) mastectomia total sem ra-
dioterapia mas com esvaziamento axilar e; e) cirurgia conservadora (excisão do
tumor e de algum tecido saudável circundante). Atualmente, os procedimentos
cirúrgicos mais comuns consistem na mastectomia total e na cirurgia conserva-
dora seguida de radioterapia. (MOREIRA e CANAVARRO, 2012, p. 172).

Segundo relato de Gandini (2010), esses os procedimentos cirúrgi-


cos podem causar incapacidades e limitação na funcionalidade – de maior ou
menor proporção – de membro(s) superior(es), com tendência de se manter
ao longo do tempo. Seguindo esse entendimento, Santos e Vieira (2011) e Ha-
ddad et. al. (2013) mencionam que uma das consequências temporárias ou
permanentes do adoecimento por esse tipo de câncer e seu tratamento é a
funcionalidade do membro superior. A morbidade é elevada em consequência
da dissecção dos linfonodos axilares, aumentando as chances de linfedema9
de braço.

9 “O linfedema é uma doença crônica, progressiva, de difícil manejo e geralmente incurável,


comum em pós-operatório de cirurgias e radioterapia para tratamentos oncológicos. Para o
câncer de mama, o linfedema é a complicação pós-operatória de maior morbidade, e afeta
diretamente a qualidade de vida das mulheres.” (PANOBIANCO, 2014, p. 407).
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
68
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Faz-se oportuno transcrever sinais ou sintomas desse linfedema pós-


-operatório:

aumento do peso do membro; parestesia da mão; rigidez dos de-


dos; redução da amplitude de movimento de ombro, cotovelo e
punho; aumento da incidência de processos infecciosos; deformi-
dades posturais; limitação da função; e problemas psicológicos e
emocionais. Na pós-mastectomia, esses sintomas são agravados
por dor na incisão, na cervical posterior, na cintura escapular, e em
aderências cicatriciais; fraqueza da musculatura do membro supe-
rior e cintura escapular; defeitos posturais, como cifose e escoliose
por maus hábitos, gerando uma assimetria de tronco e restrição da
mobilidade do ombro. (HADDAD et al., p. 427).

Resta evidente que a mastectomia, além de alterações físicas, gera


alterações emocionais e sociais que causam impacto na qualidade de vida das
mulheres, mesmo porque os seios representam simbolicamente a identidade
feminina, a sensualidade e a maternidade. Há mulheres que passam a se sentir
“(…) desvalorizadas, envergonhadas e repulsivas, evitando contatos sociais e
sexuais” em função de sua perda (ALMEIDA, 2006, p. 101). Contudo, outras
compreendem a retirada da mama “(…) como parte do tratamento, quando
o que mais importava não era a aparência física, mas sim a recuperação da
saúde” (MANOROV et al., 2019, p. 327). Todos esses aspectos devem ser pon-
derados na avaliação inter ou multiprofissional da deficiência, uma vez que à
luz da CDPD e da LBI somente um laudo médico não é suficiente para o seu
reconhecimento, apesar da sua capital importância.

A LBI visa:

(…) garantir que as pessoas com deficiência gozem de todos os di-


reitos fundamentais (...), com determinadas especificidades nas
áreas de educação, assistência social, comunicação, cultura e lazer,
trabalho e previdência social, habitação, além de estabelecer isen-
ções e incentivos fiscais, direitos civis e ações de combate ao pre-
conceito, e mecanismos de políticas públicas e defesa de direitos
(…). (SANTOS e REZENDE, 2017, p. 30).
Maria Christina dos Santos 69

Por essa razão, mulheres mastectomizadas que entendem fazer jus


a direitos assegurados a pessoas com deficiência, resolvem litigar em juízo a
fim de terem acesso a políticas afirmativas que lhes foram negadas adminis-
trativamente – sejam pedidos de isenção fiscal, benefício previdenciário ou
assistencial, como se demonstrará a seguir.

4. JURISPRUDÊNCIA PERTINENTE

Segue jurisprudência relativa a demandas apresentadas por mulhe-


res que pleiteiam para ter acesso a políticas afirmativas.

RECURSO INOMINADO. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ISENÇÃO


IPVA E ICMS. AUTORA PORTADORA DE NEOPLASIA. AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO DE LIMITAÇÃO PERMANENTE. SENTENÇA MAN-
TIDA. Na espécie, entendo que a sentença outorgou a correta tu-
tela jurisdicional que a causa reclamava. A seu teor, não obstante
a situação de saúde da requerente, os laudos médicos acostados
demonstram que a autora é portadora de câncer de mama (CID
C50), tendo sido submetida a mastectomia/linfadenectomia axilar
à direita. Ambos os laudos referem que a autora possui limitação
no braço esquerdo, mas nada atestam sobre a impossibilidade de
direção de veículo em condições normais, ou mesmo sobre qual-
quer dificuldade na direção, apenas recomendando o uso de veí-
culo com direção hidráulica. Portanto, embora não se questione a
existência da moléstia que acomete o autor, fato é que não restou
comprovado que a deficiência física da qual é portador exige adap-
tação do veículo às suas necessidades, ou, ainda, que o automóvel
tenha de ser dirigido por terceira pessoa, requisitos indispensáveis
à concessão da isenção pretendida. RECURSO INOMINADO DES-
PROVIDO. (TJRS – Recurso Cível Nº 71007158439, Segunda Turma
Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Rosane Ra-
mos de Oliveira Michels, Julgado em 29/11/2017).

Apesar de a requerente ter sido submetida, inclusive, à linfadenec-


tomia e apresentar limitação física, esta não foi considerada de longo prazo e
apta a justificar a necessidade de adaptação do veículo e a isenção de tributos,
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
70
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

segundo o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. IPI. ISENÇÃO. PORTADOR DE


DEFICIÊNCIA FÍSICA. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO ADAPTADO. LAUDO
MÉDICO. LESÃO IRREVERSÍVEL. Comprovada a deficiência física do
contribuinte, com lesão irreversível no membro superior esquerdo
que a impede de dirigir veículo não adaptado, impõe-se a conces-
são da isenção de IPI para aquisição de automóvel, nos termos da
Lei n 8.989, de 1995. (TRF4 5023464-72.2017.4.04.7000, SEGUN-
DA TURMA, Relator RÔMULO PIZZOLATTI, juntado aos autos em
02/10/2018).

A decisão do Tribunal Regional Federal da Quarta Região tem por


objeto o indeferimento da Fazenda Nacional do pedido de reconhecimento do
benefício fiscal da isenção de IPI e IOF na aquisição de automóvel a uma moto-
rista que possuía laudos, um dos quais emitido pela Junta Médica Especial do
Detran/PR, comprovando sua deficiência física. Na decisão o relator menciona
que “a isenção de IPI constitui benefício que visa a criar condições adequadas
para inserção do deficiente na vida social, atenuando as dificuldades inerentes
à sua condição, o que está de acordo com o princípio constitucional da digni-
dade da pessoa humana.”

EMENTA: TRIBUTÁRIO. IPI. ISENÇÃO. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO. DEFI-


CIENTE FÍSICO. LEI Nº 8.989/95. REQUISITOS. PREENCHIMENTO. 1.
Demonstrado, por laudo pericial judicial, que a parte autora apre-
senta comprometimento da função física (redução acentuada da
força motora do membro superior direito, em razão de mastecto-
mia radial D), que a impede de dirigir veículo comum, faz jus ao
benefício pretendido, uma vez que se encontram preenchidos os
requisitos previstos na Lei nº 8.989/95. 2. Sentença mantida. (TRF4,
APELREEX 5002923-66.2014.4.04.7115, SEGUNDA TURMA, Relato-
ra CLÁUDIA MARIA DADICO, juntado aos autos em 10/07/2015).

No caso acima, houve comprovação efetiva da deficiência física, o


que justificou o acolhimento do pedido de isenção de tributos na compra de
veículo automotor pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região.
Maria Christina dos Santos 71

PJe - PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO DE


AMPARO SOCIAL À PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. ART.
203, V, CF/88. LEI 8.742/93. NULIDADE POR CERCEAMENTO DE
DEFESA. INOCORRÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE DEFERIMENTO.
AUSÊNCIA DE INCAPACIDADE. (...) 3. No caso concreto: o perito
informa que a requerente sofre de sequelas de câncer de mama
com mastectomia radical à direita, ocorrido em outubro de
2008, onde realizou procedimentos de fisioterapia, radioterapia
e quimioterapia, necessitando de repouso para reabilitações
e tratamentos por um período de 24 meses, o que a deixou
debilitada para atividades laborativas. Verifica-se que a moléstia
da parte autora a incapacitou por aproximadamente 2 anos,
conforme quesito da pericia médica. 4. Na espécie, levando em
consideração que a incapacidade total foi constatada em 2008,
observando o lapso temporal, verifico não haver mais incapacidade,
tampouco deficiência de longo prazo, a fim de configurar a
concessão do benefício pretendido. 5. A perícia produzida no feito
por especialista habilitado trouxe como conclusão a inexistência
de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, que, em interação com diversas barreiras,
pudessem obstruir a participação plena e efetiva da parte autora
na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas,
de modo que a demandante não se enquadra no conceito
previsto no §2º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993. 6. Impossível, nas
circunstâncias dos autos, o deferimento do benefício assistencial
em testilha. 7. A coisa julgada na espécie deve produzir efeitos
secundum eventum litis, de forma que, demonstrando a parte
autora, em momento posterior, o atendimento dos requisitos,
poderá postular o benefício almejado. 8. Apelação da parte autora
desprovida. (AC 1004965-82.2018.4.01.9999, DESEMBARGADOR
FEDERAL FRANCISCO NEVES DA CUNHA, TRF1 – SEGUNDA TURMA,
PJe 25/10/2019).

Na decisão pelo indeferimento do pedido de BPC consta que a de-


mandante não apresenta impedimentos de longo prazo, fazendo menção,
inclusive, ao § 2º, do art. 20 da Lei Orgânica da Assistência Social – Lei nº
8.742/1993, cuja redação foi dada pela LBI. Todavia, a decisão tomou por base
unicamente a avaliação de médico perito.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
72
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A avaliação multi ou interprofissional a que a mulher mastectomiza-


da deve ser submetida é de capital importância para a comprovação de que a
sua limitação se amolda aos critérios objetivos de classificação de pessoa com
deficiência estabelecidos no ordenamento jurídico.

Espera-se ansiosamente que a regulamentação do art. 2º da LBI e


a implementação de um modelo referencial de avaliação biopsicossocial da
deficiência, em âmbito federal, viabilize e agilize o acesso das pessoas com
deficiência a políticas afirmativas. Ainda, espera-se que as equipes multi ou
interprofissionais, além de médicos e assistentes sociais, contem também com
psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.

6. REFERÊNCIAS

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CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
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Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

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75

TRATADO DE MARRAQUECHE:
PROMOÇÃO DA ACESSIBILIDADE ÀS
OBRAS LITERÁRIAS PELAS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA NO BRASIL

Bruna Homem de Souza Osman1


Jessica Aparecida Soares2

1. INTRODUÇÃO

A
s pessoas com deficiência (PcD) apresentam ainda nos dias atuais difi-
culdades para usufruírem dos seus direitos e do ambiente social como
um todo, todavia, progressivamente, estas condições evoluem de ma-
neira que o acesso aos direitos seja garantido.

O Tratado de Marraqueche (TM) promove limitações e isenções ao


direito do autor e amplia os direitos às pessoas cegas, com deficiência visual
ou com outras dificuldades para ter acesso facilitado às obras publicadas, de
forma a permitir que estes beneficiários desfrutem da sociedade.

Nesta perspectiva, surge a presente pesquisa com intenção de res-


ponder à seguinte questão norteadora: em que medida o Tratado de Marra-
queche promove a acessibilidade às obras literárias pelas pessoas com defi-
ciência no Brasil?

1 Mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2017),


Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Idoso da Ordem dos
Advogados do Brasil, Subseção de Foz do Iguaçu/PR, Advogada.

2 Mestra em Sociedade, Cultura e Fronteiras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná –


UNIOESTE (2017). Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Idoso da
Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Foz do Iguaçu/PR, Servidora Pública Federal.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
76
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Sugere-se que este acordo internacional amplia a acessibilidade


aos bens culturais pelas PcD, justamente por complementar previsões legais
brasileiras.

Desta maneira, o objetivo geral desta pesquisa é investigar, a partir


da legislação vigente no Brasil, de que forma o TM contribui para proporcionar
a igualdade e acessibilidade às obras literárias pelas pessoas com deficiência.

Por conseguinte, tem como objetivos específicos identificar as ori-


gens e a instrumentalização do TM, como também resgatar as suas previsões
legais e analisar suas relações como sistema de proteção da propriedade inte-
lectual brasileiro.

O estudo foi realizado mediante pesquisa teórica, documental e bi-


bliográfica, através do método de abordagem hipotético-dedutivo.

2. ORIGENS E INSTRUMENTALIZAÇÃO DO TRATADO DE


MARRAQUECHE NO BRASIL

Ao longo da história as pessoas com deficiência tiveram inúmeras


e complexas dificuldades para terem acesso aos seus direitos, mas por outro
lado alcançaram “[...] conquistas no campo da legislação que intencionam e
minimizam a força do estigma que recai sobre estes indivíduos” (FRANÇA; PA-
GLIUCA, 2009).

Entretanto, nos dias de hoje ainda existem diversos fatores que im-
pedem as PcD de ocuparem um lugar social, dentre eles a falta de adaptações
e o preconceito. Estas privações incluem até mesmo o acesso a direitos.

O direito à cultura, previsto no artigo 27 da Declaração Universal dos


Direitos Humanos (DUDH, 1948), garante que “todo ser humano tem o direito
de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes
e de participar do progresso científico e de seus benefícios” (SARRAF, 2018).
Este dispositivo reforça que todos os indivíduos, independentemente de sua
Bruna Homem de Souza Osman e Jessica Aparecida Soares 77

origem, classe social, experiência prévia, condição congênita, aquisição de


deficiência ou quaisquer outros fatores socioeconômicos que os identifiquem
como minorias, têm o direito de usufruir das manifestações e bens culturais.

São bens culturais as obras literárias, artísticas e científicas, mas o


acesso a eles pelas pessoas com deficiência sempre foi precário, basta reali-
zar uma breve análise comparativa para identificar que a quantidade de obras
literárias acessíveis é muito menor em comparação a todo o conjunto disponi-
bilizado sem acessibilidade.

Apesar de nas últimas décadas ter se dispensado, tanto no âmbito


nacional quanto internacional, atendimento mais humanizado em prol das
pessoas com deficiência, é importante ressaltar que somente entre as décadas
de 1960 e de 1970 é que foi sendo contraposto “[....] o estado de segregação
que lhes era imposto e reclamado o direito à convivência social” (FRANÇA;
PAGLIUCA, 2009).

No concernente à legislação internacional, em 28 de junho de 2013


ocorreu a celebração do Tratado de Marraqueche no contexto da Organização
Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), decorrente da Convenção sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência e do seu Protocolo Facultativo,3 os
quais objetivaram “tornar efetivos os direitos das pessoas com deficiência”
(FERREIRA; OLIVEIRA, 2007), vez que estes enfrentam “[...] obstáculos físicos
e sociais que os impede de: receber educação total; exercer empregos com
dignidade, mesmo ostentando qualificações; ter acesso à informação e à saú-
de; de usufruir a liberdade de ir e vir; interagir com o meio social e por ele ser
aceitos” (FERREIRA; OLIVEIRA, 2007).

Em 30 de agosto de 2020, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas


com Deficiência alcançava 177 membros (ONU, 2020) e o Tratado de Marra-
queche havia 71 Partes Contratantes (WIPO, 2020).

3 A promulgação no Brasil da Convenção Internacional sobre direitos das Pessoas com Defi-
ciência e seu Protocolo facultativo, assinados em Nova York em 30/03/2007, evidenciou-se
com o Decreto n. 6.949 de 25/08/2009.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
78
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Todos os países que ratificaram os documentos mencionados ante-


riormente, inclusive o Brasil, assumiram o “[...] compromisso de respeitar as
pessoas com deficiência não mais em razão da legislação interna, mas de uma
exigência universal de solidariedade, independente da condição social de cada
um” (FERREIRA; OLIVEIRA, 2007).

Observa-se que o TM não foi o primeiro documento internacional


à estabelecer limites e exceções ao direito autoral,4 mas foi o primeiro docu-
mento internacional a estabelecer limitações ao direito do autor com finalida-
de de facilitar o acesso às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras
dificuldades para ter acesso ao texto impresso.

No Brasil, o texto deste acordo internacional foi aprovado pelo decre-


to legislativo nº 261 de 2015 com status de emenda constitucional, pois versa
sobre direitos humanos e atende ao procedimento estabelecido pelo artigo 5º,
§ 3º da Constituição Federal de 1988.5

Importante observar que a vigência do TM passou a se evidenciar


somente através de sua promulgação pelo Decreto Presidencial nº 9522, de
outubro de 2018, e, desde então, esforços são reunidos para a sua regulamen-
tação e sua implementação no território brasileiro.

3. TRATADO DE MARRAQUECHE E SUAS RELAÇÕES COM


O SISTEMA DE PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE INTELEC-
TUAL BRASILEIRO

A Convenção de Paris (1883) e a Convenção de Berna (1886) são tra-


tados coletivos que passaram a tutelar a propriedade intelectual no âmbito

4 Cita-se entre os tratados internacionais a Convenção de Berna e o Acordo TRIPS.

5 O Artigo 5o. § 3º da Constituição Federal de 1988 dispõe que os tratados e convenções


internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equi-
valentes às emendas constitucionais.
Bruna Homem de Souza Osman e Jessica Aparecida Soares 79

internacional, sendo que esta última estabelece o que é obra literária, os cri-
térios para sua proteção, os direitos patrimoniais e morais do autor, dentre
outros temas (WACHOWICZ; MEDEIROS, 2014).

Sem negar a importância da proteção aos direitos autorais, vislum-


bra-se no contexto atual mundial que esta proteção não pode ser uma “bar-
reira excessiva ou discriminatória ao acesso de pessoas com deficiência a bens
culturais” (WACHOWICZ; MEDEIROS, 2014).

Portanto, existe a perspectiva da solidariedade, justamente porque


tutela direitos humanos.

A solidariedade também é destacada na esfera internacional pela


Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com reconhecimento
da “[...] dificuldade que há na efetivação dos direitos humanos e das liberda-
des fundamentais às pessoas com deficiência, e, assim, estabelece meios de
promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo destes direitos”
(WACHOWICZ; MEDEIROS, 2014).

Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que em


2019 “globalmente, pelo menos 2,2 bilhões de pessoas têm deficiência visual”,
sendo que destes “1 bilhão de pessoas inclui aqueles com deficiência da visão
à distância moderada ou severa ou cegueira[...]” (WHO, 2019), mas constata-
se a existência de muitos outros tipos de deficiências que podem dificultar ou
impossibilitar o acesso à leitura.

Sobre direito autoral e tutela das obras literárias, Ascenção (1997)


realça que não é um direito ilimitado ou absoluto, pois circundado por normas
positivas ou negativas limitadoras, que são fundamentadas em outros direitos,
tais como, direito ao acesso à cultura, à educação, à informação.

Observam Wachowicz e Medeiros (2014) que é por não existir um


direito absoluto que é comum encontrarmos “[...] nas legislações internacio-
nal e nacionais dispositivos legais que visam não apenas garantir direitos aos
titulares de direitos de propriedade intelectual, mas também a previsão de
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
80
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

direitos à sociedade, que deve suportar o ônus de tornar um bem público em


bem privado” (WACHOWICZ; MEDEIROS, 2014).

O Tratado de Marraqueche é uma destas legislações que enaltecem a


sociedade e promove limitação e isenções ao direito do autor, como também
propicia trocas fronteiriças de cópias em formato acessível.

Quanto às limitações e isenções ao direito autoral, o artigo 4° do Tra-


tado objeto da análise concebe a possibilidade da legislação interna dos países
relativa aos direitos do autor permitirem o direito de reprodução, distribuição,
bem como de disposição ao público, facilitando a disponibilidade de obras em
formato acessíveis.

No caso específico do Brasil, a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de


1998, prevê no artigo 29 a necessidade de autorização para adaptação da obra
do autor para outros formatos, para reprodução parcial ou integral, ou até
mesmo a tradução da obra em outro idioma.

Porém, o artigo 46, inciso I, alínea “d”, da mesma lei determina


que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução “[...] de obras
literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais,
sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema
de Braile ou outro procedimento em qualquer suporte para estes destinatá-
rios”, como por exemplo, áudiobook, formato ampliado, livros em formato
digital denominados Daisy (Digital Accessible Information System) ou outros
formatos acessíveis.

Imprescindível atentar que o mencionado artigo se refere somente a re-


produção de livros sem finalidade lucrativa para pessoas com deficiência visual.

Contudo a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também conhecida como


Estatuto da Pessoa com Deficiência, promulgada em 06 de julho de 2015 pela
Lei Federal nº 13.146/2015, veda em seu artigo art. 42, § 1º a recusa de oferta
de livros em formato acessível sob qualquer alegação, inclusive sob a argu-
mentação de violação de direitos do autor.
Bruna Homem de Souza Osman e Jessica Aparecida Soares 81

Consigna-se que o não atendimento à acessibilidade, a recusa de


adaptações, como também toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por
ação ou omissão, que tenham o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir
ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades funda-
mentais de pessoa com deficiência, são considerados atos discriminatórios em
razão da deficiência criminalizado no artigo 88 da Lei nº 13.146/2015.

Desta forma, nota-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência é uma


legislação que avança, pois estabelece limitações aos direitos do autor para a
produção de livros acessíveis não somente para cegos, mas para todas as pes-
soas com deficiência, ou seja, para toda pessoa que tenha “[...] impedimento
de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em
interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”6

No entanto, a Lei nº 13.146/2015 alcança somente a territorialidade


brasileira, diferentemente do TM que passa a solucionar questões entre os
países com partes contratantes do tratado.

A respeito dos beneficiários, a norma internacional sob análise indica


no artigo 3º que compreenderá a toda pessoa:

a) cega;

b) que tenha deficiência visual ou outra deficiência de percepção ou


de leitura que não possa ser corrigida para se obter uma acuidade
visual substancialmente equivalente a de uma pessoa que não te-
nha esse tipo de deficiência ou dificuldade, e para quem é impos-
sível ler material impresso de uma forma substancialmente equi-
valente à de uma pessoa sem deficiência ou dificuldade; e ainda,

c) que esteja impossibilitada, de qualquer outra maneira, devido a


uma deficiência física, de sustentar ou manipular um livro, focar ou

6 Disposição do Artigo 2º da Lei nº 13.146, de 6/07/2015, a qual institui a Lei Brasileira de


Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
82
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

mover os olhos da forma que normalmente seria apropriado para a


leitura, independente de quaisquer outras deficiências.

Denota-se, assim, que o TM o rol de beneficiários em comparação à Lei


Brasileira de Inclusão.

Outra significativa ponderação é a de que o Tratado faz alusão à


distribuição de obras literárias acessíveis e sem fins lucrativos e a Lei Brasileira
de Inclusão menciona oferta de obras literárias acessíveis, onde se pressupõe
comercialização.

Quanto à criação e disseminação de obras em formatos acessíveis para


os beneficiários, o artigo 5º do TM aponta a possibilidade de um intercâmbio
transfronteiriço de cópias acessíveis, ou seja, “[...] a possibilidade das legislações
nacionais permitirem uma entidade autorizada a exportar uma cópia em forma-
to acessível a uma pessoa beneficiária ou a uma entidade autorizada em outra
Parte Contratante [...]” (WACHOWICZ; MEDEIROS, 2014).

A troca de cópias adaptadas para PcD entre países, sem a solicitação


de autorização do proprietário dos direitos autorais, não é prevista pela Lei de
Direitos do Autor, nem pela Lei Brasileira de Inclusão.

Mesmo que ainda existam impasses no Brasil para se legitimar a en-


tidade autorizada, dificuldades para estabelecer mecanismos para reconhecer
os beneficiários e entender efetivamente como se evidenciarão as trocas e di-
fusão das obras acessíveis entre as partes contratantes, aponta-se que existem
disponibilizados atualmente, através do projeto denominado ABC Global Book
Service, sob coordenação da WIPO, mais de 635.000 títulos, em 80 línguas e em
variados formatos acessíveis.

O projeto sem fins lucrativos amplia a disponibilidade de livros em for-


matos acessíveis que podem ser trocados através das fronteiras entre as entida-
des autorizadas participantes.

Desta forma, seja pela ampliação do rol dos beneficiários, pela pos-
sibilidade de intercâmbio fronteiriço de obras intelectuais sem a necessidade de
Bruna Homem de Souza Osman e Jessica Aparecida Soares 83

solicitar autorização do proprietário de direitos autorais, e por já existir dispo-


nibilizado um grande acervo de obras acessíveis pelo projeto ABC Global Book
Service, urge a necessidade de regulamentação do Tratado de Marraqueche no
território brasileiro.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É com frequência que as PcD precisam ultrapassar barreiras para


conquistar ou ter acesso a direitos, especialmente no que tange aos bens cul-
turais, os quais compreendem as obras literárias, artísticas e científicas.

Na tentativa de garantir os direitos às pessoas com deficiência e pro-


mover a inclusão e acessibilidade, diversos dispositivos legais internacionais
e nacionais foram promulgados. Destaca-se internacionalmente o Tratado de
Marraqueche, que tem como origem a Convenção sobre os Direitos das Pes-
soas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo, todos na perspectiva da
solidariedade.

O TM, aprovado no Brasil pelo decreto legislativo nº 261 de 2015


e promulgado no território brasileiro pelo Decreto Presidencial nº 9.522 de
outubro de 2018, estabelece limitações ao direito do autor com finalidade de
facilitar o acesso às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras difi-
culdades para ter acesso ao texto impresso.

Tais limitações indicam que o direito autoral não é ilimitado ou abso-


luto, sobretudo quando se deve em benefício da sociedade enaltecer outros
direitos, tais como, o direito ao acesso à cultura, à educação e à informação.

Verifica-se na pesquisa que no Brasil já existia legislação avança-


da com isenções e limitações ao direito autoral quando da promulgação do
Tratado de Marraqueche, é o caso do artigo 46, inciso I alínea “d” da Lei nº
9.610/98, que favorece os deficientes visuais, como também a Lei Brasileira
de Inclusão (LBI), que veda a recusa de oferta de livros em formatos acessíveis
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
84
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

sob qualquer alegação, inclusive sob a argumentação de violação de direitos


do autor, não somente para cegos, mas para todas as pessoas com deficiência.

O Tratado de Marraqueche amplia o rol dos beneficiários, pois além


das pessoas com deficiência visual, alcança amplamente as PcD e, ainda, pes-
soas sem deficiência que estejam impossibilitadas de alguma forma de susten-
tar, manipular ou mover os olhos da forma que normalmente seria apropriado
para leitura.

Diante deste fato, consequentemente novos formatos de acessibili-


dade serão percebidos para promoção da inclusão universal, justamente para
que as pessoas estejam em grau de igualdade umas com as outras.

Ademais, o TM passa a solucionar questões internacionais deixando


clara a possibilidade de intercâmbio fronteiriço, com a distribuição de obras
literárias acessíveis, sem fins lucrativos e sem a solicitação de autorização do
proprietário dos direitos autorais.

Ainda que para a sua efetiva implementação no Brasil seja necessária


uma regulamentação específica, é possível vislumbrar do estudo proposto que
o TM é complementar à legislação brasileira, pois eleva os direitos ali previstos
a um nível constitucional, amplia o rol dos beneficiários, possibilita o intercâm-
bio fronteiriço de obras intelectuais sem a necessidade de solicitar autorização
do proprietário de direitos autorais e disponibiliza através do projeto ABC Glo-
bal Book Service grande acervo de obras acessíveis.

Além desta complementariedade vislumbra-se a possibilidade de por


intermédio do Tratado despontar conscientização sobre os desafios enfrenta-
dos pelas pessoas com dificuldades para acessar o texto impresso, impulsio-
nar políticas públicas favoráveis às pessoas com deficiência, ampliar o acesso
à educação através de materiais educativos em formatos acessíveis variados
com maior social e participação cultural, dentre tantos outros direitos essenciais
à vida humana.
Bruna Homem de Souza Osman e Jessica Aparecida Soares 85

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87

PLANOS DE SAÚDE E INTERNAÇÃO


DOMICILIAR PARA PESSOAS
COM DEFICIÊNCIA

Melize Oliveira Pontes1

1. INTRODUÇÃO

A
dificuldade de garantir que os Planos de Saúde promovam atendimento/
internação domiciliar para pessoas com deficiência ou doenças graves,
denominado Home Care, justifica o presente artigo.

Apesar de aparentemente estar pacificada a obrigatoriedade de os


Planos de Saúde fornecerem todo o necessário para a internação domiciliar,
ainda há constantes negativas por parte da maioria destas operadoras no Bra-
sil, o que muitas vezes dificulta o acesso a este direito.

Os principais objetos deste texto são: a) os Planos de Saúde e a inter-


nação domiciliar; b) as justificativas/razões dos Planos de Saúde para indeferir
pedidos de internação domiciliar de pessoas com deficiência; c) medidas judi-
ciais cabíveis para a garantia da internação domiciliar a pessoas com deficiên-
cia, de modo a permitir que usufruam de tratamento médico digno no âmbito
de sua própria residência.

2. PLANOS DE SAÚDE E INTERNAÇÃO DOMICILIAR

1 Advogada. Especialista em Direito Previdenciário. Membro Consultor da Comissäo dos Direi-


tos da Pessoa com Deficiência da OAB/PR.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
88
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

2.1 CONCEITO E REGULAMENTAÇÃO DOS PLANOS DE SAÚDE

O Plano de Saúde é um serviço de assistência médica, prestado por


empresas privadas e regulamentado pela Agência Nacional de Saúde – ANS,
conforme a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998.

A relação do Plano de Saúde com o seu contratante é regulamenta-


da pelo Código de Defesa do Consumidor, devendo, portanto, as regras deste
Código serem integralmente aplicadas para a solução de quaisquer conflitos
existentes.

2.2 O QUE É A INTERNAÇÃO DOMICILIAR NOS PLANOS DE SAÚDE?

O Parecer Técnico da ANS nº 05/GEAS/GGRAS/DIPRO/2019 define


internação domiciliar como o “conjunto de atividades prestadas no domicílio,
caracterizadas pela atenção em tempo integral ao paciente com quadro clínico
mais complexo e com necessidade de tecnologia especializada”.

Este mesmo Parecer Técnico define que, caso não seja possível a
internação domiciliar, o Plano de Saúde deverá fornecer alternativamente
o atendimento na própria unidade hospitalar, não podendo dar alta médica
quando é atestada a necessidade de um atendimento complexo.

O atendimento domiciliar se mostra fortemente adequado para pa-


cientes que precisam de internação de longo prazo, bem como para aqueles
que passarão o tempo completo de suas vidas precisando deste atendimento
para se desenvolver com segurança, conforto e respeitando o seu direito à
saúde e à vida de forma digna.

2.3 POR QUE OS PLANO DE SAÚDE NEGAM A INTERNAÇÃO DOMICILIAR?

As razões para o indeferimento são diversas, como: a) a falta de pre-


visão contratual; b) possibilidade de contratação, por parte dos familiares, de
Melize Oliveira Pontes 89

um “cuidador informal” para atender todas as necessidades daquele(a) pa-


ciente; c) falta de previsão orçamentária do Plano de Saúde; d) dificuldades no
deslocamento de profissionais; d) falta de carência; e) ausência de registro nos
órgãos que fiscalizam o atendimento domiciliar (ex. ANVISA), dentre outras.

Importante ressaltar que o serviço de internação domiciliar vem in-


clusive regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, por meio da Reso-
lução nº 1.668/2003, a qual “dispõe sobre normas técnicas necessárias à assis-
tência domiciliar de paciente, definindo as responsabilidades do médico, hos-
pital, empresas públicas e privadas; e a interface multiprofissional neste tipo
de assistência”. Assim, a negativa com fundamento de que o atendimento po-
deria ser feito pelos próprios familiares não é motivo para o indeferimento do
pedido.

Embora sejam vários os motivos apontados pelos Planos de Saúde


para negar a internação domiciliar, nenhuma delas prospera diante da possibi-
lidade de ser este o tratamento mais adequado ao(à) paciente.

3. INTERNAÇÃO DOMICILIAR DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

3.1 A GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NA


LEGISLAÇÃO VIGENTE

A internação médica domiciliar da pessoa com deficiência que dela


necessitar deve ser analisada à luz do direito à vida e à saúde, previstos em
nossa Constituição Federal, sendo inclusive competência comum de todos os
entes federativos garanti-los.

No decorrer dos anos, diversas leis e decretos foram sendo aprova-


dos, até que a denominada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiên-
cia, Lei nº 13.146/2015, trouxe o mais recente conceito de pessoa com defi-
ciência. Inclusive, a referida lei, em seu artigo 20, menciona que no âmbito
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
90
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

privado todos os produtos e serviços devem ser garantidos às pessoas com


deficiência em igualdade com os demais usuários.

Assim, havendo prescrição de internação domiciliar para uma pessoa


com deficiência, todo o sistema da saúde, público ou privado, deve se movi-
mentar no sentido de garantir que este seja efetivado, com vistas à proteção
do direito à saúde e consequentemente o direito à vida.

3.2 PRESCRIÇÃO MÉDICA

A prescrição médica de internação domiciliar não pode ser realizada


de forma massificada, deve ser direcionada de acordo com a especificidade
da situação, evitando-se prescrições comedidas, bem como com exageros de
procedimentos e profissionais.

O tratamento indicado para o(a) paciente é feito pelo médico que


o(a) acompanha ou o que toma conhecimento de seu estado clínico, logo, não
é a operadora do Plano de Saúde que definirá qual o melhor procedimento a
ser adotado. Neste sentido:

Seguro saúde. Cobertura. Câncer de pulmão. Tratamento com


quimioterapia. Cláusula abusiva. 1. O plano de saúde pode esta-
belecer quais doenças estão sendo cobertas, mas não que tipo de
tratamento está alcançado para a respectiva cura. Se a patologia
está coberta, no caso, o câncer, é inviável vedar a quimioterapia
pelo simples fato de ser esta uma das alternativas possíveis para a
cura da doença. A abusividade da cláusula reside exatamente nesse
preciso aspecto, qual seja, não pode o paciente, em razão de cláu-
sula limitativa, ser impedido de receber tratamento com o método
mais moderno disponível no momento em que instalada a doença
coberta. 2. Recurso especial conhecido e provido.2

2 STJ - REsp: 668216 SP 2004/0099909-0, Relator: Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES


DIREITO, Data de Julgamento: 15/03/2007, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ
02.04.2007 p. 265. RNDJ v. 91 p. 85. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurispruden-
cia/22800/recurso-especial-resp-668216-sp-2004-0099909-0/inteiro-teor-100032114?ref=ju-
ris-tabs>. Acesso em: 28/08/2020.
Melize Oliveira Pontes 91

A Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, por meio da Lei


nº 9.656/1998 pormenorizou os deveres das operadoras de Planos de Saúde
quando do oferecimento de internação domiciliar:

Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos


produtos de que tratam o inciso I e o § 1º. do art. 1º. desta Lei,
nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, res-
peitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no
plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes
exigências mínimas: (...) II - quando incluir internação hospita-
lar: (...) c) cobertura de despesas referentes a honorários médi-
cos, serviços gerais de enfermagem e alimentação; (...) d) cober-
tura de exames complementares indispensáveis para o controle
da evolução da doença e elucidação diagnóstica, fornecimento
de medicamentos, anestésicos, gases medicinais, transfusões e
sessões de quimioterapia e radioterapia, conforme prescrição do
médico assistente, realizados ou ministrados durante o período
de internação hospitalar; e) cobertura de toda e qualquer taxa,
incluindo materiais utilizados, assim como da remoção do pacien-
te, comprovadamente necessária, para outro estabelecimento
hospitalar, dentro dos limites de abrangência geográfica previs-
tos no contrato, em território brasileiro; e (...) g) cobertura para
tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso
oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e
hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade
esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âm-
bito de internação hospitalar.3

A Resolução Normativa nº 349/2014, da ANS, reiterou o entendimen-


to da Lei acima mencionada, incluindo a internação domiciliar em seu rol de
procedimentos.4

3 BRASIL. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de
assistência à saúde. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9656compi-
lado.htm>. Acesso em: 28/08/2020.

