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Teoria do direito
e o sujeito da injustiça social
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João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida
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José Ricardo Cunha
Bethania Assy
Categoria:
Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
________________________________________
Dedicamos esse livro a todos aqueles que mesmo
sofrendo penosas injustiças resistem à opressão
e reinventam sua própria realidade.
Bola de Meia Bola de Gude
Milton Nascimento e Fernando Brant
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
Bethania Assy
IX
Nota sobre a Coleção Direito e Emancipação
XI
Sumário
Agradecimentos............................................................................................. IX
Introdução........................................................................................................ 1
1
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
1 CRUZ, Sebastião. Ius. Derectum (Directum). Direito (derecho, diritto, droit, direito, recht, right etc.).
Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1986.
2
Direito e Emancipação – Volume I
3
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
nem um paradoxo e nem uma dialética, mas sim uma ironia. Com sabemos,
a ironia é antes de tudo uma dissimulação; usa-se uma expressão quando, na
verdade, se tem em conta uma ideia oposta. A ironia anula a unidade do ato,
pois se afirma para negar, ou o oposto. É exatamente isso que acontece com o
sujeito do conceito de sujeito de direito. O sujeito do direito é, pois, o objeto do
direito uma vez que é abstraído de sua história concreta para ser tomado como
destinatário prático de uma norma que limita ou substitui sua vontade. Dessa
perspectiva da teoria legal importa, fundamentalmente, qual é a norma e não
quem é o sujeito. Essa é a ironia do conceito: a pessoa é afirmada apenas para
ser negada, e isso não é uma dialética pois não há aqui uma síntese. A ironia é,
de efeito, um modo de ser do direito que se apresenta como uma tragédia para
o sujeito, pois a sua obliteração passa a ser uma condição inafugentável das re-
lações jurídicas, tal como elas tradicionalmente se manifestam.
Evidentemente, o direito é feito por sujeitos. A experiência do sistema de
Civil Law valoriza processos políticos de natureza institucional e legiferante,
por meio dos quais vontades e interesses em conflito buscam se afirmar como
dominantes a fim de produzir e reproduzir a ordem jurídica e com ela outras
ordens sociais, tal como a economia e a própria política. Já na experiência do
sistema de Common Law temos, por um lado a perspectiva do direito con-
suetudinário; este que é produzido pela cultura de uma dada comunidade ou
sociedade e alcança o vigor necessário para afirmá-lo como ordem jurídica,
assim reconhecida pela própria comunidade ou sociedade, isto é, sujeitos sub-
mersos nas tradições e instituições que tendem a reproduzir conservadora-
mente seu modo de vida. Por outro lado, o sistema de Common Law também
se manifesta pela ação jurisdicional dos tribunais que ao dizerem o direito do
caso concreto não apenas decidem para as partes, mas pretendem revelar à
comunidade jurídica e a toda a sociedade o direito adequado a todos os casos
semelhantes. Há, nesse sentido, uma pretensão legiferante das cortes perante
a sociedade e esse é o propósito último da máxima stare decisis et non quieta
movere, que significa, “respeitar as coisas decididas e não mexer no que está
estabelecido”. Em ambos os sistemas, algum sujeito participa, de alguma for-
ma, da realização do direito. Claro que seria necessário investigar com clareza
e rigor quem é esse sujeito ou quem são estes sujeitos e qual é essa forma ou
quais são estas formas, como o faz, por exemplo, a sociologia ou a sociologia do
direito. Mas queremos colocar em destaque o inverso da pergunta: e o direito?
Participa da realização do sujeito? Certamente que o sujeito é atravessado pelo
4
Direito e Emancipação – Volume I
direito e, de alguma maneira, constituído por ele. Mas será esse um processo
emancipatório? Se levarmos em conta o problema proposto da obliteração do
sujeito nas diferentes formas de relações jurídicas, então a resposta parece ser
que o direito participa, em alguma medida, da constituição do sujeito, mas não
necessariamente de sua realização, se por realização entendermos um processo
de desenvolvimento material e espiritual (não religioso) resultante da autode-
terminação de indivíduos e grupos sociais.
Estamos, assim, diante do dilema do desaparecimento do humano que
se manifesta em vários aspectos e campos, inclusive no direito. Resgatar esse
humano e sua face concreta talvez seja o desafio cardinal dos nossos tempos.
Para tanto, um passo inicial é realizar um esforço de compreensão de como a
teoria do direito lida com a questão do sujeito, mas não de qualquer sujeito e
sim, especificamente, com o sujeito da injustiça social, esse que deve ter uma
prioridade ética na ação jurídica e política.
A história do direito e das ideias políticas nos mostra que os pensamen-
tos em torno das possibilidades de vida em comum sempre se manifestaram
na forma de paradigmas, isto é, um conjunto de crenças que compõem um
quadro teórico e que funcionam como regras acerca de como nós esperamos
que o mundo (as coisas) se comportem. Um dado paradigma faz com que nós
vejamos o mundo e as suas coisas a partir do que é considerado “normal” no
seio deste próprio paradigma. Essa noção foi explorada por Thomas Kuhn que
afirmou que os paradigmas são as realizações cientificas universalmente reconhe-
cidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para
uma comunidade de praticantes de uma ciência.4 Essa concepção de paradigma
de Kuhn se apresenta como uma filosofia específica da ciência (especialmente
ciências da natureza), mas pode ser tomada de empréstimo para se pensar a
história das ideias. Para este autor a ciência não se desenvolve por acumulação
de descobertas, mas pela revolução de paradigmas, por isso afirma que a tran-
sição sucessiva de um paradigma a outro, por meio de uma revolução, é o padrão
usual de desenvolvimento da ciência amadurecida.5 Dito de outra forma, temos
que um agrupamento de ideias acerca de como as coisas devem funcionar se
cristaliza na forma de um paradigma que, por sua vez, se manifesta como um
conjunto de crenças ou regulamentos acerca dos fenômenos por ele abrangi-
4 KUHN, Thomas. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 13.
5 KUHN, Thomas. Ob. Cit., p. 32.
5
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
6 Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia del Derecho. Colombia: Universidad Externado de Colombia,
1999. Especialmente o capítulo Derecho Natural y positivismo. Problema histórico de la filosofía del
derecho, pp. 61-88.
7 Cf. HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. Sintra:
Publicações Europa-América, 1998, pp. 158 e ss.
6
Direito e Emancipação – Volume I
8 Cf. CALSAMIGLIA. Albert. Postpositivismo. In Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Núm. 21,
1998. http://www.cervantesvirtual.com/nd/ark:/59851/bmcbk215
9 Nem todos os autores usam a expressão pós-positivismo que é, por certo, uma denominação ainda em
construção, apesar de muito utilizada. Kaufmann fala numa “terceira via” que supera a dicotomia
direito natural – positivismo jurídico. Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia del Derecho. Colombia:
Universidad Externado de Colombia, 1999, p.93. Já autores decisivos para a virada pós-positivista
como Chaïm Perelman e Luis Recasens Siches falam em um padrão de racionalidade típico do
direito que não se confunde com o racionalismo do direito natural e nem do positivismo jurídico.
Cf. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Cf. RECASENS SICHES,
Luis. Tratado General de Filosofia Del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2008.
7
1. O Paradigma do Direito Natural
10 Cf. PIOVANI, Pietro. Giusnaturalismo ed Etica Moderna. Napoli: Liguori Editore, 2000.
11 Para uma defesa eloquente do Direito Natural cf. FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights.
Oxford: Oxford University Press, 2011.
12 A título de exemplo veja-se acórdão do STJ de 2011: AgRg no REsp 1167616 / PB; Agravo Regimental
no Recurso Especial 2009/0228937-6. Veja-se o trecho: “Repara-se por força do Direito Positivo e, também,
por um princípio de Direito Natural, pois não é justo prejudicar nem os outros e nem a si mesmo.”
13 CÍCERO, Marco Túlio. Das Leis. São Paulo: Cultrix, p. 49.
14 CÍCERO, Marco Túlio. Ob. Cit., p. 50.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
15 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1979, p. 334.
16 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2013, p. 199. 1014b-15.
17 BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Brasília: Editora UnB, 1997, p. 30.
18 Idem, ibidem.
19 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2013, p. 201. 1015a-5.
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Direito e Emancipação – Volume I
natural. Como sabemos, para a filosofia aristotélica, dentre seus conceitos fun-
damentais, podemos destacar hyle que significa matéria, e eidos que significa
forma. Embora sejam conceitos bem distintos, eles são complementares porque
ambas se encontram na constituição de todo ser real, de tudo aquilo que é
como indivíduo. Pois, se por um lado, a individuação se deve à matéria, a orga-
nização da matéria na maneira daquilo que ela é deve-se à sua forma. Portanto,
enquanto o direito positivo responderia pela matéria do direito, o direito natural
responde pela sua forma. O direito concreto, a lei substancializada na maneira
como ela é feita e aprovada pela autoridade competente seria, assim, apenas
uma dimensão do fenômeno jurídico – ato – que apenas poderia se realizar
como direito se estivesse dentro da sua forma – potência – que é o ideal de
justiça. Aristóteles, na própria Metafísica, já havia nos advertido de que o ser
se diz de dois modos.20 Isso faz sentido também quando ele mesmo se refere, em
sua Ética a Nicômaco, à justiça política:
Para dar mais eloquência ao seu próprio argumento, diz Aristóteles que as
coisas que são justas por convenção ou por decisão humana mudam em toda
parte, tal qual as medidas que são utilizadas em diferentes locais. Da mesma
maneira, as constituições não são as mesmas nos distintos estados, contudo,
afirma o filósofo, só há uma constituição que é, por natureza, a melhor em
toda parte.22 Assim, parece ficar claro que o ser do direito, numa perspectiva
jusnaturalista, obedece a um certo dualismo. O problema que se extrai de tal
dualismo é o seguinte: mas o que fazer quando a matéria não se organiza em
conformidade com sua forma? Repetindo a pergunta com outras palavras te-
mos: o que fazer quando o direito positivo colide com o direito natural? Essa
decisiva pergunta é respondida da única maneira lógica por todos os jusnatu-
ralistas: deve prevalecer a forma, isto é, o direito natural. Isso Aristóteles deixa
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
bem claro ao afirmar: É evidente que se a lei escrita coloca-se contra o nosso caso,
é necessário recorrer à lei comum e à equidade como sendo mais justas... É neces-
sário insistir que os princípios da equidade são permanentes e inalteráveis, que a lei
comum igualmente não muda pois se conforma à natureza – ao passo que as leis
escritas mudam frequentemente.23 Isso deixa claro que as normas do direto na-
tural – lei natural ou lei comum no dizer de Aristóteles – possuem precedência
por serem consideradas, ontologicamente, a realidade primeira e última que diz
respeito à essência ou à forma do direito. Essa precedência pode ser pensada em
dois planos: o direito natural é 1) logicamente anterior e 2) moralmente supe-
rior. Logicamente anterior ao direito positivo, ao estado e à própria sociedade
política, pois como produto da natureza (possuindo em si mesmo o princípio do
seu desenvolvimento), não depende do direito positivo, do estado e da socieda-
de para a sua existência e sua validade, ao contrário, é ele que confere validade
última ao direito positivo, ao estado e a todas as normas sociais; por outro lado,
é moralmente superior ao direito positivo, ao estado e à própria sociedade po-
lítica pois sempre que uma norma de conduta ou organização social estiver em
rota de colisão com um princípio ou norma do direito natural é esse que deve
prevalecer por corresponder à ideia máxima de justiça.
Essa perspectiva jusnaturalista aparece desde os gregos como reconhecen-
do a existência de um direito natural que deriva da própria natureza das coisas.
A matéria seria parte de uma ordem naturalmente orientada por certos fins, de
forma que tudo no universo obedeceria a uma natureza primeira. Essa lógica
que aparece desde os filósofos pré-socráticos fica especialmente clara em He-
ráclito de Éfeso.24 Segundo este filósofo, a ordem natural das coisas – phisys – é
o devir ou o constante vir a ser onde nada permanece como é, tudo obedece
a uma lei geral da transformação (exceto a lei natural que afirma que tudo se
transforma) pela qual as identidades são sempre provisórias. Esse devir per-
manente, ao contrário do que se poderia imaginar, não produz o caos, mas a
ordem mesma. Nessa ordem formada por diferenças e antagonismos há, porém,
um sofisticado equilíbrio de forças contrárias. Mas não um equilíbrio que possa
sugerir estática, pelo contrário o equilíbrio resulta de uma permanente batalha
– dinâmica – por meio da qual os opostos se manifestam e buscam seu lugar no
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Direito e Emancipação – Volume I
mundo.25 Mas como tal cosmologia poderia ser base para um direito natural?
A resposta fica clara quando vemos o florescimento da democracia em Atenas
cerca de um século depois. A visão cosmológica de Heráclito se fixa como um
paralelo para a visão política da democracia ateniense. A força dos elementos
contrários gerando equilíbrio no cosmo se apresenta como a lei natural da polis.
Assim, na democracia também temos um sofisticado equilíbrio a partir do con-
flito decorrente da força de ideias e interesses contrários.26 Essa visão cosmo-
lógica do direito natural é de alguma forma intuitiva como quando pensamos
na natureza humana, pois desta própria natureza seriam derivados direitos na-
turais, isto é, direitos logicamente anteriores e moralmente superiores, válidos
em qualquer tempo ou lugar. Como exemplo, poderíamos pensar em condições
naturais da existência humana que seriam reconhecidas como direitos naturais,
tais como o direito à alimentação adequada, à luz do sol e à proteção da própria
vida. De certa forma o instituto jurídico-penal da legítima defesa estaria am-
parado e legitimado por este direito natural de preservação de si mesmo, de tal
forma que ele aparece como algo que se possa qualificar de justo.
Se, por um lado, é fácil e intuitivo compreender o conceito de direito na-
tural como o recurso e apelo a uma ideia regulativa de justiça, por outro lado,
o difícil é materializar essa ideia de justiça em normas ou preceitos mais con-
cretos e aplicáveis a situações da vida comum. Esse esforço foi realizado graças
ao pragmatismo dos jurisconsultos romanos e está presente no Digesto, primeira
parte do Corpus Juris Civilis que veio à tona no século VI com o imperador
Justiniano I. O Digesto é uma compilação de fragmentos de jurisconsultos clás-
sicos e, dentre eles, encontra-se a parte atribuída a Ulpiano onde está a famosa
formulação acerca da ideia de justiça: justitia est constans et perpetua voluntas jus
suum cuique tribuendi, isto é, a justiça é a vontade constante e perpétua de dar
a cada um o que é seu.27 Na sequência, Ulpiano apresenta aquilo que segundo
ele seriam os três grandes preceitos do direito e que, portanto, conformariam
os grandes fundamentos do direito natural: honeste vivere (viver honestamente),
alterum non laedere (não prejudicar ninguém) e suum cuique tribuere (dar a cada
um o que lhe pertence). Desde então, muito se tem debatido acerca da fórmula
suum cuique tribuere. Dar a cada um o que é seu ou o que lhe pertence, parece
25 KIRK, Geoffrey. RAVEN, John. SCHOFIELD, Malcon. Ob. Cit., pp. 193-221.
26 Cf. NAY, Olivier. História das Ideias Políticas. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35.
27 DIGESTO DE JUSTINIANO. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 21. D.10.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
ser uma afirmação bastante intuitiva e que, nesse sentido, nem exigiria muita
justificação. Mas o imbróglio é muito grande quando se discute o critério pelo
qual deveria se dar a cada um o que lhe pertence. Chaïm Perelman fala da in-
crível multiplicidade dos sentidos que se atribuem ao conceito de justiça, mas
recorre à fórmula de Ulpiano para falar de seis diferentes concepções possíveis,
conforme se possa entender o critério pelo qual se deva dar a cada um o que
lhe é legitimamente seu.28 São os seguintes os critérios de que fala Perelman:
1) a cada um a mesma coisa; 2) a cada um segundo seus méritos; 3) a cada um
segundo suas obras; 4) a cada um segundo suas necessidades; 5) a cada um se-
gundo sua posição; e 6) a cada um segundo o que a lei lhe atribui. Não iremos
entrar aqui no debate acerca de cada um dos critérios e, portanto, nos sentidos
possíveis e diversos da fórmula de Ulpiano, mas é fato que tal formulação per-
mitiu, e muito, o debate acerca da justiça, fortalecendo, assim, a ideia jusnatura-
lista. Ao lado do preceito suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), Ul-
piano forneceu outros dois preceitos para o Direito Natural: honeste vivere (viver
honestamente), alterum non laedere (não prejudicar ninguém). A perspectiva
da vida honesta parece dialogar tanto com os fundamentos do próprio direito,
no sentido da obediência à ordem legal, desde que o direito positivo não viole,
é claro, os próprios preceitos do direito natural, como com os fundamentos
da ordem social, no sentido da conformidade com os valores compartilhados
pela comunidade política. Viver honestamente, como sinônimo de probidade e
honradez, produz uma retidão jurídica e social, mas não enfrenta a questão da
relação com o outro; isso irá acontecer com maior eloquência no preceito alte-
rum non laedere. Não prejudicar ninguém significa que as inevitáveis afetações
produzidas por cada um não devem perturbar ou atrapalhar a vida de outrem,
da mesma forma, também não devem depreciar ou desvalorizar outros modos
de vida. Aqui estamos claramente situados diante do empoderamento moral
realizado pelo direito natural.
O debate em torno dos preceitos acerca do direito natural é, de alguma
maneira, incrementado com a cristandade medieval, especialmente por meio da
pena de Santo Tomás de Aquino. Nesse momento a perspectiva cosmológica
cede lugar a um outro entendimento de natureza teológica. Isso fica particu-
larmente claro quando Santo Tomás afirma que toda comunidade do universo
28 Cf. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 9-12.
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Direito e Emancipação – Volume I
é governada pela razão divina.29 Esta razão divina ou sabedoria divina é o que
este filósofo denomina de Lei Eterna, sendo essa uma diretiva de todos os atos
e movimentos do universo.30 Essa presença divina no universo é a fonte última
de toda justiça e direito, mesmo reconhecendo que ambos – justiça e direito –
possam ter uma conotação histórica. Contudo, as obras humanas acerca da
justiça e do direito apenas podem levar tal título – justas e jurídicas – na medida
em que estejam adequadas ao direito natural e aos preceitos da lei natural. Isso
Santo Tomás afirma literalmente: Portanto se a lei escrita contém algo contrário
ao direito natural, é injusta, e portanto não tem força obrigatória... Logo tais leis
escritas nem sequer podem chamar-se leis, mas antes, corrupções da lei...31 Embora
Santo Tomás coloque como fundamento último da justiça a razão divina – Lei
Eterna –32, seu maior esforço é deixar claro que a justiça é sempre um fenômeno
social e bilateral. Por isso afirma como sendo a finalidade maior da justiça a
ordenação da sociedade política, isto é, ordenação no que se refere aos outros.33
Por isso mesmo o elemento central das relações justas é a igualdade34, embora a
igualdade não implique sempre e necessariamente reciprocidade ou linearidade.
Claro que pode se dar nestes termos, mas do ponto de vista político ela é mais
que isso, podendo ser também proporcionalidade ou aproximações. Essa ideia
remete aos conceitos de justiça distributiva e justiça corretiva (comutativa ou
judicial) que já estava presente na filosofia política desde Aristóteles35 e que
Santo Tomás elabora ainda mais no seu Tratado sobre a Justiça.36
Um dos aspectos mais importantes da contribuição de Santo Tomás de
Aquino para a doutrina do direito natural foi seu conceito de Lei Natural. Isso
porque ele acrescenta novos preceitos em relação àqueles já existentes desde
a fórmula de Ulpiano (dar a cada um o que é seu, viver honestamente e não
prejudicar ninguém). Santo Tomás destaca o fato de que os preceitos da Lei
Natural dizem respeito à razão prática, aliás, são a base da sabedoria prática
29 AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 43. Questão 91, artigo I.
30 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., p. 61. Questão 93, artigo I.
31 AQUINO, Santo Tomás. Tratado da Justiça. Porto: Resjurídica, [s.d.], p. 59. Questão 60, artigo V.
32 AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 70-72. Questão 93, artigo VI.
33 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., p. 6. Questão 57, artigo I.
34 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., , p. 19. Questão 58, artigo II.
35 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 323-329. 1130b-1134a.
36 AQUINO, Santo Tomás. Tratado da Justiça. Porto: Resjurídica, [s.d.], pp. 63 e ss. Questão 61 a 67.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
37 Veja-se a eloquente frase de Santo Tomás: Os preceitos da lei da natureza estão para a razão prática do
mesmo modo que os princípios primeiros da demonstração estão para a razão especulativa: uns e outros são
princípios conhecidos por si mesmo. AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997,
p. 75. Questão 94, artigo II.
38 AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 76. Questão 94, artigo II.
39 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., p. 77. Questão 94, artigo II.
40 Cf. CUNHA, José Ricardo. Lei, Moral e Justiça em Santos Tomás de Aquino. In Anais de Filosofia –
Revista da Pós-Graduação da Universidade Federal de São João del-Rei. Julho de 2001, nº 8, pp. 18-19.
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Direito e Emancipação – Volume I
Mas que os preceitos derivados podem sofrer dois tipos de mutação: 1º) muta-
ção por adição, ou seja, podem preceitos derivados novos serem acrescentados
à Lei Natural, seja por uma razão divina, seja pela própria experiência humana;
2º) mutação por subtração, ou seja, quando a sabedoria prática apresenta boas
razões para que um preceito derivado não seja postulado como exigência jurí-
dica em função de circunstâncias especiais. Como exemplo, Santo Tomás fala
do preceito derivado da Lei Natural que diz que tudo aquilo que é tomado de
empréstimo deve ser devolvido, mas que por força de uma circunstância especial
detectada pela razão prática pode ser que tal preceito mude naquela situação de
modo que ele não possa ser racionalmente exigido sob tais condições.41
Uma forte mudança no cenário do direito natural acontece com o ad-
vento da modernidade, pois a fundamentação transcendente última própria
de um jusnaturalismo teológico cede espaço a um movimento de laicização do
direito onde a ordenação natural das coisas é vista de forma menos dependente
de um poder divino. Como consequência a razão se torna plenipotenciária na
compreensão do direito natural e há uma espécie de radicalização do direito na
razão individual, o que, ao contrário do que pode parecer, não implica nenhum
tipo de relativismo de tipo subjetivista. A base para a compreensão da univer-
salidade da razão individual já fora dada por Descates ao afirmar que por meio
da dúvida metódica e da evidência racional seria possível que cada indivíduo
chegasse à verdade universal. Certamente que a filosofia cartesiana influenciou
o pensamento jusnaturalista moderno, fazendo crer na existência de direitos
naturais evidentes à razão. Por exemplo, podemos indagar: onde está escrita
a lei que diz que as pessoas devem obedecer à lei? O dever de obediência à lei
é, nesse sentido, uma norma do direito natural que aparece inscrita em cada
razão individual, sendo, assim, universal. Ainda no campo da exemplificação,
nenhum jusnaturalista moderno se convenceria de que o dever de reparar os
danos causados a terceiros foi obra da imaginação legisladora. Longe disso, foi
apenas a compreensão de uma evidência racional da ordenação natural. Da
mesma forma, direitos fundamentais como a vida e a liberdade são compreen-
didos como direitos inatos às pessoas, o que seria, segundo este raciocínio, uma
conclusão lógica considerada a premissa da natureza humana.
Talvez a teoria moderna que revele com mais eloquência esta perspectiva
do direito natural seja a teoria do contrato social, presente especialmente na
41 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., p. 81. Questão 94, artigo IV.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
Claro que o exercício desta liberdade é muito frágil porque suscetível tan-
to a ataques externos quanto a ataques internos à própria comunidade. Isso
implicaria que tanto para a autodefesa quanto para a manutenção da ordem a
imposição das leis naturais poderia ser feita diretamente por qualquer pessoa.44
Porém, tornar-se executor das leis naturais e castigar diretamente os ofensores,
além de buscar a reparação pelos danos sofridos, embora sejam direitos naturais,
estabelecem uma forma de poder que poderia instaurar um estado de inimizade
e destruição – estado de guerra. Daí Locke alega que o governo civil é o remédio
acertado para os inconvenientes do estado de natureza, os quais devem, com toda
certeza, ser grandes se os homens têm de ser juízes em causa própria...45 Portanto a
sociedade política e o governo civil são instituídos tendo como base justamente
a preservação dos direitos naturais que poderiam estar em risco no estado de
natureza. Trata-se, assim, de um pacto de consentimento e não de um pacto de
sujeição. As pessoas não abrem mão de todos os seus direitos para se sujeitarem
a um soberano, mas elas consentem em fazer um pacto político que atue na
preservação dos seus direitos naturais. O contrato social assegura a faculdade
da maioria de legislar e estabelecer regras – direito positivo – a serem impostas
por governantes legítimos e juízes naturais, mas desde que respeitem os direitos
42 O contrato social é uma ideia recorrente da filosofia do direito, filosofia política e filosofia moral da
modernidade e que de forma mais ou menos distinta aparece em trabalhos de filósofos modernos tão
diferentes entre si como Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant.
43 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 35.
44 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 36-37.
45 LOCKE, John. Ob. Cit., p. 38; p. 42.
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Direito e Emancipação – Volume I
46 O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob
governo, é a preservação da propriedade. LOCKE, John. Ob. Cit., p. 82
47 LOCKE, John. Ob. Cit., p. 67. Veja-se o texto no original em inglês de modo que não reste dúvida da
fidelidade às palavras do autor: Man being born, as has been proved, with a title to perfect freedom and
an uncontrolled enjoyment of all the rights and privileges of the law of Nature, equally with any other man,
or number of men in the world, hath by nature a power not only to preserve his property – that is, his life,
liberty and estate –, against the injuries and attempts of other men, but to judge of and punish the breaches
of that law in others, as he is persuaded the offence deserves… LOCKE, John. The Second Treatise of Civil
Government. University of Adelaide Library. Web edition published by Books@Adelaide. The text for
this edition is derived from the sixth edition of 1764. Chapter VII, paragraph 88.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
sociedade política. Por isso mesmo o autor afirma que num estado de natureza a
garantia dos direitos naturais é inviável em função de fatores como: 1) ausência de
leis positivas firmadas, conhecidas e aquiescidas, estabelecendo tais leis padrões
previsíveis para a conduta individual e para a resolução de controvérsias; 2) não
existência de juízes naturais e imparciais para o julgamento de litígios de acordo
com a lei estabelecida, sem se deixarem levar por paixões ou vinganças; 3) a
ausência de um aparato burocrático que sustente as decisões legais e judiciais, ge-
rando uma coerção saudável que induza as pessoas ao cumprimento das regras.48
Locke está antecipando uma questão fundamental para o jusnaturalismo contem-
porâneo que é a moralidade interna do estado de direito, isto é, que a sociedade
política apenas se legitima como jurídica na medida em que obedece aos critérios
morais do estado de direito, sendo tais critérios uma exigência do direito natural.49
Para Locke é muito claro que o governo da sociedade política não pode ser
pior para as pessoas do que o estado de natureza. É exatamente por isso que o
jusnaturalismo do contratualismo lockeano ainda guarda uma peça fundamen-
tal: o direito de resistência. Veja-se a indagação formulada pelo autor:
20
Direito e Emancipação – Volume I
21
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
influência por todo o mundo. Claro que ele se encontra hoje bastante enfraque-
cido, mas não o suficiente para ter desaparecido. Mas essa respeitabilidade não
o torna imune a uma série de críticas, sob diferentes perspectivas, inclusive do
ponto de vista de uma abordagem pós-normativa baseada numa teoria crítica
do direito como esta que pretendemos fazer.
Como foi visto, a principal característica do direito natural é que este é
conformado por um conjunto de valores, princípios e regras que são logicamente
anteriores e moralmente superiores, o que garante a precedência de seus pre-
ceitos sobre costumes sociais e normas estatais. Na verdade, os jusnaturalistas
sustentam uma espécie de papel pedagógico do direito natural onde caberia a
este orientar legisladores e juízes para que as normas do direito positivo estejam
sempre de acordo com aquelas do direito natural. A crítica que será aqui apre-
sentada levará em consideração estas duas teses centrais do jusnaturalismo: a
da anterioridade lógica e a da superioridade ética. A primeira nos remete a uma
questão epistemológica, a segunda a uma questão moral. Em geral, o enfoque
que une as duas críticas – epistemológica e moral – é o da metafísica ou, melhor
dizendo, da crítica a uma metafísica jurídica que retira do direito sua concretude
histórica, sua própria corporeidade, isto é, aparta da própria experiência jurídica
os sujeitos que conformam o direito e que são também conformados por ele.
