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Direito e Emancipação – Volume I

Teoria do direito
e o sujeito da injustiça social
www.lumenjuris.com.br

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João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida

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José Ricardo Cunha
Bethania Assy

Direito e Emancipação – Volume I


Teoria do direito
e o sujeito da injustiça social

Editora Lumen Juris


Rio de Janeiro
2016
Copyright © 2016 by José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Categoria:

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Renata Chagas

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de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e
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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
________________________________________
Dedicamos esse livro a todos aqueles que mesmo
sofrendo penosas injustiças resistem à opressão
e reinventam sua própria realidade.
Bola de Meia Bola de Gude
Milton Nascimento e Fernando Brant

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente


Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão

E me fala de coisas bonitas


Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade, alegria e amor
Pois não posso
Não devo
Não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal

Bola de meia, bola de gude


O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão
Agradecimentos

Agradeço a Claudia, Hanna e Lucas, pela paciência e generosidade que


tiveram em função das horas subtraídas para serem dedicadas a este livro.
Também agradeço a ajuda inestimável de Fábio Carriello que conseguiu
recuperar o texto do HD quebrado de meu computador. Sem essa ajuda esse
livro não existiria.

José Ricardo Cunha

Agradeço a Francisco e Luisa, pela experiência total do amor e vida compartida.

Bethania Assy

IX
Nota sobre a Coleção Direito e Emancipação

A Coleção Direito e Emancipação, publicada pela Editora Lumen Juris, é o


resultado de parte da agenda de pesquisa dos professores que integram a Linha
de Pesquisa em Teoria e Filosofia do Direito do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Desde sua implantação, no
ano de 2010, essa Linha de Pesquisa tem procurado realizar e fomentar uma abor-
dagem crítico-filosófica do fenômeno jurídico enfatizando questões pertinentes a
uma teoria crítica do direito e da norma jurídica. De forma mais clara, podemos
fazer a seguinte apresentação da Linha:
A linha de Teoria e Filosofia do Direito, vinculada à Área de Concentração
em Pensamento Jurídico e Relações Sociais do Programa de Pós-Graduação em Di-
reito da UERJ, abrange a produção científica e as pesquisas de docentes e discentes
que, a partir de múltiplas abordagens e eixos temáticos, converge no sentido de uma
reflexão crítica do direito, que o entende como parte do tecido social. Tal reflexão
é desenvolvida por investigações, baseadas em elaborações teóricas e análises empí-
ricas, em perspectiva interdisciplinar com a filosofia, a sociologia, a historiografia e
a ciência política. Dessa forma, reúne estudos sobre o lugar do direito na dinâmica
dos conflitos sociais, com especial ênfase (a) na observação de sua interação com
violências, assimetrias e desigualdades materiais e simbólicas; (b) no exame de suas
conexões com as lutas populares e movimentos sociais; (c) na investigação de seu
potencial transformador e emancipatório; (d) na avaliação dos limites e possibili-
dades da relação entre direito e justiça e, finalmente, (e) na busca de um marco
epistemológico que permita tal compreensão crítica do direito.
Todos os volumes que integram a presente Coleção resultam de pesquisas
inseridas no contexto acima descrito. É importante ressaltar que os Volumes I a
VI dessa coleção resultaram de pesquisas que contaram com o apoio da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ, por meio do Edi-
tal 41/2013 – Grupos de Pesquisa Emergentes, Processo E-26/110.132/2014. Nossos
agradecimentos à FAPERJ.

Nada me parece menos perempto do que o clássico ideal emancipador.


Jacques Derrida in Força de Lei.

XI
Sumário

Agradecimentos............................................................................................. IX

Nota sobre a Coleção Direito e Emancipação............................................. XI

Introdução........................................................................................................ 1

1. O Paradigma do Direito Natural................................................................ 9


1.1 O Direito Natural e a obliteração do sujeito........................................... 21

2. O Paradigma do Positivismo Jurídico...................................................... 39


2.1 O Positivismo Jurídico e a obliteração do sujeito.................................... 64

3. O Paradigma do Pós-Positivismo........................................................... 107


3.1 O Pós-Positivismo e a obliteração do sujeito..........................................147

4. O Sujeito da Injustiça: uma Urgência Epistêmica e Ética.................... 193


4.1 Uma Epistemologia da Injustiça........................................................... 197
4.1.1 A temporalidade: a injustiça não espera por um amanhã............... 197
4.1.2 O topos: Espacialidade e práxis da injustiça................................... 206
4.1.3 Narrativa testemunhal do sujeito da injustiça................................. 209
4.1.4 A kardia da injustiça: o sofrimento..................................................216
4.1.5 A força da justiça: a responsabilidade pelo outro.............................221
4.2 O sujeito da injustiça: ontologia política entre
captura e empoderamento.................................................................... 223

Referências Bibliográficas........................................................................... 233


Introdução

O debate sobre as relações possíveis entre direito e justiça é tão antigo


quanto a própria experiência jurídica. E apesar disso está muito longe de ter
alcançado alguma resposta definitiva. Conforme o paradigma vigente, a rela-
ção entre direito e justiça pode ser vista de uma ou outra maneira, tudo de-
pende de como o senso moral será situado por aquele determinado paradigma
em relação ao direito.
A literatura mais usual da teoria do direito, de influência positivista, costu-
ma situar o direito como sendo heterônomo e a moral como autônoma, o direito
como sendo objetivo e a moral subjetiva. Isso produz certas conclusões que colo-
cam a experiência jurídica e o sentimento moral em campos opostos. Entretan-
to, essa forma de classificação sobre direito e moral foi substancialmente renova-
da em função do debate oriundo da filosofia política e da filosofia moral sobre a
teoria da justiça. O movimento mais forte ocorre após a publicação de A Theory
of Justice, de John Rawls, em 1971. O texto de Rawls produziu duas reações
imediatas: por um lado se discutia a possibilidade dos arranjos institucionais
propostos pela Justiça como Equidade; de outro lado se discutia a caracterização
do sujeito da teoria da justiça. Então, se formaram dois grandes campos, um de
influência mais kantiana e outro de influência mais aristotélico-hegeliana. No
primeiro vige uma perspectiva mais universalista de sujeito e no segundo uma
perspectiva mais identitária. Ambas as perspectivas possuem algumas limitações
quanto à capacidade de expressar o sujeito singular na sua vivência concreta.
Para uma abordagem mais empírica ou fenomenológica do sujeito é preciso
compreendê-lo em sua experiência vivencial real. Entretanto, quando se pensa
uma teoria da justiça, não basta que se tenha em mente cidadãos livres e iguais,
como ponto de partida da teoria. É necessário que se considere o sujeito real da
injustiça. Contudo, a experiência da injustiça pode ser um tanto individual e,
por isso, relativa. Cada pessoa pode reagir de uma forma determinada diante de
algo que lhe cause sofrimento pessoal e a isso atribua uma qualificação de in-
justiça sofrida. Porém, por outro lado, há na sociedade uma espécie de injustiça
objetiva, reconhecida e, até, quantificada por estatísticas, estudos e pesquisas.
Trata-se da injustiça social que pode ser resultado da opressão decorrente das

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

privações impostas pelo empobrecimento resultante do sistema econômico vi-


gente, ou, então, da opressão decorrente de preconceitos e discriminações que
resulta em desigualdades injustas e imerecidas. Quem vive uma das duas situa-
ções ou ambas, é o sujeito da injustiça social.
Enquanto na gramática da filosofia moral e política há algum esforço em
produzir conhecimento acerca do sujeito da injustiça social e de sua relação
tanto com os sistemas morais quanto com as instituições políticas, o campo
da filosofia do direito ainda não alcançou um acúmulo considerável sobre o
problema deste sujeito da injustiça. São poucas as iniciativas voltadas para este
estudo. Porém, mais escassos são os trabalhos sobre o problema do sujeito da
injustiça social no campo da teoria do direito. O livro que a leitora ou o leitor
tem em mãos, pretende, assim, fortalecer uma área pouco trabalhada, embora
recorrente nas práticas concretas do sistema de justiça.
Trazer a questão do sujeito da injustiça social para o coração da teoria do
direito nos parece algo crucial tanto no debate jurídico quanto no debate moral
e político. A teoria jurídica está acostumada a lidar com o sujeito de direito,
mas tal sujeito é uma idealização e se volta para um homem médio que é bem
diferente daquele que sofre concretamente as injustiças sociais, seja por razões
econômicas, seja por razões políticas ou culturais. Os paradigmas jurídicos mais
conhecidos são objeto de intensos debates na filosofia do direito, mas é preciso
também mobilizar um arsenal de críticas a partir do sujeito da injustiça social,
isto é, usando tal sujeito como parâmetro para a análise desses ditos paradigmas.
O sentido de ser do próprio direito se vincula a existência de relações
sociais e de pessoas concretas, mas nem sempre isso é considerado no mundo
jurídico. Uma das mais importantes investigações etimológicas acerca do con-
ceito de direito foi feita pelo sacerdote e jurista português Sebastião Cruz, na sua
monografia Ius. Derectum (Directum).1 Cruz alega que a vinculação do nome de-
rectum à ideia de direito pode ser explicada menos por razões linguísticas e mais
por razões simbólicas. Ele argumenta que os símbolos utilizados na representa-
ção greco-romana de justiça foram decisivos para a etimologia do direito. Tanto
gregos como romanos se inspiraram em sua cultura religiosa para invocar o
senso de justiça, de modo que para os gregos a justiça apareceu sucessivamente
simbolizada por Zeus, Themis e Dike. Na representação mais popular, no tempo

1 CRUZ, Sebastião. Ius. Derectum (Directum). Direito (derecho, diritto, droit, direito, recht, right etc.).
Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1986.

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Direito e Emancipação – Volume I

de Hesíodo, a deusa Dike encarnava a justiça segurando uma espada na mão


direita e uma balança na mão esquerda, sem os olhos vendados. Já os romanos
usaram as divindades Jupiter, Dione e Justitia, sendo esta a representação mais
usual e muito similar à representação feita pelos gregos por meio de Dike. Po-
rém, no caso da deusa romana Justitia, ela aparece com os olhos vendados e não
segura uma espada e sim a balança com as duas mãos.2 Todas as denominações
utilizadas como forma de verbalização dos símbolos – dikaion, ison (grego), jus,
derectum (latim) – expressam atitudes divinas aptas a orientar os relacionamen-
tos entre as pessoas. A palavra que mais se aproxima do vernáculo direito, em
língua portuguesa, é derectum.3 Esta palavra é composta pelas partículas de e
rectum onde a primeira sugere um movimento de cima para baixo, algo próximo
à perfeição divina, portanto, intensidade, e a segunda sugere o não-oblíquo, o
não-torto, aquilo que não faz desvios ou concessões, o reto.
Portanto, a linguagem hábil a revelar a ideia de direito expressa também
algo de não humano. Um direito que se faz de cima para baixo e que toma o
humano como objeto e não como sujeito. Esse é um problema persistente na
história do direito e que desafia todo o pensamento jurídico, especialmente a fi-
losofia do direito. Trata-se de uma obliteração do sujeito. O sujeito assim oblite-
rado no direito impede que a face humana das relações jurídicas, e das relações
sociais na medida em que estas são mediadas pela forma jurídica, se apresente
com suas vicissitudes singulares e históricas. Ocorre uma espécie de metafísica
do sujeito onde o ser humano concreto é substituído por uma representação
funcional que permite o desempenho esperado da máquina jurídica. Talvez a
ideia mais cristalina desta metafísica seja o conceito de sujeito de direito. A defi-
nição corrente deste conceito informa que sujeito de direito é aquela pessoa que
o ordenamento jurídico considera apta a exercer uma faculdade conferida por
uma norma jurídica ou a ser submetida a um imperativo legal ou dever jurídico.
É importante notar que a “pessoa” apenas aparece como tal enquanto referen-
ciada a uma norma jurídica. Nesse sentido ela é desenraizada de sua própria
história para ressurgir como categoria funcional perante o ordenamento jurídi-
co. Trata-se de um movimento, ao mesmo tempo, de objetivação do sujeito e de
abstração do concreto. É importante notar que esse movimento não expressa

2 CRUZ, Sebastião. Ob cit., pp. 26-28.


3 Vale esclarecer que directum era considerada a expressão mais culta e erudita ao passo que derectum
era a palavra mais popular ou vulgar.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

nem um paradoxo e nem uma dialética, mas sim uma ironia. Com sabemos,
a ironia é antes de tudo uma dissimulação; usa-se uma expressão quando, na
verdade, se tem em conta uma ideia oposta. A ironia anula a unidade do ato,
pois se afirma para negar, ou o oposto. É exatamente isso que acontece com o
sujeito do conceito de sujeito de direito. O sujeito do direito é, pois, o objeto do
direito uma vez que é abstraído de sua história concreta para ser tomado como
destinatário prático de uma norma que limita ou substitui sua vontade. Dessa
perspectiva da teoria legal importa, fundamentalmente, qual é a norma e não
quem é o sujeito. Essa é a ironia do conceito: a pessoa é afirmada apenas para
ser negada, e isso não é uma dialética pois não há aqui uma síntese. A ironia é,
de efeito, um modo de ser do direito que se apresenta como uma tragédia para
o sujeito, pois a sua obliteração passa a ser uma condição inafugentável das re-
lações jurídicas, tal como elas tradicionalmente se manifestam.
Evidentemente, o direito é feito por sujeitos. A experiência do sistema de
Civil Law valoriza processos políticos de natureza institucional e legiferante,
por meio dos quais vontades e interesses em conflito buscam se afirmar como
dominantes a fim de produzir e reproduzir a ordem jurídica e com ela outras
ordens sociais, tal como a economia e a própria política. Já na experiência do
sistema de Common Law temos, por um lado a perspectiva do direito con-
suetudinário; este que é produzido pela cultura de uma dada comunidade ou
sociedade e alcança o vigor necessário para afirmá-lo como ordem jurídica,
assim reconhecida pela própria comunidade ou sociedade, isto é, sujeitos sub-
mersos nas tradições e instituições que tendem a reproduzir conservadora-
mente seu modo de vida. Por outro lado, o sistema de Common Law também
se manifesta pela ação jurisdicional dos tribunais que ao dizerem o direito do
caso concreto não apenas decidem para as partes, mas pretendem revelar à
comunidade jurídica e a toda a sociedade o direito adequado a todos os casos
semelhantes. Há, nesse sentido, uma pretensão legiferante das cortes perante
a sociedade e esse é o propósito último da máxima stare decisis et non quieta
movere, que significa, “respeitar as coisas decididas e não mexer no que está
estabelecido”. Em ambos os sistemas, algum sujeito participa, de alguma for-
ma, da realização do direito. Claro que seria necessário investigar com clareza
e rigor quem é esse sujeito ou quem são estes sujeitos e qual é essa forma ou
quais são estas formas, como o faz, por exemplo, a sociologia ou a sociologia do
direito. Mas queremos colocar em destaque o inverso da pergunta: e o direito?
Participa da realização do sujeito? Certamente que o sujeito é atravessado pelo

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Direito e Emancipação – Volume I

direito e, de alguma maneira, constituído por ele. Mas será esse um processo
emancipatório? Se levarmos em conta o problema proposto da obliteração do
sujeito nas diferentes formas de relações jurídicas, então a resposta parece ser
que o direito participa, em alguma medida, da constituição do sujeito, mas não
necessariamente de sua realização, se por realização entendermos um processo
de desenvolvimento material e espiritual (não religioso) resultante da autode-
terminação de indivíduos e grupos sociais.
Estamos, assim, diante do dilema do desaparecimento do humano que
se manifesta em vários aspectos e campos, inclusive no direito. Resgatar esse
humano e sua face concreta talvez seja o desafio cardinal dos nossos tempos.
Para tanto, um passo inicial é realizar um esforço de compreensão de como a
teoria do direito lida com a questão do sujeito, mas não de qualquer sujeito e
sim, especificamente, com o sujeito da injustiça social, esse que deve ter uma
prioridade ética na ação jurídica e política.
A história do direito e das ideias políticas nos mostra que os pensamen-
tos em torno das possibilidades de vida em comum sempre se manifestaram
na forma de paradigmas, isto é, um conjunto de crenças que compõem um
quadro teórico e que funcionam como regras acerca de como nós esperamos
que o mundo (as coisas) se comportem. Um dado paradigma faz com que nós
vejamos o mundo e as suas coisas a partir do que é considerado “normal” no
seio deste próprio paradigma. Essa noção foi explorada por Thomas Kuhn que
afirmou que os paradigmas são as realizações cientificas universalmente reconhe-
cidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para
uma comunidade de praticantes de uma ciência.4 Essa concepção de paradigma
de Kuhn se apresenta como uma filosofia específica da ciência (especialmente
ciências da natureza), mas pode ser tomada de empréstimo para se pensar a
história das ideias. Para este autor a ciência não se desenvolve por acumulação
de descobertas, mas pela revolução de paradigmas, por isso afirma que a tran-
sição sucessiva de um paradigma a outro, por meio de uma revolução, é o padrão
usual de desenvolvimento da ciência amadurecida.5 Dito de outra forma, temos
que um agrupamento de ideias acerca de como as coisas devem funcionar se
cristaliza na forma de um paradigma que, por sua vez, se manifesta como um
conjunto de crenças ou regulamentos acerca dos fenômenos por ele abrangi-

4 KUHN, Thomas. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 13.
5 KUHN, Thomas. Ob. Cit., p. 32.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

dos. A evolução do pensamento (científico), segundo Kuhn, se daria não pelos


avanços dentro de um dado paradigma, mas pelas revoluções decorrentes entre
choques de paradigmas diferentes.
Esse é precisamente o caso do direito. O conhecimento do fenômeno
jurídico é um desafio tão grande e antigo quanto a própria organização das
sociedades por meio de normas jurídicas. Filósofos, politólogos, sociólogos,
antropólogos, sempre estiveram debruçados, conjuntamente com os próprios
juristas, nesse desafio de conhecer e entender o direito e, em várias vezes, de
justificar suas normas. Desse trabalho realizado ao longo da história, muitas te-
orias, correntes e grupos se formaram. São inúmeras as escolas de pensamento
que criaram diferentes formas de explicação e, em alguns casos, de justificação
para o direito. Contudo, dois grandes paradigmas se afirmaram com mais elo-
quência até os dias de hoje: o paradigma do direito natural ou jusnaturalismo e
o paradigma do positivismo jurídico ou juspositivismo.6 Mais do que correntes,
grupos e, até mesmo, escolas do pensamento jusfilosófico, direito natural e posi-
tivismo jurídico são paradigmas do direito porque reúnem, cada um deles a seu
modo, um conjunto de explicações e regras acerca de como deve ser entendido
o fenômeno jurídico e, portanto, quando o direito deve ser considerado válido
e como as normas devem ser interpretadas e aplicadas. Estes paradigmas se tor-
naram dominantes ao longo da história por apresentarem reflexões profundas
e coerentes acerca de questões vitais sobre o direito, seus limites e suas possibi-
lidades; ou no dizer de Khun, forneceram problemas e soluções modelares para
uma comunidade de estudiosos e praticantes do direito. Nesse sentido, uma
“ciência normal do direito” – Khun – seria praticada levando-se em considera-
ção as suposições acerca do funcionamento regular do direito defendidas por
um ou por outro paradigma.
É bem verdade que apesar da revolução paradigmática que sofreu a fi-
losofia do direito com a queda da influência do paradigma do direito natural
e a ascensão do paradigma do positivismo jurídico7, houve outra revolução
paradigmática, especialmente a partir da segunda metade do século XX, que

6 Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia del Derecho. Colombia: Universidad Externado de Colombia,
1999. Especialmente o capítulo Derecho Natural y positivismo. Problema histórico de la filosofía del
derecho, pp. 61-88.
7 Cf. HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. Sintra:
Publicações Europa-América, 1998, pp. 158 e ss.

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Direito e Emancipação – Volume I

colocou em questão os fundamentos do positivismo jurídico, mas, ao mesmo


tempo, não pretendeu um retorno ao direito natural. Trata-se de um terceiro
paradigma ainda muito recente na história do direito e, por isso mesmo, sobre
o qual devemos falar com muita cautela, uma vez que não sabemos se suas
regras e procedimentos quanto ao conhecimento e à aplicação do direito já
foram apresentadas e debatidas de forma exaustiva. Estamos falando do pa-
radigma do pós-positivismo8. Sua força e influência na virada do século XX
para o XXI foi poderosa para alcançar tanto os meios acadêmicos quanto os
meandros profissionais da atividade jurídica. Como típico de toda revolução
paradigmática, o pós-positivismo coloca em questão os problemas e soluções
propostos pelo positivismo jurídico, paradigma dominante por ele confronta-
do, como não sendo mais modelares.9
Com efeito, temos atualmente três importantes paradigmas em debate na
filosofia do direito que por meio de suas revoluções ocupam maior ou menos
espaço na esfera de influência acadêmica e profissional. Os estudiosos, em sua
maioria, ao estudar tais paradigmas procuram entender como cada um deles
define o quid do direito, isto é, seu cerne ou sua natureza. A pergunta estra-
tégica que nos faremos nessa nossa particular investigação é quanto à posição
do sujeito nestes diferentes paradigmas. Retornando à nossa questão inicial:
de que forma o direito, conforme concebido por cada um destes paradigmas
participa da realização do sujeito?

8 Cf. CALSAMIGLIA. Albert. Postpositivismo. In Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Núm. 21,
1998. http://www.cervantesvirtual.com/nd/ark:/59851/bmcbk215
9 Nem todos os autores usam a expressão pós-positivismo que é, por certo, uma denominação ainda em
construção, apesar de muito utilizada. Kaufmann fala numa “terceira via” que supera a dicotomia
direito natural – positivismo jurídico. Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia del Derecho. Colombia:
Universidad Externado de Colombia, 1999, p.93. Já autores decisivos para a virada pós-positivista
como Chaïm Perelman e Luis Recasens Siches falam em um padrão de racionalidade típico do
direito que não se confunde com o racionalismo do direito natural e nem do positivismo jurídico.
Cf. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Cf. RECASENS SICHES,
Luis. Tratado General de Filosofia Del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2008.

7
1. O Paradigma do Direito Natural

A ideia de Direito Natural é certamente a mais antiga e tradicional na


história do direito e embora aqui e acolá já se tenha decretado sua morte10 ela
continua firme e presente no sentimento jurídico tanto das coletividades como
de inúmeros especialistas no campo do direito.11 Também continua presente,
embora não com tanta pujança, na jurisprudência dos tribunais.12 O aspecto
mais importante relativamente ao direito natural é que este representa, antes
de tudo, uma crença, isto é, uma tomada de posição diante do direito existente
e, por isso mesmo, ele funciona como um ideal regulador da lei positiva, ou
seja, um critério para a sua avaliação. Essa perspectiva é defendida por toda a
linhagem de pensadores que sustentam os ideais jusnaturalistas, dentre os quais
podemos citar Cícero, devido à clareza de suas palavras: “mas, o maior absurdo é
supor-se que são justas todas as instituições e leis dos povos. Serão ainda justas as leis
dos tiranos?”13 E continua Cícero de forma contundente: “Se a origem do direito
se encontrasse nos mandamentos do povo, nos decretos dos líderes ou nas senten-
ças judiciais, o direito seria roubar, adulterar, falsificar sempre que fosse ratificado
pelos desejos ou decisões da massa.”14 Os questionamentos e objeções de Cícero
colocam em xeque as instituições políticas da sociedade e nos remetem a um
conceito de direito que seja fundamentado não em decisões sociais, mas em
uma ideia transcendental de justiça. Nessa linha, Giorgio Del Vecchio afirma
que direito natural é, pois, o nome com que se designa, por tradição muito antiga,
o critério absoluto do justo. Com tal nome se pretende dizer que o referido critério
assenta na própria constituição das coisas e nunca no mero capricho do legislador

10 Cf. PIOVANI, Pietro. Giusnaturalismo ed Etica Moderna. Napoli: Liguori Editore, 2000.
11 Para uma defesa eloquente do Direito Natural cf. FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights.
Oxford: Oxford University Press, 2011.
12 A título de exemplo veja-se acórdão do STJ de 2011: AgRg no REsp 1167616 / PB; Agravo Regimental
no Recurso Especial 2009/0228937-6. Veja-se o trecho: “Repara-se por força do Direito Positivo e, também,
por um princípio de Direito Natural, pois não é justo prejudicar nem os outros e nem a si mesmo.”
13 CÍCERO, Marco Túlio. Das Leis. São Paulo: Cultrix, p. 49.
14 CÍCERO, Marco Túlio. Ob. Cit., p. 50.

9
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

momentâneo.15 Como afirmou Del Vecchio, o compromisso com o valor moral


da justiça é a característica central do direito natural, contudo seu fundamento
primeiro está em sua noção intrínseca de natureza. Portanto, o paradigma do
jusnaturalismo sustenta que há uma natureza primeira por meio da qual eu
posso reconhecer uma norma que possa ser chamada de jurídica e ao mesmo
tempo me permite fazer uma avaliação da juridicidade das instituições políticas
e sociais. Para entender melhor o sentido de natureza, nada melhor do que
recorrer ao pensamento seminal de Aristóteles. No livro quinto da Metafísica,
Aristóteles se dedica à conceituação de diferentes termos estratégicos para sua
investigação filosófica, dentre eles o termo natureza. Inicialmente o autor afir-
ma que natureza significa o princípio originário e imanente, do qual se desenvolve
o processo de crescimento da coisa que cresce.16 Dentre as várias interpretações
possíveis, vale destacar aqui a ideia de uma força motriz intrínseca e que, por
isso mesmo, constitui a essência do ser e nesse sentido sua realidade mesma. De
acordo com essa perspectiva a natureza expressa o que há de mais importante
no ser e que é sua própria razão de existir. Para além disso, esse princípio ori-
ginário e imanente que define aquilo que é, faz com que este ser esteja fora do
alcance das práticas sociais, isto é, daquilo que é convencionado. Como afirmou
Norberto Bobbio, há coisas que claramente são consideradas naturais, ao passo
de que outras podem facilmente ser consideradas como convenções, produto da
discricionariedade humana no mundo.17 Porém isso não fica tão claro quando
se trata do direito. Por isso esse autor afirma que a resposta que os próprios
gregos deram a essa questão (o direito seria natural ou convencional?) foi quase
sempre ambivalente: o direito é, em parte, natural e, em outra parte, conven-
cional.18 Isso talvez ajude a compreender a origem histórica da dicotomia entre
direito natural e direito positivo.
Seguindo na sua reflexão acerca da natureza, Aristóteles afirma que objeto
natural é o que é composto de matéria e de forma.19 Essa afirmação nos parece
especialmente importante porque nos ajuda a compreender melhor essa dupla
natureza do direito e, ao mesmo tempo, o caráter transcendental do direito

15 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1979, p. 334.
16 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2013, p. 199. 1014b-15.
17 BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Brasília: Editora UnB, 1997, p. 30.
18 Idem, ibidem.
19 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2013, p. 201. 1015a-5.

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Direito e Emancipação – Volume I

natural. Como sabemos, para a filosofia aristotélica, dentre seus conceitos fun-
damentais, podemos destacar hyle que significa matéria, e eidos que significa
forma. Embora sejam conceitos bem distintos, eles são complementares porque
ambas se encontram na constituição de todo ser real, de tudo aquilo que é
como indivíduo. Pois, se por um lado, a individuação se deve à matéria, a orga-
nização da matéria na maneira daquilo que ela é deve-se à sua forma. Portanto,
enquanto o direito positivo responderia pela matéria do direito, o direito natural
responde pela sua forma. O direito concreto, a lei substancializada na maneira
como ela é feita e aprovada pela autoridade competente seria, assim, apenas
uma dimensão do fenômeno jurídico – ato – que apenas poderia se realizar
como direito se estivesse dentro da sua forma – potência – que é o ideal de
justiça. Aristóteles, na própria Metafísica, já havia nos advertido de que o ser
se diz de dois modos.20 Isso faz sentido também quando ele mesmo se refere, em
sua Ética a Nicômaco, à justiça política:

Da justiça política, uma parte é natural e outra parte legal: natural,


aquela que tem a mesma força onde quer que seja e não existe em razão
de pensarem os homens deste ou daquele modo; legal, a que de início é
indiferente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecida...21

Para dar mais eloquência ao seu próprio argumento, diz Aristóteles que as
coisas que são justas por convenção ou por decisão humana mudam em toda
parte, tal qual as medidas que são utilizadas em diferentes locais. Da mesma
maneira, as constituições não são as mesmas nos distintos estados, contudo,
afirma o filósofo, só há uma constituição que é, por natureza, a melhor em
toda parte.22 Assim, parece ficar claro que o ser do direito, numa perspectiva
jusnaturalista, obedece a um certo dualismo. O problema que se extrai de tal
dualismo é o seguinte: mas o que fazer quando a matéria não se organiza em
conformidade com sua forma? Repetindo a pergunta com outras palavras te-
mos: o que fazer quando o direito positivo colide com o direito natural? Essa
decisiva pergunta é respondida da única maneira lógica por todos os jusnatu-
ralistas: deve prevalecer a forma, isto é, o direito natural. Isso Aristóteles deixa

20 ARISTÓTELES. Ob. Cit., p. 545. 1069b-15.


21 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 331. 1134b-20.
22 ARISTÓTELES. Ob. Cit., p. 331. 1135a.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

bem claro ao afirmar: É evidente que se a lei escrita coloca-se contra o nosso caso,
é necessário recorrer à lei comum e à equidade como sendo mais justas... É neces-
sário insistir que os princípios da equidade são permanentes e inalteráveis, que a lei
comum igualmente não muda pois se conforma à natureza – ao passo que as leis
escritas mudam frequentemente.23 Isso deixa claro que as normas do direto na-
tural – lei natural ou lei comum no dizer de Aristóteles – possuem precedência
por serem consideradas, ontologicamente, a realidade primeira e última que diz
respeito à essência ou à forma do direito. Essa precedência pode ser pensada em
dois planos: o direito natural é 1) logicamente anterior e 2) moralmente supe-
rior. Logicamente anterior ao direito positivo, ao estado e à própria sociedade
política, pois como produto da natureza (possuindo em si mesmo o princípio do
seu desenvolvimento), não depende do direito positivo, do estado e da socieda-
de para a sua existência e sua validade, ao contrário, é ele que confere validade
última ao direito positivo, ao estado e a todas as normas sociais; por outro lado,
é moralmente superior ao direito positivo, ao estado e à própria sociedade po-
lítica pois sempre que uma norma de conduta ou organização social estiver em
rota de colisão com um princípio ou norma do direito natural é esse que deve
prevalecer por corresponder à ideia máxima de justiça.
Essa perspectiva jusnaturalista aparece desde os gregos como reconhecen-
do a existência de um direito natural que deriva da própria natureza das coisas.
A matéria seria parte de uma ordem naturalmente orientada por certos fins, de
forma que tudo no universo obedeceria a uma natureza primeira. Essa lógica
que aparece desde os filósofos pré-socráticos fica especialmente clara em He-
ráclito de Éfeso.24 Segundo este filósofo, a ordem natural das coisas – phisys – é
o devir ou o constante vir a ser onde nada permanece como é, tudo obedece
a uma lei geral da transformação (exceto a lei natural que afirma que tudo se
transforma) pela qual as identidades são sempre provisórias. Esse devir per-
manente, ao contrário do que se poderia imaginar, não produz o caos, mas a
ordem mesma. Nessa ordem formada por diferenças e antagonismos há, porém,
um sofisticado equilíbrio de forças contrárias. Mas não um equilíbrio que possa
sugerir estática, pelo contrário o equilíbrio resulta de uma permanente batalha
– dinâmica – por meio da qual os opostos se manifestam e buscam seu lugar no

23 ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Edipro, 2011, p. 112. 1375a-30.


24 Cf. KIRK, Geoffrey. RAVEN, John. SCHOFIELD, Malcon. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1994, pp. 187-189.

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Direito e Emancipação – Volume I

mundo.25 Mas como tal cosmologia poderia ser base para um direito natural?
A resposta fica clara quando vemos o florescimento da democracia em Atenas
cerca de um século depois. A visão cosmológica de Heráclito se fixa como um
paralelo para a visão política da democracia ateniense. A força dos elementos
contrários gerando equilíbrio no cosmo se apresenta como a lei natural da polis.
Assim, na democracia também temos um sofisticado equilíbrio a partir do con-
flito decorrente da força de ideias e interesses contrários.26 Essa visão cosmo-
lógica do direito natural é de alguma forma intuitiva como quando pensamos
na natureza humana, pois desta própria natureza seriam derivados direitos na-
turais, isto é, direitos logicamente anteriores e moralmente superiores, válidos
em qualquer tempo ou lugar. Como exemplo, poderíamos pensar em condições
naturais da existência humana que seriam reconhecidas como direitos naturais,
tais como o direito à alimentação adequada, à luz do sol e à proteção da própria
vida. De certa forma o instituto jurídico-penal da legítima defesa estaria am-
parado e legitimado por este direito natural de preservação de si mesmo, de tal
forma que ele aparece como algo que se possa qualificar de justo.
Se, por um lado, é fácil e intuitivo compreender o conceito de direito na-
tural como o recurso e apelo a uma ideia regulativa de justiça, por outro lado,
o difícil é materializar essa ideia de justiça em normas ou preceitos mais con-
cretos e aplicáveis a situações da vida comum. Esse esforço foi realizado graças
ao pragmatismo dos jurisconsultos romanos e está presente no Digesto, primeira
parte do Corpus Juris Civilis que veio à tona no século VI com o imperador
Justiniano I. O Digesto é uma compilação de fragmentos de jurisconsultos clás-
sicos e, dentre eles, encontra-se a parte atribuída a Ulpiano onde está a famosa
formulação acerca da ideia de justiça: justitia est constans et perpetua voluntas jus
suum cuique tribuendi, isto é, a justiça é a vontade constante e perpétua de dar
a cada um o que é seu.27 Na sequência, Ulpiano apresenta aquilo que segundo
ele seriam os três grandes preceitos do direito e que, portanto, conformariam
os grandes fundamentos do direito natural: honeste vivere (viver honestamente),
alterum non laedere (não prejudicar ninguém) e suum cuique tribuere (dar a cada
um o que lhe pertence). Desde então, muito se tem debatido acerca da fórmula
suum cuique tribuere. Dar a cada um o que é seu ou o que lhe pertence, parece

25 KIRK, Geoffrey. RAVEN, John. SCHOFIELD, Malcon. Ob. Cit., pp. 193-221.
26 Cf. NAY, Olivier. História das Ideias Políticas. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35.
27 DIGESTO DE JUSTINIANO. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 21. D.10.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

ser uma afirmação bastante intuitiva e que, nesse sentido, nem exigiria muita
justificação. Mas o imbróglio é muito grande quando se discute o critério pelo
qual deveria se dar a cada um o que lhe pertence. Chaïm Perelman fala da in-
crível multiplicidade dos sentidos que se atribuem ao conceito de justiça, mas
recorre à fórmula de Ulpiano para falar de seis diferentes concepções possíveis,
conforme se possa entender o critério pelo qual se deva dar a cada um o que
lhe é legitimamente seu.28 São os seguintes os critérios de que fala Perelman:
1) a cada um a mesma coisa; 2) a cada um segundo seus méritos; 3) a cada um
segundo suas obras; 4) a cada um segundo suas necessidades; 5) a cada um se-
gundo sua posição; e 6) a cada um segundo o que a lei lhe atribui. Não iremos
entrar aqui no debate acerca de cada um dos critérios e, portanto, nos sentidos
possíveis e diversos da fórmula de Ulpiano, mas é fato que tal formulação per-
mitiu, e muito, o debate acerca da justiça, fortalecendo, assim, a ideia jusnatura-
lista. Ao lado do preceito suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), Ul-
piano forneceu outros dois preceitos para o Direito Natural: honeste vivere (viver
honestamente), alterum non laedere (não prejudicar ninguém). A perspectiva
da vida honesta parece dialogar tanto com os fundamentos do próprio direito,
no sentido da obediência à ordem legal, desde que o direito positivo não viole,
é claro, os próprios preceitos do direito natural, como com os fundamentos
da ordem social, no sentido da conformidade com os valores compartilhados
pela comunidade política. Viver honestamente, como sinônimo de probidade e
honradez, produz uma retidão jurídica e social, mas não enfrenta a questão da
relação com o outro; isso irá acontecer com maior eloquência no preceito alte-
rum non laedere. Não prejudicar ninguém significa que as inevitáveis afetações
produzidas por cada um não devem perturbar ou atrapalhar a vida de outrem,
da mesma forma, também não devem depreciar ou desvalorizar outros modos
de vida. Aqui estamos claramente situados diante do empoderamento moral
realizado pelo direito natural.
O debate em torno dos preceitos acerca do direito natural é, de alguma
maneira, incrementado com a cristandade medieval, especialmente por meio da
pena de Santo Tomás de Aquino. Nesse momento a perspectiva cosmológica
cede lugar a um outro entendimento de natureza teológica. Isso fica particu-
larmente claro quando Santo Tomás afirma que toda comunidade do universo

28 Cf. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 9-12.

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Direito e Emancipação – Volume I

é governada pela razão divina.29 Esta razão divina ou sabedoria divina é o que
este filósofo denomina de Lei Eterna, sendo essa uma diretiva de todos os atos
e movimentos do universo.30 Essa presença divina no universo é a fonte última
de toda justiça e direito, mesmo reconhecendo que ambos – justiça e direito –
possam ter uma conotação histórica. Contudo, as obras humanas acerca da
justiça e do direito apenas podem levar tal título – justas e jurídicas – na medida
em que estejam adequadas ao direito natural e aos preceitos da lei natural. Isso
Santo Tomás afirma literalmente: Portanto se a lei escrita contém algo contrário
ao direito natural, é injusta, e portanto não tem força obrigatória... Logo tais leis
escritas nem sequer podem chamar-se leis, mas antes, corrupções da lei...31 Embora
Santo Tomás coloque como fundamento último da justiça a razão divina – Lei
Eterna –32, seu maior esforço é deixar claro que a justiça é sempre um fenômeno
social e bilateral. Por isso afirma como sendo a finalidade maior da justiça a
ordenação da sociedade política, isto é, ordenação no que se refere aos outros.33
Por isso mesmo o elemento central das relações justas é a igualdade34, embora a
igualdade não implique sempre e necessariamente reciprocidade ou linearidade.
Claro que pode se dar nestes termos, mas do ponto de vista político ela é mais
que isso, podendo ser também proporcionalidade ou aproximações. Essa ideia
remete aos conceitos de justiça distributiva e justiça corretiva (comutativa ou
judicial) que já estava presente na filosofia política desde Aristóteles35 e que
Santo Tomás elabora ainda mais no seu Tratado sobre a Justiça.36
Um dos aspectos mais importantes da contribuição de Santo Tomás de
Aquino para a doutrina do direito natural foi seu conceito de Lei Natural. Isso
porque ele acrescenta novos preceitos em relação àqueles já existentes desde
a fórmula de Ulpiano (dar a cada um o que é seu, viver honestamente e não
prejudicar ninguém). Santo Tomás destaca o fato de que os preceitos da Lei
Natural dizem respeito à razão prática, aliás, são a base da sabedoria prática

29 AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 43. Questão 91, artigo I.
30 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., p. 61. Questão 93, artigo I.
31 AQUINO, Santo Tomás. Tratado da Justiça. Porto: Resjurídica, [s.d.], p. 59. Questão 60, artigo V.
32 AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 70-72. Questão 93, artigo VI.
33 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., p. 6. Questão 57, artigo I.
34 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., , p. 19. Questão 58, artigo II.
35 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 323-329. 1130b-1134a.
36 AQUINO, Santo Tomás. Tratado da Justiça. Porto: Resjurídica, [s.d.], pp. 63 e ss. Questão 61 a 67.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

e, nesse sentido, até mesmo intuitivos.37 Como pertencentes à ordem da razão


prática, os preceitos da Lei Natural devem orientar as decisões – vontades –
humanas para que sejam feitas as melhores escolhas em relação ao domínio da
vida política ou social (justiça como relação com o outro). De efeito, o preceito
primeiro da Lei Natural é definido como: o bem deve ser praticado e procurado e
o mal deve ser evitado ou faz o bem e evita o mal.38 Enquanto o mal é tudo aquilo
que afasta do bem, a noção de bem deve ser entendida como o bem do homem
em si mesmo e na vida social - bem comum. Santo Tomás apresenta o bem em
três instâncias ou momentos fundamentais: 1) como o movimento de preserva-
ção de si, isto é, de autodefesa e conservação da própria vida, típico de qualquer
ser vivo; 2) como a constituição de laços primários que permitam a segurança
e o desenvolvimento comunitário básico, típico de todos os animais; e 3) como
a inclinação para o conhecimento e a vida social por meio de instituições e
estruturas sociais complexas, típica dos seres humanos.39 De uma forma geral,
é possível sintetizar essa ideia de bem, que é a essência do preceito primeiro da
Lei Natural, como um ato ou uma atitude de conservação da existência, da
convivência e do conhecimento.40
Na filosofia tomista do direito, a fundamentação teológica última se mistu-
ra, em alguma medida, com a ideia de racionalidade, pois, segundo este filósofo,
revelação e razão (ou fé e capacidades intelectivas) não seriam antagônicas. O
papel da razão, na forma da sabedoria ou razão prática, fica especialmente claro
quando Santo Tomás fala sobre os preceitos derivados da Lei Natural. No artigo
V da Questão 94 da Suma Teológica, o autor ira debater se a Lei Natural pode
poderia ela mesma sofrer variações. Esta é uma questão especialmente impor-
tante, pois, conforme a tradição do paradigma jusnaturalista, é sabida a crença
de que os direitos naturais são imutáveis, uma vez que são naturais e não históri-
cos. Com relação a isso Santo Tomás oferece uma engenhosa resposta afirmando
que o preceito primeiro – faz o bem e evita o mal – da Lei da Natural é imutável.

37 Veja-se a eloquente frase de Santo Tomás: Os preceitos da lei da natureza estão para a razão prática do
mesmo modo que os princípios primeiros da demonstração estão para a razão especulativa: uns e outros são
princípios conhecidos por si mesmo. AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997,
p. 75. Questão 94, artigo II.
38 AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 76. Questão 94, artigo II.
39 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., p. 77. Questão 94, artigo II.
40 Cf. CUNHA, José Ricardo. Lei, Moral e Justiça em Santos Tomás de Aquino. In Anais de Filosofia –
Revista da Pós-Graduação da Universidade Federal de São João del-Rei. Julho de 2001, nº 8, pp. 18-19.

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Direito e Emancipação – Volume I

Mas que os preceitos derivados podem sofrer dois tipos de mutação: 1º) muta-
ção por adição, ou seja, podem preceitos derivados novos serem acrescentados
à Lei Natural, seja por uma razão divina, seja pela própria experiência humana;
2º) mutação por subtração, ou seja, quando a sabedoria prática apresenta boas
razões para que um preceito derivado não seja postulado como exigência jurí-
dica em função de circunstâncias especiais. Como exemplo, Santo Tomás fala
do preceito derivado da Lei Natural que diz que tudo aquilo que é tomado de
empréstimo deve ser devolvido, mas que por força de uma circunstância especial
detectada pela razão prática pode ser que tal preceito mude naquela situação de
modo que ele não possa ser racionalmente exigido sob tais condições.41
Uma forte mudança no cenário do direito natural acontece com o ad-
vento da modernidade, pois a fundamentação transcendente última própria
de um jusnaturalismo teológico cede espaço a um movimento de laicização do
direito onde a ordenação natural das coisas é vista de forma menos dependente
de um poder divino. Como consequência a razão se torna plenipotenciária na
compreensão do direito natural e há uma espécie de radicalização do direito na
razão individual, o que, ao contrário do que pode parecer, não implica nenhum
tipo de relativismo de tipo subjetivista. A base para a compreensão da univer-
salidade da razão individual já fora dada por Descates ao afirmar que por meio
da dúvida metódica e da evidência racional seria possível que cada indivíduo
chegasse à verdade universal. Certamente que a filosofia cartesiana influenciou
o pensamento jusnaturalista moderno, fazendo crer na existência de direitos
naturais evidentes à razão. Por exemplo, podemos indagar: onde está escrita
a lei que diz que as pessoas devem obedecer à lei? O dever de obediência à lei
é, nesse sentido, uma norma do direito natural que aparece inscrita em cada
razão individual, sendo, assim, universal. Ainda no campo da exemplificação,
nenhum jusnaturalista moderno se convenceria de que o dever de reparar os
danos causados a terceiros foi obra da imaginação legisladora. Longe disso, foi
apenas a compreensão de uma evidência racional da ordenação natural. Da
mesma forma, direitos fundamentais como a vida e a liberdade são compreen-
didos como direitos inatos às pessoas, o que seria, segundo este raciocínio, uma
conclusão lógica considerada a premissa da natureza humana.
Talvez a teoria moderna que revele com mais eloquência esta perspectiva
do direito natural seja a teoria do contrato social, presente especialmente na

41 AQUINO, Santo Tomás. Ob. Cit., p. 81. Questão 94, artigo IV.

17
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

pena de John Locke.42 Todos os contratualistas supõem a passagem de um esta-


do de natureza para um estado civil, ainda que tal suposição não se refira a um
momento histórico determinado e sim a uma explicação e justificação racional
da sociedade política e do governo civil. Sobre isso, eis as palavras de Locke:

Para bem compreender o poder político e derivá-lo de sua origem, deve-


mos considerar em que estado todos os homens se acham naturalmente,
sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e
regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, den-
tro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da
vontade de qualquer outro homem.43

Claro que o exercício desta liberdade é muito frágil porque suscetível tan-
to a ataques externos quanto a ataques internos à própria comunidade. Isso
implicaria que tanto para a autodefesa quanto para a manutenção da ordem a
imposição das leis naturais poderia ser feita diretamente por qualquer pessoa.44
Porém, tornar-se executor das leis naturais e castigar diretamente os ofensores,
além de buscar a reparação pelos danos sofridos, embora sejam direitos naturais,
estabelecem uma forma de poder que poderia instaurar um estado de inimizade
e destruição – estado de guerra. Daí Locke alega que o governo civil é o remédio
acertado para os inconvenientes do estado de natureza, os quais devem, com toda
certeza, ser grandes se os homens têm de ser juízes em causa própria...45 Portanto a
sociedade política e o governo civil são instituídos tendo como base justamente
a preservação dos direitos naturais que poderiam estar em risco no estado de
natureza. Trata-se, assim, de um pacto de consentimento e não de um pacto de
sujeição. As pessoas não abrem mão de todos os seus direitos para se sujeitarem
a um soberano, mas elas consentem em fazer um pacto político que atue na
preservação dos seus direitos naturais. O contrato social assegura a faculdade
da maioria de legislar e estabelecer regras – direito positivo – a serem impostas
por governantes legítimos e juízes naturais, mas desde que respeitem os direitos

42 O contrato social é uma ideia recorrente da filosofia do direito, filosofia política e filosofia moral da
modernidade e que de forma mais ou menos distinta aparece em trabalhos de filósofos modernos tão
diferentes entre si como Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant.
43 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 35.
44 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 36-37.
45 LOCKE, John. Ob. Cit., p. 38; p. 42.

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Direito e Emancipação – Volume I

naturais de todos os membros da sociedade política, uma vez que a garantia


destes direitos é o fim último da própria sociedade política e do governo.
Em seu II Tratado Sobre o Governo Civil, Locke fala muito da necessidade
de garantia e preservação da propriedade46, mas por várias vezes ele revela que
esta é uma expressão que deve ser considerada de maneira ampla e envolve
bens, é claro, mas não apenas eles. Também inclui a propriedade de si mesmo,
tanto no sentido corpóreo quanto espiritual. Veja-se a eloquente passagem:

O homem, nascendo conforme provamos, com direito a perfeita liberda-


de e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natu-
reza, por igual a qualquer outro homem ou grupo de homens do mundo,
tem, por natureza, o poder não só de preservar a sua propriedade – isto
é, a vida, a liberdade e os bens – contra os danos e ataques de outros
homens, mas também de julgar e castigar as infrações dessa lei por outros
conforme estiver persuadido da gravidade da sua ofensa... (grifo nosso)47

Com efeito, a instituição da sociedade política por meio do contrato social,


é uma ideia que depende previamente na crença no direito natural, ao menos
da forma como Locke estabelece. Isso porque é a existência da lei natural, que
assegura direitos naturais fundamentais como a vida, a liberdade e a propriedade,
que mantém estável a sociedade política e coloca os limites para a vontade do
legislador e do soberano. Da mesma forma a lei natural funciona como um filtro
hermenêutico para que os juízes interpretem e apliquem a lei positiva. A questão
colocada é que no pacto de consentimento proposto por Locke os indivíduos
renunciam, basicamente ao direito de aplicarem diretamente as leis e punições
aos infratores, mas preservam os demais direitos naturais. Locke está, em última
instância, afirmando que seria inviável o exercício dos direitos naturais fora de
um estado de direito. Essa é, portanto, a natureza e a essência, segundo Locke, da

46 O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob
governo, é a preservação da propriedade. LOCKE, John. Ob. Cit., p. 82
47 LOCKE, John. Ob. Cit., p. 67. Veja-se o texto no original em inglês de modo que não reste dúvida da
fidelidade às palavras do autor: Man being born, as has been proved, with a title to perfect freedom and
an uncontrolled enjoyment of all the rights and privileges of the law of Nature, equally with any other man,
or number of men in the world, hath by nature a power not only to preserve his property – that is, his life,
liberty and estate –, against the injuries and attempts of other men, but to judge of and punish the breaches
of that law in others, as he is persuaded the offence deserves… LOCKE, John. The Second Treatise of Civil
Government. University of Adelaide Library. Web edition published by Books@Adelaide. The text for
this edition is derived from the sixth edition of 1764. Chapter VII, paragraph 88.

19
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

sociedade política. Por isso mesmo o autor afirma que num estado de natureza a
garantia dos direitos naturais é inviável em função de fatores como: 1) ausência de
leis positivas firmadas, conhecidas e aquiescidas, estabelecendo tais leis padrões
previsíveis para a conduta individual e para a resolução de controvérsias; 2) não
existência de juízes naturais e imparciais para o julgamento de litígios de acordo
com a lei estabelecida, sem se deixarem levar por paixões ou vinganças; 3) a
ausência de um aparato burocrático que sustente as decisões legais e judiciais, ge-
rando uma coerção saudável que induza as pessoas ao cumprimento das regras.48
Locke está antecipando uma questão fundamental para o jusnaturalismo contem-
porâneo que é a moralidade interna do estado de direito, isto é, que a sociedade
política apenas se legitima como jurídica na medida em que obedece aos critérios
morais do estado de direito, sendo tais critérios uma exigência do direito natural.49
Para Locke é muito claro que o governo da sociedade política não pode ser
pior para as pessoas do que o estado de natureza. É exatamente por isso que o
jusnaturalismo do contratualismo lockeano ainda guarda uma peça fundamen-
tal: o direito de resistência. Veja-se a indagação formulada pelo autor:

O objetivo do governo é o bem dos homens. E o que é melhor para eles?


Ficar o povo exposto sempre à vontade ilimitada da tirania, ou os gover-
nantes terem algumas vezes de sofrer oposição quando exorbitarem no
uso do poder e o empreguem para a destruição e não para a preservação
das propriedades do povo?50

Segundo Locke, um governo que não assegura os direitos naturais do povo


pode ser dissolvido e isso está longe de caracterizar uma violência ao estado de
direito, antes, refere-se à sua própria proteção contra o que seria uma corrupção
imoral de sua natureza. Esse direito de resistência se coloca não apenas em face
do governo, mas até mesmo em relação ao sumo poder de uma comunidade
política que é, segundo Locke, o Legislativo: ...cabe ainda ao povo um poder
supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age
contrariamente ao encargo que lhe confiaram.51 O direito de resistência é uma

48 LOCKE, John. Ob. Cit., p. 82.


49 Cf. FULLER, Lon. The Morality of Law. New Haven: Yale University Press, 1969, pp. 96 e ss. FINNIS,
John. Lei Natural e Direitos Naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, pp. 264-269.
50 LOCKE, John. Ob. Cit., p. 124.
51 LOCKE, John. Ob. Cit., p. 93.

20
Direito e Emancipação – Volume I

espécie de direito natural de ação política ou de legítima defesa em face de um


poder político que não respeita os preceitos fundamentais do estado de direito e
da lei natural. Trata-se de defender a natureza humana em si diante da afronta
institucional que decorre da barbárie política. Num eloquente trecho do II
Tratado do Governo Civil, o filósofo assim argumenta:

...porque não tendo qualquer homem ou sociedade de homens o poder de


renunciar à própria preservação, ou, consequentemente, os meios de fa-
zê-lo, a favor da vontade absoluta e domínio arbitrário de outrem, sempre
que alguém experimente trazê-los a semelhante situação de escravidão,
terão sempre o direito de preservar o que não tinham o poder de alienar,
e de livrar-se dos que invadem esta lei fundamental, sagrada e inalterável
da própria preservação em virtude da qual entraram em sociedade.52

Saindo da concepção específica do jusnaturalismo moderno, visto a par-


tir da concepção contratualista de Locke, para fazer uma breve recapitulação,
temos, fundamentalmente, três grandes correntes dentro do paradigma do jus-
naturalista: a) um direito natural cosmológico, b) um direito natural teológico
e c) um direito natural racionalista (também chamado de antropológico). Evi-
dentemente que a razão é um aspecto presente em todas as correntes uma vez
que uma das características do jusnaturalismo é que se trata de um conjunto
de direitos acessíveis à razão. Mas a razão como radicalização do racionalismo
individual é característica do jusnaturalismo moderno.
Até aqui foi apresentado de maneira didática, embora sintetizada, o pa-
radigma do direito natural. Mas é preciso fazer a crítica específica a qual nos
propusemos, isto é, em relação à questão da obliteração do sujeito. Teria havido
o obscurecimento do sujeito no paradigma do direito natural? Isso é do que
trataremos na sessão seguinte.

1.1 O Direito Natural e a obliteração do sujeito


Inicialmente é preciso registrar que o paradigma do direito natural é, pro-
vavelmente, o mais respeitável e desafiador de todos os paradigmas jurídicos
se levarmos em consideração sua longevidade como paradigma e sua extensa

52 LOCKE, John. Idem, ibidem.

21
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

influência por todo o mundo. Claro que ele se encontra hoje bastante enfraque-
cido, mas não o suficiente para ter desaparecido. Mas essa respeitabilidade não
o torna imune a uma série de críticas, sob diferentes perspectivas, inclusive do
ponto de vista de uma abordagem pós-normativa baseada numa teoria crítica
do direito como esta que pretendemos fazer.
Como foi visto, a principal característica do direito natural é que este é
conformado por um conjunto de valores, princípios e regras que são logicamente
anteriores e moralmente superiores, o que garante a precedência de seus pre-
ceitos sobre costumes sociais e normas estatais. Na verdade, os jusnaturalistas
sustentam uma espécie de papel pedagógico do direito natural onde caberia a
este orientar legisladores e juízes para que as normas do direito positivo estejam
sempre de acordo com aquelas do direito natural. A crítica que será aqui apre-
sentada levará em consideração estas duas teses centrais do jusnaturalismo: a
da anterioridade lógica e a da superioridade ética. A primeira nos remete a uma
questão epistemológica, a segunda a uma questão moral. Em geral, o enfoque
que une as duas críticas – epistemológica e moral – é o da metafísica ou, melhor
dizendo, da crítica a uma metafísica jurídica que retira do direito sua concretude
histórica, sua própria corporeidade, isto é, aparta da própria experiência jurídica
os sujeitos que conformam o direito e que são também conformados por ele.
Aliás, esta crítica aparece claramente formulada por Guido Fassó: apenas se des-
vinculado da ideia de um direito natural metafísico, extra-histórico, eterno e imutável,
o jusnaturalismo ainda pode ter um lugar na cultura jurídico-política hodierna.53
Como assinalou John Finnis em seu texto Natural Law Theories54 a ques-
tão central do paradigma jusnaturalista é saber como e quais seriam as razões
para agir que o direito poderia oferecer para as pessoas em geral e de que ma-
neira estas razões poderiam ser transformadas em atos de autoridade que in-
fluenciassem os processos sociais de tomada de decisões. Não será percorrido
aqui o mesmo itinerário de reflexão proposto por Finnis, mas o seu ponto de
partida nos ajuda em nossa crítica. Isso porque a tese da anterioridade lógica
do direito natural, em alguma medida, exonera a autoridade política do estado
como sustentação institucional para o cumprimento da norma, isto é, dos pre-

53 FASSO, Guido. Jusnaturalismo. In Dicionário de Política. Brasília: EdUnb, 1995, p. 660.


54 FINNIS, John, Natural Law Theories, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2015
Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/win2015/entries/
natural-law-theories/>.

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Direito e Emancipação – Volume I

ceitos da lei natural. Dessa forma, é preciso apostar no conceito de crenças bá-
sicas como forma de validação e produção de eficácia em relação às normas do
direito natural. Isso se enquadra, portanto, na perspectiva do fundacionalismo
ou fundacionismo epistêmico.
Fundacionalismo sugere a ideia de fundamentos para o conhecimento e
se apresenta como uma perspectiva epistemológica que envolve dois padrões,
ou níveis, de crenças para a justificação epistemológica do conhecimento: as
crenças não-básicas e as crenças básicas. As crenças não-básicas são uma res-
posta epistemológica provisória que damos diante das coisas e questões mais
elementares pelas quais somos afetados; porém resta um problema: como jus-
tificar tais crenças não-básicas? Isso implicaria um retorno ad infinitum a uma
cadeia de crenças anteriores que funcionariam como justificações sucessivas
para as crenças não-básicas. Então o fundacionismo propõe que se abrevie esse
caminho por meio da afirmação de crenças básicas que justificariam as crenças
não-básicas. Assim funcionam, por exemplo, os axiomas matemáticos, a lógica
formal e as crenças religiosas. O fundacionismo leva às últimas consequências a
ideia de intuição, fazendo que todas as crenças de um sistema sejam sustentadas
por outras que não são demonstradas, mas que são consideradas elementares
dentro de uma dada teoria, estas crenças elementares são exatamente as crenças
básicas. Duvidar delas corresponderia, segundo os fundacionalistas, a um certo
ceticismo diante da possibilidade do conhecimento e da verdade.
Como foi dito, o fundacionismo opera em diferentes campos e a lógica for-
mal talvez seja aquele por meio da qual todos nos damos conta dessa experiên-
cia. Quem já não ouviu proposições lógicas como “o todo é maior que as partes”
ou “duas coisas iguais a uma terceira, são iguais entre si”. Estamos acostumados
a tomar estas proposições como verdadeiras sem precisar debatê-las porque elas
são crenças básicas que temos diante do mundo. Simon Blackburn define fun-
dacionalismo como o ponto de vista epistemológico segundo o qual o conhecimento
deve ser concebido como uma estrutura que se ergue a partir de fundamentos certos e
seguros.55 Pois bem, a questão que se coloca é se as razões para agir apresentadas
pelo jusnaturalismo poderiam ser adequadamente justificadas apoiando-se em
crenças básicas. Seriam tais crenças básicas fundamentos certos e seguros para
a produção de expectativas normativas e para as relações jurídicas? O conceito
de crença supõe que oferecemos nosso assentimento a uma determinada propo-

55 BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

sição. No caso do direito a maior parte das proposições possui caráter norma-
tivo, de tal modo que este assentimento implica não apenas numa expectativa
de encontro com a verdade, mas, também, no reconhecimento da imposição de
condutas obrigatórias na vida social ou de um grupo específico de faculdades
determinadas. Em outras palavras, damos nosso assentimento a certos direitos
objetivos e direitos subjetivos, estabelecendo assim, nossas expectativas nor-
mativas. Mas não seria exigir demais do cidadão comum que fundamentasse
todas as suas expectativas normativas numa sucessão de elos de justificação de
validade da norma onde o último elo não é apenas um elo mas uma verdade
justificadora básica e nesse sentido ela mesma não justificada? É importante
lembrar que se depositarmos nosso assentimento em crenças básicas acerca do
direito e tais crenças forem falíveis estaremos colocando em risco todo o sistema
jurídico e as formas mais primárias de relação jurídica, afetando toda a socieda-
de em seus diferentes setores.
Como se não bastasse o peso da insegurança resultante da impossibilidade
de se justificar as crenças básicas, peso especialmente grande quando falamos de
regulação jurídica, a tese da anterioridade lógica do direito natural, ao repousar
sobre o fundacionismo epistêmico coloca o sujeito na posição da crença passiva.
Ele é visto como um repositório estático de crenças básicas do qual se espera
apenas o consentimento. O fundacionismo não permite uma atitude proativa
do sujeito a não ser aquela de depositar todas as suas confianças nas crenças
básicas. Não se pretende aqui uma desaprovação ilimitada do fundacionalismo,
talvez esse seja um caminho aceitável para certas áreas de conhecimento ou
mesmo para o sentimento religioso, mas parece ser inaceitável como fundamen-
to epistemológico para o direito, especialmente se esperamos das pessoas algo
mais do que crença passiva. É importante ter em mente que ao tratarmos de re-
lações jurídicas estamos falando dos limites e possibilidades do estabelecimento
de determinadas relações cooperativas bem como da composição de diferentes
tipos de conflitos. Não parece adequado, especialmente nestas circunstâncias,
que a única participação do sujeito nesse processo seja o assentimento a crenças
jurídicas básicas. Aqui estamos diante de uma obliteração do sujeito que é con-
finado a um sistema de crenças onde suas manifestações mais criativas acerca
da vida social não necessariamente irão contar para a elaboração do imaginário
jurídico de uma sociedade. Isto porque todos os fundamentos do direito já estão
dados. Esse é o problema do paradigma jusnaturalista, seja na perspectiva cos-
mológica, teológica ou mesmo racionalista. São três metafísicas: da natureza,

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Direito e Emancipação – Volume I

da divindade e da razão. Todas elas se agigantam diante de homens e mulheres


exigindo credulidade plena e acabam por apequenar tais homens e mulheres
que se tornam reféns de leis naturais desde sempre existentes. O ser humano
merece mais do que ser um doador de assentimentos.
Um dos problemas das teorias que se baseiam no fundacionalismo epistê-
mico é que as crenças básicas superam em importância a experiência humana.
Elas se convertem em espécies de saberes absolutos que correm o sério risco
de tornarem míopes e não enxergarem a vida humana real, suas contradições
e seus diferentes processos de opressão e exploração. Basta lembrar que nem
mesmo a potência do jusnaturalismo ibérico no século XVI56 foi suficiente para
impedir a dizimação dos povos indígenas nas terras que ficaram conhecidas
como América Latina. Alguns poderiam dizer tratar-se a invasão e colonização
de um processo político e, por isso, não se poderia esperar que o direito natural
socorresse as populações indígenas. Esse argumento padece, antes de tudo, de
um falso dualismo entre direito e política como se fossem terrenos, de fato, iso-
lados um do outro. Na verdade, política e direito interagem reciprocamente ain-
da que não seja um convívio necessariamente fácil ou harmônico. Além disso,
era de se esperar que a pretensão de universalidade do direito natural fosse forte
o suficiente para estender sua eficácia sobre as pessoas do novo mundo. Mas é
exatamente aqui que reside o grande problema: os índios não foram considera-
dos pessoas, ao menos, tão pessoas quanto os europeus colonizadores. Mesmo
as vozes dissonantes da metrópole como António de Montesinos e Bartolomeu
de las Casas não foram suficientes para convencer o colonizador sobre a digni-
dade intrínseca dos povos indígenas. E se o direito natural não foi o causador
do massacre indígena, também não foi capaz de combatê-lo. Dentre as várias
razões que se poderia especular a esse respeito é possível dizer que essa curiosa
e estranha impotência do jusnaturalismo no caso do genocídio que fundou a
América Latina como América Latina deveu-se, precisamente, à incapacida-
de da metafísica jusnaturalista em lidar com o sujeito concreto, este que está
enraizado em sua própria história e que nem sempre é a história narrada pelas
forças dominantes da comunidade política. É essa ausência de historicidade
que dificulta, e muito, que dentro do paradigma do direito natural seja feita
uma abordagem “de baixo para cima” da realidade, como se o jusnaturalismo

56 Cf. HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. Sintra:
Publicações Europa-América, 1998, pp. 144-146.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

fosse uma espécie de saber absoluto que, como tal, possui graves dificuldades
para perceber a realidade e a própria experiência jurídica como produto de uma
práxis humana. Dessa dificuldade resulta uma irônica certeza: são os mais in-
justiçados que sentem a ausência da proteção jurídica. Mas é importante ser
notado que o exemplo do genocídio remete a um ponto fulcral: não se trata de
um sentimento particular de injustiça. Mas da injustiça social objetiva que se
instaura inicialmente com um ato de agressão ou negação da autonomia própria
do sujeito que lhe serve de fundamento para a sua práxis social.57 Como definiu
Cornelius Castoriadis, práxis é este fazer no qual o outro ou os outros são visados
como seres autônomos e considerados como o agente essencial do desenvolvimento
de sua própria autonomia.58 É preciso que todas as instituições sociais, incluindo
aí o direito, reconheçam os sujeitos concretos da injustiça social e as diferentes
modalidades de injustiça que sofrem para que possam, as instituições, atuarem
no sentido de resgatarem a autonomia violada de tais sujeitos a fim que eles
possam voltar à construção praxiológica de sua própria identidade.
Uma teoria jurídica que leve em conta e valorize o ser humano deve, de
alguma forma, reconhecer a radical historicidade de cada sujeito e da vida so-
cial como um todo e, principalmente, a imaginação criadora da qual pessoas e
povos são dotados.59 A temporalidade é uma dimensão fundamental do huma-
no exatamente porque é na história que se dá a irrupção da vida humana como
criação social. Mais do que assentir crenças básicas, o ser humano é capaz de
instituir a realidade como criação histórica, seja mantendo, seja mudando a si
mesmo e a seu mundo. Nesse sentido, o tempo é a possibilidade da emergên-
cia de uma radical singularidade resultante da simples presença do sujeito no
mundo.60 Portanto, a teoria jurídica que olha para cima como se o tempo fosse
uma instauração natural – kronos – se torna incapaz de perceber o tempo como
a arena onde emergem as singularidades e diferenças resultantes dos processos
sociais e históricos de criação humana e, também, onde transcorrem situações

57 Como foi esclarecido na introdução, é importante que a leitora e o leitor tenham em mente que toda a
crítica apresentada no livro terá como base a ideia de injustiça social e nunca o sentimento particular
de injustiça. A violência que atinge o sujeito dessa injustiça social pode ter origem tento econômica,
como política ou cultural.
58 CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 94.
59 CASTORIADIS, Cornelius. Ob. Cit., p. 176.
60 CASTORIADIS, Cornelius. Ob. Cit., pp. 231-239.

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Direito e Emancipação – Volume I

de opressões que são igualmente singulares. O tempo possui, portanto, uma


dimensão espacial já que ele somente ganha sentido como o lugar onde trans-
corre o fazer humano. Por isso ele não pode ser procurado olhando-se para o
alto. Ele deve ser encontrado olhando-se para baixo, para as práticas da vida
real que encarnam os feitos e os desfeitos da criação social. Um grave problema
da anterioridade lógica do direito natural é que não consegue perceber o tempo
como kairos, isto é, como oportunidade de um fazer humano que não se explica
por subsunção a uma ordem natural e sim como práxis criadora. O tempo do
sujeito da injustiça social, o tempo do oprimido, nunca é kronos porque o sofri-
mento instaura uma significação que não se pode marcar nos ponteiros de um
relógio ou mesmo num calendário. O tempo do sofrimento é sempre kairos por-
que está permanentemente em busca da oportunidade de um ato criativo que
lhe devolva a autonomia e a possibilidade de (re)instaurar-se como criação de si
mesmo, ainda que sob o luto da perda. Veja-se o exemplo de todos aqueles que
vivem sob o estigma de uma sexualidade marginalizada. Muitos jusnaturalistas
diriam que as práticas sexuais e afetivas de lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais e transgêneros não se enquadram ou mesmo que violam a natureza
das coisas ou a vontade da divindade ou, ainda, a razão humana. Como resul-
tado desse tipo de concepção sequestra-se a autonomia destas pessoas em nome
de uma perspectiva metafísica que não consegue perceber no tempo a irrupção
de um momento de criação singular. A metafísica jurídica não dá conta destes
casos porque possui uma extraordinária dificuldade de compreender o lugar do
oprimido uma vez que imagina que os sujeitos são uma criação do tempo (kro-
nos) quando, na realidade, o tempo é uma criação dos sujeitos (kairos).
Feitas estas considerações críticas a respeito da tese da anterioridade ló-
gica do direito natural, é preciso agora enfrentar a tese da superioridade ética.
Como visto anteriormente, a ideia básica desta tese é de que os normas do
direito natural são moralmente superiores ao direito positivo, ao estado e à
própria sociedade política pois sempre que uma norma de conduta ou organi-
zação social estiver em rota de colisão com um princípio ou norma do direito
natural é esse que deve prevalecer por corresponder à ideia máxima de justiça.
É importante que se diga que criticar a tese da superioridade ética do direi-
to natural não implica a renúncia ao desejo de justiça. Muito pelo contrário,
quando se discute a questão do sujeito da injustiça, isso não é feito apenas para
se descrever um inventário de injustiças sociais que acontecem no mundo con-
temporâneo. Todo grito de sofrimento decorrente da injustiça é também um

27
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

reclame pela justiça. Esse reclame se dirige a todas instituições, inclusive ao


direito, embora não se limite a ele.
A tese da superioridade ética do direito natural supõe uma ordem natural
que se institui não apenas fisicamente sobre as pessoas, mas também moral-
mente, como se a ontologia do real expressasse também uma ordem moral ine-
vitável. Aqui nos reencontramos com o problema da ausência de historicidade.
É muito difícil conceber uma ordem moral absoluta capaz de oferecer a resposta
sempre correta para injustiças históricas que se desenham e redesenham de
diferentes formas e sobre diferentes sujeitos. De toda a sorte, especialmente a
maneira como a ontologia clássica dos gregos entendia o cosmo, sugere mes-
mo a crença de que o mundo com tudo aquilo que lhe faz parte, animado ou
inanimado, possui um propósito, telos ou fim.61 Talvez por isso Aristóteles tenha
admitido que a justiça política pode ser tanto natural quanto legal, até porque
aquilo que é justo por convenção e muda conforme o tempo e o espaço deve,
mesmo assim, se adequar à lei comum, isto é, à lei natural; exatamente como a
matéria, que é singularidade, apenas ganha universalidade por meio da forma.
Essa hierarquia natural das coisas une tudo o que há no cosmo em direção a
um fim, isto é, a um movimento de aprimoramento e aperfeiçoamento. Como
afirmam Douzinas e Gearey:

A natureza teleológica do cosmo significa que todas as suas entidades


têm um fim e um propósito únicos. Mas estes propósitos não existem
isoladamente; eles estão sempre combinados com o propósito de outras
coisas e seres. A finalidade das pessoas poderia ser buscada e alcançada
politicamente, na cidade – polis. Nesse sentido, uma vida boa é vivida
de acordo com a natureza e não há diferença entre o que é e o que deve
ser. Essa teleologia natural, com os seus propósitos naturais, fornece uma
forte ética de virtude e valor. 62

Portanto, segundo esta cosmologia clássica, os direitos naturais contri-


buem para essa perfeição humana e as injustiças são tudo aquilo que retiram a
pessoa desse caminho virtuoso. Os valores mais elevados da vida política, tais

61 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 83.
62 Idem, ibidem.