4 BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Resolução Norma-


tiva nº 349, de 9 de maio de 2014. Disponível em: <http://www.lex.com.br/legis_25508487_
RESOLUCAO_NORMATIVA_N_349_DE_9_DE_MAIO_DE_2014.aspx#:~:text=Altera%20
a%20Resolu%C3%A7%C3%A3o%20Normativa%20%2D%20RN,a%20Lei%20n%-
C2%BA%2012.880%2C%20de>. Acesso em: 28/08/2020.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
92
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Assim, o(a) paciente ou seu representante deve solicitar que o mé-


dico prescreva a deficiência e todas as necessidades para o atendimento do-
miciliar minuciosamente, as quais deverão ser integralmente fornecidas pelo
plano de saúde contratado.

3.3 DOENÇAS PREEXISTENTES

Não há qualquer impedimento para que pessoas com deficiência e


com necessidade de atendimento domiciliar contratem um Plano de Saúde já
tendo conhecimento deste fato, pois, no momento da contratação, o(a) consu-
midor(a) responde a um questionário especificando as doenças ou deficiências
que possui. Entretanto, ressaltamos que é dever da operadora do Plano de
Saúde realizar o denominado “check-up” no(a) interessado(a) e assim tomar
conhecimento de todas as doenças que possua e que supostamente não esta-
rão cobertas pelo plano contratado.

É plenamente possível, em caso de negativa na cobertura de trata-


mento para determinada deficiência ou doença sob alegação de ser preexis-
tente, pleitear a “inversão do ônus da prova”, conforme previsão expressa do
Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, inciso VIII, de modo que o
Plano de Saúde comprove o prévio conhecimento do(a) consumidor(a) de que
estava acometido de doença ou incapacidade preexistente.

Insta consignar que um Plano de Saúde jamais pode se negar a rece-


ber como consumidor(a) uma pessoa com doença ou deficiência preexistente.
Para estes casos, a ANS menciona a possibilidade de uma cobertura parcial e
temporária de doenças que efetivamente já existiam antes da contratação do
plano de saúde, e após cumprido o prazo de carência, a cobertura passará a
ser total na forma contratada.

Caso o(a) consumidor(a) opte pelo atendimento de doenças preexis-


tentes com cobertura total, poderá efetuar o pagamento do denominado “agra-
vo”. Caracteriza-se por um valor adicional suportado pelo(a) consumidor(a) e
Melize Oliveira Pontes 93

que lhe garante determinado tratamento, porque na contratação já tinha co-


nhecimento da deficiência.5

Assim, ao ser surpreendido com uma doença ou deficiência, o consu-


midor que tiver interesse em contratar um plano de saúde não estará desco-
berto, bem como não poderá ser impedido de realizar este contrato.

3.4 DIREITO DO NASCITURO, DO RECÉM-NASCIDO E DA CRIANÇA COM


DEFICIÊNCIA

Em se tratando de nascituro é passível o entendimento que este po-


derá utilizar da cobertura do Plano de Saúde de seus genitores, na condição
de dependente.

Já em relação ao recém-nascido(a), filho natural ou adotivo, os ge-


nitores poderão optar pela contratação de um plano de saúde para a crian-
ça, assim como solicitar a sua inclusão à cobertura assistencial de um plano
familiar já existente, conforme dispõe o artigo 12, inciso III, alíneas “a” e “b”
da Lei nº 9.656/1998, estendendo este direito igualmente ao filho adotivo,
menor de doze anos de idade, conforme o inciso VII do artigo anteriormente
citado, que, conforme dito, não poderá sofrer nenhum gravame ou qualquer
outro diferencial, em razão da sua condição ou necessidade especial, confor-
me preceitua a Lei nº 13.146/2015: “Art. 23. São vedadas todas as formas de
discriminação contra a pessoa com deficiência, inclusive por meio de cobrança
de valores diferenciados por planos e seguros privados de saúde, em razão de
sua condição.”

Inclusive, a jurisprudência é favorável não somente à internação do-


miciliar, mas também ao fornecimento de medicação para crianças que foram

5 BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Carência: Quanto tempo é preciso aguar-
dar até poder ser atendido ao contratar um plano de saúde? Disponível em: <https://www.
ans.gov.br/index.php/component/content/article/48-perguntas-frequentes/755-quanto-tempo
-e-preciso-aguardar-ate-poder-ser-atendido-ao-contratar-um-plano-de-saude>. Acesso em:
28/08/2020.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
94
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

diagnosticadas até mesmo com doença rara:

Agravo de instrumento. Ação cominatória. Plano de saúde. Tutela


antecipada para impelir a operadora a custear tratamento da espé-
cie home care. Pleito indeferido à origem. Recurso da parte autora.
Home Care. Internação domiciliar. Medida não excluída expressa-
mente. Rol exemplificativo da ANS. Possibilidade de a operadora
delimitar doenças, mas não tratamentos. Beneficiário. Criança
acometida por distrofia neuroaxonal infantil. Rara doença degene-
rativa com intenso grau de comprometimento do desenvolvimento
neurológico. Perigo de dano demonstrado. Conclusão análoga pela
procuradoria-geral de justiça. Tutela concedida. “O rol de procedi-
mentos previstos nas Resoluções Normativas da ANS não indica, de
forma taxativa e exaustiva, os tratamentos que devem ser cobertos
pelos planos de saúde, mas, ao revés, dispõe as coberturas míni-
mas que nele devem constar”.6

Ação de obrigação de fazer. Plano de saúde. Beneficiário de 1 (um)


ano e 4 (quatro) meses de idade portador de atrofia muscular es-
pinhal, doença neurológica progressiva de ocorrência rara e que
causa fraqueza muscular. Negativa de fornecimento de medica-
mento e de atendimento domiciliar. Decisão interlocutória deferi-
tória de tutela de urgência para obrigar a operadora ré a fornecer
a aludida medicação e os referidos serviços em benefício do autor.
Irresignação da operadora. Tese de que o medicamento teria ca-
ráter experimental ou que seu uso se daria “off label”. Argumento
insustentável. Prescrição médica que indica o medicamento como
único específico para o autor. Bula com mesmo indicativo, sem dis-
tinção quanto ao tipo, subtipo ou características sintomáticas da
doença. Ingerência da operadora de saúde na atividade médica
que tampouco se mostra viável. Precedentes. Atendimento domici-
liar. Frágil estado de saúde do autor. Home care que se constitui em
desdobramento do tratamento hospitalar e autoriza a relativização
da cláusula excludente do contrato de prestação de serviço. (...) –
trechos suprimidos.7

6 TJ-SC - AI: 40016267920198240000 Itapoá 4001626-79.2019.8.24.0000, Rela-


tor: Ricardo Fontes, Data de Julgamento: 14/05/2019, Quinta Câmara de Direito Ci-
vil. Disponível em: <https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/709345135/agravo-
de-instrumento-ai-40016267920198240000-itapoa-4001626-7920198240000?ref=serp>.
Acesso em: 28/08/2020.

7 TJ-SC - AI: 40234297120188240900 Capital 4023429-71.2018.8.24.0900, Relator: Maria


Melize Oliveira Pontes 95

Amparado o direito pela Lei nº 9.656/1998, não prospera a negativa


do plano de saúde no atendimento da criança com deficiência que necessite
de internação domiciliar, mesmo em caso de recém-nascido.

3.5 MEDIDAS JUDICIAIS PARA GARANTIA DA INTERNAÇÃO DOMICILIAR DA


PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Diante de prescrição médica preliminar, a operadora do Plano de


Saúde deveria realizar visita técnica domiciliar para avaliação dos equipa-
mentos de suporte e/ou monitoramento a serem instalados na residência e
composição da equipe multiprofissional necessária para o atendimento do(a)
paciente. Essa equipe, em regra, deve ser composta por médicos especialistas,
enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem, nutricionis-
tas, fisioterapeutas, psicólogos ou psiquiatras.

Mas, é fato que, na prática, as operadoras apenas se manifestam por


meio de um ofício ou documento equivalente informando a negativa do aten-
dimento domiciliar, de modo a transferir aos familiares do(a) paciente a res-
ponsabilidade do tratamento domiciliar.

A ação de obrigação de fazer, cumulada com pedido de tutela de ur-


gência em face da negativa de atendimento por parte da operadora do Plano de
Saúde, é o meio mais eficaz para garantia deste direito, sendo que nesta ação se
deve requerer a internação domiciliar e especificar todas as outras necessidades
do(a) paciente, permitindo ao juízo ir “além do papel” e enxergar a realidade
daquela pessoa privada de seu direito a ser melhor cuidado em sua casa.

Caso a pessoa com deficiência ou seu familiar entenda que a inter-


nação médica domiciliar é a melhor opção, mas não consigam prescrição mé-
dica neste sentido, é possível o ingresso de ação para produção antecipada de

do Rocio Luz Santa Ritta, Data de Julgamento: 21/05/2019, Terceira Câmara de Direi-
to Civil. Disponível em: <https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/711878378/agravo-
de-instrumento-ai-40234297120188240900-capital-4023429-7120188240900?ref=serp>.
Acesso em: 28/08/2020.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
96
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

provas, na qual se realizará perícia médica e avaliação psicossocial e então se


confirmará se a internação domiciliar é indicada.

Havendo decisão judicial favorável com indicação da internação do-


miciliar, pode ser requerido ao Plano de Saúde o cumprimento da obrigação de
promover o cumprimento da obrigação.

3.5.1 Concessão de Tutela de Urgência

O pedido de tutela de urgência se justifica porque em geral são ne-


cessidades que não podem aguardar o moroso andamento processual. A juris-
prudência se manifesta neste sentido:

Agravo interno no agravo de instrumento - decisão monocrática do


relator que desproveu o agravo de instrumento - ação de obrigação
de fazer - plano de saúde – decisão que determinou o custeio de
atendimento médico domiciliar (home care), sob pena de multa –
incidência do código de defesa do consumidor - demonstração da
imprescindibilidade e urgência do tratamento – requisitos do art.
300, do CPC, preenchidos – decisão monocrática mantida – agravo
interno desprovido. (...). 2. O dano irreparável ou de difícil repara-
ção é evidente, pois se trata de possibilidade de prejuízo à saúde
ou mesmo à vida do autor, cuja moléstia que o assola impõe sé-
rias dificuldades a sua qualidade de vida, bem como a emergência
restou demonstrada, na medida em que se comprovou, por meio
dos relatórios médicos apresentados que o agravado é portador de
fibrose pulmonar idiopática, doença rara e sem cura que demanda
cuidados especiais e permanentes. 3. Nas razões do agravo interno
há simples repetição das razões do recurso de agravo de instru-
mento, não havendo fatos ou fundamentos novos suficientes para
alterar a decisão monocrática agravada.8
Ipe-saúde. Atendimento de enfermagem domiciliar 24 horas.
Home care. Antecipação de tutela. A tutela antecipada pode ser
revogada ou modificada a qualquer tempo. Art. 273, § 4º, do CPC.
Não provada a alteração das circunstâncias de fato que levaram

8 TJ-MT - AI: 10007151820188110000 MT, Relator: SEBASTIAO DE MORAES FILHO, Data


de Julgamento: 17/10/2018, Segunda Câmara de Direito Privado, Data de Publicação:
26/10/2018. Disponível em: <https://tj-mt.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/843218407/agravo-
de-instrumento-ai-10007151820188110000-mt?ref=serp>. Acesso em: 28/08/2020.
Melize Oliveira Pontes 97

ao deferimento, em parte, da tutela antecipada, é de ser mantida


a decisão que deixou de reapreciar o pedido. Negado seguimento
ao recurso.9

3.5.2 Perícia médica judicial

Os documentos médicos apresentados pelas partes com a petição


inicial são suficientes para comprovar a necessidade de internação domiciliar.
Entretanto, o feito tramitará regularmente e poderá ser requerido pelas partes
ou, até mesmo, determinado pelo juízo a realização de perícia médica para
avaliar se a internação domiciliar é indicada.

Considerando a dificuldade de locomoção da maioria dos(as) pacien-


tes, é possível a realização da perícia “in loco”, na qual o(a) perito(a) judicial se
desloca até a residência do(a) paciente ou ao local em que ele(a) se encontre,
promova a avaliação clínica e apresente, nos autos, laudo completo a respeito
do estado de saúde e todas as reais necessidades para um atendimento mé-
dico domiciliar.

4. CONCLUSÃO

Todo o ordenamento jurídico se posiciona no sentido de fornecer


sempre o melhor tratamento médico às pessoas com deficiência. Entretanto,
ainda são necessárias medidas judiciais para a garantia desses direitos, já que
os Planos de Saúde ignoram as determinações e negam as providências para
internação domiciliar, “segurando” o(a) paciente em internação hospitalar, ou,
ainda pior, dando-lhe alta e entregando-o(a) à própria sorte.

É fato que as necessidades decorrentes de uma internação domiciliar

9 TJ-RS - AI: 70064255441 RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Data de Julgamento:
08/04/2015, Vigésima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia
13/04/2015. Disponível em: <https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/180692359/agravo-
de-instrumento-ai-70064255441-rs?ref=serp>. Acesso em 28/08/2020.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
98
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

são muito peculiares e dependem de análise de caso a caso, não havendo pos-
sibilidade de uma regra geral para todos os consumidores de Planos de Saúde.

Conforme vimos, a equipe multidisciplinar, deve ser composta por


auxiliares de enfermagem, técnicos de enfermagem, enfermeiros, nutricionis-
tas, fisioterapeutas, psicólogos ou psiquiatras e médicos especialistas na pato-
logia do(a) paciente.

Não menos importante, deve ser mantida a cobertura de todos os


exames, procedimentos médicos, transporte do(a) paciente, medicamentos,
insumos para curativos, nutrição parenteral, sondas, oxigênio, fraldas, cadei-
ras de banho e cadeiras de rodas, cama hospitalar, colchão hospitalar, colchão
ortopédico e de incontáveis outras necessidades que, conforme menciona-
mos, será prescrita quando da análise médica e psicossocial.

Muitas famílias desistem após a primeira negativa dos Planos de Saú-


de e, em situação de desespero, passam a arcar com todos os custos finan-
ceiros e abalos psicológicos pela necessidade de promoverem por si o aten-
dimento multidisciplinar de seus familiares com deficiência ou acometidos de
doenças raras, em situação de total dependência do ponto de vista clínico.

Importante considerar que a internação domiciliar objetiva um aten-


dimento humanizado, pois uma pessoa com deficiência, que precisa de assis-
tência médica integral, não pode ser privada totalmente de convívio social e
ser obrigada a viver “isolada” em uma unidade hospitalar simplesmente por-
que o Plano de Saúde opta em não fornecer a internação domiciliar.

Havendo indicação de internação domiciliar, este tratamento deve


ser fornecido integralmente, sempre com vistas a cumprir não somente a letra
de lei, mas, principalmente, assegurar a concretização dos direitos das pessoas
com deficiência que necessitam de saúde e vida digna, a serem garantidas pelo
Plano de Saúde contratado.
Melize Oliveira Pontes 99

5. REFERÊNCIAS

BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Parecer técnico nº 05/GEAS/


GGRAS/DIPRO/2019. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/images/stories/
parecer_tecnico/uploads/parecer_tecnico/_parecer_2019_05.pdf>. Acesso em:
28/08/2020.
______. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Carência: Quanto tempo é
preciso aguardar até poder ser atendido ao contratar um plano de saúde? Dis-
ponível em: <https://www.ans.gov.br/index.php/component/content/article/
48-perguntas-frequentes/755-quanto-tempo-e-preciso-aguardar-ate-poder-ser
-atendido-ao-contratar-um-plano-de-saude>. Acesso em: 28/08/2020.
______. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.668/2003. Dis-
ponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/
BR/2003/1668>. Acesso em: 28/08/2020.
______. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em:
28/08/2020.
______. Decreto nº 3.327, de 5 de janeiro de 2000. Aprova o Regulamento da
Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, e dá outras providências. Dis-
ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3327.htm>. Aces-
so em: 28/08/2020.
______. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros
privados de assistência à saúde. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/L9656compilado.htm>. Acesso em: 28 ago. 2020.
______. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão
da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>.
Acesso em: 28/08/2020.
______. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Resolu-
ção Normativa nº 349, de 9 de maio de 2014. Disponível em: <http://www.lex.
com.br/legis_25508487_RESOLUCAO_NORMATIVA_N_349_DE_9_DE_MAIO_
DE_2014.aspx#:~:text=Altera%20a%20Resolu%C3%A7%C3%A3o%20Normati-
va%20%2D%20RN,a%20Lei%20n%C2%BA%2012.880%2C%20de>. Acesso em:
28/08/2020.
GIVIGI, Rosana Carla do Nascimento. Pesquisa em saúde e educação: atendi-
mento à pessoa com deficiência. Curitiba: Appris, 2019.
VARELLA, Drauzio; CESCHIN, Mauricio. A saúde dos planos de saúde: os desafios
da assistência privada no Brasil. São Paulo: Paralela, 2014.
101

A EXCEPCIONALIDADE DE AULAS
ON-LINE PARA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA
DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

Maria Christina dos Santos1


Vania Lucia Girardi2

1. INTRODUÇÃO

A
pandemia causada pelo novo Coronavírus – COVID-19 levou muitos
países, entre eles o Brasil, a aplicar, a partir do primeiro trimestre de
2020, o isolamento social horizontal. O período que – supunha-se –
duraria uma quarentena, estendeu-se por mais de um ano. Esse cenário, além
de repercussões na área da saúde, tem gerado impactos de ordem social, eco-
nômica, política e cultural. O confinamento físico tornou essencial o uso de
tecnologias digitais de informação e comunicação (TIC) para as atividades la-
borativas, de lazer e pedagógicas, inclusive de alunos do ensino fundamental,
ou seja, do 1º ao 9º ano, diante da decretação do fechamento das escolas.

A excepcionalidade do ensino remoto exigiu o planejamento e im-


plementação de aulas e atividades pedagógicas mediadas por tecnologias
– com peculiaridades de Educação a Distância (EaD) – e a educação especial

1 Mestre em Planejamento e Governança Pública. Especialista em Direito Educacional. Espe-


cialista em Proteção Integral a Crianças e Adolescentes. Graduada em Serviço Social e Di-
reito. Advogada. Na Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR: Membro Consultor
– gestão 2019/2021 e 2016/2018; Presidente – gestão 2013/2015. No Instituto de Tecnologia
& Dignidade Humana: Advogada – 2015/2017; Conselheira Fiscal – 2018/2022.

2 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Educação Físi-


ca. Especialista em Educação Especial. Especialista em Educação inclusiva. Professora na
Modalidade Educação Especial.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
102
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

está inserida nesse cenário.

Considerando-se que o sistema normativo brasileiro preceitua que a


escola regular deve dispor, quando necessário, de serviço de apoio especializa-
do adequado às peculiaridades do aluno de inclusão, questiona-se como esse
atendimento vem sendo previsto àqueles com deficiência durante o período
de suspensão das aulas e das atividades pedagógicas presenciais.

Este ensaio tece breves considerações jurídicas a respeito da criança


e do adolescente com deficiência e o direito à educação, inclusive no período
de ministração de videoaulas. Discorre sucintamente acerca de políticas emer-
genciais adotadas, tendo como foco os alunos com deficiência matriculados no
ensino fundamental, na modalidade de educação especial, com o intuito de elu-
cidar a dúvida suscitada acima. Ao final, traz dados quantitativos no tocante ao
segmento de alunos que motivou a presente reflexão.

2. A CRIANÇA E O ADOLESCENTE COM DEFICIÊNCIA E O


DIREITO À EDUCAÇÃO

No ordenamento jurídico brasileiro crianças e adolescentes são re-


conhecidos como sujeitos de direitos humanos fundamentais, pessoas em pe-
culiar estágio de desenvolvimento biopsicossocial e destinatários de proteção
especial. Nessa parcela da população encontram-se aqueles com deficiência,
considerados especialmente vulneráveis, motivo pelo qual devem ser prote-
gidos de todas as formas de tratamento negligente, discriminatório, violento,
cruel, opressor, desumano, degradante, segundo a Lei Brasileira de Inclusão
(LBI) – Lei nº 13.146/2015.

Compete ao Estado o dever constitucional de garantir a todos o di-


reito à educação, inclusive mediante o atendimento educacional especializado
as pessoas com deficiência, de preferência na rede regular de ensino. O Es-
tatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/1990 –, por sua vez,
traz disposições expressas relativas a atendimento especializado à criança e ao
Maria Christina dos Santos e Vania Lucia Girardi 103

adolescente com deficiência, ao instituir normas sobre o direito à educação.


A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) – Lei nº 9.394/1996 – prevê que
o direito à educação seja efetivado aos alunos com deficiência, bem como aos
que apresentam transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/
superdotação, inseridos na educação especial, incluídos em classes comuns.
Todavia, o aluno que, em função de suas condições específicas, não possa ser
integrado em classes comuns, deve receber atendimento educacional em clas-
ses, escolas ou serviços especializados.

No que tange à regulamentação do uso da rede mundial de compu-


tadores, o Marco Civil da Internet – Lei nº 12.965/2014 – prevê o reconhe-
cimento do acesso ao ciberespaço como essencial ao exercício da cidadania.
Ainda, entre os direitos assegurados ressalta-se, aqui, a acessibilidade, de-
vendo-se considerar as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais,
intelectuais e mentais do usuário.

Até recentemente, seria inimaginável ministrar aulas remotas para


alunos do 1º ao 9º ano. Todavia as circunstâncias obrigaram a sua utilização
para esse fim, como se verá na sequência.

3. AULAS ON-LINE PARA O ENSINO FUNDAMENTAL


DURANTE A SITUAÇÃO EMERGENCIAL DE SAÚDE
PÚBLICA

No ensino fundamental as aulas são presenciais, admitindo-se a edu-


cação a distância somente nas hipóteses de complementação da aprendizagem
ou em situações emergenciais, como a vivenciada a partir de 2020. Diante da
necessidade de se adotar medidas urgentes de enfrentamento à proliferação
da COVID-19, em fevereiro foi promulgada a Lei nº 13.979/2020,3 e dois meses

3 Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância


internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
104
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

depois, a Medida Provisória nº 934/2020.4 Esta, em agosto, foi convertida na


Lei nº 14.040/2020, que estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo
durante o estado de calamidade pública. Foram, também, emitidos decretos,
pareceres e resoluções com o propósito de estipular diretrizes e estatuir re-
gime especial para as atividades escolares na forma de aulas não presenciais
enquanto durar a pandemia.

Cumpre observar que no dia 28 de abril de 2020, o Conselho Nacio-


nal de Educação (CNE) aprovou diretrizes para orientar estados, municípios e
escolas quanto às práticas a serem adotadas, desde a etapa de educação infan-
til até a superior. As recomendações para a educação especial são no sentido
de que: a) as atividades pedagógicas não presenciais incluam os alunos com
deficiência, transtorno de espectro autista e altas habilidades/superdotação;
b) sejam empregadas medidas de acessibilidade, organizadas e reguladas pe-
los estados e municípios; e c) se tome cuidado com a mediação. Assim, deve
ser assegurado o atendimento educacional especializado com a parceria entre
professores e profissionais especialistas na adequação de materiais, orienta-
ções e apoios a pais e responsáveis. E ainda:

Como a atenção é redobrada para cada aluno, os profissionais


do atendimento educacional especializado devem dar suporte às
escolas na elaboração de planos de estudo individualizados, que
levem em conta a situação de cada estudante. As famílias são, sem-
pre, parte importante do processo. (MEC, 2020)

Tais atividades pedagógicas não presenciais poderão demandar


apoio, “ajuda técnica” ou “tecnologia assistiva”. O termo Tecnologia Assistiva
(TA), consignado na LBI, refere-se a “todo e qualquer recurso que facilita ou
amplia habilidades, podendo ser usadas tanto para mobilidade quanto para
acessar a informação”. Anteriormente o Comitê de Ajudas técnicas (CAT) – ins-
tituído pela Portaria nº 142/2006, estabelecido pelo Decreto nº 5.296/2004,

4 Estabelecia normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino su-
perior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde
pública, objeto da Lei nº 13.979, de 06/02/2020.
Maria Christina dos Santos e Vania Lucia Girardi 105

no âmbito da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da Re-


pública – conceituou TA como segue:

Área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que en-


globa produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e
serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada
à atividade e participação de pessoas com deficiência, incapaci-
dades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, indepen-
dência, qualidade de vida e inclusão social (BRASIL, 2009, p. 13
apud CAT, 2007).

A TA é um direito dos estudantes com deficiência e o acesso para aque-


les que dela necessitam precisa ser garantido durante o isolamento social. So-
mente desta forma suas necessidades e especificidades poderão ser atendidas
dentro da diversidade e complexidade que engloba a educação especial.

Apresenta-se a seguir dados de âmbito nacional e estadual para que


se tenha uma visão panorâmica do universo de alunos em questão.

4. ALUNOS MATRICULADOS NA EDUCAÇÃO ESPECIAL NO


BRASIL E NO PARANÁ

Os dados relativos à educação especial no território brasileiro e pa-


ranaense, destacando-se os do ensino fundamental, têm como fontes de pes-
quisa o Censo Escolar da Educação Básica e o Resumo Técnico do Censo Escolar
de Educação Básica do Estado do Paraná, ambos de 2019 – emitidos pelo Ins-
tituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) –, e
o Plano Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado do Paraná:
2018-2021 (SANTOS; REZENDE, 2017).
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
106
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

3.1 DADOS RELATIVOS AO BRASIL

FIGURA 1: Tabela de matrículas da educação especial por etapa de ensino –


2015-2019.

Fonte: Notas Estatísticas – Censo Escolar 2019 (INEP, p. 21).

Ao se traçar um paralelo entre matrículas na educação especial na


etapa de educação fundamental em 2015 e 2019, constata-se um aumento
de 23%, perfazendo o total de quase 886 mil matriculados. O Censo não es-
pecifica, desse universo, quantos são os alunos com deficiência, transtorno
global do desenvolvimento, superdotação/altas habilidades ou transtornos
funcionais específicos, tais como dislexia, disortografia, disgrafia, discalculia,
transtorno de atenção e hiperatividade.

FIGURA 2: Quadro do percentual de alunos de 4 a 17 anos da educação especial


em classes comuns por dependência administrativa – 2015-2019.

Fonte: Notas Estatísticas – Censo Escolar 2019 (INEP, p. 22).


Maria Christina dos Santos e Vania Lucia Girardi 107

Observa-se que especificamente no tocante aos alunos com idades


compreendidas entre quatro e dezessete anos, incluídos em classes comuns,
ocorreu o aumento de 88,4% em 2015 para 90,9% em 2017 e 92,8% em 2019.

3.2 DADOS RELATIVOS AO PARANÁ

O Plano Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado


do Paraná: 2018-2021 traz dados relativos à distribuição de alunos da educa-
ção especial, matriculados no ensino regular, especificando, inclusive, alguns
tipos de deficiência.

FIGURA 3: Distribuição dos alunos matriculados no ensino regular, por tipo de


necessidade especial5 – Paraná – 2016.

Fonte: SANTOS; REZENDE, 2017, p. 66.

No que concerne às deficiências, resta claro que a mental se sobressai


em relação às demais.

5 Manteve-se, aqui, a terminologia utilizada no documento original.


CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
108
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Segundo consta do Resumo Técnico do Estado do Paraná (INEP,


2020a, p. 16; 38), em 2019 houve 2,6 milhões de matrículas na educação bá-
sica, 100.262 das quais na educação especial, salientando-se que o maior nú-
mero está nas séries iniciais do ensino fundamental (37,7%).

FIGURA 4: Percentual de alunos matriculados da educação especial em classes


comuns segundo a etapa de ensino ‐ Paraná ‐ 2015-2019.

Fonte: Resumo Técnico do Estado do Paraná – Censo Da Educação Básica 2019, p. 39.

O gráfico evidencia aumento no percentual de alunos que compõem


o público-alvo da educação especial, matriculados em classes comuns no ensi-
no fundamental, de 65,3% em 2015 para 70,4% em 2019, no estado do Paraná.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cenário de isolamento social trouxe inúmeros desafios às escolas


e, para a implementação das aulas on-line para a educação especial, fez-se
necessário a definição de diretrizes específicas, de modo a garantir o direito
à educação para essa população mais vulnerável. Nesse contexto, o ensino
para estudantes com deficiência demandou uma estrutura com adaptações,
possibilidades de acesso e adequações metodológicas, além da anteriormente
Maria Christina dos Santos e Vania Lucia Girardi 109

oferecida no ambiente escolar.

As aulas remotas, em que a tela está como interface do ensino e apren-


dizagem, sem a interação presencial do professor, exigiram empenho alteroso
das equipes pedagógicas e a interação humana mediada exclusivamente pelas
famílias ou responsáveis. Estes, por sua vez, desempenham papel de alta re-
levância tanto para que processo de aprendizagem seja eficaz – na medida do
possível –, quanto para minimizar os riscos decorrentes da complexidade desta
modalidade de ensino, especialmente para alunos com deficiência física, moto-
ra, sensorial e intelectual.

Não obstante o fato de o ensino a distância ter sido a alternativa


possível para minimizar os efeitos do isolamento social na trajetória escolar,
não resta dúvida de que geraram prejuízos, que – sugere-se – sejam objeto de
estudos futuros.

6. REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de


outubro de 1988. In: Vade Mecum. 17 ed. rev. ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.
______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança
e do Adolescente e dá outras providências. In: Vade Mecum. 17 ed. rev. ampl.
atual. São Paulo: RT, 2020.
______. SUBSECRETARIA NACIONAL DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA PESSOA
COM DEFICIÊNCIA. COMITÊ DE AJUDAS TÉCNICAS. Tecnologia Assistiva.
Brasília: CORDE, 2009. 138p. Disponível em: <http://www.galvaofilho.net/livro-
tecnologia-assistiva_CAT.pdf>. Acesso em: 05/08/2020.
______. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 1014: Estabelece princípios, garantias,
direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. In: Vade Mecum. 17 ed. rev.
ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.
______. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão
da Pessoa com Deficiência. Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: Vade Mecum,
17 ed. rev. ampl. Atual. São Paulo: RT, 2020.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
110
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

______. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para


enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional
decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em:
<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-
de-2020-242078735 >. Acesso em: 10/08/2020.
______. Medida Provisória nº 934, de 1º de abril de 2020. Estabelece normas
excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior
decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de
saúde pública de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv934.
htm>. Acesso em: 10/08/2020.
______. Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020. Estabelece normas educacionais
excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública
reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020; e altera a Lei
nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14040.htm >. Acesso em: 20/08/2020.
______. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Educação e Coronavírus. CNE aprova
diretrizes para escolas durante a pandemia. 28 de abril de 2020. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=89051>. Acesso em:
12/08/2020.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO
TEIXEIRA. Resumo Técnico: Censo da Educação Básica Estadual 2019 [recurso
eletrônico]. ‐ Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira. Brasília, 2020 a. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/
documents/186968/484154/Resumo+T%C3%A9cnico+do+Estado+do+Paran%
C3%A1+-+Censo+da+Educa%C3%A7%C3%A3o+B%C3%A1sica+2019/4281ff4a-
b8ce-4945-b7b5-80ec54532702?version=1.0>. Acesso em: 13/08/2020.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA
(INEP). Censo da Educação Básica 2019: notas estatísticas. Brasília, 2020b.
Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/informacao-da-publicacao/-/asset_
publisher/6JYIsGMAMkW1/document/id/6798882>. Acesso em: 04/08/2020.
SANTOS, Ana Paula; REZENDE, Tamara Zazera. Plano dos direitos da pessoa com
deficiência do Estado do Paraná. Curitiba: Secretaria de Estado da Família e
Desenvolvimento Social, 2017. Disponível em: <http://www.coede.pr.gov.br/arquivos/
File/Planos_e_Direitos_Acessivel_18_01_18.pdf >. Acesso em: 13/08/2020.
111

O ACESSO À JUSTIÇA PELAS


PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Erelisa de Souza Vieira Bazan1

1. INTRODUÇÃO

O
presente ensaio parte da importância dos princípios fundamentais da
cidadania e da dignidade da pessoa humana para tratar do acesso à jus-
tiça pelas pessoas com deficiência, não restringindo este acesso apenas
ao direito de promover e contestar ações judiciais ao provocar o Poder Judiciá-
rio, mas trazendo um conceito mais amplo de justiça, o qual engloba o exercício
dos direitos e deveres de todos os indivíduos na sociedade, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas. Assim, os conceitos de direito e justiça
são brevemente abordados a fim de demonstrar a importância da acessibilida-
de em todos os aspectos da vida da pessoa com deficiência para que ela possa
exercer mais plenamente a sua cidadania.

2. CIDADANIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A Constituição Federal de 1988 dispõe que a cidadania e a dignida-


de da pessoa humana são princípios fundamentais da República Federativa do
Brasil que, segundo estabelecido em seu artigo 4º, II, rege-se em suas relações
internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. Logo, ambas
são normas e, portanto, devem ser cumpridas.

Nesse sentido, a Convenção da Organização das Nações Unidas sobre

1 Advogada. Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/PR. Intér-
prete de Libras.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
112
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados


em Nova York, em 30 de março de 2007 e incorporados ao direito brasileiro em
25 de agosto de 2009, com status de emenda constitucional por força do artigo
5º, § 3º, da Constituição Federal, dispõe expressamente que a discriminação
contra qualquer pessoa, por motivo de deficiência, configura violação da digni-
dade e do valor inerentes ao ser humano.

A pessoa com deficiência deve ser respeitadas e ter o direito de exer-


cer a sua cidadania em igualdade de condições com as demais. Logo, o acesso
à justiça por essas pessoas deve ser livre de qualquer barreira, seja ela física,
tecnológica, de comunicação, entre outras.

3. O DIREITO E A JUSTIÇA

Antes de adentrar no tema do presente artigo, faz-se necessário dife-


renciar o conceito de direito e justiça.

É muito comum, quando se fala sobre o acesso à justiça, ocorrer a as-


sociação ao ajuizamento ou contestação de uma ação, através do sistema judi-
cial, na busca por um direito. Porém o conceito de direito e justiça são distintos.

O Direito é um conjunto de normas e regras a ser seguido, o qual é


imposto com a finalidade de regular as relações sociais.

A Justiça, por sua vez, é basicamente aquilo que é correto, o que é jus-
to. O conceito de justiça é amplo e está intimamente ligado à igualdade entre os
indivíduos, à segurança e à moral destes. A Constituição Federal, em seu preâm-
bulo, anuncia que o Estado Democrático de Direito é destinado a assegurar a
justiça, que é um valor supremo da sociedade.

Para Theodoro Júnior (2019), “a justiça é inerente à dignidade humana


e é condição indissociável da convivência civilizada [...] um sistema aberto de
valores em constante mutação [...] vincula-se com a verdade.”
Erelisa de Souza Vieira Bazan 113

Dessa forma, o acesso à justiça ultrapassa as fronteiras de atuação do


Poder Judiciário, pois embora o Direito busque a realização da justiça, nem tudo
o que é legal é justo, bem como nem tudo que é justo é legal.

4. AS DIFICULDADES E A ACESSIBILIDADE NO ACESSO À


JUSTIÇA

De acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, todos são iguais pe-


rante a lei, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Brasil,
direitos individuais e coletivos, como por exemplo, o direito à vida, à saúde, à
educação, ao trabalho, à segurança, ao transporte, à assistência, ao voto, entre
outros, que deverão ser assegurados pelo Estado.

