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Organização Geral

Dr. Charliton José dos Santos Machado


Dra. Idalina Maria Freitas Lima Santiago
Dra. Lia Machado Fiuza Fialho
Dra. Maria Lúcia da Silva Nunes

Comissão Científica
Dr. Alcebíades Costa Filho
Dr. Charliton José dos Santos Machado
Dra. Cristiana Costa da Rocha
Dra. Danusa Mendes Almeida
Dr. Emanoel Luís Roque Soares
Dra. Gildênia Moura de Araújo Almeida
Dra. Iara Maria de Araújo
Dra. Idalina Maria Freitas Lima Santiago
Dr. José Albio Moreira de Sales
Dra. Josilene Barbosa do Nascimento
Dr. Juarez José Tuchinski dos Anjos
Dra. Keila Andrade Haiashida
Dra. Lia Machado Fiúza Fialho
Dra. Maria Lúcia da Silva Nunes
Dr. Raimundo Nonato Moura Oliveira
Dr. Robson Carlos da Silva
Dra. Salânia Maria Barbosa Melo
Dra. Samara Mendes Araújo Silva
Dr. Sebastião Costa Andrade
Dra.Vania Maria Ferreira Vasconcelos
Dra. Zuleide Fernandes de Queiroz
Comissão Organizadora

Andrea Doria Sena de Castro

Bruna Germana Nunes Mota

Djane Maria Rocha Victor

Erbenia Maria Girão Ricarte

Fernanda Maria Sampaio Costa

Francisca Genifer Andrade de Sousa

Franscisca Mayane Benvindo dos Santos

Helena de Lima Marinho Rodrigues Araújo

Juliana Lara Pereira Silva

Karla Colares Vasconcelos

Larissa das Chagas Cardoso

Larissa Meira Vasconcelos

Lorena Brenda Santos Nascimento

Lourdes Rafaella Santos Florêncio

Michele Dantas Barbosa

Monique de Souza Freitas

Roberta Lúcia Santos de Oliveira

Scarlett O'Hara Costa Carvalho

Victor Ricardo de Sousa Braga Junior


V Seminário Nacional Gêneros e Práticas Culturais
Fortaleza – CE | 26 a 28 de Novembro | 2015
© 2015 Copyright by, Lia Machado Fiuza Fialho, Charliton José dos Santos Machado e
Cristine Brandenburg (ORGANIZADORES)

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


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TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

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Coordenação Editorial | Lia Machado Fiuza Fialho


Projeto Gráfico | Lorena Brenda Santos Nascimento

Ficha Catalográfica
V Seminário Nacional Gêneros e Práticas Culturais / Lia Machado Fiuza Fialho,
Charliton José dos Santos Machado e Cristine Brandenburg (Orgs.).- Fortaleza:
EdUECE, 2015.
Conteúdo: artigos do V Seminário Nacional Gêneros e Práticas Culturais.
Fortaleza –CE, nov. 2015.
ISSN 2447-5416
1. Gênero. 2. Práticas Culturais. 3. Feminismos. 4. Cidadania. I. Fialho, Lia Machado
Fiuza. II. Machado, Charliton José dos Santos. III . Brandenburg, Cristine.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
Reitor
José Jackson Coelho Sampaio

Vice-Reitor
Hidelbrando dos Santos Soares

Editora da UECE
Erasmo Miessa Ruiz

Conselho Editorial
Antônio Luciano Pontes Lucili Grangeiro Cortez
Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes Luiz Cruz Lima
Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso Manfredo Ramos
Francisco Horácio da Silva Frota Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Francisco Josênio Camelo Parente Marcony Silva Cunha
Gisafran Nazareno Mota Jucá Maria do Socorro Ferreira Osterne
José Ferreira Nunes Maria Salete Bessa Jorge
Liduina Farias Almeida da Costa Silvia Maria Nóbrega-Therrien

Conselho Consultivo
Antônio Torres Montenegro | UFPE
Maria do Socorro Silva Aragão | UFC
Eliane P. Zamith Brito | FGV
Maria Lírida Callou de Araújo e Mendonça | UNIFOR
Homero Santiago | USP
Pierre Salama | Universidade de Paris VIII
Ieda Maria Alves | USP
Romeu Gomes | FIOCRUZ
Manuel Domingos Neto | UFF
Túlio Batista Franco |UFF
SUMÁRIO

ARTIGOS COMPLETOS

A FORMAÇÃO FEMININA PARA DOCÊNCIA: RECORDAÇÕES DO


MAGISTÉRIO
Silvia Helena de Sá Leitão Morais Freire | 25

A HISTÓRIA DA FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO ENTRE AS ESFERAS


PÚBLICA E PRIVADA AO LONGO DO SÉCULO XIX
Ana Carla Menezes de Oliveira | 35

A INSERÇÃO DO FEMININO NA GUARDA MUNICIPAL NO CARIRI


CEARENSE
Gutierrez Alves Lôbo
Zuleide Fernandes de Queiroz | 50

ALAGOINHAS-BA E CENAS EDUCATIVAS ATRAVÉS DA PRODUÇÃO


CONTÍSTICA DE JOSÉ OLÍVIO
Gildete Souza de Jesus Lisboa
Maria José de Oliveira Santos | 59

AS CONTRIBUIÇÕES DE LUIZ OSWALDO SANT`IAGO MOREIRA DE


SOUZA À EDUCAÇÃO SUPERIOR NA TERRA DOS MONÓLITOS
Keila Andrade Haiashida | 69

AS DRAMISTAS NO THEATRO PEDRO II: PRÁTICAS CULTURAIS E


ESTÉTICAS
Hugo de Melo-Rodrigues
Tânia Maria de Sousa França
Cicera Sineide Dantas Rodrigues | 79
AS PRÁTICAS EDUCATIVAS DA PROFESSORA OLÍVIA PEREIRA NA VILA
DE SÃO MIGUEL DE JUCURUTU/RN (1928-1929)
Nanael Simão de Araújo
Maria Arisnete Câmara de Morais | 89

AS QUESTÕES DE GÊNERO NO COTIDIANO ESCOLAR


Ana Célia Sousa Freitas
Roberta Lúcia Santos de Oliveira | 100

AS “TIAS” DA DITADURA: AS MARCAS DO MOBRAL NA DOCÊNCIA


Luciana Kellen de Souza Gomes
Lourdes Rafaella Santos Florencio | 109

CURSO DE MAGISTÉRIO (ANOS 1970-1980): MOLDANDO MENTES E


CORPOS FEMININOS
Cristiane Souza de Menezes | 120

BOLSA EDUCAÇÕES: UMA REALIDADE PARA AS MULHERES DO


PROGRAMA SOCIAL EM MANAUS
Célia Maria Nascimento de Oliveira | 130
EXPERIÊNCIAS DE PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: O
ACRÉSCIMO DA EDUCAÇÃO NO RIO GRANDE DO NORTE E NA PARAIBA
(1900-1928)
Débia Suênia da Silva Sousa
Francisco Anderson Tavares de Lyra
Maria Arisnete Câmara de Morais | 140

FEMINISMO: LUTA POR IGUALDADE


Francisca Cinthia Oliveira Nascimento
Gustavo Mendes Oliveira
Maria Iracema Pinho de Sousa | 153

HELENA BOTELHO E JOSEFA BOTELHO, EDUCADORAS EM DESTAQUE


(RN, 1910-1920)
Janaina Silva de Morais
Maria Arisnete Câmara de Morais | 164

IDENTIDADE, GLAMOUR E LACRAÇÃO: A NOVA GERAÇÃO DRAG


QUEEN DE FORTALEZA
Amanda Araujo Mendes
Lilith Feitosa Acioly
Mariana Brito Silva | 174

JOSÉ DA SILVA COUTINHO (PADRE ZÉ): EDUCAÇÃO, DEVOÇÃO E


POBREZA
(1935 – 1973)
Aline C. Paz Almeida
Janine da Guia Costa | 183

LÚCIA DE FÁTIMA SILVA: EDUCADORA NA ZONA RURAL EM


GURINHÉM/PB
Luciane Carneiro de Souza
Tatiana de Medeiros Santos
Haquel Myriam de Lima Costa Palhari | 192

PALMARES NO FEMININO: A MULHER NOS MOCAMBOS DE PALMARES


(O QUE DIZ A DOCUMENTAÇÃO E A HISTORIOGRAFIA?)
Maria Carolina C. Barbosa | 200

NATURALIZAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS(AS) DOCENTES


NO MUNICÍPIO DE GOIÂNIA
Flávia Rodrigues Alves de Freitas
Lúcia Helena Rincón Afonso | 215
NILZA FERNANDES DE SOUZA: EDUCADORA DO INSTITUTO MODERNO
EM MAMANGUAPE/PB
Thais Jussara de Oliveira Guedes Isidro
Marcia Cristiane Ferreira Mendes
Tatiana de Medeiros Santos | 227

O COTIDIANO DE TRABALHADORAS NEGRAS DO BAIRRO RUA NOVA.


(1960-1970)
Flávia Santana Santos
Emanoel Luis Roque Soares | 238

O JORNAL PEDAGÓGICO COMO DISPOSITIVO DE FORMAÇÃO DA


MULHER (1921-1922): REPRESENTAÇÕES E CONCEPÇÕES DA
EDUCAÇÃO FEMININA NA PARAHYBA DO NORTE
Alanna Maria Santos Borges
Shirley Targino Silva
Stelyane de Oliveira Melo | 246

OS GRÊMIOS ESTUDANTIS NA PARAHYBA DO NORTE: ASPECTOS


HISTÓRICOS, POLÍTICOS E EDUCACIONAIS 1880\1930
Favianni da Silva
Ursula Lima Brugge | 257

PARTICIPAÇÃO DA MULHER NO COMANDO TÁTICO MOTORIZADO


(COTAM) EM FORTALEZA
Helena de Lima Marinho Rodrigues Araujo
Karla Vasconcelos Colares
Maria Assunção de Lima Marinho | 270

REDES ESGARÇADAS – TRAJETÓRIAS FEMININAS NUMA FAVELA DE


NITERÓI
Patricia Zürcher | 283

RELAÇÕES DE GÊNERO NO CARNAVAL OITOCENTISTA DE PORTO


ALEGRE
Caroline P. Leal | 294

RELEVÂNCIA SOCIAL DO ESTUDO SOBRE MULHERES CAPOEIRISTAS


NO ESTADO DO CEARÁ
Sammia Castro Silva | 302

A BOEMIA E AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA OBRA DE GILBERTO


MILFONT
Ana Luiza Rios Martins | 311

A DOMINAÇÃO MASCULINA: JUGOS DA MORAL E DA FIDELIDADE


Hermano de França Rodrigues | 320

A REVISTA PR’A: MODELOS E PARADOXOS FEMININOS


Ewennye Rhoze Augusto Lima
Rafael Porto Ribeiro
Raquel da Silva Guedes | 330

AMADOS NAMORADOS: A PREVENÇÃO DE SOCIABILIDADES JUVENIS


NA IGREJA CATÓLICA
Cícero Edinaldo dos Santos
Allana de Freitas Lacerda | 337

CARTAS AO DIRETOR DA CASA DOS EDUCANDOS ARTÍFICES DA


PARAÍBA
Vanessa Gonçalves Lira | 347

CENÁRIO DE ALAGOINHAS-BA/SÉCULO XX: MARIA FEIJÓ (ALECRIM


DO TABULEIRO, 1972)
Maria José de Oliveira Santos | 357

ENTRE A DÚVIDA E O DELÍRIO: OS FANTASMAS DA TRAIÇÃO


Tatiana Fabíola Ferreira Dias
Jeane Lima Aragão
Hermano de França Rodrigues | 367

ESCRITAS DO CORPO FEMININO: UMA POÉTICA DA LIBERDADE EM


VIOLETA FORMIGA
Rayana Benicio de Oliveira
Nadja Claudinale da Costa Claudino | 377

ESCRITOS DE E PARA MULHERES NO SÉCULO XIX: A REPRESENTAÇÃO


DA MULHER NO JORNAL DAS SENHORAS
Dayanny Deyse Leite Rodrigues
Dêis Maria Lima Cunha Silva | 390

GÊNERO DO FEMININO NA MÍDIA ON LINE: ANALISE DE IMAGEM DO


SITE EGO
Munique de Souza Freitas
Bruna Germana Nunes Mota
Cristine Brandenburg | 400

HOMOEROTISMO PÓS-MODERNO: NA CONTRAMÃO DO DESEJO


Eduardo Souza Falcão
Hermano de França Rodrigues | 411

IGUALDADE DE GÊNERO EM QUADRINHOS: FRONTEIRAS DO


CONSTRANGIMENTO NOS X-MEN
Alan Araújo Duarte
Daniel Camurça Correia
Yasmim Fernanda de Lima Holanda | 421

IMAGENS E CONTEÚDOS PARA O FEMININO NAS CAPAS DA REVISTA


QUERIDA NOS ANOS 50
Raquel do Nascimento Sabino
Thayana Priscila Domingos da Silva
Valdegil Daniel de Assis | 432

INDÍCIOS DE ESCRITA FEMINININA NA IMPRENSA DA PARAÍBA:


TEXTOS NO JORNAL LIBERDADE (1930)
Stelyane de Oliveira Melo
Maria Lúcia da Silva Nunes | 441

JOVEM, BONITO E VIRIL: PROBLEMATIZANDO AS CAPAS DA


G MAGAZINE (1997 – 2007)
Fábio Ronaldo da Silva
Raquel da Silva Guedes
Rafael Porto Ribeiro | 454

LIGAÇÕES PODEROSAS: DISCUSSÃO DE GÊNERO ENTRE JUVENTUDES


NO WHATSAPP
Amanda Nogueira de Oliveira | 465

MAL-ESTAR E HISTERIA: AS MULHERES SOB A ÓTICA FREUDIANA


Rafael Porto Ribeiro
Ewennye Rhoze Augusto Lima
Fábio Ronaldo da Silva | 476

MI CASA ES SU CASA, QUERIDO: EXTRAVIOS DA CARNE E DO DESEJO


Rafael Venâncio
Hermano de França Rodrigues | 485

MULHER E CANGACEIRA, SIM SENHOR! REPRESENTAÇÕES DO


FEMININO NA LITERATURA E NO CINEMA
Mirian Dos Santos Marques | 497

MULHERES E PICHADORAS: COMUNICAÇÃO E ARTE CONTRA-


HEGEMÔNICA NOS MUROS DO RECIFE
Carolina de Toledo Braga
Vittória Silva Paz Barreto | 507

NA CONTRAMÃO DO DETERMINISMO DE GENERO?


Maria Tereza de Ávila Melo | 519

NA TRAJETÓRIA DE HENRIQUETA GALENO E SUAS PRÁTICAS


LITERÁRIAS NA CIDADE DE FORTALEZA (1918- 1965)
Albertina Paiva Barbosa | 530

O “PASSEIO PELO PASSADO” NAS NARRATIVAS DE UMA MULHER DO


RECÔNCAVO DA BAHIA
Priscila Licia de Castro Cerqueira
Katia Maria Santos Mota | 539

O COLORIDO AZUL E BRANCO DAS NORMALISTAS: AS FUTURAS


METRAS DESCRITAS SOB UM OLHAR MASCULINO
Leonice de Lima Mançur Lins | 547

O DESAFIO DE FAZER-SE ESCRITORA: IMPRENSA, IMPRESSOS E


ESCRITAS FEMININAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX
Dêis Maria Lima Cunha Silva
Dayanny Deyse Leite Rodrigues | 555

O FEMININO NA AURORA DO SÉULO XXI: LITERATURA E


SUBJETIVAÇÃO
Maria do Socorro da S. Medeiros
Tatianne Ellen Cavalcante Silva | 565

O FEMININO NO CANGAÇO: DISCURSOS SOBRE A CANGACEIRA MARIA


BONITA (1930-1938)
Nadja Claudinale da Costa Claudino
Rayana Benicio de Oliveira | 577

OS CAMINHOS POSSÍVEIS DO REAL: A FICÇÃO BIOGRÁFICA EM


ORLANDO – VIRGÍNIA WOOLF
Fernando Moreira Falcão Neto
Iracema de Oliveira Lima
Sayuri Grigório Matsuoka | 588

PRINCESAS DONZELAS, PRINCESAS GUERREIRAS: A PERCEPÇÃO DO


FEMININO NOS ESTÚDIOS DISNEY
Thais Barbosa de Siqueira Cavalcanti
Maria Júlia Parente Félix | 598

REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS:


AS PRODUÇÕES DE IDENTIDADES
Claudiane de Souza Almeida | 609

REPRESENTAÇÕES DE MULHER NOS ESCRITOS DA EDUCADORA E


POETA MARIA BRONZEADO MACHADO (1916-1986)
Adriana Vilar dos Santos
Maria Lúcia da Silva Nunes
Thayana Priscila Domingos da Silva | 618

REPRESENTAÇÕES SOBRE MULHERES NO JORNAL A TRIBUNA,


RONDONÓPOLIS, MT, DÉCADA DE 1980
Ana Gonçalves Sousa | 629

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO ENVELHECIMENTO FEMININO EM UM


JORNAL DE FORTALEZA-CE
Kelly Maria Gomes Menezes
Francisca Silverlene Marques Nunes Teixeira
Janny Reis Holanda | 639

SOCIOLOGIA E LITERATURA: PERSPECTIVAS ANALÍTICAS SOBRE AS


PRODUÇÕES DAS RELAÇÕES DE GÊNERO
Kenia Almeida Nunes | 649

UM DOCUMENTÁRIO SOBRE ELAS, MAS A HISTÓRIA É DELES!


REPRESENTAÇÕES E A DISPUTA DA MEMÓRIA DAS CANGACEIRAS
Caroline de Araújo Lima | 660

UMA EM DUAS: TRANSGRESSÃO FEMININA NUM CONTO DE LYA LUFT


Sóstenes Renan de Jesus Carvalho Santos | 669

A MARCANTE PRESENÇA DA PROFESSORA IDALINA MARGARIDA


ASSUNÇÃO HENRIQUES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA DA PARAHYBA DO
NORTE ENTRE OS ANOS DE 1850 E 1860
Francis Raniere Silva de Souza | 683

A RELAÇÃO GÊNERO E TECNOLOGIA NO AMBIENTE DA CONSTRUÇÃO


CIVIL
Zelivaldo Falcão Leite | 692

AS RELAÇÕES ENTRE HOMENS E MULHERES NA PROVÍNCIA DE


PERNAMBUCO NO INÍCIO DO SÉCULO XIX SOB A ÓTICA MASCULINA
DO VIAJANTE EUROPEU HENRY KOSTER
Danielle da Silva | 703

DESCONSTRUINDO A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA NO MEIO DO


ESPORTIVO? UMA ANÁLISE SOBRE O VOLEIBOL BRASILEIRO
Leandro Teofilo de Brito | 713

HOMENS E MASCULINIDADES NO SEMINÁRIO NACIONAL GÊNERO E


PRÁTICAS CULTURAIS
Larissa Meira de Vasconcelos
Charliton José dos Santos Machado
Mariana Gomes Alves Ferreira | 724

MASCULINIDADES EM DISPUTA: UM OLHAR SOBRE O PROCESSO DE


CONSTRUÇÃO DAS MASCULINIDADES EM UMA ESCOLA DA PERIFERIA
URBANA
Paulo Melgaço da Silva Junior
Leandro Teofilo de Brito | 733

RELAÇÕES DE GÊNERO: DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE O


PROFESSOR E A PROFESSORA
José Luiz Ferreira
Guilherme Lima de Arruda | 745

REVISITANDO O ‘HOMEM DE VERDADE’: OLHARES PARA PAI E FILHO


Sonia de Alcantara Gouveia
Letícia Mendes Pereira | 755

UNIVERSO DA MASCULINIDADE, SEXUALIDADE E ALCOOLISMO


Lucas Silveira da Silva | 766
VULNERABILIDADE MASCULINA NA SOCIEDADE BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
Francisco Armando Vidal
Germana Elisa Santos Rocha | 777

A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA CONSTRUÇÃO DO MOVIMENTO DE


EDUCAÇÃO DO CAMPO
Ana Maria Teixeira Andrade | 786

ANÁLISE DAS AÇÕES EDUCATIVAS DO CENTRO DAS MULHERES DE


VITÓRIA PARA O EMPODERAMENTO DOS JOVENS DE PIRITÍBA
Marcílio José da Silva
Hulda Helena Coraciara Stadtler | 796

CRECHE PÚBLICA: LUTA DAS MULHERES QUE NÃO PODE SER


ESQUECIDA
Mara Tereza Oliveira de Assis
Michelle Rabelo de Souza
Mirella Cristina Xavier Gomes da Silva Lauschner | 805

FEMINISMO NEGRO E AÇÕES POLÍTICAS: O 25 DE JULHO E A MARCHA


DAS MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS (PARAÍBA 2014-2015)
Janiffer Marianne Xavier Medeiros dos Santos
Solange P. Da Rocha | 816

GÊNERO E AÇÃO COLETIVA: REPENSANDO A PRESENÇA DAS


MULHERES NOS MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS
Emilayne Souto | 824

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA CAMPONESA JOSEFA ERMINA COBÉ (1975-


1984)
Jadson Pereira Vieira
Dayane Nascimento Sobreira | 833

MARIA SALETE VAN DER POEL E O MOVIMENTO CEPLAR EM


CAMPINA GRANDE-PB
Rosicleide Henrique da Silva | 843

MOVIMENTO DE MULHERES TRANSFORMADORAS DO CAMPO:


TRAJETÓRIA DE CONQUISTA PARA MULHERES
Antonia Lenilma Meneses de Andrade | 852

MULHERES SEDICIOSAS: A OPOSIÇÃO FEMININA À “LEI DO SORTEIO


MILITAR DE 1874”. CEARÁ (1874-1875)
Maria Regina Santos de Souza | 862

RACISMO AMBIENTAL: A LUTA DAS MULHERES PESCADORAS


QUILOMBOLAS DO CUMBE
João Luís Joventino do Nascimento | 872
A EXPRESSÃO DA CULTURA CAMPESINA NA PEDAGOGIA DA TERRA:
EMANCIPAÇÃO E FORMAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Solange Martins Oliveira Magalhães
Ruth Catarina Cerqueira Ribeiro de Souza | 892

AS RELAÇÕES DE GÊNERO IMPLICADAS NA CONSTITUIÇÃO DE


SUBJETIVIDADES FEMININAS EM CURSOS DE ENGENHARIA DO
CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE TUCURUÍ DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DO PARÁ (UFPA)
Edileuza de Sarges Almeida
Gilcilene Dias da Costa | 903

COM QUE ROUPA EU VOU? REPRESENTAÇÕES SOBRE O CORPO


FEMININO E A MODA NO JORNAL DAS MOÇAS
Lourdes Rafaella Santos Florencio
Luciana Kellen Gomes de Souza | 914

CONTRADIÇÕES E CONVENÇÕES SOBRE A EDUCAÇÃO SEXUAL NA


ESCOLA. O CASO DA COMUNIDADE RURAL DE OUTEIRO REDONDO EM
SÃO FELIX – BA
Lucimere Falcão Lafite Leite
Lucilia Falcão Lafite Leite
Zelivaldo Falcão Leite | 922

CORPO TRANS E EXPERIÊNCIA DE SI: UM ENSAIO ESTÉTICO DA


DIFERENÇA SEXUAL
Silvane Lopes Chaves
Gilcilene Dias da Costa | 933

CRÍTICA QUEER: UMA DISCUSSÃO EM TORNO DA POLÍTICA LGBT DA


UFPE
Jalinson Jonas Gomes da Silva | 945

GÊNERO NAS PERFORMANCES DE PAQUERA ENTRE HOMENS:


VIVENCIANDO A “POP-ISMO”
Fabrício de Sousa Sampaio | 956

MULHERES PRINCESAS: RELEITURAS SOBRE PERFEIÇÃO FEMININA


NO MERCADO DE BELEZA
Avanúzia Ferreira Matias
Larissa Naiara Souza de Almeida | 968

NA ESQUINA DA DES(ORDEM): NOTAS SOBRE PROSTITUIÇÃO


TRAVESTI EM SOBRAL-CE
Ivaldinete de Araújo Delmiro Gémes
Márton Támas Gémes | 978

NAS ASAS DA IMAGINAÇÃO: O QUE DOIS GAYS E UMA TRAVESTI TÊM


A NOS CONTAR? ESTUDO BASEADO NA TEORIA QUEER EM SOBRAL-CE
Maria Eline Medeiros de Almeida | 993
O CORPO E A SEXUALIDADE DA MULHER NO BRASIL
Kelma Lima Cardoso Leite | 1002

REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE NOS ESPAÇOS


ESCOLARES: REFLEXÕES COM DOCENTES DA EDUCAÇÃO BÁSICA
Fabiane Freire França | 1011

SUBJETIVAÇÃO DO CORPO FEMININO: UM OLHAR


ARQUEGENEALÓGICO SOBRE A MÍDIA
Úrsula Lima Brugge
Favianni da Silva | 1022

A PRÁTICA EDUCATIVA DE JULIETA PORDEUS GADELHA: GÊNERO,


CULTURA E EDUCAÇÃO NO CONTEÚDO DE SUAS OBRAS
Ana Paula Mendes Silva
Maria Arisnete Câmara de Morais | 1033

EDUCAÇÃO E SEXUALIDADE: UMA ANÁLISE DO CURSO DE


PEDAGOGIA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE
Scarlett O’hara Costa Carvalho
Lorena Brenda Santos Nascimento
Lia Machado Fiuza Fialho | 1044

EDUCAÇÃO E SEXUALIDADES NO ENSINO FUNDAMENTAL


Roberto Alexandre da Silva
Cristiane Souza de Menezes | 1052

ENTRE OS LIVROS E AS RECEITAS CULINÁRIAS: MEMÓRIA DA


EDUCADORA LIANA BARBOSA DA MATA ACERCA DO CURSO DE
ECONOMIA DOMÉSTICA EM BANANEIRAS/PB (1960-1970)
Wanderléia Farias Santos
Maria Lúcia da Silva Nunes | 1060

ENTRE-LUGARES DE GÊNERO/SEXUALIDADE E SUAS RESSONANCIAS


NO CURRÍCULO DA DIFERENÇA.
Camila Claíde Oliveira de Souza
Gilcilene Dias da Costa | 1071

GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NA ESCOLA: SABERES E PRÁTICAS


DOCENTES
Francisca Genifer Andrade de Sousa
Lorena Brenda Santos Nascimento
Lia Machado Fiuza Fialho | 1082

GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NA FORMAÇÃO DE ALUNOS/AS


UNIVERSITÁRIOS/AS: UMA PERSPECTIVA DISCURSIVA
Stella Márcia de Morais Santiago
Simone Joaquim Cavalcante | 1092
GÊNERO E EDUCAÇÃO: PATRIARCADO COMO BASE DE UMA
EDUCAÇÃO SEXISTA
Márcia Rejane Ferreira da Silva | 1102

GENERO E SEXUALIDADE: CURIOSIDADES, DESCOBERTAS E


APRENDIZADOS CONSTRUÍDOS COM CRIANÇAS DO 4ºANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL
Kelly Cristina Brantes | 1110

GÊNERO E SEXUALIDADE NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA DO


ENSINO MÉDIO: NARRATIVAS A PARTIR DE UM CURRÍCULO
INTERCULTURAL
Kátia Regina Xavier da Silva
Leandro Teofilo de Brito | 1120

GÊNERO E SEXUALIDADE: PLANOS NACIONAL, ESTADUAIS E


MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO
Girlane Martins Machado
Karyne Dias Coutinho | 1132

GÊNERO E SEXUALIDADE: REFLEXÕES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR


Rodrigo Cirino Mendes
Anita Leocádia Pereira dos Santos | 1142

GÊNERO NA ESCOLA
Maria Marilene Banhos Nogueira | 1152

GÊNERO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO E PRÁTICAS CULTURAIS


Walfrido Menezes | 1160

HISTÓRIA DA ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES DO RIO GRANDE DO


NORTE (1920-1989)
Amanda Vitória Barbosa Alves
Larissa Maria de Medeiros Dantas
Maria Arisnete Câmara de Morais | 1170

INICIAÇÃO DA ESCRITA: A FOLHA DE PALMEIRA E LUZIA SENNA EM A


ESTRADA POR ONDE PASSEI
Valnei Evangelista Santos
Maria José de Oliveira Santos | 1182

INTERESSANTE!: UMA PESQUISA SOBRE SEXUALIDADE


Ingrid Fraga
Lisiane Gazola Santos | 1191

JUVENTUDES E DIVERSIDADE DE GÊNERO NO COTIDIANO ESCOLAR


Francisca Mayane Benvindo dos Santos
Francisca Genifer Andrade de Sousa
Lia Machado Fiuza Fialho | 1200
LEITURA E MAPEAMENTO COGNITIVO NAS RELAÇÕES DE GÊNERO
Gustavo Mendes Oliveira
Francisca Cinthia Oliveira Nascimento
Maria Iracema Pinho de Sousa | 1210

LEVANTAMENTO DA SITUAÇÃO HISTORIOGRÁFICA ATUAL SOBRE


ESTUDOS DE MULHERES E EDUCAÇÃO
Shirley Targino Silva
Bruna Gomes de Oliveira Dornelas
Alanna Maria Santos Borges | 1221

MANIFESTAÇÕES DE GÊNERO NA ESCOLA PÚBLICA : CONFLITOS E


POSIÇÃO DOCENTE
Lorena Brenda Santos Nascimento
Francisca Genifer Andrade de Sousa
Lia Machado Fiuza Fialho | 1232

MENINO OU MENINA: DESENHOS ANIMADOS E IDENTIDADES DE


GÊNERO
Maria José Campos Faustino da Silva
Karyne Dias Coutinho | 1242

PEDAGOGIA SEXISTA: TERNURA DO NÃO E ASTÚCIAS DA CORREÇÃO


João Batista de Oliveira Filho
Karyne Dias Coutinho | 1250

PERCEPÇÃO DO ESTUDO DE GÊNERO NA MÚSICA MULHERES: UM


CONVITE À IMAGINAÇÃO SOCIOLÓGICA.
Josemar Medeiros da Silva | 1259

PRÁTICAS CULTURAIS DIGITAIS: A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E A


RELAÇÃO DE GÊNERO NA ATUALIDADE
Bruna Germana Nunes Mota -
Meline Mesquita de Carvalho Barros
José Rogério Santana | 1270

QUAIS AS PRÁTICAS EDUCATIVAS ADOTADAS PELO PROFESSOR


ACERCA DA TEMÁTICA GÊNERO
Michele Dantas Barbosa de Castro
Rayane Maciel da Costa
Lia Machado Fiuza Fialho | 1281

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E PROFESSORES HOMENS NA EDUCAÇÃO


INFANTIL
Aristides Ariel Bernardo
Rhayanne Viriato de Araújo | 1287

RUA DA SAUDADE: REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO FEMININA NA


CIDADE DE CRATO – CE NAS DÉCADAS DE 1950 E 1970
José Gerardo Vasconcelos
Lourdes Rafaella Santos Florencio | 1298

SALTO ALTO E BATOM TÊM ESPAÇO NAS CIÊNCIAS DURAS?


Lucimeiry Batista da Silva
Cecília Telma Alves Pontes de Queiroz
Maria Eulina Pessoa de Carvalho | 1309

A EXPERIÊNCIA DO USO DE DROGAS POR MULHERES USUÁRIAS DO


CAPS AD
Josilene Barbosa do Nascimento | 1323

EDUCAÇÃO EM SAÚDE PARA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SEXUAIS E


REPRODUTIVOS
Josilene Maria de Oliveira
Ednaldo Costa Braz
Idalina Maria Freitas Lima Santiago | 1334

OS CUIDADOS COM O CORPO : SAÚDE SEXUAL DE MULHERES NAS USFs


NO MUNICÍPIO DE CAMPINA GRANDE-PB
Ednaldo da Costa Braz
Josilene Maria de Oliveira
Idalina Maria Freitas Lima Santiago | 1343

TORNAR-SE INFÉRTIL: DA LAQUEADURA TUBÁRIA À REPRODUÇÃO


ASSISTIDA E DIREITOS REPRODUTIVOS
Cristiane de Cássia Nogueira Batista de Abreu | 1353

A LUTA FEMINISTA PELA PRESENÇA DE MULHERES AMAZONENSES


NO PARLAMENTO
Michelle Rabelo de Souza
Mirella Cristina Xavier Gomes da Silva Lauschner
Mara Tereza Oliveira de Assis | 1363

A MULHER CEARENSE: SEU PAPEL NA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA


Maria Aniele da Silva | 1373

GÊNERO E FEMINISMOS: RESISTÊNCIAS À DITADURA MILITAR NO


CEARÁ
Sarah Pinho da Silva | 1382

NOTAS PARA A HISTÓRIA DO MOVIMENTO FEMINISTA NA PARAÍBA


(1979-1990)
Dayane Nascimento Sobreira
Jadson Pereira Vieira
Tatianne Ellen Cavalcante Silva | 1392

O GÊNERO DO DESASSOSSEGO: GÊNERO COMO PALCO DE CONFLITOS


NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS DOS PESQUISADORES DESSE CAMPO
DE ESTUDOS
Antonio Cristian Saraiva Paiva
Francis Emmanuelle Alves Vasconcelos | 1403

O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE: DISCURSOS FEMININOS


ATRAVESSANDO SÉCULOS
Maria Lúcia da Silva Nunes
Stelyane de Oliveira Melo | 1414

PARTIDO FEMINISTA NO BRASIL: A POLÍTICA FORMAL SOB A


PERSPECTIVA FEMINISTA E A AFETIVIDADE DE DIREITO À
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
Francineide Marques | 1427

TRAJETÓRIAS FEMININAS: EXPERIÊNCIAS E RESISTÊNCIAS À


DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA
Tatianne Ellen Cavalcante Silva
Maria do Socorro da Silva Medeiros
Dayane Nascimento Sobreira | 1433

VOTO FEMININO NO BRASIL: 83 ANOS, HÁ COMEMORAÇÃO?


Jéssica Luana Fernandes
Luís Augusto de Mendonça Ribeiro | 1445

A MULHER NEGRA ESCRAVA NA SOCIEDADE BRASILEIRA


RESISTÊNCIA, BELEZA E ASCENSÃO SOCIAL
Bruna Gomes de Oliveira Dornelas
Shirley Targino Silva | 1455

A PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA NO ESTUDO DA HISTÓRIA DE VIDA E


TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE PROFESSORAS NEGRAS
Dominique Ferreira Alves
Cicera Nunes | 1464

AQUI MULHER FAZ A LUTA: O FEMININO E LUGARES DE LIDERANÇA


NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO GRILO-PB
Alcione Ferreira da Silva
Patrícia Cristina de Aragão Araújo | 1475

DE CASA PARA A RUA: A EMANCIPAÇÃO DA MULHER CAXIENSE


Maria Ivani Pereira dos Santos
Salânia Maria Barbosa Melo | 1486

GÊNERO E GERAÇÃO EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ALTO


SERTÃO PARAIBANO
Ane Cristine Hermínio Cunha
Stella Márcia de Morais Santiago
Simone Joaquim Cavalcante | 1497

MULHERES NEGRAS, INTELECTUALIDADE E TRANSMISSÃO DE


SABERES NA AMAZÔNIA
Luiz Augusto Pinheiro Leal | 1507
NEGRAS, AFRICANAS E IMIGRANTES: VIDA DE MULHERES AFRICANAS
EM FORTALEZA-CE
Ercílio Neves Brandão Langa | 1517

POR UMA EDUCAÇÃO EM E PARA OS DIREITOS HUMANOS


Iolanda de Sousa Barreto | 1532

PRÁTICAS EDUCATIVAS DE PROFESSORAS NEGRAS E A CONSTRUÇÃO


DA IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL
Waldeci Ferreira Chagas | 1542

PROTAGONISMO FEMININO E ESCRITA DE SI: UMA REFLEXÃO SOBRE


A ESCRITA DE LALU LOPES
Simone Joaquim Cavalcante | 1553

A IDENTIDADE DA MULHER MÃE: REFLEXÕES NA PERSPECTIVA DE


MULHERES QUE NEGLIGENCIAM OS FILHOS ATENDIDAS NA
PROMOTORIA DE JUSTIÇA DO CEARÁ
Fárida Maressa Loureiro e Souza | 1565

A POLÍTICA DO SILÊNCIO E A DOMINAÇÃO MASCULINA


Glauber Lucas Ceara Silva | 1576

A VIOLÊNCIA SOFRIDA PELAS BENEFICIÁRIAS DO AUXILIO ALUGUEL


EM MANAUS
Mirella Cristina Xavier Gomes da Silva Lauschner
Ana Cristina Rodrigues Pinheiro
Irvana Góes dos Santos | 1585

CASOS DE VIOLÊNCIAS PRATICADAS POR FILHOS/AS CONTRA SUAS


MÃES EM SALVADOR/BA (2006-2016)
Luciana Cristina Teixeira de Souza | 1595

CULPADAS SIM, VISÍVEIS NEM TANTO: REFLETINDO SOBRE AS


POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES ENCARCERADAS NO BRASIL.
Marina Torres Costa Lima | 1607

DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS? DISCENTES DE SERVIÇO SOCIAL E


HOMOAFETIVIDADE
Alana Menezes de Lima
Márcia Irene Pereira Andrade | 1618

IGUALDADE DE GÊNERO: DESAFIO IMPOSTO À SOCIEDADE DO


SÉCULO XXI
Ricardo Wagner Amorim Tavares Filho
Josabete Bezerra Cacau
Lia Machado Fiuza Fialho | 1628

MULHERES, TRABALHO E ASSIMETRIA DE PODER: O ASSÉDIO MORAL


E SEXUAL NO ESPAÇO PRODUTIVO
Fernanda Marques de Queiroz
Maria Ilidiana Diniz | 1637

O COTIDIANO DA VIDA PRIVADA NOS ESPAÇOS PÚBLICOS: A


VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER MORADORA DA CENA DE
USO/CRACOLÂNDIAS – R.J
Luanda Bomfim Guerra | 1656

POLITICAS SOCIAIS DE COMBATE À POBREZA: UM OLHAR DE GÊNERO


Luana Ricarto da Costa | 1666

TRANS-FORMAÇÃO DE CONSCIÊNCIA: POR UMA VISÃO HUMANISTA


DA TRANSEXUALIDADE
Rhayanne Viriato de Araújo
Aristides Ariel Bernardo | 1676

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: ESTUDO DE CASO NA DELEGACIA


ESPECIALIZADA DE ATENDIMENTO À MULHER, BELÉM, PARÁ
Ana Daniele Mendes Carrera
Iuli Liliana Tomaz Chaves
Lana Claudia Macedo da Silva | 1687

VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UMA ABORDAGEM SOBRE A VIOLÊNCIA


CONTRA A MULHER NO MUNICÍPIO DE MANAUS
Viviane de Oliveira Rocha
Michelle Rabelo de Souza | 1697

O IDEAL FEMININO NA OBRA CASA DE BONECAS DE HENRIK IBSEN


José Àlbio Moreira de Sales
Hugo de Melo Rodrigues
Cicera Sineide Dantas Rodrigues | 1707

LUZ, CÂMERA E SUCESSO: MENINAS EM CENA NA EDUCAÇÃO


INFANTIL
Rafaela de Farias Gomes | 1716

IMAGENS FEMININAS EM ESPAÇOS ECLESIÁSTICOS DO BRASIL


COLONIAL: ORIENTAÇÕES E RECOMENDAÇÕES TRIDENTINAS
Michael Douglas dos Santos Nóbrega
Kátia Adriano Matias da Silva | 1724

AS NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS EDUCACIONAIS DE ODETE


MOURA: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES
Robson Carlos da Silva
Keylla Layse de Sousa Araújo
Cândida Angélica Pereira Moura | 1739

COMPÊNDIOS, MANUAIS E LIÇÕES DE PEDAGOGIA NA ESCOLA


NORMAL PRIMÁRIA
Francinaide de Lima Silva
Maria Arisnete Câmara de Morais | 1750

MULHER EM MEIO A UMA SOCIEDADE MACHISTA NO SÉCULO XXI: EU


LAVO, MAS NÃO ENXUGO, ISTO É COISA DE MACHO
Cristine Brandenburg
Tânia Gorayeb Sucupira
Miriam Viviane Baron | 1767

DIGA X!!! MASCULINIDADE E PERFOMANCE NA FOTOGRAFIA


PUBLICADOS PELA IMPRENSA EM CAXIAS-MA
Jakson dos Santos Ribeiro | 1776
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A FORMAÇÃO FEMININA PARA DOCÊNCIA: RECORDAÇÕES DO


MAGISTÉRIO

Silvia Helena de Sá Leitão Morais Freire | silviahpedagogia@gmail.com

INTRODUÇÃO

Desde anos de 1990, as histórias de vida tornaram-se um material de pesquisa bastante


utilizado nas ciências humanas. As fontes (auto) biográficas, constituídas por histórias de
vida, relatos orais, fotos, memórias, escritas escolares, fotografias, diários, entrevistas,
configuram-se como objeto de investigação. Dessa maneira, em Educação, a pesquisa (auto)
biográfica possibilita a ampliação e produz conhecimentos sobre a pessoa em formação, suas
relações com os espaços, tempos de aprendizagem e seus modos de ser e de fazer (JOSSO,
2009, p.7).
Podemos então compreender, que o objeto de estudo da pesquisa (auto) biográfica nos
revela como os sujeitos dão formas as suas experiências de vida e formação, a exemplo da
história de vida da professora em destaque nesse estudo, fazendo significar situações e os
acontecimentos de sua vida, seja representando inscrevendo sua existência nos vários espaços
do seu momento histórico e social. Conforme destaca Christine Delory-Monberger, a
atividade biográfica não é uma atividade episódica e circunstancial, limitada apenas a
narrativa verbalizada, mas um das formas privilegiadas de atividade reflexiva do ser humano
para representar e compreender a si mesmo enquanto ser historicamente situado socialmente.
Atualmente, pesquisas em educação fundamentadas no método (auto) biográfico,
concentram esforços, a exemplo da investigação e reconstituição de processos formativos de
mulheres, tomando como referência, suas histórias de vida e formação.
O presente estudo é parte de uma pesquisa mais ampla que analisa a formação de
mulheres no Colégio Nossa Senhora das Vitórias em Assú/RN, a fim de compreender as
práticas educativas que as formavam. Nesse momento, pretendemos analisar por meio da
história de vida de uma professora o espaço, e o tempo que teria marcado sua
formação pessoal e profissional, no período entre 1987 a 1989 em que foi aluna do magistério

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no Educandário Nossa Senhora das Vitórias em Assú/RN.


No decorrer da pesquisa na cidade de Assú/RN, buscamos detectar algumas ex-alunas
para revelar por meio de suas histórias de vida, suas formações, destacando aspectos da sua
vida familiar, suas vivências enquanto alunas e professoras. Para tanto, privilegiamos nesse
momento, as escritas autobiográficas da professora Naligia Bezerra Lopes, elegemos seus
escritos, por trazer questões mais recorrentes sobre o que propúnhamos, ou seja, aspectos da
sua vida familiar, suas experiências enquanto aluna do magistério. Sendo assim, fomos
interligando as experiências vividas em espaços e tempos diferenciados, à configuração social
e a própria condição humana de ser pessoa e professora.
O conjunto das falas despertava para a relevância da história de vida na constituição da
formação da professora, fator que levou a priori a construção e a verificação através de um
quadro, dos elementos mais recorrentes de sua fala: magistério, espaços e períodos de
formação. A partir dessas observações, uma questão emergia suscitando resposta: Como a
história de vida dessa mulher poderia revelar sobre os espaços, tempos que marcaram sua
formação pessoal e profissional, no período em que foi aluna do magistério?
Os percursos formativos pessoais e profissionais, aos quais se faz referência, diz
respeito ao modo como a professora foi se formando no decorrer de sua história de vida, nas
relações de troca entre as pluralidades de informação, conhecimentos e experiências sociais
que atravessam/atravessaram a sua existência, em espaços e tempos diferenciados (MOITA,
2000).
Essa compreensão de processo formativo destacado nas pesquisas sobre histórias de
vida suscitou produções de estudos em duas dimensões. A primeira refere-se à produção do
conhecimento científico acerca dos fenômenos educacionais e, a segunda, que não se
desarticula da primeira, contribui para pensar o gestar e o gerir da formação inicial e contínua
do professor, sem desvencilhar a vida do trabalho educativo. Mas, para Goodson (2000) e
Nóvoa (2000), o mais importante das dimensões investigação-formação, diz respeito à
atenção concedida à voz do professor. Elemento que o coloca no centro do debate educativo e
na produção de reflexões sobre suas práticas, vidas e
formações, a exemplo da voz da professora destacada nesse trabalho.
Nesse sentido de dar voz ao professor buscamos respaldo para alcançar os objetivos
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propostos, autores que discutem sobre as Histórias de Vida e Formação (NÓVOA, 1999),
(GOODSON, 2000), (JOSSO, 2009) por possibilitarem novas perspectivas de construção do
conhecimento histórico de sujeitos de memória e de práticas culturais, a exemplo da mulher
professora e seu processo formativo.
Para Ferrarotti (1988), a proposta de investigação dessa metodologia, não se trata
apenas de conhecer a história de vida em si, mas conhecer o social por meio de uma práxis
individual. É importante destacar que a análise dos objetos por si só, não é o que está em jogo
nesse referencial, mas como ele é relacionado com questões mais amplas de uma dada
configuração social e tempo histórico.
Desse modo, o estudo da história de vida da professora em destaque nesse estudo,
compreendido como algo particular, abre perspectivas para análise, por exemplo, de
fenômenos educativos e sociais mais complexos que envolvem seus trajetos formativos e da
história da educação.

DIÁRIO DE VIDA DE MENINA

Ao iniciarmos nosso trabalho, percebemos que seria relevante trazer marcas do


processo familiar da professora, sobre sua infância, a convivência com seus familiares e sua
própria construção enquanto professora. Dessa maneira, solicitamos à professora que narrasse
um pouco da sua história de vida. Eis o relato:

Meu nome é Naligia Maria Bezerra Lopes, nasci em 21/08/1972 na cidade de


Assú/RN. Meus pais e minhas irmãs nasceram em Triunfo Potiguar que na época
era município de Campo Grande. Vieram morar em Assú há mais ou menos 40 anos
devido meu pai buscar a continuação dos estudos para mim e minhas irmãs. Minha
infância e adolescência foram bastante tranqüilas, com todas as suas
particularidades tais como: brincadeiras, paqueras, festinhas, amigos e escola. As
brincadeiras eram de bonecas, bola, curita, estátua, cai no poço e lembro com
saudade da brincadeira de “casa de jardim” que mobilizava todas as minhas
amigas trocando figuras de pessoas, carros, cômodos das casas, etc. Brinquei até
bem grande por volta dos 12 ou 13 anos, pois nesse tempo as crianças eram
crianças além da faixa etária (12 anos), o que hoje é completamente diferente, pois
vemos meninas de 10 anos que não querem mais ser crianças.

Na narrativa da professora Naligia Bezerra Lopes, destacamos a preocupação de


seus pais com a sua formação e de suas irmãs, tendo que se deslocar de sua cidade em busca
de formação educacional para as filhas. A exemplo dos pais da citada professora, era costume
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de algumas famílias se mudarem para os grandes centros ou mandar suas filhas para
internatos coordenados por freiras.
Segundo Szymanzki (2007 p.48), coube à família, inicialmente, a partir da
organização em torno da figura paterna, com um determinado padrão de educação no espaço
privado e, posteriormente, nas sociedades capitalistas, paulatinamente creditar às instituições,
a exemplo da escola e da igreja, a formação dos filhos.
Nesta pesquisa, a partir da narrativa da professora revelou-se a presença decisiva da
família, em especial, na tomada de decisões pela formação educacional das filhas, seja para o
futuro profissional, seja pela necessidade de formação religiosa, conforme verificamos na
narrativa da professora Naligia Bezerra Lopes:

Comecei a estudar por volta dos seis anos e sempre estudei no Educandário Nossa
Senhora das Vitórias desde a pré-escola até o Magistério. Minhas lembranças do
ENSV são as melhores possíveis, pois tudo o que sou devo em grande parte a minha
formação nessa instituição que por ser administrada por freiras tinha também a
formação religiosa. Minha primeira professora foi Irmã Irene, um doce de pessoa,
voz suave e muito bonita.

Nas memórias da professora Naligia Bezerra Lopes, desvela-se preocupações


familiares para que desde a mais tenra idade recebessem “uma boa educação”. Assim, ter uma
filha matriculada em uma escola com credenciais de tradição, que primava pela formação
moral e cristã, a exemplo Educandário Nossa Senhora das Vitórias, era motivo de conquista e
de orgulho. De acordo com Louro (1997, pg. 447) ”Para muitos, a educação feminina não
poderia ser concebida sem uma sólida formação cristã, que seria a chave principal de qualquer
projeto educativo”.

HISTÓRIA E PROPÓSITO FORMATIVO: O EDUCANDÁRIO NOSSA SENHORA


DAS VITÓRIAS

Para compreendermos o processo formativo da professora Naligia Bezerra Lopes, se


faz necessário reconstituir a própria história e propósito formativo do Educandário Nossa
Senhora das Vitórias, instituição religiosa coordenada por freiras
vindas da Áustria.

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A presença da Igreja católica nos meios escolares está fortemente ligada com a História
da Educação no Brasil, primeiramente com os jesuítas e a partir do século XIX com outras
Ordens e Congregações religiosas. Como ressalta Furtado (2002, p.1): “Com a chegada das
Ordens e Congregações religiosas ao Brasil, a rede de ensino católico cresceu
significativamente”. Chegaram ao Brasil, por exemplo, padres Lazaristas, frades Capuchinhos
e filhas da Caridade.
A partir desse momento a hierarquia eclesiástica passou a dar mais atenção à educação
feminina, proporcionando a vinda de congregações preocupadas com a instrução das jovens.
Vários Colégios foram instalados e se espalharam pelo Brasil. A esse respeito Furtado (2001,
p.2) ressalta:
O Colégio Nossa Senhora do Patrocínio foi o primeiro de uma extensa rede de
colégios criados tantos pelas Irmãs de São José de Chamberry, como por outras
congregações religiosas. Em algumas regiões do país, o elemento religioso se tornou
fundamental no processo de escolarização e os estabelecimentos de ensino religioso
se constituíram em um marco de renovação da instrução feminina.

Em Assú/RN, assim como em outras regiões do Brasil, o ensino religioso tornou-se


fundamental para o processo de escolarização e formação feminina. Em 3 de Julho de 1922
aconteceu a primeira reunião para a construção do colégio, que logo foi denominado de Nossa
Senhora das Vitórias. A comissão era composta por intelectuais da época como Monsenhor
Joaquim Honório da Silveira, Pedro Soares de Araújo, Ernesto Emilio da Fonseca, que
colaboraram na construção da escola (MORAIS, 2007).
A escola iria oferecer um padrão mais elevado de ensino para as mulheres, objetivando
a educação de uma boa esposa, mãe virtuosa e, conseqüentemente, a formação de mulheres
que participassem da sociedade letrada de futuras gerações. Neste sentido, as reflexões
de Louro (1997 p. 446-447) são representativas para compreender a função da educação
concedida ao sexo feminino:

Ela precisava ser em primeiro lugar, a mãe virtuosa, o pilar de sustentação do lar,
a educadora de gerações do futuro. A educação da mulher seria feita, portanto para
além dela, já que sua justificativa não se encontrava em seu próprio anseio ou
necessidade, mas em função social de educadora dos filhos e na função dos futuros
cidadãos.

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Para assumir a responsabilidade de administrar o funcionamento do Colégio. O Bispo


Diocesano, Dom José Pereira Alves, ficou encarregado de selecionar uma nova ordem
religiosa. Em 11 de Julho de 1926, recebia o jornal A Cidade um telegrama avisando que
Dom José Pereira Alves obteve da Congregação Filhas do Amor Divino a aceitação da
direção do Colégio (MORAIS, 2007).
Em 9 de Março de 1927, inaugurou-se a tão esperada instituição educativa com o
nome de Colégio Nossa Senhora das Vitórias. Estiveram presentes personalidades como José
Augusto Bezerra de Medeiros, governador do estado do Rio Grande do Norte, Nestor dos
Santos Lima, diretor do Departamento de Educação Pública, professor Alfredo Simonetti,
diretor do Grupo Escolar Tel. Coronel José Correia. As comemorações foram iniciadas com a
benção do prédio e a missa na capela do Colégio, celebrada pelo Monsenhor Joaquim Honório
e Pe. Júlio Bezerra, vigário da paróquia local (MORAIS, 2007).
Para Amorim (1977), a manifestação era contagiante, todos sentiam o desejo de
enaltecer esse empreendimento. O governador do estado iniciou seu discurso congratulando-
se com o povo assuense e dignificando o estabelecimento de ensino de instrução às meninas.
Como bem destacadas nas palavras de Adalberto Amorim

Nada se iguala á instrução, é por ela que a grandiosidade das artes, o progresso se
desenvolve em todas as atividades humanas e quando ela se reflete no coração e
alma da mulher, que soma de benefícios não prodigaliza (Amorim 1977 p. 26-27).