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Direito e Emancipação – Volume I

como a amizade e a cidadania, eram espécies de direitos que cumpriam o desi-


derato da lei natural de conduzir as pessoas à virtude de uma vida bem vivida.
O problema que se coloca aqui fica evidenciado quando levantamos a pos-
sibilidade de que a ideia de bem não seja produto de uma ordem natural refleti-
da na vida política e social, mas ao contrário, seja a vida política e social com a
sua dinâmica e seus contratempos que produza uma ideia de bem e as virtudes
que lhe são correlatas. Da mesma forma é essa vida social que traça propósitos
e finalidades que pessoas ou grupos de pessoas possam abraçar como sendo dig-
nificantes de uma forma específica de bem viver. Além disso, podemos até mes-
mo considerar a hipótese de que dentro de uma mesma comunidade política
existam diferentes concepções de bem, aglutinando valores específicos apenas
para os grupos que compartilhem daquela mesma concepção. Nesse caso, como
poderia uma ordem moral absoluta fornecer as respostas adequadas e justas
para sujeitos que não apenas vivem situações singulares mas comungam de di-
ferentes concepções do que seja uma vida boa e virtuosa? A objeção aqui levan-
tada possui um duplo aspecto: de um lado contrapõe à ordem moral natural a
capacidade sócio-histórica de sujeitos e grupos sociais produzirem suas próprias
concepções de bem e virtude. Veja-se que uma das críticas mais poderosas, já
desferida contra o direito natural, é a de Pietro Piovani e que pode ser sintetiza-
da na ideia de que um dos aspectos fundamentais do projeto moderno de eman-
cipação era, exatamente, a possibilidade de uma ética laica e autônoma onde a
orientação moral e seus valores correlatos poderiam ser construídos livremente
no mundo social, independentemente da natureza.63 Por um outro lado, a obje-
ção que se levanta diz respeito ao pluralismo típico de sociedades democráticas,
isto é, ao fato de que numa sociedade de pessoas livres e iguais é possível que
existam e convivam diferentes concepções de bem, todas igualmente razoáveis,
de modo que não seja possível dizer que uma delas seja moralmente superior
que a outra. Como defender critérios de bem e de virtude naturais e anistóricos
diante de uma sociedade e instituições culturais e históricas?
Essa questão do bem em sociedades plurais foi eloquentemente levantada
por John Rawls desde o seu livro Uma Teoria da Justiça em 1971. Rawls define
o bem de forma não metafísica dando a ele uma dimensão mais funcional.64
Sustenta que o bem se conecta com os planos de vida que pessoas racionais

63 PIOVANI, Pietro. Giusnaturalismo ed Etica Moderna. Napoli: Liguori Editore, 2000.


64 Cf. RAWLS, John, A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 2005, pp. 399-404.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

escolhem tendo em vista a realização de seus objetivos e ideais de uma vida boa.
Nesse sentido, aquilo que podemos chamar de bens humanos correspondem a
atividades e metas que traduzem valores assim reconhecidos por aquela comu-
nidade como sendo importantes para todos.65 Assim, as virtudes sempre estão
ligadas às finalidades de uma vida socialmente aceita e tudo isso decorre de um
intenso processo social de vivências e de escolhas e não de uma ordem natural.
Claro que o argumento dos jusnaturalistas de que a ordem natural levaria ao re-
conhecimento de direitos naturais, tais como direito à alimentação, à luz do sol
ou à vida, é um argumento poderoso. Porém, quando entendemos que o bem é
um produto social-histórico, a conclusão é de que estes direitos são assim consi-
derados, como direitos subjetivos, porque e na medida em que são fundamentais
para a realização de projetos de vida específicos que são considerados impor-
tantes para determinadas pessoas e/ou grupos sociais e são socialmente aceitos.
A diferença deste argumento em relação àquele jusnaturalista, é que este leva
em consideração a atividade humana, seja como produtora de concepções de
bem, seja como produtora de direitos e senso de justiça. Aqui o sujeito surge
como protagonista, ou seja, como aquele que é sujeito de (socialmente ativo)
e não aquele que está sujeito a (naturalmente passivo). Quando submetemos o
sujeito à ordem natural, não há o que se debater, apenas vislumbramos seu lugar
natural. Mas quando entendemos o sujeito como produtor de sua própria ordem
social, isso abre espaço, aumenta a margem de liberdade, para debatermos seu
lugar no mundo. Um exemplo histórico básico é a luta contra a escravidão. Há
autores jusnaturalistas que colocam a relação entre senhor e servo como se fosse
uma relação tão natural quanto a de pai e filho. Evidentemente, parece ser pou-
co provável que um jusnaturalista, ou qualquer um que seja, defenda a escravi-
dão como uma relação natural que deriva da natureza das coisas. Mas se essa
ideia já apareceu na bibliografia jusnaturalista é por conta de uma concepção
organicista de sociedade que prevê lugares naturais para as pessoas.66 Voltando
ao exemplo da luta contra as diferentes formas de escravidão, ao entendermos o
bem e a justiça não como uma ordem natural, mas como uma produção social
e humana, podemos afirmar que impedir ou dificultar de alguma forma que
determinadas pessoas e grupos sociais possam construir suas concepções de

65 RAWLS, John. Ob. Cit., pp. 425-426.


66 Claro que esse tipo de raciocínio – o organicismo – também pode aparecer na pena de sociólogos
positivistas, como Augusto Conte, mas já são outros os fundamentos que sustentam esta posição.

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Direito e Emancipação – Volume I

bem e seus planos de uma vida boa já consiste numa forma de injustiça que aco-
mete uma infinidade de pessoas ao redor do mundo, por diferentes razões. São
inúmeras as pessoas que não possuem as condições materiais básicas para uma
existência digna e, por isso, dedicam-se às ações voltadas para a sobrevivência,
sendo, assim, privadas da possibilidade de definirem livremente seu projeto de
uma vida boa. Em outros casos, pessoas são discriminadas, perseguidas e ex-
cluídas em função da intolerância e, como resultado, não conseguem colocar
em prática, ao menos de forma livre e segura, suas concepções de bem e seus
projetos de uma vida boa. São todas vítimas de uma grave injustiça social e o
direito deve ser capaz de constatar estas pessoas não apenas na violência que
sofrem, mas, também, nas diferentes formas de resistência e tentativas de supe-
ração da injustiça que são levadas a cabo por tais pessoas. Para isso, não se pode
esperar uma visão mais arguta e sensível olhando-se para uma ordem natural.
É necessário olhar para a história e para a realidade social, mais do que isso, é
preciso desenvolver uma capacidade pessoal e institucional de ouvir a narrativa
e o testemunho direto daqueles são as vítimas da injustiça social.
É claro que os apelos que jusnaturalistas como Cícero fazem à lei natural
como forma de resistência às tiranias são invocações convincentes. É conhecido
na literatura e na filosofia o caso de Antígona, alçada à condição de heroína na
trágica peça escrita por Sófocles. Num famoso trecho da peça, quando Creonte,
seu algoz, pergunta a Antígona por que ela transgrediu a lei da qual tinha abso-
luto conhecimento de sua existência, assim ela responde:

Não foi com certeza Zeus que a proclamou, nem a Justiça com trono
entre os deuses dos mortos as estabeleceu para os homens. Nem eu su-
punha que tuas ordens tivessem o poder de superar as leis não escritas,
perenes, dos deuses, pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são
sempre vivas, nem se sabe quando surgiram.67

O argumento de Antígona é veemente e permanece eloquente até os dias


de hoje. Por isso que um autor crítico como Roberto Lyra Filho afirma que o
direito de resistência à tirania, o Direito à guerra de libertação nacional, o Direito à
guerra justa em geral, uma certa preocupação com a liberdade (não só a legalidade)
do poder têm nítido sabor jusnaturalista...68 O problema é que a invocação à jus-

67 SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2015, p. 34. 450-455.


68 LYRA FILHO, Roberto. O que é o direito?. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 42.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

tiça contra as injustiças acaba por depender do reconhecimento de um plano


ideal, afinal a tese da superioridade ética do direito natural depende, precisa-
mente, deste reconhecimento do plano ideal. Isso faz com que os olhos do juris-
ta se desvie do sujeito concreto da injustiça para o plano idealizado dos valores
morais. Veja-se, como exemplo, que na peça de Sófocles muito mais se discute
sobre a obrigatoriedade ou não de cumprimento do decreto de Creonte e da
legitimidade ou não da desobediência de Antígona do que sobre quem era An-
tígona. Quando se pretende lutar por justiça é imprescindível saber sobre o lugar
de sofrimento de quem é vítima da injustiça. No caso da peça uma abordagem
jurídica desde uma teoria crítica do direito importaria, antes de tudo, levantar
questões como: qual a posição das mulheres nessa sociedade e qual a posição
específica desta mulher – Antígona – na situação concreta? Por que este trata-
mento dado a ela e quais as diferentes formas de violência acarretadas? Por que
a forma de resistência escolhida por ela e que tipo de relações e oportunidades
esta resistência produz tanto para ela como para sociedade? A superioridade
moral de um preceito somente poderá assim ser considerada uma vez que leve
em posição o lugar de quem sofre as injustiças sociais, de quem injustamente
precisa carregar um fardo maior do que os outros nas relações sociais. Nesse
sentido, toda pretensão de superioridade moral é contingencial e não é natural,
pois depende da compreensão adequada do lugar de quem sofre a injustiça.
Questionamento semelhante se pode fazer em relação à formula do suum
cuique tribuere (dar a cada um o que lhe pertence), de Ulpiano. Foi comentado
antes sobre a multiplicidade dos sentidos que se atribuem ao conceito de justiça
a partir desta fórmula e do esforço que a filosofia moral e do direito fazem para
buscar os critérios que possam ajudar a definir o conceito de justiça. Recorren-
do ao trabalho de Chaïm Perelman, foram citados critérios tais como (dar a
cada um segundo): mérito, obra (esforço), necessidade, lei. Em outras palavras,
quando se trata da fórmula de Ulpiano, é comum a literatura procurar resposta
para o seu, isto é, qual o critério que define o que é legitimamente de cada um.
Novamente falta enfrentar a questão do quem, ou seja, quem é o sujeito da in-
justiça e que reclama tratamento justo? Quais são suas condições e como reage
à violência e ao próprio sofrimento? Talvez alguns queiram argumentar que a
questão do sujeito se trata de um problema não do direito, mas da sociologia, da
filosofia, da economia, da psicologia ou da antropologia. Mas qualquer teoria
que se propõe crítica não pode aceitar apaticamente a compartimentalização
da realidade como desculpa para o não enfrentamento de um problema grave

32
Direito e Emancipação – Volume I

e real, especialmente quando estamos diante de uma questão que não é ape-
nas epistemológica, aliás é, antes, uma questão ética. Toda a filosofia prática
deve avançar em conjunto para o enfrentamento das injustiças. Para tanto,
como falamos antes, não basta uma representação da violência, da dor ou do
sofrimento. É necessário que o direito, com seus institutos jurídicos e o sistema
de justiça, esteja devidamente preparado para ouvir a narrativa dos sujeitos da
injustiça. É preciso abrir espaço para que tais sujeitos se façam presentes na
narração de sua própria história, é preciso diminuir a re-presentação para abrir
mais oportunidades de presentação.
Talvez a abordagem mais interessante da superioridade ética do direito
natural tenha sido aquela feita por Santo Tomás de Aquino. Isso porque este
filósofo tentou conciliar o preceito moral superior e imutável da Lei Natural,
com outros preceitos contingentes e mutáveis, da própria Lei Natural. Como foi
visto anteriormente, o preceito primeiro e imutável da Lei Natural é faz o bem
e evita o mal. Sendo o mal tudo aquilo que afasta do bem, resta em tão o neces-
sário debate para a compreensão adequada do que seja o bem. Nesse momento,
seria possível recuperarmos todo o debate já feito acerca da historicidade de
bem, por oposição a uma concepção naturalística e cosmológica do bem, ou,
no caso de Santo Tomás, de uma concepção teológica do bem. Mas ainda que
Santo Tomás ampare o bem, em última instância, na Lei Eterna, sendo esta
o próprio plano da sabedoria divina e o fim e a causa de todas as ordenações
virtuosas, ele não limita suas explicações morais, jurídicas e políticas a este
plano superior. Ao contrário, ele procura na razão prática os elementos para o
discernimento da conduta correta ou justa. Daí a importância estratégica da
Lei Natural: se o preceito primeiro coloca a soberania absoluta da ideia de bem
como meio e fim do agir humano, os preceitos derivados podem ser modificados
conforme o lugar ou a situação do agente. Por isso ele afirma a insuficiência da
razão especulativa no domínio ético. Quando estamos diante da necessidade de
uma escolha racional ou de uma deliberação os princípios comuns da razão es-
peculativa não permitem perceber que o melhor resultado nem sempre é aquele
que preserva intacto o princípio da ação. As particularidades e vicissitudes de
um caso concreto e dos sujeitos nele envolvidos podem exigir escolhas que mu-
dam o princípio da ação exatamente para preservar o bem maior – fazer o bem
e evitar o mal.69 Esse raciocínio está muito próximo daquilo que a filosofia do

69 AQUINO, Santo Tomás. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 80-81. Questão 94, artigo IV.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

direito contemporânea convencionou chamar de lógica do razoável especialmen-


te a partir da contribuição de Luis Recasens Siches. Em sua obra Filosofia do
Direito este autor já alertava para o fato de que a lógica tradicional não é toda
a lógica, mas apenas parte dela.70 Seguindo, na mesma linha de inspiração de
Santo Tomás em relação à Lei Natural, Siches afirma que:

...o Direito, da mesma forma que toda obra humana, é circunstancial,


isto é, depende das circunstâncias, das condições da situação, das ne-
cessidades sentidas e dos efeitos que se tratam de produzir mediante esta
obra, por exemplo, mediante uma lei. O reino do humano não é uma
espécie de império celestial de valores puros, é o conjunto de esforços
realizados pelas pessoas no curso de sua história para plasmar concreta-
mente na vida a exigência daqueles valores.71

No caso do direito, esse esforço para realizar os valores implica, segundo


Siches, a compreensão exata das razões e propósitos da lei no momento de sua
aplicação. Isso é um trabalho não da lógica formal (ou razão especulativa, no
dizer de Santo Tomás), mas de uma lógica do humano, ou lógica do razoável.72
O argumento da mutabilidade dos preceitos derivados da Lei Natural de
Santo Tomás de Aquino é, portanto, extremamente eloquente. A crítica que
se deve fazer, nos dias de hoje, é que faltou a este filósofo desenvolver uma
teoria do sujeito de direito, ou do sujeito da injustiça, que justificasse essa mu-
tabilidade não apenas conforme a contingência do momento, mas conforme
a necessidade de se compreender adequadamente o lugar, ao mesmo tempo,
narrativo e testemunhal daquele que é vítima da injustiça social. Nas questões
70, 71 e 72 da Suma Teológica Santo Tomás irá discutir algumas formas de
injustiça, mas todas elas relativamente ao processo judicial. Ainda que impor-
tantes, as discussões levantadas nestas três questões da Suma não realizam o
aprofundamento necessário para que se leve em conta de forma sistemática
o lugar do sujeito oprimido e o seu papel na construção do sentido ético do
ordenamento jurídico. Contudo Santo Tomás oferece uma importante pista de
ação na Questão 79 da Suma:

70 RECASENS SICHES, Luis. Filosofía del Derecho. México: Porrua, 2008, p. 642.
71 RECASENS SICHES, Luis. Ob. Cit., p. 643.
72 RECASENS SICHES, Luis. Ob. Cit., p. 647.

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Direito e Emancipação – Volume I

Mas a justiça, considerada como virtude especial, olha o bem como de-
vido ao próximo; e segundo isto, à justiça especial corresponde o fazer o
bem como uma obrigação para com o próximo, e evitar o mal contrário,
ou seja, quanto é nocivo ao próximo. E à justiça geral corresponde o
buscar o bem comum da comunidade... Pois é próprio da justiça o esta-
belecer a igualdade em relação ao outro, como já se disse. Portanto o seu
papel consiste em constituir algo e, uma vez constituído, conservá-lo, em
tudo que se refere ao outro.73

A ideia de outro aqui é decisiva. Para que se realize a justiça na forma do


bem de um outro é necessário assegurar o espaço moral, político e jurídico desse
outro e, para tanto, oportunizar as condições necessárias para que este se faça
presente tanto socialmente como institucionalmente. Nesse sentido, a medida
da igualdade de que fala Santo Tomás deve começar por assegurar ao outro que
narra suas próprias circunstâncias o mesmo espaço deste que ouve, bem como
considerar as formas de resistência ao sofrimento como sendo tão importantes
quanto os valores e fins da ordem jurídica. Isso significa que a superioridade
ética não vai derivar, em última instância, de fundamentos transcendentais do
direito, mas da imanência do sujeito concreto, da dignidade da sua existência
e da prioridade do sofrimento que lhe é causado por um encargo excessivo
imposto por grupos dominantes da sociedade ou pela agressão aos seus direitos.
O respeito aos direitos é a parte mais importante do jusnaturalismo mo-
derno, especialmente na versão contratualista. Como vimos, Locke propõe um
pacto de consentimento onde indivíduos renunciam ao direito de aplicarem
diretamente as leis e punições aos infratores tendo em vista a preservação de
seus demais direitos, tido por ele como direitos naturais. Esse pacto é necessário
porque no estado de natureza não existem leis positivas firmadas, conhecidas e
aquiescidas pela maioria, também não existem juízes naturais e imparciais para
o julgamento de litígios de acordo com a lei estabelecida e um aparato buro-
crático que sustente as decisões legais e judiciais. Poderíamos dizer hoje que a
resposta que Locke propõe às insuficiências do estado de natureza é a institui-
ção de um estado de direito. Esse tema é especialmente caro a jusnaturalistas
contemporâneos que identificam a tese da superioridade ética do direito natu-
ral exatamente na moralidade interna do estado de direito. Em seu livro The
Morality of Law, Lon Fuller faz uma defesa eloquente dos princípios morais que

73 AQUINO, Santo Tomás. Tratado da Justiça. Porto: Resjurídica, [s.d.], p. 262. Questão 79, artigo I.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

sustentam o estado de direito, o que corresponderia, a seu ver, a uma sociedade


bem ordenada. Para aclarar seu ponto de vista, Fuller cita a filosofia grega como
referência para uma moralidade voltada para uma vida virtuosa, de excelên-
cia, que possibilite aspirações de grandes realizações humanas. Entretanto ele
lembra que para tornar possível tais aspirações é preciso um conjunto de regras
básicas que assegurem ao ser humano vivenciar o seu melhor. Afirma Fuller que
enquanto a moralidade de aspirações começa no topo das realizações humanas, a
moralidade dos deveres começa na base. Esta moralidade estabelece as regras básicas
sem as quais uma sociedade ordenada é impossível ou sem as quais uma sociedade
ordenada na direção de certos objetivos específicos deve falhar na sua realização.74
Fuller sustenta então no segundo capítulo do seu livro, oito princípios ou
deveres morais que caracterizam, em sua opinião, um estado de direito e que
devem ser obedecidos tanto pelas autoridades que produzem as normas do or-
denamento como por aqueles responsáveis pela sua aplicação. São os seguinte
os princípios ou deveres morais sustentados por Fuller: as leis devem ser 1)
gerais e aplicáveis a todos; 2) promulgadas e tornadas públicas; 3) prospectivas,
sendo o efeito retroativo uma severa exceção; 4) minimamente claras e inte-
ligíveis; 5) livres de contradições; 6) possíveis de serem obedecidas; que não
exijam o sobre-humano; 7) relativamente constantes, de modo que elas não
mudem a cada dia; e 8) aplicadas de forma a manter uma congruência com seu
significado mais óbvio.75 No início do terceiro capítulo, Fuller diz o seguinte:
prosseguindo com a exposição, então a primeira tarefa é relacionar o que eu chamei
de moralidade interna do direito com a antiga tradição da lei natural. Os princípios
expostos no meu segundo capítulo representam alguma variedade da lei natural? A
resposta é um enfático, embora específico, sim.76 Então o autor esclarece não se
tratar de nenhum tipo de direito natural divino, mas, ao contrário, de uma lei
natural humana, como as normas de uma atividade tão humana quanto uma
carpintaria. Trata-se da lei natural que orienta a produção das condições para
submeter a conduta humana ao governo das leis. Essas mesmas características
são repetidas por John Finnis ao tratar do funcionamento das leis num estado
de direito.77 A despeito dos fundamentos do estado de direito serem importan-

74 FULLER, Lon. The Morality of Law. New Haven: Yale University Press, 1969, pp. 5-6.
75 FULLER, Lon. Ob. Cit., pp. 46-91.
76 FULLER, Lon. Ob. Cit., p. 96.
77 FINNIS, John. Lei Natural e Direitos Naturais. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, pp. 264-269.

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Direito e Emancipação – Volume I

tes em qualquer sociedade democrática, eles não são suficientes para resolve-
rem alguns dos mais dramáticos problemas que vivem os sujeitos das injustiças
sociais. Isso porque o estado de direito resulta numa abordagem basicamente
formal. Locke se preocupava em fazer um pacto de consentimento onde os di-
reitos fossem preservados, contudo o reconhecimento jurídico de direitos não
significa que eles sejam realmente efetivados no mundo real, lá onde as pessoas
vivem e as contradições são produzidas. Muitas vezes, as condições materiais
se sobrepõem aos princípios do estado de direito ainda que eles sejam consi-
derados como leis naturais, como querem Fuller e Finnis. A cidadania que se
forja no âmbito da formalidade do estado de direito é apenas meia cidadania.
Diz respeito ao cidadão de papel, isto é, aquele que possui sua carteira de iden-
tidade, mas nem sempre é respeitado pela burocracia do estado; possui carteira
de trabalho, mas nem sempre encontra emprego digno; possui título de eleitor,
mas nem sempre é representado pelas forças políticas vitoriosas nas eleições;
possui carteira de motorista, mas nem sempre tem condições de comprar um
carro por mais popular que seja; possui certidão de nascimento, mas nem sem-
pre é tratado como ser humano. Não falta papel a este cidadão, faltam oportu-
nidades. Essa desigualdade de oportunidades engendra uma série de injustiças
sociais para as quais a cidadania de papel, meramente formal, não é capaz de
fornecer respostas viáveis.
Douzinas e Gearey ao criticarem os fundamentos do jusnaturalismo con-
tratualista lembram que o contratualismo trabalha com a suposição de que os
contratantes supõem que o acordo que eles fizeram inclui apenas as consequên-
cias razoáveis dos termos do contrato, mas que, na verdade, o sistema político
e econômico gerado a partir do próprio contrato produz, muitas vezes, conse-
quências não desejadas, mas estas consequências não podem ser formalmente
rejeitadas uma vez que decorrem dos termos iniciais do contrato.78 É como se
todos estivessem presos e submetidos aos axiomas do contrato social, mas estes
axiomas, embora sejam os mesmos para todos, geram resultados diferentes para
pessoas diferentes. Para alguns podem resultar privilégios, honra e riquezas, para
outros podem resultar encargos, desonra e pobreza. Ainda que se pretenda ar-
guir o argumento da liberdade e autodeterminação para justificar essa diferença
de resultados entre estes dois grupos de pessoas, isto é, que alguns fizeram por

78 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 96.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

merecer terem mais do que outros, é um fato inconteste que na maior parte das
sociedades muitas desigualdades são imerecidas. A brutal desigualdade de opor-
tunidades faz com que os resultados indesejados do contrato social determinem
a vida de alguns desde o nascimento. Essa crítica se revela mais contundente no
modo de produção capitalista, isso porque o capitalismo basicamente estrutura
a organização social do trabalho a partir de dois grupos: os que detêm a sua
própria força de trabalho e pela qual devem sobreviver; e os que detêm os meios
de produção e o próprio capital estrutural. Os primeiros são os trabalhadores
e os segundos são os capitalistas. No tocante a esta relação Marx produz uma
poderosa alegoria: Como capitalista, ele é apenas capital personificado. Sua alma é
a alma do capital. Mas o capital tem um único impulso vital, o impulso de se autova-
lorizar... O capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção
do trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga.79 Os princípios
formais do estado de direito não impedem uma consequência básica indesejada
pela maior parte das pessoas – trabalhadores – no âmbito da sociedade: a brutal
exploração da maioria esmagadora dos trabalhadores pelo capital, o que produz
diferentes formas de violência, opressão e privação. Mas não basta reconhecer
que existe tal processo de opressão. É preciso ouvir o oprimido e aprender com
ele sobre a realidade do mundo.

79 MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 307.

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2. O Paradigma do Positivismo Jurídico

Em um texto tornado clássico na filosofia do direito, Norberto Bobbio


afirma que o fato histórico que constitui a causa imediata do positivismo jurí-
dico está nas grandes codificações ocorridas em fins do século XVIII e início
do século XIX.80 Bobbio se refere à codificação prussiana levada a cabo por
Frederico II em 1797 e ao Código de Napoleão de 1804. A diferença entre os
dois projetos de codificação civil está no fato de que enquanto o código de
origem prussiana ainda conservava a velha distinção entre castas típica do
antigo regime, o código francês consagrava o princípio da igualdade formal,
isto é, de que todos os cidadãos são iguais perante a lei independentemente de
suas posições socioeconômicas, como uma herança direta da revolução feita
em França. Apesar desta distinção, ambos possuem em comum um projeto de
crítica peremptória tanto ao direito natural quanto ao direito consuetudinário.
A natureza e as tradições são substituídas pela onipotência do legislador esta-
tal, preservando, contudo, a crença na racionalidade como base para o próprio
processo de codificação. Como os códigos, embora tivessem sido outorgados
por imperadores, foram encomendados a juristas renomados, havia uma expec-
tativa de que a lei resultante seria produto de um legislador racional orientado
pelo espírito científico do direito. Trata-se de uma crença típica do iluminismo
que espera, dessa forma, empurrar os povos, por via do direito, para patamares
mais elevados do processo civilizatório.81
Essa crença em um avanço civilizatório é, certamente, o elemento de fundo
presente tanto no positivismo filosófico como nos diversos positivismos que se
formaram nas diferentes áreas de conhecimento, dentre estes, o positivismo
jurídico. Embora Bobbio acredite que o positivismo jurídico seja basicamente o
produto dos processos modernos de codificação, será sustentada aqui uma cone-
xão mais profunda entre positivismo filosófico e positivismo jurídico. Em outras
palavras, diferentemente do que afirma Bobbio, aqui será trabalhada a noção de
que o positivismo jurídico surgiu e se desenvolveu não apenas no contexto, mas

80 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 54.
81 BOBBIO, Norberto. Ob. Cit., pp. 54-55.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

graças às ideias do positivismo filosófico.82 Nesse sentido, podemos falar de três


importantes influências filosóficas que se espraiaram sobre todas as formas de
positivismo, inclusive o jurídico: Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, mais
conhecido como Marquês de Condorcet (1743 -1794), Claude-Henri de Rou-
vroy, conhecido como Conde de Saint-Simon, (1760 - 1825) e Isidore Auguste
Marie François Xavier Comte ou, simplesmente, Auguste Comte (1798 - 1857).
Condorcet foi decisivo ao enfatizar a ideia de progresso do espírito huma-
no como fio condutor da história social. Nesse sentido acredita numa certa per-
fectibilidade humana, ainda que de forma indefinida, de maneira que caberia à
filosofia atuar no sentido de garantir os rumos corretos e acelerados da evolu-
ção humana. Sua formação matemática foi importante para que vislumbrasse
tanto a economia política como as ciências sociais submetidas à precisão do
cálculo. Para Condorcet os fenômenos sociais devem ser estudados nos mesmos
termos dos fenômenos naturais, portanto sem influência das paixões ou das
ideologias.83 Sua influência foi decisiva no trabalho de Saint-Simon que seguiu
o mesmo percurso inaugurado por Condorcet. Segundo Michael Löwy, Saint-
-Simon teria sido o primeiro filósofo a usar o termo positivo aplicado à ciência,
para designar o fenômeno concreto a ser observado como a base da produção
social do conhecimento.84 Esta vinculação da observação ao corpo concreto é a
ideia crucial que atravessa a obra de Saint-Simon. Em seu texto Memória sobre
a Ciência do Homem este autor organiza os processos do conhecimento a partir

82 Apesar da noção aqui trabalhada do entrelaçamento necessário entre positivismo filosófico e


positivismo jurídico ser diferente do raciocínio desenvolvido por Norberto Bobbio, ela está em
consonância com outros importantes filósofos do direito. Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia del
Derecho. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 1999, p. 50. DEL VECCHIO, Giorgio.
Lições de Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1979, pp. 186-198. LARENZ, Karl.
Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, p. 41. MIAILLE, Michel.
Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, pp. 275-276. BATIFFOL, Henri. A
Filosofia do Direito. Lisboa: Editorial Notícias [s.d.], pp. 7-8. TEIXEIRA, António Braz. Sentido e
Valor do Direito: introdução à filosofia jurídica. Portugal: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000,
p. 52. Entre nós, no Brasil, Dimitri Dimoulis reconhece que os autores do positivismo jurídico
foram influenciados pelos autores do positivismo filosófico, mas alerta que isso não significa que os
partidários do positivismo jurídico tenham aceitado todas as ideias historicamente designadas como
positivistas. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 66.
83 Cf. CONDORCET. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Campinas: Editora
Unicamp, 2013.
84 LÖWY, Michael. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na
sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994, pp. 20-21.

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Direito e Emancipação – Volume I

tanto da física como da fisiologia, sendo a sociologia, basicamente uma fisiolo-


gia social. Segundo Saint-Simon, dentre os principais efeitos que resultaram da
organização positiva da teoria fisiológica está o fato de que tanto a moral como
a política e a própria filosofia tornaram-se uma ciência positiva.85 Pelo conceito
de ciência positiva Saint-Simon pretende, exatamente, afirmar o processo da
observação como único caminho seguro para se chegar ao conhecimento, seja
lá do que for. Por isso afirma categoricamente que não há nenhum fenômeno
que não pode ser observado a partir do ponto de vista da física dos corpos brutos.86
Tanto Saint-Simon quanto Condorcet estão convictos de que o progresso da
razão humana já efetuado na história revelou que o conhecimento objetivo é a
base para a emancipação do espírito humano e, de efeito, para uma organização
social justa. Nesses autores os conceitos de progresso e razão estão associados
a uma firme crítica social de seu tempo, por isso não podem ser classificados
como conservadores, mas sim como reformadores.
Todavia, o positivismo filosófico alcança seu patamar teórico mais ele-
vado é com o trabalho de Augusto Comte. É importante lembrar que este foi
discípulo direto de Saint-Simon e, por isso, segue a orientação da produção do
conhecimento a partir da observação dos fenômenos. Comte radicaliza a ideia
de que a observação positiva pode descobrir as leis gerais de funcionamento dos
fenômenos, de tal maneira que a filosofia – ciência – habilitaria os tomadores
de decisão a organizar a sociedade de uma tal forma que as intervenções resul-
tantes dos agentes estratégicos desta organização social sempre resultariam em
progresso para a sociedade. Nesse sentido a síntese do pensamento positivista:
ver para prever e prever para controlar. Afirma Comte:

Sem dúvida, ao tomar o conjunto completo de toda sorte de trabalhos da


espécie humana, deve-se conceber o estudo da natureza, destinando-se
a fornecer a verdadeira base racional da ação do homem sobre ela. O co-
nhecimento das leis dos fenômenos, cujo resultado constante é fazer com
que sejam previstos por nós, evidentemente pode nos conduzir, de modo
exclusivo, na vida ativa, a modificar um fenômeno por outro, tudo isso
em nosso proveito... Todas as vezes que chegamos a exercer uma grande
ação, é somente porque o conhecimento das leis naturais nos permite in-

85 SAINT-SIMON, Claude-Henri de. Mémoire Sur La Science De L'homme In Oeuvres Choisies. Vol.II.
Bruxelas: Librairie Universelle de J. Rozez, 1859, p. 24
86 SAINT-SIMON, Claude-Henri de, Ob. Cit., p. 24.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

troduzir, entre as circunstâncias determinadas sob a influência das quais


se realizam os diversos fenômenos, alguns elementos modificadores que,
em que pese sua própria fraqueza, bastam, em certos casos, para fazer
reverter, em nosso proveito, os resultados definitivos do conjunto das
causas exteriores.87

O positivismo nega que exista uma força absoluta que seja, ao mesmo
tempo, a causa e a explicação para todos os fenômenos. Crer em tal coisa seria
uma preguiça do espírito que se renderia diante da tentação da metafísica.
Todo conhecimento é, portanto, relativo pois está sempre em movimento e re-
sulta das suas condições históricas de possibilidade.88 Mas é importante que se
tenha claro que esta relatividade histórica da produção do conhecimento não
nega a possibilidade de, por meio da observação e da razão, se compreender a
ordem exterior do mundo e alcançar as suas leis gerais de funcionamento. Nas
palavras de Comte é preciso conceber essa ordem exterior como abarcando, além
do mundo propriamente dito, o conjunto de nossos fenômenos que, apesar de serem
os mais modificáveis de todos, também se sujeitam a leis naturais invariáveis, princi-
pal objetivo de nossas contemplações positivas.89 O mundo quando tomado em sua
máxima exterioridade eleva a objetividade do conhecimento ao seu mais alto
nível, de uma pura racionalidade que seria capaz de perceber a ordem e har-
monia intrínseca dos fenômenos e, dessa forma, da realidade mesma. O corpo
social pode ser comparado ao corpo físico, o que significa que, de acordo com
o ideário do positivismo filosófico, sendo mantida sua harmonia inerente, o
corpo social se desenvolverá – progredirá – da mesma forma que se desenvolve
o corpo físico de um ser humano.
Numa feliz síntese, Michael Löwy explica como as ciências sociais foram,
em grande parte, tomadas por esse modelo epistemológico do positivismo filo-
sófico, sendo conduzidas basicamente pelos seguintes princípios:

1) A sociedade é regida por leis naturais, isto é, leis invariáveis, inde-


pendentes da vontade e da ação humanas; na vida social, reina uma
harmonia natural; 2) A sociedade pode, portanto, ser epistemologica-

87 COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 23.
88 COMTE, Augusto. Discurso Sobre o Espírito Positivo. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 63.
89 COMTE, Augusto. Discurso Preliminar Sobre o Conjunto do Positivismo. São Paulo: Abril Cultural,
1983, p. 108.

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Direito e Emancipação – Volume I

mente assimilada pela natureza e ser estudada pelos mesmos métodos


e processos empregados pelas ciências da natureza; 3) As ciências da
sociedade, assim como as da natureza, devem limitar-se à observação e
à explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva, neutra, livre de
julgamentos de valor ou ideologias, descartando previamente todas as
prenoções ou preconceitos. 90

Todos esses aspectos foram de tal forma enraizados na consciência episte-


mológica moderna que se expandiram por todas as formas de conhecimento. A
crença numa tal objetividade do conhecimento faz com que a atitude positivista
fundamental seja a rejeição de qualquer forma de explicação metafísica para os
fenômenos naturais e sociais, incluindo aqui o direito. Por isso mesmo o positi-
vismo jurídico é, antes de tudo, uma doutrina antitética ao direito natural, uma
vez que este é considerado pelos positivistas como um paradigma que sustenta
bases metafísicas de explicação para o fenômeno jurídico, pois ao afirmar que
o direito resultaria da natureza das coisas ou da vontade divina ou, ainda, da
razão humana, todas estas explicações seriam especulativas, metafísicas e não
o produto de uma observação positiva.91 Tal observação positiva resultaria na
produção de uma ciência do direito isenta da contaminação pelo juízo de valor
por parte dos cientistas do direito, dos juristas. Por isso mesmo a compreensão
de que o direito deve ser concebido apenas de forma fenomênica, isto é, como
um fenômeno objetivo, independentemente de juízo moral.
O positivismo jurídico, na medida em que se ampara na observação dos
corpos concretos (fenômenos), em consonância com a perspectiva do positi-
vismo filosófico, se apresenta como um paradigma não-fundacionalista e nisso
consiste uma de suas principais virtudes. Vale recordar que a observação posi-
tiva toma o fenômeno observado como princípio e como fim do conhecimento,
dispensando, por isso, a necessidade de crenças básicas que sustentem ou justi-
fiquem as crenças não-básicas. Para os positivistas isso não significa ceticismo
diante da possibilidade do conhecimento e da verdade, ao contrário, é a própria
emancipação do conhecimento de toda forma de crença metafísica. Não é por
outra razão que Norberto Bobbio define positivismo jurídico como sendo aquela

90 LÖWY, Mchael. As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo
na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994, p. 17.
91 Cf. BATIFFOL, Henri. A Filosofia do Direito. Lisboa: Editorial Notícias [s.d.], p. 8.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo.92 O direito positi-
vo é o fenômeno jurídico que se caracteriza como uma exterioridade observável,
como o corpo bruto no dizer de Saint-Simon ou o fato social no dizer de Émile
Durkheim.93 De efeito, o conhecimento a ser produzido no domínio do direito
deve seguir esta orientação da observação e descrição do fenômeno jurídico,
isto é, do direito positivo. Nesse processo, o conceito de ciência, via de regra, é
tomado como crucial para os positivistas. A seriedade do conhecimento jurídi-
co depende da capacidade de organizá-lo na forma de uma ciência que delimite
o seu objeto de estudo – o fenômeno jurídico – e produza explicações baseadas
em observações positivas. Essa é uma operação que se realiza na ciência do di-
reito, e nas ciências sociais em geral, na maneira como defenderam Condorcet,
Saint-Simon e Comte: tendo como base o modelo das ciências naturais. Acerca
disso, comenta António Manuel Hespanha:

A evolução das ciências naturais e a sua elevação a modelo epistemo-


lógico lançaram a convicção de que todo o saber válido se devia basear
na observação das coisas, da realidade empírica (‘posta’, ‘positiva’). De
que a observação e a experiência deviam substituir a autoridade e a
especulação filosófica como fontes do saber. Este espírito atingiu o saber
jurídico a partir das primeiras décadas do século XIX. Também ele, se
quisesse merecer a dignidade de ciência, devia partir de coisas positivas
e não de argumentos de autoridade (teológica ou doutoral) ou de espe-
culações abstratas.94

Para o positivismo jurídico, essa observação científica do direito possui


como missão primeira assegurar um resultado fundamental: não se confundir
o direito que é (direito positivo), com o direito como se gostaria que ele fosse
(direito natural). Assim, o direito positivo é oposto ao direito ideal num sen-
tido moral, de tal forma que a tarefa de explicar o direito como ele é caberia
ao jurista, enquanto a tarefa de modelar o direito segundo algum ideal moral
caberia ao político ou ao tomador de decisão na esfera política que está além do

92 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 119.
93 Lembremos o que afirma Durkheim acerca das regras relativas à observação dos fatos sociais: A
primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas. [grifo nosso]. DURKHEIM,
Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 15.
94 HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. Sintra: Publicações
Europa-América, 1998, p. 174.

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Direito e Emancipação – Volume I

domínio jurídico.95 Como afirma Batiffol, o respeito pela distinção entre o direito
existente e aquele que poderia ou deveria ser, tem como consequência, essencial para
a inspiração positivista, dispensar o jurista de se aventurar nos domínios incertos dos
juízos de valor, das questões de fundamento e de finalidade.96
Portanto, todos os positivistas concordam com a negação do fundacio-
nalismo jusnaturalista e de que o conhecimento do direito deve ser pautado
pela postura científica – e filosófica – da observação e descrição do fenômeno
jurídico – direito positivo – sem qualquer tipo de juízo de valor. Resta, todavia,
uma pergunta fundamental: mas em que consiste o fenômeno jurídico? Não
há exatamente um consenso em relação à resposta dada a tal pergunta, o que
significa que o conceito chave de direito positivo está longe de ser uma unanimi-
dade entre os próprios juspositivistas. De maneira geral é possível falar, ao me-
nos, em quatro respostas a tal pergunta. As primeiras duas respostas se inserem
numa perspectiva mais estatalista do direito. Nesse sentido, alguns acreditam
que o fenômeno observável do direito é a lei. Para estes, quem quer conhecer o
direto deve estudar a lei e quem precisa aplicar o direito deve aplicar a lei. Esse é
o entendimento básico da Escola da Exegese.97 Outros, porém, acreditam que o
fenômeno observável do direito é a norma jurídica. Segundo estes, quem quiser
conhecer o direito deve estudar a norma jurídica e quem precisar aplicar o di-
reito deve aplicar tal norma. Aqui, estamos diante do ponto de vista das teorias
normativistas do direito, lideradas por Hans Kelsen.98 Já numa perspectiva não
estatalista, há quem acredite que o fenômeno observável do direito são as tradi-
ções. Assim, quem quiser conhecer o direito deve estudar as mais importantes
tradições jurídicas e quem precisar aplicar o direito deve aplicar tais tradições.
Nesse caso estamos diante das convicções esboçadas na Escola Histórica do
Direito.99 Ainda dentro da perspectiva não estatalista, há aqueles que acreditam

95 Cf. MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 276.
96 BATIFFOL, Henri. A Filosofia do Direito. Lisboa: Editorial Notícias [s.d.], p. 15.
97 Cf. HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. Lisboa:
Publicações Europa-América, 1998, pp. 176-180. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de
Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, pp. 78-89.
98 Cf. PATTARO, Enrico. Elementos para uma Teoria del Derecho. Madrid: Editorial Debate, 1986, pp. 51-86.
99 Cf. HESPANHA, António Manuel. Ob. Cit., pp. 181-185. BOBBIO, Norberto. Ob. Cit., pp. 45-
53. Importante esclarecer que estamos falando da Escola Histórica do Direito na sua vertente
tradicionalista, isto é, na sua primeira fase, liderada por Savigny, e não na vertente conceitualista, já
na fase posterior, do pandectismo. Também vale lembrar que na opinião de Bobbio a Escola Histórica

45
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

que o fenômeno observável do direito sejam os costumes. De acordo com estes,


quem quer conhecer o direito deve estudar os costumes e quem quiser aplicar o
direito deve aplicar os costumes jurídicos ou as práticas sociais emergentes. Isso
é o que defendem os autores do positivismo jurídico sociológico.100 Portanto,
temos, ao menos, quatro respostas possíveis para a pergunta “o que é o fenômeno
jurídico?” ou “em que consiste o direito positivo?”. Cada resposta dá origem a um
tipo diferente de positivismo jurídico, embora todos sejam positivistas na me-
dida em que negam o direito natural e afirmam o fenômeno jurídico ou direito
positivo como uma exterioridade observável e aplicável de forma objetiva, sem
emissão de juízo de valor ou considerações de caráter moral para se avaliar a sua
existência como direito real (não ideal).
Pois bem, sem entrar no debate específico acerca de cada uma das formas
de positivismo jurídico, vamos considerar aqui com mais detença as concepções
estatalistas de juspositivismo, isto é, aquelas que vinculam o direito positivo à lei
ou à norma, sendo estas tidas como produtos de um ato de vontade da autori-
dade estatal competente. Isso porque estas são as formas de positivismo jurídico
mais típicas do sistema de Civil Law, ou sistema de direito romano-germânico,
que é predominante na América latina e na Europa continental. Em relação a
tais concepções, o filósofo alemão Norbert Hoerster faz aquilo que ele chama
de uma defesa do positivismo jurídico.101 Para tanto afirma que há um conceito
genérico de positivismo jurídico sob o qual se escondem teses diferentes e inde-
pendentes umas das outras. Afirma que algumas destas teses são sustentáveis
e outras não, e que muitas vezes o juspositivismo é desacreditado em nome das
teses que não são sustentáveis, mas que isso acabaria por minar também as teses
que, segundo ele, são bem fundamentadas.102 São cinco teses que, em geral, são
associadas ao positivismo jurídico, de acordo com Hoerster103:

1. Tese da lei: o conceito de direito tem que ser definido por meio do
conceito de lei;

do Direito deve ser entendida como predecessora do positivismo jurídico e não parte dele. BOBBIO,
Norberto. Ob. Cit., p. 53.
100 Cf. HESPANHA, António Manuel. Ob. Cit., pp. 200-213. BATIFFOL, Henri. Ob. Cit., pp. 31-48.
MIAILLE, Michel. Ob. Cit., pp. 279-286.
101 Cf. HOERSTER, Norbert. Em Defensa Del Positivismo Jurídico. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000.
102 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 10.
103 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 11.

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Direito e Emancipação – Volume I

2. Tese da neutralidade: o conceito de direito tem de ser definido pres-


cindindo-se de seu conteúdo;

3. Tese da subsunção: a aplicação do direito pode levar-se a cabo em


todos os casos mediante uma subsunção livre de valorações;

4. Tese do subjetivismo: os critérios do direito justo são de natureza subjetiva;

5. Tese do legalismo: as normas do direito devem ser obedecidas em to-


das as circunstâncias.

Como Hoerster parte do pressuposto de que estas cinco teses são autô-
nomas e independentes entre si, ele passa, então, à análise de cada uma delas,
para extrair sua conclusão em defesa do juspositivismo. Em relação à Tese 1
(Tese da lei: o conceito de direito tem que ser definido por meio do conceito
de lei) afirma que ela é plenamente insustentável nos dias de hoje. Lembra que
há produção genuinamente jurídica no modelo de direito consuetudinário (ba-
seado em tradições) e que as decisões proferidas por juízes e tribunais também
conformam direito e tanto as tradições como as sentenças e acórdãos diferem
do conceito de lei, embora conformem o direito. Para Hoerster a Tese da lei é
tamanhamente absurda que até mesmo os antipositivistas são parcimoniosos na
sua utilização para fazer a crítica do positivismo jurídico.104
O centro da polêmica contemporânea acerca do positivismo jurídico es-
taria, conforme afirma Hoerster, na Tese 2 (Tese da neutralidade: o conceito
de direito tem de ser definido prescindindo-se de seu conteúdo). Isso porque o
juspositivista exige que o conceito de direito seja definido exclusivamente por
critérios formais e de maneira neutra em relação ao conteúdo, o que significa
que um direito vigente e válido pode ter qualquer conteúdo desde que respeite
os critérios formais.105 Os positivistas defendem, por meio da tese da neutralida-
de, uma separação entre os critérios formais de validade do direito e qualquer
tipo de valoração ou critério moral.
A Tese 3 (Tese da subsunção: a aplicação do direito pode levar-se a cabo
em todos os casos mediante uma subsunção livre de valorações) também é
descartada logo de início por Hoerster. Segundo ele não há nenhum motivo

104 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 12.


105 Idem, ibidem.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

para acreditar que aqueles que aplicam o direito, especialmente juízes, sejam
“autômatos da subsunção” que sempre procedam com base numa lógica silogís-
tica.106 Restaria uma polêmica caso fosse considerado que o descarte da Tese
da Subsunção (Tese 3) implicaria, automaticamente, no descarte da Tese da
Neutralidade (Tese 2). Hoerster acredita que não, pois a Tese 2 sustenta que as
boas teorias do direito devem ser apenas descritivas, isto é, observar e descrever
o fenômeno jurídico – direito positivo – tal qual ele é conforme resultante de
suas fontes formais. A refutação da Tese da Subsunção significa admitir que o
juiz, ou a autoridade que aplica a norma abstrata e a transforma em norma con-
creta, é, de alguma forma, influenciado pelos seus próprios valores, uma vez que
este processo decisional, processo de individualização da norma genérica, não
ocorre exclusivamente nos moldes do silogismo, isto é, da subsunção. Hoerster
admite que da mesma forma que há um ato criativo e valorativo, por parte do
legislador, ao produzir a norma abstrata, há também, ou pode haver, um ato
criativo e valorativo do juiz ao produzir a norma concreta, individualizada. Mas
isso não estaria em contradição com a Tese da Neutralidade (Tese 2) segundo a
qual o direito é válido quando decorre de suas fontes formais e apenas por isso,
independentemente de seu conteúdo.107
No que diz respeito à Tese 4 (Tese do subjetivismo: os critérios do direito
justo são de natureza subjetiva), Hoerster afirma que não há como se acreditar
em critérios objetivos por meio dos quais possa ser utilizado um parâmetro mo-
ral (direito justo) para se definir o que é um direito válido. Isso porque tais pa-
râmetros recairiam, inevitavelmente, em concepções e juízos subjetivos, típicos
da moral, mas não do direito, posto sua heteronomia. O autor afirma a impos-
sibilidade de se classificar como verdadeiro ou falso um juízo de valor, o que so-
mente poderia acontecer com juízos de fato. Assim oferece o seguinte exemplo,
em lembrança ao antigo regime de segregação racial na África do Sul: os negros
devem ter o mesmo direito ao voto que os brancos. O fato de concordarmos com
isso não significa que podemos dizer que tal afirmação é verdadeira. Da mesma
forma, aqueles que discordam não estão habilitados a dizer que a afirmação é
falsa.108 Há uma desconfiança por parte de Hoerster em relação à capacidade
da razão prática de chegar a consensos morais no âmbito de uma dada socie-

106 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 13.


107 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 14.
108 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 15.

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Direito e Emancipação – Volume I

dade, por isso ele nega a ideia de uma moralidade jurídica objetiva. Não que o
debate moral não deva ser feito, ao contrário. O próprio Hoerster se engajou ao
longo da sua atividade filosófica em debates morais de primeira grandeza, tais
como as questões da dignidade humana, do aborto ou da pesquisa com células-
-tronco embrionárias. Ele apenas não acredita que o direito seja o cenário para
se realizar tal debate uma vez que a Tese 4 seria irrefutável. É bem verdade que
ele reconhece que alguns positivistas acreditam na Tese 2 mas refutam a Tese
4. Segundo Hoerster isso seria um erro, ou, ao menos, uma versão mais fraca
do positivismo jurídico pois as teses 2 e 4 estão em posição diametralmente
oposta ao paradigma do direito natural e, por isso mesmo, seriam o coração
do paradigma do positivismo jurídico. Em outras palavras, um jusnaturalista
é aquele que acredita que os critérios de um direito justo são cognoscíveis e
valem objetivamente (refutação da Tese 4) e, de efeito, estes critérios, que são
materiais e não formais, incorporam a própria definição de direito (refutação da
Tese 2). Para o autor, ainda que a Tese da Neutralidade (Tese 2) seja o coração
do positivismo jurídico, a Tese do Subjetivismo (Tese 4) é parte integrante do
conceito de juspositivismo, embora esta seja independente daquela e que nem
todos que se denominam de positivistas a defendam.109
Finalmente a Tese 5 (Tese do legalismo: as normas do direito devem ser
obedecidas em todas as circunstâncias). Hoerster afirma que essa tese é a que
oferece mais munição para os adversários do positivismo jurídico, pois estes
afirmam que os positivistas admitem não apenas que qualquer coisa pode ser
conteúdo do direito, desde que aprovado pelas fontes formais, mas, também,
que estes conteúdos qualificados como jurídicos são obrigatórios e devem ser
obedecidos em quaisquer circunstâncias. Segundo o autor esta crítica antiposi-
tivista não procederia pois os mais importantes positivistas do século XX teriam
rechaçado a Tese do Legalismo. Ele segue afirmando que muito embora uma
norma válida do direito possua presunção de obrigatoriedade jurídica, isso não
significa que ela possua também uma presunção de obrigatoriedade e obediên-
cia de um ponto de vista moral. Segundo Hoerster, não gera contradição algu-
ma ao juspositivismo o fato de um positivista considerar que uma lei racista é
juridicamente válida, mas que existam circunstâncias morais e apelos de justiça
segundo os quais estas leis racistas sejam rechaçadas e não obedecidas.110

109 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 16.


110 HOERSTER, Norbert. Ob. Cit., p. 17.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

A defesa do positivismo jurídico apresentada por Hoerster deixa clara a


ideia de positivismo jurídico não apenas como uma teoria jurídica que afir-
ma o direito a partir da observação de um fenômeno concreto, mas, também,
como uma teoria que separa todas as possíveis considerações morais acerca
do fenômeno jurídico, dos indicadores objetivos de validade da norma jurídi-
ca.111 Concordando-se com a ideia de que o coração do positivismo jurídico é
definido pela Tese da Neutralidade (o conceito de direito tem de ser definido
prescindindo-se de seu conteúdo), então temos que uma das questões dentre as
mais importantes do paradigma juspositivista é a da validade do direito, no que
se refere tanto à validade da norma jurídica quanto à validade do ordenamen-
to jurídico. Podemos dizer que o conceito de validade está, em certo sentido,
atrelado à noção de fontes do direito, isso porque estabelece os requisitos para
a incorporação de uma norma ao ordenamento jurídico vigente em um deter-
minado país ou região, ou seja, os meios e processos pelos quais um dado man-
damento ou ato de vontade se torna uma norma jurídica. Conforme defendido
pelo juspositivismo estes critérios são de ordem formal (independem de juízo
moral acerca do conteúdo) e devem estar estabelecidos no próprio direito posi-
tivo do país ou da região. Isso geralmente envolve requisitos que dizem respeito
à competência da autoridade propositora, ao procedimento ao qual a proposta
deve ser submetida e à adequação do conteúdo da proposta ao ordenamento
jurídico. Claro que nem sempre o legislador – ou qualquer que seja a autorida-
de propositora – possui o interesse ou as condições para garantir que todos os
requisitos estejam assegurados, por isso o próprio ordenamento jurídico possui
mecanismos normativos e institucionais para a autogestão do sistema jurídico.
Dentre os mecanismos normativos, podemos falar, por exemplo, dos critérios de
solução das antinomias – cronológico, hierárquico e de especialidade – e dentre
os mecanismos institucionais podemos falar, também por exemplo, do controle
de constitucionalidade das leis.

111 As teses de Hoerster formulam uma espécie de síntese entre os conceitos denominados por Dimitri
Dimoulis como Positivismo Jurídico lato sensu e Positivismo Jurídico stricto sensu, onde o primeiro
significa o direito definido a partir de elementos empíricos e mutáveis no tempo, livre de dependências
metafísicas, e o segundo significa o direito tomado a partir de critérios de validade e mediante
processos de interpretação que são independentes de mandamentos e valores de origem moral ou
política. Cf. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Editora Método, 2006, pp. 78-130.

50
Direito e Emancipação – Volume I

Contudo, a questão da validade de norma isolada se liga à questão da va-


lidade do conjunto das normas do direto positivo e, de efeito, do direito positi-
vo como um todo. Aqui estamos num patamar mais complexo da investigação
da validade.112 Nesse campo das teorias zetéticas de validades cabe destacar o
posicionamento de dois dos mais influentes positivistas do século XX: Hans
Kelsen e Herbert Hart.
Kelsen foi muito eloquente ao sustentar que juízos morais e juízos jurídicos
devem corresponder a performances muito distintas. Juízos morais recorrem,
via de regra, a normas de justiça para avaliar condutas e prescrever comporta-
mentos. Por outro lado, juízos jurídicos, segundo este autor, recorrem a normas
válidas do direito positivo para avaliar as mesmas condutas e prescrever com-
portamentos. Como tanto os juízos morais como os juízos jurídicos operam no
campo prescritivo, é possível admitir certa familiaridade entre ambos, mas isso
não quer dizer que tenham perdido a independência e autonomia que há entre
eles. Por isso Kelsen afirma que o fato de o conteúdo de uma ordem coercitiva
eficaz poder ser julgado como injusto, não constitui de qualquer forma um funda-
mento para não considerar como válida esta ordem coercitiva.113 Claro que isso não
significa que as normas de justiça sejam irrelevantes ao direito. Kelsen acredita
que tais normas indicam como o direito positivo deve ser elaborado quanto ao
seu conteúdo, mas isso não expressa que o conceito de justiça seja o mesmo que
o conceito de direito. Quanto a isso, ele é taxativo:

Um direito positivo não vale pelo fato de ser justo, isto é, pelo fato de a
sua prescrição corresponder à norma de justiça – e vale mesmo que seja
injusto. A sua validade é independente da validade de uma norma de
justiça. É esta a concepção do positivismo jurídico, e tal é a consequên-
cia de uma teoria jurídica positivista ou realista, enquanto contraposta
à doutrina idealista.114

112 Tércio Sampaio Ferraz Júnior denomina esse nível de investigação de teorias zetéticas de validade
na medida em que dependem de um plano mais avançado de problematização. Cf. FERRAZ
JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo:
Atlas, 2001, pp. 177-193.
113 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 55.
114 KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 68.

51
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Em sua Teoria Pura do Direito, o autor afirma que sistemas morais apre-
sentam como fundamento de validade uma norma de justiça que pode ser
intuída pela razão prática e desta norma fundamental de justiça decorreriam
outras normas coerentes em seu conteúdo com a própria norma fundamental
que seria, de efeito, evidente à razão. Segundo Kelsen isso geraria sistemas do
tipo estático, pois a norma fundamental pressuposta se configuraria como uma
ordem de natureza moral e que delimitaria o conteúdo de todas as normas
pertencentes a esse sistema.115 Pois bem, na opinião deste autor um tal sistema
estático de normas não poderia caracterizar um ordenamento jurídico, pois o
direito possui uma natureza dinâmica e não estática, suas normas não apenas
podem mudar como de fato mudam. O autor concorda que exista uma norma
pressuposta que seja o fundamento de validade da ordem jurídica e que tal nor-
ma se expresse na forma de um comando ou ato de vontade, todavia sem definir
um conteúdo específico que se coloque como critério de coerência e validade
para o ordenamento. A norma pressuposta de um ordenamento jurídico, fonte
de sua validade, não exige das pessoas um comportamento adequado a este ou
aquele conteúdo moral, mas apenas em conformidade com o ato de vontade de
uma determinada autoridade que estabelece a norma. Portanto, a norma que se
pressupõe como fonte de validade do ordenamento jurídico apenas estabelece
a validade de um ordenamento e não conteúdos a priori de natureza moral. É
por isso que é perfeitamente aceitável uma mudança no conteúdo das normas
num espectro largo de possibilidades. É isso que faz do ordenamento jurídico
um sistema dinâmico de normas.116 Nas palavras do autor:

O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental


pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato pro-
dutor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou
– o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser
criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre
esta norma fundamental.117

Assim, o direito se constitui, segundo Kelsen, como uma ordem normativa


dotada de capacidade de coação. O que manifesta a juridicidade de um sistema

115 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 218.
116 KELSEN, Hans. Ob. Cit., p. 219.
117 Idem, ibidem.

52
Direito e Emancipação – Volume I

é sua força, na medida em que sua coatividade busca constranger alguém a


uma conduta determinada, e não o seu conteúdo, como pretendem os sistemas
morais.118 Mas a força do direito não recai no sentido subjetivo do comando,
isto é, a norma não é valida porque uma determinada pessoa se encontra diante
de um comando que, de alguma forma, a compele a certo comportamento. A
força do direito recai sobre o sentido objetivo da norma, ou seja, porque esta
norma expressa por determinada pessoa é um comando válido, o que significa
dizer que foi autorizado pelo próprio ordenamento jurídico. Kelsen nos oferece
o exemplo onde compara uma comunidade jurídica com um bando de assaltan-
tes.119 Pode haver uma situação onde um assaltante determine a alguém a entre-
ga de dinheiro, sob a ameaça de algum tipo de mal. Em outra situação, ocorre
a mesma situação subjetiva, alguém determina a outrem a entrega de dinheiro,
sob a ameaça de algum mal. Mas nesse segundo caso trata-se de um agente
da comunidade jurídica, no caso um cobrador de impostos. Embora o sentido
subjetivo do comando seja o mesmo nas duas situações, o sentido objetivo difere
enormemente, pois no primeiro caso o comando não se baseia num procedi-
mento autorizado pelo ordenamento jurídico e aquele que emite o comando
(assaltante) não está abalizado para fazê-lo. Já na segunda situação o caso muda
totalmente pois tanto o agente é abalizado pelo ordenamento jurídico a emitir
tal comando como o procedimento foi autorizado por uma norma do ordena-
mento jurídico. No primeiro caso temos um comando que se caracteriza como
uma norma juridicamente invalida, restando, é claro, a irresistibilidade da for-
ça, que se manifesta no campo do ser. Já no segundo caso, temos um comando
que se caracteriza como uma norma juridicamente válida, gerando para o seu
destinatário a expectativa de um dever ser, seja este dever ser o cumprimento
do comando ou o enfrentamento do mal arguido que, nesse caso, se manifesta
como uma sanção previamente prevista no ordenamento jurídico.
É importante notar nesse exemplo, que Kelsen sustenta que uma dada
norma jurídica vale – possui validade, é vinculante – não como um fato social,
como algo da ordem do ser (sein), mas como uma manifestação de dever ser
(sollen). Sendo assim, resta que o fundamento de validade de uma norma não
pode ser um fato, mas sim uma outra norma (sollen), mas que lhe seja supe-

118 KELSEN, Hans. Ob. Cit., p. 71.


119 KELSEN, Hans. Ob. Cit., p. 49.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

rior.120 Como afirma o autor: apenas uma autoridade competente pode estabelecer
normas válidas; e uma tal competência somente pode se apoiar sobre uma norma
que confira poder para fixar normas.121 Isso sugere que na opinião de Kelsen a
validade da norma jurídica não tem nada a ver com o conteúdo da norma,
mas com uma dinâmica formal onde uma norma inferior é tornada válida por
uma norma superior autoriza o ao de vontade do emitente da norma inferior.
Essa concepção escalonada do ordenamento jurídico sugere o desenho de uma
pirâmide normativa onde no topo da pirâmide está a Constituição por ser a
norma que se caracteriza como ponto de partida do processo de criação do
direito positivo. A constituição é, por assim dizer, a norma fundamental do di-
reito positivo, pois é a fonte de validade de todas as normas de um dado orde-
namento jurídico.122 Contudo, podemos nos perguntar sobre o fundamento de
validade da própria constituição. E Kelsen responde que tal fundamento reside
no fato dela ter surgido em conformidade com as determinações da constitui-
ção anterior e assim sucessivamente até chegarmos numa constituição que foi
historicamente a primeira. Nesse ponto estamos diante da pergunta decisiva
acerca do fundamento de validade da constituição histórica, ao que Kelsen
afirma que a resposta a tal questão:

Apenas pode ser que a validade desta Constituição, a aceitação de que


ela constitui uma norma vinculante, tem que ser pressuposta para que
seja possível interpretar os atos postos em conformidade com ela como
criação ou aplicação de normas jurídicas gerais válidas, e os atos postos
em aplicação destas normas jurídicas gerais como criação ou aplicação
de normas jurídicas individuais válidas. Dado que o fundamento de va-
lidade de uma norma somente pode ser outra norma, este pressuposto
tem de ser uma norma: não uma norma posta por uma autoridade ju-
rídica, mas uma norma pressuposta, quer dizer, uma norma que é pres-
suposta sempre que o sentido subjetivo dos fatos geradores de normas
postas de conformidade com a Constituição é interpretado como seu
sentido objetivo.123

120 Cf. KELSEN, Hans. Ob. Cit., p. 215.


121 KELSEN, Hans. Ob. Cit., pp. 216-217.
122 KELSEN, Hans. Ob. Cit., p. 222.
123 KELSEN, Hans. Ob. Cit., p. 224.

54
Direito e Emancipação – Volume I

A constituição como norma fundamental do direito positivo é norma posta,


mas ela mesma busca sua fonte de validade na constituição histórica e esta, por
seu turno, demanda sua validade de uma norma fundamental que não é posta,
mas sim pressuposta. Trata-se de uma pressuposição lógico-transcendental que
não pode ser demonstrada faticamente, mas que do ponto de vista pragmático
confere validade a todo o ordenamento jurídico na medida em que afirma um
ato de autoridade, qual seja: devemos conduzir-nos como a Constituição prescre-
ve.124 Para uma ciência positiva do direito, a norma fundamental pressuposta
funciona como uma espécie de axioma que sustenta todo o raciocínio do ju-
rista. Para Kelsen tal norma não precisa ser faticamente demonstrada porque
ela pode e deve ser pensada quando uma ordem coercitiva globalmente eficaz é
interpretada como um sistema de normas jurídicas válidas.125
Enquanto Kelsen abstrai o sistema de validade da norma em um fun-
damento último lógico-transcendental, de tipo kantiano, outro importante
filósofo do direito, Herbert Hart, irá se inspirar numa tradição anglófona de
matriz mais empirista para buscar o fundamento de validade das normas. A
inspiração principal de Hart é o trabalho The Province of Jurisprudence Deter-
mined de John Austin que, segundo Hart, foi a tentativa mais clara e completa
de análise do conceito de direito em termos de elementos aparentemente sim-
ples de comandos e hábitos.126 É importante lembrar que Austin se insere na
tradição positivista que separa o conceito de direito de seu próprio conteúdo,
isto é, que afirma a validade da norma independentemente de uma avaliação
moral acerca do que a norma dispõe, por isso mesmo afirma que a ciência do
direito (ou simples e brevemente jurisprudência) está preocupada com o direito po-
sitivo, ou com as leis propriamente ditas, tal como considerado sem levar em conta
sua bondade ou maldade.127 Se por essa afirmação Austin pode ser ligado à Tese
da Neutralidade (tese 2) defendida por Hoerster, pela afirmação seguinte ele
pode ser ligado à Tese do Subjetivismo (Tese 4): Em suma, a bondade ou mal-
dade de uma lei humana é uma frase de importância relativa e variável. Uma lei

124 KELSEN, Hans. Ob. Cit., p. 225.


125 KELSEN, Hans. Ob. Cit., p. 225.
126 Cf. HART. Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 23.
127 AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. In AUSTIN, John. Lectures on Jurisprudence,
or, The Philosophy of Positive Law. Vol. I. London: John Murray, 1911, p. 172 (lecture V).

55
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

que é boa para um homem é ruim para outro, no caso deles tacitamente submetê-la
a testes diferentes e adversos.128
Austin inicia seu livro The Province of Jurisprudence Determined afirmando
que normas são comandos129 e que a compreensão disto é a chave para a ciência
do direito.130 Se todas as normas são comandos e se o conceito de direito está
compreendido na ideia de comando, então é necessário saber em que consiste
um comando. Segundo o autor, este termo implica três elementos fundamen-
tais: 1) uma ordem ou desejo que outrem deve realizar ou tolerar; 2) a ameaça
de um mal – sanção – que pode recair sobre aquele que descumpre o comando;
e 3) uma forma de linguagem por meio da qual se comunica o comando.131
Porém, estes três elementos se apoiam sobre um pressuposto fundamental que
assegura a juridicidade do comando: a soberania daquele que o emite. Austin
se filia numa linha de autores da filosofia política, como Jean Bodin e Thomas
Hobbes, que apresentam a soberania como característica principal da sociedade
política e, até certo ponto, como o principal elemento responsável para a ma-
nutenção ou estabilidade da sociedade. Nesse sentido, sua concepção de direito
está centrada no poder que uma autoridade possui para emitir o comando ou
mesmo no poder que um indivíduo particular possui para emitir um comando
uma vez que esteja investido num direito subjetivo ou potestativo que lhe per-
mite fazê-lo. O direito positivo, portanto, decorre de um comando sustentado
por um ato de soberania e se dirige a pessoas que possuem o dever de realizá-lo
ou tolerá-lo, sob ameaça de algum tipo de sanção caso assim não procedam. É
esta dinâmica que, segundo Austin, institui um comando como uma norma
jurídica válida. Daí sua definição de direito positivo:

Todo direito positivo, ou todas as leis assim simples e estritamente cha-


madas, é posto por uma pessoa soberana ou um corpo de pessoas so-
beranas, para um membro ou membros de uma sociedade política in-
dependente na qual essa pessoa, ou corpo de pessoas, seja soberano ou
supremo. Ou (mudando a expressão) o direito positivo é posto por um

128 AUSTIN, John. Ob. Cit., p. 174 (lecture V).


129 AUSTIN, John. Ob. Cit., p. 79 (lecture I).
130 AUSTIN, John. Ob. Cit., p. 88 (lecture I).
131 Cf. AUSTIN, John. Ob. Cit., p. 91 (lecture I).

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Direito e Emancipação – Volume I

monarca, ou um número soberano, para uma pessoa ou pessoas que este-


jam num estado de sujeição em relação ao autor das normas.132

Porém, Austin deixa claro que o soberano ou a instituição soberana que


estabelece o direito posto deve ser sempre determinado e comum, isto é, não se
tolera, sob um ponto de vista jurídico, que em uma sociedade política indepen-
dente o poder soberano que estabelece as normas jurídicas válidas não seja um
poder claramente determinado e que tenha seu poder de comandar estendido
à toda a população. Por outro lado, para que se caracterize mesmo um poder
soberano instituidor de normas válidas, é preciso que o soberano não esteja ele
mesmo subordinado a nenhum outro poder e que a sociedade tenha um hábito
de obediência em relação aos comandos de tal soberano.133 De efeito, Austin se
apoia nas práticas políticas existentes nas sociedades modernas para teorizar
uma dinâmica de validade das normas jurídicas que prescinde de juízos morais
e se apoia no dado concreto de um poder político supremo.
Muito embora as ideias de Austin tenham baseado, de alguma forma, o
trabalho de Hart, este produz uma crítica eloquente aos fundamentos daquele.
Especialmente nos capítulos II, III e IV de O Conceito de Direito, Hart desfere
críticas contundentes ao modelo imperativista de direito produzido por Austin
alegando que teria havido por parte deste um excesso de simplificação de certas
categorias jurídicas. Como exemplo, Hart não diverge que o direito seja forma-
do por comandos, mas a formulação de Austin de comando como uma ordem
ou desejo baseado numa ameaça, para Hart é por demais simplista e sequer
leva em conta diferenças importantes entre categorias semelhantes como “dar
uma ordem” e “ordenar”. Também Austin não teria desenvolvido suficiente-
mente os conceitos de ameaça como sanção e, até mesmo, o conceito central
de soberania. É de se esperar que diante do poder soberano, os membros de
uma sociedade política criem um hábito de obediência à lei, até mesmo em
função da ameaça de algum mal no caso do descumprimento à lei. Mas Hart
argumenta que nem sempre se constitui um efetivo hábito de cumprimento da
lei e isso não faz dela menos direito. Hart nos apresenta o exemplo do Monarca
Rex que falece e a coroa passa ao seu filho Rex II. Ainda não há por parte da
população um hábito de obediência aos comandos do novo soberano, contudo

132 AUSTIN, John. Ob. Cit., p. 220 (lecture VI).


133 Cf. AUSTIN, John. Ob. Cit., pp. 220-221 (lecture VI).

57
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

as normas por ele expressa já constituem direito.134 A obediência traduz, para


Hart, um processo mais complexo do que parece ser para Austin. Assim, de
acordo com Hart, todo direito implica algum tipo de obediência, mas nem toda
obediência implica direito. Há diferenças entre hábitos e regras. Em síntese,
um hábito significa comportamento convergente para um fato e os eventuais
desvios não constituem um dado socialmente relevante. Mas no caso das regras,
não se trata de algum tipo de rotina da pessoa, mas de uma exigência imposta
por terceiro, por isso mesmo que infringir a conduta prescrita é não apenas
socialmente relevante como juridicamente relevante. Além disso, não se pode
dizer que exista por parte da população uma compreensão exata das normas e
de suas finalidades a tal ponto que seja dado um consentimento que, por seu
turno, se converta num hábito de obediência. Regras não são obedecidas por
hábitos, mas porque as pessoas estão objetivamente obrigadas a cumpri-las. Em-
bora suas análises tenham partido de Austin, Hart abandona a noção de que os
fundamentos de um sistema jurídico consistem num hábito de obediência a um
soberano juridicamente ilimitado.135
Abandonado o caminho aberto por Austin, como então Hart busca o fun-
damento de validade das normas jurídicas? Segundo este autor, é necessário
recomeçar a investigação acerca dos fundamentos do direito. Nesse sentido,
ele vai distinguir entre dois tipos de normas diferentes, embora semelhantes:
normas primárias e normas secundárias. As normas primárias são aquelas onde
se exige um determinado comportamento das pessoas, já as normas secundárias
asseguram que as pessoas possam criar ou modificar normas primárias. Como
afirma Hart: as regras do primeiro tipo impõem deveres, as regras do segundo tipo
atribuem poderes, públicos ou privados. As regras do primeiro tipo dizem respeito
a ações que envolvem movimento ou mudanças físicos; as regras do segundo tipo
tornam possíveis atos que conduzem não só a movimento ou mudança físicos, mas
à criação ou alteração de deveres ou obrigações.136 Nesse momento Hart afirma
que a chave para a ciência do direito não é a ideia de comando, como afirmou
Austin, mas sim a ideia de ordenamento jurídico como combinação de normas
primárias e normas secundárias.137 Evidente que as normas primárias seguem

134 HART. Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 63.
135 Cf. HART. Herbert. Ob. Cit., p. 122.
136 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 91.
137 Idem, ibidem.