Aliás, esta crítica aparece claramente formulada por Guido Fassó: apenas se des-
vinculado da ideia de um direito natural metafísico, extra-histórico, eterno e imutável,
o jusnaturalismo ainda pode ter um lugar na cultura jurídico-política hodierna.53
Como assinalou John Finnis em seu texto Natural Law Theories54 a ques-
tão central do paradigma jusnaturalista é saber como e quais seriam as razões
para agir que o direito poderia oferecer para as pessoas em geral e de que ma-
neira estas razões poderiam ser transformadas em atos de autoridade que in-
fluenciassem os processos sociais de tomada de decisões. Não será percorrido
aqui o mesmo itinerário de reflexão proposto por Finnis, mas o seu ponto de
partida nos ajuda em nossa crítica. Isso porque a tese da anterioridade lógica
do direito natural, em alguma medida, exonera a autoridade política do estado
como sustentação institucional para o cumprimento da norma, isto é, dos pre-
22
Direito e Emancipação – Volume I
ceitos da lei natural. Dessa forma, é preciso apostar no conceito de crenças bá-
sicas como forma de validação e produção de eficácia em relação às normas do
direito natural. Isso se enquadra, portanto, na perspectiva do fundacionalismo
ou fundacionismo epistêmico.
Fundacionalismo sugere a ideia de fundamentos para o conhecimento e
se apresenta como uma perspectiva epistemológica que envolve dois padrões,
ou níveis, de crenças para a justificação epistemológica do conhecimento: as
crenças não-básicas e as crenças básicas. As crenças não-básicas são uma res-
posta epistemológica provisória que damos diante das coisas e questões mais
elementares pelas quais somos afetados; porém resta um problema: como jus-
tificar tais crenças não-básicas? Isso implicaria um retorno ad infinitum a uma
cadeia de crenças anteriores que funcionariam como justificações sucessivas
para as crenças não-básicas. Então o fundacionismo propõe que se abrevie esse
caminho por meio da afirmação de crenças básicas que justificariam as crenças
não-básicas. Assim funcionam, por exemplo, os axiomas matemáticos, a lógica
formal e as crenças religiosas. O fundacionismo leva às últimas consequências a
ideia de intuição, fazendo que todas as crenças de um sistema sejam sustentadas
por outras que não são demonstradas, mas que são consideradas elementares
dentro de uma dada teoria, estas crenças elementares são exatamente as crenças
básicas. Duvidar delas corresponderia, segundo os fundacionalistas, a um certo
ceticismo diante da possibilidade do conhecimento e da verdade.
Como foi dito, o fundacionismo opera em diferentes campos e a lógica for-
mal talvez seja aquele por meio da qual todos nos damos conta dessa experiên-
cia. Quem já não ouviu proposições lógicas como “o todo é maior que as partes”
ou “duas coisas iguais a uma terceira, são iguais entre si”. Estamos acostumados
a tomar estas proposições como verdadeiras sem precisar debatê-las porque elas
são crenças básicas que temos diante do mundo. Simon Blackburn define fun-
dacionalismo como o ponto de vista epistemológico segundo o qual o conhecimento
deve ser concebido como uma estrutura que se ergue a partir de fundamentos certos e
seguros.55 Pois bem, a questão que se coloca é se as razões para agir apresentadas
pelo jusnaturalismo poderiam ser adequadamente justificadas apoiando-se em
crenças básicas. Seriam tais crenças básicas fundamentos certos e seguros para
a produção de expectativas normativas e para as relações jurídicas? O conceito
de crença supõe que oferecemos nosso assentimento a uma determinada propo-
55 BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
sição. No caso do direito a maior parte das proposições possui caráter norma-
tivo, de tal modo que este assentimento implica não apenas numa expectativa
de encontro com a verdade, mas, também, no reconhecimento da imposição de
condutas obrigatórias na vida social ou de um grupo específico de faculdades
determinadas. Em outras palavras, damos nosso assentimento a certos direitos
objetivos e direitos subjetivos, estabelecendo assim, nossas expectativas nor-
mativas. Mas não seria exigir demais do cidadão comum que fundamentasse
todas as suas expectativas normativas numa sucessão de elos de justificação de
validade da norma onde o último elo não é apenas um elo mas uma verdade
justificadora básica e nesse sentido ela mesma não justificada? É importante
lembrar que se depositarmos nosso assentimento em crenças básicas acerca do
direito e tais crenças forem falíveis estaremos colocando em risco todo o sistema
jurídico e as formas mais primárias de relação jurídica, afetando toda a socieda-
de em seus diferentes setores.
Como se não bastasse o peso da insegurança resultante da impossibilidade
de se justificar as crenças básicas, peso especialmente grande quando falamos de
regulação jurídica, a tese da anterioridade lógica do direito natural, ao repousar
sobre o fundacionismo epistêmico coloca o sujeito na posição da crença passiva.
Ele é visto como um repositório estático de crenças básicas do qual se espera
apenas o consentimento. O fundacionismo não permite uma atitude proativa
do sujeito a não ser aquela de depositar todas as suas confianças nas crenças
básicas. Não se pretende aqui uma desaprovação ilimitada do fundacionalismo,
talvez esse seja um caminho aceitável para certas áreas de conhecimento ou
mesmo para o sentimento religioso, mas parece ser inaceitável como fundamen-
to epistemológico para o direito, especialmente se esperamos das pessoas algo
mais do que crença passiva. É importante ter em mente que ao tratarmos de re-
lações jurídicas estamos falando dos limites e possibilidades do estabelecimento
de determinadas relações cooperativas bem como da composição de diferentes
tipos de conflitos. Não parece adequado, especialmente nestas circunstâncias,
que a única participação do sujeito nesse processo seja o assentimento a crenças
jurídicas básicas. Aqui estamos diante de uma obliteração do sujeito que é con-
finado a um sistema de crenças onde suas manifestações mais criativas acerca
da vida social não necessariamente irão contar para a elaboração do imaginário
jurídico de uma sociedade. Isto porque todos os fundamentos do direito já estão
dados. Esse é o problema do paradigma jusnaturalista, seja na perspectiva cos-
mológica, teológica ou mesmo racionalista. São três metafísicas: da natureza,
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Direito e Emancipação – Volume I
56 Cf. HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. Sintra:
Publicações Europa-América, 1998, pp. 144-146.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
fosse uma espécie de saber absoluto que, como tal, possui graves dificuldades
para perceber a realidade e a própria experiência jurídica como produto de uma
práxis humana. Dessa dificuldade resulta uma irônica certeza: são os mais in-
justiçados que sentem a ausência da proteção jurídica. Mas é importante ser
notado que o exemplo do genocídio remete a um ponto fulcral: não se trata de
um sentimento particular de injustiça. Mas da injustiça social objetiva que se
instaura inicialmente com um ato de agressão ou negação da autonomia própria
do sujeito que lhe serve de fundamento para a sua práxis social.57 Como definiu
Cornelius Castoriadis, práxis é este fazer no qual o outro ou os outros são visados
como seres autônomos e considerados como o agente essencial do desenvolvimento
de sua própria autonomia.58 É preciso que todas as instituições sociais, incluindo
aí o direito, reconheçam os sujeitos concretos da injustiça social e as diferentes
modalidades de injustiça que sofrem para que possam, as instituições, atuarem
no sentido de resgatarem a autonomia violada de tais sujeitos a fim que eles
possam voltar à construção praxiológica de sua própria identidade.
Uma teoria jurídica que leve em conta e valorize o ser humano deve, de
alguma forma, reconhecer a radical historicidade de cada sujeito e da vida so-
cial como um todo e, principalmente, a imaginação criadora da qual pessoas e
povos são dotados.59 A temporalidade é uma dimensão fundamental do huma-
no exatamente porque é na história que se dá a irrupção da vida humana como
criação social. Mais do que assentir crenças básicas, o ser humano é capaz de
instituir a realidade como criação histórica, seja mantendo, seja mudando a si
mesmo e a seu mundo. Nesse sentido, o tempo é a possibilidade da emergên-
cia de uma radical singularidade resultante da simples presença do sujeito no
mundo.60 Portanto, a teoria jurídica que olha para cima como se o tempo fosse
uma instauração natural – kronos – se torna incapaz de perceber o tempo como
a arena onde emergem as singularidades e diferenças resultantes dos processos
sociais e históricos de criação humana e, também, onde transcorrem situações
57 Como foi esclarecido na introdução, é importante que a leitora e o leitor tenham em mente que toda a
crítica apresentada no livro terá como base a ideia de injustiça social e nunca o sentimento particular
de injustiça. A violência que atinge o sujeito dessa injustiça social pode ter origem tento econômica,
como política ou cultural.
58 CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 94.
59 CASTORIADIS, Cornelius. Ob. Cit., p. 176.
60 CASTORIADIS, Cornelius. Ob. Cit., pp. 231-239.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
61 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 83.
62 Idem, ibidem.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
escolhem tendo em vista a realização de seus objetivos e ideais de uma vida boa.
Nesse sentido, aquilo que podemos chamar de bens humanos correspondem a
atividades e metas que traduzem valores assim reconhecidos por aquela comu-
nidade como sendo importantes para todos.65 Assim, as virtudes sempre estão
ligadas às finalidades de uma vida socialmente aceita e tudo isso decorre de um
intenso processo social de vivências e de escolhas e não de uma ordem natural.
Claro que o argumento dos jusnaturalistas de que a ordem natural levaria ao re-
conhecimento de direitos naturais, tais como direito à alimentação, à luz do sol
ou à vida, é um argumento poderoso. Porém, quando entendemos que o bem é
um produto social-histórico, a conclusão é de que estes direitos são assim consi-
derados, como direitos subjetivos, porque e na medida em que são fundamentais
para a realização de projetos de vida específicos que são considerados impor-
tantes para determinadas pessoas e/ou grupos sociais e são socialmente aceitos.
A diferença deste argumento em relação àquele jusnaturalista, é que este leva
em consideração a atividade humana, seja como produtora de concepções de
bem, seja como produtora de direitos e senso de justiça. Aqui o sujeito surge
como protagonista, ou seja, como aquele que é sujeito de (socialmente ativo)
e não aquele que está sujeito a (naturalmente passivo). Quando submetemos o
sujeito à ordem natural, não há o que se debater, apenas vislumbramos seu lugar
natural. Mas quando entendemos o sujeito como produtor de sua própria ordem
social, isso abre espaço, aumenta a margem de liberdade, para debatermos seu
lugar no mundo. Um exemplo histórico básico é a luta contra a escravidão. Há
autores jusnaturalistas que colocam a relação entre senhor e servo como se fosse
uma relação tão natural quanto a de pai e filho. Evidentemente, parece ser pou-
co provável que um jusnaturalista, ou qualquer um que seja, defenda a escravi-
dão como uma relação natural que deriva da natureza das coisas. Mas se essa
ideia já apareceu na bibliografia jusnaturalista é por conta de uma concepção
organicista de sociedade que prevê lugares naturais para as pessoas.66 Voltando
ao exemplo da luta contra as diferentes formas de escravidão, ao entendermos o
bem e a justiça não como uma ordem natural, mas como uma produção social
e humana, podemos afirmar que impedir ou dificultar de alguma forma que
determinadas pessoas e grupos sociais possam construir suas concepções de
30
Direito e Emancipação – Volume I
bem e seus planos de uma vida boa já consiste numa forma de injustiça que aco-
mete uma infinidade de pessoas ao redor do mundo, por diferentes razões. São
inúmeras as pessoas que não possuem as condições materiais básicas para uma
existência digna e, por isso, dedicam-se às ações voltadas para a sobrevivência,
sendo, assim, privadas da possibilidade de definirem livremente seu projeto de
uma vida boa. Em outros casos, pessoas são discriminadas, perseguidas e ex-
cluídas em função da intolerância e, como resultado, não conseguem colocar
em prática, ao menos de forma livre e segura, suas concepções de bem e seus
projetos de uma vida boa. São todas vítimas de uma grave injustiça social e o
direito deve ser capaz de constatar estas pessoas não apenas na violência que
sofrem, mas, também, nas diferentes formas de resistência e tentativas de supe-
ração da injustiça que são levadas a cabo por tais pessoas. Para isso, não se pode
esperar uma visão mais arguta e sensível olhando-se para uma ordem natural.
É necessário olhar para a história e para a realidade social, mais do que isso, é
preciso desenvolver uma capacidade pessoal e institucional de ouvir a narrativa
e o testemunho direto daqueles são as vítimas da injustiça social.
É claro que os apelos que jusnaturalistas como Cícero fazem à lei natural
como forma de resistência às tiranias são invocações convincentes. É conhecido
na literatura e na filosofia o caso de Antígona, alçada à condição de heroína na
trágica peça escrita por Sófocles. Num famoso trecho da peça, quando Creonte,
seu algoz, pergunta a Antígona por que ela transgrediu a lei da qual tinha abso-
luto conhecimento de sua existência, assim ela responde:
Não foi com certeza Zeus que a proclamou, nem a Justiça com trono
entre os deuses dos mortos as estabeleceu para os homens. Nem eu su-
punha que tuas ordens tivessem o poder de superar as leis não escritas,
perenes, dos deuses, pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são
sempre vivas, nem se sabe quando surgiram.67
31
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
32
Direito e Emancipação – Volume I
e real, especialmente quando estamos diante de uma questão que não é ape-
nas epistemológica, aliás é, antes, uma questão ética. Toda a filosofia prática
deve avançar em conjunto para o enfrentamento das injustiças. Para tanto,
como falamos antes, não basta uma representação da violência, da dor ou do
sofrimento. É necessário que o direito, com seus institutos jurídicos e o sistema
de justiça, esteja devidamente preparado para ouvir a narrativa dos sujeitos da
injustiça. É preciso abrir espaço para que tais sujeitos se façam presentes na
narração de sua própria história, é preciso diminuir a re-presentação para abrir
mais oportunidades de presentação.
Talvez a abordagem mais interessante da superioridade ética do direito
natural tenha sido aquela feita por Santo Tomás de Aquino. Isso porque este
filósofo tentou conciliar o preceito moral superior e imutável da Lei Natural,
com outros preceitos contingentes e mutáveis, da própria Lei Natural. Como foi
visto anteriormente, o preceito primeiro e imutável da Lei Natural é faz o bem
e evita o mal. Sendo o mal tudo aquilo que afasta do bem, resta em tão o neces-
sário debate para a compreensão adequada do que seja o bem. Nesse momento,
seria possível recuperarmos todo o debate já feito acerca da historicidade de
bem, por oposição a uma concepção naturalística e cosmológica do bem, ou,
no caso de Santo Tomás, de uma concepção teológica do bem. Mas ainda que
Santo Tomás ampare o bem, em última instância, na Lei Eterna, sendo esta
o próprio plano da sabedoria divina e o fim e a causa de todas as ordenações
virtuosas, ele não limita suas explicações morais, jurídicas e políticas a este
plano superior. Ao contrário, ele procura na razão prática os elementos para o
discernimento da conduta correta ou justa. Daí a importância estratégica da
Lei Natural: se o preceito primeiro coloca a soberania absoluta da ideia de bem
como meio e fim do agir humano, os preceitos derivados podem ser modificados
conforme o lugar ou a situação do agente. Por isso ele afirma a insuficiência da
razão especulativa no domínio ético. Quando estamos diante da necessidade de
uma escolha racional ou de uma deliberação os princípios comuns da razão es-
peculativa não permitem perceber que o melhor resultado nem sempre é aquele
que preserva intacto o princípio da ação. As particularidades e vicissitudes de
um caso concreto e dos sujeitos nele envolvidos podem exigir escolhas que mu-
dam o princípio da ação exatamente para preservar o bem maior – fazer o bem
e evitar o mal.69 Esse raciocínio está muito próximo daquilo que a filosofia do
69 AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 80-81. Questão 94, artigo IV.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
70 RECASENS SICHES, Luis. Filosofía del Derecho. México: Porrua, 2008, p. 642.
71 RECASENS SICHES, Luis. Ob. Cit., p. 643.
72 RECASENS SICHES, Luis. Ob. Cit., p. 647.
34
Direito e Emancipação – Volume I
Mas a justiça, considerada como virtude especial, olha o bem como de-
vido ao próximo; e segundo isto, à justiça especial corresponde o fazer o
bem como uma obrigação para com o próximo, e evitar o mal contrário,
ou seja, quanto é nocivo ao próximo. E à justiça geral corresponde o
buscar o bem comum da comunidade... Pois é próprio da justiça o esta-
belecer a igualdade em relação ao outro, como já se disse. Portanto o seu
papel consiste em constituir algo e, uma vez constituído, conservá-lo, em
tudo que se refere ao outro.73
73 AQUINO, Santo Tomás. Tratado da Justiça. Porto: Resjurídica, [s.d.], p. 262. Questão 79, artigo I.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
74 FULLER, Lon. The Morality of Law. New Haven: Yale University Press, 1969, pp. 5-6.
75 FULLER, Lon. Ob. Cit., pp. 46-91.
76 FULLER, Lon. Ob. Cit., p. 96.
77 FINNIS, John. Lei Natural e Direitos Naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, pp. 264-269.
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Direito e Emancipação – Volume I
tes em qualquer sociedade democrática, eles não são suficientes para resolve-
rem alguns dos mais dramáticos problemas que vivem os sujeitos das injustiças
sociais. Isso porque o estado de direito resulta numa abordagem basicamente
formal. Locke se preocupava em fazer um pacto de consentimento onde os di-
reitos fossem preservados, contudo o reconhecimento jurídico de direitos não
significa que eles sejam realmente efetivados no mundo real, lá onde as pessoas
vivem e as contradições são produzidas. Muitas vezes, as condições materiais
se sobrepõem aos princípios do estado de direito ainda que eles sejam consi-
derados como leis naturais, como querem Fuller e Finnis. A cidadania que se
forja no âmbito da formalidade do estado de direito é apenas meia cidadania.
Diz respeito ao cidadão de papel, isto é, aquele que possui sua carteira de iden-
tidade, mas nem sempre é respeitado pela burocracia do estado; possui carteira
de trabalho, mas nem sempre encontra emprego digno; possui título de eleitor,
mas nem sempre é representado pelas forças políticas vitoriosas nas eleições;
possui carteira de motorista, mas nem sempre tem condições de comprar um
carro por mais popular que seja; possui certidão de nascimento, mas nem sem-
pre é tratado como ser humano. Não falta papel a este cidadão, faltam oportu-
nidades. Essa desigualdade de oportunidades engendra uma série de injustiças
sociais para as quais a cidadania de papel, meramente formal, não é capaz de
fornecer respostas viáveis.
Douzinas e Gearey ao criticarem os fundamentos do jusnaturalismo con-
tratualista lembram que o contratualismo trabalha com a suposição de que os
contratantes supõem que o acordo que eles fizeram inclui apenas as consequên-
cias razoáveis dos termos do contrato, mas que, na verdade, o sistema político
e econômico gerado a partir do próprio contrato produz, muitas vezes, conse-
quências não desejadas, mas estas consequências não podem ser formalmente
rejeitadas uma vez que decorrem dos termos iniciais do contrato.78 É como se
todos estivessem presos e submetidos aos axiomas do contrato social, mas estes
axiomas, embora sejam os mesmos para todos, geram resultados diferentes para
pessoas diferentes. Para alguns podem resultar privilégios, honra e riquezas, para
outros podem resultar encargos, desonra e pobreza. Ainda que se pretenda ar-
guir o argumento da liberdade e autodeterminação para justificar essa diferença
de resultados entre estes dois grupos de pessoas, isto é, que alguns fizeram por
78 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 96.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
merecer terem mais do que outros, é um fato inconteste que na maior parte das
sociedades muitas desigualdades são imerecidas. A brutal desigualdade de opor-
tunidades faz com que os resultados indesejados do contrato social determinem
a vida de alguns desde o nascimento. Essa crítica se revela mais contundente no
modo de produção capitalista, isso porque o capitalismo basicamente estrutura
a organização social do trabalho a partir de dois grupos: os que detêm a sua
própria força de trabalho e pela qual devem sobreviver; e os que detêm os meios
de produção e o próprio capital estrutural. Os primeiros são os trabalhadores
e os segundos são os capitalistas. No tocante a esta relação Marx produz uma
poderosa alegoria: Como capitalista, ele é apenas capital personificado. Sua alma é
a alma do capital. Mas o capital tem um único impulso vital, o impulso de se autova-
lorizar... O capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção
do trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga.79 Os princípios
formais do estado de direito não impedem uma consequência básica indesejada
pela maior parte das pessoas – trabalhadores – no âmbito da sociedade: a brutal
exploração da maioria esmagadora dos trabalhadores pelo capital, o que produz
diferentes formas de violência, opressão e privação. Mas não basta reconhecer
que existe tal processo de opressão. É preciso ouvir o oprimido e aprender com
ele sobre a realidade do mundo.
38
2. O Paradigma do Positivismo Jurídico
80 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 54.
81 BOBBIO, Norberto. Ob. Cit., pp. 54-55.
39
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
40
Direito e Emancipação – Volume I
85 SAINT-SIMON, Claude-Henri de. Mémoire Sur La Science De L'homme In Oeuvres Choisies. Vol.II.
Bruxelas: Librairie Universelle de J. Rozez, 1859, p. 24
86 SAINT-SIMON, Claude-Henri de, Ob. Cit., p. 24.
41
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
O positivismo nega que exista uma força absoluta que seja, ao mesmo
tempo, a causa e a explicação para todos os fenômenos. Crer em tal coisa seria
uma preguiça do espírito que se renderia diante da tentação da metafísica.
Todo conhecimento é, portanto, relativo pois está sempre em movimento e re-
sulta das suas condições históricas de possibilidade.88 Mas é importante que se
tenha claro que esta relatividade histórica da produção do conhecimento não
nega a possibilidade de, por meio da observação e da razão, se compreender a
ordem exterior do mundo e alcançar as suas leis gerais de funcionamento. Nas
palavras de Comte é preciso conceber essa ordem exterior como abarcando, além
do mundo propriamente dito, o conjunto de nossos fenômenos que, apesar de serem
os mais modificáveis de todos, também se sujeitam a leis naturais invariáveis, princi-
pal objetivo de nossas contemplações positivas.89 O mundo quando tomado em sua
máxima exterioridade eleva a objetividade do conhecimento ao seu mais alto
nível, de uma pura racionalidade que seria capaz de perceber a ordem e har-
monia intrínseca dos fenômenos e, dessa forma, da realidade mesma. O corpo
social pode ser comparado ao corpo físico, o que significa que, de acordo com
o ideário do positivismo filosófico, sendo mantida sua harmonia inerente, o
corpo social se desenvolverá – progredirá – da mesma forma que se desenvolve
o corpo físico de um ser humano.
Numa feliz síntese, Michael Löwy explica como as ciências sociais foram,
em grande parte, tomadas por esse modelo epistemológico do positivismo filo-
sófico, sendo conduzidas basicamente pelos seguintes princípios:
87 COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 23.
88 COMTE, Augusto. Discurso Sobre o Espírito Positivo. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 63.
89 COMTE, Augusto. Discurso Preliminar Sobre o Conjunto do Positivismo. São Paulo: Abril Cultural,
1983, p. 108.
42
Direito e Emancipação – Volume I
90 LÖWY, Mchael. As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo
na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994, p. 17.
91 Cf. BATIFFOL, Henri. A Filosofia do Direito. Lisboa: Editorial Notícias [s.d.], p. 8.
43
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo.92 O direito positi-
vo é o fenômeno jurídico que se caracteriza como uma exterioridade observável,
como o corpo bruto no dizer de Saint-Simon ou o fato social no dizer de Émile
Durkheim.93 De efeito, o conhecimento a ser produzido no domínio do direito
deve seguir esta orientação da observação e descrição do fenômeno jurídico,
isto é, do direito positivo. Nesse processo, o conceito de ciência, via de regra, é
tomado como crucial para os positivistas. A seriedade do conhecimento jurídi-
co depende da capacidade de organizá-lo na forma de uma ciência que delimite
o seu objeto de estudo – o fenômeno jurídico – e produza explicações baseadas
em observações positivas. Essa é uma operação que se realiza na ciência do di-
reito, e nas ciências sociais em geral, na maneira como defenderam Condorcet,
Saint-Simon e Comte: tendo como base o modelo das ciências naturais. Acerca
disso, comenta António Manuel Hespanha:
92 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 119.
93 Lembremos o que afirma Durkheim acerca das regras relativas à observação dos fatos sociais: A
primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas. [grifo nosso]. DURKHEIM,
Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 15.
94 HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. Sintra: Publicações
Europa-América, 1998, p. 174.
44
Direito e Emancipação – Volume I
domínio jurídico.95 Como afirma Batiffol, o respeito pela distinção entre o direito
existente e aquele que poderia ou deveria ser, tem como consequência, essencial para
a inspiração positivista, dispensar o jurista de se aventurar nos domínios incertos dos
juízos de valor, das questões de fundamento e de finalidade.96
Portanto, todos os positivistas concordam com a negação do fundacio-
nalismo jusnaturalista e de que o conhecimento do direito deve ser pautado
pela postura científica – e filosófica – da observação e descrição do fenômeno
jurídico – direito positivo – sem qualquer tipo de juízo de valor. Resta, todavia,
uma pergunta fundamental: mas em que consiste o fenômeno jurídico? Não
há exatamente um consenso em relação à resposta dada a tal pergunta, o que
significa que o conceito chave de direito positivo está longe de ser uma unanimi-
dade entre os próprios juspositivistas. De maneira geral é possível falar, ao me-
nos, em quatro respostas a tal pergunta. As primeiras duas respostas se inserem
numa perspectiva mais estatalista do direito. Nesse sentido, alguns acreditam
que o fenômeno observável do direito é a lei. Para estes, quem quer conhecer o
direto deve estudar a lei e quem precisa aplicar o direito deve aplicar a lei. Esse é
o entendimento básico da Escola da Exegese.97 Outros, porém, acreditam que o
fenômeno observável do direito é a norma jurídica. Segundo estes, quem quiser
conhecer o direito deve estudar a norma jurídica e quem precisar aplicar o di-
reito deve aplicar tal norma. Aqui, estamos diante do ponto de vista das teorias
normativistas do direito, lideradas por Hans Kelsen.98 Já numa perspectiva não
estatalista, há quem acredite que o fenômeno observável do direito são as tradi-
ções. Assim, quem quiser conhecer o direito deve estudar as mais importantes
tradições jurídicas e quem precisar aplicar o direito deve aplicar tais tradições.
Nesse caso estamos diante das convicções esboçadas na Escola Histórica do
Direito.99 Ainda dentro da perspectiva não estatalista, há aqueles que acreditam
95 Cf. MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 276.
96 BATIFFOL, Henri. A Filosofia do Direito. Lisboa: Editorial Notícias [s.d.], p. 15.
97 Cf. HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. Lisboa:
Publicações Europa-América, 1998, pp. 176-180. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de
Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, pp. 78-89.
98 Cf. PATTARO, Enrico. Elementos para uma Teoria del Derecho. Madrid: Editorial Debate, 1986, pp. 51-86.
99 Cf. HESPANHA, António Manuel. Ob. Cit., pp. 181-185. BOBBIO, Norberto. Ob. Cit., pp. 45-
53. Importante esclarecer que estamos falando da Escola Histórica do Direito na sua vertente
tradicionalista, isto é, na sua primeira fase, liderada por Savigny, e não na vertente conceitualista, já
na fase posterior, do pandectismo. Também vale lembrar que na opinião de Bobbio a Escola Histórica
45
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
1. Tese da lei: o conceito de direito tem que ser definido por meio do
conceito de lei;
do Direito deve ser entendida como predecessora do positivismo jurídico e não parte dele. BOBBIO,
Norberto. Ob. Cit., p. 53.
100 Cf. HESPANHA, António Manuel. Ob. Cit., pp. 200-213. BATIFFOL, Henri. Ob. Cit., pp. 31-48.
MIAILLE, Michel. Ob. Cit., pp. 279-286.
101 Cf. HOERSTER, Norbert. Em Defensa Del Positivismo Jurídico. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000.
102 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 10.
103 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 11.
46
Direito e Emancipação – Volume I
Como Hoerster parte do pressuposto de que estas cinco teses são autô-
nomas e independentes entre si, ele passa, então, à análise de cada uma delas,
para extrair sua conclusão em defesa do juspositivismo. Em relação à Tese 1
(Tese da lei: o conceito de direito tem que ser definido por meio do conceito
de lei) afirma que ela é plenamente insustentável nos dias de hoje. Lembra que
há produção genuinamente jurídica no modelo de direito consuetudinário (ba-
seado em tradições) e que as decisões proferidas por juízes e tribunais também
conformam direito e tanto as tradições como as sentenças e acórdãos diferem
do conceito de lei, embora conformem o direito. Para Hoerster a Tese da lei é
tamanhamente absurda que até mesmo os antipositivistas são parcimoniosos na
sua utilização para fazer a crítica do positivismo jurídico.104
O centro da polêmica contemporânea acerca do positivismo jurídico es-
taria, conforme afirma Hoerster, na Tese 2 (Tese da neutralidade: o conceito
de direito tem de ser definido prescindindo-se de seu conteúdo). Isso porque o
juspositivista exige que o conceito de direito seja definido exclusivamente por
critérios formais e de maneira neutra em relação ao conteúdo, o que significa
que um direito vigente e válido pode ter qualquer conteúdo desde que respeite
os critérios formais.105 Os positivistas defendem, por meio da tese da neutralida-
de, uma separação entre os critérios formais de validade do direito e qualquer
tipo de valoração ou critério moral.