Nessa esteira, a Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015, a Lei Brasileira


de Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI, diz que:

Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à


pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à mater-
nidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionaliza-
ção, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação,
ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo,
ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e
tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência
familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição
Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-
cia e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que
garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

Todavia, para esses direitos serem usufruídos por pessoas com de-
ficiência – especialmente de natureza física e sensorial –, faz-se necessária a
adoção de medidas que promovam o efetivo acesso à justiça, entre elas o for-
necimento de informações, sejam em Braile ou em Libras, com emprego de tec-
nologia assistiva ou em formatos de fácil leitura e compreensão, que impliquem
– inclusive – na redução dos seus custos, de modo a facilitar o acesso.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
114
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Todavia, infelizmente há pessoas com deficiência que não têm facilida-


de no acesso à justiça, seja: a) por falta de capacidade econômica decorrente da
dificuldade de inserção no mercado de trabalho; b) por falta de informação; c)
pela falta de acessibilidade na comunicação; d) por omissão de apoio familiar;
e) por ignorância da família no que se refere às necessidades e os direitos a que
fazem jus. Estes e outros tantos fatores dificultam que exerçam a cidadania.

Destaca-se que em 2008, o parágrafo 8 das Regras de Brasília sobre


Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade,2 que incluiu em
seu rol as pessoas com deficiência, já recomendava a existência de acessibilida-
de, além de medidas conducentes à utilização dos serviços judiciais e disposição
de todos os recursos aptos a garantir a sua segurança, mobilidade, comodidade,
compreensão, privacidade e comunicação.

Espera-se que os órgãos que compõem o sistema de justiça ofereçam


acessibilidade nos seus respectivos espaços físicos – p. ex., prédios dos fóruns,
dos núcleos da Defensoria Pública ou do Ministério Público –, facilitando não
apenas a entrada como a permanência nas suas dependências, pois muitos não
possuem estruturas adaptadas para atender as pessoas com deficiência físico-
motoras.

Mas não é só isso. Vencida a barreira física, é preciso transpor a barrei-


ra atitudinal. A pessoa com deficiência deve ter a sua capacidade legal reconhe-
cida em igualdade de condições, pois o seu exercício é um direito conferido pelo
ordenamento jurídico brasileiro, destacando-se, aqui, o artigo 12 da Convenção
da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-
cia e os artigos 84 e 85 da LBI. Mesmo na hipótese de necessitar de curatela, é
oportuno destacar que esta afeta unicamente os atos relacionados aos direitos

2 As Regras de Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade foram apro-


vadas pela XIV Conferência Judicial Ibero-americana, que teve lugar em Brasília durante os
dias 4 a 6 de Março de 2008. O seu texto foi elaborado, com o apoio do Projecto Eurosocial
Justiça, por um Grupo de Trabalho constituído no seio da Conferência Judicial Ibero-ameri-
cana, na qual também participaram a Associação Ibero-americana de Ministérios Públicos
(AIAMP), a Associação Inter americana de Defensores Públicos (AIDEF), a Federação Ibero-
-americana de Ombudsman (FIO) e a União Ibero-americana de Colégios e Agrupamentos
de Advogados (UIBA).
Erelisa de Souza Vieira Bazan 115

de natureza patrimonial e negocial, mas não o direito ao próprio corpo, à se-


xualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao
voto. Devem receber todo o apoio necessário a fim de terem respeitados os seus
direitos, vontades e preferências.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências, no seu


artigo 13, determina que:

1. Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das pessoas com


deficiência à justiça, em igualdade de condições com as demais
pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais
adequadas à idade, a fim de facilitar o efetivo papel das pessoas
com deficiência como participantes diretos ou indiretos, inclusi-
ve como testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais
como investigações e outras etapas preliminares. 2. A fim de as-
segurar às pessoas com deficiência o efetivo acesso à justiça, os
Estados Partes promoverão a capacitação apropriada daqueles que
trabalham na área de administração da justiça, inclusive a polícia e
os funcionários do sistema penitenciário.

Nesse diapasão, a LBI, em seu artigo 79, atribui ao Poder Público o


dever de assegurar o acesso da pessoa com deficiência à justiça, em igualdade
de condições com as demais pessoas, garantindo, sempre que requeridos, adap-
tações e recursos de tecnologia assistiva. Pouco mais adiante, ainda em seu ar-
tigo 79, §1º, conferiu ao Poder Público o dever capacitar os servidores do Poder
Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos órgãos de segurança
pública e do sistema penitenciário sobre os direitos das pessoas com deficiência
para que elas tenham atuação em todo o processo e, assim, um efetivo acesso
à justiça.

Seguindo esse entendimento, Farias, Cunha e Pinto (2016, p. 216)


apud Cruzes e Souza (2018, p. 46):

[...] o acesso à justiça garantido às pessoas com deficiência deve


estar associado ao princípio da dignidade da pessoa humana, da
qual se desdobra a garantia de inclusão social, jurídica e judicial.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
116
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Não se trata, portanto, apenas, de evitar a discriminação [...] mas,


por igual, criar mecanismos para que tais seres humanos possam
acessar, sem embaraços o Poder Judiciário.

Ou seja, além da acessibilidade nos espaços físicos e do reconhecimen-


to da capacidade legal da pessoa com deficiência, esta deve ter acesso a todas as
etapas do processo, sem qualquer tipo de empecilho.

Para que essa plena participação ocorra, é necessário haver uma ade-
quada formação dos servidores e operadores do sistema judicial que em seu
trabalho cotidiano colaboram para o seu funcionamento e têm contato com o
cidadão com deficiência, o que pode exigir, por exemplo, a comunicação em
Línguas de Sinais.

Segundo o disposto no art. 3º, da Constituição Federal, o Brasil tem


como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e soli-
dária, a erradicação da pobreza e da marginalidade, a redução das desigualda-
des sociais e a promoção do bem de todos sem preconceitos ou discriminações.

Promover e garantir que as pessoas com deficiência sejam tratadas em


igualdades de condições, tendo acesso à informação, ao trabalho com um salá-
rio digno, à educação, à justiça, no seu conceito completo, é um dos caminhos a
seguir a fim de atingir os objetivos fundamentais do nosso país.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a legislação pátria discorra sobre a acessibilidade para pessoas


com deficiência, infelizmente, no Brasil esse assunto é mais teórico do que práti-
co, principalmente quando relacionado ao efetivo acesso à justiça.

Como já exposto, quando se fala em justiça, esta não se limita à esfera


de atuação do Poder Judiciário, mas refere-se ao valor supremo de uma socie-
dade, ao que é correto, verdadeiro, ao que está diretamente ligado à dignidade
da pessoa humana.
Erelisa de Souza Vieira Bazan 117

O efetivo acesso à justiça pelas pessoas com deficiência vai desde a


informação transmitida de forma simples e clara, de maneira que elas consigam
entender, independente da sua deficiência, até modificações arquitetônicas em
prédios públicos, por exemplo.

Atualmente não se pode afirmar que o Poder Público ofereça acesso


pleno à justiça a essas pessoas, pois inúmeros órgãos públicos que integram o
sistema de justiça, além não disporem de espaços preparados para recebê-las,
não contam com sistemas de tecnologia assistiva e de profissionais capacitados
aptos a atendê-las. Dessa forma, é significativo o número das que ficam à mar-
gem da sociedade, com dificuldade de acesso à informação e prejudicadas no
que se refere à sua autonomia, mantendo-se na dependência de terceiros.

Para mudar essa realidade, o primeiro passo implica em preparar os


servidores públicos do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública,
órgãos de segurança pública e do sistema penitenciário, para que estejam aptos
a receber a pessoa com deficiência de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, prestando-lhe as informações solicitadas ou orientações necessárias
da melhor forma.

Embora à primeira vista pareça difícil, não é algo impossível de se fazer.


Além disso, este é um dos direitos das pessoas com deficiência para que possam
exercer a sua cidadania em igualdade de condições com as demais pessoas.

6. REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DEFENSORAS E DEFENSORES PÚBLICOS – ANADEP.


Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulne-
rabilidade. Disponível em: <https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de
-Brasilia-versao-reduzida.pdf>. Acesso em: 02/10/2020.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 25/08/2020.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
118
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

______. Presidência da República. Decreto N° 6.949, de 25 de agosto de 2009


– Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Defi-
ciência e seu Protocolo facultativo, assinado em Nova York, em 30 de março de
2007. Organização das Nações Unidas – ONU. Disponível em: <http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em:
25/08/2020.
______. Lei n° 13.146, de 06 de julho de 2015 – Institui a Lei Brasileira de Inclu-
são da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.
htm>. Acesso em: 27/08/2020.
CRUZES, Maria Soledade Soares. SOUZA, Wilson Alves de. A Democratização do
Acesso à Justiça para Pessoas com Deficiência Física no Brasil: Avanços e De-
safios. Revista Cidadania e Acesso à Justiça, Rio Grande do Sul, v. 04, n 02, p.
39-60, Jul/Dez. 2018. Disponível em: <https://indexlaw.org/index.php/acessoa-
justica/article/view/4791>. Acesso em: 02/10/2020.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Justiça e Verdade na Prestação Jurisdicional,
Segundo o Direito Processual Civil Brasileiro. GEN Jurídico. São Paulo, 2019. Dis-
ponível em: <http://genjuridico.com.br/2019/01/22/justica-e-verdade-na-pres-
tacao-jurisdicional-segundo-o-direito-processual-civil-brasileiro/#_ftnref4>.
Acesso em: 02/10/2020.
119

COMO FICOU O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO


CONTINUADA – BPC APÓS A REFORMA
PREVIDENCIÁRIA E A LEI Nº 13.982/2020

Cristhiane Kulibaba Ishi1


Valéria Mendes Siqueira2

1. INTRODUÇÃO

A
pesar de o Benefício de Prestação Continuada (BPC) destinar-se tanto
ao idoso – com mais de 65 (sessenta e cinco) anos – quanto à pessoa
com deficiência (PcD) que comprove não possuir recurso para prover
a própria subsistência ou de tê-la provida por seus familiares, este artigo terá
como foco exclusivo a PcD.

No entanto, antes de saber como ficou o BPC após a reforma previ-


denciária e a publicação da Lei nº 13.982/2020,3 é necessário identificar onde
este benefício se insere no contexto da Seguridade Social – composta pelo tripé

1 Secretária-Geral/Diretoria da OAB/PR Subseção de São José dos Pinhais. Membro con-


sultora da Comissão de advogados representantes da Subseção de São José dos Pinhais
no foro Regional de Pinhais. Membro consultora na Comissão dos Direitos da Pessoa com
deficiência na Subseção de São José dos Pinhais. Membro da Comissão dos Direitos da
Pessoa com Deficiência da OAB/PR.

2 Advogada. Coordenadora no Brasil para Disability and Rehabilitation Profissional Associa-


tion (2021 a 2025). Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/
PR, responsável pelo Centro de Inclusão e Apoio à Pessoa com Deficiência da OAB/PR.
Terapeuta Holística e Coach.

3 A Lei nº 13.982, de 02 de abril de 2020, altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, para
dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para
fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excep-
cionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência
de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável
pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6/02/2020.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
120
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Previdência Social, Saúde e Assistência Social – e a lei que o regula, para então
abordar seu objetivo, requisitos e as recentes alterações para a sua concessão.

2. BPC: O QUE É?

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 194, caput, define a


Seguridade Social como um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos po-
deres públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à
saúde, à previdência e à assistência social”.

A Assistência Social – direito do cidadão e dever do Estado –, diferen-


temente da Previdência Social, é prestada a quem dela necessitar, indepen-
dentemente de contribuição, em respeito ao princípio da solidariedade social.

Segundo Silva (1997), a Lei nº 7.070/1982, que dispõe sobre pensão


especial, mensal, vitalícia e intransferível aos – à época denominados – “por-
tadores da deficiência física”, conhecida como Síndrome da Talidomida, foi a
fonte de inspiração do artigo 203 da Constituição Federal de 1988. Esse artigo
prevê a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa PcD que não possa
prover seu sustento e cuja família também não tenha condições para tal, esta-
belecendo que esse benefício viria a ser regulamentado.

Essa regulamentação se deu pela Lei nº 8.740/1993, conhecida como


Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que passou a disciplinar a Assistência
Social, definindo-a como política de Seguridade Social não contributiva. Visa
promover o mínimo necessário à manutenção de uma vida digna, garantindo
o suprimento das necessidades básicas do ser humano.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) encontra-se no bojo da


LOAS e consiste na concessão de um salário mínimo mensal à PcD, desde que
comprovada a impossibilidade – dela própria ou de sua família – para prover a
sua subsistência. Não se pode deixar de mencionar que nos termos da Lei, a fa-
mília do(a) requerente é aquela composta por seu cônjuge ou companheiro(a),
pais e, na ausência de um deles, madrasta ou padrasto, irmãos(as) solteiros(as),
Cristhiane Kulibaba Ishi e Valéria Mendes Siqueira 121

filhos(as) e enteados(as) solteiros e os(as) menores tutelados(as), desde que vi-


vam sob o mesmo teto.

O primeiro fato relevante a se esclarecer é que, por se tratar de


um benefício social, o(a) beneficiário(a) não é segurado(a) do Regime Geral
da Previdência Social (RGPS). Por esse motivo, não faz jus a décimo terceiro
salário, contagem por tempo de contribuição e não dá azo a que seu(s) depen-
dente(s) requeira(m) pensão por morte.

Conforme a redação originária da LOAS, em 1993, para a concessão


do BPC, o(a) beneficiário deveria ser: a) pessoa “portadora de deficiência”,
ou seja, incapacitada para a prática dos atos da vida diária – de forma inde-
pendente – e para o trabalho; b) integrante de família cuja renda mensal per
capita fosse inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.

Essa exigência de incapacidade para a vida independente e para o


trabalho gerou a exclusão da PcD do mercado de trabalho, pois a insegurança
quanto à sua permanência no emprego formal, associada ao receio de não
mais preencher os requisitos para obter o BPC – na maioria das vezes sua única
fonte de renda –, constitui-se em uma grande barreira para a busca de sua ca-
pacitação profissional. Em decorrência, acentuou-se em demasia a visão pre-
conceituosa de que a PcD é incapaz, ineficiente e improdutiva.

Destaca-se que a definição de PcD, trazida pela LBI, em 2015, foi in-
serida no texto da LOAS, em seu artigo 20, § 2º.

Apesar da alteração na LOAS, decorrente da inclusão trazida pela Lei nº


12.470/2011, no artigo 21-A e seus parágrafos, que permite à PcD transitar entre
receber o BPC, se necessário, e estar inserido no mercado de trabalho, ainda
hoje o maior problema consiste na insegurança e falta/insuficiência de infor-
mação sobre os critérios de concessão, suspensão e retomada desse benefício.

Sobre esta alteração, Gurgel (2011) afirma que com a nova previ-
são da Lei nº 12.470/2011 é permitido o trânsito da PcD da assistência so-
cial para o trabalho, e vice-versa. No momento em que o(a) beneficiário(a)
assinar um contrato de trabalho, ou tiver uma atividade empreendedora,
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
122
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

autônoma ou cooperativada, será suspenso o BPC. Todavia, poderá voltar re-


cebê-lo, mediante simples requerimento ao Instituto Nacional de Seguridade
Social (INSS), desde que atenda aos requisitos constitucionais, expostos ante-
riormente, quais sejam: falta de meios para manter a própria subsistência ou
tê-la provida pela família, cuja renda per capita seja igual ou inferior a 1/4 (um
quarto) do salário-mínimo.

Este retorno pode ocorrer a qualquer tempo. Todavia, para ser dis-
pensado da perícia multiprofissional, o período não deve ultrapassar 2 (dois)
anos, prazo estabelecido legalmente para a reavaliação das condições que de-
ram origem ao BPC. Contudo, o trabalhador PcD que esteja usufruindo o segu-
ro-desemprego só poderá retomar o benefício assistencial após o término do
recebimento das parcelas do benefício previdenciário.

3. QUEM TEM DIREITO AO BPC?

Conforme referido acima, esse benefício não se destina a todas as


PcD, mas tão somente àquelas que se enquadrem nos requisitos legais im-
postos na LOAS. Ou seja, hoje o PcD não pode ultrapassar a renda per capita
familiar igual ou inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente à época do
requerimento, e deve ser considerada PcD nos termos da lei. Ainda, a deficiên-
cia deve ser de longa duração, ou seja, que perdure há mais de 2 (dois) anos.

Frise-se que a concessão deste benefício não está vinculada a qual-


quer contribuição previdenciária ou a fatores como idade quando se trata da
PcD, sendo este último um fator relevante de distinção dos requisitos de con-
cessão do BPC aplicado aos idosos.

Importante ressaltar que, no cômputo da renda per capita da famí-


lia do(a) requerente, sogro(a), cunhado(a), netos(as), tios(as), sobrinhos(as),
filhos(as) e irmãos(ãs) casados, e avós, ainda que vivam sob o mesmo teto do
idoso/PcD, não são considerados “família” para efeito de obtenção do BPC.
Assim, os rendimentos dessas pessoas não integram o orçamento familiar para
efeito de apuração da renda per capita (HERMES, 2019).
Cristhiane Kulibaba Ishi e Valéria Mendes Siqueira 123

A concessão do BPC está sujeita, inclusive, à avaliação social. Após


estudo social e visita domiciliar, em regra, realizados por profissionais dos Cen-
tros de Referência de Assistência Social (CRAS). O resultado da avaliação e os
demais documentos exigidos são encaminhados ao INSS, para que, então, o
pedido seja ou não deferido.

Caso não haja CRAS no município de residência do(a) requerente,


este(a) deverá ser encaminhado ao município mais próximo que conte com tal
estrutura. E conforme determina a LOAS, o(a) beneficiário(a) passará por uma
revisão a cada 2 (dois anos), a fim de verificar se existem fatores que podem
cessar o benefício, como o fato do PcD iniciar em um emprego, ou o aumento
na renda per capita familiar.

Além disso, estar cadastrado no Cadastro Único para Programas So-


ciais do Governo Federal (CAD Único) – instrumento que identifica e caracteri-
za as famílias de baixa renda – é condição para ter o benefício deferido.

Todavia, em caso de indeferimento do pedido, o cidadão pode, por


meio de um processo judicial, comprovar sua miserabilidade, já que essa con-
dição é relativa, e juntar provas necessárias, ainda que a renda per capita seja
maior do que a estabelecida legalmente.

É possível que o pleito judicial seja realizado pelo(a) interessado(a)


desde que o pedido administrativo tenha sido negado pelo INSS, ou seja, a
negativa na esfera administrativa é condição para ingressar com a demanda
judicial.

O Poder Judiciário tem entendido que a renda não pode ser o único
critério para decidir o direito ao benefício, pois o estado de pobreza é questão
controversa, e existe ampla jurisprudência neste sentido.

Importante mencionar que, para requerer o BPC, a pessoa interessa-


da deve se dirigir à agência do INSS ou realizar seu pedido, de forma on-line,
por meio do site: <https://meu.inss.gov.br/central/#/login?redirectUrl=/>.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
124
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

4. COMO FICOU A CONCESSÃO DO BPC APÓS A REFORMA


PREVIDENCIÁRIA E A LEI Nº 13.982/2020

A reforma da previdência trouxe, em seu projeto, considerações a


respeito do BPC, porém, tal possibilidade foi retirada da proposta da Emenda
103/2019, e dessa forma os artigos da LOAS permaneceram inalterados.

Contudo, entre idas e vindas legislativas ocorridas neste ano de 2020,


foi aprovada a Lei nº 13.982/2020, publicada em 02 de abril de 2020, que
alterou a Lei nº 8.742/93, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracte-
rização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao BPC.

As modificações relativas à concessão do BPC trazidas pela Lei


13.982/2020 são:

Até 31/12/2020 a renda per capta pode ser igual ou inferior a ¼ do


salário-mínimo (LOAS art. 20, § 3º, I). Assim, a partir da publicação
desta lei o requisito que exigia que a renda per capta deveria ser
inferior a ¼ do salário mínimo-passou a permitir que o critério de
renda per capita seja igual a esta fração de ¼, fixando, no entanto,
esta fração até a data de 31/12/2021.

Resta-nos saber qual critério de renda per capita será utilizado após
esta data limite.

Seguem observações relativas às alterações decorrentes da Lei nº


13.982/2020:

 O BPC ou o benefício assistencial no valor de até um salário-míni-


mo, concedido à PcD, não será computado para fins de concessão
do BPC a outro idoso ou PcD da mesma família, no cálculo da renda
per capita (LOAS artigo 20, § 14). Esta alteração acrescenta, além do
BPC, todos os outros benefícios previdenciários na renda do grupo
familiar, que não serão computadas para verificar a renda per capita
do requerente do BPC.
Cristhiane Kulibaba Ishi e Valéria Mendes Siqueira 125

 O BPC será devido a mais de um membro da mesma família enquan-


to atendidos os requisitos exigidos na LOAS (artigo 20, § 15). Esta
alteração é significativa, pois, anteriormente não era possível haver
duas PcD amparadas pelo BPC residindo no mesmo domicílio.

 Possibilita o aumento da renda per capita de ¼ para ½ salário-míni-


mo, durante o período da pandemia do COVID-19, que ocorrerá atra-
vés de escalas graduais. Essas escalas observarão, cumulativamente
ou isoladamente, fatores como: a) grau da deficiência; b) dependên-
cia de terceira pessoa na prática de atos da vida diária; c) circunstân-
cias pessoais e ambientais; d) fatores socioeconômicos e familiares
e; e) comprometimento do grupo familiar com gastos no tratamento
de saúde, remédios não disponibilizados pelo SUS, médicos, fraldas
e alimentos especiais etc., desde que comprovadamente necessá-
rios à preservação da saúde e da vida (LOAS artigo 20-A).

 Autoriza a antecipação do BPC aos requerentes previstos no artigo


20 da LOAS, no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais), por 3 (três)
meses, ou até a aplicação, pelo INSS, do instrumento de avaliação
da PcD, ou o que ocorrer primeiro, em decorrência do estado de ca-
lamidade pública originado pela pandemia do COVID-19 (artigo 3º).

 Reconhecido o direito da PcD ao BPC, seu valor será devido a partir da


data do requerimento, deduzindo-se os pagamentos antecipados em
decorrência da pandemia do COVID-19 (artigo 3º, Parágrafo único).

Ainda, a partir do requerimento do BPC, o INSS antecipará o benefí-


cio ao(à) requerente por 3 (três) meses ou até que a perícia ateste a existência
ou não da deficiência e reconheça o direito ao benefício. Uma vez reconheci-
do, o INSS pagará ao(à) beneficiário(a) a importância de um salário-mínimo,
acrescido da diferença resultante do pagamento a menor no período de an-
tecipação dos R$600,00 (seiscentos reais). No caso da constatação pelo INSS
de que o(a) requerente não preenche os requisitos ao BPC, o valor antecipado
não será devolvido por quem se beneficiou desta antecipação.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
126
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Acrescido a isso, o Ministério da Cidadania publicou, no dia 05 de


maio de 2020, a Portaria Conjunta nº 3, que estabelece que o Auxílio Emergen-
cial (“Corona Voucher”) e a antecipação de que tratam os artigos 2º e 3º da Lei
nº 13.982/2020, não serão computados para a composição da renda mensal
bruta familiar.

Por fim, quanto às alterações decorrentes da Lei nº 13.982/2020, a


Portaria nº 374 do Ministério da Cidadania, publicada dia 05 de maio de 2020,
estabelece que as alterações oriundas da referida Lei passam a viger a partir
da data de sua publicação. Deve-se, portanto, observar a data de entrada do
requerimento do BPC.

Vale lembrar, no entanto, que para os benefícios requeridos antes


desta data – 02 de abril de 2020 –, esta Portaria permite que, para os proces-
sos pendentes de análise, a data da entrada do benefício possa ser reafirmada.
Ou seja, os benefícios que não tiveram decisão de concessão ou negação antes
de 02 de abril de 2020, a DER seria considerada a partir desta data, permitindo,
entre outras coisas, que a renda per capita do(a) requerente possa ser igual a
¼ (um quarto) do salário-mínimo vigente.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A LOAS determina basicamente quem tem direito ao BPC, no valor de


um salário mínimo, desde que respeitado os requisitos constitucionais para a
sua concessão, quais sejam: (a) o(a) requerente ser PcD nos termos da lei; c)
não ter condições de prover o seu sustento ou de tê-lo suprido por sua família
e; c) possuir renda mensal familiar per capita igual ou inferior a ¼ (um quarto)
do salário mínimo.

Nos casos, porém, em que houver indeferimento do BPC requerido


administrativamente, o interessado pode entrar com novo pedido, perante o
Poder Judiciário, respeitando-se as condições para isso, já que se vislumbra
uma flexibilização para os critérios utilizados pelo INSS.
Cristhiane Kulibaba Ishi e Valéria Mendes Siqueira 127

Uma nova consideração é a necessidade de o(a) requerente ser ca-


dastrado no CAD Único, como condição para receber o benefício.

Conforme demonstrado, a Lei nº 13.982/2020 trouxe alterações sig-


nificativas à forma de concessão do BPC, que amplia o número de pessoas
aptas a requerê-lo.

Entre elas, destacam-se as seguintes:

• Benefícios previdenciários de até um salário-mínimo não serão com-


putados no cálculo da renda per capita para a concessão do BPC;

• O BPC poderá ser concedido para mais de um membro da família


residente sob o mesmo teto;

• O BPC poderá ser antecipado por até 3 (três) meses no mesmo valor
do auxílio emergencial do Governo Federal para o enfrentamento da
pandemia do COVID-19.

Resta saber como ficará o critério da renda per capita após 31 de


dezembro de 2020. A dúvida consiste em saber se a partir de 1º de janeiro de
2021 prevalecerá a renda per capita de ½ (meio) salário mínimo, possibilidade
prevista provisoriamente durante o período da pandemia do COVID-19, com a
inclusão na LOAS do artigo 20 –A, ou se será mantido o critério da renda igual
ou inferior ao 1/4 (um quarto) do salário mínimo.

Diante disso, espera-se que a análise seja feita de acordo com a le-
galidade, mas também com a realidade daquele cidadão, que muitas vezes
dependerá apenas daquele benefício para sobreviver dignamente.

6. Referências

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09/2020.
131

“PROCURO UMA MULHER”: REFLEXÕES


SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES COM
DEFICIÊNCIA A PARTIR DO FILME “MAUDIE”

Fatine Conceição Oliveira1


Laureane Marília de Lima Costa2
Mariana Rosa3

1. INTRODUÇÃO

E
m 2020, a plataforma de streaming Netflix disponibilizou em seu catá-
logo um filme biográfico da pintora canadense Maudie Lewis, chamado
“Maudie: Sua Vida e Sua Arte”. O longa retrata diversos momentos im-
portantes da trajetória da artista, desde situações violentas alimentadas pelo
preconceito face a sua deficiência física, muitas delas provocadas pelo marido
Everett Lewis, como também a evolução de sua arte e carreira. Neste capítulo,
propomos algumas reflexões sobre o filme, a partir de uma análise interseccio-
nal que visa a compreender o imbricamento das experiências de deficiência e
gênero como um dos fatores que evidenciam as vulnerabilidades de mulheres
com deficiência.

1 Mestranda em Comunicação Social no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de


Filosofia e Ciências Humanas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e inte-
grante do grupo de pesquisa Afetos: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Acessibilidade
e Vulnerabilidades.

2 Psicóloga clínica, consultora em Saúde e Educação Sexual, mestranda em Educação pela


Universidade Federal de Jataí (UFJ), integrante do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Forma-
ção em Educação Sexual da UFJ e do Núcleo de Estudos sobre Deficiência da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC).

3 Jornalista e consultora em Educação Inclusiva.


CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
132
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Cabe ressaltar que o período de exposição deste filme na referida


plataforma ocorreu durante o isolamento social provocado pela pandemia da
COVID-19. Tal cenário fez emergir sentimentos de medo, solidão, depressão e
ansiedade em grande parte da população. Além da sobrecarga da saúde pú-
blica, devido ao alto índice de contágio pelo vírus, houve um aumento signifi-
cativo nos números de violência doméstica contra mulheres. Para as autoras,
mulheres com deficiência (duas com deficiência física e uma com deficiência
visual), o contato com o longa-metragem neste momento impulsionou o inte-
resse de apresentar, por meio de fragmentos da história, as diversas faces da
violência sofridas por mulheres com deficiência.

Ainda no início do filme, Maudie está em um estabelecimento co-


mercial, ambiente semelhante a uma mercearia, e percebe que um homem
deixa um anúncio no mural, à procura de uma mulher para assumir os tra-
balhos domésticos em sua casa. Ela, então, percorre longa distância a pé até
a casa daquele senhor tão necessitado dos préstimos de uma mulher. Com
corpo diminuto, postura invariavelmente cabisbaixa e um andar claudicante,
ao chegar ao local indicado no anúncio, apresenta-se e mostra-se interessada
no trabalho. O homem a olha desconfiado e reforça: “procuro uma mulher”.
A afirmativa, pronunciada em tom ríspido, por um corpo masculino, forte e
vultuoso, evidencia a assimetria de poder entre ambos, explicitando os estere-
ótipos de gênero e da deficiência como as bases da relação que ali se iniciaria.

“Procuro uma mulher” funciona como uma antítese ao que se pres-


supõe do corpo de Maudie, o qual é tido como defeituoso, incapaz de cui-
dar de si, do outro e de servir ao homem, numa época em que as estruturas
do patriarcado permaneciam pouco questionadas. Segundo Heleieth Saffio-
ti (2004), o patriarcado “é o regime da dominação-exploração das mulheres
pelos homens” (p. 44) legitimado pela transformação da diferença sexual em
desigualdade política, a qual impregna tanto a sociedade civil quanto o Estado,
conferindo direitos irrestritos aos homens sobre as mulheres (SAFFIOTI, 2004,
p. 44, 54, 55, 57).
Fatine Conceição Oliveira, Laureane Marília de Lima Costa e Mariana Rosa 133

A história se passa por volta do final dos anos 1930, quando a de-
ficiência ainda era definida por um modelo médico, ou seja, os corpos eram
submetidos a avaliações biológicas, que definiriam se deveriam ou não so-
frer intervenções médicas, como procedimentos de cura ou internações (SIE-
BERS, 2011, p. 25). A partir das contribuições do modelo social da deficiência,
proposto inicialmente por homens com deficiência, nos anos 1970, a desigual-
dade à qual as pessoas com deficiência estão submetidas deixa de ser com-
preendida como consequência do impedimento corporal (lesão), mas sim um
produto da relação entre este corpo com uma sociedade incapaz de atender
à diversidade física, sensorial e intelectual das pessoas. A desigualdade deixa
de ser fruto de imposições genéticas (fenômeno biomédico) e passa a ser uma
questão de injustiça social (fenômeno sociológico) (DINIZ, 2003; 2007).

Por sua vez, nos anos 1990, teóricas feministas – mulheres com defi-
ciência e mulheres cuidadoras de pessoas com deficiência – revigoram a tese
social da deficiência, ao acrescentar à discussão os conceitos de interdepen-
dência e cuidado. Defendiam o conceito de “corpos temporariamente não-
-deficientes”, ao invés da dicotomia deficiente X não-deficiente, ampliando o
conceito de deficiência para o envelhecimento e/ou doenças crônicas e argu-
mentando que a dependência e a interdependência são inerentes à condição
humana. Assim sendo, afirma-se que a política pública do cuidado promoverá
justiça no campo da deficiência e amenizará a vulnerabilidade de muitas pes-
soas com deficiência, uma vez que se observam relações de extrema desigual-
dade de poder, como é o caso das pessoas com deficiência com alto nível de
impedimento corporal (DINIZ, 2003; 2007).

Maudie morava com a tia, após a morte de sua mãe, uma vez que o
irmão vendeu a casa onde vivia. Nesta sequência do filme, observa-se que a
relação familiar é construída com sucessivas agressões psicológicas realizadas
pela tia, o que inclui a negação do direito à maternidade como uma expressão
da violência a que estava submetida. Constantemente desacreditada naquele
ambiente, ela se mantém persistente na tentativa de obter um trabalho, mes-
mo diante do desprezo do homem, já que considerava aquela oportunidade
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
134
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

uma saída possível à sua condição de vida. Junto a nós, espectadoras da his-
tória, instala-se a percepção de que a escolha que se apresenta à personagem
não constituiu uma chance de interrupção das experiências de violência vivi-
das em casa, mas, ao contrário, a sua continuidade, como se esse fosse o único
destino possível a uma mulher com deficiência.

2. DESENVOLVIMENTO

De acordo com o Fundo de Populações das Nações Unidas (MSH; UN-


FPA, 2016), pessoas com deficiência compõem 15% da população mundial.
Entretanto, se realizarmos recorte de gênero, considerando-se apenas a popu-
lação feminina mundial, este número sobe para 19,2%. Por sua vez, no Brasil
23,9% da população tem deficiência, percentual que sofre alteração de acordo
com o marcador gênero (26,5%), ou seja, uma em cada quatro brasileiras tem
deficiência, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE, 2010). Tais dados podem indicar um processo de feminiza-
ção da deficiência; ou seja; a deficiência é um fenômeno mais frequente entre
mulheres que entre homens.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (BRASIL,


2008) admite que meninas e mulheres com deficiência estão sujeitas a múlti-
plas formas de discriminação, reconhece seus direitos sexuais e reprodutivos
e responsabiliza os Estados Partes pela adoção de medidas que assegurem
seu pleno desenvolvimento e empoderamento, garantindo-lhes o exercício e o
gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais.

A despeito disso, meninas e mulheres com deficiência estão mais


vulneráveis a sofrerem violação de direitos, sobretudo, dos direitos sexuais e
reprodutivos (MSH; UNFPA, 2016).

Maudie é recusada para o trabalho doméstico em um primeiro mo-


mento, pois é considerada inapta para cuidar da casa, da limpeza, da comida,
ainda que viesse a se submeter a uma condição análoga à escrava, posto que
Fatine Conceição Oliveira, Laureane Marília de Lima Costa e Mariana Rosa 135

o contrato entre o homem e ela pressupunha trabalho doméstico em troca


de moradia e valor módico por semana. Pouco depois, o homem reconsidera
a possibilidade, e vai até a casa onde morava Maudie para buscá-la, percurso
que ela faz na carroceria do carro, juntamente com as bagagens. O homem ha-
via, enfim, buscado as coisas de que precisava para ter sua casa bem cuidada.
A existência de Maudie é objetificada sem constrangimentos e de modo cada
vez mais intenso, seja na explicitação da hierarquia do cuidado – primeiro o
homem, depois os cachorros, depois as galinhas, depois a mulher com defici-
ência –, seja nas violências verbal e física a que é submetida.

Pessoas com deficiência têm três vezes mais probabilidade de expe-


rienciar violência física, emocional ou sexual do que seus pares sem defici-
ência, enquanto mulheres com deficiência têm 10 vezes mais chances de ex-
perienciar violência sexual, além de aborto forçado ou, antes dessa violação,
esterilização compulsória (MSH; UNFPA, 2016). No Brasil, o Atlas da Violência,
elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2018), aponta
que, das pessoas com deficiência que sofreram violência sexual, 73,7% foram
violentadas mais de uma vez, podendo indicar que a violência é praticada por
pessoas próximas.

Além da maior vulnerabilidade das mulheres com deficiência à viola-


ção dos direitos sexuais e reprodutivos, elas também tendem a permanecer em
relacionamentos afetivo-sexuais marcados por violência por mais tempo do que
homens com deficiência e do que mulheres sem deficiência (SMITH, 2008).

A presença de Maudie invoca o abandono, o descrédito, a abjeção


e o desprezo como bases razoáveis das relações a serem estabelecidas com
uma mulher com deficiência naquela época. De acordo com o relatório
sobre violência contra mulheres com deficiência da Rede Internacional de
Mulheres com Deficiência (RIMCD, 2011), o aumento da vulnerabilidade
desse grupo deriva da complexa rede de discriminações que perpassam o
gênero (sexismo) e a deficiência (capacitismo). O sexismo refere-se à in-
flexível divisão de papéis sociais de gênero, estabelecendo que compor-
tamentos relacionados à esfera pública são apropriados para os homens,
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
136
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

enquanto comportamentos relacionados à esfera privada são apropriados


para as mulheres, produz-se, assim, supremacia do homem sobre a mulher
(SOUZA, 2016).