58
Direito e Emancipação – Volume I

um catálogo potencialmente infinito dada a variedade de condutas e combina-


ções possíveis entre elas que se pode exigir em diferentes sociedades. Porém o
mesmo não ocorre com as normas secundárias uma vez que estas são normas
organizadoras de normas. De efeito, Hart nos apresenta três tipos de normas
secundárias: i) norma de reconhecimento: aquela que estabelece as característi-
cas por meio das quais podemos identificar uma norma jurídica; ii) norma de
alteração: aquela que confere poder a uma pessoa ou instituição para mudar as
normas primárias; iii) normas de julgamento: aquela que dispõe qual autoridade
e com qual procedimento poderá julgar se uma norma primária foi violada ou
não. Hart acredita que a estrutura de combinação de normas primárias com
estas três normas secundárias seja o coração do sistema jurídico e que uma teo-
ria do direito assim concebida possui uma maior capacidade de explicação dos
ordenamentos jurídicos modernos.138
Diante deste acervo teórico proposto por Hart, podemos nos perguntar
acerca do fundamento de validade de uma norma: afinal, o que faz uma nor-
ma válida para este autor? A validade implica, segundo Hart, que uma norma
tenha as características exigidas, como tal, de uma norma jurídica. Por isso,
afirma que na simples operação da identificação de uma dada regra como possuindo
o aspecto exigido de se tratar de um elemento da lista de regra dotada de autoridade,
temos o germe da ideia de validade jurídica.139 Veja-se que Hart não dispensa o
conceito de autoridade conexo com a ideia de validade da norma. Nesse sen-
tido, há uma aproximação, típica das teorias positivistas, entre o trabalho de
Austin, Kelsen e Hart. Mas o conceito de autoridade deste último autor está
compreendido na ideia de regra de reconhecimento, portanto não é precisamente
uma autoridade que valida a norma, mas um processo – de reconhecimento das
normas – onde se insere a autoridade.
A premissa de Hart é a de que em sociedades complexas o fundamento
de validade de um ordenamento jurídico consiste no fato de que uma norma
secundária de reconhecimento é utilizada para que sejam identificadas as nor-
mas jurídicas primárias de obrigação. Como já foi visto, a norma de reconheci-
mento oferece os critérios para a identificação das normas jurídicas, mas Hart
admite que tais critérios estão disponíveis de forma difusa, isto é, podem estar
presentes em textos objetivos dotados de autoridade, nas práticas dos tribunais

138 HART. Herbert. Ob. Cit., pp. 107-108.


139 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 105.

59
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

ou mesmo nas tradições daquela sociedade.140 Na verdade, Hart assume que na


vida cotidiana de um sistema jurídico, a sua regra de reconhecimento só muito rara-
mente é formulada de forma expressa como tal... Na maior parte dos casos a regra
de reconhecimento não é enunciada, mas a sua existência manifesta-se no modo
como as regras concretas são identificadas...141 Então o autor faz uma analogia
com as regras de pontuação de um jogo: afirma que no decurso do jogo as regras
raramente são formuladas, mas, ao invés disso, são usadas pelas autoridades do
jogo.142 Para deixar mais claro seu raciocínio, Hart retoma sua distinção entre
ponto de vista do participante (interno) e ponto de vista do observador (externo).
Afirma que a norma de reconhecimento pode ser tomada de uma perspectiva
interna quando os operadores do direito usam os critérios de identificação de
uma norma jurídica ainda que não declarem que aceitam ou mesmo que estão
usando a norma de reconhecimento. Por outro lado, a norma de reconheci-
mento pode ser tomada de uma perspectiva externa quando um observador do
sistema jurídico relata que os operadores do sistema se utilizam de uma norma
de reconhecimento, ainda que tal observador não declare se ele mesmo aceita
ou não tal norma.143 Há uma relação de complementação entre o ponto de vista
interno e o ponto de vista externo, pois os agentes da comunidade jurídica, e
mesmo da sociedade em geral, aplicam os critérios da norma de reconhecimento
para identificar normas jurídicas válidas (perspectiva interna) e os observadores
do sistema fazem o relato de que tais critérios – norma de reconhecimento – são
utilizados, de maneira a atestá-los. Por outro lado, o fato de os observadores
fazerem tal relato (atestarem), reforça a confiança da comunidade jurídica e da
sociedade na utilização da norma de reconhecimento.
Portanto a validade da norma está menos ligada a um procedimento ins-
titucional e mais ligada a um processo social onde a população e as autoridades
convergem para certos critérios que conferem a natureza jurídica a uma dada
norma. Tal processo não precisa necessariamente estar escrito ou promulgado,
mas é um fato real da vida social. Isso não significa que Hart discorde da ideia
de que uma norma pode ter sua validade apoiada em outra norma anterior ou
superior. Na verdade ele reconhece essa maneira de pensar como sendo uma

140 Cf. HART. Herbert. Ob. Cit., pp. 111-112.


141 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 113.
142 Idem, ibidem.
143 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 114.

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Direito e Emancipação – Volume I

forma familiar de raciocínio jurídico. Mas a questão é que quando nos per-
guntamos pelo fundamento último de validade de uma norma, então chegamos
à norma de reconhecimento com os critérios que ela traz de identificação de
uma norma jurídica.144 Como fundamento último de validade de uma norma e
de todo o ordenamento jurídico pode-se colocar a questão da fonte de validade
da própria norma de reconhecimento. Conforme Hart, alguns autores sugerem
que a norma de reconhecimento seja hipotética ou pressuposta, uma espécie de
postulado ou axioma do direito.145 Mas ele adverte que tal linha de raciocínio
poderia conduzir a um grave erro, pois a norma de reconhecimento pode até
ser considerada, em certa medida, como pressuposta, mas ela é observável tanto
na prática da comunidade jurídica como da sociedade em geral. Portanto não
se trata de um axioma ou de uma pressuposição metafísica. Quando nos dete-
mos sobre essa afirmação, percebemos que falou mais alto a tradição empirista,
típica dos países anglófonos, onde Hart se insere. Por isso mesmo, lá onde Kel-
sen vislumbrou uma norma fundamental pressuposta, de modo que um dever ser
fundamentasse outro dever ser, Hart identificou uma norma de reconhecimento
como um processo social, de modo que um ser fundamente um dever ser. Por
isso afirma: a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa,
mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários [autoridades] e dos
particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua exis-
tência é uma questão de fato. [gripo nosso]146
O fundamento de validade do direito com base na norma de reconheci-
mento deixa clara a opção pelo positivismo jurídico, feita por Hart, de modo
que ele adere à Tese da Neutralidade para concordar que o conceito de direito
deve ser neutro em relação ao conteúdo de suas normas. Ao explicar o fun-
cionamento da norma de reconhecimento, ele diz que esta própria norma não
deve ser analisada na forma de um juízo de valor, isso é, se ela causa mais bem
do que mal ou se há alguma obrigação moral de obedecê-la. Como fato social
ela é observável e é isso que interessa do ponto de vista de uma teoria do di-
reito. Hart reconhece que o desenvolvimento do direito ao longo do tempo foi
profundamente influenciado pela moral, mas não se segue daí que os critérios de
validade jurídica de leis concretas, usadas num sistema jurídico, devam incluir, de

144 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 118.


145 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 119.
146 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 121.

61
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

forma tácita, se não explícita, uma referência à moral ou justiça.147 Com isso Hart
pretende fazer coro com aqueles que querem evitar o que seria a confusão entre
o direito como ele é e o direito como ele deveria ser.148 Por isso afirma que toma-
rá o positivismo jurídico como a afirmação simples de que não é em sentido algum
uma verdade necessária que as leis reproduzam ou satisfaçam certas exigências da
moral, embora de fato o tenham frequentemente feito.149 Contudo Hart assenta
uma posição peculiar em sua teoria ao tratar da relação entre direito e moral,
pois se por um lado afirma que a moral não é uma condição de validade da nor-
ma jurídica, por outro lado admite uma profunda relação entre ambos. Ao tra-
tar da influência da moral sobre o direito afirma que seja por meio da legislação
ou mesmo do processo judicial a moral penetra no direito. Isso pode acontecer
a tal ponto que em alguns sistemas jurídicos ocorre que os critérios últimos
da validade jurídica incorporam explicitamente princípios de justiça ou valores
morais substantivos. Também reconhece que algumas vezes a lei é apenas uma
carapaça que demanda pelos seus próprios termos um preenchimento com prin-
cípios morais. Na mesma esteira, lembra que contratos juridicamente tutelados
podem sofrer restrições ou limitações em nome de valores morais ou exigências
de equidade.150 Em face de todas essas situações descritas, Hart afirma:

Nenhum ‘positivista’ poderá negar estes fatos, nem que a estabilidade dos
sistemas jurídicos depende em parte de tais tipos de correspondência com
a moral. Se tal for o que se quer dizer com a expressão conexão necessária
do direito e da moral, então a sua existência deverá ser admitida.151

A compreensão de uma poderosa imbricação entre o direito e a moral,


leva Hart a afirmar que a doutrina do direito natural sustenta considerações
muito intuitivas ou truísmos acerca da ordem natural que dizem respeito à so-
brevivência e à convivência humana, como, por exemplo, que todos os homens
possuem o direito à alimentação e ao descanso. Segundo o autor, direitos como
esses, designados pelos jusnaturalistas como naturais, deveriam fazer parte de

147 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 201.


148 Cf. HART, Herbert. O Positivismo e a Separação entre o Direito e a Moral. In HART, Herbert. Ensaios
sobre Teoria do Direito e Filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
149 HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 202.
150 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 220.
151 Idem, ibidem.

62
Direito e Emancipação – Volume I

todo e qualquer direito positivo, caracterizando, assim, o que chamou de conte-


údo mínimo de direito natural. Tais direitos oferecem boas razões para que haja
uma obediência voluntária ao ordenamento jurídico, fazendo com que as san-
ções sejam uma garantia de segunda ordem. Portanto Hart admite, em tese, que
o direito pode ter qualquer conteúdo, mas aposta que a natureza da condição
humana e a contingência da vida social faça que qualquer direito positivo mo-
derno contenha um núcleo básico de direitos morais, tornados, por força da
norma de reconhecimento, em direitos jurídicos.152
É importante levar em conta que a teoria do direito de Hart, como visto
acima, no limite, abraça a possibilidade de que a própria norma de reconheci-
mento adote critérios morais ou princípios de justiça que devem ser usados para
identificar uma norma e, de efeito, para que ela seja válida. Mas isso não decor-
rerá das convicções morais do intérprete e sim das autoridades que estão aba-
lizadas para instituírem tais critérios no âmbito da norma de reconhecimento.
No Pós-Escrito ao Conceito de Direito, ao treplicar as Críticas de Dworkin,
Hart assevera: de acordo com minha teoria, a existência e o teor do direito podem
ser determinados consultando-se as fontes sociais do direito (por exemplo, a legis-
lação, as decisões judiciais e os costumes sociais), sem referência à moral, exceto
quando o próprio direito assim identificado tiver incorporado critérios morais para
sua identificação.153 Por isso mesmo, afirma que sua teoria costuma ser chamada
de um positivismo brando ou soft positivism.154 Por outro lado, Hart lembra que
valores morais substantivos e princípios de justiça, por diversas vezes também
estão ausentes em várias leis ou decisões judiciais e isso não as torna menos

152 HART. Herbert. Ob. Cit., pp. 203-216.


153 HART, Herbert. Pós-Escrito. In HART, Herbert. O Conceito de Direito. São Paulo: Martins Fontes,
2009, p. 347.
154 HART, Herbert. Ob. Cit., p. 323. Essa denominação de soft positivism quanto à teoria de Hart gerou
um significativo debate na teoria e filosofia contemporânea do direito. Um bom exemplo disso é
o livro Hart’s Postscript: essays on the Postscript to the Concept f Law organizado por Jules Coleman
e publicado em 2001 pela Oxford University Press. Uma das questões decorrentes do conceito de
soft positivism de Hart é a ideia de positivismo jurídico inclusivo ou incorporacionismo, sendo este
exatamente aquele que admite que existam convenções sociais que incorporam critérios morais para
determinar a validade do direito e para interpretar normas jurídicas. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo
Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Editora
Método, 2006, p. 138. Um exemplar representante desta concepção é o livro Inclusive Legal Positivism
de Wilfrid Waluchow, publicado em 1994 também pela Oxford University Press.

63
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

direito.155 Essa é, precisamente, peculiaridade da teoria de Hart: há um esforço


para incorporar certos fundamentos morais sem, contudo, abrir mão do fato
de que a validade da norma não depende destes fundamentos. Ele contrapõe
duas concepções possíveis de direito: uma que aumenta os critérios de valida-
de da norma com exigências morais e com isso restringe as possibilidades de
conteúdos jurídicos; e outra que retira dos critérios de validade da norma as
exigências morais e com isso amplia as possibilidades de conteúdos jurídicos.
A primeira concepção de direito ele chama de mais restrita e a segunda menos
restrita. A primeira seria típica de autores jusnaturalistas e a segunda de posi-
tivistas. Hart opta pela segunda alegando que ela é mais condizente com uma
ciência do direito ou com uma teoria do direito que possua maior capacidade
de explicação do fenômeno jurídico.156 Sabendo que abrir mão de certos funda-
mentos morais para a validade da norma jurídica pode deixar um certo gosto
amargo na boca, Hart tenta nos consolar ao dizer: pelo menos pode ser reivindi-
cado a favor da doutrina positivista simples que as regras moralmente iníquas podem
ainda ser direito, e que tal não mascara a escolha entre males que, em circunstâncias
extremas, pode ter de ser feita.157
Pois bem, da mesma forma que foi feito em relação ao paradigma do jusna-
turalismo, foi aqui apresentado de forma didática e sintetizada o paradigma do
positivismo jurídico. Agora é o momento de fazermos as considerações críticas
centradas no problema da obliteração do sujeito. Portanto, refazemos a per-
gunta: teria havido o obscurecimento do sujeito no paradigma do positivismo
jurídico? Isso é do que trataremos na sessão seguinte.

2.1 O Positivismo Jurídico e a obliteração do sujeito


O positivismo filosófico contém em si elementos que não são novos. Ra-
cionalismo e realismo quando tomados como categorias do pensamento já estão
presentes, de alguma forma, desde os pensadores pré-socráticos. E ainda que se
possa resistir a esta associação, não há que negue os elementos de racionalismo
na obra de Platão e do realismo na obra de Aristóteles. Mas isso não faz do po-

155 HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 221.
156 HART. Herbert. Ob. Cit., pp. 223-228.
157 HART. Herbert. Ob. Cit., p. 228.

64
Direito e Emancipação – Volume I

sitivismo um pensamento antigo. Ele continua a ser uma filosofia tipicamente


moderna mesmo se utilizando de categorias já conhecidas desde a filosofia an-
tiga. Há algo de específico na maneira como Condorcet, Saint-Simon e Comte
articulam aquelas categorias no final do século XVII e início do século XIX. O
que há em comum no trabalho destes três autores e que se inscreve na tradição
positivista é a crença no progresso do espírito humano. Pode-se notar aqui uma
forte influência da antropologia iluminista que acredita e aposta na capacidade
da razão em superar as mazelas humanas. Por isso o positivismo, em seu início,
teve um caráter reformador, já que ele pretendia denunciar e enfrentar todas
as formas de obscurantismo que prendiam o espírito humano e impediam o
seu progresso. Talvez o texto mais emblemático da crença na razão típica da
antropologia iluminista seja o pequeno opúsculo de Immanuel Kant “O que é a
ilustração?”. Nesse livro, Kant afirma:

A ilustração é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o


próprio responsável. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do en-
tendimento sem a condução de um outro. O homem é o próprio culpado
dessa menoridade quando sua causa reside não na falta de entendimen-
to, mas na falta de resolução e coragem para usá-la sem a condução de
um outro. Sapere aude! “Tenha coragem de usar seu próprio entendimen-
to!” – esse é o lema da ilustração.158

Embora essa crença na potência da razão já tivesse sido veementemente


afirmada por Descartes159, Kant a expande do campo epistemológico para o
campo político e da vida social em geral. É como se o sujeito da razão pudes-
se não apenas conhecer toda a realidade, na maneira como ela se apresenta,
mas atuar de modo a assegurar um curso inevitável da história em direção
ao aprimoramento permanente das instituições sociais e à superação da mi-
séria e da barbárie. Há um certo otimismo no positivismo. Isso parece ficar
evidente quando se analisa sua crença no progresso do espírito humano. É
especialmente interessante a perspectiva adotada por Comte ao afirmar que a
conjugação de pluralidade de objetos e unidade metodológica tornaria possível

158 KANT, Immanuel. O que é a ilustração. In WEFFORT, Francisco. (Org.) Os Clássicos da Política 2.
São Paulo: Ática, 1993, p. 84.
159 Cf. DESCARTES, René. Discurso do Método. In Os Pensadores, 2ª Edição, São Paulo: Abril
Cultural, 1979.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

descobrir na natureza as leis gerais imutáveis da estática (ordem) e da dinâ-


mica (progresso).160 Essa mesma disciplina se aplicaria ao conhecimento da
sociedade, por isso a ideia da sociologia como uma física social, como também
queriam Condorcet e Saint-Simon. Nesse sentido, a sociedade deveria ser en-
tendida como o produto de uma estática social (ordem) e uma dinâmica social
(progresso), onde a ordem, como harmonia social, produziria inevitavelmente
o progresso, como evolução social.
O problema dessa concepção iluminista que apresenta um conceito de his-
tória centrado na ideia de avanço civilizatório, e que foi incorporada na filosofia
da história do positivismo, é que acaba por desprezar as rupturas e descontinui-
dades que também fazem parte do real. Além disso, tal concepção entende os
conflitos como patologias que ameaçam a evolução moral da humanidade e,
para evitar tais conflitos, muitas vezes ignora ou não valoriza diferenças que
são fundantes da vida social. Ocorre uma espécie de pasteurização de sujeitos
e grupos sociais que esconde ou disfarça identidades culturais, econômicas e
políticas. Mas não são apenas estas identidades que são tornadas menos visí-
veis. Os processos sociais concretos que atuam na definição da vida real de
indivíduos e grupos também são pasteurizados, pois expressam contradições e
conflitos que não são apreensíveis por um conceito de história centrado na ideia
de avanço civilizatório. Assim, até mesmo a possibilidade de sujeitos reinventa-
rem suas identidades por meio de uma ação política libertária, é percebida como
uma transgressão à ordem e/ou é relegada para a margem da história, lugar que
parece ser destinado aos oprimidos em geral. Temos, então, um sujeito que é
sujeitado à realidade e não o produtor dela mesma. Curiosamente a potência
da razão revestida como crença no progresso do espírito humano, acabou por
se tornar a despontecialização da ação política de sujeitos e grupos que vivem
submetidos a distintos modos e regimes de violência e sujeição. É como se os
avanços civilizatórios não se direcionassem para os que não estão enquadrados
no modelo dominante de ser humano. Estes viveriam não a ordem, mas a ex-
ceção da história. Walter Benjamin deixou isso claro na Tese VIII de seu texto
Sobre o Conceito de História: a tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de
exceção” em que vivemos é a regra geral. Precisamos construir um conceito de histó-

160 Cf. COMTE, Augusto. Discurso Preliminar Sobre o Conjunto do Positivismo. São Paulo: Abril Cultural,
1983, p. 113.

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Direito e Emancipação – Volume I

ria que corresponda e essa verdade.161 Tanto as reflexões filosóficas como a expe-
riência de Benjamin e seu engajamento na luta antifascista lhe mostraram que
as doutrinas que afirmam um progresso da história capaz de produzir liberdade,
abundância e felicidade não valem, como regra, para a tradição dos oprimidos.
Para estes, ao contrário, a regra é a opressão, a violência e a barbárie dos opres-
sores. Por isso, Michael Löwy ao comentar esta tese de benjamim afirma que
somente uma concepção sem ilusões progressistas pode dar conta de um fenômeno
como o fascismo, profundamente enraizado no “progresso” industrial e técnico mo-
derno... 162 Portanto, qualquer filosofia do direito sensata deve ter a prudência
de evitar concepções de fundo que se deixem levar por um otimismo ingênuo
que acredite que o direito positivo é a expressão concreta de um progresso do
espírito humano. Ainda que importantes conquistas históricas relativas à liber-
dade, à igualdade e à democracia estejam inscritas num dado direito positivo,
isso não significa que estas conquistas se apresentem como regra para toda a
população e muito menos que elas expressem o modo de ser de cada sujeito nas
suas próprias vicissitudes. O direito é feito de normas abrangentes destinadas a
um cidadão médio e não para as pessoas reais. Isso deve ser levado em conta.
Como um paradigma não-fundacionalista, o positivismo jurídico dispensa
crenças básicas para a justificação de crenças não-básicas. Isso faz com que
alguns identifiquem nele possibilidades de defesa de uma perspectiva prática
e não dogmática do conceito de direito, mas é precisa certa cautela quanto a
isso, pois há um imaginário positivista que é marcado por traços fortemente
organicistas e funcionalistas. Há uma cosmovisão positivista que supõe uma
harmonia intrínseca dos fenômenos e uma ordem natural das coisas, daí a no-
ção de que o direito positivo seria o verniz institucional da ordem social e por
isso a ideia da preservação do direito como proteção da ordem. Aqui há uma
suposição, na maior parte das vezes oculta, de que os diferentes agentes sociais
devem sempre atuar conforme seus papéis se restringindo àquilo que é espe-
rado deles no plano social. A conhecida expressão popular “cada macaco no
seu galho” revela como até mesmo o senso comum já foi capturado, em grande

161 BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e
Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Volume I. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 226.
162 Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”.
São Paulo: Boitempo, 2005, p. 85.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

medida, por este organicismo. O medo e a aversão contra o que poderia ser
considerado “anarquismo” também manifesta a suposição funcionalista, isto é,
de que o sistema funciona bem para todos caso a ordem seja garantida. Assim
é que ocorre aqui e ali o apego acrítico à lei como se a norma jurídica repre-
sentasse a segurança da vida social. Qualquer um que tenha a coragem de se
colocar no lugar do outro oprimido sabe que isso não é verdade. O organicismo
e o funcionalismo abafam vozes destoantes que como forças insurgentes podem
ter um incrível potencial transformador da sociedade. Claro que é possível ar-
gumentar no sentido de tais forças insurgentes podem atuar politicamente para
mudar o conteúdo da lei. É o argumento do pragmatismo político que, sem
dúvidas, é muito plausível e forte. Todavia é preciso considerar que no plano
prático, nem sempre as mudanças institucionais vão ocorrer no tempo neces-
sário e, algumas vezes, vidas podem se perder de várias formas nesse ínterim. É
importante registrar que o tempo necessário não é aquele que segundo a visão
das instituições e de seus agentes, mas sim no sentir do sujeito concreto que
está oprimido diante de um dado contexto. Não é, apenas, o tempo do relógio
– duração – mas o tempo do evento – intensidade – que irrompe e marca a vida
concreta do sujeito. Por outro lado, no plano teórico, é preciso que a teoria do
direito seja capaz de enfrentar o drama real daqueles que sofrem a injustiça e
propor alguma resposta, ainda que não definitiva para as diferentes formas de
opressão e violência. Nenhuma teoria do sujeito de direito será sustentável sem
que leve em consideração o sujeito da injustiça.
A atitude epistemológica usual do positivismo jurídico consiste em se
apoiar no caráter objetivo da ciência para excluir o problema do sujeito da injus-
tiça como se esta fosse uma questão propriamente moral e não científica. Vale
lembrar como positivistas acreditam que os fenômenos sociais, dentre eles o
direito, devem ser estudados sem influência das paixões ou das ideologias, como
se a observação fenomênica correspondesse a um ponto distante o suficiente do
objeto para assegurar sua neutralidade. É oportuno recordar que o direito não
está sozinho nessa pretensão de cientificidade. O apelo pela ciência como cen-
tro de certeza e pela técnica como possibilidade de fazer é típico do mundo mo-
derno e afetou todas as áreas do conhecimento que possuíam alguma pretensão
de legitimidade epistemológica. Em outras palavras, a modernidade foi marcada
por uma certa euforia provocada pelo desenvolvimento tecnológico resultante
da evolução das ciências naturais ou exatas. Isso produziu uma convicção ge-
neralizada de que qualquer saber válido ou realmente verdadeiro deveria estar

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Direito e Emancipação – Volume I

baseado na observação da realidade empírica para, posteriormente, ser apresen-


tado em equações, fórmulas e prescrições. Como foi visto anteriormente, com
o direito não foi diferente. O fenômeno jurídico foi recortado da realidade e
transformado em objeto de estudo pelo cientista do direito, isto é, pelo sujeito
que o observa e sobre ele é capaz de produzir certos enunciados, diagnósticos e
previsões. Contudo, sobre esse processo incide o problema clássico das ciências
sociais e que as epistemologias jurídicas positivistas não enfrentaram suficien-
temente: o sujeito que observa também é, de alguma forma, parte do fenômeno
observado. Por mais que haja distanciamento, nunca haverá isenção suficiente
de um sujeito que investiga uma ordem normativa ao mesmo tempo em que pelo
simples fato de viver na sociedade é interessado por ela. Como esperar objetivi-
dade e isenção se quem estuda o instituto da propriedade privada possui interes-
se na propriedade privada? Esse é apenas um exemplo que coloca em questão,
especificamente no âmbito do direito, a tradicional relação sujeito e objeto. É
preciso espírito crítico e maturidade para admitir que, por vezes, a produção
interessada de categorias pretensamente científicas ou técnicas do direito, espe-
cialmente no âmbito da chamada doutrina ou dogmática jurídica, não possuem
nada de neutras ou objetivas, ao contrário, reproduzem os interesses e a con-
cepção de mundo daqueles que as elaboram, que, em geral, são homens bran-
cos, heterossexuais, de classe média ou ricos. Isso não quer dizer que toda essa
teorização e técnica jurídica necessariamente irão conter e reiterar preconceitos
machistas, racistas, homofóbicos e de classe social, mas a probabilidade é bem
grande. Apenas a título de exemplo, vale refletir sobre durante quanto tempo o
casamento entre pessoas do mesmo sexo não foi utilizado como exemplo de ato
jurídico inexistente... É nessa linha que Michel Miaille nos adverte para o fato
de que o positivismo jurídico produziu, especialmente nas faculdades de direito,
uma atitude que, sob o pretexto da neutralidade científica, conduzia frequentemente
à aceitação da ordem em vigor.163 Uma teoria crítica do direito deve ser capaz de
compreender e internalizar na teoria e na filosofia do direito o problema real de
sujeitos e grupos que são oprimidos simplesmente porque não estão adequados
ou se insurgem contra o status quo e o establishment.164

163 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 278.
164 Cf. KENNEDY, Duncan. Nota sobre la Historia de CLS en los Estados Unidos. In DOXA, nº 11, 1992.
UNGER, Roberto Mangabeira. The Critical Legal Studies Movement. Cambridge: Harvard University,
1986.DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.

69
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Uma das formas mais comuns utilizadas por positivistas para afirmar a
objetividade do direito e negar que juízos de valores façam parte do raciocínio
jurídico é o recurso ao conceito de técnica, onde esta pode ser entendida como
um procedimento imparcial que conduz a um resultado isento. A técnica seria
não a ciência em si, mas uma forma de aplicação do conhecimento científico,
por conseguinte, uma espécie de desdobramento necessário da ciência no mun-
do da vida. De fato, a técnica é importante para legitimar as operações feitas
em nome do direito. Além disso, ela proporciona uma sensação de segurança
no sentido de que se for aplicada corretamente chegar-se-á a um resultado ne-
cessário, independentemente de quem seja o agente que a aplique. No caso do
direito é como se a técnica estivesse acima de seus operadores e, por isso, garan-
tisse a sua objetividade. Até certo ponto esse raciocínio é aceitável, mas reduzir
o direito à sua dimensão técnica como ela fosse responsável por tudo o que
acontece no mundo jurídico, parece ser uma excessiva simplificação. Qualquer
técnica não é isenta quanto ao agente que a pratica. Em primeiro lugar, deve-se
considerar que o operador do direito terá alguma possibilidade de escolha quan-
to ao recurso técnico do qual irá se utilizar. Essa escolha é anterior à utilização
da técnica e não é isenta de subjetividade. Em segundo lugar, o próprio ma-
nuseio da técnica imprime uma inevitável subjetividade. Se isso vale para um
técnico que atua sobre um aparelho, uma coisa, vale muito mais para técnicos,
ou profissionais que intervêm tecnicamente, que atuam com pessoas, tais como
profissionais do direito ou da área da saúde. A subjetividade do técnico inscrita
no seu desempenho pode gerar diferentes tipos de reação nas pessoas que estão
recebendo o procedimento técnico. Isso pode levar a resultados diferentes, a
despeito da utilização de uma mesma técnica. Esses dois aspectos da técnica, a
escolha e a forma de sua utilização, valem para todos os profissionais que atuam
no mundo jurídico, sejam advogados, juízes ou jurisconsultos em geral.
Outra abordagem crítica necessária quando pensamos a questão da téc-
nica no direito, diz respeito ao problema da técnica como forma específica da
consciência moderna, isto é, uma consciência tecnológica. Esse tipo de cons-
ciência emerge como uma espécie de mediação entre a pessoa e o mundo,
onde para esta pessoa, aquilo que é apenas é na medida em que se deixa obje-
tivar, ainda que aquilo que é seja um outro ser humano. O sentido da realidade

Portland: Hart Publishing, 2005. GAXIOLA, Napoleón Conde (Org.). Teoria crítica y derecho
contemporáneo. México: Editorial Horizontes, 2015.

70
Direito e Emancipação – Volume I

manifesta-se fundamentalmente como objetividade e, com efeito, como algo


manipulável pelo sujeito.165 Aqui é importante compreender que a realidade
tornada objetiva se descola da consciência na maneira de tudo aquilo que se
apresenta como um não-eu, ou seja, como um objeto. Ocorre então a conheci-
da polarização entre sujeito/objeto. Se do ponto de vista da ciência tal relação
significa cognoscibilidade, isto é, possibilidade de conhecimento, do ponto de
vista da técnica essa relação significa manipulabilidade, isto é, funcionalização
de algo ou alguém. Essa realidade objetificada pelo sujeito é capturada por sua
exterioridade, como se não tivesse ela uma racionalidade imanente, como se
fosse opaca ou o centro de seu ser estivesse vazio. E se este objeto não é algo
propriamente em si, também não pode ser algo para si. Assim, o mundo obje-
tificado perde suas defesas e se torna refém da ação e dos interesses do sujeito
que o manipula e o funcionaliza.
Essa questão da consciência tecnológica diz respeito a todas as áreas do
conhecimento e a uma infinidade de relações sociais. Mas em algumas áreas,
como a do direito, ela se torna mais relevante. Isso porque no âmbito da téc-
nica jurídica, a realidade tornada objeto pelo sujeito da técnica é sempre uma
pessoa. Mas como pessoa objetificada ela aparece como não-subjetividade, como
um ente ou uma coisa à disposição daquele sujeito da técnica.166 Desse modo,
o mundo jurídico com suas instituições e procedimentos, instaura uma rela-
ção pessoa-pessoa sempre mediada pela consciência tecnológica, de tal maneira
que esta relação pessoa-pessoa se converte numa relação sujeito-objeto, onde
a objetificação significa também uma coisificação exatamente da pessoa que
está no polo mais frágil da relação, aquela que é funcionalizada pelo sujeito
da técnica jurídica. Portanto, quando os positivistas apresentam a objetividade
da racionalidade jurídica resultante de inúmeros procedimentos técnicos como
uma vantagem do direito, uma espécie de trunfo, nem sempre levam em conta
o custo humano dessa vantagem. Isso porque o outro ser humano objetificado
é inevitavelmente esvaziado de sua subjetividade, desenraizado de sua história
e de suas características, perde o seu em si e para si para existir apenas como
objeto da técnica. Assim funcionalizado e instrumentalizado pela técnica esta
pessoa também é esvaziada do sentido da liberdade, da sua possibilidade de

165 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993, pp. 122-123.
166 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ob. Cit., p. 123. LIMA VAZ, Henrique Claudio de. Escritos de
Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993, p. 162.

71
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

fazer escolhas, de falar por si mesmo. Toda reificação é sempre um golpe na au-
tonomia do ser humano. E essa pessoa sem o sentido da liberdade é inevitavel-
mente haurida da capacidade de comunicação, daquilo que lhe faz ser não uma
pessoa qualquer, mas a pessoa que ele ou ela é. A pessoa assim objetificada é um
ser afásico, onde seus relatos são capturados pela instrumentalidade da técnica.
Há um empobrecimento da narrativa na voz ativa e com isso se enfraquece o
sentido de ser de qualquer um. Talvez a ironia mais perversa desse processo seja
que o ser humano objeto da técnica é chamado muitas vezes pela linguagem
jurídica de sujeito de direitos quando, de fato, ele nem chega a ser tratado com
a dignidade que merece um sujeito, quanto mais um sujeito de direitos. Ocorre
que por vezes ele é tratado como a coisa em que se transformou na objetivida-
de da técnica. E isso pode ser percebido empiricamente e sem muito esforço
filosófico por qualquer um que frequente as instituições da cena jurídica. Ga-
binetes, escritórios, salas de audiência são todos espaços cheio de cerimoniais,
vestes e linguagem que servem à técnica e seus agentes mais do que às pessoas
que lá recorrem ou para lá são conduzidas, especialmente se estivermos a falar
das pessoas que são subalternizadas pelos grupos dominantes da sociedade. No
mais das vezes, o sujeito de direitos poderia ser chamado de objeto da técnica, até
porque não é raro que a técnica se sobreponha aos direitos, como se o fim do
ordenamento jurídico fosse aquela (técnica) e não esses (direitos).
Esse processo de objetificação que acontece na cena jurídica, típico da
consciência tecnológica, não é necessariamente produto da má fé ou da mal-
dade dos sujeitos da técnica. Muitas vezes ele acontece de maneira irrefletida,
como explica Manfredo de Oliveira:

Evidentemente uma experiência determinada do sentido de ser não é


algo refletido; normalmente ela é apenas um saber “imediato”, o que sig-
nifica que a perspectiva funcionalizante da consciência tecnológica não
deve ser entendida como “intenção” subjetiva, mas como a própria estru-
tura imanente a esse tipo de relacionamento do homem com o mundo.167

Porém, o fato de poder ser irrefletida a perspectiva funcionalizante da


consciência tecnológica, não isenta o sujeito da técnica pela maneira que trata
o outro. Antes de qualquer coisa, não há desculpa para tratamentos grosseiros,
arrogantes e humilhantes, nem mesmo a técnica que objetifica o ser humano.

167 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ob. Cit., p. 124.

72
Direito e Emancipação – Volume I

Além disso, a técnica, mesmo que irrefletida, não justifica a perpetração de


preconceitos e discriminações no trato com o outro. Mas é fato que estas coisas
acontecem e elas revelam um processo de desumanização que precisa ser enten-
dido, denunciado e combatido. Tal desumanização é o resultado final de um mo-
vimento de dissolução de empatia provocado pela consciência tecnológica. Não
há como se colocar no lugar do outro quando o outro não é um alguém, mas um
objeto, uma coisa. Não que a ausência de empatia seja provocada exclusivamen-
te pela técnica, mas não resta dúvida de que esta também é uma de suas causas,
especialmente quando estamos a tratar das instituições do mundo jurídico.
O problema da consciência tecnológica se torna mais relevante quando
pensamos do ponto de vista de um sujeito da injustiça social. Isso porque alheia
à empatia, a técnica que coisifica o outro se torna míope à tal injustiça. Como
um objeto, a pessoa aparece como se tivesse sido “quebrada” e não injustiçada.
Algo quebrado pode ser consertado por um bom técnico para que retome suas
funcionalidades, mas a injustiça sofrida pode deixar marcas que exigem mais
que um simples “conserto”. O enfrentamento de qualquer injustiça, inclusive
da injustiça social, exige, antes de tudo, liberdade e voz ativa para quem foi in-
justiçado. Há que se colocar algum limite para o enquadramento que a técnica
pode ou não fazer sobre as pessoas. Tais limites devem possibilitar, por um lado,
o transcorrer da técnica, mas, por outro lado, devem preservar o ser do sujeito
para quem a técnica se dirige. Obviamente não se trata de um ser entendido de
uma perspectiva metafísica, idealizada como se tivesse atributos transcenden-
tais. Todavia, também não se trata de um ser determinado por características
identitárias por meio das quais ele devesse ser rotulado. Esse ser é o resultado de
sua história, de seus enraizamentos, mas também produto das intenções, das es-
colhas e de diferentes performances da pessoa. É essa limitação ética da técnica,
ao buscar respeitar a singularidade do sujeito, que permitirá que os diagnósticos
e prognósticos resultantes sejam condizentes com o humano que habita o ser.
Veja-se que não se trata de confiar que tal limitação da ética necessariamente
resultará no alcance de uma certa expectativa de justiça, mas, antes de tudo,
deverá permitir compreender as injustiças sociais sofridas pelas pessoas ou gru-
pos de pessoas daquela situação juridicamente relevante. O sentido dessa ideia
é dado pela afirmação de Pascal em seus Pensamentos: ainda que não se possa
apontar o justo, percebe-se bem o que ele não é.168 Aliás, a referência a Pascal é

168 PASCAL, Blaise. Pensamentos sobre a Política. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 72.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

particularmente interessante quando tratamos da consciência tecnológica, pois


já no século XVII, ele nos alertava sobre a distinção entre esprit de géométrie e
esprit de finesse.169 O espírito de geometria é o espírito calculatório. Estabelece e
ordena premissas para desdobrar conclusões. Interessa-lhe as relações de causa
e consequência. É pragmático e voltado para a eficiência. Já o espírito de finu-
ra é o espírito da sensibilidade e da sutileza, é aquele que busca os princípios
tanto entrevistos como pressentidos, unindo o pensamento ao sentimento para
buscar o significado mais profundo das coisas, mesmo quando estas se mani-
festam desordenadamente. A consciência tecnológica produziu no imaginário
moderno a fantasia de que o espírito de geometria deveria se aplicar à ciência
e à técnica ao passo de que o espírito de finura deveria se aplicar à poesia e
às artes. O pensamento crítico precisa desfazer essa fantasia para superar esta
falsa dicotomia. O ser humano é a raiz comum a ambas as formas de espírito.
E da mesma maneira que muitos artistas utilizam a matemática na sua criação,
técnicos também podem ter sensibilidade e sutileza tanto na sua forma de racio-
cinar como para conduzir processos e procedimentos. Há que se encontrar uma
forma de equilíbrio entre espírito de geometria e espírito de finura.
Afora as questões gerais já comentadas acerca da crença no progresso
do espírito humano e do problema da consciência tecnológica, outro aspecto
fundamental do positivismo jurídico é a afirmação do direito por meio da apre-
ensão do fenômeno jurídico como uma exterioridade observável. Essa postura
epistemológica, como já foi dito, busca legitimar-se por meio da crença de que
a observação fenomênica corresponderia a um ponto distante o suficiente do
objeto – fenômeno jurídico – para assegurar a isenção e imparcialidade da ci-
ência do direito. Esse fenômeno jurídico pode ser chamado, num sentido mais
geral, de direito positivo. Como foi visto anteriormente, o positivismo jurídico é
a doutrina que reconhece e afirma apenas o direito positivo como sendo o fe-
nômeno jurídico a ser observado e descrito desde um ponto de vista do direito
como ciência, e objetivamente aplicado, agora de um ponto de vista do direito
como técnica. Já falamos sobre o problema da redução técnica da aplicação do
direito. Resta, ainda, a questão do recorte epistemológico do fenômeno jurídi-
co como direito positivo.
Não há dúvida de que o direito é um fenômeno concomitantemente social
e normativo, já que ele resulta de práticas sociais e institucionais voltadas à

169 PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Abril Cultural, 1979, I, 1-60, pp. 37-47.

74
Direito e Emancipação – Volume I

regulação das relações entre pessoas e grupos sociais, seja nas relações priva-
das, seja nas relações públicas. Contudo, fazer o recorte do fenômeno jurídico e
isolá-lo das demais relações sociais e normativas existentes na sociedade não é
uma tarefa fácil. Muitas vezes, o esforço da simplificação pode gerar simplismos
e os simplismos acarretam empobrecimento da percepção social e descrições
exageradamente superficiais ou mesmo levianas. Compreender a realidade so-
cial para se extrair dela o elemento normativo exige uma compreensão da reali-
dade na sua própria complexidade. Todavia, no esforço de demonstrar o direito
como um sistema que opera sob a lógica binária elementar do lícito/ilícito, a
linguagem e as operações cientificistas do direito podem acabar por negar a
complexidade própria não apenas da realidade como do próprio fenômeno jurí-
dico. Acerca do conceito de complexo, Edgar Morin conta uma breve história:

Era uma vez um grão de onde cresceu uma árvore que foi abatida por
um lenhador e cortada numa serração. Um marceneiro trabalhou-a e
entregou-a a um vendedor de móveis. O móvel foi decorar um aparta-
mento e mais tarde deitaram-no fora. Foi apanhado por outras pessoas
que o venderam numa feira. O móvel estava lá no adeleiro, foi comprado
barato e, finalmente, houve quem o partisse para fazer lenha. O móvel
transformou-se em chama, fumo e cinzas.170

Após realizar esta narrativa, faz o seguinte comentário: Eu quero ter o


direito de refletir sobre esta história, sobre o grão que se transforma em árvore que
se torna móvel e acaba fogo, sem ser lenhador, marceneiro, vendedor, que não veem
senão um segmento da história. É esta história que me interessa e me fascina.171 A
perspectiva da complexidade exige do pensamento esse esforço de compreen-
são da história. Não troca a percepção do todo por conceitos universais e, ao
mesmo tempo, não se deixa seduzir por particularismos que transformam o
contexto num dado absoluto. Como afirma Morin, complexo é o pensamento
capaz de reunir (complexus: aquilo que é tecido conjuntamente), de contextualizar,
de globalizar, mas, ao mesmo tempo, capaz de reconhecer o singular, o individual,
o concreto.172 A visão mais cientificista do direito pretende apenas descrever

170 MORIN, Edgar et all. O Problema Epistemológico da Complexidade. Portugal: Publicações Europa-
América, 1996, p. 134.
171 Idem, ibidem.
172 MORIN, Edgar. A Inteligência da Complexidade. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 207.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

o fenômeno jurídico identificando aí o direito positivo. Esse é um ponto que


une, por exemplo, positivistas com teorias distintas como Kelsen e Hart. Kelsen
afirma: com efeito, a ciência jurídica não tem de legitimar o Direito, não tem por
forma alguma de justificar – quer através de uma Moral absoluta, quer através de
uma Moral relativa – a ordem normativa que lhe compete – tão somente – conhecer
e descrever.173 Por seu turno, Hart assevera: meu objetivo neste livro foi apresentar
uma teoria do direito que fosse ao mesmo tempo geral e descritiva. É geral no sentido
de que não se vincula a nenhum sistema jurídico ou cultura jurídica específicos, mas
busca fornecer uma descrição explicativa e elucidativa do direito...174
No debate comumente feito sobre o aspecto descritivo das perspectivas
adotadas por Kelsen e Hart, costuma-se colocar em relevo que sendo o direito
uma ordem coercitiva, não basta para uma boa teoria jurídica que suas normas
sejam observadas e descritas, é necessário que elas sejam também justificadas,
para que a força/violência nelas embutidas sejam aceitáveis do ponto de vista do
cidadão e da comunidade em geral. Esse argumento é defendido claramente por
Ronald Dworkin que faz dele um dos aspectos principais de sua crítica contra
Hart.175 Contudo, não será esse o fundamento da crítica aqui apresentada, em-
bora possa, em algum momento, com ela guardar certa afinidade.
As descrições que fazem Kelsen e Hart do fenômeno jurídico se amparam
num modelo epistemológico positivista que pretende fazer recortes do fenôme-
no observado – objeto – de maneira a isolá-lo para melhor apreendê-lo. Contu-
do, este isolamento acaba por se dar ao custo da compreensão de importantes
conexões, mais ou menos visíveis, que são ou poderiam ser decisivas para um
melhor entendimento da complexa realidade jurídica e social. É bem verdade
que enquanto Kelsen aposta na norma fundamental hipotética ou pressuposta
como fundamento último de validade do direito, Hart reconhece a maior com-
plexidade do fenômeno jurídico e por isso sustenta que o direito é uma união de
normas primárias e normas secundárias. Nessa linha defende que a validade do
direito está ligada às suas fontes sociais que podem ser identificadas mediante a
observação das práticas por meio das quais uma dada sociedade admite a pro-
dução das normas jurídicas, o que foi chamado por ele de norma de reconhe-

173 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 78.
174 HART, Herbert. Pós-Escrito. In HART, Herbert. O Conceito de Direito. São Paulo: Martins Fontes,
2009, p. 309.
175 Cf. DWORKIN. Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.231.

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Direito e Emancipação – Volume I

cimento. Mas mesmo aqui teremos inevitáveis simplificações que permitirão


falhas pelas quais processos de opressão e violência de gênero, raça, orientação
sexual e classe social, podem ser perpetrados e, ainda por cima, legitimados
em nome do direito.176 Claro que há sempre o argumento positivista de que a
consideração desses processos de opressão e violência acima referidos implicam
algum tipo de juízo moral e tais juízos não dizem respeito ao direito – tese
da neutralidade do direito. Mas antes mesmo de enfrentar o problema da tese
da neutralidade, é preciso levar em conta que uma realidade complexa possui
muitas conexões e todas elas são, em alguma medida, produtoras de sentido da
realidade jurídica e da vida social. É um contrassenso admitir que o direito seja
complexo mas não lidar, ou ao menos tentar lidar, com as inúmeras variáveis e
conexões, ainda que ocultas, presentes na realidade jurídica. A atitude episte-
mológica mais sincera é não negar que existem estas variáveis e conexões, ainda
que não se tenha resposta para tudo aquilo que pode ser produzido a partir
delas. Isso é o mínimo para se evitar ou reduzir problemas de esvaziamento de
subjetividade ou déficit de representatividade da ordem jurídica. Levar a sério
a complexidade do direito implica abandonar certas fantasias de ordem e segu-
rança, que via de regra se destinam apenas aos mais favorecidos da sociedade,
para admitir, como o faz Edgar Morin, que:

a complexidade impõe-se, em primeiro lugar, como impossibilidade de


simplificar; surge onde a unidade complexa produz as suas emergências,
onde se perdem as distinções e clarezas nas identidades e causalidades,
onde as desordens e incertezas perturbam os fenômenos, onde o sujeito-
-observador surpreende seu próprio rosto no objeto de sua observação,
onde as antinomias fazem divagar o curso do raciocínio...177

Se a complexidade está na realidade em si mesma, também deve estar na


forma de raciocinar. Isso é, para uma ontologia complexa deve se ter em mente
uma epistemologia igualmente complexa. Portanto, a observação e descrição
do fenômeno jurídico que o apresenta na forma de direito positivo seria mais
adequada se considerasse não apenas as condições normativas de sua validade

176 Cf. DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, pp. 6-7.
177 MORIN, Edgar. O Método I: a natureza da natureza. Portugal [s.l.]: Publicações Europa-América,
1987, p. 344.

77
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

– Kelsen – e as fontes sociais de sua produção – Hart – mas, também, como


estas condições e fontes são atravessadas, por um lado, por jogos de poder, inte-
resses econômicos, conflitos políticos e conveniências corporativas, e, por outro
lado, por lutas sociais e demandas por reconhecimento. Essas não são questões
metajurídicas como por vezes alegam os positivistas, são variáveis e conexões
estabelecidas no âmbito da realidade de onde surge o fenômeno jurídico e, nesse
sentido, no coração do direito.
Em que pese a crítica epistemológica feita acima, é certo que apresentar o
direito de forma apenas descritiva ainda constitui um dos principais atrativos
do positivismo jurídico, pois essa apreensão empírica do direito torna possível
afirmá-lo como direito positivo, isso é, o conjunto de normas vigentes num certo
tempo e num certo espaço. Essas normas são, em geral, entendidas como as leis
aprovadas pelo parlamento, as regulações administrativas formuladas no âmbito
do executivo e as decisões proferidas nas instâncias do judiciário. As leis e as
regulações possuem vontade abstrata destinada às pessoas em geral ou grupos
específicos de pessoas, e as decisões judiciais se voltam, em regra, às partes do
caso concreto. Nos sistemas de Civil Law as normas abstratas produzidas pelo
legislativo e judiciário costumam ser apontadas como fontes privilegiadas do
direito. Assim, quando se fala em direito positivo no paradigma do positivismo
jurídico, em especial no positivismo legalista e no positivismo normativista, há
duas associações implícitas. A primeira se dá entre direito e estado, que resulta
na ideia geral de lei e de coercitividade, já a segunda ocorre entre direito e ci-
ência, que resulta na ideia geral de técnica. Por conseguinte, o direito positivo é
algo assim que invoca tanto no imaginário social como no imaginário da comu-
nidade jurídica, intuições acerca de lei, força e técnica, como se fosse um gran-
de bloco institucional a regular as relações sociais. Uma das características mais
forte deste bloco é o tratamento igualitário que pretende dar a todas as pessoas.
Contudo, o conceito de igualdade é em si mesmo problemático, pois quando
esta é confundida com linearidade pode produzir vários tipos de opressão, cons-
trangimento e hostilidade. Claro que a igualdade formal e, com ela, a igual
proteção da lei são atributos relevantes para qualquer pessoa ou grupo social
em todas as sociedades democráticas. Mas quando alguém sofre uma injustiça
social concreta, seja por sua condição de empobrecimento, cor, etnia, origem,
sexo, condição física ou orientação sexual, a igualdade formal ou mesmo a igual
proteção perante a lei, em geral, não são meios suficientes para o desfazimento
da injustiça e a recuperação da dignidade aviltada. É preciso um tratamento

78
Direito e Emancipação – Volume I

diferenciado que o retire da condição de sujeito universal – típico da igualdade


formal – e o coloque na condição de sujeito concreto, mas sem classificá-lo e
rotulá-lo em função de características ou comportamentos atribuídos a certos
grupos sociais. Tratamentos universalizantes e rótulos diferenciadores podem
ser duas faces da mesma moeda, onde de uma forma ou outra o preconceito irá
reificar o indivíduo. De efeito, a igualdade formal pode converter-se em ideo-
logia jurídica que paralisa o sujeito na sua ação política e ao invés de liberá-lo
da situação de injustiça social que vive pode agravar tal situação. Isso acontece
quando o direito positivo, ou o jeito pelo qual ele é utilizado pelos agentes do
sistema jurídico, se afirma a si mesmo sem levar em consideração o outro para
o qual ele se destina, de maneira a produzir uma dissolução da empatia. Nesses
casos, o direito deixa de fora aspectos extremamente relevantes na vida e nas
condições concretas de uma pessoa ou grupo de pessoas e que as torna uma
pessoa singular ou até um grupo singular. A questão fundamental permanece
sendo a compreensão de quem é este para o qual o direito positivo de destina. E
é preciso notar que trata-se de uma questão, ao mesmo tempo, moral, ética, po-
lítica e jurídica; fragmentá-la importaria descaracterizar o humano e esse é um
preço que nenhuma sociedade deveria pagar. Talvez por isso Michel Maffesoli
tenha dito: preservar a singularidade dos atos e das situações ante o rolo compressor
do positivismo – eis o que, de todo modo, pode vir a constituir uma das tarefas da so-
ciologia qualitativa.178 Da mesma forma, pode-se dizer que esta também é tarefa
de uma teoria crítica do direito que se preocupe com a emancipação humana e
os sujeitos da injustiça social.
Podemos pensar o direito positivo em três níveis fundamentais de enqua-
dramento do sujeito e os três implicam algum grau de abstração: o enquadra-
mento legal, produzido pelas normas aprovadas pelo legislativo; o enquadra-
mento administrativo, produzido pelas normas definidas pelo executivo; e o
enquadramento judicial, produzido pelas normas deliberadas pelo judiciário.179

178 MAFFESOLI, Michel. O Conhecimento Comum: introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre:
Sulina, 2010, p. 75.
179 Poderíamos também falar num enquadramento social, em dois enfoques: na perspectiva da
capacidade contratual dos sujeitos, tendo em vista a autorregulamentação de seus atos sociais; e na
perspectiva das práticas sociais reiteradas que se afirmam como costume jurídico. Entretanto, no
primeiro enfoque o nível de abstração do sujeito é basicamente residual, apenas o que a lei exige na
delimitação dos contratos. Já no segundo enfoque, teríamos de enfrentar uma polêmica sobre até
que ponto o costume pode ser considerado fonte do direito em sistemas jurídicos de Civil Law, o que
fugiria da proposta deste livro.

79
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Se olharmos no detalhe, o grau de abstração do sujeito pode ser o mesmo nos


três níveis, na medida em que o executivo define uma norma de caráter geral e
tão genérica quanto uma lei; da mesma forma quando o judiciário delibera em
sede de uma ação civil pública, por exemplo, ou confere caráter vinculante a
uma súmula. Porém, de maneira geral, o grau de abstração com o qual o sujeito
é enquadrado tende a diminuir se pensarmos da lei para o ato administrativo
geral e deste para a decisão judicial. Isso faz com que a administração pública
e o sistema de justiça tenham um papel mais estratégico quando se pensa a
maneira que eles podem trabalhar com o sujeito da injustiça social. O pro-
blema é que, na prática, o imaginário da maior parte dos agentes políticos,
mesmo daqueles bem intencionados, trabalha tendo como referência ou uma
concepção universalizada de sujeito e, portanto, idealizado e intangível, ou uma
concepção identitária de sujeito e, por isso, casuísta e sujeita a rótulos. João ou
Maria podem ser definidos como cidadãos livres e iguais, ou até mesmo como
homem ou mulher, rico ou empobrecido, com alguma deficiência física ou não.
Até certo ponto, o tratamento universalizante ou identitário pode ser satisfa-
tório para uma regulação jurídica em abstrato ou até mesmo concreta. Mas
quando lidamos com as situações mais complexas de injustiça social, esses tipos
de tratamento propendem a abordagens insuficientes ou inadequadas porque
não conseguem considerar o sujeito na sua complexidade, com sua história,
seus limites e possibilidades, com sua capacidade de criação e ação política. É
fundamental ter em conta essa insuficiência do direito positivo, ao menos, por
seis razões: 1) para que os agentes da política institucional, legisladores e admi-
nistradores, possam buscar mecanismos de aproximação com a realidade e de
compreensão não apenas das injustiças sociais, mas dos sujeitos concretos que a
sofrem; 2) para que os agentes do sistema de justiça se sintam mais estimulados
a romperem com a perspectiva reificante da consciência tecnológica e busquem
humanizar de forma efetiva procedimentos e decisões (espírito de finura); 3)
para que a teoria do direito e os seus respectivos teóricos produzam abordagens
mais críticas e compreensivas que levem a sério a complexidade do fenômeno
jurídico e reconheçam os sujeitos concretos como parte constitutiva do direi-
to; 4) para que a doutrina jurídica os seus respectivos doutrinadores elaborem
teses sobre a interpretação e aplicação da norma, nas diversas áreas do direito,
atentos à questão do sujeito da injustiça social; 5) para que o ensino jurídico e
seus professores e pesquisadores, tanto na graduação como na pós-graduação,
possam incorporar essa questão como sendo fundamental, seja nos seus planos

80
Direito e Emancipação – Volume I

de aula seja nas agendas de pesquisa; e 6) para evitar um certo fetichismo da lei
e da decisão judicial, como se estas por elas mesmas, ou seja, pela sua técnica de
produção, representassem sempre uma forma adequada de regulação jurídica.
Acerca desse último ponto, a do fetichismo da lei e da decisão judicial,
desde os anos 1980 até seu falecimento em 2010, Luiz Alberto Warat se dedicou
a desvelar como existem certas condições implícitas de produção, circulação e
consumo de “verdades” no âmbito do direito. A isso Warat denominou de senso
comum teórico dos juristas.180 Da mesma maneira que existem certas crenças
que uma comunidade acredita e toma como verdades prontas sem se preocupar
em refletir de forma mais detida acerca delas, existem também crenças sobre
o direito que a comunidade jurídica acredita e toma com verdades prontas
sem avaliá-las criticamente para saber até que ponto e em quais contextos são
aceitáveis. Afirma Warat:

Nas atividades cotidianas – teóricas, práticas e acadêmicas – os juristas


encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de repre-
sentações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censu-
ra enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam
e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação... Vi-
sões, fetiches, lembranças, ideias dispersas, neutralizações que beiram as
fronteiras das palavras antes que elas se tornem audíveis e visíveis, mas
que regulam o discurso, mostram alguns dos componentes chaves para
aproximar-nos da ideia do “senso comum teórico dos juristas”.181

Essas representações, imagens, pré-conceitos, crenças e ficções voltam-se


num primeiro momento para o ordenamento jurídico, suas normas e institutos,
mas num segundo momento elas também alcançam os sujeitos, tanto os que
atuam no sistema quanto aqueles para os quais o sistema se destina. Com efeito,
muito facilmente os sujeitos reais e singulares são substituídos pelas represen-
tações e imagens. Segundo Warat, o senso comum teórico dos juristas seria
constituído por quatro regiões intercambiáveis entre si: 1) a região das crenças
ideológicas, que compreenderia as concepções do mundo que possuem os cien-
tistas; 2) a região das opiniões éticas, que no processo de formação do espírito

180 Cf. WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao Direito: interpretação da lei, temas para uma reformulação.
Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 13.
181 WARAT, Luiz Alberto. Ob. Cit., pp. 13-14.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

científico forçam certos critérios de racionalidade; 3) a região das crenças epis-


temológicas, que dizem respeito às práticas institucionais onde se formam hábi-
tos intelectuais que regulam as condições de produção do conhecimento e im-
põem interpretações vulgarizantes de conceitos; e 4) a região dos conhecimen-
tos vulgares, que traduzem necessidades em ideias, como imagens cotidianas
que criam a ilusão de uma realidade composta de dados claros, transparentes,
que podem ser interpretados, com segurança, mediante uma razão comandada
pela intuição.182 Todos os fatores produzidos no âmbito destas regiões, segundo
Warat, podem tornar opacas as relações sociais e acabam afastando os juristas
da tarefa de lidar de forma adequada com a realidade.183
É nessa linha que a lei e a decisão judicial podem ser fetichizadas, na
medida em que o sistema de crenças reproduzido sem reflexão na comunidade
jurídica atribua a elas algum poder metafísico ou fantasioso que exija não ape-
nas respeito ou confiança, mas culto e devoção. Warat ainda explica como as
tendências formalistas do positivismo jurídico instituíram postulados que fun-
cionam como condições retóricas de sentido para o direito. Alguns exemplos
destes postulados que dificultam a apreensão do sujeito da injustiça na sua rea-
lidade concreta: a única fonte do direito é a lei; as normas positivas constituem
um universo significativo autossuficiente, do qual se podem inferir por atos de
derivação racional, soluções para todos os tipos de conflito; a linguagem jurí-
dica é formal e, portanto, precisa, possuindo um unívoco sentido dispositivo; o
conhecimento do direito é um saber desvinculado de toda preocupação socio-
lógica, axiológica, econômica, política ou antropológica e as teorias jurídicas
produzem um conhecimento ideologicamente neutro.184 De outro lado, as ten-
dências realistas do positivismo jurídico também produziram seus postulados
que atuam como condições retóricas de sentido para o direito, mas numa pers-
pectiva voltada para a decisão judicial. Vejam-se alguns exemplos: as normas
não solucionam todos os casos concretos; magistrados sempre possuirão níveis
de discricionariedade para solucionar os casos que julgam; a linguagem jurídica
não é hermética nem autossuficiente, por isso o sentido das normas dependerá

182 WARAT, Luiz Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In Revista Sequência,
Florianópolis: UFSC, v.03, nº 5, 1982, p. 57.
183 Idem, ibidem.
184 WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao Direito: interpretação da lei, temas para uma reformulação.
Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, pp. 55-56.

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Direito e Emancipação – Volume I

do uso que os juízes deem as mesmas; os conceitos teóricos devem ter uma
base empírica, qual seja, a atuação da magistratura, por isso a ciência do direi-
to constrói-se elaborando teses sobre os comportamentos judiciários.185 Todos
estes postulados operam na comunidade jurídica, de maneira mais ou menos
consciente, na forma do senso comum teórico dos juristas. Isso não quer dizer
que apenas estes postulados conformem esse senso comum teórico. Aliás, tal
senso comum recebe os influxos de mudanças da realidade social e da própria
comunidade jurídica, bem como de transições de paradigmas, alterações no
rumo da produção doutrinária e, é claro, modificações no quadro ideológico da
sociedade. Portanto, positivistas poderiam legitimamente reivindicar que exis-
tem outros postulados, imagens e representações no senso comum teórico dos
juristas além desses citados e, talvez, mais fortes do que esses. Tal reivindicação
não estaria errada, mas é preciso notar que esses postulados que foram apre-
sentados representam, ao menos em parte, o senso comum teórico de boa parte
dos juristas positivistas, paradigma aqui em análise. Vale repetir: não se está a
afirmar que todos os juristas positivistas possuam esses postulados nas repre-
sentações e enunciações que realizam acerca do direito, porém muitos possuem.
Talvez um dos fetiches mais fortes presentes no imaginário da comunidade
jurídica, seja que o direito positivo existe para produzir e assegurar as expecta-
tivas normativas da população em geral. Apresentar esta ideia como um fetiche
pode causar certo espanto, na medida em que ela é altamente intuitiva e, mais
do que isso, é reproduzida frequentemente nos ambientes e na literatura jurí-
dica. Então por que seria um fetiche? A resposta mais óbvia a tal pergunta é
que o direito positivo não é capaz de assegurar as expectativas normativas da
população em geral, simples assim. Há um conjunto de direitos fundamentais
que mesmo em pleno estado democrático de direito não são assegurados às
parcelas subalternizadas e menos favorecidas da sociedade, isto é, àqueles que
são sujeitos da injustiça social. Em outras palavras, o direito positivo, seja por
meio da constituição federal, seja por meio da legislação infraconstitucional,
estabelece normas que instituem direitos considerados básicos e universais, mas
que não são tornados efetivos para uma parcela da população. Isso parece ser
mais evidente quando tratamos de direitos sociais como saúde, educação, mo-
radia ou previdência. As estatísticas, inclusive as oficiais, décadas após décadas,
revelam significativos números de pessoas deixadas à margem de tais direitos,

185 WARAT, Luiz Alberto. Ob. Cit., p. 60.

83
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

seja porque esses serviços básicos não as alcançam, seja porque a baixa qualida-
de produz falhas, lapsos, lacunas e erros no atendimento. Evidente que poderia
ser alegado que erros acontecem no atendimento, público ou privado, oferecido
a toda a população, inclusive aos mais ricos e favorecidos. Porém, é notório
que são os mais empobrecidos aqueles que estão mais expostos a tal situação.
Enquanto isso, parte da doutrina jurídica se esforça por criar explicações ou jus-
tificativas que tornem aceitável essa denegação de direitos e violação de expec-
tativa normativa, como se isso não caracterizasse insegurança jurídica, já que
segurança jurídica é uma categoria que geralmente se pensa e aplica somente
para as parcelas mais favorecidas da sociedade.
Algumas expectativas normativas deixam de ser asseguradas não por ra-
zões propriamente econômicas, mas por preconceito, discriminação ou desprezo
em relação àqueles que não se encaixam no perfil dominante da sociedade. Há
registro de casos onde eleitores cadeirantes são impedidos de exercer o direito
ao voto por falta de acessibilidade em sua sessão eleitoral. Pessoas negras são
mais expostas à truculência policial. Mulheres correm risco constante de serem
submetidas a testes de gravidez em processos seletivos para emprego, além de
estatisticamente recebem salários inferiores aos dos homens por trabalhos se-
melhantes. Comunidades indígenas inteiras estão sujeitas a diferentes formas de
violência alarmente. Gays e lésbicas são vítimas de crimes de ódio. Todas estas
violações de direito se instituem como mediações sociais que aviltam as expecta-
tivas normativas destas pessoas e grupos. O que outras pessoas podem fazer com
tranquilidade, essas não podem. A promessa do direito positivo é a mesma para
todos, mas os sujeitos da injustiça social sabem bem que não podem ter as mes-
mas expectativas normativas que os demais. Vale registrar que nesses cenários
acima descritos, o problema não necessariamente decorre do empobrecimento.
Uma família de classe média alta pode ter muitas dificuldades e ser submetida
a uma dose maior de sofrimento por não encontrar uma escola que permita a
matrícula e a permanência de uma criança que por qualquer razão tenha algum
déficit cognitivo. Essa criança é também sujeito de uma injustiça social.
Existem, ao menos, três possibilidades de piorar a situação de exposição
e vulnerabilidade dos menos favorecidos. A primeira é quando as pessoas que
são atingidas por violências decorrentes de preconceito, discriminação ou in-
diferença, são também economicamente empobrecidas; ou o contrário, quando
os que são economicamente empobrecidos são adicionalmente atingidos pelas
violências oriundas no preconceito, discriminação ou indiferença. Nesse caso

84
Direito e Emancipação – Volume I

temos uma violência agravando a outra e isso reduz ainda mais a possibilidade
de garantia dos direitos desses sujeitos ou grupos de sujeitos. Isso é o que ocorre
com grande parte da população brasileira e mundial. É fundamental que os
juristas se deem conta que esse não é apenas um problema da política ou da
economia. É também um problema do mundo jurídico, pois existem direitos
subjetivos que são denegados e bens jurídicos que são aviltados. A segunda
possibilidade se dá quando uma pessoa que não apresenta uma determinada
identidade para qual se voltam formas específicas de violência, possui um tipo
de comportamento, desenvolve uma performance social, por meio da qual ela
se coloca junto com aquele que sofre a violência. Não se trata apenas de solida-
riedade. O que se coloca aqui é que o engajamento político de alguém nas de-
mandas legítimas do oprimido faz com que a violência destinada a este também
se volte contra aquele. Talvez o exemplo mais comum seja em relação ao movi-
mento LGBT – lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. É usual que heterossexu-
ais engajados no movimento LGBT sejam “acusados” em relação às suas prefe-
rências sexuais, como se isso fosse uma ofensa. A mesma violência destinada ao
grupo LGBT também se pratica contra quem desenvolve uma performance, isto
é, estabelece um desempenho ou comportamento social e político que o coloca
como parte daquele grupo, ainda que não possua a mesma identidade do grupo.
Nesse exemplo, temos que se a pessoa já sofria algum preconceito, digamos, por
ser negro, esse preconceito irá se agravar em função de seu comprometimento
com a causa LGBT. Mas se a pessoa não sofrer nenhum tipo de opressão por
razões identitárias, passará a sofrer em razão da sua performance. Há, portan-
to, um aprofundamento ou uma ampliação do círculo da violência em termos
subjetivos. Claro que, por outro lado, isso torna a ação política da performance
mais radical, o que ajuda a fortalecer as lutas contra a injustiça social. A ter-
ceira possibilidade de piorar a situação de exposição e vulnerabilidade dos me-
nos favorecidos ocorre, ironicamente, em face do próprio direito positivo. Isso
acontece quando os sujeitos da injustiça social, após terem suas expectativas
jurídicas frustradas pela denegação de direitos, se organizam em movimentos
sociais que pretendem i) protestar, tornando pública a violência sofrida, dando
a ela maior repercussão social, ii) reivindicar os direitos denegados, seja pres-
sionando o estado, seja pressionando parte da sociedade civil, iii) apresentar
uma forma alternativa, em relação ao direito positivo e às políticas públicas
estatais, de vivenciar aqueles direitos denegados. Por sua própria natureza, em
diversas ocasiões estes movimentos existem a atuam na fronteira do direito po-

85
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

sitivo. Nesses casos, os agentes da cena jurídica nem sempre sabem muito bem
como reagir a tais movimentos e acabam por instrumentalizar os mecanismos
do direito positivo para reforçar a ação política contrária aos movimentos. Não
é a toa que muitas vezes essa ação política conservadora é identificada com o
slogan lei e ordem. Assim, em diferentes momentos, o direito positivo e o aparato
estatal acabam por dar aos movimentos sociais o mesmo tratamento que dão ao
crime comum, igualando as eventuais transgressões cometidas pelos movimen-
tos sociais àquelas perpetradas pelo infrator penal. Ocorre, então, o fenômeno
da criminalização dos movimentos sociais186 que pretende retirar do movimento
sua pretensão de legitimidade decorrente da condição de sujeitos da injustiça
que lutam por direitos, pela transformação social e pela superação da injustiça.
Com isso pretende-se fazer crer que a ação política desses movimentos represen-
taria perante a sociedade o mesmo tipo ou nível de infâmia do que crimes como
roubo, homicídio ou corrupção. Acontece, então, que o sujeito da injustiça é
novamente injustiçado, seja em nível político, jurídico ou simbólico. Todavia,
como o espaço publico é uma arena aberta de manifestação e ação política, para
todos os sujeitos, por vezes acontece um tratamento diferenciado entre aqueles
que pertencem aos movimentos sociais e os cidadãos manifestantes não organi-
zados. Certos políticos e juristas e a grande imprensa em geral parecem querer
com esse tratamento diferenciado, preservar a legitimidade do espaço público
e das manifestações democráticas, mas retirá-la dos movimentos sociais orga-
nizados. Com efeito, surgem perigosos rótulos do tipo subversivos, baderneiros e,
até mesmo, terroristas. Enquanto, do outro lado, manifestantes individuais são
chamados de pacíficos, ordeiros ou pessoas de bem.
Essas três possibilidades de piorar a situação de exposição e vulnerabili-
dade dos sujeitos da injustiça social acontecem em face do direito positivo. Isso
parece revelar que a empiria que é tão importante aos positivistas só vale até
certo ponto, ou seja, vale para destacar o fenômeno jurídico da realidade social
e apresentá-lo como uma disciplina própria, assegurando que sua normativida-
de aconteça fundamentada em suas próprias premissas. Mas o recurso à mesma
empiria perde força no positivismo jurídico quando esse é obrigado a enfrentar

186 Cf. GONÇALES, Guilherme Leite. Convicções Favoráveis versus Aparelhos de Estado: uma análise das
mobilizações sociais e sua criminalização na história recente brasileira. In CUNHA, José Ricardo. (Org.)
Investigando Convicções Morais: o que pensa a população do Rio de Janeiro sobre os Direitos Humanos. Rio
de Janeiro: Gramma, 2015.