O propósito de formação especificado pelo Colégio Nossa Senhora das Vitórias, nos
faz compreender as finalidades educativas intencionadas à formação da mulher, embasados
em conceitos educativos como condutas sociais e morais e principalmente seu papel de mãe e
esposa.

RECORDAÇÕES DO PROCESSO FORMATIVO NO MAGISTÉRIO

As escolhas da família por uma escola de tradição religiosa familiar, voltada para a
formação do magistério, envolviam a profissionalização identificada com os destinos da
mulher. Nesse sentido, segundo Almeida (2007, p.117):

Além das escolas de instrução básica para as meninas, deveria haver também

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uma saída para a profissionalização feminina, representada por um trabalho que não
atentasse contra as representações acerca de sua domesticidade e maternidade. O
magistério inseria-se perfeitamente bem nessa categoria [...]

Assim como destaca Almeida (2007), que a formação do magistério, envolvia aspectos
da profissionalização enquanto destino para as mulheres, podemos comprovar no relato da
professora Naligia Bezerra Lopes, quando ela afirma que não se imagina em outra profissão
sem ser professora “Fiz o magistério e conclui em 1989, ano em que fiz o concurso do estado
e passei. No ano seguinte fui chamada e até hoje fico me perguntando se não fosse professora
o que seria e não me identifico com nenhuma outra profissão”.
Esse pensamento de ser professora traz marcas de um processo histórico que
compreendia o magistério como a única opção da mulher. Como ressalta Louro (1997, p. 453)
“Dizia-se, ainda, que o magistério era próprio para mulheres porque era um trabalho de “um
só turno”, o que permitiria que elas atendessem suas “obrigações domésticas” no outro
período”.
O curso do magistério tinha como objetivo formar mulheres professoras em
consonância com a Lei 5.692/71 que reformulou a LDB 4.024/61 nos itens que conferia às
escolas pré-primária, primária e média. As mudanças impostas apontavam além da nova
nomenclatura do ensino primário e do médio que passaram a ser denominado de 1º grau e de
2º grau, o modo como deveria ser a estrutura e o funcionamento das escolas. O objetivo
assumido pela nova Lei foi o de “proporcionar ao educando a formação necessária ao
desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para
o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania” (LDB 5.692/71, Art. 1º, § 2º).
Conforme as orientações da LDB 5.692/71, o curso do magistério do Educandário
Nossa Senhora das Vitórias em Assú/RN, estava organizado visando formar para o exercício
da docência, conforme relata a professora Naligia Bezerra Lopes:

O curso de Magistério que fiz no ENSV foi muito bom, pois tivemos uma
aprendizagem bastante significativa para o exercício da docência e tivemos uma
grande aprovação no concurso para professores da Secretaria de Educação do
Estado em 1989. Nessa época o curso de Magistério era estruturado em 3 anos ,
onde no 1º ano tínhamos disciplinas que
nada tinham com a formação de professores. A partir do 2º ano percebíamos a
especificidade das disciplinas em relação ao Magistério.

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A grade curricular do curso do magistério no Educandário Nossa Senhora das Vitórias


estava estruturado em três anos, no primeiro as disciplinas atingia as áreas de fundamentos:

Língua portuguesa e Literatura Brasileira, língua inglesa, geografia, história,


organização social e política brasileira, matemática, física, química, biologia geral,
educação moral e cívica, educação física, educação artística, programa de saúde e
ensino religioso. (Diploma da Professora Naligia Bezerra Lopes)

No segundo ano do curso do magistério de acordo com a LDB 5.692/71 no Art. 5


parágrafo 3º para o ensino de 2º grau, o Conselho Federal de Educação fixará, além do núcleo
comum, o mínimo a ser exigido em cada habilitação profissional ou conjunto de habilitações
afins. Conforme destaca a professora Naligia Bezerra Lopes:

A partir do 2º ano percebíamos a especificidade das disciplinas em relação ao


Magistério e lembro que tivemos muitas oficinas pedagógicas em que
confeccionávamos materiais como flanelógrafo e álbum seriado. Ainda no 2º ano
tínhamos o primeiro estágio que era apenas de observação de uma escola e de uma
sala de aula, onde ao término elaborávamos um relatório com os dados
encontrados.

Podemos vislumbrar que a grade curricular do primeiro ano possibilitava as alunas


uma fundamentação e no segundo ano tinha então inicio as disciplinas especificas para a
docência, essa proposta curricular tinha como proposta formar as alunas para o exercício da
docência no ensino de 1ª grau, ou seja, lecionar no ensino primário de 1ª a 4ª séries.

No 3º ano tínhamos o estágio de regência de classe em que passávamos 30 dias em


sala de aula, mas não elaboramos um relatório, apenas apresentamos em sala de
aula a nossa vivência de estágio. As maiores lembranças do magistério em mim
estão relacionadas aos professores que eram muito competentes, aos estágios que
me fizeram sentir a minha escolha para o magistério com identificação e a
aprovação no concurso para ser professora logo ao terminar o curso.

Conforme destaca a professora Naligia Bezerra Lopes, apenas no terceiro ano do curso
as alunas colocavam em prática o que aprenderam durante os dois últimos anos do curso de
magistério.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para investigar se o ensino escolar se aproximou ou não dos objetivos proposto pela
instituição formadora referendada nesse estudo, um caminho a ser seguido é a análise da voz e
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das memórias de quem freqüentou a escola naquele momento histórico. Quem melhor pode
informar sobre a escola e o seu significado para a formação, senão estudantes, professores (as)
e demais profissionais. Eles, ao vivenciar o cotidiano escolar, têm muito a nos dizer sobre a
estrutura física, os recursos humanos e pedagógicos, a grade curricular, a configuração social
e política que constituía a escola e sua proposta formativa.
É nesse sentido que se valorizam as escritas pessoais e as histórias de vida para estudar
períodos e espaços formativos de professoras (Nóvoa, 2000). Os fenômenos educativos e
sociais, a priori analisados através da história de vida e formação da professora Naligia
Bezerra Lopes, não se limitam apenas a maneira como foi educada, mas tratam de um
conjunto de saberes e normas que constituíram a formação de outras mulheres norte-rio-
grandenses em espaços escolares e familiares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, Francisco. Colégio Nossa Senhora das Vitórias: 50 Anos. Mossoró: ASTECAM,
1977.
ALMEIDA, Jane Soares de. Mulheres na educação: Missão, vocação e destino? A
feminização do magistério ao longo do século XX. In: SAVIANI, Dermeval... [et.al.] O
legado educacional do século XX no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2004.
(Coleção Educação Contemporânea).
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 5.692/1971. Acervo da
Biblioteca Virtual do Senado.
FERRAROTI, Franco. Sobre a autonomia do método-autobiográfico. In: NÓVOA, António,
FINGER, Mathias. Método (Auto) biográfico e formação. Lisboa:
Ministério da Saúde, 1988.
FURTADO, Alessandra Cristina. História e memórias de um espaço escolar feminino: o
Colégio Nossa Senhora Auxiliadora de Ribeirão Preto/SP (1918-1960). Anais do II Congresso
Brasileiro de História da Educação. Natal: UFRN, 2002. CD ROM.
GOODSON, Ivo F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e o seu
desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, António (Org.). Vida de professores. 2 ed.

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Portugal: Porto Editora, 2000.


JOSSO, Marie Christine. Experiências de Vida e Formação. Lisboa: Educa, 2002.
LOPES, Naligia Bezerra. Escrita autobiográfica. Assú/RN, Setembro de 2011.
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE, Mary. (Org.) História
das mulheres no Brasil. 2 ed. São Paulo: Contexto – UNESP, 1997.
MOITA, Maria da Conceição. Percursos de formação e de trans-formação. In. NÓVOA,
António (Org.). Vida de professores. 2 ed. Portugal: Porto Editora, 2000.
NOVÓA, Antonio (Org.). Vida de professores. 2 ed. Porto: Editora Porto, 2000.
MORAIS, Silvia Helena de Sá Leitão; SILVA, Maria da Conceição. Educação feminina no
colégio nossa senhora das vitórias em Assú/RN (1927-1930). In: Anais do 18º Encontro de
Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste. Maceió: UFAL, 2007. CD-ROM.
________Valores e Normas na educação feminina no Colégio Nossa Senhora das
Vitórias em Assú/RN (1960-1961). Mossoró: Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Especialização

(Especialização em Educação), 2010.


SZYMANZKI, Heloisa. A relação família/escola: desafios e perspectivas. Brasília: Líber
Livro, 2007.

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A HISTÓRIA DA FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO ENTRE AS ESFERAS


PÚBLICA E PRIVADA AO LONGO DO SÉCULO XIX

Ana Carla Menezes de Oliveira | anacarla@eafsc.gov.br

INTRODUÇÃO

A partir das idéias citadas pela maioria dos intelectuais masculinos ao longo dos séculos
e que tão fortemente impregnaram os padrões europeus a respeito da educação feminina,
construíram-se as bases da educação da mulher brasileira as quais influenciaram nossa
cultura por vários séculos.

Em meados do século XVI, na metrópole a educação da mulher era vista com


descaso e como desnecessária no que se refere ao campo cultural.

Essa mentalidade é a mesma que se impõe às mulheres brasileiras no período colonial,


poucas mulheres vieram ao Brasil no inicio da colonização. A primeira mulher branca de que
se tem noticia chegou ao Brasil em 1534. Posteriormente vieram outras sobre as quais
Alcântara Machado escreve: “... Acostumada à sujeição e à obediência, a mulher, pupila
eterna do homem, não muda de condição ao passar do poder do pai para o poder do marido ...
Vive enclausurada em meio das mucamas, sentada no seu estrado, a coser, a lavar, a fazer
renda e a rezar as orações: os bons costumes em que se resume a sua educação”. (THOMÉ,
1968, p. 44)

Consideramos relevante destacar aqui a mentalidade dos nossos índios que foram os
primeiros a reivindicar a instrução feminina ao Padre Manoel da Nóbrega, pedindo que
ensinasse suas mulheres a ler e escrever, como aponta Ribeiro:

“O indígena considerava a mulher uma companheira, não encontrando razão para as


diferenças de oportunidades educacionais. Não viam, como os brancos os preveniam, o
perigo que pudesse representar o fato de suas mulheres serem alfabetizadas. Condená-
las ao analfabetismo e a ignorância lhes parecia uma idéia absurda. Isto por que o
trabalho e o prazer do homem, como o da mulher indígena era considerados eqüitativos
e também socialmente úteis.” ( 2000, p. 80)
Essa iniciativa constituiu-se numa idéia inédita e original para Nóbrega, Tomé de Souza

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e para os outros homens formadores na mentalidade da Europa Medieval que vedavam ao


sexo feminino qualquer instrução além da doutrina cristã e das artes domésticas.

Os mesmos índios que a sociedade complexa considera “selvagens” e desvaloriza sua


cultura, deram-nos na história da educação feminina, um belo exemplo de valorização da
mulher, na simplicidade natural de sua forma de ver o mundo, entretanto numa visão isenta de
preconceitos não estabelecendo diferenças ou tratamentos desiguais numa relação essencial
entre o “eu“ e o ”outro”, fato que fica pouco evidenciado na relação entre os homens cultos e
brancos que instituíram padrões de modelos de comportamento para a época.

E notório que, desde os tempos coloniais, as influências das instituições sociais e o


código de valores e de comportamentos trazidos da Europa, marcaram a vida e a postura da
mulher brasileira atrelada a aceitação da sua permanência no interior do domicilio. Entretanto,
nos estudos de Ribeiro, evidenciam-se as qualidades inatas (porém sufocadas) das mulheres
como uma força oculta no interior de cada uma que é colocada à mostra no momento que se
faz necessário.

Entende-se que administrar uma Capitania numa terra estranha, inóspita e repleta de
dificuldades foi um grande desafio àquelas mulheres consideradas “frágeis” e educadas para a
passividade, para o silêncio e para submissão, atributos que caíam por terra no momento em
que as circunstâncias exigiam uma presença decisiva no campo da atuação administrativa.
Ainda que desprovidas de instrução, demonstraram serem fortes o suficiente para resolver os
problemas surgidos, fora do espaço doméstico.

A ausência da sociedade da época, pela preocupação com a educação da mulher,


denotam as relações de poder a que estavam submetidas tendo sido expostas à enganação e à
exploração por não saberem ler e escrever. Muitas foram espoliadas e roubadas pelos homens
da família, por meio de falsificação de documentos, mostrando que os interesses econômicos
estavam acima da dignidade e do respeito à mulher.

Fica muito clara a ausência de liberdade de escolha por parte das mulheres, tratadas
como seres desiguais servindo a propósitos da coroa e da sua política demográfica, bem como
a manutenção da mentalidade de mantê-las no lar, o qual era o seu mundo próprio com a

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função de procriar.

Chegamos ao século XIX, 1808, sem que ocorressem muitas mudanças com a chegada
da Família Real, e as inovações culturais feitas por Dom João VI, as quais não provocaram de
imediatas alterações sobre a educação feminina, numa dimensão ampla. São criadas algumas
“... escolas leigas para as meninas da elite e são contratadas preceptoras de Portugal, da
França e, posteriormente, da Alemanha para educá-las em casa.” (ARANHA, 1994, p. 85).
Para essas moças, pertencentes a grupos sociais privilegiados, os conhecimentos que se
procurava transmitir estavam ligados ao ensino da leitura, escrita, doutrina cristã e noções
básicas da matemática.

Entretanto, a preocupação maior era o desenvolvimento para as habilidades artísticas


nos trabalhos manuais e no envolvimento com a organização da casa e cuidados com o
marido, ou seja, a preparação para ser esposa e mãe dedicadas que ouvissem muito, falassem
pouco e se, instruíssem o mínimo necessário como ditava um famoso provérbio português:
“uma mulher já é bastante instruída quando lê corretamente as suas orações e sabe escrever a
receita da goiabada. Mais do que isto seria um perigo para o lar” (CRAVO, 1973, p. 11)

Nesta condição nem os documentos da época, inventários e testamentos a mulher


poderia assinar, necessitando pedir aos homens que por ela o fizessem “por ser mulher e não
saber ler”.

Em que pese à ideologia dominante na época sobre a educação das mulheres e sobre sua
postura na família e sociedade, muitas ousaram romper os paradigmas estabelecidos buscando
integrar-se em acontecimentos que a História nos mostra, influenciando e tomando parte em
diversos momentos, ultrapassando assim do espaço doméstico para o público e vencendo
barreiras que tolhiam suas iniciativas.

Vidal (1996), constata em seus estudos sobre a educação da mulher que bastava a
mulher deter qualidades morais, honestidade e formação cristã e desta forma obter vaga para o
ensino das primeiras letras às meninas, considerando que o mesmo ensino não incluía
informações aritméticas superiores as quatro operações e que as professoras reproduziam na
escola os conhecimentos adquiridos na vida prática.

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Nesta perspectiva, percebe-se que a educação feminina no século XIX no Brasil ainda
encontrava-se fortemente vinculada a mentalidade recebida da herança portuguesa, com os
mesmos preconceitos e limites impostos pela política reinol, na qual o acesso a instrução
ainda era considerado necessário apenas no sentido da preparação para o casamento, devendo
constituir-se este, a maior aspiração da mulheres.

É nesse contexto histórico que é criada a escola normal no Brasil, na década de 30 a 40,
do século XIX, em conseqüência do Ato Adicional de 1834. Os pretendentes a uma vaga na
escola normal deveriam ser portadores de idoneidade moral como ponto mais relevante do
que sua formação intelectual. Isto se evidencia no Art. 4º. Da Lei da Criação da Escola
Normal de Niterói, a primeira a iniciar suas atividades na década de 30, o qual determinava
que “... para ser admitido à matricula na Escola Normal requer-se: ser cidadão brasileiro,
maior de 18 anos, com boa mogerização; e saber ler e escrever.” (VILLELA, 2000, p. 106)

As escolas normais abrem novas possibilidades às mulheres solteiras, como forma de


trabalhar por questão de sobrevivência para aquelas que não conseguiram se casar e assim não
se tornar um peso para a sociedade. Além disso, o exercício do magistério era visto como
prolongamento das funções maternas e por isso aceitável como profissão às mulheres. Agora
as mulheres passam a ser necessárias, pois as classes deveriam ser da responsabilidade de
senhoras “honestas”. Neste sentido a mulher passa a ser essencial na esfera pública e algumas
ações que lhes eram pertinentes no espaço privado irão ampliar-se ao público pela sua ação
educativa junto às crianças.

No século XIX, transformações econômicas e sociais tornaram as fronteiras entre


o público e o privado menos dicotomizadas, mas persistiram as representações diferenciadas
dos papéis masculinos e femininos na esfera pública. Para as mulheres do século XIX o
público era o lugar onde se corria o risco de perder a virtude. Por isso, as mulheres ‘virtuosas’
deveriam ser cuidadosas e discretas no gestual e na vestimenta com o intuito de não serem
confundidas com uma ‘mulher pública’. 3 Desta forma, para as mulheres, público e desgraça
estavam associados. (RONCAGLIO, 1997, p. 66) .

As escolas femininas tinham a preocupação de desenvolver determinadas habilidades


manuais com o objetivo de facilitar a entrada das meninas das classes populares no mercado
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de trabalho, a partir da aquisição de determinadas habilidades manuais coerentes com o que


se concebia como “atividades relacionadas à natureza da mulher”. Essas habilidades deveriam
estar vinculadas ao serviço doméstico, na qualidade de esposa ou mãe, de criada, ocupada em
atender seus patrões, ou ainda, como operária da industria têxtil, reproduzindo na fábrica, os
costumes recebidos no espaço privado do lar.

Entretanto, é preciso reconhecer que a entrada feminina nas escolas normais imprimiu
fortes possibilidades de acesso a instrução pública, favorecendo a abertura de um espaço
profissional às mulheres. Espaço este, que foi conquistado, pela recusa das mulheres à
desigualdade, a passividade e a inoperância a que estavam submetidas até então.

A feminização do magistério primário no Brasil aconteceu num momento em que o


campo educacional se expandia em termos quantitativos. A mão de obra feminina na
educação principiou a revelar-se necessária, tendo em vista, entre outras causas, os
impedimentos morais dos professores educarem as meninas e a recusa a co-educação dos
sexos, liderada pelo catolicismo conservador. (ALMEIDA, 1998, p. 64).

A inserção profissional das mulheres não ocorreu, entretanto sem os conflitos que são
próprios das mudanças e do surgimento do novo. Resistências, críticas e concordâncias.
Vozes se levantam para argumentar seu ponto de vista. Para alguns era difícil e até insensato
aceitar que as mulheres consideradas habitualmente como portadoras de pouca competência
intelectual ou racionalidade, como apregoava Kant, pudessem assumir a educação das
crianças. Assim, o processo de feminização do magistério não foi uma concessão e sim uma
conquista.

Por outro lado havia aqueles que entendiam que a mulher tinha por “natureza” facilidade
e inclinação para o trato com as crianças e que o magistério deveria ser visto como natural e
próprio a sua condição feminina, portanto, função adequada às mulheres. Neste contexto à
mulher caberia então a responsabilidade da reprodução e a educação das futuras gerações o
que não deixou de ser uma participação no campo do poder: “Dessa forma, viabilizavam um
cruzamento entre o público e o privado dentro das condições concretas apresentadas na época.
Neste plano simbólico, talvez possa ter-se a explicação da grande popularidade do magistério
entre as mulheres e, no plano objetivo, a sua condição representada pela única opção possível
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para elas dentro do contexto social do período.” (ALMEIDA, 1998, p. 69)

Entretanto esse pensamento de abertura de espaço para a mulher no mundo além do


recinto doméstico foi contrariado por outras correntes de pensamento, cujos teóricos
defendiam que a mulher deveria permanecer em seu espaço “naturalmente” doméstico sem
participar das transformações que se operavam na sociedade.

Todavia a história mostra que na trajetória feminina da mulher brasileira, as


responsabilidades da maternidade e a vida em família não foram suficientes para satisfazer os
projetos de vida das mulheres. Somando-se a isso as transformações que ocorreram na
sociedade no final do século XIX, como a redefinição de conceitos a nível político, pela
ampliação dos direitos à cidadania, o nível econômico fez implodir no lar a necessidade de
expansão profissional da mulher e no ideológico as mulheres conseguiram implantar um
movimento que desafiou os componentes alterando os padrões do seu papel na família e
tornando-as efetivamente participantes de todo o processo social e histórico da humanidade.

A feminização do magistério não é um fenômeno novo e tem se manifestado na


maioria dos países ocidentais desde a segunda metade do século XIX. No entanto, um balanço
da historiografia da educação permite afirmar que a abordagem desta temática com destaque
nas categorias gênero e classe social constitui um campo de pesquisa recente, tanto no Brasil
quanto em outros países.
No Brasil, a investigação dessa temática é ainda incipiente, embora o percentual de
professores na escola elementar se aproxime de 100%, fato esse que nos instigou a pesquisar
as bases desse processo. Estabelecemos como marco inicial de nossa investigação a
constituição do sistema de instrução pública mineiro, no século XIX, mais precisamente o ano
de 1834. A utilização de uma abordagem interdiscplinar nos permitiu investigar questões
relacionadas aos processos de inserção e exclusão da mulher do mundo do trabalho, herança
cultural, evolução sócio-econômica, estruturação do poder político e suas influências na
construção dos sistemas de educação. A investigação proporcionou a compreensão dos
mecanismos de poder que engendraram a (con)formação das identidades profissionais do “ser
professora” e pretende contribuir na análise de questões presentes: contradições, conflitos e

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possíveis transformações.

O LUGAR DAS MULHERES NO CONTEXTO BRASILEIRO

O Brasil, até o século XIX, caracterizava-se como uma sociedade tipicamente


agrária, onde a organização social era dividida em duas classes sociais básicas: senhores e
escravos, nas quais as mulheres eram totalmente excluídas de qualquer ligação com a esfera
pública. O domínio português impusera suas leis e costumes, quando da ocupação do
território brasileiro.
Ao longo do século XIX, necessidades econômicas, políticas e sociais deram início
a um processo de urbanização em várias regiões brasileiras. A instalação da Corte Portuguesa
no Rio de Janeiro, em 1808, e a abertura dos portos pelo príncipe regente D. João VI foram
fatores importantes para a intensificação da vida urbana. Aos proprietários de terras era
exigida uma maior mobilização entre o campo e a cidade, juntamente com seus familiares e
todo o seu séquito de escravos e empregados. Nas cidades, as famílias, embora mantivessem o
poder de seu chefe inquestionável, quebravam seu isolamento.
Fora criado um alargamento do universo sócio cultural das famílias da classe
dominante e um maior espaço de mobilização de suas mulheres. Por outro lado, as mulheres
das camadas populares ganhavam o espaço público como trabalhadoras no comércio e nos
serviços.6 Neste período o Brasil viu surgir, também, uma estratificação social mais
complexa. A presença de uma camada intermediária tornou-se cada vez mais visível. Sua
participação na vida social passou a ser ativa, não tanto pelas atividades produtoras a que
estava ligada como a mineração, o artesanato, o pequeno comércio, a burocracia, mas
sobretudo, como esclarece Sodré7, pelo envolvimento político. Esse processo de urbanização
permitiu, também, a penetração de diferentes credos e ideologias filosóficas oriundas do
continente europeu, onde a industrialização dos meios de produção se expandia a largos
passos. O pensamento escolástico, originário de Portugal e até então hegemônico no Brasil,
passara a sofrer oposição.
O continente europeu dava início a um amplo movimento sobre o “novo” papel
social atribuído às mulheres. Quando a industrialização dos meios de produção se encontrava
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sedimentada e em expansão em várias regiões da Europa, na segunda metade do século XIX,


a força de trabalho feminina não se fazia mais tão necessária aos donos do capital. Era
necessário encontrar mecanismos sociais que restabelecessem os velhos valores da ideologia
patriarcal fragilizados pelos interesses da produção e do lucro.
Eram fortes os motivos ideológicos e econômicos que apelavam para o trabalho
compulsório de caridade das mulheres em países europeus: o avanço da revolução industrial,
a transformação do modelo econômico mundial, a expansão do mercado capitalista, o
movimento anti-escravagista, a presença de uma forte crise social e a necessidade de
expansão de sistemas nacionais de educação. Apelos constantes começaram a ser feitos às
mulheres, com destaque para os seus diferentes papéis familiares como filhas, irmãs, esposas
e mães, enfatizando suas responsabilidades para com o bem estar de suas famílias e de suas
pátrias.
No Brasil, no entanto, o quadro social era completamente diferente. Por que
motivos, então, numa sociedade escravista e feudal, mal emersa da submissão colonial surgia
uma discussão sobre a importância do papel feminino para o futuro da nação? Por que razões
representantes de diferentes doutrinas filosóficas eram unânimes em dar destaque ao papel da
mulher, numa sociedade fortemente marcada pela velha mentalidade patriarcal? Sob que
circunstâncias os representantes oficiais começaram a manifestar suas preocupações para com
a escolarização das meninas e das mulheres, tão negligenciada até aquele momento histórico?

RELAÇÕES DE GÊNERO NA CONSTRUÇÃO DO SISTEMA DE INSTRUÇÃO


PÚBLICA

Em 1827, foi sancionada a primeira lei que regulamentava a criação do ensino


público e gratuíto no Brasil. O Ato Adicional à Constituição do Império, datado de 1834,
orientava a descentralização do sistema de instrução pública. Fora delegado às províncias o
direito de regulamentar e promover a educação pública primária e secundária em seus
territórios, até então sob a responsabilidade do governo central. Por força de suas condições

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históricas o sistema de instrução pública elementar no Brasil surgiu sob circunstâncias


bastante desfavoráveis.
O regime político brasileiro, tendo suas bases de sustentação fortemente
implantadas no poder local das províncias não conseguia organizar um sistema de ensino
capaz de executar suas diretrizes culturais. Inexistia uma política educacional definida e
unificada para toda a nação. Somado a tudo isto os representantes oficiais queixavam-se da
falta de recursos que pudessem promover o desenvolvimento do sistema público de instrução.
Este sistema de instrução assume desde as suas origens um caráter excludente, deixando à
margem do direito à escolarização, a maioria de seus cidadãos.
A educação feminina era um privilégio das filhas da elite que aprendiam em casa
com professores contratados, ou em escolas particulares dirigidas por estrangeiros ou
congregações religiosas. O ensino destas meninas, no entanto, restringia-se à aprendizagem de
canto, dança, françês e de algumas habilidades manuais conforme pesquisa de Leite11. A
leitura não era recomendada para as mulheres, a não ser para o uso dos livros de orações.
Contudo, essa educação feminina de elite guardava uma enorme distância daquela recebida
pelo sexo masculino: enquanto as meninas recebiam algum conhecimento que as tornassem
aptas a circular na sociedade e a preparar-se para o papel social de esposas e mães, os filhos
desta classe costumavam buscar seus conhecimentos nas fontes de cultura européia.

O MAGISTÉRIO PRIMÁRIO COMO OCUPAÇÃO MASCULINA

Embora o nível salarial dos professores fosse melhor do que o das professoras isto
não significava que estes fossem profissionais valorizados pelo Estado. Afinal por que
valorizar o profissional do ensino público, se o próprio ensino público não era valorizado?
De fato, o corpo de profissionais que integrava o sistema público de instrução, os
mestres-escola, eram ex-profissionais autônamos que exerciam seu ofício livremente como
professores particulares escolhidos e pagos pelos pais e frequentemente dotados de longa
experiência na função de ensinar. Esses profissionais formados no próprio trabalho e
respeitados pelos pais e comunidade foram passando à condição de empregados do Estado. As
relações de trabalho tinham sido concretamente redefinidas numa nova organização do

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processo de trabalho, que passou a desprezar o saber do professor e a desvalorizar o seu


trabalho, pagando baixos salários pelos serviços prestados. O governo não assumia o sistema
de instrução pública como sua responsabilidade, transferindo para os professores a culpa de
todos os seus insucessos.
Uma associação entre magistério primário e baixo prestígio profissional foi se
instalando gradativamente, a ponto de ser visto como desonroso para o homem continuar
atuando como profissional da escola elementar. A evasão de professores do sexo masculino
do magistério primário público passou a ser fato usual.
Por outro lado, crescia no País o movimento republicano. Os republicanos sabiam
que uma república estável se alicerça sobre a adesão e o consenso do povo, dos cidadãos. A
ênfase na importância da instrução pública passou a ser constante nos discursos de campanha
do Partido. Era salientada a necessidade de difusão do sistema de instrução pública elementar
para eliminar as altas taxas de analfabetismo da nação.

PRIMEIROS APELOS À PARTICIPAÇÃO DA MULHER

Nas últimas décadas do século XIX, o magistério já começava a se delinear como


possível campo de trabalho feminino. Embora a reponsabilidade das mulheres para com o
cumprimento dos deveres de filhas esposas e mães se mantivesse como ponto de destaque no
discurso oficial, o trabalho das mulheres não deveria aí se esgotar. A sociedade começava a se
ressentir da exclusão das mulheres da esfera pública. Era necessário ampliar a escolarização
feminina.
Era preciso buscar a superação do caótico quadro em que se encontrava a educação
nacional. Era importante formar um corpo estável de profissionais, que não buscasse no
salário o motivo de seu ofício. As mulheres vão sofrendo apelos das políticas públicas para
substituírem os homens na “nobre” missão de educar. Não é, entretanto, uma mudança
puramente biológica. Ela se inscreve no campo do simbólico e vai impregnando o imaginário
social feminino com o discurso da
“vocação”. Na realidade, o que muda é o gênero do magistério reforçado pelos interesses
hegemônicos que reforçam os estereótipos sociais sobre as relações de gênero e o caráter
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missionário do trabalho feminino na esfera pública. O discurso oficial enfatizava que ensinar
crianças era um atributo feminino, era um trabalho para virtuosos, cujas ações deveriam se
pautar no amor e não nas recompensas materiais. Representantes oficiais e militantes do
partido republicano afirmavam ser o magistério uma profissão para vocacionados, devendo
dela se afastar aqueles que não simbolizassem o amor ao trabalho de ensinar.
Em 1879 fora instituida a educação mista, onde meninos e meninas podiam
frequentar uma mesma escola. Fora decretada, também, a equiparação salarial entre
professores e professoras em nível nacional.
Os apelos ao trabalho das mulheres surgem como uma oportunidade de se alcançar
o espaço público com aprovação social. Ser servidoras da pátria, como professoras, passava a
ser uma possibilidade de comunicação com o espaço público com um nível de aprovação
social, antes só concedida pelo casamento. Para um campo de trabalho abandonado, em que o
contingente masculino de professores ia gradativamente se esvaziando, eram as mulheres as
substitutas ideais: virtuosas, econômicas, abnegadas e ainda mais, “vocacionadas” para o
trabalho de ensinar. Outro ponto de destaque na fala do presidente da província é que as
questões morais, antes justificadoras da separação dos sexos nas escolas, - e que tantas
desvantagens traziam para a educação das meninas – não mais interessavam aos
representantes do poder oficial. Se seriam as mulheres as professoras ideais da infância, a
educação das meninas precisava ser incentivada.

AS MULHERES FRENTE AOS APELOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

O incentivo à frequência das escolas normais partia do ideário das políticas


públicas, que apelava para uma missão civilizatória e patriótica das mulheres como mães e
educadoras. Por outro lado, a oportunidade de ter um maior acesso ao espaço público, quer
frequentando as escolas normais, quer atuando como servidoras da pátria no sistema de ensino
elementar, constituia uma nova possibilidade para as mulheres abrirem uma fresta nos
estreitos limites que a ideologia patriarcal lhes impunha.

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Numa época onde o controle do comportamento das mulheres era intenso, a


continuidade dos estudos possibilitava a incorporação a um processo de socialização diferente
dos
estreitos limites da vida doméstica cultural do silêncio frente ao espaço público, quer pelo fato
de carregarem consigo a tradição de trabalhadoras desprofissinalizadas.
A Primeira República, instaurada em 1889, é um período importante para a
compreensão do processo de democratização do ensino no Brasil. O regime republicano
instituiu a necessidade social da escola, e a educação popular adquire ênfase política como
nunca tivera antes no País. Foi considerada, neste período, condição imprescindível para a
cidadania, meio necessário para a consolidação da nova ordem social. Uma ampla discussão
sobre a escolarização compulsória se instala e faz emergir a defesa de diferentes propostas
pedagógicas para as diferentes classes sociais: aos privilegiados, uma formação mais geral e
científica, visando o fortalecimento intelectual de uma elite projetada para a direção dos
destinos da nação; ao povo, uma formação elementar disciplinadora, direcionada para o
trabalho assalariado.
A sociedade brasileira que despontava com a República era mais complexa do que
a recém-liberta sociedade escravocrata. Uma maior concentração urbana ia se estabelecendo,
e novos estratos sociais emergiam, diversificando os interesses, origens e posições sociais da
heterogênea composição social popular. Da escola esperavam que moldasse o cidadão-
trabalhador.
O Brasil, um país que somava 67% de analfabetos em sua população, como
registra o censo de 1890, e que indicava a quase ausência de um sistema público de ensino
elementar, precisava ser no mínimo moralizado. O seu povo precisava ser “civilizado”, para
melhor atender aos interesses dominantes, preparando-se para a disciplina do trabalho, quer
no campo, quer nas zonas urbanas – onde acanhadamente começavam a despontar as
primeiras indústrias. Somente uma cruzada civilizatória poderia dar conta desse processo. A
idéia de que a mulher é elemento moralizador por excelência e o reconhecimento de que a
educação da mulher seria de grande importância para a moralidade dos povos passa a
intensificar-se no discurso oficial e a repercutir na sociedade. A velha mentalidade patriarcal
começava a ceder espaço às filhas, frente aos apelos oficiais que se intensificavam. Afinal, o
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mundo capitalista precisava de braços adestrados para promover o seu desenvolvimento. E é


em torno desse sistema, que vão somando-se inúmeras mulheres, originárias da classe média,
que viam no magistério uma possibilidade de alcançar espaço público com aprovação social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A configuração histórica das relações de gênero e de suas implicações com a


feminização do magistério na sociedade brasileira é um processo que ainda está em
construção.
Esse estudo possibilitou perceber que a feminização do magistério na escola
elementar está diretamente vinculada ao processo de construção do sistema de educação
popular na sociedade brasileira. As insuficientes condições de trabalho e de salário,
originárias do descaso do Estado para com o ensino público determinaram o afastamento dos
professores do sexo masculino da escola elementar. As mulheres passaram, então, a ser
convocadas pelas políticas públicas a ocupar este espaço de trabalho abandonado, que
visavam muito mais a manutenção de princípios morais conservadores do que a
profissionalização das mulheres-professoras.
A partir de um quadro de necessidades e interesses, distintas correntes de
pensamento passaram a enfatizar as diferenças “naturais” entre os sexos e a influenciar todas
as ações empreendidas na área educativa, reforçando os estereótipos sociais sobre as relações
de gênero e o caráter missionário do trabalho feminino na esfera pública. A associação desses
fatores ao caráter vocacional do trabalho da mulher foram sendo internalizados pelos vários
segmentos sociais causando uma neutralização e desqualificação do trabalho feminino e
caracterizando-o como um não-trabalho. As condições concretas nas quais a prática docente ia
acontecendo foram sendo encobertas, interferindo nas relações de trabalho e impedindo a
construção de uma identidade profissional valorizada.
No entanto, além de se ressaltar a importância da história para o conhecimento das
bases do processo de feminização do magistério é preciso, também, focalizar a importância da
história para o entendimento dos eventos contemporâneos. A idealização profissional da
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professora da escola elementar, como um profissional vocacionado para a missão de ensinar


não foi ainda abandonada. O momento exige voltar para a história e redefinir visões e teorias
à luz da história das relações de gênero e de suas articulações com o processo educativo,
buscando questionar os valores, os conhecimentos e os códigos dominantes. Faz-se necessário
desconstruir os estereótipos e percepções homogeinizadoras, com vistas à modificação do
futuro.
Pelo exame das questões referentes a inserção do segmento feminino no espaço público
procurou-se identificar a problemática das relações sociais da época do Brasil Colônia e
Imperio, mediatizadas por uma reflexão acerca da educação que as mulheres recebiam e pela
discriminação e intolerância a que estavam submetidas. Pouco a pouco elas vão conseguindo
alterar esse processo, revendo sua posição na esfera pública e privada, construindo uma nova
identidade com vistas à promoção da figura feminina.

Homem ... mulher! Espaço público... e espaço privado! Dicotomias entre o masculino
e o feminino? Diferenças que não devem ser vistas ou entendidas a partir da desigualdade e
do desmerecimento de um ou de outro. E necessário que se veja, que se reconheça os valores
as particularidades do que é próprio de cada sexo, percebendo isso como pontos positivos para
uma vida em comum, amparada pelo respeito mútuo ao espaço de cada um.

Espaços públicos e espaços privados podem e devem ser ocupados por ambos os sexos
numa relação de respeito às diferenças sem preconceitos e estereótipos como nos diz
Marodin: igualdade não significa fazer as mesmas tarefas o importante é o sentido de
reciprocidade onde se reconhecem que as respectivas contribuições tem valor e fazem parte
de um equilíbrio. Assim a verdadeira igualdade entre homens e mulheres se faz pelo
reconhecimento das diferenças e a consciência de sua complementaridade.

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A INSERÇÃO DO FEMININO NA GUARDA MUNICIPAL NO CARIRI CEARENSE

Gutierrez Alves Lôbo | gutierrez.lobo@yahoo.com.br


Zuleide Fernandes de Queiroz | zuleidefqueiroz@gmail.com

INTRODUÇÃO

As relações sociais de gênero que envolve a construção do masculino e do feminino e,


inclusive, a não identidade do indivíduo com nenhum dos dois gêneros citados e socialmente
concebidos como “normais” vem sendo amplamente discutida nas últimas décadas. Relações
estas que entre homens e mulheres são historicamente desiguais, em especial no mundo do
trabalho.
As categorias trabalho feminino e gênero possuem grande importância no sentido de
compreender as formas e características da inserção das mulheres trabalho assalariado. A
evolução e incorporação cada vez maior do feminino nos espaços produtivos refletem as
transformações sociais e econômicas do modo de produção capitalista.
Neste sentido, a “transgressão” desta lógica causa estranhamento, desconforto e, em
muitas situações, preconceito e discriminação com as mulheres. O referido estudo tem como
questão central perceber como vem se dando a inserção do feminino na guarda municipal no
Cariri Cearense, em uma instituição expressivamente masculina e heterossexual.
Para isto, foi realizada uma pesquisa dividida em suas etapas, a saber: a primeira,
sendo uma revisão de literatura sobre as temáticas gênero, mercado de trabalho, masculino e
feminino e, no segundo momento, uma pesquisa de campo, no sentido de refletir sobre as
questões teóricas
suscitadas neste estudo.

II – MULHER, PATRIARCADO E CAPITALISMO: O QUE HÁ EM COMUM?


As desigualdades entre homens e mulheres estão longe de serem naturais, pelo
contrário, expressam a histórica relação de dominação/exploração a que vivem as mulheres.

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Assim, o feminino e o masculino são uma construção sócio cultural de gênero, que dita
parâmetros do que é ser homem e mulher em sociedade.
Trata-se de uma relação assimétrica de poder do homem sobre a mulher presente em
todas as instituições sociais, partidos políticos, nas igrejas, classes sociais, inclusive no
mercado de trabalho que, conforme já elucidamos anteriormente, é um espaço de poder e
divisão sexual. Esta assimetria encontra no patriarcado seu alicerce, sobre isso nos diz Osterne
(2011, p. 131):
Estas desigualdades têm no patriarcado – sistema masculino de opressão das
mulheres, caracterizado por uma economia domesticamente organizada, na qual as
mulheres tornam-se objeto de satisfação sexual dos homens, reprodutoras de
herdeiros, de trabalho e de novas reprodutoras – um de seus melhores espaços de
manifestação, historicamente falando, uma vez que o sistema é identificado com a
dominação e a exploração.

Neste esquema de dominação masculina a ordem patriarcal acaba se fundindo com o


modo de produção capitalista, reafirmando a inferioridade e dominação/exploração da mulher,
naturalizando e preservando os privilégios masculinos em todas as esferas sociais.
Apesar da absorção cada vez maior de mulheres no espaço produtivo, é preciso pensar,
também, no trabalho reprodutivo, não remunerado e exaustivo como reflexo da desigualdade
de gênero. Bem como, nas formas de ocupação do feminino nos espaços profissionais e como
se realiza sua interlocução com o masculino.
De acordo com Soares (2013), no que concerne ao trabalho feminino, nas sociedades
pré-capitalistas e, posteriormente, com a emergência e consolidação do capitalismo, as
mulheres foram submetidas majoritariamente ao espaço doméstico, tendo sua socialização
para a reprodução social. No entanto, isto não permite afirmar que o feminino, enquanto
categoria social ficou excluído da produção social, pois, as mulheres exerciam atividades na
agricultura, na confecção de vestimentas, produção e conservação de alimentos que,
posteriormente, com o processo de industrialização passaram a ser realizadas nas fábricas.
Ainda segundo a autora é possível afirmar que a expansão do capitalismo, além de
absorver
cada vez mais mulheres e crianças na produção fabril, por serem consideradas mão-de-obra
barata, contribuiu para o acúmulo de riqueza, criando dois movimentos. Por um lado, houve
uma cristalização das atividades pro – criativas e reprodutivas como atributos eminentemente
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femininos, enquanto estratégia de desonerar o capital com a reprodução da força de trabalho.


De outra forma, transformou as mulheres e seus filhos em trabalhadores baratos e submissos.

Entre todas as formas de opressão, aquela exercida contra a mulher na sociedade


capitalista tem um caráter distinto das demais porque atinge mais da metade de toda
a espécie humana (52% da população mundial é feminina). Apesar de sê-lo em graus
de intensidade diferentes, a opressão atinge burguesas e trabalhadoras, sendo que, no
casos destas últimas, combina-se com a exploração, agravando a ambas. Dentro da
classe trabalhadora, a mulher negra é aquela que concentra o mais alto grau de
opressão: por ser negra, mulher e trabalhadora (TOLEDO, 2008, p. 16).

Como se pode observar há uma simbiótica relação entre o patriarcado e o modo de


produção capitalista, contribuindo para a preservação da dominação masculina e cada vez
mais exploração e opressão das mulheres. Nesta teia de domínio, as mulheres são exploradas
enquanto indivíduos do gênero feminino e enquanto trabalhadoras, agregando cada vez mais
tarefas entre o trabalho doméstico/reprodutivo e o trabalho produtivo/profissional.
Cabe pontuar ainda segundo a autora que a opressão encontra sua base nos aspectos
cultural e social, implicando em discriminação das mulheres de diversas classes sociais, tendo
efeito variável de menor ou maior potencial econômico. Por outro lado, a exploração é de
caráter econômico, originando a divisão da sociedade em classes.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISE DOS DADOS DA PESQUISA

O referido trabalho se desenvolveu de forma qualitativa, tendo como objetivo obter


dados descritivos através do contato direto e dinâmico entre os pesquisadores e os sujeitos
participantes do estudo. Buscando, dessa forma, pensar como se dão as relações entre homens
e mulheres no contexto da guarda municipal da cidade de Crato-Ceará.
A pesquisa foi realizada em duas etapas, a saber: a primeira, através de uma revisão de
literatura acerca das temáticas gênero, mercado de trabalho e capitalismo de concepção
patriarcal. A segunda etapa foi de caráter empírico, através de pesquisa de campo.
Utilizamos a pesquisa semiestruturada individual e aberta como instrumento usado
para a
coleta de dados, que nos proporcionou discorrer acerca da problemática aqui apresentada

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acerca das relações desiguais de gênero na instituição supracitada.


Foi utilizado o processo de escrita por parte do pesquisador, ao passo que as
participantes respondiam os questionamentos feitos, sendo que elas foram previamente
informadas que a pesquisa transcorreria dessa forma.
As mulheres entrevistadas se auto – definiram como: branca, parda e negra. Sendo
duas solteiras e uma casada com filhos. Duas com escolaridade em nível médio e uma
superior. E todas são residentes no município do Crato e são funcionárias efetivas, uma
atuando há 12 anos e duas com três anos de contratação. No que diz respeito a suas atuações
no espaço de trabalho encontramos: uma no administrativo do quartel, uma nas atividades de
serviços gerais e uma no espaço operacional.
Nesse momento analisaremos as falas através das entrevistas com as mulheres guardas
municipais após aplicação das pesquisas. Vale salientar que o nome das entrevistadas não será
revelado, sendo elas identificadas como Entrevistadas 1, 2, 3. Inicialmente, quando indagadas
acerca da escolha pela profissão de guarda municipal, tivemos as seguintes respostas.
Pela Estabilidade proporcionada pelo concurso público (Entrevistada 2);
Tinha vontade em fazer parte da Segurança Pública, antes de assumir o concurso
quando via a atuação da guarda na rua eu me identificava e queria fazer parte, pois
considero um trabalho importante de segurança (Entrevistada 1);
Por que eu tinha vontade de ser policial (Entrevistada 3) .

Analisando as respostas das entrevistadas podemos perceber que os motivos são


bastante distintos, desde a estabilidade proporcionada pelo concurso público ao
reconhecimento do trabalho operacional dos equipamentos da segurança pública. O que nos
chama a atenção é que nas duas últimas falas observamos um processo de identificação das
mulheres pelo trabalho na guarda municipal, que se caracteriza por ser um espaço
eminentemente masculizado.
Quando questionadas sobre as dificuldades encontradas na sua atuação, estas
responderam:
Não temos condições de trabalho. Não tivemos capacitação (Entrevistada 1);
Atendimento ao público é muito difícil; Falta de estrutura física; Não tivemos
nenhuma capacitação, ainda bem que eu pouco trabalhei “na rua” (Entrevistada
2);
Falta de capacitação/ formação para prestar um bom serviço para a sociedade;
Péssimas condições de trabalho, faltam materiais e equipamentos, o que foi
adquirido foi por conta própria (Entrevistada 3).

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A fala das entrevistadas acerca das suas precárias condições de trabalho nos faz
questionar como vem se dando a atuação feminina nos dias atuais. De acordo com Bruschini
et. al (2008), assiste-se nas últimas décadas há uma intensa polarização do trabalho feminino,
através de progressos e atrasos. De um lado, temos um incentivo e cada vez maior
participação feminina no mercado de trabalho, sobretudo desde meados dos anos 1970. Em
contra partida, há uma elevada taxa de desemprego de mulheres, bem como, má qualidade na
forma desta inserção, através de postos de atuação precarizados, informais e em péssimas
condições.
Quando perguntamos sobre como elas se sentem trabalhando em um espaço
expressivamente masculino, tivemos as seguintes respostas:
Vitoriosa por ter conquistado meu espaço, foi muito sacrifício, mas eu consegui
(Entrevistada 2);
Isso não me incomoda, eu já trabalhei em lugares em que só tinha mulheres e eu
ficava incomodada, pois mulher é muito emocional, passional e leva para o
trabalho seus problemas, já homem não. Os homens são mais objetivos nas coisas,
no entanto, os guardas são muito desorganizados (Entrevistada 3);
Sinto muito orgulho, é preciso ter coragem (Entrevistada 1).

De acordo com Osterne (2011, p.131), “Aos homens, o cérebro, a inteligência, a razão
lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração a sensibilidade e os sentimentos”.
Nesse sentido, estas desigualdades se ancoram na primazia do masculino, que ganha
legitimidade na diferença eminentemente biológica entre os sexos, expressando-se de forma
simbólica na discriminação e inferiorização da mulher ao homem.
Quando indagamos sobre como elas acreditam que os guardas municipais homens
percebem o trabalho feminino na guarda municipal, tivemos as seguintes respostas:
Quando assumi o concurso senti muito machismo e preconceito, frases do tipo
“Lugar de mulher é na cozinha”, aos poucos e com o nosso trabalho a gente vem
mostrando que lugar de mulher é onde ela quiser, pois em tudo que faz, é bem feito.
Porém, não podemos generalizar, há guardas que apoiam, reconhecem e até
incentivam uma maior participação feminina nesse espaço, outros não, ainda
possuem essa visão machista (Entrevistada 2);
É complicado, eu fico mais com questões administrativas, é difícil, mais eu acho que
eles dão a devida importância a cada uma de nós (as três mulheres), pois cada uma
tem seu papel. Resumindo: eu acho que eles nos consideram importantes
(Entrevistada 3);
É complicado, até mesmo porquê somos apenas três mulheres só que a cada dia
estamos buscando nosso espaço( Entrevistada 1).

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Analisando as faladas das entrevistadas é importante lembrar que essa sexualização do


poder no trabalho cria outras desigualdades na forma de inserção de homens e mulheres nas
atividades produtivas e nas categorias profissionais como um todo. Eles ligados às
engenharias, direito, arquitetura, segurança, dentre outras profissões de raciocínio e força,
enquanto elas, em reflexo da sua “obrigatoriedade natural” de cuidado e amor, se inserem em
atividades e cursos profissionais concebidos enquanto femininos, como por exemplo,
pedagogia, enfermagem e serviço social.
Quando há uma mudança nesse paradigma, pode gerar desconforto e preconceito para
as mulheres ou, ainda, para os homens caso se aloquem em profissões concebidas socialmente
como femininas.
Perguntamos ainda como elas percebem o reconhecimento da sociedade diante de sua
atuação na guarda municipal:
Causa admiração, “Eita olha uma mulher guarda”, muita gente reconhece e
respeita o trabalho de uma mulher nesse espaço que aos poucos vem cada vez mais
se expandindo (Entrevistada 1);
A sociedade de maneira geral não dá importância para a polícia como um todo, no
meu caso, em especial, quando eu trabalhei na “rua” os homens me davam “psiu”,
davam encima mesmo eu estando fardada, isso é falta de respeito. Acho que a
sociedade pouco respeita a polícia e a segurança que tanto faz por eles arriscando
sua vida (Entrevistada 2);
Nós chamamos a atenção da população, pois ainda existe muito preconceito, apesar
disso, eu acho que para a sociedade nós somos sempre bem vindas (Entrevistada 3).

De acordo com Silva (2005), o aspecto cultural deve ser considerado quando se fala
em relações de gênero no trabalho, sobretudo quando se trata da atuação policial, tendo em
vista que esse espaço é historicamente considerado como “masculino”, ou seja, estando
permeado pelas representações de força, coragem e poder. Neste sentido, a condição de
trabalho feminino na esfera policial se articula e depende das condições organizacionais e
sócio culturais, sendo um contexto favorável ao desgaste e estresse.
Ainda segundo o autor a partir do seu estudo, as trabalhadoras guardas municipais
atuantes nesta instituição eram tratadas com bastante desrespeito e desdém por parte da
sociedade (da população), dos colegas de trabalho homens e, ainda, pelos responsáveis pela
gestão.
Questionando sobre a ocorrência de algum ato de preconceito ou discriminação com
elas ou com alguma outra mulher na guarda municipal, obtivemos as seguintes respostas.
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Sim. Os comentários machistas por ter uma mulher nesse espaço, de que o nosso
lugar é em casa e na cozinha e não no trabalho. Porém, os superiores além de
reconhecerem, incentivam a atuação feminina nesse espaço, pois tem muito homem
que não exerce sua função corretamente, enquanto nós,

mulheres, damos valor ao que fazemos (Entrevistada 2);


Que eu me lembre até agora não, até por que meu trabalho é muito administrativo,
tenho contato rápido com eles (Entrevistada 1);
Não (Entrevistada 3).