Outro tipo de hierarquização das pessoas se dá a partir do capacitis-


mo, o qual se baseia na pressuposição e generalização da incapacidade de ser
e de fazer das pessoas com deficiência, negligenciando o fato de que as pes-
soas com deficiência podem desenvolver habilidades não relacionadas à sua
incapacidade biológica, tanto quanto pessoas sem deficiência (MELLO, 2014).

Gênero e deficiência se interseccionam nas categorias corporeidade,


trabalho, maternidade e violência, conforme foi revelado por pesquisa qua-
litativa realizada por Gesser, Nuernberg e Toneli (2013) com mulheres com
deficiência física residentes no Brasil. A compreensão do corpo com deficiên-
cia como desviante dos padrões valorizados socialmente acarreta vergonha e
dificuldade de aceitação do próprio corpo.

Além disso, o estudo supracitado revelou um sentimento de frustra-


ção nas participantes ao relatarem suas dificuldades tanto em realizar deter-
minadas tarefas domésticas, quanto o exercício do cuidado para com os filhos
e familiares, atividades consideradas responsabilidade exclusivamente femi-
nina. Esse sofrimento emocional demonstra como a subjetividade das partici-
pantes da pesquisa foi afetada pelo desejo de corresponderem a estes papéis
de donas de casa e cuidadoras, favorecendo a naturalização da violência con-
jugal e familiar, ainda que haja cerceamento dos direitos sexuais.

Não há humano sem o cuidado, sem o funcionamento das teias de in-


terdependência que sustentam a vida. No entanto, Maudie parece ser dona de
um corpo sistematicamente espoliado de qualquer ideia ou política de cuida-
do, de qualquer direito. A composição da personagem, no filme, parece querer
estabelecer os contornos de um corpo que coloca sob questão, ao mesmo
tempo, os conceitos de mulher, de normalidade e de capacidade. Um corpo
que desafia padrões por sua indesejável existência no mundo, o que justifica-
ria sua persistente experiência de desalento nas relações humanas.
Fatine Conceição Oliveira, Laureane Marília de Lima Costa e Mariana Rosa 137

Maudie tem a cabeça, invariavelmente, voltada para o chão, o que tal-


vez se explique não só pela artrite reumatoide de que a acompanha, mas tam-
bém pela ideia de que sua presença só seria tolerada a partir de uma condição
de subalternidade. Ao se dirigir a seus interlocutores, nota-se o movimento dos
olhos de Maudie de baixo para cima, como gesto que confere ao outro o suposto
conforto de se saber em uma posição superior àquela mulher defeituosa. Erguer
os olhos e a cabeça para alcançar o outro é gesto que marca a inexorável exigên-
cia da submissão de seu corpo às estruturas de poder vigentes.

O contexto social, ao combinar sexismo e capacitismo, produz des-


valorização das mulheres com deficiência, as quais passam a se sentir inade-
quadas como parceiras íntimas, baixam os critérios que esperam encontrar em
um companheiro (a) e estabelecem e/ou mantêm-se em relacionamentos afe-
tivo-sexuais abusivos, conforme foi encontrado em entrevistas realizadas por
Hassouneh-Phillips (2005), com 37 mulheres com deficiência física residentes
nos Estados Unidos, sendo a maioria heterossexual. Esse estudo revelou que,
além do contexto social de desvalorização, as mulheres entrevistadas que ti-
veram relacionamentos ruins com os pais e/ou foram vítimas de violência na
infância estavam mais propensas a permanecer em relacionamentos íntimos
de alto risco.

De que modo se constrói a subjetividade de uma pessoa que tem


sua experiência de vida permanentemente influenciada pelo desprezo e pela
violência? Como a perspectiva do tempo se insere no projeto de vida de quem
conhece o desamparo e o desamor desde a infância? Estas são perguntas que
o filme nos provoca, enlaçado com a realidade das mulheres com deficiência,
sem intenção de oferecer respostas ou conclusões.

Na obra “O corpo rejeitado”, Susan Wendell (1996) sustenta que ter


algum tipo de imperfeição provoca diversos tipos de opressões alimentados
por enunciados que valorizam determinados tipos de aparência em nossa so-
ciedade. O corpo diferente da personagem é submetido ao abandono e ao
desprezo, apesar de manter sua subjetividade ancorada na possibilidade de
recriar o mundo a partir da pintura.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
138
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

É mais provável que se pense que a ‘imperfeição’ física ‘estraga’


uma mulher do que um homem, ao torná-la pouco atraente em
uma cultura onde sua aparência física é um grande componente do
valor da mulher; ter uma perna danificada provavelmente evoca os
significados metafóricos de ser ‘aleijado’ / que incluem desamparo,
dependência e pena. (WENDELL, 1996, p. 43).

Ao mesmo tempo, o roteiro do filme nos oferece a surpreendente e


singular experiência de liberdade que Maudie constrói por meio da expressão
artística. Ela pinta postais, paredes, objetos da casa, telas. Pinta com os dedos
e com os pincéis. Pinta em resposta às experiências de sofrimento: quando o
irmão vende sua casa sem acordo prévio, quando o homem lhe bate no rosto,
quando ela precisa matar uma galinha para servir na refeição. Na encruzilhada
das violências que marcam sua existência, Maudie assume a pintura como um
exercício de liberdade.

Enquanto o mundo em que vive a quer submissa, submetida à ausên-


cia de direitos e de afeto, ela faz da arte um exercício íntimo de insubordina-
ção. Mas não é só isso: quando exposta a situações levadas ao limite do des-
respeito, Maudie sustenta, com firmeza, atitudes concretas que se interpõem
nas relações e preservam sua dignidade. Agindo assim, ela provoca um deslo-
camento importante sobre a compreensão de seu corpo: se o percebem como
dissonante, desafiador das normas, ela saberá fazê-lo insurgente a seu favor.

Por outro lado, a pesquisa realizada pela autora Karen Rich (2014)
com 19 mulheres com deficiência residentes nos Estados Unidos, a maioria
tendo sido vítima de abuso na infância, trouxe à tona as crenças que corro-
boram a permanência em relacionamentos abusivos, a saber: a deficiência
causou o abuso, o agressor está debilitado, o abuso foi acidental, o abuso era
suportável e o agressor era protetor.

Muitas mulheres com deficiência, inclusive aquelas sexualmente ati-


vas ou que contribuíam com a renda familiar, atribuíram à deficiência a causa
da violência, considerando o comportamento dos agressores uma resposta na-
tural ao estresse de viver com uma mulher com deficiência. Para elas, nesse
Fatine Conceição Oliveira, Laureane Marília de Lima Costa e Mariana Rosa 139

sentido, a violência era uma consequência inevitável da deficiência ao invés de


um reflexo do caráter dos agressores (RICH, 2014).

Outra crença refere-se à compreensão de que o parceiro teria com-


portamentos violentos porque estaria debilitado, portanto, caberia à mulher
com deficiência exercer o papel de oferecer o apoio, o cuidado necessário para
fazê-lo melhorar. Há também a crença de que o abuso foi resultado de um aci-
dente provocado pela ausência de um corpo com tamanho e força “normais”,
ou seja, se as mulheres com deficiência tivessem outra estrutura física, os atos
de seus agressores não as teriam prejudicado. Deste modo, sobrepondo a cul-
pa ao próprio impedimento corporal, e não a intenção do agressor, essas mu-
lheres consideram-se responsáveis pelo dano a elas causado (RICH, 2014).

Outras mulheres avaliaram os abusos praticados pelos parceiros


como relativamente inofensivos em comparação com experiências dolorosas
de procedimentos de reabilitação a que já haviam sido expostas. Ao identifi-
carem-se tolerantes às dores físicas, essas mulheres avaliavam que o abuso
experimentado nos relacionamentos não era tão ruim (RICH, 2014).

No filme, a autonomia da personagem se constrói em tons muito pró-


prios, com sua arte se esparramando pelos postais, telas, muros e janelas da
casa onde morava, conquistando a oportunidade de ser notada por seu talen-
to e sensibilidade, de ser reconhecida por sua capacidade de trabalho e de ser
remunerada de modo a obter sua independência financeira. A arte torna-se
sua resposta mais contundente às estruturas sexistas, misóginas e capacitistas
vigentes.

O cerceamento da autonomia das mulheres com deficiência por seus


parceiros ainda é muito comum. O agressor assume um papel de cavalheiro
e, com a justificativa de proteção, mascara sua estratégia de controle. Muitas
vezes, amigos e familiares elogiam tal “devoção”, enquanto as mulheres com
deficiência permanecem cada vez mais impossibilitadas de tomar decisões
(RICH, 2014).
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
140
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Tais crenças tanto amenizam a gravidade dos atos dos agressores,


quanto permitem ajustar a identidade das mulheres com deficiência às no-
ções tradicionais de feminilidade, como ter um parceiro romântico e exercer
o papel de cuidadora, contribuindo com a permanência das mulheres com de-
ficiência em namoros e casamentos abusivos por longos períodos de tempo
(RICH, 2014).

O filme sustenta essa narrativa, suavizando as violências praticadas


pelo homem, intercalando suas agressões com atitudes pontuais de cuidado, e
finda com a morte de Maudie após uma declaração de agradecimento e amor
ao marido pelas experiências compartilhadas em sua vida. Tal desfecho nos
provoca inquietações e reflexões sobre a relação entre a experiência feminina
com a deficiência, as noções de sexualidade e afetividade heteronormativas e,
sobretudo, a importância de elaboração de políticas socioeducativas de pre-
venção da violência doméstica que abarquem a realidade das mulheres com
deficiência.

3. CONCLUSÃO

Maudie Lewis faleceu no ano de 1970, período de grandes transfor-


mações realizadas por movimentos feministas, LGBTQIA+, negro e de pessoas
com deficiência que lutavam por justiça social e igualdades de direitos. Ainda
hoje ressoam os avanços obtidos em tal período, contudo, ainda há elementos
importantes a serem descontruídos, conforme discutidos neste capítulo. Urge,
por exemplo, a elaboração de políticas públicas para saúde, trabalho e educa-
ção que compreendam o cuidado como uma garantia de justiça social a pesso-
as com deficiência com alto nível de impedimento corporal. Do mesmo modo,
é importante observar e buscar formas acessíveis para denúncia de abusos
cometidos por familiares, parceiros (as) que se aproveitam das condições de
imobilidade da vítima para mantê-la em cárcere.

Além disso, é importante a desconstrução do conceito de mulher


Fatine Conceição Oliveira, Laureane Marília de Lima Costa e Mariana Rosa 141

universal, o qual sugere que todas as mulheres vivenciam o mesmo tipo de


violência provocado por um único tipo de opressão, no caso, o patriarcado.
É necessário considerar os diversos fatores que atravessam os corpos, tais
como deficiência, raça/etnia, classe e sexualidade, por exemplo, evidenciando
e sustentando as desigualdades e vulnerabilidades a que estão submetidos. A
compreensão interseccional possibilita observar como essas categorias estão
imbricadas e, principalmente, de que forma devem ser compostas as ações de
combate a todo tipo de opressão.

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WENDELL, Susan. The rejected body: feminist philosophical reflections on Dis-
ability. London: Routledge, 1996.
143

ACESSIBILIDADE NO SERVIÇO PÚBLICO:


UMA NOVA HIPÓTESE DE IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA

Mário César da Silva Lima1

1. INTRODUÇÃO

O
presente estudo busca justificar a disciplina mais rigorosa da acessi-
bilidade nos ambientes de trabalho nos órgãos públicos. O tema em
questão ganhou maior visibilidade com o advento da Lei nº 13.146,
de 06 de julho de 2015, a Lei Brasileira da Inclusão (LBI), a qual, objetivando
avançar do acesso ao serviço público para um ambiente de trabalho acessível,
criou uma nova hipótese de improbidade administrativa.

2. AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO

A Constituição Federal (CF) declarou-se a serviço de uma sociedade


fraterna, pluralista e sem preconceitos. Seu propósito é instituir um Estado
Democrático, garantidor do exercício dos direitos sociais e individuais, içados à
condição de valores supremos de nossa sociedade. Dito isto, está mais do que
justificado o fato de a dignidade da pessoa humana ser um dos fundamentos
do nosso Estado.

Assim, a CF não poderia ignorar as pessoas com deficiência. E não ig-


norou. No art. 7º, inc. XXXI, acha-se a proibição de qualquer discriminação no

1 Procurador do Estado da Bahia. Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa


com Deficiência da OAB/BA.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
144
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiên-


cia. Também, o inc. VIII do art. 37 diz que a lei reservará percentual dos cargos
e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os
critérios de sua admissão.

Ao lado da educação, o trabalho é a via mais nobre para a inserção


social de alguém. Não é por outro motivo que este se encontra no art. 6º da-
quela Carta entre os direitos sociais. Daí porque a CF cuidou do tema com es-
pecial atenção quando tratou das pessoas com deficiência. Porém, não basta
garantir-lhes a reserva de vagas nos concursos públicos e vedar discriminações
quanto a salário e critérios de admissão e de demissão. É fundamental que
essas pessoas laborem em ambientes nos quais possam desenvolver todas as
suas potencialidades. Em outras palavras, é necessário um ambiente acessível.

3. AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E O DIREITO AO


TRABALHO

O Brasil é signatário da Convenção Internacional dos Direitos das Pes-


soas com Deficiência, incorporado ao ordenamento jurídico pátrio através do
Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, a qual proclama a relação direta
entre a vida independente daquelas pessoas e o seu livre acesso a um am-
biente físico inclusivo e as tecnologias assistivas. Em seu art. 27, é previsto o
direito da pessoa com deficiência se manter a partir do trabalho de sua livre
escolha, o qual será desenvolvido em ambiente inclusivo. E para tanto, aquela
Convenção adotou os institutos da adaptação razoável e do desenho universal.

“Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes ne-


cessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional
ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegu-
rar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em
igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais”. Já o “desenho uni-
versal” significa a concepção de produtos, ambientes, programas
Mário César da Silva Lima 145

e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas


as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico.
(art. 2º)

Por fim, tecnologia assistiva ou ajuda técnica vem a ser os produ-


tos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas
e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e
à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando
à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social.

A LBI em seu art. 3º enumera os instrumentos de que dispõem as


pessoas com deficiência para a sua inclusão. E a adaptação razoável e as tec-
nologias assistivas são citadas expressamente no art. 37, o qual disciplina a
inserção das mesmas no trabalho. A razão de ser dessa citação é o instituto
da colocação competitiva, que é indicada como modo de inclusão no trabalho.

4. AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO SERVIÇO PÚBLICO

A Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre a Política


Nacional de Integração da Pessoa Com Deficiência, enumera em seu art. 2º os
direitos dessas pessoas, dentre eles o trabalho, inclusive em órgãos públicos.
Entretanto, seus preceitos não foram capazes de tornar efetivos seus propósi-
tos, não obstante o seu Art. 8º tipificasse como crime condutas discriminató-
rias por motivo de deficiência, cominando pena de reclusão de 1 (um) a 4 (qua-
tro) anos de reclusão. Aquele Diploma não trouxe nenhum dispositivo sobre as
medidas efetivas sobre as adaptações dos ambientes de trabalho.

A Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 (Estatuto do Servidor Fe-


deral), prevê a reserva de vagas para as pessoas com deficiência nos concursos
públicos dos órgãos da Administração Federal. Mas também não cuidou das
medidas de adaptação do ambiente de trabalho naqueles órgãos.

Com o advento da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas


CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
146
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

com Deficiência, tornou-se imperioso para o Brasil adotar medidas legislativas


que tornem efetivo o direito ao trabalho, inclusive no setor público, como é
preconizado na alínea g, do art. 27 daquela Convenção Internacional, direito
que de há muito era enunciado, mas ainda não efetivado. O parágrafo único
do art. 37 da LBI vem ao encontro desse desafio quando enumera as diretrizes
sobre a colocação competitiva, as quais devem ser observadas nos processos
seletivos tanto da iniciativa privada quanto pelo Poder Público, conforme dis-
põe o art. 38. Assim, nos editais dos concursos públicos realizados pela Admi-
nistração, tais regras são de observância obrigatória, sob pena de nulidade do
certame.

5. A HERMENÊUTICA DA LBI

O método teleológico de interpretação da norma oferece a explica-


ção da cominação de nulidade dos procedimentos que não observe os princí-
pios da LBI. Sobre esse método, Maximiliano, 2010, p. 124/125, anota:

Toda prescrição legal tem provavelmente um escopo, e presume-


se que a este pretenderam corresponder os autores da mesma,
isto é, quiseram tornar eficiente, converter em realidade o ob-
jetivo ideado. A regra positiva deve ser entendida de modo que
satisfaça aquele propósito; quando assim se não procedia, cons-
truíram a obra do hermeneuta sobre a areia movediça do proces-
so gramatical.

Considera-se o Direito como uma ciência primariamente norma-


tiva ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser,
na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o
fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atua-
ção prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, pro-
tetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências
econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor cor-
responda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de
interesse para a qual foi regida.
Mário César da Silva Lima 147

Como se vê, a LBI inova na disciplina dos direitos da pessoa com


deficiência, pois agora, para tratar de tema tão sensível, se utilizou das deno-
minadas normas mais que perfeita e não mais das normas imperfeitas, como
fizeram diplomas precedentes. E por que assim o fez?

A Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência,


em seu Preâmbulo, reconhece que

[…] a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência


resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras
devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva
participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de opor-
tunidades com as demais pessoas (alínea “e”) [e, também, reco-
nhece que,] não obstante diversos instrumentos e compromissos,
as pessoas com deficiência continuam a enfrentar barreiras contra
sua participação como membros iguais da sociedade e violações de
seus direitos humanos continuam ocorrendo em todas as partes do
mundo (alínea “k”).

Assim, determinou em seu art. 9 a adoção de medidas que, dentre


outras, combatessem as barreiras atitudinais. Isto justificou a mudança de pa-
radigma legislativo por parte do Estado Brasileiro, de sorte que a LBI não pade-
cesse, por omissão, do vício da inconvencionalidade.

6. AS BARREIRAS ATITUDINAIS E O PRINCÍPIO DA


MORALIDADE ADMINISTRATIVA

As atitudes das pessoas são determinadas, em grande medida, por


seus valores morais. As discriminações suportadas pelas pessoas com deficiên-
cia ao longo da história da humanidade têm, entre as suas causas determinan-
tes, os diversos “pré-conceitos” acerca dessas pessoas.

Nos termos do Art. 3º da LBI, esses “pré-conceitos” se configuram


em barreiras atitudinais, que vem a ser atitudes ou comportamentos que im-
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
148
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

peçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em


igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas; e não há
como negar que essas visões preconceituosas adentraram na gestão pública.
Ocorre que neste terreno sua repercussão é bem mais complexa.

Desnecessário lembrar que a Administração deve observância ao


princípio da moralidade. Sobre o mesmo, Slaibi Filho, 2019, p. 573, anota

Não basta que a atuação do Estado seja compatível com a mera


ordem legal, emanada dos autos legislativos: é necessário que a
gestão da res pública seja feita de forma a atender aos padrões de
conduta que a comunidade, em determinado momento histórico,
considere relevantes para a própria existência social. A Constitui-
ção de 1988 não confunde moralidade e legalidade, (omissis), Mo-
ralidade diz respeito às normas morais, vindo a expressão do latim
moralitas, do adjetivo moralis, morale, referindo-se aos costumes.

Assim, se no passado uma atitude preconceituosa de um agente


público contra uma pessoa com deficiência seria apenas moral-
mente censurável, a partir do advento da Carta de 05 de outubro
de 1988, passa a ser enquadrada no plano jurídico como afronta
a moralidade pública.

A propósito, Ferraresi, 2011, p. 47, anota que:

A moralidade da Administração Pública não se limita a distinção


entre o bem e o mal, devendo ser acrescida da ideia de que o fim
é sempre o bem comum. O equilíbrio entre a legalidade e a fina-
lidade, na conduta do servidor público, é que poderá consolidar a
moralidade do ato administrativo.

Os avanços civilizatórios das sociedades não admitem que as pes-


soas com deficiência continuem a ser tratadas de forma discriminatória. E esta
moral justificou que sua inclusão social fosse içada ao patamar constitucional.
Portanto, as barreiras atitudinais contra a inserção de tais pessoas constituem
afronta aos princípios da nossa Carta política.
Mário César da Silva Lima 149

7. ACESSIBILIDADE E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Por fim, chegamos à solução encontrada pelo Legislador para san-


cionar as barreiras atitudinais contra a inclusão das pessoas com deficiência
no serviço público. O Art. 103 da LBI introduziu o inc. IX ao art. 11 da Lei nº
8.429, de 02 de junho de 1992, de modo que o não cumprimento das regras
de acessibilidade constitui hipótese de improbidade administrativa. O acerto
desta escolha do Legislador é inconteste, pois, como disse Gomes, 2011, p.
154, acerca da violação do princípio da moralidade:

[...] Já nas hipóteses do art. 11, o que se almeja é a proteção aos


Princípios Informativos da Administração Pública (honestidade,
imparcialidade, legalidade e lealdade) que são inferidos da regra
do art. 37, caput, da CF.

Violação dos preceitos de moralidade e boa-fé são os mais relevan-


tes para a Administração Pública, ao par da legalidade, não poden-
do ter complacência na punição, em especial quando o agente tem
a responsabilidade funcional de bem cumprir seus deveres.

A CF é um texto eminentemente principiológico. Tendo se firmado na


jurisprudência pátria o entendimento de que a violação a um princípio é mais
grave que a violação da norma escrita, não haveria dispositivo mais adequado
que o art. 11 da Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992 para ser inserida esta
nova hipótese de improbidade administrativa.

8. CONCLUSÃO

Finalmente, a luta política de um segmento social até bem pouco


visualizado adquire um instrumento capaz de lembrar aos gestores quanto
a sua relevância. Essas pessoas desejam e podem atuar na sociedade, em
igualdade de condições, bastando para tanto que lhes sejam respeitados os
direitos. Doravante, a decisão política de não respeitá-los custará os direitos
políticos de quem não sabe respeitar os direitos políticos dos seus pares.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
150
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

9. REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de ou-


tubro de 1988. In: Vade Mecum. 17 ed. rev. ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.
_______. Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989. Dispõe sobre a Política Nacio-
nal de Integração da Pessoa Com Deficiência. In: Vade Mecum. 17 ed. rev. ampl.
atual. São Paulo: RT, 2020.
______. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispões sobre o Regime Ju-
rídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações
públicas. In: Vade Mecum. 17 ed. rev. ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.
______. Lei nº 8.429 de 02 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicá-
veis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de
mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou
fundacional e dá outras providências. In: Vade Mecum. 17 ed. rev. ampl. atual.
São Paulo: RT, 2020.
_______. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/decreto/d6949.htm>.
______. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão
da Pessoa com Deficiência. Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: Vade Me-
cum, 17 ed. rev. ampl. Atual. São Paulo: RT, 2020.
FERRARESI, Eurico. Improbidade Administrativa Lei 9.429/1992 – Comentada
Artigo por Artigo. São Paulo: Editora Método, 2011.
GOMES, Luiz Flávio. Comentários a Lei de Improbidade Administrativa. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. ed. Forense, 19
Ed, 2010.
SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. 3 Ed. Revista e Atualizada. São Pau-
lo: Ed. Forense, 2009.
151

PARTE ii
DEPOIMENTOS
Depoimentos 153

SEXUALIDADE
Depoimento: Sexualidade 155

EXPERIÊNCIAS DE UMA PESSOA CEGA

Enio Rodrigues da Rosa1

P
arece-me que tratar dessas questões sexualidade, sexo,
relacionamentos amorosos, afetivos, essas coisas todas,
talvez seja necessário pensar primeiramente, aquilo que
é do que muitos autores, pesquisadores, chamam de uma coisa
instintiva, que é inato, que é próprio de cada ser humano ou da
espécie animal. No caso do ser humano, especificamente, esses
desejos podem se manifestar de várias formas.

Por outro lado, todas essas questões, enquanto produ-


ção social, que guarda relação com questões históricas determi-
nadas, nem sempre foram vistas da mesma maneira como são
hoje, e foram se modificando ao longo do tempo. Portanto, em
sendo assim, não vejo também grandes diferenças em relação às
pessoas com deficiência de modo geral, e em particular, no caso
da cegueira.

Como seres humanos, todas as pessoas com deficiência


têm seus desejos, seus afetos, necessidades sexuais, sua sexuali-
dade. Isso tudo se manifesta desde a infância. Crianças cegas por
exemplo, adolescentes, jovens mesmo com outras deficiências,
inclusive intelectual, usuários de cadeiras de rodas, algumas tal-
vez, do ponto de vista orgânico, biológico, nem tenham condições
de fazer sexo.

1 Mestre e especialista em Educação Especial. Pedagogo. Professor da Rede


Estadual de Ensino.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
156
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Então estamos tratando de uma questão humana. Por


que no caso das pessoas com deficiência, essas particularida-
des merecem estudos, análises diferenciadas? Porque ao longo
da história, de uma ou de outra maneira, por inúmeras razões,
a humanidade foi tratando essas pessoas, suas especificidades,
sua sexualidade, de forma segregada. Tende-se a buscar campos
específicos, tratando-se as pessoas com deficiência como se tives-
sem um mundo próprio, uma psicologia própria, uma sociologia
própria, criando condições para que hoje ainda estas questões se-
jam tratadas como coisas tão distintas.

Sobre essa questão, tenho um dado interessante: já viven-


ciei a sexualidade como uma pessoa vidente, e constatei que entre as
pessoas que enxergam, há todo um jogo de sedução, não é?

Costumo brincar dizendo que as pessoas transam pelo


olhar, literalmente se desejam pelo olhar. Ao olhar nos olhos de
uma pessoa, você vê a sua alma. É como se você estivesse pene-
trando naquela pessoa pelo olhar, e junto com isso, vem toda uma
produção social.

No meu caso por exemplo, pude ter essa experiência de


enxergar e ver todo esse jogo de sedução através de um olhar, de
uma nuance, de um piscar de olhos, coisas desse tipo. Entretanto,
aos 35 anos, eu fiquei cego, privado de tudo isso. Evidentemente,
passei a enfrentar algumas situações nas quais precisei reapren-
der a lidar, a vivenciar e a fazer determinados encaminhamentos
de maneira diferente.

Mas as fantasias que estão na cabeça das pessoas que


enxergam, não são diferentes das que estão nas cabeças das pes-
soas cegas.
DEPOIMENTO: SEXUALIDADE - Enio Rodrigues da Rosa 157

As pessoas cegas que querem demonstrar interesse afe-


tivo por alguém, chegam de maneira diferente. Utilizam um jogo
de sedução pela palavra mais mansa, por determinados tipos de
sons produzidos e ainda pelo toque, pelo tato, na medida em que
as pessoas se permitem ser tocadas, acariciadas, enfim, tudo isso
faz parte do imaginário, também, das pessoas cegas.

Tive essas experiências com mulheres cegas, umas mui-


to positivas, outras nem tanto. O mesmo ocorreu com minhas ex-
periências enquanto pessoa que enxergava.

Uma das maiores experiências que eu vivenciei e agra-


deço muito por isso, foi o fato de ter tido relação, trocas, sexo,
com uma pessoa tetraplégica, que utilizava cadeira de rodas para
a sua mobilidade. Nessa situação, ocorreram todas as dificuldades
que você possa imaginar, inclusive, e talvez o mais interessante,
em relação a questões operacionais, uma vez que a pessoa estava
numa cadeira de rodas e não podia sair dela sozinha.

Na medida em que você se isola, num local privado,


aquela relação se dá entre você – cego – e a pessoa que não tem
todos os movimentos e precisa ser ajudada. Cabe a você fazer
toda a movimentação: tirá-la da cadeira, colocá-la na cama, tirar a
sua roupa e depois do ato em si, recomeçar todo aquele processo
de volta.

Essas experiências foram extremamente ricas do ponto


de vista da compreensão das relações afetivas e amorosas. Elas
precedem tantas outras coisas que vão acontecendo, que o ato se-
xual, tão somente, se torna secundário. Todavia, há pessoas com
“instintos mais carnais”, que não agem ou pensam dessa forma.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
158
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Um psicólogo me disse que se pode fazer sexo o dia in-


teiro, na medida que se vai jogando sedução, fazendo carícias, di-
zendo palavras agradáveis e, à noite, acontece o ato de consuma-
ção de um processo que já vinha se insinuando.

O meu namoro com a pessoa tetraplégica, por dois


anos, foi muito significativo, por ter oportunizado um momento
divino na minha vida. Claro, sem querer transformar o relacio-
namento numa coisa isenta de problemas. Houve dificuldades
que qualquer relacionamento tem: brigas, enfrentamentos, di-
vergências, disputa de poder na relação. Mas tudo isso faz parte
das relações humanas, independentemente de ser pessoa com
deficiência ou não.

Aos olhos da sociedade, ao mesmo tempo que juntos


despertávamos uma certa curiosidade e admiração (talvez pena
mesmo), também parecia uma coisa meio bizarra, totalmente fora
do esquadro, um cego e uma cadeirante desfilando e convivendo
nos espaços sociais, estudando e militando nos movimentos de
defesa dos direitos das pessoas com deficiência.

Outra questão é a influência da opinião de terceiros nas


relações afetivas. A opinião dos nossos amigos, familiares, enfim,
o social também está nesse processo. Queremos uma parceira
que possa ser apresentada aos amigos, e deles receber elogios.
Isso reforça a ideia de que namoro, desejos, escolhas, tudo tem
relação com o social. Obviamente que a prioridade está na busca
da parceira ideal, da mais perfeita, que dê conta de satisfazer os
nossos desejos, nossas fantasias, as nossas vontades.

Um detalhe interessante, também, é a fantasia que al-


gumas pessoas têm de transar com pessoas com deficiência, se-
jam elas, por exemplo, cegas, cadeirantes ou amputadas. Elas são
DEPOIMENTO: SEXUALIDADE - Enio Rodrigues da Rosa 159

necessárias ou extremamente importantes numa relação sexual


saudável. A grande questão é compreender, ter clareza da distin-
ção entre o que é fantasia, e o que é real. Acho que isso é interes-
sante, numa relação sexual entre quatro paredes, digamos assim,
desde que acordado e, claro, não se trate de agressões físicas, ou
coisa parecida.

Sobre minhas fantasias, não pude realizar todas, pois há


coisas que são muito particulares e que não consegui explicitar
com minhas parceiras. Quando se começa uma relação, as pesso-
as entram na vida uma da outra e passam a perceber os limites de
cada um. Então as fantasias são sublimadas por impossibilidade
de realização.

A deficiência em si acrescentou muito nas minhas rela-


ções, sobretudo pelo modo como passei ver o mundo e a me ver,
diferente de como eu era antes, quando enxergava. Evidentemen-
te, continuo sendo o mesmo Enio, com o mesmo DNA, RG, etc.

Mas conforme estudos, reflexões e, segundo um texto


de Denis Diderot, intitulado “Carta sobre os Cegos para Uso
dos que Veem”, há uma passagem muito clara, no seguinte sen-
tido: é preciso morrer como alguém que enxerga, para renas-
cer como cego.

A cegueira na vida de uma pessoa não é qualquer coisa.


Não é apenas uma barreira ou um obstáculo. Ela traz consigo for-
ças e potenciais enormes. E para que uma pessoa cega possa dar
conta de lidar com o mundo, com a vida, com as relações sociais,
é necessário que haja mudanças em seu aparato psicológico e em
seu sistema nervoso central. Todas essas mudanças, na verdade,
alteram a compreensão do mundo, das pessoas e, por conseguin-
te, das relações da afetividade e questões de sexualidade.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
160
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Portanto, se relacionar com pessoas com deficiência,


depois de cego, como nas experiências que tive, trazem novos
elementos, outros recursos, e outras perspectivas que são
colocadas nessa relação. Consequentemente, todo aquele jogo
de sedução, que o olhar tinha antes, desapareceu.

As pessoas cegas tendem a ser “um pouco conservado-


ras”, no sentido de manter o relacionamento. Evidentemente que
as minhas relações hoje estão num outro patamar, eu diria assim,
mas isso não é apenas porque sou cego, evidentemente. É que,
junto com a cegueira, vieram outras necessidades que eu tive
que trabalhar, o meu pensamento, por exemplo, alargar, digamos
assim, o campo mais intelectual.

Para descontrair, às vezes digo que, se do ponto de


vista físico, a perda de visão “escureceu meu mundo”, por um
lado do olho, a cegueira iluminou minha consciência e me abriu
novas perspectivas que antes, apenas com a percepção do olhar,
eu não tinha conseguido alcançar. Evidentemente, tudo isso traz
mudanças na vida da gente, e também nas nossas relações.
Depoimento: Sexualidade 161

VIVÊNCIAS DE UMA PESSOA


COM TETRAPLEGIA

Thiago Córdova1

N
asci em uma cidade no interior do estado do Paraná. Com
uma infância típica da década de 1980, vivia em simpli-
cidade. Meu tempo era exclusivo para a família, escola e
amigos, não recordo de ter convivido com alguém com deficiên-
cia, nem mesmo na escola.

No início dos anos 2000, era um jovem saudável, espor-


tista. Fui soldado no Exército, iniciei também minha vida afetiva e
sexual, porém, não sabia que em pouco tempo minha vida viraria
do avesso.

Isso aconteceu logo após completar os 19 anos, voltando


do trabalho de bicicleta, fui vítima de atropelamento no trânsito.

Sofri lesões graves na coluna cervical, nas vértebras c5 e


c6. Logo nos primeiros dias de internamento, soube da realidade
nua e crua: recebi o diagnóstico médico quanto a gravidade da
lesão e irreversibilidade do quadro. Compreendi, ainda no hospi-
tal, que não voltaria a andar, ou seja, que seria uma pessoa com
deficiência para o resto de minha vida.

Considerando a altura da lesão medular nas vértebras


da coluna cervical, perdi os movimentos finos das mãos, dos
braços, do tronco, das pernas e também tive a perda do controle

1 Advogado. Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência


da Subseção de São José dos Pinhais da OAB/PR.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
162
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

fisiológico, ou seja, com tantas limitações físicas, me tornei de-


pendente da ajuda de outras pessoas.

Para um jovem que tinha um mundo de sonhos e expec-


tativas pela frente, isso foi uma imersão completa ao desespero.
Passei um tempo alimentando uma falsa expectativa de que os
médicos estavam errados, que aquela previsão não se aplicaria
a mim. Com o passar do tempo superei a fase de negação, da re-
volta e comecei a aceitar o que aconteceu e busquei dar um novo
sentido a minha vida.

A deficiência alterou meus sonhos e projetos de vida,


sabia que para superar as condições adversas e viver com o míni-
mo de dignidade, seria necessário enfrentar a vida com as armas
que tinha. Para minha felicidade, pude contar com o apoio de
minha família, cada membro aceitou e compreendeu que certos
sacrifícios seriam necessários para me proporcionar o mínimo
de conforto.

No primeiro ano, todos os membros da família tiveram


que contribuir de alguma forma, com tempo e inúmeras caro-
nas para a fisioterapia, ou mesmo de forma financeira, pois foi
necessária a adaptação da casa, aquisição de produtos médicos
hospitalares extremamente caros e não oferecidos pelo SUS. Na-
quela época contava apenas com a renda de um salário mínimo
para sobreviver.

Foi imprescindível o auxílio dos familiares também nas


atividades mais simples, que ajudavam na mudança de decúbito,
no banho, para ir ao banheiro, esse auxílio e disposição foi um
divisor de águas em minha vida, porque naquela época, não tinha
condições financeiras para a contratação de serviços de profissio-
nais de cuidadores.
DEPOIMENTO: SEXUALIDADE - Thiago Córdova 163

O problema é que cada familiar também tem a própria


vida e obrigações, nesse ponto, a solução se confunde com o pro-
blema e independente do amor e do vínculo de sangue. É difícil
estar diariamente à disposição, o cuidador tem o sentimento de
extrema responsabilidade pela pessoa cuidada e acaba abdicando
de momentos individuais de sua vida, ou seja, acaba se anulando.
Foi buscando diminuir o sentimento de peso que encontrei alter-
nativas e passei a utilizar as ferramentas disponíveis, a usar aquilo
que a deficiência não atingiu, isto é, minha capacidade intelectual.