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Direito e Emancipação – Volume I

o drama do sujeito da injustiça social, pois mesmo a observação fática de todas


as contradições que geram a injustiça não é suficiente para que esse problema
seja assumido como um problema jurídico. A reação mais usual no âmbito do
paradigma positivista é excluir a questão como sendo metajurídica, empurran-
do-a para o que seriam outros fóruns de debate, como a política ou a moral.
Assim, os diferentes sujeitos ficam lançados de forma homogênea diante da lei
que, para assegurar a igualdade formal, não faz distinção entre eles. Com isso,
fica muito difícil reconhecer e situar a dor do outro. E fica mais difícil ainda
distinguir entre os diferentes tipos de sofrimento gerados pela injustiça social,
de maneira que o outro que sofre essa injustiça emerge de forma massificada,
idealizada ou rotulada sob a perspectiva normativa do direito positivo e, por
consequência, diante dos agentes da cena jurídica. Desse movimento, que po-
demos chamar de dissolução do outro diante da normatividade jurídica, resulta
uma impossibilidade crônica de sociabilidade e, muito mais, de solidariedade,
de afeto. Para reverter esse movimento e instaurar sociabilidade e solidariedade
de maneira efetiva, seria necessário considerarem-se as opiniões, necessidades
e urgências do outro, especialmente daqueles que mais sofrem – um sofrimento
objetivamente situado, que é o da injustiça social – para superar a opressão, a
exclusão e a miséria.187 Mas isso implicaria levar as fronteiras do direito para
além de onde os positivistas em geral estão dispostos.
Essas fronteiras alargadas do direito positivo, podem, de alguma maneira,
ser melhor entendidas a partir do conceito de direito responsivo, conforme ex-
posto por Philippe Nonet e Philip Selznick.188 Esses autores criticam a maneira
como em várias experiências sociais o direito foi instrumentalizado e usado
pela política, sempre a serviço dos grupos dominantes da sociedade. A esse tipo
de direito eles denominam direito repressivo, sendo este aquele que é marcado
fundamentalmente pelo discurso da lei e da ordem e pela ação policial. Os in-
teresses e as necessidades dos cidadãos são subordinados às conveniências das
autoridades públicas e dos órgãos da administração. Em geral, as leis, a adminis-
tração e o próprio sistema de justiça estão voltados para assegurar os privilégios
dos poderosos e a subordinação dos oprimidos. O direito possui um caráter
mais punitivo e sua legitimidade se dá com base no discurso de manutenção da

187 Cf. BRONNER, Stephen Eric. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Campinas: Papirus, 1997, pp. 400-404.
188 Cf. NONET, Philippe. SELZNICK, Philip. Direito e Sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo.
Rio de Janeiro: Revan, 2010.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

ordem e da razão de estado.189 Após a crítica ao direito repressivo, eles consta-


tam que este modelo tende a sofrer uma transição em direção a outro tipo que
eles denominam de direito autônomo. Nesse segundo paradigma, o direito se
autonomiza em relação às forças políticas e se converte ele mesmo em fórum de
avaliação da política nos termos da lei. Age de forma a limitar o poder e nessa
ação busca sua própria legitimidade. Sua maior virtude é o devido processo
legal, pois com ele pretende impor um procedimento imparcial e limitar os pró-
prios agentes do sistema de justiça.190 Contudo, o debate sobre a interpretação
e aplicação das leis no direito autônomo acaba por abri-lo em direção à ideia
de direitos em sentido material e, com isso, ocorreria, conforme os autores,
uma segunda transição, agora em direção ao modelo do direito responsivo. Este
último modelo é marcado por uma visão mais inclusiva dos cidadãos em geral
e das demandas sociais. É um direito regido pela soberania dos fins da ordem
jurídica, o que o torna mais flexível e aberto à defesa das causas públicas. Supõe
um dever de civilidade de todos os cidadãos, seja entre eles, seja em relação à
administração, com obediência consciente à lei. Isso também implica maior en-
gajamento no espaço público, especialmente nas ações políticas e judiciais por
garantia de direitos. Sua legitimidade se dá nos termos da busca por uma justiça
substantiva.191 Certamente, o positivismo jurídico tende, em linhas gerais, a se
ajustar mais confortavelmente no modelo do direito autônomo, que sem dúvida
nenhuma é virtuoso quando comparado ao direito repressivo. Mas a despeito de
outras críticas que poderiam ser feitas, uma questão grave em relação ao direito
autônomo é que não leva em consideração de maneira satisfatória o problema
da vulnerabilidade das pessoas, em especial dos sujeitos da injustiça social.
Essa questão da vulnerabilidade foi trabalhada, dentre outros autores, por
Martha Fineman. Inicialmente sua investigação estava voltada para o tema dos
direitos, mas depois centrou-se na questão humana, dos sujeitos.192 O ponto
central da vulnerabilidade, para a autora, é que esta é inerente à condição hu-
mana e, por isso mesmo, está presente até mesmo nas instituições sociais que

189 NONET, Philippe. SELZNICK, Philip. Ob. Cit., pp. 71-98.


190 NONET, Philippe. SELZNICK, Philip. Ob. Cit., pp. 99-120.
191 NONET, Philippe. SELZNICK, Philip. Ob. Cit., pp. 121-170.
192 FINEMAN. Martha. The Vulnerable Subject: Anchoring Equality in the Human Condition. In Yale
Journal of Law and Feminism, Vol. 20, No. 1, 2008.

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Direito e Emancipação – Volume I

nós construímos, incluindo o estado.193 Sendo inerente à condição humana ela


é universal e constante e não se fixa apenas em determinados grupos identitá-
rios. E como as instituições sociais também expressam essa vulnerabilidade, elas
estão sujeitas a certa flexibilidade decorrente dos diferentes usos da máquina
pública ou das pressões políticas, econômicas ou culturais que são feitas sobre
ela. Disso decorrem determinadas práticas institucionais e políticas, mais ou
menos obscuras, que produzem uma distribuição altamente desigual de bene-
fícios e encargos na sociedade. Esse tratamento injustamente desigual também
pode decorrer de outras instituições sociais além do estado, como escolas, em-
presas e o mercado de maneira geral. É exatamente esse tipo de desigualdade
que caracteriza a vulnerabilidade que nos afeta, em maior ou menor medida,
a todos. Não se trata de uma questão de responsabilidade individual, pois isso
tem menos a ver com a conduta dos sujeitos e mais a ver com o funcionamento
das instituições sociais. Em função disso, Fineman resiste às abordagens igua-
litárias centradas exclusivamente em grupos sociais definidos por uma identi-
dade específica. Muitas vezes estes grupos são rotulados como demandantes
obstinados, o que produz consequências negativas para o próprio grupo. Tais
consequências podem ser, de um lado, esses grupos serem postos em situação
de vigilância e controle permanente por parte das instituições sociais. De outro
lado, por parte da sociedade, os mecanismos de luta social destes grupos pode
produzir um desgaste em relação às suas demandas, eventualmente até mesmo
uma antipatia, o que acarreta uma dissolução de empatia e aquela perda de
solidariedade, conforme já comentado. Para a autora, a luta de grupos sociais
identitários pode sim gerar um movimento de conquistas de direitos, mas isso
não significa que se convertam em direitos para todos. Existem pessoas que,
por qualquer razão, podem não se identificar com aquele grupo para o qual os
direitos foram assegurados e elas estarão ainda fragilizadas em sua própria vul-
nerabilidade. Além disso, as experiências de vulnerabilidade são tão singulares
quanto singulares são os sujeitos. Isso significa que mesmo num determinado
grupo identitário, pessoas diferentes podem ter tratamentos diferentes por parte
das instituições sociais, de forma a amenizar ou agravar sua própria vulnerabi-
lidade. Como diz Fineman:

193 FINEMAN, Martha. Equality, Autonomy, and the Vulnerable Subject in Law and Politics. In FINEMAN,
Martha. GREAR, Anna. Vulnerability: reflections on a new ethical foundation for law and politics.
Farnham: Ashgate, 2013, p. 13.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

O reconhecimento de que a vulnerabilidade varia de acordo com as ex-


periências individuais, revela um ponto decisivo e um tanto paradoxal
acerca da vulnerabilidade: ao mesmo tempo em que ela deve ser inicial-
mente entendida como universal e constante já que considerada uma
condição humana geral, a vulnerabilidade deve ser simultaneamente en-
tendida como particular, diversificada e única em um nível individual.194

A reflexão de Martha Fineman nos ajuda a entender melhor a maneira


como todas as pessoas são colocadas diante do direito positivo. Enquanto para
alguns pode ser uma posição de proteção, para outros pode ser uma situação de
abandono. Essa é nossa vulnerabilidade. Entretanto, a despeito da resistência
de Fineman em considerar grupos identitários como sujeitos específicos de vul-
nerabilidade, é preciso reconhecer que há locais ou situações onde a identidade
aparente já é, por si só, causa de preconceito ou discriminação. Isso torna não
apenas compreensível, mas justificada a formação de grupos identitários que
lutam por reconhecimento e por direitos. Porém, não se deve acreditar que as
lutas de grupos sociais por reconhecimento expressem a totalidade do drama
dos que sofrem injustiças sociais. O fato é que os menos favorecidos estão mais
fragilizados e por isso merecem uma consideração especial, mas não como in-
divíduos abstratos e nem como grupos identitários rotulados, mas sim nas suas
respectivas singularidades. Esse é um aspecto que deveria ser observado aprio-
risticamente na relação jurídica. Trata-se de um dever geral de prudência que se
impõe em relação a todos os seres humanos, em especial aos que mais sofrem.195
Se esse dever geral de prudência não é levado em conta e, de efeito, não se
converte em inspiração de zelo, a fragilidade diante da lei a que todos estamos
expostos pode ser aumentada em níveis extraordinários, ao ponto do estado
de direito ser convertido em estado de exceção permanente. Aqui, é preciso

194 FINEMAN, Martha. Ob. Cit., p. 21.


195 O princípio geral desse dever de prudência pode ser facilmente visualizado no Código de Trânsito
Nacional – Lei 9.503/97 – no artigo 29, § 2º que dispõe: Respeitadas as normas de circulação e conduta
estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela
segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres.
A ideia geral é que os maiores são sempre responsáveis pelos menores. O principio que vale para o
trânsito também vale para a vida em sociedade como um todo.

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Direito e Emancipação – Volume I

retornar a Walter Benjamin, quando ele afirma que a tradição dos oprimidos nos
ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra geral.196
A afirmação de Benjamin, no que fala sobre o estado de exceção e no
que cala sobre o estado de direito, parece revelar uma verdade inconveniente
para o positivismo jurídico. Ao pleitear o direito como direito positivo, os posi-
tivistas o desvinculam de todos os seus laços, exceto com o laço da autoridade
competente que o institui num exercício de poder soberano. Austin referiu isso
claramente ao dizer que o direito positivo é posto por um soberano, sendo este
aquele não possui o hábito de obediência a nenhum superior, mas que recebe a
obediência habitual da população em geral de uma sociedade.197 Assim sendo,
o único vínculo social e histórico que sustenta o direito positivo na visão dos
positivistas é o ato de soberania que o instaura. Porém, apesar de algumas con-
cepções da teoria política que pretendem alocar na base da soberania uma von-
tade popular supostamente democrática, as visões mais realistas demonstram
que a soberania é em si mesma uma questão difícil para a democracia. Austin
não deixa dúvida que a vontade soberana é aquela que impõe limites sem ser
ela mesma limitada. Numa perspectiva semelhante, Carl Schmitt declara em
alto e bom tom no início de sua Teologia Política I: soberano é quem decide sobre
o estado de exceção.198 Quando colocamos em sequência o raciocínio de Austin,
Schmitt e Benjamim, chegamos à verdade inconveniente acima referida.
Mesmo sem incluir Austin na sua análise, Giorgio Agamben explorou
até as últimas consequências esse problema do estado de exceção, mostrando
como, de certa forma, ele não se coloca exatamente como um antípoda do esta-
do de direito.199 Em outras palavras, o estado de exceção, como resultado de um
ato de soberania não é a negação do estado de direito, mas uma forma diferen-
ciada de sua própria continuidade. Assim ocorre na medida em que a força da
lei transcende a própria lei para repousar na autoridade decisional daquele que
a aplica, ou deixa de aplicar. Trata-se de uma força de lei sem necessariamente

196 BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e
Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Volume I. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 226.
197 AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. In AUSTIN, John. Lectures on Jurisprudence,
or, The Philosophy of Positive Law. Vol. I. London: John Murray, 1911, pp. 220-221 (lecture VI).
198 SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 7.
199 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

lei, ou seja, de um espaço aparentemente legal, mas verdadeiramente anômico.


Essa é uma profunda vulnerabilidade à qual todos estamos sujeitos diante do
direito positivo. Uma lei que existe, mas não é aplicada é força de lei sem lei. É
força da autoridade que está por trás da lei, ainda que, pelo ato que excepciona
a aplicação da lei, possa ter perdido a legitimidade que deveria caracterizar uma
autoridade. Perdida está a legitimidade, mas não a força. Essa situação frágil,
mesmo que caracterize uma vulnerabilidade universal como quer Martha Fine-
man, é mais radical quando se pensa o sujeito da injustiça social. Esses, mais do
que vulneráveis, estão abandonados diante de um direito positivo que vale para
todos, mas para eles pode valer sem ser aplicado, isto é, como exceção. Giorgio
Agamben cita as reflexões de Jean-Luc Nancy para que melhor seja entendido
o problema do abandono perante a lei:

Abandonar é remeter, confiar ou entregar a um poder soberano, e re-


meter, confiar ou entregar ao seu bando, isto é, à sua proclamação, à
sua convocação e à sua sentença. Abandona-se sempre a uma lei. A
privação do ser abandonado mede-se com o rigor sem limites da lei à
qual se encontra exposto. O abandono não constitui uma intimação a
comparecer sob esta ou aquela imputação da lei. É constrangimento a
comparecer absolutamente diante da lei, diante da lei como tal na sua
totalidade. Do mesmo modo, ser banido não significa estar submetido
à uma certa disposição da lei, mas estar submetido à lei como um todo.
Entregue ao absoluto da lei, o banido é também abandonado fora de
qualquer jurisdição...200

O abandono diante da lei é, por assim dizer, o abandono diante do poder


de uma lei que não prescreve nada além de si mesma, além de sua própria vigên-
cia vazia e sem sentido. O abandono remete, portanto, ao poder da soberania
acima da lei; ele se refere ao poder político que atua por meio do direito, isto é,
aplicando e desaplicando a lei conforme sua conveniência ou interesse. É uma
espécie de lei sem lei – ou sem jurisdição, como afirmou Nancy – que submete
aqueles que a ela foram abandonados, ou seja, aqueles que não têm mais a quem
ou a que recorrer. Estes formam o bando da lei. O bando é a consequência ime-
diata do ato de bandir, isto é, de banir quem não pertence àquela facção. Esses

200 NANCY. Jean-Luc. L´impératif catégorique. APUD AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder
soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: EdUFMG, 2004, p. 66.

92
Direito e Emancipação – Volume I

que foram abandonados, banidos, são sempre vistos com maus olhos, são chama-
dos de bandoleiros por que pertencem ao bando da lei (abandonados pela lei).
Eles foram bandidos pela lei e por que seu próprio abandono diante da lei é visto
como um crime em si mesmo, também são tidos como bandidos e, como tal,
são socialmente taxados como culpados e, de efeito, tornam-se vidas matáveis.
Esses são os que Giorgio Agamben chama de homo sacer.201
O homo sacer está abandonado ao domínio de uma legalidade que vige
apenas para reproduzir-se e perpetuar-se a si mesma como forma de exercício de
seu próprio poder. Para Agamben, o elemento chave de compreensão do homo
sacer é a estrutura da sacratio, conforme estabelecida no direito romano. Esta era
constituída por dois elementos: o veto do sacrifício e a impunidade de sua morte.
O homo sacer era aquela pessoa condenada pelo cometimento de determinado
delito que por sua natureza o transformava em pessoa impura ou ser pertencente
aos deuses. A curiosa contradição é essa que fazia da pessoa ao mesmo tempo
impura e ser dos deuses, algo como maldito e anjo ao mesmo tempo. Por ser anjo
– santificado, sacralizado – ou pertencente aos deuses, ele não podia ser sacrifi-
cado ou executado, mas por ser impuro ou maldito ele era abandonado à própria
sorte e qualquer do povo que o sacrificasse não estaria cometendo um delito,
não poderia ser punido. O homo sacer quebra o princípio da não contradição e se
apresenta a um só tempo como puro e impuro, como fasto e nefasto. Pela trans-
gressão cometida o homo sacer é abandonado pela lei, sendo exilado do humano
sem, contudo, passar ao divino. Portanto, apesar de puro ele é não purificado,
não há como expiar a culpa, por isso ele entra na comunidade humana pela sua
desumanização, pela sua própria matabilidade. Afirma Agamben:

Aquilo que define a condição de homo sacer, então, não é tanto a pre-
tensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto,
sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra
preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte
insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não
é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como
execução de uma condenação e nem como sacrilégio. 202

201 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: EdUFMG,
2004, pp. 79-117.
202 AGAMBEN, Giorgio. Ob. Cit., p. 90.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

O homo sacer representa, com efeito, o processo mais radical de abandono


produzido por um estado de exceção que convive com um estado de direito que
se apresenta sob uma perspectiva meramente formal. O paradoxo da soberania,
de uma lei que aplica-se “desaplicando-se”, desvela o aspecto mais perverso da
vulnerabilidade específica do homo sacer: estar em questão qual vida vale ser
vivida. Nesse nível admite-se que podem existir vidas que chegaram ao ponto
de perder a qualidade de bem jurídico e moral e, assim, já perderam totalmente
o valor tanto para seu próprio portador como para a sociedade. Como vida, per-
manece sendo não sacrificável pelo estado, mas como vida sem valor fica sujeita
à matança impune. De um ponto de vista mais pessoal e particular, esse debate
nos remete para problemas como o da eutanásia, mas de um ponto de vista mais
geral tal debate nos remete, exatamente, para o problema do sujeito da injustiça
social. Seja por um absurdo empobrecimento, seja estar sujeito ao preconceito e
à discriminação sistêmica, ou ambos, os sujeitos da injustiça social podem, em
certos casos mais extremos, ser verificados como vidas miseráveis e matáveis,
vidas sem valor. Não será difícil imaginar diversas cenas sociais onde isso acon-
tece: cenas de privação absoluta, de ódio ou intolerância. Isso sem falar no já
referido movimento de criminalização dos movimentos sociais, onde a polícia
é transformada em mediadora e repressora das demandas populares e o encar-
ceramento passa a ser a política pública exemplar. É o mais absoluto abandono
que se dá sob o manto da lei que assegura a ordem para a impunidade das vio-
lências praticadas contra os sujeitos da injustiça social.
Até aqui foram feitas algumas críticas ao positivismo jurídico, tais como
redução do direito à técnica, descrição do fenômeno jurídico com redução de
complexidade, fetichização da lei e vulnerabilidade das pessoas diante do direi-
to positivo. Em comum a todas elas está a questão do sujeito da injustiça. Nesse
ponto, qualquer positivista poderia alegar que o positivismo jurídico nunca se
preocupou em criar um espaço específico em sua teoria para o sujeito da injus-
tiça porque esta classificação por si só remete a uma avaliação moral: justo ou
injusto, justiça ou injustiça. É exatamente esta avaliação moral que os positi-
vistas pretendem excluir dos domínios jurídicos, para que o direito possa estar
isento de compromisso com alguma corrente ou doutrina moral. Como nos
adverte Henri Batiffol, um positivista bem poderia argumentar que a incorpo-
ração de uma filosofia na lei conduz à imposição em nome da lei de uma determi-
nada filosofia – que será sempre contestável e contestada, para maior prejuízo da

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Direito e Emancipação – Volume I

liberdade de opinião e da autoridade da lei.203 Isso nos conduz de volta às teses de


Norbert Hoerster na defesa do positivismo jurídico.204 Cinco foram as teses por
ele enumeradas: 1) Tese da lei: o conceito de direito tem que ser definido por
meio do conceito de lei; 2) Tese da neutralidade: o conceito de direito tem de ser
definido prescindindo-se de seu conteúdo; 3) Tese da subsunção: a aplicação do
direito pode levar-se a cabo em todos os casos mediante uma subsunção livre de
valorações; 4) Tese do subjetivismo: os critérios do direito justo são de natureza
subjetiva; e 5) Tese do legalismo: as normas do direito devem ser obedecidas em
todas as circunstâncias. Vale recordar que segundo o autor as Teses 1, 3 e 5 se-
riam indefensáveis mesmo perante a teoria positivista. A Tese 1 é indefensável,
segundo Hoerster, porque é sabido e aceito amplamente que há outras fontes
do direito, como a jurisprudência, por exemplo. A Tese 3 estaria errada porque
não haveria nenhum motivo para acreditar que aqueles que aplicam o direito,
especialmente juízes, sejam “autômatos da subsunção”, sempre procedendo com
base em silogismos. Por fim, a Tese 5 não seria defensável porque o fato da
norma ser válida não significa que ela possua também uma presunção de obri-
gatoriedade e obediência de um ponto de vista moral. Ele apresenta o exemplo
de que um positivista poderia considerar que uma lei racista é juridicamente
válida, mas que dadas as exigências morais poderia também achar que esta lei
racista deva ser rechaçada e não obedecida.
Na sua reflexão, Hoerster parece considerar os argumentos da exclusão
das Teses 1, 3 e 5 bastante óbvios ou intuitivos. Mas eles não são tão pacíficos
assim. Veja-se o caso da Tese 1. Nos países de sistema romano-germânico ou de
Civil Law a lei sempre teve um papel de fonte do direito por excelência, de tal
forma que qualquer outra fonte apenas seria aceitável na medida em que não
violasse a lei. Isso significa que reconhecer que há outras fontes do direito não
resolve uma questão cara ao positivismo legalista ou normativista que é a da
precedência das fontes estatais sobre eventuais fontes não estatais do direito.
Seria assim aceitável para a maior parte dos positivistas legalistas e normati-
vistas que um costume poderia revogar uma lei? Em qualquer lugar do mundo
em países de Civil Law isso seria, no mínimo, objeto de um intenso debate na
comunidade jurídica e, a depender do caso, na própria sociedade. Mas vamos

203 BATIFFOL, Henri. A Filosofia do Direito. Lisboa: Editorial Notícias [s.d.], p. 15.
204 HOERSTER, Norbert. Em Defensa Del Positivismo Jurídico. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

admitir como o faz Hoerster que esta não é uma questão para o positivismo
jurídico e passemos, então, à Tese 3.
Ela também é facilmente refutada pelo autor, sob o argumento de que
operadores do direito não são autômatos. Hoerster parece se alinhar com os
críticos do positivismo, mas, ao mesmo tempo, desqualifica a crítica dizendo
que essa Tese não deve ser associada ao positivismo jurídico. Novamente te-
mos aqui um ponto de dúvida e reflexão. É sabido que a segurança jurídica é
um dos argumentos mais usados a favor do positivismo. Dimitri Dimoulis, na
forma como apresenta e defende o positivismo jurídico, esclarece de maneira
eloquente que não se deve criar expectativas irrealistas de previsibilidade ab-
soluta das consequências de incidência das normas nas relações jurídicas ou
nos fatos juridicamente relevantes em geral. Porém, assevera que é aceitável o
argumento da segurança jurídica se tomado como preservação de competências
constitucionalmente distribuídas. Segue afirmando: se as leis são ultrapassadas
ou disfuncionais, elas devem ser modificadas mediante reforma realizada pela au-
toridade competente.205 A defesa não apologética da segurança jurídica feita por
Dimoulis é, certamente, a mais adequada no debate teórico acerca do positi-
vismo jurídico. Mas note-se que mesmo diante dessa perspectiva minimalista
de segurança jurídica, o argumento usado por Hoerster para refutar a Tese 3
parece ser demasiadamente simples. Isso porque admitir tranquilamente que
juízes podem fazer considerações de valores ao interpretarem e aplicarem a nor-
ma, não se prendendo assim à subsunção, implica assumir que eles possam, em
certos casos, interferir no mandamento de uma norma criada pela autoridade
constitucionalmente competente. Esse é o ponto de um extenso debate sobre
judicialização da política e ativismo judicial que há décadas ocorre fora e dentro
do Brasil. Daí a pergunta: seria assim aceitável para a maior parte dos positi-
vistas que juízes apliquem a lei fazendo juízos de valor, ao ponto de derrotar o
texto da norma elaborada pela autoridade constitucionalmente competente?
Certamente a resposta seria precedida de um intenso debate e a Tese 3 não seria
descartada tão facilmente como faz Hoerster. Mas sigamos admitindo, com o
autor, a refutação da Tese 3 e passemos à Tese 5.
Essa Tese não apenas é considerada por Hoerster como indefensável, como,
segundo ele, é a que mais ofereceria munição para a crítica ao positivismo. Uma

205 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 201.

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Direito e Emancipação – Volume I

crítica que ele indica ser descabida, já que nada no positivismo jurídico deveria
levar a crer que exista uma obrigação moral de obediência ao direito. Aliás, o
mesmo argumento é sustentado por Hart ao dizer que poderíamos afirmar de
forma simples e cândida: Isso é direito, mas é demasiado iníquo para ser aplicado
ou obedecido.206 Aqui é fundamental esclarecer que o ponto central não é da
obrigação moral, mas sim o da coercitividade do direito. O exemplo de que se
pode considerar a lei racista válida e, ao mesmo tempo, rechaçá-la para que ela
não seja obedecida, parece não levar em consideração que a ordem jurídica se
atrela à ordem estatal que possui mecanismos expressivos de coação e sanção.
Nesse argumento, Dimoulis concorda com Hoerster, e com Hart, ao afirmar
que o positivismo jurídico em si mesmo não impõe um dever de obediência ao
direito, ficando este a critério de cada destinatário que julgará se e por que o direito
deve ser obedecido de acordo com suas crenças e interesses.207 Continua dizendo
que o positivismo jurídico apenas oferece uma descrição para fins de informação
sobre o que ”é” o direito e não deseja que alguém atue da forma juridicamente pres-
crita.208 Não resta dúvida de que o argumento é convincente, especialmente
quando Dimoulis alega que dessa maneira evita legitimar como sendo moral a
decisão de uma autoridade qualquer que criou uma dada norma jurídica. O pro-
blema com o argumento é que ao colocar a responsabilidade pela obediência ao
direito exclusivamente como uma decisão pessoal, sem levar em consideração
os mecanismos de repressão e sanção do próprio direito, parece reiterar a vul-
nerabilidade e o abandono das pessoas diante do direito positivo. Nesse sentido,
essa omissão da teoria jurídica ou da filosofia do direito acabaria por reforçar as
condições sociais por meio das quais alguns podem decidir não obedecer a lei e
enfrentam consequências mínimas ou nenhuma, ao passo que outros tomam a
mesma decisão e enfrentam as consequências mais gravosas, podendo, inclusi-
ve, no limite da repressão, pagar com a própria vida. Esse é o dilema do sujeito
da injustiça social. Seja por razões econômicas, políticas ou culturais ele estará
mais uma vez abandonado à própria sorte diante da lei, para que “escolha” não
cumpri-la e, com isso, tenha que facear todo tipo de consequências, incluindo
aquelas não previstas na lei, já que sabemos que a lei pode, na vida real, ser ex-
cepcionada na forma de um estado de exceção que se pratica permanentemente

206 HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 224.
207 DIMOULIS, Dimitri. Ob. Cit., p. 268.
208 DIMOULIS, Dimitri. Ob. Cit., p. 269.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

contra o oprimido. Nessa linha, a filosofia do direito positivista é um alívio para


os fortes e um infortúnio para os fracos, pois descreve para ambos o direito e diz
a eles: decidam! Esperar que os sujeitos da injustiça social simplesmente decidis-
sem contrariamente à lei, mesmo vivendo na pele toda a sorte de opressão que
enfrentam, seria exigir deles que fossem heróis. E toda teoria jurídica sabe que
o direito não é feito para heróis e sim para pessoas comuns.
Passando às teses que Hoerster entende que definem sim o positivismo
jurídico, temos a Tese 4) Tese do subjetivismo: os critérios do direito justo são de
natureza subjetiva; e a Tese 2) Tese da neutralidade: o conceito de direito tem de
ser definido prescindindo-se de seu conteúdo. A Tese 4 também é compartilha-
da por Austin209 e por Kelsen.210 Já Hart não coloca esta tese no centro de sua
teoria, pois para ele ainda que pudéssemos falar em termos de uma moralidade
objetiva e racionalmente conhecida por todos, isso não afetaria o que realmente
importa que é a Tese da neutralidade ou validade da norma independente de
critérios morais.211 Apesar de Hoerster defender a Tese 4 como sendo genui-
namente positivista, o fato de Hart não lhe conceder tanta importância, já a
enfraquece de alguma forma. O problema do subjetivismo ou relatividade da
moral pode ser enfrentado em vários aspectos. Hart, por exemplo, leva o debate
em termos da avaliação da possibilidade de se fazer uma cognição das propo-
sições deônticas, isto é, de se chegar a um consenso racional acerca do sentido
dos juízos de valor da mesma forma que se pode chegar a um consenso racional
sobre juízos de fato.212 Outra possibilidade de problematizar a questão, tão cara
a boa parte da filosofia política e filosofia moral da modernidade, diz respeito
a uma tradição que vem de Aristóteles e chega a Hegel. Segundo esta tradi-
ção a realização das virtudes que definem uma vida boa e honrada está ligada
diretamente ao espírito comunitário que caracteriza a vida política. É na polis
que as virtudes são encontradas e praticadas. Hegel deu especial atenção a este
aspecto, pois segundo ele a moralidade só pode assumir uma dimensão concreta
como ação política.213 É na práxis social que o universal e o particular se fundem

209 AUSTIN, John. The Province of Jurisprudence Determined. In AUSTIN, John. Lectures on Jurisprudence,
or, The Philosophy of Positive Law. Vol. I. London: John Murray, 1911, p. 174 (lecture V).
210 KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 69-70.
211 Cf. HART, Herbert. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, pp. 89-95.
212 HART, Herbert. Ob. Cit., pp. 90-91.
213 Cf. HEGEL, Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. São Paulo: Loyola, 1995, p. 290.

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Direito e Emancipação – Volume I

como consciência de si que é também para si 214 e, assim, pode realizar os fins
próprios da vida em sociedade. Hegel usa a palavra alemã Sittlichkeit que, como
lembra Charles Taylor, já foi traduzida de diferentes formas, tais como vida ética
ou ética objetiva. Para esse momento específico de nossa reflexão, importa dizer
que essa palavra designa um conjunto de obrigações morais que tenho com a
comunidade que faço parte.215 Essas obrigações morais se forjam como espírito
objetivo ou ideia objetiva na vida do povo, o indivíduo que é o mundo, diz Hegel
216
e, assim, ganham uma efetividade imediata e universal como um costume
que se impõe de forma objetiva e, por isso, se torna uma natureza.217 Em outras
palavras, trata-se de encontrar na vida social aquilo que é, valores vigentes que
geram obrigações comuns e dão sentido moral às nossas ações. Essa é uma ma-
neira de entender a questão da moral e dos valores de forma objetiva e que con-
testaria o argumento relativista usado por Hoerster para sustentar a Tese 2. Mas
podemos considerar que a questão da vida ética como colocada por Hegel vai
além do problema da relatividade ou subjetividade dos juízos de valores. Nesse
caso, ainda seria possível buscar outra linha de argumentação para colocar em
questão a Tese da subjetividade. Para isso devemos considerar que é possível
falar, ao menos, de duas concepções acerca da moralidade: 1) Relativista: por
esta concepção cada indivíduo constitui, no âmbito de sua consciência, seu
senso de certo e errado, sua opinião moral. Estas opiniões não podem ser recon-
duzidas à prescrições objetivas de aplicação geral sob pena de um absolutismo
moral; 2) Objetivista: por esta concepção grupos sociais constituem opiniões
morais compartilhadas que se refletem nos costumes e no ordenamento jurídico
deste mesmo grupo. Tal manifestação não pode ser considerada absolutista con-
quanto possam estes mesmos grupos sociais colocar em questão suas opiniões
morais. Manuel Atienza nos adverte que o relativismo moral entendida como
tese prescritiva é uma concepção que nos impede compreender adequadamente
o direito, exatamente porque esse deve buscar na moral objetiva o fundamento
da justificação de suas normas.218 Além disso, ainda que não se acredite na
capacidade da razão prática produzir consensos morais no âmbito de uma dada

214 Cf. HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 410.
215 TAYLOR, Charles. Hegel e a Sociedade Moderna. São Paulo: Loyola, 2005, p. 107.
216 HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 306.
217 HEGEL, Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. São Paulo: Loyola, 1995, p. 295.
218 Cf. ATIENZA, Manuel. Cuestiones Judiciales. México: Fontamara, 2001, pp. 19-20.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

sociedade acerca de conceitos de justiça, é preciso levar em conta que estamos


buscando aqui uma perspectiva do sujeito da injustiça social. Assim, devemos
considerar que mesmo que se entenda que a injustiça possa ser uma experiência
subjetiva, a injustiça social é um dado objetivo e mensurável, ainda que pessoas
diferentes reajam a ela de maneira diferente. Logo, a Tese 4 que afirma que os
critérios do direito justo são de natureza subjetiva, precisa ser repensada quanto
às situações objetivas de injustiça social. Por tudo isso, embora a Tese 4 possa
até mesmo ser razoavelmente intuitiva (é fácil pensar que cada um forma suas
próprias convicções morais), ela está longe de ser pacífica.
Entretanto, o coração do positivismo jurídico está mesmo na Tese 2, qual
seja, Tese da neutralidade: o conceito de direito tem de ser definido prescindindo-
-se de seu conteúdo. Essa tese é comum a todas as formas de positivismo porque
diz respeito à reivindicação básica da separação entre direito e moral, ou seja,
que a validade do direito não repousa na aceitabilidade moral de suas normas,
mas sim na competência da autoridade que as produz. Vimos anteriormente que
Kelsen adota uma premissa interna, a da norma fundamental hipotética ou pres-
suposta, como maneira de regular a validade da norma independentemente de
seu conteúdo. Já Hart se preocupa com as fontes sociais do direito e recorre ao
conceito de norma de reconhecimento como norma secundária do ordenamento
jurídico a garantir a validade das normas primárias, aquelas que estabelecem
direitos e deveres. Mas é preciso considerar também que a questão do direito é
anterior ao problema da validade de suas prescrições. Como lembram Douzinas
e Gearey o sentido de ser do direito está em permitir alguma unidade social e
um senso de vida comunitária, por isso a ciência do direito deve ser a consciên-
cia do direito, uma sabedoria prática apta a articular exigências técnicas com
fundamentos morais, articular a realidade social com as prescrições normativas.
Assim dizem eles: como sabedoria do direito a teoria jurídica reúne o ser e o dever
ser, o positivo e o normativo, lei e justiça.219 Em outras palavras, é necessário reco-
nhecer e respeitar a complexidade própria do fenômeno jurídico e do conheci-
mento do direito para superar dicotomias que são colocadas mais na pena dos
autores do que na vida social.
Douzinas e Gearey explicam como a chamada ciência do direito se bifur-
cou em dois campos de pesquisa: as teorias internas e as teorias externas. As

219 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, pp. 3-4.

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Direito e Emancipação – Volume I

teorias internas adotam o ponto de vista de advogados e juízes e tentam teorizar


os processos de argumentação e justificação usados nos discursos institucionais.
Já as teorias externas tratam as razões, argumentos e justificações como fatos
que devem ser incorporados num contexto não jurídico mais amplo. Segundo
eles, essas teorias são típicas da sociologia do direito e das abordagens marxis-
tas. Assim, no campo teórico do direito haveria uma expectativa de que as teo-
rias externas pudessem ser usadas para calibrar e corrigir os eventuais excessos
formalistas das teorias internas, já que elas poderiam prover mecanismos de
análises social e econômica sobre os efeitos das operações jurídicas. Há nestas
teorias externas um enfoque mais estrutural que busca o posicionamento e os
diferentes padrões de relacionamento entre classes e grupos sociais determina-
dos. Entretanto, esse tipo de visada sobre as questões jurídicas acabou por re-
ceber um tratamento secundário na ciência do direito, ficando, de certo modo,
marginalizada. Com isso, as teorias internas, de caráter normativo, se tornaram
o padrão do conhecimento produzido e reproduzido na formação jurídica e as
teorias externas foram tratadas como suplementares e posicionadas em lugares
menos importantes do currículo das faculdades de direito.220 Tudo isso corrobo-
rou para a formação de uma grande dicotomia entre o ser e o dever ser, o direito
que é e o direito que deveria ser. O resultado mais visível dessa dicotomização
realizada no âmbito da teoria jurídica foi uma certa ascendência do positivismo
a partir do século XIX que se manteve em boa parte do século XX. Por isso
Douzinas e Gearey dizem:

O positivismo é a causa e a consequência da pobreza moral da ciência do di-


reito no século XX. O positivismo baseou a legitimidade do direito em razões
formais e sobre o consequente declínio das considerações éticas. Usando uma
distinção estrita entre fatos e valores, os positivistas excluíram ou minimiza-
ram a influência dos valores morais e dos princípios sobre o direito.221

Não há dúvida de que o positivismo jurídico se amparou em dois grandes


trunfos ou duas grandes apostas: de um lado havia a crença epistemológica de
que a única atitude científica correta seria a observação e descrição isenta dos
fenômenos; de outro lado havia a convicção de que a opção por determinados
valores na vida social deveria decorrer das disputas ordinárias que acontecem

220 Cf. DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Ob. Cit., p. 5.


221 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Ob. Cit., p. 6.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

na cena política. Essas duas crenças parecem ter conduzido a uma conclusão
intelectualmente legítima acerca da validade do direito independentemente da
natureza moral de seu conteúdo, uma vez que o debate moral não seria próprio
nem do cientista e nem do jurista (como cientista do direito). Uma crítica ho-
nesta ao positivismo deve considerar que ambas as apostas do positivismo não
estão exatamente erradas. O problema é que elas não dão conta da complexi-
dade da vida social. Veja-se que no caso da postura epistemológica fundada na
atitude da observação e da descrição, é possível reconhecer que ela é válida e
importante para diversos tipos de conhecimento. Mas há outros saberes que
demandam um grau mais aprofundado de reflexão. Esse é o caso do direito,
pois não se trata aqui apenas de unir duas variáveis diferentes para testar hipó-
teses acerca do comportamento do objeto estudado, como é a conduta típica de
muitas outras áreas do conhecimento. Como instituição que atua na fundação
e manutenção dos laços sociais, promovendo maior ou menor agregação, o di-
reito é uma área do conhecimento que exige de seus especialistas mais do que
observação. Exige reflexão crítica e diálogo com outras áreas. Além disso, é
importante considerar, como o faz Ronald Dworkin, por exemplo, que sendo o
direito uma instituição que mobiliza a seu favor o aparato de coerção do estado,
não basta à teoria jurídica apenas explicá-lo, mas é necessário também justificá-
-lo.222 Na vida social e política de qualquer sociedade democrática, todo exercí-
cio da força deve ser mais do que observado, deve sim ser justificado com base
numa razão pública fundada em valores compartilhados e acessíveis a todos.
Esse aspecto se liga àquela convicção de muitos positivistas de que a opção por
determinados valores deveria decorrer das disputas ordinárias que acontecem
na cena política. Não há nada de errado em acreditar que a cena política é um
lugar para o debate moral da sociedade. O problema consiste em achar que é
mesmo possível concentrar todo o debate moral de uma sociedade numa única
cena. O fato é que o debate moral desconhece fronteiras e sempre transbordará
os limites em direção a outras arenas. E isso não é uma coisa ruim. A história já
mostrou que perigoso mesmo é pensarmos que existem áreas da vida social que
estão isentas do debate moral, pois isso é uma porta aberta para diferentes tipos
de atrocidades que podem ser realizadas em nome de uma suposta neutralidade
de áreas do saber ou áreas técnicas tais como a medicina, a engenharia, a física,
o direito e as ciências em geral. Talvez por isso mesmo parte dos autores positi-

222 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 231.

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Direito e Emancipação – Volume I

vistas tenham reconhecido que certos valores morais podem ser incorporados
ao direito positivo pelas próprias autoridades que produzem as normas e, nesses
casos, eles podem se converter em critérios para a interpretação, aplicação ou
mesmo validade de outras normas. Essa é a posição do chamado positivismo
jurídico inclusivo.223 É um posicionamento atraente, mas não avança na questão
central da separação entre direito e moral já que admite a incorporação dos va-
lores apenas como o resultado de um ato da autoridade competente que cria a
norma válida. De certa forma, isso não é muito diferente do posicionamento de
Hart ou mesmo de Kelsen já que esses nunca afirmaram que o direito é oposto
à moral, ao contrário, ambos admitiram que o direito positivo pudesse conter
normas inspiradas ou que expressassem certos valores. Hart, inclusive, achava
isso desejável. O positivismo inclusivo não afeta a Tese da neutralidade do di-
reito frente à moral, de certo modo a reforça.
Quando pensamos o problema da Tese da neutralidade diante do ponto
de vista do sujeito da injustiça social, a questão que se coloca não é apenas da
inconsistência moral do direito, mas a da generalização das pessoas que estão
diante do direito, como se a lei provocasse uma certa mesmificação dos sujeitos.
Isso nos remete à importância da diferença, sem com isso perder o direito à
igualdade, á claro. Daí a frase de Boaventura de Souza Santos: temos o direito a
ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza.224 Mas é preciso compreender que quando tratamos
do sujeito da injustiça isso exige de nós uma reflexão para além da questão do
direito à igualdade ou do direito à diferença. Evidente que esse debate do direito
à igualdade e à diferença é fundamental, mas o sujeito da injustiça é atraves-
sado por uma temporalidade peculiar ou diferente em relação aos demais. Há
na injustiça uma urgência e uma singularidade que devem ser compreendidas
de forma específica. Para aqueles que vivem o drama da injustiça social, muitas
vezes não basta a igualdade genérica e nem a diferença substancializadora. Su-
por os sujeitos da injustiça social como pessoas autônomas e iguais perante a lei,
ou, então, como pertencentes a um grupo identitário que possui características

223 Cf. COLEMAN, Jules. The Practice of Principle: in defense of a pragmatist approach to legal theory. New
York: Oxford University Press, 2001. COLEMAN, Jules. (Ed.) Hart’s Postscript: essays on the Postscript
to the Concept f Law. New York: Oxford University Press, 2001. WALUCHOW, Wilfrid. Inclusive Legal
Positivism. New York: Oxford University Press, 1994.
224 SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma Concepção Multicultural dos Direitos Humanos. In BALDI,
César Augusto. Direitos humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 272.

103
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

próprias, pode se converter em duas formas de desenraizá-los de sua história e


de suas condições reais, de suprimir as respectivas condições de fala que lhes
permitiriam testemunhar sua própria vivência. Quando isso ocorre, o sujeito da
injustiça é visto como outro inferiorizado sem potência de ação política, como
se fosse o destinatário de alguma caridade ou tolerância, onde essas aparecem
não como consideração, respeito e afeto, mas como benevolência alheia. Nesse
caso, mesmo a eventual garantia de direitos do sujeito injustiçado não é capaz
de sustentar sua emancipação, pois se apresenta como uma ação que se faz
“para” e não que se faz “com”. O problema central da Tese da neutralidade é
que quando ela se coloca neutra em relação aos juízos de valores, por extensão,
também se coloca neutra em relação às pessoas. Isso pode aparecer inicialmente
como alguma virtude por desdobrar-se como tratamento igualitário, entretanto,
impacta na vida social e na ação política como meio de obliteração do sujeito.
Isso pode ser fatal para os que estão em condição de injustiçamento social, seja
porque mantém sobre eles certa invisibilidade, seja porque não reconhece neles
a possibilidade da ação instituinte de novas relações e direitos.
Ao produzir enquadramentos gerais e aplicar-se de forma indistinta o di-
reito nega subjetividades singulares e produz subjetividades abstratas, tais como
“cidadão”, “pessoa”, “nacional”, ou subjetividades essenciais, tais como “mu-
lher”, “negro”, “homossexual”. Nada disso é capaz de comportar a complexida-
de da injustiça como fenômeno social real e singular na vida de cada sujeito. É
por isso que existe uma insuficiência dos critérios formais de validade, mesmo a
norma de reconhecimento de Hart, para lidar com a situação real dos oprimidos
e das suas lutas políticas por visibilidade, por espaço social, por consideração
e por direitos. Essas lutas podem acontecer numa zona de difícil compreensão
para os atores da cena jurídica que, em geral, não possuem na sua formação as
ferramentas teóricas e práticas para entender o grito dos oprimidos. Daí que por
vezes a cena jurídica ao invés de proteger, acaba por expor mais ainda a fragili-
dade dos sujeitos da injustiça. Vários movimentos sociais e situações individuais
poderiam revelar isso. Movimentos como sem-terra ou sem-teto colocam em
cheque a racionalidade jurídica dominante no sistema de justiça e na sociedade
em geral porque revelam a pouca capacidade dos atores da cena jurídica, e de
boa parte da sociedade, em ouvir o testemunho e compreender o sofrimento
e a situação dessas pessoas reais. Há casos em que estudantes ocupam escolas
buscando melhor qualidade de ensino e promotores de justiça ou conselheiros
tutelares promovem medidas administrativas e judiciais contra os estudantes

104
Direito e Emancipação – Volume I

com base em argumentos genéricos de que eles estariam violando o próprio di-
reito à educação. Muitas vezes as administrações públicas locais promovem uma
“limpeza urbana” retirando moradores de rua e transferindo-os para unidades
distantes em processos impessoais de institucionalização.
Seja por meio de sua ação política ou, em alguns casos, pela simples pre-
sença, os sujeitos da injustiça produzem um acontecimento, um evento que pre-
cisa ser compreendido e assimilado pela teoria e pela prática jurídica para que
o direito possa reconhecer e assegurar a potência insurgente do outro oprimido
pela injustiça social. Não há critério de validade da norma no positivismo jurí-
dico que compreenda que o sofrimento do outro deve ser entendido como fonte
do direito, mas isso precisa ser considerado se, de fato, levarmos a sério o com-
promisso com a dignidade humana. Derrida nos lembra que a realização para a
justiça implica a existência de uma espaço para o acontecimento: há um porvir
na justiça, e só há justiça na medida em que seja possível o acontecimento que, como
acontecimento, excede ao cálculo, às regras, aos programas, às antecipações etc. A
justiça como experiência da alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance
do acontecimento e a condição histórica.225 Nesse sentido que nos fala Derrida, a
justiça não se confunde tanto com um valor ou uma virtude especificamente,
mas, sobretudo, com uma abertura do direito e das instituições da cena jurídica
aos acontecimentos que presentam226 o sujeito concreto da injustiça social. Por
meio da presentação que é inerente ao acontecimento são retiradas as camadas
ficcionais que idealizam as pessoas e impedem sua manifestação real. Quando
se bane do direito o debate sobre a justiça, acaba por se banir também o espaço
para o evento, para o acontecimento que permite a insurgência do oprimido.
Esse é o ponto dramático do direito diante da injustiça social. O que é fun-
damental entender, é que o apelo para se considerar a importância da justiça
no direito significa, antes de tudo, um apelo para sensibilizar-se e indignar-se
diante das injustiças, de todas elas, mas, ao menos, da injustiça social que é
objetiva, pública e notória.

225 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 55.
226 Aqui é importante notar que o verbo presentar tem o sentido de apresentar-se a si mesmo. Opõe-se ao
verbo representar que significa trazer à memória ou colocar-se como imagem de algo ou alguém que
não está. O acontecimento é um espaço de presentação e não de representação.

105
3. O Paradigma do Pós-Positivismo

Direito Natural e Positivismo Jurídico são expressões que invocam um


passado consolidado e muito debate conceitual. Portanto são categorias que
possuem uma história forte e, assim, já estão devidamente instaladas no imagi-
nário dos juristas. O mesmo não se pode dizer do Pós-Positivismo. Esse paradig-
ma parece ter surgido a partir da constatação de uma crise que envolve certos
elementos associados aos positivismos jurídicos de viés mais estatal, como o le-
galismo ou normativismo, tais como o monismo político e o monismo jurídico.
A crença de que o estado é o detentor último do poder político de uma socieda-
de e, portanto, única autoridade competente para produzir e aplicar normas ju-
rídicas é desafiada pelo fenômeno da globalização que coloca em cheque o tra-
dicional modelo westfaliano de estado.227 Além disso, manifestações de outras
formas de produção social da norma jurídica nem sempre reconhecidas pelo
direito positivo se fazem presentes nas complexas relações sociais contemporâ-
neas, evidenciando, assim, fontes diversificadas de normatividade resultantes
de lutas sociais e práticas comunitárias emergentes, nem sempre consensuais do
ponto de vista de uma hipotética norma de reconhecimento.228 Há uma espécie
de interesse crescente na relação entre direito e sociedade ou norma jurídica e
realidade concreta, de maneira que a norma não é mais vista apenas como uma
vontade abstrata a regular as expectativas normativas de pessoas e grupos em
geral. Tomada na sua complexidade, a norma é compreendida como uma práxis
estruturante que engloba desde seu texto ou enunciado até os elementos fáticos
que lhe são subjacentes. Isso faz com que o direito seja tomado como uma in-
teração dinâmica entre norma e vida prática, capaz de produzir uma realidade
sempre dinâmica. No dizer de Friedrich Müller:

227 Cf. FRASER, Nancy. Escalas de Justicia. Barcelona: Herder, 2008. BERNARDES, Márcia Nina.
Esferas Públicas Transnacionais: Entre o Realismo Vestfaliano e o Cosmopolitismo. In Revista Direito
GV: São Paulo: FGV Direito SP, nº 19, 2014. O modelo westfaliano se refere à Paz de Westfália, isso
é, a um conjunto de tratados que no século XVII colocou fim na Guerra dos Trinta anos ocorrida na
Europa. Esses tratados foram decisivos na implementação dos modelos de estado nacional e soberania
nacional vigentes nos séculos posteriores.
228 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. São
Paulo: Alfa-Omega, 1994.

107
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

A dimensão normativa do direito é mais do que apenas uma formulação


meramente seletiva e generalizante de conteúdos socialmente vigen-
tes. Mas ela também não pode ser separada de tais conteúdos. Isso já
se evidencia na peculiaridade de conceitos jurídicos. Eles são fórmulas
abreviativas e ordenadoras, materialmente referidas, feitas para conteú-
dos, dos quais eles não abstraem, como se poderia pensar, mas que eles
remodelam diante de sua existência não-normatizada mediante uma te-
leologia criativa, produzindo algo distinto.229

Esse novo ambiente da teoria do direito motivado tanto pela crise de


certos elementos do positivismo jurídico quanto pelo crescente interesse na
aproximação entre direito e realidade social230, produziu uma espécie de rea-
ção filosófica em face do positivismo, sem implicar, contudo, um retorno ao
direito natural. Essa reação aparece tanto sob o rótulo de “não positivismo”,
como costuma se dar, em geral, no debate ocorrido em idioma inglês, ou de
“pós-positivismo”, designação mais constante no debate comumente travado
em espanhol e português.231 Já em alemão, aparecem tanto as expressões não
positivismo, como no caso de Robert Alexy, como pós-positivismo, como nos
casos de Friedrich Müller e Alexander Somek.232 Embora seja comum se fazer
referência à segunda metade do século XX como o período de maior ocaso do
positivismo jurídico, este paradigma sempre sofreu algum tipo de oposição não
apenas por teorias jusnaturalistas, como por teorias não jusnaturalistas. Karl
Larenz, na parte histórico-crítica de seu livro Metodologia da Ciência do Direito,
fala sobre o abandono do positivismo jurídico na filosofia do direito na primeira
metade do século XX, comentando sobre neokantismo e teoria dos valores,

229 Cf. MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 35-36.
230 Um bom exemplo deste interesse na aproximação entre direito e realidade social é a ampliação
significativa do debate em torno dos direitos fundamentais, não apenas de sua base teórica e
conceitual, mas de sua aplicação concreta tanto nas relações existentes na esfera pública como,
também, na esfera privada.
231 CONTRERAS, Francisco José. El debate sobre la superación del positivismo jurídico. In Crónica Jurídica
Hispalense Revista de la Facultad de Derecho. Valencia: Editorial Tirant lo Blanch, nº 5, 2007, p. 4.
232 Cf. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 48. Vale registrar, também, que a expressão pós-
positivismo não é exclusiva da teoria e filosofia do direito. Ela é empregada em outras áreas do saber.
A título de exemplo, a palavra, em inglês, postpositivism é comumente usada na filosofia da ciência
para se referir a uma postura epistemológica mais crítica e que afirma que a apreensão da realidade
pelas diferentes áreas do saber ocorrerá sempre de forma provisória e imperfeita.

108
Direito e Emancipação – Volume I

idealismo objetivo e dialética, e teoria fenomenológica do direito.233 Contudo,


parece ser correto afirmar que a dimensão mais humanística presente tanto na
crítica ao positivismo como na afirmação do pós-positivismo se deu a partir do
fim da II Guerra Mundial. Esse evento histórico de proporções globais, marca-
do por uma descomunal violência234, engendrou uma nova agenda filosófica,
política e jurídica onde a preocupação com o ser humano e a sua proteção se
tornou mais intensa. O humano foi colocado num patamar mais elevado do
que os procedimentos e os sistemas, o quê, de certa forma, não havia sido feito
no auge do pensamento dominado pela ciência e pela técnica. É como se as
pretensões descritivas da ciência afirmassem o primado dos fatos em oposição
aos valores, de maneira que as aspirações humanísticas, próprias do mundo dos
valores, seriam simplesmente excluídas da percepção e da análise dos fatos. Em
relação a esse ponto, Habermas, ao comentar a polêmica entre Popper e Ador-
no a respeito da neutralidade axiológica235, sustenta ser inviável a ideia de neu-
tralidade axiológica da ciência, pois isso implicaria a negação da atitude ativa
do sujeito de conhecimento que é, igualmente, sujeito de ação política e moral,
por meio de sua consciência. Não há como dissociar consciência cognitiva de
consciência moral, pois são duas dimensões de uma mesma e única consciência.
Habermas prefere reiterar o protagonismo do ser humano tanto no processo
cognitivo como moral e político, de forma a afirmá-lo como o centro operativo
de sua própria vida, ainda que ele seja afetado pela realidade ao mesmo tempo
em que a produz como existência fática, normativa e social.
Essa dimensão mais humanística da agenda filosófica do pós-guerra tam-
bém foi incrementada com a análise feita por Hannah Arendt do julgamento do
ex-oficial nazista Adolf Eichmann. Após conseguir fugir da Alemanha ao fim
da II Guerra, Eichmann foi finalmente encontrado e capturado pelo serviço se-
creto israelense na Argentina no ano de 1960, quando foi levado para Jerusalém
a fim de ser julgado pelos seus crimes de guerra. Como correspondente do Jornal
New Yorker, Hannah Arendt fez a sua avaliação do julgamento, posteriormente

233 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, pp. 97-138.
234 Claro que a referência à violência descomunal não diz respeito apenas aos campos de batalha, o que
poderia até ser entendido como um pleonasmo, mas aos campos de concentração que produziram uma
violência em escala industrial capaz de desfigurar e aniquilar a condição humana. Cf. LEVI, Primo. É
isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
235 Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria Analítica da Ciência e Dialética: contribuição à polêmica entre Popper
e Adorno. In Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 277-299.

109
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

publicada no livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal.


Apesar da polêmica despertada pelo fato de Arendt ter colocado em questão o
comportamento de algumas lideranças judaicas no período do nazismo, o livro
encontrou repercussão porque a autora apresentou uma de suas mais conheci-
das teses filosóficas: a da banalidade do mal. Eichmann era acusado tanto por
ordenar diretamente a morte de várias pessoas como por ser o autor intelectual
da chamada “solução final” para aqueles que eram considerados inimigos do
Reich, especialmente os judeus. A primeira solução seria a expulsão destes da
Alemanha e dos países ocupados, a segunda solução seria o envio para campos
de concentração e a terceira solução – solução final – seria o extermínio dessas
pessoas já concentradas nos campos. Trata-se da morte em escala industrial,
apresentando uma das faces mais perversas e cruéis da maldade. Todavia Aren-
dt notou que Eichmann estava longe de ser o monstro que na imaginação de
qualquer pessoa seria capaz de cometer tais atos. Antes, parecia um homem co-
mum e se apresentava mesmo apenas como alguém que agiu todo o tempo ape-
nas obedecendo a ordens, como parte de uma grande burocracia institucional.
Em sua defesa Eichmann alegava, portanto, estar apenas cumprindo a lei.236 De
efeito, a banalidade do mal ocorre quando a violência é perpetrada pelas pró-
prias instituições diante de um vazio do pensamento e a maldade aparece assim,
de forma, ao mesmo tempo, superficial e profunda, trivializando a própria vida
humana e sendo altamente eficaz na sua perversidade. É como se fosse o mal
cometido por ninguém, mas ao alcance de qualquer um que se torne parte da
burocracia, por mais comum e mediana que seja esta pessoa.
É claro que não se pode confundir a invocação do problema da banalidade
do mal como fundamento filosófico para a crítica ao positivismo jurídico com
uma reductio ad Hitlerum, isto é, com uma possível pretensão de reduzir o jus-
positivismo às experiências totalitaristas e especialmente ao nazismo.237 Não se
trata aqui de dizer que o paradigma do positivismo jurídico legitima conteúdos

236 Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
237 A crítica aos limites da análise do positivismo jurídico, feita com base numa reductio ad Hitlerum foi
apresentada por Norberto Bobbio e no Brasil desenvolvida de forma percuciente por Dimitri Dimoulis
e Bruno Torrano. Cf. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São
Paulo: Ícone, 1995, p. 225; DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito
e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Editora Método, 2006, pp. 257-264. TORRANO,
Bruno. Democracia e Respeito à Lei: entre positivismo jurídico e pós-positivismo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2015, pp. 104-107.

110
Direito e Emancipação – Volume I

totalitários do direito positivo, mas que o problema da banalidade do mal com


a perpetração de formas graves de violência por meio das próprias instituições e
da invocação da lei como modo de justificação da violência é uma questão não
resolvida pelo positivismo, até porque está fora de suas ambições, conforme o
tipo de teoria do direito que pretende ser, resolver tal problema. Mas o problema
existe e é de extrema relevância, por isso o direito não poderia passar imune à
crítica de Hannah Arendt. A racionalidade científica e técnica, não conseguiu
responder ao problema da banalidade do mal e por isso, após a II Guerra Mun-
dial, abriu-se espaço para uma racionalidade, digamos, mais antropocêntrica.
Como afirmou Lenio Streck, o direito pós-bélico tinha que vir de modo diferente...
O direito não pode(ria) mais ser imoral. E o direito não pode(ria) mais ser aético.238
Com efeito, a preocupação humanística da agenda política e filosófica do
pós-guerra afetou a teoria e a filosofia do direito, sobretudo na Europa, fazendo
com que a busca pela justiça e a proteção dos direitos humanos ou fundamen-
tais se tornassem questões de primeira grandeza no mundo jurídico. Isso se
reflete não apenas na Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada
pela Organização das Nações Unidas – ONU – em 1948 e nas convenções sub-
sequentes, mas nas constituições europeias do pós-guerra, mais preocupadas
em assegurar direitos fundamentais e estabelecer bases seguras para sociedades
democráticas e pluralistas. Esse movimento que aconteceu na Europa a par-
tir da segunda metade da década de 1940 iria acontecer na América Latina,
basicamente, após o fim do período das ditaduras militares que tomaram con-
ta de vários países latino-americanos, sobretudo entre as décadas de 1960 e
1980. Com efeito, as novas constituições latino-americanas a partir do final
da década de 1980 passaram a expressar com mais eloquência a centralidade
do ser humano na ordem política e social, com a preocupação da garantia
dos direitos fundamentais e da busca pela justiça. Esse novo ambiente cons-
titucional é crucial para o surgimento do pós-positivismo na medida em que
as constituições do pós-guerra ou pós-ditaduras militares são mais assertivas
quanto aos fundamentos morais da ordem jurídica, daí porque Streck afirma:
acredito que seria possível dizer que o pós-positivismo tem lugar no ambiente teórico

238 STRECK, Lenio Luiz. Do Positivismo ao Pós-Positivismo: a trajetória hermenêutica do direito – A


necessidade da Crítica da Crítica Jurídica. In ABBOUD, Georges. CARNIO, Henrique Garbellinni.
OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2013, p. 440.

111
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

do Constitucionalismo Contemporâneo. Aí, sim, porque o Constitucionalismo Con-


temporâneo é ruptural, não sendo mera continuidade do(s) constitucionalismo(s)
anterior(es).239 De certa forma, o novo constitucionalismo contemporâneo é
tanto causa como consequência da compreensão do direito a partir de um ou-
tro paradigma que não o positivismo jurídico. Evidente que os constituintes
não se impregnaram deste novo paradigma para escrever as constituições, elas
são, antes, fruto das correlações de força entre diferentes grupos concretos e
os seus respectivos interesses, todavia essas constituições foram produzidas em
um ambiente de apelo democrático e, por isso, reforçaram a dimensão social do
direito. Claro que isso não significou necessariamente que todos os direitos pre-
vistos nas constituições fossem necessariamente implementados. Em especial
no caso latino-americano, Roberto Gargarella faz uma análise dos últimos dois
séculos de história constitucional para concluir que em que pese os avanços
na previsão de muitos direitos, particularmente de direitos sociais, nem sempre
estes avanços do plano jurídico são tornados realidade social uma vez que não
há mudanças efetivas no sistema político que acabem com a concentração de
poder e o centralismo autoritário que marca a política nesses países. Isso faz
com que os gestores da política não tenham a mesma ousadia dos constituintes,
usando artifícios da política e da legislação infraconstitucional para postergar
ou denegar direitos.240 Curiosamente, a baixa efetividade de muitos direitos
constitucionais, como nos relata Gargarella, nunca foi um empecilho para o
fortalecimento de filosofias constitucionais de natureza mais concretizadora,
inspiradas pela ideia de força normativa da constituição.241 Isso se deve, em
larga medida, ao crescimento do alcance do paradigma pós-positivista, favo-
rável à priorização dos valores da dignidade humana e solidariedade social e à
ampliação de um sistema de garantia dos direitos fundamentais.
As críticas ao positivismo jurídico, podem ter diferentes inspirações filo-
sóficas, como aquelas que são feitas pelos jusnaturalistas ou, com fundamentos
bem diferentes, aquelas que são realizadas por autores de base marxista, como
Duncan Kennedy. Mas há autores que criticam o positivismo situando-se expli-

239 STRECK, Lenio Luiz. Ob. Cit., pp. 457-458. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição,
hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014, passim.
240 GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la constitución. Buenos Aires: Katz Editores, 2014.
241 Cf. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pp. 47-52.

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Direito e Emancipação – Volume I

citamente dentro do paradigma pós-positivista do direito (com maior, menor ou


nenhuma influência do marxismo). Dentre estes, talvez os autores das críticas
mais contundentes sejam Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero.242 No emble-
mático texto Deixemos Atrás o Positivismo Jurídico os autores afirmam que o
juspositivismo alcançou seu nível máximo de refinamento no trabalho de Hart
e que cumpriu um papel importante contribuindo para a renovação da filosofia
do direito e para guiar a dogmática jurídica e a prática do direito por caminhos
menos pantanosos do que aqueles trilhados por um direito natural de matriz
mais conservadora. Mas eles propõem a pergunta se o positivismo jurídico que
teve sentido em outros tempos ainda seguiria tendo nos dias de hoje.243 Atienza
e Manero se referem tanto ao positivismo jurídico exclusivo, onde se afirma
que a identificação do direito não pode depender de critérios morais, quanto ao
positivismo jurídico inclusivo, onde se admite que o direito positivo pode incor-
porar critérios morais de validade da norma. Para os autores, ambas as versões
podem ser sintetizadas nas duas principais teses positivistas: a de que o direito
provém de fontes sociais (é uma criação humana) e de que não há conexão ne-
cessária entre o direito e a moral. Daí eles desferem uma dura crítica:

Pois bem, o problema, a fraqueza, do positivismo jurídico não se baseia,


em nossa opinião, em que essas duas teses ou alguma delas seja falsa: am-
bas são manifestamente verdadeiras e constituem uma espécie de acordo
indisputado por todos aqueles que fazem teoria do direito de forma não
extravagante. A fraqueza do positivismo jurídico se baseia em que, assim
entendido, a teoria resulta, por um lado, irrelevante e, por outro lado, se
você adicionar características que, ainda que não sejam definidoras têm
estado presentes nas principais manifestações do positivismo do século
XX, o positivismo resulta ser um obstáculo que impede o desenvolvi-
mento de uma teoria e uma dogmática do direito adequadas às condi-
ções do Estado constitucional. 244

Para Atienza e Manero, o desacordo não está tanto no campo dos postula-
dos teóricos, pois eles concordam que não é possível sustentar fundamentos de

242 ATIENZA, Manuel. RUIZ MANERO, Juan. Para una teoría postpositivista del Derecho. Lima:
Palestra, 2009.
243 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Dejemos Atrás el Positivismo Jurídico. In Isonomia - Revista
de teoría y filosofía del derecho, nº 27. México: ITAM, 2007, p. 13.
244 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Ob. Cit., p. 21.

113
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

tipo jusnaturalistas que indiquem fontes pré-sociais do direito, como a natureza


das coisas, a vontade de Deus ou a razão humana. Além disso, também não
seria sustentável afirmar que o direito necessariamente está ligado a uma moral
absoluta sendo, portanto, sempre e necessariamente justo, pois isso implicaria
negar manifestações empiricamente constatáveis de direito positivo com menor
grau de justeza ou correção ou mesmo sem justeza alguma. O problema então
estaria no campo metateórico, ou seja, com o fato dos positivistas entenderem
que a tarefa ou propósito da teoria do direito consiste basicamente na descrição
do fenômeno jurídico a partir de uma observação empírica feita sem nenhum
tipo de juízo de valor. Segundo os autores, esse modelo de teoria do direito
não acrescenta muita coisa seja no campo propriamente acadêmico, seja no
campo da prática jurídica. Além disso, seria uma teoria que não estaria em
consonância com a perspectiva de direito decorrente do constitucionalismo do
pós-guerra (e pós-ditaduras militares no caso da América Latina) e a ideia de
Estado Constitucional de Direito que decorre desse novo constitucionalismo
contemporâneo. O Estado Constitucional de Direito não apenas organiza o po-
der estatal mas, também, define sua pauta, estabelecendo prioridades e critérios
de ação e intervenção social. Diante desse cenário contemporâneo, uma teoria
do direito que se proponha meramente descritiva, como o positivismo jurídico,
seria incapaz de acrescentar algo e fazer desenvolver o pensamento jurídico
contemporâneo. Por isso afirmam: o positivismo não é a teoria adequada para
dar conta e operar dentro da nova realidade do direito do Estado Constitucional.245
Além disso, os autores insistem que o direito não é apenas um sistema com um
conjunto de enunciados e normas a ser observado e descrito. É, também, uma
prática social complexa voltada para a produção de normas, para a decisão de
conflitos e para a justificação destas decisões. Daí a necessidade de uma teoria
que faça algo mais do que explicar o que seja direito:

Dito de outra maneira, o direito não é simplesmente uma realidade que


está já dada de antemão (e esperando, por assim dizer, pelo jurista teórico
para que a descreva e sistematize), mas uma atividade em que se participa
e que o jurista teórico há de contribuir a desenvolver. Então, tanto na
obra de Dworkin como de Alexy, isto é, os dois autores que têm desen-
volvido aquelas que poderiam ser consideradas as teorias não positivistas
do direito de maior impacto, se sublinha essa necessidade de considerar o

245 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Ob. Cit., p. 25.

114
Direito e Emancipação – Volume I

direito como uma prática social (na terminologia de Dworkin, como uma
prática interpretativa, na de Alexy como uma série de procedimentos), e
não simplesmente como um conjunto de regras e princípios.246

O surgimento e consolidação do paradigma pós-positivista do direito de-


corre não apenas das críticas metateóricas ao positivismo jurídico, mas, também,
da busca de uma outra racionalidade para o direito, diferente daquela de nature-
za mais teórica que parece ser enfatizada no positivismo. Isso fica especialmente
claro no trabalho de três filósofos do direito do século XX que muito embora
nunca tenham usado a expressão pós-positivismo podem, de alguma forma, ser
considerados precursores desse paradigma, quer pelas críticas que fizeram ao jus-
positivismo, quer pela ênfase que deram à razão prática no pensamento jurídico.
São eles: Theodor Viehweg, Luis Recasens Siches e Chaïm Perelman.
O alemão Theodor Viehweg (1907-1988) buscou amparo na tópica de
Aristóteles e Cícero para buscar uma forma específica de raciocinar a partir dos
problemas e não de abstrações conceituais.247 Como é típico da razão prática,
a questão fundamental desta forma de pensar não é a observação ou contem-
plação e sim a capacidade de deliberar, isto é, de tomar decisões. Para isso é
imperioso que se tenha em conta a realidade a partir da qual será tomada a
decisão; mais precisamente é preciso compreender o problema que motiva a
deliberação. Por isso Viehweg diz que a tópica pretende proporcionar orientações
e recomendações sobre o modo como se deve comportar numa determinada situação
caso não se queira restar sem esperança. Essa constitui-se, portanto, a técnica do
pensar problematicamente. Apenas o problema concreto ocasiona de modo evidente
tal jogo de ponderação, que vem se denominando tópica ou arte de criação.248 Ape-
sar do enfoque da tópica ser o problema, isso não significa um desprezo pelo
sistema, porém este somente pode ser compreendido como contexto ou nexo
dedutivo mais ou menos explícito e extenso a partir do qual se busca a resposta.
Em outras palavras, o problema jurídico se insere num sistema e esse é relevante
na medida em que ajuda na busca da resposta ao problema. A peculiaridade de
se pensar por problemas é que o agente que busca a resposta não fica preso a

246 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Ob. Cit., p. 26.


247 VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico
científicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 33.
248 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., pp. 33-34.

115
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

um único sistema correndo o risco de não encontrar a solução e falhar no seu


propósito. Quando se pensa a partir do sistema, este é o protagonista e se fica
limitado a ele. Entretanto, quando se pensa a partir do problema o sistema é um
contexto que deve auxiliar na busca do desenlace. Não se trata de raciocinar a
partir do todo – sistema – mas a partir do lugar específico – topos – que deman-
da uma decisão.249 Então Viehweg se pergunta: como pode se dar o raciocínio
tópico? E apresenta a resposta:

Naturalmente, se num problema há conflito em alguma parte, pode-se


proceder, simplesmente, a se escolher livremente de modo tal a se aferir
por meio de tentativas de pontos de vista mais ou menos ocasionais.
Deste modo, busca-se as premissas que sejam adequadas e profícuas no
mérito que permitam levar a consequências idôneas e que apresentem
alguma coisa esclarecedora. A observação evidencia que na vida diária
quase sempre assim se procede.250

Essa maneira de raciocínio que se aproxima, até certo ponto, da intui-


ção que busca as melhores soluções, se apoia em diretivas ou princípios gerais
disponíveis a todos na forma de um senso comum, mas tais diretivas podem
se revelar um tanto incertas diante do caso concreto. Esse plano de diretivas
ainda incertas, Viehweg denomina de tópica de primeiro grau. Para superar este
plano mais incerto, o agente pode recorrer a um repertório de pontos de vis-
ta já disponíveis que conformam catálogos de diretivas que auxiliam e orien-
tam a tomada de decisões, tais diretivas presentes nestes catálogos são topoi.
A utilização desses catálogos na busca da solução do problema é descrita por
Viehweg como tópica de segundo grau. Nesse plano, já não se está num nível
apenas intuitivo do pensamento, embora uma tópica de segundo grau até possa
reforçar nossas intuições. Existem, com efeito, uma série de princípios, máxi-
mas, adágios, formulações que são diretivas abertas a todos e que auxiliam o
tomador de decisões. Muitas delas são típicas do mundo jurídico e possuem
legitimidade geral para conduzir o raciocínio do jurista. Alguns exemplos: na
dúvida, a favor da liberdade; as exceções devem ter interpretação estrita; quem

249 Vale registrar que posteriormente o alemão Claus Canaris fez um esforço significativo para conciliar
a tópica com o pensamento sistemático, adotando como suposto para a tal a ideia de sistema aberto.
Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
250 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., pp. 33-34.