Cabe pontuar que os espaços públicos, políticos e produtivos pertenceram


historicamente aos homens, enquanto as mulheres ficaram relegadas à esfera doméstica, tendo
a atividade reprodutiva não remunerada concebida como um “dom divino” e, por isto, um
atributo naturalmente feminino. Este cenário traduz a histórica relação de dominação e
exploração a que estiveram submetidas às mulheres.
De acordo com Soares (2013), salientamos que essa separação entre o público e o
privado é oriunda da propriedade privada e da família monogâmica patriarcal que assentam a
sociedade de classes.
No que tange a conciliação entre o trabalho de guarda municipal com as tarefas
domésticas, tivemos os seguintes resultados.
É complicado, só que dá certo. Os filhos e o horário são complicados de conciliar,
só que meu marido e minha cunhada me ajudam para que eu possa trabalhar e dar
uma melhor condição de vida para eles (Entrevistada 3);
O horário é horrível, chego em casa meio dia para começar a fazer o almoço e
ainda voltar para o quartel. Roupa só na máquina mesmo e casa só dá pra arrumar
no final de semana, pois não tenho tempo. Isso afeta porque eu me alimento ruim e
fico sobrecarregada (Entrevistada 1);
Na parte doméstica não existe problemas nem um, mas como guarda municipal não
tenho condições nenhuma de trabalho, “Só com a cara e a coragem” (Entrevistada
2);

De acordo com Toledo (2008), no capitalismo não houve a emancipação plena da


mulher da servidão doméstica e da lógica de subalternidade que o sistema feudal lhe atribuiu.
Neste modo de produção a mulher foi/é cada vez mais humilhada, maltratada e discriminada
tanto como mulher quanto trabalhadora. Ao mesmo tempo, acaba reunindo todas as queixas e
reinvindicações de todos os trabalhadores, a saber: emprego, salário e condições de trabalho.
Enquanto categoria social somam-se as outras necessidades próprias do seu corpo e da
reprodução.
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Ao final, quando questionadas se há igualdade de trabalho entre homens e mulheres na


guarda municipal, tivemos as seguintes respostas:
O trabalho é igual na definição das tarefas, fizemos concurso igual e o que tiver que
ser feito à gente faz, a mulher não é um cristal que pode ser quebrado. Porém,
alguns homens ainda usam a frase “Ah, ela vai fazer isso, mais ela é mulher”.
Somos iguais e não tenho medo de quebrar a

unha, por isso, desempenho o meu papel sem distinções (Entrevistada 2);
No meu caso, na parte administrativa, sou eu e um homem e o trabalho é igual, já a
guarda da cozinha desempenha uma tarefa que homem não faz (Entrevistada 3);
Nunca vai ser igual, pela questão da força e outra nós somos só três mulheres
guardas, apesar disso, estamos buscando o nosso espaço (Entrevistada 1).

A relação homem/mulher nesta esfera ainda é permeada por desigualdades, sendo,


entre outros aspectos, expressão da divisão sexual do trabalho, que se ancora na separação e
hierarquia do masculino sobre o feminino.
Desta forma, o poder é elemento essencialmente masculino criando hierarquias e
estratégias de sua manutenção, o que torna o trabalho feminino nos espaços produtivos um
elemento desafiador a ser superado apesar de todo avanço das mulheres neste campo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos ao longo deste estudo compreender de forma crítica e dialética como as


relações de gênero, em especial, de homens e mulheres se dão no contexto da guarda
municipal. Por se tratar de um espaço, marcadamente, masculizado e heteronormativo, a
inserção feminina se apresenta com estranhamento e comentários preconceituosos, ratificando
a histórica sexualização do poder masculino nos espaços produtivos como reflexo da divisão
sexual do trabalho.
Apesar disto, as mulheres atuantes nessa instituição vêm buscando cotidianamente
atravessar os entraves e desafios que permeiam essas relações desiguais. Vale pontuar que
buscamos superar a visão dicotômica entre os gêneros, entendendo que a igualdade entre
homens e mulheres e a plena emancipação feminina é possível, no entanto, é preciso

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incorporar para além do plano teórico esta problemática.


Constatou-se que é, ainda, desafiador o diálogo entre o masculino e o feminino em
alguns espaços, bem como, que a alocação das mulheres nesse campo é percebida com
estranhamento, seja na definição da sua atuação ou em situações de constrangimento e
incompreensão por parte do seu grupo de trabalho e da sociedade. Porém, este grupo inicia
um novo tempo nesta categoria de trabalhadores e pretende permanecer e expandir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Brasil até 2005: uma comparação regional. In: COSTA, Albertina de Oliveira et. al. (Org).
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TOLEDO, Cecília. O gênero nos une, a classe nos divide. 2. Ed. São Paulo: Sundermann,
2008.

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ALAGOINHAS-BA E CENAS EDUCATIVAS ATRAVÉS DA PRODUÇÃO


OITOCENTISTA DE JOSÉ OLÍVIO

Gildete Souza de Jesus Lisboa | glisboa_hadassa@hotmail.com

Maria José de Oliveira Santos

INTRODUÇÃO

Neste artigo estudamos o olhar imaginário e criativo de José Olívio, tomando como
base seu lugar de fala, evidenciadas na escrita de si e da cidade como espaços discursivos,
ressaltando primeiro, que, mesmo perante os avanços a superioridade de publicação do texto
escrito pelo homem em relação ao texto publicado pelas escritoras, segundo, nas cenas dos
contos contamos com um farto e rico material sobre a cidade selecionada, Alagoinhas-BA.
José Olívio Paranhos Lima, natural de Catu, nascido em 2 de setembro de 1955, filho
de Olívio Pereira Lima (Oliveira, falecido em setembro de 2015) e Amélia Paranhos Lima
(Iaiá), mas criado por Gedalva Ramalho Madureira, ativista ecológico que aos seis anos
mudou-se para Alagoinhas. É membro da Ordem Brasileira dos Poetas de Cordel, licenciado
em Letras pela UNEB/CAMPUS II e durante a elaboração da Constituição Brasileira de 1987
destacou-se no
movimento Circuito Nacional de Preservação da Amazônia, que antecedeu a criação das
entidades ecológicas no Brasil.
O trabalho literário ora analisado reúne crônicas do cotidiano retratadas em barbearias
da cidade, sendo que muitas são publicadas pelo jornal Gazeta dos Municípios, haja vista
que é reconhecido na região. Assim, o poeta lança um olhar sobre personagens do município,
transcendendo os muros do lugar comum ao retomar eventos passados através de fatos e
promovendo a reconstrução de um espaço de lembranças. Expressa em sua narrativa traços da
diversidade cultural da cidade e proclama seu modo de viver, costumes, crenças, fatos e
episódios históricos.
Tomamos como lócus da pesquisa o livro de crônicas Conversa de barbearia (2001),
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onde sugere que não se trata de uma invenção, mas de vivências da população mais velha que
recupera em sua memória e proporcionam aos mais velhos lembranças inesquecíveis e
curiosidade da população atual. Os relatos mostram a cidade de forma poética, buscando um
lugar que pode ter ficado perdido na memória da população.
Trata-se de um escritor que, mesmo nascido em outra cidade possui uma história
ligada a Alagoinhas e seus habitantes. A publicação de seus textos contribui para a formação
da literatura municipal e por isso merece destaque, conforme Coutinho (2002, p. 237):

[...] o regionalismo é um conjunto de retalhos que arma o todo nacional. É a variedade


que se entremostra na unidade, na identidade de espírito, de sentimentos, de língua, de
costumes, de religião. As regiões não dão lugar a literaturas isoladas, mas contribuem
com suas diferenciações para a homogeneidade da paisagem literária do país.

O objetivo desta pesquisa está em trabalhar com o discurso de um escritor que mantém
vivo no imaginário um passado de lembranças que se constitui de fatos históricos e sociais
representados através da sua interpretação e, por conseguinte da recepção leitora. Conversa
de barbearia em sua capa apresenta o desenho de um barbeiro com uma tesoura na mão e um
cliente sentado, espelho com bancada e gaveta, calendário na parede do lado esquerdo do
barbeiro com o desenho de um gato; no chão, próximo ao interruptor vemos uma lixeira cinza
e a parede pintada na cor laranja e azul, contendo quarenta e sete crônicas que sugerem sobre
a vida cotidiana dos moradores da terra em forma de homenagens a amigos e pessoas
representativas da terra como: Antônio Carneiro, o médico Dantas Bião, as professoras Iracy
Gama, Denise Gurgel e Normandia Azi ao lado de pessoas de comportamento pitoresco,
como Sr. Lili, Julinho, Zé da jega, Tio Dedé dentre outros. Segundo Ecléa Bosi (1994, p.
407):
É preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas
ideias, não são originais: foram inspiradas nas conversas com os outros. Com
o correr do tempo, elas passam a ter uma história dentre da gente,
acompanham nossa vida e são enriquecidas por experiências e embates.

Nos acontecimentos vivenciados por José Olívio percebemos que o escritor sente
afeição a uma cidade que lhe acolheu e ele retribui escrevendo sobre esse cenário para
rememorar suas lembranças. Conversa de barbearia é um livro que apresenta títulos

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sugestivos, a saber: Salão de Beleza, Mulher que não me cumprimenta, Africana, Pesquisa, O
teste de rã, Barbearia I, II e III, A invasão de grilos, Ana Rita, Questão, Conferencias, O
mecânico, Julinho, O alpinista entre outros, e selecionamos quatro para analisar.

BARBEARIA I (p.16-17)

[...] Aqui em Alagoinhas, ainda em pleno vapor, além de outros, temos o Lili, um
barbeiro muito conhecido na cidade, cujos traços firmes se mantêm ‘vencedor da
idade e das procelas’ a despeito dos salões terem acompanhado o processo de
modernização. [...] Era lá onde, por determinação de meu pai, tinha que cortar meio
escovinha (cabeça toda raspada deixando um topete ou pimpão na frente). Ordem
expressa que não ousava desobedecer. Eu me lembro dos cortes e da sua evolução.
Havia o Maracanã, cabeleira toda cheia, corte de artista; escovinha, que é o corte que
usava o Ronaldo Fenômeno; Busca-ré do jogador Ronaldão, Emilio Santiago ou do
jogador Cleber (coloca-se uma chapa no alto da cabeça). Ainda temos hoje o VO,
que meus filhos tanto gostam; o Asa Delta e o Surfista e agora, o Moicano de
Neymar.
Eu sempre disse que moda é a volta do tempo antigo. Naquele tempo usavam
maquinas manual tipo 00, para toucinho mesmo, a Zero e a número 1. Depois disso,
só se falava em tesoura e o chique ficava por conta da de picotar. Não é que as
maquinas voltaram? Só que agora a elétricas e os pentes é quem variam: 1, 2,3,4.
[...] Havia ainda um outro recurso utilizado pelos barbeiros, conforme lá no alto
sertão , foi fazer a barba. Como tinha o rosto murcho, o barbeiro deu-lhe uma
bolinha para colocar na boca assim facilitar a operação. Terminado o cochilo, o
freguês tira a bolinha da boca e pergunta ao barbeiro:
Eu me lembro dos cortes e de sua evolução. Havia o Maracanã, cabeleira toda cheia,
corte de artista; escovinha, que é o corte que usava Ronaldinho Fenômeno; O Busca
ré jogador Ronaldão..

Nesta crônica o escritor elabora uma retrospectiva de sua vivência no cotidiano


alagoinhense, trazendo lembranças da forma de cortar os cabelos masculinos, demonstrando o
poder que tem uma barbearia. Trata-se de um local que funciona como um jornal sempre
atualizado ao relatar as discussões e conversas sobre a vida alheia na barbearia do Sr. Lili,
barbeiro antigo na cidade. Os assuntos são vários: relembra a revista “O cruzeiro” e o gozador
o “Amigo da onça”. Era na barbearia de Sr. Lili que sempre cortava o cabelo no estilo meio
escovinha (cabeça toda raspada deixando um topete ou pimpão na frente) a pedido de seu pai.
Desse modo o escritor revive os
cortes de outrora vivenciados na barbearia de seu tio, citando o corte de Ronaldo Fenômeno,
deixando claro para a recepção leitora que não apenas atualmente as barbearias – e seus
barbeiros – se preocupam com os cortes dos jovens que pretendem imitar os cortes dos
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jogadores e atores famosos. Notamos ainda a descrição dos instrumentos que utilizavam para
cortar relacionando-os aos atuais.

JORNAL! JORNAL! (p. 37)

Como um despertador, sou acordado pelo pregão “Jornal, Jornal”! [...]


Reporto-me então aos famosos pregões que marcaram época na cidade de
Alagoinhas tais como o Homem do Amendoim Torrado o qual como se
tivesse um vibrador metálico na garganta. [...] Ainda havia um outro bem
marcante, o Zé da Jega que comprava garrafa. [...].
Mas voltando ao nosso herói, por ser cego não sabe o que ali está escrito:
porém, tem a certeza de que aquela mercadoria é de grande valor, uma vez
que foi escrita por homens estudados, falando de gente e de coisas
importantes. O homem deve ser semianalfabeto, porém grita muito forte,
despertando duplamente as pessoas de um sono letárgico e ao mesmo tempo
cultural.
[...]

José Olívio narra o tempo que esteve em Salvador em um apartamento em frente ao


Hospital São Rafael e vê da janela um homem gritando “Jornal! Jornal!” e relembra de fatos
cotidianos que ocorreram em Alagoinhas como o do homem que vendia amendoim torrado e
ele registra que tinha a impressão que ele tinha um vibrador metálico na garganta ao gritar:
“Amendoim...Torrrrrrrrrrrado”! E as crianças perguntavam: “Vende fiado”? e ele “Não vende
enrolado”! Também relembra de outro homem que vendia areia branca retirada de um morro
afastado do centro da cidade, Cachorro Magro, gritando assim “Areia Alva do Cachorro
Magro!” Nas casas antigas e principalmente nas do bairro 2 de Julho as donas de casa após
limparem suas casas nos finais de semana juntavam a areia com folhas de pitanga para
aromatizar a casa e jogavam no piso.
Observamos que os assuntos são vários, indo até as residências e seus costumes
culturais, ampliados pela criatividade do escritor. Os lares mais humildes cultuavam o hábito,
principalmente em tempos festivos de espalhar pelas salas – locais de recepção de visitas –
folhas de pitangas misturadas com a areia alva e fina da região denominada Cachorro Magro.
Neste lugar, em noites de lua cheia as pessoas e casais realizavam verdadeiras romarias em
busca dessa preciosa areia. O homem do amendoim desfilava pelas ruas da cidade e locais de
grande concentração com o corpo magro, curvo para frente e exibindo um belo nariz

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pontiagudo e, com simpatia ganhou a confiança


das famílias.

COMPADRE SARTUNINO (p. 50) (In memória Péricles de Lima)

Pois bem, falar em crescimento, principalmente em prosperidade econômica, outro


nome não me vem senão o de Saturnino da Silva Ribeiro, ancestral do amigo Dr.
Ivando Ribeiro, Ivan e das colegas de trabalho as senhoras Leda e Marizete. Dr.
Olival (advogado).
[....] De Saturnino, segundo a crônica da época, cada vagão que chegava, naqueles
bons tempos quando a Ferrovia estava em alta, um era destinado ao seu depósito.
[...].
O homem que trouxe o Banco, a Luz, fez o Coreto, o 4º Batalhão em virtude de uma
pressuposta invasão de Lampião (que acabou não ocorrendo) e foi Intendente
(prefeito da época).

Esse conto retrata a época em que a Ferrovia estava a todo vapor e em Alagoinhas seu
retorno tinha uma relação íntima com o Saturnino Ribeiro, cidadão de prestígio da região que
tinha um depósito. Percebemos o processo de emancipação e desenvolvimento da cidade, as
pessoas constroem sua identidade acompanhando seu desenvolvimento e onde se concentram
as atividades econômicas, educacional, de saúde e lazer. José Olívio foi criativo ao trazer para
as páginas de seu livro a ferrovia como excelente meio de transporte de carga e passageiro e
atualmente a população alagoinhense vive de lembranças desse tempo laborioso.

ARY CONCEIÇÃO (p. 67).

Fui seu conterrâneo. Se tive a sorte de granjear algumas amizades com a crônica,
reconheço que o Ranking poético pertencia a Ary na coluna literária do conceituado
Alagoinhas Jornal.
O poeta sempre andou ombro a ombro com a arte. [...]. Escultor foi por um bom
tempo charadista do Jornal O Nordeste, quando esta modalidade literária estava na
crista da onda. Como retratista, ele mesmo fazia a Câmara com latas grande de
querosene no tempo em que só tinha luz das 18 às 20h. Foi dentro desse processo
artesanal de fotografia que nasceu Antônia Miranda Conceição, Totinha, que veio a
ser a maior fotógrafa da região. [...]
Seu livro veio a lume, através do editor e poeta catuense Washington Oliveira com
tiragem de apenas 250 exemplares em cujo título bem expressava seu jeito: Alegria
de Viver.

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Nosso artista possuía três traços incomuns: transformava as paredes da casa em telas
onde também escrevia pensamentos, documentava poeticamente os fatos
corriqueiros de sua cidade e dedicava acrósticos a amigos seus.

José Olívio refere-se ao poeta Ary Conceição que também era artista plástico, pois
seus poemas estavam em primeiro lugar na coluna literária do atual extinto Alagoinhas
Jornal. Nesta crônica, refere-se a mais importante e conhecida fotógrafa de Alagoinhas:
Antônia Miranda (falecida), popularmente conhecida por Totinha, que deixou fotos
espalhadas pelos vários cantos da cidade em forma de quadros, livros nas casas residenciais e
cartões postais. José Olívio ao narrar sobre o poeta Ary e sua filha Totinha faz renascer nas
lembranças dos moradores de Alagoinhense o sentimento saudosista de pessoas que se
destacaram na sociedade por muito tempo. Para José Honório Rodrigues (1981, p. 48):

[...] a memória é deposito de dados, naturalmente estático, pois configura um


principio de conservação, uma simples reprodução dos sucessos anteriores, a
tradição é o respeito à continuidade dos hábitos, costumes e ideias, só a história é a
analise crítica, dinâmica, dialética, julgadora do processo de mudanças e
desenvolvimento da sociedade.

SALÃO DE BELEZA (p. 8).

Fim de ano os Salões de Beleza fica sempre abarrotados. Posso dizer, sem medo de
errar, que na minha cidade se encontramos mais chiques e antenados com o que há
de mais moderno no mercado mundial. Quando ás barbearias, essa é uma amizade
antiga.
Os pagodeiros, nas suas letras sensuais e balançadas, costumam u7sar expressão
“bota essa morena na chapa”. Imaginemos uma cabrocha pisoteando numa chapa
quente. É a impressão que nos passa quando a vemos quebrando nos pagodes da
vida. Pois bem. Chapa me lembra chapinha, dar chapinha. Antigamente dizia-se
“fazer cabelo”, Isto é, dar ferro no cabelo. Eu recordo de Lourdes, secretária do lar,
no fundo do quintal passando ferro no cabelo, quando eu era menino e morava no
Jardim Teresópolis. Acendia o fogareiro e colocava uma espécie de alicate grande de
vergalhão no fogo como se estivesse assando churrasco e depois começava a passar
no cabelo. Tinha o ferro de alisar e o de cachear. Semelhante á uma tesoura, o de
enrolar era liso encurvado na ponta e o de cachear tinha na extremidade duas
chapinhas. Não havia palavra chapinha, escovinha e nem cabeleireiro.
Hoje temos a Escovinha e a Chapa elétricas, e, diferentes daquele tempo, é, dada
também nos cabelos masculinos.
Tenho saudades daquelas tardes em que Lourdes dava ferro no cabelo enquanto
ouvia O Rei das Tardes, Armando Mariano Show (hoje fazendo Balanço Geral) na
Rádio Sociedade da Bahia , que meu pai , Oliveiras insiste em chamar de PRA4. As

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tardes costumavam variar. Ás vezes era para passar roupa, engomar com anil, num
ferro de carvão. Tudo na base do sopro e brasa vermelha. Naquele tempo não havia
rádio FM, celular, internet e se alguém ligasse um aparelho com controle remoto,
seria equivalente a um filme de ficção cientifica.
Que papos rolam hoje nos cabeleireiro ou cabeleireiras, enquanto dão chapa ou
escovinha?! Pergunto á minha irmã Dacira, dona de um Salão de Beleza. Ela dá de
ombros e diz: - Sei lá! Deve ser o mesmo de seu Conversa de Barbearia.

No conto “Salão de beleza”, o proprietário e funcionários produziam beleza com os


recursos da época. É que em épocas de festa estes viviam “abarrotados” o escritor faz uma
comparação da forma de arrumar os cabelos femininos antigamente com os dias atuais.
Antigamente passava ferro nos cabelos à brasa e hoje é com chapinha elétrica. Antes, para
conseguir o efeito liso as mulheres abrandavam as ondas da cabeleira com a ação do calor,
com toalhas molhadas em água fervente e barras de ferro aquecidas em carvão. Desde então
diversas invenções foram surgindo, uma mais inusitada e com maior precisão do que a outra
até os dias atuais com a chapinha elétrica. É das lembranças de infância que ele lembra
quando morava no bairro do Jardim Teresópolis, que tinha uma vizinha que no fundo do
quintal acendia um fogareiro e colocava o ferro para alisar os cabelos: ”Eu recordo de
Lourdes, a secretária do lar, no fundo do quintal passando ferro no cabelo quando eu era
menino.” (OLÍVIO, p. 8).

A MULHER QUE NÃO ME CUMPRIMENTAVA (p.10).

Vejo a mulher que não me cumprimenta. Olho-a mais de uma vez; examino seus
traços imunes ao tempo. Há anos que nos conhecemos, embora nunca tivéssemos
nos falando. Tem ela um quê que a torna diferente das outras mulheres que conheço:
ser indiferente á minha pessoa. Ás vezes acontece nos batermos de frente numa loja
qualquer ou num supermercado e ela então volta o rosto para um ponto vago
procurando algo que não existe. Mas se nos magoa alguém que se recuse em nos
cumprimentar, não sinto isso em relação á Mulher que não me cumprimenta, porém
uma certa magia, um certo encanto por esse tabu que se quebrado perderia a graça.
Agora mesmo tenho-a na minha frente ladeada por alguém que bem poderia ser seu
marido. Mas olhando direito, trata-se de um jovem rapaz que abraça carinhosamente
porque é seu filho; [...] Acompanhei-a desde mocinha; seus primeiro folguedos da
vida colegial; os passeios na praça aonde eu também ia flertar. Observo agora seu
rosto moreno e virado, óculos escuros, cabelos esfarelados na testa e a determinação
firme de não me encarar. Não há aliança no seu dedo nem marca dessa aliança. Que
teria acontecido com a vida conjugal da Mulher que não me Cumprimenta e que faz
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de seu filho um porto-seguro?! Não me atreva a saber.


De repente o ônibus para. A Mulher desce e com ela o seu filho guardião e rumam
para uma casa que propositalmente fica na esquina onde passo e ela sempre me vira
o rosto.
Nessa casa mora a Mulher que não me Cumprimenta, penso todas as vezes que ando
por ali.
Pode ser que alguém algum dia aconteça de quebrar esse encanto me apresentando à
Mulher que não me cumprimenta e ela, meio desconcertada, por certo dirá “ah já
conhecia de vista, mas não sabia o seu nome” e esse nosso pacto secreto chegue ao
fim.
A crônica “A mulher que não me cumprimentava” destaca pessoas que se veem
sempre e não se cumprimentam. O autor ressalta uma mulher que o via sempre, mas não
falava com ele e nem ele falava com ela, só através de olhares: “Mas se nos magoa alguém
que se recuse em nos cumprimentar, não sinto isso em relação á Mulher que não me
cumprimenta, porém uma certa magia, um certo encanto por esse tabu que se quebrado
perderia a graça.” (OLÍVIO, p.10).

AFRICANA (p. 12-13).


Sento-me no banco do Shopping Laguna (Lagoa) e fico a assistir ao desfile de
argolas. Sou então movido por um espírito de pesquisa. Concentro-me não no rosto
das beldades, mas num pequeno artefato que até bem pouco tempo atrás era o
divisor de águas entre o macho e a fêmea usado nas orelhas. Descubro que, pelo
menos uma em cada três, usa africana, o que realmente faz jus ao nome, vez que
argola sempre foi confundida com brinco. [...]
Assim é que é o desfile é mesmo variado. Umas usam pendurados verdadeiros
lustres; outras correntinhas, pingentes, coraçõezinhos, e, umas pouquíssimas,
pérolas. Todas garbosamente na chic avenida do Shopping.
O balançar das correntes ou bamboleio das africanas enunciam o estado psicológico
das usuárias. Umas ali estão para comprar presentes ou objetos de uso pessoal – é o
espírito da pechincha; há as que passam céleres com ar tipo se eu não correr perco o
bonde; ainda existem as descontraídas como flores ao sabor do vento no jardim e As
procurasse um coração para argolar ao seu.
Argola, argolas, de todo tem. Algumas não chegam a dar uma volta inteira, não
fecham a circunferência. É bom ver o desfile das argolas. Não confundir com a
Corrida de Argolas nas fazendas da vida, sem lhes tirar o brilho, evidentemente.
Faz parte da cultura indígena usarem-nas em profusão nos lábios, principalmente.
Ver as mulheres usando- ás me faz muito bem pelo bem que faz elas se sentirem.
Imagina ser mais uma influência indígena. Sinto-me feliz em ser um varão para
melhor aprecia-las, mesmo sendo um melancólico varão.

No conto “Africana” (argola grande) destaca um artefato que por muito tempo era tido
como uso exclusivo das mulheres. José Olívio observava o desfile das argolas nas orelhas das
mulheres sentado no banco do Shopping Laguna. Os padrões estéticos são diferentes. Muitas
vezes o que consideramos algo bizarro e feio, para alguns é algo com significado especial e
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uma busca por outro padrão de beleza: “Verifico que as loiras são as primeiras a usar as
africanas, mas quando é numa mulata, é um charme só!” (OLÍVIO, p.12).

MULHER BONITA (OLÍVIO, p.45).

Nada na vida para chamar tanto a atenção quanto uma mulher bonita. É o que
pensam os amantes do “belo sexo” ou “do sexo frágil”. O culto às bonitas vem desde
os tempos bíblicos; já naquele tempo sempre fora tema da cobiça masculina. [...]
Por convenção, associou-se bondade à beleza. A bruxa porque é má, termia sendo
feia; a fada por ser bondosa, é bonita. Daí as citações “diga aí, Princesa”! Fartamente
utilizadas nas músicas. [...] Já dizia o poeta Vinícius de Morais: “As feias que me
desculpem, mas beleza é fundamental!” Depois, ele mesmo andou a querer remendar
não sei como, porém isso não ficou muito bem esclarecido.
[...]

Neste conto minha análise começa pela seguinte pergunta: o que adianta a pessoa ser
bonita, mas não ser admirada? Não vamos ser hipócritas e dizer que beleza não importa, mas
com o tempo aprendemos que as pessoas só precisam ser bonitas para nós, não para os outros.
E o que é bonito para uns, nem sempre é igual para todas as pessoas. Muitas mulheres lindas
vivem em busca de um padrão de beleza que a sociedade impõe não se reconhecem bonitas
com suas características próprias, estudando, assistindo programas e filmes preconceituosos,
em que a mídia mostra formas necessárias para se adequar às exigências sociais. Não adianta
ser bonita por fora se é feia por dentro, não adianta ter salto, e não saber andar, não adianta ser
quente, e não pegar fogo, e não adianta ser mulher se não se comporta como uma. E no fundo
o que todo mundo precisa é ter alguém para acrescentar, conversar e divergir de opiniões, algo
necessário para gerar amizade, companheirismo e respeito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a leitura do livro de crônicas Conversa de barbearia e analisar os textos


selecionados foi perceptível a preocupação do autor em manter vivas as recordações e
acontecimentos de um povo. As histórias do passado evocam recordação que merecem ser
conservadas na memória. Reviver possibilita a atualização de impressões ou informações
passadas, fornecendo um processo de marcação, memorização e registro, assegurando a
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passagem da esfera auditiva à esfera visual. A memória escrita confere um suporte especial,
ampliando-a, transformando-a, e estabelecendo a fronteira onde esta memória coletiva torna-
se memória social, ressalta Le Gof. (1997).
Este artigo aborda as fontes escritas como possível material significativo na
construção da historiografia de uma cidade a partir de documentação e da oralidade,
ressaltando o sujeito a partir da memória como forma metodológica viável e confiável.
Analisando parte considerável dos arquivos locais, percebemos que José Olívio destaca-se no
cenário literário da região, prevalecendo a ideia patriarcal do escritor sair na dianteira das
escritoras, embora esta já tenha avançado nesse cenário.
Assim sendo, José Olívio representa Alagoinhas através de crônicas que narram às
memórias dos seus habitantes e têm valor inquestionável para mantê-las vivas e garantir um
sentimento de pertencimentos entre as/os moradores e seus lugares de origem. Por isto, trata-
se de textos cujos registros datam do século XX que, acreditamos, possui valor inestimável
para a educação regional, pois a abordagem temática incide em temas e personagens que
refletem e representam as identidades da população alagoinhense.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das letras,
1994.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Global, 2003. 6 vol.
LE GOFF, Jacques. Memória. In ___ Romano Rugiero. Enciclopédia Elinaudi.s.l.
LIMA, José Olívio Paranhos. Conversa de barbearia. Alagoinhas: Gazeta dos Municípios,
2011.
RODRIGUES, José Honório. Filosofia e história. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

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AS CONTRIBUIÇÕES DE LUIZ OSWALDO SANT´IAGO MOREIRA DE SOUZA À


EDUCAÇÃO SUPERIOR NA TERRA DOS MONÓLITOS

Keila Andrade Haiashida | keilandrade@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Neste estudo postularemos a instrumentalidade educativa da biografia, que para


Carino (1999) pode ser traduzida tanto na intenção implícita de um biógrafo (a biografia de
um educador, dificilmente deixará de ser intencionalmente educativa), quanto na força
educativa do trabalho biográfico produzido.
O estudo biográfico aborda trajetórias individuais, já a educação embora lide com o
indivíduo, trata o coletivo: normas, valores, através dos quais o indivíduo participa da vida em
sociedade. Um desafio tem sido identificar as intersecções entre a trajetória individual e sua
relação com práticas mais amplas como a educação. Dessa forma, nosso objetivo foi
identificar que aspectos da trajetória individual do professor Luiz Oswaldo influenciaram sua
ação educativa.
Para Pucciarelli (1944, p. 21) “o espírito do tempo atua sobre todos os indivíduos de
uma época [...]”. Assim, cada indivíduo é o resultado de uma simbiose entre o momento
histórico que viveu, ou seja, das características políticas, culturais e sociais de uma época e de
seus atributos pessoais, sua subjetividade.
A Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC/UECE)
foi fomentada no final da década de 1970, por um grupo de pessoas lideradas pelo professor
Luiz Oswaldo Santiago Moreira de Souza. O final da década de 1970 foi um período de
intensa efervescência política e cultural, destacava-se a atuação do movimento estudantil
protagonizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE), que nesse período vivenciou o
processo de reconstrução da instituição marcado por grandes passeatas com destaque para a
de 1976 e, principalmente, a de 1977. Nesse mesmo ano foi realizado o III ENE (Encontro
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Nacional de Estudantes) na PUC-SP. Os estudantes lutaram pela reforma universitária, pela


legalidade da instituição, por liberdade de expressão, autonomia e no início da década de 1980
pela redemocratização do país. Paralelamente, nas esferas governamentais defendia-se a ideia
de que a educação seria importante instrumento de desenvolvimento e modernização do país.
Assim, empreenderam-se esforços para que a situação econômica nas regiões menos
desenvolvidas como o nordeste pudesse figurar nos projetos nacionais. As IES passaram a ser
reconhecidas como instrumentos de inserção de diferentes regiões no projeto de modernidade
nacional.
“Na biografia é onde se expressa de maneira mais simples esta valoração
independente da pessoa [...]” (DILTHEY, 1945, p. 356). Assim, a biografia tida como arte de
narrar vidas, embora aborde particularidades e especificidades, extrai de cada experiência
tipicidades. Para realização da coleta de dados foram adotados alguns procedimentos como:
revisão da literatura sobre as teorias e categorias teóricas abordadas; pesquisa documental
com levantamento a partir de fontes primárias e secundárias, como entrevistas, fotografias,
análise de jornais publicados na época da criação das instituições, dentre outros.
PREÂMBULO DE UMA HISTÓRIA
A história de vida do professor Luiz Oswaldo nos ajuda e entender sua
“imaginação”. Para Bronowski “o que faz com que a máquina biológica do homem seja tão
poderosa é o fato de modificar as suas ações por meio da imaginação1, tornando-o capaz de
simbolizar, de projetar-se às consequências de seus atos, de conceber planos e sopesá-los [...]
(1998, p. 07). O autor propõe que pela imaginação podemos inventar, criar, conceber,
simbolizar, podemos antever ações e analisar consequências. Significa que o homem pode
imaginar situações diferentes daquelas que estão diante de seus olhos e mais, podem evocar
objetos ausentes. É a partir dessa perspectiva que apresentamos o professor Luiz Oswaldo
como importante ator social para os investimentos educacionais em Quixadá e em toda região
do sertão central cearense.
Sem qualquer intenção de mitifica-lo esperamos, apenas, explicitar que pessoas e
instituições tiveram relevância para a interiorização do ensino superior nesse município. E por
intermédio da análise de narrativas e documentos evidenciar que não foram quaisquer pessoas
1
Grifo nosso.
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ou quaisquer instituições que participaram desse movimento, mas sim pessoas e instituições
com
imaginação na ótica de Bronowski, ou seja, capazes de imaginar uma cidade/região diferente
e de evocar uma instituição ausente para esse espaço.
O professor Luiz Oswaldo teve e tem um papel de destaque na educação,
especialmente superior, no município de Quixadá. Pedagogo, Filósofo, Mestre em Educação,
professor, militante, radialista, escritor, funcionário do Banco do Brasil, estudioso de Paulo
Freire e partidário de suas ideias, são algumas das inúmeras ocupações que assumiu ao longo
de sua vida. Ele afirma ter feito parte de uma juventude (década de 1960) “que se julgava
democrata, que tinha brigado contra a ditadura, e que entendeu que a revolução não era tomar
o poder, mas era transformar profundamente tudo2”. Para ele, essa juventude fez a “revolução
da moda, do sexo, das drogas, da igreja ou das igrejas, da cultura, música, literatura, de tudo, é
uma juventude que marcou as juventudes que vieram depois”. Por ter feito parte desse
movimento ativamente, tendo sido expulso da Faculdade e impedido de estudar por 15 anos
ele acreditava “poder vencer certas coisas”.
Um de seus grandes desafios foi à criação de uma faculdade em Quixadá, essa
proposta foi gestada, como dito anteriormente, na década de 1970, quando a sociedade
quixadaense reclamava a ausência de cursos superiores para formação de seus filhos. Nessa
época, a educação era reconhecida como possibilidade de ascensão social e as famílias que
tinham recursos enviavam seus filhos para estudar em Fortaleza ou outras cidades e morar
geralmente na casa de parentes. Os que saíam de sua cidade natal para passar 4, 5 anos
estudando, não acreditavam que valia a pena empreender tamanho esforço para ser professor.
Frequentemente, as famílias ansiavam a volta de um “doutor” que, nesse caso, era sinônimo
de médico, advogado, engenheiro ou qualquer outra profissão que historicamente tenha
alcançado status social.
Nas escolas, entretanto, era comum associar os problemas educacionais a falta de
qualificação do quadro docente e a falta de qualificação dos professores a inexistência de
Instituições de Ensino Superior na região, isso impulsionou debates e mobilizações em defesa

2
Para escrita do projeto utilizamos trechos da entrevista feita pela autora com o professor Luiz Oswaldo em
2012.
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de uma instituição de ensino superior que atendesse aos municípios integrantes do sertão
central cearense.

A FECLESC começou de uma queixa que havia na cidade, ou melhor, no município


de Quixadá com relação a sermos a única região do Estado que não tinha curso
superior para formação de professores. No litoral tinha Fortaleza com suas
universidades, à zona norte tinha, não lembro como se chamava se era Faculdade de
Filosofia Dom José uma coisa dessa que deu origem depois a UVA, o Cariri tinha
também algumas faculdades que depois
deram origem a URCA, a região do Jaguaribe tinha a FAFIDAM e ali morreu
coincidentemente. Na zona norte, Cariri e a região do Jaguaribe tinham unidades de
ensino superior implantadas pela Igreja Católica, quando eu cheguei aqui à igreja
católica não entrava mais nessa discussão sobre criar faculdade, voltou depois [...]
(SOUZA, 2012).

Nesse trecho e em outros da entrevista realizada em 2012, o professor Luiz Oswaldo


evidencia aspectos importantes da criação da FECLESC: seu protagonismo no movimento de
criação da Faculdade, os anseios da sociedade quixadaense, as instituições existentes na época
e a ação da igreja católica.
Luiz Oswaldo foi partícipe de todas as ações que culminaram na criação da
FECLESC, dentre as quais destacamos sua atuação nas escolas da região: no Colégio
Sagrado Coração de Jesus, Colégio Estadual Coronel Virgílio Távora e Ginásio Municipal
como palestrante e orientador pedagógico. A experiência nas escolas possibilitou conhecer as
reivindicações dos professores por melhor qualificação e vivenciar os problemas da educação
básica, inclusive no tocante a sua oferta. A assunção do cargo de diretor do Departamento de
Educação, na gestão do prefeito Aziz Okka Baquit (1973-1977) cargo que lhe permitiu
empreender ações que garantissem a expansão das matrículas na educação básica e
consequentemente criassem uma demanda por ensino superior. A presidência da Fundação
Educacional do Sertão Central (FUNESC) criada pela lei municipal nº 842/76 com o objetivo
de ser a mantenedora da Faculdade de Filosofia João XXIII3 (criada por intermédio de uma lei
municipal de 1973). A direção da Faculdade de Filosofia João XXIII e, posteriormente a
direção da FECLESC.
Conforme dito anteriormente a história de vida, as referências e experiências do

3
Faculdade que foi incorporada pela Universidade Estadual do Ceará.
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professor Luiz tornaram-no uma figura de grande relevância para educação. Em um dos
trechos da entrevista suas influências chamam atenção, primeiro quando cita Geraldo Vandré
e suas canções “Porta Estandarte”, “Arueira” e “Pra não dizer que não falei de flores” músicas
que se tornaram ícones da oposição ao regime militar de 1964. Para ele a temática de Vandré
nessas três canções era a esperança; depois quando menciona Pedagogia do Oprimido uma
das obras mais conhecidas de Paulo Freire, na qual apresenta a contradição entre opressor e
oprimido; a educação bancária como instrumento de opressão; a dialogicidade como essência
de uma educação libertadora, dentre outros conceitos que influenciaram profundamente a
educação.
[...] o Vandré começa compondo uma canção no início da vida dele, onde ele fala de
certezas e esperanças pra trocar por dores e tristezas que eu bem sei um dia ainda
vão findar, um dia que vem vindo, que eu vi pra contar. Na minha dissertação de
Mestrado eu chamo isso de concepção infantil de esperança, eu sento, espero que o
dia mude e quando o dia mudar vou cantar, o dia não muda. Ele evolui e escreve
outra, a primeira foi “Porta
Estandarte” e a segunda é “Arueira” vim de longe, vou mais longe, quem tem fé vai
me esperar, escrevendo uma conta, pra junto à gente cobrar, no dia que já vem
vindo, que esse mundo vai mudar é a volta do sertão de arueira no lombo de quem
madrugar. Eu chamo isso de concepção adolescente de esperança ele continua
esperando o dia mudar, mas inquieto, fazendo conta pra cobrar. Então ele cria uma
concepção adulta de esperança vem vamos embora que esperar não é saber, quem
sabe faz a hora não espera acontecer, muito condizente, não é nem saber o dia, é
saber cada hora do dia, muito condizente porque na mesma época o professor Paulo
Freire dizia na “Pedagogia do Oprimido” movo-me na esperança enquanto luto e se
luto com esperança alcanço (SOUSA, 2012).

A partir dessas referências, o professor Luiz Oswaldo afirma que a esperança “não
era um cruzar de braços, a esperança é construí-la” e partindo dessa ideia ele lançou um
desafio a seus pares – o de construir uma Faculdade em Quixadá. Desde então foram mais de
3 décadas de contribuições à educação. Em minha tese de doutorado fica evidenciada a
importância da Faculdade de Educação, Ciências e Letras (FECLESC) unidade acadêmica da
Universidade Estadual do Ceará (UECE) em Quixadá para toda região do sertão central
cearense e a pessoa insistentemente citada pelos entrevistados ao resgatar a história da
instituição foi o professor Luiz Oswaldo. Pelas razões brevemente anunciadas defendemos a
relevância de biografar e fazer conhecer esse educador.
A PARTICIPAÇÃO DO PROFESSOR LUIZ OSWALDO NA CRIAÇÃO DE UMA
INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR EM QUIXADÁ

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O município de Quixadá não se tornou uma cidade universitária abruptamente, esse


adensamento de Instituições de Ensino Superior foi consequência de um processo anterior de
evolução da educação que criou uma demanda por formação de professores. Para
compreendermos como os investimentos em ensino superior tiveram origem, foi necessário
uma digressão histórica que resgatasse trechos desse percurso instrucional.
Os desafios educacionais que Quixadá enfrentou na década de 1970 foram
consoantes com o atraso da região Nordeste em relação às regiões Sul e Sudeste. Segundo o
professor Luiz Oswaldo, Quixadá “era um município tratado a pão e água”. Na entrevista,
questionamos como ocorreu a expansão das matrículas na educação básica, primeira ação para
criar a demanda do ensino superior.

Veio do departamento municipal de educação, abri sala de aula, eu agrupei salas de


aula, fiz todo um movimento para isso e, paralelamente a isso a gente brigava nas
comunidades, brigava não, atiçava as comunidades no sentido da gente criar uma
faculdade de educação. Tentei avançar no ensino do primeiro grau e tivemos atos
que eu refuto muito corajosos para a época. Na época nem todos os municípios
tinham uma escola completa de primeiro grau até a oitava série, poucos nesse
interior nosso do Nordeste tinham segundo grau, geralmente um cursinho, normal
então na época nós começamos a criar o que chamávamos de ginásio, na época da
zona rural, a gente pagava melhor professores que iam para zona rural e a gente
criava escola de primeira a oitava série na zona rural e subia todo ano uma série.
Implantamos ginásio no Banabuiú, uma consequência disso é que três municípios se
separaram da gente porque voltaram a crescer. Itapiuna era um município que
voltava a crescer [...] Encampei um ginásio particular da Fundação Maximiliano lá
do Banabuiú e criamos o ginásio do Choró o Dom Bosco, que de repente passou a
ser considerado o melhor de todos os municípios, aí no ano seguinte criamos o São
Luis lá em Ibaretama no outro ano Custódio e Nova Vida também em Ibaretama.
Ibaretama separou-se; Choró separou-se, Banabuiú separou-se. Quixadá foi dividida
em quatro eu credito muito isso a essa mudança (SOUSA, 2012).

Nessa fala podemos identificar algumas ações que visavam à expansão da educação
básica no sertão central cearense, por intermédio da multiplicação na quantidade de vagas a
partir da ampliação no número de séries ofertadas e de escolas. Em seguida, a educação como
propulsora do crescimento e desenvolvimento regional. A educação figura como um dos
indicadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), pois se reconhece a relevância da
Educação para melhoria da qualidade de vida da população. Desde a década de 1990, Quixadá
mantém seu IDH em nível considerado médio pelo IPECE.

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Conforme já mencionado na campanha eleitoral de 1972, Aziz Baquit, inscrito pela


legenda do MDB, enfrentou o candidato do ARENA e venceu. Baquit tinha em sua campanha
se comprometido com a criação de uma Escola Superior no município e contou com a
colaboração do professor Luiz Oswaldo, que assumiu a Diretoria de Educação e Cultura do
município, e, por causa de seu prestígio, conseguiu o apoio dos quixadaenses para criação de
uma faculdade, sonho antigo dos moradores da região. Inicialmente, a prefeitura de Quixadá
criou, através de uma lei municipal de 1973, a Faculdade de Filosofia João XXIII,
posteriormente (pela lei municipal nº 842/76) foi instituída a Fundação Educacional do Sertão
Central (FUNESC). A FUNESC foi idealizada para funcionar como mantenedora da
Faculdade, tendo como presidente e vice-presidente o professor Luiz Oswaldo Santiago
Moreira de Sousa e o Bispo de Quixadá Dom Joaquim Rufino do Rêgo.
Após a criação da FUNESC, a população local e os representantes da fundação
começaram um processo de articulação para a construção de uma sede própria. A primeira
conquista foi à doação do terreno por um morador local, o senhor Joaquim Gomes da Silva
(mais conhecido como seu Quinzinho). O terreno onde havia funcionado um antigo
matadouro possui área de 10.000m2, na zona urbana de Quixadá. Na época, essa era uma área
pouco povoada, com rua de terra, relativamente distante do centro da época, onde se
localizava a igreja matriz. Os materiais para construção do prédio foram doados e a mão de
obra foi composta por voluntários e pessoas contratadas, o pagamento destes contratados era
feito com doações feitas por dom Rufino, Aziz Baquit, dentre outros.

Quando a FUNESC iniciou as obras possuía em caixa CR$ 29,00 e uma folha de
pagamento semanal no valor de CR$ 35.000,00. Para que as finanças pudessem ser
equilibradas o ex-prefeito Aziz Baquit emprestou dinheiro à fundação, sem cobrar
juros o que custeou boa parte da obra. Dom Rufino vendeu terras pertencentes à
Diocese na Serra do Estevão e fez uma doação de CR$ 10.000,00. Valdemar de
Alcântara, governador em exercício do Ceará na época, estava de passagem para a
Serra do Estevão nos o aguardamos e depois de apresentar todo o projeto e
relatarmos o que já havíamos conseguido ele fez uma doação de CR$700.000,00. Na
inauguração, o Governador Virgílio Távora doou CR$ 3.000.000,00 e com esse
valor conseguimos saldar todas as dívidas. (SOUSA, 2012).

No dia 13 de agosto de 1978 ocorreu a solenidade de lançamento da Pedra


Fundamental da Faculdade de Filosofia João XXIII. Na oportunidade, seu Quinzinho recebeu

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o título de membro benemérito da FUNESC. Estavam presentes o prefeito de Quixadá Renato


de Araújo, professor Luiz Oswaldo, o bispo dom Rufino, dentre outros.
Seu Quinzinho doou, além do terreno, material de construção e livros. A construção
do prédio da qual a comunidade participou ativamente foi concluída em 1980, quando o
governo do estado e o Banco do Brasil doaram móveis e equipamentos. A Faculdade foi então
inaugurada com muitas festividades.
“Apesar do sacrifício imposto pelas dificuldades que foram enormes, o prédio estava
concluído. Não poderíamos avaliar a ferrenha batalha que nos esperava para satisfazer a
burocracia e conseguir a aprovação dos cursos que deveriam ser oferecidos” (SOUSA apud
COSTA, 2002, p. 271). Os trâmites burocráticos dificultaram muito a aprovação do projeto,
as informações eram incompletas e as reivindicações ignoradas. Assim, a direção da FUNESC
começou a refletir acerca da possibilidade de agregar a recém-criada faculdade a uma das
universidades do estado. Duas instituições demonstraram interesse: a Universidade de
Fortaleza (UNIFOR) e a UECE. O governador Luiz Gonzaga Fonseca da Mota autorizou a
encampação pela UECE em 1983, ano em que, mesmo sem estrutura, várias unidades no
interior foram criadas pela UECE, destacamos a unidade de Quixadá que não manteve a
denominação Faculdade João XXIII, nem o nome da FUNESC, as unidades de Cedro, Ipu,
Redenção e Ubajara, essas quatro últimas fecharam, por absoluta falta de condições de
funcionamento. Somente se mantiveram as sedes de Quixadá, Iguatu, Itapipoca e Crateús,
todas criadas na mesma época. Os primeiros cursos ofertados pela faculdade, que depois de
encampada pela UECE foi denominada Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão
Central (FECLESC) foram de especialização e eram voltados para os professores da região.
Os cursos aconteceram a partir de um convênio da então Faculdade de Filosofia João XXIII
com a Faculdade de Filosofia em Fortaleza.
Dessa forma, no primeiro semestre de 1983, a FECLESC realizou vestibular para os
cursos de Licenciatura Curta em Ciência e Licenciatura Plena em Pedagogia. No segundo
semestre do mesmo ano foi ofertado o curso de História. Ainda em 1983 foi realizado o
primeiro concurso público de provas e títulos para professores da UECE no interior do estado.

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Em janeiro de 2005, a FECLESC realizou pela primeira vez, vestibular para os


cursos de Biologia e Física. Para o coordenador do curso de licenciatura em Ciências, Salim
Hissa Neto, o fato representava uma vitória para o sertão central.

A abertura desses cursos é importante não apenas para Quixadá, mas também para
as cidades circunvizinhas, como Ibaretama, Quixeramobim, Itapiúna e Choró.
Temos uma carência grande de professores de ensino médio nas áreas de ciências
exatas e naturais, daí a importância de formarmos esses profissionais”. “Ademais”,
explica Hissa Neto, “é estratégico que formemos biólogos com sólidos
conhecimentos sobre a ecologia da caatinga, para que os municípios do sertão
central possam contar com quadros especializados na promoção do desenvolvimento
sustentável. (HISSA NETO in Diário do Nordeste, 2004, p. 01).

A citação precedente ilustra a importância da FECLESC para formação de


professores do sertão central e a preocupação com o conhecimento das particularidades
regionais. Outro aspecto interessante enunciado na época era o perfil dos estudantes pela
coordenadora acadêmica:

Até cerca de 5 anos predominavam estudantes de faixas etárias mais elevadas,


geralmente professores de ensino médio próximos da aposentadoria. Hoje,
percebemos uma mudança importante, a maioria dos calouros são jovens do Sertão
Central, ou seja, estão interessados em seguir uma carreira acadêmica e muito
podem contribuir para o desenvolvimento da região (ANA LÚCIA in Diário do
Nordeste, 2004, p. 02).

De fato, esse perfil de jovens recém-saídos do ensino médio é o que persiste até hoje.
Cremos que a demanda represada foi formada nos primeiros anos de funcionamento da
faculdade.
Em 1995, o então Reitor da UECE, professor Paulo de Melo Jorge Filho aprovou a
instalação dos Campi Avançados da Região do Vale do Curu, Região Maciço do Baturité e
Região Central II. No artigo 2º o documento propõe “Os campi avançados, ora criados,
deverão ser direcionados no sentido de promover a melhoria das condições socioculturais e
educacionais das populações envolvidas, pela oferta de cursos de graduação e serviços
extensionistas. O Regimento dos Campi Avançados foi definido na gestão da professora
Fátima Maria Leitão Araújo (diretora da FECLESC), todavia os cursos deixaram de ser
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ofertados, pois o convenio celebrado entre a UECE e as prefeituras municipais não foi
cumprido pelas prefeituras.
Segundo dados do segundo semestre de 2012 a FECLESC oferece oito cursos de
graduação, todos na área de licenciatura: Pedagogia, Letras (Português), Letras (Inglês),
Ciências Biológicas, Química, Física, Matemática e História, possui em seu quadro funcional
72 professores e 25 funcionários. A instituição tem 1058 alunos oriundos de diversas
localidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRONOWSKI, Jacob. O olho visionário: ensaios sobre arte, literatura e ciência. Tradução:
Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
CARINO, Jonaedson. A biografia e sua instrumentalidade educativa. Educação &
Sociedade, ano XX, nº 67, Agosto/99. Disponível em:
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/veiculos_de_comunicacao/EDS/
VOL20N67/EDS_DEBATES20N67_4.PDF. Acesso em: 22/11/2014.
Diário do Nordeste on line. Sertão Central se consolida como polo universitário. Diário do
Nordeste on line, 2004. Disponível em:
http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2004/07/19/502176/serto-central-consolida-
como-polo-universitario.html. Acesso em: 19/02/2011.

DILTHEY, Wilhelm. Psicología y teoría del conocimiento. México: Fondo de Cultura


Económica, 1945.

PUCCIARELLI, Eugenio. Introducción a la filosofía de Dilthey. In: DILTHEY, Ghillermo.


La esencia de la filosofía. Buenos Aires: Losada, 1944.