Com a certeza de que poderia dar um rumo totalmente


diferente a minha vida, não ser apenas um estereótipo da pessoa
com deficiência, pobre e inválida, me joguei de cabeça na corrida
por um diploma de ensino superior. Sabia que era necessário es-
tudar, me profissionalizar, para ter uma renda que pudesse garan-
tir uma vida com menos privações e com maior conforto.

Prestei vestibular e consegui ingressar na faculdade atra-


vés de uma bolsa parcial de estudos. Este incentivo foi importante
e possibilitou a seguir com meu propósito. Durante o período aca-
dêmico, as barreiras arquitetônicas foram superadas, dia após dia.
As dificuldades se apresentavam e sempre de formas diferentes,
porém, pude contar com o companheirismo e a solidariedade dos
colegas de classe que me ajudavam a superá-las.

Recentemente, um amigo de faculdade revelou que


no primeiro dia de aula, enquanto me apresentava à classe e
falava sobre o meu objetivo de ser um advogado, ele disse que
pensou: “o quê este cara está fazendo aqui?” e que logo eu
desistiria do curso. Ele me contou que, a cada semestre que eu
concluía, sempre com boas notas, ele foi percebendo o quanto
estava enganado.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
164
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Durante a faculdade, essa pessoa acabou sendo uma das


que mais me ajudaram, e no fim, o convívio com a deficiência se
tornou uma grande inspiração e lição de vida. Infelizmente, ele
acabou não se formando por circunstância da vida.

Fui o primeiro aluno da classe a passar no Exame de Or-


dem. No final do quarto ano da Faculdade me dediquei, pois sen-
tia que tinha que sair à frente e compensar as dificuldades que
viriam após o término da graduação. Uma das maiores preocu-
pações era a de conseguir um emprego e ter clientes. Não parei
de estudar, completei duas pós-graduações e enfrentei e superei
as mesmas adversidades da Faculdade, o que mostra que tudo é
possível com dedicação e esforço.

Atualmente tenho uma carreira sólida e me encontrei


profissionalmente na carreira jurídica, sou realizado e não me li-
mito a ficar apenas no escritório, viajo e faço audiências, busco
alcançar todas as prerrogativas da profissão.

Porém, como nem tudo na vida são flores, existem as-


pectos da deficiência que são quase insuportáveis, que podem
causar grande desconforto e constrangimento, por exemplo, a
perda involuntária das fezes ou da urina.

No começo, fui resistente e orgulhoso em aceitar o uso


de fraldas geriátricas, a simples ideia feria a minha dignidade, mas
com o tempo, amadureci o pensamento e passei a aceitar que cer-
tas peculiaridades são próprias da deficiência. Descobri que o uso
de fralda me traria maior conforto e evitaria constrangimentos. Se
essa aceitação tivesse ocorrido logo no início da deficiência, teria
me poupado péssimas experiências.

Em determinada ocasião no ano de 2003, tive a perda


involuntária de fezes durante uma sessão de fisioterapia no HC
DEPOIMENTO: SEXUALIDADE - Thiago Córdova 165

de Londrina, confesso que foi um dos piores momentos de cons-


trangimento de minha vida, literalmente tiveram que paralisar as
atividades na sala de fisioterapia para que pudesse me higienizar.

Esta situação se repetiu, inúmeras vezes, e mesmo


com o uso da fralda, existe a possibilidade de se repetir, e isso já
ocorreu chegando para uma audiência de conciliação no Fórum.
Como não havia tempo de me higienizar, fui salvo pela ajuda de
um colega advogado, que foi solidário e participou do ato proces-
sual. Com a experiência e maturidade, não me cobro tanto, sei
que esse desconforto voltará a bater a minha porta, pois essa é
uma condição gerada pela própria deficiência, sendo o aspecto
que mais incomoda a um cadeirante, por isso, uma alimentação
regular e saudável, com o acompanhamento de um nutricionista
é importante para a qualidade de vida.

E mesmo com todas as adversidades nunca deixei de so-


nhar que vou encontrar meu par afetivo, ter minha própria famí-
lia. Antes de me tornar pessoa com deficiência, era um homem
tímido, mas após tantas passagens por hospitais, banhos de leito,
essa timidez foi dando lugar a uma pessoa desenvolta.

Após viver quase duas décadas com a deficiência, tive


vários relacionamentos, cada um deles me trouxe uma experiên-
cia única. Conheci pessoas que me amaram incondicionalmente
e independente da deficiência, estavam dispostas a estar ao meu
lado, mas por razões totalmente alheias à deficiência, não deram
certo as relações.

Também conheci pessoas que criaram a ilusão de que


um dia eu voltaria a andar, mas que, com o passar do tempo, se
frustraram e sofriam por mim. Sempre fui muito sincero sobre
a irreversibilidade da deficiência e sobre minhas limitações, e
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
166
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

mesmo assim, algumas parceiras não acreditavam naquela rea-


lidade.

Para mim é comum conhecer alguém por aplicativo de


relacionamento. Costumo colocar a deficiência e fotos, logo no
meu perfil do site. Não considero uma invasão direta à minha pri-
vacidade, mas uma informação importante. E mesmo que algumas
pessoas se choquem – porque isso acontece com certa frequência
–, conheço pessoas que compreendem e se dão uma chance de
viver uma experiência nova. Afinal, também faço minhas escolhas
e filtro aspectos que não me agradam.

Tento apresentar o homem gentil, sincero e honesto an-


tes do homem com deficiência, e depois tento passar uma visão
ampla sobre o que esperar de um relacionamento com uma pes-
soa com deficiência.

Para muitos é um mundo novo, é preciso se ajustar e


aprender sobre a deficiência em si. Uma das perguntas mais fre-
quentes logo no início, é justamente, sobre a função sexual e a
capacidade reprodutora, pois o sexo é importante para qualquer
relacionamento, incluindo a pessoa com deficiência.

Não trato a questão da sexualidade como um tabu, no


meu caso, antes mesmo de transar, gosto de falar sobre meus gos-
tos, como consigo chegar ao prazer e driblar minhas limitações,
mas para isso é necessário o mínimo de intimidade.

Também sei que algumas parceiras se socorreram a


buscar informações na internet, pois queriam compreender a
deficiência, e como é possível ter uma vida de qualidade. Essas
informações são importantes, reduzem o preconceito e dimi-
nuem a insegurança em assumir uma relação com uma pessoa
com deficiência.
DEPOIMENTO: SEXUALIDADE - Thiago Córdova 167

Com a ajuda da indústria farmacêutica que desenvolveu


o famoso “azulzinho”, hoje posso ter ereção, lembrando que a mi-
nha deficiência importou na perda da sensibilidade dos membros
inferiores. Antigamente tinha vergonha de assumir a dependência
do medicamento, porém, hoje não escondo da parceira, pois faz
parte de quem eu sou. Gosto de sexo e não me anulo. Sempre
que quero comprar preservativos ou estimulantes, costumo fazê-
-lo pela internet, sem envolver meus familiares. É uma forma de
separar minha vida íntima das outras necessidades da deficiência.

Sabendo a quantidade de informações, não falo sobre


todas no primeiro encontro, pois acredito ser muitas coisas para
absorver de uma única vez. Prefiro aproveitar o momento fa-
lando sobre gostos em comum, literatura, cinema, gastronomia,
viagens. Conto um pouco sobre a minha vida e vou aos poucos
dosando a quantidade de informações. Afinal, quero um segundo
encontro e é preciso ter um mínimo de intimidade para se abrir
por completo.

Ainda solteiro, vivendo em minha própria casa, sigo em


paz e harmonia com meu corpo. Tenho dias bons e tenho dias
ruins, como qualquer outra pessoa, seja ela com deficiência ou
não. Tirei grandes lições de vida, dos acontecimentos positivos e
negativos, fui resiliente e persistente, ainda tenho um universo de
obstáculos para superar e não posso me dar ao luxo ficar lamen-
tando pelas coisas que não posso mudar.

Tenho uma imensurável gratidão pela vida, pela minha


família que me deu as condições necessárias para chegar até aqui,
por ter uma profissão digna e respeitada, também pelos amigos
que fiz no caminho e que se tornaram parte de minha vida. Foram
estas condições que me transformaram e pude deixar de apenas
sobreviver, para viver em plenitude e felicidade.
Depoimentos 169

VIOLÊNCIA
Depoimento: Violência 171

O BULLYING E O TRAUMA PSICOLÓGICO

Rogério Luis Silva Rosa1

M
inha experiência com o bullying está diretamente associa-
da a muitas das minhas mais nítidas e antigas memórias.
Alguns amigos, mesmo hoje, desconfiam que eu consiga
lembrar de acontecidos durante meus 3 ou 4 anos de idade com
tanta clareza. Me entristece um pouco encarar tal realidade, mas
é o que é.

A infância, uma idade que no imaginário popular acaba


sendo idealizada como um momento da vida no qual não enxerga-
mos maldade, temos poucas responsabilidades, e podemos viver
apenas para aprender e criar boas lembranças e laços. Tão bom se-
ria se fosse possível para todos. Às vezes questiono quanto nós,
como adultos, nos apegamos a um senso de “nostalgia” que talvez
não seja de todo verdadeiro.

Ao dizer isso, não tenho intenção de afirmar que nos en-


ganamos e mentimos sobre o passado. Eu mesmo digo com segu-
rança que tenho memórias maravilhosas dos meus primeiros anos
e também da adolescência. Entretanto, muitas vezes evitei encarar
quão pesadas e cruéis foram as experiências que sofri.

Nesse sentindo, uma das minhas primeiras lições cruas da


vida foi a capacidade das pessoas para malevolência, expressa na
sua condição mais primal e sem razão de ser.

1 Advogado. Membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com


Deficiência da OAB/PR.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
172
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Relembrando tudo que aconteceu, é até um pouco curio-


sa a dualidade tão dispare das minhas vivências, bem como é evi-
dente onde elas foram mais intensas e características. Explico.

Desde que me recordo, meus pais sempre tentaram me


incluir no máximo de atividades sociais possíveis – artes marciais
desde os 3 anos de idade, participei do Movimento Escoteiro dos
7 aos 23 anos, e uma série de outros grupos de jovens, além de
trabalhos comunitários, etc. Sobre esses aspectos, a maioria das
lembranças são sinceramente positivas, e as negativas, nesses con-
textos, em nada têm relação com o bullying que enfrentei. Tenho
plena certeza que essas ocupações fortaleceram meu coração e as
amizades que construí, literalmente, salvaram minha vida, mais de
uma vez.

Acredito ser importante contextualizar esses pontos, até


mesmo para esclarecer onde o problema do bullying foi mais evi-
denciado na minha vida (e certamente na de muitos outros): no
ambiente escolar.

Tenho hemiplegia espástica à direita. Nessa condição,


causada por falta de oxigenação durante o parto, tive paralisia par-
cial dos movimentos do lado direito do corpo, bem como sequelas
na fala, etc. Nessas circunstâncias, durante minha infância, apesar
de intensas e quase diárias sessões de fisioterapia, ainda tinha o
chamado “pé equino” (tendões travavam o movimento da perna,
causando andar forçado na ponta do pé direito, não conseguia rela-
xar os músculos e caminhar em passadas normais). Também tinha
boa parte do braço direito paralisado, na época.

Tais fatores acabavam chamando a atenção na escola,


desconforto por si só, bastante sofrível.
DEPOIMENTO: VIOLÊNCIA - Rogério Luis Silva Rosa 173

Diante disso, o meu instinto mais básico desde o início


sempre foi o de tentar esconder (nunca usava bermudas, sempre
deixava as mãos nos bolsos, esse tipo de coisa). Hoje, ao relembrar
tudo isso, talvez tenha sido meu primeiro grande erro de convivên-
cia. Explorar o constrangimento e a vergonha alheia sempre fazem
parte do arsenal de qualquer bullying.

Desde a pré-escola até o fim do ensino médio, pude per-


ceber que toda a experiência de bullying gira em torno de uma es-
pécie de espetáculo de demonstração de força e intimidação.

Em absolutamente todos os contextos, em todas as séries


e todas as escolas que passei, o padrão era basicamente o mesmo.
Existe primeiramente apenas 1, às vezes 2 pivôs da situação. São as
pessoas que agitam os demais para fazer o bullying. Geralmente,
eram os maiores da turma e costumavam atacar sempre os mais
vulneráveis para se afirmarem perante o grupo, tanto no quesito
força, quanto na popularidade, ao sempre adotarem um tom joco-
so nas agressões.

Diferente do que muitos imaginam, o bullying não surge


aleatoriamente. Seus perpetradores sempre buscam algo com isso
(instigar medo e ganhar popularidade são os mais comuns) e eles
sabem exatamente que é errado, mesmo na minha época (anos 90)
eram comuns palestras sobre o tema e tentativas de conscientiza-
ção. Esses esforços para criar bom senso sobre esse tipo de abuso
sempre eram tratados com deboche pelos agressores.

Minha experiência com o tema ocorreu desde o jardim 2


da pré-escola até a 8a série do ensino fundamental. Quando che-
guei no ensino médio, estava no auge da condição física e treina-
do em artes marciais. Como a covardia é a característica nº 1 dos
bullies, ninguém se arriscava realmente. Tentativas não faltaram,
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
174
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

mas diante de uma ameaça sincera de retaliação violenta, todos


desistiam, eventualmente.

Como foi algo prolongado por muitos anos, tratar pontu-


almente de cada situação individual acabaria sendo muito extenso.
Sendo assim, prefiro comentar sobre o modus operandi dos bullies,
que foi basicamente o mesmo em todas as ocasiões.

O ponto de partida em quase todos os meus casos de


bullying era uma conversa demonstrando curiosidade sobre a con-
dição de pessoa com deficiência – PcD. É algo quase como um início
de tentativa de amizade, por isso é algo realmente maligno. Sobre
esse aspecto, é um dos principais motivos de eu sempre tentar
mascarar a deficiência, para não dar armas ao inimigo. Depois de
várias vezes sofrendo por dar confiança a esse tipo de pessoa, aca-
ba sendo o único passo lógico.

Uma vez descobertas as fraquezas, seja por perguntar


abertamente ou por pura observação, o bully começava a “jogar
verde” para sua plateia, geralmente nos intervalos entre as aulas e
principalmente nas aulas de educação física.

Os apontamentos são sempre quanto às falhas em reali-


zar tarefas comuns aos outros, diminuindo e ridicularizando, junto
com comentários sobre a estranheza da aparência (o andar esqui-
sito, a mão torta, a dificuldade em falar certas palavras, etc). Tendo
retorno da “plateia”, o abusador se consolidava.

As ofensas verbais eram a ferramenta inicial do bully; ele


humilhava e incentivava os demais a fazerem o mesmo. Quando o
terror psicológico não arrancava mais as mesmas risadas, o abuso
passava a ser físico.
DEPOIMENTO: VIOLÊNCIA - Rogério Luis Silva Rosa 175

Inicialmente os ataques acabam sendo mais para destruir


o moral e autoestima, do que necessariamente violentos. São do
tipo: esconder pertences, jogar coisas, furtar e roubar objetos, pas-
sar rasteiras, empurrões, mexer com a comida e tudo que seja pos-
sível para torturar e enlouquecer. Esse tipo de contexto costuma se
arrastar por meses.

Quando essas agressões “mais sutis” deixam de agradar


ao “público”, o bullying escala para o estágio final, a violência fí-
sica em si. Costuma acontecer quando você está desolado e sem
confiança alguma de receber ajuda ou amparo. Todas as escolas,
particulares e tradicionais, nas quais estive, sempre diminuíam a
seriedade da situação e temiam tomar decisões mais firmes dian-
te dos agressores. Era o mesmo sermão: chamar os pais, e outras
atitudes fracas, que só irritavam o bully e viravam motivo de piada
entre os colegas.

Passei por diversos momentos em que os abusos escala-


ram para esse estágio. O que me entristece e enfurece atualmente
é saber que nessas épocas eu era perfeitamente capaz de me de-
fender dessas pessoas, mas o trauma psicológico alimentado du-
rante meses, e a natureza pacifista, me deixavam sem ação.

Lembrando disso tudo, mesmo depois de tantos anos


passados desses fatos, ainda lembro dos rostos e nomes de cada
bully com quem convivi, às vezes até melhor do que de amigos que
eram próximos. Por esse motivo, afirmo com toda certeza que nun-
ca perdoei, nem jamais vou perdoar esses bullies. Eles sabiam quão
cruel era o que faziam e todos, em algum momento, foram alerta-
dos por algum tipo de autoridade familiar ou escolar para pararem,
e mesmo assim continuaram. Espero nunca reencontrar nenhum
desses sujeitos, pelo bem deles.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
176
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Apesar de tudo, toda essa violência acabou despertando


algo positivo em mim. Tenho uma aversão intensa à arrogância e
covardia. Jurei a mim mesmo sempre tratar as pessoas com o máxi-
mo de consideração e gentileza possível, que nunca deixaria de agir
ao presenciar um ato de violência contra alguém mais fraco e que
nunca mais seria humilhado por mais ninguém. Afiei meu espírito e
meu corpo com uma convicção absoluta de sempre fazer ser corre-
to, sincero e amável com os outros.
Depoimento: Violência 177

O BULLYING E SUAS FACETAS

Gabriel Otávio dos Santos1

N
inguém escolhe ter uma deficiência, isso é fato. Porém,
até chegar ao ponto de ter o poder de assimilar essa rea-
lidade, muita dor e muito sofrimento são vivenciados, por
mera ignorância daqueles que desconhecem a realidade.

Quando eu nasci, em 1987, a cultura da pessoa com de-


ficiência era algo impensável, e ter um filho com qualquer tipo de
deficiência, penso eu, era uma espécie de tabu.

Entrei na escola em meados de 1990 e naquela época,


ninguém falava na palavra bullying, simplesmente não existia.
Acredito que dificilmente alguém recorria à lei para a resolução
de tais questões, porém, elas existem.

Tanto no sistema educacional, quanto na sociedade em


geral, as pessoas não estão preparadas para conviver com o dife-
rente e isso eu senti.

É fato indiscutível, a Paralisia Cerebral me trouxe muitas


experiências tanto para o bem, como para o mal. Além de ter de
enfrentar sessões quase diárias de fisioterapia, a confecção de órte-
ses para melhorar a “marcha”, e as cirurgias que vieram, ainda tinha
que saber lidar com o olhar curioso e preconceituoso das pessoas.
E devemos aceitar de uma vez por todas, as pessoas olham, riem
do modo como andamos ou desempenhamos nossas atividades de

1 Advogado. Secretário da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência


da OAB/PR.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
178
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

modo diverso da maioria. Isso na época tinha o nome de precon-


ceito e o remédio dado com muito zelo pelos meus pais e irmãos
foi: “encare e supere”.

Foram incontáveis as vezes em que meus professores re-


clamaram da minha escrita, do meu desenho e da demora com
que desempenhava as atividades em sala de aula. Realmente
“tiravam sarro” disso, achavam ”frescura”, por eu apoiar de lado
uma prova na Faculdade e demorar para manusear o Vade Me-
cum. Quantas vezes professores me acusaram de estar “colando”
ou “tiraram sarro” em alto e bom som das minhas perguntas, ou
da minha morosidade para copiar a matéria do quadro-negro.

Quando era pequeno, no pátio, as crianças, assim como


eu era, me excluíam das brincadeiras por medo, mas isso não era
bullying. Agora quando um professor de escola afirma para a sua
mãe que você é “retardado” e que deveria estar em uma esco-
la especial, ou quando um professor universitário não te instrui
corretamente para que você atinja o seu completo potencial por
pensar que a sua deficiência e sua dificuldade é trapaça, isso pos-
so afirmar que é bullying, e dos mais duros, que pode desmontar
e desmoronar a sua autoestima.

Hoje posso afirmar com todas as palavras que o lugar


que ocupo se deve exclusivamente ao apoio da minha família e
principalmente da força de vontade que vem de dentro, e é algo
muito mais forte do que podemos imaginar.

Com toda a certeza o bullying é real e é algo que destrói


as pessoas e somente com um trabalho muito intenso de inclu-
são real nós poderemos mudar essa realidade. Ainda é necessário
afirmar que remédios legais existem para coibir essas atitudes,
porém, medidas legais não restauram o principal que é a autoes-
tima daquele que é ferido.
Depoimento: Violência 179

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E PATRIMONIAL

Rita de Cássia Fuentes Luz Suenaga1

S
ou filha de pai brasileiro, natural de Minas Gerais, e de mãe
boliviana. Quando nasci, foi um momento de euforia para
toda a família. Meus pais já haviam perdido uma filha, no
início dos anos 1960, que nascera e vivera por apenas 15 dias, dian-
te de poucos recursos financeiros e do parco conhecimento médico
sobre lábio leporino. Minha irmã, com o céu da boca completamen-
te aberto, não sobreviveu, e passado um ano e meio desse aconte-
cimento, eu cheguei ao mundo.

Superada a alegria de meu nascimento, após três me-


ses, minha avó paterna percebeu que eu não esboçava reação ao
ser estimulada com brincadeiras ou brinquedos coloridos, o que
deixou meus familiares alertas e apreensivos. Após consultas e
exames médicos, veio o diagnóstico: Catarata Congênita.

A criança sem deficiência geralmente conhece e supre


suas necessidades explorando o espaço em que vive. Já a criança
com deficiência visual tem sua percepção e estrutura mental for-
mada com as possibilidades de interação e ação sobre o meio e
pela oportunidade de reconhecimento do ambiente. Para apren-
der, precisa ser livre para explorar. Deste modo, poderá construir
seu sistema de significação, organizando suas ações no contexto
diário, formando assim as noções de tempo-espaço-causalidade.
A descrição do ambiente e a informação sobre o que acontece ao

1 Advogada com deficiência visual baixa visão. Presidente da Comissão de


Pessoas com Deficiência e Acessibilidade da OAB/MS.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
180
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

seu redor contribuem para evitar o susto e a frustração. O papel


da família é fundamental para que o processo ocorra de forma
adequada às necessidades da criança e mantenha um ritmo siste-
matizado, organizado e regado a bom senso.

Penso que não tive essa possibilidade, em virtude da au-


sência de observação direta de pessoas, objetos e eventos que le-
vam à interação. Minha qualidade de comunicação, de manuseio
e a instalação de rotinas diárias foram muito prejudicadas.

Quando iniciei meus estudos em uma escola particular


em Piracicaba/SP, a professora evitava se dirigir a mim, ignorava-
me e deixava que eu fizesse o que queria, sem se importar com
meu aproveitamento escolar. Logicamente fui reprovada.

Naquela ocasião, início dos anos 1970, as buscas pela in-


clusão estavam surgindo entre as pessoas que se uniam e preten-
diam o reconhecimento e a valorização de todas as diversidades.
Notaram que apenas abrir portas não era suficiente, e começaram
a perceber e planejar ações com o objetivo de garantir ambientes
que proporcionassem oportunidades justas.

Todos somos diferentes. A diferença é o que, de certa


forma, nos humaniza. Percebê-la como valor é um processo que
se estabelece em todas as esferas da vida e que legitimamos in-
dividual e socialmente. Essa ideia já está estabelecida desde a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, apontando que o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo é o reco-
nhecimento da dignidade inerente a todos.

Na minha infância, percebi que meu pai, embora tra-


balhasse oito horas diárias, era mais constante no nosso dia a
dia. Já minha mãe, em virtude de ser cabeleireira e pensar que
DEPOIMENTO: VIOLÊNCIA - Rita de Cássia Fuentes Luz Suenaga 181

trabalhando poderia prover todas as nossas necessidades, des-


conhecia que o mais importante estava sendo negligenciado e
traria fortes consequências no futuro.

Completei o ensino fundamental em escola estadual lo-


calizada a um quarteirão de nossa residência e passei a me deslo-
car sozinha, a partir da terceira série, com autonomia e indepen-
dência. Sentia-me igual aos demais da minha idade, porém não
era bem assim, pois em meados dos anos 1970 as pessoas com
deficiência eram apenas integradas na escola, não incluídas na
sua concretude, sobretudo com as adequações e acessibilidades
pertinentes a cada especificidade de deficiência, tendo em vista
que a pessoa necessitava transformar-se para ser verdadeiramen-
te incluída na sociedade, quanto mais se aproximasse da normali-
dade, mais incluída seria.

Na verdade, a minha própria família me segregava, in-


conscientemente. Agia conforme o mandamento social da época,
para que se atingisse êxito era primordial se adequar às normas
preestabelecidas de forma padronizada, do contrário não pode-
ria a ela pertencer. Muitas foram as expectativas frustradas: aulas
de balé, violão, natação e outras, uma vez que para uma aluna
com deficiência, as adequações e adaptações estavam fora de co-
gitação. Evidenciava-se, dessa forma, o preconceito, o descaso, o
abandono, o descrédito, o estigma e a segregação.

Lembro-me com saudades que, de forma inconsciente,


uma professora da “Escola Estadual de Primeiro Grau Doutor Pru-
dente de Morais” me incluiu, permitindo que eu fosse ao quadro-
-negro copiar o conteúdo no meu caderno e que através de textos
ampliados eu pudesse acompanhar todo o conteúdo de forma
igualitária aos demais alunos sem deficiência.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
182
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Na adolescência, isolava-me na leitura de livros da bi-


blioteca de meu tio e de enciclopédias e revistas solicitadas e
ofertadas pelo meu pai. Este, muitas vezes com a intenção de me
proteger, propiciava a minha exclusão ao não permitir a minha
participação em atividades escolares como excursões e festas.
Passada a fase da adolescência, ao adentrar na fase adulta, tor-
nei-me uma pessoa insegura, tímida e antissocial.

A escolha da carreira jurídica foi pensada, pois nem to-


das as profissões seriam compatíveis com minha deficiência, po-
dendo acarretar falsas expectativas e acentuar o complexo de
inferioridade. Concomitante, nesse período, houve namoro, casa-
mento e a conclusão do curso de Direito. No início da década de
1990, após namoro de quatro anos, casei-me com o meu primeiro
e único namorado, moço educado, inteligente, engenheiro mecâ-
nico com futuro promissor. A realidade, porém, nos mostraria que
um diploma não era sinônimo de ascensão profissional.

Como em todo relacionamento, as diferenças logo se re-


velam. As preocupações financeiras, as incertezas do setor econô-
mico e a dificuldade de emprego na capital paulista, onde fixára-
mos residência, fez com que a esperança de um futuro melhor, na
“Terra do Sol Nascente”, levasse meu marido para o Japão, onde
trabalhou por quase dois anos. Em meio a isso, a gravidez do meu
primogênito e a distância angustiante de meus pais falaram mais
alto. E, deixando para trás casa montada e cursos complementa-
res para o aperfeiçoamento profissional, retornei à casa de meus
pais em Corumbá/MS. Saí de lá somente com o retorno do meu
marido, depois de dezessete meses trabalhando no Japão, o que
exigiu nova adaptação na vida conjugal, então com um bebê, já
com quase nove meses de vida.
DEPOIMENTO: VIOLÊNCIA - Rita de Cássia Fuentes Luz Suenaga 183

Pensávamos que meu marido poderia dar continuidade


à vida laboral no Brasil, porém, com a escassez de emprego com-
patível com a sua formação e a preocupação de prover o sustento
da família, as terras orientais, novamente, foram a luz no fim do
túnel para os nossos problemas. Só que não. Dificuldades de tra-
balho e um acidente de trânsito sofrido por meu esposo fizeram
com que retornasse ao Brasil em oito meses, ocasião em que eu
já havia mudado para Piracicaba/SP, com meu filho.

Nessa fase, começam os desentendimentos, porque so-


mente eu estava trabalhando em escritório de advocacia – que
montara com amigas de faculdade –, enquanto ele permanecia
em casa estudando para concursos públicos, por falta de vaga no
mercado de trabalho.

O machismo, somado à crescente crise econômica que


assolava o Brasil, favorecia nossas constantes discussões. Sofria
ameaças, humilhações e intimidações – violência psicológica, nes-
se período desconhecida por mim. Entre acertos e desacertos, es-
tudando juntos no período noturno para concursos públicos, eis
que, em 1995, meu marido alcança o tão sonhado emprego na
Receita Federal. Nessa época eu estava grávida do segundo filho.
Fomos morar em Marília/SP e voltei a ser apenas e tão somente
dona de casa e mãe, o que ficou registrado na certidão de nasci-
mento do nosso segundo filho. Embora advogada, tive que aceitar
em silêncio tal imposição.

Sempre com o objetivo de progredir e, para a alegria de


todos, no ano 2000, o pai de meus filhos foi aprovado em con-
curso e iniciou a carreira de auditor fiscal em Corumbá/MS, onde
passamos a residir, nós e os nossos três filhos. Como os meninos
já estavam em idade escolar, retomei minha vida profissional. Fi-
cava meio período no escritório de meu pai, também advogado,
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
184
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

onde por dez anos tive a graça de Deus de com ele aprender e
compartilhar processos cíveis, criminais e previdenciários.

Já estabilizados, no ano de 2010, uma promoção de ofí-


cio fez com que, a contragosto dos meninos e meu, nos mudásse-
mos para a Campo Grande/MS. A vida, porém, nos traz surpresas,
e ao completar dois anos de nossa mudança, em outubro de 2012,
meu marido veio a falecer, acometido de um tumor em estágio
avançado.

Quando fiquei viúva, meus dois filhos mais novos – já


adolescentes – residiam comigo e o mais velho cursava faculdade
em outro estado. Incentivada por eles, em 2014, retomei a minha
profissão, ingressei em um curso de pós-graduação e, nos mo-
mentos de solidão, buscava distração em chats da internet.

Nesse período, fiz amizade com um homem que mais


tarde viria a saber que se tratava de um psicopata. Muito carente
e sozinha, não demorou para ser conquistada com sua lábia. Três
meses de conversa virtual foi o bastante para ele vir de Porto Ale-
gre/RS, de mudança para Campo Grande/MS.

No início tudo transcorreu com tranquilidade, porém,


decorridos dois meses, iniciaram-se as implicâncias com as mi-
nhas redes sociais e amigos homens que faziam parte dela. Es-
tes, aos poucos, foram sendo excluídos por ele, que até minhas
senhas já tinha conseguido. Segundo ele, mulher que ficava em
redes sociais era “vagabunda”.

Mantínhamos um relacionamento discreto sem posta-


gens na mídia, porém, em dezembro de 2014, os desentendimen-
tos fizeram com que eu, de todas as formas, tentasse me libertar
da opressão e domínio exercido por ele. Pensei que uma viagem
ao exterior com meus filhos seria a oportunidade de mandá-lo
DEPOIMENTO: VIOLÊNCIA - Rita de Cássia Fuentes Luz Suenaga 185

embora de casa. Alguns acontecimentos, porém, me impossibili-


taram e, no regresso, tomei coragem e entrei com a medida pro-
tetiva, na Casa da Mulher Brasileira.

Foi muito difícil, senti um misto de vergonha e constran-


gimento por exercer a advocacia e conhecer alguns delegados,
juízes. Apesar disso, os entraves burocráticos foram imensos. Os
atendentes não acreditavam, encaminhavam-me para psicólogas,
desacreditavam que meu celular estava interceptado.

Todas as ligações que eu fazia eram rastreadas por ele.


Em vários telefonemas que recebia dele eram infindáveis as ame-
aças, de que: “isso não ficará assim”, “mulher nenhuma nunca me
disse não”, “não sei lidar com o não de uma mulher, ainda mais
de você”. Houve muitas tentativas de empréstimos no meu nome,
sem contar o meu pavor de sair de casa e encontrá-lo na rua ou
onde eu fosse.

Foram muitos meses para superar esse trauma! Mas,


graças a Deus, com a ajuda de familiares e de uma pessoa muito
especial, acreditei no amor novamente e consegui continuar a vi-
ver e a ter esperanças em dias melhores.
Depoimento: Violência 187

DISCRIMINAÇÃO E CONQUISTAS NO ESPORTE

Josiane Maria Poleski1

M
e chamo de Josi. Nasci já com perda bilateral profunda,
não ouço nada. Tenho três irmãos, um deles também é
surdo, sou a caçula da família. Todos eles vieram do inte-
rior do Paraná (Mallet), devido ao meu irmão que precisava de es-
cola “especial”. Sou a única curitibana. Sempre tive meus estudos
sem intérprete/tradutor de Libras (Língua Brasileira de Sinais),
desde o ensino fundamental até a especialização.

Até aos meus 15 anos de idade, aproximadamente, es-


tudava em duas escolas ao mesmo tempo, sendo uma normal e
outra “especial”. Sou formada em Administração e concluí duas
especializações. Estou fazendo uma terceira especialização com
ênfase na área esportiva.

Quando completei os 18 anos de idade, tinha em mente


ser uma servidora pública na área administrativa. Passei no con-
curso de um Conselho Regional, e após passar todas as etapas,
fui excluída do concurso porque uma das atribuições era o aten-
dimento telefônico. Relutei para não perder a vaga, sugeri que o
atendimento telefônico fosse realizado por outro servidor e eu
faria todas as demais atribuições. Foi um baque para minha vida
ao perceber que o mundo pode ser tão cruel com as pessoas com
deficiência.

1 Servidora pública federal. Graduada em Administração. Especialista em


Educação Bilíngue para Surdos e em Gestão Pública. Cursa MBA em Ges-
tão do Esporte. Possui domínio avançado de sinais internacionais e Libras
(Língua Brasileira de Sinais).
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
188
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Alguns meses depois fui admitida em uma empresa pri-


vada. Trabalhei lá por quase seis anos, conciliando estudos, traba-
lho voluntário e prática esportiva.

Mas ainda não satisfeita com a vida profissional, buscava/


lutava para passar em concursos, até que um dia passei para uma
Instituição educacional federal. Fiquei muito feliz, mas ao mesmo
tempo com dúvida, pois tinha uma viagem marcada para minha
participação no Mundial de Futsal de surdos, como representan-
te do País. Tinha esta dúvida cruel em aceitar ou não. Tinha uma
resposta em mente: caso esta Instituição aceitasse meu afastamen-
to para participar no Mundial, aceitaria a admissão, senão, “cairia
fora”. O esporte é minha paixão e não troco ele por nenhum outro
segmento. Não me arrependo até hoje da minha decisão, pois es-
tou há quase nove anos no serviço público e não tenho problemas
de comunicação e nem de trabalho com os colegas.

Minha caminhada como atleta surda foi difícil, porque eu


tive que conciliar a vida pessoal com o esporte. O esporte come-
çou através do incentivo escolar, quando tinha um festival escolar
para pessoas com deficiência da cidade. Houve uma competição
de corrida, quando recebi minha primeira medalha de participa-
ção. Ali despertou minha paixão pelo esporte. Lá se foram quase
29 anos desde a primeira medalha, ainda a guardo com carinho.

Depois disto, percebi que tinha muita habilidade em pra-


ticar Futsal nas aulas de Educação Física, e o professor da escola
de surdos me incentivou a entrar em uma escolinha de futebol,
mas abandonei anos mais tarde, por motivos de discriminação
e por me sentir sozinha durante treinos. Nesta época não tinha
acessibilidade e a sociedade ainda desconhecia a Libras. A comu-
nicação foi difícil, apesar de saber que o esporte era mais por con-
tato visual, não me sentia bem ao participar dos treinos.
DEPOIMENTO: VIOLÊNCIA - Josiane Maria Poleski 189

Descobri, por acaso, em setembro de 2009, quando


ocorreram os Jogos Surdolímpicos, que um atleta brasileiro surdo
ganhou uma medalha inédita de judô para o Brasil. A partir des-
se momento fiquei pensando:”Será que tem outras modalidades,
além de Futsal?” Fui pesquisar e descobri a Confederação Brasi-
leira de Desportos de Surdos (CBDS). Foi a partir daquele ano que
aumentou o número de surdos praticantes nos esportes do Brasil.
Em 2011, a Confederação manifestou o interesse em competir no
Mundial de Futsal, desde então, estou na Seleção.