A Tese 3 (Tese da subsunção: a aplicação do direito pode levar-se a cabo
em todos os casos mediante uma subsunção livre de valorações) também é
descartada logo de início por Hoerster. Segundo ele não há nenhum motivo
47
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
para acreditar que aqueles que aplicam o direito, especialmente juízes, sejam
“autômatos da subsunção” que sempre procedam com base numa lógica silogís-
tica.106 Restaria uma polêmica caso fosse considerado que o descarte da Tese
da Subsunção (Tese 3) implicaria, automaticamente, no descarte da Tese da
Neutralidade (Tese 2). Hoerster acredita que não, pois a Tese 2 sustenta que as
boas teorias do direito devem ser apenas descritivas, isto é, observar e descrever
o fenômeno jurídico – direito positivo – tal qual ele é conforme resultante de
suas fontes formais. A refutação da Tese da Subsunção significa admitir que o
juiz, ou a autoridade que aplica a norma abstrata e a transforma em norma con-
creta, é, de alguma forma, influenciado pelos seus próprios valores, uma vez que
este processo decisional, processo de individualização da norma genérica, não
ocorre exclusivamente nos moldes do silogismo, isto é, da subsunção. Hoerster
admite que da mesma forma que há um ato criativo e valorativo, por parte do
legislador, ao produzir a norma abstrata, há também, ou pode haver, um ato
criativo e valorativo do juiz ao produzir a norma concreta, individualizada. Mas
isso não estaria em contradição com a Tese da Neutralidade (Tese 2) segundo a
qual o direito é válido quando decorre de suas fontes formais e apenas por isso,
independentemente de seu conteúdo.107
No que diz respeito à Tese 4 (Tese do subjetivismo: os critérios do direito
justo são de natureza subjetiva), Hoerster afirma que não há como se acreditar
em critérios objetivos por meio dos quais possa ser utilizado um parâmetro mo-
ral (direito justo) para se definir o que é um direito válido. Isso porque tais pa-
râmetros recairiam, inevitavelmente, em concepções e juízos subjetivos, típicos
da moral, mas não do direito, posto sua heteronomia. O autor afirma a impos-
sibilidade de se classificar como verdadeiro ou falso um juízo de valor, o que so-
mente poderia acontecer com juízos de fato. Assim oferece o seguinte exemplo,
em lembrança ao antigo regime de segregação racial na África do Sul: os negros
devem ter o mesmo direito ao voto que os brancos. O fato de concordarmos com
isso não significa que podemos dizer que tal afirmação é verdadeira. Da mesma
forma, aqueles que discordam não estão habilitados a dizer que a afirmação é
falsa.108 Há uma desconfiança por parte de Hoerster em relação à capacidade
da razão prática de chegar a consensos morais no âmbito de uma dada socie-
48
Direito e Emancipação – Volume I
dade, por isso ele nega a ideia de uma moralidade jurídica objetiva. Não que o
debate moral não deva ser feito, ao contrário. O próprio Hoerster se engajou ao
longo da sua atividade filosófica em debates morais de primeira grandeza, tais
como as questões da dignidade humana, do aborto ou da pesquisa com células-
-tronco embrionárias. Ele apenas não acredita que o direito seja o cenário para
se realizar tal debate uma vez que a Tese 4 seria irrefutável. É bem verdade que
ele reconhece que alguns positivistas acreditam na Tese 2 mas refutam a Tese
4. Segundo Hoerster isso seria um erro, ou, ao menos, uma versão mais fraca
do positivismo jurídico pois as teses 2 e 4 estão em posição diametralmente
oposta ao paradigma do direito natural e, por isso mesmo, seriam o coração
do paradigma do positivismo jurídico. Em outras palavras, um jusnaturalista
é aquele que acredita que os critérios de um direito justo são cognoscíveis e
valem objetivamente (refutação da Tese 4) e, de efeito, estes critérios, que são
materiais e não formais, incorporam a própria definição de direito (refutação da
Tese 2). Para o autor, ainda que a Tese da Neutralidade (Tese 2) seja o coração
do positivismo jurídico, a Tese do Subjetivismo (Tese 4) é parte integrante do
conceito de juspositivismo, embora esta seja independente daquela e que nem
todos que se denominam de positivistas a defendam.109
Finalmente a Tese 5 (Tese do legalismo: as normas do direito devem ser
obedecidas em todas as circunstâncias). Hoerster afirma que essa tese é a que
oferece mais munição para os adversários do positivismo jurídico, pois estes
afirmam que os positivistas admitem não apenas que qualquer coisa pode ser
conteúdo do direito, desde que aprovado pelas fontes formais, mas, também,
que estes conteúdos qualificados como jurídicos são obrigatórios e devem ser
obedecidos em quaisquer circunstâncias. Segundo o autor esta crítica antiposi-
tivista não procederia pois os mais importantes positivistas do século XX teriam
rechaçado a Tese do Legalismo. Ele segue afirmando que muito embora uma
norma válida do direito possua presunção de obrigatoriedade jurídica, isso não
significa que ela possua também uma presunção de obrigatoriedade e obediên-
cia de um ponto de vista moral. Segundo Hoerster, não gera contradição algu-
ma ao juspositivismo o fato de um positivista considerar que uma lei racista é
juridicamente válida, mas que existam circunstâncias morais e apelos de justiça
segundo os quais estas leis racistas sejam rechaçadas e não obedecidas.110
49
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
111 As teses de Hoerster formulam uma espécie de síntese entre os conceitos denominados por Dimitri
Dimoulis como Positivismo Jurídico lato sensu e Positivismo Jurídico stricto sensu, onde o primeiro
significa o direito definido a partir de elementos empíricos e mutáveis no tempo, livre de dependências
metafísicas, e o segundo significa o direito tomado a partir de critérios de validade e mediante
processos de interpretação que são independentes de mandamentos e valores de origem moral ou
política. Cf. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Editora Método, 2006, pp. 78-130.
50
Direito e Emancipação – Volume I
Um direito positivo não vale pelo fato de ser justo, isto é, pelo fato de a
sua prescrição corresponder à norma de justiça – e vale mesmo que seja
injusto. A sua validade é independente da validade de uma norma de
justiça. É esta a concepção do positivismo jurídico, e tal é a consequên-
cia de uma teoria jurídica positivista ou realista, enquanto contraposta
à doutrina idealista.114
112 Tércio Sampaio Ferraz Júnior denomina esse nível de investigação de teorias zetéticas de validade
na medida em que dependem de um plano mais avançado de problematização. Cf. FERRAZ
JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo:
Atlas, 2001, pp. 177-193.
113 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 55.
114 KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 68.
51
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
Em sua Teoria Pura do Direito, o autor afirma que sistemas morais apre-
sentam como fundamento de validade uma norma de justiça que pode ser
intuída pela razão prática e desta norma fundamental de justiça decorreriam
outras normas coerentes em seu conteúdo com a própria norma fundamental
que seria, de efeito, evidente à razão. Segundo Kelsen isso geraria sistemas do
tipo estático, pois a norma fundamental pressuposta se configuraria como uma
ordem de natureza moral e que delimitaria o conteúdo de todas as normas
pertencentes a esse sistema.115 Pois bem, na opinião deste autor um tal sistema
estático de normas não poderia caracterizar um ordenamento jurídico, pois o
direito possui uma natureza dinâmica e não estática, suas normas não apenas
podem mudar como de fato mudam. O autor concorda que exista uma norma
pressuposta que seja o fundamento de validade da ordem jurídica e que tal nor-
ma se expresse na forma de um comando ou ato de vontade, todavia sem definir
um conteúdo específico que se coloque como critério de coerência e validade
para o ordenamento. A norma pressuposta de um ordenamento jurídico, fonte
de sua validade, não exige das pessoas um comportamento adequado a este ou
aquele conteúdo moral, mas apenas em conformidade com o ato de vontade de
uma determinada autoridade que estabelece a norma. Portanto, a norma que se
pressupõe como fonte de validade do ordenamento jurídico apenas estabelece
a validade de um ordenamento e não conteúdos a priori de natureza moral. É
por isso que é perfeitamente aceitável uma mudança no conteúdo das normas
num espectro largo de possibilidades. É isso que faz do ordenamento jurídico
um sistema dinâmico de normas.116 Nas palavras do autor:
115 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 218.
116 KELSEN, Hans. Ob. Cit., p. 219.
117 Idem, ibidem.
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Direito e Emancipação – Volume I
53
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
rior.120 Como afirma o autor: apenas uma autoridade competente pode estabelecer
normas válidas; e uma tal competência somente pode se apoiar sobre uma norma
que confira poder para fixar normas.121 Isso sugere que na opinião de Kelsen a
validade da norma jurídica não tem nada a ver com o conteúdo da norma,
mas com uma dinâmica formal onde uma norma inferior é tornada válida por
uma norma superior autoriza o ao de vontade do emitente da norma inferior.
Essa concepção escalonada do ordenamento jurídico sugere o desenho de uma
pirâmide normativa onde no topo da pirâmide está a Constituição por ser a
norma que se caracteriza como ponto de partida do processo de criação do
direito positivo. A constituição é, por assim dizer, a norma fundamental do di-
reito positivo, pois é a fonte de validade de todas as normas de um dado orde-
namento jurídico.122 Contudo, podemos nos perguntar sobre o fundamento de
validade da própria constituição. E Kelsen responde que tal fundamento reside
no fato dela ter surgido em conformidade com as determinações da constitui-
ção anterior e assim sucessivamente até chegarmos numa constituição que foi
historicamente a primeira. Nesse ponto estamos diante da pergunta decisiva
acerca do fundamento de validade da constituição histórica, ao que Kelsen
afirma que a resposta a tal questão:
54
Direito e Emancipação – Volume I
55
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
que é boa para um homem é ruim para outro, no caso deles tacitamente submetê-la
a testes diferentes e adversos.128
Austin inicia seu livro The Province of Jurisprudence Determined afirmando
que normas são comandos129 e que a compreensão disto é a chave para a ciência
do direito.130 Se todas as normas são comandos e se o conceito de direito está
compreendido na ideia de comando, então é necessário saber em que consiste
um comando. Segundo o autor, este termo implica três elementos fundamen-
tais: 1) uma ordem ou desejo que outrem deve realizar ou tolerar; 2) a ameaça
de um mal – sanção – que pode recair sobre aquele que descumpre o comando;
e 3) uma forma de linguagem por meio da qual se comunica o comando.131
Porém, estes três elementos se apoiam sobre um pressuposto fundamental que
assegura a juridicidade do comando: a soberania daquele que o emite. Austin
se filia numa linha de autores da filosofia política, como Jean Bodin e Thomas
Hobbes, que apresentam a soberania como característica principal da sociedade
política e, até certo ponto, como o principal elemento responsável para a ma-
nutenção ou estabilidade da sociedade. Nesse sentido, sua concepção de direito
está centrada no poder que uma autoridade possui para emitir o comando ou
mesmo no poder que um indivíduo particular possui para emitir um comando
uma vez que esteja investido num direito subjetivo ou potestativo que lhe per-
mite fazê-lo. O direito positivo, portanto, decorre de um comando sustentado
por um ato de soberania e se dirige a pessoas que possuem o dever de realizá-lo
ou tolerá-lo, sob ameaça de algum tipo de sanção caso assim não procedam. É
esta dinâmica que, segundo Austin, institui um comando como uma norma
jurídica válida. Daí sua definição de direito positivo:
56
Direito e Emancipação – Volume I
57
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
134 HART. Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 63.
135 Cf. HART. Herbert. Ob. Cit., p. 122.
136 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 91.
137 Idem, ibidem.
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Direito e Emancipação – Volume I
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
60
Direito e Emancipação – Volume I
forma familiar de raciocínio jurídico. Mas a questão é que quando nos per-
guntamos pelo fundamento último de validade de uma norma, então chegamos
à norma de reconhecimento com os critérios que ela traz de identificação de
uma norma jurídica.144 Como fundamento último de validade de uma norma e
de todo o ordenamento jurídico pode-se colocar a questão da fonte de validade
da própria norma de reconhecimento. Conforme Hart, alguns autores sugerem
que a norma de reconhecimento seja hipotética ou pressuposta, uma espécie de
postulado ou axioma do direito.145 Mas ele adverte que tal linha de raciocínio
poderia conduzir a um grave erro, pois a norma de reconhecimento pode até
ser considerada, em certa medida, como pressuposta, mas ela é observável tanto
na prática da comunidade jurídica como da sociedade em geral. Portanto não
se trata de um axioma ou de uma pressuposição metafísica. Quando nos dete-
mos sobre essa afirmação, percebemos que falou mais alto a tradição empirista,
típica dos países anglófonos, onde Hart se insere. Por isso mesmo, lá onde Kel-
sen vislumbrou uma norma fundamental pressuposta, de modo que um dever ser
fundamentasse outro dever ser, Hart identificou uma norma de reconhecimento
como um processo social, de modo que um ser fundamente um dever ser. Por
isso afirma: a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa,
mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários [autoridades] e dos
particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua exis-
tência é uma questão de fato. [gripo nosso]146
O fundamento de validade do direito com base na norma de reconheci-
mento deixa clara a opção pelo positivismo jurídico, feita por Hart, de modo
que ele adere à Tese da Neutralidade para concordar que o conceito de direito
deve ser neutro em relação ao conteúdo de suas normas. Ao explicar o fun-
cionamento da norma de reconhecimento, ele diz que esta própria norma não
deve ser analisada na forma de um juízo de valor, isso é, se ela causa mais bem
do que mal ou se há alguma obrigação moral de obedecê-la. Como fato social
ela é observável e é isso que interessa do ponto de vista de uma teoria do di-
reito. Hart reconhece que o desenvolvimento do direito ao longo do tempo foi
profundamente influenciado pela moral, mas não se segue daí que os critérios de
validade jurídica de leis concretas, usadas num sistema jurídico, devam incluir, de
61
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
forma tácita, se não explícita, uma referência à moral ou justiça.147 Com isso Hart
pretende fazer coro com aqueles que querem evitar o que seria a confusão entre
o direito como ele é e o direito como ele deveria ser.148 Por isso afirma que toma-
rá o positivismo jurídico como a afirmação simples de que não é em sentido algum
uma verdade necessária que as leis reproduzam ou satisfaçam certas exigências da
moral, embora de fato o tenham frequentemente feito.149 Contudo Hart assenta
uma posição peculiar em sua teoria ao tratar da relação entre direito e moral,
pois se por um lado afirma que a moral não é uma condição de validade da nor-
ma jurídica, por outro lado admite uma profunda relação entre ambos. Ao tra-
tar da influência da moral sobre o direito afirma que seja por meio da legislação
ou mesmo do processo judicial a moral penetra no direito. Isso pode acontecer
a tal ponto que em alguns sistemas jurídicos ocorre que os critérios últimos
da validade jurídica incorporam explicitamente princípios de justiça ou valores
morais substantivos. Também reconhece que algumas vezes a lei é apenas uma
carapaça que demanda pelos seus próprios termos um preenchimento com prin-
cípios morais. Na mesma esteira, lembra que contratos juridicamente tutelados
podem sofrer restrições ou limitações em nome de valores morais ou exigências
de equidade.150 Em face de todas essas situações descritas, Hart afirma:
Nenhum ‘positivista’ poderá negar estes fatos, nem que a estabilidade dos
sistemas jurídicos depende em parte de tais tipos de correspondência com
a moral. Se tal for o que se quer dizer com a expressão conexão necessária
do direito e da moral, então a sua existência deverá ser admitida.151
62
Direito e Emancipação – Volume I
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
155 HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 221.
156 HART. Herbert. Ob. Cit., pp. 223-228.
157 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 228.
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Direito e Emancipação – Volume I
158 KANT, Immanuel. O que é a ilustração. In WEFFORT, Francisco. (Org.) Os Clássicos da Política 2.
São Paulo: Ática, 1993, p. 84.
159 Cf. DESCARTES, René. Discurso do Método. In Os Pensadores, 2ª Edição, São Paulo: Abril
Cultural, 1979.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
160 Cf. COMTE, Augusto. Discurso Preliminar Sobre o Conjunto do Positivismo. São Paulo: Abril Cultural,
1983, p. 113.
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Direito e Emancipação – Volume I
ria que corresponda e essa verdade.161 Tanto as reflexões filosóficas como a expe-
riência de Benjamin e seu engajamento na luta antifascista lhe mostraram que
as doutrinas que afirmam um progresso da história capaz de produzir liberdade,
abundância e felicidade não valem, como regra, para a tradição dos oprimidos.
Para estes, ao contrário, a regra é a opressão, a violência e a barbárie dos opres-
sores. Por isso, Michael Löwy ao comentar esta tese de benjamim afirma que
somente uma concepção sem ilusões progressistas pode dar conta de um fenômeno
como o fascismo, profundamente enraizado no “progresso” industrial e técnico mo-
derno... 162 Portanto, qualquer filosofia do direito sensata deve ter a prudência
de evitar concepções de fundo que se deixem levar por um otimismo ingênuo
que acredite que o direito positivo é a expressão concreta de um progresso do
espírito humano. Ainda que importantes conquistas históricas relativas à liber-
dade, à igualdade e à democracia estejam inscritas num dado direito positivo,
isso não significa que estas conquistas se apresentem como regra para toda a
população e muito menos que elas expressem o modo de ser de cada sujeito nas
suas próprias vicissitudes. O direito é feito de normas abrangentes destinadas a
um cidadão médio e não para as pessoas reais. Isso deve ser levado em conta.
Como um paradigma não-fundacionalista, o positivismo jurídico dispensa
crenças básicas para a justificação de crenças não-básicas. Isso faz com que
alguns identifiquem nele possibilidades de defesa de uma perspectiva prática
e não dogmática do conceito de direito, mas é precisa certa cautela quanto a
isso, pois há um imaginário positivista que é marcado por traços fortemente
organicistas e funcionalistas. Há uma cosmovisão positivista que supõe uma
harmonia intrínseca dos fenômenos e uma ordem natural das coisas, daí a no-
ção de que o direito positivo seria o verniz institucional da ordem social e por
isso a ideia da preservação do direito como proteção da ordem. Aqui há uma
suposição, na maior parte das vezes oculta, de que os diferentes agentes sociais
devem sempre atuar conforme seus papéis se restringindo àquilo que é espe-
rado deles no plano social. A conhecida expressão popular “cada macaco no
seu galho” revela como até mesmo o senso comum já foi capturado, em grande
161 BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e
Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Volume I. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 226.
162 Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”.
São Paulo: Boitempo, 2005, p. 85.
67
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
medida, por este organicismo. O medo e a aversão contra o que poderia ser
considerado “anarquismo” também manifesta a suposição funcionalista, isto é,
de que o sistema funciona bem para todos caso a ordem seja garantida. Assim
é que ocorre aqui e ali o apego acrítico à lei como se a norma jurídica repre-
sentasse a segurança da vida social. Qualquer um que tenha a coragem de se
colocar no lugar do outro oprimido sabe que isso não é verdade. O organicismo
e o funcionalismo abafam vozes destoantes que como forças insurgentes podem
ter um incrível potencial transformador da sociedade. Claro que é possível ar-
gumentar no sentido de tais forças insurgentes podem atuar politicamente para
mudar o conteúdo da lei. É o argumento do pragmatismo político que, sem
dúvidas, é muito plausível e forte. Todavia é preciso considerar que no plano
prático, nem sempre as mudanças institucionais vão ocorrer no tempo neces-
sário e, algumas vezes, vidas podem se perder de várias formas nesse ínterim. É
importante registrar que o tempo necessário não é aquele que segundo a visão
das instituições e de seus agentes, mas sim no sentir do sujeito concreto que
está oprimido diante de um dado contexto. Não é, apenas, o tempo do relógio
– duração – mas o tempo do evento – intensidade – que irrompe e marca a vida
concreta do sujeito. Por outro lado, no plano teórico, é preciso que a teoria do
direito seja capaz de enfrentar o drama real daqueles que sofrem a injustiça e
propor alguma resposta, ainda que não definitiva para as diferentes formas de
opressão e violência. Nenhuma teoria do sujeito de direito será sustentável sem
que leve em consideração o sujeito da injustiça.
A atitude epistemológica usual do positivismo jurídico consiste em se
apoiar no caráter objetivo da ciência para excluir o problema do sujeito da injus-
tiça como se esta fosse uma questão propriamente moral e não científica. Vale
lembrar como positivistas acreditam que os fenômenos sociais, dentre eles o
direito, devem ser estudados sem influência das paixões ou das ideologias, como
se a observação fenomênica correspondesse a um ponto distante o suficiente do
objeto para assegurar sua neutralidade. É oportuno recordar que o direito não
está sozinho nessa pretensão de cientificidade. O apelo pela ciência como cen-
tro de certeza e pela técnica como possibilidade de fazer é típico do mundo mo-
derno e afetou todas as áreas do conhecimento que possuíam alguma pretensão
de legitimidade epistemológica. Em outras palavras, a modernidade foi marcada
por uma certa euforia provocada pelo desenvolvimento tecnológico resultante
da evolução das ciências naturais ou exatas. Isso produziu uma convicção ge-
neralizada de que qualquer saber válido ou realmente verdadeiro deveria estar
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Direito e Emancipação – Volume I
163 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 278.
164 Cf. KENNEDY, Duncan. Nota sobre la Historia de CLS en los Estados Unidos. In DOXA, nº 11, 1992.
UNGER, Roberto Mangabeira. The Critical Legal Studies Movement. Cambridge: Harvard University,
1986.DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
69
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
Uma das formas mais comuns utilizadas por positivistas para afirmar a
objetividade do direito e negar que juízos de valores façam parte do raciocínio
jurídico é o recurso ao conceito de técnica, onde esta pode ser entendida como
um procedimento imparcial que conduz a um resultado isento. A técnica seria
não a ciência em si, mas uma forma de aplicação do conhecimento científico,
por conseguinte, uma espécie de desdobramento necessário da ciência no mun-
do da vida. De fato, a técnica é importante para legitimar as operações feitas
em nome do direito. Além disso, ela proporciona uma sensação de segurança
no sentido de que se for aplicada corretamente chegar-se-á a um resultado ne-
cessário, independentemente de quem seja o agente que a aplique. No caso do
direito é como se a técnica estivesse acima de seus operadores e, por isso, garan-
tisse a sua objetividade. Até certo ponto esse raciocínio é aceitável, mas reduzir
o direito à sua dimensão técnica como ela fosse responsável por tudo o que
acontece no mundo jurídico, parece ser uma excessiva simplificação. Qualquer
técnica não é isenta quanto ao agente que a pratica. Em primeiro lugar, deve-se
considerar que o operador do direito terá alguma possibilidade de escolha quan-
to ao recurso técnico do qual irá se utilizar. Essa escolha é anterior à utilização
da técnica e não é isenta de subjetividade. Em segundo lugar, o próprio ma-
nuseio da técnica imprime uma inevitável subjetividade. Se isso vale para um
técnico que atua sobre um aparelho, uma coisa, vale muito mais para técnicos,
ou profissionais que intervêm tecnicamente, que atuam com pessoas, tais como
profissionais do direito ou da área da saúde. A subjetividade do técnico inscrita
no seu desempenho pode gerar diferentes tipos de reação nas pessoas que estão
recebendo o procedimento técnico. Isso pode levar a resultados diferentes, a
despeito da utilização de uma mesma técnica. Esses dois aspectos da técnica, a
escolha e a forma de sua utilização, valem para todos os profissionais que atuam
no mundo jurídico, sejam advogados, juízes ou jurisconsultos em geral.
Outra abordagem crítica necessária quando pensamos a questão da téc-
nica no direito, diz respeito ao problema da técnica como forma específica da
consciência moderna, isto é, uma consciência tecnológica. Esse tipo de cons-
ciência emerge como uma espécie de mediação entre a pessoa e o mundo,
onde para esta pessoa, aquilo que é apenas é na medida em que se deixa obje-
tivar, ainda que aquilo que é seja um outro ser humano. O sentido da realidade
Portland: Hart Publishing, 2005. GAXIOLA, Napoleón Conde (Org.). Teoria crítica y derecho
contemporáneo. México: Editorial Horizontes, 2015.
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Direito e Emancipação – Volume I
165 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993, pp. 122-123.
166 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ob. Cit., p. 123. LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Escritos de
Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993, p. 162.
71
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
fazer escolhas, de falar por si mesmo. Toda reificação é sempre um golpe na au-
tonomia do ser humano. E essa pessoa sem o sentido da liberdade é inevitavel-
mente haurida da capacidade de comunicação, daquilo que lhe faz ser não uma
pessoa qualquer, mas a pessoa que ele ou ela é. A pessoa assim objetificada é um
ser afásico, onde seus relatos são capturados pela instrumentalidade da técnica.
Há um empobrecimento da narrativa na voz ativa e com isso se enfraquece o
sentido de ser de qualquer um. Talvez a ironia mais perversa desse processo seja
que o ser humano objeto da técnica é chamado muitas vezes pela linguagem
jurídica de sujeito de direitos quando, de fato, ele nem chega a ser tratado com
a dignidade que merece um sujeito, quanto mais um sujeito de direitos. Ocorre
que por vezes ele é tratado como a coisa em que se transformou na objetivida-
de da técnica. E isso pode ser percebido empiricamente e sem muito esforço
filosófico por qualquer um que frequente as instituições da cena jurídica. Ga-
binetes, escritórios, salas de audiência são todos espaços cheio de cerimoniais,
vestes e linguagem que servem à técnica e seus agentes mais do que às pessoas
que lá recorrem ou para lá são conduzidas, especialmente se estivermos a falar
das pessoas que são subalternizadas pelos grupos dominantes da sociedade. No
mais das vezes, o sujeito de direitos poderia ser chamado de objeto da técnica, até
porque não é raro que a técnica se sobreponha aos direitos, como se o fim do
ordenamento jurídico fosse aquela (técnica) e não esses (direitos).
Esse processo de objetificação que acontece na cena jurídica, típico da
consciência tecnológica, não é necessariamente produto da má fé ou da mal-
dade dos sujeitos da técnica. Muitas vezes ele acontece de maneira irrefletida,
como explica Manfredo de Oliveira:
72
Direito e Emancipação – Volume I
168 PASCAL, Blaise. Pensamentos sobre a Política. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 72.
73
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
169 PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Abril Cultural, 1979, I, 1-60, pp. 37-47.
74
Direito e Emancipação – Volume I
regulação das relações entre pessoas e grupos sociais, seja nas relações priva-
das, seja nas relações públicas. Contudo, fazer o recorte do fenômeno jurídico e
isolá-lo das demais relações sociais e normativas existentes na sociedade não é
uma tarefa fácil. Muitas vezes, o esforço da simplificação pode gerar simplismos
e os simplismos acarretam empobrecimento da percepção social e descrições
exageradamente superficiais ou mesmo levianas. Compreender a realidade so-
cial para se extrair dela o elemento normativo exige uma compreensão da reali-
dade na sua própria complexidade. Todavia, no esforço de demonstrar o direito
como um sistema que opera sob a lógica binária elementar do lícito/ilícito, a
linguagem e as operações cientificistas do direito podem acabar por negar a
complexidade própria não apenas da realidade como do próprio fenômeno jurí-
dico. Acerca do conceito de complexo, Edgar Morin conta uma breve história:
Era uma vez um grão de onde cresceu uma árvore que foi abatida por
um lenhador e cortada numa serração. Um marceneiro trabalhou-a e
entregou-a a um vendedor de móveis. O móvel foi decorar um aparta-
mento e mais tarde deitaram-no fora. Foi apanhado por outras pessoas
que o venderam numa feira. O móvel estava lá no adeleiro, foi comprado
barato e, finalmente, houve quem o partisse para fazer lenha. O móvel
transformou-se em chama, fumo e cinzas.170
170 MORIN, Edgar et all. O Problema Epistemológico da Complexidade. Portugal: Publicações Europa-
América, 1996, p. 134.
171 Idem, ibidem.
172 MORIN, Edgar. A Inteligência da Complexidade. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 207.
75
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
173 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 78.
174 HART, Herbert. Pós-Escrito. In HART, Herbert. O Conceito de Direito. São Paulo: Martins Fontes,
2009, p. 309.
175 Cf. DWORKIN. Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.231.
76
Direito e Emancipação – Volume I
176 Cf. DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, pp. 6-7.
177 MORIN, Edgar. O Método I: a natureza da natureza. Portugal [s.l.]: Publicações Europa-América,
1987, p. 344.
77
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
78
Direito e Emancipação – Volume I
178 MAFFESOLI, Michel. O Conhecimento Comum: introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre:
Sulina, 2010, p. 75.
179 Poderíamos também falar num enquadramento social, em dois enfoques: na perspectiva da
capacidade contratual dos sujeitos, tendo em vista a autorregulamentação de seus atos sociais; e na
perspectiva das práticas sociais reiteradas que se afirmam como costume jurídico. Entretanto, no
primeiro enfoque o nível de abstração do sujeito é basicamente residual, apenas o que a lei exige na
delimitação dos contratos. Já no segundo enfoque, teríamos de enfrentar uma polêmica sobre até
que ponto o costume pode ser considerado fonte do direito em sistemas jurídicos de Civil Law, o que
fugiria da proposta deste livro.
79
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
80
Direito e Emancipação – Volume I
de aula seja nas agendas de pesquisa; e 6) para evitar um certo fetichismo da lei
e da decisão judicial, como se estas por elas mesmas, ou seja, pela sua técnica de
produção, representassem sempre uma forma adequada de regulação jurídica.