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Direito e Emancipação – Volume I

cometeu uma falta deve arcar com suas consequências; a confiança merece
proteção; devem-se utilizar os meios menos danosos; o necessário é permitido;
ninguém é obrigado ao impossível; são permitidas exceções em casos de ex-
trema dificuldade; a arbitrariedade é proibida; o que é insuportável não pode
ser de direito.251 Os topoi acima apresentados são pontos de vista diretivos que
servem como fios condutores e orientação para o pensamento no momento
da discussão dos problemas.252 Além disso, Viehweg registra que eles também
possuem um importante papel na tarefa da interpretação, fazendo que cer-
tas premissas (normas), interpretadas à luz de um topos específico adequado à
situação-problema possam ser compreendidas como relevantes ou irrelevantes,
aceitáveis ou inaceitáveis, sustentáveis ou insustentáveis.253
Viehweg estabelece três pressupostos para se ter em conta a articulação
entre pensamento tópico e o direito: 1) a estrutura geral do direito somente
pode ser determinada a partir do problema; 2) as partes integrantes do direito,
seus conceitos e suas proposições têm de permanecer vinculadas com o proble-
ma e só podem ser compreendidas a partir dele; 3) os conceitos e as proposições
do direito só podem ser utilizados quando conservarem sua vinculação com o
problema.254 Trata-se de compreender o direito mais como uma atividade do
que como uma teoria. E uma atividade de natureza praxiológica, pois sempre
em busca de conclusões operacionais. Evidente que tanto na apreensão do pro-
blema quanto no recurso aos topoi para buscar a melhor solução, atuam as pré-
-compreensões do agente, mas isso longe de ser algo ruim é fonte de legitimida-
de para a decisão e de integração entre o raciocínio jurídico e as crenças mais
comuns presentes na sociedade. Isso serve para estabilizar o direito, mas não o
limita, pois a tópica de primeiro grau é sempre complementada pela tópica de
segundo grau. Claro que não se deve confundir esta estabilidade com conserva-
dorismos decorrentes de preconceitos comumente existentes na vida social. Isso
porque o direito, na maneira de uma práxis, mantém um compromisso com a

251 Ao falar da importância dos tópicos jurídicos, Chaïm Perelman cita o trabalho de Gerhard Struck:
Topische Jurisprudenz e expõe um catálogo de tópicos extraídos do livro de Struck. Os exemplos aqui
apresentados foram retirados desse catálogo. Cf. PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo:
1998, pp. 120-128.
252 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., pp. 39-40.
253 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., pp. 43-44.
254 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., p. 97.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

busca da justiça. Isso quer dizer que tanto como forma própria de se raciocinar
juridicamente e como fundamento para a teoria do direito, a tópica não é ape-
nas uma técnica ou procedimento que se postula neutro ou descompromissado.
Antes, ela mesma se vincula ao grande topos que é a justiça. Por tal motivo,
Viehweg sustenta que a predominância do problema no raciocínio jurídico é
para que cada um desses problemas possa ser articulado com a questão da jus-
tiça, pois sem a intenção de buscá-la, toda a problemática seria algo sem senti-
do.255 Atente-se para o fato de que não se trata do justo em sentido metafísico
ou abstrato, mas o justo aqui e agora como composição adequada de interesses.
Esse, afirma Viehweg, é o problema fundamental de nosso ramo do saber. Como
tal, domina e informa toda a disciplina.256
Outro filósofo do direito importante para o lançamento das bases do pós-
-positivismo é o guatemalteco, naturalizado mexicano, Luis Recasens Siches
(1903-1977). Ele é enfático ao dizer que o direito não é uma realidade natu-
ral (cósmica), psíquica ou puramente ideal.257 Trata-se, antes, de uma prática
humana, resultado das condições históricas e da vida concreta de uma dada
sociedade. Mas o direito, como produto da cultura, mantém-se orientado pelos
valores que estão na base dessa cultura e animam suas atividades. Daí que o
direito possui uma dimensão fática e outra axiológica. Todavia, o fato do direito
possuir uma dimensão ideal, comprometida com valores, como a justiça acima
de todos, não quer dizer que o direito positivo resulte sempre justo. Como obser-
va Recasens: a relação do Direito positivo com os valores que este ajuda a plasmar,
nem sempre é de correspondência perfeita: assim, por exemplo, poderá ser justo,
menos justo ou injusto.258 O direito é uma intenção de direito justo, ele se propõe
a realizar valores, mas ele não está constituído simplesmente pelos puros valores que
pretende realizar, mas por uma série de ingredientes por meio dos quais se oferece
um ensaio de interpretação concreta desses valores – interpretação que pode resultar

255 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., pp. 73-74.


256 VIEHWEG, Theodor. Ob. Cit., p. 96. Vale registrar que num artigo de 1970, Tércio Sampaio Ferraz
Junior já alertava para o fato da justiça ser um tema privilegiado no pensamento tópico, seja nas suas
origens aristotélicas, seja no trabalho de Theodor Viehweg. Cf. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Justiça e
Tópica Jurídica. In Revista Estudios de Derecho Volume XXIX, fascículo 77. Medelin: Universidad de
Antioquia, 1970.
257 Cf. SICHES, Luis Recasens. Filosofía del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2008, pp. 53-58.
258 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 70.

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Direito e Emancipação – Volume I

mais ou menos correta ou, até mesmo, fracassada.259 A vida humana é, para Re-
casens Siches, o conceito chave para a compreensão do direito, pois, segundo
o autor, qualquer norma jurídica é sempre um pedaço da vida humana objeti-
vada.260 Como produto da ação humana as normas guardam significações que
carregam uma certa dimensão de ser ideal, como é próprio dos valores, mas elas
não podem ser confundidas como parte de uma idealidade pura, como aconte-
ce, por exemplo, com os princípios matemáticos. Estes possuem uma validade
própria e autônoma independentemente de que a mente humana os tenha pen-
sado ou não. Nesse caso, cabe à inteligência das pessoas empregar uma lógica
formal e dedutiva para alcançar e entender a estrutura e a aplicação desses prin-
cípios, algo como a lógica dos geômetras. Todavia, isso não ocorre com o direi-
to. Uma ideia matemática não foi construída pelos matemáticos. Já uma norma
jurídica foi construída por uma pessoa ou grupo de pessoas e carrega, por isso,
significações e valorações que não possuem um sentido eterno ou absoluto, pois
não preexistem à vida humana. Portanto o direito não se configura como um
ser ideal preexistente à cultura e à história e, por isso, não pode ser entendido
e aplicado nos termos de uma lógica clássica de tipo formal ou matemática. O
fenômeno jurídico se manifesta, num primeiro momento, como uma construção
própria do legislador e, num segundo momento, como atividade interpretativa
do jurista. Em ambos os momentos deve haver um esforço para que suas nor-
mas expressem os valores próprios daquela sociedade. Mas não se deve criar a
expectativa de que a lógica formal seja o instrumento adequado para isso, pois
ela não é a ferramenta devida para lidar com as realizações próprias da cultura.
No conhecimento a na compreensão da experiência jurídica, mais importante
do que a razão teórica é a razão vital, isto é, o conhecimento que o homem tem
daquilo que ele tem sido, daquilo que tem ocorrido com ele, do que ele tem
vivido e as consequências práticas que se pode tirar desse conhecimento. Isso
envolve perceber sua própria experiência, como indivíduo, como grupo e como
sociedade, e retirar dessa percepção um aprendizado que auxilie na avaliação de
seu passado e presente.261 Nesse sentido a razão vital se associa à razão histórica
que leva em conta o acúmulo das experiências humanas como lições condicio-
nantes para o futuro. Razão vital e razão histórica transformam o entendimento

259 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 71.


260 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 108.
261 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 141.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

em compreensão, isto é, na capacidade de apreender não apenas os fatos, mas os


nexos de significações que existem entre eles. Nesse sentido, afirma Siches: estes
nexos de significações na vida estão relacionados com aquilo que poderia chamar-
-se de “o logos do humano” e que eu tenho denominado, ao menos quanto a um de
seus aspectos, “lógica do razoável”, diferentemente da lógica do racional – a lógica
tradicional das ideias puras e da física matemática.262
O direito, como produto da vida humana, implica um esforço constante
de criação e recriação. Tal esforço ocorre tanto na esfera da produção das nor-
mas quanto de sua aplicação. Recasens Siches toma de Gustav Radbruch um
famoso exemplo (que Radbruch, por seu turno, empresta de Leon Petrasyski)
pelo qual pretende demonstrar que apenas a lógica do razoável é adequada para
lidar com as questões da experiência jurídica: na plataforma de uma estação
ferroviária da Polônia, havia um letreiro que transcrevia um artigo do regula-
mento das estradas de ferro polonesas, cujo texto dizia: “é proibido o acesso
à plataforma com cães”. Sucedeu que alguém pretendia entrar com um urso,
quando o vigia da plataforma impediu o acesso. Claro que a pessoa protestou
alegando que levava um urso e não um cachorro, sendo a norma proibitiva em
relação aos cães e não em relação a outras classes de animais. O centro do con-
flito jurídico instaurado era a interpretação que deveria ser dada àquele artigo
do regulamento. Quanto a esse exemplo, Recasens sustenta que não cabe a
menor dúvida que caso sejam aplicados os instrumentos da lógica tradicional,
seríamos forçados a reconhecer que a pessoa teria total direito de aceder à
plataforma ferroviária acompanhada do urso, já que não há como incluir um
urso na categoria cães. Entretanto, não apenas os juristas, mas mesmo o senso
comum, saberia dizer que esta interpretação, muito embora seja formalmente
correta, isto é, condicente com a lógica tradicional, se revela como totalmente
inadequada ou inaceitável. O problema é que a lógica tradicional é meramente
enunciativa do ser e do não ser, mas não contém pontos de vista de valor e nem
estimativas sobre a correção dos fins, nem sobre a congruência entre meios e fins,
nem sobre a eficácia dos meios em relação a um determinado fim.263
Com esse exemplo, Recasens Siches espera ter esclarecido que no que diz
respeito à vida humana, com as diferentes condutas que as pessoas possam ter,
e, consequentemente, ao direito, deve vigorar a lógica do razoável que, diga-se,

262 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 143.


263 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 646.

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Direito e Emancipação – Volume I

tem tanta parte na razão como o tem a lógica racional.264 Racional e razoável
são duas faces da mesma moeda. Porém, a aplicação da lógica do racional, de
uma razão meramente teórica e descritiva, pode conduzir, por vezes, a injus-
tiças mais ou menos graves. Para esse autor, toda e qualquer interpretação de
uma norma jurídica deve acontecer conforme a lógica do razoável que deve ser
entendida como o elemento de unidade da atividade hermenêutica no âmbito
do direito. Nesse sentido, não importa se o aplicador da norma está diante de
um caso fácil ou difícil, em qualquer caso é necessário que se proceda razoa-
velmente, ou seja, levando em conta a realidade e o sentido dos fatos, compre-
endendo as valorações em que se inspira o ordenamento jurídico, atendendo
os fins a que se propõem as normas aplicáveis.265 Evidente que todas as valo-
rações se amparam num senso de moralidade, contudo Recasens deixa claro
que não se trata de substituir a norma vigente pelo senso de justiça particular
do jurista, por superior que esse possa ser.266 A lógica do razoável não autoriza
substituir a vontade do criador da norma pela do intérprete, mas procura uma
solução que seja aceitável considerando tanto a realidade fática quanto o direi-
to positivo como um todo, incluindo seus princípios e seus fins. A solução deve
ser satisfatória não da perspectiva de uma moral individual, mas do senso de
moralidade existente no ordenamento jurídico, de um sentido de justiça que
esteja amparado nesse ordenamento.267
Para Siches, o direito conforma uma realidade com uma dimensão ideal,
inspirada em valores de primeira grandeza, tais como justiça, dignidade huma-
na, liberdade, bem estar social, paz etc... Além disso, o raciocínio jurídico deve
ser entendido como parte da razão prática e, de efeito, orientado pelos valores
próprios daquilo que a tradição filosófica denomina de prudência.268 É daí que
o autor busca critérios objetivos que caracterizam a lógica do razoável e, ao
mesmo tempo, rechaçam as acusações de que esta corresponderia a mera va-
loração subjetiva. São eles: a) está circunscrita à realidade concreta do mundo
social na qual opera; b) é regida por valorações; c) tais valorações são concretas,
quer dizer, estão referidas a uma determinada situação e, portanto, levam em

264 SICHES, Luis Recasens. Introducción al Estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 80.
265 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 247.
266 Cf. SICHES, Luis Recasens. Filosofía del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2008, p. 9.
267 SICHES, Luis Recasens. Introducción al Estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 247.
268 SICHES, Luis Recasens. Ob. Cit., p. 256.

121
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

conta as possibilidades de certa realidade e as limitações que esta impõe; d)


está orientada pelas lições resultantes da razão vital e histórica; e) busca ponde-
rar e estimar as consequências da aplicação de uma determinada norma numa
situação concreta para que a solução de um problema não cause outro ainda
maior; f) procura satisfazer a maior quantidade possível de interesses legítimos
com o menor nível possível de desgaste; g) é regida por razões de congruência
ou adequação: 1º, entre a realidade social e os valores que lhe são pertinentes,
considerando o tempo presente e o futuro próximo que se almeja; 2º, entre os
valores e os fins que se pretende alcançar; 3º, entre os fins e a realidade social
concreta; 4º, entre os fins e os meios, considerando a conveniência dos meios
para a consecução dos fins almejados; 5º, entre os fins e os meios, considerando
o respeito à correção ética e moral dos meios; 6º, entre os fins e os meios, no
que se refere à eficácia dos meios; 269 Um dos pontos apresentados por Recasens
Siches é, quase, uma síntese da lógica do razoável:

...na busca, mediante a imaginação, do que é possível produzir nesse


mundo limitado e concreto para resolver o problema de uma necessida-
de, intervêm múltiplas valorações: primeiro, sobre a adequação da finali-
dade ou meta para satisfazer a necessidade em questão; segundo, sobre a
justificação desse fim desde vários pontos de vista estimativos: utilitário,
moral, de justiça, de decência etc; terceiro, sobre a correção ética dos
meios; e quarto, sobre a eficácia dos meios.270

O terceiro nome importante para o lançamento das bases do pós-posi-


tivismo é o filósofo do direito polonês, radicado na Bélgica, Chaïm Perelman
(1912-1984). Este autor compartilha, em vários aspectos, o caminho trilhado
por Recasens Siches na crítica da racionalidade meramente dedutiva e da lógica
formal como fundamentos adequados para o direito. Antes, este deve se ins-
crever no campo da razão prática como forma de realização de valores morais
numa sociedade pluralista onde as pessoas possam agir de forma cooperativa e
resolver seus conflitos de maneira razoável. Nesse sentido, a justiça é um valor
central para o direito. Afirma Perelman: em todas as disciplinas normativas que
regem, de um modo direito ou indireto, a ação com respeito a outrem, seja o direito

269 Cf. SICHES, Luis Recasens. Filosofía del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2008, p. 7; SICHES,
Luis Recasens. Introducción al Estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2006, pp. 256-257.
270 SICHES, Luis Recasens. Introducción al Estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 257.

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Direito e Emancipação – Volume I

ou a filosofia política, a moral ou a religião, a justiça constitui um valor central, o


mais prestigioso que se possa invocar quando se trata de qualificar um ato (tal como
uma decisão judiciário), uma regra ou um agente racional.271 Com efeito, é preciso
enfrentar o tema da justiça, por mais difícil que isso possa ser, especialmente
por tratar-se de um termo carregado de sentido emotivo.272
Perelman adverte para o fato de que ao logo da história, tanto no campo
filosófico quanto político, é comum que interlocutores se baseiem em concep-
ções específicas de justiça e defendam sua posição diante de seus antagonistas.
Isso revela uma incrível multiplicidade de sentidos que são atribuídos a essa
noção. Reconhecendo ser ilusório enunciar todos os sentidos possíveis para jus-
tiça, Perelman expõe seis concepções, todas baseadas na formulação originária
de Ulpiano suum cuique tribuere, isto é, dar a cada um o que é seu. São elas: 1) a
cada qual a mesma coisa; 2) a cada qual segundo seus méritos; 3) a cada qual
segundo suas obras; 4) a cada qual segundo suas necessidades; 5) a cada qual
segundo sua posição; 6) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.273 Após a
exposição, o autor conclui que as diferentes concepções apresentam aspectos da
justiça muito distintos e, por vezes, até mesmo opostos. Isso poderia conduzir a
três atitudes: a primeira seria declarar que estas concepções de justiça não pos-
suem nada em comum e, como resultado, admitir que seria necessário distinguir
e isolar cada uma delas por não terem nenhum vínculo conceitual. A segunda
atitude consistiria em fazer uma escolha por uma dentre as várias concepções,
como se esta fosse a única verdadeira, real e profundamente justa. A terceira
atitude importaria a delicada tarefa de pesquisar o que há em comum entre
essas diferentes concepções de justiça. Perelman afirma com convicção que a
terceira atitude é a correta, pois a primeira importaria a renúncia à investigação
filosófica e a segunda conduziria a um aguçamento em nível crítico, até violen-
to, do atrito entre as mentes.274 Assim, na busca pelos elementos que conferem
unidade ao senso de justiça, encontra como categoria essencial a ideia de que o
justo importa um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma cate-
goria essencial devem ser tratados da mesma fora – justiça formal ou abstrata.275

271 PERELMAN, Chaïm. Ética e Justiça. São Paulo, 1996, p. 68.


272 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 6.
273 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., pp. 9-12.
274 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., pp. 13-14.
275 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., pp. 19.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Disso resulta que para aplicar a justiça é preciso classificar as pessoas de acordo
com características essências. O problema é que isso pode levar àquilo que o
autor denomina de antinomias da justiça. Veja-se o exemplo:

Tomemos o caso de um patrão humanitário que desejaria retribuir seus


operários levando em conta, a um só tempo, o trabalho e as necessida-
des deles. Suceder-lhe-á, com muita frequência ficar em apuro: isso se
dará todas as vezes que dois operários fizerem parte da mesma categoria
essencial do ponto de vista do trabalho, e de categorias diferentes do
ponto de vista das necessidades, ou vice-versa. Que tratamento cumpri-
rá aplicar-lhes? Todas as vezes se agirá de modo formalmente injusto.276

Para remover o problema da antinomia da justiça, é possível se dar pre-


ferência a uma característica essencial em detrimento de todas as outras, de
modo que as demais exerçam alguma influência apenas se não atrapalharem
aquela que foi escolhida como a preferencial. Porém, um recurso poderoso para
se enfrentar as antinomias da justiça ou quando a aplicação da justiça implica
algum nível de transgressão da justiça formal, é o juízo de equidade. Segundo
Perelman a equidade é complemento indispensável da justiça. Ela consiste, para
o autor, numa tendência a não tratar de forma por demais desigual os seres que fa-
zem parte de uma mesma categoria essencial.277 Ela é fundamental quando o esta-
belecimento de uma igualdade perfeita é impossível em função do choque entre
duas ou várias características essenciais. A equidade é um elemento não for-
mal que procura solucionar contradições decorrentes de qualquer formalismo.
Assim, se temos uma diferença significativa que me impede tratar igualmente
pessoas de um mesmo grupo essencial, pois isso resultaria numa distorção tal
como uma desigualdade ou uma injustiça maior, a equidade nos autoriza a levar
em considerações outros elementos que extrapolam aquela categoria essencial,
ou mesmo outras categorias essenciais. O autor volta ao exemplo dos operários
para dizer que um operário que seja pai de família poderia ter acrescido à sua re-
muneração alguma coisa em comparação ao operário solteiro, ainda que ambos
realizem o mesmo trabalho. Isso poderia ser uma decisão para um caso concreto
ou mesmo uma política pública, do tipo “salário família”.

276 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., pp. 34.


277 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., pp. 36-37.

124
Direito e Emancipação – Volume I

Temos, então, que a justiça implica o estabelecimento de alguma regra


com base em valores que são considerados relevantes por uma dada comunida-
de política. Os valores correspondem ao fundamento filosófico de toda norma
de justiça. Isso significa que qualquer sistema de justiça, por mais eficiente que
seja, precisa estar moralmente justificado com base nos valores e nos princípios
que lhe são subjacentes. Ser justo é uma qualidade que se legitima quando
aquele sistema de justiça opera dentro de um contexto social e moralmente
legítimo. Isso tem a ver com a dimensão humana que deve envolver seja qual
for o sistema de justiça. Uma vez estabelecida a regra, é preciso classificar as
pessoas em categorias essenciais para que todas aquelas que estejam inseridas
numa dada categoria possam ser tratadas igualmente. Quando o tratamento
igualitário, paradoxalmente, provoca outras desigualdades, então o juízo de
equidade socorre o tomador de decisão ou aplicador da norma para que certas
compensações sejam inseridas a fim de se retomar a igualdade perdida. Isso
pode ser feito levando-se em conta outros elementos materiais que caracte-
rizam o agente ou mesmo se fazendo uma segunda classificação de categoria
essencial. Poderíamos exemplificar com base numa regra que diz que todos os
estudantes de determinada escola têm o direito a ganhar um pão no horário
de lanche. Porém há estudantes em melhores condições econômicas que le-
vam o seu lanche, além do pão que ganham. Nesse caso, dar um pão a cada
um, tratar igualmente os membros de uma mesma categoria essencial, não cria
uma igualdade perfeita, pois alguns terão mais lanche que os outros. Pode-se
recorrer ao juízo de equidade para reconhecer que é adequado um tratamento
desigual para se buscar uma igualdade ideal. Da mesma forma é possível criar
outra categoria essencial, daqueles estudantes que não levam nenhum lanche
de casa, e dizer que estes ganharão dois pães.
Perelman adverte para o fato de ser comum que as pessoas pensem que a
igualdade é o fundamento da justiça, todavia, tal fundamento é, na verdade, o
fato de se aplicar uma regra a todos os membros de uma categoria essencial.278
De efeito, uma regra de justiça deve ser complementada por um ato de justiça
que, por seu turno, exige certa regularidade. Por isso o autor afirma que muito
embora a justiça esteja fundamentada numa diversidade de valores que lhe são
externos e anteriores (aqueloutros que originam as regras), ela possui um valor

278 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 43.

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

próprio que é aquele que resulta do fato de sua aplicação satisfazer a uma necessi-
dade racional de coerência e regularidade.279
Perelman destaca três elementos fundamentais na justiça: o valor que a
fundamenta, a regra que a anuncia, o ato que a realiza. A questão fundamental
aqui, e que é decisiva para toda a obra de Chaïm Perelman, é que ele está con-
victo de que apenas é possível submeter a exigências racionais a regra e o ato:

Podemos exigir do ato que seja regular, que trate da mesma forma os
seres que fazem parte da mesma categoria essencial; podemos pedir que
a regra seja justificada, que decorra logicamente do sistema normativo
adotado. Quanto ao valor que fundamenta o sistema normativo, não o
podemos submeter a nenhum critério racional, ele é perfeitamente arbi-
trário e logicamente indeterminado. Com efeito, embora qualquer valor
possa servir de fundamento para um sistema de justiça, esse valor, em si
mesmo, não é justo. O que podemos classificar de justas são as regras que
ele determina e os atos que são conforme essas regras.280

Essa convicção obriga Perelman a concluir que a pluralidade e a oposi-


ção entre valores igualmente razoáveis tornem impossível a realização de um
sistema de justiça perfeito, pois esta pretensão de perfeição implicaria afiançar
que o valor no qual se baseia tal sistema se impõe de modo irresistível, o que
levaria a afirmar um valor único ou, ao menos, um valor que se sobreporia a
todos os demais. Isso seria incompatível com a existência de sociedades plurais
e democráticas, além do que, segundo o autor, apenas um racionalismo ingênuo
acreditaria em tal coisa.281 Pois bem, se todo sistema normativo é necessaria-
mente imperfeito, dado a inevitável arbitrariedade na escolha dos valores que
fundamentam as regras, é preciso que eles obtenham sua legitimidade moral
buscando maior contato com os valores mais imediatos presentes numa dada
sociedade. Além disso, Perelman assevera que todo sistema de justiça deveria não
perder de vista sua própria imperfeição e disso concluir que uma justiça imperfeita,
sem caridade, não é justiça.282

279 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 63.


280 Idem, ibidem.
281 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 64.
282 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 67.

126
Direito e Emancipação – Volume I

Vinte anos depois desse trabalho decisivo sobre o estatuto da justiça, Pe-
relman expressa que ainda se mantém convicto em relação ao fato de que os
valores que fundamentam um sistema de justiça são arbitrários e logicamente
indeterminados e, desse modo, um sistema normativo não pode resultar de uma
dada experiência e nem ser deduzido de princípios incontestáveis.283 Porém, e
esse é o dado mais importante, isso não significa que os valores e as normas que
nos guiam sejam alheios a qualquer racionalidade, que não possamos criticá-los
ou justificá-los, que seja obrigatório inferir que qualquer deliberação não passe
de uma expressão de interesses ou paixões. Esse tipo de conclusão, segundo o
autor, seria inevitável se trabalhássemos apenas no campo de um racionalismo,
típico da modernidade cientificista, que acredita que qualquer prova apenas
pode ser fundamentada no cálculo ou na experiência por entender que todo
raciocínio convincente é uma forma de dedução ou indução.284 Assim, Perel-
man lança as indagações que são determinantes para se compreender o sentido
de sua obra: dever-se-á concluir, portanto, que a determinação dos valores não-
-instrumentais e a das normas que nos fixariam os direitos e nos prescreveriam as
obrigações escapam a qualquer lógica e a qualquer racionalidade? Dever-se-á re-
nunciar a todo uso filosófico da razão prática e limitar-se, na área da ação, a um uso
técnico da razão, a um ajuste dos meios aos fins que, por sua vez, seriam inteiramente
irracionais?285 A resposta é não. Porém, segundo o autor, é preciso elaborar uma
lógica dos juízos de valores diferente dos padrões acerca da maneira como a lógi-
ca moderna entende a natureza do raciocínio, e que seja mais próxima da forma
como as pessoas efetivamente raciocinam sobre os valores. Aqui o pensamento
de Perelman coincide com o de Recasens Siches, pois da mesma forma que o faz
Siches, Perelman também crítica a aplicação das lógicas formais de inspiração
matemática em áreas como o direito: o inconveniente dessa concepção é que ela
tem como consequência levar o lógico a negligenciar o estudo de formas de raciocínio
que têm grande importância em certas disciplinas não-matemáticas e, mais espe-
cialmente, em direito.286 A alternativa seria buscar uma lógica não-formal o que,
para o autor, se manifesta ao modo de uma teoria da argumentação, denominada
por Perelman de Nova Retórica. Essa teoria lida com o campo axiológico não de

283 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 183.


284 Idem, ibidem.
285 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 184.
286 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 471.

127
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

maneira a propor um ou alguns valores absolutos e nem mesmo uma hierarquia


entre eles, o que já havia sido descartado por Perelman, mas levando em con-
sideração técnicas de raciocínio comumente utilizadas para justificar opiniões,
escolhas, pretensões e decisões, enunciados que qualificamos habitualmente de juízos
de valor.287 A Nova Retórica propõe uma ruptura decisiva com as concepções
cartesianas de razão e raciocínio, mas não com a racionalidade em si mesma.
Toda a argumentação é um esforço mais ou menos racional para justificar opi-
niões e escolhas, uma argumentação bem elaborada e mais convincente é um
esforço mais refinado, leia-se, mais racional, de justificação. Porém, como enfa-
tizam Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, a Nova Retórica não pretende buscar
uma verdade, o que seria incompatível com a maneira como Perelman entende
os valores, mas atuar no campo do verossímil, do plausível, do provável288, lá
onde a razão não pode contar com o conforto decorrente da certeza do cálculo.
As deduções e as induções devem estar a serviço das técnicas argumentativas
e não limitá-las, pois os recursos discursivos importam para obter a adesão dos
espíritos289 e não, como foi dito, para revelar a verdade, o que seria impossível
no campo dos valores, segundo Perelman.
Como não há verdade prévia quanto aos valores e não é compatível com
uma sociedade democrática a imposição destes por vias autoritárias, a teoria da
argumentação propõe o diálogo, isto é, uma perspectiva dialógica onde importa,
antes de tudo, que os pontos de vista opostos possam fazer-se ouvir. Para tanto
é necessário manter sempre acessível tanto a possibilidade do diálogo como a
disposição para ouvir as críticas. Isso sugere que aquele que discursa sempre
procure aprimorar seus argumentos para apresentá-los de forma razoável, isto
é, aceitável do ponto de vista de um outro.290 A fundamentação dos sistemas
normativos desponta, desse modo, assim de maneira intersubjetiva e dialógi-
ca, tendo como chave desse processo a ideia de justificação, o que é obra não
da razão teórica, mas sim da razão prática. Como assinala Perelman: enquanto
um raciocínio teórico consiste numa inferência que tira uma conclusão a partir de

287 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 184.


288 PERELMAN, Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica.
São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 1.
289 PERELMAN, Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Ob. Cit., p. 8.
290 PERELMAN, Chaïm. Ética e Justiça. São Paulo, 1996, pp. 201-203.

128
Direito e Emancipação – Volume I

premissas, o raciocínio prático é o que justifica uma decisão.291 A razão prática,


que não se pretende apodíctica, deve trabalhar para oferecer proposições razoá-
veis para um grupo de pessoas para que essas possam apreciá-las e emendá-las,
como é típico dos regimes democráticos onde é assegurada a possibilidade do
livre debate entre teses distintas para que se conclua por aquela que apresenta
a melhor fundamentação no sentido da coerência e da observância a valores
fundamentais.292 Nesse sentido, toda justificação implica uma pretensão de cor-
reção moral razoável, isto é, de adesão a valores que sejam aceitos e respeitados
por todo o grupo e não apenas por aquele que discursa. Ao contrário do que
pode parecer num primeiro momento, o protagonismo da Nova Retórica não é
exclusivo daquele que discursa, mas sim compartilhado com aqueles que ouvem
e criticam o discurso. Estes são denominados por Perelman de auditório, que
o define como sendo o conjunto daqueles que o orador que influenciar com sua
argumentação.293 É, exatamente, a relação entre orador e auditório o elemento
essencial para o desenvolvimento de toda a argumentação.294 Perelman e Ol-
brechts-Tyteca falam em três espécies de auditório: o auditório universal é aquele
que compreende toda a humanidade ou a presunção de pessoas igualmente
racionais e razoáveis; o auditório particular compreende os interlocutores espe-
cíficos do orador num determinado momento; por fim o terceiro auditório seria
a própria pessoa quando elabora consigo mesmo as razões de suas decisões.295 Os
autores ainda fazem uma distinção da argumentação em relação ao auditório,
denominando de persuasiva uma argumentação que pretende valer só para um
auditório particular e convincente àquela que pretende obter a adesão do audi-
tório universal.296 A exigência da justificação razoável, começa, portanto, com
o auditório particular, mas culmina com o auditório universal, especialmente
quando estamos a lidar com questões de valores e com as normas práticas de
uma dada comunidade política.

291 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 278.


292 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 350.
293 PERELMAN, Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica.
São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 22.
294 PERELMAN, Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Ob. Cit., p. 21.
295 PERELMAN, Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Ob. Cit., p. 34.
296 PERELMAN, Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Ob. Cit., p. 30.

129
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

É importante ter em mente que Perelman submete o trato dos valores à


razão prática exatamente porque não acredita que seja possível uma ordenação
prévia de valores em sociedades livres e democráticas. Mas isso não significa a
impossibilidade de fundamentação. O que ele pretende evitar é que o pensa-
mento oscile entre o absolutismo e o ceticismo. Em outras palavras: nega-se a
crença de que existam valores e princípios naturalmente superiores ou inatos,
todavia isso não significa que a única posição aceitável ao filósofo ou ao jurista
seja descrever os valores socialmente manifestados e submeter o debate acerca
deles às autoridades políticas daquele corpo social. Daí porque ele diverge tanto
do jusnaturalismo quanto do juspositivismo. A descrença em fundamentações
incontestáveis não significa a ausência de fundamentação, antes isso significa
que todo e qualquer fundamento deve sempre estar sujeito a alguma contes-
tação razoável apresentada por qualquer pessoa da comunidade política. Pe-
relman usa a expressão fundamento suficiente para designar a fundamentação
que consegue refutar uma objeção, justificar uma regra ou definir seu alcance,
descartar uma dúvida, reduzir um desacordo ou mesmo evitar uma contesta-
ção.297 O fundamento suficiente não se curva ao absolutismo das regras e nem
ao ceticismo moral, ele se abre ao dever do diálogo no esforço de apresentar ar-
gumentos razoáveis ao auditório universal. Ele vale aqui e agora, e esta validade
deve sempre ser reconfirmada em novos contextos.
A maneira como Perelman entende o direito se insere na sua perspectiva
filosófica geral, isto é, como uma atividade da razão prática que se realiza de
forma argumentativa visando à concretização de valores. O direito implica ra-
ciocínio jurídico e, de acordo com o autor, isso significa todo raciocínio que direta
ou indiretamente, se refere à aplicação da lei.298 Nesse sentido, considera que a
jurisdição e as decisões judiciais conformam o caso mais exemplar ou autorizado
do raciocínio jurídico.299 Por isso que toda a obra de Perelman voltada para o di-
reito sempre leva em conta, de forma direta ou indireta, o processo decisional e a
fundamentação das sentenças. É nessa dimensão do pensamento jurídico que se
manifesta com maior eloquência os procedimentos argumentativos e a busca de
justificativas razoáveis para as tomadas de decisão. A lógica jurídica seria, exata-
mente, o estudo dos esquemas argumentativos não-formais próprios do contex-

297 PERELMAN, Chaïm. Ética e Justiça. São Paulo, 1996, p. 393.


298 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 490.
299 Idem, ibidem.

130
Direito e Emancipação – Volume I

to jurídico.300 Evidentemente que se espera que os operadores do direito atuem


dentro de um marco que estabeleça as possibilidades prévias de ação e decisão.
Trata-se do direito positivo que estipula as expectativas jurídicas em geral. De
efeito, agir justamente implica tratar igualmente os iguais aplicando a norma de
um jeito regular para todas as pessoas de uma mesma categoria essencial. Con-
tudo, como foi visto, é possível que certas condições materiais impeçam esse pro-
cedimento. Daí porque a lógica formal não é suficiente para o raciocínio jurídico.
Então a lógica jurídica, não-formal, irá admitir o recurso ao juízo de equidade e/
ou à realização de distinções e exceções imediatas. Mas estes ajustes realizados
por aqueles que aplicam a lei, em especial a magistratura, deve se manifestar de
forma plenamente justificada e razoável. Lembrando que não é razoável a justi-
ficação que se apoia exclusivamente nas convicções morais ou políticas de quem
decide. O razoável, como dito anteriormente, é aquilo que é aceitável do ponto
de vista de um outro, isto é, do auditório universal, diria Perelman.
O fato é que não se pode esperar que a lei seja aplicada sempre por meio
da subsunção, pois inevitavelmente haverá casos que demandarão de quem
decide outras formas de raciocínio. Por tal motivo, Perelman afirma que toda
administração da justiça é um vaivém constante, um ajuste incessante entre a se-
gurança e a equidade, entre a letra e o espírito da lei.301 Juízes devem decidir e
fundamentar suas decisões argumentando para dois auditórios particulares: 1)
os jurisdicionados e seus respectivos advogados; e 2) o tribunal superior que po-
derá revisar sua decisão. Mas devem argumentar, também, para um auditório
universal que é formado tanto por especialistas quanto por cidadãs e cidadãos
em geral. Daí porque seus argumentos devem ser convincentes seja no plano
técnico, seja no plano dos valores e princípios morais que são compartilhados
por aquela comunidade política. Isso fica especialmente claro quando se trata
da decisão dos tribunais superiores:

As jurisdições superiores, por terem o cuidado de unificar a jurisprudên-


cia e de estabelecer a paz judiciária, se esforçam em convencer as cortes
e os tribunais de que a solução por elas apresentadas é, todas as vezes, a
mais conforme ao direito em vigor e a mais adequada aos problemas que
se procura resolver. Essa dupla perspectiva, que visa a conciliar a segu-

300 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 493.


301 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., pp. 513-514.

131
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

rança jurídica com a equidade e o interesse geral, tem como consequên-


cia que a maioria dos problemas jurídicos é resolvido não pelo enunciado
da única resposta evidente, e sim por um arranjo que resulta, em geral,
de um esforço de preservar os valores que se devem salvaguardar.302

No pensamento de Perelman relativamente ao direito, articulam-se dife-


rentes planos que devem se encontrar no âmbito da razão prática: 1) a sociedade
e os seus valores morais; 2) o legislador e suas prioridades políticas; 3) o juiz e
seus procedimentos argumentativos; 4) a justificativa razoável que deve funda-
mentar todas as decisões.303 O resultado da articulação dos elementos constan-
tes nesses diferentes planos é que irá propiciar a expressão do direito com aquilo
que deve ser seu valor central: a justiça.
Como foi dito anteriormente, a despeito de nunca terem usado a expressão
pós-positivismo, Theodor Viehweg, Luis Recasens Siches e Chaïm Perelman são,
em larga medida, precursores desse paradigma. Estes três autores não se con-
formam com a concepção segundo a qual a teoria do direito deveria limitar-se
à descrição do fenômeno jurídico, portanto sustentada por uma razão teórica
capaz de observar e relatar o direito positivo. Para eles, mais importante do que
fazer previsões e prognósticos acerca da norma jurídica válida, como é típico
do positivismo jurídico, é buscar as maneiras pelas quais a razão prática deve
atuar no raciocínio jurídico de forma a encontrar não apenas uma solução para
os casos juridicamente relevantes, mas a melhor solução, o quê, via de regra,
segundo esses autores, implica um compromisso com a máxima realização pos-
sível da justiça e outros valores morais de primeira grandeza. Isso produz um
deslocamento forte no âmbito da teoria do direito que resulta no fato de se
procurar privilegiar o ponto de vista interno, isto é, do participante, e não o
ponto de vista externo, ou seja, do observador. Entretanto isso não significa
um isolamento do direito e dos seus agentes em relação à sociedade como um
todo, ao contrário, há um esforço de busca de legitimação moral de forma a
complementar a legitimação técnica que decorre da afirmação do direito como
uma disciplina, um campo específico de estudo. A tendência aqui é de desfazi-
mento da dicotomia entre ciência (ou técnica) e moral já que ambas deveriam
se reforçar mutuamente. Por isso os valores vivos na sociedade, e presentes nas

302 PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 567.


303 PERELMAN. Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 199-216.

132
Direito e Emancipação – Volume I

constituições contemporâneas, passam a ter uma importância decisiva na ma-


neira de se pensar a aplicação do direito e a interpretação de suas normas. Esse
é o quadro sintético que apresenta o pós-positismo, ainda que de maneira geral.
Não há dúvidas que um paradigma se deixa melhor revelar quando con-
trastado com outro. Assim, os defensores do positivismo jurídico buscaram ex-
plorar o que consideravam fraquezas do jusnaturalismo para se contraporem
a esse como uma alternativa teórica mais adequada. O mesmo acontece com
os defensores do pós-positivismo, mas o fazem principalmente em relação ao
positivismo jurídico e menos em relação ao direito natural. Seguindo a linha
de raciocínio de seus partidários, podemos fazer um contraste breve entre posi-
tivismo jurídico e pós-positivismo, pois são os dois paradigmas mais influentes
da teoria do direito contemporânea.304 Como visto, o juspositivismo se propõe a
descrever as fontes sociais que produzem o direito positivo válido e o conjunto
de suas normas, isso de forma neutra em relação ao conteúdo dessas normas. A
teoria do direito seria, assim, uma linguagem sobre o direito, capaz de enunciar
as formas jurídicas válidas e a relação de sujeição lógica do destinatário do di-
reito positivo aos deveres impostos pelo ordenamento como resultado de um ato
de vontade de uma dada autoridade competente. Isso expressa uma concepção
de direito como força e como forma decorrente de fontes socialmente autoriza-
das. Dito em outras palavras, a validade do direito implica, necessariamente,
uma força capaz de instituir e assegurar o cumprimento de um dever jurídico
ou de um direito subjetivo. Embora haja cumprimento espontâneo das normas
jurídicas, é plausível e necessário reconhecer que sem força, não há direito.
Mas, como está intrínseco no conceito de validade, não é qualquer força que
é jurídica. As fontes sociais autorizadas revelam a forma por meio da qual virá
o comando jurídico. Diferentes correntes positivistas deram ênfase a diferentes
formas jurídicas: a lei, a norma, os costumes etc... Com efeito, a teoria do direito
positivista utiliza, em síntese, os critérios da validade formal e da eficácia social
das normas que podem ser qualificadas de jurídicas.
Pois bem, o pós-positivismo não nega que o direito seja vinculado aos
conceitos de força e forma; não nega que todo o direito para ser identificado
como tal precisa ter validade formal e eficácia social. Contudo, diverge radi-
calmente do positivismo jurídico quanto a um aspecto teórico e quanto a um

304 Cf. AGUILÓ REGLA, Josep. Positivismo Y Postpositivsmo. Dos Paradigmas Jurídicos en Pocas Palabras.
In Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Núm. 30, 2007.

133
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

aspecto metateórico. Em relação ao primeiro aspecto, o pós-positivismo irá


incorporar à ontologia do direito, ao lado de força e forma, um terceiro elemen-
to: a moral. Não que sustente que toda norma jurídica seja necessariamente
moral, não se trata disso. Mas os pós-positivistas defenderão que há um inarre-
dável compromisso da ordem jurídica com os valores sociais que a legitimam,
especialmente com o senso de justiça. Tais valores morais são uma orientação
tanto para o legislador quanto para os aplicadores das normas jurídicas, espe-
cialmente os juízes. Como consequência, todo e qualquer interpretação feita
sobre as normas deve levar em conta os valores que animam não apenas o
direito positivo, mas toda a comunidade política onde ele se insere. Em relação
ao segundo aspecto, no plano metateórico, os pós-positivistas acreditam que a
tarefa da teoria do direito não é apenas descrever o fenômeno jurídico e a lin-
guagem própria do direito. Impelir tal restrição à teoria poderia torná-la menos
útil e interessante aos próprios operadores do direito. Portanto, na medida em
que o ordenamento jurídico impõe deveres e consagra direitos em situações
jurídicas subjetivas, mais importante do que descrevê-lo é justificá-lo. A teoria
do direito deve fornecer caminhos e critérios para a busca de justificativas
razoáveis para as imposições jurídicas.305
Em ambos os aspectos, teórico e metateórico, os princípios ganharam um
papel de destaque na teoria do direito. Dworkin foi um dos que primeiro cha-
maram atenção para essa questão. Ele cita o caso Riggs x Palmer onde um Tribu-
nal de Nova Iorque, em 1889, precisou decidir se um beneficiário nomeado no
testamento poderia herdar o que estava disposto naquele testamento a despeito
de ter assassinado o seu avô (testador) exatamente com o objetivo de receber a
herança. Dworkin chama a atenção do leitor para o fato de que o Tribunal reco-
nhece que pela legislação em vigor não havia nada que pudesse restringir o tes-
tamento e excluir o jovem assassino da condição de herdeiro. Porém o Tribunal
lançou mão de um princípio para impedir que aquele jovem assassino recebesse
a herança. Os juízes invocaram o princípio do direito que diz que a ninguém
será permitido lucrar com sua própria fraude, beneficiar-se com seus próprios atos
ilícitos, basear qualquer reivindicação na sua própria iniquidade ou adquirir bens

305 Cf. ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Dejemos Atrás el Positivismo Jurídico. In Isonomia -
Revista de teoría y filosofía del derecho, nº 27. México: ITAM, 2007. BUSTAMANTE, Thomas
da Rosa de. Uma Defesa do Pós-Positivismo. In Virtú – Revista Virtual de Filosofia Jurídica e Teoria
Constitucional, nº 02, 2008.

134
Direito e Emancipação – Volume I

em decorrência de seu próprio crime.306 Com base nesse dentre outros exemplos,
Dworkin criticou a noção de direito como um modelo de regras e defendeu que
os princípios possuem a mesma condição normativa que as regras, não obstante
operem com uma lógica distinta já que sua aplicação conduz a uma direção
específica, mas não determina as consequências jurídicas com o mesmo nível
de exatidão que as regras. Outra importante diferença, segundo o autor, é que
os princípios possuem uma dimensão própria que é a do peso ou importância.
Quando os princípios colidem, aquele a quem cabe resolver o conflito deve le-
var em conta a importância relativa de cada um.307 Os princípios, no paradigma
do pós-positivismo, são considerados norma jurídica assim como as regras o são.
Como tal, eles podem dar a base para qualquer decisão satisfatória. De acordo
com os pós-positivistas, isso tornaria possível uma maior aproximação do direi-
to com os valores que atuam, sobretudo, na justificação das decisões. As regras
podem ter maior densidade normativa, pois estabelecem a conduta exigida e as
consequências do seu cumprimento ou do seu descumprimento com maior pre-
cisão. Por outro lado, os princípios possuem uma dimensão justificatória mais
eloquente do que as regras. Como afirmam Atienza e Manero, por serem menos
densos do que as regras, os princípios possuem um campo maior de incidência
fática, podem ser aplicados a um universo maior de casos.308 Além disso, e mais
importante, revelam com mais eloquência os valores que fundamentam a or-
dem jurídica e, dessa forma, estão mais aptos a dar sentido aos comandos, seja
justificando uma regra ou uma decisão, seja permitindo a consecução de certas
finalidades sociais previstas na própria ordem jurídica309, em geral nas consti-
tuições nacionais ou em tratados de direitos humanos ratificados no país. Seja
para incorporar valores, seja para produzir justificativas razoáveis, os princípios
possuem um papel de destaque no paradigma pós-positivista e sua utilização
demanda uma maior sofisticação argumentativa do que as regras.
Quando se fala em paradigma do pós-positivismo é preciso ter em conta
que da mesma forma que os paradigmas anteriores, direito natural e positivis-
mo jurídico, este também possui suas latências e diferenças internas. No âmbi-

306 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 37.
307 DWORKIN, Ronald. Ob., Cit., pp. 39-45.
308 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Sobre Principios y Reglas. In Doxa. Cuadernos de Filosofía
del Derecho. Núm. 10, 1991, p. 116.
309 ATIENZA, Manuel. MANERO, Juan Ruiz. Ob. Cit., p. 117.

135
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

to do direito natural podemos falar de distintos matizes dentro de um mesmo


paradigma, como um jusnaturalismo cosmológico ou outro de natureza racio-
nal ou antropológica; ou, até mesmo, de um jusnaturalismo de cariz teológica.
São diferentes perspectivas, porém unidas dentro de um mesmo paradigma.
Todas tem em comum o fato de acreditarem que o direito seja formado por um
conjunto de normas logicamente anteriores e moralmente superiores, como
foi visto inicialmente nesse livro. O mesmo ocorre em relação ao paradigma
do positivismo jurídico. Existem diferentes correntes positivistas, tais como o
positivismo legalista, o positivismo normativista ou o positivismo sociológico,
para dar alguns exemplos. Todas as correntes guardam diferenças umas em
relação às outras, contudo fazem parte do mesmo paradigma juspositivista por-
que acreditam que o direito decorre não de uma fonte metafísica, mas sim da
realidade social e que a validade das suas normas independe da orientação
moral que elas possam conter ou não conter. Pois não é diferente em relação
ao paradigma do pós-positivismo. Ele também agrupa tendências distintas de
orientação não positivista.
Os nomes mais comumente associados ao pós-positivismo são Ronald
Dworkin e Robert Alexy, embora, curiosamente, um e outro nunca tenham
se declarado expressamente como adeptos do pós-positivismo. O trabalho de
ambos possui diferenças significativas em certos aspectos. Todavia, os dois são
críticos francos e abertos do positivismo jurídico. Dworkin segue uma tradição
que vem de Lon Fuller e faz a crítica mais radical. Alexy segue a tradição que
vem de Gustav Radbruch que pretende preservar a dimensão de autoridade
do direito, a menos que a manifestação de vontade desta autoridade produza
uma grave injustiça (ideia conhecida como Fórmula de Radbruch). Além disso,
ambos dão a devida ênfase à dimensão ideal ou moral do direito, não obstante
o façam por caminhos divergentes. Dworkin aposta no sentido da integridade e
da coerência do ordenamento jurídico com os valores da comunidade política,
já Alexy acredita na realização da correção moral por meio de procedimentos
e postulados interpretativos-aplicativos do direito, especialmente a ponderação.
Essa dessemelhança significativa entre os dois principais filósofos do direito no
âmbito do paradigma pós-positivista provoca inúmeros debates e, às vezes, che-
ga a sugerir até mesmo que os seus adeptos estão em paradigmas distintos. Mas
é normal que isso ocorra. As discussões internas não foram menos relevantes

136
Direito e Emancipação – Volume I

em outros paradigmas.310 Aqui vale recordar aquele episódio onde, em meados


da década de 90, Jurgen Habermas foi convidado pelo Journal of Philosophy a
tecer suas críticas ao trabalho de John Rawls. Apesar de ter reconhecido as
virtudes da obra de Rawls e até mesmo admitir que compartilhasse das mesmas
intenções, como fora chamado para debater a obra iria apresentar dissensos
que, todavia, poderiam ser considerados como uma “briga em família”.311 Sem
querer minimizar as dessemelhanças, é possível chamar as divergências internas
aos paradigmas, como no caso do pós-positivismo, de discussões em família, da
mesma forma que o fez Habermas em relação ao trabalho de Rawls, dois autores
que, diga-se de passagem, também estão no marco do pós-positivismo.
Para que se tenha uma ideia acerca das dificuldades de definição de um
paradigma ainda tão recente – em termos históricos – quanto o pós-positivis-
mo, podemos citar a maneira como Lenio Streck faz uma classificação, ainda
que sumária, de diferentes orientações pós-positivistas. Segundo este autor, é
possível falar de um corrente de matriz analítica mais voltada para a questão da
argumentação jurídica e que seria representada, sobretudo, por Robert Alexy;
outra vertente teria uma orientação mais discursivo-procedimental e estaria
representada pelo pensamento de Jurgen Habermas voltado para a teoria do di-
reito; uma terceira corrente teria uma matriz mais estruturante, dirigida para a
concretização da norma jurídica e seria bem representada por Friedrich Müller;
por fim, fala de uma quarta vertente de matriz hermenêutico-fenomenológica
que estaria presente na obra de autores como Ronald Dworkin e Arthur Kau-
famann.312 De outro lado, independentemente das diferentes vertentes teóricas
presentes ao interior do paradigma, Thomas da Rosa Bustamante apresenta
uma definição de natureza mais geral:

Por pós-positivismo entende-se um tipo de teoria jurídica que, sem ne-


cessariamente negar a utilidade e a razoabilidade dos critérios positivos
utilizados pelas teorias positivistas para identificar o direito válido em

310 Basta lembrar as diferenças e os debates entre adeptos do jusnaturalismo racionalista e jusnaturalismo
teológico ou as diferenças e os debates entre adeptos do positivismo exclusivo e positivismo inclusivo,
no âmbito do positivismo jurídico.
311 HABERMAS, Jurgen. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2004, p. 66.
312 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5ª edição
revista, modificada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 510.

137
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

determinada sociedade, transcende os limites do pensamento positivista


e, dessa forma, nega a tese da separação entre direito e moral.313

Num texto seminal, publicado em 1998 na Revista Doxa, Albert Calsa-


miglia, procura estabelecer as bases do pós-positivismo e define este paradig-
ma como sendo aquele que é constituído pelas teorias contemporâneas que dão
ênfase nos problemas da indeterminação do direito e nas relações entre o direito,
a moral e a política.314 Para Calsamiglia, o positivismo jurídico, com sua teoria
das fontes sociais produziria uma determinação do presente pelo passado. O
problema é que tal modelo possui, segundo o autor, um fôlego mais curto por-
que seria oportuno apenas para os casos mais fáceis e incontroversos, onde
a vontade pretérita do legislador, manifestada em normas jurídicas vigentes,
mantém-se apropriada, em linhas gerais, para o alcance de soluções satisfató-
rias.315 Contudo, é preciso considerar, sustenta Calsamiglia, que o direito posi-
tivo é formado também por normas gerais, princípios e conceitos abertos que
geram, inevitavelmente, certa carga de indeterminação no próprio direito, já
que isso torna possível que se encontre respostas distintas para casos semelhan-
tes. Portanto, diante de uma pluralidade de possibilidades igualmente válidas e,
por isso mesmo, também igualmente contestáveis, a determinação normativa
do presente pelo passado não seria suficiente, é necessário que haja também,
uma justificação da decisão, o que envolve critérios morais e políticos.316 No
entender de Albert Calsamiglia, esse seria o grande mote do pós-positivismo:
pensar e propor parâmetros para modelos racionais de interpretação e aplica-
ção do direito que ajudem para a tomada de decisões que sejam moralmente
aceitáveis.317 Essa concepção reforça o que foi dito acerca do pós-positivismo ter
um aspecto teórico fundamental que é a superação da dicotomia entre direito
e moral e um aspecto metateórico crucial que é a crença de que uma teoria do

313 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Uma Defesa do Pós-Positivismo. In Virtú – Revista Virtual de
Filosofia Jurídica e Teoria Constitucional, nº 02, 2008, p. 1.
314 CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. In Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Núm. 21,
1998, p. 209.
315 CALSAMIGLIA, Albert. Ob. Cit., p. 211.
316 CALSAMIGLIA, Albert. Ob. Cit., p. 216.
317 CALSAMIGLIA, Albert. Ob. Cit., p. 213.

138
Direito e Emancipação – Volume I

direito não deve ser apenas descritiva mas, sobretudo, normativa, isso é, possuir
capacidade justificatória das imposições jurídicas.
Outro ponto a se tratar sobre esse paradigma é relativo à sua própria no-
menclatura. Alguém poderia levantar a questão se não seria melhor denominar
o paradigma de não-positivismo, ao invés de pós-positivismo. Até mesmo pelo
fato de, como dito antes, nem todos os autores qualificados de pós-positivistas
utilizarem esta denominação em seus trabalhos.318 O problema em relação a isso
é que a despeito do fato do pós-positivismo ser um não-positivismo, nem todo
não-positivismo é pós-positivista. Basta ter em mente o caso emblemático do
direito natural que é não-positivista, mas não se enquadra no pós-positivismo.
Claro que é preciso reconhecer que há uma linha que liga direito natural e pós-
-positivismo: trata-se do fato de ambos os paradigmas atuarem com perspecti-
vas idealistas ou perfeccionistas acerca do direito, ou seja, serem teorias que se
propõem um viés normativo do direito. Para ambas não é suficiente descrever
o fenômeno jurídico, mas é necessário avaliá-lo e justificá-lo como direito, não
apenas como o direito que é, mas como o direito que deveria ser. Contudo, o
direito natural, como diz o nome, procura os fundamentos e a origem do direito
ideal numa espécie de metafísica da natureza – razão humana, vontade divina,
natureza das coisas. Por isso jusnaturalistas se sentem confortáveis com a ideia
de que o direito natural é logicamente anterior e moralmente superior. Por outro
lado, o pós-positivismo procura os fundamentos e a origem do direito ideal na
história social e/ou institucional da comunidade política. Essa vinculação dos
valores e princípios que animam o direito à história, desnaturaliza o paradigma
e institui uma incompatibilidade radical entre jusnaturalismo e pós-positivismo.
Mas não há dúvidas quanto à perspectiva acentuadamente idealista do pós-
-positivismo jurídico ao propor uma teoria do direito como ele deveria ser 319,
embora não faça sentido chamar o idealismo pós-positivista de metafísico, haja
vista sua opção pela história social e institucional, ao invés da natureza.

318 A título de exemplo, Robert Alexy é um autor considerado pós-positivista, mas que não usa a expressão
pós-positivismo em seus trabalhos. Ele opta pela expressão não-positivismo (nichtpositivismus). Veja-
se, a esse respeito, o representativo artigo: ALEXY, Robert. El No Positivismo Incluyente. In Doxa.
Cuadernos de Filosofía del Derecho. Núm. 36, 2013.
319 Talvez nada seja mais emblemático quanto a esse aspecto do que o título de um dos mais importantes
livros de Owen Fiss: The Law as It Could Be – O Direito como ele poderia ser. Cf. FISS, Owen. The
Law as It Could Be. New York: New York University Press, 2003.

139
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Outro aspecto a se considerar acerca da nomenclatura do paradigma, é que


há autores que fazem a crítica da teoria do direito a partir de bases filosóficas
não idealistas. Nesse sentido eles podem ser considerados como não-positivis-
tas, mas não são pós-positivistas. Em geral estes autores buscam seus fundamen-
tos em nomes consagrados na filosofia, na sociologia ou mesmo na psicanálise e
na antropologia. Apenas para citar alguns exemplos, podemos falar de François
Ewald, que tem sua crítica ao direito inspirada em Michel Foucault320; Eric Hein-
ze, que se inspira em Nietzsche para suas reflexões sobre as questões da justiça321;
influenciados pela tradição marxista, podemos lembrar de Duncan Kennedy, do
movimento Critical Legal Studies322 e do mexicano Óscar Correas323. No campo
mais recente da teoria crítica do direito, há aqueles que criticam tanto o para-
digma do positivismo jurídico como do pós-positivismo, como é o caso de Costa
Douzinas e Adam Gearey.324 Por fim, podemos lembrar dos autores da filosofia
política que dialogam com o mundo jurídico e fazem contundentes críticas a
conceitos e categorias que estão no campo da teoria do direito, sempre permane-
cendo numa perspectiva não idealista e, por vezes, desconstrucionista, tais como
Michel Foucault325, Giorgio Agamben326, Jacques Derrida327, Chantal Mouffe328

320 Cf. EWALD, François. Foucault, a Norma e o Direito. Lisboa: Veja, 1993.
321 Cf. HEINZE, Eric. The Concept of Injustice. New York: Routledge, 2013.
322 Cf. KENNEDY, Duncan. A Critique of Adjudication [fin de siecle]. Cambridge: Harvard University
Press, 1997. KENNEDY, Duncan. Izquierda y Derecho: ensayos de teoría jurídica crítica. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno, 2010.
323 Cf. CORREAS, Óscar. Teoría del Derecho. Barcelona : María Jesús Bosch, 1995. CORREAS, Óscar .
Introduccion a La Critica Del Derecho Moderno. Esbozo. Puebla: Editorial Universidad Autónoma de P
uebla - Universidad Autónoma de Guerrero, 1982.
324 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005.
325 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
326 AGAMBEN. Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
AGAMBEN. Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. AGAMBEN. Giorgio. Opus
Dei: Arqueologia do Sacrifício [Homo Sacer, II, 5]. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. AGAMBEN.
Giorgio. Altíssima pobreza: Regras monásticas e formas de vida [Homo Sacer, IV, 1]. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2014.
327 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
328 MOUFFE, Chantal; LACLAU, Ernesto. Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic
Politics. Londres: Verso, 1985. MOUFFE, Chantal. O Regresso do Político. Lisboa: Gradiva, 1996.
MOUFFE, Chantal. The Democratic Paradox. Londres: Verso, 2000.

140
Direito e Emancipação – Volume I

e Antonio Negri.329 Dentre outros que ainda poderiam ser lembrados, esses au-
tores citados têm em comum, como foi dito, fazerem críticas ao direito que não
são idealistas e, por isso, não podem ser chamados de pós-positivistas. Essa é
mais uma razão pela qual não é possível considerar as expressões não-positivismo
e pós-positivismo como equivalentes funcionais. De efeito, há um ganho cogniti-
vo na denominação do paradigma como pós-positivista, pois ao mesmo tempo
em que revela certa ligação com o positivismo jurídico (admitir o direito como
força e como forma, concordar com aspectos da validade formal e da eficácia
social), apresenta sua pretensão de superação do paradigma juspositivista.
Um aspecto fundamental para se compreender o pós-positivismo, é a pas-
sagem do estado de direito para o estado constitucional de direito. Embora sejam
semelhantes, as expressões carregam cargas semânticas distintas. O estado de
direito está baseado no princípio da lei, isto é, a vontade da lei substitui a
vontade discricionária do governante. Daí a conhecida expressão governo das
leis por oposição ao governo dos homens. Todas as expectativas normativas de
indivíduos e grupos sociais decorrem, portanto, das leis. O sentido da palavra
lei é, curiosamente, amplo e específico. Em outras palavras, a ideia de lei abran-
ge a legislação aprovada pelo parlamento e, além dessas, decretos, portarias e
regulamentos. Todavia, não inclui a Constituição que, por seu turno, é vista
como uma referência mais política do que jurídica. E mesmo no sentido polí-
tico, ela é tomada como um caminho a ser seguido ou, como no dizer de Frei
Caneca, a ata do pacto social, que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e
associam para viver em reunião ou sociedade.330 Na concepção liberal de estado
de direito, que está na base do movimento constitucionalista ocidental do fim
do século XVIII, embora as constituições tratassem da organização do estado
e da relação entre este e a sociedade por meio da imposição de certos deveres
e da garantia de determinados direitos, elas desempenhavam um papel mais
fraco no ordenamento jurídico, pois eram as leis infraconstitucionais que esta-
beleciam em sentido forte os deveres e os direitos. Esse é um aspecto que marca
o paradigma juspositivista, por isso Norberto Bobbio afirma que o positivismo
jurídico nasce do impulso histórico para a legislação, se realiza quando a lei se torna
a fonte exclusiva – ou, de qualquer modo, absolutamente prevalente – do direito, e

329 NEGRI, Antonio. O Poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002.
330 Manifesto do Frei Caneca, Recife, 1824.

141
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

seu resultado último é representado pela codificação.331 Essa ideia que marca de
maneira decisiva o positivismo da Escola da Exegese, permanece no imaginário
do jurista que busca a norma nos códigos mais do que na constituição. Nesse
processo, não há dúvida de que o código civil é o modelo das relações jurídicas,
o que faz com que o positivismo seja assimilado pela doutrina jurídica a partir
de um viés mais privatista.
Essa história começa a mudar a partir da segunda metade do século XX
com o movimento da promulgação de novas constituições na Europa conti-
nental e na América Latina. Como resultado da nova agenda do social do pós-
-guerra, passa a existir uma preocupação com a instituição de limites jurídicos
e parâmetros políticos e morais para o próprio legislador: a constituição. O pro-
tagonismo das constituições não é um raciocínio óbvio ou trivial. Como nos
recorda Luigi Ferrajoli, até cinquenta anos atrás, não existia, no senso comum dos
juristas, a ideia de uma lei sobre as leis e de um direito sobre o direito.332 Assim, tem
início uma transição do conceito de estado de direito para um estado constitu-
cional de direito, onde a constituição é vista como norma jurídica plenamente
aplicável, independentemente, no mais das vezes, de legislação infraconstitu-
cional.333 Nesse novo panorama, a constituição não apenas organiza o poder
político, mas também lhe define previamente a pauta, pois todos os agentes e
órgãos do legislativo, do executivo e do judiciário ficam formalmente e mate-
rialmente vinculados às normas constitucionais. De efeito, mesmo que uma lei
seja formalmente válida, ela ainda assim será inválida caso substancialmente
viole diretriz, princípio ou regra constitucional. Nos seus estudos sobre estado
de direito e democracia, Ernst Wolfgang Böckenförde diz que o conceito mate-
rial de estado de direito, decorrente desse constitucionalismo contemporâneo,
implica uma tendência de renúncia ao positivismo jurídico em função da supe-
ração do critério de validade meramente formal e da neutralidade quanto ao
conteúdo das leis. Afirma Böckenförde:

331 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 119.
332 FERRAJOLI, Luigi. O Estado de Direito entre o Passado e o Futuro. In COSTA, Pietro. ZOLO, Danilo.
O Estado de Direito: história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 435.
333 Claro que há casos específicos onde a própria constituição demanda a aprovação de lei complementar
ou ordinária para regulamentar seu texto e especificar os meios de realização de um comando
que, não obstante, já está presente e deve orientar o funcionamento de instituições e as ações dos
indivíduos e grupos sociais.

142
Direito e Emancipação – Volume I

Por debaixo da pluralidade de formulações, o conceito material de Estado de


Direito se caracteriza pelo fato de que o poder do Estado se entende como
vinculado a determinados princípios e valores superiores do Direito, assim
como porque o centro de gravidade da atividade estatal não se entende já
como orientado, primariamente, a assegurar as garantias formais da liber-
dade, mas a estabelecer uma situação jurídica justa em sentido material.334

A implicação entre ordem jurídica, princípios e valores, alcança um nível


superior no processo de produção de sentido das normas a partir da ideia de
estado constitucional de direito ou, como denomina Böckenförde, do conceito
material de estado de direito. Esse constitucionalismo contemporâneo instituiu
uma série de direitos, com base nos valores que lhes fundamentam, e vários
sistemas específicos para a garantia de tais direitos. É típico do pós-positivismo
propor ao jurista uma espécie de óculos que filtre todas as normas e relações
jurídicas a partir desses sistemas de garantia de direitos. Isso conduz a certa
superação daquele viés privatista que por vezes orientou a interpretação e apli-
cação da norma sob o paradigma positivista. A autonomia da vontade passa a
encontrar limites nos direitos fundamentais. Isso porque a constituição e seus
direitos estão presentes mesmo nas relações entre particulares e o exercício de
um direito não pode resultar na violação ou restrição arbitrária de direitos de
outros. Há direitos, mas não pode haver abuso de direitos. Esse antigo instituto
jurídico, ganha uma aplicação mais vinculada à realidade social.
O que foi dito acima acerca do constitucionalismo contemporâneo e sua
ideia-força de proteção de direitos como base do pós-positivismo, aponta para
aquilo que seja, talvez, a principal característica desse paradigma: o conceito
ampliado de validade. Enquanto positivistas apresentam razões para afirmar
uma concepção mais restrita de validade, os pós-positivistas, em função de seus
compromissos metateóricos, optam por uma concepção mais ampla de valida-
de. Nesse entendimento se produz uma complexificação do conceito que além
de incluir as ideias de validade formal e eficácia social, abrange uma dimensão
axiológica de aceitabilidade. Há um autor que poucas vezes aparece na literatu-
ra nacional associado ao pós-positivismo, mas que é fundamental para se com-
preender esse paradigma, em especial o conceito ampliado de validade. Trata-se
do finlandês Aulis Aarnio que, em 1987, lançou o livro The Rational as Reaso-

334 BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfagang. Estúdios sobre el Estado de Derecho y la democracia. Madrid:
Editorial Trotta, 2000, p. 40.

143
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

nable: a treatise on legal justification. Nesse livro Aarnio dialoga com teóricos do
direito, positivistas e pós-positivistas, para propor um modelo geral de justifica-
ção razoável para o direito. O autor considera que o conceito de validade desem-
penha um papel determinante na ontologia do direito, independentemente de
qual direito positivo se considere.335 Fazendo referencia à classificação proposta
pelo filósofo do direito polonês Jerzy Wróblewski, Aarnio afirma que um direito
vigente, ou seja, válido, possui três dimensões de validade: sistêmica, fática e
axiológica.336 A validade sistêmica de uma norma possui natureza formal e deve
satisfazer aos seguintes requisitos: a) ter sido aceita e promulgada segundo o
procedimento devido; b) não ter sido revogada; c) não contradizer outra norma
vigente do mesmo ordenamento; e d) caso tenha ocorrido a contradição, haver
uma regra aceita para solucionar o conflito. Esclarece o autor que é possível fa-
lar da validade sistêmica ou formal em dois planos: validade interna e validade
externa. O plano da validade interna diz respeito ao posicionamento da norma
ao interior do ordenamento jurídico, o que suscita questões de competência
que remontam à constituição. Já a validade externa se refere ao ordenamento
jurídico como um todo, o que implica critérios metajurídicos de obediência ao
direito.337 Até aqui Aulis segue o raciocínio já desenvolvido anteriormente por
autores positivistas. Em relação à validade sistêmica interna, seria possível fazer
uma referência à norma fundamental hipotética de Kelsen como base de vali-
dade para a constituição. Já em relação à validade formal externa poderíamos
recorrer à regra de reconhecimento de Hart. Apesar de serem empiricamente
raras as situações onde se pode questionar a validade sistêmica externa (valida-
de de todo o ordenamento jurídico), tal questionamento poderia, segundo Aar-
nio, levantar uma questão formal e outra material. Do ponto de vista formal, se
coloca a pergunta por que obedecer a um sistema jurídico? Isso remete o teórico
do direito às questões de legitimidade social do dever de obediência. Já do pon-
to de vista material, a validade sistêmica externa se conecta com a avaliação

335 AARNIO, Aulis. Lo Racional como Razonable: un tratado sobre la justificación jurídica. Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1991, p. 70.
336 AARNIO, Aulis. Ob. Cit., p. 71. Talvez o leitor brasileiro se sinta familiarizado com essa classificação
apresentada, pois em muita se assemelha com a teoria tridimensional do direito aqui popularizada por
meio da obra de Miguel Reale. Aliás, Reale chega a citar Wróblewski nos seus trabalhos. Cf. REALE,
Miguel. Teoria Tridimensional do Direito: situação atual. 5ª edição revista e reestruturada. São Paulo:
Saraiva, 1994, pp. 46-47.
337 AARNIO, Aulis. Ob. Cit., pp. 72-77.