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AS DRAMISTAS NO THEATRO PEDRO II: PRÁTICAS CULTURAIS E


ESTÉTICAS

Hugo de Melo-Rodrigues | hugode@hotmail.com


Tânia Maria de Sousa França
Cícera Sineide Dantas Rodrigues

INTRODUÇÃO

As primeiras experiências teatrais no Brasil é marcada com a chegada dos jesuítas,


século XVI, que tinham como objetivo catequizar os índios e se utilizaram da música e do
teatro para concretizar esta missão. “O teatro jesuítico era um espaço de aprendizagem da
virtude ou uma instância espiritual e moral, de forma que funcionasse como exercício para ver
e viver a realidade filtrada pela poesia, pela dramaturgia para atender aos propósitos
pedagógicos” (MADEIRA, 2014, p. 92-93).
Mas, o que é teatro? No intuito de responder essa pergunta, acreditamos que o teatro é
um lugar, um edifício, uma construção especial projetada para fins de representações teatrais.
O teatro pode ser também o lugar onde se passam certos acontecimentos que acompanhamos
como espectadores, assim como o teatro do crime, da guerra, das paixões humanas. Podemos
chamar igualmente de teatro aos grandes acontecimentos sociais, assim como as ações
repetitivas da vida cotidiana (BOAL, 2006).
Compreendemos, então, que o teatro é uma prática cultural e estética e como tal fala
de uma dada sociedade em um local e época (BARTHES, 2004). Sabemos, ainda que o teatro
como tal vem ao longo do tempo se tornando um espaço de presença feminina.
O presente trabalho buscou refletir sobre as práticas culturais e estéticas das dramistas
no Theatro Pedro II, em Viçosa do Ceará, tendo como suporte a seguinte indagação: Como
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eram as práticas culturais e estéticas das dramistas no Theatro Pedro II em Viçosa do Ceará?
O estudo é parte integrante de um projeto mais amplo, denominado Educação estética e
patrimônio cultural no contexto do ensino de Arte, do grupo de pesquisa Investigação em
Arte, Ensino e História – IARTEH, formado por professores, alunos de graduação e alunos de
pós-graduação do Centro de Educação e de outras unidades da UECE, convergindo com as
pesquisas de mestrado e doutorado desenvolvidas pelos respectivos autores.
Do ponto de vista da metodologia a abordagem caracteriza-se como qualitativa, por se
tratar de uma perspectiva de investigação na qual os fenômenos são examinados de tal modo
que nada é considerado trivial, pois “[...] tudo tem potencial para construir uma pista que nos
permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de estudo”.
(BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 49), com a utilização de fontes bibliográficas, análise
documental e entrevista com a dramista Maria Cassiana de Arruda, conhecida pelo nome de
Maria júlia Arruda, que participou do Theatro Pedro II. O lócus da pesquisa é o Theatro
Pedro II, em Viçosa do Ceará. A escolha se deu por ser o segundo teatro mais antigo do
estado e pelo envolvimento de um dos autores com a Cidade de Viçosa do Ceará. Sob esse
aspecto, a escolha reflete a necessidade do emprego de processos que possam tornar
discutíveis e evidentes tanto o Theatro Pedro II em Viçosa do Ceará como lugar de memória,
como as práticas culturais e estéticas das dramistas, indagando, contestando, confrontando
informações e trilhando caminhos de significação.

O texto está organizado em três partes além da introdução. Inicialmente trazemos


uma breve contextualização do Theatro Pedro II, em seguida apresentamos uma reflexão
sobre as dramistas, suas práticas culturais e estéticas e por fim as considerações finais.
Estrutura que passamos a discorrer a seguir.

CONTEXTUALIZANDO O THEATRO PEDRO II

Após um banquete Dionisíaco, aos 6 de junho do ano de 1759 no aniversário de D. José


I, rei de Portugal é criada a vila Viçosa Real4,

4
Vila Viçosa Real, denominada de Viçosa do Ceará está localizada a 348,8 km da capital, Fortaleza, na
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[...] aos sete dias do mês de julho de 1759, pela manhã, após a reunião de toda a
povoação no centro da aldeia e ao som de altos brados: Viva o Senhor Rei D. José
Primeiro de Portugal, estava criada com pelourinho levantado – representação clara
da autonomia municipal – Vila Viçosa Real, a antiga aldeia de Ibiapaba (MAIA,
2014, p. 229).

O nosso olhar de pesquisadores, volta-se para “a Vila de Viçosa, sendo lugar de


hospedagem de nossas buscas e atualizações discursivas, por necessidade de revisitação
histórica, de onde avistamos a exuberante paisagem e o carrossel temporal, que nos unem e
separam, por meio de abismos colossais” (CAVALCANTE, 2014, p. 36).
Viçosa do Ceará se constitui como uma das mais antigas cidades, que tem a sua
identidade marcada pelas tradições culturais, edificações históricas, berço do Teatro Dom
Pedro II, de inúmeros grupos culturais e das dramistas, que fazem parte do imenso palco dessa
cidade, considerando que
Todo mundo atua, age, interpreta. Somos todos atores. Até mesmo os atores! Teatro
é algo dentro de cada ser humano, e pode ser praticado na solidão de um elevador,
em frente a um espelho, no Maracanã ou em praça para milhares de espectadores.
Em qualquer lugar... até mesmo dentro de teatros (BOAL, 2006, p. IX).

O Teatro Dom Pedro II é uma das edificações teatrais mais antigas do Ceará,
“Considerada uma das mais antigas cidades do Ceará, Viçosa tem um patrimônio cultural, o
Teatro Pedro II, construído em 1904 pelo major Valdevino, que veio do Rio Grande do Sul
[...]” (HONÓRIO, 2002, p. 46). Com um nome imponente do período imperial do Brasil, o
Teatro Pedro II, construído pelo Major Valdino Elias de Alencar e depois comprado pelo
major Felizardo de Pinho Pessoa, o qual manteve o teatro com propriedade privada por mais
de setenta anos. A data da construção remonta meados da primeira e segunda década do
século XX no ano de 1904 e 1913. Entre as ilustres visitas recebidas consta a visita da família
real no ano de 1926.

microrregião de Ibiapaba e é o primeiro município criado na serra da Ibiapaba, em 1882. Segundo o censo 2010,
realizado pelo IBGE, o Município tem 54.961 habitantes e uma área de 1.311,62 km². Está subdividido em oito
unidades, sendo a Sede e mais sete distritos: General Tibúrcio, Lambedouro, Manhoso, Padre Vieira, Juá dos
Vieiras, Passagem da Onça e Quatiguaba. ( http://www.vicosa.ce.gov.br/ - acesso em 10/01/2015)

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A escolha do nome do Teatro ser Pedro II é em homenagem ao príncipe regente D.


Pedro II pela a sua atuação de benfeitoria na cidade. O respectivo teatro foi palco de inúmeras
apresentações. HONÓRIO (2002, p. 45) nos relata que “entre as companhias que se exibiram
lá, do Procópio Ferreira e Bibi Ferreira ainda criança”. Percebemos um saudosismo daqueles
que fizeram teatro, como nos relata HONÓRIO (2002, p. 46) quando Ceci e Maria Conceição
dizem que: “Viçosa sofre de um esquecimento cultural, as pessoas pararam de produzir”.
Muitos grupos e companhias de teatro tiveram passagem pela cidade de Viçosa. Das
companhias de teatro que passaram por Viçosa, temos referências a companhia italiana Pietro
Cierline e a Companhia carioca de Procópio e Conceição Ferreira no ano de 1928. Entre as
apresentações teatrais da cidade, destacamos a passagem da atriz Juazeirense Marquise
Branca, que na ocasião constituía-se uma das cantoras da Companhia de Conceição Ferreira
(1928) por volta do mesmo período.
As mulheres sempre tiveram grande atuação na cena teatral, no ano de 1939, há
registro de um grupo só de mulheres que inclusive realizavam a Paixão de Cristo, apresentar
dramas musicais e shows artísticos para a comunidade.
Nos anos de 1940, chega à cidade o cinema conhecido por “Cine Teatro”, que alterou
o cotidiano dos dramas como conta Ronald Fontenele
Minha geração aprendeu a chamar o Theatro Pedro II de
“cinema”, haja vista o desvio de sua atividade, consequência de um
processo de substituição da cultura e lazer vindos da sexta arte – o
teatro – pela sétima, o cinema.
A sétima arte trouxe um processo de altíssima - para a época –
tecnologia, o que facilitou enormemente o seu absoluto domínio,
deixando a atividade

teatral restrita, muito restrita. Com o tempo, a televisão e seus


dramalhões noveleiros, eliminou, em Viçosa e em outras milhares de
cidades, a atividade de exibição de filmes em cinema. [...]o cinema
passou a ser alugado para realização de festas dançantes. Afinal, era
um salão enorme, de um piso que facilitava o deslizamento dos
dançantes e um palco enorme que abrigava a banda.
Mais uma vez, a mudança das artes: agora era a vez das duas
primeiras – Música e Dança – substituindo a sétima – o cinema-, que
substituíra a sexta, o teatro. (RONALD FONTENELE/
http://ronaldfontenele.blogspot.com.br)

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Outras edificações educacionais serviram de palco para o ensino das artes e do teatro.
“O patronato passou a ser uma referência importante na cidade. Havia um calendário de
atividades culturais, recreativas [...]” (BARRETO, 2006, p. 141), que tinha participação ativa
nas datas comemorativas da cidade. Especialmente porque o Theatro ficou fechado por mais
de 40 anos. Somente em 2003, o local foi tombado pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional e, em 2008, foi adquirido pela Prefeitura Municipal de Viçosa
do Ceará, passando por um processo de restauração e sendo reinaugurado em janeiro de 2012.
Desde então mantém uma programação permanente de apresentação de peças teatrais,
exibição de filmes e oferece espaço para reuniões, mantendo esta tradição de importante palco
da cultura local.
Nesse momento da reinauguração o professor Célio Fontenele, produziu um facebook5
e quadros com fotografias e expões nas paredes do teatro, resgatando um pouco da memória
das dramistas, como também da história do Theatro, conforme imagens e depoimento no
facebook por Célio Fontenele.
Homenagem às dramistas viçosenses, hoje senhoras, que nos anos 1940... brilharam
no palco do teatro! Obrigado pelas fotos e depoimentos que me ajudaram a
reconstruir sua história, hoje pública, mostrada aos alunos e visitantes do teatro: 1 –
Maria Alice Siqueira; 2- Vitória Tavares; 3- Conceição Pereira; 4-Arminda Victor;
5- Rosália Mapurunga; 6- Dóris Beviláqua; 7- Terezinha Sousa; 8- Hilda Victor

5
Endereço https://www.facebook.com/Theatro-Pedro-II-Vi%C3%A7osa-do-Ceara-534634406606957/acesso
20/10/2015

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Fotos: arquivo pessoal – Fotografia dos quadros afixados nas paredes do Theatro Pedro II em Viçosa do Ceará

AS DRAMISTAS E SUAS PRÁTICAS CULTURAIS E ESTÉTICAS

Para pensarmos sobre as dramistas e suas práticas culturais e estéticas é


relevante trazermos inicialmente o conceito de dramistas. Segundo o X Edital Ceará Natal de
Luz – 2013, publicado em 01 de outubro de 2013, pela Secretaria Estadual da Cultura do
Estado do Ceará – SECULT, no item 5.2.6. uma
Dramistas – grupos formados por moças e senhoras de uma determinada
comunidade que encenam pequenos quadros dramáticos, sem estrutura fixa, para a
apresentação de cantigas e danças, declamação de poesias e contação de histórias,
por vezes envolvendo a comédia e a paródia, constituindo-se em uma representação
teatral popular. Os dramas envolvem cantos, danças e interpretação dos textos
criados exclusivamente para este fim, podendo ter o acompanhamento musical, por
homens e mulheres, através de violão, sanfona, pandeiro, zabumba e triângulo. As
dramistas possuem indumentária característica para suas apresentações, destacando-
se pela elegância e adornos dos vestidos, sendo complementadas com adereços de
cabeça (tiaras, véus, coroas, etc) e de mão.

Esta definição corresponde ao que disse a dramista entrevistada – Maria júlia Arruda,
que compõe as dramistas viçosenses, conforme o quadro exposto no Theatro Pedro II.

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Fotos: arquivo pessoal – Fotografia do quadro afixado na parede do Theatro Pedro II em Viçosa do Ceará

Segundo ela no drama tinha a comédia e o bailado, sendo este último a parte na qual
se apresentava e que mais gostava. Falou com muito carinho e orgulho do vestido
confeccionado por sua mãe para esta ocasião, feito de cetim a blusa e a saia toda de papel
crepom acompanhando de belas e delicadas sapatilhas. Relembrou com carinho dos meses de
ensaio, do dia da estréia, da professora e dos convites sendo vendidos na bilheteria para vê-las
se apresentando. Disse emocionada: Tinha a cortina e quando abria eu já estava no ponto
para bailar.
Ao trazermos para esta reflexão as práticas culturais e estéticas das dramistas,
relacionamos ao que estamos denominando de experiência estética, por compreendermos que
era isso que acontecia com as dramistas. Larrosa (2014, p. 18), corrobora com essa ideia
quando exprime que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, ou o que nos toca.
Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passa muitas coisas,
porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”. Com esta referência de experiência como
algo que nos passa, nos toca, nos acontece, dizemos, ainda, como algo que nos transpassa,
considerando que para ser experiência deve passar por todo o ser, por todo o corpo, é sentir
por inteiro. Percebemos pelo contato com dramista que era isso que acontecia – uma
verdadeira experiência estética, por meio das suas práticas culturais.
Dewey (2010), ensina que experiência estética é um tipo que exige de quem está

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vivenciando a integralidade de seus sentidos. É preciso estar por inteiro. Consequentemente, é


necessário que as formas de mediação proporcionem o contato com todas as dimensões da
pessoa. Na obra Arte como experiência ele faz distinção entre um tipo especial de experiência
das experiências comuns. Para ele, as experiências acontecem o tempo todo na vida da gente,
entretanto, a maioria delas é incompleta, ou porque somos interrompidos ou pela nossa
inercia. O outro tipo de experiência – a estética – é um movimento continuo e integro até sua
consumação. Não separa o ver, o fazer e o expressar; o prático, o intelectual e o afetivo.
Assim, defende a arte como potencial para desencadear esse último tipo de experiência, a arte
como experiência.
Duarte Jr., no livro Fundamentos Estéticos da Educação (1998), reflete sobre
experiência estética com suporte nas ideias de Martin Buber sobre as duas maneiras do
homem se relacionar com o mundo: relação “EU-ISSO” e “EU-TU”. Sem nos aprofundarmos
nesse tema, trazemos a essência dessas relações já anunciadas por Larrosa, ao exprimir que
para ele experiência passa por dois movimentos nossos, como seres humanos de estar no
mundo e interagir com ele.
Sobre isso, diz Duarte Jr. (1998, p. 90):
EU-ISSO subentende nossa atitude cotidiana (prática) perante o mundo. [...] Em
EU-ISSO a consciência sabe-se distinta, separada das coisas: o sujeito conhece seus
“limites” e
subordina os objetos a si. [...] Já na relação EU-TU as coisas não se subordinam à
consciência, mas mantém com ela uma relação “de igualdade”, constituindo, homem
e mundo, os dois pólos de uma mesma totalidade. Aqui não se pode falar de um
sujeito que investiga e de um objeto que é conhecido, pois entre ambos (EU-TU)
não há relações de subordinação. Em EU-TU há a presença total do EU frente ao
mundo e vice-versa: todas as formas possíveis de a consciência apreender o mundo
estão presentes no momento dessa relação. Nesta esfera ocorre, então, a experiência
estética.

Nesta perspectiva, compreendemos que a experiência prática está tão inserida no


nosso cotidiano que muitas vezes agimos sem pensar, sem estabelecer conectividades, sem
validar a memória tanto individual quanto coletiva. Relacionando com o que disse Larrosa,
esse tipo de experiência não nos passa, não nos acontece, não nos toca. Para que isso
aconteça, é necessário o estranhamento, um olhar estrangeiro diante do cotidiano.
A experiência estética, por sua vez, solicita uma “mudança na maneira pragmática de
se perceber o mundo” (DUARTE JR. 2009, p. 33), porque, para que ela ocorra, é necessário
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um envolvimento total do homem com o objeto estético, apreendendo-o de forma direta,


aberta, apaixonada, inquiridora, curiosa, crítica. Concordamos, ainda, com Duarte Jr., quando
diz que é por meio do sentimento que nos identificamos com o objeto estético e com ele nos
tornamos um, porque é o sentir, na instância do sensível, em toda a sua potência, que será
capaz de causar uma transformação na forma de o homem ver, pensar e agir diante do mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao retomarmos a pergunta inicial: Como eram as práticas culturais e estéticas das


dramistas no Theatro Pedro II em Viçosa do Ceará? Na tentativa de respondê-la a elaboração
deste breve estudo evidenciou uma atuação de mulheres em movimentos teatrais locais, em
que a Arte era utilizada como importante meio para a emancipação feminina, sendo contexto
de rupturas de valores conservadores que impregnavam a sociedade da época acerca da
mulher, e que, de alguma forma, ainda permanecem vivos no contexto atual.
Dos resultados da pesquisa destaca-se a descoberta e reconhecimento das práticas
culturais das dramistas como mediação para a formação estética das novas gerações. Por esta
razão é relevante evidenciarmos essas práticas culturais e estéticas.
Concluimos que é importante esse estudo pela contribuição para a ampliação de dados
publicados sobre o Theatro e pelo resgate da história das dramistas, tornando discutíveis e
evidentes tanto o Theatro Pedro II em Viçosa do Ceará como lugar de memória, como as
práticas culturais e estéticas das dramistas, indagando, contestando, confrontando informações
e trilhando caminhos de significação.

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AS PRÁTICAS EDUCATIVAS DA PROFESSORA OLÍVIA PEREIRA NA VILA DE


SÃO MIGUEL DE JUCURUTU/RN (1928-1929)

Nanael Simão de Araújo | nanaelsimao@yahoo.com.br


Maria Arisnete Câmara de Morais

INTRODUÇÃO

Iniciamos o presente trabalho a partir de pesquisas realizadas no acervo do Grupo


Escolar Antônio Batista (situado em Jucurutu-RN) onde dialogamos como o Livro de Atas da
Escola Rudimentar da Vila de São Miguel de Jucurutu (1927-1932). Nesse documento, a
professora Olívia Pereira registrou parte de suas práticas educativas nessa escola, a saber:
Passeios Escolares, Lições de Coisas e organização de Festas Escolares. Diante desse
contexto, salientamos que segundo Julia (2001, p. 10), as práticas dos educadores nas
instituições escolares, são determinadas por regras que definem conteúdos e métodos de
ensino, as normas e práticas educativas estão “[...] coordenadas a finalidades que podem
variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de
socialização).”
Nessa perspectiva, compreendemos que as práticas educativas da professora Olívia
Pereira na Escola Rudimentar da Vila de São Miguel de Jucurutu6, representam as orientações
expressas no Regimento Interno das Escolas Rudimentares do Rio Grande do Norte. Segundo
Araújo (1998) esse documento foi elaborado pelo Conselho de Educação, com base na Lei n.
405, de 29 de novembro de 1916 (RIO GRANDE DO NORTE, 1917, p. 7), esses regimentos
continham o plano didático de cada matéria, quadro de horários e livros escolares
recomendados aos professores.
Para estudarmos as práticas educativas da professora Olívia Pereira, fundamentamos
essa pesquisa na perspectiva da história cultural que segundo Chartier (1990) pode ser

6
Segundo Cascudo (1968) a Vila de São Miguel de Jucurutu foi criada originou o atual município de
Jucurutu/RN, emancipado politicamente no ano de 1935 pelo Interventor Federal Mário Câmara.
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conceituada como história das representações, tratando-se da história produzida pelos


indivíduos e pelas sociedades, ao pensar (representar) uma realidade vivida.
Diante desse conceito, entendemos que as práticas dessa professora representam em
parte, o contexto educacional do período em que lecionou, sendo, portanto, originárias de
culturas educacionais como regulamentos e normatizações, as quais essa profissional esteve
submetida.
Vistas por esse ângulo, as práticas objetivam reconhecer “[...] as formas institucionais e
objetivas graças as quais uns ‘representantes’ (instâncias coletivas ou pessoas singulares)
marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe e da comunidade
(CHARTIER, 1990, p. 23).
Durante a sua presença na Vila de São Miguel de Jucurutu, nos anos letivos de 1928
e 1929, a professora Olívia Pereira, deixou suas marcas naquela comunidade no tocante às
contribuições prestadas para o ensino primário. Essa realidade é percebida nos depoimentos
do senhor Francisco Ovídio, seu único ex-aluno que localizamos com vida no ano de 2013 e
gozando de plena lucidez. Ele nos informou sobre as metodologias de ensino ministradas por
essa professora, para ensinar aos seus alunos a ler, escrever e contar. Práticas como essas são
contempladas pela perspectiva da história cultural, haja vista, que os eventos ou “[...] tudo
que se refira à atividade humana, são considerados objetos da análise histórica. Portanto,
pequenos gestos [...], a maneira de ler, escrever, por exemplo, são práticas culturais que não
estão perdidas para a história.” (MORAIS, 1996, p. 3).
Em busca de outros registros acerca das práticas educativas de Olívia Pereira,
mantivemos contato com o seu filho, o senhor José Antônio Pereira Rodrigues residente na
capital potiguar. Dessa feita, obtivemos documentos pessoais e profissionais dessa educadora
como fotografias e manuscritos autobiográficos. Igualmente, realizamos entrevistas com esse
senhor, sobre aspectos da vida profissional de sua mãe.
No Instituto Histórico do Rio Grande do Norte, localizamos documentos como: Leis
e Decretos do Governo do Rio Grande do Norte, que regulamentaram a instalação e o
funcionamento da Escola Rudimentar da Vila de São Miguel de Jucurutu. Nesse acervo,
consultamos os exemplares remanescentes da Revista Pedagogium (1921-1925). Outro
informativo de cunho pedagógico localizado foi a Revista de Ensino (1912), essas revistas
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expõe as concepções pedagógicas que vogavam no contexto educacional potiguar das


primeiras décadas do século XX. Nesse acervo, dialogamos também com os artigos escritos
pelo professor Nestor dos Santos Lima sobre Lições de Coisas constantes em exemplares
remanescentes do jornal A República. Segundo Lopes e Galvão (2001, p. 87) numa pesquisa
de caráter histórico-educacional, nós historiadores da educação podemos recorrer aos jornais e
revistas pedagógicas como fontes de pesquisa, pois,

Utilizados há mais tempo, e gozando de maior prestígio na pesquisa historiográfica,


estão os jornais e as revistas. Os historiadores da educação tem se voltado.
Sobretudo, para os impressos que, pertencendo a esses gêneros, circulavam
especificamente junto a um público escolar.

Todos esses registros constituem o principal corpus documental da nossa pesquisa.


Conforme afirma Certeau (2002, p. 81), “[...] em história, tudo começa com o gesto de
separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra
maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho”. Desse modo, recopiamos,
transcrevemos e fotografamos estes objetos, transformando-os em documentos. A partir desse
procedimento metodológico, atribuímos valor histórico a objetos como: depoimentos orais,
artigos de jornais, documentos pessoais, etc., transformando-os em documentos que ganham
sua importância ao serem contextualizados com os registros oriundos dos arquivos
institucionais e referências bibliográficas de autores que analisam a história da educação
brasileira e norte-rio-grandense.

QUEM FOI A PROFESSORA OILÍVIA PEREIRA?

Olívia Pereira nasceu no dia 06 de maio de 1904, a penúltima dos doze filhos
gerados pelo casal José Antônio Pereira e Ubaldina de Medeiros Pereira, nasceu na fazenda
Pai Bastião, situada no município de Caicó/RN. “Olívia Pereira foi alfabetizada no alpendre
da fazenda dos seus pais, aprendeu as primeiras letras com sua tia paterna, a senhora Severina
Pereira de Brito, uma mestra-escola que anos depois lecionou na Escola Paroquial de Caicó.”
(RODRIGUES, 2013).
Após sua alfabetização Olívia Pereira, transferiu-se para a cidade de Caicó, onde
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passou a residir numa casa pertencente a seus pais7 situada na Rua Amaro Cavalcanti. Foi
matriculada no Grupo Escolar Senador Guerra criado pelo Decreto nº 189, de 16 de fevereiro
de 1909 (RIO GRANDE DO NORTE, 1909, p. 40). Nesse Grupo Escolar, Olívia Pereira foi
aluna da professora Josefa Botelho8 e contemporânea do futuro Senador da República
brasileira Dinarte de Medeiros Mariz. Essas informações constam numa crônica escrita e,
proferida por esta professora na Escola Doméstica de Natal, durante a realização de uma
homenagem aos 80 anos do aniversário natalício deste político (RODRIGUES, 1983).
Após concluir o ensino primário, Olívia Pereira transferiu-se para a capital norte-rio-
grandense, onde ingressou em 1924, na Escola Normal de Natal concluindo sua graduação no
ano de 1928. Nesse mesmo ano, foi nomeada pelo presidente do Estado do Rio Grande do
Norte como
professora da Escola Rudimentar da Vila de São Miguel de Jucurutu (ESCOLA
RUDIMENTAR DA VILA DE SÃO MIGUEL DE JUCURUTU, 1927-1932). Essa escola foi
instalada no ano de 1922 durante o governo de Antonio José de Mello e Souza quando “foram
criadas 22 escolas rudimentares nas seguintes povoações: Campestre e S. Bento no município
de Nova Cruz, Jardim de Piranhas e S. Miguel de Jucurutu no de Caicó [...].” (RIO GRANDE
DO NORTE, 1922, p. 14).
Após lecionar durante o período de 1928 a 1929 nessa Escola Rudimentar, no ano de
1930 Olívia Pereira teve seu cargo de professora transferido para a cidade de Caicó onde
passou a lecionar no Grupo Escolar Senador Guerra (MONTEIRO, 1944).
No ano de 1947, a professora Olívia Pereira teve seu cargo transferido para a cidade
de Natal onde passou a lecionar no Grupo Escolar Áurea Barros localizado no cruzamento da
Avenida Afonso Pena com a Rua Açu, até o ano de sua aposentadoria no ano de 1960.
Segundo consta em sua Certidão de Óbito, Olívia Pereira faleceu em sua residência em Natal-
RN, no dia 10 de fevereiro de 2010, aos 105 anos de idade, tendo como causa da morte
“fibrilação ventricular, infarto agudo do miocárdio, aterosclerose coroniana.” (RODRIGUES,

7
Essa informação consta numa crônica escrita e proferida pelo filho de Olívia Pereira em homenagem aos 105
anos natalícios de sua mãe (RODRIGUES, 2009).
8
A professora Josefa Botelho foi diplomada na primeira turma da Escola Normal de Natal, em 1910. Suas
práticas educativas são investigadas pelo Grupo de Pesquisa História da Educação, Literatura e Gênero, através
do Projeto de Pesquisa História da Leitura e da Escrita no Rio Grande do Norte (1910-1980) (MORAIS, 2014).
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2010).

A PRESENÇA DA PROFESSORA OLÍVIA PEREIRA NA ESCOLA RUDIMENTAR


DA VILA DE SÃO MIGUEL DE JUCURUTU (1928-1929)

A primazia dada ao ensino da leitura e da escrita nas escolas primárias do Rio


Grande do Norte durante as primeiras décadas do século XX, refletia-se no Regimento Interno
dessas instituições de ensino. O artigo 13 do Capítulo IV desse regimento determinava o
seguinte: “Haverá todos os dias exercícios de leitura, escrita, linguagem e contabilidade, de
acordo com os programas anexos, e na quinta-feira, será dada a explicação das noções gerais
[...].” (RIO GRANDE DO NORTE, 1925, p. 10).
O seguinte relato do senhor Francisco Ovídio, ex-aluno da professora Olívia na Escola
Rudimentar da Vila de São Miguel de Jucurutu no ano de 1928, ratifica os recorrentes
ensinamentos da leitura, escrita e cálculo nas Escolas Rudimentares daquela época:

A professora Olívia Pereira era uma professora muito boa, era calma e paciente com
os alunos, quando algum aluno não entendia a lição ela explicava tudo de novo. Ela
escrevia no quadro, as letras, as palavras e os números. Cada aluno tinha seu
caderno de escrever a lição. Ela ensinava a ler, a escrever e a contar, eu fui aluno
dela no primeiro ano. (OVÍDIO, 2013, grifo nosso).

Esse depoimento mostra parte dos métodos de ensino que a professora Olívia
trabalhava. Diante desse fato, destacamos que entre os exercícios de Leitura e Escrita
prescritos pelo Programa de Ensino constante no Regimento Interno das Escolas
Rudimentares do Rio Grande do Norte, era recomendado aos alunos “[...] Copiar o nome
próprio. Reproduzir, na ardósia, ou no papel, as letras, silaba, palavras ou frases, de acordo
com a lição de leitura. [...] Reprodução de traslado ou modelo do professor, no papel ou no
quadro negro.” (RIO GRANDE DO NORTE, 1925, p. 26).
O Livro de Atas da Escola Rudimentar da Vila de São Miguel de Jucurutu (1927-
1932) expõe outras práticas da professora Olívia Pereira. Segundo esse documento, ela
organizava festas escolares na instituição. Nessas ocasiões orientava os seus alunos durante a
entoação de hinos e apresentações de dramas, monólogos, diálogos e poesias. Diante dessas
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práticas, destacamos que conforme Souza (1998, p. 241, grifo nosso) durante a consolidação
do sistema republicano a escola primária, brasileira

Corporificou os símbolos, os valores e a pedagogia moral e cívica que lhe era


própria. Festas, exposições escolares, desfiles dos batalhões infantis, exames e
comemorações cívicas [...] podem ser vistos como práticas simbólicas que, no
universo escolar, tornaram-se uma expressão do imaginário sociopolítico da
República.

O Regimento Interno das Escolas Rudimentares do Rio Grande do Norte instituiu


três festas obrigatórias: A Festa da Natureza, Festa da Pátria e a Festa da Bandeira, a serem
realizadas respectivamente nos dias 03 de maio, 07 de setembro e 19 de novembro (RIO
GRANDE DO NORTE, 1925).
Segundo o referido ex-aluno de Olívia Pereira na Escola Rudimentar de São Miguel
de Jucurutu, com dias de antecedência à realização dessas festas, essa professora escrevia no
quadro, versos e poesias que eram copiados pelos alunos nos seus cadernos e posteriormente
lidos repetitivamente em voz alta. Após esse ensaio, eles estavam preparados para declamá-
los durante tais eventos (OVÍDIO, 2013).
No Livro de Atas da Escola Rudimentar da Vila de São Miguel de Jucurutu (1927-
1932), constam documentos que registram hinos entoados, dramas, monólogos, diálogos e
poesias declamadas pelos alunos, durante a realização das Festas Escolares. Segundo consta
no Regimento Interno das Escolas Rudimentares do Rio Grande do Norte era recomendado
aos alunos como exercícios de linguagem “[...] recitar monólogos, diálogos e poesias.” (RIO
GRANDE DO NORTE, 1925, p. 27).
As festas escolares constituíam-se, portanto, como momentos propícios para que a
professora Olívia desenvolvesse com os seus alunos exercícios que favoreciam o ensino da
linguagem. No mencionado Livro de Atas, consta que a poesia O Pássaro Cativo (BILAC,
1929), foi declamada em todas as Festas da Natureza organizadas pela professora Olívia
Pereira. Mostramos como exemplo a Festa da Natureza realizada aos três de maio do ano de
mil novecentos e vinte e nove na qual constou

[...] o seguinte programa: ‘As bonecas’, ‘Eu cá não falo’, ‘A carta’ (monólogos).
‘Saudação a bandeira’, ‘A escola’, ‘Meu dever’, ‘O Pássaro Cativo’ (poesias),’As
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duas colegiais’ (diálogo), ‘3 de maio’ (comédia) recitados pelos principais alunos.


Um discurso pela professora dissertando a data. (ESCOLA RUDIMENTAR DA
VILA DE SÃO MIGUEL DE JUCURUTU, 1930, p. 80, grifo nosso).

Diante desse fato, salientamos que de acordo com Veiga (2010, p. 407, grifo nosso) a
escola primária republicana, estimulou “[...] o contato com a literatura brasileira, os cantos,
a dança, presente no cotidiano das salas de aula, nas festas escolares, nas festas das cidades.”.
Segundo Rocha Neto (2005, p. 154) as poesias de Olavo Bilac “[...] eram dirigidas às
crianças, e foram constantemente reproduzidas nos livros didáticos e recitadas na escola,
durante várias décadas.”
Além das festas, os Passeios Escolares organizados pela professora estudada,
configuravam as suas práticas educativas, constituindo-se como momentos de ensino-
aprendizagem. O Regimento Interno das Escolas Rudimentares, determinava o seguinte: “Os
professores deverão realizar, sempre que for possível, passeios escolares, outras
comemorações cívicas e encerramento festivo” (RIO GRANDE DO NORTE, 1925, p. 13,
grifo nosso).
Num artigo intitulado Passeios Escolares (1925) e publicado na revista Pedagogium,
o educador potiguar Antônio Estevam, rememorou aos professores das escolas primárias do
Rio Grande do Norte, as determinações legais e as vantagens pedagógicas dessas atividades,
para tanto, apregoava que “A própria Lei da Reforma do Ensino no seu art. 56 pondera que os
passeios escolares se dirigirão aos campos agrícolas, fazendas etc. (ESTEVAM, 1925, p. 49-
50).
Em parte dos documentos lavrados pela professora Olívia Pereira no Livro de Atas
da Escola Rudimentar da Vila de São Miguel de Jucurutu (1927-1932), consta os locais
escolhidos para a realização dos Passeios Escolares por ela organizados. Nesses eventos havia
o ensino das Lições de Coisas. Tais lições, constituíam-se como a etapa inicial do método
intuitivo de ensino, os defensores desse método

[...] chamaram a atenção para a importância da observação das coisas,


dos objetos, da natureza, dos fenômenos e para a necessidade da
educação dos sentidos como momentos fundamentais do processo de instrução
escolar. (FARIA FILHO, 2010, p. 143).

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Segundo Lima (1911, p. 1) as Lições de Coisas “[...] só devem ser dadas com o
objeto á vista, o que provoca a observação do aluno, sobre o seu todo, suas partes, qualidades,
etc”. Ao seguir essa norma, a professora Olívia Pereira organizava os mencionados passeios
escolares em sítios e fazendas, onde os objetos estudados nas Lições de Coisas eram
simultaneamente visualizados. Mostramos como exemplo, um passeio realizado pela
mencionada professora, dia vinte de outubro de 1927 no qual os alunos receberam uma Lição
de Coisas sobre a produção da cana de açúcar, “[...] a qual foi ouvida com a máxima atenção
que se provou com um ligeiro interrogatório sobre a mesma.” (ESCOLA RUDIMENTAR DA
VILA DE SÃO MIGUEL DE JUCURUTU, 1927, p. 31).
O cultivo da cana de açúcar foi estudado por educadores potiguares como o professor
Acrisio Freire. Numa coluna intitulada Lições de Coisas (1927) constante numa edição da
revista Pedagogium, ele publicou um artigo mostrando a importância histórico-econômica da
cana de açúcar, para a formação do Brasil. O mencionado texto, também afirmava ser essa
planta genuinamente brasileira. Segundo esse autor “[...] a cana de açúcar existia em nosso
país ao tempo do descobrimento, o que não é de admirar, pois, se ela é planta dos países
equatoriais e se reproduz com facilidade nessas regiões [...].” (FREIRE, 1927, p. 65, grifo do
autor).
O registro sobre uma Lição de Coisas sobre a cana de açúcar, realizado pela
professora Olívia Pereira na supracitada Ata, também exemplificam os estudos sobre essa
planta. Outro defensor do ensino das Lições de Coisas foi o educador Benigno de Vasconcelos
Júnior, ele asseverava que

São as coisas que com seus nomes, nomes de suas propriedades, de suas ações, nos
levam ao estudo da linguagem. É o estudo das formas dos objetos que produz a
geometria, bem como o seu número fez nascer o caçulo. (VASCONCELOS
JÚNIOR, 1917, p. 8).

Nessa perspectiva as Lições de Coisas contribuíam para o desenvolvimento da


linguagem dos alunos “[...] O ensino-aprendizagem da leitura e da escrita centrava-se na
valorização da intuição como fundamento de todo o conhecimento e as lições de Coisas
considerada a chave para desencadear a pretendida renovação do ensino.” (MORAIS;
COSTA; MORAIS; 2013, p. 174). Portanto, a habilidade em descrever as características
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físicas dos objetos, repercutia nas maneiras de


ler e escrever dos alunos da professora Olívia Pereira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da análise dos documentos relativos às práticas educativas da professora


Olívia Pereira na Escola Rudimentar da Vila de São Miguel de Jucurutu, constatamos que
essa educadora seguia os preceitos do método intuitivo de ensino. Para tanto, entre outras
atividades ministrava Lições de Coisas, assim como, orientava declamações poéticas e outras
apresentações culturais aos seus alunos. Essas atividades viabilizavam o ensino da leitura e da
escrita nessa instituição, contribuindo para a construção de uma sociedade letrada no interior
Norte-rio-grandense.

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AS QUESTÕES DE GÊNERO NO COTIDIANO ESCOLAR

Ana Célia Sousa Freitas | acmartins366@gmail.com


Lúcia Santos de Oliveira | aseseditoracao@gmail.com

INTRODUÇÃO

Abordar questões de gênero é um desafio, principalmente, em se tratando do ambiente


escolar, pois muitos pensam não ser local apropriado para esse tipo de abordagem, uma vez
que as crianças do ensino básico não tem idade e nem maturidade para entender tais essas
questões.
Outros se posicionam contra por entenderem que falar sobre esse assunto em sala de
aula pode incentivar condutas homossexuais nos estudantes, além de ferir a moral, os bons
costumes e os valores familiares e religiosos impostos pela sociedades, não atentando para a
defesa dos direitos de alunas e alunos que diariamente são insultadas (os) e ou constrangidas
(as) por apresentarem comportamentos diferentes daqueles tidos como normal que estão
“enquadrados” por ser menino ou menina.
O interesse por esta temática surgiu da inquietação de ver na escola situações em que o
preconceito é visível e constrangedor contra esses indivíduos que não se “encontram” nos
padrões
sexistas dessa sociedade que não se libertou ainda da herança machista e preconceituosa
herada de tempos anteriores e que se propaga até os dias atuais.
Diante daquilo que temos observado, buscamos entender como professores vem
trabalhando o tema no dia a dia escolar de forma a promover um diálogo sobre o respeito e a
tolerância dos colegas para com os alunos vistos como “diferentes” por apresentarem uma
orientação sexual tida como anormal, não se configurando com a qual lhe foi ofertada ao
nascer.
Percebemos que as questões de gênero na escola tem sido motivo de debates e muita
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agitação nos espaços no qual as decisões sobre educação de nosso país são tomadas.
Entidades e órgãos responsáveis pelas leis educacionais têm promovido momentos de diálogo
sobre a temática nos espaços estudantis, a fim de decidir que caminhos devem ser trilhados
em relação a mesma.
Exemplo da polêmica em torno desse assunto são as sessões e plenárias que ocorrem
nas câmaras de vereadores e assembleias legislativas pelo Brasil a fora, no qual vereadores,
deputados e grupos, contra e ou a favor dessa abordagem em sala de aula, travam grandes
batalhas para defenderem seus pontos de vista, e até mesmo tirar das pautas de votação, itens
relacionadas às questões de gênero na escola.
Uma amostra desse tipo de confronto aconteceu na câmara de vereadores de Porto
Alegre, em 25 de junho de 2015, na qual, em meio a protestos de grupos que defendem o
diálogo sobre as questões de gênero no cotidiano escolar, alguns itens sobre o tema foram
retirados do Plano Municipal de Educação (PME) daquela localidade, causando alívio para
uns e protestos e revoltas para outros.

METODOLOGIA

Nosso lócus de trabalho foi uma escola Municipal da periferia de Fortaleza, situada
numa comunidade entendida como de “risco” por seu histórico de violência e contexto de
carências socioeconômicas e culturais.
Os olhares foram direcionados para as series iniciais (1º ao 5º anos) do ensino
fundamental I. Nesse espaço nos utilizamos da observação, principalmente, no movimento e
fala de professores em relação aos garotos e garotas “diferentes”, e isto foi o que mais nos
impactou nesta pesquisa, pois é preocupante o que se ouve durante as conversas nos horários
de intervalo dos mesmos.
Para efetuarmos esse estudo, optamos pela pesquisa qualitativa de caráter exploratório
e bibliográfico, já que a mesma nos dá possibilidade de interpretar os fenômenos relacionados
a pesquisa de forma mais eficaz. As bibliografias nos auxiliaram a entender as informações
empíricas relacionando-as com os dados teóricos que dariam embasamento ao nosso trabalho.
No tocante ao tipo de pesquisa, recorremos a Bauer; Gaskell que afirmam o seguinte:
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“A pesquisa qualitativa envolve a interação pesquisador-participante, a qual lida com


interpretações das realidades sociais, buscando explorar espectros de opiniões em um grupo
social específico” (2002 Apud RINELLE).
Nossos principais instrumentos foram a observação e o diário de campo, os mesmos
nos auxiliaram nos registros e na captação de dados e informações acerca de nosso alvo de
pesquisa.
As observações foram realizadas nos turnos manhã e tarde, tendo como primeiro alvo
a sala dos professores, local este em que se ouve quase tudo o que os docentes pensam sobre
alunos/alunas, seu hábitos e costumes, e foi nesse local, principalmente, que pudemos ouvir
falas que exprimem o preconceito e a opinião de docentes sobre as questões de gênero.
O segundo local para o qual direcionamos nossa atenção foram as salas de aula do 4º e
5º anos. Nesse espaço presenciamos alguns conflitos acirrados, e até confronto consumado,
em plena sala de aula, no qual precisamos intervir no sentido de separar os garotos que se
digladiavam em pleno momento da aula, justamente por questões de “discriminação”.
Por último, observamos o momento do recreio (LOCAL???), um ambiente bem mais
leve, pois nossa observação estava voltada para as turmas de 1º e 2ª anos, atmosfera mais
calma mas nem por isso menos propícia para as manifestações de preconceito e intolerância.

A FALA DOCENTE

Observamos durante nosso estudo discursos preconceituosos por parte dos docentes,
com frases do tipo: “ – o menino já nasce ruim e veado pior”; “ – a pessoa já é metida quando
se torna veado e quando já nasce um?”; “ A fulana só quer ser homem, parece que não tem
mãe”, “ – a mãe ainda deixa a menina vestir roupas masculina e cortar o cabelo como macho,
só pode ser uma irresponsável”. Essas são falas que são ouvidas diariamente e que muitas
vezes transformam-se em debates sobre como a família permite tais atitudes nos filhos, pois
acreditam que os alunos tem tal comportamento por culpa dos pais.
Desse modo não nos causou admiração quando lançamos nosso olhar para a sala de
aula e percebemos o preconceito representado nas brincadeiras de “mau gosto” de colegas
contra os meninos e meninas que demonstram tendências para outro “sexo” que não o seu de
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nascimento.
Nesse sentido dialogamos com Louro:

As instituições escolares fabricam os sujeitos que a frequentam, ou seja, elas são


produzidas por eles e pelas representações de gênero que nelas circulam. Assim,
nestas instituições pode haver a produção de diferenças e desigualdades destes
indivíduos, e também informação, do que cada um/a pode ou não fazer e o lugar que
os meninos e meninas devem ocupar. (LOURO, 1997, p ???)

Nessa perspectiva, compreendemos que a escola tem uma grande reponsabilidade


quanto a não propagação de atitudes preconceituosas e/ou homofóbicas, tornando-se um canal
para a formação de uma sociedade mais tolerante, dependendo de como seu corpo docente
trabalha no cotidiano escolar as questões que envolvem a temática de gênero.
Assim, entendemos que as instituições de ensino devem, sim, ser lugar para esse tipo
de abordagem, educando os sujeitos que nelas circulam para o respeito, não só diversidade
sexual, mas para todo e qualquer tipo de “diferença” detectada em seus espaços e que esse
respeito e tolerância se perpetuem para além dos muros dessas entidades estudantis.
Essas instituições educacionais podem ter grande influência na formação da
personalidade de seus educandos, o que para Loiro acontece porque:

Ali se aprende olhar e se olhar, se aprende a dividir, falar e calar; se aprende a


proferir. Todos os sentidos são treinados fazendo com que cada um e cada uma
conheça os sons, os cheiros e os sabores ‘bons’ e decentes; aprende o que, a quem e
como tocar (ou na maior parte das vezes, não tocar); fazendo com que se tenha
algumas habilidades e outras não (1997, p. ???).

Ainda analisando a fala docente, compreendemos que se faz necessária também uma
formação para professores voltada para o trabalho com as questões de gênero na sala de aula,
pois muitas desses discursos são reproduções de ideias, crenças e valores morais que os
mesmos já trazem consigo ao longo da vida, fruto da educação tradicional, patriarcal e
machista que receberam e que torna tais questões ainda mais complicadas de se discutir no dia
a dia escolar.
Ao direcionarmos nossas observações para a sala de aula, ficamos ainda mais
surpresos, por ser notório o desinteresse ou falta de preocupação, por parte dos educadores,
em trabalhar as questões de gênero mesmo diante de conflitos frequentes entre colegas de
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sala, decorrentes das “brincadeiras” e insultos a que são submetidos os discentes


“Afeminados”.
Presenciamos um desse conflitos e o que ouvimos da professora logo após
conseguirmos acalmar o ambiente, foi uma justificativa para as atitudes preconceituosas dos
que insultavam o colega por ter trejeito feminino. Segundo ela. “– Esse menino não se
comporta como deve, por isso
os outros implicam tanto com ele. Se ele se andasse e falasse direito não havia esse problema
na sala”.
A docente utilizou-se dessa fala perante todos os alunos, exibindo, dessa forma, sua
maneira de pensar sobre o comportamento do aluno insultado. Este, sofreu punição maior por
parte da direção e, para não causar mais transtornos naquela ambiente, o mesmo mudou de
turma.
A atitude da professora demonstra o despreparo docente para dialogar, em seu
cotidiano, sobre esse tipo de tema. É válido informar que este despreparo não é uma
exclusividade dos educadores da instituição de ensino pesquisa, e sim é quase uma
unanimidade no quadro docente das escolas públicas de nossos País.
Mesmo após muitas instituições incluírem, com mais frequência, abordagem sobre
gênero e diversidade, o que se configura como um avanço, porém permanece evidente a
incidência de tabus e preconceitos ao se tratar desse tem em sala de aula.
Sobre as dificuldades de professores em trabalhar as questões referente a gênero e
diversidade sexual em suas práticas diárias, Joca nos fala que:

Quando nos reportamos ao saberes sobre o sexual, por exemplo, ao saberes


hegemônicos propagados sobre as relações de gênero e orientações sexuais saberes e
práticas, adquiridos nos espaços de formação e atuação docentes, parecem entrar em
conflito com a perspectiva do enfrentamento aos sexismos e a homofobia nos
espaços escolares. (2009, p. ???).

Desse modo entendemos que a escola é apenas um local que faz parte de um espaço
mais amplo, a sociedade, e que aquele, mesmo sendo menor, é detentor de formação e
informação, tendo por obrigação repassar valores e condutas advindas dos outros ambientes
que compõem essa sociedade como, a família, a religião e o Estado.
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Esta obrigação de repassar valores e condutas influencia o trabalho docente de forma


efetiva de modo que este precisa seguir as regras e normas determinadas pelos órgãos
responsáveis pelo processo educativo do nosso País, seguindo à risca aquilo que vem
determinado nos documentos que regem essas determinações. Porém, já se sabe que de forma
bem gradativa os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) vem avançado quanto abordagem
dessa temática nos espaços educacionais, ainda que de forma tímida e seletiva. De acordo
com o documento:

Da quinta série em diante, os alunos já apresentam condições de canalizar suas


dúvidas ou questões sobre sexualidade para um momento especialmente reservado
para tal, com um professor disponível. Isso porque, a partir da puberdade, os alunos
também já trazem questões mais polêmicas sobre a sexualidade e já apresentam
necessidade e melhores condições para refletir sobre temáticas como aborto,
virgindade, homossexualidade,
pornografia, prostituição e outras. (BRASIL, 1998, p. ???)

O RECREIO (Brincadeiras de menino e de menina)


Estendemos nosso olhar também para a hora do intervalo (recreio) que tem duração de
20min e acontecem em locais separados de acordo com a séries. A turma do infantil e 1º e 2º
anos ficam no parquinho sob a reponsabilidade das monitoras do programa Mais Educação e,
de vez em quando, coordenadoras e gestora também observam, na tentativa de evitar
incidentes e até mesmo acidentes graves com os menores durante este momento.
O alvo de nossas observações foram os alunos de 1º e 2º anos dos dois turnos pois são
turmas já bem mais agitadas e que não querem divertir-se somente no parquinho, criando
outras brincadeiras mais “polêmicas” para os olhares dos responsáveis. A diversão dessa
turminha é brincar de polícia e ladrão, os homens pegar as mulheres e brincar de casinha. As
duas últimas brincadeiras citadas são razão de maior de preocupação para as monitoras. Uma,
em especial, faz questão de manifestar toda sua desaprovação repreendendo e chamando a
atenção das meninas que brincam com os meninos no pega-pega, o que acontece, por vezes,
de forma constrangedora através de falas como: “você não é macho”; “isso é coisa de
menino”; “te orienta criatura”.
Em relação a brincadeira de casinha a “perturbação” se dá por conta de dois garotos,
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do turno da tarde, que se reúnem para brincar com as meninas. O grupinho traz de casa seus
brinquedos e bonecas e organizam suas casinhas, num cantinho do pátio sob o olhar
reprovador dos que passam por ali. As crianças não se incomodam com as piadinhas de outros
colegas, mas inquietam gestores e docentes que, por vezes, dão um jeito de acabar com a
diversão. Além disso, proferem comentários absurdos em relação a conduta das crianças,
reforçando a cultura machista de que “menino não pode brincar de boneca” e que certas
brincadeiras ou tarefas são só para meninas. Para Louro “A escola delimita espaços. Servindo-
se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e
institui. Informa o “lugar” dos pequenos e grandes, dos meninos e das meninas” (2003, p.
???).
Nessa perspectiva compreendemos que a escola tanto pode ser aliada no combate as
atitudes de preconceitos e de homofobia, quanto pode colaborar para a propagação desses
comportamentos entre os indivíduos que circulam nos espaços educacionais. Ela precisa
orientar melhor seus profissionais, pois vimos que muitos educadores não sabem lidar com
esse tipo de situação e acabam constrangendo alunos ao repreendê-los de forma inadequada e
desnecessária. Para
contornar a situação, os profissionais da educação poderiam se apoiar nas brincadeiras dos
pequenos e dialogar com os mesmos sobre questões como machismo, a intolerância e a
violência, indagações estas que, segundo nosso entendimento, devem ser cada vez mais
abordadas no cotidianos escolar.
Assim, ao observar os garotos brincando de casinha poderíamos ressaltar aspectos da
sociedades atual, na qual cada vez mais mulheres e homens se dividem nos cuidados com a
família e afazeres do lar e não só ficarmos preocupados no fato daquela brincadeira incentivar
ou não a homossexualidade dos garotos que dela participam.

Assim o debate precisa se disseminar nos ambientes acadêmicos e educacionais,


para que a inclusão da temática “gênero” seja efetivada, de fato, nos currículos
escolares. Dessa forma, professores/as das diferentes disciplinas poderão lidar com o
tema e com situações do cotidiano relacionadas a ele. Com esse procedimento
estaremos contribuindo para que a escola não seja um instrumento de preconceitos,
mas de promoção e valorização das diversidades que enriquecem a sociedade
brasileira. Por isso a escola se configura como o caminho mais consistente e
promissor para um mundo sem intolerância, mais plural e democrático.

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(ESPLENDOR E BRAGA, 2009, p. ???)