Acerca desse último ponto, a do fetichismo da lei e da decisão judicial,
desde os anos 1980 até seu falecimento em 2010, Luiz Alberto Warat se dedicou
a desvelar como existem certas condições implícitas de produção, circulação e
consumo de “verdades” no âmbito do direito. A isso Warat denominou de senso
comum teórico dos juristas.180 Da mesma maneira que existem certas crenças
que uma comunidade acredita e toma como verdades prontas sem se preocupar
em refletir de forma mais detida acerca delas, existem também crenças sobre
o direito que a comunidade jurídica acredita e toma com verdades prontas
sem avaliá-las criticamente para saber até que ponto e em quais contextos são
aceitáveis. Afirma Warat:
180 Cf. WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao Direito: interpretação da lei, temas para uma reformulação.
Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 13.
181 WARAT, Luiz Alberto. Ob. Cit., pp. 13-14.
81
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
182 WARAT, Luiz Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In Revista Sequência,
Florianópolis: UFSC, v.03, nº 5, 1982, p. 57.
183 Idem, ibidem.
184 WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao Direito: interpretação da lei, temas para uma reformulação.
Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, pp. 55-56.
82
Direito e Emancipação – Volume I
do uso que os juízes deem as mesmas; os conceitos teóricos devem ter uma
base empírica, qual seja, a atuação da magistratura, por isso a ciência do direi-
to constrói-se elaborando teses sobre os comportamentos judiciários.185 Todos
estes postulados operam na comunidade jurídica, de maneira mais ou menos
consciente, na forma do senso comum teórico dos juristas. Isso não quer dizer
que apenas estes postulados conformem esse senso comum teórico. Aliás, tal
senso comum recebe os influxos de mudanças da realidade social e da própria
comunidade jurídica, bem como de transições de paradigmas, alterações no
rumo da produção doutrinária e, é claro, modificações no quadro ideológico da
sociedade. Portanto, positivistas poderiam legitimamente reivindicar que exis-
tem outros postulados, imagens e representações no senso comum teórico dos
juristas além desses citados e, talvez, mais fortes do que esses. Tal reivindicação
não estaria errada, mas é preciso notar que esses postulados que foram apre-
sentados representam, ao menos em parte, o senso comum teórico de boa parte
dos juristas positivistas, paradigma aqui em análise. Vale repetir: não se está a
afirmar que todos os juristas positivistas possuam esses postulados nas repre-
sentações e enunciações que realizam acerca do direito, porém muitos possuem.
Talvez um dos fetiches mais fortes presentes no imaginário da comunidade
jurídica, seja que o direito positivo existe para produzir e assegurar as expecta-
tivas normativas da população em geral. Apresentar esta ideia como um fetiche
pode causar certo espanto, na medida em que ela é altamente intuitiva e, mais
do que isso, é reproduzida frequentemente nos ambientes e na literatura jurí-
dica. Então por que seria um fetiche? A resposta mais óbvia a tal pergunta é
que o direito positivo não é capaz de assegurar as expectativas normativas da
população em geral, simples assim. Há um conjunto de direitos fundamentais
que mesmo em pleno estado democrático de direito não são assegurados às
parcelas subalternizadas e menos favorecidas da sociedade, isto é, àqueles que
são sujeitos da injustiça social. Em outras palavras, o direito positivo, seja por
meio da constituição federal, seja por meio da legislação infraconstitucional,
estabelece normas que instituem direitos considerados básicos e universais, mas
que não são tornados efetivos para uma parcela da população. Isso parece ser
mais evidente quando tratamos de direitos sociais como saúde, educação, mo-
radia ou previdência. As estatísticas, inclusive as oficiais, décadas após décadas,
revelam significativos números de pessoas deixadas à margem de tais direitos,
83
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
seja porque esses serviços básicos não as alcançam, seja porque a baixa qualida-
de produz falhas, lapsos, lacunas e erros no atendimento. Evidente que poderia
ser alegado que erros acontecem no atendimento, público ou privado, oferecido
a toda a população, inclusive aos mais ricos e favorecidos. Porém, é notório
que são os mais empobrecidos aqueles que estão mais expostos a tal situação.
Enquanto isso, parte da doutrina jurídica se esforça por criar explicações ou jus-
tificativas que tornem aceitável essa denegação de direitos e violação de expec-
tativa normativa, como se isso não caracterizasse insegurança jurídica, já que
segurança jurídica é uma categoria que geralmente se pensa e aplica somente
para as parcelas mais favorecidas da sociedade.
Algumas expectativas normativas deixam de ser asseguradas não por ra-
zões propriamente econômicas, mas por preconceito, discriminação ou desprezo
em relação àqueles que não se encaixam no perfil dominante da sociedade. Há
registro de casos onde eleitores cadeirantes são impedidos de exercer o direito
ao voto por falta de acessibilidade em sua sessão eleitoral. Pessoas negras são
mais expostas à truculência policial. Mulheres correm risco constante de serem
submetidas a testes de gravidez em processos seletivos para emprego, além de
estatisticamente recebem salários inferiores aos dos homens por trabalhos se-
melhantes. Comunidades indígenas inteiras estão sujeitas a diferentes formas de
violência alarmente. Gays e lésbicas são vítimas de crimes de ódio. Todas estas
violações de direito se instituem como mediações sociais que aviltam as expecta-
tivas normativas destas pessoas e grupos. O que outras pessoas podem fazer com
tranquilidade, essas não podem. A promessa do direito positivo é a mesma para
todos, mas os sujeitos da injustiça social sabem bem que não podem ter as mes-
mas expectativas normativas que os demais. Vale registrar que nesses cenários
acima descritos, o problema não necessariamente decorre do empobrecimento.
Uma família de classe média alta pode ter muitas dificuldades e ser submetida
a uma dose maior de sofrimento por não encontrar uma escola que permita a
matrícula e a permanência de uma criança que por qualquer razão tenha algum
déficit cognitivo. Essa criança é também sujeito de uma injustiça social.
Existem, ao menos, três possibilidades de piorar a situação de exposição
e vulnerabilidade dos menos favorecidos. A primeira é quando as pessoas que
são atingidas por violências decorrentes de preconceito, discriminação ou in-
diferença, são também economicamente empobrecidas; ou o contrário, quando
os que são economicamente empobrecidos são adicionalmente atingidos pelas
violências oriundas no preconceito, discriminação ou indiferença. Nesse caso
84
Direito e Emancipação – Volume I
temos uma violência agravando a outra e isso reduz ainda mais a possibilidade
de garantia dos direitos desses sujeitos ou grupos de sujeitos. Isso é o que ocorre
com grande parte da população brasileira e mundial. É fundamental que os
juristas se deem conta que esse não é apenas um problema da política ou da
economia. É também um problema do mundo jurídico, pois existem direitos
subjetivos que são denegados e bens jurídicos que são aviltados. A segunda
possibilidade se dá quando uma pessoa que não apresenta uma determinada
identidade para qual se voltam formas específicas de violência, possui um tipo
de comportamento, desenvolve uma performance social, por meio da qual ela
se coloca junto com aquele que sofre a violência. Não se trata apenas de solida-
riedade. O que se coloca aqui é que o engajamento político de alguém nas de-
mandas legítimas do oprimido faz com que a violência destinada a este também
se volte contra aquele. Talvez o exemplo mais comum seja em relação ao movi-
mento LGBT – lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. É usual que heterossexu-
ais engajados no movimento LGBT sejam “acusados” em relação às suas prefe-
rências sexuais, como se isso fosse uma ofensa. A mesma violência destinada ao
grupo LGBT também se pratica contra quem desenvolve uma performance, isto
é, estabelece um desempenho ou comportamento social e político que o coloca
como parte daquele grupo, ainda que não possua a mesma identidade do grupo.
Nesse exemplo, temos que se a pessoa já sofria algum preconceito, digamos, por
ser negro, esse preconceito irá se agravar em função de seu comprometimento
com a causa LGBT. Mas se a pessoa não sofrer nenhum tipo de opressão por
razões identitárias, passará a sofrer em razão da sua performance. Há, portan-
to, um aprofundamento ou uma ampliação do círculo da violência em termos
subjetivos. Claro que, por outro lado, isso torna a ação política da performance
mais radical, o que ajuda a fortalecer as lutas contra a injustiça social. A ter-
ceira possibilidade de piorar a situação de exposição e vulnerabilidade dos me-
nos favorecidos ocorre, ironicamente, em face do próprio direito positivo. Isso
acontece quando os sujeitos da injustiça social, após terem suas expectativas
jurídicas frustradas pela denegação de direitos, se organizam em movimentos
sociais que pretendem i) protestar, tornando pública a violência sofrida, dando
a ela maior repercussão social, ii) reivindicar os direitos denegados, seja pres-
sionando o estado, seja pressionando parte da sociedade civil, iii) apresentar
uma forma alternativa, em relação ao direito positivo e às políticas públicas
estatais, de vivenciar aqueles direitos denegados. Por sua própria natureza, em
diversas ocasiões estes movimentos existem a atuam na fronteira do direito po-
85
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
sitivo. Nesses casos, os agentes da cena jurídica nem sempre sabem muito bem
como reagir a tais movimentos e acabam por instrumentalizar os mecanismos
do direito positivo para reforçar a ação política contrária aos movimentos. Não
é a toa que muitas vezes essa ação política conservadora é identificada com o
slogan lei e ordem. Assim, em diferentes momentos, o direito positivo e o aparato
estatal acabam por dar aos movimentos sociais o mesmo tratamento que dão ao
crime comum, igualando as eventuais transgressões cometidas pelos movimen-
tos sociais àquelas perpetradas pelo infrator penal. Ocorre, então, o fenômeno
da criminalização dos movimentos sociais186 que pretende retirar do movimento
sua pretensão de legitimidade decorrente da condição de sujeitos da injustiça
que lutam por direitos, pela transformação social e pela superação da injustiça.
Com isso pretende-se fazer crer que a ação política desses movimentos represen-
taria perante a sociedade o mesmo tipo ou nível de infâmia do que crimes como
roubo, homicídio ou corrupção. Acontece, então, que o sujeito da injustiça é
novamente injustiçado, seja em nível político, jurídico ou simbólico. Todavia,
como o espaço publico é uma arena aberta de manifestação e ação política, para
todos os sujeitos, por vezes acontece um tratamento diferenciado entre aqueles
que pertencem aos movimentos sociais e os cidadãos manifestantes não organi-
zados. Certos políticos e juristas e a grande imprensa em geral parecem querer
com esse tratamento diferenciado, preservar a legitimidade do espaço público
e das manifestações democráticas, mas retirá-la dos movimentos sociais orga-
nizados. Com efeito, surgem perigosos rótulos do tipo subversivos, baderneiros e,
até mesmo, terroristas. Enquanto, do outro lado, manifestantes individuais são
chamados de pacíficos, ordeiros ou pessoas de bem.
Essas três possibilidades de piorar a situação de exposição e vulnerabili-
dade dos sujeitos da injustiça social acontecem em face do direito positivo. Isso
parece revelar que a empiria que é tão importante aos positivistas só vale até
certo ponto, ou seja, vale para destacar o fenômeno jurídico da realidade social
e apresentá-lo como uma disciplina própria, assegurando que sua normativida-
de aconteça fundamentada em suas próprias premissas. Mas o recurso à mesma
empiria perde força no positivismo jurídico quando esse é obrigado a enfrentar
186 Cf. GONÇALES, Guilherme Leite. Convicções Favoráveis versus Aparelhos de Estado: uma análise das
mobilizações sociais e sua criminalização na história recente brasileira. In CUNHA, José Ricardo. (Org.)
Investigando Convicções Morais: o que pensa a população do Rio de Janeiro sobre os Direitos Humanos. Rio
de Janeiro: Gramma, 2015.
86
Direito e Emancipação – Volume I
187 Cf. BRONNER, Stephen Eric. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Campinas: Papirus, 1997, pp. 400-404.
188 Cf. NONET, Philippe. SELZNICK, Philip. Direito e Sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo.
Rio de Janeiro: Revan, 2010.
87
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
88
Direito e Emancipação – Volume I
193 FINEMAN, Martha. Equality, Autonomy, and the Vulnerable Subject in Law and Politics. In FINEMAN,
Martha. GREAR, Anna. Vulnerability: reflections on a new ethical foundation for law and politics.
Farnham: Ashgate, 2013, p. 13.
89
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90
Direito e Emancipação – Volume I
retornar a Walter Benjamin, quando ele afirma que a tradição dos oprimidos nos
ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra geral.196
A afirmação de Benjamin, no que fala sobre o estado de exceção e no
que cala sobre o estado de direito, parece revelar uma verdade inconveniente
para o positivismo jurídico. Ao pleitear o direito como direito positivo, os posi-
tivistas o desvinculam de todos os seus laços, exceto com o laço da autoridade
competente que o institui num exercício de poder soberano. Austin referiu isso
claramente ao dizer que o direito positivo é posto por um soberano, sendo este
aquele não possui o hábito de obediência a nenhum superior, mas que recebe a
obediência habitual da população em geral de uma sociedade.197 Assim sendo,
o único vínculo social e histórico que sustenta o direito positivo na visão dos
positivistas é o ato de soberania que o instaura. Porém, apesar de algumas con-
cepções da teoria política que pretendem alocar na base da soberania uma von-
tade popular supostamente democrática, as visões mais realistas demonstram
que a soberania é em si mesma uma questão difícil para a democracia. Austin
não deixa dúvida que a vontade soberana é aquela que impõe limites sem ser
ela mesma limitada. Numa perspectiva semelhante, Carl Schmitt declara em
alto e bom tom no início de sua Teologia Política I: soberano é quem decide sobre
o estado de exceção.198 Quando colocamos em sequência o raciocínio de Austin,
Schmitt e Benjamim, chegamos à verdade inconveniente acima referida.
Mesmo sem incluir Austin na sua análise, Giorgio Agamben explorou
até as últimas consequências esse problema do estado de exceção, mostrando
como, de certa forma, ele não se coloca exatamente como um antípoda do esta-
do de direito.199 Em outras palavras, o estado de exceção, como resultado de um
ato de soberania não é a negação do estado de direito, mas uma forma diferen-
ciada de sua própria continuidade. Assim ocorre na medida em que a força da
lei transcende a própria lei para repousar na autoridade decisional daquele que
a aplica, ou deixa de aplicar. Trata-se de uma força de lei sem necessariamente
196 BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e
Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Volume I. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 226.
197 AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. In AUSTIN, John. Lectures on Jurisprudence,
or, The Philosophy of Positive Law. Vol. I. London: John Murray, 1911, pp. 220-221 (lecture VI).
198 SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 7.
199 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
91
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
200 NANCY. Jean-Luc. L´impératif catégorique. APUD AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder
soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: EdUFMG, 2004, p. 66.
92
Direito e Emancipação – Volume I
que foram abandonados, banidos, são sempre vistos com maus olhos, são chama-
dos de bandoleiros por que pertencem ao bando da lei (abandonados pela lei).
Eles foram bandidos pela lei e por que seu próprio abandono diante da lei é visto
como um crime em si mesmo, também são tidos como bandidos e, como tal,
são socialmente taxados como culpados e, de efeito, tornam-se vidas matáveis.
Esses são os que Giorgio Agamben chama de homo sacer.201
O homo sacer está abandonado ao domínio de uma legalidade que vige
apenas para reproduzir-se e perpetuar-se a si mesma como forma de exercício de
seu próprio poder. Para Agamben, o elemento chave de compreensão do homo
sacer é a estrutura da sacratio, conforme estabelecida no direito romano. Esta era
constituída por dois elementos: o veto do sacrifício e a impunidade de sua morte.
O homo sacer era aquela pessoa condenada pelo cometimento de determinado
delito que por sua natureza o transformava em pessoa impura ou ser pertencente
aos deuses. A curiosa contradição é essa que fazia da pessoa ao mesmo tempo
impura e ser dos deuses, algo como maldito e anjo ao mesmo tempo. Por ser anjo
– santificado, sacralizado – ou pertencente aos deuses, ele não podia ser sacrifi-
cado ou executado, mas por ser impuro ou maldito ele era abandonado à própria
sorte e qualquer do povo que o sacrificasse não estaria cometendo um delito,
não poderia ser punido. O homo sacer quebra o princípio da não contradição e se
apresenta a um só tempo como puro e impuro, como fasto e nefasto. Pela trans-
gressão cometida o homo sacer é abandonado pela lei, sendo exilado do humano
sem, contudo, passar ao divino. Portanto, apesar de puro ele é não purificado,
não há como expiar a culpa, por isso ele entra na comunidade humana pela sua
desumanização, pela sua própria matabilidade. Afirma Agamben:
Aquilo que define a condição de homo sacer, então, não é tanto a pre-
tensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto,
sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra
preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte
insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não
é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como
execução de uma condenação e nem como sacrilégio. 202
201 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: EdUFMG,
2004, pp. 79-117.
202 AGAMBEN, Giorgio. Ob. Cit., p. 90.
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94
Direito e Emancipação – Volume I
203 BATIFFOL, Henri. A Filosofia do Direito. Lisboa: Editorial Notícias [s.d.], p. 15.
204 HOERSTER, Norbert. Em Defensa Del Positivismo Jurídico. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000.
95
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
admitir como o faz Hoerster que esta não é uma questão para o positivismo
jurídico e passemos, então, à Tese 3.
Ela também é facilmente refutada pelo autor, sob o argumento de que
operadores do direito não são autômatos. Hoerster parece se alinhar com os
críticos do positivismo, mas, ao mesmo tempo, desqualifica a crítica dizendo
que essa Tese não deve ser associada ao positivismo jurídico. Novamente te-
mos aqui um ponto de dúvida e reflexão. É sabido que a segurança jurídica é
um dos argumentos mais usados a favor do positivismo. Dimitri Dimoulis, na
forma como apresenta e defende o positivismo jurídico, esclarece de maneira
eloquente que não se deve criar expectativas irrealistas de previsibilidade ab-
soluta das consequências de incidência das normas nas relações jurídicas ou
nos fatos juridicamente relevantes em geral. Porém, assevera que é aceitável o
argumento da segurança jurídica se tomado como preservação de competências
constitucionalmente distribuídas. Segue afirmando: se as leis são ultrapassadas
ou disfuncionais, elas devem ser modificadas mediante reforma realizada pela au-
toridade competente.205 A defesa não apologética da segurança jurídica feita por
Dimoulis é, certamente, a mais adequada no debate teórico acerca do positi-
vismo jurídico. Mas note-se que mesmo diante dessa perspectiva minimalista
de segurança jurídica, o argumento usado por Hoerster para refutar a Tese 3
parece ser demasiadamente simples. Isso porque admitir tranquilamente que
juízes podem fazer considerações de valores ao interpretarem e aplicarem a nor-
ma, não se prendendo assim à subsunção, implica assumir que eles possam, em
certos casos, interferir no mandamento de uma norma criada pela autoridade
constitucionalmente competente. Esse é o ponto de um extenso debate sobre
judicialização da política e ativismo judicial que há décadas ocorre fora e dentro
do Brasil. Daí a pergunta: seria assim aceitável para a maior parte dos positi-
vistas que juízes apliquem a lei fazendo juízos de valor, ao ponto de derrotar o
texto da norma elaborada pela autoridade constitucionalmente competente?
Certamente a resposta seria precedida de um intenso debate e a Tese 3 não seria
descartada tão facilmente como faz Hoerster. Mas sigamos admitindo, com o
autor, a refutação da Tese 3 e passemos à Tese 5.
Essa Tese não apenas é considerada por Hoerster como indefensável, como,
segundo ele, é a que mais ofereceria munição para a crítica ao positivismo. Uma
205 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 201.
96
Direito e Emancipação – Volume I
crítica que ele indica ser descabida, já que nada no positivismo jurídico deveria
levar a crer que exista uma obrigação moral de obediência ao direito. Aliás, o
mesmo argumento é sustentado por Hart ao dizer que poderíamos afirmar de
forma simples e cândida: Isso é direito, mas é demasiado iníquo para ser aplicado
ou obedecido.206 Aqui é fundamental esclarecer que o ponto central não é da
obrigação moral, mas sim o da coercitividade do direito. O exemplo de que se
pode considerar a lei racista válida e, ao mesmo tempo, rechaçá-la para que ela
não seja obedecida, parece não levar em consideração que a ordem jurídica se
atrela à ordem estatal que possui mecanismos expressivos de coação e sanção.
Nesse argumento, Dimoulis concorda com Hoerster, e com Hart, ao afirmar
que o positivismo jurídico em si mesmo não impõe um dever de obediência ao
direito, ficando este a critério de cada destinatário que julgará se e por que o direito
deve ser obedecido de acordo com suas crenças e interesses.207 Continua dizendo
que o positivismo jurídico apenas oferece uma descrição para fins de informação
sobre o que ”é” o direito e não deseja que alguém atue da forma juridicamente pres-
crita.208 Não resta dúvida de que o argumento é convincente, especialmente
quando Dimoulis alega que dessa maneira evita legitimar como sendo moral a
decisão de uma autoridade qualquer que criou uma dada norma jurídica. O pro-
blema com o argumento é que ao colocar a responsabilidade pela obediência ao
direito exclusivamente como uma decisão pessoal, sem levar em consideração
os mecanismos de repressão e sanção do próprio direito, parece reiterar a vul-
nerabilidade e o abandono das pessoas diante do direito positivo. Nesse sentido,
essa omissão da teoria jurídica ou da filosofia do direito acabaria por reforçar as
condições sociais por meio das quais alguns podem decidir não obedecer a lei e
enfrentam consequências mínimas ou nenhuma, ao passo que outros tomam a
mesma decisão e enfrentam as consequências mais gravosas, podendo, inclusi-
ve, no limite da repressão, pagar com a própria vida. Esse é o dilema do sujeito
da injustiça social. Seja por razões econômicas, políticas ou culturais ele estará
mais uma vez abandonado à própria sorte diante da lei, para que “escolha” não
cumpri-la e, com isso, tenha que facear todo tipo de consequências, incluindo
aquelas não previstas na lei, já que sabemos que a lei pode, na vida real, ser ex-
cepcionada na forma de um estado de exceção que se pratica permanentemente
206 HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 224.
207 DIMOULIS, Dimitri. Ob. Cit., p. 268.
208 DIMOULIS, Dimitri. Ob. Cit., p. 269.
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209 AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. In AUSTIN, John. Lectures on Jurisprudence,
or, The Philosophy of Positive Law. Vol. I. London: John Murray, 1911, p. 174 (lecture V).
210 KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 69-70.
211 Cf. HART, Herbert. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, pp. 89-95.
212 HART, Herbert. Ob. Cit., pp. 90-91.
213 Cf. HEGEL, Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. São Paulo: Loyola, 1995, p. 290.
98
Direito e Emancipação – Volume I
como consciência de si que é também para si 214 e, assim, pode realizar os fins
próprios da vida em sociedade. Hegel usa a palavra alemã Sittlichkeit que, como
lembra Charles Taylor, já foi traduzida de diferentes formas, tais como vida ética
ou ética objetiva. Para esse momento específico de nossa reflexão, importa dizer
que essa palavra designa um conjunto de obrigações morais que tenho com a
comunidade que faço parte.215 Essas obrigações morais se forjam como espírito
objetivo ou ideia objetiva na vida do povo, o indivíduo que é o mundo, diz Hegel
216
e, assim, ganham uma efetividade imediata e universal como um costume
que se impõe de forma objetiva e, por isso, se torna uma natureza.217 Em outras
palavras, trata-se de encontrar na vida social aquilo que é, valores vigentes que
geram obrigações comuns e dão sentido moral às nossas ações. Essa é uma ma-
neira de entender a questão da moral e dos valores de forma objetiva e que con-
testaria o argumento relativista usado por Hoerster para sustentar a Tese 2. Mas
podemos considerar que a questão da vida ética como colocada por Hegel vai
além do problema da relatividade ou subjetividade dos juízos de valores. Nesse
caso, ainda seria possível buscar outra linha de argumentação para colocar em
questão a Tese da subjetividade. Para isso devemos considerar que é possível
falar, ao menos, de duas concepções acerca da moralidade: 1) Relativista: por
esta concepção cada indivíduo constitui, no âmbito de sua consciência, seu
senso de certo e errado, sua opinião moral. Estas opiniões não podem ser recon-
duzidas à prescrições objetivas de aplicação geral sob pena de um absolutismo
moral; 2) Objetivista: por esta concepção grupos sociais constituem opiniões
morais compartilhadas que se refletem nos costumes e no ordenamento jurídico
deste mesmo grupo. Tal manifestação não pode ser considerada absolutista con-
quanto possam estes mesmos grupos sociais colocar em questão suas opiniões
morais. Manuel Atienza nos adverte que o relativismo moral entendida como
tese prescritiva é uma concepção que nos impede compreender adequadamente
o direito, exatamente porque esse deve buscar na moral objetiva o fundamento
da justificação de suas normas.218 Além disso, ainda que não se acredite na
capacidade da razão prática produzir consensos morais no âmbito de uma dada
214 Cf. HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 410.
215 TAYLOR, Charles. Hegel e a Sociedade Moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 107.
216 HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 306.
217 HEGEL, Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. São Paulo: Loyola, 1995, p. 295.
218 Cf. ATIENZA, Manuel. Cuestiones Judiciales. México: Fontamara, 2001, pp. 19-20.
99
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
219 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, pp. 3-4.
100
Direito e Emancipação – Volume I
101
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
na cena política. Essas duas crenças parecem ter conduzido a uma conclusão
intelectualmente legítima acerca da validade do direito independentemente da
natureza moral de seu conteúdo, uma vez que o debate moral não seria próprio
nem do cientista e nem do jurista (como cientista do direito). Uma crítica ho-
nesta ao positivismo deve considerar que ambas as apostas do positivismo não
estão exatamente erradas. O problema é que elas não dão conta da complexi-
dade da vida social. Veja-se que no caso da postura epistemológica fundada na
atitude da observação e da descrição, é possível reconhecer que ela é válida e
importante para diversos tipos de conhecimento. Mas há outros saberes que
demandam um grau mais aprofundado de reflexão. Esse é o caso do direito,
pois não se trata aqui apenas de unir duas variáveis diferentes para testar hipó-
teses acerca do comportamento do objeto estudado, como é a conduta típica de
muitas outras áreas do conhecimento. Como instituição que atua na fundação
e manutenção dos laços sociais, promovendo maior ou menor agregação, o di-
reito é uma área do conhecimento que exige de seus especialistas mais do que
observação. Exige reflexão crítica e diálogo com outras áreas. Além disso, é
importante considerar, como o faz Ronald Dworkin, por exemplo, que sendo o
direito uma instituição que mobiliza a seu favor o aparato de coerção do estado,
não basta à teoria jurídica apenas explicá-lo, mas é necessário também justificá-
-lo.222 Na vida social e política de qualquer sociedade democrática, todo exercí-
cio da força deve ser mais do que observado, deve sim ser justificado com base
numa razão pública fundada em valores compartilhados e acessíveis a todos.
Esse aspecto se liga àquela convicção de muitos positivistas de que a opção por
determinados valores deveria decorrer das disputas ordinárias que acontecem
na cena política. Não há nada de errado em acreditar que a cena política é um
lugar para o debate moral da sociedade. O problema consiste em achar que é
mesmo possível concentrar todo o debate moral de uma sociedade numa única
cena. O fato é que o debate moral desconhece fronteiras e sempre transbordará
os limites em direção a outras arenas. E isso não é uma coisa ruim. A história já
mostrou que perigoso mesmo é pensarmos que existem áreas da vida social que
estão isentas do debate moral, pois isso é uma porta aberta para diferentes tipos
de atrocidades que podem ser realizadas em nome de uma suposta neutralidade
de áreas do saber ou áreas técnicas tais como a medicina, a engenharia, a física,
o direito e as ciências em geral. Talvez por isso mesmo parte dos autores positi-
222 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 231.
102
Direito e Emancipação – Volume I
vistas tenham reconhecido que certos valores morais podem ser incorporados
ao direito positivo pelas próprias autoridades que produzem as normas e, nesses
casos, eles podem se converter em critérios para a interpretação, aplicação ou
mesmo validade de outras normas. Essa é a posição do chamado positivismo
jurídico inclusivo.223 É um posicionamento atraente, mas não avança na questão
central da separação entre direito e moral já que admite a incorporação dos va-
lores apenas como o resultado de um ato da autoridade competente que cria a
norma válida. De certa forma, isso não é muito diferente do posicionamento de
Hart ou mesmo de Kelsen já que esses nunca afirmaram que o direito é oposto
à moral, ao contrário, ambos admitiram que o direito positivo pudesse conter
normas inspiradas ou que expressassem certos valores. Hart, inclusive, achava
isso desejável. O positivismo inclusivo não afeta a Tese da neutralidade do di-
reito frente à moral, de certo modo a reforça.
Quando pensamos o problema da Tese da neutralidade diante do ponto
de vista do sujeito da injustiça social, a questão que se coloca não é apenas da
inconsistência moral do direito, mas a da generalização das pessoas que estão
diante do direito, como se a lei provocasse uma certa mesmificação dos sujeitos.