144
Direito e Emancipação – Volume I

das condições materiais para obediência ao direito, ou seja, se as condições de


fato que permitem a exigência das normas que estão contidas naquele dado
ordenamento. E, além disso, ainda invoca se o dado ordenamento inclue os cri-
térios morais mínimos que permitem justificá-lo. É importante notar que Hart
também defendeu que um direito positivo deve incluir um mínimo de “critérios
morais” ou, para ser mais fiel à linguagem hartiana, um conteúdo mínimo de
direitos naturais.338 Mas ele se mantém resoluto na convicção de que mesmo
um ordenamento que apresente leis que violem ou não atendam este conteúdo
mínimo de direito natural (ou critérios morais) permanecerá válido caso seja
aprovado no teste da regra de reconhecimento. Já para Aarnio isso não poderia
acontecer, pois violaria a dimensão material da validade sistêmica externa.
Em relação à validade fática, essa traduz, segundo Aarnio, uma questão
de eficácia das normas jurídicas. Isso implica que os destinatários das normas,
de fato orientem suas condutas de acordo com as prescrições das respectivas
normas. Claro que o direito procura assegurar essa eficácia acompanhando a
norma que prescreve a conduta de outra norma que estabelece uma sanção
em caso de descumprimento da conduta. Assim, a eficácia estaria ligada à ca-
pacidade de coerção do ordenamento jurídico, especialmente por meio das au-
toridades responsáveis por assegurar o cumprimento das normas. Mas Aarnio
lembra que isso não é suficiente para traduzir a eficácia, pois esta diz respeito
a uma inclinação dos agentes para um cumprimento espontâneo da norma.
Nessa linha, ele cita Alf Ross para dizer que o direito como fenômeno jurídico
implica uma dinâmica, isto é, um conjunto de relações jurídicas que ocorrem
porque as pessoas já internalizaram a norma e guardaram mentalmente suas
possibilidades de ação (relação) jurídica. Diz Aarnio que por meio da norma
os agentes/destinatários adquirem certa imagem que define uma atividade. São
estas imagens que configuram em suas mentes um campo de possibilidades ju-
rídicas que produzem ou limitam certas motivações de ação. Isso é por ele de-
nominado de ideologia normativa. Então, a validade de uma norma implica que
esta norma se encontre dentro da ideologia normativa daquela sociedade ou
grupo social de modo a motivar a conduta dos agentes. Com efeito, a dimensão
de validade fática ou eficácia da norma, envolve tanto um elemento ideológico
quanto de conduta. Mas Aarnio deixa claro que é preciso que as autoridades
competentes se comportem de maneira a exigir o cumprimento da norma. Se

338 HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, pp. 209-216.

145
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

as próprias autoridades não estiverem elas mesmas imbuídas daquela ideologia


jurídica e, por isso mesmo, deixarem de cobrar de cidadãs e cidadãos em geral
a conduta prescrita na norma, isso pode enfraquecer a disposição mental para
obediência à norma até que ela perca sua capacidade de produzir efeitos, sua
validade no sentido de eficácia.339
Até este ponto, seria possível dizer que muitos positivistas iriam concor-
dar em linhas gerais com as afirmações de Aarnio. Pois ele começa mesmo a
transitar para o paradigma pós-positivista quando fala da dimensão axiológica
da validade. Essa dimensão se conecta diretamente com a questão da aceita-
bilidade da norma jurídica. Aarnio admite a possibilidade de uma norma ser
formalmente válida e eficaz, mas não aceitável do ponto de vista de um sistema
de valores presente na sociedade onde dita norma se insere. Nesse sentido ele
amplia o conceito de segurança jurídica para, de alguma forma, incorporar uma
ideia de justiça. Isso significa que, segundo o autor, a exigência de segurança
jurídica está atendida quando: a) evita-se uma arbitrariedade; e b) o resultado
coincide com um código de valores, ou seja, é correto no sentido substancial da
palavra.340 Aarnio está convicto de que o direito deve estar permanentemente
vinculado às aspirações por algo sempre melhor que caracterizam a vida hu-
mana. Ele compartilha daquele sentimento idealista que propõe não apenas
o direito como ele é, mas como ele deveria ser. Por isso ele preconiza, como
critério de validade axiológica, que uma dada norma pode ser entendida como
constitucional porque está fundamentada no sistema de valores que sustenta
aquela constituição. A aceitação de uma norma implica uma operação mental
por meio da qual possa se dizer que a maioria dos membros de uma comunidade
política, após terem considerado racionalmente o assunto, se obrigariam a as-
sentir aquela norma jurídica como digna de ser obedecida. Para os que acharem
esse raciocínio por demais abstrato, Aarnio alerta que a validade como aceitabili-
dade é um tipo de estado de coisas contrafático.341 Conforme entende o autor, a va-
lidade axiológica da norma implica uma análise mais densa e criteriosa no que
diz respeito à sua justificação. Em relação a isso, assevera Aarnio: frequentemente
a base justificatória de uma interpretação consiste em argumentos “extrajurídicos”,

339 AARNIO, Aulis. Ob. Cit., pp. 77-82.


340 AARNIO, Aulis. Ob. Cit., p. 84.
341 AARNIO, Aulis. Ob. Cit., p. 85.

146
Direito e Emancipação – Volume I

entre eles a referência a algum código de valores. Portanto, somente à luz da validade
axiológica é possível compreender, por exemplo, a relatividade das interpretações.342
Claro que num universo assim mais amplo de regras, princípios, diretrizes
e valores, onde a validade de uma norma pode ser tomada não apenas sob um
aspecto formal (sistêmico) e fático (eficácia social), mas também a partir de
uma dimensão axiológica (de aceitabilidade), o ordenamento jurídico passa a
ser compreendido como um fenômeno de alta complexidade, o que significa
um movimento muito mais intenso de conexão entre variáveis. Tal movimen-
to ocasiona uma possibilidade maior de combinações entre estes elementos do
ordenamento e, inevitavelmente, uma pluralidade de sentidos, isto é, um certo
nível de indeterminação, como afirmou Albert Calsamiglia. Para lidar com essa
indeterminação no plano da aplicação da norma ao caso concreto e evitar que
ela se confunda com arbitrariedade ou mera discricionariedade, os autores do
pós-positivismo, cada um ao seu modo, irão invocar o conceito de justificação.
Esse talvez seja o conceito mais essencial para a adequada compreensão do pós-
-positivismo. Todos os autores desse paradigma atribuem uma grande relevân-
cia à justificação, pois ela é que tem a missão de produzir uma certa pacificação
diante das inúmeras possibilidades de contestação decorrentes da pluralidade
de valores que está na base das constituições democráticas. Quando se funda-
menta uma decisão, deve-se explicar como se chegou a ela, mas, igualmente,
deve-se justificar porque ela e não outra é a melhor decisão. As diferentes cor-
rentes do pós-positivismo tentam, cada uma a seu modo, sustentar qual é o me-
lhor caminho para essa justificação. O objetivo final é fazer com que o direito
esteja sempre acompanhado da justiça que, como lembra Manuel Atienza, não
é um ideal irracional, é simplesmente um ideal ou uma ideia regulativa.343

3.1 O Pós-Positivismo e a obliteração do sujeito


A dimensão mais idealista do pós-positivismo reabilitou a moral no âmbi-
to do direito. Mas seria a moral uma espécie de essência encoberta no direito?
Parte do ideário positivista consistia em buscar no fenômeno jurídico suas cons-
tâncias e regularidades para que essas fossem traduzidas por uma linguagem

342 AARNIO, Aulis. Ob. Cit., p. 86.


343 ATIENZA, Manuel. Tras la Justicia: uma introducción al derecho y al razonamiento jurídico. Barcelona:
Ariel, 1993, p. IX.

147
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

científica capaz de apresentar e representar o direito na sua essência. A neutra-


lidade quanto ao conteúdo do direito, de certo modo, está comprometida com a
preservação da própria neutralidade científica. Os conteúdos morais da legisla-
ção mudam, mas a ciência estuda o que não muda, as regularidades. Com isso,
os ideais morais foram banidos do direito e a essência do direito corresponderia
ao seu próprio comando como manifestação de uma autoridade socialmente
aceita. Entretanto, como afirmam Costa Douzinas e Adam Gearey, o banimen-
to da moralidade das operações legais não protegeu o direito de muitas de suas
deficiências, especialmente no tocante à perpetração ou manutenção de várias
formas de violência contra grupos oprimidos ou mesmo a sub-representação de
tais grupos na ordem jurídica e nas interpretações dominantes das normas.344
Com o crescimento e popularização do pós-positivismo, os ideais morais foram
reabilitados na teoria do direito. É como se a ciência do direito ganhasse tam-
bém uma consciência capaz de crítica e autocrítica e ficasse mais alerta quanto
às contradições da realidade onde se insere. De efeito, a busca por valores,
típica dos juízos morais, foi apresentada como uma espécie de solução para os
limites do positivismo jurídico e, dessa maneira, como uma essência do direito
que se revelaria, sobretudo, por meio das justificações morais. Não há dúvida de
que o recurso aos valores resolve a questão do cientificismo e do tecnicismo do
positivismo jurídico, ou mesmo de um pragmatismo político altamente elevado
que se recusa a perceber que a cena jurídica também é uma arena inevitável
de confrontos de interesses e disputas de diferentes versões filosóficas sobre
temas morais e políticos fundamentais. Contudo, persiste um grave problema:
muitos dos valores dominantes também são produtos da classe dominante e dos
grupos mais poderosos da sociedade. Também compartilham essa preocupação
Douzinas e Gearey quando afirmam que os valores que um sistema legal promove
representa a ideologia dominante da sociedade, eles são expressões canônicas do
seu poder político e social. Os “outros” – o pobre, o desprivilegiado, as minorias e os
refugiados – podem achar um pequeno consolo em regras e princípios que sustentam
e são sustentadas pela sujeição deles mesmos.345 O fato é que a coercividade
do direito continua traduzindo diferentes tipos de poder soberano que podem,
mesmo com o reconhecimento dos valores, oprimir os menos favorecidos.

344 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 7.
345 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Ob. Cit., p. 8.

148
Direito e Emancipação – Volume I

A necessidade de apresentação de uma justificativa razoável como base


de toda imposição jurídica, como proposto pelo pós-positivismo, é, sem dúvida,
uma propositura importante e até mesmo crucial para uma boa teoria normati-
va. Mas mesmo quando isso realmente acontece, não tem sido suficiente para a
superação de graves injustiças sociais. É preciso reconhecer que, como já havia
assinalado Chaïm Perelman, os valores também constituem um campo de dis-
putas, seja no momento de inclusão na ordem jurídica por meio da aprovação
dos textos legais, seja no momento de sua aplicação a determinado caso concre-
to. Como a generalidade é da natureza dos valores, o sentido que pode se extrair
deles pode variar significativamente a depender do intérprete. Por isso que há
valores que são incontestáveis, aceitos e afirmados por convicções ideológicas
de diferentes matizes, das mais conservadoras às mais progressistas, mas que
provocam consideráveis dissensões quando de sua utilização. Esse é o caso de
valores fundamentais como igualdade, liberdade ou dignidade. Para ficarmos
apenas no primeiro deles, a igualdade, podemos citar o exemplo da Lei Maria
da Penha. Como é sabido, essa lei foi inspirada no dramático caso de violência
doméstica sofrido pela mulher que lhe empresta o nome. Este caso foi denun-
ciado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA que
no ano de 2001, por meio do Relatório nº 54/2001346, reconheceu a violência
sofrida e recomendou ao Estado Brasileiro prosseguir e intensificar o processo de
reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à
violência doméstica contra mulheres. A recomendação determinou adoção de me-
didas no âmbito do executivo, legislativo e judiciário. Assim, no ano de 2006,
foi aprovada a Lei 11.340 que, segundo sua ementa, cria mecanismos para coibir
a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do parágrafo 8º do
art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Portanto essa lei
inequivocamente resulta de uma luta histórica de mulheres que são oprimidas
por formas específicas de violência como o machismo e a misoginia. Os valores
que fundamentam essa lei são a igualdade de consideração e respeito e a prote-
ção especial das mulheres tendo em vista as violências específicas que sofrem.
Pois essa Lei encontrou significativa resistência em parte da sociedade que sem
querer revelar princípios do patriarcado tradicional, invocava o valor da igual-

346 http://www.cidh.org/annualrep/2000port/12051.htm

149
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

dade para atacar a Lei. Mesmo na comunidade jurídica ela sofreu resistência
e sua constitucionalidade foi questionada. Em resposta, no mês de novembro
de 2007, a Presidência da República, por intermédio da Advocacia Geral da
União, impetrou a Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 19) visando a
confirmar os dispositivos mais questionados da Lei Maria da Penha, o que veio
a acontecer por decisão unânime do STF em fevereiro de 2012.347 Mas as dispu-
tas ideológicas em torno dos valores não se reduziram ao debate sobre a cons-
titucionalidade da Lei. No âmbito da aplicação da norma, algumas decisões do
Poder Judiciário entenderam que a Lei específica de proteção à mulher fosse
aplicada também para proteger homens. Isso aconteceu tanto no Tribunal de
Justiça de Mato Grosso, no âmbito do Juizado Especial Criminal Unificado, em
Cuiabá, no processo 1074/2008, quanto no Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
na apelação criminal 1.0672.07.249317-0. Nesse último caso o desembargador
relator afirmou que a única forma de sanar a “desigualdade” perpetrada pela Lei
seria aplicar seus dispositivos protetivos igualmente para mulheres e homens.
Isso significa que o recurso ao valor da igualdade, ao menos nesses casos, não
foi suficiente e satisfatório para se compreender a condição da mulher vítima de
violência doméstica como sujeito de injustiça social.
É forte o argumento pós-positivista de que o recurso aos valores e aos
princípios faz o direito crescer em sofisticação, especialmente no caso dos prin-
cípios, uma vez que esses passaram a ser considerados normas plenamente apli-
cáveis. Todavia, a índole abstrata dos valores e dos princípios faz com que eles
sejam capturados em jogos de sentidos onde a condição retórica pode acabar
por se sobrepor à realidade mesma. Já foi dado acima o exemplo da Lei Ma-
ria da Penha e de como ela foi aplicada fora do escopo da proteção à mulher.
Veja-se o caso das políticas de ação afirmativa, em especial dos programas de
reserva de vagas, conhecidos como programas de “cotas”. Não é por acaso que
tanto aqueles que defendem como aqueles que acusam esse tipo de programa
invocam o valor da igualdade. Para que as políticas de ação afirmativa sejam
adequadamente compreendidas é preciso mais do que fundamentá-las com base
em valores e princípios. É necessário buscar as raízes dos processos de opressão
e identificar aqueles que mais sofreram ao longo da história e ainda sofrem. É
preciso dar um rosto ao sujeito da injustiça social e olhá-lo nos olhos. É essa

347 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199845

150
Direito e Emancipação – Volume I

fenomenologia, mais do que o discurso genérico dos valores e princípios, que


possui a capacidade de explicar e justificar tais políticas.
Alguns pós-positivistas alegam certos níveis de indeterminação no âmbito
do direito. O caso citado por Siches e Radbruch sobre a regra das ferrovias na
Polônia que proíbe que se aceda às plataformas de embarque conduzindo cães
é um bom exemplo. Como afirmou Siches, não parece razoável que se permita,
em face da mesma regra, que se acesse as plataformas conduzindo um urso.
Num caso como esse o razoável desponta de forma cristalina. Mas em outros
casos, mais complexos, pode não ser assim. Isso porque o razoável, como aquilo
que é aceitável diante de uma razão pública, requer um nível de adesão que,
a depender do auditório (para falar com Perelman), talvez não seja possível
se alcançar em face da diversidade ideológica daquele grupo ou comunidade,
para não falar na disparidade de interesses. Apenas como exemplo simples de
retórica, vamos pensar sobre o direito de propriedade como aparece inscrito na
Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXII: é garantido o direito de propriedade.
O que está sendo assegurado aqui? O direito daqueles que já têm propriedades
de continuar a tê-las? Ou que seja assegurada alguma propriedade para aqueles
que não têm? A resposta a essa pergunta será profundamente influenciada pela
cultura e pelo ambiente ideológico daquele grupo social. Numa sociedade capi-
talista parece óbvio que a resposta razoável seja a primeira, mas nem todos vão
necessariamente concordar com isso. Para elaborar um pouco mais o argumen-
to, podemos recorrer ao correlato artigo 1228 do Código Civil: O proprietário
tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de
quem quer que injustamente a possua ou detenha. Portanto o artigo não impede a
posse do bem alheio, mas sim a posse injusta. Então é preciso perguntar: o que
é possuir injustamente? O positivista irá buscar as respostas no conjunto das de-
mais normas formalmente válidas e eficazes do ordenamento jurídico. Caso não
encontre esta resposta e reconheça, dessa forma, estar diante de um caso difícil,
não lhes restará alternativa senão delegar a solução ao poder discricionário da
autoridade decisional. Já os pós-positivistas não irão se contentar em atribuir a
solução à autoridade de quem deve decidir o caso, então afirmam que a resposta
permanece longe da discricionariedade e no âmbito do ordenamento jurídico,
embora não nas regras e sim nos princípios. O sentido do justo e do injusto re-
lativamente à propriedade e posse dos bens deverá ser procurado nos princípios
do direito positivo e fundamentado nos valores presentes no ordenamento jurí-
dico. Caso haja algum tipo de colisão, alguns dirão que deve ser efetuada uma

151
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

ponderação dos princípios, outros, contrários à ponderação, defenderão que a


resposta será alcançada mantendo-se a coerência entre o sentido procurado e
a história moral daquela comunidade política. Talvez alguns ainda digam que
não havendo uma resposta necessariamente satisfatória, será adotada aquela
que for mais persuasiva perante um auditório particular e mais convincente
diante de um auditório universal. O recurso à ponderação, à história ou à ar-
gumentação pode até atender às necessidades institucionais dos operadores do
direito ou mesmo às exigências cognitivas dos acadêmicos, mas nada disso ga-
rante que exatamente aqueles que serão os mais afetados pela decisão sejam
adequadamente ouvidos e compreendidos. O frescor dos condicionadores de
ar dos gabinetes funciona, às vezes, como um obstáculo epistemológico para se
compreender o calor das tensões sociais.
É preciso encontrar espaço no âmbito da teoria do direito para pensar a
realidade como ela é e como ela afeta as pessoas reais. Para o positivismo ju-
rídico os protagonistas da teoria do direito parecem ser a norma formalmente
válida e a autoridade que lhe produz. Para o pós-positivismo os protagonistas da
teoria do direito parecem ser os valores, os princípios e os fins do ordenamento
jurídico. Diante disso, o desafio que se impõe é possibilitar que o ser humano
também possa, de alguma forma, protagonizar a teoria do direito. Tal desafio
é mormente relevante quando estamos diante das situações de injustiça social.
Abrir os olhos para a realidade deve ser uma exigência metodológica para a te-
oria do direito. Com isso ela poderá tomar as pessoas não como abstrações, mas
como sujeitos concretos inseridos nas condições materiais de sua existência.
Aqui é inevitável lembrar-se do que disse Marx em A ideologia Alemã:

O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende,


antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontra-
dos e que eles têm de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser
considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência
física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma determinada de sua
atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um deter-
minado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exte-
riorizam sua vida, assim eles são. O que eles são coincide, pois, com sua
produção, tanto com o que produzem como também com o modo como

152
Direito e Emancipação – Volume I

produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições


materiais de sua produção.348

A compreensão da realidade e do processo por meio do qual ela se re-


produz como vida social concreta, nos remete para a questão das lutas sociais.
Realidade é luta e o direito não passa imune a isso.349 Engana-se quem acha
que o direito estabelece o contorno e os limites dentro dos quais se realizam as
batalhas por interesses diversos. O direito mesmo é, em larga medida, produto
dessas batalhas. E isso acontece não apenas na sociedade civil, mas em todos
os planos da ação institucional do estado, quais sejam, legislativo, executivo e
judiciário. Questões de altíssima relevância como a definição de bem público,
escolhas alocativas e prioridades de preferências, resultam muito mais de lutas
sociais do que de consensos ou princípios norteadores. E isso vale tanto para
a criação da norma como para sua interpretação. O texto legal, os princípios
ou a tradição hermenêutica podem, até certo ponto, produzir algum nível de
limitação ou constrangimento normativo, mas é a peleja aquilo que mais deter-
mina o resultado e produz novos patamares de existência e relacionamento. E
isso vale para toda a vida social, incluindo o direito. Aliás, a diferença entre a
luta que se dá na cena política e a luta que ocorre na cena jurídica é que na pri-
meira ela é mais direta, enquanto no direito ela costuma ser mediada por uma
retórica que tem por condição própria recorrer às leis e/ou aos princípios. Pós-
-positivistas criticam os positivistas dizendo que muitas vezes eles se escondem
atrás da letra fria da lei. É preciso ficar atento para que a contundência dessa
crítica não faça passar despercebido que pós-positivistas também podem se es-
conder por trás de certas interpretações dadas a alguns princípios. A propósi-
to, podem fazer algo até mais drástico do que imputam aos positivistas, que é
imporem certas convicções morais particulares como versão única de um dado
princípio ou valor, como se houvessem eles encontrado a essência e a verdade
daquele princípio. Seria um excesso de otimismo kantiano considerar que no
pós-positivismo teriam sido descobertas verdades morais que aniquilariam as
controvérsias filosóficas, as lutas por interesses e as disputas pelo poder. Todos

348 MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 87.
349 Não é demais lembrar a famosa palestra proferida por Rudolf Von Ihering em 1872 na Sociedade
Jurídica de Viena na qual Ihering inicia dizendo: O fim do direito é a paz, o meio de atingi-lo é a luta.
IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 53.

153
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

precisamos enfrentar o fato de que o mundo jurídico sempre ensejou combates,


às vezes confessáveis e às vezes inconfessáveis.
Jacques Derrida, na sua percuciente abordagem da relação entre direito e
justiça, cita Montaigne, para quem as leis se mantêm em crédito não por que
são justas, mas porque são leis, e a isso denomina fundamento místico da auto-
ridade das leis, como sendo o único fundamento das leis.350 Dessa referência a
Montaigne, Derrida destaca a palavra “crédito”, pois segundo o autor, ela porta
toda a carga da proposição e justifica a alusão ao caráter “místico” da autoridade.
A autoridade das leis repousa no crédito que lhes concedemos. Nelas acreditamos,
eis seu único fundamento. Esse ato de fé não é um fundamento ontológico ou ra-
cional.351 Portanto, segundo a perspectiva desconstrucionista de Derrida, não
há uma essência no direito e, nesse caso, não é possível afirmar que os valores
ou os princípios conformariam uma ontologia primeira do fenômeno jurídico a
assegurar diretrizes morais voltadas para a realização da justiça. Aliás, segundo
o autor as superestruturas do direito concomitantemente refletem e ocultam
interesses econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade.352 Contu-
do, a crítica ideológica ao direito não deve deixar escapar a compreensão de que
o momento fundador e justificante da ordem jurídica implica a erupção de um
ato de força como uma ruptura histórica que institui o direito como um poder.
Esse poder é sempre uma possibilidade, de ser ou de não ser. Uma potência, em
termos aristotélicos. É ele que mobiliza, ao mesmo tempo, as crenças e as forças
sociais. Não há nesse momento fundante nenhuma manifestação de justiça,
mas apenas possibilidade. Afirma Derrida:

Ora, a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consisti-


ria num golpe de força, numa violência performativa e portanto interpretati-
va que, nela mesma, não é justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum
direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação preexistente,
por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar. Nenhum
discurso justificador pode, nem deve, assegurar o papel de metalinguagem

350 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 21.
351 Idem, ibidem.
352 DERRIDA, Jacques. Ob. Cit., p. 23.

154
Direito e Emancipação – Volume I

com relação à performatividade da linguagem instituinte ou à sua interpre-


tação dominante.353

Esse limite da linguagem em sua capacidade justificativa ou mesmo inter-


pretativa é que instaura, como afirma Derrida, um silêncio murado na estrutura
violenta do ato fundador.354 Assim, o místico começa onde acaba a pujança do
discurso. As teorias pós-positivistas precisam lidar com o fato de que a funda-
ção do direito é produto de uma força constituinte originária que cria as normas
e as mantém suspensas graças ao crédito, fundamento místico, que acompanha
o ato constituinte e não por conta de valores ou princípios. Não que tais va-
lores ou princípios sejam ruins, mas eles não são ontológicos ou originários e,
por isso, seu potencial justificador é sempre relativo. Daí a relatividade mesma
que surge no momento interpretativo. Mesmo em sociedades com uma tradição
histórica bem consolidada na comunidade política, haverá alguns desacordos
no momento de justificar um ato de comando com base num valor como dig-
nidade, por exemplo. Não que esse valor seja controverso, ao contrário, ele é
endossado por todos. Porém, no momento de sua captura pelo discurso para
aplicação como fundamento de uma dada decisão, haverá um nível tal de po-
lissemia que permitirá que ele esteja na base de duas decisões opostas para dois
casos semelhantes. Há juízes que concedem uma ordem de despejo com base na
dignidade da pessoa humana, há juízes que negam uma ordem de despejo com
base na dignidade da pessoa humana. Há juízes que autorizam a interrupção
da gravidez com base na dignidade da pessoa humana, há juízes que negam a
interrupção da gravidez com base na dignidade da pessoa humana. Isso aconte-
ce em decorrência do vazio do momento fundador. As práticas argumentativas
que procuram realizar a fundamentação, já são posteriores ao acontecimento
fundante e elas mesmas são capturadas nas lutas que dele se desencadeiam.
Essa dose de realismo diante do idealismo pós-positivista não deve ser en-
tendida como puro ceticismo, como impossibilidade de construção, ao contrá-
rio. O momento de criação do direito como espaço originário é vazio como ato,
como aquilo que é, mas é repleto como potência, como aquilo que pode ser. Isso,
ao menos na experiência jurídica, contraria a perspectiva niilista que supõe a
crença de que ex nihilo nihil fit, isto é, do nada nada vem. No caso do direito, do

353 DERRIDA, Jacques. Ob. Cit., p. 24.


354 DERRIDA, Jacques. Ob. Cit., p. 25.

155
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

vazio da força originária decorrem instâncias de forças instituintes que estão, a


priori, abertas a qualquer um. O que decorre daí é luta por garantia de direitos,
interesses ou, até, privilégios. A moralidade que o pós-positivismo vê no direito,
não é anterior a essas lutas, é parte delas já que o momento fundador é vazio, ou
seja, nem justo e nem injusto em si mesmo. E como acontece em qualquer luta
social, as condições materiais que são previamente favoráveis a certos grupos e
desfavoráveis a outros, podem dificultar ou mesmo bloquear as demandas dos
menos favorecidos no processo de luta na arena jurídica. Daí porque é impres-
cindível uma teoria que seja capaz de pensar o direito, a luta na cena jurídica, do
ponto de vista dos que mais sofrem as injustiças sociais. As teorias pós-positivis-
tas são robustas quando pensam o direito como sistema de normas fundamen-
tadas em valores, quando procuram meios racionais de justificação da decisão,
mas não costumam ser tão possantes quando precisam lidar com os sujeitos que
são adjacentes a qualquer justificação. Daí certa tendência em substituir pessoas
reais por pessoas abstratas ou idealizadas ou, por outro lado, substituir pessoas
reais por classificações identitárias. Se o direito, como dissemos, não possui um
fundamento originário absoluto e é sempre reinterpretável, a justiça não será
dada e sim construída, ou melhor, conquistada a partir da ação dos agentes. Os
dominantes já possuem os recursos materiais e teóricos para isso, já os sujeitos
oprimidos precisam tanto dos recursos materiais quanto dos recursos teóricos
por meio dos quais eles possam ser empoderados para essa luta.
Denunciar as armadilhas ontológicas que prendem as pessoas nas ide-
alizações abstratas de um logos jurídico, e afirmá-las como sujeitos concretos
que vivenciam uma experiência real de injustiça social, faz parte de uma tarefa
emancipatória que somente pode ser levada a cabo por um pensamento crítico.
E a noção de crítica nos remete aos Anais Franco-Alemães que registram que,
em setembro de 1843, Marx escreveu uma carta a seu amigo Arnold Ruge onde
fala sobre as tarefas e o sentido da atividade crítica:

Embora a construção do futuro e sua consolidação definitiva não seja as-


sunto nosso, tanto mais líquido e certo é o que atualmente temos de realizar;
refiro-me à crítica inescrupulosa da realidade dada; inescrupulosa tanto no
sentido de que a crítica não pode temer os seus próprios resultados quanto no
sentido de que não pode temer os conflitos com os poderes estabelecidos.355

355 MARX, Karl. Cartas dos Anais Franco-Alemães. In Sobre a questão Judaica. São Paulo: Boitempo,
2010, p. 71.

156
Direito e Emancipação – Volume I

Portanto, uma teoria crítica do direito deve ser capaz de revelar a reali-
dade e as contradições do direito tanto no plano teórico, de sua concepção,
quanto no plano prático, de sua aplicação. E não pode temer as consequências
de sua análise e nem o enfrentamento com os poderes constituídos, que são
muitos (políticos, econômicos, institucionais, acadêmicos etc...). Nessa linha,
Costa Douzinas e Adam Gearey passam em revista tanto ao positivismo quan-
to ao pós-positivismo e afirmam que o positivismo falhou ao não entender que
a moral é uma substância do direito, mas que as teorias pós-positivistas teriam
se tornado ainda mais irrealistas ao negligenciar a dimensão do poder e da luta
no direito. Segundo esses autores, muitas teorias contemporâneas do direito,
de inspiração pós-positivista, apresentam o direito como um corpo unifica-
do e coerente de normas ou princípios que aparece enraizado numa espécie
de metafísica da verdade, racionalmente encontrada. Disso se seguiria que o
conceito de poder apareceria plenamente domesticado pelas formas jurídicas e,
nesse sentido, legitimado por elas. A fórmula resultante dessas teorias seria algo
próximo do seguinte: o poder é legítimo se segue o direito, nomos, e se o direito
segue a razão, logos.356 O problema dessa fórmula é que não leva em conta que
o poder resulta de um lugar vazio, portanto sempre em disputa, como uma teo-
logia negativa que assegura um ato soberano criador, mas que não diz de onde
vem. Daí um direito sem fundamento, como afirmou Derrida, ou melhor, com
um fundamento apenas místico. A ordem jurídica não é tão somente um corpo
consistente de normas que se mantêm coerentes com base em princípios que
são ordenados pela razão argumentativa ou pela razão hermenêutica que busca
na pré-compreensão da comunidade política a sua própria integridade. Ela é
espaço instituinte de sentidos que decorrem da ação política de seus agentes ao
interior dela mesma. E quando se fala em “ação política” esta expressão deve
ser entendida tanto no sentido mais nobre da ação que se faz em comum e
pelo bem comum, quanto no sentido mais rasteiro da busca pela manutenção
e ampliação de privilégios.
Para Costa e Gearey, a combinação dos elementos descritivo e prescriti-
vo, de logos e nomos cria uma falsa questão na teoria do direito. Diante disso
eles afirmam que a tarefa de uma teoria crítica do direito é desconstruir este
logonomocentrismo, seja na teoria seja na prática jurídica. Segundo eles a virada

356 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 9.

157
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

da hermenêutica moral na teoria do direito (paradigma do pós-positivismo) é


bem-vinda, mas o fundamento moral do direito deve ser debatido e disputado
ao invés de simplesmente assumido. Além disso, qualquer entendimento sobre
justiça deve operar uma ligação entre justiça e força de lei.357 A maneira como
Costa e Gearey entendem o que seja uma teoria crítica do direito guarda grande
afinidade com a proposta desse livro de fazer uma crítica da teoria do direito a
partir do sujeito da injustiça social.
Em um texto fundamental para a filosofia do direito chamado Para a Crí-
tica da Violência, Walter Benjamin afirma clara e diretamente que o que é ga-
rantido pela violência instauradora do direito é o poder.358 Sendo assim, não resta
a menor dúvida de que o direito implica força e luta, como muitas outras coisas
que existem na vida social. Concebendo o direito como possuindo apenas po-
tência em sua origem, é possível afirmar que a experiência jurídica não possui
exatamente uma essência, a não ser o combate constante em torno do sentido
de suas normas. A pergunta que precisa ser colocada é a seguinte: deve haver
alguma referência para tal combate? A resposta presumível vinda das teorias
positivistas seria o conjunto das normas formalmente válidas e socialmente
eficazes. Por outro lado, a resposta provável vinda das teorias pós-positivistas
seria os fundamentos morais decorrentes da razão prática e da tradição da co-
munidade política. Assim, teremos dois passos na busca pela referência. No
primeiro passo aparecem forma e força como referências próprias do direito
para o combate na cena jurídica. No segundo passo, a forma e a força são
acrescidas dos valores e princípios conferindo uma espécie de dignidade moral
ao marco referencial para o combate. Uma teoria crítica precisa, então, avançar
mais uma passo que seja capaz de se manter estável no caminho percorrido,
mas que não se prenda pelas amarras do passado e que não tema suas próprias
conclusões, como disse Marx.
Pois bem, a perspectiva idealista do pós-positivismo tem de positivo uma
vontade, um animus de produzir justiça, mas o fato de ser idealista lhe coloca a
armadilha do abstracionismo que impõe um modo de ser por meio do qual se
busca a fundamentação das normas em valores genéricos que, como sabemos,
são permanentemente suscetíveis às manipulações ideológicas e a dissensões

357 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Ob. Cit., p. 10.


358 BENJAMIN, Walter. Para a Crítica da Violência. In BENJAMIN, Walter. Escritos sobre Mito e
Linguagem. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2013, p. 149.

158
Direito e Emancipação – Volume I

nem sempre razoáveis. Esse é o preço pago por uma moralidade tomada de for-
ma abstrata. Mas há outro preço, de custo bem mais elevado, que é o problema
central de nossa reflexão: a obliteração do sujeito. Como se não bastassem as
opressões que ocorrem na vida social em geral, também na cena jurídica se
produz uma exclusão teórica e prática do sujeito, mas não de qualquer um, e
sim daqueles que são oprimidos por diferentes formas de violência originadas
por razões econômicas, políticas ou culturais. Trata-se do sujeito da injustiça
social que, via de regra, é tomado no mundo jurídico como uma representação
e, por isso mesmo, de maneira fraca e opaca diante daquilo que ele é nos termos
de suas condições materiais e de suas inquietações existenciais. Para enfrentar
esse problema, nossa proposta é que se coloque como referência para o combate
na cena jurídica a figura do outro, do sujeito concreto que nos interpela em sua
singularidade. Nesse sentido, mais do que a moral, é a ética que precisa ser re-
abilitada no coração da teoria do direito. Claro que poderia ser legitimamente
alegado que moral e ética são, ou podem ser, expressões sinonímicas, até porque
ambas estão, de alguma forma, voltadas para uma ideia de bem. Todavia, não
obstante possa mesmo existir certa sinonímia entre os dois termos, estamos es-
tabelecendo aqui uma diferença entre ética e moral, sendo a moral tomada no
sentido de cumprimento do dever ou de adesão a virtudes e valores. Por outro
lado, a ética, conforme será exposta aqui, não será entendida como área do co-
nhecimento que estuda os comportamentos morais, mas sim nos termos de um
seguimento específico da filosofia moral que acompanha uma linhagem de au-
tores como Franz Rosenzweig (1886 – 1929) e Martin Buber (1878 – 1965) até
chegar em Emmanuel Lévinas (1906 – 1995). Trata-se da Ética da Alteridade.
Para situar melhor nosso leitor, vale fazer uma distinção etimológica entre
moral e ética. O vocábulo moral vem do latim morus que significa costume ou
cultura, enquanto o vocábulo ética vem do grego éthos que também significa
costume ou cultura. Todavia, essa não é a única forma de grafia da palavra.
Desde o grego antigo existe uma variação fonética e semântica que introduz um
sentido diverso para a palavra ética. Quando em grego ela é escrita ἔθος, possui
a vogal breve e, por isso, deve ser transliterada como éthos (som aberto). Nesse
caso, ética significa um conjunto de costumes e hábitos ou as características
culturais de uma coletividade. Porém, quando escrita ἦθος, possui a vogal longa
devendo ser transliterada como ē´thos ou êthos (som fechado). Nessa segunda
forma, a palavra não significa mais costume ou cultura, mas sim morada ou
covil habitual falando-se em animais. Esse sentido distinto originado do grego

159
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

ἦθος ou ē´thos fez com que parte da filosofia entendesse a ética como atributo
doméstico ou particular do indivíduo, definindo-a como algo próximo de “dis-
posição do caráter”. Essa distinção semântica é fundamental para o debate em
torno dos sentidos possíveis para a palavra ética. Diga-se, aliás, que ela não é
nova. Vejamos o fragmento 119 de Heráclito359: “ηθος ανθρωπου δαιμον”, que
pode ser transliterado para ē´thos anthrópou daímon – o êthos do homem é o
daímon. Esse fragmento aparece na edição brasileira dos filósofos pré-socráticos,
organizada e traduzida por Gerd Bornheim – editora Cultrix – da seguinte for-
ma: “O caráter é o destino (daimon) de cada homem”.360 Porém, esse mesmo
fragmento está disposto em outra edição brasileira – Os Pensadores Originá-
rios – organizada e traduzida por Emmanuel Carneiro Leão – editora Vozes –
como: “A morada do homem, o extraordinário”.361 Essa segunda interpretação
é exatamente aquela que destaca Heidegger na sua carta Sobre o Humanismo:
êthos significa morada, lugar da habitação. A palavra nomeia o âmbito aberto onde
o homem habita. O aberto de sua morada torna-se manifesto naquilo que vem ao
encontro da essência do homem e assim, aproximando-se, demora-se em sua proxi-
midade.362 Ora, esse aberto da morada não se reduz, portanto, à vida doméstica
ou à morada doméstica, mas refere-se à situação de existência do homem no
mundo. Nós habitamos o mundo, vivemos no mundo, moramos no mundo. Essa
é nossa condição essencial que é necessariamente compartilhada por todos. As-
sim sendo, nossa vivência no mundo é também convivência no mundo, isto é,
“viver com”. Por seu turno, viver com presume a existência de um outro. Como
afirma Heidegger, o nosso ser-no-mundo é determinado pelo com pois o mundo
da presença é sempre o mundo compartilhado. O ser em é sempre o ser com os
outros.363 Na mesma linha, Martin Buber desenvolve uma crítica radical a todas
as formas psicológicas, filosóficas ou sociológicas que isolam uma pessoa das
demais no âmbito da vida em comunidade.364 Segundo esse autor a ideia mesma
de “individualismo” seria uma ficção ou fantasia, uma teoria inadequada por

359 ANAXIMANDRO. PARMÊNIDES. HERÁCLITO. Os Pensadores Originários. Petrópolis: Vozes,


1991, p. 90. Cf. fragmento 119.
360 BORNHEIM, Gerd. (org). Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 43.
361 ANAXIMANDRO. PARMÊNIDES. HERÁCLITO. Ob. Cit., p. 90. Cf. fragmento 119.
362 HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 170.
363 Cf. HEIDEGGER, Martin. O Ser e o Tempo. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 170.
364 BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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Direito e Emancipação – Volume I

não ser capaz de explicar a vida social. Para Buber, a personalidade, que é um
traço necessário e assente em cada indivíduo, faz com que toda pessoa estabele-
ça uma relação autêntica, real e total com o mundo e com os outros.365 Isso significa
que a nossa personalidade, a condição de nosso ser, não é algo que nós defina-
mos voluntariamente a partir de convicções unilaterais. Obviamente o eu está
presente na personalidade, entretanto, e de maneira paradoxal, ela surge da in-
teração entre o indivíduo e o mundo. Desse modo Buber reitera que a relação do
mundo com o “si-próprio” é parte da personalidade, como também a inefabilidade da
relação entre dois seres: aquele que me experimenta como eu o experimento, através
do qual experimento-me como limitado.366 Em vista disso e nesse horizonte, não
é filosoficamente adequado se falar do eu sem considerar sua inevitável relação
com o outro. E é exatamente nessa perspectiva do outro, da outricidade, onde
podemos encontrar o sentido forte para a palavra ética.
Com efeito, ética é aquilo que nos remete para o outro, para a emergência
de uma alteridade. De forma mais clara e precisa, ética é consideração pelo
outro. De um ponto de vista ético, esse outro não pode ser visto apenas como
conceito ou categoria abstrata, muito menos como ente manipulável segundo
minhas perspectivas e interesses, mas como existência autônoma que reclama
respeito e dignidade na sua própria qualidade de outro, isto é, na sua outricida-
de. Como assinala Manfredo de Oliveira, a liberdade só se afirma como liberdade
pelo reconhecimento incondicionado da outra liberdade como liberdade.367 Nessa es-
teira, a ética é uma relação bilateral, mas não em sentido tradicional como eu e
outro. O eu nessa relação seria uma ameaça narcísica à intenção ética.368 Por isso
a bilateralidade da relação ética é outro e outro, ou seja, ou eu fica transformado
em outro do outro. Isso quer dizer que o outro deve ser compreendido desde um
ponto de vista arquimediano independente das minhas idiossincrasias. Eu devo
constatar, respeitar e tolerar369 o outro porque ele existe como tal, não porque

365 BUBER, Martin. Ob. Cit., p. 106.


366 BUBER, Martin. Ob. Cit., p. 107.
367 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993, p. 101.
368 Cf. LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 197.
369 A palavra "tolerar" está sendo usada aqui porque assinala uma diferença. Não se usa o termo "tolerar"
lá onde há concordância e convergência de ideias e práticas sociais. Contudo, é preciso ter em mente
que, no contexto do argumento desenvolvido, ela não pode ser interpretada como algo que remete a
certa arrogância, como se quem tolerasse tivesse uma superioridade moral em relação àquele que é

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José Ricardo Cunha e Bethania Assy

isso pode ser bom para mim. A ética nos remete, assim, para um campo de
responsabilidade pelo outro como condição inevitável de nossa existência ou
morada no mundo. Nas palavras de Lévinas: o que chamo de responsabilidade
por outrem, ou amor sem concupiscência, o eu só pode encontrar sua exigência em si
próprio; ela está no seu ‘eis-me aqui’ do eu... ela é originalmente sem reciprocidade,
pois traria o risco de comprometer sua gratuidade ou graça...370
A ética nos situa no centro do campo do cuidado.371 O outro é aquele a
quem dirigimos nosso cuidado, nosso zelo, nossa atenção; ele nos interpela em
nossa capacidade mais profunda de produzir humanidade, de perceber e fazer
brotar a existência humana para que ela cresça e perdure na sua própria vida.
Nessa perspectiva, apesar da alteridade radical e da gratuidade que caracteri-
zam a conduta ética, é possível sim dizer que ser ético pode gerar um ganho
subjetivo, pois a humanidade produzida inevitavelmente transcende o outro
para também crescer no eu que a prática. É como se a conduta ética gerasse em
quem a prática um sentimento ao mesmo tempo ligeiro e profundo de realização
humana. Mas esse é o máximo de satisfação que a ética pode proporcionar ao
sujeito, ao eu, uma vez que ela não se destina à autorrealização, mas à tentativa
de uma convivência humana digna e respeitosa onde todos sejam considerados
como livres e iguais, resguardadas as diferenças. Além disso, como ente não
manipulável, não se pode esperar que o outro aja conforme as minhas expec-
tativas, nem mesmo em relação à sua conduta ética. Em outras palavras, não
devemos agir eticamente para que o outro também o faça, até porque seria im-
possível ter garantias nesse sentido, mas porque humanamente devemos fazê-lo.
Isso significa que, se por um lado, a conduta ética é um ato racional de justiça,
por outro lado, ela é um ato afetivo de amor.
Não há como deixar de notar essa estranha e curiosa relação entre justiça
e amor que se processa no âmbito da consideração ética. Os teóricos do pós-
-positivismo raramente elegem o amor como um dos valores a partir dos quais
deveria ser fundamentada a justiça.372 É como se a racionalidade da justiça fosse

tolerado. Longe disso! Muito embora essa conotação mais arrogante do termo possa aparecer tanto
em discursos como na própria literatura, o sentido aqui adotado é o da deferência na diferença.
370 LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 293.
371 Cf. RICOEUR, Paul. Em Torno ao Político – Leituras 1. São Paulo: Loyola, 1995, pp. 162-163.
372 É preciso reconhecer que Manuel Atienza, um dos mais influentes filósofos do pós-positivismo, chega
a admitir que a aplicação do direito não exige apenas razão mas, também, sentimentos e paixões, ainda

162
Direito e Emancipação – Volume I

incompatível com a sentimentalidade do amor e um pudesse colocar a existên-


cia do outro em risco. Como se a retidão da justiça impedisse a realização plena
do amor ou como se a emotividade do amor inviabilizasse a realização plena
da justiça. A aparente desproporção entre amor e justiça sugere o amor como
uma sentimentalidade que não pensa, que não é capaz de expressar-se numa
linguagem que seja de domínio público, que permita interações lógicas e pre-
visíveis e, sobretudo, que possa exigir-se de alguém. O amor não é imperativo,
daí a dificuldade de pós-positivistas inseri-lo no campo dos discursos morais que
deveriam fundamentar o direito, afinal, como transformar algo não exigível em
um imperativo categórico? Pois bem, que tenhamos em conta desde já que é
pela porta da justiça que o amor adentra à esfera moral. Essa afirmação revela
como falso o paradoxo instaurado entre amor e justiça. No lugar de tal (falso)
paradoxo, parece ser mais adequado seguir a orientação de Paul Ricoeur e en-
xergar ali uma relação dialética:

Uma maneira de abrir caminho entre esses dois extremos é tomar como
guia um pensamento que medite a dialética entre amor e justiça. Por
dialética entendo aqui, de um lado, o reconhecimento da desproporção
inicial entre os dois termos e, de outro, a busca das mediações práticas
entre os dois extremos...373

Já pensando na síntese que une dialeticamente amor e justiça, é preciso


recordar que a justiça é sempre uma relação bilateral, voltada para uma ação
de equivalência ou para uma ação de redistribuição. Pois bem, o amor funciona
como a radicalização da bilateralidade da justiça. Ele mantém vivo em nós o
sentimento de que nossa relação com o outro não deve ser meramente instru-
mental e por isso é imprescindível escutá-lo, daí o sentido mais profundo do
princípio audi alteram partem, isso é, ouça a outra parte, deixe que o outro seja
ouvido também. Nesse sentido, postulados processuais como o contraditório,
antes de serem uma exigência moral, caracterizam uma exigência ética da justi-
ça, pois o que está sendo assegurado não é um dever moral, mas a consideração
pelo outro. O amor desperta e mantém o desejo de escuta pelo outro e isso faz
com que as relações de trocas equivalentes propostas pela justiça não sejam

que o faça brevemente e sem maiores elaborações conceituais. Cf. ATIENZA, Manuel. Cuestiones
Judiciales. México: Fontamara, 2001, p. 21.
373 RICOEUR, Paul. Amor e Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 3.

163
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

mecânicas ou utilitárias, mas respeitosas e fraternas; evita que o sentimento de


justiça degenere em vingança. Além disso, o amor e justiça se vinculam pelo
elemento de interação que há na dimensão redistributiva da justiça. Redistri-
buir os bens, materiais e imateriais, de forma a preservar a igualdade entre as
pessoas não é apenas uma exigência moral, mas um ato caloroso de com-paixão e
entrega, isto é, um ato de amor. Aliás, intuitivamente, todos sabemos que amor
é entrega, doação, é querer o bem de outro. E não foi por acaso que Aristóteles
afirmou que dentre todas as virtudes, somente a justiça pode ser considerada o
bem de um outro, visto que se relaciona com o nosso próximo fazendo o que é van-
tajoso a um outro.374 Assim, o amor é capaz de dar aquele sentido mais humano
à justiça, não porque altere sua estrutura ou a faça mais fraca ou complacente,
mas porque insere generosidade e compreensão nas equiparações. E se justiça
implica algum tipo de reparação, o amor é o que cria o desejo de tal reparação.
Mas o aspecto mais importante da inserção do amor como componente
ético desse sentimento moral que é a justiça é, sem dúvida, o fato de que o amor
gera nas pessoas uma abertura para o outro, seja esse outro o próximo mais
próximo ou mesmo o próximo não tão próximo. É precisamente essa abertura,
esse ser afetado pelo outro, que permite o aguçamento da sensibilidade diante
daqueles que mais sofrem, o que é imprescindível quando estamos a tratar do
caso específico do sujeito da injustiça social. Evidentemente, aqueles que estão
capturados por uma lógica compartimentalizadora tendem a ter mais dificulda-
des para raciocinar dialeticamente e pensar a integração das diferenças, por isso
mesmo devem reagir inicialmente com certa incredulidade diante da relação
entre amor e justiça. Quanto a isso, vale relembrar as palavras de Ricoeur:

Podemos então afirmar de boa-fé e com a consciência tranquila que o


projeto para exprimir esse equilíbrio na vida cotidiana, no plano indivi-
dual, jurídico, social e político, é perfeitamente praticável. Diria inclusi-
ve que a incorporação tenaz, passo a passo, de um grau suplementar de
compaixão e de generosidade em todos os nossos códigos - código penal
e código de justiça social - constitui uma tarefa perfeitamente razoável,
embora difícil e interminável.375

374 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 322. 1130a-5.
375 RICOEUR, Paul. Amor e Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 33.

164
Direito e Emancipação – Volume I

Como lembrou Derrida, Lévinas nos deixou um legado sobre hospitalida-


de. Se, por um lado, o amor como sentimento profundo resultante da empatia
376

típica da consideração ética implica doação, por outro lado, ele se coloca como
acolhimento. Acolher o outro é expressão pura da ética pois implica ter com o
outro sem apoderar-se dele. Quem eu acolho em minha casa está nela mesmo
sem a ela pertencer, o meu poder sobre ele é limitado. Assim, emerge na rela-
ção de hospitalidade o cuidado como marca central. Tal cuidado se converte
em responsabilidade.377 De efeito, o acolhimento hospitaleiro implica receber o
outro, para que algo seja dado ao outro. Esse outro é sentido como alguém que
importa, como alguém com quem posso me relacionar, alguém que tem algo a
receber - carência - mas também tem algo a oferecer - potência. Esse outro não
é dono de mim, mas também a mim não pertence. É alguém que me interpela
e, por isso, acolhê-lo exige escutá-lo, mas não apenas isso, exige, também, ser
para ele, não por razões instrumentais ou utilitárias, mas pela consideração
ética que deve mediar a relação. É importante notar que esse processo de hos-
pitalidade é anterior a qualquer valor. É a própria instância ética que funda a
moralidade como tal, pois todos os valores decorrem do fato da vida em socie-
dade, da co-existência, desse outro que me interpela. Por isso o pós-positivistas
precisam compreender que os valores são importantes, mas insuficientes. Se os
valores funcionam como fundamento justificador das imposições jurídicas, a
ética funciona como fundamento justificador dos próprios valores, concedendo,
nesse ato, um sentido específico à moralidade. Afirma Lévinas que o fato de,
existindo para outrem, eu existir de outro modo que ao existir para mim, é a própria
moralidade.378 Esse movimento que ancora os valores na figura do outro que me
interpela e demanda minha consideração é fundamental a uma teoria crítica do
direito. Não é por outra razão que Douzinas e Gearey379 fazem menção expressa
a Emmanuel Lévinas para afirmarem que justiça existe sempre em relação a
uma outra pessoa e que tal pessoa é um ser único e singular com características
próprias e definidas. Mas diante de mim esse outro é sempre um infinito de
sentidos e possibilidades e eu jamais poderei reduzi-lo ou instrumentalizá-lo em

376 DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 39.
377 Cf. LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 192-195.
378 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 260.
379 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 75.

165
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

minhas representações morais, políticas ou mesmo jurídicas, pois sua outrici-


dade é sempre maior que meus conceitos e valores. Daí que qualquer tentativa
de representação discursiva poderia ensejar alguma forma de violência que des-
respeitaria a singularidade do outro. Donde concluem que o único princípio de
justiça é o respeito pela singularidade do outro.380
Esse infinito que é o outro, exatamente por ser infinito, demanda de mim
ir em sua direção para ser com ele, isso é, conhecê-lo; ou, como afirma Lévinas,
conhecê-lo para valorizá-lo.381 A verdade é que conhecer o outro não costuma
ser algo que, em geral, fazemos espontaneamente. Nossa tendência primeira
é substituir o deslocamento em direção ao outro por representações e relatos
em terceira pessoa. Isso acontece na vida social em geral, mas principalmente
na cena jurídica. Tanto é assim que os operadores do direito se acostumam
com a despersonalização substituindo nomes por designações institucionais tais
como cliente, jurisdicionado, parte, autor, réu, demandante, paciente, crimino-
so, apenado, contribuinte, empregado, eleitor, cidadão etc... Isso sem falar nas
ficções do tipo homem médio. O problema é que as representações são sempre
generalizantes e impõem o pesado custo da massificação na medida em que
privam as pessoas das singularidades que as definem pela diferenciação com os
demais . Além disso, as representações também tendem a serem idealizadoras
da condição humana e com isso falseiam não apenas as experiências reais de
vida, mas, também, as histórias, narrativas e características do sujeito concreto
nas suas condições materiais de vida. É por isso que as representações literárias
que não se apresentam na forma das idealizações mais conhecidas causam cer-
to espanto ou até mal estar nos leitores em geral. Esse é, precisamente, o caso
de Franz Kafka. Suas narrativas implodem as idealizações e deixam o leitor a
mercê do absurdo da vida: um jejuador que se confunde com a palha (Artista
da Fome), um condenado que desconhece as acusações (O Processo) ou uma
pessoa que se transforma num inseto horrendo (A Metamorfose). O absurdo
das representações kafkanianas revelam que elas são, na verdade, antirrepre-
sentações, pois rompem com os modelos idealizados e, com isso, nos remetem
para o imponderável da vida. Pois conhecer o outro implica esse mergulho, às
vezes desconfortável, no imponderável. Mas somente nesses termos é possível
valorizá-lo como aquilo que ele é, não como aquilo que eu gostaria que ele fosse.

380 Idem, ibidem.


381 LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 260.

166
Direito e Emancipação – Volume I

A escritora e ativista nigeriana Chimamanda Adichie, em palestra profe-


rida na organização sem fins lucrativos TED em julho de 2009, fez um contun-
dente relato sobre os perigos de uma história única.382 Seu argumento principal
é que as histórias importam e a maneira como elas são contadas podem nos de-
finir de uma certa forma. Em outras palavras, não apenas as nossas ações, mas
também as narrativas que produzem sobre nós nos constroem. E uma mesma
história repetida diversas vezes cria uma representação acerca do que nós somos
que pode ter mais repercussão na vida social do que aquilo que nós realmente
somos. Chimamanda narra o episódio onde foi estudar nos Estados Unidos e
sua colega de quarto americana no alojamento da universidade pediu que ela
mostrasse as músicas “tribais” que ela costumava ouvir, mas ficou surpresa e
desapontada quando a ouviu tocar uma canção de Mariah Carey... A repre-
sentação que a jovem americana possuía acerca das pessoas africanas resultava
das histórias que ela havia se acostumado a ouvir sobre a África. Histórias de
comunidades tribais, de pobreza, doenças e guerras. É exatamente assim que
funciona com todos nós. Quando ouvimos histórias amedrontadora sobre uma
pessoa ou um grupo de pessoas, somos tomados por representações assustadoras
sobre essas pessoas. Quando essas histórias se repetem, chega um ponto em que
não nos relacionamos mais com as pessoas reais, apenas com as representa-
ções assustadoras que fazemos delas. O mesmo ocorre quando ouvimos apenas
histórias tristes. Trocamos as pessoas concretas por representações desolados
sobre alguém, sobre um grupo ou sobre uma nação. A sobreposição das repre-
sentações, que resultam das mesmas histórias que se repetem, sobre as pessoas
reais e seus efetivos modos de vida, acaba por gerar preconceitos profundos que
minam a possibilidade de conhecimento e valorização do outro. O preconceito
faz com que, em geral, sejamos tomados por sentimentos como o medo, a raiva
ou o rancor que minam qualquer possibilidade de escuta compreensiva do ou-
tro. Quando isso não acontece, o sentimento que o preconceito gera costuma
ser o de uma arrogância bem intencionada, que é a piedade do outro. Nas duas
situações o outro é tomado pelo meu juízo como alguém inferior e incapaz de
fazer coisas diferentes daquelas que se fala sobre ele. Isso é determinante quan-
do pensamos a questão do sujeito da injustiça social. Se as histórias que são
contadas sobre aquelas pessoas ou grupos oprimidos que vivem as diferentes
formas de violência que originam sujeição, intolerância, empobrecimento e ex-

382 Cf. http://ssw.unc.edu/files/TheDangerofaSingleStoryTranscript.pdf

167
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

clusão apenas repetem as versões da opressão vencendo os oprimidos, faremos


as piores representações desses sujeitos oprimidos, como se fossem sempre fra-
cos e impotentes. Repetir histórias únicas das favelas, cortiços e periferias como
lugares de violência, produzirá representações assustadoras sobre aqueles que lá
residem, como se não houvesse nada além disso. Repetir histórias únicas que
associam gays à perversão sexual, produzirá representações que impedem a per-
cepção da humanidade que existe neles. Repetir histórias únicas sobre mulheres
como pessoas instáveis e demandantes, produzirá representações que as rotu-
lam como menos capazes para os processos de cooperação social e as funções
de liderança. As histórias únicas sufocam aos poucos a dinamicidade da vida
real e dificultam sobremaneira a percepção do potencial criativo dos sujeitos.
Pessoas são mais do que as representações, os rótulos ou estereótipos cria-
dos sobre elas. A esse propósito vale lembrar a traição das imagens conforme
expressa na pintura do surrealista belga René Magritte:

A frase escrita abaixo da imagem é “isto não é um cachimbo”. Há um


certo desconforto em olhar a imagem de um cachimbo e, ao mesmo tempo, ler
a frase que afirma não se tratar de um cachimbo. Independentemente das inú-
meras análises que se possa fazer sobre a obra do artista, o desconforto por ela
gerado escancara, de imediato, a diferença real entre a representação e o ente.
Por mais precisa que se pretenda a representação, ela jamais substituirá o ente.
Por isso o desenho de um cachimbo nunca será um cachimbo. De efeito, os ró-
tulos ou estereótipos criados sobre uma pessoa ou um grupo de maneira alguma
poderão substituir as pessoas ou o grupo de pessoas. Da mesma forma, as re-

168
Direito e Emancipação – Volume I

presentações jurídicas nunca poderão esgotar a vivacidade dos sujeitos. Por isso
Lévinas invoca o rosto como elemento base para a consideração ética. O rosto é
a corporeidade do sujeito concreto que se presenta383 a si mesmo. O rosto e suas
expressões falam da dor e do sofrimento que só aquela pessoa viveu e é capaz de
expressar, porém falam também das suas alegrias e esperanças, dos seus desejos
e sonhos. O rosto traz a palavra originária e permite a comunicação autêntica:

O acontecimento próprio da expressão consiste em dar testemunho de


si, garantindo esse testemunho. A atestação de si só é possível como ros-
to, isto é, como palavra. Produz o começo da inteligibilidade, a própria
inicialidade, o principado, a soberania real, que comanda incondicio-
nalmente... A linguagem como troca de ideias sobre o mundo, com os
pensamentos reservados que comporta, através das vicissitudes de since-
ridade e de mentira que delineia, supõe a originalidade do rosto, sem a
qual, reduzida a uma ação entre ações cujo sentido nos importaria uma
psicanálise ou uma sociologia infinita, não poderia começar.384

Não nos parece que Lévinas tenha escolhido a palavra “soberania” aleato-
riamente. A ética da alteridade realiza um deslocamento radical nas instâncias
de poder, retirando a força originária do comando das mediações institucionais
e das declarações de valores e devolvendo-a ao próprio sujeito. Por isso é o rosto
que comanda incondicionalmente, pois somente ele é capaz de revelar o sentido
preciso da conduta. Ocorre aqui um empoderamento do sujeito que é típico das
forças constituintes que são plenipotenciárias para instituir a norma. Obvia-
mente que não pretendemos, com isso, defender o rosto como fonte social do
direito positivo, mas sim indicar que o sujeito concreto e imediato é doador de
sentido tanto para os acontecimentos de sua própria vida como para as normas
do direito. Não basta fundamentar as normas jurídicas sobre procedimentos
democráticos típicos do estado de direito e sobre princípios e valores morais se
não se possui, ao mesmo tempo, a concepção ética de um sujeito real, encarna-
do nas suas condições materiais de vida e repleto de sua própria história, com
sofrimentos e alegrias, com derrotas e vitórias.
Para elaborar melhor o argumento, tomemos como exemplo uma proposta
de Jürgen Habermas que é um autor pós-positivista. Ele sustenta uma relação de

383 Cf. nota de rodapé 227.


384 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 196.

169
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

co-originalidade entre direito e moral na produção da vida social.385 Para Ha-


bermas a autonomia do sujeito deve considerar tanto aquilo que ele denomina
de princípio moral quanto o princípio da democracia, sendo este último expresso
pela forma estado de direito já que esse se constitui a partir da possibilidade de
todos aqueles que forem atingidos pela norma darem a ela o seu assentimento
como participantes do discurso racional. Pois bem, nos termos de uma teoria
crítica do direito, como a sustentamos nesse livro, temos que levar em conta o
fato de que a funcionalidade do estado de direito se sustenta em um aparato
legal-institucional burocrático e impessoal. Se a impessoalidade, por um lado,
pode ser apontada como uma virtude do sistema porque pretende tratar a todos
da mesma forma, por outro lado, ela é um grave limite porque não considera as
opressões que recaem sobre os que mais são atingidos pelas injustiças sociais.
Em outras palavras, tratar a todos de maneira igual, em geral, é uma boa coisa
apenas para os mais favorecidos, pois para os que são oprimidos ter o mesmo
tratamento do aparato institucional-legal é o mesmo que manter a situação de
opressão. Como bem observou Walter Benjamin, a violência contra os oprimi-
dos pode também acontecer quando se institui “direitos iguais” e limites que
não podem ser transpostos por qualquer um, quando todos já sabem que ape-
nas os oprimidos serão de fato atingidos por aquela disciplina.386 Assim, a co-
-originalidade entre direito e moral ou princípio democrático e princípio moral
não é suficiente para dar conta do problema dos sujeitos da injustiça social. O
discurso genérico da garantia dos direitos para todos sempre escamoteará as
contradições que afetam os mais oprimidos. Para enfrentar esse dilema, a teoria
do direito precisa ampliar o espaço da co-originalidade e incluir a ética, não no
sentido de uma eticidade tradicional representada por modos de vida específi-
cos, mas sim no sentido da ética da alteridade como consideração pelo outro.
Se o princípio democrático aponta para a importância do estado de direito e o
princípio moral aponta para uma justificação razoável com base em valores, o
principio ético aponta para a consideração do outro concreto, não generalizado,
suas narrativas e formas próprias de organização. Nessa co-originalidade triva-

385 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997, p. 139 e ss.
386 BENJAMIN, Walter. Para a Crítica da Violência. In BENJAMIN, Walter. Escritos sobre Mito e
Linguagem. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2013, p. 149. Benjamin cita o exemplo dado por
Anatole France para falar da ambiguidade mítica das leis que se coloca como violência para os
oprimidos: as leis "proíbem igualmente aos pobres e aos ricos dormir debaixo das pontes"...

170
Direito e Emancipação – Volume I

lente, é no princípio ético, mais do que no moral e no democrático, que os mo-


vimentos sociais que produzem a auto-organização das demandas dos oprimi-
dos encontram espaço para sua livre manifestação. É claro que os mecanismos
de representação institucional do estado de direito possuem uma importância
fundamental, seja na teoria do direito, como fontes do direito, seja na teoria
política, como dispositivos de distribuição do poder. Mas essa forma liberal de
representação é totalmente insuficiente quando pensamos nos sujeitos da injus-
tiça social. As injustiças que sofrem esses sujeitos não acompanha o mesmo o
tempo das eleições periódicas e nem mesmo de eventuais políticas públicas im-
plantadas por legisladores e administradores. A injustiça é um evento que opera
na base da vida real e produz desgastes e sofrimentos que não são mediáveis
pelo aparato legal-burocrático. Na verdade, muitas vezes esse aparato e seu tem-
po próprio acabam por reforçar as injustiças e gerar mais sofrimento produzindo
uma espécie de dupla penalização desses sujeitos injustiçados.
Diante desse quadro, para lutar contra as desigualdades imerecidas e pela
garantia de direitos morais e jurídicos que lhes são denegados, os sujeitos da
injustiça social se organizam em movimentos sociais que possuem como fina-
lidade i) protestar, tornando pública a violência sofrida pelo grupo e seus indi-
víduos, dando a ela maior repercussão social, ii) reivindicar os direitos denega-
dos, seja pressionando o estado, seja pressionando parte da sociedade civil, iii)
apresentar uma forma alternativa, em relação ao direito positivo e às políticas
públicas estatais, de vivenciar aqueles direitos denegados. Esses movimentos
sociais, que podem se originar de demandas econômicas, como aquelas que
se colocam contra os processos de empobrecimento e exploração do trabalho,
ou de demandas culturais, como aquelas que se colocam a favor da igualdade
racial, de gênero ou outras tantas, constituem uma espécie de rosto coletivo,
para usar a terminologia levinasiana. Portanto estes movimentos não se cons-
tituem apenas como uma questão política, de estratégia de luta, ou jurídica, de
reivindicação de direitos, mas, antes disso, como uma questão ética de maior
relevância. Em outras palavras, independentemente da discussão moral acer-
ca da justificação das demandas sustentadas pelos movimentos sociais, esses
instituem uma obrigação ética de ouvir o outro e compreender o debate que
eles trazem para a arena pública. Tal obrigação deve ser elaborada também
no âmbito da teoria do direito e no funcionamento das instituições da cena
jurídica. Daí a co-originalidade trivalente entre direito, moral e ética, uma
vez que as duas primeiras encontram limites que apenas podem ser superados

171
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

levando-se em consideração um princípio ético. Em relação ao limite do prin-


cípio democrático, é preciso reconhecer que a tese das fontes sociais do direito,
como afirmado pelos positivistas e endossado pelos pós-positivistas, tende a
um estatalismo. E as mediações institucionais típicas da forma estatal redu-
zem o espaço criativo e instituinte dos movimentos sociais. Como foi falado
anteriormente, ao tratarmos da obliteração do sujeito no âmbito do paradigma
do positivismo jurídico, muitas vezes a luta dos movimentos sociais precisa ser
contra as leis que instituem privilégios ou mantém e reforçam engrenagens de
violência e opressão, por razões econômicas, políticas ou culturais. Ainda que
se alegue a inconstitucionalidade dessas leis, o tempo do estado é demasiado
custoso diante das injustiças enfrentadas pelos agentes dos movimentos sociais.
Já em relação ao limite do princípio moral, é preciso enfrentar o fato de que os
movimentos sociais expressam determinadas concepções de bem ou modos de
vida que não se pode acreditar ou alimentar a expectativa de que sejam aceitos
e endossados por toda a sociedade. Por isso não se pode buscar fundamentos
morais que imponham as concepções de bem estampadas pelos movimentos
para todas as pessoas, especialmente em relação àqueles movimentos que apre-
sentam demandas culturais. Via de regra as situações de conflito das quais
emergem os movimentos sociais possuem na base também um conflitos entre
valores. Nem sempre esses conflitos podem ser equacionados com argumentos
morais articulados por uma razão pública, especialmente no tempo dos opri-
midos, no tempo do acontecimento da injustiça social. Assim, o que ocorre é
que aqueles que tem mais poder econômico ou político, os grupos dominantes,
tendem a fazer valer suas concepções como se elas fossem o resultado de uma
razão pública, instituindo a história como uma história dos “vencedores”.
É para superar as formas enrijecidas do estado de direito e as eventuais
desconfianças morais que o princípio ético atua na co-originalidade trivalente.
Ele determina que o primeiro de todos os valores é o valor que se dá a alguém.
Tanto o princípio democrático quanto o princípio moral devem estar ampara-
dos nessa exigência ética. E isso não é algo trivial, ainda que soe como bastante
intuitivo. Via de regra as pessoas são limitadas nos processos sociais mesmo
quando todos concordam com a relevância da dimensão humanística da vida
social. E essa limitação, ainda que de uma forma ou de outra alcance a todas as
pessoas, agride e viola mais aqueles que estão em situação de subalternidade em
função das graves injustiças sociais. São esses os que devem ter prioridade, seja
na escuta institucional, seja na busca de fundamentos morais para as práticas

172
Direito e Emancipação – Volume I

emancipatórias. O princípio ético exige consideração e valorização do outro,


mas não apenas isso, exige também que as demandas daqueles que sofrem a
injustiça social sejam prioritariamente consideradas. Toda alteridade importa,
mas o tempo da injustiça requer um tratamento especial para aqueles que mais
sofrem com as diferentes modalidades de opressão. Aquela consciência que a
teoria do direito deve adquirir ao levar em consideração o papel que o direito
possui na manutenção dos laços sociais, implica não apenas constatar a singu-
laridade dos sujeitos da injustiça social, mas, também, elevá-los à condição de
sujeito universal da ética, compreendendo que violação da dignidade que lhes
é intrínseca significa a violação da dignidade de toda e qualquer pessoa, sem
o que se torna inviável o projeto de uma sociedade de pessoas livres e iguais.
Assim, admitir a prioridade para os que mais sofrem, significa reconhecer a im-
portância especial que possuem os movimentos sociais na luta contra a opressão
e pela justiça social; significa um compromisso com a redução das violentas
assimetrias que desgastam o tecido social; significa superar a cruel indiferença
com a dor dos que mais sofrem.
Já citamos a questão da co-originalidade de Jürgen Habermas e de como
esta co-originalidade deveria ser entendida de forma trivalente com a inclusão
do princípio ético - ética da alteridade - na relação constitutiva do fenômeno
jurídico. Vale ainda citar um outro influente autor sempre associado ao pós-
-positivismo: Robert Alexy. Esse autor propõe sustentar um certo equilíbrio
entre a dimensão do direito como autoridade - estado de direito - e a dimensão
do direito como correção moral. Para tanto, reitera que a tese da separação
entre direito e moral embora seja defensável na perspectiva de um observa-
dor externo, não se sustenta na perspectiva do participante, como um juiz, por
exemplo.387 Para certificar a inadequação da tese da separação entre direito e
moral, Alexy lança mão, dentre outros, do argumento da injustiça. Segundo esse
argumento, as normas individuais de um sistema jurídico perdem o caráter jurídico
quando determinado limiar da injustiça ou da iniquidade é transposto.388 Na sessão
anterior, ao tratarmos do paradigma do pós-positivismo, já havíamos mencio-
nado que Alexy segue a tradição que vem de Gustav Radbruch que pretende
preservar a dimensão de autoridade do direito, a menos que a manifestação de
vontade desta autoridade produza uma grave injustiça, linha de raciocínio que

387 ALEXY, Robert. Conceito e Validade do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 42-43.
388 ALEXY, Robert. Conceito e Validade do Direito. Ob. Cit., p. 48.

173
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

ficou conhecida como Fórmula de Radbruch. Com essa fórmula, Radbruch pre-
tende se esquivar tanto do jusnaturalismo quanto do positivismo jurídico, esta-
belecendo, assim, um outro paradigma. Eis a célebre formulação de Radbruch:

Em um enfrentamento entre a segurança jurídica e justiça, decorrente


de uma lei impugnável por seu conteúdo, mas de natureza positiva, e
um direito justo, mas não cunhado na forma da lei, há um conflito da
própria justiça, isto é, entre a justiça aparente e justiça real... O conflito
entre a justiça e a segurança jurídica deve ser resolvido com a primazia
do direito positivo sancionado pelo poder, ainda que o seu conteúdo seja
injusto ou inadequado, a menos que a contradição do direito positivo
com a justiça chegue a um grau tão insuportável que deva ser considera-
do como uma “falso direito” e deva ceder lugar à justiça.389

Claro que o mais difícil na Fórmula de Radbruch é saber qual esse ponto
de insuportabilidade da injustiça a partir do qual uma lei perde sua validade. O
próprio autor se propõe essa questão e assim se posiciona:

É impossível traçar uma linha clara entre os casos de arbitrariedade jurí-


dica e as leis válidas apesar de seu conteúdo incorreto, porém um limite
pode ser distinguido claramente: quando nunca se procurou a justiça,
onde a igualdade, que integra o núcleo da justiça, foi conscientemente
recusada na regulação do direito positivo; ali a lei não é apenas o direito
incorreto, mas carece completamente da natureza do direito, pois não
se pode definir direito, inclusive o direito positivo, a não ser como um
comando e estatuto, que de acordo com o seu sentido estejam determi-
nados a servir a justiça.390

Portanto, segundo Radbruch, o descaso com o valor da igualdade seria o


ponto máximo da injustiça, lá onde a lei perderia sua natureza de direito válido.
Já para Alexy, esse ponto máximo e insuportável da injustiça corresponderia
aos comandos incompatíveis com o núcleo dos direitos humanos.391 Esse autor
acredita na existência de um núcleo mínimo universal de direitos humanos
que seriam protegidos pela Fórmula de Radbruch de tal maneira que qualquer

389 RADBRUCH, Gustav. Relativismo y Derecho. Bogotá: Temis, 1999, p. 35.


390 RADBRUCH, Gustav. Ob. Cit., pp. 34-35.
391 ALEXY, Robert. La Institucionalización de la Justicia. Granada: Editorial Comares, 2005, p. 76.

174
Direito e Emancipação – Volume I

norma no direito positivo que viesse a violá-lo deveria ser considerada inválida.
Como a Fórmula de Radbruch vale apenas na perspectiva do participante isso
implica a realização de um debate público onde as razões e suas respectivas
justificações fossem devidamente apresentadas e deliberadas. Assim, temos que
para Radbruch o limiar da injustiça intolerável é o descaso com a igualdade e
para Alexy é a violação do núcleo básico de direitos humanos universais.
Tomemos, então, ambas as perspectivas - pós-positivistas - sob um ponto
de vista da teoria crítica do direito, pensada essa a partir do sujeito da injustiça
social. O entendimento apresentado por Radbruch se apóia no valor da igualda-
de. Pois bem, ainda que a igualdade seja a virtude soberana de uma comunidade
política, para falar com Dworkin392, e, nesse sentido, uma bandeira ou exigência
moral que se pode sustentar isoladamente, por outro lado ela deve ser enten-
dida basicamente como uma relação complexa: igualdade de quê entre quem?393
Isso significa que para se chegar a uma compreensão mais adequada e precisa
do limite da injustiça, onde se esgarçaria de maneira insanável a tessitura da
igualdade, é necessário compreender os sujeitos entre os quais se estabelece
uma relação, seja de equivalência, de equiparação, de retribuição, de reparação,
de alocação, de redistribuição, de reconhecimento, de participação etc... Con-
siderando que a teoria jurídica convencional dos mais relevantes paradigmas
jurídicos, incluindo o pós-positivismo, ainda trabalha com as representações e
generalizações ao invés do sujeito concreto nas suas condições materiais, o esta-
belecimento das relações e comparações típicas entre agentes que caracterizam
a noção de igualdade sempre será superficial, parcial ou equivocado. E aqui é
necessário considerar seriamente o fato de que as eventuais superficialidades,
parcialidades e equivocidades presentes no estabelecimento das relações entre
as pessoas necessariamente irá prejudicar mais aqueles que são, exatamente, os
sofrentes da injustiça social. Daí porque é impossível se chegar a uma adequada
compreensão do que seja a máxima injustiça como violação da igualdade sem
uma teoria e uma fenomenologia do sujeito da injustiça social que o presente
de tal forma a lhe dar voz e vez nas relações jurídicas e no fenômeno jurídico.
Por outro lado, há o entendimento manifestado por Alexy de que o má-
ximo da injustiça corresponderia à violação de um núcleo básico e universal
de direitos humanos. Nesse caso o argumento é ainda mais simples e direito: a

392 Cf. DWORKIN, Ronald. Virtude Soberana. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
393 Cf. BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. São Paulo: Ediouro, 1995.