Tive uma longa trajetória com a Seleção Brasileira que


não começou recentemente, mas sim em 2011, na Suécia. Fomos
para o Mundial desta modalidade e gênero e ficamos em 11º lugar
– na verdade, último lugar. Seis jogos, seis derrotas por goleada,
incluindo uma por 23 a 0 para a Rússia, que seria campeã. Isso
mesmo, 23 a 0! Eu particularmente sofri muito por ser capitã da
primeira equipe da Seleção Brasileira de Futsal formada. Às vezes
penso que não cumpri o papel correto naquele campeonato. Eu
não estava disposta a passar por tudo aquilo de novo. Então, ini-
ciei um trabalho diferente, juntamente com outras meninas que
tinham papel fundamental em suas Associações de Surdos. Foi
uma luta diária na CBDS, assim como em todo o Surdodesporto.

A partir dali, nos tornamos as principais líderes e deixei


de lado a faixa de capitã. A faixa de capitã é usada para a comu-
nicação com os árbitros dentro da quadra/campo. Esta não era
minha principal função. Fomos buscar encontrar novos talentos,
atletas mais novas.

Com o passar do tempo, me tornei uma líder para con-


duzir a equipe dentro e fora da quadra/campo, para que as atletas
surdas pudessem alcançar seus sonhos, quando achassem que
era impossível, devido à limitação financeira, à falta de apoio.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
190
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Colocava na cabeça delas que nada é impossível, que pode ser


difícil sim, mas há um jeito para as coisas se tornarem mais fá-
ceis. Incentivava para não desistirem assim, de repente. Quando
tivessem um problema ou vontade de desistir, que viessem falar
comigo antes de tomar uma decisão, para que eu pudesse expli-
car que para viver a vida é preciso ser paciente e persistente, se
quisermos alcançar algo.

Passo a passo, fomos conseguindo vencer. Veio o título


do Pan-Americano de 2012. Depois, o bicampeonato no Sul-Ame-
ricano em 2013 e 2014. Neste último fui capitã. Nos dois anos an-
teriores não herdei a faixa de capitã porque trabalhava como vo-
luntária na CBDS e não queria gerar conflitos de interesse. Neste
período fomos beneficiadas pelo Programa Bolsa-Atleta federal.

Em 2015 disputamos nosso segundo Mundial, na Tailân-


dia. Surpreendemos o mundo e ficamos com o vice-campeonato
do planeta. Sim, saímos do último lugar para o segundo. Fui capitã
deste vice-campeonato. E este foi o último ano do benefício do
Bolsa-Atleta recebido por nós, que foi essencial para a preparação
da nossa conquista inédita. O ouro escapou e, nesta época, não
sabíamos se foi por falta de sorte ou de fé, perdendo mais uma
vez para Rússia por 3 a 2. Numa preparação de três anos a gente
causou espanto em quase todo o mundo, que não acreditava em
nossa evolução. Recebíamos muitos deboches durante o evento.
Foi incrível essa participação, pois ganhamos o respeito de todos
os países que lá estavam.

Não me senti completa sem este ouro mundial tão


sonhado. Lutei com a equipe, apesar de todas as dificuldades
que passamos. A equipe unida foi fundamental para que o ob-
jetivo fosse atingido anos mais tarde. Não desisti, junto com
a equipe brasileira, de nosso sonho depois da Tailândia. Não
DEPOIMENTO: VIOLÊNCIA - Josiane Maria Poleski 191

haveria campeonato internacional de futsal num espaço de 4


(quatro) anos, mas optamos por disputar o futebol de campo no
Deaflympics 2017, uma espécie de Jogos Olímpicos para surdos,
na Turquia. Fomos bronze, que foi bastante comemorado como
dupla conquista: primeira medalha de modalidade coletiva e pri-
meira medalha de categoria feminina, na história da CBDS. E era
apenas nossa estreia internacional nos gramados. Tivemos apoio
do Governo Federal com as passagens aéreas.

Havia a esperança de voltar a receber o Bolsa-Atleta, po-


rém, a contingência federal em 2018 impediu. Para piorar, não fo-
mos contemplados para categoria surdolímpica nem mesmo para
paralímpica ou olímpica – como um reforço, mesmo tendo resul-
tado obtido no maior evento poliesportivo mundial de surdos.
Não desistimos, fomos buscar outras alternativas para realizar o
sonho. Fizemos “vaquinhas”, rifas e conseguimos dois patrocínios
pequenos, mas muito importantes.

Ninguém de nós desistiu da preparação para esse Mun-


dial 2019. Quando uma tinha vontade de desistir, outra ajudava a
erguer para que o sonho fosse aquecido ali, e não apagado. Con-
tinuamos na luta mensalmente, até irmos para o nosso terceiro
Mundial. Sabíamos que seria difícil para todos nós, porque iría-
mos enfrentar seleções com mais apoio pelos seus Governos Fe-
derais e patrocinadores e muito bem preparadas. Não tememos!

Exatamente no dia 16 de novembro de 2019 veio a re-


compensa para cobrir todos os sacrifícios: a perda dos momentos
com familiares e tudo o que tivemos que deixar de lado para se-
guir esse sonho. É isso: bastava acreditar, ter a união da equipe.
Mas o principal de todos foi a fé que cada um de nós tinha. Enfim,
vencemos por 4 a 0 a Polônia, campeã europeia de 2018 e equipe
com investimento governamental. E hoje podemos dizer: “Somos
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
192
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

brasileiras, com muito orgulho e com muito amor!”. Somos cam-


peãs do Mundo!

Até hoje, ninguém acredita que fomos conquistar o ouro


com nossos próprios recursos financeiros, por conta própria, devi-
do ao pouquíssimo apoio financeiro que recebemos.

Neste Mundial, revezamos a faixa de capitão para testar


o emocional de cada uma que recebia esta tarefa. Todas tiveram
suas emoções controladas e cumpriram muito bem este papel.
Como eu disse antes, o papel de capitão é só conversar com árbi-
tros e tentar liderar o jogo dentro da quadra, mas nada de man-
dar fora da quadra. Todas sabiam da importância de cumprir seu
papel: demonstrar o comportamento adequado, ter respeito, ter
união e fazer se sentir uma família quando juntas.

Então, acredito que toda a trajetória relatada até aqui


foi uma superação. Acredito que nunca foi sorte, e sim sempre
foi Deus. Ele sempre tem seus planos para cada um de nós. Como
dito, foi com muita dificuldade. Sem patrocínio, sem bolsa, sem
nada. Não somos nem do programa paralímpico e não tivemos
mais apoio do Governo Federal desde o fim de 2017. Hoje enten-
do que tudo foi Deus para que seus planos fossem executados no
momento certo e maravilhoso para Seleção Feminina.

Posso dizer que liderar uma equipe não é nada fácil. Você
pode ser atleta, intérprete, coordenador, assistente técnico e tudo
mais, ao mesmo tempo. Multifunções que eu tive que lidar e execu-
tar com a Seleção. Você é cobrado o tempo todo para que tudo saia
do jeito que a Torcida/Diretoria quer. Às vezes eles não entendem
nem veem o que se passa por trás da equipe. Enfim, é preciso ter
muita paciência e persistência para conseguir a confiança de todos
de que é possível realizar o sonho de cada um, no tempo certo.
DEPOIMENTO: VIOLÊNCIA - Josiane Maria Poleski 193

O maior desafio de uma atleta surda no cenário brasilei-


ro atual é treinar com a equipe devido à falta de apoio financeiro.
Diante da quarentena, fica cada vez mais difícil manter o ritmo de
treinos com a equipe, física e mentalmente. Além disso, também
há falta de reconhecimento por parte das autoridades de governo
e falta de apoio financeiro regularmente dos órgãos públicos e
privados. Porém, aos poucos, estamos quebrando esta barreira, já
que recentemente os órgãos públicos estão dando mais atenção
aos desportistas surdos.

Há outros obstáculos que uma atleta surda de futebol/


futsal enfrenta, por exemplo, sempre tem que mostrar que sabe
jogar sim. Às vezes sofremos preconceito, mas depois do vice-
campeonato de 2015, a modalidade feminina de Futsal ganhou o
respeito da comunidade surda, que tanto nos criticava em 2011.

O esporte oferece oportunidades para as pessoas com


deficiência, pelo seu bem-estar sim, porém é preciso ter apoio
fundamental dos familiares e dos amigos, para que a vida com
qualidade siga em frente. Só no esporte, perdi a conta de quantas
coisas aprendi: sinais internacionais, cultura das colegas de outras
seleções etc.

Hoje, meu conselho para crianças, adolescentes, enfim,


pessoas com deficiência que querem seguir carreira no esporte,
é nunca desistir de seus sonhos, nada é impossível. Há um jeito
para alcançá-lo, tudo em seu tempo certo. É preciso ter persis-
tência pelo que quer na vida. Se você quer algo, você pode, você
consegue! Para isso, é preciso acreditar em si para alcançar seus
objetivos de vida, seja ela esportiva, pessoal e/ou profissional.
Depoimentos 195

FAMÍLIA
Depoimento: Família 197

ADOÇÃO DE PESSOA COM


DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

Anônimo

O
lá, eu sou a E., e quero compartilhar com você o relato de
adoção de uma pessoa com deficiência em minha família.
Meu esposo M. e eu casamos muito jovens, ele 19 e eu
17, aos 21 anos já tínhamos nossos 3 filhos, D. a mais velha, H., o
do meio, e Dn., a caçula. Durante a primeira década do casamento
morávamos em uma casa de dois cômodos que alugamos, e com
muito sacrifício, conseguimos mudar para nossa casa própria, ain-
da com paredes sem reboco, chão bruto, sem portas nos cômo-
dos, mas felizes com a nossa casa própria.

Aproximadamente após 15 anos de casados, durante


este tempo fomos nos organizando financeiramente e com a es-
trutura da nossa casa, porém, ainda não tínhamos trabalho fixo.
Meu esposo era um bom pai, porém, não foi muito presente du-
rante o desenvolvimento dos filhos, e por conta disso, estes já
na adolescência, meu esposo e eu começamos a ter o desejo de
adoção por uma criança pequena, este foi o início da intenção
sobre a adoção.

O perfil que buscávamos então era uma criança de até


três anos, sem deficiência. Foram várias visitas a um abrigo da
cidade, sempre trazíamos alguma criança para passar o final de
semana conosco, até que encontramos a menina que nos chamou
a atenção, fizemos todos os procedimentos, enquanto isso, sem-
pre aos finais de semana, ela ia para casa ficar conosco. Foi um
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
198
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

tempo longo de espera até que desse certo a adoção, porém, não
deu certo o processo. A criança tinha uma irmã mais velha, e o
juiz só liberaria a adoção, se fossem as duas juntas, mas para nós
era inviável adotar duas crianças de uma vez, e por isso, acabou se
encerrando o processo. Depois de algum tempo, soubemos que
elas foram adotadas, mas por famílias diferentes, ou seja, foram
afastadas.

Fato é que acabamos nos apegando muito à criança, e


por conta disso, desistimos de iniciar uma nova tentativa. Conti-
nuamos por algum tempo ainda visitando aquela casa lar, algu-
mas crianças levávamos para casa no final de semana, inclusive,
tinha uma delas que era uma criança com deficiência motora, esta
criança acolhemos várias vezes em nossa casa, mas já não tínha-
mos mais a intenção de adotar.

Nisso se passaram os anos, e o ano era precisamente


2006: a situação da minha família é dos dois filhos mais novos en-
cerrando a faculdade, e a mais velha, D., recém-formada. Porém,
o casamento com o seu desgaste de anos, e os tantos adultérios
do meu esposo, além do vício com o álcool. Outra questão que as-
solava o meu esposo era de constantes pensamentos suicidas que
ele acabava compartilhando comigo, mas sem interesse de querer
procurar ajuda clínica para ajudar com essa situação, e cada vez
mais se acentuando a questão do alcoolismo.

D. foi trabalhar como Fonoaudióloga numa Escola de


Educação Especial, numa cidade do interior do Paraná, onde
conheceu W., na época com 5 anos de idade, e morava na casa
lar daquela escola. Ele era a única criança, os demais moradores
eram adultos que não tinham mais família. W. tinha um irmão
mais novo, sem deficiência, o qual já havia sido adotado, mas ele,
por conta da deficiência, não o fora. W. é um autista clássico e
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Anônimo 199

com deficiência intelectual, devido a sua lesão cerebral no hemis-


fério esquerdo, comprometendo todo o desenvolvimento de lin-
guagem, segundo o relato histórico, aprendeu a andar com cerca
de três anos de idade, ainda não falava, seu desenvolvimento era
muito lento, e uma criança apática, sem reação.

Foi no fim do mês de agosto de 2006, quando D. iniciou


seu trabalho nesta escola e leu os relatórios de W. sobre sua defi-
ciência e a respeito do histórico de maus tratos e abandono, sem
mesmo vê-lo ainda sentiu grande empatia pela criança. Como ele
estava com catapora, apenas quase um mês após o início de seu
trabalho neste local que pode conhecê-lo pessoalmente, porém,
durante este tempo, falou sobre ele para sua família.

Até que por volta do final de setembro W. volta a fre-


quentar a escola e finalmente D. o conhece, e só se fecha o ciclo
de um sentimento de amor por aquela criança que havia se inicia-
do. Na época não existia os recursos de um smartphone para tirar
uma foto e enviar para a família, mas assim que conseguiu, ela
pôde nos relatar como ele era.

D. começou a sentir em seu coração o desejo de ado-


tar W., porém, recém-formada, solteira, certamente a justiça não
daria chance para esta adoção. Mas o amor por W. foi crescen-
do. Eu só o conhecia por fotos, mas o interesse em conhecê-lo e
mesmo poder dar amor para ele foi aumentando. Pedíamos para
a direção da casa lar liberá-lo para passar algum final de semana
conosco, mas sempre era negado, por conta do autismo e cerca de
400km de distância entre a cidade que D. e W. estavam e a nossa
casa, então só ficávamos na curiosidade.

Em dezembro D. saiu de férias e retornou para nossa


casa, na época a tecnologia não era tão avançada e ficamos sem
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
200
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

o contato dele, porém, decidi junto com minha outra filha Dn.,
irmos conhecê-lo quando D. voltasse de férias, e assim aconteceu
no final de janeiro. W. passou dois dias conosco no apartamen-
to que D. morava, em nenhum momento ele estranhou, era uma
criança apática e nem pegar num copo sabia. O levamos a um clu-
be da cidade e não sabia sequer usar o brinquedo do parquinho,
pouco sorriso esboçava.

Na segunda e última noite então minhas filhas e eu fo-


mos orar para buscar a direção de Deus na decisão da adoção.
Meus filhos já adultos, com estabilidade financeira e iniciando
uma nova etapa o aproveitar da vida, mas a chegada do W. em
nossas vidas nos fez entender que não tinha sido por acaso que
D. havia ido trabalhar numa cidade longe de casa, e eu não hesi-
tei, pois sempre fui muito cuidadosa com meus filhos, sentia que
Deus nos apresentou W. para que ele pudesse ser amado, ter uma
família, algo que nunca havia tido. No outro dia, pela manhã, fui
atrás de um advogado e pedi a guarda dele.

Foram apenas dois meses de espera e, no final de março


de 2007, recebi a ligação de que a guarda havia sido liberada. Meu
esposo ainda relutante, com medo de que não desse certo, po-
rém, pintou o quarto de azul, o preparamos com os móveis para
a chegada dele. E meu esposo e eu fomos buscá-lo. Ao chegar na
Escola Especial em que ele estudava e D. trabalhava, a professora
de W. relatou que parecia que ele sabia o que iria acontecer, pois
estava muito feliz, irradiante, diferente da maneira como costu-
mava ser.

W. ao se deparar com meu esposo agarrou no pescoço


dele e começou a passar a mão em seu rosto, na verdade foi amor
à primeira vista dos dois, não paravam de se olhar! No dia seguin-
te retornamos para a nossa cidade, D. pediu demissão da escola
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Anônimo 201

e foi junto conosco, não houve estranheza ou desorganização da


parte de W. em nenhum momento.

Foi uma alegria a chegada dele. Tratado como o bebê da


casa, iniciou-se uma nova dinâmica na família: terapias, cuidados
no desenvolvimento, não tínhamos noção do que era o autismo,
não tínhamos ninguém da família com a deficiência, tudo novi-
dade e adaptações. Durante muitos anos eu tive medo da mãe
biológica dele aparecer e o querer de volta. Dizia que sumiria com
ele, mas que ela não sentiria nem o cheiro de W.

Por conta dos cuidados com W., nossa família passou a


ser mais unida, meu esposo abandonou a prática do alcoolismo,
esqueceu as ideias de suicídio e nos aproximamos mais como ca-
sal. M. se realizou na paternidade e cuida de nosso filho de uma
maneira ímpar.

Ao longo desses anos, W. apresentou três sérias crises


de desorganização, que exigiu mais do cuidado da família para
com ele, graças a Deus todas elas superadas. Apresenta autoa-
gressão, com mordidas no braço quando contrariado ou bate a
cabeça na parede quando deseja expressar algo, essas são nossas
preocupações. Tem uma saúde fragilizada, alergias respiratórias e
alimentares, exigindo cuidados também nesta parte.

O ano é 2020, W. está com 18 anos de idade, com 1,80


de altura, barba no rosto, e ele tem se desenvolvido aos poucos,
ainda sua fala é cheia de balbucios, e alguns deles identificamos
como algumas palavras. Ainda não há controle de esfíncteres,
precisa de ajuda para banho, alimentação, porém, ele já progre-
diu em muita coisa. Terapias, não vai mais, apenas na escola espe-
cializada para autistas, e lá existem alguns atendimentos extracur-
riculares. Ele ama a escola. Gosta também da praia, e em todas as
férias fazemos questão de levá-lo, o acalma.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
202
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Um dos filhos já se casou, já temos netos, e todos enten-


dem que W. precisa de cuidados, carinho e de amor. É um jovem
feliz, se alimenta de quase tudo, gosta de ouvir música e anda
o dia todo pelo grande quintal que tem em casa. É o motivo da
união da família.

Ainda não sabemos em que ponto ele chegará no seu


desenvolvimento, como será o amanhã... tem dias que são difí-
ceis, não dá para enfeitar ou romantizar o autismo, mas é o meu
filho, um amor que não dá para se mensurar e nem dizer que é
maior ou menor se comparado aos demais filhos.

Quando temos um filho biológico não sabemos se terá


deficiência ou não, quais serão suas características específicas e
nem sobre seu comportamento. O filho biológico ou o filho de
adoção tem e nos dá a mesma força do amor.

Este é o relato de uma mãe que escolheu amar alguém


que desejava ser amado, uma mãe que tem o amor incondicional
por seus quatro filhos.
Depoimento: Família 203

CUIDANDO DO FILHO COM


SÍNDROME DE DOWN

Marinette Costa Navea1

O
meu filho F. nasceu em 18 de agosto de 1983. Ele foi es-
perado com muita alegria, com a esperança de ser tudo
perfeito, que é o que a gente tem como expectativa, tanto
que eu decorei o quartinho dele todo verde. Chegou o dia! As
primeiras horas foram de alegria, mesmo. Em seguida, foi que-
brada por mil perguntas que fiz ao pediatra. Finalmente, a con-
firmação da Síndrome de Down. Ele entrava no quarto e pergun-
tava se nós tínhamos algum mestiço de japonês na família, muito
misterioso. Eu falei não, meu marido é chileno e as crianças são
bem amendoadas, porque as outras duas são muito parecidas
com japonesas, tipo você, com os olhinhos bem puxados… então
ele ficava intrigado. Não havia ainda o teste do pezinho, ou
pelo menos, não foi feito nesse caso, claro. Mas F. já tinha as
características, como a língua maior do que seria a normal...
sim a gente também já percebe logo, então ele estava meio
incrédulo, mas aí ele confirmou. Então, veio a certeza! Imagina
o baque, a dor, a angústia, tristeza... nossa! A minha e a do pai.
A gente evitou receber visitas, não que não quiséssemos que o
vissem, mas porque os vizinhos curiosos, cada um que vinha, fi-
cava olhando, claro, e eu sofria porque a gente estava de luto...
imagine esperar nove meses o seu filho, tudo bonito, tudo en-
feitado e você recebe uma notícia dessas... não tem coração que
aguente! Eu me sentia sozinha, longe dos nossos familiares. As

1 Mãe. Avó. Cuidadora. Dona de casa.


CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
204
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

crianças eram muito pequenas, as irmãs, J. estava com 3 anos, R.


tinha 5 para 6 anos, por aí… uma diferença pequena. Nessa hora, o
que a gente vai fazer? Só nos restava parar de chorar e partir para
a luta. Aí, comecei a procurar um lugar certo para a estimulação.
O tratamento consistia em fisioterapia, terapia ocupacional, fo-
noaudiologia, o que foi muito complicado, porque F. nasceu numa
época de muita dificuldade financeira em nossa família, em razão
da crise que o país atravessava, o que levou ao desemprego do
meu marido. Eu batalhava sozinha, mas felizmente, esta situação
de desemprego durou apenas um mês, aí começamos a procurar
um lugar pra ele fazer a “fono” e o levamos também a um neuro-
logista, que nos atendeu com muita habilidade: falou que F. seria
um menino muito bonito e se mostrou super animado, coisa rara
de se ver, agiu diferente da maioria dos médicos que te derrubam,
eles não têm a menor generosidade, eles não demonstram sensi-
bilidade diante uma mãe que tem um filho com uma deficiência.
É muito complicado. Então começou a fazer a estimulação, mas
durou pouco porque surgiu uma gripe, eu o levei ao hospital e aí,
não saí mais de lá, porque ele estava com pneumonia. Aí começou
a minha luta no hospital. Era um mês em casa, dois no hospital,
depois era uma semana em casa, depois no hospital, até que ficou
direto no hospital, quando descobriram que ele tinha um sopro
no coração, uma válvula mal formada também, o que o levou à
necessidade de uma cirurgia cardíaca. Nesse momento, tivemos
que enfrentar, também, a burocracia do plano de saúde, que não
cobria cirurgia por doença congênita, passando então a ser inter-
nado como paciente do serviço público de saúde. Isto nos deixou
muito preocupados com o tipo de atendimento que poderia ser
dispensado a ele. Mas foi a maior surpresa! O IC em São Paulo e
o acompanhamento do cardiologista foram decisivos e da melhor
qualidade. Veio a internação, só que eu não podia ficar junto com
o meu bebê... ele tinha nesse momento pouco mais de dois me-
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Marinette Costa Navea 205

ses. Olha o sofrimento de uma mãe que ia para casa e só podia


visitá-lo às 3:00 da tarde, uma vez por semana, e por uma hora,
mais ou menos. Me lembro de um dia, quando eu cheguei em
casa, as meninas estavam brincando no quarto com os brinquedi-
nhos, R., maiorzinha, com uma foto do F. no colo, como se fosse
um bebezinho, assim... o embalando. Nossa, isso daí doeu mui-
to. Sabia que elas também sofriam, entendi que sofriam muito,
apesar de não saberem, exatamente, o que estava acontecendo...
sobre a síndrome de Down. Então eu conversei com um psicólogo
sobre como abordar esse assunto, como é que eu deveria agir...
ele me orientou a aguardar porque elas mesmas perguntariam.
Então nas conversas eu dizia que F., o irmão, ia precisar de muita
ajuda delas, que eu tinha que cuidar bastante, porque ele tinha
um probleminha. Então foi assim, tanto que, quando eu fazia os
exercícios nele, elas também passaram a fazer nas bonecas delas.
Daí chegou um dia e, ainda muito pequenas, elas perguntaram o
que ele tinha, porque já haviam percebido uma diferença, então
eu expliquei.

Durante a internação, logo foi necessário fazer um cate-


terismo. Ele já estava com quase um ano... no dia de seu aniversá-
rio, levei as meninas para vê-lo. Não faltaram o bolo e as bexigas…
ele estava todo entubado, aí foi a coisa mais incrível quando ele
viu as meninas: ele riu! Ele que era sério, fechado, quando viu
as meninas, acredite, ele as reconheceu e riu para elas. Ah, meu
coração parecia querer explodir de emoção! Hoje temos essa lem-
brança muito forte de sua passagem pelo hospital, que faz parte
de sua história de vida. Depois do aniversário, uma semana mais
ou menos, eu recebi a notícia de que estava marcada a cirurgia
cardíaca dele, para o dia seguinte. Aí quase tive um troço. Ficamos
todos na expectativa de um resultado que não tardou a nos trazer
nova esperança: deu tudo certo! Eu fiquei mais de uma semana
sem vê-lo porque não tinha condições e só ia lá pra receber o bo-
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
206
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

letim médico. Uma semana após a cirurgia, F. recebeu alta. Nos-


sa vinda para casa, todos reunidos, era gratificante, mas outras
questões começaram a minar nossa convivência: tínhamos que
administrar a curiosidade e o preconceito dos vizinhos! Aliás, isso
ainda é uma coisa inevitável não somente em relação ao F., mas
também às pessoas que são diferentes.

Passado esse período do pós-operatório, nossa vida fa-


miliar deu uma guinada. Meu marido conseguiu novo emprego
e nos mudamos para Campinas. Lá, F. foi colocado numa escola
regular, onde ficou durante dois anos convivendo com crianças
ditas normais. Isto foi muito positivo para o seu desenvolvimen-
to. Em casa, lhe era dado o mesmo tratamento recebido pelas
irmãs. Assim, a estimulação se fazia presente, na forma como os
três eram criados, sem diferenciação. Mais tarde encontrei uma
Associação de Pais de filhos com Síndrome de Down, o que foi
muito importante, tanto para F., como para nós pais, pois é onde
esses pais recebem apoio, orientação e dão oportunidade a seus
filhos de conviver socialmente, uns com os outros. Crianças que
se tornam jovens/adultos, de forma o mais normal possível, com
independência e autonomia. Obviamente, ninguém quer ter um
filho com deficiência, mas meu filho é maravilhoso, eu o adoro e
hoje em dia F. tem uma vida sim, bem normal, ele sabe escolher
a roupa dele, fica sozinho em casa quando há uma necessidade,
inclusive ele tem a chave da casa. Trabalha em um supermercado
e, quando preciso chegar em casa depois dele, quando às vezes
acontece de eu ir no médico à tarde, por exemplo, e de repente
ele chega antes de mim, ele entra tranca a porta principal, abre a
outra da cozinha, se cuida e prepara lanche para ele. Quando eu
chego, ele está lá deitado, descansando. Eu sei que quem tem um
filho com síndrome de Down, tem que trabalhar muito para poder
fazer essa pessoa se integrar na sociedade e se sentir acolhida,
sem nenhum constrangimento. Então é um conselho que eu dou
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Marinette Costa Navea 207

para as mães. Participe de grupos específicos. No Facebook tem


uma página das mães que têm filhos com deficiência, onde podem
pedir ajuda, orientação, e receber também, a atenção de todos...
todo mundo dá uma palavrinha de carinho, encorajamento... eu
acho que nós temos que fazer isso mesmo, porque quando F. nas-
ceu, eu era sozinha e sofria muito por não ter com quem desaba-
far, conversar, me sentia meio perdida. Apesar disso eu e o meu
marido levantamos a cabeça e fomos buscar orientação e aten-
dimento profissionais, até que F. chegou no ponto em que está.
Graças a Deus F. já é um adulto saudável, com habilidade artística
e tem seu próprio ateliê de pintura, onde passa horas dando vida
às cores, as quais sabe mesclá-las, de forma surpreendente com
sua criatividade. Mas nós passamos por muitas dificuldades, não
restam dúvidas. Quando pequenininhos, as mães se preparem.
É difícil, às vezes eles são internados por qualquer problema
de saúde, os quais se tornam maiores, por ser essa pessoa que
ainda temos que estar atentas e interpretar toda a situação pela
observação, pelo conhecimento das suas reações e, justamente
por isso, você sofre, fica mais apreensiva. Mas é preciso ensinar,
ele aprende, entende... aí, de repente, ele sabe se comportar ade-
quadamente, e também respeitar as pessoas. A gente tem que
falar além do que está em livros, mas o que entendemos ser o
melhor para eles, nas diversas situações: dizer NÃO dói, mas é
necessário, caramba, como aos outros filhos, também. Eu tinha
que falar, me doía tanto... mas se a gente não fizer isso, com o que
se diz normal, senão, vira aí dono da vida, ainda mais sendo uma
pessoa com deficiência, você também tem que por limites, para
não ficar um coitado ou chamando atenção, não é mesmo? Daí
ser muito importante procurar educar como é o certo, mas sem
insistir: ensina, ele aprende, entende, e aí, de repente, sim, ele vai
saber, inclusive, se comportar socialmente, respeitar as pessoas,
cuidar do que é seu, ter certa responsabilidade, de acordo com as
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
208
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

suas possibilidades intelectuais. Ele adora festas, encontrar seus


amigos... quando ele vai às festas, em casa dos amigos, vai sozi-
nho. A gente o deixa à porta e depois vai buscá-lo à meia-noite,
que é o horário combinado. O F. nunca foi rejeitado em lugar al-
gum. Ele já teve uma namoradinha, então a situação é muito legal
porque eles cresceram juntos, as crianças se tornaram jovens, aí
chega aquela idade em que o namorico entre eles é inevitável.
Eles se apaixonam com intensidade. Quando ele começou a na-
morar, a gente percebeu crescer o sentimento, a paixão... é como
qualquer adolescente... não tem diferença dos “normais”... eles
sentem amor, raiva, desprezo... eu sei porque eu convivo com
meu filho, já sei quando ele não gosta das coisas... eu sei quando
ele não quer, mas olha, não teve jeito... até que um dia, ele mes-
mo acabou o namoro porque ela se jogou no pescoço de outro
garoto do grupo. Ele ficou muito bravo, muito bravo mesmo e,
até hoje, são apenas amigos. Em alguns aniversários dele, aqui
em casa, cheguei a ver os dois dançando juntos, mas assim, como
amigos, ela solta, ele também, nada mais que isso. Como é bonito
de ver esse sentimento entre eles!

Hoje, já adulto, eu penso muito no futuro. Minha maior


preocupação é porque eu já sou uma mãe idosa e tudo pode acon-
tecer… aí eu penso em depois que eu for, quem vai cuidar dele?
Quem é que vai se preocupar com o médico, porque ele faz checkup
cardiológico todo ano… eu já tenho anotado na caderneta as coi-
sas que devem ser feitas, para não esquecerem os cuidados para
com ele. Um dia eu falei: vocês vão achar as orientações, o perío-
do que tem que fazer atendimento médico, não quero jamais que
isso não aconteça na minha ausência. Não quero que F. apareça
malvestido, despenteado, cabelo grande ou barba malfeita. Ele tem
a independência dele, mas a gente tem que estar também olhan-
do, observando, esses fatos que preocupam a mãe, não todas as
mães que eu conheço, me preocupa que isso possa acontecer na
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Marinette Costa Navea 209

minha ausência, foi o que eu pedi, inclusive, pra não esquecerem


de cortar as unhas dele, que ele não consegue fazer. Ele faz tudo:
tomar banho, lavar a cabeça, se cuida, mas esse cortar as unhas, ele
não consegue, eu não deixo nunca de prestar atenção nisso.

Felizmente, ele tem noção de que, na minha falta, ele pre-


cisará ficar com alguém que cuide dele, e já fez a sua escolha. Disse
que quer ficar com a irmã J., hoje casada e com três filhos. Graças a
Deus eles se dão muito bem e a família dela é apaixonada por ele.

Artista plástico Felipe Guillermo Costa Navea


Depoimento: Família 211

PERDA DE VISÃO POR NEGLIGÊNCIA

Valéria Mendes Siqueira1

F
ui diagnosticada com retinose pigmentar aos 3 anos de ida-
de. A partir daí o oftalmologista sugeriu aos meus pais que
me internassem no Instituto Paranaense dos Cegos para eu
me acostumar com a vida que iria levar. Inconformados com o
primeiro diagnóstico e com a sugestão de internação, meus pais
não aceitaram a indicação do oftalmologista e sempre estudei em
colégios regulares de ensino. Da mesma forma, meus pais busca-
ram o melhor oftalmologista em retina na época, quando passei a
fazer o tratamento em Copacabana, no Rio de Janeiro/RJ.

Durante o tratamento, fiz parte de uma pesquisa inova-


dora. Tomei injeções dos 3 aos 15 anos, a cada seis meses, por
quinze dias seguidos, o que fez com que a degeneração da minha
retina ficasse estacionada no período entre meus 15 anos até 25
anos, quando engravidei, e a doença voltou a progredir.

Algumas lembranças de criança e de adolescente me re-


metem ao que hoje chamamos de bullying. Eu frequentemente era
chamada de “quatro olhos”, “ceguinha”, “fundo de garrafa”, etc.,
o que me fez ser uma adolescente muito agressiva. Era comum
eu bater naqueles que me xingavam. Sempre fui a melhor aluna
da escola em todos os níveis, porque fui autodidata em todas as
matérias, já que era muito difícil copiar do quadro-negro figuras

1 Advogada. Coordenadora no Brasil para Disability and Rehabilitation Pro-


fissional Association (2021 a 2025). Membro da Comissão dos Direitos da
Pessoa com Deficiência da OAB/PR, responsável pelo Centro de Inclusão e
Apoio à Pessoa com Deficiência da OAB/PR. Terapeuta Holística e Coach.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
212
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

geométricas, expressões matemáticas repletas de símbolos e


mesmo escrita corrida na velocidade das outras pessoas.

Creio que meus pais, durante a minha “aborrescência”,


sofreram bastante, porque eu sempre deixei claro que se um dia
ficasse cega de verdade, já que essa era uma sentença que pesava
sobre mim todos os dias, desde os meus 3 anos, eu me mataria.
E sabe o pior? Eu faria isso mesmo se tivesse ficado cega naquela
fase da adolescência.

Acho que, por causa da baixa visão, tive poucas amigas


de verdade, e isso me fez criar vínculos ainda mais fortes com
algumas pessoas que, junto com meus pais, foram realmente im-
portantes na minha vida (meu irmão, minha bisavó materna, mi-
nha avó e tia paterna, meu tio surdo irmão do meu pai, o padre da
igreja São Judas Tadeu).

Também, pela baixa visão e por ter bem poucas amigas,


criei vínculos profundos com meus animais de estimação, sendo
estes, muitas vezes, os únicos amigos que uma criança com defi-
ciência consegue ter durante a infância.

Minha trajetória e relação com o trabalho se iniciaram


aos meus 14 anos, trabalhando no escritório de contabilidade do
meu pai.

Creio que esta fase foi singular na minha vida e me pre-


parou para todo o restante em que fiquei de fato cega, pois, ape-
sar da baixa visão que tive, meu pai jamais me isentou das obriga-
ções que me foram atribuídas.

Lembro de quando eu não conseguia ler as letrinhas


minúsculas e coloridas de um formulário que teria que preen-
cher, ele datilografava um, como orientação, para eu saber o
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Valéria Mendes Siqueira 213

que cada campo pedia, e exigia que eu fizesse o mesmo com os


das demais empresas que eu era responsável (18 empresas). Da
mesma forma, quando as anotações a serem lançadas vinham
apagadas, pois se usava carbono para transcrever os dados em
todas as vias da nota fiscal, ele fazia minha mãe ditar – após o
horário do trabalho meu e dela – todos os dados que tinham que
constar nos livros de entrada, saída, controle de estoque, etc.
Com estes dados eu realizava o lançamento e emitia as guias de
recolhimento de impostos e taxas estaduais e municipais.

Na área pessoal não era diferente. Quem sabe o que


é uma RAIS sabe que se informa até a “alma” do empregado da
empresa. Este formulário exige todos os dados de todos os em-
pregados, de todos os meses do ano e de todo e qualquer verba
recebida por ele. E como foi dito anteriormente, meu pai preen-
chia um formulário para eu saber o que era requerido em cada
campo, e eu preenchia todos os demais, das 18 empresas que eu
era responsável.

Isso, na minha concepção, foi fundamental para toda a


minha vida, porque aprendi a fazer tudo o que posso fazer dentro
da adaptação necessária e a não transferir essa tarefa a terceira
pessoa. Facilitou muito, inclusive, o estudo do Direito, na gradua-
ção, pois quando entrei na faculdade já estava cega, mas total-
mente adaptada às necessidades que teria desde o primeiro dia
de aula.