Isso nos remete à importância da diferença, sem com isso perder o direito à
igualdade, á claro. Daí a frase de Boaventura de Souza Santos: temos o direito a
ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza.224 Mas é preciso compreender que quando tratamos
do sujeito da injustiça isso exige de nós uma reflexão para além da questão do
direito à igualdade ou do direito à diferença. Evidente que esse debate do direito
à igualdade e à diferença é fundamental, mas o sujeito da injustiça é atraves-
sado por uma temporalidade peculiar ou diferente em relação aos demais. Há
na injustiça uma urgência e uma singularidade que devem ser compreendidas
de forma específica. Para aqueles que vivem o drama da injustiça social, muitas
vezes não basta a igualdade genérica e nem a diferença substancializadora. Su-
por os sujeitos da injustiça social como pessoas autônomas e iguais perante a lei,
ou, então, como pertencentes a um grupo identitário que possui características
223 Cf. COLEMAN, Jules. The Practice of Principle: in defense of a pragmatist approach to legal theory. New
York: Oxford University Press, 2001. COLEMAN, Jules. (Ed.) Hart’s Postscript: essays on the Postscript
to the Concept f Law. New York: Oxford University Press, 2001. WALUCHOW, Wilfrid. Inclusive Legal
Positivism. New York: Oxford University Press, 1994.
224 SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma Concepção Multicultural dos Direitos Humanos. In BALDI,
César Augusto. Direitos humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 272.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
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Direito e Emancipação – Volume I
com base em argumentos genéricos de que eles estariam violando o próprio di-
reito à educação. Muitas vezes as administrações públicas locais promovem uma
“limpeza urbana” retirando moradores de rua e transferindo-os para unidades
distantes em processos impessoais de institucionalização.
Seja por meio de sua ação política ou, em alguns casos, pela simples pre-
sença, os sujeitos da injustiça produzem um acontecimento, um evento que pre-
cisa ser compreendido e assimilado pela teoria e pela prática jurídica para que
o direito possa reconhecer e assegurar a potência insurgente do outro oprimido
pela injustiça social. Não há critério de validade da norma no positivismo jurí-
dico que compreenda que o sofrimento do outro deve ser entendido como fonte
do direito, mas isso precisa ser considerado se, de fato, levarmos a sério o com-
promisso com a dignidade humana. Derrida nos lembra que a realização para a
justiça implica a existência de uma espaço para o acontecimento: há um porvir
na justiça, e só há justiça na medida em que seja possível o acontecimento que, como
acontecimento, excede ao cálculo, às regras, aos programas, às antecipações etc. A
justiça como experiência da alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance
do acontecimento e a condição histórica.225 Nesse sentido que nos fala Derrida, a
justiça não se confunde tanto com um valor ou uma virtude especificamente,
mas, sobretudo, com uma abertura do direito e das instituições da cena jurídica
aos acontecimentos que presentam226 o sujeito concreto da injustiça social. Por
meio da presentação que é inerente ao acontecimento são retiradas as camadas
ficcionais que idealizam as pessoas e impedem sua manifestação real. Quando
se bane do direito o debate sobre a justiça, acaba por se banir também o espaço
para o evento, para o acontecimento que permite a insurgência do oprimido.
Esse é o ponto dramático do direito diante da injustiça social. O que é fun-
damental entender, é que o apelo para se considerar a importância da justiça
no direito significa, antes de tudo, um apelo para sensibilizar-se e indignar-se
diante das injustiças, de todas elas, mas, ao menos, da injustiça social que é
objetiva, pública e notória.
225 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 55.
226 Aqui é importante notar que o verbo presentar tem o sentido de apresentar-se a si mesmo. Opõe-se ao
verbo representar que significa trazer à memória ou colocar-se como imagem de algo ou alguém que
não está. O acontecimento é um espaço de presentação e não de representação.
105
3. O Paradigma do Pós-Positivismo
227 Cf. FRASER, Nancy. Escalas de Justicia. Barcelona: Herder, 2008. BERNARDES, Márcia Nina.
Esferas Públicas Transnacionais: Entre o Realismo Vestfaliano e o Cosmopolitismo. In Revista Direito
GV: São Paulo: FGV Direito SP, nº 19, 2014. O modelo westfaliano se refere à Paz de Westfália, isso
é, a um conjunto de tratados que no século XVII colocou fim na Guerra dos Trinta anos ocorrida na
Europa. Esses tratados foram decisivos na implementação dos modelos de estado nacional e soberania
nacional vigentes nos séculos posteriores.
228 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. São
Paulo: Alfa-Omega, 1994.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
229 Cf. MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 35-36.
230 Um bom exemplo deste interesse na aproximação entre direito e realidade social é a ampliação
significativa do debate em torno dos direitos fundamentais, não apenas de sua base teórica e
conceitual, mas de sua aplicação concreta tanto nas relações existentes na esfera pública como,
também, na esfera privada.
231 CONTRERAS, Francisco José. El debate sobre la superación del positivismo jurídico. In Crónica Jurídica
Hispalense Revista de la Facultad de Derecho. Valencia: Editorial Tirant lo Blanch, nº 5, 2007, p. 4.
232 Cf. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 48. Vale registrar, também, que a expressão pós-
positivismo não é exclusiva da teoria e filosofia do direito. Ela é empregada em outras áreas do saber.
A título de exemplo, a palavra, em inglês, postpositivism é comumente usada na filosofia da ciência
para se referir a uma postura epistemológica mais crítica e que afirma que a apreensão da realidade
pelas diferentes áreas do saber ocorrerá sempre de forma provisória e imperfeita.
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Direito e Emancipação – Volume I
233 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, pp. 97-138.
234 Claro que a referência à violência descomunal não diz respeito apenas aos campos de batalha, o que
poderia até ser entendido como um pleonasmo, mas aos campos de concentração que produziram uma
violência em escala industrial capaz de desfigurar e aniquilar a condição humana. Cf. LEVI, Primo. É
isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
235 Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria Analítica da Ciência e Dialética: contribuição à polêmica entre Popper
e Adorno. In Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 277-299.
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236 Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
237 A crítica aos limites da análise do positivismo jurídico, feita com base numa reductio ad Hitlerum foi
apresentada por Norberto Bobbio e no Brasil desenvolvida de forma percuciente por Dimitri Dimoulis
e Bruno Torrano. Cf. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São
Paulo: Ícone, 1995, p. 225; DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito
e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Editora Método, 2006, pp. 257-264. TORRANO,
Bruno. Democracia e Respeito à Lei: entre positivismo jurídico e pós-positivismo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2015, pp. 104-107.
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Direito e Emancipação – Volume I
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239 STRECK, Lenio Luiz. Ob. Cit., pp. 457-458. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição,
hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014, passim.
240 GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la constitución. Buenos Aires: Katz Editores, 2014.
241 Cf. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pp. 47-52.
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Direito e Emancipação – Volume I
Para Atienza e Manero, o desacordo não está tanto no campo dos postula-
dos teóricos, pois eles concordam que não é possível sustentar fundamentos de
242 ATIENZA, Manuel. RUIZ MANERO, Juan. Para una teoría postpositivista del Derecho. Lima:
Palestra, 2009.
243 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Dejemos Atrás el Positivismo Jurídico. In Isonomia - Revista
de teoría y filosofía del derecho, nº 27. México: ITAM, 2007, p. 13.
244 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Ob. Cit., p. 21.
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Direito e Emancipação – Volume I
direito como uma prática social (na terminologia de Dworkin, como uma
prática interpretativa, na de Alexy como uma série de procedimentos), e
não simplesmente como um conjunto de regras e princípios.246
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
249 Vale registrar que posteriormente o alemão Claus Canaris fez um esforço significativo para conciliar
a tópica com o pensamento sistemático, adotando como suposto para a tal a ideia de sistema aberto.
Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
250 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., pp. 33-34.
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Direito e Emancipação – Volume I
cometeu uma falta deve arcar com suas consequências; a confiança merece
proteção; devem-se utilizar os meios menos danosos; o necessário é permitido;
ninguém é obrigado ao impossível; são permitidas exceções em casos de ex-
trema dificuldade; a arbitrariedade é proibida; o que é insuportável não pode
ser de direito.251 Os topoi acima apresentados são pontos de vista diretivos que
servem como fios condutores e orientação para o pensamento no momento
da discussão dos problemas.252 Além disso, Viehweg registra que eles também
possuem um importante papel na tarefa da interpretação, fazendo que cer-
tas premissas (normas), interpretadas à luz de um topos específico adequado à
situação-problema possam ser compreendidas como relevantes ou irrelevantes,
aceitáveis ou inaceitáveis, sustentáveis ou insustentáveis.253
Viehweg estabelece três pressupostos para se ter em conta a articulação
entre pensamento tópico e o direito: 1) a estrutura geral do direito somente
pode ser determinada a partir do problema; 2) as partes integrantes do direito,
seus conceitos e suas proposições têm de permanecer vinculadas com o proble-
ma e só podem ser compreendidas a partir dele; 3) os conceitos e as proposições
do direito só podem ser utilizados quando conservarem sua vinculação com o
problema.254 Trata-se de compreender o direito mais como uma atividade do
que como uma teoria. E uma atividade de natureza praxiológica, pois sempre
em busca de conclusões operacionais. Evidente que tanto na apreensão do pro-
blema quanto no recurso aos topoi para buscar a melhor solução, atuam as pré-
-compreensões do agente, mas isso longe de ser algo ruim é fonte de legitimida-
de para a decisão e de integração entre o raciocínio jurídico e as crenças mais
comuns presentes na sociedade. Isso serve para estabilizar o direito, mas não o
limita, pois a tópica de primeiro grau é sempre complementada pela tópica de
segundo grau. Claro que não se deve confundir esta estabilidade com conserva-
dorismos decorrentes de preconceitos comumente existentes na vida social. Isso
porque o direito, na maneira de uma práxis, mantém um compromisso com a
251 Ao falar da importância dos tópicos jurídicos, Chaïm Perelman cita o trabalho de Gerhard Struck:
Topische Jurisprudenz e expõe um catálogo de tópicos extraídos do livro de Struck. Os exemplos aqui
apresentados foram retirados desse catálogo. Cf. PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo:
1998, pp. 120-128.
252 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., pp. 39-40.
253 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., pp. 43-44.
254 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., p. 97.
117
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
busca da justiça. Isso quer dizer que tanto como forma própria de se raciocinar
juridicamente e como fundamento para a teoria do direito, a tópica não é ape-
nas uma técnica ou procedimento que se postula neutro ou descompromissado.
Antes, ela mesma se vincula ao grande topos que é a justiça. Por tal motivo,
Viehweg sustenta que a predominância do problema no raciocínio jurídico é
para que cada um desses problemas possa ser articulado com a questão da jus-
tiça, pois sem a intenção de buscá-la, toda a problemática seria algo sem senti-
do.255 Atente-se para o fato de que não se trata do justo em sentido metafísico
ou abstrato, mas o justo aqui e agora como composição adequada de interesses.
Esse, afirma Viehweg, é o problema fundamental de nosso ramo do saber. Como
tal, domina e informa toda a disciplina.256
Outro filósofo do direito importante para o lançamento das bases do pós-
-positivismo é o guatemalteco, naturalizado mexicano, Luis Recasens Siches
(1903-1977). Ele é enfático ao dizer que o direito não é uma realidade natu-
ral (cósmica), psíquica ou puramente ideal.257 Trata-se, antes, de uma prática
humana, resultado das condições históricas e da vida concreta de uma dada
sociedade. Mas o direito, como produto da cultura, mantém-se orientado pelos
valores que estão na base dessa cultura e animam suas atividades. Daí que o
direito possui uma dimensão fática e outra axiológica. Todavia, o fato do direito
possuir uma dimensão ideal, comprometida com valores, como a justiça acima
de todos, não quer dizer que o direito positivo resulte sempre justo. Como obser-
va Recasens: a relação do Direito positivo com os valores que este ajuda a plasmar,
nem sempre é de correspondência perfeita: assim, por exemplo, poderá ser justo,
menos justo ou injusto.258 O direito é uma intenção de direito justo, ele se propõe
a realizar valores, mas ele não está constituído simplesmente pelos puros valores que
pretende realizar, mas por uma série de ingredientes por meio dos quais se oferece
um ensaio de interpretação concreta desses valores – interpretação que pode resultar
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Direito e Emancipação – Volume I
mais ou menos correta ou, até mesmo, fracassada.259 A vida humana é, para Re-
casens Siches, o conceito chave para a compreensão do direito, pois, segundo
o autor, qualquer norma jurídica é sempre um pedaço da vida humana objeti-
vada.260 Como produto da ação humana as normas guardam significações que
carregam uma certa dimensão de ser ideal, como é próprio dos valores, mas elas
não podem ser confundidas como parte de uma idealidade pura, como aconte-
ce, por exemplo, com os princípios matemáticos. Estes possuem uma validade
própria e autônoma independentemente de que a mente humana os tenha pen-
sado ou não. Nesse caso, cabe à inteligência das pessoas empregar uma lógica
formal e dedutiva para alcançar e entender a estrutura e a aplicação desses prin-
cípios, algo como a lógica dos geômetras. Todavia, isso não ocorre com o direi-
to. Uma ideia matemática não foi construída pelos matemáticos. Já uma norma
jurídica foi construída por uma pessoa ou grupo de pessoas e carrega, por isso,
significações e valorações que não possuem um sentido eterno ou absoluto, pois
não preexistem à vida humana. Portanto o direito não se configura como um
ser ideal preexistente à cultura e à história e, por isso, não pode ser entendido
e aplicado nos termos de uma lógica clássica de tipo formal ou matemática. O
fenômeno jurídico se manifesta, num primeiro momento, como uma construção
própria do legislador e, num segundo momento, como atividade interpretativa
do jurista. Em ambos os momentos deve haver um esforço para que suas nor-
mas expressem os valores próprios daquela sociedade. Mas não se deve criar a
expectativa de que a lógica formal seja o instrumento adequado para isso, pois
ela não é a ferramenta devida para lidar com as realizações próprias da cultura.
No conhecimento a na compreensão da experiência jurídica, mais importante
do que a razão teórica é a razão vital, isto é, o conhecimento que o homem tem
daquilo que ele tem sido, daquilo que tem ocorrido com ele, do que ele tem
vivido e as consequências práticas que se pode tirar desse conhecimento. Isso
envolve perceber sua própria experiência, como indivíduo, como grupo e como
sociedade, e retirar dessa percepção um aprendizado que auxilie na avaliação de
seu passado e presente.261 Nesse sentido a razão vital se associa à razão histórica
que leva em conta o acúmulo das experiências humanas como lições condicio-
nantes para o futuro. Razão vital e razão histórica transformam o entendimento
119
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
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Direito e Emancipação – Volume I
tem tanta parte na razão como o tem a lógica racional.264 Racional e razoável
são duas faces da mesma moeda. Porém, a aplicação da lógica do racional, de
uma razão meramente teórica e descritiva, pode conduzir, por vezes, a injus-
tiças mais ou menos graves. Para esse autor, toda e qualquer interpretação de
uma norma jurídica deve acontecer conforme a lógica do razoável que deve ser
entendida como o elemento de unidade da atividade hermenêutica no âmbito
do direito. Nesse sentido, não importa se o aplicador da norma está diante de
um caso fácil ou difícil, em qualquer caso é necessário que se proceda razoa-
velmente, ou seja, levando em conta a realidade e o sentido dos fatos, compre-
endendo as valorações em que se inspira o ordenamento jurídico, atendendo
os fins a que se propõem as normas aplicáveis.265 Evidente que todas as valo-
rações se amparam num senso de moralidade, contudo Recasens deixa claro
que não se trata de substituir a norma vigente pelo senso de justiça particular
do jurista, por superior que esse possa ser.266 A lógica do razoável não autoriza
substituir a vontade do criador da norma pela do intérprete, mas procura uma
solução que seja aceitável considerando tanto a realidade fática quanto o direi-
to positivo como um todo, incluindo seus princípios e seus fins. A solução deve
ser satisfatória não da perspectiva de uma moral individual, mas do senso de
moralidade existente no ordenamento jurídico, de um sentido de justiça que
esteja amparado nesse ordenamento.267
Para Siches, o direito conforma uma realidade com uma dimensão ideal,
inspirada em valores de primeira grandeza, tais como justiça, dignidade huma-
na, liberdade, bem estar social, paz etc... Além disso, o raciocínio jurídico deve
ser entendido como parte da razão prática e, de efeito, orientado pelos valores
próprios daquilo que a tradição filosófica denomina de prudência.268 É daí que
o autor busca critérios objetivos que caracterizam a lógica do razoável e, ao
mesmo tempo, rechaçam as acusações de que esta corresponderia a mera va-
loração subjetiva. São eles: a) está circunscrita à realidade concreta do mundo
social na qual opera; b) é regida por valorações; c) tais valorações são concretas,
quer dizer, estão referidas a uma determinada situação e, portanto, levam em
264 SICHES, Luis Recasens. Introducción al Estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 80.
265 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 247.
266 Cf. SICHES, Luis Recasens. Filosofía del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2008, p. 9.
267 SICHES, Luis Recasens. Introducción al Estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 247.
268 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 256.
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269 Cf. SICHES, Luis Recasens. Filosofía del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2008, p. 7; SICHES,
Luis Recasens. Introducción al Estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2006, pp. 256-257.
270 SICHES, Luis Recasens. Introducción al Estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 257.
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Disso resulta que para aplicar a justiça é preciso classificar as pessoas de acordo
com características essências. O problema é que isso pode levar àquilo que o
autor denomina de antinomias da justiça. Veja-se o exemplo:
124
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
próprio que é aquele que resulta do fato de sua aplicação satisfazer a uma necessi-
dade racional de coerência e regularidade.279
Perelman destaca três elementos fundamentais na justiça: o valor que a
fundamenta, a regra que a anuncia, o ato que a realiza. A questão fundamental
aqui, e que é decisiva para toda a obra de Chaïm Perelman, é que ele está con-
victo de que apenas é possível submeter a exigências racionais a regra e o ato:
Podemos exigir do ato que seja regular, que trate da mesma forma os
seres que fazem parte da mesma categoria essencial; podemos pedir que
a regra seja justificada, que decorra logicamente do sistema normativo
adotado. Quanto ao valor que fundamenta o sistema normativo, não o
podemos submeter a nenhum critério racional, ele é perfeitamente arbi-
trário e logicamente indeterminado. Com efeito, embora qualquer valor
possa servir de fundamento para um sistema de justiça, esse valor, em si
mesmo, não é justo. O que podemos classificar de justas são as regras que
ele determina e os atos que são conforme essas regras.280
126
Direito e Emancipação – Volume I
Vinte anos depois desse trabalho decisivo sobre o estatuto da justiça, Pe-
relman expressa que ainda se mantém convicto em relação ao fato de que os
valores que fundamentam um sistema de justiça são arbitrários e logicamente
indeterminados e, desse modo, um sistema normativo não pode resultar de uma
dada experiência e nem ser deduzido de princípios incontestáveis.283 Porém, e
esse é o dado mais importante, isso não significa que os valores e as normas que
nos guiam sejam alheios a qualquer racionalidade, que não possamos criticá-los
ou justificá-los, que seja obrigatório inferir que qualquer deliberação não passe
de uma expressão de interesses ou paixões. Esse tipo de conclusão, segundo o
autor, seria inevitável se trabalhássemos apenas no campo de um racionalismo,
típico da modernidade cientificista, que acredita que qualquer prova apenas
pode ser fundamentada no cálculo ou na experiência por entender que todo
raciocínio convincente é uma forma de dedução ou indução.284 Assim, Perel-
man lança as indagações que são determinantes para se compreender o sentido
de sua obra: dever-se-á concluir, portanto, que a determinação dos valores não-
-instrumentais e a das normas que nos fixariam os direitos e nos prescreveriam as
obrigações escapam a qualquer lógica e a qualquer racionalidade? Dever-se-á re-
nunciar a todo uso filosófico da razão prática e limitar-se, na área da ação, a um uso
técnico da razão, a um ajuste dos meios aos fins que, por sua vez, seriam inteiramente
irracionais?285 A resposta é não. Porém, segundo o autor, é preciso elaborar uma
lógica dos juízos de valores diferente dos padrões acerca da maneira como a lógi-
ca moderna entende a natureza do raciocínio, e que seja mais próxima da forma
como as pessoas efetivamente raciocinam sobre os valores. Aqui o pensamento
de Perelman coincide com o de Recasens Siches, pois da mesma forma que o faz
Siches, Perelman também crítica a aplicação das lógicas formais de inspiração
matemática em áreas como o direito: o inconveniente dessa concepção é que ela
tem como consequência levar o lógico a negligenciar o estudo de formas de raciocínio
que têm grande importância em certas disciplinas não-matemáticas e, mais espe-
cialmente, em direito.286 A alternativa seria buscar uma lógica não-formal o que,
para o autor, se manifesta ao modo de uma teoria da argumentação, denominada
por Perelman de Nova Retórica. Essa teoria lida com o campo axiológico não de
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304 Cf. AGUILÓ REGLA, Josep. Positivismo Y Postpositivsmo. Dos Paradigmas Jurídicos en Pocas Palabras.
In Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Núm. 30, 2007.
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305 Cf. ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Dejemos Atrás el Positivismo Jurídico. In Isonomia -
Revista de teoría y filosofía del derecho, nº 27. México: ITAM, 2007. BUSTAMANTE, Thomas
da Rosa de. Uma Defesa do Pós-Positivismo. In Virtú – Revista Virtual de Filosofia Jurídica e Teoria
Constitucional, nº 02, 2008.
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Direito e Emancipação – Volume I
em decorrência de seu próprio crime.306 Com base nesse dentre outros exemplos,
Dworkin criticou a noção de direito como um modelo de regras e defendeu que
os princípios possuem a mesma condição normativa que as regras, não obstante
operem com uma lógica distinta já que sua aplicação conduz a uma direção
específica, mas não determina as consequências jurídicas com o mesmo nível
de exatidão que as regras. Outra importante diferença, segundo o autor, é que
os princípios possuem uma dimensão própria que é a do peso ou importância.
Quando os princípios colidem, aquele a quem cabe resolver o conflito deve le-
var em conta a importância relativa de cada um.307 Os princípios, no paradigma
do pós-positivismo, são considerados norma jurídica assim como as regras o são.
Como tal, eles podem dar a base para qualquer decisão satisfatória. De acordo
com os pós-positivistas, isso tornaria possível uma maior aproximação do direi-
to com os valores que atuam, sobretudo, na justificação das decisões. As regras
podem ter maior densidade normativa, pois estabelecem a conduta exigida e as
consequências do seu cumprimento ou do seu descumprimento com maior pre-
cisão. Por outro lado, os princípios possuem uma dimensão justificatória mais
eloquente do que as regras. Como afirmam Atienza e Manero, por serem menos
densos do que as regras, os princípios possuem um campo maior de incidência
fática, podem ser aplicados a um universo maior de casos.308 Além disso, e mais
importante, revelam com mais eloquência os valores que fundamentam a or-
dem jurídica e, dessa forma, estão mais aptos a dar sentido aos comandos, seja
justificando uma regra ou uma decisão, seja permitindo a consecução de certas
finalidades sociais previstas na própria ordem jurídica309, em geral nas consti-
tuições nacionais ou em tratados de direitos humanos ratificados no país. Seja
para incorporar valores, seja para produzir justificativas razoáveis, os princípios
possuem um papel de destaque no paradigma pós-positivista e sua utilização
demanda uma maior sofisticação argumentativa do que as regras.
Quando se fala em paradigma do pós-positivismo é preciso ter em conta
que da mesma forma que os paradigmas anteriores, direito natural e positivis-
mo jurídico, este também possui suas latências e diferenças internas. No âmbi-
306 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 37.
307 DWORKIN, Ronald. Ob., Cit., pp. 39-45.
308 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Sobre Principios y Reglas. In Doxa. Cuadernos de Filosofía
del Derecho. Núm. 10, 1991, p. 116.
309 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Ob. Cit., p. 117.
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Direito e Emancipação – Volume I
310 Basta lembrar as diferenças e os debates entre adeptos do jusnaturalismo racionalista e jusnaturalismo
teológico ou as diferenças e os debates entre adeptos do positivismo exclusivo e positivismo inclusivo,
no âmbito do positivismo jurídico.
311 HABERMAS, Jurgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2004, p. 66.
312 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5ª edição
revista, modificada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 510.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
313 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Uma Defesa do Pós-Positivismo. In Virtú – Revista Virtual de
Filosofia Jurídica e Teoria Constitucional, nº 02, 2008, p. 1.
314 CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. In Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Núm. 21,
1998, p. 209.
315 CALSAMIGLIA, Albert. Ob. Cit., p. 211.
316 CALSAMIGLIA, Albert. Ob. Cit., p. 216.
317 CALSAMIGLIA, Albert. Ob. Cit., p. 213.
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Direito e Emancipação – Volume I
direito não deve ser apenas descritiva mas, sobretudo, normativa, isso é, possuir
capacidade justificatória das imposições jurídicas.
Outro ponto a se tratar sobre esse paradigma é relativo à sua própria no-
menclatura. Alguém poderia levantar a questão se não seria melhor denominar
o paradigma de não-positivismo, ao invés de pós-positivismo. Até mesmo pelo
fato de, como dito antes, nem todos os autores qualificados de pós-positivistas
utilizarem esta denominação em seus trabalhos.318 O problema em relação a isso
é que a despeito do fato do pós-positivismo ser um não-positivismo, nem todo
não-positivismo é pós-positivista. Basta ter em mente o caso emblemático do
direito natural que é não-positivista, mas não se enquadra no pós-positivismo.
Claro que é preciso reconhecer que há uma linha que liga direito natural e pós-
-positivismo: trata-se do fato de ambos os paradigmas atuarem com perspecti-
vas idealistas ou perfeccionistas acerca do direito, ou seja, serem teorias que se
propõem um viés normativo do direito. Para ambas não é suficiente descrever
o fenômeno jurídico, mas é necessário avaliá-lo e justificá-lo como direito, não
apenas como o direito que é, mas como o direito que deveria ser. Contudo, o
direito natural, como diz o nome, procura os fundamentos e a origem do direito
ideal numa espécie de metafísica da natureza – razão humana, vontade divina,
natureza das coisas. Por isso jusnaturalistas se sentem confortáveis com a ideia
de que o direito natural é logicamente anterior e moralmente superior. Por outro
lado, o pós-positivismo procura os fundamentos e a origem do direito ideal na
história social e/ou institucional da comunidade política. Essa vinculação dos
valores e princípios que animam o direito à história, desnaturaliza o paradigma
e institui uma incompatibilidade radical entre jusnaturalismo e pós-positivismo.
Mas não há dúvidas quanto à perspectiva acentuadamente idealista do pós-
-positivismo jurídico ao propor uma teoria do direito como ele deveria ser 319,
embora não faça sentido chamar o idealismo pós-positivista de metafísico, haja
vista sua opção pela história social e institucional, ao invés da natureza.
318 A título de exemplo, Robert Alexy é um autor considerado pós-positivista, mas que não usa a expressão
pós-positivismo em seus trabalhos. Ele opta pela expressão não-positivismo (nichtpositivismus). Veja-
se, a esse respeito, o representativo artigo: ALEXY, Robert. El No Positivismo Incluyente. In Doxa.
Cuadernos de Filosofía del Derecho. Núm. 36, 2013.
319 Talvez nada seja mais emblemático quanto a esse aspecto do que o título de um dos mais importantes
livros de Owen Fiss: The Law as It Could Be – O Direito como ele poderia ser. Cf. FISS, Owen. The
Law as It Could Be. New York: New York University Press, 2003.
139
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
320 Cf. EWALD, François. Foucault, a Norma e o Direito. Lisboa: Veja, 1993.
321 Cf. HEINZE, Eric. The Concept of Injustice. New York: Routledge, 2013.
322 Cf. KENNEDY, Duncan. A Critique of Adjudication [fin de siecle]. Cambridge: Harvard University
Press, 1997. KENNEDY, Duncan. Izquierda y Derecho: ensayos de teoría jurídica crítica. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno, 2010.
323 Cf. CORREAS, Óscar. Teoría del Derecho. Barcelona : María Jesús Bosch, 1995. CORREAS, Óscar .
Introduccion a La Critica Del Derecho Moderno. Esbozo. Puebla: Editorial Universidad Autónoma de P
uebla - Universidad Autónoma de Guerrero, 1982.
324 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005.
325 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
326 AGAMBEN. Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
AGAMBEN. Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. AGAMBEN. Giorgio. Opus
Dei: Arqueologia do Sacrifício [Homo Sacer, II, 5]. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. AGAMBEN.
Giorgio. Altíssima pobreza: Regras monásticas e formas de vida [Homo Sacer, IV, 1]. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2014.
327 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
328 MOUFFE, Chantal; LACLAU, Ernesto. Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic
Politics. Londres: Verso, 1985. MOUFFE, Chantal. O Regresso do Político. Lisboa: Gradiva, 1996.
MOUFFE, Chantal. The Democratic Paradox. Londres: Verso, 2000.
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Direito e Emancipação – Volume I
e Antonio Negri.329 Dentre outros que ainda poderiam ser lembrados, esses au-
tores citados têm em comum, como foi dito, fazerem críticas ao direito que não
são idealistas e, por isso, não podem ser chamados de pós-positivistas. Essa é
mais uma razão pela qual não é possível considerar as expressões não-positivismo
e pós-positivismo como equivalentes funcionais. De efeito, há um ganho cogniti-
vo na denominação do paradigma como pós-positivista, pois ao mesmo tempo
em que revela certa ligação com o positivismo jurídico (admitir o direito como
força e como forma, concordar com aspectos da validade formal e da eficácia
social), apresenta sua pretensão de superação do paradigma juspositivista.