Acreditamos que formando melhor os educadores para trabalhar diariamente as


questões que envolvem gênero é possível sim fazer da escola um ambiente que conduz seus
atores por um caminho que respeite e combata toda forma de preconceito contra indivíduos
que assumem sua orientação sexual diferenciada da maioria.
Para além disso, educadores esclarecidos terão mais respeito para com seu alunos e
incentivarão nos mesmos atitudes que promovam a consideração entre os demais,
independente do gênero, da orientação sexual, da cor, e do credo. “O conhecimento será
válido na medida em que vislumbre a superação do pensamento subalterno e das intolerâncias
e das desigualdades sociais, culturais, de gênero, de sexo, raça e das mazelas sociais
decorrentes.” (JOCA, 2009, p. ???)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho nos possibilitou conhecer melhor a temática sobre gênero, além de nos
trazer a compreensão de que não dá para fechar os olhos diante de um tema tão polêmico mas
de necessária abordagem no ambiente escolar.
Não se pode fechar os olhos diante do preconceito como fazem alguns professores que
circulam na instituição escolar em foi realizada a pesquisa. Não dá mais para fingir que não
ocorre
esse tipo de “problema” na escola. Não devemos ignorar o silêncio de alguns e o grito de
outros que tentam se sobrepor ao que lhes é imposto, rebelando-se contra os deboches e
insultos os quais são obrigados a enfrentar diariamente, principalmente o alunos do 4º e 5º
anos, que estão na puberdade e entrando na adolescência que já manifestam atitudes
homofóbicas e preconceituosas ou sofrem com elas.
Desse modo, compreendemos ainda que a escola precisa ser palco de diálogos
voltados para as questões que promovam um entendimento sobre a diversidade,
principalmente as referentes a problemática do gênero. É interessante ressaltar que alguns

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passos já vem sendo dados nesse sentido e que nos abrem caminhos de esperanças de que
podemos trabalhar tais questões para que se eduque os indivíduos para que estes não
continuem propagando ideias machistas, preconceituosas e, por vezes, violentas
manifestações homofóbicas.
Assim, concluímos nosso dialogo sobre as questões de gênero, ressaltando que a
escola precisa estar atenta para estas questões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______. O corpo educado. Pedagogia da diversidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais.
Terceiro e quarto ciclo: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, ano???.
ESPLENDOR, Elizabeth Vieira dos Santos; BRAGA, Eliane Rose Maio. Condutas
pedagógicas sobre as questões de gênero na escola. Cidade: Editora, ano???.
JOCA, Alexandre Martins. Deus é menino e menina: Respeitar a diversidades e combater as
desigualdades. Fortaleza: Editora???, 2009.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectivas educacionais.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
RINELLE, Nadja Oliveira de Almeida; LINHARES, Maria Isabel Bezerra, XAVIER,
Francisca Joelina.Concepção (ções) das juventudes sobre gênero e sexualidade. Cidade???:
Universidade Estadual Vale do Acaraú, ano???
SILVA , Carolina Scolfaro Caetano da Silva. A construção dos estereótipos de gênero e a
educação física. Campinas Grande: editora???, 2003.

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AS “TIAS” DA DITADURA: AS MARCAS DO MOBRAL NA DOCÊNCIA

Luciana Kellen de Souza Gomes | lucianakellen2004@hotmail.com


Lourdes Rafaella Santos Florencio

INTRODUÇÃO

O artigo propõe recompor historicamente o MOBRAL em Fortaleza na década


de 1970, a partir das memórias das professoras que atuaram na época. A pesquisa foi realizada
a com base nas lembranças de remanescentes professoras do MOBRAL, discutindo o
cotidiano dessa experiência, desconsiderada/esquecida durante muito tempo como um
território de construção da memória histórica.

A abordagem da oralidade é referendada por autores como Paul Thompson (1992),


Ecléa Bosí (1994), Maurice Halbwachs (1968), dentre muito outros, que fazem da entrevista
um recurso essencial para recobrar as memórias.

Exemplo clássico vem é o trabalho de Ecléa Bosi Memória e Sociedade –


lembranças de velhos, obra que nos inspirou teórica e metodologicamente em nossa pesquisa.

Os relatos das professoras, além de serem reminiscências de uma vida, são históricos.
Portanto, como produto final das entrevistas, as transcrições dos áudios passaram por
processo de análise e foram inseridas no texto à medida que os temas tratados por elas foram
abordados. É preciso ressaltar que as entrevistas almejaram as memórias dos professores
acerca do MOBRAL, que significou um determinado momento de sua carreira docente. Não
podemos esquecer de que, dentre as seis professoras, quatro já não estavam mais na ativa, já
estão aposentadas, e todas apresentaram uma versão dos fatos segundo a própria óptica e
convicção. As professoras relataram

uma narrativa de forma retrospectiva, com origem em um encadeamento de idéias muito


próprio e particular.
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Há, ainda, as armadilhas da memória, que sendo seletiva, se desenha e redesenha em


vários momentos durante uma trajetória de vida. Portanto, os relatos foram recortes e olhares
sobre o MOBRAL em Fortaleza e merecem ser ouvidos e traduzidos em sua totalidade,
cabendo aqui pinçar durante o processo de reflexão e compreensão as informações ditas e as
não ditas.

O MOBRAL, como qualquer outro programa emanado do Ministério de Educação,


foi apresentado aos técnicos como a “salvação” para os problemas educacionais enfrentados
pela Secretaria de Educação do Estado.

A Prof.ª Maria Cândida, hoje membro do Conselho de Educação do Ceará, faz uma
análise sobre o cenário educacional cearense na década de 1970 e afirma que a política de
educação de adultos sempre foi uma política caroneira no sistema de ensino. Definitivamente,
ela nunca teve o seu lugar como deveria ter sido nas políticas publicas.

O estado na época, não cuidava de Educação de Adultos. Não trabalhava com EJA,
então era um movimento praticamente da sociedade civil, não era totalmente
porque tinha despesas mantidas com recursos federais, de programas federais, que
dava o material. Mas em condições muito precárias. Tinha dinheiro para formação,
para comprar uma parte do material didático, para alguns treinamentos no interior,
organizar algumas escolas, pagava funcionários. Olha, fazer educação formal para
o sistema regular de ensino já era um desafio. Porque nos tínhamos metas e
demandas tanto do ensino fundamental como do ensino médio, altíssima de alunos
fora da escola, então era priorizar a criança e o adolescente, depois o adulto.
(Prof.ª MARIA CÂNDIDA).

Segundo Grangeiro (1994), em pleno regime militar, o MOBRAL foi implantado


como um órgão autoritário. A sua estrutura em níveis nacional, estadual e municipal foi
organizada de tal maneira que os estados e municípios ficaram com a tarefa de executar ações
e metas determinadas pelo órgão central, definidas à distância da realização, onde eram
criados os programas, treinamentos, os materiais didáticos elaborados, repassados
verticalmente aos estados para execução nos municípios. Em muitos casos, segundo a autora e
técnica da Secretaria de Educação do Estado do Ceará, não se sabia o porquê de determinados
programas e ações; questionava-se, mas a ordem era executar.

A Prof.ª Maria de Fátima comenta que o MOBRAL foi “jogado em nossas mãos sem
a gente saber nem o que era, não tinha planejamento, agente aprendeu fazendo”.
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Reforçado o que Grangeiro (1994) comenta sobre a necessidade de estudos mais


localizados sobre o MOBRAL:

Os vários autores críticos do MOBRAL apresentaram suas falhas, distorções e juízo


de valor, com base em documentos oficiais, relatórios etc. Essas análises foram
feitas com muita propriedade, entretanto, sempre trataram a instituição como um
todo homogêneo (...) nunca tivemos notícias de trabalhos feitos a partir da visão dos
técnicos que como esses autores, e até sob inspiração dos mesmos, faziam a crítica
interna, pois eram comprometidos com as camadas populares. (GRANGEIRO,
1994, p. 33).

A história “não contada” é narrada pelos técnicos, professores e supervisores que


foram responsáveis pelos avanços e alcance dos objetivos, na fala destes com “jogo de
cintura”, muitas vezes com recuos, pois, poderiam inviabilizar qualquer participação, ou
espaço a ser ocupado na luta pelos ideais que acreditavam para educação de massa.

Essa luta velada é contada por quem viveu como uma busca por participação nas
decisões e pela busca de realização de ações educativas mais próximas das realidades locais, o
que sem dúvida era uma jogo de forças onde havia perdas e vitórias, angústias e satisfações:

No nível central existia um grupo de técnicos e pedagogos altamente qualificados,


que concebiam, formulavam e capacitavam os demais níveis. Muitos deles em
comunhão com técnicos que atuavam nos estados, pelas suas convicções e
compromisso com as realidades locais e com a questão social, buscavam em suas
ações ocupar todos os espaços possíveis e consequentemente, conquistá-los,
trabalhando nas “brechas” possíveis; quantos embates, quantas discussões quantas
certezas e incertezas (...) à custa de muita luta buscava-se fazer a crítica interna, com
as mentes e os corações voltados para a realidade social. (GRANGEIRO, 1994,
p.34).

A cada alteração sugerida no programa, era também lançada a semente de uma maior
participação nas definições políticas educacionais. O grupo de técnicos era um verdadeiro
grupo de resistência no interior da Secretaria de Educação do Estado.

Era um verdadeiro movimento na “contramão”, cheio de contradições,


acompanhando naturalmente o próprio movimento da sociedade, na busca por
espaços democráticos. Neste percurso, muitos resistiram, outros desanimaram,
outros foram convidados a deixar a instituição, outros apostaram nas possibilidades
do vir a ser. (IBID., p.34).

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A professora Maria de Fátima, além de professora também atuou como supervisora


na Secretaria, participou da implantação do MOBRAL no Ceará, na década de 1970, e conta
que essa ação surgiu aliada a uma série de mudanças e de novos projetos que almejavam a
melhoria da educação em tempos de modernização tecnológica e pedagógica:

Quando a secretaria começou a se modernizar trabalhou com sete projetos. Isso


concomitantemente com a UNESCO e o MEC que funcionava no Rio de Janeiro.
Então foi uma renovação, a gente era apelidado de “segundos pioneiros”(...) Era
um pessoal de cabeça jovem que começou a despertar para didática do ensino, só
que na época estava acontecendo o movimento da revolução. Aí, nós fomos
trabalhar com os militares, só com os coronéis porque só quem poderia dirigir esses
projetos eram os coronéis. (Prof.ª MARIA DE FÁTIMA).

A Fundação MOBRAL foi então entregue à Prof.ª Leirisse Porto, que se


responsabilizou por coordenar as ações em parceria com a Secretaria de Educação do Estado,
selecionando as professoras, criando postos de atendimento do MOBRAL, distribuindo e
capacitando as professoras para o uso correto do material didático que incluía, além do
Manual de Orientação do Professor, um Livro de Leitura, um Livro de Exercícios e cartazes
que serviriam de apoio para o processo de alfabetização.

Os recursos financeiros foram financiados pela parceria MEC/UNESCO/USAID,


que, segundo o relato das professoras, não eram poucos:

O MOBRAL tinha muito dinheiro ele tanto pagava bem o supervisor quanto o
professor, então tinha muita vaga, todo mundo queria ser professor. No meu bairro
ali na Rua João Cordeiro, da minha casa ate descer na Monsenhor Tabosa, tinha 11
núcleos. 11 casas com alunos. A coordenação ficava ali onde é hoje o teatro São
José, mas você nem via a coordenadora porque tinha muita gente trabalhando para
o MOBRAL (Prof.ª MARIA DE FÁTIMA, ex-supervisora e ex-professora do
MOBRAL).

A remuneração paga aos professores também é referida pela Prof.ª Maria Lúcia “O
dinheiro era bom, eu lembro que era como se fosse 70% do salário. Não era integral porque eu
não tinha carteira assinada, não era formada, era até de menor”

O MOBRAL foi a primeira experiência docente para muitas professoras. As jovens


normalistas, algumas ainda adolescentes, que se aventuraram a ministrar aulas no MOBRAL
em Fortaleza, enfrentaram adversidades que uma suposta fragilidade do programa e a falta de

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experiência na docência trouxeram. Entretanto, a oportunidade do emprego precoce foi um


atrativo para aquelas que se interessaram em atuar como alfabetizadoras de adultos sem a
exigência da formação docente:

A minha primeira experiência como professora foi no MOBRAL, eu tinha em torno


de 17 para 18 anos, se eu bem me lembro, eu fazia a 8 ª serie(...) e como surgiu eu
não me lembro, só sei que toda vida eu gostei de trabalhar, sou de uma família
muito grande, com muitos filhos (...). Então quando surgiu nessa época a
oportunidade de ensinar no MOBRAL eu me agarrei. Eu não pensava em ser
professora. Eu me lembro bem, eu queria ir para o instituto de educação porque eu
estudava em escola, pública, mas eu não queria fazer o normal, o pedagógico de
hoje. Queria ir para área de saúde, porque tinha la no Instituto de Educação do
Ceará, tinha Laboratório de Analise e tinha Enfermagem e eu

nem sonhava em fazer o curso Normal. (Prof.ª MARIA LÚCIA, ex-professora do


MOBRAL).

Na lembrança da Prof.ª Maria Clara:

[...] eu trabalhava de dia no comércio e de noite alfabetizava. Ate porque era detrás
de casa num areal, numa casinha, que uma senhora me cedeu, porque me conhecia.
Então aquela comunidade me valorizava e me reconhecia: Ei você é a professora!

Sobre o seu ingresso no MOBRAL, a Prof.ª Maria Eunice nos conta que

[...] minha primeira experiência foi no MOBRAL. A primeira da minha vida. Eu


nunca tinha trabalhado, nunca tinha ensinado nem criança, nem adolescente nem
nada, eu fui direto para alfabetização de adultos.

Interessante também é perceber que, mesmo jovens, as professoras identificavam um


papel social atrelado a sua missão de ensinar. Nas entrevistas, foi fácil identificar que as
lembranças estavam sempre associadas a sentimentos de saudade, respeito e carinho pelos
alunos, em uma relação quase que de caridade:

[...] eu me considero bastante tímida, mas consegui me desenvolver através do


MOBRAL. A relação com os alunos era boa, inclusive eu lembro que tinha uma
campanha de óculos, porque como eram adultos, pessoas pobres, bem humildes,
não estudavam porque tinham problemas de vista. Aí, eu lembro que teve essa
campanha de óculos e eu levei todos esses alunos para fazer um exame no centro e
eles ganharam óculos, tudo por conta do MOBRAL. Essa campanha do óculos eu
nunca esqueci porque eles ficaram muito agradecidos, achavam que era eu que
estava conseguindo”. (Prof.ª MARIA LÚCIA, ex-professora do MOBRAL).

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A Prof.ª Maria de Fátima denuncia que o perfil das professoras no MOBRAL deveria
ser de estudantes da escola pública ou normalistas e que o intuito dessa seleção era para não
polemizar na sala de aula com os alunos, mas acalmar a população, já que o programa passava
uma idéia positiva de serviço educacional oferecido ao povo gratuitamente:

As professoras não faziam o debate em sala de aula ate porque eles não queriam
professoras formadas, tinha que ser estudante, de preferência alunos de escola
estaduais, com a desculpa que estavam dando oportunidade. Mas professor mesmo,
não tinha nenhum professor formado. Nós éramos voluntárias do MOBRAL. Não
éramos professoras, a gente é que se chamava assim.

Sobre o ingresso no programa, foi certo perceber que não havia critérios, a não ser ter
um local para implantação da turma:

Quando surgiu essa oportunidade, eu soube através de alguém. A gente tinha que
arranjar o local para dar as aulas, arranjava os alunos, fazia a lista de alunos, e ia
para o local

central aqui em Fortaleza onde funcionava o MOBRAL, que eu me lembro, ficava


no prédio onde hoje é o Teatro São José. (Prof.ª MARIA LÚCIA, ex-professora do
MOBRAL).

A falta de critérios para o funcionamento das turmas e a aleatoriedade no processo de


contratação das professoras apontam para o caráter massificante da experiência do MOBRAL
em Fortaleza. Na fala da Prof.ª Vera percebe-se que havia preocupação em dar visibilidade ao
programa e facilidade na captação do emprego de professora

Então no MOBRAL a filosofia era: vamos alfabetizar o adulto! A condição era que
os professores chegassem numa comunidade qualquer, arranjasse uma casa e 20
alunos; formasse uma turma e cadastrasse na coordenação. Quer dizer, não existia
uma escolha de professor, existia o emprego de professor! Aí naquela casa, você
tinha que pegar a sala da frente. Pra quê? Para quem passasse, visse que ali estava
acontecendo aula e se interessasse. Esse era o discurso.

Esse discurso é reforçado pela Prof.ª Maria Clara: “Qualquer pessoa podia dar aula
no MOBRAL, não havia critério algum”. Aliás, em alguns casos, o critério era a indicação
política e ela completa: “(...) eu sabia de amigas que tinham sido indicadas por político e que
nem aulas davam, a turma era fantasma”.

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Indagadas sobre o processo formativo e a respeito das capacitações para trabalhar no


programa, muitas afirmam que era irrisório, pró-forma, e que a orientação mesmo era aquela
proposta no material didático que todas fazem questão de elogiar:

Nós íamos para lá (para Fundação), tinha um treinamento, mas muito pequeno,
muito pouco, nele a gente aprendia a manusear o material, porque tinha o livro do
aluno, tinha a parte de escrever, tinha o livro de leitura e tinha os cartazes. Eu
lembro bem dos cartazes. Nós trabalhávamos com palavra. Mas eu não tinha ideia
do que eu estava fazendo, eu lembro que ouvi falar em Paulo Freire, antes da
Universidade. Eu ainda fazia 8ª serie e não tinha a mínima ideia de como ensinar
(Prof.ª MARIA LÚCIA, ex-professora do MOBRAL).

Há relatos de que para as professoras o treinamento era repassado de forma


aligeirada e somente quem estava na administração do programa tinha acesso à formação.

A Leirisse Porto era coordenadora é quem sabia tudo. Porque as coordenadoras


gerais recebiam todo o treinamento pra lidar com o programa. As professoras e
supervisoras não tinham não. Era um repasse, elas diziam assim: nessa etapa aqui,
trabalhe essa família, nessa aqui, faça assim. Elas davam aula para nós e nós
repassávamos. (Prof.ª MARIA DE FÁTIMA, ex-professora do MOBRAL).

A Prof.ª Vera continua dizendo que nunca houve um questionamento sobre isso
porque “ninguém tinha coragem de falar, se você dissesse isso aqui, você saia do programa. O
seu emprego era atrelado a nada”. E a Prof.ª Marileide reforça essa afirmação, dizendo que “O
professor tinha o

Manual do Professor como guia para o planejamento de suas aulas”. Ao ser indagada se
participavam de alguma capacitação: “nada, nada, nada!!!! A gente lia no livro: hoje você vai
trabalhar atividade tal e você fazia da melhor maneira de repassar aquilo dali para os alunos”.

A Prof.ª Maria Clara completa, afirmando que o método de alfabetização proposto


pelo MOBRAL era o analítico sintético:

Pronto! Você fazia esse treinamento pequeno e começava a dar aula, seguindo a
ordem do livro. Não tinha planejamento, mas tinha o livro que a gente ia seguindo.
Partia da palavra, da silaba, da discussão do tema, eu lembro bem que tinha a
palavra: enxada e trabalho.

O material pedagógico ao qual as professoras se referem era entregue no mesmo dia


em que faziam o cadastramento da turma na coordenação e era composto por um kit que
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incluía o Manual de Orientação do professor, o Livro de Leitura dos alunos, o Livro de


exercícios do aluno e os cartazes.

Sobre o processo de recrutamento de professoras alfabetizadoras, as professoras são


enfáticas:

Na época, era uma fundação não sei o que, não me lembro o nome dessa fundação,
já faz tanto tempo né? (rs) eu só sei que o projeto era o MOBRAL. Aí eu cheguei,
preenchi uns papeis, elas perguntaram se eu era formada, eu disse que era, que
tinha o quarto normal. (Prof.ª MARIA EUNICE, ex-professora do MOBRAL).

A professora Maria das Dores, em entrevista, também garante:

Eu fui lá e me deram a turma, a turma era na escola Paulo Ayrton (do estado), na
BR 116, isso porque eles tentavam colocar você, mais próximo da sua residência.
Porque na época você só tinha direito aquele salariozinho, não tinha negocio de
vale transporte, passagem de ônibus, não tinha nada. (Prof.ª MARIA DAS DORES,
ex-professora do MOBRAL).

O “salário” pelo trabalho de alfabetizador do programa era pago em espécie,


pasmem, sem registro algum de tempo de serviço nem comprovação de rendimentos:

O dinheiro era pago pela fundação não tinha nada a ver com o estado e eu me
lembro que era 150 cruzeiros, o dinheiro vinha em espécie, a gente assinava um
recibo e não ficava com nada. Por isso que não há comprovação de pagamento
nada, era solto, solto. (PROFª MARIA CLARA, ex-professora do MOBRAL).

Outros depoimentos, denunciam a ação anti-burocrática da instituição:

Eu trabalhei 13 anos na Secretaria, só que eu não tinha carteira assinada, uma pessoa
recebia e me repassava uma parte do dinheiro. Ninguém assinava isso. Não tem uma
prova de que eu passei por isso. (PROFª MARIA DE FÁTIMA, ex-supervisora e ex-
professora do MOBRAL).

Paralelamente, durante a pesquisa, conhecemos um fato curioso, para não dizer


suspeito, que circunda a história do MOBRAL em Fortaleza; um suposto incêndio pôs fim aos
documentos referentes às folhas de pagamento, documentação de alunos matriculados, dentre
outros papeis importantes para reconstituição da história. Marileide denuncia que:

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Houve um incêndio, perderam tudo e eu também perdi meus dois anos de serviço
porque perderam toda a papelada. Na época valia o MOBRAL como tempo de
serviço, mas quando eu fui atrás, nada. (PROFª MARIA EUNICE, ex-professora do
MOBRAL).

Outro comentário intrigante é o da Prof.ª Maria Cândida, hoje componente do


Conselho de Educação do Ceará, ao ser questionada sobre possível localização de dados
acerca do atendimento do MOBRAL em Fortaleza, enfaticamente afirma:

Olha, tu vai terminar uma tese dizendo que a memória da educação de adultos é
morta! Porque assim que as instituições que cuidaram da educação de adultos se
extinguiram, os papeis sumiram. E a gente nem sabe onde foram parar esses
arquivos. É um grande mistério! (Prof.ª MARIA CÂNDIDA).

O acompanhamento do trabalho era realizado pela Coordenação mediante reuniões


chamadas de encontros culturais realizados na sede. Acontecia aos sábados, além de visitas
periódicas dos supervisores aos postos de atendimento do MOBRAL, além do recebimento de
relatórios mensais que acusavam o índice de alfabetização, o controle de frequência dos
alunos e a taxa de evasão.

No comentário da Prof.ª Maria Clara, “tinha aquelas reuniões dia de sábado, para
receber cartilhas, elas chamavam de reuniões culturais, que nada mais era para receber
material didático”. Isto é confirmado pela Prof.ª Maria de Fátima, ao denunciar que trabalho
da supervisão não era bem executado, deixando a desejar em vários aspectos.

O trabalho das supervisoras era uma coisa solta! Só tinha uma coisa que não podia
faltar: as reuniões dia de sábado. De 1 às 6h da tarde. Todos os supervisores e
professores. Porque era aí que víamos os avanços onde logicamente, todos os
professores davam ótimos retornos. Tinha que sair um relatório para coordenação
geral no Rio de Janeiro, então nos sábados ela pegava os dados, juntava os quatro
sábados onde só apareciam bons depoimentos e enviava o relatório para o
MOBRAL/Central. O avanço era fictício. (Prof.ª MARIA DE FÁTIMA, ex-
professora do MOBRAL).

O referido relatório era um formulário exigido a todas as professoras. Por esse


instrumento, a coordenação municipal controlava o número de alunos e avanço de
aprendizagem no tocante à leitura e escrita:

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Eu tinha que entregar um relatório e uma frequência todo mês. Um relatório sobre
como é que a turma estava, por exemplo: quantos estão lendo? Numero de alunos
frequentando. A maior turma que eu tive foi de 20 alunos, acho que a aprendizagem
acontecia por conta disso aí. (Prof.ª MARIA DAS DORES, ex-professora do
MOBRAL).

O trabalho da supervisão não estava restrito à realização de reuniões aos sábados e


cobrança de relatórios, pois era de responsabilidade delas também visitar todos os locais onde
o MOBRAL estava ocorrendo, mas esse acompanhamento era deficitário e, na fala das
professoras.

Lá só tinha uma turma, somente eu. Tinha uma supervisora que custava muito ir lá,
ela preferia ir às outras escolas onde tinham muitas turmas. Não tinha ninguém
para conversar sobre o trabalho e eu me sentia muito sozinha. (Prof.ª MARIA
CLARA, ex-professora do MOBRAL).

Pelos depoimentos, as visitas tinham restrito interesse em fiscalizar a frequência dos


alunos, havendo pouca vontade em saber/colaborar com o processo de aprendizagem que
estava acontecendo ali naquele espaço.

O que passava pra supervisora é o que elas entendiam, o que eles queriam ouvir, eu
não podia questionar, pelo que eu me lembro é que se o MOBRAL foi baseado em
Paulo Freire e se uma das frentes era o circulo de cultura, que era o dialogo essas
duas coisas no MOBRAL nos não poderíamos falar. Era dito assim: não vamos
politizar o ensino, nos vamos alfabetizar os adultos. Então, mas naquele tempo
ninguém questionava ate porque ninguém tinha maturidade e nem conhecimento
para entender essa política ideológica. Então lá estou eu trabalhando com as
ferramentas do Paulo Freire, mas com as ideias dele não. Todo mundo soube depois
que tinha um grupo no MOBRAL que era da UNESCO, que não tinha nada a ver
com Paulo Freire, Ele foi usado como uma frente, mas que o MOBRAL com as
ideias dele não funcionava. (Prof.ª MARIA DE FÁTIMA, ex-professora do
MOBRAL).

Aos poucos, o programa foi definhando, os estados lutavam com cada vez mais
afinco pelo direito de produzir um material didático regionalizado, além da luta pelo princípio
da autonomia regional, na tentativa de incluir nas ações os planos estaduais de educação.

Essa tensão sentida durante todo o percurso de existência do MOBRAL não foi o
estopim para o encerramento de suas atividades. Outros problemas de ordem financeira e
jurídica puseram fim às ações do MOBRAL, culminando na informação de extinção chegada
aos técnicos da Secretaria pela própria imprensa.
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A forma como foi extinto o MOBRAL e os argumentos utilizados foram sentidos


como um desrespeito pelos técnicos, alfabetizados e responsáveis pelas comissões municipais
que atuaram na implantação e desenvolvimento do MOBRAL no Ceará. Alguns exerciam a
função como voluntários e faziam seu trabalho, nas palavras de Grangeiro (1994), com
bastante seriedade e dedicação. Em continuidade ao trabalho da Fundação MOBRAL, foi
criada a Fundação Educar, com um discurso bastante progressista e mais comprometida com
princípios democráticos no novo regime que se instalava em 1985 no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, E. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. 7. Ed. São Paulo: Companhia das
Letras.1999.
BRANDÃO, C. R. Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BURKE, p. (org.). Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. IN: A escrita da
História: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.
GERMANO, J. W. Estado Militar e Educação no Brasil (1964-1985). 2. Ed. São Paulo:
Cortez, 1994.
GRANGEIRO, L. H. F. Educação Popular: Limites e Possibilidades no Aparelho do Estado.
Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Ceará. 1994.
THOMPSON, p. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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CURSO DE MAGISTÉRIO (ANOS 1970-1980): MOLDANDO MENTES E CORPOS


FEMININOS

Cristiane Souza de Menezes| krisme_7@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Apesar das profundas transformações sociais ocorridas na segunda metade do século


XX que possibilitaram avanços na escolarização feminina e a conquista de novos espaços para
a mulher na esfera pública (muito em decorrência da mobilização feminista), a docência nas
séries iniciais e seu curso de formação continuaram marcados pela feminilização e pela
feminização.
Visando trazer contribuições para os estudos sobre escolarização e profissionalização
femininas (em especial para a história da profissão docente e das instituições escolares
formadoras), este trabalho objetiva analisar representações e práticas presentes no cotidiano
de um Curso de Magistério (habilitação de 2º grau) nas décadas de 1970 e 1980 de uma
tradicional escola da rede estadual de Pernambuco. Apesar de ser uma escola mista de
educação secundária, o curso para formação de professoras primárias funcionava no turno da
manhã, com exclusiva frequência feminina (o que só foi modificado na década de 1990,
período não contemplado neste texto).
O trabalho, que é parte de uma pesquisa em andamento, se inscreve nos Estudos de
Gênero e nos pressupostos teórico-metodológicos da Nova História Cultural. A metodologia
adotada foi a história oral, com realização de entrevistas semi-estruturadas com cinco ex-
alunas, dois ex-professores e três ex-professoras do curso supracitado. Para preservar o
anonimato, os sujeitos são representados, respectivamente, pelos códigos “A”, “PROF”,
“PROFA”, acompanhados por um numeral que indica a ordem em que suas falas são
inicialmente apresentadas neste texto. Além disso, como a metodologia da história oral não
excluiu a utilização de outras técnicas de pesquisa, como a consulta documental, também
foram analisados cadernos e boletins de alunas, requerimentos de matrícula etc.
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FORMAÇÃO DE PROFESSORAS PRIMÁRIAS E A MOLDAGEM DE MENTE E


CORPOS FEMININOS

Werle (2008, p. 19) destaca que uma instituição, especialmente escolar, se caracteriza
por “um caráter formativo, um movimento de transmissão de um saber que se deve integrar
num sistema de conduta e, ao mesmo tempo, num conjunto de limites e interdições”.
Nesse sentido, na instituição em estudo, uma tradicional escola da rede estadual de
Pernambuco situada em Olinda, os aspectos que mais se sobressaíram no período em tela
(décadas
de 1970 e 1980) foram a disciplina e o autoritarismo, perpassando as práticas na sala de aula e
nos demais espaços da escola, se manifestando, inclusive nas exigências à aparência e à
conduta das alunas do Curso de Magistério dentro e fora dos muros da instituição.
Esses dois aspectos eram vistos, na maioria das vezes, como algo positivo por
professores, funcionários, pais e também alunas, pois possibilitaram à instituição um
ordenamento (horários, comportamentos, currículo, fardamento etc.) que contribuiu para que
sua qualidade fosse reconhecida no município, sendo considerada uma instituição educativa
de excelência. Embora também fosse sentida como opressiva por alguns dos sujeitos.

[A diretora]9 era uma pessoa muito autoritária. Mantinha uma disciplina quase que
militar quanto ao horário, fardamento e comportamentos dos alunos. Para muitos
na época (pais) era ótimo, [para nós] era angustiante. Muita repressão. Não
existiam diálogos nem defesas. As regras tinham que ser cumpridas e os
funcionários respeitados e obedecido. (A1)

Tinha pessoas que até temia a pessoa dela [a diretora]. Às vezes ela era temida
também, porque ela era, assim, muito forte, muito decidida, muito enérgica. De
pulso, né? Ela era de pulso. [...] E a gente tinha que fazer também... era... o estágio,
né? A definição da farda do estágio [...]. Pronto, então era assim. Tudo definido: a
farda do estágio, a farda do desfile, assim. O que fosse ter, ela sempre tava à frente,
organizando. (A2)

[...] E de fato ela [a diretora] era uma pessoa de uma rigidez medonha e isso foi
muito bom para o colégio, o colégio realmente se tornou um padrão por causa dela.
Ela foi que iniciou, padronizou o colégio dessa forma. (PROF1)

9
Uma mesma gestora esteve à frente da instituição escolar (quase de modo ininterrupto) desde a sua fundação,
em 1960, até 1984 (quando se aposentou). Portanto, é a sua gestão que se referem todos os/as entrevistados/as
citados neste trabalho (que abarca o recorte temporal da década de 1970 até a primeira metade dos anos1980).
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Quanto à disciplina, o trabalho desenvolvido por Foucault contribui para o


entendimento do cotidiano da escola. Segundo o autor, a disciplina é um tipo de poder, um
modo de exercê-lo, que contém em si um conjunto de instrumentos, de técnicas, de
procedimentos, de níveis de aplicação dos quais a escola se serve para alcançar um
determinado fim: o controle de corpos e mentes dos educandos, para a modelagem de
indivíduos dóceis, passíveis de serem educados. Ou seja, o corpo é submetido por relações de
poder e de saber (FOUCAULT, 2006, p. 177).
O estatuto da instituição, sintetizado no verso dos boletins dos(as) alunos(as) da
década de 1980 (ao lado de uma oração dedicada a inspirar “bons/boas estudantes”) e
frequentemente lembrado pelas funcionárias responsáveis pelo Serviço de Orientação
Educacional (SOE) era uma expressão desse controle sobre corpos e mentes, pautado pela
disciplina, contendo preceitos e sanções que abarcavam a vestimenta, o asseio do corpo, a
limpeza e manutenção do ambiente escolar e dos materiais de uso coletivo, a obediência à
direção, docentes e funcionários etc .
Sobre esse controle, Foucault (2006, p.120) destaca que “a disciplina é uma anatomia
política do detalhe”, se referindo ao controle minucioso que é operado sobre o corpo, uma
coerção sem folga visando não apenas aumentar suas habilidades ou sua sujeição, mas formar
uma relação obediência/utilidade. Para isso o corpo, concebido então como objeto e alvo de
poder, portanto manipulável e moldável, pode ser treinado, aperfeiçoado, e assim “entra numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (op. Cit, p. 119).
Nesse sentido, o poder disciplinar fazendo uso de instrumentos simples, e por isso
mesmo mais eficazes, como o exame, o olhar hierárquico e a sanção normalizadora busca
tornar os indivíduos produtivos, úteis e ao mesmo tempo obedientes, submissos. No processo
de controle e domínio sobre o corpo a atenção aos detalhes, ao micro, é essencial para tornar o
exercício desse poder onipresente, ajudando a construir uma espécie de rede invisível, que
cerca o indivíduo em todas as direções possibilitando a que este perceba como natural o
controle e a vigilância exercidos sobre ele. Além de permitir tirar dos corpos dos indivíduos o
máximo de produtividade.
Um instrumento desse processo de “controle onipresente” é revelado nas memórias
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das alunas A3 e A4 e da professora PROFA1: a farda. No primeiro caso, a utilizada nos


treinamentos pelas atletas; no segundo, a farda comum aos cursos ginasial e colegial e no
último, a farda que as professorandas usavam no estágio. Esse “detalhe” permitia à direção ter
um controle sobre o comportamento das alunas mesmo fora da escola:

Ela [a diretora] exigia que nós nos comportássemos de acordo com o perfil da
escola. Inclusive nós, atletas... Nessa época, os treinos de handebol aconteciam na
quadra e quando a quadra estava ocupada com o futsal a gente precisava ir para o
quartel, [...]. E acontecia o seguinte: uma vez ela passou e viu as atletas (porque a
gente tinha a farda do treinamento) pedindo carona... Então ela marcou uma
reunião com os atletas e com a treinadora [para] saber por que os atletas estavam
“sujando o nome da escola” pedindo carona... e que não queria nenhum atleta
pedindo carona. Quem não tivesse dinheiro [...] ela ia reservar a passagem para o
treinamento. Mas não era nem questão de não ter, era ter o dinheiro e guardar para
o lanche (risos). Então era aquela anarquia, aquela vontade... E tinha uma época
que era muito bom pegar carona! Que o povo ficava na rua pegando carona! Então
ela disse que da próxima vez que ela visse alguém pegando carona ela ia suspender
e ia tirar do time [...]. (A3).

Um fato interessante é que ela [a diretora]... Algumas vezes ela chegava nas turmas
e dizia que uma aluna do magistério (que era a “menina dos olhos” dela, era o
magistério), tinha feito alguma coisa que não era certa na área de estágio, em
outros colégios. E a turma ficava, assim, sem saber como é que ela sabia que tinha
ocorrido bagunça, tinha ocorrido, assim, distúrbios com as pessoas daquela sala.
Ela acertava. Agora não acertava, assim... às vezes a aluna, mas acertava a turma.
Passado tempos, se descobriu que havia três turmas: A, B e C. Cada uma sempre a
camisa tinha a mesma cor... Cor de rosa, amarela e azul... Então era isso. Eram
pessoas que eram conhecidas dela, que diziam, quando ocorria algum distúrbio com
alunas do Estadual... “Qual era a cor da camisa? Cor de rosa? Ah, então é do
primeiro ano tal”. Ela ia certo! Isso aí, você veja, ela usou esse artifício para poder
ela, em casa, saber quem estava fazendo bagunça, quem não
estava tão certa como deveria ser, e... foi-se descobrir muito depois. Você veja que
cabeça ela tinha, pra ficar em casa e poder administrar o colégio à longa distância.
(PROFA1)

É, ela era rígida, como eu já disse. Chegou sem farda, voltava! Era a ordem da
escola e tinha que ser cumprida. Se viesse de saia curta também voltava... Era saia
pregueada, a blusa com o emblema [...]... Tinha que ter no bolso, se não fosse...
podia ir até de blusa branca, mas se não fosse com o bolso voltava, porque aquela
era a identificação da escola. (A4)

Nos depoimentos é possível perceber o cuidado para que a aluna não “maculasse” o
nome da instituição quando estivesse fora do colégio, manifestando um comportamento não
condizente com os valores, práticas, normas, condutas que deveriam pautar o pensar e o agir
de seus membros. Sobretudo quando esse membro portava a farda que, como destaca Werle
(2004) é uma representação da instituição, contribuindo para presentificá-la.

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Mas voltando às memórias de PROFA1, elas colocam em foco um estratagema


desenvolvido pela direção para vigiar as professorandas durante o estágio (as alunas sabiam
que estavam sendo vigiadas, mas não sabiam como). Outro aspecto presente são “os olhos
vigilantes” de membros da comunidade olindense sobre as alunas no estágio, que ampliavam
o olhar esmiuçante e vigilante da escola, e que permitia a organização de um poder anônimo,
silencioso, múltiplo e automático, que estava em toda parte (FOUCAULT, 2006).
Sobre o controle contínuo que existia na escola através de um jogo do olhar, as
memórias de alguns sujeitos desvelam outros funcionários que auxiliavam a direção no
controle e vigilância dos discentes, pois na disciplina há um poder difuso.

Também uma coisa boa que sempre foi muito... é... [a] Irmã, que muitas alunas
achavam muito chata, que ela era muito rigorosa. Mas era uma pessoa que tava
formando gente para o futuro, né verdade?! E muita gente levou aquilo para as
escolas. [...] Ali tinha é... orientação educacional, tinha todo esse aparato. Isso foi
muito... Eu acho que foi um avanço no Colégio. [...] E [também] teve um papel
muito importante [o] chefe de disciplina ali. Mas ele era um cara que conversava
com o pessoal, orientando. Né?! Não era com grito. Era orientando. (PROF2)

[...] Mas [a] Irmã: “Não brinque não, preste atenção!”; “Olhe para frente!”;
“Uma normalista tem que se comportar!”. Ela chamava a gente para escrever no
quadro, tinha que ter uma boa caligrafia e tudo e veja que quando eu entrei lá
1980, 81, 82! Imagine antes como não era! [...] Mas [a] Irmã não largava do pé
da gente: olhava os botões [da farda], tinha que está bem colocadinhos. Todo
mundo com o mesmo sapato! Agora eu não alcancei saia de prega não, já era
calça comprida, graças a Deus. [...] O sapato era aquela Fortflex... Franciscana.
Mas tinha que ser Franciscana da Fortflex, meu pai do céu! Mas de certa forma
eu gostava, porque me dava a impressão que eu estava em um lugar seguro, sério.
(A5)

Também uma coisa que havia muito boa, era que tinha as pessoas que tomavam
conta das salas. Antigamente tinha umas certas... era... funcionários que tomavam
conta ali... auxiliares de disciplinas... Que depois se acabaram. (PROFA1)

Tínhamos um funcionário, [...] ele era um zelador. Ele estava varrendo a calçada
de mentira, que ele já varreu pra lá e pra cá. Ele batia assim a vassoura: “A
senhora não tá vendo não? Viu aquela menina como entrou agora?” Eu tava aqui
ocupada com outra coisa, uma mãe chegava para falar, e a menina descendo pela
rampa... Lógico, quem estava com uma blusinha menor ou sem a blusa do colégio,
estava descendo pela rampa, escondido. “Vá lá chamar ela.” Então ele cuidava
disso, da roupa, e de quem chegava mais atrasado. Tinha um homem para cuidar
do portão, mas ele cuidava também. (PROFA2)

As falas revelam como esses sujeitos contribuíam num processo de controle e domínio

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sobre o corpo, onde a atenção ao micro, aos detalhes (comprimento da blusa, posição dos
botões da farda, modelo do sapato, a caligrafia, o horário de chegada etc.), é essencial para
tornar o exercício desse poder onipresente, ajudando a construir uma espécie de rede invisível,
que cercava o corpo discente em todas as direções possibilitando que este percebesse como
natural o controle e a vigilância exercidos sobre ele.
Sobre as inspeções (ou revista) das alunas, Rocha (2003, p.49) aponta esse
instrumento disciplinar como o mais poderoso para incutir hábitos de asseio pessoal,
especialmente quando realizado em dias indeterminados, “o que ampliaria a sua eficácia, pela
possibilidade de surpreender os renitentes”.
As manifestações de indisciplina, por sua vez, eram punidas. Não com a punição física
(já há algumas décadas abolidas oficialmente das escolas brasileiras), mas com aquela que,
segundo Foucault (2006), é capaz de fazer o sujeito sentir a falta que cometeu. Além de seu
aspecto exemplar, que busca inibir o reaparecimento do comportamento indesejado, a punição
tinha também a função de reduzir os desvios, tendo um caráter corretivo.
Dentre as principais punições estavam a suspensão das aulas, a transferência (tanto de
alunos quanto de professores), a reprimenda pública e o castigo coletivo de turmas
(geralmente retenção na sala de aula) quando não era possível identificar a “infratora”.
Além disso, as memórias dos sujeitos desvelam que o controle sobre os corpos se dava
principalmente na direção das alunas, ou seja, do corpo feminino como, por exemplo, no
controle do comprimento da saia ou da blusa, como já citado; e também nos adornos
femininos (maquiagem, pintura das unhas etc.).

[...] Que ela [a diretora] era muito, muito exigente. Não entrava com a unha
pintada de vermelho... Era. As meninas não usavam maquiagem, não podia entrar
com maquiagem... A farda tinha que ser muito impecável. (PROFA3)

Esse controle também está registrado em apontamentos de aula (da disciplina Didática
Geral) contidos em cadernos de ex-alunas do Magistério dos anos 1980, que prescreviam
como deveria ser a aparência de uma professora (roupas limpas, bem passadas e com cores
sóbrias; sapatos limpos e confortáveis; acessórios e bijuterias discretas; rosto limpo e sem
excesso de pintura; cabelos bem cuidados e penteados; postura ereta e natural; porte revelador
de equilíbrio e confiança etc.).
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Além disso, havia aulas de etiqueta que eram ministradas regularmente na escola por
uma freira responsável pelo SOE. A ideia da criação dessas aulas foi uma iniciativa dessa
religiosa com apoio da direção, como revelado pelas memórias de algumas das ex-professoras
que foram entrevistadas:

[...] Mas ela subia [até a sala da direção] e fazia valer o quê que ela queria: “Seis
aulas de português durante a semana? Porque não pode ter uma aula por semana,
um momento só, pra ver esses meninos aprenderem... Chega tudo parecendo uns
bichinhos!” Aí era muito interessante. Foi permitindo... A ideia era da Irmã [...],
ela mandou botar, fez um programinha, e: “Bote, escreva aí para depois perante a
DERE eu não ficar... a minha cabeça rolar.” Eu fazia que não estava vendo nem
ouvindo nada... (PROFA2)

[...] Eu só ouvia falar das aulas de etiqueta (risos). Eu ouvia falar, mas... Mas era
aquelas regras de boas maneiras que ela dizia, nera?! Etiqueta, por exemplo, se
era... se vai entrar numa sala tem que pedir licença, se vai sair pede licença, aquela
coisa de... de Academia e de freira e de padre. Porque padre e freira tem essas
coisinhas. Pra se levantar pede licença, não é?! É... pra ir ao banheiro, pede
licença.... Que hoje o aluno se levanta e vai embora. Num pede mais nada disso.
Não é?! Totalmente diferente. Né?! Essas coisas que, que ela ensinava... Como
chegar no lanche e não meter o cachorro-quente na boca de vez, aquela coisa toda.
Isso ela falava tudo. Eu achava que era o correto. Por exemplo, essas pernas...
Botar as pernas em cima da cadeira da frente, da banca da frente... Se ela passasse
e visse uma aluna assim... Agora, ela chamava o professor e o aluno! Era.
Reclamava: “Professor, não é desse jeito que a gente educa, não!”. Mesmo assim.
Ela dizia mesmo. E, e... pra aluna, era capaz de mandar pra casa. Era. Era exigente
demais. Mas, tudo tem sua época, né?! Naquela época, era assim. Hoje não é mais
[...]. (PROF2)

Em pesquisa sobre a instituição católica na qual a freira coordenadora do SOE se


formou e também atuou, a Academia Santa Gertrudes, Silva (2012) destaca em seu cotidiano
elementos de uma cultura escolar que percebemos como refletida nas memórias dos
entrevistados sobre as chamadas “aulas de etiqueta” no colégio olindense objeto deste
trabalho:
No quotidiano [...] somavam-se as sutilezas que deviam fazer parte do repertório da
“boa menina”, e da “moça direita”: a polidez, traduzida pelo respeito aos mais
velhos e a cortesia em todos os aspectos da convivência, cumprimentar, agradecer,
despedir-se, desculpar-se, ceder o lugar, abrir a porta para outrem etc. pelos modos
comedidos: não andar arrastando os pés, nem fazer barulho com os sapatos, sentar
e levantar sem fazer barulho desnecessário com a cadeira, ou mesa, abrir e fechar
portas sem batê-las e ainda, a atenção às normas gerais de educação doméstica.
[...] Tais valores, de tão introjetados, eram praticados, mesmo sem a vigilância das
Irmãs e não eram bem vistas, pelas colegas, as alunas recalcitrantes [...] (SILVA,
2012, p. 372).

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Em documentos do arquivo escolar também localizamos indícios de outros cuidados


com o corpo: a exigência de atestado de saúde e vacinação para a realização da matrícula.
Depoimentos de alguns sujeitos também apresentam recordações sobre essas exigências
sanitárias.
Outro aspecto ligado a um controle dos corpos é a busca de corpos que provavelmente
eram considerados como perfeitos para representar a escola publicamente, segundo critérios
da direção da instituição:

Eu tenho até um detalhe, que uma vez... Na época do desfile [a diretora] escolhia a
menina mais bonita da escola para fazer a abertura. Aquela que levava a bandeira
lá na frente era a aluna destaque. E nós tínhamos uma amiga que ela era muito
bonita, só que ela era gorda. [...] [A diretora] não queria porque ela era gorda. E a
gente conversou muito para conseguir, para que ela deixasse [a aluna] segurar a
bandeira do Brasil. Era a abertura, tinha um grupo de bandeiras, não é? Que
levava todas as bandeiras... e a de frente era a bandeira do Brasil, então ela [a
diretora] escolhia a dedo a menina que ia levar... As balizas, o pelotão das
bandeiras, era ela que também escolhia. Tinha que ser alta, bonita... Ela escolhia as
balizas... queria meninas bonitas, brancas... Se alguma negra desejasse ser baliza
ela cortava, tinha isso. Ela mesma escolhia. Ela passava nas salas e escolhia. (A3)

E ela [a diretora] era uma pessoa muito... Assim, ela tinha preconceito. Apesar dela
ser boa... Ela ajudava as meninas pobres, as meninas negras. As meninas pobres ela
ajudava. Mas quando ela ia formar a banda, ela não queria que as negras ficassem
na frente. Minha filha é loira e alta e... bonita, né? Ela dizia assim: “Você não pode
ficar no pelotão, você tem que ser destaque. Uma menina alta, bonita dessa. Pelo
amor de Deus, tira aquela neguinha dali da frente!” Que ela dizia: “pelo amor de
Deus, tira aquela menina dali da frente, eu não quero aquela menina ali!” Podia a
menina ser boa como fosse, mas ela tinha essa coisa. (PROFA3)

Os supracitados atestados de saúde e vacinação e as falas de A3 e da PROFA3 nos


parecem indícios da permanência no interior do colégio de resquícios de dois movimentos que
até as primeiras décadas do século XX permearam a sociedade brasileira: o higienismo e o
movimento eugenista.
De acordo com Góis Júnior e Lovisolo (2003), as propostas do movimento higienista
(ou sanitarista) residiam na defesa da saúde e da educação pública e no ensino de hábitos de
higiene, tendo como ideia central valorizar a população como um bem, como recurso
principal da nação. Além disso, os autores defendem que seus pressupostos (atualizados e
adaptado) continuaram em voga até o final do século XX.
Já a eugenia, segundo Boarini e Yamamoto (2004), perseguia a constante e

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progressiva multiplicação de indivíduos “bem dotados” ou “eugenizados”, ocupando


(segundo seus defensores) uma posição intermediária entre a higiene social e a medicina
prática. Ainda segundo os autores, “embora alicerçados em circunstâncias históricas e
proposições teóricas, de certa forma, diferentes os movimentos eugenistas e higienistas
aproximam-se através de suas preocupações e determinação de tornar o Brasil uma grande
nação.” (BOARINI; YAMAMOTO, 2004, p.63).
Outro aspecto que se destaca nas entrevistas é que mesmo no início dos anos 1980, na
sociedade olindense, o Curso de Magistério ainda era considerado o mais adequado para as
moças, por seus papéis sociais de esposa e mãe. Essa representação de mulher e de
escolarização feminina ainda encontrava ecos em Olinda, como é possível perceber nas
memórias de PROFA3 sobre o período em que sua filha foi aluna da instituição pesquisada:

[Minha filha] foi aluna daqui, em 1983. Ela concluiu o Magistério, fez concurso
para a Prefeitura do Recife, ensinou lá um tempo. [...] Ela chegou aqui com
primeiro ano, já, no ensino médio... E entrou já no segundo ano do Magistério. Fez
82 e 83, foi nesse período. [...] Ela estava fazendo no CEFET, que era um curso
[técnico]... Foi pro CEFET e fez primeiro ano. Depois resolveu fazer Magistério
porque ia se casar. Aí veio para cá fazer o Magistério. Porque quando as meninas
queriam casar, que sabia que não ia fazer faculdade... aí fazia Magistério [riso]. E
ela fez Magistério, segundo e terceiro ano. (PROFA3, grifos meus)

Percebe-se na fala da PROFA3 que para algumas moças a preparação para o


magistério estava ainda atrelada à ideia de curso “espera marido”, tanto que muitas
abandonavam a escola ao casarem-se ou encerravam sua escolarização no, então chamado, 2º
grau.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados levantados trazem indícios que no período em tela ainda perdurava na escola
campo da pesquisa a representação do Magistério como um curso “espera marido” e práticas
disciplinares e punitivas que tinham por objetivo moldar corpos femininos dóceis, pudicos,
higiênicos, de aparência discreta (controlando adornos, maquiagens, vestimentas etc).
Concluímos que no período estudado o curso de magistério da instituição em estudo

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contribuiu para inculcar, reforçar e perpetuar nas alunas tradicionais representações de gênero
e de sexualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO FILHO, Geraldo. Memórias escolares do Recife: o Ginásio Pernambucano nos


anos 1950. Olinda: Editora Livro Rápido, 2008.
BOARINI, Maria Lúcia; YAMAMOTO, Oswaldo H. Higienismo e Eugenia: discursos que
não envelhecem. Psicologia Revista, vol. 13, n.1, SP. Educ. 2004. P. 59-72.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 31 ed. Tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2006.
GOIS JÚNIOR, Edivaldo; LOVISOLO, Hugo. Descontinuidades e continuidades do
movimento higienista no Brasil do século XX. Revista brasileira de ciência do esporte, v.
25, n. 1, p.41-54, set. 2003.
LOURO, Guacira. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das
mulheres no Brasil. 5 ed. São Paulo: Contexto, 2001, p. 443-479.
ROCHA, Heloísa Helena P. Educação escolar e higienização da infância. Caderno Cedes,
Campinas, v. 23, n. 59, p. 39-56, abr. 2003. P. 39-56
SILVA, Alexandre Caetano da. A contribuição das irmãs beneditinas na educação de Olinda
século XX e XXI, 2012. Anais eletrônicos do VI Colóquio de História, 2012, p. 365-374.
VIÑAO FRAGO, Antonio. História de la educación y historia cultural: posibilidades,
problemas, cuestiones. Revista brasileira de educação, n. 0, set./out./nov./dez, 1995, p.63-82
WERLE, Flávia O. C. História das instituições escolares: de que se fala? In: LOMBARDI,
J.C.; NASCIMENTO, I. M. (Orgs.). Fontes, história e historiografia da educação.
Campinas: Autores Associados, 2004. P. 13-33.