Apesar de ter baixa visão, sempre fui vaidosa e assim


tive meu primeiro contato com a massagem modeladora. Mal sa-
bia eu que a minha vaidade me levaria a conhecer uma técnica
que, mais tarde, sustentaria a mim e a minha filha, sendo o meio
pelo qual iniciei uma trilha de conhecimento acrescido de paixão
pelas terapias holísticas.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
214
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Quanto a minha formação em Direito, antes de qualquer


coisa, aprendi a transformar livros e xerox em documentos aces-
síveis através de scanner e de um programa específico que trans-
formava a imagem em texto de Word e, assim, tive acesso a todo
material necessário ao meu estudo.

Também os professores da graduação não tiveram que


fazer qualquer adaptação às suas aulas, a não ser me fornecer a
prova em arquivo Word para que eu respondesse junto com meus
colegas na sala de aula, situação que fez com que muitos profes-
sores só descobrissem a minha deficiência quando eu requeria a
prova adaptada.

Durante a faculdade de Direito, também tive poucos


amigos e para dizer a verdade acho que tinha mais colegas que
não gostavam de mim na turma do que o contrário. Meu pai sem-
pre me dizia que quando chegávamos pela manhã na faculdade,
além de algumas pessoas ficarem totalmente mudas para não me
cumprimentar ou falar comigo, havia carteiras e cadeiras espa-
lhadas pelo caminho que eu teria de fazer para chegar até o local
aonde eu sentava. Além de que, é claro, eram raros os convites
para sair para um barzinho ou baladinha com meus colegas de
turma. Mas, dentre os poucos colegas que fiz, tenho a alegria de
trabalhar com um deles até hoje e de ter umas três colegas que
ainda mantenho o contato e tenho muito carinho.

Voltando para a minha graduação em Direito, o fato de eu


digitar rapidamente me facilitou anotar tudo o que meus profes-
sores passavam em sala de aula. Então não fiz uso de gravadores
ou de outros métodos que exigissem esforço maior, fora daquele
período, possibilitando, assim, que eu trabalhasse como massote-
rapeuta no contraturno, à tarde, sendo esta a principal forma com
a qual sustento a mim e a minha filha, até os dias atuais.
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Valéria Mendes Siqueira 215

Faço questão de dizer que sou eu quem sustenta a mim


e a minha filha porque este é outro período importante da minha
história. Como já disse, logo que engravidei o meu problema de
visão voltou a progredir e trouxe uma catarata de presente com o
nascimento da minha filha. Quando ela tinha 1, 2 anos fiz cirurgia
de catarata nos dois olhos. Costumo dizer que entrei enxergando
no hospital e sai de lá guiada pela ausência da visão que antes
da cirurgia era consideravelmente razoável. Usava 5,5 graus e 6
graus nos óculos, o que me permitia andar sem qualquer auxílio
de pessoa ou de bengala, ler letras em tamanho normal e até le-
trinhas da Bíblia, e levar uma vida pessoal e profissional dentro
dos padrões considerados normais para a sociedade.

Hoje sei que jamais deveria ter feito aquela cirurgia que
me fez entrar enxergando no hospital e sair dele guiada, pois, com
a doença degenerativa que eu tinha, a cirurgia de catarata repre-
sentava um risco enorme de ficar cega. Entretanto, além de não
ter tido essa informação antes de fazer a cirurgia, o grupo dos
médicos que me operaram garantiu que não havia risco algum.

Com a nova realidade de pessoa praticamente cega, meu


ex-marido e pai da minha filha foi embora e em seguida constituiu
nova família, ignorando absolutamente qualquer necessidade da
própria filha que temos em comum.

Então, neste período fiquei cega, fui abandonada e des-


cobri que já era traída há certo tempo. Não estava trabalhando, as
parcelas do seguro-desemprego haviam terminado e eu não tinha
dinheiro para absolutamente nada e ainda tinha a minha filhinha
de apenas 1, 2 anos para criar.

Confesso que, de fato, só me dei conta desta realidade,


no dia em que tive de limpar e desligar a geladeira da minha casa.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
216
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Não havia nada para colocar nela, bem como também não ha-
via nada nos armários, e sequer, um shampoo eu tinha em casa.
Como eu morava de favor em uma casa no terreno dos meus pais,
naquele período em que eu iniciava um processo de reabilitação,
eu comia na casa deles, tomava meu banho lá e dependia deles
para me auxiliarem com toda a logística minha e da minha filha
(escola, médico, etc.).

Neste início lembro de três passagens singulares que


marcaram a minha vida de “cega fresca”:

1. Quando eu, no cantinho da sala dos meus pais, bem na


ponta da mesa de imbuia que eles tinham, segurando mi-
nha filha no colo e chorando, perguntei se eles já tinham
contado para o meu irmão, que morava na época em New
York, se ele já estava sabendo que a irmã dele tinha ficado
uma inválida, que não servia para mais nada na vida;

2. Quando estava caminhando, lentamente, passo a passo,


para o local aonde eu estava iniciando a minha reabi-
litação, sozinha, por imposição minha, sem bengala,
porque eu tinha vergonha de haver me tornado “uma
mulher cega”, então caí de joelhos sobre um monte de
areia no meio da calçada, bem no centro da cidade, e
na frente de um rapaz que gargalhou e pior, caminhou
longas duas ruas, rindo de mim. Digo longas porque pa-
reciam nunca acabar, rindo desesperadamente da mi-
nha condição de pessoa cega, sem mobilidade, andando
suja, lentamente e chorando. Naquele dia e por conta
deste episódio, peguei a bengala pela primeira vez e de-
cidi que aprenderia a andar com ela para jamais passar
por aquilo novamente; e
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Valéria Mendes Siqueira 217

3. Quando tive que limpar e desligar a minha geladeira, por


não ter nada para por dentro dela. Lembro de que de-
pois que limpei tudo, fui me abaixando até ficar pros-
trada no chão chorando muito, desesperadamente, por
bastante tempo, porque não sabia o que seria de mim
e da minha filha dali em diante. Depois de chorar tudo
o que podia, decidi me por em pé e lutar por nós duas,
custasse o que custasse, doesse o que doesse.

Enfim, o início da minha cegueira foi uma fase muito difí-


cil, me sentia impotente, humilhada e com uma responsabilidade
enorme que era a criação de uma filha. Mas com o auxílio dos
meus pais, eu consegui retomar minha independência e autono-
mia, através da mobilidade com a bengala e do trabalho de mas-
soterapeuta.

Quanto ao trabalho de advogada, infelizmente constatei


que ainda existe muita discriminação às pessoas com deficiência e
que apesar desta classe profissional jurar defender os direitos de
todos, falta colocar em prática o juramento que faz.

Da minha parte, enquanto eu viver e Deus me permitir,


jamais deixarei de lutar pelos ideais de inclusão, dignidade, res-
peito e amor fraterno! E apesar de tantas coisas que já vivi, posso
dizer que levo no meu coração muito amor pelas pessoas que jun-
to comigo trilharam esta caminhada!

Gratidão!
Depoimento: Família 219

VIVER COMO ESPOSA, MULHER


E CUIDADORA

Izildinha Aparecida de Paula Gomiero1

D
esde pequena aprendi a conviver com a deficiência, visto
que meu pai possuía uma deficiência e então sempre con-
vivemos com a dificuldade e o preconceito que isso oca-
sionava. Foi aí também que aprendi o valor que existia no amor
pois, mesmo com todas as dificuldades, minha mãe sempre este-
ve ao lado de meu pai, que suplantava com vontade todo precon-
ceito contra suas limitações e falta de oportunidade em relação a
empregos e à forma que pudesse ganhar a vida. Nunca deixou de
trabalhar e tentar ser o provedor da casa.

Cresci e casei com um homem que prometia fazer com


que eu esquecesse tudo que já havia passado e que me sinalizava
um futuro feliz. Logo após nosso casamento, fiquei grávida e tive
meu primeiro filho, em uma gestação problemática.

Pouco tempo depois, estava eu frente ao problema do


alcoolismo: meu marido iniciou um aprofundamento no vício da
bebida e isto permaneceu por longos sete anos. Chegou a um
momento em que eu não mais queria conviver com isso. Deixei,
então, bem claro para ele e propus que procurássemos ajuda. O
único ponto bom que havia com relação à bebedeira de meu ma-
rido, se isso é possível, é que ele não era violento.

Após ter atingido a sobriedade, iniciou todo o processo

1 Mãe. Avó. Dona de casa. Ativista social. Natural de São Paulo/SP. Esposa de
Wilson Roberto Gomiero.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
220
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

para crescimento na sua vida pessoal e profissional. Diria que se


esforçou até demais, deixando às vezes de lado a convivência fa-
miliar para poder ter crescimento pessoal e profissional. Quando
tudo parecia que estava se encaminhando para que pudéssemos
ter uma vida tranquila e feliz, de repente surgiu em nosso cami-
nho uma doença incurável, a esclerose múltipla, que no decorrer
do tempo começou a cobrar o seu preço.

Primeiro fez com que ele se afastasse do serviço e pas-


sasse um período recebendo auxílio-doença do INSS, consequen-
temente, toda a nossa renda familiar sofresse uma enorme perda.
Esse fato levou meu filho, na época com 14 anos de idade, a pro-
curar um emprego para ajudar no sustento da casa e propiciar sua
formação escolar. Também eu, que desde que casamos não mais
trabalhava, passei a trabalhar para podermos manter ao menos
nossas necessidades atendidas.

Ao final de anos, finalmente, ele teve sua aposentado-


ria por invalidez concedida pelo INSS. Não que isto tenha me-
lhorado muito, mas ao menos tínhamos segurança quanto a ter
esse rendimento.

Tão logo começou sua doença, nós havíamos comprado


uma casa velha e ele aproveitou para reformá-la e deixá-la em
boas condições. Também aprendeu a virar-se na cozinha, nas ati-
vidades domésticas e supria assim a falta que eu fazia em casa,
por estar trabalhando e não termos, à época, como contratar
uma empregada para tais serviços. Embora com dificuldades,
éramos felizes.

Em 2000, novamente tivemos problemas de saúde com


ele. Em um primeiro momento achávamos que era devido à es-
clerose múltipla. Porém, com a evolução de seus problemas, vie-
mos a descobrir que tinha um tumor medular, o que exigiu que
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Izildinha Aparecida de Paula Gomiero 221

passasse por uma cirurgia de coluna, com mais de 10 horas de


duração e que alterou todo seu comportamento físico. Após dois
anos, sofreu uma queda e teve que passar por outra cirurgia, a
qual resultou numa lesão medular na altura de C3.

O que já era complicado ficou cada vez mais difícil. Além


de ter perdido toda a sensibilidade do corpo do pescoço para
baixo na primeira cirurgia, agora apresentava paralisia na perna
esquerda pela lesão, amortecimento e perda de força na perna
direita pela esclerose, perda de movimento dos braços esquerdo
pela lesão e amortecimento e perda de força do braço direito pela
esclerose.

Com isso, ele passou a depender de auxílio para quase


tudo, desde alimentação, banho, até algumas outras necessida-
des. Como conseguia ficar em pé por pouco tempo, com o auxílio
de uma pessoa ainda dava alguns passos e conseguia ir ao banhei-
ro. Dormíamos juntos na nossa cama de casal.

Com a evolução do quadro, tivemos que comprar uma


cama hospitalar para tornar mais fácil sua movimentação. Ele
também passou a utilizar uma cadeira de rodas e tivermos que
providenciar uma cadeira de banho. Começou também a ficar
difícil retirá-lo da cama para colocá-lo na cadeira de rodas e de
banho, então, lançamos mão de um guincho, desde 2000, está-
vamos nos envolvendo no Terceiro Setor, trabalhando nas asso-
ciações de pacientes para poder aprender a utilizar os serviços
públicos a que temos direito e também começar a atuar para ter
mais direitos. Como eu já havia parado de trabalhar, definitiva-
mente, por ter que tomar conta das suas necessidades no dia a
dia, passei então a acompanhá-lo em toda essa rotina de associa-
ções, conselhos de direitos, reuniões com políticos, viagens para
intercâmbio com outros pacientes e também para palestras sobre
esclerose múltipla.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
222
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

A partir de 2010, começamos a nos envolver com doen-


ças raras o que, no final, nos levou a participar, digo ele, a partici-
par do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência,
o CONADE, em Brasília, o que fazia com que tivéssemos que viajar
a cada dois meses.

Daí passamos a conviver com todos os problemas da


acessibilidade no Brasil, desde a questão do transporte terrestre,
transporte aéreo, hospedagem e até mesmo a falta de acessibi-
lidade para utilização de banheiros, o que ocorre até na própria
Secretaria Nacional da Pessoa com Deficiente, em Brasília.

Parece-me que o meu marido está tão concentrado na


sua participação nos conselhos, nas discussões, às vezes dá im-
pressão de que ele não está atento às necessidades que não são
atendidas para as pessoas com deficiência. E isso me causa re-
volta, pois acredito que o nosso trabalho não está sendo visto e
levado a sério como deveria.

Sempre digo a ele que, muito do que ele conseguiu e


muito do que nós temos, deveu-se a inúmeras vezes que tive
que me humilhar para pedir favores, para fazer valer os direitos
que não deveriam necessitar nem mesmo de ser pedidos. Te-
nho a impressão de que as pessoas adoram escutar os dramas e
posar de benfeitores quando atendem às necessidades que na
verdade são direitos.

Por diversas vezes tenho dito que, invés de ficarmos bri-


gando por uma enormidade de direitos, deveríamos brigar – com
todas as nossas forças – para atendimento de direitos básicos. Te-
mos muitos direitos, mas temos uma quantidade muito maior de
desrespeito a esses direitos.

Nós nunca passamos por uma situação de violência con-


tra nós, mas neste tempo todo que caminhamos neste mundo das
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Izildinha Aparecida de Paula Gomiero 223

pessoas com deficiência, cansamos de ver casos de famílias que


agridem seus deficientes, que se utilizam deles para conseguir
vantagens e inúmeros outros casos.

Bem, alterando esse assunto, para nossa vivência como


casal, posso dizer que até 2000 tínhamos uma vida absolutamen-
te normal. Porém, após 2002, em virtude da quantidade enorme
de remédios que ele toma para poder suplantar as dores neuropá-
ticas que o afligem durante quase todo dia, e também em função
da lesão medular e da perda de sensibilidade ocasionado, ele não
tem mais nenhuma atividade sexual, e isto resulta que hoje per-
siste muito mais a questão do carinho, cumplicidade e respeito
que temos um pelo outro.
Depoimento: Família 225

ENCARANDO A MATERNIDADE
E O AUTISMO

Samantha Tisserant Siqueira dos Santos1

O
autismo chegou na minha vida há quase 6 (seis) anos. Mi-
nha filha faz aniversário em outubro e no mês seguinte,
em novembro, faz aniversário de diagnóstico. É aniversá-
rio porque realmente é um marco na minha vida, uma virada de
página. E que virada!

Deixei parcialmente o meu trabalho e me dediquei a


ela. Surgiu o desespero do inesperado, do futuro incerto, do
luto pela idealização da filha que não existia e, em seguida, a
esperança por ver a evolução pelas terapias e o sonho de uma
melhora significativa.

Quando olho para trás, eu me canso só de me lembrar.


Foram tantas terapias, milhares de quilômetros rodados, atraves-
sando a cidade pela luta de ver uma filha independente.

A minha pequena é considerada autista moderada,


embora discorde da nomenclatura, pois há aspectos “leves” no
quadro dela. Entretanto, com quase 8 anos completos, ainda não
consegue se socializar com crianças e não consegue dialogar, em-
bora seja muito carinhosa e a filha mais perfeita dentro da sua im-
perfeição. Ela tem comportamentos diferentes e estereotipados,
então, é muito comum olhares estranhos quando estamos em um

1 Advogada. Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da


OAB/PR.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
226
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

ambiente público. Tais olhares já me causaram dor, hoje são pes-


soas invisíveis aos meus olhos e não me afeto mais.

Parece que com o tempo, nesses longos anos que só fo-


ram 6 (seis), mas que parecem no mínimo uns 10 (dez), o pai e
mãe de crianças com deficiência criam uma verdadeira casca, uma
armadura. Eu me sinto assim, cascuda, pois foram tantas crises
enfrentadas, choros, preconceito do mundo, negativa de matrí-
culas nas escolas, reuniões infindáveis com terapeutas e profes-
sores, além de terapias incessantes que se você não se proteger,
você cai. E ficar caída para uma mãe de autista não é uma possibi-
lidade. Se cair, temos que nos levantar rápido. E não foram poucas
as vezes que caí e me levantei. Eu também passei por choros (e
muitos!) e terapias. Procurei me procurar, meditei, fui encontrar
eu mesma.

Mesmo com as dificuldades, a minha filha só me faz evo-


luir como ser humano. Eu sei o quanto é ser feliz com o pouco.
Ser feliz por ela conseguir imitar um gesto, uma palavra nova, uma
habilidade. Enxergo que cada pessoa é única e que não existe per-
feição e que temos que aceitar todas as pessoas como são.

E mesmo após os 6 (seis) anos do aniversário do diag-


nóstico, esses longos anos que demoraram tanto a passar, eu me
sinto bem e feliz, mesmo ela não tendo evoluído como o idealiza-
do por mim lá no começo do diagnóstico.

É que hoje eu vivo o hoje! Não penso no que passou


nem muito no que vai ser. A ansiedade lá do início me paralisava.
Quando chegava perto do aniversário dela, sempre me pergun-
tava se um dia ela conseguiria me perguntar algo ou manter um
diálogo e me dava uma grande tristeza.... E tudo que eu espe-
rava um dia, está acontecendo, mas muito, muito lentamente e
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Samantha Tisserant Siqueira dos Santos 227

somente com a motivação da existência da vida dela é que eu sigo


na persistência.

Hoje, fruto da quarentena e pela realização de um so-


nho, estou esperando uma bebê. Não a idealizo, apenas a amo e a
aceito. A vida me ensinou a não idealizar e sim ACEITAR e AMAR,
pois somente com o AMOR é que tudo faz sentido. Não penso
se será autista ou não. Apenas vivo o hoje, vendo minha barriga
crescer e passar apenas tranquilidade para esse ser que está no
meu ventre. Estou verdadeiramente curtindo essa fase, sem me
“PRÉocupar” com o que será. Aliás, ela está se mexendo nesse
exato momento, já deixo registrado.

Algo que me ajuda muito é que eu tenho uma rede de


apoio de 14 (quatorze) mães de crianças e adolescentes com au-
tismo. Eles são de diferentes jeitos, cada um do seu, porque afinal,
somos únicos. E elas me dão força para continuar na luta, como
uma família, verdadeiras irmãs pelo simples fato de que passamos
pelo mesmo caminho, as mesmas dores e superações. E uma aju-
da a outra, numa linda rede de apoio e laços de afeto.

Se eu fosse dar uma dica para uma mãe que recebeu o


diagnóstico hoje é: viva o hoje, procure pessoas como você e cul-
tive uma rede de apoio. Isso está sendo muito importante nessa
pandemia que vivemos, pois obviamente tudo bagunçou. As tera-
pias e escola suspenderam e a mãe atípica acrescentou mais duas
funções: ser professora e terapeuta.

E é muito mais fácil superar juntos do que isoladamente.


Essa rede de apoio vem para isso. Quando uma cai, várias mãos
se estendem.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
228
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

É como disse, o AMOR vence tudo. Parece clichê, mas


não é, é a mais pura verdade. Hoje eu ainda continuo sem saber
se minha filha vai atingir a plena independência, mas até lá, es-
tarei com ela, feliz e a incentivando, vivendo o hoje e dando-lhe
muito amor.
Depoimento: Família 229

DE REPENTE... AUTISTA

Sandra Mara Aparecida do Prado1

V
ida tranquila, estabilizada, emprego dos sonhos, filha na
faculdade, acabara de me separar, estava mesmo precisan-
do de novos desafios e Deus enviou. Engravidei, mesmo
tomando todos os cuidados. Quando Deus quer, Ele quer!

Fiquei feliz da vida. Sempre tive a intenção de ter mais


filhos. Meu sonho era ter um menino, pra servir ao Exército, e
parecia adivinhar que era o meu menino a caminho. Gravidez de
risco, 9 meses de repouso, muitos problemas, mas ele veio ao
mundo, dei-lhe o nome de G.P.P.N., em homenagem ao meu pai.

Apesar de ter nascido enorme e super forte, aos 11 me-


ses tomei o primeiro susto: G. esteve 11 dias hospitalizado, com
pneumonia, e a partir de então, o quadro de problemas pulmona-
res foi repetitivo e tive que sair do meu emprego dos sonhos pra
cuidar de sua saúde.

Um ano após, assim que ele se recuperou, voltei ao tra-


balho. A vida seguia, mas G. sempre com problemas de saúde. Aos
4 anos de idade, resolvemos colocá-lo na creche. Tudo parecia
estar bem, ele foi feliz da vida, mas no segundo dia, fui buscá-lo e
ele estava em estado de choque. Fiquei horrorizada diante da si-
tuação em que o encontrei, todo sujo, havia feito as necessidades
fisiológicas nas calças e estava sem voz de tanto chorar. Levei-o ao

1 Coach em TEA (Transtorno do Espectro Autista). Aluna de ABA (Análise do


Comportamento Aplicada). Cursando Psicopedagogia. Mãe e avó de autista.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
230
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

pediatra e ele o afastou da creche por 6 meses.

G. ficou catatônico, sem reação, mas não sabíamos o


que houve. Voltei à creche, implorei, fui ao MP (Ministério Pú-
blico) para saber o que houve, mas ninguém falou e as sequelas
foram irreversíveis até hoje. G. parou de comer, não levava sequer
a colher à boca.

Fui levando por mais um tempo assim até que saiu a


vaga dele no SESC Batel, que era bem próximo ao meu trabalho.
G. retornou à creche e mais uma vez teve que sair. Ele não se
alimentava e então a Direção ficou com medo e não quis que ele
ficasse ali. Ele acabou indo mais uma vez para o SESC Portão, mas
também sem muitos avanços, era tudo muito difícil.

Em 2006, por orientação médica, mudamos para uma


casa, para que ele criasse imunidade. O médico estava certo, fez
muito bem para G.

No início do ano letivo de 2007, começou na primeira


série, não deu uma semana de aula e todos os dias me ligavam da
escola para ir buscá-lo, e o descreviam como uma criança que eu
não conhecia: batia, mordia, voltou a fazer as necessidades fisio-
lógicas nas calças. Eu achava que estava sendo vítima de bullying.

Ele foi encaminhado para avaliação e tivemos o privilé-


gio de um Centro de Referência estar dando suporte à rede da
Secretaria de Educação de Araucária, e aceitaram avaliar G. O re-
sultado saiu em uma semana e foi na antessala da Secretaria de
Educação que ouvi pela primeira vez na vida a palavra AUTISMO.

Eu estava cursando Pedagogia para abrir uma escolinha


com umas amigas, pois havia parado de trabalhar para cuidar do
meu filho, e foi na faculdade que entrei no Google pra pesquisar,
e meu mundo caiu.
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Sandra Mara Aparecida do Prado 231

Li as piores barbaridades sobre autismo, mas vi ali muitas


pautas que meu filho tinha. Meu luto felizmente durou pouco,
chorei tudo a que tinha direito por 2 dias apenas e resolvi ir em
busca de qualidade de vida para o meu filho.

Comecei a pesquisar tudo sobre autismo e as possibili-


dades, estudei muito, e passava noites em claro traduzindo textos
que eu encontrava na internet, porque naquela época não tínha-
mos informações de qualidade. Foi então que resolvi criar uma as-
sociação de pais, com a ajuda de uma psicóloga do grupo de pais.

Em 2009 fundamos a Associação Kasa dos Autistas (AKA),


hoje referência em Transtorno do Espectro Autista (TEA). Partici-
pamos da criação de leis municipais, damos assessoramento às
famílias que solicitam ajuda.

Depois de passar 2 anos em busca do que não tínhamos


nem na saúde e nem na educação, resolvi eu mesma ser o apoio
que meu filho precisava. Especializei-me, aprendi sobre protoco-
los internacional de intervenção e eu mesma fui todos os tera-
peutas que pude para ele. Não tinha plano de saúde e no SUS não
existia, e ainda não existe, atendimento específico e de qualidade
para as pessoas com autismo.

Meu filho teve um desenvolvimento fantástico, passou


em primeiro lugar na Universidade Positivo, mas infelizmente ain-
da não está na faculdade porque não podemos pagar.

Hoje eu vivo em função do TEA, estou fazendo Faculda-


de de Psicopedagogia com bolsa gratuita, que conquistei com a
minha nota do Enem. Faço formação em ABA2 e TEA, quero ser

2 ABA – Applied Behavior Analysis ou Análise do Comportamento Aplicada é


uma terapia que intervém em múltiplos comportamentos da pessoa diagnos-
ticada com TEA.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
232
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

analista do comportamento para poder ajudar as famílias com


o diagnóstico do TEA. Tenho o sonho de construir um Centro de
Referência em TEA aqui na minha cidade, e estou trabalhando
para isso.

Hoje temos mais um diagnóstico na família: meu único


neto é autista.

Não foi fácil, não romantizo o autismo, não é benção,


não é carma, praga, não sou super-mãe, “mãe azul”, nada disso.
Passamos por momentos desesperadores, alienação parental.
A família nos desprezou, meu filho sofreu bullying, rejeição, ex-
clusão, passei dias ajoelhada ao pé da sua cama pedindo a Deus
forças. Mas com toda certeza, esse foi o maior ensinamento da
minha vida, colocar-me no lugar do outro me fez ser um ser hu-
mano infinitamente melhor. Sei que não é fácil e muitas mães não
conseguem, devido a falta de apoio. O índice de suicídio entre as
mães de filhos com autismo é altíssimo, esse é o motivo da minha
luta: ser em prol de “quem cuida”. A falta de atendimento às fa-
mílias, especificamente às mães, também é uma violência, somos
invisíveis.

Não foi fácil, nem tudo são rosas, mas as que eu pude
colher fizeram a diferença na minha vida.

Amo meu filho incondicionalmente, muito além do TEA.

Essa é a minha história.


Depoimento: Família 233

CONHECENDO A DEFICIÊNCIA VISUAL


– BAIXA VISÃO

Adriana Maria Kaiser Tamarozi1

E
sta história é sobre minha filha L., nascida em 2000, quando
eu era apenas uma garota de 16 anos e morava com minha
mãe adotiva, que já tinha 65 anos. Com 13 anos, perdi meu
pai adotivo e me senti muito sozinha. Pouco depois, conheci meu
primeiro namorado e acabei engravidando. Me vi muito assusta-
da. O pai da L., 9 anos mais velho, não tinha família na cidade,
morava sozinho e trabalhava. Uma pessoa com pouca cultura e
estudo. Também se sentia perdido, mas como já frequentava a
minha casa, fomos juntos contar para minha mãe. Ela ficou brava,
preocupada e decepcionada, não gostou da notícia, mas baseada
de maneira pragmática no catolicismo mais antigo e em moldes
moralistas, orientou (exigiu) que nos casássemos.

Na gestação não tive problema diagnosticado ou obser-


vado. Logo que ela nasceu o obstetra viu que seus olhos não pa-
reciam normais. Aquele momento foi o mais desesperador que
eu já havia passado, impossível explicar. Fiquei sem entender e
questionava o que estava acontecendo, mas ninguém me respon-
dia. Nessa hora entendi que todas as expectativas anteriores se
romperam. Costumamos idealizar o bebê e como ele será. Me dei
conta de que um filho nunca é uma projeção fiel dos nossos de-
sejos. Então nesse momento o que fica é frustração e decepção.

1 Psicóloga Clínica. Especialista em Psicologia Analítica.


CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
234
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Eles a levaram para examinar e, quando voltaram, o mé-


dico disse que ela tinha alguma enfermidade nos olhos, mas ainda
não sabia qual. Suas córneas eram bem opacas, esbranquiçadas.
Eu chorava muito, pois me dei conta de que ela talvez não enxer-
garia. Muito triste eu me perguntava: por que comigo? Por que
tinha que ter uma criança com um problema de saúde? Como eu
iria fazer? De fato, haveria um tratamento? Uma melhora? Uma
cura? Sentimentos oscilavam entre esperança e pessimismo. Me
sentia vulnerável e fragilizada.

Ficamos na maternidade por 18 dias seguidos, para con-


seguir uma vaga na oftalmologia do Hospital de Clínicas. Os des-
locamentos entre hospitais, para exames e consultas, foram com
ambulância do SUS. Então veio o diagnóstico de Glaucoma Con-
gênito de Ângulo Fechado. Pensou-se que poderia ser Catarata
Congênita, mas vários especialistas conferiram o diagnóstico.

É uma doença rara e talvez a pior das oculares: atinge o


nervo óptico, fazendo com que a pressão do olho aumente muito.
Ela nasceu com pressão ocular de 40 e o normal na escala é, no
máximo, 20. Quando explicaram sua situação, fiquei desesperada
e chorava, não fazia ideia do que teríamos que enfrentar ou se
os olhos dela iriam aguentar. Sentia muita tristeza, me agarrava
na ajuda de alguns amigos e me permitia rezar, orar e pedir pelo
melhor. Confortava suas dores com meu seio, mesmo quando não
tinha fome. Esse vínculo era novo para mim, pois nunca fui próxi-
ma da minha mãe. Era um desafio, me via tendo que cuidar de um
ser indefeso, que precisava de mim mais que tudo.

Com 18 dias, L. fez sua primeira cirurgia. Foi um procedi-


mento agressivo, mas diminuiu a pressão de 40 para 10. Com isso,
seu olho foi se restabelecendo e a lesão na córnea retrocedendo.
Em alguns meses, ela recuperou parte da visão do olho direito. O
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Adriana Maria Kaiser Tamarozi 235

esquerdo, nunca teve melhora. Em paralelo, levei-a em especia-


listas particulares para ter outras opiniões. Todos foram unânimes
em dizer que estava sendo tratada pelos melhores profissionais
da América Latina e que o HC era referência no caso. Um médico
renomado me disse: “mãe, L. não vai enxergar muito além disso
e, provavelmente, vai perder a visão gradativamente. Indico que a
coloque o mais breve possível numa escola especializada que faça
estimulação visual.”

Com 10 meses, ela iniciou os estímulos numa escola para


pessoas com deficiências visuais. Para nossa sorte a instituição fi-
cava a apenas duas quadras de casa. Lá foi onde, pela primeira
vez, entrei em contato, de fato, com essa realidade de ter uma
filha que mais tarde ficaria quase totalmente cega.

Tudo era novidade, desconhecido e amedrontador. No iní-


cio, me sentia estranha no meio de outras mães com suas crianças,
era um misto de sentimentos tristes com pena. Não só dos outros,
mas também de mim mesma, por fazer parte daquela rotina.

Uma das professoras também tinha Glaucoma e foi mui-


to importante para me mostrar que era possível ser uma pessoa
totalmente capaz, independente e autônoma. Sua mãe era uma
pessoa muito a frente: estimulava, incentivava e foi quem abriu
a instituição para que a filha pudesse trabalhar com crianças e
adultos com a mesma deficiência. Foi um dos maiores exemplos,
com quem consegui vislumbrar que seria possível L. ser quem ela
gostaria de ser e fazer o que gostaria de fazer no futuro.

Essa instituição foi muito importante no aprendizado


e estímulo neurológico, psicomotor e geral. Ela aprendeu diver-
sas coisas básicas, como noção espacial, sensorial, percepção de
outros sentidos e toda a alfabetização inicial, aos poucos, com
dedicação e cuidado.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
236
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Confesso que não foi fácil: morria de medo de que algo


acontecesse, que ela se machucasse. Mas é preciso deixar a crian-
ça experimentar. Só assim ela terá condições de ver até aonde
pode ir. Sempre digo que o limite é a própria pessoa quem faz.
Não devem existir limites preestipulados. Mas os pais precisam
ser corajosos e ensinar seus filhos a serem da mesma forma. Caiu,
levanta! Se machucou, melhora, se restabelece. Foram inúmeras
as vezes em que chorei calada, porque a vi tropeçar, cair, bater a
cabeça em algum lugar, mas deixei-a construir sua própria noção
de espaço.

Não temos noção do que são capazes, até realmente os


soltarmos com cuidado e então vermos que podem sim, apren-
der e superar o que quiserem, mesmo com a limitação visual. É
possível!

Os primeiros desafios maiores foram na escola, pois as


professoras do ensino regular não sabiam como atendê-la e tra-
balhar com o que fosse melhor para ela. Às vezes, foi necessário
fazer mudança de sala de professores. Houve professoras do en-
sino regular que chegaram a aprender a escrita Braille para poder
orientá-la melhor.

Fomos muito afortunadas. Nesta escola ela foi muito bem


cuidada e querida por todos. Isso se estendia a mim também. Lem-
bro com lágrimas nos olhos que a deixava à porta um pouco insegu-
ra, mas me mantinha firme para que ela ganhasse confiança. Tenho
muita sorte, pois nunca a vi se queixar por ser diferente.

Sua segunda cirurgia foi com 1 ano e meio. Depois dis-


so, diversos outros procedimentos, cirurgias maiores e menores.
Por fim, um transplante de córnea aos 16 anos. Hoje faz acom-
panhamento medicamentoso e sua visão é mínima, enxergando
apenas vultos.
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Adriana Maria Kaiser Tamarozi 237

Recordo-me de ser uma vitória, cada vez que ela saía de


uma cirurgia e conseguia ver mais coisas, cores com mais nitidez e
executar tarefas básicas de forma mais fácil.

Um ponto crucial é ter que fazer escolhas. Quando exis-


te uma questão de saúde como essa, a vida exige que sejam fei-
tas o tempo todo. Quando chegou a fase do ensino fundamental,
vi a necessidade de colocá-la numa nova instituição que parecia
ter mais recursos. De início, as aulas ocorreram como prometido,
mas com o tempo, fiquei muito insatisfeita, pois descobri muitas
mentiras naquele lugar. Diversas vezes cobrei seu direito, me pro-
metiam e não cumpriam. Decidi tirá-la de lá e focar nas escolas
tradicionais que oferecessem algum apoio.

Na escola anterior havia um projeto de artes de uma


professora especializada em educação especial, que conseguiu fa-
zer a função que a instituição não fez.

L. também participou de um projeto de artes “Ver com


as Mãos”. Esta foi a maior iniciativa já presenciada e aproveitada
como recurso de vida para ela. Foi fantástico. Promoveu real aces-
sibilidade integrada, autonomia e capacidade de ser protagonista
da sua própria vida.

Hoje, com a tecnologia, a acessibilidade se torna mais


factível, possível. L. consegue estar em constante aprendizado de
forma autônoma com seu computador. Em breve ela vai comple-
tar 20 anos, já está adulta, trabalha numa empresa de tecnologia
e cursa Letras na UFPR. Hoje conta com mentores e assessores
dentro da Faculdade. Tudo é passado conforme as normas.

Quando ela nasceu, perguntei a mim mesma: “por que


isso aconteceu comigo? Por que sou mãe de uma pessoa com
deficiência?” Hoje minha pergunta modificou e digo: “e por que
não comigo?”
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
238
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Se quisermos ver mudança no mundo e uma melhor


conscientização sobre acessibilidade e diferenças é necessário
que comecemos por nós, em assumirmos nossa identidade e re-
presentatividade ativa.

Sempre tentei possibilitar experiências a ela. Pois mos-


tro como fazer, mas tento não fazer em seu lugar, para que ela
aprenda. Hoje trago principalmente da minha formação e profis-
são como psicóloga, que a mãe suficientemente boa é aquela que
solta o seu filho para que ele desbrave suas reais e possíveis capa-
cidades. Esse é um ponto crucial para mim, ficamos sim preocupa-
das, por acharmos que nossos filhos são vulneráveis ou indefesos,
mas a superproteção seria uma forma de incapacitar e até mesmo
“aleijar” um sujeito que pode ter alguma condição física limitante,
mas que não faz dele um limitado.