Um aspecto fundamental para se compreender o pós-positivismo, é a pas-
sagem do estado de direito para o estado constitucional de direito. Embora sejam
semelhantes, as expressões carregam cargas semânticas distintas. O estado de
direito está baseado no princípio da lei, isto é, a vontade da lei substitui a
vontade discricionária do governante. Daí a conhecida expressão governo das
leis por oposição ao governo dos homens. Todas as expectativas normativas de
indivíduos e grupos sociais decorrem, portanto, das leis. O sentido da palavra
lei é, curiosamente, amplo e específico. Em outras palavras, a ideia de lei abran-
ge a legislação aprovada pelo parlamento e, além dessas, decretos, portarias e
regulamentos. Todavia, não inclui a Constituição que, por seu turno, é vista
como uma referência mais política do que jurídica. E mesmo no sentido polí-
tico, ela é tomada como um caminho a ser seguido ou, como no dizer de Frei
Caneca, a ata do pacto social, que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e
associam para viver em reunião ou sociedade.330 Na concepção liberal de estado
de direito, que está na base do movimento constitucionalista ocidental do fim
do século XVIII, embora as constituições tratassem da organização do estado
e da relação entre este e a sociedade por meio da imposição de certos deveres
e da garantia de determinados direitos, elas desempenhavam um papel mais
fraco no ordenamento jurídico, pois eram as leis infraconstitucionais que esta-
beleciam em sentido forte os deveres e os direitos. Esse é um aspecto que marca
o paradigma juspositivista, por isso Norberto Bobbio afirma que o positivismo
jurídico nasce do impulso histórico para a legislação, se realiza quando a lei se torna
a fonte exclusiva – ou, de qualquer modo, absolutamente prevalente – do direito, e
329 NEGRI, Antonio. O Poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002.
330 Manifesto do Frei Caneca, Recife, 1824.
141
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
seu resultado último é representado pela codificação.331 Essa ideia que marca de
maneira decisiva o positivismo da Escola da Exegese, permanece no imaginário
do jurista que busca a norma nos códigos mais do que na constituição. Nesse
processo, não há dúvida de que o código civil é o modelo das relações jurídicas,
o que faz com que o positivismo seja assimilado pela doutrina jurídica a partir
de um viés mais privatista.
Essa história começa a mudar a partir da segunda metade do século XX
com o movimento da promulgação de novas constituições na Europa conti-
nental e na América Latina. Como resultado da nova agenda do social do pós-
-guerra, passa a existir uma preocupação com a instituição de limites jurídicos
e parâmetros políticos e morais para o próprio legislador: a constituição. O pro-
tagonismo das constituições não é um raciocínio óbvio ou trivial. Como nos
recorda Luigi Ferrajoli, até cinquenta anos atrás, não existia, no senso comum dos
juristas, a ideia de uma lei sobre as leis e de um direito sobre o direito.332 Assim, tem
início uma transição do conceito de estado de direito para um estado constitu-
cional de direito, onde a constituição é vista como norma jurídica plenamente
aplicável, independentemente, no mais das vezes, de legislação infraconstitu-
cional.333 Nesse novo panorama, a constituição não apenas organiza o poder
político, mas também lhe define previamente a pauta, pois todos os agentes e
órgãos do legislativo, do executivo e do judiciário ficam formalmente e mate-
rialmente vinculados às normas constitucionais. De efeito, mesmo que uma lei
seja formalmente válida, ela ainda assim será inválida caso substancialmente
viole diretriz, princípio ou regra constitucional. Nos seus estudos sobre estado
de direito e democracia, Ernst Wolfgang Böckenförde diz que o conceito mate-
rial de estado de direito, decorrente desse constitucionalismo contemporâneo,
implica uma tendência de renúncia ao positivismo jurídico em função da supe-
ração do critério de validade meramente formal e da neutralidade quanto ao
conteúdo das leis. Afirma Böckenförde:
331 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 119.
332 FERRAJOLI, Luigi. O Estado de Direito entre o Passado e o Futuro. In COSTA, Pietro. ZOLO, Danilo.
O Estado de Direito: história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 435.
333 Claro que há casos específicos onde a própria constituição demanda a aprovação de lei complementar
ou ordinária para regulamentar seu texto e especificar os meios de realização de um comando
que, não obstante, já está presente e deve orientar o funcionamento de instituições e as ações dos
indivíduos e grupos sociais.
142
Direito e Emancipação – Volume I
334 BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfagang. Estúdios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Madrid:
Editorial Trotta, 2000, p. 40.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
nable: a treatise on legal justification. Nesse livro Aarnio dialoga com teóricos do
direito, positivistas e pós-positivistas, para propor um modelo geral de justifica-
ção razoável para o direito. O autor considera que o conceito de validade desem-
penha um papel determinante na ontologia do direito, independentemente de
qual direito positivo se considere.335 Fazendo referencia à classificação proposta
pelo filósofo do direito polonês Jerzy Wróblewski, Aarnio afirma que um direito
vigente, ou seja, válido, possui três dimensões de validade: sistêmica, fática e
axiológica.336 A validade sistêmica de uma norma possui natureza formal e deve
satisfazer aos seguintes requisitos: a) ter sido aceita e promulgada segundo o
procedimento devido; b) não ter sido revogada; c) não contradizer outra norma
vigente do mesmo ordenamento; e d) caso tenha ocorrido a contradição, haver
uma regra aceita para solucionar o conflito. Esclarece o autor que é possível fa-
lar da validade sistêmica ou formal em dois planos: validade interna e validade
externa. O plano da validade interna diz respeito ao posicionamento da norma
ao interior do ordenamento jurídico, o que suscita questões de competência
que remontam à constituição. Já a validade externa se refere ao ordenamento
jurídico como um todo, o que implica critérios metajurídicos de obediência ao
direito.337 Até aqui Aulis segue o raciocínio já desenvolvido anteriormente por
autores positivistas. Em relação à validade sistêmica interna, seria possível fazer
uma referência à norma fundamental hipotética de Kelsen como base de vali-
dade para a constituição. Já em relação à validade formal externa poderíamos
recorrer à regra de reconhecimento de Hart. Apesar de serem empiricamente
raras as situações onde se pode questionar a validade sistêmica externa (valida-
de de todo o ordenamento jurídico), tal questionamento poderia, segundo Aar-
nio, levantar uma questão formal e outra material. Do ponto de vista formal, se
coloca a pergunta por que obedecer a um sistema jurídico? Isso remete o teórico
do direito às questões de legitimidade social do dever de obediência. Já do pon-
to de vista material, a validade sistêmica externa se conecta com a avaliação
335 AARNIO, Aulis. Lo Racional como Razonable: un tratado sobre la justificación jurídica. Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1991, p. 70.
336 AARNIO, Aulis. Ob. Cit., p. 71. Talvez o leitor brasileiro se sinta familiarizado com essa classificação
apresentada, pois em muita se assemelha com a teoria tridimensional do direito aqui popularizada por
meio da obra de Miguel Reale. Aliás, Reale chega a citar Wróblewski nos seus trabalhos. Cf. REALE,
Miguel. Teoria Tridimensional do Direito: situação atual. 5ª edição revista e reestruturada. São Paulo:
Saraiva, 1994, pp. 46-47.
337 AARNIO, Aulis. Ob. Cit., pp. 72-77.
144
Direito e Emancipação – Volume I
338 HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, pp. 209-216.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
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Direito e Emancipação – Volume I
entre eles a referência a algum código de valores. Portanto, somente à luz da validade
axiológica é possível compreender, por exemplo, a relatividade das interpretações.342
Claro que num universo assim mais amplo de regras, princípios, diretrizes
e valores, onde a validade de uma norma pode ser tomada não apenas sob um
aspecto formal (sistêmico) e fático (eficácia social), mas também a partir de
uma dimensão axiológica (de aceitabilidade), o ordenamento jurídico passa a
ser compreendido como um fenômeno de alta complexidade, o que significa
um movimento muito mais intenso de conexão entre variáveis. Tal movimen-
to ocasiona uma possibilidade maior de combinações entre estes elementos do
ordenamento e, inevitavelmente, uma pluralidade de sentidos, isto é, um certo
nível de indeterminação, como afirmou Albert Calsamiglia. Para lidar com essa
indeterminação no plano da aplicação da norma ao caso concreto e evitar que
ela se confunda com arbitrariedade ou mera discricionariedade, os autores do
pós-positivismo, cada um ao seu modo, irão invocar o conceito de justificação.
Esse talvez seja o conceito mais essencial para a adequada compreensão do pós-
-positivismo. Todos os autores desse paradigma atribuem uma grande relevân-
cia à justificação, pois ela é que tem a missão de produzir uma certa pacificação
diante das inúmeras possibilidades de contestação decorrentes da pluralidade
de valores que está na base das constituições democráticas. Quando se funda-
menta uma decisão, deve-se explicar como se chegou a ela, mas, igualmente,
deve-se justificar porque ela e não outra é a melhor decisão. As diferentes cor-
rentes do pós-positivismo tentam, cada uma a seu modo, sustentar qual é o me-
lhor caminho para essa justificação. O objetivo final é fazer com que o direito
esteja sempre acompanhado da justiça que, como lembra Manuel Atienza, não
é um ideal irracional, é simplesmente um ideal ou uma ideia regulativa.343
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344 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 7.
345 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Ob. Cit., p. 8.
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Direito e Emancipação – Volume I
346 http://www.cidh.org/annualrep/2000port/12051.htm
149
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
dade para atacar a Lei. Mesmo na comunidade jurídica ela sofreu resistência
e sua constitucionalidade foi questionada. Em resposta, no mês de novembro
de 2007, a Presidência da República, por intermédio da Advocacia Geral da
União, impetrou a Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 19) visando a
confirmar os dispositivos mais questionados da Lei Maria da Penha, o que veio
a acontecer por decisão unânime do STF em fevereiro de 2012.347 Mas as dispu-
tas ideológicas em torno dos valores não se reduziram ao debate sobre a cons-
titucionalidade da Lei. No âmbito da aplicação da norma, algumas decisões do
Poder Judiciário entenderam que a Lei específica de proteção à mulher fosse
aplicada também para proteger homens. Isso aconteceu tanto no Tribunal de
Justiça de Mato Grosso, no âmbito do Juizado Especial Criminal Unificado, em
Cuiabá, no processo 1074/2008, quanto no Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
na apelação criminal 1.0672.07.249317-0. Nesse último caso o desembargador
relator afirmou que a única forma de sanar a “desigualdade” perpetrada pela Lei
seria aplicar seus dispositivos protetivos igualmente para mulheres e homens.
Isso significa que o recurso ao valor da igualdade, ao menos nesses casos, não
foi suficiente e satisfatório para se compreender a condição da mulher vítima de
violência doméstica como sujeito de injustiça social.
É forte o argumento pós-positivista de que o recurso aos valores e aos
princípios faz o direito crescer em sofisticação, especialmente no caso dos prin-
cípios, uma vez que esses passaram a ser considerados normas plenamente apli-
cáveis. Todavia, a índole abstrata dos valores e dos princípios faz com que eles
sejam capturados em jogos de sentidos onde a condição retórica pode acabar
por se sobrepor à realidade mesma. Já foi dado acima o exemplo da Lei Ma-
ria da Penha e de como ela foi aplicada fora do escopo da proteção à mulher.
Veja-se o caso das políticas de ação afirmativa, em especial dos programas de
reserva de vagas, conhecidos como programas de “cotas”. Não é por acaso que
tanto aqueles que defendem como aqueles que acusam esse tipo de programa
invocam o valor da igualdade. Para que as políticas de ação afirmativa sejam
adequadamente compreendidas é preciso mais do que fundamentá-las com base
em valores e princípios. É necessário buscar as raízes dos processos de opressão
e identificar aqueles que mais sofreram ao longo da história e ainda sofrem. É
preciso dar um rosto ao sujeito da injustiça social e olhá-lo nos olhos. É essa
347 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199845
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348 MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 87.
349 Não é demais lembrar a famosa palestra proferida por Rudolf Von Ihering em 1872 na Sociedade
Jurídica de Viena na qual Ihering inicia dizendo: O fim do direito é a paz, o meio de atingi-lo é a luta.
IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 53.
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350 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 21.
351 Idem, ibidem.
352 DERRIDA, Jacques. Ob. Cit., p. 23.
154
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355 MARX, Karl. Cartas dos Anais Franco-Alemães. In Sobre a questão Judaica. São Paulo: Boitempo,
2010, p. 71.
156
Direito e Emancipação – Volume I
Portanto, uma teoria crítica do direito deve ser capaz de revelar a reali-
dade e as contradições do direito tanto no plano teórico, de sua concepção,
quanto no plano prático, de sua aplicação. E não pode temer as consequências
de sua análise e nem o enfrentamento com os poderes constituídos, que são
muitos (políticos, econômicos, institucionais, acadêmicos etc...). Nessa linha,
Costa Douzinas e Adam Gearey passam em revista tanto ao positivismo quan-
to ao pós-positivismo e afirmam que o positivismo falhou ao não entender que
a moral é uma substância do direito, mas que as teorias pós-positivistas teriam
se tornado ainda mais irrealistas ao negligenciar a dimensão do poder e da luta
no direito. Segundo esses autores, muitas teorias contemporâneas do direito,
de inspiração pós-positivista, apresentam o direito como um corpo unifica-
do e coerente de normas ou princípios que aparece enraizado numa espécie
de metafísica da verdade, racionalmente encontrada. Disso se seguiria que o
conceito de poder apareceria plenamente domesticado pelas formas jurídicas e,
nesse sentido, legitimado por elas. A fórmula resultante dessas teorias seria algo
próximo do seguinte: o poder é legítimo se segue o direito, nomos, e se o direito
segue a razão, logos.356 O problema dessa fórmula é que não leva em conta que
o poder resulta de um lugar vazio, portanto sempre em disputa, como uma teo-
logia negativa que assegura um ato soberano criador, mas que não diz de onde
vem. Daí um direito sem fundamento, como afirmou Derrida, ou melhor, com
um fundamento apenas místico. A ordem jurídica não é tão somente um corpo
consistente de normas que se mantêm coerentes com base em princípios que
são ordenados pela razão argumentativa ou pela razão hermenêutica que busca
na pré-compreensão da comunidade política a sua própria integridade. Ela é
espaço instituinte de sentidos que decorrem da ação política de seus agentes ao
interior dela mesma. E quando se fala em “ação política” esta expressão deve
ser entendida tanto no sentido mais nobre da ação que se faz em comum e
pelo bem comum, quanto no sentido mais rasteiro da busca pela manutenção
e ampliação de privilégios.
Para Costa e Gearey, a combinação dos elementos descritivo e prescriti-
vo, de logos e nomos cria uma falsa questão na teoria do direito. Diante disso
eles afirmam que a tarefa de uma teoria crítica do direito é desconstruir este
logonomocentrismo, seja na teoria seja na prática jurídica. Segundo eles a virada
356 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 9.
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158
Direito e Emancipação – Volume I
nem sempre razoáveis. Esse é o preço pago por uma moralidade tomada de for-
ma abstrata. Mas há outro preço, de custo bem mais elevado, que é o problema
central de nossa reflexão: a obliteração do sujeito. Como se não bastassem as
opressões que ocorrem na vida social em geral, também na cena jurídica se
produz uma exclusão teórica e prática do sujeito, mas não de qualquer um, e
sim daqueles que são oprimidos por diferentes formas de violência originadas
por razões econômicas, políticas ou culturais. Trata-se do sujeito da injustiça
social que, via de regra, é tomado no mundo jurídico como uma representação
e, por isso mesmo, de maneira fraca e opaca diante daquilo que ele é nos termos
de suas condições materiais e de suas inquietações existenciais. Para enfrentar
esse problema, nossa proposta é que se coloque como referência para o combate
na cena jurídica a figura do outro, do sujeito concreto que nos interpela em sua
singularidade. Nesse sentido, mais do que a moral, é a ética que precisa ser re-
abilitada no coração da teoria do direito. Claro que poderia ser legitimamente
alegado que moral e ética são, ou podem ser, expressões sinonímicas, até porque
ambas estão, de alguma forma, voltadas para uma ideia de bem. Todavia, não
obstante possa mesmo existir certa sinonímia entre os dois termos, estamos es-
tabelecendo aqui uma diferença entre ética e moral, sendo a moral tomada no
sentido de cumprimento do dever ou de adesão a virtudes e valores. Por outro
lado, a ética, conforme será exposta aqui, não será entendida como área do co-
nhecimento que estuda os comportamentos morais, mas sim nos termos de um
seguimento específico da filosofia moral que acompanha uma linhagem de au-
tores como Franz Rosenzweig (1886 – 1929) e Martin Buber (1878 – 1965) até
chegar em Emmanuel Lévinas (1906 – 1995). Trata-se da Ética da Alteridade.
Para situar melhor nosso leitor, vale fazer uma distinção etimológica entre
moral e ética. O vocábulo moral vem do latim morus que significa costume ou
cultura, enquanto o vocábulo ética vem do grego éthos que também significa
costume ou cultura. Todavia, essa não é a única forma de grafia da palavra.
Desde o grego antigo existe uma variação fonética e semântica que introduz um
sentido diverso para a palavra ética. Quando em grego ela é escrita ἔθος, possui
a vogal breve e, por isso, deve ser transliterada como éthos (som aberto). Nesse
caso, ética significa um conjunto de costumes e hábitos ou as características
culturais de uma coletividade. Porém, quando escrita ἦθος, possui a vogal longa
devendo ser transliterada como ē´thos ou êthos (som fechado). Nessa segunda
forma, a palavra não significa mais costume ou cultura, mas sim morada ou
covil habitual falando-se em animais. Esse sentido distinto originado do grego
159
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
ἦθος ou ē´thos fez com que parte da filosofia entendesse a ética como atributo
doméstico ou particular do indivíduo, definindo-a como algo próximo de “dis-
posição do caráter”. Essa distinção semântica é fundamental para o debate em
torno dos sentidos possíveis para a palavra ética. Diga-se, aliás, que ela não é
nova. Vejamos o fragmento 119 de Heráclito359: “ηθος ανθρωπου δαιμον”, que
pode ser transliterado para ē´thos anthrópou daímon – o êthos do homem é o
daímon. Esse fragmento aparece na edição brasileira dos filósofos pré-socráticos,
organizada e traduzida por Gerd Bornheim – editora Cultrix – da seguinte for-
ma: “O caráter é o destino (daimon) de cada homem”.360 Porém, esse mesmo
fragmento está disposto em outra edição brasileira – Os Pensadores Originá-
rios – organizada e traduzida por Emmanuel Carneiro Leão – editora Vozes –
como: “A morada do homem, o extraordinário”.361 Essa segunda interpretação
é exatamente aquela que destaca Heidegger na sua carta Sobre o Humanismo:
êthos significa morada, lugar da habitação. A palavra nomeia o âmbito aberto onde
o homem habita. O aberto de sua morada torna-se manifesto naquilo que vem ao
encontro da essência do homem e assim, aproximando-se, demora-se em sua proxi-
midade.362 Ora, esse aberto da morada não se reduz, portanto, à vida doméstica
ou à morada doméstica, mas refere-se à situação de existência do homem no
mundo. Nós habitamos o mundo, vivemos no mundo, moramos no mundo. Essa
é nossa condição essencial que é necessariamente compartilhada por todos. As-
sim sendo, nossa vivência no mundo é também convivência no mundo, isto é,
“viver com”. Por seu turno, viver com presume a existência de um outro. Como
afirma Heidegger, o nosso ser-no-mundo é determinado pelo com pois o mundo
da presença é sempre o mundo compartilhado. O ser em é sempre o ser com os
outros.363 Na mesma linha, Martin Buber desenvolve uma crítica radical a todas
as formas psicológicas, filosóficas ou sociológicas que isolam uma pessoa das
demais no âmbito da vida em comunidade.364 Segundo esse autor a ideia mesma
de “individualismo” seria uma ficção ou fantasia, uma teoria inadequada por
160
Direito e Emancipação – Volume I
não ser capaz de explicar a vida social. Para Buber, a personalidade, que é um
traço necessário e assente em cada indivíduo, faz com que toda pessoa estabele-
ça uma relação autêntica, real e total com o mundo e com os outros.365 Isso significa
que a nossa personalidade, a condição de nosso ser, não é algo que nós defina-
mos voluntariamente a partir de convicções unilaterais. Obviamente o eu está
presente na personalidade, entretanto, e de maneira paradoxal, ela surge da in-
teração entre o indivíduo e o mundo. Desse modo Buber reitera que a relação do
mundo com o “si-próprio” é parte da personalidade, como também a inefabilidade da
relação entre dois seres: aquele que me experimenta como eu o experimento, através
do qual experimento-me como limitado.366 Em vista disso e nesse horizonte, não
é filosoficamente adequado se falar do eu sem considerar sua inevitável relação
com o outro. E é exatamente nessa perspectiva do outro, da outricidade, onde
podemos encontrar o sentido forte para a palavra ética.
Com efeito, ética é aquilo que nos remete para o outro, para a emergência
de uma alteridade. De forma mais clara e precisa, ética é consideração pelo
outro. De um ponto de vista ético, esse outro não pode ser visto apenas como
conceito ou categoria abstrata, muito menos como ente manipulável segundo
minhas perspectivas e interesses, mas como existência autônoma que reclama
respeito e dignidade na sua própria qualidade de outro, isto é, na sua outricida-
de. Como assinala Manfredo de Oliveira, a liberdade só se afirma como liberdade
pelo reconhecimento incondicionado da outra liberdade como liberdade.367 Nessa es-
teira, a ética é uma relação bilateral, mas não em sentido tradicional como eu e
outro. O eu nessa relação seria uma ameaça narcísica à intenção ética.368 Por isso
a bilateralidade da relação ética é outro e outro, ou seja, ou eu fica transformado
em outro do outro. Isso quer dizer que o outro deve ser compreendido desde um
ponto de vista arquimediano independente das minhas idiossincrasias. Eu devo
constatar, respeitar e tolerar369 o outro porque ele existe como tal, não porque
161
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
isso pode ser bom para mim. A ética nos remete, assim, para um campo de
responsabilidade pelo outro como condição inevitável de nossa existência ou
morada no mundo. Nas palavras de Lévinas: o que chamo de responsabilidade
por outrem, ou amor sem concupiscência, o eu só pode encontrar sua exigência em si
próprio; ela está no seu ‘eis-me aqui’ do eu... ela é originalmente sem reciprocidade,
pois traria o risco de comprometer sua gratuidade ou graça...370
A ética nos situa no centro do campo do cuidado.371 O outro é aquele a
quem dirigimos nosso cuidado, nosso zelo, nossa atenção; ele nos interpela em
nossa capacidade mais profunda de produzir humanidade, de perceber e fazer
brotar a existência humana para que ela cresça e perdure na sua própria vida.
Nessa perspectiva, apesar da alteridade radical e da gratuidade que caracteri-
zam a conduta ética, é possível sim dizer que ser ético pode gerar um ganho
subjetivo, pois a humanidade produzida inevitavelmente transcende o outro
para também crescer no eu que a prática. É como se a conduta ética gerasse em
quem a prática um sentimento ao mesmo tempo ligeiro e profundo de realização
humana. Mas esse é o máximo de satisfação que a ética pode proporcionar ao
sujeito, ao eu, uma vez que ela não se destina à autorrealização, mas à tentativa
de uma convivência humana digna e respeitosa onde todos sejam considerados
como livres e iguais, resguardadas as diferenças. Além disso, como ente não
manipulável, não se pode esperar que o outro aja conforme as minhas expec-
tativas, nem mesmo em relação à sua conduta ética. Em outras palavras, não
devemos agir eticamente para que o outro também o faça, até porque seria im-
possível ter garantias nesse sentido, mas porque humanamente devemos fazê-lo.
Isso significa que, se por um lado, a conduta ética é um ato racional de justiça,
por outro lado, ela é um ato afetivo de amor.
Não há como deixar de notar essa estranha e curiosa relação entre justiça
e amor que se processa no âmbito da consideração ética. Os teóricos do pós-
-positivismo raramente elegem o amor como um dos valores a partir dos quais
deveria ser fundamentada a justiça.372 É como se a racionalidade da justiça fosse
tolerado. Longe disso! Muito embora essa conotação mais arrogante do termo possa aparecer tanto
em discursos como na própria literatura, o sentido aqui adotado é o da deferência na diferença.
370 LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 293.
371 Cf. RICOEUR, Paul. Em Torno ao Político – Leituras 1. São Paulo: Loyola, 1995, pp. 162-163.
372 É preciso reconhecer que Manuel Atienza, um dos mais influentes filósofos do pós-positivismo, chega
a admitir que a aplicação do direito não exige apenas razão mas, também, sentimentos e paixões, ainda
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Direito e Emancipação – Volume I
Uma maneira de abrir caminho entre esses dois extremos é tomar como
guia um pensamento que medite a dialética entre amor e justiça. Por
dialética entendo aqui, de um lado, o reconhecimento da desproporção
inicial entre os dois termos e, de outro, a busca das mediações práticas
entre os dois extremos...373
que o faça brevemente e sem maiores elaborações conceituais. Cf. ATIENZA, Manuel. Cuestiones
Judiciales. México: Fontamara, 2001, p. 21.
373 RICOEUR, Paul. Amor e Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 3.
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374 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 322. 1130a-5.
375 RICOEUR, Paul. Amor e Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 33.
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Direito e Emancipação – Volume I
típica da consideração ética implica doação, por outro lado, ele se coloca como
acolhimento. Acolher o outro é expressão pura da ética pois implica ter com o
outro sem apoderar-se dele. Quem eu acolho em minha casa está nela mesmo
sem a ela pertencer, o meu poder sobre ele é limitado. Assim, emerge na rela-
ção de hospitalidade o cuidado como marca central. Tal cuidado se converte
em responsabilidade.377 De efeito, o acolhimento hospitaleiro implica receber o
outro, para que algo seja dado ao outro. Esse outro é sentido como alguém que
importa, como alguém com quem posso me relacionar, alguém que tem algo a
receber - carência - mas também tem algo a oferecer - potência. Esse outro não
é dono de mim, mas também a mim não pertence. É alguém que me interpela
e, por isso, acolhê-lo exige escutá-lo, mas não apenas isso, exige, também, ser
para ele, não por razões instrumentais ou utilitárias, mas pela consideração
ética que deve mediar a relação. É importante notar que esse processo de hos-
pitalidade é anterior a qualquer valor. É a própria instância ética que funda a
moralidade como tal, pois todos os valores decorrem do fato da vida em socie-
dade, da co-existência, desse outro que me interpela. Por isso o pós-positivistas
precisam compreender que os valores são importantes, mas insuficientes. Se os
valores funcionam como fundamento justificador das imposições jurídicas, a
ética funciona como fundamento justificador dos próprios valores, concedendo,
nesse ato, um sentido específico à moralidade. Afirma Lévinas que o fato de,
existindo para outrem, eu existir de outro modo que ao existir para mim, é a própria
moralidade.378 Esse movimento que ancora os valores na figura do outro que me
interpela e demanda minha consideração é fundamental a uma teoria crítica do
direito. Não é por outra razão que Douzinas e Gearey379 fazem menção expressa
a Emmanuel Lévinas para afirmarem que justiça existe sempre em relação a
uma outra pessoa e que tal pessoa é um ser único e singular com características
próprias e definidas. Mas diante de mim esse outro é sempre um infinito de
sentidos e possibilidades e eu jamais poderei reduzi-lo ou instrumentalizá-lo em
376 DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 39.
377 Cf. LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 192-195.
378 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 260.
379 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 75.
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presentações jurídicas nunca poderão esgotar a vivacidade dos sujeitos. Por isso
Lévinas invoca o rosto como elemento base para a consideração ética. O rosto é
a corporeidade do sujeito concreto que se presenta383 a si mesmo. O rosto e suas
expressões falam da dor e do sofrimento que só aquela pessoa viveu e é capaz de
expressar, porém falam também das suas alegrias e esperanças, dos seus desejos
e sonhos. O rosto traz a palavra originária e permite a comunicação autêntica:
Não nos parece que Lévinas tenha escolhido a palavra “soberania” aleato-
riamente. A ética da alteridade realiza um deslocamento radical nas instâncias
de poder, retirando a força originária do comando das mediações institucionais
e das declarações de valores e devolvendo-a ao próprio sujeito. Por isso é o rosto
que comanda incondicionalmente, pois somente ele é capaz de revelar o sentido
preciso da conduta. Ocorre aqui um empoderamento do sujeito que é típico das
forças constituintes que são plenipotenciárias para instituir a norma. Obvia-
mente que não pretendemos, com isso, defender o rosto como fonte social do
direito positivo, mas sim indicar que o sujeito concreto e imediato é doador de
sentido tanto para os acontecimentos de sua própria vida como para as normas
do direito. Não basta fundamentar as normas jurídicas sobre procedimentos
democráticos típicos do estado de direito e sobre princípios e valores morais se
não se possui, ao mesmo tempo, a concepção ética de um sujeito real, encarna-
do nas suas condições materiais de vida e repleto de sua própria história, com
sofrimentos e alegrias, com derrotas e vitórias.