175
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

violação de direitos fundamentais dos menos favorecidos é mais gravosa do que


aquela praticada contra os mais favorecidos. Essa afirmação, que pode causar
certa espécie ao leitor, deve levar em conta a assimetria original existente en-
tre os que sofrem a injustiça social e os demais. O raciocínio é, basicamente,
o seguinte: se você retirar um de quem tem dez e um de quem tem mil, muito
embora seja a mesma coisa que se esteja retirando de ambos, obviamente o ato
é muito mais gravoso para aquele que tem dez do que para aquele que tem mil.
E ainda que se argumente que pode haver um valor simbólico para esse um
retirado do que tem mil e isso provoque um sofrimento maior, deve-se levar
em conta que o mesmo pode acontecer com aquele que tem dez, mas no caso
desse as possibilidades de compensação serão muito mais reduzidas do que no
caso daquele que tem mil. Para dar mais materialidade ao argumento: quando
o transporte público deixa de funcionar isso prejudica a todos, sem dúvida, mas
prejudica muito mais aqueles que não possuem nenhum meio privado de loco-
moção, isto é, os mais empobrecidos. Se o direito ao voto é subtraído de todos,
isso é um problema grave, contudo atinge muito mais aqueles que, de alguma
forma, precisam das políticas públicas que podem ser implantadas pelo governo
para compensarem desigualdades imerecidas. Um eventual achincalhamento
da heterossexualidade pode agredir a dignidade de heterossexuais, mas o achin-
calhamento da homossexualidade é muito mais gravoso para gays e lésbicas
porque esses já são obrigados a agir na contracultura e enfrentam várias formas
de violência, moral e física, simplesmente pelo fato de serem gays e lésbicas,
coisa que não acontece com heterossexuais. Os exemplos poderiam ser muitos
e todos eles partem da premissa de que, sob um certo ponto de vista, os direitos
humanos se legitimam em sociedades democráticas por serem uma forma de
proteção especial, isso é, enquanto o ordenamento jurídico contem dispositivos
que fazem a proteção de todas e todos contra o arbítrio, os direitos humanos
seriam o ramo do direito positivo voltado à proteção especial dos mais subalter-
nizados ou vulneráveis. Portanto, se quisermos considerar a hipótese de Alexy
de que o grau máximo da injustiça onde uma norma jurídica deixa de ser válida
é aquele que viola o núcleo básico dos direitos humanos, precisamos nos apoiar
numa fenomenologia da injustiça e numa teoria do sujeito da injustiça que evite
generalizações e essencialismos, que seja produto de uma perspectiva praxioló-
gica, uma visada teórica sobre as práticas emancipatórias que são desenvolvidas
por pessoas e grupos oprimidos. Uma boa teoria dos direitos humanos é aquela
que maximiza os que são minimizados pelas injustiças sociais.

176
Direito e Emancipação – Volume I

Tanto na perspectiva de Radbruch como na de Alexy, a Formula de Ra-


dbruch depende, primeiramente, de uma postura ética que estimule a cada um
ver e ouvir o outro que é vítima da injustiça, mas sem tomar o outro a partir de
narrativas em terceira pessoa, representações e lugares jurídicos ou morais fixos.
Antes de valer por algo que possa representar, o outro vale por aquilo que ele é.
Podemos retirar da história da jurisprudência dos Estados Unidos da América
dois casos relevantes relativamente à consideração ou não do outro.
O primeiro caso relevante é conhecido como Caso Dred Scott ou Dred
Scott x Sandford.394 Dred Scott foi um afro-americano nascido na Virgínia em
1799 e falecido em razão de uma tuberculose em 1858. Scott nasceu escravo e
por volta dos trinta anos foi vendido para um médico do exército americano
chamado John Emerson. Em função de seu trabalho no exército, Emerson foi
transferido e morou em Illinois e no então território de Wisconsin. Nas duas
ocasiões ele levou Dred Scott consigo, porém nesses lugares a escravidão já
havia sido abolida e era ilegal. Posteriormente, Emerson foi novamente trans-
ferido, mas agora para o Missouri, onde a escravidão era legalizada. Pois foi no
Missouri que Dred conheceu um advogado que lhe explicou que por ter vivido
em estados onde a escravidão era proibida ele adquiriu o estatuto jurídico de
homem livre e havia um precedente da Suprema Corte que dizia que “uma vez
livre, sempre livre”. De posse dessa informação, Dred Scott decide dar início a
um processo para que o Poder Judiciário confirmasse sua condição de homem
livre. Tal processo tornou-se uma das mais importantes batalhas judiciais dos
Estados Unidos da América. Depois de algumas reviravoltas o caso foi parar na
Justiça Federal, onde Scott teve sucessivas derrotas. O caso contou com o apoio
da comunidade abolicionista da época e teve significativa repercussão. Entre-
tanto conheceu um final extremamente amargo na Suprema Corte. Numa
decisão prolatada em 1857 e redigida pelo então Chief Justice Roger Taney, a
Suprema Corte, por maioria de 7 votos a 2, sentenciou que as pessoas negras
que viviam no país não poderiam ser consideradas cidadãs e não estavam sob
a proteção da Constituição dos Estados Unidos da América. Como consequ-
ência, sequer possuíam capacidade postulatória para ingressar em juízo. Além
disso, e sob a influência do voto do Justice James Wayne, também decidiram que
o Congresso norte-americano não tinha competência para proibir a escravidão

394 Na verdade o nome da parte demandada era Sanford e não Sandford, mas esse pequeno erro de grafia
nunca foi corrigido no curso do processo.

177
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

nos territórios federais da União. Por fim, ainda determinou que os escravos,
por serem bens móveis de propriedade privada, apenas poderiam ser retirados
de seus donos, se fosse o caso, após devido processo legal.
Quatro anos após a decisão da Suprema Corte no Caso Dred Scott eclodiu
a guerra civil norte-americana. Evidente que não é possível afirmar que foi tal
decisão a única responsável pela Guerra de Secessão, mas certamente foi um
dos mais importante fatores que levaram à deflagração do conflito armado.
Diante desse caso, alguns jusnaturalistas poderiam dizer que a decisão violou o
direito natural à liberdade de Dred Scott, talvez outros dissessem que escravos
eram bens que conformavam o direito natural de propriedade de seus senho-
res. Já juspositivistas poderiam alegar que a escravidão estava amparada em
normas socialmente eficazes e juridicamente válidas uma vez que decorrente
de autoridades competentes. Outros adeptos do positivismo jurídico poderiam
ainda alegar que a decisão enfrentava um dilema técnico, ou seja, saber se Dred
Scott deveria ter pleiteado a liberdade enquanto residia com seu “dono” em
lugares onde a escravidão não era reconhecida pela lei. Já os pós-positivistas
poderiam alegar que a escravidão era uma prática social que violava o valor da
igualdade que, por seu turno, tinha um importante espaço na cultura daquela
comunidade política. Ainda poderiam alegar que tanto a decisão da Suprema
Corte como as normas que legalizavam a escravidão não resistiriam diante da
Fórmula de Radbruch. Em qualquer caso os pós-positivistas teriam que buscar
argumentos convincentes diante de um auditório universal e com base numa
razão pública para afirmar porque as pessoas negras deveriam estar incluídas
naquela comunidade de valores que tanto prezava a igualdade, uma vez que
elas eram passíveis da escravidão e, dessa forma, passíveis também de estarem
excluídas da comunidade política. Ao nosso juízo, todos os debates deflagrados
no cerne de qualquer um desses três paradigmas juízos são legítimos, contudo
lhes falta um elemento fundamental e preliminar: a consideração ética pelo ou-
tro, especialmente pelo outro que mais está submetido à violência e à opressão.
A consideração ética, com a empatia que lhe é inerente, produz uma revolução
copernicana na maneira de encarar as coisas já que inverte o eixo de análise
que deixa de ser eu mesmo e passa a ser o outro. Fossem os juízes da Supre-
ma Corte mais éticos, no sentido aqui proposto, certamente o resultado teria
sido diferente e a história daquele país também teria sido outra, provavelmente
melhor. Ao negar escuta a Dred Scott o judiciário dos Estados Unidos negou
escuta ao clamor real e concreto de todas aquelas pessoas negras que viviam a

178
Direito e Emancipação – Volume I

mesma situação de Scott e, no limite, a todos submetidos ao jugo da escravidão.


Ao fim e ao cabo, negou escuta ao sujeito universal da ética, pois a violação da
dignidade de Dred Scott representou a violação da dignidade que existe em
toda e qualquer pessoa, mas somente apercebe-se disso aquele que possui uma
sensibilidade ética mais apurada.
O segundo caso relevante, este sim um exemplo de consideração ética, é
o caso Goldberg x Kelly. Na década de 1960, algumas pessoas recebiam ajuda
financeira de programas sociais do governo federal e do estado de Nova Iorque,
mais especificamente do Aid to Families with Dependent Children (AFDC) e
Home Relief Program. No entanto, ocorria que alguns agentes que trabalhavam
na gestão desses programas tinham poder para cancelar essa ajuda sem ouvir
previamente os seus beneficiários. E, de fato, assim procediam. Não há dúvida
de que o estado possui total interesse em que os critérios que justificam a as-
sistência estejam mantidos ao longo da ajuda, bem como que as exigências de
contrapartida e as condições para o recebimento estejam sendo cumpridas. A
violação a tais exigências por parte dos beneficiários caracterizaria a geração de
encargos administrativos e fiscais não justificados em prejuízo ao interesse pú-
blico. A questão principal é saber se o interesse do Estado em controlar e evitar
possíveis fraudes tornaria aceitável a rescisão unilateral do benefício. Pois bem,
os demandantes alegaram que tal forma de cancelamento da prestação assis-
tencial geraria uma espécie de violação do devido processo legal - due process
of law - na esfera administrativa, já que por não serem previamente ouvidos,
os beneficiários eram impedidos de apresentar suas respectivas defesas ou jus-
tificações diante de eventuais faltas ou aparentes irregularidades constatadas
pelos gestores dos programas.
Antes mesmo que o processo chegasse ao fim, a administração pública
adotou um procedimento de notificação e audição dos beneficiários que tinham
seus casos sob revisão e supervisão. Esses eram comunicados de que o benefício
de ajuda financeira estava em vias de ser encerrado e que eles tinham sete dias
para apresentar uma declaração escrita por meio da qual poderiam se opor ao
cancelamento. Ainda assim o processo judicial continuou e os demandantes
atacaram essa regulamentação argumentando que ela negava a oportunidade
de que eles comparecessem pessoalmente perante os gestores do programa não
apenas para confrontarem seus acusadores como para apresentarem de própria
voz sua narrativa, além de pleitearem a oportunidade para conhecerem even-

179
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

tuais testemunhas das acusações que eram imputadas e para apresentarem suas
próprias testemunhas de defesa, tudo na esfera administrativa.
Pois bem, em março de 1970, a Suprema Corte decidiu por 5 votos a 3 (ha-
via uma vacância na Corte, por isso apenas 8 votos no total) que os beneficiá-
rios das prestações de assistência social tinham o direito de serem ouvidos antes
que a ajuda financeira fosse cancelada. A decisão que foi redigida pelo Justice
Willian Brennan enfatizou a natureza processual da deliberação da Corte. Isso
significa que não se tratava de garantir o benefício indistintamente e cercear
o poder-dever do estado de investigar e prevenir fraudes, mas sim de garantir
que a voz de cada uma daquelas pessoas fosse ouvida. Mais do que isso, garantir
que o rosto de cada uma daquelas pessoas fosse visto. Mas aquelas pessoas não
eram pessoas quaisquer, eram sujeitos menos favorecidos que por suas condições
materiais de vida precisavam daquele apoio do estado. A esse respeito, Owen
Fiss faz um comentário decisivo: Goldberg x Kelly estendeu a revolução do devido
processo legal dos anos sessenta do âmbito penal ao civil e prometeu que as pessoas
menos afortunadas gozariam de proteções processuais que tradicionalmente apenas
se ofereciam aos indivíduos mais privilegiados.395 É preciso notar que o valor da im-
parcialidade processual assegurada por meio da decisão significou exatamente
o ato ético da consideração pelo outro. Não é possível ser imparcial sem levar
em conta a narrativa em primeira pessoa, sem ouvir e ver o outro ao invés de
considerá-lo apenas uma peça dentro da intrincada burocracia da máquina do
estado. Isso não significa nenhum tipo de paternalismo ou de leniência com o
erro ou a fraude. A busca do interesse público deve ser mantida, mas isso não
pode acontecer ao sacrifício da ética. Pessoas importam e, como dito antes, o
primeiro de todos os valores é o valor que se dá a alguém.
Outro exemplo de consideração ética nesse domínio jurisdicional vem de
uma importante decisão da Corte Constitucional da Colômbia. Desde a década
de 1940 esse país enfrenta um grave problema de deslocamento forçado onde
centenas de milhares de pessoas são obrigadas a deixar suas casas em função de
conflitos armados. Esse problema chegou a um nível gravíssimo no ano de 2002
com mais de quatrocentas mil pessoas deslocadas num único ano.396 Diante

395 FISS, Owen. El Derecho como Razón Pública. Madri: Marcial Pons, 2007, p. 268.
396 Cf. GARAVITO, César Rodríguez. FRANCO, Diana Rodríguez. Juicio a la Exclusión: el impacto
de los tribunales sobre los derechos sociales en el Sur Global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores,
2015, pp. 55-60.

180
Direito e Emancipação – Volume I

desse quadro, o Poder Judiciário colombiano foi demandado para assegurar di-
reitos econômicos e sociais dessa população deslocada e desamparada pelo esta-
do. Assim, no ano de 2004 a Corte Constitucional chegou à decisão T-025 por
meio da qual declarou que havia um estado de coisas inconstitucional referente
à situação dos deslocados, resultante de uma omissão ou ação insuficiente por
parte de diversos níveis e agentes do poder público. O que chama a especial
atenção nesse caso, não é a declaração do estado de coisas inconstitucional, pois
essa doutrina já havia sido inaugurada pela Corte em decisões anteriores desde
1997. O aspecto, a nosso ver, principal nessa decisão, foi o fato da corte oferecer
uma interpretação concretista dos direitos econômicos e sociais da população
deslocada e, principalmente, instituir procedimentos e mecanismo de acom-
panhamento de sua própria decisão, por meio dos quais gerou um processo
participativo envolvendo, em primeiro lugar, as próprias pessoas deslocadas e,
além delas, um conjunto de organizações e agentes do estado e da socieda-
de civil, todos voltados ao cumprimento das medidas complexas apontadas na
decisão T-025.397 Com efeito, na execução da sentença formou-se um fórum
participativo envolvendo diferentes atores na busca da solução dos problemas
que bloqueavam o acesso dos deslocados aos seus direitos econômicos e sociais.
Esse efeito participativo decorrente do fato da Corte ter decidido acompanhar
sua decisão, não apenas criou um campo social dialógico mas, sobretudo, deu
voz às pessoas e aos grupos deslocados para retirar-lhes da condição de vítimas e
alçá-los à condição de sujeitos construtores de seus próprios direitos. A garantia
dos direitos jurídicos e morais importa, e muito. Mas a consideração ética pelo
outro nos faz entender que não basta que eu diga para o sujeito da injustiça so-
cial o que é melhor para ele. É preciso olhar sem rodeios para o seu rosto e criar
a oportunidade para que ele se expresse diretamente na sua narrativa e com sua
história, revelando ele mesmo seus anseios, ansiedades e desejos; apresentando
ele próprio a potência de suas formas de resistência à opressão e a maneira por
meio da qual pretende se valer de seus direitos.
Já que estamos falando de consideração ética no âmbito processual, vale
citar mais um bom exemplo que é o das Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça
das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade, também conhecido como as 100 Re-
gras de Brasília. Essas Regras têm como objetivo garantir as condições de acesso
efetivo à justiça das pessoas em situação de vulnerabilidade, sem discriminação

397 GARAVITO, César Rodríguez. FRANCO, Diana Rodríguez. Ob. Cit., 00. 37-48.

181
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

alguma, englobando o conjunto de políticas, medidas, facilidades e apoios que


permitam que as referidas pessoas usufruam do pleno gozo dos serviços do siste-
ma judicial. Trata-se de um conjunto de propostas e diretrizes que procuram 1)
fomentar uma política judicial que leve em conta as particularidades dos grupos
mais afetados pelas injustiças sociais; e 2) promover mecanismos de gestão e de
jurisdição mais adequados às normas dos sistemas internacionais de proteção
dos direitos humanos, de forma a assegurar tanto o direito à igualdade como
à diferença. Esse Documento foi elaborado no âmbito da Cúpula Judicial Ibero-
-americana398 que é uma estrutura de cooperação, coordenação e troca de
experiências das instâncias superiores dos Poderes Judiciários dos países que
conformam a Organização de Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ci-
ência e a Cultura.399 Sua elaboração contou com a contribuição de importan-
tes entidades, tais como a Associação Ibero-americana de Ministérios Públicos
(AIAMP), a Associação Interamericana de Defensorias Públicas (AIDEF), a
Federação Ibero-americana de Ombudsman (FIO) e a União Ibero-americana
de Colégios e Agrupamentos de Advogados (UIBA) e o Documento foi aprova-
do na XIV Cúpula Judicial Ibero-americana, ocorrida entre os dias os dias 4 e 6
de Março de 2008 na cidade de Brasília.
Para que se tenha uma compreensão mais apurada acerca do que se entende
com a expressão vulnerável, na sessão primeira do Capítulo I das 100 Regras de Bra-
sília, fica adotado o seguinte conceito de pessoas em situação de vulnerabilidade:

Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que,


por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circuns-
tâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais
dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os
direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes:
a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a mi-
norias, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o
gênero e a privação de liberdade.400

398 Cf. http://www.cumbrejudicial.org/web/guest/quienes_somos


399 Cf. http://oei.org.br/
400 Cf. http://www.cumbrejudicial.org/c/document_library/get_file?uuid=712f0f65-73b0-443e-a967-ad84
8929849c&groupId=10124

182
Direito e Emancipação – Volume I

Especificamente para essas pessoas acima descritas, as 100 regras propõe


uma série de medidas que envolvem temas como assistência técnica, direito à
intérprete, meios alternativos de resolução de conflitos, informação processual,
segurança, proteção da intimidade, participação em atos processuais etc... No
tocante às 100 Regras, vale a mesma afirmação feita por Owen Fiss em relação
ao caso Goldberg x Kelly: é, basicamente, uma questão de assegurar aos menos
favorecidos as mesmas proteções processuais que tradicionalmente apenas se
ofereciam aos indivíduos mais privilegiados. Por isso é possível afirmar que a
motivação disso não está ligada a uma questão de eficácia social ou validade
jurídica (positivismo jurídico) e nem de valores e princípios morais (pós-posi-
tivismo), mas sim à consideração ética pelo outro, em especial, pelas pessoas e
grupos que mais são atingidos pelas injustiças sociais.
Mas esse exemplo não se encerra aqui. Como as injustiças sociais são mui-
tas e atingem suas vítimas de diferentes e renovadas formas, a Cúpula Judicial
Ibero-americana deu continuidade às Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça
das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade com a aprovação do Protocolo Ibero-
-Americano de atuação Judicial para o acesso à justiça por indivíduos e grupos em
situação de vulnerabilidade, com especial ênfase na justiça de gênero. Esse Docu-
mento foi deliberado por ocasião da XVII Cúpula Judicial Ibero-americana,
realizada em Santiago do Chile entre os dias os dias 2 e 4 de Abril de 2014.
O protocolo é dividido em dois volumes: Crianças e adolescentes; indivíduos,
comunidades e povos indígenas; pessoas com deficiência e imigrantes401; e A vio-
lência de gênero contra as mulheres.402 O primeiro volume: a) Prioriza os prin-
cípios e práticas destinadas à modificação de aspectos tanto jurídicos como
administrativos relacionados com os cuidados, no âmbito judicial, de pessoas e
grupos em situação de vulnerabilidade; b) Facilita que as pessoas envolvidas no
funcionamento dos sistemas judiciais possam contar com uma ferramenta de
referência para guiar a ação, avançando, assim, na observância dos princípios
e normas de proteção e na consideração das características e da situação dos
grupos e indivíduos, antes mencionados; c) Encoraja os indivíduos e grupos
sociais a conhecer e exercer plenamente, no âmbito do sistema de justiça, os

401 Cf. http://www.cumbrejudicial.org/c/document_library/get_file?uuid=734bb668-702b-4c50-83ec-66c


093d8389a&groupId=10124
402 Cf. http://www.cumbrejudicial.org/c/document_library/get_file?uuid=5a9deba1-60d4-4db6-b25e-dc2
090fb4930&groupId=10124

183
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico internacional; e d) Promove o


diálogo entre os tribunais, na medida em que retoma decisões e boas práticas
que mostram como eles estão protegendo os direitos de indivíduos e grupos em
tribunais internacionais e nos próprios judiciários da Região Ibero-americana.
Já o segundo volume tem por finalidade ser uma ferramenta para as juízas e os
juízes que julgam os processos com enfoque de gênero, seja porque estão lotados
em varas especializadas de proteção à mulher, seja porque atuam em processos
de família, violência doméstica ou outros, nos quais se constate a prática de
atos contra mulheres. As diretrizes e orientações previstas no Protocolo de Atu-
ação Judicial Para os Casos de Violência de Gênero devem ser aplicados desde o
momento em que a mulher se apresenta em algum órgão do sistema de justiça
narrando violências sofridas, até o momento da execução das medidas previstas
na sentença. Sempre tendo em vista que as mulheres tenham um real e efetivo
acesso à justiça e possam ser protegidas, tanto no ambiente social quanto no
próprio sistema de justiça, de diferentes formas de violência e discriminação
decorrentes da sua condição de mulher. Tanto as Regras de Brasília Sobre Acesso
à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade como o Protocolo Ibero-
-Americano de atuação Judicial para o acesso à justiça por indivíduos e grupos em
situação de vulnerabilidade, com especial ênfase na justiça de gênero reforçam o
sentido da consideração ética como fundamento primeiro para o direito. Mas
é importante que estas normativas não sejam interpretadas a partir de concep-
ções idealizadas ou representações generalizantes ou essencialistas dos grupos
oprimidos para os quais elas se destinam. É preciso tomar o sujeito da injustiça
social na condição concreta que ele se apresenta e compreender que suas ca-
racterísticas são singulares, apesar de terem certa universalidade em função da
opressão que sofrem. Todavia, uma coisa é a opressão sofrida, a violência ou in-
justiça social que recai sobre cada pessoa ou grupo específico de pessoas. Outra
cosa diferente é a maneira como cada grupo ou cada sujeito concreto irá reagir
a tais injustiça. Pessoas diferentes têm, ou podem ter, reações distintas diante
de formas semelhantes de injustiças. Por isso não basta fazer uma representação
do sujeito da injustiça social, é necessário um sentimento ético que provoque
uma abertura e empatia com o sujeito concreto, ainda que este seja um sujeito
coletivo, um grupo ou movimento social específico.
Essa particularidade do outro concreto, não generalizado, que a considera-
ção ética exige de todos nós, abre os processos sociais e institucionais a um cer-
to grau de contingência no qual as antecipações normativas ou mesmo morais

184
Direito e Emancipação – Volume I

nem sempre irão funcionar de maneira adequada. Já dissemos como Lévinas


invoca o rosto do outro como um infinito que me interpela. Esse rosto que é um
infinito de sentidos e possibilidades, exatamente por ser infinito, se revela como
um devir, ou seja, como um constante vir-a-ser, como algo que se transforma,
renova ou modifica a cada momento. Foi Heráclito de Éfeso quem primeiro
sintetizou a ideia do devir entendido como uma característica tanto das pessoas
como do mundo. Segundo esse filósofo pré-socrático. todas as coisas estão num
permanente processo de mudança por meio da qual elas se apresentam como
são, embora este ser seja um estar já que as identidades são elas mesmas provisó-
rias na medida em que estar submetidas ao devir as faz transformarem-se. Para
exemplificar o devir, Heráclito formulou o conhecido aforismo: nenhuma pessoa
se banha duas vezes no mesmo rio.403 Ora, pela lei geral do devir, é impossível
banhar-se duas vezes num mesmo rio porque no segundo banho o rio já não
é mais o mesmo uma vez que suas águas estão em fluxo contínuo. São novas
águas e, assim, um novo rio. Mas não é só o rio que mudou. A própria pessoa a
banhar-se também mudou, de maneira que no segundo banho já não se trata,
exatamente, da mesma pessoa, embora ainda seja, sob certo aspecto.
Pois bem, considerada a existência dos devires que emergem dos diferen-
tes planos de outricidade, é preciso voltar a Jacques Derrida para relembrar
aquilo que já comentamos acerca do momento fundante do direito, isto é, que
em tal momento não há nenhuma manifestação de justiça, mas apenas pos-
sibilidade.404 A força instituinte do direito é um momento vazio, nem justo e
nem injusto em si mesmo, por isso o direito, nessa perspectiva, não possui um
fundamento absoluto e é sempre reinterpretável. Claro que o texto da norma é
uma importante referência, como querem os positivistas; também os valores da
comunidade política e os princípios presentes na constituição conformam outra
importante referência, como querem os pós-positivistas. Todavia, o fato é que,
como afirma Derrida, o direito é essencialmente desconstrutível.405 Na medida em
que não possui um fundamento transcendente, nada nele é absoluto, por isso
tanto as camadas textuais como as camadas morais que lhe constituem são

403 Cf. ANAXIMANDRO. PARMÊNIDES. HERÁCLITO. Os Pensadores Originários. Petrópolis: Vozes,


1991, p. 71; p. 83. Cf. fragmentos 49a e 91.
404 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes,
2007, pp. 24-25.
405 DERRIDA, Jacques. Ob. Cit., p. 26.

185
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

necessariamente transformáveis, não apenas por ato do legislador, mas também


no processo discursivo na perspectiva dos participantes, isso é, daqueles que
atuam diretamente no ordenamento jurídico. Por isso o direito é essencialmen-
te desconstrutível. Entretanto, e ainda falando com Derrida, que o direito seja
desconstrutível, não é uma infelicidade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance
política de todo o progresso histórico.406 Claro que alguns pós-positivistas pode-
riam fazer uma censura teórica à desconstrutibilidade do direito no seu aspecto
jurisdicional alegando que ele possui valores e princípios que lhe são fundantes
e que, por tal razão, não deixariam margem para nenhuma interpretação distin-
ta daquelas baseadas em tais valores e princípios. Mas essa censura não passaria
de uma admoestação acadêmica, pois a desconstrutibilidade, desejável ou não,
é um fato. Para Derrida ela é mais que um fato, ou seja, possui também natureza
prescritiva ou normativa uma vez que esse autor identifica na desconstrutibili-
dade a própria justiça: a desconstrução é a justiça.407 O desconstrutível é aquilo
que ocorre na maneira do devir, como um vir-a-ser que se instaura na forma
de uma possibilidade permanente, uma potência. A justiça é uma potência,
baseada num infindável jogo de combinação de valores. Claro que esse jogo
ou movimento depende tanto daquele que age quanto daquele que interpela
demandando a ação. De qualquer forma, a justiça não é dada nem nas regras
e nem nos princípios, mas na ação, ainda que de natureza praxiológica, isso é,
que seja ação confrontada com pensamento. Essa práxis que é a justiça não se
reduz a uma teleologia, a uma ação presente domesticada em função de um
futuro pretendido. Ela não possui futuro e sim um porvir que se desdobra da sua
condição de devir. A justiça é a urgência do hoje que se dirige ao porvir, àquilo
que vem, à vinda do outro. Como nos lembra Derrida, talvez seja por isso que a
justiça, na medida em que ela não é somente um conceito jurídico ou político, abre
o porvir a transformação, a refundição ou a refundação do direito e da política.408
No entanto, é preciso que fique claro que este espaço do devir onde a
justiça ocorre, ou pode ocorrer, esse porvir da justiça, só ocorre como aconte-
cimento, quer dizer, como uma factualidade ou um evento que irrompe diante
da presença de um outro concreto. É esse outro, na sua materialidade mais
intensa, que me interpela e em confronto com sua narrativa me permite uma

406 Idem, ibidem.


407 DERRIDA, Jacques. Ob. Cit., p. 27.
408 DERRIDA, Jacques. Ob. Cit., p. 55.

186
Direito e Emancipação – Volume I

releitura crítica dos marcos referenciais e uma preparação do que está por vir.
Sem a figura do outro não há que se falar em justiça. Essa ideia é comum e
mesmo recorrente em nossas experiências de vida mais cotidianas. O outro está
sempre presente na minha vida, mas costuma me mobilizar realmente apenas
pelos afetos. É preciso um nível mais profundo de afetação, em geral por inter-
médio de emoções mais ou menos fortes, para que eu esteja disposto a encarar
o acontecimento que esse outro presenta e mergulhe no devir que sua presença
produz. Quando estamos mobilizados pelos afetos mais profundos, a empatia
surge como resultado inevitável e nos dispomos a buscar as transformações que
são importantes para o bem estar desse outro. Nosso maior desafio é romper
com os limites estreitos da pura afeição para sermos afetados pelo outro mesmo
que não sejamos capazes de mobilizar, a princípio, nossos afetos mais básicos.
É nesse momento que a consideração ética atua alargando o campo das nossas
implicações para produzir sentimentos morais que me conectem com esse outro
de forma a desejar entrar no processo do devir buscando as transformações que
possam produzir mais vida na vida do outro. Esse tipo de acontecimento não
é natural, não é algo que ocorra espontaneamente, pois não está no nível mais
elementar dos afetos básicos. Ele depende tanto de uma disposição, uma que-
rência, quanto uma abertura ao devir-outro. Mas é claro que isso não é algo que
seja produto do cálculo, de esquemas meramente racionais, embora a razão seja
necessária. Tal acontecimento excede o cálculo e as antecipações, pois decorre
do infinito que o rosto do outro traz até mim. Como afirma Derrida, a justiça
como experiência de alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do acon-
tecimento e a condição da história.409
Essa alteridade radical tem uma importância universal para a justiça, mas
um significado particularmente relevante quando estamos tratando do sujeito
da injustiça social. É esse o sujeito que, na injustiça que sofre, instaura a tem-
poralidade do presente, para quem o futuro é algo muito distante para que se
deposite nele suas crenças e esperanças. Quem sofre tem pressa e quem sofre
injustiças sociais tem urgência, a urgência de recuperar a dignidade que lhe
foi roubada pelas assimetrias e desigualdades imerecidas mais ou menos cris-
talizadas no tecido social. Ao contrário do que se possa imaginar, o parâmetro
primeiro de uma sociedade razoavelmente justa não são os valores que se acre-
dita como a base da própria justiça, mas a injustiça que se quer combater por

409 Idem, ibidem.

187
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

aviltar a própria condição humana. O grito indignado que diz não à injustiça
é a primeira forma de se fazer justiça. E mesmo que se considere a justiça uma
espécie de loucura na medida em que ela excede os cálculos e dispensa media-
ções, como o faz Derrida410, a injustiça social não possui nada de loucura. Ela
é objetiva, mensurável e aferível, resulta de esquemas e tradições opressivos e
favorece grupos específicos. No mais das vezes, produto de uma racionalidade
instrumental tão eficiente quanto despudorada. Não raro encontra adeptos que
com boas ou más intenções são capazes de levantar argumentos e pretensas jus-
tificativas para que ela ocorra. Esse limite máximo de contradição performática
que é tentar justificar a injustiça, somente pode ocorrer quando se está a pensar
a partir de um quadro juridicista ou moralista. Isso seria bem menos provável
quando se atua no campo de uma alteridade radical, próprio da ética da alte-
ridade. Uma teoria jurídica crítica deve, antes de tudo, alertar para o fato de
que a cena jurídica, pelas inúmeras mediações normativas e institucionais que
possui, corre o risco de produzir certa indiferenciação do outro, o que é muito
ruim em geral, mas é dramático quando este outro indiferenciado e para o qual
permaneço indiferente é o sujeito da injustiça social. Quando as mediações
institucionais afetam o meu olhar e quando a linguagem do direito me impede
de ver o outro como o outro, ocorre uma inevitável injustiça.411 Todavia essa
injustiça se torna um duplo injustiçamento, ou uma injustiça mais perversa,
quando ocorre logo com o sujeito da injustiça social, com aquele que já enfren-
ta o evento das violências e agora ainda precisa se defrontar com a opressão
jurídica. Como bem advertiram Douzinas e Gearey, injustiça seria esquecer que o
direito cresce no chão da responsabilidade pelo outro e da proximidade ética e que as
assimetrias sufocam a igualdade de direitos.412
É preciso que reste claro que nossa defesa da importância ética da res-
ponsabilidade ou do cuidado com o outro não deve ser interpretado como um
argumento que enfraquece o outro. Ter cuidado com alguém não significa me-
nosprezá-lo ou inferiorizá-lo, ao contrário, assinala o reconhecimento de sua
importância e dignidade como outro. Ser cuidadoso não significa submeter
relações políticas e morais ao vacilo ou a frouxidão, antes requer coragem e

410 DERRIDA, Jacques. Ob. Cit., p. 49.


411 Cf. DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 165.
412 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Ob. Cit., p. 27.

188
Direito e Emancipação – Volume I

disposição de luta para se avaliar constantemente se não existe a imposição de


um ônus excessivo para uma pessoa ou um grupo de pessoas ou, por outro lado,
benesses e facilidades em demasia para outra pessoa ou grupo de pessoas, não
raro em função da exploração ou opressão dos primeiros. Em linguagem jurídi-
ca esse cuidado implicaria uma avaliação permanente de eventuais assimetrias
entre imposições e deveres por um lado e direitos e privilégios por outro lado.
Isso não significa retirar a potência do outro, mas exatamente o oposto, isto
é, assentir e afirmar sua força instituinte de modos de resistência e busca de
transformação das mais variadas formas de dominação política. Trata-se, por-
tanto, de um ideal emancipatório.
Todo ideal de tipo emancipatório precisa reconhecer os limites e possibi-
lidades da ação política. Nesse sentido vai a reflexão de Judith Butler ao usar o
termo dispossession, isto é, despossessão, ato ou efeito de ser desapossado, priva-
ção da posse. Em sentido filosófico, isso significa, antes de tudo, afetação: nós
não simplesmente movemos a nós mesmos, mas nós somos movidos pelo que está
fora de nós, por outros, mas também por tudo aquilo de externo que reside em nós.413
Nesse sentido a despossessão revela que aquilo que eu sou e faço depende, em
larga medida, da existência de um outro que me interpela e move, em certo
sentido. Então, se, por um lado, o outro é um campo de possibilidades que se
abre à minha frente, por outro lado, ele também é um limite que se coloca em
relação a mim, da mesma forma que eu sou um limite que se coloca em relação
a ele. A relação de alteridade apresenta, sem condescendência, um tipo de vul-
nerabilidade (ao outro) à qual todas e todos estamos submetidos. Nesse sentido
existe algo de bom na despossessão. Ela funciona como uma espécie de “não”
que é estruturante da nossa condição humana, nos faz compreender nossos
limites e, de alguma forma, nos impulsiona em direção aos nossos desejos. Mas
o fenômeno da despossessão se complica quando diz respeito, como via de regra
acontece, a processos de subjugação que tornam extrema nossa vulnerabilidade
e nos deixam fora de nossa terra ou de nossa comunidade, à mercê de violências
físicas e sociais, submetidos à pobreza ou mesmo à miséria, privados, em certos
casos, do controle de nosso próprio corpo. Essa despossessão pode se dar por
meio de relações diretas entre pessoas ou relações institucionais, ou seja, me-

413 BUTLER, Judith. ATHANASIOU, Athena. Dispossession: the performative in the political. Cambridge:
Polity Press, 2013, p. 3.

189
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

diadas por políticas e agentes públicos ou privados; sistemas de governo podem


produzir despossessões mais ou menos agudas. Como afirma Butler:

Porque se nós somos seres que podemos ser privados de lugar, meios de
sustento, abrigo, comida e proteção, se nós podemos perder nossa cida-
dania, nossos nomes e nossos direitos, então nós estamos fundamental-
mente dependentes desses poderes que alternadamente nos sustentam e
nos privam, e que mantém um certo arbítrio sobre nossa própria sobrevi-
vência. Mesmo quando nós temos nossos direitos, nós ainda assim somos
dependentes de um modo de governo e um regime legal que confere e
sustenta nossos direitos.414

A consideração ética com o outro está comprometida com o ideal eman-


cipatório no momento em que pretende empoderar esse outro para que ele
veja reduzida a dependência externa nociva que lhe impede de buscar a pleni-
tude de seus anseios. Isso se torna um processo mais radical quando estamos
tratando do outro que sofre injustiças sociais e que antes de ser “objeto” dos
nossos projetos políticos, deve ser “sujeito” de sua própria existência. Dessa
maneira, o cuidado com o outro deve reequilibrar assimetrias, antes de estabe-
lecer metas. A justiça não é tomada como um fim específico ou um lugar a ser
alcançado no futuro, mas o tratamento que proporciona ao outro, ao mesmo
tempo, o direito à igualdade e à diferença, que respeita o outro como alguém
que é capaz de produzir sua própria história e interagir socialmente de forma
plena. Mas esse tratamento e os arranjos que ele exige nem sempre podem ser
previamente definidos uma vez que as contingências determinam contextos
profundamente díspares. Por isso mesmo Douzinas e Gearey falam em uma
justiça indeterminada, algo que ocorre num campo pós-normativo, na medida
em que depende de pessoas e contextos diferentes.415 Isso algumas vezes pode
implicar seguir estritamente uma norma ou comando, mas em outros casos,
pode demandar enfrentar, superar ou derrotar um dispositivo normativo que,
naquele dado contexto, corrobora com a despossessão. A justiça indetermina-
da que decorre do devir-outro é ao mesmo tempo universal, enquanto preten-
são de superação das dominações, desigualdades e opressões, mas é também

414 BUTLER, Judith. ATHANASIOU, Athena. Ob. Cit., p. 4.


415 DOUZINAS, Costas. GEAREY, Adam. Critical Jurisprudence: the political philosophy of justice.
Portland: Hart Publishing, 2005, p. 171.

190
Direito e Emancipação – Volume I

singular, enquanto proposta de emancipação de um sujeito concreto em suas


condições materiais de vida.
Por isso mesmo, qualquer teoria da justiça, bem como qualquer teoria do
direito, devem enfrentar uma tarefa preliminar que é reverter a obliteração do
sujeito. Para isso é preciso constituir uma epistemologia da injustiça e uma te-
oria do sujeito da injustiça social que busque compreender esse sujeito fenome-
nologicamente e sob o viés de uma práxis libertária e emancipadora. Isso é que
faremos no capítulo seguinte.

191
4. O Sujeito da Injustiça: uma
Urgência Epistêmica e Ética416

As teorias da justiça mais em voga permanecem balizadas entre universa-


lidade formal versus localismo substancial; igualdade abstrata versus identidades
particulares; neokantismo universalista versus comunitarismo aristotélico-he-
geliano.417 Refletem as teorias político-filosóficas sobre Justiça de maior rele-
vo, cujos aportes privilegiam, por um lado, procedimentalismo formal, ideal
normativo regulativo, racionalidade instrumental e imparcial, neutralização do
político, e por outro lado, particularismo histórico, contexto cultural específico,
racionalidade prática, substancialização das identidades políticas.418

416 As ideias por nós trabalhadas nesse capítulo estão articuladas com uma reflexão mais ampla sobre
uma epistemologia do sujeito da injustiça social presente no livro: The subject of Injustice: Political
Action, Law and Empowerment, de autoria de Bethania Assy e no prelo pela Editora Routledge. O
referencial teórico aqui é a tendência corrente de teologia política contemporânea sobre a teoria do
evento e o processo de subjetivação política. Como será observado ao longo das referências citadas,
uma de suas principais fontes teóricas se apoia na análise da temporalidade messiânica em Walter
Benjamin - mas também nas leituras filosóficas atuais de teologia política Paulina. Vale relembrar
que, conforme esclarecido na introdução, assim como nos capítulos anteriores, a leitora e o leitor
devem ter em mente que toda a crítica apresentada no livro terá como base a ideia de injustiça social
e nunca o sentimento particular de injustiça. A violência que atinge o sujeito dessa injustiça social
pode ter origem tento econômica, como política ou cultural.
417 Vale ressaltar que a crítica teórica aqui mencionado se refere apenas a recepção normativista-
multicultarista do eixo Kant-Hegel. Entre os mais notórios representantes da abordagem
procedimentalista Cf.: RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press,
Revised Edition, 1999, 1 ed. 1971; HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other. Studies in
Political Theory. Edited by Ciaran Cronin and Pablo De Greiff, The MIT Press; BENHABIB, Seyla.
Democracy and Difference – Contesting the Boundaries of the Political. Princeton: Princeton University
Press, 1996. Dentre as constribuições da tradição comunitarista, os mais destacados: MACINTYRE,
Alasdair. After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press, Second Edition, 1984;
WALZER, Michael. Spheres of Justice – A defense of Pluralism and Equality. New York: Basic Books,
1983; TAYLOR, Charles. The Ethics of Authenticity. Cambridge: Harvard University Press, 1991.
418 Cf. RASMUSSEN, David (ed.). Universalism vs. Communitarianism: Contemporary Debates on Ethics.
Boston: MIT Press, 1995. Para uma defesa sofisticada do universalismo Kantiano Habermasinano
confira FORST, Rainer. Contexts of Justice – Political Philosophy beyond Liberalism and Communitarianism.
Translated by John Farrell, Berkeley: University of California Press, 2002. Mesmo Marta Nussbaum,
no seu livro sobre justiça, ainda opera em termos de um alargamento das premissas do sujeito racional
Rawlsiano. Cf.: NUSSBAUM, Marta. Frontiers of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 2006.

193
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Particularmente a neogramática normativa kantiana de teorias formais


de justiça privilegiam princípios morais e abordagens procedimentais, presu-
mivelmente universais do ponto de vista da representação do sujeito. Um dos
preços dessa abstração é a negação de atribuição de valor teórico às experiên-
cias concretas de injustiças. Por outro lado, figuram as solicitações identitárias
de justiça, mediante a construção de minorias de identidade cultural, nominada
de multicultarismo. Este último limita o âmbito de autodeterminação ao escopo
da pertença cultural à comunidade ética concreta (Sittlichkeit).419
A partir deste diagrama, na composição complexão entre indivíduo e co-
letividade, duas respostas mais correntes polarizam o processo de subjetivação
política nas demandas por justiça. Por um lado, predominam as práticas ar-
gumentativas de matriz Neokantiana com pretensão de universalidade. Neste
caso, figuram as demandas por igualdade formal e pretensão abstrata de in-
clusão, nas quais a morfologia arquetípica do Estado de Direito, basicamente,
reproduz o mesmo esquema representacional. O sujeito de direito em grande
medida opera, hora na forma do estado nacional hora na forma de normativi-
dade cosmopolita, o mesmo desenho representativo da autonomia da vontade
abstrata e neutra, que justificada inclusão por inferência. Os sujeitos da injus-
tiça social, em larga medida resultantes de intensas desigualdades econômicas,
nomeadamente na sua variedade de invisibilidades sociais e políticas, em um
número significativo de vezes, não estão representados nas equalizações de sub-

Mas recentemente: FORST, Rainer. The Right to Justification: Elements of a Constructivist Theory of
Justice. Traduzido por Jeffrey Flynn. New York: Columbia University Press, 2011. Para um referencial
latino-americano, ainda na mesma matriz, ver: GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois
de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
419 Aqui consideramos apenas o comunitarismo aristotélico-hegeliano de base multiculturalista,
excluindo desta matriz o debate clássico da identity politics da tríade classe social/gênero/raça. Para o
conceito de Sittlichkeit Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phenomenology of Spirit. Translated by
A. V. Miller with Analysis of the Text and Foreword by J. N. Findlay. Oxford: Oxford University Press,
1977 [Phänomenologie des Geistes. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1988]; Cf. também de HEGEL,
Georg Wilhelm Friedrich, Philosophy of Right. Translated with notes by T. M. Knox. London/Oxford/
New York: Oxford University Press, 1967. Para uma leitura exegética da Fenomenologia do Espírito
Cf. HYPPOLITE, Jean. Genesis and Structure of Hegel’s Phenomenology of Spirit. Translated by Samuel
Cherniak and John Heckman. Evanston: Northwestern University Press, 1974. TAYLOR, Charles.
Hegel. Cambridge: Cambridge University Press, 1975; Do mesmo autor Cf. Hegel and Modern Society.
Cambridge: Cambridge University Press, 1975; PINKARD, Terry. Hegel’s Phenomenology – The
Sociality of Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

194
Direito e Emancipação – Volume I

produtos automáticos de uma vontade submissa para com a lei da razão, sujeitos
fictícios em um sistema geral de equivalência formal de direitos e deveres.
Por outro lado, figuram as teorias clássicas de politicas de identidade (iden-
tity politics), nas quais prevalecem os relativismos culturais e o investimento
significativo em torno da comunidade concreta de valores. Em sua vertente
multiculturalista mais arejada é interessante notar quão despolitizado perma-
nece o debate sobre o nexo entre identidade cultural e cosmopolitismo. Intenta
aproximar discursos morais e interculturais, a despeito de qualquer referência à
dimensão político-econômica das políticas multiculturais identitárias, descon-
siderando sua matriz, em larga medida, colonialista, essencialmente conflitiva
e irreconciliável.420 A questão crucial do multiculturalismo de consenso alcan-
ça maior expressão no intento contínuo de determinar e/ou flexibilizar cul-
turalmente a pertença, descontextualizadas das relações intrínsecas de poder
e seletividade que as constituem e mantêm. Este corrente processo filosófico
multicultural de aposta semântica de globalização cultural, desencarnado das
relações concretas e históricas de produção de opressão e violência institucio-
nal e simbólica, reproduz uma espécie de linguagem universal moral na qual
“desacordo” é descrito como uma exígua etapa evolutiva discursiva em direção
aos espaços interculturais de acordos, apreciações e traduções.421 Seus métodos
de complexo diálogo multicultural comprometem-se com a interpenetração de
tradições e culturas de tal maneira a sonegar os múltiplos níveis contraditórios
de ausência de reconhecimento de base primordialmente econômica e política,
dentro dos bens sociais de uma tradição. Em tais gramáticas multiculturais, a
complexidade cultural significa, grosso modo, que as diferentes tradições cultu-
rais foram mesclaras dentro das próprias culturas, e cuja questão central trata-se
de disponibilizar um vocabulário de “tolerâncias.”422

420 Particularmente a obra de Benhabib sobre cosmopolitismo: BENHABIB, Seyla. “Democratic


Interaction: the Local, the National, and the Global,” in The Rights of Others. Cambridge: Cambridge
University Press, 2004, cap. 5, pp. 171-212. A autora argumenta que o vocabulário neokantiano sobre
tolerância implica basicamente em deduzir que temos o assim chamado "outro" e seu/sua "diversidade"
inserido em “nossa” cultura. No entanto, este mesmo vocabulário ainda mantém a análoga estrutura
ontológica de um puro “Eu” e de um puro “Outro” matizados, seja historicamente ou culturalmente
matizados, a despeito das relações socioeconômicas nas quais se estruturam.
421 Cf. WALZER, Michael. Thick and Thin: Moral Argument at Home and Abroad. Notre Dame: University
of Notre Dame Press, 1994.
422 Conferir o livro de Wendy Bronw sobre tolerância. BROWN, Wendy. Regulating Aversion – Torelance
in the Age of Identity and Empire. Princeton and Oxford, Princeton University Press, 2006. Também

195
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Uma aferição imediata desta binária posição teórica balizaria a relação


indivíduo-sociedade entre, por um lado, uma concepção de sociedade que apos-
ta na igualdade inominável, cuja perspectiva contrafática inclui a todos, mas
efetivamente promove proteção seletiva de forma a mantém as vulnerabilidades
socioeconômicas; ou por outro lado, uma noção de sociedade que ao mesmo
tempo em que define seus sujeitos, estabelece e fixa suas identidades. Esta últi-
ma provoca uma dimensão que problematiza a própria pertença, de maneira a
implicar não só na possibilidade de perda da autorreflexão singular individual,
isto é, da capacidade do sujeito de se auto constituir fora da ontologia identitá-
ria, como também, de determinar de forma essencialista quem está fora e quem
está dentro de seu escopo de pertencimento, a partir da própria concepção de
identidade. A abordagem multiculturalista, para além da preponderância da
pertença cultural, compromete outra dimensão mais significativa. Os multicul-
turalismos via de regra tratam da diferença cultural de forma a negligenciar a
clássica trilogia que lidera as exclusões e vulnerabilidades sociopolíticas e eco-
nômicas: classe social, gênero e raça.
Uma margem substancial e emblemática dos sujeitos de invisibilidade
social e política permanece suspensa sob a positividade inclusiva normativa
abstrata ou sob o vocabulário ontológico da uma autônoma da vontade, do
livre-arbítrio, ou mesmo da classificação específica de pertença cultural. As
vulnerabilidades de classe, gênero e raça fornecem a substância de párias, não-
-sujeitos, despossuídos, invisíveis sociais, econômicos e políticos dos subúrbios
e favelas das grandes periferias, indivíduos marginalizados dos movimentos so-
ciais, os sem-nome de confrontos com a polícia, os moradores de rua, os imi-
grantes ilegais, para citar alguns exemplos notórios de tantas subjetividades não
representadas nacionais e supranacionais, que passam a margem do debate uni-
versalistas versus multiculturalistas.
Em um cenário geral, em ambos os casos, a morfologia arquetípica do Es-
tado de Direito reproduz o mesmo esquema de representação, em que a narra-
tiva normativa jurídica carrega uma baixa capacidade para apreender o evento
concreto de injustiça. Uma abordagem acerca do evento singular de injusti-
ça esbarra na lacuna deixada em aberto por estas duas estruturas conceituais

vale a pena checar o debate entre Brown e Forst, precisamente sobre as divergências entre matrizes
normativas e pós-estruturalistas sobre tolerância. Cf. BROWN, Wendy; FORST, Rainer, The Power of
Tolerance. Edited by Luca di Blasi and Christoph Holzhey, New York: Columbia University Press, 2014.

196
Direito e Emancipação – Volume I

de justiça que têm predominado no vocabulário de teorias de justiça. Ambos


definem a justiça quer seja como abstração quer seja como concretização, em
termos de racionalidade universal ou racionalidade particular. Em direção an-
tagônica, o evento singular de injustiça é um imperativo que compele a uma
conceituação de justiça que seja capaz de ativar um processo ilimitado de repre-
sentações, para além da mera repetição e unidade fundada em macro categorias
do eixo universalidade-identidade.
No entanto, pretendemos focar em outra dimensão presente na gramá-
tica de uma fenomenologia da injustiça. Valorizar justamente o estatuto epis-
temológico da experiência mesma, factual, concreta, de injustiça. Nesse caso,
as próprias experiências de injustiça socioeconômicas as quais os sujeitos estão
submetidos, ou seja, marginalização, morte social e invisibilidade política.
Este capítulo está estruturado em duas partes. A primeira, chamada: Uma
epistemologia da injustiça, trata da elaboração de alguns aspectos para uma episte-
mologia da injustiça social como um fenômeno que ultrapassa a gramática nor-
mativa e ao mesmo tempo não opera como pura ética dos princípios.423 Esses ele-
mentos são: temporalidade, espacialidade, narrativa, amor e responsabilidade. A
segunda, intitulada: O sujeito da injustiça: entre captura e empoderamento, investiga
nas experiências concretas de injustiça social, a produção de subjetividade, cria-
ção de empoderamento e resistência política por parte dos sujeitos vulneráveis.

4.1 Uma Epistemologia da Injustiça

4.1.1 A temporalidade: a injustiça


não espera por um amanhã
O primeiro ponto diz respeito a temporalidade do fenômeno da injustiça.
A injustiça não pode esperar. A situação concreta de injustiça está inteiramente

423 Cf. CAPUTO, John D. Demythologizing Heidegger. Bloomington/Indianapolis: Indiana University


Press, 1993, p. 192. Estamos em débito com o excelente trabalho de Jurandir Freire Costa sobre a
justiça. Confira, em particular, o capítulo sobre Derrida e Caputo: “Justiça e messianismo”, no qual
Costa explora a ideia de Caputo sobre a justiça hiperbólica em Derrida. Cf. COSTA, Jurandir Freire,
O ponto de Vista do Outro. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, pp. 239-284. Para o mito da justiça
hiperbólica, confira também: DERRIDA, Jacques & CAPUTO, John, Desconstruction in a Nutshell –
A Conversation with Jacques Derrida. Edited with a comentary by John Caputo. New York: Fordham
University Press, 1997.

197
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

conectada com o tempo do agora. O fenômeno concreto de injustiça opera uma


noção epistemológica da temporalidade com base na urgência, em vez da his-
toricidade progressiva teleológica. Aqui é fundamental a distinção entre tempo
histórico cronológico e progressivo e o tempo factual da urgência (chronos con-
tra kairos). A noção de ruptura como a antinomia da temporalidade do processo
de meios-fim é a temporalidade história do fenômeno da injustiça.424 Esta feno-
menologia do presente está alinhada à crítica sobre a historicidade moderna do
direito e suas narrativas predominantes, em especial, o tipo de racionalidade
emoldurada pela legitimidade do Estado de direito, por meio de suas duas fontes
mais expressivas: a historicidade da teoria hegeliana do direito e a normativi-
dade kantiana.425 Como fundação político-jurídico do Estado moderno clássico,
essas fontes operam de maneira finalística predeterminando códigos racionais
e valores, normas e instituições. As atuais teorias da justiça procedimentais,
particularmente baseadas em princípios e representação abstrata, reproduzem
expressivamente tais fontes.426
Historicidade linear de coerência progressiva e racional funciona como
base de legitimação das teorias normativas abstratas de justiça. É a abordagem
resoluta da história que informa como a filosofia política moderna estrutura o
direito. A recusa à aderência a este padrão linear de considerar a história, que

424 Trata-se da historiografia produzida pela tradição judaica de intelectuais da Europa central do
período entre guerras dos anos de 1920, caracterizadas principalmente pelo pensamento recorrente
de descontinuidade na história. Particularmente: BENJAMIN, Walter. The Arcades Project. Edited
by Rolf Tiedemann, and translated by Howard Eiland and Kevin McLaughlin. Harvard: Harvard
University Press, 2002. [BENJAMIN, Walter, Das Passagen-Werk. Band V, I and 2 Gesammelte
Schriften. Ed. Rolf Tiedemann and Hermann Schweppenhäuser.7 vols. Frankfurt: Suhrkamp, 1991];
BENJAMIN, Walter. “Theses on the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and Reflections.
Edited and with an Introduction by Hannah Arendt. Translated by Harry Zohn. New York: Schocken
Books, 1985 [On the Concept of History/Über den Begriff der Geschichte, Gesammelte Schriften,
Band I,2]; ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological Writings. Translated and edited,
with Notes and Commentary, by Paul W. Franks and Michael L. Morgan. Indianapolis/Cambridge:
Hackett Publishing Company, Inc., 2000; ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Part
One, Book Two, Reality of the World. Translated by Barbara E. Galli. Wisconsin: The University of
Wisconsin Press, 2005, p.57 [Stern der Erlösung]; KAVKA, Martin, Jewish Messianism and the History
of Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
425 Como já ressaltado anteriormente, nos referimos exclusivamente às apropriações clássicas da normativa
neokantianas e da historicidade racional neo-hegelianas. Cf. ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and
Theological Writings. Indianapolis and Cambridge Hackett Publishing Company, 1 edition, 2000.
426 Ver as referências anteriores. Em relação a Kant confira KANT, Emmanuel. “Doctrine of Right”
in The Metaphysics of Morals, Edited by Mary, 1990; WARNKE, Georgia. Justice and Interpretation.
Cambridge: MIT Press, 1993.

198
Direito e Emancipação – Volume I

é um dos aspectos fundamentais da filosofia de Franz Rosenzweig; se apoia no


que Emmanuel Levinas chamou, no prefácio de Star of Redemption, de “gesto
operativo” (operative gesture)427 de Rosenzweig. A recusa de tal padrão linear
na história tem como objetivo enfrentar a dialética hegeliana da história uni-
versal, como potência e expansão da racionalidade (para citar a figura clássica
do Estado hegeliano e sua encarnação no Espírito Absoluto), e confrontar a
sua própria realização real no desenvolvimento da história moderna europeia,
ou seja, exacerbado nacionalismo das nações, violência dos Estados e guerras
mundiais. Como Mosès chama atenção, “Para Rosenzweig, a guerra de 1914
causou o colapso da ideia central de toda a tradição filosófica ocidental, ou seja,
de um universo razoável regulado pelo logos, estruturado de acordo com as leis,
que são também aquelas de nossa estrutura mental e que atribui ao sujeito o seu
lugar harmonioso na ordem geral das coisas.”428
Rejeitar a história como uma ordem progressiva racional deriva de uma
experiência da história europeia na qual o ser humano é entregue à arbitrarie-
dade e violência. “Aos olhos de Rosenzweig a experiência de guerra é determi-
nante não porque refuta a filosofia da história de Hegel, mas, pelo contrário,
porque confirma a sua trágica verdade. Uma história moldada pelas rivalidades
dos estados e as paixões nacionalistas dos povos só pode ser uma catastrófi-
ca.429 No entanto, Hegel tinha mostrado que a moderna civilização europeia

427 Para mais considerações sobre o “operative gesture” em Rosenzweig Cf: MOSÈS, Stéphane. System
and Revelation – The philosophy of Franz Rosenzweig. Translated by Catherine Tihanyi, Forward by
Emmanuel Lévinas. Detroit: Wayne State University Press, 1992, p. 43 [Système et revelation: La
philosophie de Franz Rosenzweig, 1982]. Mosès oferece uma análise muito precisa acerca da interpretação
de Rosenzweig sobre a filosofia da história de Hegel e sua ontologia, particularmente em sua obra:
Hegel and the State em: ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological Writings. Indianapolis/
Cambridge: Hackett Publishing Company, 2000.
428 MOSÈS, Stéphane. System and Revelation – The philosophy of Franz Rosenzweig. Detroit: Wayne
State University Press, 1992, p. 24-5. Em 1920, no “Concluding Remark” do seu Hegel and the State,
Rosenzweig resume: “Hoje, quando o livro é publicado, 150 anos depois do nascimento de Hegel, nos
100 anos desde o surgimento da Filosofia do direito, esse sonho parece dissolver-se irremediavelmente
na espuma das ondas que ultrapassam toda a vida. Quando o edifício de um mundo colapsa, em
seguida, ambos, os pensamentos que imaginaram esse mundo e os sonhos que foram tecidos por
meio dele, são enterrados sob os escombros.” In: ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological
Writings. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, 2000, p. 82.
429 A interpretação de Hegel sobre a necessidade como expressão da moralidade em seu Philosophy of Rights
está no núcleo da crítica acerca da história universal de Hegel promovida por Rosenzweig. Como bem
aponta Mosès: “Para Rosenzweig, a questão não era provar que a visão hegeliana da história era falsa,
mas, pelo contrário, demostrar que era verdade, muito além do que o próprio Hegel podia imaginar.

199
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

representa a fase final - em outras palavras, a realização suprema - do processo


da história universal.”430 Rosenzweig explicita sua crítica à ideia de que a civi-
lização da Europa Moderna havia constituído para Hegel o triunfo da história
universal. De fato, a última conquista da idealização da historia universal por
meio da filosofia moderna europeia se baseia em guerra e violência.431
No vocabulário do tempo da injustiça como urgência, o que é relevante às
críticas hegelianas é destacar as ambições pedagógicas da ideologia do século
XVIII do progresso capaz de igualar uma dialética puramente formal a uma
dialética histórica, de modo a equiparar juízo universal e história universal, e
em termos teóricos, mais particularmente, o racional e o real.432 Nas próprias
palavras de Rosenzweig, “É unicamente porque a história universal é o juízo
universal pronunciando suas sentenças irrevogáveis em nome da lei da razão,
que o real é racional.”433 Nesta matriz, o próprio tempo da reparação da injuria é
o tempo regular do processo, com sua relação de custos e benefícios, com tanto
que opere na mesma lógica progressiva.
Portanto, à temporalidade dos estados modernos e nações, articulamos a
temporalidade messiânica do judaísmo. Refutando o conceito moderno particu-

Em outras palavras, para demonstrar a perversidade intrínseca de tal filosofia, é o suficiente mostrar o
seu funcionamento, seguir sua verificação na realidade da história contemporânea, em suma, tomá-la,
literalmente”. MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Translated by
Barbara Harshav. Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 38.
430 MOSÈS, Stéphane. System and Revelation – The philosophy of Franz Rosenzweig. Detroit: Wayne
State University Press, 1992, p. 24. Cf. ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological Writings.
Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, 2000.
431 Em uma crítica análoga à Hegel, Arendt comenta o conceito de tempo da história moderna no qual
“…o processo de imortalização tornou-se independente de cidades, estados e nações; ele engloba toda
a humanidade, cujo a história Hegel foi, em consequência, capaz de ver como um desenvolvimento
ininterrupto do Espirito.” ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução brasileira de
Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992, p. 110. Para Arendt, o passo
mais adiante após a lógica de uma modernidade progressiva e infinita do Hegel é a ideia de um fim
último como o produto-final de um processo manufatureiro da política. Vale a pensa ressaltar que
consideramos Hannah Arendt como autora diretamente influenciada pela tradição dos intelectuais
judeus europeus do período entre guerras. Cf. ASSY, Bethania. “Hannah Arendt and the Jewish
Messianic Tradition - Heroic Action and the Politics of the Defeated”. In: Trumah - Zeitschrift der
Hochschule für Jüdische Studien, Heidelberg, v. 20, p. 50-68, 2011.
432 Cf. MOSÈS, Stéphane. System and Revelation – The philosophy of Franz Rosenzweig. Detroit: Wayne
State University Press, 1992, p. 43. Ver também: p. 38.
433 (Rosenzweig, Hegel and the State, p. 368), Citado em: MOSÈS, Stéphane. The Angel of History –
Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford University Press, 2009, p.42.

200
Direito e Emancipação – Volume I

lar do progresso infinito da história, ergue-se a analítica messiânica: o instante,


a possibilidade efetiva de chegada. A temporalidade peculiar da história é mar-
cada por uma incompletude essencial, pela urgência, pelo irrepresentável. Con-
tra o conceito moderno do progresso infinito da história, se coloca o instante, a
real possibilidade da chegada. A peculiaridade temporal da história é marcada
por uma incompletude essencial, em um movimento sem fim em direção a um
objetivo impossível. Nesse assim chamado tempo redentor emerge a imprevisi-
bilidade da urgência.434 A matéria-prima da história são estas interrupções, o
extraordinário em outras palavras.
Se nos voltarmos para o esquema de tempo histórico de Hannah Arendt,
ao mencionar a história narrativa grega, como Leibovici chama atenção, Aren-
dt visa enfatizar eventos singulares e sua imprevisibilidade como a matéria pri-
ma da história. Em Entre o passado e o futuro, a autora alega que “O que para nós
é difícil perceber é que os grandes feitos e obras de que são capazes os mortais,
e que constituem o tema da narrativa histórica, não são vistos como parte, quer
de uma totalidade ou de um processo abrangente; ao contrário, a ênfase recai
sempre em situações únicas e rasgos isolados. Essas situações únicas, feitos ou
eventos, interrompem o movimento circular da vida diária no mesmo sentido
em que a bíos retilinear dos mortais interrompe o movimento circular da vida
biológica. O tema da História são essas interrupções – o extraordinário, em
outras palavras.”435 Nesse diagrama messiânico, o próprio nascimento contém
a intensidade da redenção, levando em conta que por natalidade como um
evento singular Arendt quer dizer um evento mundano, não um evento trans-
cendental redentor. Ao focar na realidade do mundo, Rosenzweig converge com
a concepção de Arendt sobre a natalidade. Coincidentemente ou não, Rosen-
zweig usa a expressão um “completo milagre” ao se referir a gênese fenomeno-
lógica do nascimento como o absolutamente novo. A realidade do mundo é sua
renovação perpetua; cada nascimento é a negação do nada: “Mas o nascimento
irrompe em seu resultado individual, como um completo milagre, com a força

434 ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005, p.57.
435 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992, p. 72. Focamos
precisamente na noção de progresso na relação entre história e teorias jurídico-políticas modernas.
Ciente do debate de Marx, Benjamin e Arendt acerca do progresso, ideologia, e crítica ao imperialismo.
Vide: LEIBOVICI, Martine. “En la grieta del presente: ¿mesianismo o natalidad? – Hannah Arendt,
Walter Benjamín y la historia,” In Hannah Arendt – Pensadora en tiempos de oscuridad. Al Margen, Mar
& Jun 2001, N. 21 -22, Colômbia, pp. 194-221.

201
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

demolidora do imprevisto, do imprevisível. Sempre houve a articulação, e ainda


assim cada nascimento é algo absolutamente novo.”436
Essa articulação da ideia de tempo na tradição messiânica dos intelectuais
da Europa central do período entre guerras é marcada pela alusão recorrente
da imagem da dobra na história. “Para Rosenzweig, a história é marcada por
uma incompletude essencial, não só por causa da alternância incessante de
momentos da vida e momentos de morte, mas sobretudo porque cada instante
é modulado por uma tensão entre essas tendências antagônicas.”437 A quebra
do tempo histórico possui uma essencial imprevisibilidade a respeito do tempo
de chegada do evento. Os três planos do tempo, na economia da temporalidade
de Rosenzweig, não são sucessões homogêneas de tempos. Passado, presente
e futuro, ao invés, existem simultaneamente. “O tempo passado não é tempo
anulado. O que passou não pode, com certeza, ser o que está presente, mas
deve como algo passado coexistem com o presente. ... O que é o futuro não
é uma existência presente, mas tem que coexistir com o presente, como algo
futuro. E é igualmente absurdo considerar o ser passado, assim como, o ser
futuro, como um completo não-ser.”438
Rosenzweig nomeia duas experiências conectadas com o tempo. A primei-
ra considera o futuro uma extraordinária aceleração do tempo. Para o judaísmo,
interromper o tempo tem como proposito dissolver a distância que divide o
presente do futuro extremo, qual seja, do fim ideal do processo histórico. “Ape-
nas um tempo absolutamente sincrônico pode permitir a realização do futuro
mais distante no flash do instante presente, em outras palavras, na redenção.”439
Como nomeado por Rosenzweig essa “infinitude qualitativa”, constante em
tendências antagonistas, apresenta um tempo fora do tempo (a time out of time),

436 ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press,
2005, p. 57.
437 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p. 50.
438 ROSENZWEIG, Franz. Briefe. Ausgenwählt und Herausgegeben von Edith und Ernst Simon.
Berlin, 1935, p.346. Citado por: MOSÈS, Stéphane. System and Revelation – The philosophy of Franz
Rosenzweig. Detroit: Wayne State University Press, 1992, p. 43.
439 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p. 58. Ver também: ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Wisconsin:
The University of Wisconsin Press, 2005, p. 382.

202
Direito e Emancipação – Volume I

como uma possibilidade de alteridade radical. 440 No entanto, essa própria ace-
leração do tempo, a uma só vez, promove a experiência da contração do tempo,
nomeadamente, “a possibilidade de ver promessas messiânicas realizada hoje
deriva de uma técnica espiritual milenar, uma familiaridade ancestral com a
experiência interna de condensação em um único ponto das três dimensões do
tempo” 441 Móses destaca o fato de que em Star of Redemption tal contração em
um momento singular enfatiza uma cronologia descontinua, separada da nar-
rativa linear geracional dos ancestrais. Uma narrativa descontinua dos eventos
visa superar o esquecimento, ou seja, de forma mais precisa, visa transmitir as
falhas e quebras, fraturas opressivas e violentas da história, para além da casua-
lidade racional. “Uma cronologia numérica (a contagem de anos) é convertido
aqui em valores subjetivos, em uma soma de experiências pessoais, em suma,
em uma memória.”442 Na narrativa do tempo de Rosenzweig, o passado vive na
dureza do presente e o futuro vive como uma promessa, como uma forma de
espera impaciente do amanhã, agora. As três dimensões do tempo não inferem
uma reunião sincrônica, no sentido de uma coerente fusão sequencial de hori-
zontes históricos. Como formulado por Walter Benjamin, a história sofre uma
constante e abrupta atualização, transformando o presente em um presente
consciente e urgente.443 Essa impaciência qualifica o presente. O presente quali-
ficado não satisfaz a si próprio com sua mera totalização substancial e imanente.
Presente é a hiper-temporalização do próprio tempo. Amalgamados no instante

440 MOSÈS, Stéphane. Ob. Cit., p. 52


441 MOSÈS, Stéphane. Ob. Cit., p. 59.
442 MOSÈS, Stéphane. Ob. Cit., p. 60. Ver também: ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption.
Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005, p. 322. A narrativa do tempo em Rosenzweig se
assemelha as considerações de Arendt, não apenas quando trata do conceito kafkiano de tempo, mas
também, em sua análise sobre a natureza descontínua da tradição. Na introdução de Entre o passado e
o futuro, Arendt se refere a parábola de Kafka sobre tempo para ilustrar a experiência de suspenção da
temporalidade linear e contínua da vida cotidiana [Kafka, Gesammelte Schriften, New York, 1946, vol.
V, p. 287. English translation by Willa and Edwin Muir, The Great Wall of China, New York, 1946, pp.
276-277] ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992, p. 33.
443 Em outra passagem de Benjamin sobre a história como um repentino e intenso acontecimento,
como enfatizado por Bram Mertens: “Não é que o passado verta sua luz sobre o presente, ou que o
presente envie sua luz ao passado: a imagem é o ponto onde o passado repentinamente entra em uma
constelação com a presente.” Cf. Walter Benjamin, The Arcades Project. Edited by Rolf Tiedemann,
and translated by Howard Eiland and Kevin McLaughlin, Belknap Press of Harvard University
Press 2002. [Walter Benjamin, Das Passagen-Werk. Band V, I and 2 Gesammelte Schriften. Ed. Rolf
Tiedemann and Hermann Schweppenhäuser.7 vols. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 576].