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BOLSA EDUCAÇÕES: UMA REALIDADE PARA AS MULHERES DO PROGRAMA


SOCIAL EM MANAUS

Célia Maria Nascimento de Oliveira | celia_mani@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O artigo é de grande relevância para toda sociedade, sendo pautado no fenômeno


universal da realidade vivida pelas mulheres na contemporânea com suas diferentes buscas
por espaços e estratégias de conquistas desenvolvidas em todas as esferas e classes sociais
através de uma formação superior, e suas dificuldades financeiras enfrentadas, sobre tudo as
bolsistas do “Programa
Bolsa Educações” na cidade de Manaus no Amazonas.
O interesse pela temática se deu a partir do trabalho realizado, com as bolsistas do
programa social no percurso de dois anos por meio de participação direta e entrevista, tendo
como objetivo principal identificar conhecer a realidade atual vivida, e as dificuldades
financeiras enfrentadas pelas educandas, para permanecerem dentro do perfil exigido pelo
programa até a conclusão de sua graduação.
A educação superior está em evidencia na mídia e na realidade das realizações das
mulheres do século XXI, assim como em todas as classes sociais, estando em foco os desafios
em novas buscas, o que expressam a importância do crescimento das educandas em vários
conhecimentos, e em todas as áreas de atuação, para que assim possam efetivar seu direito
profissional, e sua posição na sociedade resguardando sua integridade como cidadã
usufruindo seus direitos dentro da sociedade e de sua família.
A inserção e atuação da Assistente Social no Programa Educações, e a trajetória da
construção histórica da Educação e do Serviço Social é desenvolvida para relatar todo o
processo que se faz necessário para as bolsistas, que precisam se manter dentro do perfil
exigido para permanecerem no programa até a finalização de seu curso, onde serão orientadas
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de forma clara e sucinta para que possam suprir suas necessidades com a bolsa de estudo
durante todo o trajeto de sua busca por uma graduação completa.
A metodologia é pautada em uma utilização teórico metodológico de abordagens
participantes com entrevistas presenciais, para contribuir a cerca da realidade vivida pelas
mulheres bolsistas do programa da iniciativa privada na cidade de Manaus no Amazonas, que
buscam melhores colocações no mercado de trabalho e salários igualitários aos homens.

ASPECTOS GERAIS DA EDUCAÇÃO E AS CONCEPÇÕES HISTÓRICAS

A educação superior é um grande avanço na contemporaneidade, porém ainda


precisa rever as condições estruturais de inserção e os mecanismos legais a serem efetivados,
sabe-se que os educandos vivem em constante estado de aprendizagem, desenvolvendo
situações, valores, experiências de vida significantes, para que possam conseguir sua
realização pessoal, acadêmica, profissional e financeira, rompendo com as barreiras e os
obstáculos das desigualdades sociais.
De acordo com a Constituição Brasileira, em seu art. 4º, parágrafo, V. É garantido a
todos o
“acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a
capacidade de cada um”. Diante dessa garantia legal, a educação tem por finalidade promover
a formação e o desenvolvimento humano em todas as suas dimensões, impulsionando o
progresso social, que é um meio essencial para constituir a cidadania e assegurar a inclusão
social (Brasil, 2011).
Segundo Freire, “a educação é todo planejamento educacional, para qualquer sociedade,
tem que responder às marcas e os valores dessa sociedade, só assim é que pode funcionar
como processo educativo, ora como força estabilizadora, ora como fator de mudança”, onde o
educando continua em busca de melhor aprendizado, e com a perspectiva de desenvolver
situações e valores intelectuais com a troca de conhecimentos, rompendo com as
desigualdades sociais em todas as esferas (2002, p.10).
As políticas educacionais são organizadas dentro das diretrizes com ideias, valores,
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atitudes e devem ser abrangidas no conjunto mais extenso das modificações econômicas,
políticas e culturais diferenciando o aprendizado do mundo moderno. As leis precisam estar a
serviço da democracia, dos interesses e direitos dos grupos e culturas da sociedade.
Embasada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de dezembro de
1996. Art. 1º. § 2º. “A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática
social”. Estando essa rodeada entraves em suas várias formas de inclusão, tanto no
conhecimento educacional, quanto a inserção da classe desprovida desse acesso, no trabalho
com uma qualificação, como em sua prática social incluindo no mercado formal.
Com a chegada do século XXI, e todos os mecanismos legais, financeiros e
tecnológicos, os governantes ainda se restringem a criar e aprovar programas e políticas de
inserção a educação superior à classe que vive as margens da vulnerabilidade social, que
representa grande índice, principalmente em Manaus, por ser de grande aceitação por melhor
condição de sobrevivência, sobretudo a busca por educação de qualidade através do ensino
superior.
Freire em uma análise ampla descreve a educação como um “processo de
conhecimento, formação política, manifestação ética, capacitação cientifica e técnica, que são
características indispensáveis aos seres humanos e deles especifica na História como
movimento, como luta” (2002, p. 14).
Diante disso, a Constituição Federal Brasileira traz em seu artigo 205 (capítulo III,
Seção I) a seguinte formulação: “educação, é direito de todos e dever do Estado e da família,
será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para
o trabalho”. (Brasil, 2011).
Ressalta-se ainda que a educação seja o desenvolvimento integral no dia a dia e a
condição essencial de socialização que o individuo precisa obter para se manter em sociedade,
que assim possa se relacionar e fundamentar-se em suas ideias e buscas, elaborando
pesquisas, construindo, ou reconstruindo interpretações de uma determinada sociedade.
DEMO acrescenta que educação “é o esforço teórico e prático de estabelecer
importância essencial para o horizonte de oportunidades e desenvolvimento para compreender
a mensagem moderna da educação e lançar os desafios”. Por isso, a educação é uma prática
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inclusiva para toda vida, pois é somente com a educação que passamos a fazer parte de uma
sociedade, como um todo, com nossos direitos e deveres reconhecidos, tanto pelos nossos
governantes, como pela comunidade (2004, p. 09).
PEREIRA destaca outro aspecto da educação afirmando que educação é “base
ideológica – a tradição, os costumes são instrumentos primordiais -, das condições subjetivas,
para o desenvolvimento de um novo modo de produção, de uma nova organização societária”
(2008, p. 30).
Nesse sentido Freire, afirma que a educação deve ser ampliada a todos os indivíduos
que verdadeiramente se propuserem a compreender e repassar para as demais gerações a
importância do ensino e aprendizagem como forma de cidadania, para que os indivíduos
possam ser educados e comprometidos com seus ensinamentos e aprendizados livres e
conscientes, ao ampliarem seus conhecimentos acrescentando benefícios para sua autonomia
(2002, p. 25).
Segundo Teixeira, o direito à educação é um direito fundamental que se inclui entre
os direitos sociais previstos na Constituição, no artigo 6º, segundo o qual “são direitos sociais
a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Sua disciplina se
expressa nos artigos 205 a 214, e está vinculado ao princípio da dignidade da pessoa humana
que, conforme o artigo 1º, inciso III da Constituição, é fundamento do Estado brasileiro
(2008, p.147).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) 1996, afirma que “Em
todas as esferas administrativas, o Poder Público assegurará em primeiro lugar o acesso ao
ensino obrigatório, contemplando os demais níveis e modalidades de ensino, conforme
prioridades constitucionais e legais” (Art. 5º.§ 2º). Dessa forma faz-se saber a todos que
nossos governantes devem atuar e garantir esse acesso e direitos a todos os indivíduos, como
forma de fazer cumprir o que preceitua a Lei citada, como forma de socialização.

AS FORMAS DE INSERÇÃO AO ENSINO SUPERIOR


A educação formal no Brasil é uma realidade com inúmeras formas de inserção que
vem passando por modificações com a modernidade. Destacando o ensino superior, as formas
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de ingresso até os anos 90 eram somente os vestibulares, o que bloqueava e excluía a inserção
dos educandos, pelos números de Instituições de Ensino Superior (IES) públicas ser
reduzidos.
Porém, com o avanço tecnológico o Brasil vem se fortalecendo com as lutas sociais
por busca de uma educação superior de qualidade, com a modernidade do Século XXI
identifica-se um grande acréscimo a inserção educacional, onde possa oportunizar a
população pauperizada que tanto necessita de oportunidade e acesso a política inclusiva
educacional.
PEREIRA em sua discussão norteadora relata que, a partir dos anos de 1930,
momento que o Brasil inicia seu processo de industrialização, e em consequência da
urbanização de grande massa advinda de outras localidades, amplia ainda a questão social e
leva a expansão do ensino e seu ingresso à escola, pela necessidade de desenvolvimento em
sociedade e por sua qualificação profissional (2008).
Destaca-se nesse contexto o Programa Bolsa Educações PBE criado em 15 de janeiro
de 2013, em decorrência à grande demanda de alunos excluídos da iniciativa pública que
concluem o ensino médio e querem dar continuidade aos seus estudos, inserindo-se em uma
faculdade. É importante destacar que as diferentes formas de inserção ao ensino de graduação
criado no Brasil, têm como prioridade os interesses neoliberais, trazendo grande aumento de
cursos para as instituições da iniciativa privada, fazendo grande parte da população acadêmica
e se inserem nas instituições da rede particular.
Nos dias atuais, o número de ingressos nas universidades tem aumentado, mesmo
assim, uma grande parte de alunos da classe baixa não consegue adentrar nas instituições de
ensino devido à alta seletividade do processo que de certa forma, inclui e excluindo parte da
população que vive desprovida desse acesso de qualificação, onde os mesmos não têm
condições financeiras para se qualificarem igualitariamente aos demais, por serem de baixa
renda.
De acordo com o portal do programa, criado com o intuito de resgatar parte dessa
classe pauperizada, e por ser grande repercussão para a sociedade, ainda conta com o apoio da
Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP) e o Sindicato dos Estabelecimentos de
Ensino Privado do Amazonas (SINEPE-AM), faz seu primeiro processo seletivo em Manaus,
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tendo a primeira lista


de estudantes contemplados em uma única instituição credenciada. Sendo esta; Centro
Universitário Nilton Lins (NILTON LINS), para o segundo semestre do mesmo ano aderiram
ao Programa, Faculdade Martha Falcão (FMF), a qual se descredenciou em 2014/1, e o
Instituto de Ensino Superior Materdei (MATERDEI) (PBE, 2013).
Em 2014, mas Instituições aderem o programa de inclusão social, no primeiro
semestre letivo, Centro de Estudos Teológico Brasileiro (CETEO), Escola Superior
Batista do Amazonas (ESBAM), Faculdade Salesiana Dom Bosco (FSDB), Instituto de
Ensino Superior Fucapi (FUCAPI), em 2015, entram Faculdade Metropolitana de Manaus
(FAMETRO) e Faculdade Boas Novas (FBN), no segundo semestre de 2015, entra a
Faculdade Maurício de Nassau (FMN), somando um total de nove (09), instituições ao qual
contribuem para a realização do sonho da população desprovida financeiramente.
O programa social assegura ao estudante beneficiado, a partir da assinatura do termo
de adesão de concessão de sua bolsa universitária, a custear as mensalidades, parcial ao qual
lhe foi concedido até a conclusão de seu curso de graduação, com a inclusão em projetos e
programas com empresas parceiras.
Segundo o portal do MEC, no Amazonas o acesso à graduação ainda é precário,
tendo somente duas instituições públicas que ofertam essa modalidade a Universidade Federal
do Amazonas (UFAM) e Universidade Estadual do Amazonas (UEA), ambas ofertam um
quantitativo insuficiente de vagas para tamanha demanda que há, causando insatisfação a
classe acadêmica, onde os educandos não têm alternativos a não ser migrarem para as
faculdades particulares e assim poder cursar sua graduação, e com ela almejar melhor
inserção no mercado de trabalho para obter maior participação na vida social e profissional
(2015).
Nos dias de hoje, a educação no Brasil é tema de grandes discussões, já que é
consenso entre profissionais e estudiosos de diversas áreas que é na educação que residem
soluções para diversos problemas sociais principalmente a desigualdade social que só
aumenta com os novos atores e arranjos que se desenvolve pelo modelo capitalista e vem se
perpetuando.
Verificou-se que a partir da reforma dos anos 90, as perspectivas a serem
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desenvolvidas na educação, são os vários desafios que os governantes precisam enfrentar para
que possam organizar e reorganizar as políticas públicas de educação, para o aumento dos
níveis de escolaridade e refletir sobre as condições de implementação dos vários cursos
existentes, para que assim possa alcançar a necessidade que tem a população, articulando aos
demais serviços da rede no sentido de contribuir para a cidadania de todos.

A VULNERABILIDADE SOCIAL NA INCLUSÃO SUPERIOR E AS


DIFICULDADES DAS BOLSISTAS DO PROGRAMA
Em Manaus, de acordo com os dados do Programa Bolsa Educações, a procura por
uma graduação é intensa em sua maioria são mulheres com faixa etária de 30 a 45 anos, o que
ocasionam maior procura por graduação aumentando gradativamente inserção a educação,
que é uma realidade na vida das mulheres do programa social, pois com uma graduação as
bolsistas almejam conseguir uma melhor colocação no mercado formal de trabalho e assim
vencer a desigualdade de gênero que em pleno século XXI ainda se destaca.
De acordo com Pereira, no contexto mundial, a Educação Superior acompanhou o
movimento do capitalismo em seu estágio monopolista, de necessária mercantilização de
todos os espaços da vida social. Portanto, na pós década de 1970, passou de direito social a
mais uma mercadoria. Contudo, é preciso realizar o esforço e apreender como este processo
se desenvolveu na particularidade brasileira, articulando-o à política educacional no Brasil
(2008).
Com isso o acesso à educação superior no Amazonas melhorou consideravelmente
após a criação de vários cursos de graduação em instituições de ensino superior privada, bem
como os programas de inclusão que estão aflorando em nossa cidade, como o Programa Bolsa
Educações, “criado para promover inclusão educacional através da concessão de bolsas de
estudo parciais em diversos níveis e modalidades de ensino até a pós-graduação”.
De acordo com o (PBE 2013) o total de candidatos beneficiados pelo referido
programa até o presente momento são 12.000, em sua maioria são do gênero feminino, onde
apresenta o total de bolsistas ativos 8.000, sendo 5.700 mulheres e 2.300 homens, sendo que
4.000 desistiram em sua maioria por não poder custear a parte que lhe cabe financeiramente,
identificando sua percepção em relação às bolsistas atuante e sua posição social na sociedade
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atual como mulheres independentes.

A INSERSÃO DO SERVIÇO SOCIAL

É de grande relevância a inserção do profissional em serviço social para o programa,


tendo em sua atuação a “questão social” que é o objeto de trabalho da assistente social, onde
se faz necessário conhecer a extensão da realidade que estão inseridas as múltiplas expressões
da classe pauperizada, fornecendo matéria-prima para a pesquisa e, ao mesmo tempo produz o
enfrentamento
dessa realidade através de seu arcabouço teórico metodológico.
Nesse contexto de órgão transformador de ações e programas de inclusão, e com o
dever de avançar os conhecimentos em novas buscas para uma formação cidadã o “Programa
Bolsa Educações (BPE) beneficiou 12.000, bolsistas entre os anos de 2013 a 2015”, sendo
que 5.000 são os contemplados somente em 2015, e 83 as Pessoas Com Deficiências (PCDs),
sendo que 70% dos beneficiados são do gênero feminino, o que atualmente representa grande
massa inclusiva nesse programa grande repercussão em Manaus.
Nesse sentido Iamamoto afirma, “a partir dessa perspectiva, as situações conflitivas e
as desigualdades sociais passam a ser vistas como “desvios” a serem contornados e
controlados, institucionalmente, segundo parâmetros técnicos”. (2004, p. 125).
Sendo assim, o Serviço Social do Programa Bolsa Educações é de suma importância
para a sociedade, pois foi requisitada em decorrência à grande demanda de possíveis conflitos
com relação aos candidatos a concorrerem às vagas ofertadas pelo programa, como também
ao perfil dos bolsistas em relação à veracidade de suas informações socioeconômicas. Serviço
Social está à frente dessas demandas, para solucionar as dificuldades que as bolsistas
enfrentam em sua jornada acadêmica para permanecerem no programa social (2013).
Diante deste contexto, com expectativas inovadoras e transformadoras o Serviço
Social do PBE, passa ser o maior mediador inclusivo para a diminuição do pedido de
suspensão dos bolsistas por motivos financeiros entre outros, levando em conta, que o
profissional deve sempre estar com uma boa percepção e visibilidade perante seu público,
tanto externo como interno, tornando-se responsável para atuar e fazer parte do grupo de
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pessoas que possam interagir e socializar as informações dentro do referido órgão, respeitando
assim as expectativas dos usuários.
Para Pastorine, “o Estado, que – era uma das principais instituições reguladoras desse
processo, também sofre transformações relevantes”. Uma das – mais importantes referem-se
ao encolhimento da ação reguladora – na esfera social [...] (2010 p. 46).
Contudo, os governantes são os principais responsáveis por promoverem melhoria na
qualidade do ensino nas escolas, e grande parte da população se expande nas demandas da
exclusão social que crescem a cada ano, por isso, às desigualdades sociais continuam se
proliferando, trazendo para o ensino e aprendizagem imensas defasagens, tanto acadêmicas,
como profissionais precarizando as classes, com suas inquietações sócias vividas pela
sociedade desprovidas de direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com os autores citados no decorrer desse norteamento embasado no contexto


Educação, Bolsa Educações, Inclusão e Serviço Social e as Leis do PBE e pela LDB,
observou-se que, cabe aos governantes fundamentarem-se a inclusão para perspectiva de
enfrentamento ao contexto histórico da desigualdade social que se perpetua na cidade de
Manaus nos dias autuais, fazendo da inclusão uma integração frente aos desafios que as
mulheres do programa social enfrentam com as mudanças causadas por suas buscas
emancipatórias.
O embasamento teórico desse trabalho deu origem à análise de todo o processo para a
discussão dos direitos parciais que tem as bolsistas do Programa Bolsa Educações, criado em
15 de janeiro de 2013, tendo como finalidade beneficiar estudantes de baixa renda que estão
sendo excluídos das Instituições de Ensino Superior – IES públicas, pela quantia de vagas
ofertadas que são insuficientes, e pelas instituições privadas na cidade de Manaus onde se
inserem acadêmicos de todas as classes sociais.
Diante do que foi exposto no presente artigo, à indiferença e a falta de compromisso por
parte dos governantes da rede pública, faz com que o programa de cunho social concretize a
efetivação de critérios levando as mulheres mesmo de classe menos favorecidas, a sua
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inclusão ou até mesmo a dar continuidade nos estudos, ampliando o acesso e oportunidades a
todas de forma igualitária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Educações. Disponível em http://www.educacoes.com.br/portal/2013/02/programa-
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emendas. Antônio Cezar Peluso, organizador; José Roberto Neves Amorim, colaborador.
Barueri, SP: Manole, 2011.
DEMO, Pedro. Desafios Modernos da Educação: Sobre – Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
FREIRE, Paulo. Educação e Atualidade Brasileira; Prefácios Fundadores do Instituto Paulo
Freire; Organização José Eustáquio Romão; Depoimentos Paulo Rosas, Cristina Helniger
Freire. – 2ª Ed – São Paulo, 2002, Cortez.
IAMAMOTO, Marilda Villela. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma
interpretação histórico-metodológica / Marilda Villela Iamamoto, Raúl de Carvalho. – São
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PASTORINE, Alejandra. A categoria “questão social” em debate / rini. – 3. Ed. – São
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PEREIRA, Larissa Dahmer. Do Confessionalismo ao Empresariamento da Formação
Profissional. Prefácio de Carlos Nelson Coutinho, Ed. 2008. São Paulo, Xamã.
SISFIES. Dispõe sobre os Programas de inclusão existentes. Disponível em
http://www.portal.mec.gov.br/index.asp?page= Acesso em: 15 de Maio de 2015.
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Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-
ims/index.php/RFD/article/viewFile/464/460page= Acesso em 15 jun. 2013.

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EXPERIÊNCIAS DE PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: O ACRÉSCIMO


DA EDUCAÇÃO NO RIO GRANDE DO NORTE E NA PARAÍBA (1900 – 1928)

Débia Suênia da Silva Sousa | debiasss@yahoo.com.br


Francisco Anderson Tavares de Lyra
Maria Arisnete Câmara de Morais

INTRODUÇÃO

Este artigo resulta de duas pesquisas, a saber: Alberto Maranhão e a educação


republicana no Rio Grande do Norte (1900 – 19013) e Educação no sertão paraibano: Colégio
Nossa Senhora de Lourdes – Cajazeiras – PB (1928 – 1986), ambas inseridas nas orientações
(para a construção de tese de doutorado) no interior do Grupo de Pesquisa “História da
Educação, Literatura e Gênero”, do Programa de Pós Graduação em Educação da
Universidade Federal Rio Grande do Norte – PPGEd/UFRN.
O objetivo central é apresentar o desenvolvimento das duas pesquisas, destacando a
interface destas ao focarem o acréscimo da educação na Paraíba e no Rio Grande do Norte do
século XX, no recorte temporal específico de cada uma, através das práticas, leituras e
representações da época.
Metodologicamente, as duas pesquisas afluem para uma análise historiográfica que se
assenta no âmbito da História da Educação, especificamente, da história das instituições
educacionais e das biografias, acerca dos processos de constituição e desenvolvimento das
práticas educativas, no Rio Grande do Norte e na Paraíba. Utiliza-se de fontes diversas: como
o diário, História da Fundação e Diário do Collegio Nª Sª de Lourdes (1928), os livros, os
jornais e os arquivos particulares (de Alberto Maranhão) disponíveis que, confrontados,
permitem a configuração de época e demonstram o processo de formação educacional da
sociedade paraibana e potiguar naquele contexto histórico.
Assim, propõe-se uma leitura histórica dos textos literários reconduzindo-os ao
estatuto de documento. Ainda que se considere o estatuto próprio do texto literário, ele é uma

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produção social válida porque revela de outra forma, o que a análise social revela através de
outros processos de investigação. Assim sendo, torna-se possível o diálogo entre a literatura e
a história admitindo-se que nenhum texto mesmo o mais objetivo mantém uma relação
transparente com a realidade que pretende configurar. (CHARTIER, 1990).
Importa frisar, que as duas pesquisas, ainda, estão em fase incipiente. Nesse sentido,
uma trata dos primeiros achados acerca da fundação e funcionamento do Colégio Nossa
Senhora de Lourdes (1928), afluindo o debate acerca do movimento educacional da época; da
estrutura do Colégio, bem como para a análise da prática docente desenvolvida pela
Instituição no início de sua fundação e a outra, diz respeito às primeiras reflexões sobre as
contribuições de Alberto Maranhão à educação no Rio Grande do Norte, durante seus dois
mandatos governamentais que vão de 1900 a 1904 e de 1908 a 1913.
O recorte temporal das duas pesquisas insere-se no século XX, século este, segundo
Cambi (1995, p. 509), “[...] dramático, conflituoso, radicalmente inovador em cada em cada
aspecto da vida social: em economia, em política, nos comportamentos da cultura.”
Assim, na pesquisa sobre as contribuições de Alberto Maranhão à educação no Rio
Grande do Norte, destaca-se que no referido Estado, durante o período de 1892 a 1913, houve
duas reformas da educação: a primeira conferida pelo Decreto nº 18, de 30 de setembro 1892,
durante o mandato do governador Pedro Velho de Albuquerque Maranhão e a segunda através
do Decreto nº 178, de 29 de abril de 1908 que restabeleceu a Diretoria da Instrução Pública,
criou a Escola Normal do Natal, os Grupos Escolares e Escolas Mistas. As duas reformas
educacionais foram promovidas com o objetivo de melhor estruturar o ensino primário e
secundário, moldando-as aos novos tempos pedagógicos.
É nesse contexto que Alberto Maranhão, em seus dois mandatos governamentais que
vão de 1900 a 1904 e de 1908 a 1913, usando da atribuição conferida pelo código do ensino
vigente, reforma o ensino estadual e estabelece a criação dos Grupos Escolares, implantando
um sistema de ensino primário ou elementar com um conjunto de conhecimentos
sistematizados e uma nova cultura de valores que se inseria como o projeto educacional da
modernidade potiguar, efetivando uma vinculação da preposição educacional e arquitetural,
criando uma nova organização administrativo-pedagógica. Essa reforma configurou uma nova

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escola pública, propiciando o rompimento com as antigas estruturas pedagógicas do sistema


de ensino nas instituições públicas primárias.
Já, para a pesquisa intitulada, “Educação no sertão paraibano: Colégio Nossa Senhora de
Lourdes – Cajazeiras – PB (1928 – 1986)”, em relação a sua temporalidade, destaca-se,
inicialmente, a década de 1920, década esta que, converge para o processo das insatisfações
que vinham se manifestando por todo o período republicano, nos vários âmbitos da sociedade
brasileira, em especial, no que se refere à política, à economia, mas também no tocante ao
comportamento, idéias e valores. O anseio por saídas para os problemas das mais diversas
áreas induziu o empenho da intelectualidade, no sentido de dar um novo modo de ser, ao país,
buscando integrar as diversidades.
De acordo com Leitão (2000), a partir de 1920, a cidade de Cajazeiras começa a passar
por transformações tanto na urbanização, como nos melhoramentos tecnológicos, o que acaba
por ampliar e aprimorar as relações que se estabeleciam entre os comerciantes cajazeirenses e
as cidades vizinhas. Assim, as relações com a capital João Pessoa intensificam com a chegada
do trem em 1923.
Ainda, na década de 20 Cajazeiras ganhou uma série de inovações como a chegada da
luz elétrica, do cinema, do trem de ferro, do telefone e do telégrafo, impressão de jornais
locais, revistas, prática do futebol, vários prédios, casarões e a fundação do Colégio Nossa
Senhora de Lourdes, no antigo prédio do Collegio de Padre Rolim.
Mas, antes de 1920, houve outro fator de desenvolvimento no aprimoramento da
sociedade cajazeirense que resultou da instalação, em 1915, da Diocese e da consequente ação
pastoral de
Dom Moisés Coelho, que dera a Cajazeiras o primado cultural que tanto a projetou entre as
demais cidades da região (LEITÃO, 2000).

ALBERTO MARANHÃO E SUA CONVICÇÃO NO MODELO EDUCACIONAL


REPUBLICANO

Aparentemente o governador Alberto Maranhão entendia que se deveria educar o

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homem em seus aspectos moral e cívico – com educação prática e profissionalizante que
introduzisse as ciências a partir do ensino primário. Ao lado dessa formação, com vistas ao
trabalho agrícola, comercial e industrial, o governador privilegiava a formação do cidadão
republicano – para que esse participasse da vida política do país. O novo homem necessário
ao Brasil, voltado para as necessidades da vida pública e privada, não poderia ser formado nas
escolas existentes em seu tempo, estas valorizavam apenas a memorização e a retórica. E
ainda, atendiam apenas uma pequena parcela da população, enquanto a maior parte dessa
população mantinha-se analfabeta.
Ao enfatizar a necessidade de educar o povo, a maior preocupação do governador
Alberto Maranhão voltava-se às séries iniciais (escola primária), mas abordou ainda, a
necessidade de mudanças na educação em seus diversos níveis, bem como uma nova
formação para os professores que contribuiriam para programar novos conteúdos e métodos.
Para ele e o deputado Augusto Tavares de Lyra, essa educação deveria ser gratuita,
obrigatória e mantida pelo Estado.
Ainda em seu primeiro discurso como governador do Estado do Rio Grande do Norte,
o jovem Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão afirmou: “Instruir o povo e combater as
secas é, a meu ver, a fórmula mais feliz para a divisa de quantos queiram, na administração do
Estado, cumprir dignamente seu mandato.” (MARANHÃO, 1900, p. 14). Estava assim
demarcada uma das principais ações governamentais, que de acordo com o modelo de
educação republicana instaurada com a proclamação da República, que iria se firmar no
estado.
Alberto Maranhão estimulou junto ao bispo da Paraíba Dom Adauto Aurélio de
Miranda Henriques, a criação de escolas católicas para ambos os sexos, oferecendo espaços e
doações que partiram principalmente de seus sogros e esposa. Assim foi que o bispo Dom
Adauto, observando por outro lado o crescimento de matriculas no colégio Presbiteriano
Batista, fundado em Natal por missionários em 1895, começou a consultar ordens religiosas
que pudessem se dirigir a Natal com o objetivo de fundar colégios.
As irmãs da Congregação de Santa Dorotéia do Brasil responderam afirmativamente
ao

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senhor bispo diocesano e fundaram em 22 de fevereiro de 1902 o Colégio da Imaculada


Conceição, cuja matrícula foi de 87 alunas. Alberto Maranhão cedeu um prédio ocioso do
estado para o funcionamento do estabelecimento de ensino, e contribuiu, juntamente com a
família, com generosas doações em dinheiro, para compra do mobiliário e do sítio da futura
sede do colégio.
Como não conseguiu estabelecer contatos com uma ordem religiosa que cuidasse da
educação para meninos, Dom Adauto fundou juntamente com os padres seculares de Natal o
Colégio Diocesano Santo Antônio no dia 1903, cujos padres, segundo testemunho do ex-
aluno e depois professor Antônio Fagundes:

[...] Desconheciam os princípios da ciência-arte de educar, mas, nem por isso,


deixavam de proporcionar a indispensável assistência aos alunos. Nisto consistia o
maior mérito, talvez, desses preceptores improvisados, que votavam ao ensino a sua
maior preocupação e o melhor dos seus esforços. (FAGUNDES, 1961, p. 7).

Alberto Maranhão ajudou com doações pessoais na organização do Colégio Diocesano


e sempre apresentava notícias sobre o estabelecimento de ensino em suas mensagens
governamentais.
Mas é em seu segundo governo (1908-1913), que tem início a segunda reforma da
instrução primária no estado (Decreto nº 178, de 29 de abril de 1908). Em 12 de julho de
1908, ocorreu a instalação do Grupo Escolar Modelo Augusto Severo, no bairro da Ribeira,
declarado como Escola Modelo e Escola de Aplicação para os alunos-mestres da escola
normal. Foi convidado para dirigi-lo o professor carioca Ezequiel Benigno de Vasconcelos
Junior.
Em 13 de maio de 1908 (Decreto nº 198 de 1908), como parte da Reforma Pinto de
Abreu, foi reaberta a Escola Normal, com o firme propósito de prover a formação do
professor, par renovação da instrução pública do Estado com base no ensino intuitivo.
Segundo Morais (2006, p. 64): “Escola Normal de tanto conceito, de tanta tradição, que
titulara os elementos mais representativos da vida educacional do estado”.
A instalação da Escola de Música (nas dependências do Teatro Carlos Gomes), a
Escola Normal no Atheneu Norte-Riograndense foram as principais agências formadoras de
professores do Rio Grande do Norte, neste período. Foi nessa perspectiva de mudança e

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melhorias sócio-econômicas que foi possível perceber que a criação dos grupos escolares
representava um modelo de organização da Instrução Pública Primária, na cultura do estado,
como também na urbanização.
A fundação da Liga de Ensino do Rio Grande do Norte em 23 de julho de 1911 teve o
apoio irrestrito do governador Alberto Maranhão, que presidiu a solenidade de instalação da
liga. Em suas palavras de abertura da solenidade assim se expressou o governador:

No entusiasmo desta assembleia, na qual vejo reunidas todas as forças valiosas de


nosso meio, sinto quanto avançamos dentro do novo regime. Um tal movimento fala
bem alto em prol de nossa cultura cívica e é prova edificante da capacidade de
progresso deste pequeno estado do Brasil. A Liga de Ensino tem todo o meu apoio.
Aplaudindo seu programa, fazendo o possível para que seja realizado,
principalmente na parte referente à educação nacional da mulher. (CASTRICIANO,
1911, p. 1).

Cabe informar que a Liga de Ensino foi a fundadora e mantenedora da Escola


Doméstica de Natal, inspirada nos moldes suíços e cujo fundador foi o poeta Henrique
Castriciano de Souza, secretário de estado de Alberto Maranhão. Segundo seus estatutos, a
Liga de Ensino objetivava auxiliar os poderes públicos em tudo quanto disser respeito à
instrução do povo, e, em particular, fundar escolas para a instrução e educação da mulher.
Foi efetivamente no setor público que se viu uma verdadeira revolução posta em
prática pela administração estadual, quando estabeleceu a meta de criar um Grupo Escolar nas
sedes de comarca e uma escola mista em cada um dos outros municípios do Estado, conforme
Decreto nº 178, de 29 de abril de 1908. A fim de dar organicidade à instrução pública, Alberto
Maranhão baixou o Código de Ensino, eivado de ideias atualizadas para o contexto da época
(Decreto nº 239, de 15 de dezembro de 1910).
O governador Alberto Maranhão, coadjuvado pelos presidentes das intendências
Municipais, implantou um sistema educacional primário, compreendido nos Grupos
Escolares, rapidamente estendidos a todo o estado. Já no ano de 1912, os 23 grupos escolares
criados na segunda gestão governamental, conforme apresentado abaixo e contavam com uma
frequência de 2.500 alunos. Convém destacar que a efetivação dos Grupos Escolares nas
sedes de comarcas, representou o primeiro grande movimento de educação de massa no Rio
Grande do Norte.

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A implantação dos Grupos Escolares alterou o curso da história do ensino público


primário no país e, consequentemente, no Rio Grande do Norte, através de seus projetos de
organização curricular e administrativa. A criação dessa modalidade de ensino apresentava
uma educação diferenciada, renovando os saberes escolares, não mais individualizados, mas
seriados, onde os alunos eram distribuídos homogeneamente sob a orientação de um só
professor, cujo método seguido era o intuitivo. Isso criou novas relações de poder dentro das
escolas, e a partir de 1894, instituiu-se cargo de diretor escolar.
Essa modalidade de escolas, surgida primeiramente na Europa e nos Estados Unidos
e depois adotada no Brasil, tinha por objetivo promover modificações e inovações no ensino
primário, ajudando a produzir uma nova cultura escolar no meio urbano. Esta concepção de
escola primária, instalada inicialmente em São Paulo, estava vinculada ao Projeto Educacional
Republicano que entendia a educação como instrumento de desenvolvimento intelectual e
moral, requisitos importantes para se alcançar o progresso nacional. Os Grupos Escolares
surgiram como estratégia da elite republicana paulista constituiu um modelo de escola a ser
implantado por outros Estados do país.

COLÉGIO NOSSA SENHORA DE LOURDES: A PRÁTICA DA DOCÊNCIA E A


CONSTITUIÇÃO DE UM ESPAÇO DE ENSINO

A história de fundação do Colégio Nossa Senhora de Lourdes está intimamente ligada


à história do Colégio Padre Rolim, principal estabelecimento de ensino na época, bem como a
Escola Normal de Cajazeiras. Assim, Dom Moisés Coelho, bispo cajazeirense travou lutas
incansáveis em favor da educação local, conseguindo o reconhecimento do Colégio Padre
Rolim, bem como fazer funcionar a Escola Normal de Cajazeiras. Tanto fez, que seus
esforços fossem reconhecidos, culminando com a instituição da Lei Nº. 434 – de novembro
de 1916, em seu Art. 1º: “Fica o Presidente do Estado autorizado a equiparar à Escola
Normal o ‘Colégio Padre Rolim’, sito na cidade de Cajazeiras [...].” Mas, só em 03 de março
de 1918, é que se instala solenemente o Curso Normal do Colégio Padre Rolim. Então, de
1918 a 1927, no Colégio Padre Rolim equiparado à Escola Normal oficial do Estado,
funcionou a Escola Normal de Cajazeiras.
Porém, desde 1924, Dom Moisés Coelho vinha tentando ajustar com as Irmãs da
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Congregação de Santa Doroteia, que dirigiam o Colégio de Nossa Senhora do Sagrado


Coração, em Fortaleza, a entrega do Curso Normal, dependência do Colégio Padre Rolim.
Mas, efetivamente, o primeiro contato, só ocorreu em agosto de 1927, no qual a
Reverendíssima Madre Provincial, Enrichetta Cesari ordena que duas de suas madres e uma
aluna se dirigissem a cidade de Cajazeiras na Paraíba para tratar com o Bispo Dom Moisés a
respeito das Doroteias tomarem conta da Escola Normal de Cajazeiras, conforme registro
encontrado no documento História da Fundação e Diário do Collegio Nª Sª de Lourdes
(1928),

No dia 16 de Agosto de 1927, a Revd.ª Madre Andrade Sucupira do Collegio de N.


Sª. Do Sagrado Coração em Fortaleza, em companhia de M.e Sosinho, economa, do
dito Collegio, e de uma alunna(Aurelia Ferrer) que lhes arranjou passagem gratis até
Lavras, dirigiu-se a Cajazeiras, na Parahyba afim de cumprir uma ordem que havia
recebido da Revd.ª Madre Provincial – Enrichetta Cesari. (HISTORIA DA
FUNDAÇÃO E DIARIO ..., 1928, p. 1).

Nesse sentido, ao chegarem à cidade de Cajazeiras, as madres tinham a missão de


conhecer o lugar, o qual se encontrava instalada a Escola Normal, como queria

[...] a Revd.ª Madre Provincial que a Revd.ª Madre Andrade visitasse o prédio da
Escola Normal; indagasse o subsidio dado pelo governo à mesma, as disposições
dos professores para cederem suas cadeiras, quais os que deviam continuar; e ver
também se o Snr. Bispo já tinha instalado a luz electrica no prédio e encanado a
água como havia promettido. (HISTORIA DA FUNDAÇÃO E DIARIO ..., 1928,
p. 1).

Evidentemente, compreende-se que o cuidado da Reverendíssima Madre Provincial,


Enrichetta Cesari, em saber sobre as condições de instalação da Escola Normal ocupa um
“lugar” para além da própria estrutura logística de funcionamento da Instituição, como ainda
dos elementos mais significativos em relação aos professores e as cadeiras de ensino. Assim,
corroboro com Ceteau (1994) quando, afirma que o lugar é também

A ordem segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se


acha portanto excluída, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a
lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada
um situado num lugar ‘próprio’ e distinto que define. Um lugar é portanto uma
configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade.
(CERTEAU, 1994, p. 201).
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Ou seja, trata-se do lugar que a Escola Normal ocupava nas dependências do Colégio e
mais, das articulações necessárias com a Diocese, enfim com a produção socioeconômica,
política e cultural da sociedade cajazeirense e do governo do estado, o qual implica um
indicativo de estabilidade.
Então, em 28 de fevereiro de 1928, originando-se da Escola Normal de Cajazeiras, a
partir da direção da mesma sob o domínio das Irmãs Doroteias, efetivamente começa a
trajetória da fundação do Colégio que, posteriormente, será chamado de Colégio Nossa
Senhora de Lourdes.
No momento em que as irmãs Doroteias assumem a direção da Escola Normal no
Colégio iniciam o processo de exame de admissão, por meio de prova escrita, aplicada as
alunas internas para cursarem o 1º Normal, tendo a frente da seleção a Diretora do Colégio
como presidente da banca, juntamente com uma comissão examinadora. Nesse sentido, a
atuação das Irmãs no Colégio permeia a utilização da escrita, como elemento importante, na
prática docente, por elas desenvolvidas. Portanto, deixa um indicativo de que o uso da escrita
se fez presente no processo inicial de fundação do Colégio e da cultura escolar do mesmo.
Assim, começam a organizar a prática docente da Escola, desenvolvida por elas
mesmas, por alguns padres e leigos, seguindo os preceitos da Igreja Católica, mas também
com perspectivas pedagógicas e metodológicas que indicavam a utilização do lúdico. Assim,
havia dias que “[...] as internas ensaiavam uma comedia e algumas brincadeiras infantis. [...].”
(HISTORIA DA FUNDAÇÃO E DIARIO ..., 1928, p. 5).
Aos poucos, as Doroteias foram buscando dar ao lugar já existente, características
próprias, evidenciadas por suas ações, fosse ao melhoramento do espaço físico do Colégio,
fosse à mudança e organização dos professores para lecionar as cadeiras para as alunas do
Normal e do Curso Primário. Assim, ficou determinado que “[...] o Rev.mº Pde. Gervasio
ficaria com a cadeira de Francez do 1º e 2º anno Normal e as de Catecismo do Curso Primario
e Normalistas e a Capellania. O Prof. Hidelbrando com as cadeiras de Arthmetica e Algebra.”
(HISTORIA DA FUNDAÇÃO E DIARIO ..., 1928, p. 10).
As cadeiras como eram denominadas à época, hoje nominadas de disciplinas
escolares, pode possibilitar o entendimento de como a prática docente ali era exercida, visto

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que as cadeiras com finalidades educativas de formação religiosa ficavam sob a


responsabilidade de membros da Congregação ou da Diocese e as demais se alternavam entre
padres e leigos. Nesse sentindo, as cadeiras eram distribuídas de acordo com o que se
esperava que o professor ensinasse, mas também levando em consideração o público a que se
destinava o ensino. Assim, há um conhecimento da necessidade de evangelização na prática
docente construída na cultura escolar do Colégio naquele momento, pois existia a motivação e
contentamento, quando as internas se faziam presentes, quando da presença do Senhor Bispo
Dom Moises no Colégio, como registrado no documento História da Fundação e Diário do
Collegio Nª Sª de Lourdes (1928),

Às 3 horas da tarde o Collegio uniformisado guiado pela carissima Superiora Madre


Andrade foram cumprimentar a Exciª. D. Moysés. Depois de um discurso
pronunciado por uma alunna, a Exciª. Parecendo estar satisfeitíssimo com a presença
das alunnas agradeceu aquella équena, mas sincera manifestação, amimando-as a
serem muito dóceis e obedientes. (HISTORIA DA FUNDAÇÃO E DIARIO ...,
1928, p. 8). (Grifo meu).

Dessa forma, pensa-se que a prática docente desenvolvida no Colégio, também, tinha a
função de instruir, treinar e aprimorar as internas e externas no sentido de obedecerem, não
somente os pais, mas, sobretudo, os preceitos da doutrina católica. Assim, em uma de suas
visitas ao Colégio, o Bispo Dom Moises ratifica tal afirmação quando
[...] apreciando a grandíssima transformação operada em tão grande parte do
edifício. [...] esteve no recreio onde as internas faziam o lanche e entreteve-se com
as mesmas, dizendo-lhes que deveriam ter muita estima e até mesmo uma alta
veneração ao Collegio porque foi fundado por um verdadeiro santo e também por ter
sido o berço de grandes e ilustres homens. HISTORIA DA FUNDAÇÃO E DIARIO
..., 1928, p. 11).

A prática docente, bem como a construção da cultura escolar do Colégio, estava


acontecendo segundo princípios básicos para a formação de valores, preconizados pela
Congregação da Doroteias, dentre os quais destacam-se a ordem, o bom comportamento, a
polidez, a fé, a obediência, a simplicidade. Assim, a prática docente deveria primar para
ensinar as educandas,

[...] o que convém a uma pessoa chamada a viver cristãmente no mundo, segundo as
circunstâncias do seu estado e condição. Por isto, além do estudo da leitura e da
escrita, que convém a todos, se lhes dará alguns conhecimentos elementares de

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gramática, história, geografia e aritmética. Não se descuidava de cultivar-lhes a


memória, fazendo-as aprender cuidadosamente o que mais importa saber para o
modo de proceder na vida e para ornamento da boa sociedade (CONSTITUIÇÕES,
1999, p.66, In: CONGREGAÇÃO...1969).

Diante do exposto, quando as Irmãs Doroteias aceitam dirigir à Escola Normal de


Cajazeiras e fundar o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, solicitando desde o começo que
algumas demandas fossem atendidas pela Diocese e pelo Governo do Estado, como citado
anteriormente, considero na prática das mesmas, uma tentativa de
pôr em prática um lugar, um rito, uma representação, ou melhor, procurar compreender quais
usos as pessoas fazem daquilo que lhe é imposto. (CERTEAU, 1994).
Portanto, inicialmente, para um significado historiográfico aos primeiros achados
sobre a fundação do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, no contexto educacional da cidade
de Cajazeiras, da Paraíba e do Brasil recorre-se a Magalhães, quando este observa que a “[...]
história de uma instituição educativa visa, por fim, conferir uma identidade cultural e
educacional. Uma interpretação do itinerário histórico, à luz do seu próprio modelo
educacional”. (MAGALHÃES, 1999, p. 72).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A investigação, até o momento, explorada nas duas pesquisas, denota a perspectiva de
um acréscimo à educação no Rio Grande do Norte e na Paraíba, no tempo demarcado no
estudo.
Assim, pode-se afirmar que as reformas educacionais e o estímulo para que colégios
ou sociedades educacionais viessem se estabelecer no Rio Grande do Norte, notadamente na
capital Natal, empreendidos pelo governador Alberto Maranhão, foram fruto da sua crença em
uma educação republicana como transformadora no Rio Grande do Norte e
desenvolvimentista da sociedade, segundo o projeto Republicano. Suas bases políticas já
estavam consolidadas pelo poder da Oligarquia Maranhão, presente no estado, não havendo
necessidade de ações demagógicas, de angariar simpatias ou mesmo votos da população para
afirmar-se no poder. Vale o destaque por entender que o que realmente motivou as ações do
governador Alberto Maranhão foi sua firme

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convicção no modelo educacional republicano.


A presença do Colégio Nossa Senhora de Lourdes foi algo esperado, desejado pela
Diocese de Cajazeiras, enfim, pela sociedade cajazeirense. Ou seja, a sua ascendência estaria
de alguma maneira no centro das preocupações do clero da diocese, de algumas famílias e
autoridades políticas de Cajazeiras.
Por sua vez, a utilização que se faz do espaço físico revela o modo de fazer e instalar
os princípios da Congregação das Doroteias no cotidiano do Colégio, afluindo, também, para
identificar a prática docente e a cultura escolar.
Assim, espera-se que as discussões, preliminares aqui apresentadas, contribuam para
os estudos e o conhecimento sobre as ações do governador Alberto Maranhão e a educação
republicana no Rio Grande do Norte, bem como sobre a história do Colégio Nossa Senhora de
Lourdes e a historiografia das instituições escolares na Paraíba.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Pública, cria a Escola Normal, Grupos Escolares e Escolas Mistas e dá outras providências.
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FEMINISMO: LUTA POR IGUALDADE

Francisca Cinthia Oliveira Nascimento | cinthiaolive19@gmail.com


Gustavo Mendes Oliveira
Maria Iracema Pinho de Sousa

Na antiguidade as diferenças de gênero eram muito valorizadas, associavam a figura


feminina ao pecado e a corrupção do homem, como é visto na tradição judaica-crista. A
mulher também sempre foi classificada como o sexo frágil, delicada, sensível, sendo colocada
em total dependência da figura masculina, seja do pai, do irmão, ou do marido, dando origem
aos moldes de uma cultura patriarcalista e machista, assim, este modelo sugeria a submissão
das mulheres ao longo de suas vidas pelos homens, antes e depois do matrimônio. Neste
artigo, abordaremos os movimentos feministas, que por meio das manifestações conseguiram
quebrar paradigmas constituídos pela sociedade, em que se acreditava que o trabalho fora de
casa destruía o lar, causava infelicidade nos filhos e tornava a mulher prostituta. Observa-se
que de forma democrática e justa as mesmas vêm conquistando seus lugares na sociedade.
Segundo Santos (2005), citado por Oliveira e Santos (2010, p.12) “É no movimento
entre as determinações socioestruturais, as conquistas culturais e as iniciativas dos indivíduos
em sua singularidade que se definem formas de ser e agir quanto às relações de gênero”. A
relevância social dos estudos e das lutas neste campo, dentre outros aspectos, consiste na
articulação de diferentes dimensões da vida social para compreender como a subordinação da
mulher e as dominações masculinas foram historicamente construídas, buscando incorporar as
dimensões subjetiva e simbólica de poder para além das fronteiras materiais e das
conformações biológicas (ARAÚJO, 2000, p. 68).
1 Graduanda no Curso Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais e Matemática da Universidade Federal do Cariri,
Bolsista no Programa PIBIC/CNPq. E-mail: cinthiaolive19@gmail.com
1 Graduando no Curso Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais e Matemática da Universidade Federal do Cariri.

Bolsista do Programa Institucional de Extensão. E-mail: gusstavomendess@gmail.com


1 Professora da Universidade Federal do Cariri. E-mail: iracema.pinho@ufca.edu.br

Sendo assim, as individualidades humanas nos determinados contextos sociais que

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integram a sociedade podem refletir acerca da realidade que envolvem os movimentos


feministas em torno das peculiaridades inerentes a constituição da identidade feminina para
variadas questões.

FEMINISMO NO MUNDO

Baseando-se nos estudos de Fraisse (1995); Jones (1994); Louro (1999); Scott (1986),
citados por Narvaz e Koller (2006, p. 648) “O feminismo é uma filosofia que reconhece que
homens e mulheres têm experiências diferentes e reivindica que pessoas diferentes sejam
tratadas não como iguais, mas como equivalentes”. Durante as lutas feministas, ocorreram
também várias fases ou gerações, conhecidas como “ondas do feminismo” (Costa, 2002;
Nogueira, 2001; Narvaz e Koller, 2006).

A primeira onda do feminismo represente o surgimento dos movimentos feministas,


desenvolvido no final do século XIX (que se organizou na França, Estados Unidos, Inglaterra
e Espanha) nascendo no intuito de agregar as reivindicações por parte das mulheres na luta
por igualdade de direitos civis, políticos e educacionais, direitos que eram exclusivos apenas
aos homens. “O objetivo do movimento feminista, nessa época, era a luta contra a
discriminação das mulheres e pela garantia de direitos, inclusive do direito ao voto […]”
(Narvaz e Koller, 2006, p.649). Também nesta geração as feministas lutavam contra o
casamento arranjado que rejeitava os direitos de escolha e os sentimentos das mulheres.

A segunda onda do feminismo surgiu depois da segunda Guerra Mundial entre as


décadas de 1960 e 1970, em especial na França e Estados Unidos. Segundo Narvaz e Kolle

(2006, p.649):

“As feministas americanas enfatizavam a denúncia da opressão masculina e a busca


da igualdade, enquanto as francesas postulavam a necessidade de serem valorizadas
as diferenças entre homens e mulheres, dando visibilidade, principalmente, à
especificidade da experiência feminina, geralmente negligenciada”. (NARVAZ;
KOLLER, 2006, p.649)

Neste sentido podemos perceber que as feministas não possuíam pensamentos linear e
igual, as mesmas lutavam com objetivos e intuitos diferentes. É possível também notarmos
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que naquele período as mulheres já valorizavam as diferenças de gênero. […] e deram


prioridade às lutas pelo direito ao corpo, ao prazer, e contra o patriarcado – entendido como o
poder dos homens na subordinação das mulheres. Naquele momento, uma das palavras de
ordem era: “o privado é político” (Pedro, 2005, p.79). As propostas feministas que
enfatizavam a igualdade são conhecidas como “o feminismo da igualdade”, enquanto as que
destacavam as diferenças e alteridades são conhecidas como “o feminismo da diferença”.
Para Scott (2005), citado por Narvaz e Koller (2006, p.649), a questão da igualdade e da
diferença deve ser concebida em termos de paradoxo, ou
seja, em termos de uma proposição que não pode ser resolvida, mas apenas negociada, pois é
verdadeira e falsa ao mesmo tempo.
A terceira onda do feminismo surgiu por meio das feministas francesas, influenciadas
pelo pensamento pós-estruturalista que predominava na França, especialmente pelo
pensamento de Michel Foucault e de Jacques Derrida (Pereira, 2004; Narvaz e Koller, 2006).
“Cuja proposta concentra-se na análise das diferenças, da alteridade, da diversidade e da
produção discursiva da subjetividade. Com isso, desloca-se o campo do estudo sobre as
mulheres e sobre os sexos para o estudo das relações de gênero” (Narvaz e Koller, 2006,
p.649). Segundo Louro (1999), citado por Narvaz e Koller (2006, p.650) “A fase surgida mais
recentemente, a terceira geração do feminismo, tem grande influência sobre os estudos de
gênero contemporâneos”.
Muitos historiados em seus trabalhos buscam compreender e definir o conceito de
gênero, e procuram mostrar a sua importância para a terceira onda do feminismo. Assim
destacam-se, os nomes de Joan Scott, Joana Maria Pedro, Heleieth I.B. Saffioti, Tomas Tadeu
da Silva, e entre outros que influenciaram o estudo da análise de gênero. Entre os nomes mais
citados está Joan Scott, que em seu texto: Gênero: Uma Categoria Útil Para Análise Histórica,
inspira historiadores a estudar e analisar o conceito de gênero.
Para Scott (1989, p.7):

“Gênero”, como substituto de “mulheres”, é igualmente utilizado para sugerir que a


informação a respeito das mulheres é necessariamente informação sobre os homens,
que um implica no estudo do outro […]. Ademais, o gênero é igualmente utilizado
para designar as relações sociais entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as
justificativas biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para
várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os
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homens têm uma força muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma maneira de
indicar as “construções sociais” – a criação inteiramente social das idéias sobre os
papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O
gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo
sexuado. (SCOTT, 1989, p. 7)

Em suas falas a historiadora busca mostrar que ao estudar sobre a mulher,


consequentemente, precisamos estudar o homem, reconhecemos que este aspecto só se dá
porque toda trajetória feminista só ocorreu por causa de suas lutas por igualdade, sendo assim,
um influenciando a história do outro. A mesma alega também em seu texto que o gênero
indica as construções sociais, parece óbvia tal afirmação, pois com o surgimento da categoria
gênero se desmistifica o conceito errôneo a respeito de como antes era conceituado homem e
mulher. “Gênero” opõe-se, pois, ao “sexo”: enquanto este último termo fica reservado aos
aspectos estritamente biológicos da identidade sexual, o termo “gênero” refere-se aos aspectos
socialmente
construídos do processo de identificação sexual” (Silva 1999, p. 91).
Para Saffioti (1992), citado por Santos e Oliveira (2010):

Neste processo, as relações de gênero são permeadas por uma diversidade que
envolve as relações entre homens e mulheres, mas também entre mulheres e
mulheres e homens e homens, de modo que “o tornar-se mulher e tornar-se homem
constitui obra das relações de gênero” […]. A categoria gênero contribui para
desnaturalizar e historizar as desigualdades entre homens e mulheres, sendo
entendida de modo histórico e relacional e não como “oposições decorrentes de
traços inerentes aos distintos seres” para que não se incorra no erro de deixar de
identificar “os diferentes poderes detidos e sofridos por homens e mulheres”.
(SANTOS; OLIVEIRA, 2010, p.12)

Enfatizando a citação quando afirma, que a categoria gênero contribui para


desnaturalizar e historizar as desigualdades entre homens e mulheres, pois a partir da sua
introdução nos movimento feministas as mulheres puderam lutar por igualdade, tendo em
vista que as mesmas a partir dos movimentos feministas contribuíram para a constituição de
que o sentido de gênero não estava relacionado com o “sexo”, mas com a cultura nos variados
continentes e países democráticos. Tendo em vista, que não podemos nos esquecer que, assim
como a cultura abre espaço para a construção de conceitos e relações no que se referem ao
gênero em países democráticos, ela também aprisiona e calam um sem número de mulheres

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em países fechados para certas questões no concernente às relações de gênero pelo mundo
afora, ainda na contemporaneidade.