Para elaborar melhor o argumento, tomemos como exemplo uma proposta
de Jürgen Habermas que é um autor pós-positivista. Ele sustenta uma relação de
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385 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 139 e ss.
386 BENJAMIN, Walter. Para a Crítica da Violência. In BENJAMIN, Walter. Escritos sobre Mito e
Linguagem. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2013, p. 149. Benjamin cita o exemplo dado por
Anatole France para falar da ambiguidade mítica das leis que se coloca como violência para os
oprimidos: as leis "proíbem igualmente aos pobres e aos ricos dormir debaixo das pontes"...
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387 ALEXY, Robert. Conceito e Validade do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 42-43.
388 ALEXY, Robert. Conceito e Validade do Direito. Ob. Cit., p. 48.
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ficou conhecida como Fórmula de Radbruch. Com essa fórmula, Radbruch pre-
tende se esquivar tanto do jusnaturalismo quanto do positivismo jurídico, esta-
belecendo, assim, um outro paradigma. Eis a célebre formulação de Radbruch:
Claro que o mais difícil na Fórmula de Radbruch é saber qual esse ponto
de insuportabilidade da injustiça a partir do qual uma lei perde sua validade. O
próprio autor se propõe essa questão e assim se posiciona:
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Direito e Emancipação – Volume I
norma no direito positivo que viesse a violá-lo deveria ser considerada inválida.
Como a Fórmula de Radbruch vale apenas na perspectiva do participante isso
implica a realização de um debate público onde as razões e suas respectivas
justificações fossem devidamente apresentadas e deliberadas. Assim, temos que
para Radbruch o limiar da injustiça intolerável é o descaso com a igualdade e
para Alexy é a violação do núcleo básico de direitos humanos universais.
Tomemos, então, ambas as perspectivas - pós-positivistas - sob um ponto
de vista da teoria crítica do direito, pensada essa a partir do sujeito da injustiça
social. O entendimento apresentado por Radbruch se apóia no valor da igualda-
de. Pois bem, ainda que a igualdade seja a virtude soberana de uma comunidade
política, para falar com Dworkin392, e, nesse sentido, uma bandeira ou exigência
moral que se pode sustentar isoladamente, por outro lado ela deve ser enten-
dida basicamente como uma relação complexa: igualdade de quê entre quem?393
Isso significa que para se chegar a uma compreensão mais adequada e precisa
do limite da injustiça, onde se esgarçaria de maneira insanável a tessitura da
igualdade, é necessário compreender os sujeitos entre os quais se estabelece
uma relação, seja de equivalência, de equiparação, de retribuição, de reparação,
de alocação, de redistribuição, de reconhecimento, de participação etc... Con-
siderando que a teoria jurídica convencional dos mais relevantes paradigmas
jurídicos, incluindo o pós-positivismo, ainda trabalha com as representações e
generalizações ao invés do sujeito concreto nas suas condições materiais, o esta-
belecimento das relações e comparações típicas entre agentes que caracterizam
a noção de igualdade sempre será superficial, parcial ou equivocado. E aqui é
necessário considerar seriamente o fato de que as eventuais superficialidades,
parcialidades e equivocidades presentes no estabelecimento das relações entre
as pessoas necessariamente irá prejudicar mais aqueles que são, exatamente, os
sofrentes da injustiça social. Daí porque é impossível se chegar a uma adequada
compreensão do que seja a máxima injustiça como violação da igualdade sem
uma teoria e uma fenomenologia do sujeito da injustiça social que o presente
de tal forma a lhe dar voz e vez nas relações jurídicas e no fenômeno jurídico.
Por outro lado, há o entendimento manifestado por Alexy de que o má-
ximo da injustiça corresponderia à violação de um núcleo básico e universal
de direitos humanos. Nesse caso o argumento é ainda mais simples e direito: a
392 Cf. DWORKIN, Ronald. Virtude Soberana. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
393 Cf. BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. São Paulo: Ediouro, 1995.
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394 Na verdade o nome da parte demandada era Sanford e não Sandford, mas esse pequeno erro de grafia
nunca foi corrigido no curso do processo.
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nos territórios federais da União. Por fim, ainda determinou que os escravos,
por serem bens móveis de propriedade privada, apenas poderiam ser retirados
de seus donos, se fosse o caso, após devido processo legal.
Quatro anos após a decisão da Suprema Corte no Caso Dred Scott eclodiu
a guerra civil norte-americana. Evidente que não é possível afirmar que foi tal
decisão a única responsável pela Guerra de Secessão, mas certamente foi um
dos mais importante fatores que levaram à deflagração do conflito armado.
Diante desse caso, alguns jusnaturalistas poderiam dizer que a decisão violou o
direito natural à liberdade de Dred Scott, talvez outros dissessem que escravos
eram bens que conformavam o direito natural de propriedade de seus senho-
res. Já juspositivistas poderiam alegar que a escravidão estava amparada em
normas socialmente eficazes e juridicamente válidas uma vez que decorrente
de autoridades competentes. Outros adeptos do positivismo jurídico poderiam
ainda alegar que a decisão enfrentava um dilema técnico, ou seja, saber se Dred
Scott deveria ter pleiteado a liberdade enquanto residia com seu “dono” em
lugares onde a escravidão não era reconhecida pela lei. Já os pós-positivistas
poderiam alegar que a escravidão era uma prática social que violava o valor da
igualdade que, por seu turno, tinha um importante espaço na cultura daquela
comunidade política. Ainda poderiam alegar que tanto a decisão da Suprema
Corte como as normas que legalizavam a escravidão não resistiriam diante da
Fórmula de Radbruch. Em qualquer caso os pós-positivistas teriam que buscar
argumentos convincentes diante de um auditório universal e com base numa
razão pública para afirmar porque as pessoas negras deveriam estar incluídas
naquela comunidade de valores que tanto prezava a igualdade, uma vez que
elas eram passíveis da escravidão e, dessa forma, passíveis também de estarem
excluídas da comunidade política. Ao nosso juízo, todos os debates deflagrados
no cerne de qualquer um desses três paradigmas juízos são legítimos, contudo
lhes falta um elemento fundamental e preliminar: a consideração ética pelo ou-
tro, especialmente pelo outro que mais está submetido à violência e à opressão.
A consideração ética, com a empatia que lhe é inerente, produz uma revolução
copernicana na maneira de encarar as coisas já que inverte o eixo de análise
que deixa de ser eu mesmo e passa a ser o outro. Fossem os juízes da Supre-
ma Corte mais éticos, no sentido aqui proposto, certamente o resultado teria
sido diferente e a história daquele país também teria sido outra, provavelmente
melhor. Ao negar escuta a Dred Scott o judiciário dos Estados Unidos negou
escuta ao clamor real e concreto de todas aquelas pessoas negras que viviam a
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tuais testemunhas das acusações que eram imputadas e para apresentarem suas
próprias testemunhas de defesa, tudo na esfera administrativa.
Pois bem, em março de 1970, a Suprema Corte decidiu por 5 votos a 3 (ha-
via uma vacância na Corte, por isso apenas 8 votos no total) que os beneficiá-
rios das prestações de assistência social tinham o direito de serem ouvidos antes
que a ajuda financeira fosse cancelada. A decisão que foi redigida pelo Justice
Willian Brennan enfatizou a natureza processual da deliberação da Corte. Isso
significa que não se tratava de garantir o benefício indistintamente e cercear
o poder-dever do estado de investigar e prevenir fraudes, mas sim de garantir
que a voz de cada uma daquelas pessoas fosse ouvida. Mais do que isso, garantir
que o rosto de cada uma daquelas pessoas fosse visto. Mas aquelas pessoas não
eram pessoas quaisquer, eram sujeitos menos favorecidos que por suas condições
materiais de vida precisavam daquele apoio do estado. A esse respeito, Owen
Fiss faz um comentário decisivo: Goldberg x Kelly estendeu a revolução do devido
processo legal dos anos sessenta do âmbito penal ao civil e prometeu que as pessoas
menos afortunadas gozariam de proteções processuais que tradicionalmente apenas
se ofereciam aos indivíduos mais privilegiados.395 É preciso notar que o valor da im-
parcialidade processual assegurada por meio da decisão significou exatamente
o ato ético da consideração pelo outro. Não é possível ser imparcial sem levar
em conta a narrativa em primeira pessoa, sem ouvir e ver o outro ao invés de
considerá-lo apenas uma peça dentro da intrincada burocracia da máquina do
estado. Isso não significa nenhum tipo de paternalismo ou de leniência com o
erro ou a fraude. A busca do interesse público deve ser mantida, mas isso não
pode acontecer ao sacrifício da ética. Pessoas importam e, como dito antes, o
primeiro de todos os valores é o valor que se dá a alguém.
Outro exemplo de consideração ética nesse domínio jurisdicional vem de
uma importante decisão da Corte Constitucional da Colômbia. Desde a década
de 1940 esse país enfrenta um grave problema de deslocamento forçado onde
centenas de milhares de pessoas são obrigadas a deixar suas casas em função de
conflitos armados. Esse problema chegou a um nível gravíssimo no ano de 2002
com mais de quatrocentas mil pessoas deslocadas num único ano.396 Diante
395 FISS, Owen. El Derecho como Razón Pública. Madri: Marcial Pons, 2007, p. 268.
396 Cf. GARAVITO, César Rodríguez. FRANCO, Diana Rodríguez. Juicio a la Exclusión: el impacto
de los tribunales sobre los derechos sociales en el Sur Global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores,
2015, pp. 55-60.
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desse quadro, o Poder Judiciário colombiano foi demandado para assegurar di-
reitos econômicos e sociais dessa população deslocada e desamparada pelo esta-
do. Assim, no ano de 2004 a Corte Constitucional chegou à decisão T-025 por
meio da qual declarou que havia um estado de coisas inconstitucional referente
à situação dos deslocados, resultante de uma omissão ou ação insuficiente por
parte de diversos níveis e agentes do poder público. O que chama a especial
atenção nesse caso, não é a declaração do estado de coisas inconstitucional, pois
essa doutrina já havia sido inaugurada pela Corte em decisões anteriores desde
1997. O aspecto, a nosso ver, principal nessa decisão, foi o fato da corte oferecer
uma interpretação concretista dos direitos econômicos e sociais da população
deslocada e, principalmente, instituir procedimentos e mecanismo de acom-
panhamento de sua própria decisão, por meio dos quais gerou um processo
participativo envolvendo, em primeiro lugar, as próprias pessoas deslocadas e,
além delas, um conjunto de organizações e agentes do estado e da socieda-
de civil, todos voltados ao cumprimento das medidas complexas apontadas na
decisão T-025.397 Com efeito, na execução da sentença formou-se um fórum
participativo envolvendo diferentes atores na busca da solução dos problemas
que bloqueavam o acesso dos deslocados aos seus direitos econômicos e sociais.
Esse efeito participativo decorrente do fato da Corte ter decidido acompanhar
sua decisão, não apenas criou um campo social dialógico mas, sobretudo, deu
voz às pessoas e aos grupos deslocados para retirar-lhes da condição de vítimas e
alçá-los à condição de sujeitos construtores de seus próprios direitos. A garantia
dos direitos jurídicos e morais importa, e muito. Mas a consideração ética pelo
outro nos faz entender que não basta que eu diga para o sujeito da injustiça so-
cial o que é melhor para ele. É preciso olhar sem rodeios para o seu rosto e criar
a oportunidade para que ele se expresse diretamente na sua narrativa e com sua
história, revelando ele mesmo seus anseios, ansiedades e desejos; apresentando
ele próprio a potência de suas formas de resistência à opressão e a maneira por
meio da qual pretende se valer de seus direitos.
Já que estamos falando de consideração ética no âmbito processual, vale
citar mais um bom exemplo que é o das Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça
das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade, também conhecido como as 100 Re-
gras de Brasília. Essas Regras têm como objetivo garantir as condições de acesso
efetivo à justiça das pessoas em situação de vulnerabilidade, sem discriminação
397 GARAVITO, César Rodríguez. FRANCO, Diana Rodríguez. Ob. Cit., 00. 37-48.
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releitura crítica dos marcos referenciais e uma preparação do que está por vir.
Sem a figura do outro não há que se falar em justiça. Essa ideia é comum e
mesmo recorrente em nossas experiências de vida mais cotidianas. O outro está
sempre presente na minha vida, mas costuma me mobilizar realmente apenas
pelos afetos. É preciso um nível mais profundo de afetação, em geral por inter-
médio de emoções mais ou menos fortes, para que eu esteja disposto a encarar
o acontecimento que esse outro presenta e mergulhe no devir que sua presença
produz. Quando estamos mobilizados pelos afetos mais profundos, a empatia
surge como resultado inevitável e nos dispomos a buscar as transformações que
são importantes para o bem estar desse outro. Nosso maior desafio é romper
com os limites estreitos da pura afeição para sermos afetados pelo outro mesmo
que não sejamos capazes de mobilizar, a princípio, nossos afetos mais básicos.
É nesse momento que a consideração ética atua alargando o campo das nossas
implicações para produzir sentimentos morais que me conectem com esse outro
de forma a desejar entrar no processo do devir buscando as transformações que
possam produzir mais vida na vida do outro. Esse tipo de acontecimento não
é natural, não é algo que ocorra espontaneamente, pois não está no nível mais
elementar dos afetos básicos. Ele depende tanto de uma disposição, uma que-
rência, quanto uma abertura ao devir-outro. Mas é claro que isso não é algo que
seja produto do cálculo, de esquemas meramente racionais, embora a razão seja
necessária. Tal acontecimento excede o cálculo e as antecipações, pois decorre
do infinito que o rosto do outro traz até mim. Como afirma Derrida, a justiça
como experiência de alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do acon-
tecimento e a condição da história.409
Essa alteridade radical tem uma importância universal para a justiça, mas
um significado particularmente relevante quando estamos tratando do sujeito
da injustiça social. É esse o sujeito que, na injustiça que sofre, instaura a tem-
poralidade do presente, para quem o futuro é algo muito distante para que se
deposite nele suas crenças e esperanças. Quem sofre tem pressa e quem sofre
injustiças sociais tem urgência, a urgência de recuperar a dignidade que lhe
foi roubada pelas assimetrias e desigualdades imerecidas mais ou menos cris-
talizadas no tecido social. Ao contrário do que se possa imaginar, o parâmetro
primeiro de uma sociedade razoavelmente justa não são os valores que se acre-
dita como a base da própria justiça, mas a injustiça que se quer combater por
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aviltar a própria condição humana. O grito indignado que diz não à injustiça
é a primeira forma de se fazer justiça. E mesmo que se considere a justiça uma
espécie de loucura na medida em que ela excede os cálculos e dispensa media-
ções, como o faz Derrida410, a injustiça social não possui nada de loucura. Ela
é objetiva, mensurável e aferível, resulta de esquemas e tradições opressivos e
favorece grupos específicos. No mais das vezes, produto de uma racionalidade
instrumental tão eficiente quanto despudorada. Não raro encontra adeptos que
com boas ou más intenções são capazes de levantar argumentos e pretensas jus-
tificativas para que ela ocorra. Esse limite máximo de contradição performática
que é tentar justificar a injustiça, somente pode ocorrer quando se está a pensar
a partir de um quadro juridicista ou moralista. Isso seria bem menos provável
quando se atua no campo de uma alteridade radical, próprio da ética da alte-
ridade. Uma teoria jurídica crítica deve, antes de tudo, alertar para o fato de
que a cena jurídica, pelas inúmeras mediações normativas e institucionais que
possui, corre o risco de produzir certa indiferenciação do outro, o que é muito
ruim em geral, mas é dramático quando este outro indiferenciado e para o qual
permaneço indiferente é o sujeito da injustiça social. Quando as mediações
institucionais afetam o meu olhar e quando a linguagem do direito me impede
de ver o outro como o outro, ocorre uma inevitável injustiça.411 Todavia essa
injustiça se torna um duplo injustiçamento, ou uma injustiça mais perversa,
quando ocorre logo com o sujeito da injustiça social, com aquele que já enfren-
ta o evento das violências e agora ainda precisa se defrontar com a opressão
jurídica. Como bem advertiram Douzinas e Gearey, injustiça seria esquecer que o
direito cresce no chão da responsabilidade pelo outro e da proximidade ética e que as
assimetrias sufocam a igualdade de direitos.412
É preciso que reste claro que nossa defesa da importância ética da res-
ponsabilidade ou do cuidado com o outro não deve ser interpretado como um
argumento que enfraquece o outro. Ter cuidado com alguém não significa me-
nosprezá-lo ou inferiorizá-lo, ao contrário, assinala o reconhecimento de sua
importância e dignidade como outro. Ser cuidadoso não significa submeter
relações políticas e morais ao vacilo ou a frouxidão, antes requer coragem e
188
Direito e Emancipação – Volume I
413 BUTLER, Judith. ATHANASIOU, Athena. Dispossession: the performative in the political. Cambridge:
Polity Press, 2013, p. 3.
189
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
Porque se nós somos seres que podemos ser privados de lugar, meios de
sustento, abrigo, comida e proteção, se nós podemos perder nossa cida-
dania, nossos nomes e nossos direitos, então nós estamos fundamental-
mente dependentes desses poderes que alternadamente nos sustentam e
nos privam, e que mantém um certo arbítrio sobre nossa própria sobrevi-
vência. Mesmo quando nós temos nossos direitos, nós ainda assim somos
dependentes de um modo de governo e um regime legal que confere e
sustenta nossos direitos.414
190
Direito e Emancipação – Volume I
191
4. O Sujeito da Injustiça: uma
Urgência Epistêmica e Ética416
416 As ideias por nós trabalhadas nesse capítulo estão articuladas com uma reflexão mais ampla sobre
uma epistemologia do sujeito da injustiça social presente no livro: The subject of Injustice: Political
Action, Law and Empowerment, de autoria de Bethania Assy e no prelo pela Editora Routledge. O
referencial teórico aqui é a tendência corrente de teologia política contemporânea sobre a teoria do
evento e o processo de subjetivação política. Como será observado ao longo das referências citadas,
uma de suas principais fontes teóricas se apoia na análise da temporalidade messiânica em Walter
Benjamin - mas também nas leituras filosóficas atuais de teologia política Paulina. Vale relembrar
que, conforme esclarecido na introdução, assim como nos capítulos anteriores, a leitora e o leitor
devem ter em mente que toda a crítica apresentada no livro terá como base a ideia de injustiça social
e nunca o sentimento particular de injustiça. A violência que atinge o sujeito dessa injustiça social
pode ter origem tento econômica, como política ou cultural.
417 Vale ressaltar que a crítica teórica aqui mencionado se refere apenas a recepção normativista-
multicultarista do eixo Kant-Hegel. Entre os mais notórios representantes da abordagem
procedimentalista Cf.: RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press,
Revised Edition, 1999, 1 ed. 1971; HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other. Studies in
Political Theory. Edited by Ciaran Cronin and Pablo De Greiff, The MIT Press; BENHABIB, Seyla.
Democracy and Difference – Contesting the Boundaries of the Political. Princeton: Princeton University
Press, 1996. Dentre as constribuições da tradição comunitarista, os mais destacados: MACINTYRE,
Alasdair. After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press, Second Edition, 1984;
WALZER, Michael. Spheres of Justice – A defense of Pluralism and Equality. New York: Basic Books,
1983; TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Cambridge: Harvard University Press, 1991.
418 Cf. RASMUSSEN, David (ed.). Universalism vs. Communitarianism: Contemporary Debates on Ethics.
Boston: MIT Press, 1995. Para uma defesa sofisticada do universalismo Kantiano Habermasinano
confira FORST, Rainer. Contexts of Justice – Political Philosophy beyond Liberalism and Communitarianism.
Translated by John Farrell, Berkeley: University of California Press, 2002. Mesmo Marta Nussbaum,
no seu livro sobre justiça, ainda opera em termos de um alargamento das premissas do sujeito racional
Rawlsiano. Cf.: NUSSBAUM, Marta. Frontiers of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 2006.
193
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
Mas recentemente: FORST, Rainer. The Right to Justification: Elements of a Constructivist Theory of
Justice. Traduzido por Jeffrey Flynn. New York: Columbia University Press, 2011. Para um referencial
latino-americano, ainda na mesma matriz, ver: GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois
de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
419 Aqui consideramos apenas o comunitarismo aristotélico-hegeliano de base multiculturalista,
excluindo desta matriz o debate clássico da identity politics da tríade classe social/gênero/raça. Para o
conceito de Sittlichkeit Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phenomenology of Spirit. Translated by
A. V. Miller with Analysis of the Text and Foreword by J. N. Findlay. Oxford: Oxford University Press,
1977 [Phänomenologie des Geistes. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1988]; Cf. também de HEGEL,
Georg Wilhelm Friedrich, Philosophy of Right. Translated with notes by T. M. Knox. London/Oxford/
New York: Oxford University Press, 1967. Para uma leitura exegética da Fenomenologia do Espírito
Cf. HYPPOLITE, Jean. Genesis and Structure of Hegel’s Phenomenology of Spirit. Translated by Samuel
Cherniak and John Heckman. Evanston: Northwestern University Press, 1974. TAYLOR, Charles.
Hegel. Cambridge: Cambridge University Press, 1975; Do mesmo autor Cf. Hegel and Modern Society.
Cambridge: Cambridge University Press, 1975; PINKARD, Terry. Hegel’s Phenomenology – The
Sociality of Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
194
Direito e Emancipação – Volume I
produtos automáticos de uma vontade submissa para com a lei da razão, sujeitos
fictícios em um sistema geral de equivalência formal de direitos e deveres.
Por outro lado, figuram as teorias clássicas de politicas de identidade (iden-
tity politics), nas quais prevalecem os relativismos culturais e o investimento
significativo em torno da comunidade concreta de valores. Em sua vertente
multiculturalista mais arejada é interessante notar quão despolitizado perma-
nece o debate sobre o nexo entre identidade cultural e cosmopolitismo. Intenta
aproximar discursos morais e interculturais, a despeito de qualquer referência à
dimensão político-econômica das políticas multiculturais identitárias, descon-
siderando sua matriz, em larga medida, colonialista, essencialmente conflitiva
e irreconciliável.420 A questão crucial do multiculturalismo de consenso alcan-
ça maior expressão no intento contínuo de determinar e/ou flexibilizar cul-
turalmente a pertença, descontextualizadas das relações intrínsecas de poder
e seletividade que as constituem e mantêm. Este corrente processo filosófico
multicultural de aposta semântica de globalização cultural, desencarnado das
relações concretas e históricas de produção de opressão e violência institucio-
nal e simbólica, reproduz uma espécie de linguagem universal moral na qual
“desacordo” é descrito como uma exígua etapa evolutiva discursiva em direção
aos espaços interculturais de acordos, apreciações e traduções.421 Seus métodos
de complexo diálogo multicultural comprometem-se com a interpenetração de
tradições e culturas de tal maneira a sonegar os múltiplos níveis contraditórios
de ausência de reconhecimento de base primordialmente econômica e política,
dentro dos bens sociais de uma tradição. Em tais gramáticas multiculturais, a
complexidade cultural significa, grosso modo, que as diferentes tradições cultu-
rais foram mesclaras dentro das próprias culturas, e cuja questão central trata-se
de disponibilizar um vocabulário de “tolerâncias.”422
195
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
vale a pena checar o debate entre Brown e Forst, precisamente sobre as divergências entre matrizes
normativas e pós-estruturalistas sobre tolerância. Cf. BROWN, Wendy; FORST, Rainer, The Power of
Tolerance. Edited by Luca di Blasi and Christoph Holzhey, New York: Columbia University Press, 2014.
196
Direito e Emancipação – Volume I
197
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
424 Trata-se da historiografia produzida pela tradição judaica de intelectuais da Europa central do
período entre guerras dos anos de 1920, caracterizadas principalmente pelo pensamento recorrente
de descontinuidade na história. Particularmente: BENJAMIN, Walter. The Arcades Project. Edited
by Rolf Tiedemann, and translated by Howard Eiland and Kevin McLaughlin. Harvard: Harvard
University Press, 2002. [BENJAMIN, Walter, Das Passagen-Werk. Band V, I and 2 Gesammelte
Schriften. Ed. Rolf Tiedemann and Hermann Schweppenhäuser.7 vols. Frankfurt: Suhrkamp, 1991];
BENJAMIN, Walter. “Theses on the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and Reflections.
Edited and with an Introduction by Hannah Arendt. Translated by Harry Zohn. New York: Schocken
Books, 1985 [On the Concept of History/Über den Begriff der Geschichte, Gesammelte Schriften,
Band I,2]; ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological Writings. Translated and edited,
with Notes and Commentary, by Paul W. Franks and Michael L. Morgan. Indianapolis/Cambridge:
Hackett Publishing Company, Inc., 2000; ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Part
One, Book Two, Reality of the World. Translated by Barbara E. Galli. Wisconsin: The University of
Wisconsin Press, 2005, p.57 [Stern der Erlösung]; KAVKA, Martin, Jewish Messianism and the History
of Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
425 Como já ressaltado anteriormente, nos referimos exclusivamente às apropriações clássicas da normativa
neokantianas e da historicidade racional neo-hegelianas. Cf. ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and
Theological Writings. Indianapolis and Cambridge Hackett Publishing Company, 1 edition, 2000.
426 Ver as referências anteriores. Em relação a Kant confira KANT, Emmanuel. “Doctrine of Right”
in The Metaphysics of Morals, Edited by Mary, 1990; WARNKE, Georgia. Justice and Interpretation.
Cambridge: MIT Press, 1993.
198
Direito e Emancipação – Volume I
427 Para mais considerações sobre o “operative gesture” em Rosenzweig Cf: MOSÈS, Stéphane. System
and Revelation – The philosophy of Franz Rosenzweig. Translated by Catherine Tihanyi, Forward by
Emmanuel Lévinas. Detroit: Wayne State University Press, 1992, p. 43 [Système et revelation: La
philosophie de Franz Rosenzweig, 1982]. Mosès oferece uma análise muito precisa acerca da interpretação
de Rosenzweig sobre a filosofia da história de Hegel e sua ontologia, particularmente em sua obra:
Hegel and the State em: ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological Writings. Indianapolis/
Cambridge: Hackett Publishing Company, 2000.
428 MOSÈS, Stéphane. System and Revelation – The philosophy of Franz Rosenzweig. Detroit: Wayne
State University Press, 1992, p. 24-5. Em 1920, no “Concluding Remark” do seu Hegel and the State,
Rosenzweig resume: “Hoje, quando o livro é publicado, 150 anos depois do nascimento de Hegel, nos
100 anos desde o surgimento da Filosofia do direito, esse sonho parece dissolver-se irremediavelmente
na espuma das ondas que ultrapassam toda a vida. Quando o edifício de um mundo colapsa, em
seguida, ambos, os pensamentos que imaginaram esse mundo e os sonhos que foram tecidos por
meio dele, são enterrados sob os escombros.” In: ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological
Writings. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, 2000, p. 82.
429 A interpretação de Hegel sobre a necessidade como expressão da moralidade em seu Philosophy of Rights
está no núcleo da crítica acerca da história universal de Hegel promovida por Rosenzweig. Como bem
aponta Mosès: “Para Rosenzweig, a questão não era provar que a visão hegeliana da história era falsa,
mas, pelo contrário, demostrar que era verdade, muito além do que o próprio Hegel podia imaginar.
199
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
Em outras palavras, para demonstrar a perversidade intrínseca de tal filosofia, é o suficiente mostrar o
seu funcionamento, seguir sua verificação na realidade da história contemporânea, em suma, tomá-la,
literalmente”. MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Translated by
Barbara Harshav. Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 38.
430 MOSÈS, Stéphane. System and Revelation – The philosophy of Franz Rosenzweig. Detroit: Wayne
State University Press, 1992, p. 24. Cf. ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological Writings.
Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, 2000.
431 Em uma crítica análoga à Hegel, Arendt comenta o conceito de tempo da história moderna no qual
“…o processo de imortalização tornou-se independente de cidades, estados e nações; ele engloba toda
a humanidade, cujo a história Hegel foi, em consequência, capaz de ver como um desenvolvimento
ininterrupto do Espirito.” ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução brasileira de
Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992, p. 110. Para Arendt, o passo
mais adiante após a lógica de uma modernidade progressiva e infinita do Hegel é a ideia de um fim
último como o produto-final de um processo manufatureiro da política. Vale a pensa ressaltar que
consideramos Hannah Arendt como autora diretamente influenciada pela tradição dos intelectuais
judeus europeus do período entre guerras. Cf. ASSY, Bethania. “Hannah Arendt and the Jewish
Messianic Tradition - Heroic Action and the Politics of the Defeated”. In: Trumah - Zeitschrift der
Hochschule für Jüdische Studien, Heidelberg, v. 20, p. 50-68, 2011.
432 Cf. MOSÈS, Stéphane. System and Revelation – The philosophy of Franz Rosenzweig. Detroit: Wayne
State University Press, 1992, p. 43. Ver também: p. 38.
433 (Rosenzweig, Hegel and the State, p. 368), Citado em: MOSÈS, Stéphane. The Angel of History –
Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford University Press, 2009, p.42.
200
Direito e Emancipação – Volume I
434 ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005, p.57.
435 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992, p. 72. Focamos
precisamente na noção de progresso na relação entre história e teorias jurídico-políticas modernas.