Agradeço muito todos os dias a Deus, a força criadora e


fonte de tudo, por ter me permitido ser mãe de um ser tão espe-
cial, real, feliz, encantador, batalhador e forte que é a minha filha
nesta vida. Eu ensino, mas digo que aprendo muito mais, por ser
mãe dela.
Depoimento: Família 239

OS DESAFIOS DA DEFICIÊNCIA
NA VIDA DO CASAL

Wilson Roberto Gomiero1

E
m 1989 tive uma paralização do meu lado direito do corpo.
Fui ao médico e ele disse: “você tem uma doença desmieli-
nizante” e receitou-me três injeções. Tomei e sumiram to-
dos os sintomas que eu estava sentindo.

Passaram três semanas e novamente fiquei sem os mo-


vimentos no meu lado direito e meu gerente disse o seguinte:
“melhor você procurar um médico neurologista”.

Fomos para consulta, eu e minha esposa. Lá chegando,


já entrei perguntando para ele o que estava acontecendo. Come-
cei a despejar todas as minhas dúvidas sobre o médico. Ele me
respondeu: “calma, nós vamos fazer uma consulta, eu não sou
adivinho”. Começou então me perguntando: as doenças que eu
já havia tido, inclusive na minha época de infância; daí fomos se-
guindo, com ele querendo saber tudo o que já havia me ocorrido.

Por volta de uma hora e meia após o começo da consul-


ta, ele me perguntou se eu tinha algum exame que ele pudesse
verificar, apresentei o exame de liquor. Após a olhar o exame, co-
meçou a fazer uma série de testes.

1 Economista. Conselheiro Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência,


representando a AFAG (Associação dos Familiares e Amigos das Pessoas
com Doenças Graves e Raras) no CONADE. Triplégico, natural de Mogi das
Cruzes/SP. Marido de Izildinha Aparecida de Paula Gomiero.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
240
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Nessas alturas ele me falou: “Já tenho oitenta e cinco


por cento do seu diagnóstico feito, porém, gostaria de pedir mais
um exame”. Solicitou uma ressonância magnética e, ao abrir o
exame, falou para mim e para minha esposa: “pronto, já sei o que
você tem”. Falei para ele: “ótimo, então conte para mim”. Ele me
disse então: “você tem esclerose múltipla.”

Este é o momento de explicar, de forma bem simples,


o que seja esclerose múltipla: é uma doença que se acredita ser
de origem autoimune. O nosso organismo reage contra algum
componente do nosso próprio organismo, causando inflamações
que podem comprometer o funcionamento normal. No caso da
esclerose múltipla, o alvo do ataque é a bainha de mielina, uma
proteção que envolve os neurônios como se fosse o encapamento
de um fio elétrico.

Neste ataque existe uma agressão fazendo com que os


impulsos nervosos percam muito de sua eficiência para levar co-
mandos do cérebro para o corpo, bem como trazer informações
para o cérebro. Com isto, existe a perda de movimentos ou a falta
de sensibilidade, em algum membro ou parte do corpo. É uma
doença progressiva que vai evoluindo na linha de tempo, existin-
do várias maneiras de se manifestar.

Oitenta e cinco por cento das pessoas que manifes-


tam esclerose múltipla possuem uma forma mais branda, sendo
que, nos restantes quinze por cento, a agressividade de doença
é maior. Quando fui diagnosticado existiam pouquíssimos trata-
mentos para, pelo menos, tentar deter o avanço da doença. Basi-
camente o tratamento era realizado através de corticoides.

Durante o final do ano de 1998 e início de 1999, dez


anos depois, comecei a sofrer uma série de surtos, nenhum muito
forte, mas o suficiente para afetar meu senso de equilíbrio.
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Wilson Roberto Gomiero 241

Em outubro de 1998, meu filho casou e eu entrei na igre-


ja com minha esposa. Naquele longo caminho até o altar, só me
restava uma dúvida: quem havia chacoalhado o chão na igreja,
que estava balançando, pois durante todo o trajeto da porta da
igreja até o altar, eu sentia que estava havendo um terremoto.

Após o nascimento do meu neto, em abril de 1999, co-


meçou para mim uma nova etapa na vida que eu queria marcar
como mais um dos meus recomeços de vida. Afinal, eu estava co-
meçando a acostumar com a convivência que poderia ter com a
esclerose múltipla e agora achava que meu recomeço seria como
avô. Tinha muitos planos sobre o que fazer junto com meu neto,
pois sem dúvida nenhuma, eu teria muito mais tempo para apro-
veitar da sua infância. Ensinar a ler, ensinar novas brincadeiras,
jogar bola e fazer todas as peraltices que um avô faz com seu neto.

Ao final de 1999, comecei a sentir que o meu lado es-


querdo havia começado a ter problemas de sensibilidade, tanto
na perna quanto no braço. Fui ao meu médico neurologista e após
a consulta, ele disse não ser normal aquilo que eu estava sentin-
do. Ele me acompanhava, bem ou mal, desde 1989 e tinha absolu-
ta certeza de que a esclerose múltipla havia desenvolvido seu foco
de atividade do lado direito e minha última ressonância magné-
tica não apresentava nenhum ponto que pudesse configurar um
novo surto que pudesse atingir meu lado esquerdo.

Diversos exames expuseram o que havia de errado comi-


go: havia crescido na minha cervical, correndo em paralelo com a
medula espinal, um tumor de 12 centímetros de comprimento.
Estava comprimindo toda a medula, fazendo com que eu tivesse
todos aqueles sintomas incômodos, quais sejam: já estava parali-
sado do pescoço para baixo, sem movimento nos braços e pernas,
estava com a respiração muito comprometida e tinha dores que
não me deixavam dormir.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
242
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Entrei em cirurgia no Hospital de Clínicas (HC) de São


Paulo às 8h da manhã do dia 5 de junho de 2000 e a cirurgia termi-
nou por volta das 21h do mesmo dia. Fui encaminhado para a UTI
do centro cirúrgico. Fui para o quarto na terça e no domingo, seis
dias após a cirurgia, minha esposa me disse acreditar que logo eu
teria alta, ao que respondi: “vou te dar de presente do Dias dos
Namorados a minha ida para casa”. Realmente foi o que aconte-
ceu, tive alta no dia 12 pela manhã e à tarde já me encontrava em
casa. Para quem tinha uma previsão de, quem sabe, até um mês
de internação após cirurgia, em uma semana fiquei liberado.

Começava então a minha recuperação dentro da mi-


nha casa. Minha esposa havia conseguido uma cama hospitalar
que foi colocada na sala da minha casa, onde eu fiquei durante
três meses.

Após três meses fui a uma consulta com o cirurgião e en-


trei na sala andando devagar, apoiado pela minha esposa. Escutei
a pergunta por parte dele: “como você anda?” Eu respondi a ele:
“Coloco um pé na frente do outro e ando”. Então ele me disse:
“pelo tipo de cirurgia que te fiz você não deve ter quase nenhuma
sensibilidade do pescoço para baixo”. Respondi a ele: “realmente
não sinto quase nada, mas eu continuo enxergando muito bem
e estou aprendendo que tudo que eu quero fazer, eu tenho que
olhar e fazer comandando pelo olhar”. Ele prescreveu fisioterapia
para readquirir o máximo de autonomia que fosse possível. Voltei
para casa e procurei um serviço de fisioterapia em uma das fa-
culdades de minha cidade. Passei seis meses fazendo fisioterapia
quatro vezes por semana, alternando com hidroterapia e comecei
a andar apoiado em uma bengala.

Estava renascendo para continuar fazendo o que achava


que deveria fazer. Eu e minha esposa – com outros pacientes de
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Wilson Roberto Gomiero 243

esclerose múltipla da região onde morávamos – decidimos criar


uma entidade para prestar esclarecimentos e possibilitar o enca-
minhamento para tratamento a essas pessoas.

Um dia, ao final de 2001, eu caí sentado, tomando um


grande tranco na coluna. Comecei novamente a ficar paralisado,
fui encaminhado para o HC e, após ter passado por ressonâncias
magnéticas de toda coluna, foi detectado que havia fraturado a
terceira vértebra e teria que fazer uma nova cirurgia, uma lâmi-
nactomia. Esta é uma cirurgia feita de forma rotineira pelo HC e
que tem uma duração média de duas horas.

Fui internado no final do ano e entrei em cirurgia no


dia 4 de janeiro de 2002. Minha esposa ficou acompanhando,
próxima ao centro cirúrgico. Ela percebeu que, após três horas,
começou uma movimentação, e ela soube que eu tivera uma pa-
rada cardíaca durante a cirurgia, fora reanimado, e estava indo
para a UTI.

Fui descobrir então que, na verdade, havia tido uma le-


são medular, o que me tornava mais suscetível a perder movi-
mentos. Esta lesão ocorreu na região de C3, atingindo a região
de saída dos nervos dos braços. Começa então todo um processo
para adaptação às novas condições.

Este período, durante o qual estivemos eu, minha es-


posa, meus filhos e meu neto envolvidos quase que diariamente
com as atividades na entidade foram, sem dúvida nenhuma, um
período não só de avanço pessoal, como ser humano. Mas tam-
bém, porque não, como profissional, pois passei a entender os
grandes problemas que atrapalham a todos que, no Brasil, procu-
ram trabalhar no terceiro setor.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
244
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Um grande dilema de quem entra numa situação como a


que eu estava entrando agora, é descobrir que a coisa mais impor-
tante do mundo – o tempo – nos é retirado. Tentando explicar de
uma forma mais transparente, quando você se torna dependente
de outras pessoas a satisfação de suas necessidades depende do
tempo e disposição delas.

Neste meu início da caminhada para a deficiência, não


tinha mais condições de fazer pequenos reparos ou pequenas
manutenções na casa onde morava. A sala era enorme e havia
na mesma seis pontos com lâmpada, sendo que uma delas ficava
bem sobre a cadeira que eu utilizava para leitura. Percebi que essa
lâmpada já se encontrava em ponto de queimar, comentei com a
minha filha e ela me disse: “realmente, logo, logo ela queima”.
Depois passou meu genro e comentei que lâmpada iria queimar.
Ele disse: “não deve durar mais do que duas semanas”. Esperei
um pouco, meu filho passou, comentei com ele: “cara, esta lâm-
pada vai queimar”. Ele mais do que depressa, disse-me: olha, pen-
sei que ela já tivesse queimado.” Por último passou meu cunhado,
chamei-o e disse: “por favor, me pega aquela cadeira”. Ele rapida-
mente pegou. “Coloque aqui na minha frente”. Falei em seguida:
“agora pega a lâmpada, sobe na cadeira e troque para mim, por
favor”. Ele então me disse: “pô compadre, por que não me pediu
direto para trocar a lâmpada?”. Respondi a ele: “falei com três e
nenhum tomou providência”. Ele me respondeu: “mas você pe-
diu o que queria?”. Daí aprendi também que não adianta querer
que as pessoas adivinhem o que você deseja, você tem que deixar
bem claro o que quer. Fica, porém, a ressalva de que você somen-
te será atendido no tempo que essa pessoa se dispuser.

A pessoa a quem eu devo estar vivo e ser quem eu sou


hoje é, sem dúvida nenhuma, a minha parceira de todas as ho-
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Wilson Roberto Gomiero 245

ras, a minha esposa. Quando a conheci, há 46 anos, não tinha


ideia de quanto era possível amar uma pessoa e ter por parte
dela toda correspondência, ou melhor, muito mais do que eu
dei, tenho recebido.

No início do namoro ficamos um ano juntos e, por uma


besteira minha, a perdi. Tive que me esforçar muito para voltar-
mos a namorar e fazê-la entender que realmente eu queria com-
partilhar com ela o restante da minha vida. Retornamos nosso
namoro e após dois anos estávamos casados.

Começava aí então uma nova etapa de sofrimento para


minha esposa. Após o casamento, comecei a apresentar a minha
verdadeira face de alcoólatra, fazendo com que ela, por sete anos,
sofresse todas as vezes que eu não chegava em casa no horário
previsto, muitas vezes a deixava sozinha com meu filho, durante
toda a noite, sem saber se eu estava vivo, onde estava e como eu
chegaria. Várias vezes cheguei no clarear do dia, encontrando-a
aos prantos, isto quando já não estava por pedir ajuda para a po-
lícia ou a familiares.

Quando parei de beber, percebi quanto mal havia cau-


sado à minha esposa e tentei compensar, de todas as formas,
aqueles dias em que a deixei sofrendo sem saber o que fazer. En-
tretanto, comecei a me dedicar de forma quase que integral ao
meu desenvolvimento profissional, dedicando muito tempo ao
trabalho e nem tanto a minha esposa e meus filhos. Mesmo as-
sim, vivemos felizes e aproveitávamos todos os momentos que
estávamos juntos.

Com o advento da minha doença, tudo isso começou a


mudar, tínhamos mais uma preocupação. Após a cirurgia e com
a decadência física, passei a ter uma dependência muito maior
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
246
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

de minha esposa e ter a noção exata do amor dela por mim. Ela
praticamente abandonou sua vida para se dedicar inteiramente a
realizar o meu projeto, que também é, um pouco, o projeto dela.
Porém, ela se anulou durante mais de vinte anos para fazer das
minhas vontades, a vontade dela.

Se eu ainda estou vivo hoje, se eu ainda hoje possuo al-


guma lucidez e raciocínio, posso dizer – com certeza – que no-
venta por cento disso eu devo a minha esposa. Sem ela eu já não
estaria neste mundo. Por mais que eu diga, por mais que eu de-
monstre, eu nunca terei como dizer o quanto ela é importante na
minha vida e nem quanto eu a amo. Hoje sinto falta do nosso con-
tato físico, de poder acariciar seu rosto, sua pele. Não que eu não
possa fazer isso, porém eu não tenho a sensibilidade do contato.
Isto me faz muita falta.

Nos dias de hoje, acordo pela manhã e vivo o resto do


dia em função de tê-la ao meu lado, ajudando-me em tudo, desde
minha alimentação, higiene pessoal, água, até o olhar para meus
momentos de tristezas e desânimo.

Com o evoluir da doença e principalmente em decorrên-


cia das dores neuropáticas, comecei a consumir uma quantidade
muito grande de medicações. Um dos efeitos colaterais dessas
medicações é a impotência sexual, que no meu caso ainda foi
agravada pela lesão medular. Deixamos de ter uma vida ativa so-
bre esse ponto de vista, porém, como sempre dizemos, o impor-
tante não é o ato em si, mas todo o carinho, amor e envolvimento
que ainda podemos levar um para o outro, bem como respeito en-
tre nós. A falta do contato física é suplantada por uma carícia, um
abraço, uma palavra de amor e, no nosso caso, aquele momento
bem nosso, quando ela faz da hora do meu banho, um momento
especial de cuidado e carinho.
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Wilson Roberto Gomiero 247

Nunca enfrentei episódio de violência, porém, sempre


fico um pouco perturbado quando nos encontramos em algum lu-
gar público e a pessoa ao me atender não se dirige a mim, e sim à
minha esposa. Tenho certeza de que não é só no meu caso, mas na
maioria das vezes isso acontece com as pessoas com deficiência,
aparentando que elas não têm como expressar a sua vontade, de-
pendendo totalmente da manifestação de quem as acompanha.

Vem daí aquilo que eu sempre digo: a pessoa com defi-


ciência física tem que assumir o protagonismo de sua vida, pois só
assim passará a ser respeitado como cidadão. Não queremos ser
incluídos, queremos ser reconhecidos. Reconhecidos como pes-
soas, como cidadãos, como seres humanos.
Depoimento: Família 249

UM IMIGRANTE EM BUSCA DE INCLUSÃO

Jacob Cachinga1

N
esta narrativa, me chamo Jac. Nasci a 15 de dezembro de
1989, em Angola, África, na cidade de Luena, capital da
província do Moxico. Aos 2 anos, perdi a visão como se-
quela de sarampo. Durante a gravidez da esposa, o meu pai foi
recrutado pelas Forças Armadas para servir na guerra civil que
assolou o país por mais de três décadas. Minha mãe, uma cam-
ponesa e comerciante, apesar das duras circunstâncias, celebrou
o nascimento do primeiro filho: era herança do marido e, por se
tratar de um filho homem, eventual substituto do pai. Nasci, por-
tanto, imbuído da promessa patriarcal de cuidar de sua família,
donde veio meu apelido de nascença, “paizinho”.

Soube do meu pai através das histórias entusiasmadas


da minha mãe. Meu nome fora escolha de meu pai antes mes-
mo do meu nascimento. Nunca soube se morreu ou sobreviveu
à guerra. Soube pela minha mãe que ele era professor, profissão
que o orgulhava, e que eu escolhi como forma de homenageá-lo.

Apesar das dificuldades de tratamento em decorrência


da guerra, minha mãe não dispunha de recursos para ir à capital
do país em busca de melhor tratamento e eu acabei por perder a
visão, transtorno que trouxe desespero a minha mãe.

Por muito tempo, minha mãe sentiu-se culpada pela mi-


nha cegueira. Sem visão, eu não poderia estudar, trabalhar, casar,

1 Mestrando em Bioética. Pós-graduado em Atividade Física para Grupos Especiais. Gradua-


do em Educação Física.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
250
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

enfim, ter uma vida normal. Seria um peso. Ao drama da guerra,


somava-se este, de ter um filho cego. A alimentação era escassa
e as dificuldades só aumentavam. Mesmo o sono era perturbado
pela possibilidade de ataque e invasão do inimigo a qualquer mo-
mento, o que exigiria que nos refugiássemos de lugar em lugar. Se
precisássemos fugir, quem caçaria a comida?

Certa ocasião, enquanto fugíamos da UNITA, a oposição,


escapei da mãe e caí. Os soldados que me pegaram estranharam
que eu não olhasse para as armas. Minha mãe, então, lhes
rogou que a matassem em meu lugar, mas aqueles soldados
nos libertaram, dizendo que fôssemos, mas sem olhar para trás.
Saímos dali apressados e apavorados com a possibilidade de que
nos atirassem pelas costas, coisa habitual para aqueles homens.

Anos depois, minha mãe teve uma filha, chamada cari-


nhosamente de E., uma alegria e orgulho para a família. Em Ango-
la, o pai escolhia o nome do primeiro filho homem, seu substituto,
levando também o nome patriarcal. A mãe dava nome e sobreno-
me à primeira filha, que a substituiria em caso de morte.

E. cresceu e entrou na escola em meio à guerra. Impe-


dido de estudar, eu aguardava minha irmã ansioso para extrair
dela o conhecimento. E. tinha paciência para ensinar tudo que
aprendia e me ensinava a escrever as letras com carvão na pare-
de, enquanto conduzia minhas mãos.

Em Angola, nem sempre comíamos. Minha mãe era


camponesa e vendia o que plantava, mas às vezes ficava impossi-
bilitada de vender e ainda ir à lavoura. Nessas ocasiões, quando
íamos dormir, cantávamos e dançávamos para espantar a fome e
os pensamentos ruins. Anos depois, morando no Brasil, esta prá-
tica de dançar e cantar viraria forma de matar a saudade de meu
povo, de estar mais perto de minha mãe.
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Jacob Cachinga 251

Após novo casamento de minha mãe, eu ganhei outro


irmão, J. Infelizmente, meu novo pai também acabou por ser re-
crutado e fui sentindo as responsabilidades que deveria ter com a
família. A deficiência me barrava qualquer oportunidade como ser
humano e me aviltava por dentro; fui me sentindo inválido.

Assim, aos 10 anos, decidi morar na rua, contra a vonta-


de da minha mãe. A vida perdera a graça, pensava em me matar,
sentia-me impotente. Com guerra no auge, uma bala perdida po-
deria matar-me na rua a qualquer momento. Fiz novas amizades
nas ruas de Moxico, comecei a usar maconha para anestesiar-me
do frio, e a cheirar gasolina. Acabei liderando um pequeno grupo
que tocava terror nas redondezas. Morávamos sob as marquises
dos prédios baleados. As mães sofrem muito quando um filho se
perde e a minha, impotente, chorava muito, sentindo-se talvez a
pior mãe do mundo. A minha decisão de procurar a morte feria
seus sentimentos.

Uma dádiva, E. nascer saudável e sem sequelas na infân-


cia. Meninas com deficiência, principalmente cegas, eram natu-
ralmente segregadas e maltratadas pelas próprias famílias, numa
cultura de desvalorização da figura da mulher. Comigo na rua, mi-
nha irmã foi fundamental para fazer companhia à mãe.

Mas algo de bom aconteceria. O governador do Moxico


informou que eu havia sido convocado para estudar fora do país.
Tornara-se conhecido em toda a cidade eu ter sido a primeira pes-
soa com deficiência visual morando na rua. Mas estudar não es-
tava mais em meu vocabulário. Eu não tinha mais sonhos, tudo
havia morrido para mim. A convocação do governador era uma
surpresa revigorante, era a oportunidade de ser igual aos outros
seres humanos. O projeto consistia em mandar pessoas com de-
ficiência visual estudar fora, para depois voltarem e contribuírem
com seu país.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
252
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Os países na lista eram Alemanha, Brasil e Portugal, e


eu escolhi o Brasil, não só pelas oportunidades, ou para conhecer
pessoas maravilhosas ou estar mais perto da África, mas pela fa-
miliaridade que o país continental tinha com Angola: as telenove-
las, o futebol, o samba, etc. Acreditava que o Brasil era como um
pedaço de Angola e que lá poderia existir um lugar como Luanda,
a capital, com a vantagem de que no Brasil viviam celebridades.
Mas não tinha qualquer noção da geografia, nem informação.
Nessa época, pensava ser o único cego do mundo. Nunca brincara
com alguém com essa deficiência. Durante a guerra civil, as pes-
soas com deficiência não saíam de suas casas, as condições eram
inóspitas.

Em 2001, então com 11 anos, vim para o Brasil. Sozinho,


minha única família agora seriam os amigos, também com defi-
ciência visual, que conhecera no avião, num total de 24 pessoas,
felizes pela oportunidade de um futuro melhor. Meu aprendizado
começava aí: descobrira que em Angola existiam mais pessoas ce-
gas e que algumas já estudavam, por morarem em cidades distan-
tes da guerra.

Ao chegarmos ao Brasil, fomos hospedados em Juiz de


Fora, Minas Gerais. O ambiente era diferente, não havia guerra
nem tiroteios, não se dormia com medo, atento para a necessida-
de de fugir a qualquer momento. Mas em Juiz de Fora, crianças
e jovens sem pais eram maltratados por preconceitos raciais. O
fundador da associação, racista, deixava as crianças de castigo na
chuva e até sem comer por qualquer motivo, fato que chegou à
imprensa mineira através de um morador interno da própria as-
sociação. Após a denúncia, ficamos em Juiz de Fora apenas quatro
meses e fomos logo enviados para Curitiba, Paraná.

Dos 24 membros iniciais, alguns jovens voltaram para


Angola, pelo receio de que sofreriam o mesmo tratamento que
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Jacob Cachinga 253

receberam em Minas. Assim, o número foi reduzido para 17, sen-


do 6 jovens. Os mais velhos foram para Florianópolis, Santa Cata-
rina, e 11 crianças ficaram em Curitiba, no Instituto Paranaense
dos Cegos.

O povo curitibano nos recebeu muito bem, com entre-


vistas nas mídias paranaenses e nacionais. Muitos voluntários
foram nos receber demostrando carinho, nos dando presentes e
outras demonstrações de afeto. Nesse grupo feliz estava eu, o pe-
queno e alegre Jac!

Aos 11 anos de idade, ao chegar a Curitiba, era analfa-


beto e não falava bem o português. Apesar de colonizada pelos
portugueses, Angola possui mais de dezoito dialetos. Eu falava
o chócue, dialeto do Leste. Além do português, aprendi Braille,
locomoção autônoma com bengala e domínio de alguns instru-
mentos musicais. Aos 12 anos, entrei para o ensino fundamen-
tal. Mas tudo era difícil: imigrante, criança, sem contato dos pais,
mantinha-me forte através das músicas e danças que executava
junto ao grupo de angolanos, para através da arte, buscar minha
família. A música sempre esteve muito presente na vida dessas
crianças, pois o talento inato para cantar e dançar veio com todos
da África para o Brasil. E eu sempre demonstrei uma expressão
corporal ímpar.

Os amigos mais velhos foram para o supletivo enquanto


eu, mais novo, fiz o regular. Fui muito bem recebido pelos colegas
e no começo estudei com um angolano, com quem dividia cole-
guismo, risadas e as dúvidas de aula, mas acabou transferido para
se concentrar melhor, e assim terminou o ensino médio.

Para o curso superior me sugeriram Psicologia, mas op-


tei por Educação Física, mais relacionada a dança e movimentos
corporais. A expectativa era de que reprovaria no vestibular, mas
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
254
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

para alegria minha e surpresa de muitos, fui aprovado e iniciei


o curso em 2011. Fui a primeira pessoa com deficiência visual a
fazer Educação Física em uma faculdade particular em Curitiba e
os professores se surpreenderam com o desafio. Apesar da estra-
nheza e desconforto nas disciplinas mais visuais, os professores e
eu passamos a nos entender, e criamos um método em alto relevo
para que eu pudesse sentir e visualizar imagens através do tato.

Para complicar, o consulado de Angola, responsável


pelas bolsas de estudo, às vezes atrasava o pagamento, e nós
ficávamos sem estudar por um ano ou mais. A um ano do tér-
mino, Angola solicitou o nosso retorno, foram retirados os sub-
sídios que nos sustentavam e fomos, então, despejados da casa
em que residíamos. Foi então que, com amigos e a comunidade
curitibana, fizemos uma campanha na mídia. O caso chegou ao
programa do Luciano Huck. As faculdades em que estávamos
inscritos nos concederam bolsas de estudos e recebemos recur-
sos para nos sustentar.

Eu concluíra o ensino superior e precisava mostrar o


diploma para a minha mãe, mas não sabia dela há 15 anos. Es-
taria viva? Pensaria ainda em mim? Uma associação angolana
foi minha aliada na tentativa de encontrá-la. O plano consistia
em convocar as mídias, relatando a minha história. Finalmente a
encontraram e em 2016, voltei a Angola. Com ajuda da ANCAA,
Associação Nacional dos Cegos e Amblíopes de Angola, hospe-
dei-me em um hotel e pedi que buscassem minha mãe e irmãos,
dizendo que havia um presente que os aguardava. Quando che-
garam, saí do quarto e abracei minha mãe e minha irmãzinha E.
Os três choramos copiosamente.

A guerra acabara em 2002, mas ainda havia a miséria, a


fome, a baixa escolaridade, a falta de moradia. Minha mãe mo-
rava em uma igreja e a limpava como pagamento do aluguel. Lá,
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Jacob Cachinga 255

estendia uma toalha no chão e dormia. Minha irmã vivia em uma


casa de barro, sem geladeira, mesa, televisão ou luz elétrica. Ti-
nha apenas um colchão que dividia com o marido e o filho. Era
chocante: coisas básicas no Brasil eram um luxo ali. Loquei uma
casa mobiliada para meus familiares, abri para eles uma pequena
venda de frangos, deixei-lhes subsídio e a matrícula escolar para
meu irmão.

De volta ao Brasil, ainda havia o sonho de ser professor.


Pós-graduei em Atividade Física para Grupos Especiais, e depois
procurei a PUC-PR para conversar sobre meu objetivo de fazer um
Mestrado e tornar-me professor universitário. Um senhor que me
ouviu me perguntou se já ouvira falar em Bioética. Tratava-se do
fundador daquele programa de pós-graduação. Uma semana de-
pois, eu já buscava detalhes de como assistir disciplinas isoladas.

Fui então contemplado pela PUC-PR com uma bolsa


para imigrantes para o Mestrado em Bioética. Por fim, o sonho
de ser professor universitário pode se realizar. Meu pai, que não
conheci, se tornou inspiração para esta profissão de levar co-
nhecimento a outros. Sem perceber, meu pai escolheu para seu
primogênito o nome perfeito: do hebraico, Jacob significa “o que
vence, o vencedor”.

Finalmente, estamos no 2021, estou terminando o meu


mestrado, em Bioética, que visa proteger e respeitar os seres vivos.
Depoimento: Família 257

FAZENDO A DIFERENÇA, POR MISSÃO

Berenice Reis Lessa1

Permitam me apresentar.

N
asci ao final da segunda guerra mundial, sob a influência
do signo de Escorpião, em Joaquim Nabuco, um distrito de
Palmares, cidade em decadência, situada a cerca de 120
km da capital de Pernambuco. Sou fruto da convivência geracio-
nal e da sabedoria de meus avós. Superadas as dificuldades da
família simples, passei da infância para a adolescência e cheguei à
vida adulta, cheia de planos e vontade de vencer. Através do meu
primeiro vestibular, ingressei na Universidade Federal de Pernam-
buco. Ao término do terceiro ano, me transferi para a Faculdade
de Direito Cândido Mendes, no Rio de Janeiro/RJ, onde conquistei
o diploma de Bacharel em Direito. Dois anos após, constitui minha
própria família, mudando-me para Curitiba/PR.

Apesar de estar apta para novas escolhas objetivando a


capacitação profissional, o contexto em que passei a viver, nessa
nova etapa de vida, não foi propício a criar expectativas de ini-
ciar o curso de pós-graduação stricto sensu, embora estivesse em
meus planos continuar a minha formação profissional. Tive que
me contentar com as possibilidades que surgiram, considerando

1 Advogada, escritora, pós-graduada em Direito Administrativo, especialista em Direito Pre-


videnciário, presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/PR,
membro da Comissão Nacional congênere, no Conselho Federal da OAB, representou o
Conselho Federal da OAB, na 3ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiên-
cia – CONADE, em 2012.
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
258
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

as circunstâncias socioeconômica e familiar, nada favoráveis. Além


de vários cursos de curta duração, na área do Direito e outras, con-
segui me pós-graduar. Mas a adversidade me fez trilhar um outro
caminho que tenho como referência, desde o nascimento de meu
primogênito: ajudar pessoas que se encontram em situação de
vulnerabilidade, pela “exclusão social”.

Minha empatia pela causa (dos direitos) da pessoa com


deficiência remonta a 1980, quando o meu filho R. nasceu. Após
diagnóstico por imagem, veio então a sentença: Hidrocefalia e
Microcefalia. Mais tarde, em uma consulta com o pediatra, vim
a entender que ele seria uma pessoa totalmente dependente de
cuidados médicos, fisioterapêuticos, fonoaudilógicos e que ne-
cessitaria, no mínimo, da atenção permanente de um cuidador
qualificado. Eu não fazia a menor ideia aonde essa dependência
nos levaria, ou seja, eu não tinha noção das variáveis dessa defi-
ciência, tampouco a parte que me caberia como mãe inexperien-
te, assustada e impotente diante de um universo desconhecido
e de tamanha complexidade. Mas à imensidão do problema, se
juntavam outras questões que, posteriormente, vim a conhecer.

Eram comuns a muitas outras mães, a muitas outras fa-


mílias, a ausência do Estado quanto a atenção à saúde dessa par-
cela da população, a falta de políticas públicas, de profissionais
capacitados para atender às demandas das especificidades decor-
rentes do quadro clínico de cada um desses pacientes. Passamos,
então, a nos reunir quinzenalmente, para discutir os problemas
que nos afetavam diretamente, em função dos nossos filhos e dos
outros, que sequer sabiam que tinham direitos.

O momento era oportuno. O país estava em plena mo-


bilização social, para a construção de uma sociedade mais justa
e igualitária. Era chegada a nossa vez! A minha formação profis-
sional me fez ver que cabia a nós, pais, às pessoas com deficiên-
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Berenice Reis Lessa 259

cia, instituições afins e à própria sociedade criar a oportunidade


para reivindicar os direitos das pessoas com deficiência. Era dever
meu, como advogada, orientar, encorajar e reunir instituições e
propor lutarmos pelos direitos desses cidadãos. E assim, em 1986,
foi instituído em Curitiba/PR o “Movimento pela Participação do
Deficiente na Constituinte”, o qual me coube coordenar. Com o
apoio de seu então presidente, fizemos da OAB/PR o palco das
nossa discussões e reivindicações. A imprensa foi nossa aliada e
fez ecoar a nossa mobilização para criação da proposta de direitos
a ser inseridos na Constituição que se delineava. A adesão pela
população veio fortalecer esse Movimento, para além das fron-
teiras com o Paraná. Portanto, aqueles que participaram conosco
e os que vivenciaram esse período da história do Brasil, temos
consciência de que, se existem direitos constitucionais garantidos
às pessoas com deficiência, deve-se, em muito, a este Movimento
que teve origem em Curitiba/PR.

Durante 35 anos tive o privilégio de ter o meu filho R.


comigo e busquei entender os seus sentimentos, suas respostas
a estímulos, seus momentos de desconforto e as mais variadas
formas de comunicação que, eventualmente, pudesse expressar,
através do choro, gemidos, dos gritos e até do seu largo sorriso.

Certa vez, passei por um susto sem precedentes. R. caiu


da cama, de ponta cabeça. Num movimento involuntário, o col-
chão, envolto em um plástico para facilitar a sua higienização, in-
clinou-se, acompanhando o deslocamento do seu corpo que es-
corregou para a beirada da cama, fazendo-o deslizar.

Repentinamente, virei-me de forma brusca, tentando


impedir a queda. Foi impossível ampará-lo, apenas o levantei ra-
pidamente, apavorada, pois seu grito contido num choro que não
se ouvia, o deixava cada vez mais cianótico. Instintivamente sacu-
di-o, balancei-o, chamei-o pelo nome, assoprei seu rosto, levando
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR:
260
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

o ar a sua boca, até que conseguiu liberar a respiração, acompa-


nhada do choro que explodiu alto e forte.

Ainda assustada, procurei acalmá-lo, sem condições de,


sozinha, manter sob controle aquela situação. O sangue escorria
do ferimento, me deixando mais apreensiva. Observei que o su-
percílio esquerdo estava de tamanho maior que do outro lado,
impedindo-o abrir o olho. Depois de um banho quente, dormiu
desfalecido, ouvindo-se apenas a respiração que, sem pressa, me
deixava mais angustiada.

Eu me culpava e não queria acreditar que ao cair ele pu-


desse ficar desacordado por tanto tempo, o que nos fez pensar no
pior. Com o impacto, teve apenas um corte em meio à sobrance-
lha esquerda e uma abertura superficial na cabeça. Sorte que a
queda foi amortecida pelo colchão, que estava sobreposto a ou-
tro, o que deixava R. a uma altura de uns 90 centímetros acima do
chão, o que facilitava o seu manuseio.

Durante três dias, estive esperando uma reação, que tar-


dou a acontecer. Difícil imaginar o meu sentimento de gratidão ao
ver a expressão do seu sorriso, ao acordar do coma! Simplesmen-
te indescritível!

Com a sua partida, em 2015, me vi levada a compartilhar


de forma muito especial o que ele me ensinou, nos momentos
mais significativos de nossas vidas. Instintivamente, fui mãe, pro-
tetora, enfermeira, cuidadora, médica, nos momentos que reque-
riam atitudes, em ações emergenciais. O agir, em determinadas
situações, era essencial! Com ele aprendi a ter fé no amanhã, co-
ragem no agora e determinação no hoje.

A sua partida me motivou a compartilhar de forma mui-


to especial, os seus ensinamentos. Atualmente, dedico-me, exclu-
sivamente, à causa das pessoas com deficiência, na condição de
DEPOIMENTO: FAMÍLIA - Berenice Reis Lessa 261

presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência


da OAB/PR e, simultaneamente, participando como membro da
Comissão Nacional congênere, no Conselho Federal da OAB.

Estamos iniciando o ano de 2021. Podemos constatar, a


partir da Lei Brasileira de Inclusão, sob nº 13.146/2015, que muito
se tem avançado, principalmente em relação às áreas das defi-
ciências física, auditiva, visual, mental, intelectual. Todavia, quan-
to aos aspectos das deficiências resultantes das doenças raras,
neurológicas e outras, pouco se conhece, até mesmo como vivem
e onde as famílias dessas pessoas podem ser localizadas.

Tenho-me perguntado: se já existe a garantia legal, por


que, necessariamente temos que judicializar o direito à saúde, no
que se refere, principalmente, ao fornecimento de remédios, tra-
tamento e acompanhamento domiciliar, para se obter um mínimo
de qualidade de vida para esses necessitados? São respostas a
estes questionamentos que (ainda) tenciono encontrar.

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