FEMINISMO NO BRASIL
O movimento feminista no Brasil surgiu no final do século XX, com o intuito de
reivindicar pelo direito ao voto, “por uma ou outra mulher de ideias mais avançadas, como foi
o caso de Nísia Floresta (1810-1885)” (TOSCANO; GOLDENBERG, 1992, p. 25). Assim
como era o caso da Inglaterra, Estados Unidos, França e Espanha, as mulheres brasileiras
também eram subordinadas aos seus maridos, onde lhes era atribuído somente atividades
triviais para o seu sexo feminino, tais como: bordar, costurar, cuidar da casa e filhos, bem
como do marido. A sociedade restringia muito a participação feminina nos papéis trabalhistas,
sociais, políticos, educacionais, civis e culturais.
Foi na década de 70 que o feminismo ganhou força, sobretudo, como consequência da
resistência das mulheres à ditadura, depois da derrota das que acreditaram na luta armada e
com o sentido de elaborar politicamente essa derrota (SARTI, 2004, p. 37). As primeiras
manifestações dos grupos feministas nasceram com o intuito de promover a igualdade das
mulheres pela anistia e pela abertura democrática, desde então vários grupos foram criados
com finalidades diferentes se destacando “os direitos reprodutivos, o combate à violência
contra a mulher, a sexualidade”
(COSTA, 2005, p.3).

DIREITOS E CONQUISTAS FEMINISTAS NO BRASIL

Na atualidade brasileira é possível observarmos o quanto a consciência da sociedade


mudou em relação à mulher no mercado de trabalho, tal fato pode ser observado a partir da
constatação da participação feminista em diversas classes profissionais. As mulheres também
obtiveram êxito no que diz respeito ao seu papel de cidadãs, visto que as mesmas
conquistaram o direito ao voto, participando de forma mais ativa na formação do país.
É notável o crescimento das mulheres no meio educacional, através de uma pesquisa
realizada pelo INEP, esta nos mostra que o corpo docente das universidades se destaca para o
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a presença maior do sexo feminino. Enquanto que, com relação aos docentes homens, cresceu
cerca de 67,9 de 1998 a 2003, o número de docentes mulheres aumentou em 102,2%. O
crescimento global de mulheres docentes com doutorado foi de 104%, enquanto que o de
homens docentes ficou em 69,2%. O crescimento do número de mestres homens ficou abaixo
da média (106,1%) enquanto que o de mestres mulheres foi de 119,4%.
Estes dados são significativos da realidade educacional brasileira e nos levam a
reflexão de que as mulheres vêm ocupando com competência os espaços de pesquisa e
acadêmicos no que se refere à qualificação para a docência.
Com a revolução do feminismo, as mulheres ganharam destaque também no meio
econômico assumindo o controle de empresas. Mesmo com a divisão do trabalho entre
homens e mulheres, as mulheres conseguiram mostrar suas capacidades frente às barreiras
impostas pelos homens, e por meio do esforço e da dedicação na qualificação profissional,
vem adquirindo boas ocupações quanto aos cargos. Em uma década, 10,7 milhões de
brasileiras ingressaram no mercado de trabalho. As brasileiras representam quase 44% da
força de trabalho nacional, além disso, 59,3% das empresas do país têm uma mulher como as
principais proprietárias, confirmando a vocação empreendedora feminina.
No entanto, mesmo havendo variados campos profissionais que abrem espaço para a
atuação de mulheres, tendo em vista suas competências e instruções, o mercado de negócios
ainda não trata com a devida valorização ambos os sexos. Não é difícil identificarmos
mulheres que trabalham e ocupam cargos similares aos homens, no entanto, não recebem o
mesmo pagamento no exercício da mesma função, porém, esta realidade é mais fácil de ser
identificada na iniciativa privada.
Na sociedade atual o sexo feminino vem conquistando seu espaço de protagonismo,
quebrando barreiras criadas há décadas e abandonando características e ocupações de meras
donas de casa, assumindo postos de trabalho, cargos em empresas.
Deste o século XX as brasileiras vêm lutando por igualdade, mas foi a partir dos anos
2000, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que foram criadas diretrizes no campo das
políticas públicas, com a finalidade de oferecer programas de atenção específica ou
diferenciada para as mulheres, tais como:
Quadro 1 – Políticas Públicas e Programas Atenção Específica às Mulheres – A partir 2010
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NOME DO PROGRAMA DESCRITOR


Bolsa Família Políticas de combate a pobreza
PAISM Implantação efetiva do Programa de Atenção Integral à Saúde da
Mulher
Programas de atenção integral Ênfase a meninas e adolescentes em situação de risco pessoal e
social

Além dos programas expostos no (quadro 1) destacamos o apoio a projetos produtivos


voltados para a capacitação e organização das mulheres, garantia de direitos trabalhistas e
combate à discriminação nos diversos níveis da administração pública. E ainda, fiscalização
do setor privado, construção de equipamentos urbanos priorizados por mulheres,
reconhecimento de direitos relativos às mulheres da zona rural, nas políticas de distribuição
de terras, de reforma agrária e de crédito para atividades agrícolas, entre outros.
Segundo Oliveira e Santos (2010):

A luta das mulheres e do movimento feminista tem tido alguns resultados


expressivos, sobretudo, a partir dos anos 2000. Foi criada, no início do governo Luiz
Inácio Lula da Silva, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), que
veio dar suporte às reivindicações do próprio movimento, trazendo às tonas questões
da sua agenda, envolvendo lutas históricas das mulheres no país. Em 2004, realizou-
se a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM), organizada a
partir das demandas colocadas no processo das Conferências Estaduais e das
Plenárias Municipais, envolvendo 1787 delegadas e mais de 700 observadoras e
convidadas. Dessa Conferência, foi elaborado o Plano Nacional de políticas para as
Mulheres (PNPM), a partir das diretrizes aprovadas na I Conferência e estruturadas
em torno das seguintes áreas estratégicas de atuação: “autonomia, igualdade no
mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista; saúde das
mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; e enfrentamento à violência contra
as mulheres” (PNPM, 2005, online). Em agosto de 2006, foi promulgada a Lei
Maria da Penha (BRASIL, 2006) que coíbe a violência contra a mulher. Em 2007,
foi realizada a II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres e,
consequentemente, construído o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (II
PNPM, 2008, p.17).

Através da leitura do texto de Oliveira e Silva é possível observarmos a atual situação


das mulheres brasileiras, esta que demonstra conquistas no campo das políticas públicas, e
também em outras camadas sociais. Sabemos que esse grande avanço só foi adquirido a partir
de muitas lutas, mas, as políticas públicas relacionadas às mulheres ainda tem muito a
avançar, pois ainda existe muita desigualdade relacionada ao sexo feminino.
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Se no quesito políticas públicas no âmbito da esfera governamental podemos


identificar conquistas por parte das mulheres, na esfera privada, ainda é fácil constatarmos
violações dos diretos à liberdade, integridade física e moral. De acordo com dados do IBGE, a
maioria das mulheres que recebem algum tipo de violação de seus diretos, em 68% dos casos,
tem como agressor seus próprios companheiros, conforme (figura 1).
Figura 1 – Características das mulheres agredidas no Brasil

Esses dados são representativos do quanto o papel da mulher na sociedade ainda é


frágil. Podemos analisar que a depender do espaço familiar que determinada mulher ocupe,
ela pode ser mais ou menos autônoma, feliz e bem sucedida para aspectos profissionais e
financeiros. Esta é apenas uma reflexão que fomentamos entre o meio acadêmico para
questões que envolvem o entorno da participação feminina na luta por espaço à liberdade, à
participação política, às políticas públicas, à saúde, educação e tantos outros direitos
femininos.

CONSIDERAÕES FINAIS

Os movimentos feministas conseguiram quebrar paradigmas criados por uma


sociedade machista e patriarcalista, mudando a realidade de mulheres que viviam
subordinadas aos homens, tal realidade não é vista com tanta frequência na atualidade na qual
estamos inseridos.
As mulheres conquistaram seus direitos de protagonismo e as mesmas mostram, que
são suficientemente capazes de andar com as suas próprias pernas, e que conseguem realizar
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tarefas que só eram atribuídas para o sexo masculino. Adquiriram maturidade no meio
profissional e hoje são destaques em algumas profissões, como é o caso de grandes empresas
que tem por chefia superior as mulheres e também vale ressaltar, que hoje muitos países são
controlados e comandados por mulheres.
Por fim para encerrar, consideramos que o feminismo por meio de suas lutas e
manifestações conseguiu alcançar alguns dos muitos direitos pelo qual tem lutado no último
século, conquistando espaço na ciência, artes, educação, política, sociologia, economia,
medicina, comércio, mundo dos negócios, dentre outros. E tudo isso foi conquistado porque
as mulheres não desistiram de focar nas suas lutas.

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HELENA BOTELHO E JOSEFA BOTELHO, EDUCADORAS EM DESTAQUE (RN,


1910-1920)

Janaina Silva de Morais | janinha_turismo@yahoo.com.br


Maria Arisnete Câmara de Morais

INTRODUÇÃO
Educação, Literatura e Gênero/UFRN (MORAIS, 2014). O objetivo do referido
projeto consiste em analisar aspectos da alfabetização, com ênfase no ensino da leitura e da
escrita nos Grupos Escolares do Rio Grande do Norte durante as primeiras décadas do século
XX.
O início do século XX foi marcado pela tentativa de reorganização do ensino
primário no Rio Grande do Norte. Na administração do governador Antônio de Souza (1907-
1908) ocorreu a reforma na educação pública que “[...] autorizou o governo a reformar a
instrução pública, dando especificamente ao ensino primário moldes mais amplos e
garantidores de sua proficuidade.” (RIO GRANDE DO NORTE, 1907, p. 5). No período em
questão a tônica centrava-se nas discussões sobre a criação dos Grupos Escolares, a expansão
do ensino primário no Estado e a formação de professores.
O Decreto nº 178, de 29 de abril de 1908, criou o Grupo Escolar Augusto Severo, o
primeiro do Estado – localizado em Natal – e reabriu a Escola Normal de Natal com a
finalidade de suprir o Estado com profissionais de educação qualificados. E a Lei nº 284, de
30 de novembro de 1909, conhecida como a Reforma da Instrução Pública no Estado,
decretou a criação de “[...] pelo menos, um grupo escolar em cada município” e estabeleceu
que seriam “[...] efetivamente providos nas cadeiras primárias os professores titulados pela
Escola Normal.” (RIO GRANDE DO NORTE, 1910, p. 1).
Após concluído o Curso Normal, os professores estavam qualificados para a
docência em qualquer instituição primária do Rio Grande do Norte. As informações
demonstram que nesse período, ocorreu intenso deslocamento do professorado pelos recantos
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do Estado. Começava, então, a expansão do ensino primário. Em 1919, já funcionavam trinta


e dois Grupos Escolares no Rio Grande do Norte (LIMA, 1927).
Particularizamos para esta pesquisa a atuação das professoras Helena Botelho e
Josefa
Botelho, formadas pela primeira turma da Escola Normal de Natal, em 1910. Evidenciamos a
primeira década das práticas educativas dessas professoras nos Grupos Escolares do interior
do Rio Grande do Norte, em especial, as desenvolvidas no Grupo Escolar Joaquim Nabuco
(Taipu/RN), instituição onde localizamos os Diários de classe que refletem as práticas dessas
professoras.
Fundamentamos metodologicamente nosso trabalho nas teorizações de Chartier
(1990), que permite a interface com a prática e a representação dos atores envolvidos, e de
Morais (2002; 2006), com as diferentes maneiras de se estabelecer a discussão com as fontes
e pensar acerca da apropriação da leitura e da escrita a partir dos objetos contextualizados.
Para tanto, pesquisamos no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
(IHGRN), onde localizamos as Leis e os Decretos do Governo do Rio Grande do Norte, o
Regimento Interno dos Grupos Escolares, o jornal A República e a Revista de Ensino; e no
Arquivo Público do Estado do RN, onde localizamos os Livros de Honra e de Matrícula e os
Diários de Classe das professoras pesquisadas.
Destacamos as dificuldades para analisar a vivência dos alunos, haja vista a ausência
deste indício, que normalmente se perde com o tempo, impossibilitando o entrecruzamento
com o registro do fazer docente (MORAIS; SILVA, 2011). Entretanto, utilizamos o Diário de
Classe de Helena Botelho e as publicações do Jornal A República no que se refere às
orientações de Nestor dos Santos Lima sobre a Leitura e a Escrita para a escola primária do
Rio Grande do Norte. São produções que indicam as demonstrações acerca dos padrões de
conduta no início do século XX.
Realizamos, ainda, entrevista com o senhor Odúlio Botelho de Medeiros, familiar
das professoras Helena Botelho e Josefa Botelho, a respeito de seu modo de ser e conviver.
Compreendemos que apesar do nosso esforço em configurar um determinado período
histórico, sempre encontraremos lacunas na construção de um contexto.
A presente pesquisa compõe os estudos desenvolvidos no Projeto História da Leitura
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e da Escrita no Rio Grande do Norte (1910-1980)/CNPq, desenvolvido pelo Grupo de


Pesquisa História da

JOSEJA BOTELHO E HELENA BOTELHO: EDUCADORAS NORTE-RIO-


GRANDENSES

As irmãs Josefa Botelho e Helena Botelho são filhas do casal José Paulino de
Carvalho Botelho e Maria Marcolina Botelho. Helena Botelho nasceu no estado de
Pernambuco, em 13 de
agosto de 1896. Josefa Botelho nasceu o dia 16 de abril de 1889 no estado do Rio Grande do
Norte. Quando crianças tiveram o primeiro contato com as letras através de sua genitora. “A
família, por tradição, inclinou-se para as letras, artes, música e pelo magistério, como foi o
caso de Josefa, Helena e Alzira.” (MEDEIROS, 2013).
Ingressaram na Escola Normal de Natal, onde fizeram parte da primeira turma de
formandos, em 04 de dezembro de 1910. Nessa referida turma formaram-se,

Luiz Antonio dos Santos Lima, Severino Bezerra de Melo, Manuel Tavares
Guerreiro, Anfilóquio Carlos Soares Câmara, Francisco Ivo Cavalcanti, José
Rodrigues Filho, Luiz Garcia Soares de Araújo, Ecila Pegado Cortez, Judite de
Castro Barbosa, Áurea Fernandes Barros, Olda Marinho, Stela Vésper Ferreira
Gonçalves, Beatriz Cortez, Arcelina Fernandes, Guiomar de França, Anita de
Oliveira, Francisca Soares da Câmara, Maria Natália da Fonseca, Maria Abigail
Mendonça, Maria das Graças Pio, Clara Fagundes, Maria da Conceição Maria
Julieta de Oliveira, Maria Belém Câmara, Maria do Carmo Navarro, Helena
Botelho, Josefa Botelho. (MORAIS, 2006, p. 75).Fagundes,

Formaram-se vinte e sete alunos, cuja maioria pertencia ao sexo feminino: sete
homens e vinte mulheres. Isso evidencia o fato de que o magistério era considerado uma
profissão predominantemente feminina.
Após concluírem o Curso Normal, Josefa Botelho e Helena Botelho foram nomeadas
para exercerem a docência no Grupo Escolar Senador Guerra, criado pelo Decreto nº 189, de
16 de fevereiro de 1909 e instalado na cidade de Caicó/RN. Elas “[...] foram as primeiras
professoras formadas a atuarem naquela cidade.” (MORAIS; SILVA, 2011, p. 71). Nesse
estabelecimento de ensino lecionaram durante o período de 1911 a 1918. Uma das alunas de

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Helena Botelho foi a educadora Chicuta Nolasco Fernandes que, posteriormente, dirigiu a
Escola Normal de Natal, no período de 1952 a 1956. Dona Chicuta rememorava a sua
professora primária enquanto estudante daquela instituição: “Adorava D. Helena, bonita como
um cromo.” (MORAIS, 2006, p. 39).
Josefa Botelho e Helena Botelho lecionaram em vários estabelecimentos de ensino: o
Grupo Escolar Joaquim Nabuco na cidade de Taipú/RN (criado pelo Decreto nº 86, 8 de
janeiro de 1919), o Grupo Escolar Pedro Velho, em Canguaretama (criado pelo Decreto nº
286, 10 de julho de 1913) e o Grupo Escolar Felipe Camarão, em Ceará Mirim (criado pelo
Decreto nº 266, de março de 1912).
Conforme entrevista com Odúlio Botelho, as professoras Helena Botelho e Josefa
Botelho desenvolveram, nos municípios do Estado onde lecionaram, uma “[...] intensa
atividade cultural, procurando envolver a sociedade nas coisas da educação.” Nas suas
lembranças, a professora Helena “[...] além de poetisa, era uma excelente pintora.
Desenvolvia uma boa oratória nos
momentos solenes.” (MEDEIROS, 2013).
Helena Botelho, já aposentada do magistério, acompanhou o seu marido José Cesar
de Farias Filho para o Estado da Paraíba, onde passou a residir no município de Princesa
Isabel. “Continuou lecionando as crianças e adultos naquela região, era a vocação permanente
sobre a arte de ensinar.” (MEDEIROS, 2013). Helena Botelho faleceu em 24 de dezembro de
1986, aos 90 anos de idade, de falência múltipla dos órgãos. Seu sepultamento realizou-se no
Cemitério do Alecrim. A professora Josefa Botelho casou-se com o português Carlos Cazal e
faleceu no Hospital Universitário Professor Onofre Lopes, na cidade de Natal, no dia 29 de
novembro de 1978.
Atualmente, Helena Botelho denomina uma escola pública na zona rural do
município de Taipu/RN, a Escola Isolada Helena Botelho, localizada no sítio Arisco dos
Barbosa; e Josefa Botelho denomina a Escola Municipal Josefa Botelho localizada na Vila de
Ponta Negra, Natal/RN. Elas fazem parte das nossas pesquisas sobre a presença de
professoras que configuraram a história da leitura e da escrita no Rio Grande do Norte.

PRÁTICAS EDUCATIVAS NO ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA


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A alfabetização da população era objetivo da expansão do Ensino Primário no Rio


Grande do Norte. A população era considerada letrada a partir da obtenção de dadas
habilidades: ler, escrever e contar. Desse modo, particularizamos neste estudo o ensino da
leitura e escrita na escola primária. A política educacional da época apregoava que “[...] o
fundamento do ensino primário consiste em leitura, escrita, cálculo e desenho, que serão
cuidadosamente seriados, constituindo as demais matérias os elementos acessórios da
instrução primária.” (RIO GRANDE DO NORTE, 1917, p. 45).
A leitura e a escrita fazem parte do processo de construção, instauração dos sentidos.
“A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo,
inscrição num espaço, relação consigo e com os outros.” (CHARTIER, 1994, p. 16). As
práticas de leitura e escrita nos Grupos Escolares tinham por objetivo a formação da
sociedade letrada norte-rio-grandense. Lima (1911, p. 1) compreende a escrita como “[...] a
arte de gravar os nossos pensamentos e sentimentos, por meio de caracteres, chamados letras.
A escrita é uma arte e não um dom natural [...] ela deve ser ensinada.”
Nos Diários de Classe das professoras Helena Botelho e Josefa Botelho estão
dispostas as matérias que compunham o programa de ensino e os respectivos conteúdos a
serem trabalhos. Em
consonância com a legislação vigente, as matérias eram: leitura; escrita e caligrafia; língua
materna; cálculo aritmético; geometria, noções de geografia e história, especialmente, do Rio
Grande do Norte; instrução moral e cívica; lições de coisas; desenho; hinos; trabalhos
manuais; exercícios físicos (RIO GRANDE DO NORTE, 1917). Também registravam as
lições destinadas aos alunos e faziam referências à Cartilha de Ensino Rápido da Leitura, à
Nova Cartilha Analítico Sintética e ao Livro Páginas Infantis, todos de autoria de Mariano de
Oliveira.
Os registros dessas professoras mostram que todos os dias os alunos tinham
atividades acerca da leitura e da escrita, que também estavam presentes nas demais matérias.
Como por exemplo, as aulas de cálculo e aritmética, nas quais os alunos faziam exercícios de
“Copiar do quadro negro os algarismos de 1 até 10” (JOSEFA BOTELHO, 1919) ou “Ler a
tabuada de multiplicação de 5 no disco” (HELENA BOTELHO, 1919).
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Segundo orientações oficiais e recomendação de intelectuais da época, as crianças


aprendiam a leitura silenciosa que permitia a liberdade de imaginação sem a interferência de
outrem. Por outro lado, a leitura em voz alta possibilitava uma melhor compreensão do texto,
através das entonações e pausas necessárias à fluência da leitura (MORAIS; SILVA, 2009).
Josefa Botelho e Helena Botelho trabalhavam a leitura com os alunos através da “Elocução
sobre a leitura do dia” e a recitação de poesias infantis, contos e fábulas, como por exemplo,
“A raposa e as uvas”, “O lobo e o cão”, “A cigarra e a formiga”.
A organização da escrita no universo escolar modificou a organização do espaço, do
tempo e das relações sociais: do espaço, lembrando que para escrever é necessário um lugar
próprio; do tempo, percebendo que a escrita instaura a possibilidade da leitura posterior, o que
confere maior durabilidade à palavra e maior relevância ao registro; e das relações sociais,
compreendendo que a escrita cria uma nova dinâmica através do recurso às cartas, bilhetes ou
mesmo anotações (CHARTIER; HÉBRARD, 1998).
Conforme Lima (1911, p. 1) “[...] a boa escrita é regular, completa, inteligível.”
Assim, escrever tornou-se essencial para a construção da sociedade pretendida porque, “[...]
com mais ou menos resistência, o público é moldado pelo escrito (verbal ou icônico), torna-se
semelhante ao que recebe, enfim, deixa-se imprimir pelo texto e como o texto que lhe é
imposto.” (CERTEAU, 2012, p. 238).
Os discursos pedagógicos, apoiados pelos preceitos higienistas da época,
preocupavam-se em normatizar a escrita. Um dos princípios importantes durante a escrita em
classe dizia respeito à disposição do corpo do aluno, do papel e da pena. A falta de cuidado
com esses preceitos poderia
gerar problemas na visão, como a miopia, ou deformações na coluna da criança (LIMA,
1911). Para este particular, apresentavam-se três sistemas de escrita:

O 1º começava pelas letras de duas pautas de tamanho e em ordem decrescente


passava as de uma só, as de meia, até a letra comum ou cursivo; o 2º sistema,
reconhecendo que os dedos da criança não podem fazer as letras maiores, começava
pelas menores, chegando afinal às maiores; o 3º sistema, verificando a
inconveniência de ambos, faz começar por um tamanho médio e na ordem
decrescente, chega ao cursivo. (LIMA, 1911, p. 1).

Os Diários de Classe das professoras Josefa Botelho e Helena Botelho revelavam que
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nos ensinamentos sobre a escrita, os exercícios estavam sempre aliados às atividades de


leitura. Registros como: “Cópia de um trecho da lição do dia, sublinhando as palavras que
estiverem no singular” ou “Copiar do quadro negro as palavras que estiverem no plural”
demonstram isso.
Na aprendizagem da Escrita as professoras também preocupavam-se em difundir os
valores morais e patrióticos vigentes. É recorrente, nos seus registros, a utilização de frases
que exaltavam à Pátria, às Virtudes e à Escola. Os alunos escreviam diariamente frases como:
“Tudo por minha Pátria!” ou “A bandeira da Pátria é digna de respeito”, “A escola não é lugar
de conversa”, “É necessária muita aplicação ao estudo”, “O filho que é obediente é a alegria
de seus pais”, “Como é bonito um menino obediente!”, “É dever do aluno apresentar-se
asseiado na escola”, “Lá os alunos bons merecem a estima dos mestres”. Frases que
pretendiam interiorizar nas crianças o comportamento para o progresso a fim de que se
tornassem cidadãos modernos e cultos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As professoras Josefa Botelho e Helena Botelho tiveram ações educativas voltadas


para a alfabetização de seus alunos, com ênfase nas cartilhas de ensino utilizadas pela política
educacional da época. Indicavam os modos de fazer e a conduta específica na escola primária
do Rio Grande do Norte.
Os Diários de Classe revelavam a narrativa do cotidiano escolar e o fazer das
alfabetizadoras em sala de aula. Os ensinamentos da leitura e da escrita são indícios de que as
maneiras de educar as crianças envolviam controlar, semear e cultivar a natureza destas. São
preceitos voltados para a formação do cidadão republicano.
Observamos que o fazer pedagógico dessas professoras centravam-se no ensino da
leitura e da escrita, considerados a chave para desencadear a pretendida renovação do ensino
nas primeiras
décadas do século XX. Enfim, elas sintonizavam-se com as ideias correntes acerca da
alfabetização no período analisado.
Josefa Botelho e Helena Botelho legitimaram o magistério feminino no projeto de
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disseminação da instrução pública pelos recantos do Estado. Pioneiras desse movimento – no


sentido de que foram diplomadas na primeira turma da Escola Normal de Natal (1910) −,
enfrentaram adversidades em favor do ensino público primário. São professoras que muito
contribuíram para a formação da sociedade letrada norte-rio-grandense.

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IDENTIDADE, GLAMOUR E LACRAÇÃO: A NOVA GERAÇÃO DRAG QUEEN DE


FORTALEZA

Amanda Araujo Mendes | amandamendes_@hotmail.com


Lilith Feitosa Acioly
Mariana Brito Silva

INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo compreender a produção de subjetividade
encontrada na arte Drag Queen, com base na exteriorização de uma nova identidade trazida
pelo sujeito enquanto personagem.
Além disso, analisar a forma como é concebido o processo de transformação
(montação) e suas consequências. Também visa mostrar as diferentes maneiras que a
sociedade percebe, compreende e interage com essas pessoas. Busca, ainda, explorar o
cenário atual costurado pela nova geração de performistas na cidade de Fortaleza e a mudança
do público e de sua receptividade para com todos os elementos da cultura produzida pelas
Drag Queens.
Os termos utilizados no título e no corpo do trabalho foram escolhidos de acordo
com o vocabulário local constantemente utilizado pelas Drag Queens entrevistadas. O termo
‘lacrar’ se refere a obter grande êxito ao executar algo, o realizando com perfeição, elogio
escutado constantemente pelas Drags por suas montações e performances. ‘Glamour’ se refere
a um status
conquistado através da prática Drag, relacionado a um grande envolvimento e admiração do
público.
Ao estudar um assunto envolvendo questões de gênero, achamos fundamental
esclarecer alguns termos que compõem esse universo. Por isso, explicitaremos algumas
definições desses termos propostas por diferentes autores para representar a correspondência
presente nos mesmos e a singularidade de cada um deles em relação aos outros.
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Identidade de Gênero, segundo Jesus (2012), é o gênero com o qual uma pessoa se
identifica, o qual pode ou não concordar com o gênero que foi atribuído a ela em seu
nascimento.
Diferentemente dos papéis sociais de gênero, que não são biologicamente
determinados, mas sim construtos culturais e históricos, a identidade de gênero
“remete à constituição do sentimento individual de identidade”. (GROSSI, 2012,
p.8).

Moore (2000, p. 15), pontua que a identidade de gênero é construída e vivida na


“relação entre estrutura e práxis, entre o indivíduo e o social”.
É destacado, ainda, “que a identidade de gênero nem sempre corresponde ao sexo do
nascimento: uma pessoa pode nascer com o sexo feminino e sentir-se um homem ou vice-
versa”. (LIMA, 2011).
Já a orientação sexual de uma pessoa indica por quais gêneros ela sente-se atraída,
seja física, romântica e/ou emocionalmente. (CONAN, 2003).

A identidade de gênero, desse modo, não deve ser confundida com orientação
sexual: a primeira remete à forma como as pessoas se autodefininem (como
mulheres ou como homens), a segunda remete à questão da sexualidade, do desejo,
da atração afetivossexual por alguém de algum gênero (homossexualidade,
bissexualidade e heterossexualidade). (JESUS, 2012).

Além disso, é importante ressaltar que orientação sexual e gênero “podem se


comunicar, mas um aspecto não necessariamente depende ou decorre do outro” (JESUS,
2012, p. ).
Transexual é o termo que caracteriza a pessoa que não se identifica com o gênero que
lhe foi atribuído quando de seu nascimento. (JESUS, 2012).

A travestilidade, referente às pessoas travestis, é uma expressão de gênero que difere


da que foi designada à pessoa no nascimento, assumindo, portanto, um papel de
gênero diferente daquele imposto pela sociedade, que objetiva transicionar para uma
expressão diferente. (ROSA, KAHHALE, 2012).

Esta identidade possui peculiaridades em relação a outras identidades transgêneras,


em diferentes processos sociais e de institucionalização, articulando elementos como gênero,
classe, raça, etnia e com o contexto urbano das grandes cidades. (SILVA, 1993).
A categoria travesti é mais antiga que a categoria transexual, por isso é mais
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utilizada. Essa maior utilização, no entanto, é marcada pelo preconceito, já que o sentido
empregado é, grande parte das vezes, pejorativo. (JESUS, 2012).
É possível inferir, como dito anteriormente, que as definições de cada um dos autores
citados acima, além de terem relação entre si, ao mesmo tempo também se complementam.
Embora muitas vezes não seja visível, cada um dos termos é distinto e não pode ser
confundido com outro ou usado como sinônimo de outro.
A partir dos conceitos expostos, temos a particularidade da Drag Queen – forma de
expressão artística em que homens interpretam personalidades femininas, muitas vezes de
maneira caricata e extravagante, para fins artísticos ou de entretenimento. Segundo Jesus
(2012), sua personagem não tem relação com sua identidade de gênero ou orientação sexual.
O conceito de Drag Queen pode ser mais detalhado por:

“... se a Drag Queen propositalmente exagera os traços convencionais do feminino,


se exorbita e acentua “marcas” corporais, comportamentos, atitudes e vestimentas,
ela não o faz com o propósito de se “passar por uma mulher”, mas sim com o
propósito de exercer uma paródia de gênero. A drag repete e exagera, se aproxima,
legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia.” (LOURO, 2003)

A metodologia utilizada consistiu, inicialmente, em uma revisão da literatura acerca


do tema. Posteriormente, criou-se um questionário sobre termos que permeiam a questão de
gênero, anteriormente citados, sendo esses: identidade de gênero, orientação sexual, travesti,
transexual e Drag Queen; indagando o que o participante entende pelos mesmos. O propósito
desse questionário foi descobrir que conhecimentos as pessoas tem acerca do assunto. O
formulário foi disponibilizado via internet e respondido anonimamente por 50 pessoas de 18 a
49 anos até o presente momento.
Ao fazermos uma análise das respostas do questionário virtual, pôde-se perceber que
o conhecimento acerca dessas expressões ainda é bastante limitado por parte da sociedade em
geral. Há uma confusão em grande parte das respostas sobre os termos ‘travesti’, ‘transexual’
e ‘Drag Queen’. Algumas respostas apareceram repetidamente. Uma parcela dos participantes
declarou que não sabia diferenciar os termos. Outra fez a diferenciação dos termos ‘travesti’ e
‘transexual’ pautada no órgão genital. Houve, ainda, dúvidas sobre qual seria a diferença entre
‘travesti’ e ‘Drag Queen’.

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Foi feita, ainda, observação de performances, tanto em festas em bares e boates de


Fortaleza, como em espetáculos teatrais.
A cena Drag Queen de Fortaleza possui uma configuração muito diferente da que
existia há aproximadamente dois anos. Com a popularização da arte Drag Queen, foram
abertos novos espaços e cenários para esses artistas. Ao pesquisarmos sobre a cena antiga da
cidade, encontramos em outra pesquisa, realizada em 2010, com as atuantes na época, que ela
tinha como bases duas boates, uma chamada Dona Santa, na Praia de Iracema e outra
chamada Divine, localizada no centro de Fortaleza. (COELHO, 2010) A boate Divine
funcionava a 15 anos, sendo a maior referência em competições e performances para as Drag
Queens da cidade, porém, encerrou suas atividades no final de 2014. Já a boate Dona Santa
continua suas atividades até hoje, mas com outras propostas de shows e entretenimento.
Atualmente, um maior número de boates e bares conta com apresentações das Drag
Queens em seus eventos, sendo as principais delas a Music Box e a Level, ambas na Praia de
Iracema, local com maior atividade noturna de bares e boates da cidade. Além de um
crescente número de espetáculos teatrais envolvendo a temática.
Percebemos, assim, uma glamourização da cena, por parte do público. Em bares e
boates foi visto um comportamento que mostrava grande admiração e atenção para com as
Drag Queens, porque muitas pessoas as procuravam para tirar fotos ou apenas cumprimentá-
las e elogiá-las. Foram notados, inclusive, alguns comportamentos mais invasivos, como
assédios, mas, algumas das Drags percebem esse fato de forma positiva. Em espetáculos
teatrais que giram em torno da temática LGBT, produzidos por uma companhia composta
exclusivamente por Transexuais e Drag Queens – As Travestidas, − houve grande aceitação
do público, com lotação em todas as apresentações. Dentro da atual cena, os participantes,
tanto o público quanto os performistas, são bastante jovens – observou-se idades semelhantes
entre os frequentadores das festas e os entrevistados. – O que, talvez, explique essa
aproximação e identificação tão grande entre eles.
Ao questionarmos o porquê dessa maior visibilidade e popularidade da arte Drag
Queen para o público e para as Drags, é constantemente citado o Reality Show RuPaul’s Drag
Race como grande causa para esse fenômeno. O programa traz uma competição entre Drag
Queens pelo título de melhor Drag Queen dos Estados Unidos. O seriado se tornou
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mundialmente famoso e encontra-se em sua sétima temporada. A apresentadora, RuPaul, é


uma Drag que começou sua carreira na década de 80, sendo uma grande ativista do
movimento LGBT e referência no universo Drag Queen. Durante as entrevistas, muitos dos
participantes citaram o programa como fonte de inspiração e referência para seus processos de
criação, estilo e performances. E outros trouxeram, ainda, que foi a partir do Reality que se
interessaram pela prática e começaram a se desenvolver na
arte. Por abordar diversas formas de fazer e ser Drag, o seriado colocou em evidência,
inclusive, Drag Queens mais jovens, com estilos originais, mais próximos a referências da
cultura pop atual, o que gerou uma maior aproximação e empatia por parte dessa nova
geração.
Em um segundo momento, ocorreram diversos encontros, em diferentes ambientes,
com 16 Drag Queens que participam da cena noturna da cidade de Fortaleza e tem entre 16 e
25 anos. Essas reuniões chegaram a acontecer em shoppings bastante movimentados da
cidade, com os participantes montados. Foram realizadas, com eles, entrevistas que
consistiram em duas partes: A primeira, estruturada, com as mesmas perguntas do
questionário citado anteriormente e, a segunda, semiestruturada, com perguntas direcionadas
às experiências pessoais dos performistas como: trajetória, motivação, medos e inseguranças,
relações pessoais, processo de montação e ativismo.
Refletimos sobre as entrevistas feitas com as Drag Queens e um dos pontos
essenciais destacados por elas é o processo de montação. É através dele, que ocorre a
consolidação da identidade Drag, dando vida a personagem anteriormente criada pelo artista.
O termo ‘montação’, falado pelos entrevistados, é usado para representar a montagem de um
novo corpo através de acessórios e técnicas de maquiagem. Pelo que nos foi relatado,
constatamos que o processo tem características ritualísticas, por ter etapas que costumam
seguir uma ordem fixa e apresentar peculiaridades para cada pessoa, como a necessidade de
escutar uma música específica enquanto se monta ou de estar só durante todo o processo. Esse
momento também pode ser explicado por:

“É nesse espaço que, em alguns casos, muda-se completamente o registro de quem


se é ou, ao menos, acentuam-se traços de uma personagem cuja base já está presente
no rapaz desmontado.” (VENCATO, 2005)
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Outra singularidade encontrada na montação, diz respeito a um momento muito


significativo: a utilização de um objeto com uma representação simbólica que marca a
transição entre as duas identidades, por exemplo: a peruca, o salto ou os enchimentos.
Apesar de consideradas ‘personagens’, esse termo pode ter outras significações, o
que explica existirem diferentes relações entre o criador e sua persona. Isso pode ser
demonstrado em:

“A Drag para si é uma personagem que segue um roteiro dado por e para si mesma.
Ela não é uma personagem da convenção teatral, mas traça por meio do montar e
desmontar um movimento continnum de rito ao teatro.” (GADELHA, 2009)

O principal ponto analisado a partir das entrevistas foi a relação entre as identidades
do sujeito e de sua Drag Queen, já que eles transitam, deliberadamente, entre duas
performances de gênero. Puderam-se inferir algumas variações quanto à elaboração das
identidades personificadas por cada performista entrevistado. As respostas podem ser
agrupadas em três interpretações pertinentes, gerando categorias de identificação.
Na primeira delas há uma identidade nitidamente diferente para a personagem e para
o sujeito que a representa, a Drag ganha uma personalidade moldada segundo a vontade de
seu criador, inclusive podendo ter características, pensamentos e até mesmo preferências
diferentes ou opostas às dele. Essa resposta foi obtida principalmente por pessoas que
encaram ser e fazer Drag essencialmente como uma atividade profissional. Talvez por esse
fato, procuram estabelecer diferenças significativas entre suas vidas enquanto Drag e
enquanto homem.
No segundo caso, no qual a maioria dos entrevistados se encaixa, a personalidade da
Drag Queen surge de forma mais espontânea, já que aparece como uma parte do sujeito a qual
sempre esteve presente em seu interior, mas que só se permite manifestar a partir do processo
de montação, no qual o indivíduo passa a pensar e se expressar de forma diferente da habitual.
Ainda que a identidade da Drag venha de um desdobramento de características do próprio
sujeito, todos relataram que após terminar a montação, sentem-se como outras pessoas.
E, em uma última, o sujeito reconhece a Drag Queen como sendo a possibilidade de
libertação para a mudança de determinados comportamentos e formas de agir em relação à
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sua postura, tais como a maneira de andar, falar e se posicionar nos espaços. No entanto,
permanecem com os mesmos pensamentos e sentimentos, ou seja, apenas uma variação
daquilo que o sujeito é quando não está montado. Foi-nos relatado que a montação passa a ter
uma relação diferente com o indivíduo: não ocorre como uma transformação, mas, sim, como
um processo de completude. Outro ponto marcante sobre essa categoria foi o fato de ser
formada por pessoas que, através da experiência de Drag Queen, acabaram por se descobrirem
com uma identidade de gênero feminina, entrando em um processo de reconhecimento de
uma identidade transexual.
Apesar das respostas obtidas por cada pessoa se encaixar, inicialmente, em algum
desses tipos, foi percebida uma fluidez entre elas durante a vivência de cada indivíduo.
Algumas pessoas que originalmente se identificavam com determinado grupo, ao longo de sua
experiência, foram percebendo elementos em si que os fizeram reconhecer-se também em
características de alguma das outras categorias. Essa fluidez ocorre porque o limite
estabelecido entre as identidades do sujeito e de sua personagem é, de certa forma, uma
fronteira flutuante (CHIDIAC E OLTRAMARI, 2004), mudando constantemente de acordo
com experiências na vida desse indivíduo, tanto quando está montado, quanto quando está
desmontado.
Apesar de uma aparente aceitação do movimento Drag Queen na cidade de Fortaleza,
ainda encontram-se alguns fatos que dificultam a relação dos artistas com a cidade. Fora do
ambiente performático, nem sempre há uma boa receptividade das pessoas para com as Drags.
Foi relatado um medo em relação a diferentes formas de violência – tanto física, quanto
verbal – no espaço urbano. Os entrevistados falaram que não costumam utilizar transporte
público quando montados por conta desse medo, o que se torna um empecilho, já que muitos
deles moram em bairros distantes dos locais onde costumam performar e por isso, traz
dificuldades como maiores gastos com locomoção.
Além disso, o ser Drag possibilita a esses jovens um reconhecimento e aceitação de
partes de suas personalidades enquanto personagem e expressão de seus talentos artísticos, até
então reprimidos pela cultura de uma cidade que nem sempre os compreende, conquistando
uma melhora em sua confiança e autoestima.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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um estudo sobre a configuração da identidade queer. In: Estudos de Psicologia, 9 (3), 471-
478. 2004.
COELHO, J. F. J. Performers Trans e Boates Gays na Fortaleza Babado. Disponível
em:<http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278283162_ARQUIVO_ARTIGO
JULIANAJUSTAFAZENDOGENERO9.pdf>. Data de acesso:
15/05/2015
COMAN, Adrian. Orientação Sexual e Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.hrea.org/index.php?doc_id=701>. Acesso em 20 set. 2015.
GADELHA, José Juliano Barbosa. Masculinos em mutação: a performance drag queen em
Fortaleza. 2009. 265f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do
Ceará, Departamento de Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia,
Fortaleza-CE, 2009.
GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. Disponível em:
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JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos.
Disponível em:
<http://issuu.com/jaquelinejesus/docs/orienta__es_popula__o_trans>. Acesso em 20 set.
2015.
LIMA, Rita de Lourdes. Diversidade, identidade de gênero e religião: algumas reflexões.
Disponível em:
<http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/2940/2104>.
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LOURO, G. L. Corpos Que Escapam. Disponível em:
<http://www.pibid.ufpr.br/pibid_new/uploads/edfisica2011/arquivo/243/corpos_que_escapam
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MOORE, Henrietta L. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência.
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Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=51326>. Acesso em 20 set. 2015.
ROSA, Mariléia Catarina. KAHHALE, Edna M. P. Travestilidade: A constituição da
subjetividade na pele em que se habita. Disponível em:
<http://abeh.org.br/arquivos_anais/M/M016.pdf>. Acesso em 12 set. 2015.
SILVA, Hélio R. S. Travesti, a Invenção do Feminino, Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
ISER, 1993. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1377>. Acesso em 17 set. 2015.
VENCATO, Anna Paula. Fora do armário, dentro do closet: o camarim como espaço de
transformação. Cad. Pagu, Campinas , n. 24, p. 227-247, Junho 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010483332005000100011&lng=en
&nrm=iso>. Data de acesso: 21/05/2015

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JOSÉ DA SILVA COUTINHO (PADRE ZÉ): EDUCAÇÃO, DEVOÇÃO E POBREZA


(1935 – 1973)

Aline C. Paz Almeida | alinepaz24@gmail.com


Janine da Guia Costa

INTRODUÇÃO

Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma


história, isto é, como o relato corrente de uma sequência de
acontecimentos com significado e direção, talvez seja
conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação
comum da existência que toda uma tradição literária não
deixou e não deixa de reforçar. Eis por que é lógico pedir
auxílio àqueles que tiveram que romper com essa
tradição...

Bourdieu.1998.p.185

¹ Graduanda em Pedagogia pela UFPB. Pós Graduada em Psicopedagogia pela FAAC-BA, atualmente aluna em
especial do mestrado em Educação pela UFPB.
² Graduada em História pela UFPB, Especialista em História Cultural pela UFPB, atualmente aluna especial do
mestrado em Educação pela UFPB.

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Ao começarmos a nos preocupar com os trabalhos sobre biografia, nós não tínhamos
ideia da complexidade que é lidar com as fontes históricas: documentos oficiais, iconográficos
e história oral e nem da amplitude teórica acerca de um trabalho biográfico. Desta forma,
recorremos a Borges10, que diferentemente da Antropologia, prefere usar o termo biografia,
fugindo da chamada clássica, que tende mais a acentuar o caráter político, moral ou religioso
do biografado do que em sua pessoa, em sua singularidade.
No decorrer desta pesquisa fizemos diferentes caminhos na busca do estudo sobre o
Padre Zé Coutinho. Sabemos que as fontes são importantes e essenciais para o pesquisador, é
através delas que unimos os espaços temporais do que foi vivido pois:
[...]em sua inteireza e completude, o passado nunca será plenamente conhecido; no
limite, podemos entendê-lo em seus fragmentos, em suas incertezas. Por mais que
o pesquisador tente se aproximar de uma verdade sobre o passado, apostando no
rigor metodológico, permanecem sempre fluidos e fugidios os pedaços da história
que se quer reconstruir. (GALVÃO e LOPES, 2001,p.77)

Então, “como se pesquisa a vida de um indivíduo? Por intermédio das “vozes” que
nos chegam do passado, dos fragmentos de sua existência que ficaram registrados, ou seja,
por meio das chamadas fontes documentais” (BORGES, 2006, p. 212) . E sem elas, não
teríamos como prosseguir em nossa ambiciosa investigação. E foram elas que nos guiaram na
pesquisa sobre nosso objeto, nos suscitando este breve ensaio biográfico, fazendo-nos
também analisar os diversos tipos de biografias, desde um rápido percurso da vida do
biografado que no nosso caso é um líder religioso, até um tipo mais ambicioso, como um
“aprofundamento na alma” do biografado.

Portanto para escrever sobre uma vida, é preciso encantar-se pela biografia, pois será
uma longa intimidade que nascerá entre o pesquisador e o biografado. “É necessário o que A.
De Botton chama de “impulso biográfico”, isto é, um impulso para conhecer o outro de modo
pleno” (BORGES, 2006, p.216). E foi por este motivo que sentimos a necessidade de estudar
sobre a biografia, antes de começarmos a nos debruçar sobre nosso objeto. Assim, tomando
consciência da amplitude acerca de sua vida se fez necessário este ensaio, antes de
começarmos a enveredar pelos longos caminhos de suas trajetórias.

10 É graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1959), mestrado em História
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1979) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (1987).
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No entanto, o intuito deste texto não é detalhar o longo percurso teórico pelo qual
Borges (2006) percorreu ao analisar a sua terminologia adotada, mas sim fazer um ensaio
biográfico sobre
Padre Zé Coutinho, permitindo compreender a sua intervenção como sujeito na sociedade e na
história, tendo como interesse evitar contar o “Real” ou ainda, engrandecer a imagem do
biografado, mas analisar a importância de um sujeito para a educação da Paraíba em uma
determinada época, pois como bem disse Borges: (2006, p.215)

A razão mais evidente para se ler uma biografia é saber sobre uma pessoa, mas
também sobre a época, sobre a sociedade em que ela viveu [...]não há nada melhor
para se saber como é o ser humano do que se dar conta de sua grande variedade, em
espaços e tempo diferentes.

PADRE ZÉ: UM BREVE ENSAIO BIOGRÁFICO

As próprias biografias já nos haviam ensinado desde


nossos primeiros passos. Não existe um só personagem que
não deva ser captado em seu tempo e em seu meio.

Fernand Braudel

José da Silva Coutinho, o Padre Zé, como é popularmente conhecido, foi um


sacerdote católico que manteve forte compromisso com a educação popular no Estado da
Paraíba. Nasceu na cidadezinha de Esperança, como ele mesmo revelou “em 18 de
novembro de 1897, num dia de quinta-feira, às 3 horas da tarde, na primeira casa da rua do
Sertão”, filho do casal Júlio da Silva Coutinho e de Eusébia de Carvalho Coutinho, afilhado
do Monsenhor Odilon da Silva Coutinho, vigário geral da Arquidiocese da Paraíba, pessoa
que mais influenciou em sua escolha pelo sacerdócio. Aos 15 anos no dia 10 de março de
1908 ele entrou para o seminário e começou seus estudos como Padre e no dia 24 de março
de 1920 celebrou sua primeira missa. “Agora o nosso Monsenhor Coutinho, deixa o
seminário e vai encarar a vida, entre as massas corrutas, para converter almas e servir ao
pobre, como um presente do céu” (ALVES, 2012 p.8).
A partir de 1920 até 1923 o Padre Zé tornou-se gerente do jornal “A Imprensa”

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jornal que existia desde 1897 e era dirigido pelo Arcebispo da Paraíba Dom Adauto Miranda
Henriques. Passando ainda de 1924 a 1928 a ecônomo e professor do Seminário
Arquidiocesano da Paraíba, bem como do colégio PIO X e de 1929 a 1937 a vigário da
Catedral.
Porém, apenas em 1935 que as obras sociais e educativas do Padre Zé tiveram
início com a fundação do Instituto São José, nome dado em homenagem ao dia do Santo,
que se comemora todos os anos no dia 19 de março. E naquele dia o Padre Zé “Ergueu-se
como o levante e, lá de cima gritou: “Vinde! Aqui há sombra” (ALVES, 2012 p.11).

[...]verifiquei então que o Padre, o Médico, o Advogado e o Professor isoladamente


tinham também algum prestígio, de acordo com os benefício prestados à
coletividade[...]com o fim exclusivo de aproximar o mais possível o Povo de Cristo
Nosso Senhor, decidi exercer todas essas profissões[...]fundava logo depois em 19
de Março de 1935 o Instituto São José cujas numerosas obras de Educação e
Beneficência enumerarei[...](COUTINHO, 1965 p.9)
O Instituto São José – ISJ, dotado de personalidade jurídica, apenas em 1956, foi
inicialmente sediado na Catedral Metropolitana e transferiu-se, ante a insuficiência de espaço,
para a Ordem Terceira do Carmo, na Praça Dom Adauto, centro da capital paraibana, onde
funciona até hoje.