Ciente do debate de Marx, Benjamin e Arendt acerca do progresso, ideologia, e crítica ao imperialismo.
Vide: LEIBOVICI, Martine. “En la grieta del presente: ¿mesianismo o natalidad? – Hannah Arendt,
Walter Benjamín y la historia,” In Hannah Arendt – Pensadora en tiempos de oscuridad. Al Margen, Mar
& Jun 2001, N. 21 -22, Colômbia, pp. 194-221.
201
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
436 ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press,
2005, p. 57.
437 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p. 50.
438 ROSENZWEIG, Franz. Briefe. Ausgenwählt und Herausgegeben von Edith und Ernst Simon.
Berlin, 1935, p.346. Citado por: MOSÈS, Stéphane. System and Revelation – The philosophy of Franz
Rosenzweig. Detroit: Wayne State University Press, 1992, p. 43.
439 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p. 58. Ver também: ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Wisconsin:
The University of Wisconsin Press, 2005, p. 382.
202
Direito e Emancipação – Volume I
como uma possibilidade de alteridade radical. 440 No entanto, essa própria ace-
leração do tempo, a uma só vez, promove a experiência da contração do tempo,
nomeadamente, “a possibilidade de ver promessas messiânicas realizada hoje
deriva de uma técnica espiritual milenar, uma familiaridade ancestral com a
experiência interna de condensação em um único ponto das três dimensões do
tempo” 441 Móses destaca o fato de que em Star of Redemption tal contração em
um momento singular enfatiza uma cronologia descontinua, separada da nar-
rativa linear geracional dos ancestrais. Uma narrativa descontinua dos eventos
visa superar o esquecimento, ou seja, de forma mais precisa, visa transmitir as
falhas e quebras, fraturas opressivas e violentas da história, para além da casua-
lidade racional. “Uma cronologia numérica (a contagem de anos) é convertido
aqui em valores subjetivos, em uma soma de experiências pessoais, em suma,
em uma memória.”442 Na narrativa do tempo de Rosenzweig, o passado vive na
dureza do presente e o futuro vive como uma promessa, como uma forma de
espera impaciente do amanhã, agora. As três dimensões do tempo não inferem
uma reunião sincrônica, no sentido de uma coerente fusão sequencial de hori-
zontes históricos. Como formulado por Walter Benjamin, a história sofre uma
constante e abrupta atualização, transformando o presente em um presente
consciente e urgente.443 Essa impaciência qualifica o presente. O presente quali-
ficado não satisfaz a si próprio com sua mera totalização substancial e imanente.
Presente é a hiper-temporalização do próprio tempo. Amalgamados no instante
203
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
444 Cf. BENJAMIN, Walter, “Theses on the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and Reflections.
New York: Schocken Books, 1985, p. 263 [On the Concept of History/Über den Begriff der Geschichte,
Gesammelte Schriften, Band I,2, p. 704]. Michael Löwy chama a atenção para o fato de que já em sua
tese de doutorado Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik (1919), Benjamin opõe uma
concepção qualitativa de tempo infinito (qualitative zeitlich Unendlichkeit) atribuída ao messianismo
romântico, a um infinito vazio do tempo (leeren Unendlichkeit der Zeit), característico da ideologia
moderna do progresso. Cf. LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Avertissement d´incendie. Paris: Presses
Universitaire de France, 2001.
445 A parábola do Kafka se encontra em uma coleção de aforismas do autor chamada “Er”: [Kafka,
Gesammelte Schriften, New York, 1946, vol. V, p. 287. Arendt utiliza a tradução para o inglês de Willa
and Edwin Muir, The Great Wall of China, New York, 1946, p. 276-277] ARENDT, Hannah. Entre o
Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992, p. 33.
204
Direito e Emancipação – Volume I
205
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
446 Embora fora do escopo deste trabalho, é importante mencionar a violência dos signos linguísticos da
própria representação. Cf. DERRIDA, Jacques, “Force of Law: The Mystical Foundation of Authority”
em: Deconstruction and the Possibility of Justice, Cardozo Law Review, Vol. 11, July/Aug. 1990, Numbers
5-6, pp. 919-1039. Confira também, do mesmo autor: L’université sans condition. Paris : Galilée, 2001.
447 CAPUTO, John. Demythologizing Heidegger. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press,
1993, 189. É interessante como Caputo cita Hannah Arendt justamente para ressaltar a relação entre
a técnica, e neste caso a técnica do direito, e o desmantelamento que essa sofre quando confrontada
a práxis, mobilidade imprevisibilidade da ação. Cf. CAPUTO, John. Ob. Cit., p.188.
206
Direito e Emancipação – Volume I
448 Cf. COSTA, Jurandir Freire, O ponto de Vista do Outro. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. Ver também:
DERRIDA, Jaccques, & CAPUTO, John, Desconstruction in a Nutshell – A conversarion with Jaccques
Derrida. New York: Fordham University Press, 1997.
207
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
mal, nas quais a noção de humanidade opera como nossa menor diferenciação
possível, para além da qual nenhuma outra divisão é concebível. Singularida-
de universal depende, ao contrário, de uma espécie de universalidade situada,
modelada pelas experiências concretas político-sociais as quais os sujeitos estão
atrelados, aqui, particularmente, às experiências de injustiça social.449
Essa relação entre subjetivação política e experiência nos leva ao terceiro
plano da relação entre práxis e espacialidade do fenômeno da injustiça: sub-
jetivação política performática do sujeito da injustiça. Esta noção deriva da
centralidade da vida fática no processo de subjetivação em Badiou e, por con-
sequência, nas demandas por justiça. Desta forma, tem-se uma imbricação en-
tre a experiência concreta de injustiça e o processo de subjetivação do sujeito,
constituída pela ordem do que ocorre, por experiências políticas concretas, não
necessariamente estruturais, axiomáticas ou legais, que estampa uma dinâmica
sobre as identidades substancias.450 Trata-se de um processo de subjetivação po-
lítica fincado na própria reivindicação situada, de uma petição, muito embora
não fique reduzida substancialmente a essa reivindicação. 451
Suscita uma dinâmica performática, no sentido de que compromete ação
e práxis imprevisíveis por parte dos sujeitos submetidos à injustiça. Implica em
processo de subjetivação política, ação política e resistência. Hannah Arendt
atribui a vita activa a espacialidade como dimensão vital. É o espaço no qual o
sujeito trabalha, fabrica e age politicamente. Até mesmo suas reflexões a res-
peito da temporalidade das dimensões da vita activa levam a autora a atribuir
critérios espaciais. O domínio imprevisível, eloquente e redentor da ação políti-
ca, atividade que agrega a dimensão temporal da liberdade, é medido ao signo
da espacialidade, a movimentos humanos corporais e localizados.452 De fato, A
449 Cf. BADIOU, Alain, Saint Paul – The Foundation of Universalism. Translated by Ray Brassier. Stanford:
Stanford University Press, 2003.
450 Este aspecto será tratado na segunda parte deste capítulo. Cf. HEIDEGGER, Martin, The Phenomenology
of Religious Life. Studies in Continental Thought, Indiana: Indiana University Press, 2010.
451 BADIOU, Alain, Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University
Press, 2003, p. 11. A experiência de alteridade autêntica, entende Badiou, é uma singularidade
universalizável, que via de regra, no mínimo exprime sentido e ressignifica, ou até mesmo rompe, com
as particularidades identitárias.
452 Também o ciclo biológico natural do animal laborans e o mundo de artefatos duráveis do homo faber,
próprias do reino da necessidade ambas atividades espacialmente fixadas. Ver TAMINIAUX, Jacques.
“Time and Inner Conflicts of the mind.” In HERMSEN, Joke, & VILLA, Dana, (Eds.). The Judge and
the Spectator- Hannah Arendt’s Political Philosophy. Leuven: Peeters, 1999, p. 44.
208
Direito e Emancipação – Volume I
453 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p.105
209
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
454 BENJAMIN, Walter. “Theses on the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and Reflections.
New York: Schocken Books, 1985, p. 263 (Gesammelte Schriften, Band I, 2, p. 704).
455 Idem, ibidem.
456 [Dem Gedächtnis der Namenlosen ist die historische Konstruktion geweiht]. BENJAMIN, Walter
(Gesammelte Schriften, Band I, 3, p. 1241) [Dem Gedächtnis der Namenlosen ist die historische
Konstruktion geweiht].
210
Direito e Emancipação – Volume I
constante.”457 Os atos e feitos dos quais somos capazes, suas narrativas históri-
cas, não são vistos como partes nem de um todo englobante nem de um proces-
so. Pelo contrário, a ênfase é sempre nas instâncias singulares, gestos particula-
res, feitos ou eventos, que interrompem o movimento circular da vida habitual.
No entanto, como alerta Benjamin, a narrativa dos vencidos não deve ser
concebida como mais uma reivindicação feita à lei da razão, como demanda fren-
te a um sistema de equivalência de direitos e deveres que visa uma “economia de
reparação” das vítimas, como na maior parte dos tribunais correntes de justiça
e reparação.458 Os relatos singulares de injustiça social não são um conjunto
de vozes pessoais, meramente domesticáveis por uma totalidade normativa, ou
mesmo considerados como a matéria-prima às políticas de memória do Estado,
em que a história figura como ferramenta privilegiada à construção da memória
de identidades nacionais.459 Essa é a tentação mais constante das narrativas po-
líticas progressistas da história e do direito.460 O papel político da linguagem, ao
contrário, depende em larga medida da sua capacidade anamnésica.461
Benjamin, em Sobre o conceito de história, transforma a memória em um
modelo particular de conhecimento. Os testemunhos não são tomados como
fontes suplementares à história. A memória testemunhal é sim um forte opo-
nente à noção moderna de história. O autor usa a palavra alemã “Eingedenken”
em vez de terminologias correntes de memória, como Erinnerung ou Gedächt-
nis.462 Eingedenken significa rememoração e remete à categoria judaica de “reme-
bering (Zekher), que não denota a preservação na memória dos acontecimentos
do passado, mas sim a sua reatualização e alerta nas experiências do presen-
tes, “a cada momento, sempre desafiando e renovando os sentidos do próprio
457 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p.11.
458 Ver as considerações de Benjamin acerca da relação entre direito, violência e justiça: BENJAMIN,
Walter. “Critique of Violence”. Selected Writings. Vol.1. Cambridge: Belknap, 1996, p. 249 [Zur Kritik
der Gewalt] (Gesammelte Schriften, Band II, 1, p.179). Ver o artigo de DOUZINAS, Costas. “History
Trials: Can Law Decide History?” In: Annu. Rev. Law Soc. Sci. 2012. 8:273–89.
459 MATE, Reyes. Tratado de la Injusticia. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011, p. 183.
460 BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique. Temps historique et temps vécu. Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 2001, p. 158.
461 Cf. MATE, Reyes, La Herancia del Olvido. Ensayos en Torno a la Razón Compasiva. Prefacio de
Catherine Chalier. Madrid: Errata Naturae, 2008.
462 MATE, Reyes. Tratado de la Injusticia. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011, p. 185.
211
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
463 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p. 109.
464 Idem, Ibidem. Cf. LÖWY, Michael, Fire Alarm: Reading Walter Benjamin's "On the Concept of History,”
London: Verso, 2006.
465 MATE, Reyes. Tratado de la Injusticia. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011, p. 53.
466 Cf. ASSY, Bethania. Ética, Responsabilidade e Juízo em Hannah Arendt. São Paulo: Editora Perspectiva,
2015. Ver particularmente a discussão sobre imaginação ética, mentalidade alargada e cultivo de
sentimentos públicos.
467 Assim como Rosenzweig, Benjamin insistem que os protagonistas da historia são os perdedores. “A
história dos oprimidos é um descontínuo - É a tarefa da história se apossar da tradição dos oprimidos.”
BENJAMIN, Walter, “Notas as Teses sobre o Conceito de Historia.” Gesammelte Schriften, Band I,
3, p. 1236) [« Die Geschichte der Unterdrückten ist ein Diskontinuum – Aufgabe der Geschichte ist, der
Tradition der Unterdrüker habhaft zu werden »].
468 Cf. MATE, Reyes, La Herencia del Olvido. Madrid: Errata Naturae, 2008, p. 170.
212
Direito e Emancipação – Volume I
469 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, 110.
470 Cf. ARENDT, Hannah. The Human Condition. Chicago-London: The University of Chicago Press,
1989, p. 300. Em termos de filosofia política coincide com a criação do vocabulário politico moderno,
no qual, por exemplo, no qual expressões como a “fabricação” de “ferramentas” e instrumentos para
a criação do “homem artificial” chamado Estado: O Leviatã de Hobbes.
213
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
cias singulares de injustiça, daqueles para quem a razão pode ser um grito ate
então calado, uma denúncia expurgada, uma exigência por justiça, uma dor
intransponível, uma última palavra, a morte irremediável.471 A narrativa de
experiência factual articula uma dimensão da linguagem que não se encerra na
narrativa do nomos processual. Na terminologia de Derrida, essa singularidade
factual dos excluídos põe a linguagem em um plano de universalidade eminente
e permanente do singular.472
A narrativa singular como um momento interruptivo da linguagem, alcan-
ça um nível de exterioridade da lei, ultrapassa a própria lógica interna norma-
tiva. Os anúncios chegam precisamente sob a condição de eventos de ruptura,
implodem em tensão interna normativa. Reparação, vista pela perspectiva de
Rosenzweig, impõe não apenas uma racionalidade “ponderável” visando abolir
ou igualar as falhas e lacunas da aplicação do direito, como principalmente
ajuizadas pelo justo-meio equitativo.473 Direito e reparação necessariamente im-
plicam uma ligação com outra dimensão de justiça. Um pedido de justiça que
ultrapassa a reflexão a respeito da racionalidade dos fins e a organização das
trocas normativas comunicacionais. Justiça requer a invocação do ausente, um
chamado qualificado pela narrativa singular.
A verdade da experiência da narrativa singular da injustiça só pode ser
revelada pelo discurso na ação, nem por instrumentos, nem apenas pela razão
representativa, nem ainda tão-somente por potentes ideias. “A durabilidade des-
ta verdade, isto é, o significado real da experiência depende da continuidade
circulatória deste nome, no seu poder de informar uma ação ulterior.”474 Esta
é uma forma de expressar a possibilidade de expansão da potencialidade de
471 Mate chama atenção para os silêncios eloquentes e as resistências políticas silenciosas dos sujeitos da
injustiça. Cf. MATE, Reyes. Tratado de la Injusticia. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011, p. 205.
472 Ver a relação de indissociabilidade que Derrida estabelece entre direito e justiça. DERRIDA, Jacques,
“Force of Law: The Mystical Foundation of Authority” In: Deconstruction and the Possibility of Justice,
Cardozo Law Review, Vol. 11, July/Aug. 1990, Numbers 5-6, pp. 919-1039.
473 Cf. BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique. Temps historique et temps vécu. Librairie Philosophique
J. Vrin, Paris, 2001, p. 159.
474 Wayne Cristaudo acrescenta: “Por outro lado, uma abstração filosófica é a apresentação de um nome
a um processo particular de análise em que apenas ao universal é permitido persistir. É um meio
de delimitação e, em última instância, de desvitalização.” CRISTAUDO, Wayne. “Rosenzweig:
Redemption and Messianism in ‘The Star of Redemption’”. Em CRISTAUDO, Wayne & BAKER,
Wendy, Messianism. Apocalypse & Redemption in 20th Century German Thought. Adelaide: ATF Press,
2006, p. 262.
214
Direito e Emancipação – Volume I
uma experiência universal liberada em toda individuação, não como uma regra
universal, mas como um evento, como um ato único. 475 De maneira evocativa
Zamora enfatiza: “Referindo-se a um outro fenômeno mítico, a saber, o direito,
Benjamin adverte que por meio da correlação entre culpa e retribuição não é
possível captar a experiência do tempo, que não é uma figura do direito, mas
sim, uma figura da justiça e do perdão, quer dizer, que tem a ver com a possibi-
lidade de algo realmente novo que escape à coação de repetição.”476
Essa impossibilidade de repetição, própria das narrativas singulares, ao in-
vés, chama para o comprometimento com a politica do extraordinário. É uma
voz “como se” sem mediação, o evento imprevisto da palavra e ação em direção
a sua potencialidade. Justamente por ser uma narrativa impossível de equalizar
experiência vivida e seu anúncio, que ela mantem o presente em um continuo
compromisso com expectativas correntes de renovação. A narrativa testemu-
nhal, no entanto, é tanto singular como comum. Singular, pois é a voz de
alguém, e comum, pois é potência de um evento politico. Testemunhar endossa
uma dimensão ético-política da narrativa, relacionada ao outro, a radicalida-
de irredutível do outro. Na epistemologia judaica, testemunhar é promover a
disjunção no tempo linear histórico, um desvio do tempo que leva a impaciência
do novo: a esperança e expectação ativa, ou seja, à real promessa da justiça. 477
Por outro lado, de ideia de subtração de Rosenzweig, o espaço deixado
pela voz testemunhal é a própria possibilidade de remediar “a ferida do inaca-
bado”. A narrativa pessoal atenta a impossibilidade de compleição de qualquer
narrativa totalizante. 478 Como Benssusan apontou, a narrativa testemunhal dos
sofrimentos das vítimas, como pensado por Benjamin, é a marca constante da
475 Cf. capítulo intitulado: ‘The Urzelle’, em: MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig,
Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 65
476 ZAMORA, «Dialéctica mesiánica: tiempo y interrupción en Walter Benjamin», en: AMENGUAL,
G. Cabot, M. y VERMAL J.L. (eds.). Ruptura de la tradición. Estudios sobre Walter Benjamin y Martin
Heidegger. Madrid: Trotta 2008, p. 83-138.
477 Na epistemologia judaica, o testemunho (Edout) une uma dupla dimensão: conhecimento (daât)
e paciência impaciente (ad). DRAÏ, Raphaël. La pensee juive et l'interrogation divine: Exegese et
epistemologie. Paris: Presses universitaires de France; 1 edition, 1996, p.66.
478 BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique. Temps historique et temps vécu. Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 2001, p. 157.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
216
Direito e Emancipação – Volume I
482 Cf. ASSY, Bethania. Ética, responsabilidade e juízo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015. Ver
particularmente: imaginação política, teoria do juízo político e sentimento de injustiça.
483 Cf. ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005.
484 BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique. Temps historique et temps vécu. Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 2001, p. 174.
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Direito e Emancipação – Volume I
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
491 A clássica tradição de justiça distributiva embasada em Aristóteles, que fundamenta as teorias de
justiça, cujos autores mais representativos já foram anteriormente mencionados.
492 LEVINAS, Emmanuel, Totalité et Infini - Essai sur L’s Exteriorité. Paris: Martinus Nijhoff, 197, p. 90.
493 Cf. CRITCHLEY, Simon, The Ethics of Deconstruction: Derrida and Levinas. Edinburgh: Edinburgh
University Press, 1990.
494 Ver particularmente: COSTA, Jurandir Freire, O ponto de Vista do Outro. Rio de Janeiro: Garamond,
2010; CAPUTO, John D. Demythologizing Heidegger. Bloomington/Indianapolis: Indiana University
Press, 1993; Ver também: CAPUTO, John. The Weakness of God – A Theology of the Event.
Bloomington: Indiana University Press, 2006.
495 Cf. CRITCHLEY, Simon, The Ethics of Deconstruction: Derrida and Levinas. Edinburgh: Edinburgh
University Press, 1990.
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Direito e Emancipação – Volume I
496 Cf. LEVINAS, Emmanuel, Totalité et Infini - Essai sur L’s Exteriorité. Paris: Martinus Nijhoff, 1971. Ver
também as obras já citadas de John Caputo e Jacques Derrida.
497 [“What is that which call us when we are asked for justice?”]. CAPUTO, John D. Demythologizing
Heidegger. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press, 1993, p. 192.
498 Outro aspecto a ser considerado é justamente como o sujeito da injustiça social é construído cultural,
histórica e socialmente como sendo, o inimigo, o bárbaro, o feio, o bruto, o selvagem, o não-civilizado,
os damnés de la terre; ou para usar um vocabulário civilizatório: os marginais, os viciados, os fora-da-
lei, os loucos, os não-civilizados, os ilegais, etc. Cf. COSTA, Jurandir Freire. O ponto de vista do outro.
Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
499 COSTA, Jurandir Freire. O ponto de vista do outro. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 120.
500 Cf. AGAMBEN, Giorgio. La Comunidad que Viene. Traducción de José La Rocca. Valencia: Pre-
Textos, 1996 [La Comunità che viene, 1990].
501 COSTA, Jurandir Freire. O ponto de vista do outro. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 275. Cf.
CAPUTO, John & VATTIMO, Gianni. After the Death of God. Edited by Jeffrey W. Robbins. New
York: Columbia University Press, 2007, p. 126-127.
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Direito e Emancipação – Volume I
502 Cf. BENJAMIN, Walter. “Critique of Violence”. Selected Writings. Vol.1. Cambridge: Belknap, 1996;
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004; e DERRIDA, Jacques. “Force of
Law: The Mystical Foundation of Authority” em: Deconstruction and the Possibility of Justice, Cardozo
Law Review, Vol. 11, July/Aug. 1990, Numbers 5-6, pp. 919-1039.
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
503 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – Sovereign Power and Bare Life. Stanford: Stanford University
Press, 1998.
504 Cf. FOUCAULT, Michel, Historia da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução Maria Thereza da
costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988; Microfísica do Poder,
Tradução de Roberto Machado, Rio de Janeiro: Graal, 1979. Ver ainda os cursos ministrados por
Foucault no College de France, publicado posteriormente como: Em defesa da sociedade. São Paulo,
Martins Fontes, 20003.
224
Direito e Emancipação – Volume I
505 Cf. HONNETH, Axel. The Struggle for Recognition: The Moral Grammar of Social Conflicts. Studies in
Contemporary German Social Thought. 1st MIT Press ed edition, 1996. Ver nota supracitada.
506 Como já assinalado no início deste capítulo o principal referencial teórico aqui é a teologia política
contemporânea, e particularmente aqui, suas ilações sobre evento e subjetivação política. Uma de
suas principais referências teóricas se apoia na análise da temporalidade messiânica em Walter
Benjamin - mas também nas leituras filosóficas atuais de teologia política Paulina. Em Benjamin,
particularmente: BENJAMIN, Walter, The Arcades Project. Edited by Rolf Tiedemann, and translated
by Howard Eiland and Kevin McLaughlin, Belknap Press of Harvard University Press 2002. [Walter
Benjamin, Das Passagen-Werk. Band V, I and 2 Gesammelte Schriften. Ed. Rolf Tiedemann and
Hermann Schweppenhäuser.7 vols. Frankfurt: Suhrkamp, 1991]; BENJAMIN, Walter. “Theses on
the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and Reflections. New York: Schocken Books, 1985
[On the Concept of History/Über den Begriff der Geschichte, Gesammelte Schriften, Band I,2]. Em
relação a tradição paulina de teologia politica contemporânea, mais precisamente Giorgio Agamben e
Alain Badiou (ver nota de rodapé seguinte). Também, indiretamente: ZIZEK, Slavoj and SANTNER,
225
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
Eric. The Neighbor. Chicago: The University of Chicago Press, 2005, e mais recentemente, ZIZEK,
Slavoj. Event: Philosophy in Transit. New York, Penguin, 2014.
507 Cf. AGAMBEN, Giorgio. The Time That Remains – A Commentary on the Letter to the Romans.
Stanford: Stanford University Press, 2005 [Il tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani,
2000]; BADIOU, Alain, Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University
Press, 2003, pp. 1-15; 75-106. Ver também: AGAMBEN, Giorgio. La Comunidad que Viene. Traducción
de José La Rocca. Valencia: Pre-Textos, 1996 [La Comunità che viene, 1990]; Il Regno e la Gloria – Per
una genealogia teologica dell’economia e del governo. Homo sacer, II,2, Neri Possa Editore, 2007.
508 Cf. BUTLER, Judith, & ATHANASIOU, Athena. Dispossession: The Performative in the Political,
Cambridge: Polity Press, 2013. Para outro registro, Mignolo com a discussão sobre identidade em
política em vez de identitiy politics. Cf. MIGNOLO, Walter. “Desobediência Epistêmica: A Opção
Descolonial e o Significado de Identidade em Política.” Em: Cadernos de Letras da Uff – Dossiê:
Literatura, Língua e Identidade, No 34, pp. 287-324, 2008.
509 BADIOU, Alain. Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University Press,
2003, pp. 1-15; 75-106.
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Direito e Emancipação – Volume I
510 Cf. BADIOU, Alain, Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University
Press, 2003.
511 Embora não seja discutido diretamente neste trabalho, as reflexões de Heidegger sobre Paulo em sua
fenomenologia da religião são cruciais. Sua descrição sobre as experiências fácticas das comunidades
cristãs primitivas historicamente se dá inicio pela proclamação. Heidegger destaca que a comunidade
é a experiência original; a forma como as relações humanas são vividas (carrying-out, Vollzug), o
modo de viver, a performance das experiências compartilhadas; ao invés das concepções clássicas de
fundação, dogma ou teoria de sociedade. Cf. HEIDEGGER, Martin. The Phenomenology of Religious
Life. Indiana: Indiana University Press, 2010.
512 BADIOU, Alain. Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University Press,
2003, p. 11
227
José Ricardo Cunha e Bethania Assy
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Direito e Emancipação – Volume I
sujeito usa seu poder criativo, como conforma sua subjetividade politica, um
processo que articula convicção e expectativas.
Na performance da ação política, o sujeito é subjetivação. Uma obser-
vação significativa é a distinção que Badiou estabelece entre singularidade e
particularidade. Esta última necessariamente depende do predicativo definido
pela cercadura normativa, depende de molduras, quer sejam institucionais quer
sejam identitárias. A estrutura normativa do particular, do próprio, é estática,
na medida em que estabelece de forma determinante o grau de legitimidade do
pertencimento, de forma tanto legal quanto social. Entretanto, atuar, agir poli-
ticamente em concerto excede o vocabulário atual das políticas de identidade.
Embora claramente flanqueado por predicados identitários, particularmente o
alvo biopolítico em larga medida restrito à trilogia raça-classe social-gênero, a
singularidade política do sujeito atesta uma experiência política de empodera-
mento não reduzida às bases identitárias. Sobressalta a importância da cons-
tante abertura para possíveis designações, sentidos do que nos diferencia, da
não essencialidade de nossos próprios predicados, e da condição permanente
de abertura para uma potencialidade criativa de como o sujeito interfere na
realidade, em sua própria trajetória de subjetivação.
Singularidade como distinção política não é aqui reduzida nem ao domí-
nio restrito da identidade substancial, nem em termos de universalidade abs-
trata, mas sim por meio das lutas sociais e políticas que afetam e engajam os
sujeitos. No vocabulário, ainda do Badiou, tais acontecimentos são os exem-
plos dos eventos que estruturam as subjetividades políticas, que, como tais,
não acionam verdades substanciais, nem apenas superpõem uma autoridade
identitária, seja histórica ou comunitariamente instituída. Neste ponto, como
parte do processo de subjetivação, vale ressaltar um aspecto que parece deci-
sivo: sucede uma simetria ontológica na própria realização das ações políticas
concretas, uma dimensão ontológica política permanente que se realiza em ato.
No acontecimento político concreto, subjetivação e ação política acontecem
ao mesmo tempo. Em outras palavras, o que queremos ressaltar é que a mesma
matriz epistémica que nos agrega politicamente, nos coloca na condição de agir
em concerto, em comum, opera simultaneamente com a formação de nossas
subjetividades políticas. É precisamente este agir em conjunto como uma forma
de vida, no engajamento em uma demanda política concreta que se matiza
a singularidade. Agir em conjunto é uma forma de identidade não substan-
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José Ricardo Cunha e Bethania Assy
515 Aqui a comparação com o conceito de ação política e singularidade do sujeito é inevitável.
516 Em outro texto, se exemplifa o que chamamos de subjetividade insurgente, com o movimento Hip
Hop, particularmente Racionais Mc’s. Ver: ASSY, Bethania. “Soggettività Insurgent: Note Sull' Hip
Hop nelle Favela Brasiliane”. In: Giorgio de Finis; Fabio Benincasa; Andrea Facchi. (Org.). EXPLOIT
- Come Rovesciare il Mondo ad Ad Arte. 1ed. Roma: Bordeaux Edizioni, 2015, p. 872-884. Em Negro
drama, por exemplo, ao mesmo tempo que a música é uma reivindicação social e política, e um forte
argumento para a captura de biopolítica, há um ponto de guinada, em que a mesma situação que
oprime, produz libertação e significação de subjetivação política.
517 Cf. BENJAMIN , Walter. “Theses on the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and
Reflections. New York: Schocken Books, 1985 [On the Concept of History/Über den Begriff der
Geschichte, Gesammelte Schriften, Band I,2]; ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological
Writings. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc., 2000; ROSENZWEIG, Franz.
The Star of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005, p.57.
518 Embora de absoluta relevância, as gramáticas de redistribuição e reconhecimento não abordam
a produção de subjetividade e sua força testemunhal na ação política. Seja na forma de paridade
de participação (Fraser), seja na forma de sofrimento por indeterminação (Honneth), ambas
permanecem circunscritas às demandas normativas por justiça e à gramática do reconhecimento. Ver
230
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