203
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

presente da ação, o passado-presente-futuro é lançado no instante imediato. O


presente messiânico significa precisamente esse sempre novo instante, capaz de
manter um entre-tempo (entre-temps) .444
A narrativa do tempo de Rosenzweig se assemelha a de Arendt, não ape-
nas no conceito kafkiano de tempo, mas também, na sua analise da natureza
descontinua da tradição. Na introdução de Entre o passado e o futuro, Arendt
se refere a parábola de Kafka sobre o tempo para ilustrar a experiência de
suspender a linear e continua temporalidade da vida cotidiana do chronos.
“Ele tem dois adversários: o primeiro acossa-o por trás, da origem. O segundo
bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primei-
ro ajuda-o na luta contra o Segundo, pois quer empurrá-lo para frente, e do
mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o
empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não há ali ape-
nas os dois adversários, mas também ele mesmo, e quem sabe realmente se suas
intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto
- e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais o foi nenhuma noite -,
saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de
luta, à posição de juiz sobre os adversários que lutam em si..”445 Fica claro a
relação que Arendt estabelece entre o gap entre o passado e futuro, o presente,
e o compromisso da ação, do instante.
Este, assim chamado, tempo emergencial se caracteriza pela imprevisibili-
dade do evento, a temporalidade do evento singular da injustiça, que não pode
obedecer à logica esquemática da temporalidade do processo. Tal urgência
pode ser abordada como essa hiper-temporalização do próprio tempo, no qual
o instante presente do sujeito em situação de injustiça social remete o passado,

444 Cf. BENJAMIN, Walter, “Theses on the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and Reflections.
New York: Schocken Books, 1985, p. 263 [On the Concept of History/Über den Begriff der Geschichte,
Gesammelte Schriften, Band I,2, p. 704]. Michael Löwy chama a atenção para o fato de que já em sua
tese de doutorado Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik (1919), Benjamin opõe uma
concepção qualitativa de tempo infinito (qualitative zeitlich Unendlichkeit) atribuída ao messianismo
romântico, a um infinito vazio do tempo (leeren Unendlichkeit der Zeit), característico da ideologia
moderna do progresso. Cf. LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Avertissement d´incendie. Paris: Presses
Universitaire de France, 2001.
445 A parábola do Kafka se encontra em uma coleção de aforismas do autor chamada “Er”: [Kafka,
Gesammelte Schriften, New York, 1946, vol. V, p. 287. Arendt utiliza a tradução para o inglês de Willa
and Edwin Muir, The Great Wall of China, New York, 1946, p. 276-277] ARENDT, Hannah. Entre o
Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992, p. 33.

204
Direito e Emancipação – Volume I

o presente e o futuro no tempo simultâneo da necessidade de agir do agora. O


presente significa precisamente a sempre imprevisível ocorrência da urgência
diante da vulnerabilidade, da precariedade e da ameaça à vida e à dignidade
do sujeito da injustiça social. Uma urgência que mantem um tempo-entre (in-
-between, entre-temps), de potência de emersão. O tempo da injustiça, o ins-
tante de ruptura do seu acontecimento, é um tempo imperativo, a urgência da
situação de vulnerabilidade. O evento concreto de injustiça é uma questão de
urgência escatológica, e não de realização teleológica procedimental. O foço
entre os procedimentos normativos de justiça e a facticidade daquele que sofre
a injustiça “agora” demanda também uma temporalidade de esperança e ação
frente as demandas concretas contra a injustiça. Aqui a promessa da justiça
opera em razão da própria fratura que o evento da injustiça promove no tempo.
Não existe o “momento certo”, oportuno, procedimental para demandar jus-
tiça, mas antes, compele a uma ênfase no permanente e iminente agora. Que
sofre não pode esperar.
Outro aspecto a ser levado em consideração acerca de sua temporalidade,
é que o evento concreto de injustiça desafia e renova permanentemente os
sentidos e significados que se acomodam e se consolidam nas formas usuais de
demandas regulares por justiça. É precisamente a característica de descontinui-
dade de sua ocorrência que supera a tendência de apagamento, esvanecimento
de sua urgência, tendo em vista a potência que o evento de injustiça tem de
revelar horrores, intolerâncias, violências e morte. De certa forma, rompe, de-
saloja o escopo da causalidade racional que procedimentaliza, apazigua, sua
urgência. Na temporalidade da emergência reside a tarefa conspícua de reco-
nhecer que a memoria da injustiça, sua narrativa, sua genealogia, se revela na
voz do vulnerabilizado. O sujeito concreto que sofre injustiça precisa revelar
a verdade de sua história, tendo em vista que a memoria permanente da dor
o condena a nada esquecer, não esquecer a lei da força que o vitimiza nem a
longa história de opressão que “deve” eternizar. Esta é a própria condição de
possibilidade que permite manter uma abertura contínua de possibilidade de
revelação da injustiça. Uma revelação comprometida e operada pelos próprios
sujeitos. A urgência da injustiça revela uma temporalidade que carrega a poten-

205
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

cialidade de uma abertura sempre-presente de alcançar a justiça, que tem sido


permanentemente negada aos vulneráveis.446

4.1.2 O topos: Espacialidade e práxis da injustiça


O Segundo elemento de uma epistemologia da injustiça é sua espacialidade.
O espaço do aqui e agora (space of the here and now), o lugar onde a injustiça
concretamente acontece revela e oculta sentidos, sua urgências e violências. O
acontecimento de injustiça provoca uma disjunção entre a direito e a justiça. Em
o que nomeia de Justiça Hiperbólica, Caputo justifica que essa diferenciação expli-
ca o motivo pelo qual a estrutura do direito compõe várias possibilidades de rever,
reverter, apelar a novas instâncias, e inclusive de resistir, ao próprio direito.447
Cada evento de injustiça social é singular e carrega uma dimensão de
práxis e espacialidade em pelo menos três implicações que se imbricam. Em
primeiro plano, representa uma desarticulação ou mesmo ruptura da subsun-
ção do sujeito abstratamente representado da lei, no qual é possível localizar às
circunstancias substanciais e simbólicas de vulnerabilidade histórica, política e
social do evento da injustiça. E como consequência, em segundo plano, provo-
ca tanto a criação de novas acepções, imprevisíveis à generalidade e à abstra-
ção sócio-histórica nas quais os princípios normativos operam, como também,
habilita a reinscrição destes novos sentidos na gramática corrente desta mesma
normatividade. Por fim, um terceiro plano, implica em uma dinâmica perfor-
mática, no sentido de que compromete ação e práxis imprevisíveis por parte dos
sujeitos submetidos à injustiça.
O primeiro plano, a fenomenologização mesma da situação de injustiça so-
cial, materializa as circunstâncias históricas, materiais e sociais, denuncia a si-
tuação de vulnerabilidade, precariedade e biopolitização da vida. Nomeia onde,
quem, quando, e por que. Esse plano fenomenológico não pode ser reduzido a

446 Embora fora do escopo deste trabalho, é importante mencionar a violência dos signos linguísticos da
própria representação. Cf. DERRIDA, Jacques, “Force of Law: The Mystical Foundation of Authority”
em: Deconstruction and the Possibility of Justice, Cardozo Law Review, Vol. 11, July/Aug. 1990, Numbers
5-6, pp. 919-1039. Confira também, do mesmo autor: L’université sans condition. Paris : Galilée, 2001.
447 CAPUTO, John. Demythologizing Heidegger. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press,
1993, 189. É interessante como Caputo cita Hannah Arendt justamente para ressaltar a relação entre
a técnica, e neste caso a técnica do direito, e o desmantelamento que essa sofre quando confrontada
a práxis, mobilidade imprevisibilidade da ação. Cf. CAPUTO, John. Ob. Cit., p.188.

206
Direito e Emancipação – Volume I

um momento pontual, passageiro de mera codificação das condições de possi-


bilidade para a aplicação abstrata à situação concreta de injúria social. Carrega,
ainda, as próprias condições epistemológicas do evento da injustiça, irredutíveis
à aplicação formal dos princípios e normatização de seus procedimentos. O
acontecimento em si de injustiça social não apenas denúncia as condições ma-
teriais e simbólicas da violência social, mas sobre tudo, revela uma potencialida-
de epistemológica da singularidade irrepresentável e de sofrimento inominável
do sujeito. Essa experiência evental do imprevisível e inenarrável provoca os dois
outros planos já anunciados: o deslocamento na narrativa e representações de
justiça e na subjetivação política performática do sujeito da injustiça.
Esse segundo plano, na injustiça diante da lei, a materialidade da expe-
riência de injustiça é capaz de provocar deslocamentos e inscrições de novos
sentidos e significados da injustiça dentro da própria gramática geral norma-
tiva da justiça. Habilita um ponto de partida simbólico ao exercício gradual e
permanente de práticas políticas e sociais de apreender, compelir, enfatizar a
inclusão de novos sentidos, assim como de ausência de significados, dentro de
um vocabulário genérico da justiça.448 O espaço da injustiça social potencializa
a materialidade da resistência na própria linguagem, força interpretações, de-
nuncia contradições, delata brutalidades, exige juízos e novas inscrições, afirma
negatividade. O lugar é uma espacialidade do agora que compromete as tempo-
ralidades de passado e futuro de Kairos, descritas no tópico anteriormente. Um
topos que inscreve a capacidade de revelar o quanto violento pode ser o princí-
pio de neutralidade da abstração ao não visibilizar a situação de precariedade e
vulnerabilidade as quais seus não-sujeitos de direito estão submetidos. Violência
que, em larga medida, se oculta de forma legítima e procedimental.
Outro ponto ainda a ressaltar nesta segunda dimensão é que essa descrição
compromete, de forma permanente, o vocabulário de justiça com uma ambigui-
dade constitutiva entre a singularidade irrepresentável e a captura da represen-
tação e generalização. Alain Badiou articula a noção de singularidade universa-
lizável, com a qual o autor alega o inverso do conjunto descritivo normalmente
atribuído à universalidade abstrata. Esta última é correntemente retratada como
igualdade inominada, abolição das diferenças, produção da semelhança for-

448 Cf. COSTA, Jurandir Freire, O ponto de Vista do Outro. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. Ver também:
DERRIDA, Jaccques, & CAPUTO, John, Desconstruction in a Nutshell – A conversarion with Jaccques
Derrida. New York: Fordham University Press, 1997.

207
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

mal, nas quais a noção de humanidade opera como nossa menor diferenciação
possível, para além da qual nenhuma outra divisão é concebível. Singularida-
de universal depende, ao contrário, de uma espécie de universalidade situada,
modelada pelas experiências concretas político-sociais as quais os sujeitos estão
atrelados, aqui, particularmente, às experiências de injustiça social.449
Essa relação entre subjetivação política e experiência nos leva ao terceiro
plano da relação entre práxis e espacialidade do fenômeno da injustiça: sub-
jetivação política performática do sujeito da injustiça. Esta noção deriva da
centralidade da vida fática no processo de subjetivação em Badiou e, por con-
sequência, nas demandas por justiça. Desta forma, tem-se uma imbricação en-
tre a experiência concreta de injustiça e o processo de subjetivação do sujeito,
constituída pela ordem do que ocorre, por experiências políticas concretas, não
necessariamente estruturais, axiomáticas ou legais, que estampa uma dinâmica
sobre as identidades substancias.450 Trata-se de um processo de subjetivação po-
lítica fincado na própria reivindicação situada, de uma petição, muito embora
não fique reduzida substancialmente a essa reivindicação. 451
Suscita uma dinâmica performática, no sentido de que compromete ação
e práxis imprevisíveis por parte dos sujeitos submetidos à injustiça. Implica em
processo de subjetivação política, ação política e resistência. Hannah Arendt
atribui a vita activa a espacialidade como dimensão vital. É o espaço no qual o
sujeito trabalha, fabrica e age politicamente. Até mesmo suas reflexões a res-
peito da temporalidade das dimensões da vita activa levam a autora a atribuir
critérios espaciais. O domínio imprevisível, eloquente e redentor da ação políti-
ca, atividade que agrega a dimensão temporal da liberdade, é medido ao signo
da espacialidade, a movimentos humanos corporais e localizados.452 De fato, A

449 Cf. BADIOU, Alain, Saint Paul – The Foundation of Universalism. Translated by Ray Brassier. Stanford:
Stanford University Press, 2003.
450 Este aspecto será tratado na segunda parte deste capítulo. Cf. HEIDEGGER, Martin, The Phenomenology
of Religious Life. Studies in Continental Thought, Indiana: Indiana University Press, 2010.
451 BADIOU, Alain, Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University
Press, 2003, p. 11. A experiência de alteridade autêntica, entende Badiou, é uma singularidade
universalizável, que via de regra, no mínimo exprime sentido e ressignifica, ou até mesmo rompe, com
as particularidades identitárias.
452 Também o ciclo biológico natural do animal laborans e o mundo de artefatos duráveis do homo faber,
próprias do reino da necessidade ambas atividades espacialmente fixadas. Ver TAMINIAUX, Jacques.
“Time and Inner Conflicts of the mind.” In HERMSEN, Joke, & VILLA, Dana, (Eds.). The Judge and
the Spectator- Hannah Arendt’s Political Philosophy. Leuven: Peeters, 1999, p. 44.

208
Direito e Emancipação – Volume I

condição humana dignifica filosoficamente o agir humano, o mundo comum, a


ação política e o espaço público em particular: a esfera inusitada e imprevisível
da ação e da práxis. A fragilidade da ação política, a autora credita tanto ao do-
mínio da ação como epifania da liberdade, quanto às suas dimensões de impre-
visibilidade e irreversibilidade. É justamente esta dimensão inventiva, singular
da ação política, que se conecta à experiência de injustiça.

4.1.3 Narrativa testemunhal do sujeito da injustiça


O terceiro aspecto de uma fenomenologia da injustiça é, por consequên-
cia, a narrativa do sujeito. Cada fenômeno concreto de injustiça sustenta, carre-
ga, uma zona de indiscernibilidade entre facticidade e representação normativa
da linguagem. Considerado como além da racionalidade de narrativas abstratas
(Neokantiana), o evento da injustiça reivindica uma narrativa testemunhal da
experiência. É necessário amplificar as narrativas abstratas de justiça com his-
tórias, depoimentos, relatos particulares (ou coletivos) de injustiça. Transportar
a experiência do tempo vivido da esfera da experiência pessoal ao nível concei-
tual, uma conceptualização radical daquilo que é vivido em sua singularidade
(uniqueness): uma narrativa singular. As narrativas das histórias daqueles que
sofreram a injustiça nos permite apreender a singularidade da injuria irrepre-
sentável como uma questão de singularidade irredutível, que estrapola o escopo
de expressão de uma narrativa abstrata e geral, própria das teorias principioló-
gicas procedimentais de justiça. Para uma gramática da injustiça é imprescin-
dível sublinhar a força historiográfica de narrativas testemunhais dos eventos
singulares, com implicações substanciais para uma abordagem sobre a justiça a
partir da perspectiva das experiências concretas de injustiça.
Walter Benjamin sugere justamente esta transposição da experiência do
tempo vivido da esfera pessoal para o nível histórico, substituindo a ideia de
tempo linear objetivo pela experiência subjetiva de um tempo qualitativo, cada
instante vivido em sua singularidade incomparável.453 Uma noção de excep-
cionalidade do presente é presumida, a fim de se atingir essas experiências
qualitativas, nos próprios termos de Benjamim, “uma concepção do presente

453 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p.105

209
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

como o ‘tempo do agora’ (Jetztzeit),” 454 capaz de desafiar constantemente os


significados atribuídos ao passado. Esta percepção da excepcionalidade irre-
dutível do relato, além de ser intrinsecamente política, marca a linguagem tes-
temunhal do evento singular de injustiça. O que conta para Benjamin não é
“decifrar” qualquer passado, mas sim a leitura no presente dos traços de um
passado violento esquecido ou reprimido. Um passado que estabeleceu as pró-
prias condições histórias, sociais e política das injustiças sociais do presente. A
situação presente de injustiça e invisibilidade do sujeito revela a relação perma-
nente entre a situação de opressão que ele vive hoje com as lutas e sofrimento
de gerações anteriores. É surpreendente, que as teorias normativas de justiça
não disponibilizem nenhuma dimensão “fática” epistemológica para discutir a
“excepcionalidade” de sofrimento e privação permanentes às quais os sujeitos
da injustiça social estão submetidos.455
Benjamin enfatiza que a própria essência da narrativa unânime da histó-
ria, cujas sentenças constantemente sancionam o triunfo dos mais fortes e o de-
saparecimento dos mais fracos, representa a narrativa dos vencedores. O que o
autor nos evoca, ao revés, é articular um logos capaz de salientar a narrativa dos
inomináveis e, por consequência, de suas experiências de injustiça social.456 Ro-
senzweig e Benjamin se contrapõem a ideia de que a história universal implica
em julgamento universal, pronunciando suas sentenças irreversíveis em nome
da lei da razão. Como ressaltado no tópico anterior, Rosenzweig, em particular,
insiste que uma das consequências para a filosofia politica é a crença em um
logos apto a estabelecer significados progressivos racionais pelos quais os even-
tos se desdobram, se explicam e se justificam. Para o autor, isso expressa uma
lógica linear que está por de trás de parte substancial do pensamento político
ocidental moderno. Direciona sua análise para o rompimento deste “esquema
que tinha sido clássico desde o Iluminismo, de uma temporalidade quantitativa
e cumulativa cujos momentos se somam de acordo com a lei de uma perfeição

454 BENJAMIN, Walter. “Theses on the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and Reflections.
New York: Schocken Books, 1985, p. 263 (Gesammelte Schriften, Band I, 2, p. 704).
455 Idem, ibidem.
456 [Dem Gedächtnis der Namenlosen ist die historische Konstruktion geweiht]. BENJAMIN, Walter
(Gesammelte Schriften, Band I, 3, p. 1241) [Dem Gedächtnis der Namenlosen ist die historische
Konstruktion geweiht].

210
Direito e Emancipação – Volume I

constante.”457 Os atos e feitos dos quais somos capazes, suas narrativas históri-
cas, não são vistos como partes nem de um todo englobante nem de um proces-
so. Pelo contrário, a ênfase é sempre nas instâncias singulares, gestos particula-
res, feitos ou eventos, que interrompem o movimento circular da vida habitual.
No entanto, como alerta Benjamin, a narrativa dos vencidos não deve ser
concebida como mais uma reivindicação feita à lei da razão, como demanda fren-
te a um sistema de equivalência de direitos e deveres que visa uma “economia de
reparação” das vítimas, como na maior parte dos tribunais correntes de justiça
e reparação.458 Os relatos singulares de injustiça social não são um conjunto
de vozes pessoais, meramente domesticáveis por uma totalidade normativa, ou
mesmo considerados como a matéria-prima às políticas de memória do Estado,
em que a história figura como ferramenta privilegiada à construção da memória
de identidades nacionais.459 Essa é a tentação mais constante das narrativas po-
líticas progressistas da história e do direito.460 O papel político da linguagem, ao
contrário, depende em larga medida da sua capacidade anamnésica.461
Benjamin, em Sobre o conceito de história, transforma a memória em um
modelo particular de conhecimento. Os testemunhos não são tomados como
fontes suplementares à história. A memória testemunhal é sim um forte opo-
nente à noção moderna de história. O autor usa a palavra alemã “Eingedenken”
em vez de terminologias correntes de memória, como Erinnerung ou Gedächt-
nis.462 Eingedenken significa rememoração e remete à categoria judaica de “reme-
bering (Zekher), que não denota a preservação na memória dos acontecimentos
do passado, mas sim a sua reatualização e alerta nas experiências do presen-
tes, “a cada momento, sempre desafiando e renovando os sentidos do próprio

457 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p.11.
458 Ver as considerações de Benjamin acerca da relação entre direito, violência e justiça: BENJAMIN,
Walter. “Critique of Violence”. Selected Writings. Vol.1. Cambridge: Belknap, 1996, p. 249 [Zur Kritik
der Gewalt] (Gesammelte Schriften, Band II, 1, p.179). Ver o artigo de DOUZINAS, Costas. “History
Trials: Can Law Decide History?” In: Annu. Rev. Law Soc. Sci. 2012. 8:273–89.
459 MATE, Reyes. Tratado de la Injusticia. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011, p. 183.
460 BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique. Temps historique et temps vécu. Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 2001, p. 158.
461 Cf. MATE, Reyes, La Herancia del Olvido. Ensayos en Torno a la Razón Compasiva. Prefacio de
Catherine Chalier. Madrid: Errata Naturae, 2008.
462 MATE, Reyes. Tratado de la Injusticia. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011, p. 185.

211
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

evento.”463 Mosès remata: “A tarefa da rememoração, ressalta Benjamin, é um


movimento para ‘salvar o que falhou’, assim como redenção (Erlösung) significa
a possibilidade permanente de ‘alcançar o que nos foi recusado’.”464
Em sua compreensão acerca da linguagem, Benjamin destaca as tensões
entre conhecimento e verdade, facticidade e realidade. Um de seus pontos de
partida é ressalta a linguagem como o lugar privilegiado de experiência. A
experiência não é adição de fatos e consciência individual.465 Narrativa tes-
temunhal, ao revés, articula um nível de linguagem que ultrapassa o excesso
de valorização de um sentido mental e material da realidade, baseada princi-
palmente na mecanização do uso “objetivo” da capacidade de raciocínio lógi-
co de representação de juízos determinantes.466 A narrativa testemunhal não
mecaniza a real. O chamado “conhecimento dos fatos” oculta a descrição já
implícita dos fatos como partes triunfantes da história. Por meio de seus instru-
mentos e ferramentas, a argumentação procedimental investe prioritariamente
na construção de uma imagem autoexplicativa da realidade. Para Rosenzweig
e Benjamin refletir sobre essa “verdade dos fatos” não implica reduzir a reali-
dade à descrição da facticidade.467 Significa que é imprescindível reconhecer
que todos os sujeitos precarizados pela história socioeconômica do passado e
do presente, todos, singularmente, possuem uma partilha do real.468 Cuidado-
samente formulados por Mosès, “é a memória dos vencidos por si só, que revela
a verdade da história, uma vez que está condenado a nada esquecer, nem a
regra dos poderosos de que são vítimas, nem o tradição de vítimas que deve

463 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, p. 109.
464 Idem, Ibidem. Cf. LÖWY, Michael, Fire Alarm: Reading Walter Benjamin's "On the Concept of History,”
London: Verso, 2006.
465 MATE, Reyes. Tratado de la Injusticia. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011, p. 53.
466 Cf. ASSY, Bethania. Ética, Responsabilidade e Juízo em Hannah Arendt. São Paulo: Editora Perspectiva,
2015. Ver particularmente a discussão sobre imaginação ética, mentalidade alargada e cultivo de
sentimentos públicos.
467 Assim como Rosenzweig, Benjamin insistem que os protagonistas da historia são os perdedores. “A
história dos oprimidos é um descontínuo - É a tarefa da história se apossar da tradição dos oprimidos.”
BENJAMIN, Walter, “Notas as Teses sobre o Conceito de Historia.” Gesammelte Schriften, Band I,
3, p. 1236) [« Die Geschichte der Unterdrückten ist ein Diskontinuum – Aufgabe der Geschichte ist, der
Tradition der Unterdrüker habhaft zu werden »].
468 Cf. MATE, Reyes, La Herencia del Olvido. Madrid: Errata Naturae, 2008, p. 170.

212
Direito e Emancipação – Volume I

perpetuar.”469 Afirma a potencialidade que mantém aberta uma possibilidade


permanente de revelação da injustiça.
O processo de racionalização representativa de uma experiência de injus-
tiça social reduzida ao conhecimento dos fatos e à sua adequação presume uma
concepção de representação universalizável que opera no limite de uma imagi-
nação reprodutiva e normativa. A consequência não é apenas a inabilidade para
apreender o excesso das experiências imprevisíveis e inapreensíveis, fora da mol-
dura da representação, mas também de presumi-los. Além de, por decorrência,
não expandir nem desafiar ou interpelar a aplicação da gramática procedimen-
tal de justiça; o que capacitaria ao menos um certo desconforto frente ao proce-
dimento formal normativo de apreensão das experiência de sofrimento, opressão
e violência socioeconômica às quais o sujeito da injustiça social está submeti-
do.470 O testemunho possibilita uma narrativa que extrapola a representação e
adequação normativa, excede a uniformidade do discurso de fundamentação e
aplicação. Carrega em cada relato a potencialidade da justiça para o sujeito que
propriamente excede a lei. Ao mesmo tempo, essa narrativa testemunhal de
sofrimento de privação, humilhação e aniquilamento social retrata também a
experiência mesma de narrar o inenarrável, o impossível ad equation.
A linguagem singular de injustiça revela a experiência da impossibilidade
mesma de adequação, no sentido de uma representação totalizante do sujeito.
Não pode ser apreendida como resultado de um livre-arbítrio apenas submetido
às leis da racionalidade procedimental. A narrativa do sujeito que sofre uma
injustiça social é uma voz sem mediação. O grito por justiça não se encerra na
positividade de uma lei ou no estatuto ontológico da autonomia. O injusto nem
sempre pode ser apreendido a partir de juízos normativos abstratos e universais.
Entre as reivindicações das vítimas e o discurso normativo permanece uma
rachadura representacional. A representação clara e objetiva só gerencia o que
pode ser metabolizado por uma gramática da reparação, em que a memória
opera como mero combustível da racionalidade procedimental. As reivindica-
ções das vítimas, no entanto, revelam significados inapreensíveis de experiên-

469 MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford
University Press, 2009, 110.
470 Cf. ARENDT, Hannah. The Human Condition. Chicago-London: The University of Chicago Press,
1989, p. 300. Em termos de filosofia política coincide com a criação do vocabulário politico moderno,
no qual, por exemplo, no qual expressões como a “fabricação” de “ferramentas” e instrumentos para
a criação do “homem artificial” chamado Estado: O Leviatã de Hobbes.

213
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

cias singulares de injustiça, daqueles para quem a razão pode ser um grito ate
então calado, uma denúncia expurgada, uma exigência por justiça, uma dor
intransponível, uma última palavra, a morte irremediável.471 A narrativa de
experiência factual articula uma dimensão da linguagem que não se encerra na
narrativa do nomos processual. Na terminologia de Derrida, essa singularidade
factual dos excluídos põe a linguagem em um plano de universalidade eminente
e permanente do singular.472
A narrativa singular como um momento interruptivo da linguagem, alcan-
ça um nível de exterioridade da lei, ultrapassa a própria lógica interna norma-
tiva. Os anúncios chegam precisamente sob a condição de eventos de ruptura,
implodem em tensão interna normativa. Reparação, vista pela perspectiva de
Rosenzweig, impõe não apenas uma racionalidade “ponderável” visando abolir
ou igualar as falhas e lacunas da aplicação do direito, como principalmente
ajuizadas pelo justo-meio equitativo.473 Direito e reparação necessariamente im-
plicam uma ligação com outra dimensão de justiça. Um pedido de justiça que
ultrapassa a reflexão a respeito da racionalidade dos fins e a organização das
trocas normativas comunicacionais. Justiça requer a invocação do ausente, um
chamado qualificado pela narrativa singular.
A verdade da experiência da narrativa singular da injustiça só pode ser
revelada pelo discurso na ação, nem por instrumentos, nem apenas pela razão
representativa, nem ainda tão-somente por potentes ideias. “A durabilidade des-
ta verdade, isto é, o significado real da experiência depende da continuidade
circulatória deste nome, no seu poder de informar uma ação ulterior.”474 Esta
é uma forma de expressar a possibilidade de expansão da potencialidade de

471 Mate chama atenção para os silêncios eloquentes e as resistências políticas silenciosas dos sujeitos da
injustiça. Cf. MATE, Reyes. Tratado de la Injusticia. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011, p. 205.
472 Ver a relação de indissociabilidade que Derrida estabelece entre direito e justiça. DERRIDA, Jacques,
“Force of Law: The Mystical Foundation of Authority” In: Deconstruction and the Possibility of Justice,
Cardozo Law Review, Vol. 11, July/Aug. 1990, Numbers 5-6, pp. 919-1039.
473 Cf. BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique. Temps historique et temps vécu. Librairie Philosophique
J. Vrin, Paris, 2001, p. 159.
474 Wayne Cristaudo acrescenta: “Por outro lado, uma abstração filosófica é a apresentação de um nome
a um processo particular de análise em que apenas ao universal é permitido persistir. É um meio
de delimitação e, em última instância, de desvitalização.” CRISTAUDO, Wayne. “Rosenzweig:
Redemption and Messianism in ‘The Star of Redemption’”. Em CRISTAUDO, Wayne & BAKER,
Wendy, Messianism. Apocalypse & Redemption in 20th Century German Thought. Adelaide: ATF Press,
2006, p. 262.

214
Direito e Emancipação – Volume I

uma experiência universal liberada em toda individuação, não como uma regra
universal, mas como um evento, como um ato único. 475 De maneira evocativa
Zamora enfatiza: “Referindo-se a um outro fenômeno mítico, a saber, o direito,
Benjamin adverte que por meio da correlação entre culpa e retribuição não é
possível captar a experiência do tempo, que não é uma figura do direito, mas
sim, uma figura da justiça e do perdão, quer dizer, que tem a ver com a possibi-
lidade de algo realmente novo que escape à coação de repetição.”476
Essa impossibilidade de repetição, própria das narrativas singulares, ao in-
vés, chama para o comprometimento com a politica do extraordinário. É uma
voz “como se” sem mediação, o evento imprevisto da palavra e ação em direção
a sua potencialidade. Justamente por ser uma narrativa impossível de equalizar
experiência vivida e seu anúncio, que ela mantem o presente em um continuo
compromisso com expectativas correntes de renovação. A narrativa testemu-
nhal, no entanto, é tanto singular como comum. Singular, pois é a voz de
alguém, e comum, pois é potência de um evento politico. Testemunhar endossa
uma dimensão ético-política da narrativa, relacionada ao outro, a radicalida-
de irredutível do outro. Na epistemologia judaica, testemunhar é promover a
disjunção no tempo linear histórico, um desvio do tempo que leva a impaciência
do novo: a esperança e expectação ativa, ou seja, à real promessa da justiça. 477
Por outro lado, de ideia de subtração de Rosenzweig, o espaço deixado
pela voz testemunhal é a própria possibilidade de remediar “a ferida do inaca-
bado”. A narrativa pessoal atenta a impossibilidade de compleição de qualquer
narrativa totalizante. 478 Como Benssusan apontou, a narrativa testemunhal dos
sofrimentos das vítimas, como pensado por Benjamin, é a marca constante da

475 Cf. capítulo intitulado: ‘The Urzelle’, em: MOSÈS, Stéphane. The Angel of History – Rosenzweig,
Benjamin, Scholem. Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 65
476 ZAMORA, «Dialéctica mesiánica: tiempo y interrupción en Walter Benjamin», en: AMENGUAL,
G. Cabot, M. y VERMAL J.L. (eds.). Ruptura de la tradición. Estudios sobre Walter Benjamin y Martin
Heidegger. Madrid: Trotta 2008, p. 83-138.
477 Na epistemologia judaica, o testemunho (Edout) une uma dupla dimensão: conhecimento (daât)
e paciência impaciente (ad). DRAÏ, Raphaël. La pensee juive et l'interrogation divine: Exegese et
epistemologie. Paris: Presses universitaires de France; 1 edition, 1996, p.66.
478 BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique. Temps historique et temps vécu. Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 2001, p. 157.

215
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

impossibilidade da captura total, que é a própria condição de possibilidade de


abertura constante em direção a justiça. 479
É imprescindível uma teorização da justiça que assuma a tarefa de pro-
blematizar a narrativa do direito, de forma a potencializar a voz dos sujeitos da
injustiça. Inverta o significado tradicional dos direitos humanos, de forma a
potencializar o sujeito com voz e participação política nas demandas por justiça.
Ao invés de concluir com a vitimização dos sujeitos da injustiça social como
resultado irremediável de massacres de eventos históricos, de governos, sistemas
economia, a narrativa testemunhal inaugura a possibilidade de empoderamen-
to, expande a emancipação subjetiva e de ação política. 480 Um dos esquemas
que paralisa a luta e produz vitimização é precisamente a crença exclusiva na
evolução racional procedimental em direção à realização da justiça como finali-
dade última da história, pouco a pouco realizada também como finalidade últi-
ma do direito, reduzida a seus avanços institucionais; uma demanda que aposta
exclusivamente na utopia passiva do progresso e do processo. A única redenção
deixada no modelo moderno de utopia é a redenção promovida pela conquista
de níveis de racionalidades instrumentalizadas e incrementadas por instâncias
institucionais dos Estados, seja internamente ou em concerto.

4.1.4 A kardia da injustiça: o sofrimento


O próximo elemento de uma epistemologia da injustiça é o dom do amor
(the gift of love). A irrepresentabilidade das histórias singulares de sofrimento
e dor irreparáveis de injustiça social desvela assim o quarto elemento estru-
tural da justiça: amor (Kardia). O amor representa um imperativo urgente da
injustiça. Motiva e ativa um processo ilimitado de outras representações, para
além da mera repetição.481

479 BENSUSSAN, Gérard. Ob. Cit., p. 156.


480 Como interpretado por Floyd, na teologia política negativa de Benjamin, redenção tem um poder
transformativo: “Redenção significa, ao contrário, a recuperação da partícula de uma subsunção
hierárquica dominadora sob alguma categoria mais abrangente.”, FLOYD, Whitson Wayne.
“Transcendence in the Light of Redemption: Adorno and the Legacy of Rosenzweig and Benjamin”.
In: Journal of the American Academy of Religion. Vol. 61, No. 3 (Autumn, 1993), p. 543.
481 Aqui, imaginação e ficção da justiça têm um papel primordial. Cf. DOUZINAS, Costas &
WARRINGTON, Ronnie. Justice miscarried – Ethics, Aesthetics and the Law. New York: Harvester
wheatsheaf, 1994.

216
Direito e Emancipação – Volume I

As teorias da justiça, via de regra, desconsideram sentimentos, emoções


e afetos como inapropriados ou perigosos. A economia particular das relações
entre afetos, sensibilidade e racionalidade tem enfatizado está última premissa
como a condição indispensável para autonomia, e por consequência, como a
principal ferramenta com base na qual a noção de justiça se articula. Esta mes-
ma lógica naturaliza e fixa a conexão entre afetos e a busca individual e egoísta
de interesses pessoais. Converge a um conjunto de presunções nas quais, sem o
requisite da neutralidade, própria à racionalidade procedimental, qualquer fór-
mula de legitimação para conceitualizar normas e regras de justiça, quer moral
quer política, estaria condenada ao fracasso.482
No referencial da teologia política, Rosenzweig menciona que a estrutu-
ra da lei hebraica articula quatro noções de justiça: uma dimensão jurídica,
juridical (din), propriamente dita; uma dimensão de justiça, o justo (justiciel);
uma dimensão de compaixão (compassionel) (rahmanout) e por fim, uma dimen-
são de gratuidade, de dom, gift, (hessed).483 O primeiro elemento é a dimensão
jurídico-politica. O jurídico (din) já é ele próprio uma reparação permanente,
imprime a ordem, a medida, a sentença. O din significa a necessidade da univer-
salização da regra. O momento imprescindível do jurídico que impede o anar-
quismo da atomização, o direito-din que imprime o rigor, a estrita e imperativa
proporcionalidade. É fundamental para durabilidade e estabilidade da ficção ju-
rídica da justiça. “O rigor do direito constitui a garantia de que a abertura não-
-perecível para seu além, a gratuidade, não seja a aniquilação e destruição do
mundo. Criando obstáculo, o direito condensa uma reserva de positividade que
permitirá somente a partida não-caótica para a compaixão e a misericórdia.”484
A segunda noção, o justo (justiciel), já é uma reparação, na medida em que
incide sobre as eventuais negociações ou falta de justiça, opera a falha da justiça
como direito. Diz respeito aquilo que o direito negligenciou ou produziu como
efeito involuntário. Visa amortizar o desvio produzido pelo próprio normativo.
O melhor vocabulário que expressa o justiciel é a equidade, a instância redistri-
butiva. O justiciel seria o equitativo hebraico comparável ao seu homólogo aris-

482 Cf. ASSY, Bethania. Ética, responsabilidade e juízo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015. Ver
particularmente: imaginação política, teoria do juízo político e sentimento de injustiça.
483 Cf. ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005.
484 BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique. Temps historique et temps vécu. Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 2001, p. 174.

217
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

totélico, muito embora transborde a estrita função de ponderação pela medida


encontrada. Nada garante com precisão a delimitação destas duas zonas, do
jurídico (din) e do justo (justiciel). A lei opõe o fluxo contínuo e a multiplicidade
cambiante à estabilidade de uma ordem. A lei faz sentido justamente onde exis-
te o desvio. “A questão do justo é o horizonte messiânico que move o direito. Ele
redimensiona todos os decretos e todas as prescrições segundo a temporalidade
do futuro e abre, assim, o julgamento sobre sua própria redenção, sobre a alteri-
dade radical de seu amanhã, sempre matricialmente misericordioso.”485
Estas duas dimensões din-justiciel operam na temporalidade da reparação
procedimental. A compensação segundo o enquadramento processual, uma
compensação abstrata e generalizadora que calcula a justiça e repara a injustiça.
Corre permanente risco de fixação da justiça do jurídico, este último, o lócus no
qual a justiça é “feita uma vez por todas”, materializada pelo direito. Na tempo-
ralidade da reparação, fixa-se o objeto de enquadramento e enraíza-se em certa
medida a repetitividade. Uma teoria da injustiça se localiza na brecha destas duas
dimensões, entre normatividade regulativa da reparação e ética de princípios.
Não resta dúvida de que a noção legal de razoabilidade equitativa de re-
paração funciona como a principal fundação para princípios legais de justiça.
Entretanto, dificilmente releva o imperativo factual do fenômeno de injusti-
ça, que antes de ser uma questão de racionalidade, é uma questão de sofri-
mento irrepresentável e, por consequência, mobiliza uma parcela considerável
de impossibilidades de reparação.486 No limite desviante do justiciel, tem-se a
passagem do ontológico ao ético, no qual figura a terceira noção da justiça
da lei hebraica: o compassivo, a benevolência, o compassionel, (rahmanout). A
necessidade do encontro com a singularidade suprimida pelo julgamento, o
momento de reedificação. E por consequência, a passagem da ética para polí-
tica: o compromisso com o esse sujeito. Paradoxalmente, o rigor da lei (din) é
a garantia de que a abertura para esse imprevisível não seja a aniquilação de
destruição da ordem. O desvio (a dimensão irrepresentável deste sujeito) separa
e ao mesmo tempo aproxima o direito e a benevolência, sem, contudo, supri-
mir a irrepresentabilidade que permanece estrutural entre eles. É justamente

485 BENSUSSAN, Gérard. Ob. Cit., p. 175.


486 Cf. LEVINAS, Emmanuel. Totalité et Infini - Essai sur L’s Exteriorité. Paris: Martinus Nijhoff, 1971.
Ver também: CRITCHLEY, Simon. The Ethics of Deconstruction: Derrida and Levinas. Edinburgh:
Edinburgh University Press, 1990.

218
Direito e Emancipação – Volume I

a potência do perpétuo desequilíbrio entre rigor e benevolência, na sua sin-


gularidade, que mantém a possibilidade de produzir estabilidade e renovação.
A meta-realidade jurídica, sua promessa prescritiva normativa, convoca uma
suspensão, que não é nem ficção jurídica contrafática nem resultado de con-
venção.487 Aqui a justiça apresenta a contradição de ser ao mesmo tempo uma
simbologia que operar com e contra o direito, imprime o momento de julgar
o injustificável quando esse aparece justificado pela regra geral.488 Segundo
Bensussan, a benevolência consiste, “segundo sua primeira significação e sua
etimologia, em dar ao direito um amanhã (mahar) [...] permite que o julgamento
não seja feito segundo princípios rígidos totalmente estranhos aos sentimentos
das partes.”489 A temporalidade dos eventos singulares de injustiça não se re-
duz ao tempo do apelo e do recurso. Evoca uma exterioridade do tempo, que
mantém o direito a espera do justo. É uma exterioridade que, ao mesmo tempo,
conserva uma tensão com a interioridade das regras técnicas e procedimentais,
afim de não sucumbir a uma idealidade ineficaz de uma transcendência vazia.
De certa forma, é a própria promessa contrafática das regras que imprime uma
marca rigorosa ao tempo na espera do justo.490
A reparação, vista pelas lentes de Rosenzweig, nega a racionalidade ponde-
rativa como capaz de abolir ou igualar às fraturas e falhas da lei universal (din);
como figura, via de regra, delineada pela medida equitativa do justo meio. Lei
e reparação implicam necessariamente em uma ligação com outra dimensão da
justiça, ligada à ética da alteridade, uma ética na qual a face do outro é insubs-
tituível. Uma vez que é impossível calcular a realidade de um sofrimento ou a
verdade de uma aflição, a justiça se converte em uma invocação. De forma que o
grito de injustiça é uma invocação que qualifica uma ausência, o dom (Hessed),
que dá voz a narrativa testemunhal, dá voz à dor e ao clamor inenarrável.
Na temporalidade da benevolência e do dom opera a temporalidade que
mais se acerca da urgência diante do sofrimento e violência da injustiça social. O

487 CAPUTO, John D. Demythologizing Heidegger. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press,


1993, p 191.
488 BENSUSSAN, Gérard. Le temps messianique. Temps historique et temps vécu. Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 2001, p. 177
489 BENSUSSAN, Gérard. Ob. Cit., p. 178.
490 Idem, ibidem. Cf. AGAMBEN, Giorgio, The Time That Remains – A Commentary on the Letter to the
Romans. Translated by Patricia Dailey, Stanford: Stanford University Press, 2005.

219
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

puro sentido de gratuidade, do dom, como virtude susceptível de negar ausência


e ocultação do sujeito que sofre aqui, agora. A singularidade de todo sujeito é
expressão da humanidade em cada sujeito da injustiça social, extrapola a medida
proporcional aristotélica do legal e do equilíbrio relativo do todo com as parte.491
O dom é a textura do justo como possibilidade constante de uma fratura na
história procedimental do progresso. A marca de uma filosofia da exterioridade,
o dom (Hessed) é a resposta diante da impossibilidade da reparação. Levinas,
afinado à leitura de Rosenzweig, descreve o dom, a doação como o despojamento
diante do outro: “em todas as situações nas quais a urgência imediata de fazer se
impõe diante da temporalidade de um acordo, é preciso inventar-lhe um ato, uma
intervenção, uma resposta, da qual a regra não está inscrita em nenhum dever.”492
Opera uma espécie de sombra etimológica, que cria uma duração ética do tempo.
A reapropriação e a restituição aperfeiçoam a lógica de um sistema no qual
a justiça é articulada a partir do modelo de dívida, compensação e extinção.
Essa lei de propriedade incide sobre um juízo que visa, via de regra, o retorno à
instância doadora. Já uma diacronia do tempo, uma dobra no tempo, permite a
reflexão sobre justiça como uma dimensão descomedida, como gratidão do dom.
Essa gratitude promove uma abertura, uma disjunção em todo presente.493 O dom
(Hessed, gift) significa a impossibilidade de dimensionar (precisar) e reparar o so-
frimento da injustiça. Essa impossibilidade de mensurar, representar e reparar o
sofrimento da injustiça social carrega o imperativo de amor, da kardia.494 O sofri-
mento mesmo do irrepresentável da injustiça revela a sua exigência mais radical:
um salto em direção a um sujeito em particular em frente de mim, aqui e agora,
seja familiar ou estranho, adversário ou amigo.495 O amor para com o sofrimento
do outro ultrapassa tanto abstração como identidade política.

491 A clássica tradição de justiça distributiva embasada em Aristóteles, que fundamenta as teorias de
justiça, cujos autores mais representativos já foram anteriormente mencionados.
492 LEVINAS, Emmanuel, Totalité et Infini - Essai sur L’s Exteriorité. Paris: Martinus Nijhoff, 197, p. 90.
493 Cf. CRITCHLEY, Simon, The Ethics of Deconstruction: Derrida and Levinas. Edinburgh: Edinburgh
University Press, 1990.
494 Ver particularmente: COSTA, Jurandir Freire, O ponto de Vista do Outro. Rio de Janeiro: Garamond,
2010; CAPUTO, John D. Demythologizing Heidegger. Bloomington/Indianapolis: Indiana University
Press, 1993; Ver também: CAPUTO, John. The Weakness of God – A Theology of the Event.
Bloomington: Indiana University Press, 2006.
495 Cf. CRITCHLEY, Simon, The Ethics of Deconstruction: Derrida and Levinas. Edinburgh: Edinburgh
University Press, 1990.

220
Direito e Emancipação – Volume I

4.1.5 A força da justiça: a responsabilidade pelo outro


O quinto e último componente para uma epistemologia da injustiça é as-
sim o outro concreto irredutível da injustiça e a demanda infinita por respon-
sabilidade que ele evoca.496 Como anteriormente mencionado, a articulação de
uma fenomenologia da injustiça social se situa entre a normatividade e ética.
Na demanda por responsabilidade a moralidade abstrata prescritiva encontra
sua materialização na ética da alteridade e da responsabilidade com o outro. A
fim de articular dois níveis de responsabilidade, reproduzo a questão elaborada
por Caputo em relação a responsabilidade da Kardia que vincula o eu e o outro:
“O que nos interpela quando somos convocados a fazer justiça?”497
O primeiro nível de responsabilidade implica na dimensão de como cada
um de nós responde à emergência do sofrimento singular concreto e intolerável
do outro da injustiça social, aqui e agora. Uma margem substancial e emblemá-
tica dos sujeitos de invisibilidade social e política permanece suspensa sob a po-
sitividade inclusiva normativa abstrata ou sob o vocabulário ontológico da uma
autônoma da vontade, do livre-arbítrio, ou mesmo da classificação específica
de pertença cultural. O sujeito da injustiça tem uma face particular, cada um
em sua singularidade determinada. As vulnerabilidades de classe, gênero e raça
fornecem a substância de párias, não-sujeitos, despossuídos, invisíveis sociais,
econômicos e políticos dos subúrbios e favelas das grandes periferias, indivídu-
os marginalizados dos movimentos sociais, os sem-nome de confrontos com a
polícia, os moradores de rua, os imigrantes ilegais, para citar alguns exemplos
notórios de tantas subjetividades não representadas nacionais e supranacionais,
que passam a margem do debate universalistas versus multiculturalistas. Como
cada um de nós responde ao ser interpelado pelo sujeito da injustiça social?498
Costa, citando Caputo, ressalta qual seria o perfil do sujeito implicado no mito

496 Cf. LEVINAS, Emmanuel, Totalité et Infini - Essai sur L’s Exteriorité. Paris: Martinus Nijhoff, 1971. Ver
também as obras já citadas de John Caputo e Jacques Derrida.
497 [“What is that which call us when we are asked for justice?”]. CAPUTO, John D. Demythologizing
Heidegger. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press, 1993, p. 192.
498 Outro aspecto a ser considerado é justamente como o sujeito da injustiça social é construído cultural,
histórica e socialmente como sendo, o inimigo, o bárbaro, o feio, o bruto, o selvagem, o não-civilizado,
os damnés de la terre; ou para usar um vocabulário civilizatório: os marginais, os viciados, os fora-da-
lei, os loucos, os não-civilizados, os ilegais, etc. Cf. COSTA, Jurandir Freire. O ponto de vista do outro.
Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

221
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

da Justiça Hiperbólica, que tem a noção de Kardia como central. “O manda-


mento [de kardia], como tal, não tem conteúdo específico. [...] Ele é instituição,
na consciência já aberta ao horizonte da alteridade, de uma relação efetiva ao
absolutamente Outro. [...] Ora, é esta relação que Rosenzweig chama amor.”499
Quando estamos diante do sofrimento do outro, o que está em pauta é a deci-
são ética. A dimensão da responsabilidade face a injustiça social que possui um
rosto concreto, irreduzível, uma urgência face a vida precária do outro singular.
O segundo nível de responsabilidade corresponde à dimensão coletiva de
como cada um de nós reage diante da injustiça, se considerarmos uma con-
cepção não-identitária de pertencimento, ou seja, como membro de uma co-
munidade sem comunidade, como parte de uma identidade sem identidade.500
Nomeamos de uma ética política pós-identitária dos afetos (do amor), um tipo de
experiência de amor que nos move a responder ao sofrimento do outro por meio
de um agir politico em conjunto. Aqui a terminologia de Badiou sobre o amor
inspira o que nomearia de uma fidelidade à injustiça. O evento de injustiça so-
cial apela para a imperativo de ser capaz de um trabalho fiel no enfrentamento à
injustiça. É um trabalho de amor, um trabalho que nos ultrapassa, que exprime
e excede o próprio sujeito. Agir politicamente em conjunto contra a injustiça
social situa a resistência do amor, e do trabalho do amor, no núcleo da respon-
sabilidade para com o outro.
Ainda acompanhando às inferências de Costa sobre a justiça hiperbólica
de Caputo, o sujeito comprometido com a kardia é compassivo à “democracia
por vir”, uma comunidade sem comunidade, como uma identidade sem iden-
tidade, no qual o outro e eu estão ligados por uma imprescindibilidade. E cito
Costa: “Após o longo percurso, voltemos à interrogação inicial: qual a força
que legitimaria a fonte extralegal da justiça? Entendida como ‘mito hiperbóli-
co’, como ‘democracia por vir’ e como experiência da ‘kardia’.” Conclui Costa:
“pode-se dizer que a força da justiça reside na subjetividade responsável pelo
amor ao Outro.”501

499 COSTA, Jurandir Freire. O ponto de vista do outro. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 120.
500 Cf. AGAMBEN, Giorgio. La Comunidad que Viene. Traducción de José La Rocca. Valencia: Pre-
Textos, 1996 [La Comunità che viene, 1990].
501 COSTA, Jurandir Freire. O ponto de vista do outro. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 275. Cf.
CAPUTO, John & VATTIMO, Gianni. After the Death of God. Edited by Jeffrey W. Robbins. New
York: Columbia University Press, 2007, p. 126-127.

222
Direito e Emancipação – Volume I

Há, no enfrentamento da responsabilidade para com o outro, um ponto


crucial que opera na ambiguidade dentro/fora da legalidade da justiça. Figura
um estado constitutivo interminável de tensões entre a manutenção necessária
de regulação normativa e o igualmente essencial imperativo do evento urgente
e singular de injustiça. Aqui, a fidelidade à injustiça pode significar a transgres-
são à lei, e isso traz um protagonista incontornável: a violência. Pode significar
à violência antagônica, ou seja, a violência contra a lei ou a violência contra a
injustiça. Em outras palavras, no limite, por assumir a responsabilidade com o
outro, impõe-se o conflito mais primitivo do direito: o que, como, quando e até
que ponto, devemos, somos capazes, de sacrificar: o direito ou a vida?502
Finalizamos assinalando algumas questões em aberto. Como se exprimi-
ria uma gramática da reparação diante de uma nova epistemologia do sujeito
da injustiça? É possível articular a noção de igualdade em termos de política
radical da alteridade? Por fim, qual a semântica dos direitos humanos em uma
filosofia da justiça que priorize epistemologicamente o sujeito e sua experiên-
cia concreta de injustiça?

4.2 O sujeito da injustiça: ontologia política


entre captura e empoderamento
O debate teórico corrente em torno do sujeito da justiça reproduz as mes-
mas dicotomias já mencionais das teorias de justiça. De fato, o significativo
volume teórico acerca do vocabulário atual da biopolítica já nos permite, quer
seja enfrentar a terminologia normativa kantiana, mas conhecida como justiça
procedimental, quer seja identificar a vida nua das políticas de inclusão seleti-
vidade. Em termos de elaboração e evolução de um arcabouço conceitual que
denuncie as capturas biopolíticas das vidas vulneráveis a fim de considerar e
identificar os sujeitos da injustiça socioeconômica, um percurso teórico de fôle-
go já fora traçado. Em larga escala, referindo-se, entre tantos outros autores, por
exemplo, a rica terminologia de Michel Foucault, Giorgio Agamben ou Judith

502 Cf. BENJAMIN, Walter. “Critique of Violence”. Selected Writings. Vol.1. Cambridge: Belknap, 1996;
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004; e DERRIDA, Jacques. “Force of
Law: The Mystical Foundation of Authority” em: Deconstruction and the Possibility of Justice, Cardozo
Law Review, Vol. 11, July/Aug. 1990, Numbers 5-6, pp. 919-1039.

223
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Butler acerca do nomos biopolítico das vidas insignificantes e matáveis.503 A


abordagem afiada de Agamben sobre a precariedade da vida dos sujeitos social
e politicamente invisíveis denuncia os mecanismos históricos da produção da
biopolítica e o aparato jurídico-político que os possibilita e legitima. Invisibi-
lidade social e política endossadas pelo Estado de direito pode atingir níveis
pouco plausíveis ao imaginário social civilizatório das democracias deliberati-
vas; refere-se literalmente a um Estado que adequa em sua estrutura de gover-
nabilidade biopolítica a invisibilidade ou mesmo aniquilação do próprio corpo
do sujeito, este último ponto de existência e resistência.504
No entanto, pretendemos pontuar outra dimensão presente na gramática
de fenomenologias da injustiça social, que remete à compreensão da conexão
entre subjetivação, experiência fática de injustiça e ação política. A principal
reivindicação é que, para além de captura biopolítica, nas experiências concre-
tas de injustiça, pode operar também um processo de empoderamento político
dos sujeitos de injustiça social. Ao invés de focar em diagnósticos biopolíticos
das vítimas de eventos de massacres geopolíticos, de grave violações de direitos
humanos de conjunturas governamentais ou sistemas econômicos, privilegia-
mos o sujeito da injustiça para refletir sobre certos níveis de produção de subje-
tividade, criação de empoderamento e resistência política por parte dos sujeitos
vulneráveis. A questão central deste tópico é precisamente ressaltar que, em
experiências concretas de injustiça socioeconômica, pode se dá também um
movimento de constituição de subjetivação política capaz de não só resistir à in-
visibilidade sociopolítica, mas também, operar, simultaneamente, um processo
de empoderamento do sujeito e a promoção de sua ação política.
Uma das principais inscrições no processo de formação de subjetividade
política privilegiadas aqui é justamente valorizar o estatuto epistemológico da
experiência mesma, factual, concreta, de injustiça e o processo de subjetivação
do sujeito político. Nesse caso, a relação entre subjetividade e as próprias expe-
riências de injustiça socioeconômicas as quais os sujeitos estão submetidos, ou

503 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – Sovereign Power and Bare Life. Stanford: Stanford University
Press, 1998.
504 Cf. FOUCAULT, Michel, Historia da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução Maria Thereza da
costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988; Microfísica do Poder,
Tradução de Roberto Machado, Rio de Janeiro: Graal, 1979. Ver ainda os cursos ministrados por
Foucault no College de France, publicado posteriormente como: Em defesa da sociedade. São Paulo,
Martins Fontes, 20003.

224
Direito e Emancipação – Volume I

seja, marginalização, morte social e invisibilidade política. Ao assumir que nem


o sujeito normativo abstrato nem o arcabouço multiculturalista de identidades
fixas podem preencher de forma satisfatória a lacuna representacional diante da
experiência fática da injustiça social, nos leva a indagar seus anthropos. Trata-se
de destacar o processo de empoderamento e subjetivação política que se dá na
própria performance da ação política, para além da política de representação,
seja de matriz neokantiana seja de matriz neo-hegeliana.
Subjetivação e ação política operam concomitantemente na constitui-
ção da subjetividade e das demandas de formação e atuação da comunidade
política. Traz à tona um novo protagonista na abordagem da singularidade e
da comunidade política: o processo mesmo de subjetivação política, de empo-
deramento do sujeito da injustiça socioeconômica, para além de sua captura
biopolítica. Há nisto uma desconsideração proposital da agenda conceitual da
teoria do reconhecimento, que opera a relação entre subjetividade e comuni-
dade política, cujo escopo de análise privilegia às experiências individuais e
coletivas de luta e ausência de reconhecimento. Tais teorias de fato possuem
um potencial significativo de desvelamento dos processos de sofrimento subje-
tivo por indeterminação e daí o valor da luta pelo reconhecimento nas esferas
sociais.505 Entretanto, a prerrogativa de análise deste texto é distinta, prioriza
uma dimensão positiva no processo de subjetivação política do sujeito no enfre-
tamento da injustiça socioeconômica. O privilegio de análise é o estatuto epis-
temológico da experiência, do ato, da ação, do evento da injustiça, em modelar
uma subjetividade política empoderada.506

505 Cf. HONNETH, Axel. The Struggle for Recognition: The Moral Grammar of Social Conflicts. Studies in
Contemporary German Social Thought. 1st MIT Press ed edition, 1996. Ver nota supracitada.
506 Como já assinalado no início deste capítulo o principal referencial teórico aqui é a teologia política
contemporânea, e particularmente aqui, suas ilações sobre evento e subjetivação política. Uma de
suas principais referências teóricas se apoia na análise da temporalidade messiânica em Walter
Benjamin - mas também nas leituras filosóficas atuais de teologia política Paulina. Em Benjamin,
particularmente: BENJAMIN, Walter, The Arcades Project. Edited by Rolf Tiedemann, and translated
by Howard Eiland and Kevin McLaughlin, Belknap Press of Harvard University Press 2002. [Walter
Benjamin, Das Passagen-Werk. Band V, I and 2 Gesammelte Schriften. Ed. Rolf Tiedemann and
Hermann Schweppenhäuser.7 vols. Frankfurt: Suhrkamp, 1991]; BENJAMIN, Walter. “Theses on
the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and Reflections. New York: Schocken Books, 1985
[On the Concept of History/Über den Begriff der Geschichte, Gesammelte Schriften, Band I,2]. Em
relação a tradição paulina de teologia politica contemporânea, mais precisamente Giorgio Agamben e
Alain Badiou (ver nota de rodapé seguinte). Também, indiretamente: ZIZEK, Slavoj and SANTNER,

225
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

Ainda sob crédito do debate em torno da noção de evento na teologia po-


lítica dos autores Giorgio Agamben e Alain Badiou é possível articular a no-
ção de identidade, cuja base seria de uma exterioridade singular, singularidade
sem o privilégio exclusivo de propriedades identitárias intrínsecas.507 Com tal
descrição não pretendemos de modo algum desconsiderar as identidades polí-
ticas de classe, gênero e raça. Ao contrário, seguramente, o sujeito conecta-se
politicamente e constitui sua subjetividade por particularidades inevitavel-
mente emolduradas por algum tipo de base identitária. Afinal, estamos ex-
postos, situados e historicamente impulsionados a estabelecer identidades ao
longo de todo processo de socialização cultural e política. No entanto, o que
se reivindica é uma articulação de identidade como provisória, não essencia-
lizada, no sentido de que as identidades são expressas por meio da partilha de
demandas e lutas políticas concretas e pontuais, eventuais, nas quais a singula-
ridade do sujeito se modela. Não são suficientes as determinações substanciais
de quem alguém essencialmente é. O argumento central é que a subjetivação
política implica em uma performance da ação política em concerto e não por
meio exclusivo de descrição e naturalização de atributos identitários.508 No
processo de subjetivação política, a identidade está condicionada à perfor-
mance política na qual o sujeito se insere, e que, de certa forma, imprime uma
dinâmica sobre a própria identidade.
Consideremos, de forma breve, a discussão em torno da noção de singu-
laridade universal,509 um registro que opera fora do escopo do comunitarismo
identitário e das abstrações prevalecentes das teorias procedimentais. Como já

Eric. The Neighbor. Chicago: The University of Chicago Press, 2005, e mais recentemente, ZIZEK,
Slavoj. Event: Philosophy in Transit. New York, Penguin, 2014.
507 Cf. AGAMBEN, Giorgio. The Time That Remains – A Commentary on the Letter to the Romans.
Stanford: Stanford University Press, 2005 [Il tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani,
2000]; BADIOU, Alain, Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University
Press, 2003, pp. 1-15; 75-106. Ver também: AGAMBEN, Giorgio. La Comunidad que Viene. Traducción
de José La Rocca. Valencia: Pre-Textos, 1996 [La Comunità che viene, 1990]; Il Regno e la Gloria – Per
una genealogia teologica dell’economia e del governo. Homo sacer, II,2, Neri Possa Editore, 2007.
508 Cf. BUTLER, Judith, & ATHANASIOU, Athena. Dispossession: The Performative in the Political,
Cambridge: Polity Press, 2013. Para outro registro, Mignolo com a discussão sobre identidade em
política em vez de identitiy politics. Cf. MIGNOLO, Walter. “Desobediência Epistêmica: A Opção
Descolonial e o Significado de Identidade em Política.” Em: Cadernos de Letras da Uff – Dossiê:
Literatura, Língua e Identidade, No 34, pp. 287-324, 2008.
509 BADIOU, Alain. Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University Press,
2003, pp. 1-15; 75-106.

226
Direito e Emancipação – Volume I

fora mencionado, por singularidade universalizável, Alain Badiou alega o in-


verso do conjunto descritivo normalmente atribuído à universalidade abstrata.
Esta última é correntemente retratada como igualdade inominada, abolição das
diferenças, produção da semelhança formal, nas quais a noção de humanidade
opera como nossa menor diferenciação possível, para além da qual nenhuma
outra divisão é concebível. Singularidade universal depende, ao contrário, de
uma espécie de universalidade situada, modelada pelas experiências concretas
político-sociais as quais estamos conectadas.510 Esta noção deriva da centralida-
de da vida fática no processo de subjetivação. Subjetividade não reduzida a atri-
butos essencialistas/identidades, mas sim constituída pela ordem do que ocorre,
por experiências políticas concretas, não necessariamente estruturais, axiomá-
ticas ou legais, que estampa uma dinâmica sobre as identidades substancias.511
Trata-se de um processo de subjetivação política fincado na própria reivindi-
cação situada, de uma petição, apesar de não ficar reduzida substancialmente
a essa reivindicação. A experiência de alteridade autêntica, entende Badiou, é
uma singularidade universalizável, que via de regra, no mínimo exprime senti-
do e ressignifica, ou até mesmo rompe, com as particularidades identitárias.512
Este ponto conduz a questão acerca de qual concepção de universalidade
situada pode ser abordada sem implicar em uma abordagem fortemente essen-
cialista, reservada ao estreito vocabulário da política de identidade. Em um
sentido mais amplo, uma das questões centrais seria: como laços culturais, so-
ciais e políticos, a ideia de compartilhamento e pertença, podem refletir uma
dinâmica de produção de subjetividade política que escape, tanto do escopo
da essencialização da política de identidade, quanto de puro comprometimen-
to normativo abstrato?

510 Cf. BADIOU, Alain, Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University
Press, 2003.
511 Embora não seja discutido diretamente neste trabalho, as reflexões de Heidegger sobre Paulo em sua
fenomenologia da religião são cruciais. Sua descrição sobre as experiências fácticas das comunidades
cristãs primitivas historicamente se dá inicio pela proclamação. Heidegger destaca que a comunidade
é a experiência original; a forma como as relações humanas são vividas (carrying-out, Vollzug), o
modo de viver, a performance das experiências compartilhadas; ao invés das concepções clássicas de
fundação, dogma ou teoria de sociedade. Cf. HEIDEGGER, Martin. The Phenomenology of Religious
Life. Indiana: Indiana University Press, 2010.
512 BADIOU, Alain. Saint Paul – The Foundation of Universalism. Stanford: Stanford University Press,
2003, p. 11

227
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

A partir de teologia política paulina, Badiou estabelece quatro requisitos


para sua noção de verdade como uma singularidade universal.513 Primeiro, o
sujeito identitário não preexiste ao sujeito do evento politico, no sentido de
que o processo de subjetivação não se encera essencialmente às condições ex-
trínsecas de sua existência ou de sua identidade, seja requisito de classe social,
raça ou gênero. Ou seja, as identidades substanciais estão necessariamente ins-
critas em uma dinâmica de mobilização política. Segundo, é uma experiência
inteiramente subjetiva, tendo em vista que é da ordem de uma declaração que
atesta uma convicção referente a um acontecimento. Precisamente nesta eta-
pa, se identifica como o processo de subjetivação se dá na interação entre a
identidade do sujeito e a performance política a qual está vinculado. Terceiro,
a fidelidade à declaração da verdade é crucial, tendo em conta que a produção
dos significados da experiência é um processo. Badiou explicita três requisitos
conceituas da fidelidade à experiência: a convicção (fé, pistis) do sujeito no
momento da declaração; a direção, ou seja, o destinatário militante da sua
convicção (ágape, amor) no momento de sua declaração; e por fim, a força de
deslocamento que o sujeito sofre por meio da suposição do caráter de comple-
tude do procedimento de verdade (elpis, esperança). Por tanto, o processo de
subjetivação política na experiência política mesma, concreta e factual, impri-
me um forte deslocamento de sentidos, ou seja, de produção de convicções,
crenças e esperanças. O quarto e último requisito da experiência de verdade
de modo a convertê-la em singularidade universal é seu caráter anti-formal, no
sentido de se tratar de um evento que não necessariamente atenda ao conjunto
de prescrições atribuídas pelo consenso normativo.514 Corresponde a uma to-
mada de distância, de um deslocamento da concorrência discursiva produzida
pelas opiniões resultantes da mitigação da pertença, estabelecidas pelo aparato
normativo. A coragem da performance subjetiva como verdade rompe/estrutu-
ra/ressignifica a fronteira entre identidade e universalidade. A experiência da
ação política é a performance que imprime sentido à lacuna entre o sujeito das
particularidades, das identidades fixas e o sujeito da subjetivação. É a realidade
que o sujeito pode interferir, de maneira a enfatizar a subjetividade moldado
pela forma como alguém é afetado pela realidade aqui e agora, e de como o

513 BADIOU, Alain. Ob. Cit., p.15.


514 Ibidem.

228
Direito e Emancipação – Volume I

sujeito usa seu poder criativo, como conforma sua subjetividade politica, um
processo que articula convicção e expectativas.
Na performance da ação política, o sujeito é subjetivação. Uma obser-
vação significativa é a distinção que Badiou estabelece entre singularidade e
particularidade. Esta última necessariamente depende do predicativo definido
pela cercadura normativa, depende de molduras, quer sejam institucionais quer
sejam identitárias. A estrutura normativa do particular, do próprio, é estática,
na medida em que estabelece de forma determinante o grau de legitimidade do
pertencimento, de forma tanto legal quanto social. Entretanto, atuar, agir poli-
ticamente em concerto excede o vocabulário atual das políticas de identidade.
Embora claramente flanqueado por predicados identitários, particularmente o
alvo biopolítico em larga medida restrito à trilogia raça-classe social-gênero, a
singularidade política do sujeito atesta uma experiência política de empodera-
mento não reduzida às bases identitárias. Sobressalta a importância da cons-
tante abertura para possíveis designações, sentidos do que nos diferencia, da
não essencialidade de nossos próprios predicados, e da condição permanente
de abertura para uma potencialidade criativa de como o sujeito interfere na
realidade, em sua própria trajetória de subjetivação.
Singularidade como distinção política não é aqui reduzida nem ao domí-
nio restrito da identidade substancial, nem em termos de universalidade abs-
trata, mas sim por meio das lutas sociais e políticas que afetam e engajam os
sujeitos. No vocabulário, ainda do Badiou, tais acontecimentos são os exem-
plos dos eventos que estruturam as subjetividades políticas, que, como tais,
não acionam verdades substanciais, nem apenas superpõem uma autoridade
identitária, seja histórica ou comunitariamente instituída. Neste ponto, como
parte do processo de subjetivação, vale ressaltar um aspecto que parece deci-
sivo: sucede uma simetria ontológica na própria realização das ações políticas
concretas, uma dimensão ontológica política permanente que se realiza em ato.
No acontecimento político concreto, subjetivação e ação política acontecem
ao mesmo tempo. Em outras palavras, o que queremos ressaltar é que a mesma
matriz epistémica que nos agrega politicamente, nos coloca na condição de agir
em concerto, em comum, opera simultaneamente com a formação de nossas
subjetividades políticas. É precisamente este agir em conjunto como uma forma
de vida, no engajamento em uma demanda política concreta que se matiza
a singularidade. Agir em conjunto é uma forma de identidade não substan-

229
José Ricardo Cunha e Bethania Assy

cializada.515 O processo de subjetivação, por assim dizer insurgente, pode ser


descrito como subjetividades interceptadas pelo político.516 Reforça a descrição
da subjetividade política como engendrando uma tensão interna no cerne da
própria ideia de identidade. Não se trata de “curar ou superar” as identidades,
ou até mesmo meramente substituí-la por alguma outra identidade substancial.
Trata-se de ressaltar o caráter performático e dinâmico da subjetivação política
entre pertença e experiência.
Uma última consideração breve sobre o processo de subjetivação e o cará-
ter antiformalista traçado por Badiou. Como já fora anteriormente menciona-
do, na epistemologia da teologia política, o testemunho, o discurso em primeira
pessoa, aponta a disjunção na narrativa do tempo histórico progressivo e linear;
um desvio que conduz à impaciência do novo: a uma expectativa iminente
de agir, isto é, à promessa real da política.517 Essas expressões de subjetivação,
as narrativas de auto desvelamento, a linguagem compartilhada nas situações
concretas de opressão, possibilitam um domínio da política que empodera os
sujeitos. Sujeitos invisíveis de injustiça social, não calculados pela representati-
vidade e mediação normativa, figuram inapreensíveis às narrativas estruturais
do direito. Considerando que a experiência do sofrimento de injustiça social
tem com uma de suas estruturas centrais, precisamente, a auto declaração do
sujeito, seu próprio testemunho, a narrativa legal não logra apreender justamen-
te os sujeitos mais vulneráveis.518 Quanto mais invisíveis os sujeitos de injustiça

515 Aqui a comparação com o conceito de ação política e singularidade do sujeito é inevitável.
516 Em outro texto, se exemplifa o que chamamos de subjetividade insurgente, com o movimento Hip
Hop, particularmente Racionais Mc’s. Ver: ASSY, Bethania. “Soggettività Insurgent: Note Sull' Hip
Hop nelle Favela Brasiliane”. In: Giorgio de Finis; Fabio Benincasa; Andrea Facchi. (Org.). EXPLOIT
- Come Rovesciare il Mondo ad Ad Arte. 1ed. Roma: Bordeaux Edizioni, 2015, p. 872-884. Em Negro
drama, por exemplo, ao mesmo tempo que a música é uma reivindicação social e política, e um forte
argumento para a captura de biopolítica, há um ponto de guinada, em que a mesma situação que
oprime, produz libertação e significação de subjetivação política.
517 Cf. BENJAMIN , Walter. “Theses on the Philosophy of History” in Illuminations. Essays and
Reflections. New York: Schocken Books, 1985 [On the Concept of History/Über den Begriff der
Geschichte, Gesammelte Schriften, Band I,2]; ROSENZWEIG, Franz. Philosophical and Theological
Writings. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc., 2000; ROSENZWEIG, Franz.
The Star of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005, p.57.
518 Embora de absoluta relevância, as gramáticas de redistribuição e reconhecimento não abordam
a produção de subjetividade e sua força testemunhal na ação política. Seja na forma de paridade
de participação (Fraser), seja na forma de sofrimento por indeterminação (Honneth), ambas
permanecem circunscritas às demandas normativas por justiça e à gramática do reconhecimento. Ver

230
Direito e Emancipação – Volume I

social, mais precarização pela representatividade e mediação normativa, mais


inapreensíveis ou camuflados às narrativas do direito. Narrativas singulares na
performance política confirmam a potência radical da linguagem testemunhal,
extrapolam o horizonte normativo de representações. Neste último, a princi-
pal descrição da injustiça é, no máximo, distribuição métrica, um vocabulário
recorrente na justiça normativa. A petição deste anúncio, dessa palavra im-
possível de adequação, é a potência de uma voz “como se” sem mediação, uma
manifestação política temporalmente imprevisível de palavras e atos no sentido
de um potencial processo de empoderamento subjetivo. A narrativa mantém
presente em ato um compromisso contínuo de possíveis novas expectativa de
significação de passado e futuro, de história e prospectividade. Assim, pronun-
ciar, dar testemunho, endossa uma espécie de dimensão auto constituinte de
narrativa política de subjetivação. Essa é uma maneira de expressar a possibi-
lidade de expandir uma experiência potencialmente universal, mas necessa-
riamente liberada em cada individuação, não como uma regra universal, mas
como um evento, como um ato único; como um ato de singularidade universal.

particularmente: FRASER, Nancy, & HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition? A Political-


Philosophical Exchange. London: Verso, 2003. Para uma bela contribuição sobre como o sofrimento
por indeterminação hegeliana opera como central na teoria do reconhecimento de Honneth. Cf.
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