Prestava educação básica e profissionalizante, em seu contexto mais amplo. Para


aqueles que não tiveram a chance de passar pela escola, ensinava-lhes ofícios manuais como
costura, pintura, marcenaria, bordados, alfaiataria, arte culinária entre muitos outros cursos
para que tivessem mais oportunidades de trabalho. Aos que concluíam o Ensino Básico no
Instituto, prestando o Exame de Admissão e sendo aprovados, faziam o curso de Datilografia.
Contudo, nem sempre o instituto teve em tempos de fartura e apoio social, pois em 1940 a
1941 o Padre Zé quase fechou a instituição por falta de recursos e dificuldades financeiras
conforme ele mesmo relatou:

[...] Em meados de 1940 a fevereiro de 1941 eu e meus sobrinhos que criávamos


como filhos passamos por fortes privações até de boca, a mercearia que
comprávamos nos cortou o fornecimento e só Deus e os íntimos sabem quão dura foi
a nossa vida naqueles meses...estava numa encruzilhada- fechar o Instituto São José
e aceitar uma Paróquia no Interior para manter minha família [...] certa noite, perdi o
sono, não dormi um só minuto quando veio-me a ideia felicíssima[...]de instalar um
pensão destinada a moças e rapazes[...] (COUTINHO,1965, p. 13- 14)

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A ideia de abrir um pensionato foi de fato muito feliz, pois na época não havia a
Casa do Estudante, havia apenas a Casa do Estudante Pobre que não fornecia alimentação,
apenas hospedagem, e logo o Padre montou uma pensão, apelidada imediatamente pelos
estudantes por pensão Nini e posteriormente chamada pelo próprio padre de “Pensão
Camarada”, com alimentação fornecida em todas as refeições e que rapidamente tinha 20 e
em seguida 30 jovens internos, e mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, cada
estudante pagava pela diária Cr$ 50,00 (cinquenta cruzeiros), valor muito pequeno para
época, mas os que não podiam, também recebiam refeições gratuitamente, mas com boa
administração, doações e esmolas, mantiveram o instituto por 7 anos.

Ao passar destes anos, em 1948, com a chegada de um novo governo no poder,o


Padre Zé Coutinho volta a trabalhar para o Estado como encarregado de combater a
Mendicância Profissional, ganhando Cr$2,000 (dois mil cruzeiros) mensais:

[...] resolveu o monsenhor José Coutinho, por bem querer e entender a dirigir O
Combate a Mendicância Profissional, em nossas avenidas, amparando-as a
domicílio. Tomou limpas imediatamente as ruas, invadidas por recluas de pedintes,
dando-lhes ajudas semanais de manutenção. ...Tornou semi-internas , do seu
instituto, em 1949, todas as mocinhas, também filhas de ex-mendigos cuja idade
excedesse a doze anos. Dando-lhes roupas, refeições e transportes para que
aprendessem de igual para igual , tudo o que as senhoritas da cidade aprendiam de
útil, para a vida prática, na Ordem Terceira do Carmo. (ALVES;1954,p.14)

Com isso, o Padre Zé ganha então a nomeação, no dia dois de janeiro de 1950, de
Assistente Social, cargo criado pela Assembleia Legislativa da época, retirando as pessoas das
ruas e sustentando-as com doações e esmolas, trazendo ofícios e ocupações para os mendigos
da época a fim de que os mesmos tomassem um novo rumo e abandonassem a vida de
mendigos juntamente com suas famílias.

Com o passar do tempo à fama do trabalho do Padre Zé percorreu cidades do interior e


sertão do estado da Paraíba e até de estados vizinhos como Pernambuco, fazendo que cada
vez mais pessoas pobres com diversos tipos de necessidades como educação e saúde
procurassem o Instituto São José em busca de alimentação, abrigo e oportunidades, conforme
entrevista abaixo que nos foi concedida pela ex-aluna Etelvina Santiago da Paz, 65 anos:

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“Estudei no Instituto São José no ano de 1967 a 1968, vinda do sertão da Paraíba, do
povoado de Palmeira pertencente ao município de Imaculada- PB, fui para o
Instituto já alfabetizada e estudei para o Programa de Admissão...no instituto,
tínhamos nossas obrigações e todos os dias duas moças iam ajudar a servir na
cozinha e limpar o penico do Padre (risos), mas demorava muito chegar a nossa
vez, pois eram muitas moças.... Mas o que eu amava mesmo era colocar a comida
dele, lavar-lhe os pés e o rosto quando ele chegava cansado de pedir dinheiro nas
ruas...achava ele lindo!(Informação verbal)
Em 1964, com o crescimento da demanda, e vendo que muitos dos que procuram o
Instituto São José buscavam tratamento médico, o Padre Zé criou no bairro de Mandacaru, em
João Pessoa, a Casa de Apoio, também chamada de Casa do Pobre, para proporcionar
acolhimento médico, a todos os doentes que lhe pediam socorro, onde, com o auxílio de
muitos estudantes de Medicina da época, funcionou a Comissão de Proteção e Amparo ao
Indigente (COPEAI). Essa Casa veio a se transformar na Casa Padre Zé e hoje a conhecemos
por Hospital Padre Zé, que possui leitos destinados exclusivamente à população carente.

De acordo com um documentário filmado entre 1969 e 1970 “Padre Zé estende a


mão” e que nos foi concedido pelo Instituto São José, durante nossa pesquisa, percebemos a
precariedade da casa do pobre e suas divisões apenas por sexo, estando acomodados homens e
crianças de diversas mazelas no mesmo pavilhão, bem como mulheres e meninas. Sendo a
demanda sempre maior que a estrutura que o local tinha para oferecer.

Contudo, ainda fixou na casa do pobre um gabinete dentário, que vimos também no
mesmo documentário, para atender essas pessoas e estudantes internos do Instituto com a
finalidade extrair e realizar obturações, tudo através de doações e trabalhos voluntários.

[...] E HAJA DOIDICE...PORQUE COMO DIRETOR DO INSTITUTO SÃO JOSÉ


DOU REFEIÇÕES, há muito tempo, a trezentas pessoas em média, por dia,
financiadas em grande parte com esmolas, sendo duzentos doentes na Casa Padre
Zé, do Roger, vindos de toda Paraíba e zonas limítrofes sul do Rio Grande, norte e
Pernambuco e, lá um dia, do longínquo Ceará e CEM estudantes clássicos e
científicos, ginasianos, exames de admissão, escolas profissionais e até aprendizes
de oficinas, na pensão camarada[...] (COUTINHO,1965, p.15)

Para realização destes trabalhos, Padre José Coutinho, que passou a ser também
conhecido como: “o pai dos pobres”, buscou apoio de pessoas generosas, autoridades,
entidades públicas, privadas e de classes, instituições e movimentos religiosos, bem como,

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percorria as ruas de João Pessoa, mesmo em sua cadeira de rodas, a pedir esmolas aos
transeuntes.

Os alunos do instituto também iam com ele, alguns já na década de 60, na qual ele não
andava grandes distâncias, o arrastava em sua cadeira de rodas pela cidade, muitas vezes, até
umas 21h00 percorrendo os bares e festas de rua, angariando fundos para sustentar suas obras
já estabelecidas. Conhecido com sua varinha, batia nas pessoas para se dirigir a elas e pedir
esmolas, fato claramente exposto no documentário “Padre Zé estende a Mão”, já citado
anteriormente e na fala de Etelvina nossa entrevistada:

“Naquela época as pessoas eram lindas, não tinham besteira com nada, homens que
hoje são grandes médicos, arrastavam padre Zé pela feira em sua cadeira de rodas e
pediam esmolas com ele. Nós, as moças do Instituto também pedíamos frutas na
feira, tudo isso para ajudar o Instituto Padré Zé, onde ficavam os doentes e mais
pobres”

Durante toda sua trajetória, no decorrer de seus quase 76 anos de vida, o Padre José
Coutinho manteve suas atividades de angariar fundos, abrigar pessoas e cuidar de pessoas
doentes e no dia 5 de novembro de 1973, dois dias após passar mal no Cemitério da Boa
Sentença, Padre José Coutinho veio a falecer. Por sua obra é reconhecido como patrono
da Assistência Social na Paraíba. E, em 2012, a Arquidiocese da Paraíba iniciou a coleta de
dados para abrir processo de beatificação e canonização do Padre Zé que até essa data, não foi
concluso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste trabalho, procuramos demonstrar como um sacerdote pode dedicar


uma longa parte de sua vida ao trabalho social e acolhedor aos pobres, retratado em fontes
orais e escritas, como um homem de temperamento forte e conservador, Padre Zé destacou-
se em seu meio por seu intenso esforço em arrecadar fundos para seus trabalhos
humanitários e sua imensa preocupação com a população ainda, em sua grande maioria, tão
analfabeta da época. No entanto, como foi dito no início do texto, o nosso intuito não foi o
de engrandecer sua imagem, como disse WERNECK , 2014, p. 23: “A matriz narrativa
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adotado pelos biógrafos não trata o sofrimento como a experiência de santificação em que se
leva em conta a paciência em sofrer”, mas trazermos narrativas através de fontes de pesquisa
e documentos orais e escritos, que mostrassem um pouco da vida do biografado da maneira
mais fidedigna possível. Porém, também não temos como nos refutar em narrar o que mais o
destacou em seu tempo: sua obra social e olhar voltado aos desfavorecidos.

Assim, em um balanço provisório e incompleto como este, um ensaio de conclusão


nos aponta para os caminhos que não trilhamos e que necessitam de uma posterior pesquisa,
sabendo que um trabalho biográfico requer uma imersão completa da vida do biografado,

surgindo assim novos questionamentos como: Qual seria sua real inspiração pessoal para o
sacerdócio? Ou ainda: O que o motivou a buscar todas essas atividades sociais? Será que em
um dado momento ele não quis abandonar suas obras sociais e viver como qualquer Padre
em uma paróquia numa condição mais tranquila? Tais perguntas requerem uma pesquisa
mais aprofundada de outras fontes. Tendo a consciência de que nossa proposta de enveredar
por alguns dos “caminhos” trilhados pelo biografado foi atingida, nos sentimos satisfeitas em
conclui-lo, e motivadas a pesquisar ainda mais a vida do Padre Zé, bem como das pessoas
que conviveram com essa figura e tiveram suas vidas afetadas por todo seu trabalho,
educação e devoção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

“Padre Zé estende a mão” filmado entre 1969 e 1970, produzido e dirigido por Jurandy
Moura.

AGUIRRE Rojas, Carlos Antônio; Braudel, o mundo e o Brasil; tradução de Sandra


Valenzuela- São Paulo: Cortez, 2003.

ALVES, Natanael, folheto: Padre Zé, Gráfica Santa Marta, 1954.


BORDIEU, Pierre. Ferreira, Marieta de Morais; AMADO Janaína (orgs) Usos e abusos da
história oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas;1998.
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BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(Org). Fontes Históricas. 2 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2006.

COUTINHO, José da Silva, folheto : Aos que não me conhecem: Sou o Padre Zé, o homem
mais doido da Paraíba.A União, João Pessoa-PB: 1965

http://www.arquidiocesepb.org.br/index.php?arqui=pages/showNoticiasArquidiocese&id=371
pesquisa realizada em 16.10. 2015.
http://www.esperancadeouro.com/2014/03/historia-do-padre-esperancense.html, pesquisa
realizada em 15.10.2015.
http://www.jornaldaparaiba.com.br/cidades/noticia/90392_padre-ze-coutinho-pode-ser-o-
primeiro-santo-paraibano, pesquisa realizada em 15.10.2015.
NUNES, José. Paraíba – Nomes do Século: Padre Zé Coutinho, Série histórica. Vol. XXVI.
A União Editora. João Pessoa: 2000.

WERNECK, Maria Helena.Sobre a biografia no Brasil: historicidade práticas de escrita. In:


Clarisse Fulkelman (Org.) Eu assino embaixo: biografia, memória e cultura. Ed. UERJ. Rio
de Janeiro: 2014.

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LÚCIA DE FÁTIMA SILVA: EDUCADORA NA ZONA RURAL EM GURINHÉM/PB

Luciane Carneiro de Souza


Tatiana de Medeiros Santos | taty_ms11@hotmail.com
Haquel Myriam de Lima Costa Palhari

INTRODUÇÃO

Este trabalho nasceu das analises feitas nas aulas da disciplina Tópicos em História da
Educação: História Oral e Memória: Biografia e Autobiografia, do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
O objetivo deste trabalho é resgatar as histórias e memórias da educadora Lúcia de
Fátima Silva, que atua na comunidade Uruçú, na zona rural de Gurinhém. Trata-se de uma
mulher que cresceu morando em uma residência que tinha sua estrutura de taipa e o sonho de
ser educadora. Iniciou sua atuação profissional aos 17 anos de idade, lecionando em sua
residência, tendo como merendeira a sua mãe, na época do prefeito Jorge Urçulo Ribeiro
Coutinho. Como esta casa escola era pequena e ficava próxima a uma mata acabava por
dificultar o acesso das crianças da comunidade.
Mas, além das dificuldades encontradas para lecionar, Lúcia de Fátima teve outro
problema para continuar sua profissão, pois após o casamento o seu esposo não queria que ela
trabalhasse chegando muitas vezes a agredí-la, mas, Lúcia não desistiu de sua paixão que era
ensinar as crianças carentes e partiu para fazer o curso de pedagogia em João Pessoa.
Neste artigo, optamos pelos pressupostos teórico-metodológicos da Nova História
Cultural, por permitir novos questionamentos ao passado e ampliar a possibilidade de novos
objetos e novas fontes e até mesmo, realizar novas releituras de registros oficiais, tendo como
principal metodologia a história oral.
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Sobre história oral, Delgado (1996, p.16), afirma que é um procedimento


metodológico “[...] que busca, pela construção de fontes e documentos, registrar, através de
narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a história em
suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais [...].”
Permitindo assim, o registro de depoimentos e o acesso da história dentro da história,
auxiliando a ampliação de possibilidades de interpretação do passado. Trazendo à tona, as
múltiplas versões de um fato acontecido. No entendo, trata-se de uma pesquisa em fase
inicial, que tem até o presente momento da construção deste artigo uma entrevista realizada
em: 04/09/2015.

Também vamos trabalhar com o que as lembranças de Lúcia de Fátima revelar. De


acordo com Halbwachs (2006, p.69) no tocante a memória individual e coletiva, pode-se dizer
que “[...] cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este
ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as
relações que mantenho com outros ambientes [...].”

Desse modo, vamos trabalhar com as narrativas da educadora Lúcia de Fátima, sobre
sua atuação profissional em uma escola rural, em Urucú, localizada no município de Guriém.
Sobre narrativas Bragança (2008, p.75) afirma que “[...] não apenas descrevem a realidade,
são produtoras de conhecimento individual e coletivo e no caso dos professores/as,
potencializam os movimentos de reflexão sobre as próprias experiências, teorias e práticas.
[...]” Vale ressaltar, que nessa análise das histórias e memórias da educadora em questão não
se tem a pretensão de esgotar em suas narrativas como aconteceu sua escolarização e o
exercício da sua profissão como um retrato fiel do que aconteceu no passado. Pretende-se
trazer a tona algumas de suas histórias que se encontram presentes em sua memória, as quais a
narradora tem o papel de selecioná-las para contar a partir do tempo presente o que vivenciou
no passado.
Deste modo, Chatier (2009, p.9), afirma que reorganizar as práticas culturais, através
da recordação “[...] não significa que a história se repita, e sim destacar que esta pode buscar
conhecimentos e ajudar a compreensão crítica das inovações do presente, as quais, por sua
vez, nos seduzem e nos inquietam”.
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O nosso interesse por este campo de estudo é de contribuir para a história da educação
da Paraíba dentro do contexto brasileiro, através da Educadora Lúcia de Fátima Silva, com
suas histórias e memórias sobre a escolarização na zona rural de Gurinhém/PB.

LÚCIA DE FÁTIMA SILVA E SUA ATUAÇÃO EDUCACIONAL

Lúcia de Fátima Silva, é uma educadora que nasceu na comunidade de Uruçú, no


município de Gurinhém – PB, no dia 18/06/1957. Este é o local em que mora atualmente.
Segundo a educadora a sua família era de origem simples:

Cresci no seio de uma família humilde. Meu pai vivia da agricultura e exercia a
função de alfaiate, mamãe era merendeira, mesmo assim, enfrentávamos muitas
dificuldades a começar pela nossa casa que era muito pequena para abrigar meus
pais eu e mais quatro irmãos. Apesar das dificuldades encontradas no nosso dia a
dia éramos felizes porque
vivíamos na paz.

A educadora relatou a importância da religião católica em sua vida:

Desde muito criança aprendi junto com meus irmãos a prática da oração, todos os
dias meu pai reunia os cincos filhos para rezar o terço de nossa senhora e chamar
nossa atenção ser temente a Deus a está sempre fazendo o bem as pessoas. Através
dos seus ensinamentos me tornei uma pessoa comprometida pelos interesses da
comunidade.

Lúcia de Fátima explicou que nas séries iniciais, estudou em sua casa com seus
irmãos, que era humilde e que também atendia as crianças daquela região. Em 1973, essa
realidade mudou com a doação de um terreno para construir um grupo escolar, que recebeu o
nome da mãe do doador do espaço para ser construída uma escola naquele local.

A vida escolar minha e dos meus quatro irmãos, nos primeiros anos iniciais a
escola era em domicilio e funcionava pela manhã e a noite, a título Escola
Municipal Rural. Em 1973, com a construção do prédio próprio na propriedade do
senhor Manoel Arruda da Silva com uma sala de aula, dois banheiros, uma área e
uma cantina que servia de cozinha e dispensa para merenda, a escola passou a se
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chamar Grupo Escolar Municipal Anália Arruda da Silva em homenagem a mãe do


proprietário da terra, lembrando que as professoras da época eram duas Maria
Bernadete e Maria de Lurdes Ferreira a lecionarem anos mais tarde a escola
passou por nova reforma surgindo novas salas e novos professores.

A seguir se visualiza a frente do Grupo Escolar Municipal Anália Arruda da Silva:

Fonte: Arquivo pessoal da educadora Lúcia de Fátima, s/d.

Em 1976, Lúcia de Fátima explicou que esse grupo foi ampliado e começou a sentir a
necessidade de contratar novos professore e ela foi uma das professoras contempladas. A
educadora narrou a sua inexperiência, e informou que se espelhou na sua primeira professora
e na necessidade que tinha em trabalhar:

Em 1976, ainda solteira e sem formação para o magistério fui convocada pelo Sr.
Prefeito continental Jorge Úrsulo Ribeiro Coutinho para ensinar uma turma de
alfabetização na escola mencionada que havia estudado , foi muito gratificante
minha primeira experiência com este público infantil, mesmo sem qualificação
procurei inspiração e muita luta pelas dificuldades familiar que passei em meu
casamento durante anos, e me inspirando na minha primeira professora da 1ª fase a
Sr. Maria Bernadete Mariano Silva apesar de ter turmas multisseriada era uma
grande alfabetizadora além de buscar ajuda nas fontes de pesquisa cientificas e nos
relatos de experiências dos colegas.

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Sobre como a educadora atuava inspirada na sua primeira professora, explicou:

Mesmo sem qualificação procurei inspiração na maneira de trabalho da minha


primeira professora e única da primeira fase a Sr. Maria Bernadete Mariano da
Silva, seu método de ensino não utilizava castigo como por exemplo a palmatória
para nos punir, mas, sim o dialogo ou puxão de orelhas das crianças levadas, esse
era seu método de ensino e o meu também como proposta educativa, com nossos
alunos, apesar de ter turmas multiseriada eu era uma grande alfabetizadora, além
de buscar ajuda nas fontes como livros didáticos e nos relatos de experiências dos
colegas professores.

A seguir se visualiza a educadora Lúcia de Fátima em uma atividade na escola em que


atua como educadora:

Fonte: Arquivo pessoal da educadora Lúcia de Fátima, s/d.


Lúcia de Fátima narrou que só teve a oportunidade de ir atrás de sua formação
profissional, em 1990, cursou primeiro o pedagógico em módulos e logo foi aprovada em
Pedagogia pela Universidade Estadual da Paraíba. Atualmente participa de palestras, cursos e
atividades da sua religião católica em prol de sua comunidade Urucú:

Mas, as buscas de conhecimentos continuaram, em 1990 conclui o Logos II, em


2002 fiz o vestibular pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB e passei
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começando o curso de Licenciatura Plena em Pedagogia o concluindo no ano de


2005, mais tarde em 2012 a Pós-Graduação em Educação Inclusiva realizado na
cidade de Gurinhém o qual sou deste Município.

Acima a educadora narrou a sua dinâmica para se manter atualizada e continuar


lecionando suas aulas. Na sequencia, continua narrando que o seu dia a dia não se resume a
sua sala de aula. Ela tem um envolvimento em promover palestras, e atuar na igreja católica
em diversas funções:

Até os dias atuais permaneço em sala de aula e sempre que posso participo
atividades sociais voltadas para o bem estar da minha comunidade de Uruçú
situada na zona rural do Município de Gurinhém- PB, com alguns projetos tais
como: Recuperação das nascentes, Tratamento e monitoramento do lixo da
comunidade e turismo rural e isto só foi realizado graças ao meu compromisso
como educadora porque este projeto envolve também nosso alunado da escola, e
também o Turismo Rural na comunidade, todos os anos fazemos um multirão para
arrecadação, que já ocorreu para a reforma de nossa igreja local da comunidade.
Também participo de campanhas solidárias para as famílias carentes que temos
aqui em Uruçú. Participo da igreja católica de minha comunidade como Ministra
da Eucaristia, monitora de batismo e do grupo da liturgia como comentarista. Em
minha comunidade tendo como Padroeiro São Pedro Apóstolo, tenho uma vida
ativa religiosa.

A seguir se visualiza a educadora em suas atividades de palestras na Igreja Católica:

Fonte: Arquivo pessoal da educadora Lúcia de Fátima, s/d.

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Fonte: Arquivo pessoal da educadora Lúcia de Fátima, s/d.

Após a entrevista realizada com esta educadora, Lúcia de Fátima ainda refletiu sobre
os dias atuais em relação a educação de forma em geral:

A educação passou e continua passando por transformações cabe a me e nós


educadores e educadoras acompanharmos e estarmos preparados para construir no
desenvolvimento educacional, pessoal e social das nossas crianças para serem os
futuros cidadãos conscientes de exercer seus direitos e deveres perante a sociedade.
E nós mulheres de luta temos que fazer nossa parte perante cada objetivos sociais e
educacionais das crianças e jovens de minha comunidade que nasci e cresci.

Enfim, a educadora reafirmou o compromisso que tem com comunidade em que


nasceu e que está atenta para as transformações que ocorrem na forma de educar e que
enquanto mulher, estará sempre voltada para formar as crianças e jovens, voltando seus
interesses para trazer a informação para a comunidade em que nasceu, unindo o lado social e
educacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educadora Lúcia de Fátima é uma mulher é atuante em sua comunidade como


professora, palestrante e católica praticante na comunidade em que nasceu, cresceu e mora lá
até os dias atuais. Reconhece as dificuldades que enfrentou para estudar, se formar e trabalhar.
Atuou por algum tempo como professora leiga, o esposo não aceitava que fosse trabalhar e
apesar das adversidades que remavam para que se tornasse uma pessoa passiva, a educadora

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lutou para superar as suas necessidades financeiras e pessoais de colaborar para que chegasse
a informação e a educação formal em sua terra natal. Um ganho muito grande para a
comunidade foi a doação do terreno para a construção do Grupo Escolar Municipal Anália
Arruda da Silva, em 1973. E daí veio a oportunidade de trabalhar e mais tarde de correr atrás
de sua formação profissional. Hoje ela se sente realizada pelos trabalhos em que realiza e
afirma ter esse compromisso com a educação, informação e formação religiosa com todos que
se disponibilizar de sua comunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Histórias de vida e formação de professores/as: um


olhar dirigido à literatura educacional. In: SOUZA, Elizeu Clementino de & MIGNOT, Ana
Chrystina Venâncio (Orgs.) [et al.]. Histórias de vida e formação de professores. Rio de
Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008.
CHARTIER, Roger. A história da leitura ou a leitura do tempo. Tradução de Cristina
Antunes. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
DELGADO, Lucila de Almeida Neves. História Oral: memória, tempo, identidades. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
HALBAWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.

Entrevista:
SILVA, Lúcia de Fátima. Entrevista realizada em 04/09/2015. Gurinhém/PB.

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PALMARES NO FEMININO: A MULHER NOS MOCAMBOS DE PALMARES (O


QUE DIZ A DOCUMENTAÇÃO E A HISTORIOGRAFIA?)

Maria Carolina C. Barbosa | m_carolina088@hotmail.com

O debate historiográfico vigora fortemente no mundo acadêmico e com o passar do


tempo novas perspectivas de análise foram fortalecendo estudos recentes sobre variadas
temáticas até então pouco exploradas. A política, a economia ou fatores sociológicos
assumiram o papel de
explicação última para os processos históricos, mas hoje a cultura ocupa esse lugar.11
Podemos afirmar que essas mudanças estão atreladas ao surgimento de novas correntes
historiográficas, como a Escola dos Annales, que veio ampliando fontes utilizadas pelo
historiador e rompendo com a visão Rankeana restrita de análise documental para garantia da
neutralidade. Essa expansão gerou novas visões e possibilidades analíticas, no período
colonial a documentação sofria forte influência de interesses dos colonizadores, tornando essa
fonte limitada no sentido de compreender amplamente as conseqüências de determinados
eventos na sociedade como um todo daquele período. Com a utilização de outras fontes é
possível compreender não apenas a visão do dominador, mas como desencadearam
determinados fatores em outros setores da população.
Ao tratar de Palmares sabemos pouco da sua dinâmica interna se basearmos numa
análise exclusivamente documental, esses relatos foram produzidos basicamente pelos
dominantes, uma elite da época, e acabam por refletir ali os seus objetivos, não havendo
preocupação em perceber os acontecimentos e costumes que foram construídos por aquele
grupo de escravos. O maior leque de fontes deu espaço para novas interpretações e
perspectivas, valores e práticas cotidianas de Palmares começaram a ter espaço no
desenvolvimento historiográfico brasileiro, sendo um grande estímulo para formação de uma

11
MOTA, Rodrigo Patto Sá. Culturas Políticas na História: novos estudos. 2 ed. São Paulo. Fino Traço, 2014
(cap. 1, p. 13-14)
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coletividade negra e valorização de suas origens para reafirmação da identidade. Esses


conhecimentos foram importantes para a construção argumentativa ideológica dos
movimentos negros que surgiram na década de 70, utilizando dessa memória como forma de
aproximar seus companheiros a partir de um sentimento comum de pertencimento e luta
social. A presença das mulheres palmarinas nessa documentação é escassa, mas antes de
projetar interpretações equivocadas acerca da sua ausência é importante considerar que os
interesses em descrever o território e estratégias militares e econômicas vigoravam em torno
das relações existentes ali. A menção das negras acaba sendo superficiais, os revoltosos não
tinham destaque em comparação às descrições detalhadas dos mocambos para avaliação de
novas terras rentáveis e estratégias militares de ocupação, sua presença é tida como referência
de ações perversas e de seu destino depois de capturados.
A obra Mocambos de palmares: histórias e fontes (séculos XVI-XIX), organizada por
Flávio Gomes, traz as principais fontes produzidas no período palmarino transcritas, esse
conteúdo foi de grande auxilio para o desenvolvimento as análises apresentadas nessa
pesquisa. O diário da viagem de João Blair ao Palmares, de 1965, é um bom exemplo que
descreve minuciosamente a
trajetória de sua tropa até a região, enfatizando os desafios encontrados pelo caminho e
detalhes da paisagem encontrada. É encontrado um tímido relato das mulheres, mas com
poucos detalhes sobre sua procedência naquela sociedade:

“A 22 do dito, pela manhã, saiu novamente um sargento com vinte homens a bater o
mato, mas apenas conseguiram pegar uma negra coxa de nome Lúcreia,
pertencente ao capitão Líj, que ali deixamos ficar, porquanto ela não podia andar e
nos não podíamos conduzi-la, já tendo muita gente estropiada que era mister fazer
carregar; enchemos nossos bornais com alguma farinha seca e feijões, a fim de
voltarmos para casa”

Mas, mesmo que pouco avaliada o cotidiano e funções dessas mulheres, é possível
traçar possibilidades desse conhecimento se avaliando comparativamente com outras fontes.
Há relatos sobre frequentes invasões e furtos contra lavradores do período, fruto da
necessidade de manter o sustento dos quilombos. Iam à busca de mantimentos, armas e
mulheres. Ao avaliarmos a bibliografia é perceptível o difícil acesso até Palmares, as florestas

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eram abundantes e os caminhos tortuosos, dificultando principalmente o acesso de mulheres12,


justificando a necessidade buscá-las como forma de garantir a reprodução daquela população,
além de preencher outras funções que ocupavam. A poligamia se tornou uma prática
recorrente em Palmares, o próprio Ganga Zumba possuía três mulheres.13
As mulheres que ali chegavam começaram por ocupar funções variadas. Já nas
senzalas praticavam seu tradicional ofício de passar para gerações futuras os valores e práticas
da sua cultura e religiosidade, no período colonial isso acabava se tornando uma forma de
resistência que foi perpetuado em Palmares como forma de reafirmação das origens que
humanizaria novamente a comunidade negra e os daria a força necessária para resistir em
favor da sua liberdade. Se analisarmos algumas documentações do período acaba mostrando a
existência de um extenso contingente de santuários representando religiões diferenciadas,
avaliar suas práticas rituais e a participação das mulheres nesse contexto seria uma forma de
traçar algumas das suas funções na dinâmica daquela comunidade. Por exemplo, a mulher era
bem presente na realização de rituais e consulta do oráculo, sendo a religião de suma
importância é provável sua influência nas muitas considerações das tropas que usavam dos
conhecimentos nas suas investidas. Eram fiéis a essas consultas e seus resultados auxiliavam
em traçar estratégias militares em um período de constantes conflitos que seguiu na existência
palmarina.
A partir de uma comparação com africanos, havendo a possivel presença de um
conselho
formado com os líderes de cada um dos mocambos que se reuniriam em certos momentos
para discutir algumas decisões importantes para o desenvolvimento de Palmares, é provável a
presença de lideranças femininas. Numa documentação relatando a expedição de Fernão
Carrilho há uma passagem sobre um mocambo denominado de Aqualtune, nome da possível
liderança do mesmo e, devido ao seu cargo, teria sido uma mulher participante nas principais
decisões políticas palmarinas.
A construção de principais quilombos passou por um forte desenvolvimento
econômico, iniciando uma agricultura de subsistência com vasto volume de excedentes,

12
“A guerra dos escravos”, do autor Décio Freitas.
13
“Rebeliões da Senzala”, de Clóvis Moura, afirmação vigorante a partir de autores como Edson Carneiro.
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utilizados em trocas comerciais clandestinas, e um crescimento de manufaturados nos


quilombos.14 Esse comércio acabou por se desenvolver rapidamente, negociando com
vizinhos que acabavam por protegê-los, trazendo insatisfação para a elite da época. Produzia
farinha de mandioca, vinho de palma, manteiga, além a produção de manufaturados, sendo
uma grande fonte de lucro. Essa mão-de-obra era formada por ambos os gêneros,
preferencialmente ocupando antigos ofícios que já foram praticados nas terras dos senhores.
Muitas tradições míticas ainda acompanham estudos acadêmicos, refletindo uma
visão restrita sobre conceitos de ‘senso comum’ que acabam por ocultar determinadas visões
essenciais para o reconhecimento do desenvolvimento de determinados acontecimentos. Um
dos maiores mitos que acompanham a história do Brasil é o da democracia racial, sendo
lembrada a obra de Gilberto Freyre marcante para a perpetuação desse pensamento com a
representação da relação de senhor e escravo como companheirismo. Esse conceito cria uma
falsa ilusão de igualdade racial, ocultando o forte preconceito que vigora ainda no Brasil e
atinge diretamente o cotidiano da comunidade negra. A compreensão de valores, costumes e
práticas podem trazer esclarecimento sobre acontecimentos históricos daquele período,
influenciando discursos de resistência do movimento de identidade negra.
É lógica que fatores externos influenciaram nesse forte discurso da atualidade, toda
negação da cultura de origem negra construiu uma ideia marginalizada e destrutiva desses
valores e, aos poucos, a identidade desse povo foi esvaindo. A abolição da escravatura, por
exemplo, não foi um grande símbolo afirmativo de ascensão, foi lenta e sem a participação
efetiva dos escravos, foram libertos de forma espontânea e sem condições básicas de
sobrevivência. Esse rompimento teve suas conquistas, é claro, mas a mentalidade da
população não havia mudado o negro ainda era considerado inferior e a ausência de recursos
básicos para esses alforriados agravou ainda mais sua
imagem de marginalizados. Essa herança se agravou ainda mais no período da primeira
república, por exemplo, o país passou por “limpeza” e “modernização”, ocorrendo mudanças
em setores como saúde e urbanismo, acompanhados por uma extrema valorização do que é
estrangeiro e desqualificando o que era daqui, incluindo as manifestações africanas. Esse fator

14
Mais informações sobre relações econômicas nos quilombos na obra “A hidra e os pântanos: mocambos,
quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII – XIX)”, de Flávio Gomes.
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fortaleceu com ascensão capitalista foi responsável por esse sistema de homogeneizar a
cultural global como forma de abranger seus interesses e, dessa forma, acabou por
desqualificar as particularidades de cada uma dessas culturas, assim que os costumes
eurocêntricos vigoraram por cima dos originários africanos do Brasil. Se tratando da
representação da própria mulher não foi diferente, essa negação de sua identidade negra foi
extinta e foram impostas a valorizar e aderir a ‘respeitosa’ imagem européia com a esperança
de sentir-se incluída naquele ambiente. Uma tradicional ideologia colonial já perpetuou uma
visão degenerada da mulher negra, como promíscua e inferiorizada. O resgate dessa memória
negra não deve ser esquecido, manter ativa é a forma de conscientizar a população dos males
de nossa herança histórica e estimular o sentimento de injustiça para crescimento da união
pela mudança.
A análise da bibliografia básica de Palmares foi um dos processos utilizados nesse
trabalho, avaliando como foram importantes para o processo de formação da historiografia
Palmarina e em que contexto social estava inserido, a avaliação de obras como a de Décio
Freitas, Edson Carneiro e Clóvis Moura tiveram olhares interpretativos diferenciados,
comparar alguns desses autores e seus contextos de construção foram uma forma de interligar
essas opiniões e formar teorias de como esses conhecimentos foram passados e influenciaram
nos estudos acadêmicos atuais e também na sociedade, principalmente na comunidade negra.
Ao identificar o conteúdo das obras percebemos suas semelhanças, sem nem avaliarmos o
contexto em que foram produzidas já fica nítido um viés desmistificador documental da
negatividade acerca da rebelião de Palmares. Ao contrário, utilizam da documentação para
construir a própria sociedade Palmarina, descrevendo o ambiente e sua organização como
uma afirmação de contra cultura e resistência em busca da sua liberdade, e não apenas relatar
interesses entre as principais investidas no local. O objetivo é dar contexto que o ideal de
resistência contra o sistema escravista, visto em Palmares, foi algo continuo na trajetória
negra e, dessa forma, destacando seu posicionamento de luta. Essa lógica é destaque em obras
como a de Edson Carneiro15, por exemplo, que as fontes coloniais são usadas para avaliar os
acontecimentos do período e, a partir dali, tentar dar voz também ao oprimido, no

15
CARNEIRO, Edson. O quilombo dos Palmares. 4 ed. fac-similar. São Paulo: Editora Nacional, 1988.

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caso aos escravos de Palmares. Há um grande destaque da luta armada com a função atuante
de subsistir contra o sistema escravista de desumanização, mas outras atitudes cotidianas mais
pacifistas do mundo colonial, onde havia negociações e manipulações dos negros em relação
aos colonos, acabou por se tornar também uma forma de sobrepor suas vontades e resistir,
tendo como ponto de vista os estudos de João José Reis16, as escravas, por exemplo, poderiam
ameaçar seus senhores de não trabalhar e de infanticídio se vendesse seus maridos e filhos,
tendo certo controle de exigência. Elas conseguiam então, desde as senzalas, certo controle
sobre seu destino.
A abordagem de valorização da luta e da reafirmação de valores dos negros
palmarinos foram apresentados nessas obras em momentos particulares da história, ao analisar
um contexto político e social do período poderíamos entender certas ideologias levantadas
podem ter influenciado no meio vigente. Edson Carneiro foi um intelectual que fortemente
envolvido na frente contra o Estado Novo, sua obra “O quilombo dos Palmares” surgiu na
década de 70, coagiu com o mesmo período dos levantes de movimentos negros brasileiros,
lutavam para efetivação de uma ação afirmativa que auxiliaria no avanço das políticas
públicas e, obras como essa, poderiam reconstruir a história negra não conhecida,
influenciando manifestações de conscientização da população para as necessidades de espaço
e direitos da comunidade negra, deixando nítida a realidade de desigualdade racial e ela
influencia o cotidiano brasileiro. Mas, doravante ao crescimento do movimento com o
surgimento de sindicatos e instituições (muitas com nomes históricos referenciando sua
origem negra, como a instituição Palmares ou o Geledés), começaram a criação de grupos
específicos, segmentos que tratariam de necessidades específicas a partir das conveniências. O
movimento feminista negro então surgiu, buscando direitos próprios muitas vezes esquecidos
por quem deveria representá-los, o movimento negro e o movimento feminista.
Ao construir um novo segmento no meio dessas duas lutas, a racial e de gênero, o
movimento feminista negro acabou por formar uma nova identidade política porta voz dos
interesses dessa parte da população, as mulheres negras. Para isso a reconstrução de valores e
costumes para afirmação da sua identidade a partir de estudos históricos também é valorizado,

16
SILVA, Eduardo; REIS, João J. . Negociação e Conflito: a Resistência Negra no Brasil Escravista. 3. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009
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trazendo de volta personagens de mulheres fortes da sua história e inspirando as atuais com
modelos dignas de admiração com sua resistência e coragem. Seria nesse momento que
nomes como Dandara e Acotirene surgiam, a obra de Décio Freitas acabou por estimular essas
representações no período de 70 onde estava se construindo uma identidade feminina e
necessitavam de um sentimento de pertencimento e bravura histórica para refletir suas
bandeiras de luta, seriam a identificação e orgulho em comum que ligariam as mulheres desse
movimento.
A bibliografia, a partir de dados documentais, esforçou-se para traçar uma variação
de acontecimentos e compreender como foi formado aquele meio de resistência. A menção da
mulher em obras desse tipo ainda era escassa no período, encontrar então a presença feminina
acaba sendo significativa como afirmação de uma ideologia de negra atuante e transformadora
da sua história. Critérios como análise documental e comparação de um rol de fontes, já
citado anteriormente, são chaves para criar lógicos comportamentais desse gênero no
ambiente palmarino. Os estudos como o da publicação “Gogó de Emas: a participação das
mulheres na história de Alagoas”17 tem como objetivo dar destaque para essas mulheres na
formação histórica de Alagoas, fugindo de hierarquização racial e de gêneros. Há um
momento onde é tratada a trajetória das mulheres palmarinas, comentando da dificuldade de
traçar esse conhecimento devido os desafios propostos pela documentação e antiga
historiografia que muito negligenciou essa presença, mas que foi possível a partir de análises
documentais minuciosas e perspectivas diferenciadas, se utilizando de exemplos de costumes
exteriores como forma de auxiliar a formação dessas hipóteses. As mulheres negras foram
conhecidas nas sociedades africanas por sua força e poder espiritual, ativas e essenciais em
práticas religiosas e conservação de sua cultura. Tradicionalmente, a mulher tinha a função de
passar para gerações futuras os valores e práticas da sua cultura e religiosidade, no período
colonial isso acabava se tornando uma forma de resistência à opressão, perpetuado em
Palmares como forma de reafirmação das origens que humanizaria novamente a comunidade
negra e os daria a força necessária para resistir em favor da sua liberdade. Mas não apenas na

17
SCHUMAHER, Schuma. Gogó de Emas: a participação das mulheres na história do Estado do Alagoas. Rio
de Janeiro: REDEH, 2004.

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simbologia de pertencimento e união esses valores atingiram, a religiosidade africana passou


por diversas influências tendo contado com outras religiões como as de raiz indígena e
católica. A Jurema, por exemplo, carregam fortes características indígenas como o trato com
ervas e outras mais. Se analisarmos algumas das religiões de influência afro-descendente pode
perceber a constante presença do sexo feminino, muitas das entidades e orixás são
representações de mulheres, a pomba gira, Oxum, Iemanjá, Obá, cada uma com suas
qualidades e propriedades especificas. Qualidades essas que futuramente reafirmaram a
identidade feminina negra já que se tornaram modelos de
representação.18
Essa influência religiosa acaba por estender em outros setores daquela sociedade e,
pelo papel ativo da mulher nesses rituais, acaba se tornando atuante em funções de
importantes. A consulta de oráculos, por exemplo, era realizado por mulheres e essas
informações eram de fé significativa na hora de traçar estratégias militares. Como estavam
reconstruindo ali sua comunidade, preocuparam-se em fincar raízes não só culturais, mas
também erguer uma economia de subsistência que garantiria seu sustento e, no futuro, o
surgimento de relações comerciais lucrativas com seus excedentes. Muitos desses escravos
tinham experiência de produção dos engenhos e do território africano, alguns já tinham
estabelecido em mocambos de lá e por isso trouxeram muitas idéias organizacionais
semelhantes. Acabavam por ocupar antigos ofícios já aperfeiçoados no meio do sistema
escravista, as mulheres, por exemplo, realizavam diversas atividades manufatureiras, muitas
já com conhecimento de fiação e costura, além de auxiliarem na agricultura e no fabrico da
farinha. Essa produção comercial se tornou importante no próprio contexto da guerra,
desenvolvimento de manufaturas como a cerâmica, garantiu as trocas necessárias feitas com
vizinhos, incluíam armamentos e pólvora que eram de grande ajuda nas batalhas. Ajudando
nessa produção eram então personagens significativos para o desenvolvimento social, político
e econômico dos mocambos. Ao procurar comportamentos realizados em outros mocambos

18
“Mulheres Negras: um olhar sobre as lutas sociais e as políticas públicas no Brasil” foi uma publicação
organizada por Jurema Werneck com o objetivo de refletir as mulheres negras e sua luta atual. No capítulo
“Nossos passos vêm de longe! Movimento de Mulheres Negras e Estratégias Políticas contra o Sexismo e o
Racismo.”, escrito por Werneck, exemplifica entidades femininas da tradição ioruba como modelos fortes de
reafirmação da identidade da mulher negra e sua luta contra a opressão dos seus valores originais.
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19
nos deparamos uma estratégia de evacuação das mulheres Saramaka que foi copiado em
Palmares, no período de batalhas eram verdadeiras destruições, a mulher poderia então fugir
do caos carregando consigo o máximo de grãos possível em sua cabeça e fugiam para o meio
da floresta, seria a partir disso que poderiam reestruturar sua economia em outras paragens.
Mas não apenas esses casos dão destaque para a posição atuante da mulher em Palmares, a
bibliografia clássica acabou por arrecadar uma vasta documentação que pode deduzir uma
possível participação da mulher em contexto político direto. Anteriormente abordei o caso do
mocambo Aqualtune, mãe do rei de Palmares, e de Acotirene como uma das primeiras
lideranças palmarinas, mas outros nomes como o de Dandara começaram a ocupar lugar
nesses estudos ligados à liderança feminina. Essas personagens poderiam ter sido vastas
construídas tanto no processo histórico, como na memória ou na simbologia contemporânea
dos movimentos sociais.20 Mas o foco do meu projeto, não é entrar em um debate profundo
sobre a realidade das suas existências, mas entender como sua construção pode ter surgido e
seu papel influente nas principais manifestações de reafirmação da identidade da mulher
negra.
A história e o resgate da memória dos reprimidos foi um avanço para garantir os
interesses dessas classes que por muito tempo permaneceram caladas, por causa dessa
ausência perpetuaram diversos mitos ao longo da historiografia brasileira e algumas dessas
mentalidades ainda são fortemente presentes na atualidade. Os estudos acadêmicos por muito
tempo refletiu posicionamento social de hierarquização racial e de gênero, deixando a mulher
negra em baixo nível de significação, mas acabar se prendendo a preconceitos gerados pelo
senso comum faz com que certas análises sejam fechadas a alguns acontecimentos relevantes
para formação de uma identidade propriamente brasileira não tenham a consideração
necessária. A cultura nacional desvalorizou o papel da mulher negra de muitas formas, desde
o período colonial ela tem uma imagem de vulgarização e marginalização, não tendo suas
opiniões destacadas perante as discussões de cunho nacional.
Rodrigo Patto defende que o Brasil tem uma cultura política conciliatório, onde

19
Um dos seis povos marrons (anteriormente chamado de “negros do mato”) na República do Suriname e um
dos povos marrons na Guiana Francesa.
20
Publicação “Gogó de Emas: a participação das mulheres na história do estado de Alagoas” (p. 29)
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grandes mudanças políticas, sociais e econômicas ocorreram de forma pacífica e, na maior


parte, sem grande envolvimento popular, não havendo uma construção da cidadania21 que
contribuiria para um maior envolvimento da massa na busca de direitos e na atuação nas
importantes mudanças sociais e políticas. Ao resgatarmos alguns desses eventos poderemos
ver que algumas dessas medidas acabaram deixando um sentimento inconclusivo em certas
questões históricas e que essa herança ainda vigora em ações cotidianas, se atendo ao caso das
políticas negras vemos como esses ideais dificultam a reafirmação social e política dessa
porcentagem da população. A construção de uma história negra foi significativa com o
surgimento dos movimentos negros dos anos 70, seria uma forma de unir a comunidade negra
em busca de direitos formados por ideais em comum, passeatas debates palestras e outras
formas de manifestação fizeram parte desse processo de conscientização da sociedade para
este problema e da busca de um maior espaço do negro na sociedade brasileira22, esse
processo trouxe a tona a desmistificação de uma igualdade racial, mas em questão de
iniciativas políticas foram poucas as iniciativas realmente implantadas. Nos anos 90 o
interesse pro ações para surgimento de políticas públicas foi incentivado como forma de
garantir espaço na sociedade e preencher as necessidades defendidas pelo movimento, era
preciso o reconhecimento do Estado das causas a partir leis para poderem cobrar deveres e,
nessa lógica, surgiu forte a busca de políticas públicas governamentais ou não. A partir do
momento que medidas inclusivas tomam espaço na lei há uma seriedade ao tratar da
população negra.
As mulheres começaram a ter destaque nos movimentos políticos negros, sua
herança discriminatória fez com que por muito tempo não fossem consideradas nem nos
próprios movimentos que as deveriam defender. Estudos e influências políticas estimularam o
crescimento constante do movimento feminista negro, no período dos anos 70, surgiram como
um grupo com o objetivo de construir uma ideologia afirmativa identitária e mover uma
conscientização acerca dos direitos da mulher negra e garantir um posicionamento de luta por
direitos e igualdade social e política. Os movimentos políticos permanecem e crescem a partir

21
“Historiografia, trabalho e cidadania no Brasil”, publicação de Alexandre Fortes e Antonio Luigi Negro
22
“O MOVIMENTO NEGRO E A QUESTÃO DA AÇÃO AFIRMATIVA”, de Marcia Contins e Luiz Carlos
Sant’ana (p.215)

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do sentido de união e luta, é necessário que haja um ideal comum e um sentimento de


pertencimento que os façam se reconhecer como grupo social e fortaleçam seus objetivos em
busca de mudanças.
Para o desenvolvimento de medidas transformadoras na realidade das mulheres
negras é necessário levar em consideração a sua trajetória e suas necessidades, fazer com que
ideais em comum disseminem no pensamento dessas mulheres que com um cotidiano
formado de dificuldades e jornadas de trabalho exaustivas acabam não tendo proximidade
com a militância e nem idéias desses movimentos. Para lutar por algo é preciso,
primeiramente, acreditar naquilo, por isso a importância do reconhecimento e da construção
de uma identidade. Essa construção poderá trazer um sentimento de pertencimento e união a
partir do momento que surgir um reconhecimento de marcas culturais entre essas mulheres,
resgatar a memória de desumanização da cultura e dos costumes negros ajuda a conscientizar
sobre o preconceito embutido nos aspectos sociais e também a valorizar o orgulho das suas
origens que um dia foi perdido. A sociedade capitalista passou por diversas mudanças, o
processo de globalização tinha como interesse incitar uma hegemonia cultural para simplificar
a disseminação de produtos no mercado cultural.
O período pós-república foi um grande disseminador da imagem hiper valorizada da
cultura eurocêntrica defendida pelo sistema e, consequentemente, houve uma grande
desvalorização da cultura africana no Brasil. Por muito tempo a imagem do ideal europeu foi
estimulada, fosse uma por estética ou cópia do meio de vida considerado ‘padrões a serem
seguidos’. Esse posicionamento, juntamente com toda a herança discriminatória da mulher
negra vinda desde o período colonial, fez com que aos poucos a identificação com a cultura
negra fosse difamada e fizesse com que essas mulheres negassem suas origens e procurassem
o ideal imposto de ‘perfeição’. Mas sempre nasce alguém que questiona o presente, ser um
contemporâneo é ir contra o seu tempo, conseguindo se desligar do meio que vive e, dessa
forma, consegue se crítico desses males presentes e pode ser um agente de mudanças. Militar
a favor das feministas negras acaba vai contra os ideais impostos por uma sociedade patriarcal
e eurocêntrica, enxergar seus direitos e necessidades e achar justo essas conquistas em favor
da igualdade racial e de gênero. Primeiramente é importante restabelecer um orgulho de
identidade com o objetivo de conscientizar essas mulheres de quem são e que podem
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conquistar o que quiserem, por muito tempo o ‘ser negra’ foi desvalorizado com sua herança
de desumanização e vulgarização, uma mulher objeto e inferiorizada aos padrões sociais.
Estes efeitos se manifestam em sequelas emocionais com danos à saúde mental, rebaixamento
da auto-estima, expectativa de vida menor, menor índice de nupcialidade e, sobretudo, no
confinamento nas ocupações de menor prestígio e remuneração.23
Para a mulher negra sua luta não é apenas contra a hegemonia masculina, mas
também enfrentam as dificuldades geradas pelo racismo. Para a construção de um ideal de
luta é necessário levar em consideração que cada grupo tem seu cotidiano e condições
históricas diferenciadas, não há como generalizar objetivos já que cada um passa por
experiências e meios de vida diversificados que influenciam diretamente na sua matriz
identitária no que se refere às percepções se si e de seu lugar na sociedade.24 Por acabar não
levando em consideração toda a condição histórica negra e o cotidiano diferenciado dessas
mulheres, perpetua a opressão e hierarquização de gêneros a partir da raça nas próprias
manifestações que buscam direitos de igualdade, já que não há lugar para interesses
particulares dessas negras.
O surgimento de um movimento que objetaria e entenderia as causas particulares
dessas mulheres negras se instituía e ganharia credibilidade com avanço de medidas de
conscientização e da conquista de políticas públicas. A partir do momento que se
concentrariam em interesses próprios debateriam assuntos presentes, surgindo reflexões
significativas acerca de questões como a violência racial, a falta de credibilidade com doenças
comuns entre a população negra ou a desigualdade na seleção do mercado de trabalho se
relacionado com fatores étnico-raciais. Anteriormente, temáticas desse tipo não tinham espaço
para serem discutidas, mas a maior abertura
de temas do tipo em contexto acadêmico e político trouxeram oportunidade para a expansão
de debates, a criação de instituições e de programas voltados para questões próprias das
mulheres negras. A década de 90 teve um viés ativo no desenvolvimento de políticas públicas,
nesse período a ONU convocou conferências mundiais que possibilitaram abrir visões e tratar

23
Castro, 2006
24
WERNECK, Jurema (Org.). Mulheres Negras: um Olhar sobre as Lutas Sociais e as Políticas Públicas no
Brasil. Rio de Janeiro: Grupo Criola, 2008. (cap. “Jovens negras: ressignificando pertencimentos, construindo
práticas” das autoras Julia Zanetti e Mônica Sacramento) (p.26)
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da problemática racial em nível nacional e internacional, esse tipo de abertura foi essencial
para trazer a tona antigos males sociais e buscar soluções, as mulheres tiveram muitos
avanços significativos em relação aos seus direitos e relações de igualdade.25
Essa abertura política possibilitou o desenvolvimento de medidas inclusivas da
população negra em diversos setores da sociedade (o sistema de cotas, por exemplo) que,
havendo críticas ou não, são inegáveis pelo menos para o destaque dado as discussões
referentes à problemática racial. O reconhecimento de programas e medidas a favor das
necessidades negras, como na área de saúde e educação que por muito tempo permaneceram
desfalcadas, deu crédito para a luta desse movimento que aos poucos busca o seu lugar na
sociedade atual. Mais do que por uma questão de estética, restabelecer a memória do passado
da mulher traria a lembrança da trajetória opressiva por que passaram, tendo sua identidade
desqualificada e isso possibilitaria a conscientização com a lembrança constante desses males
que influenciam a presente desigualdade social. Para essas medidas de políticas públicas
prevalecerem é necessário uma afirmação do poderio feminino, trazer para essas negras a
confiança necessária para seguirem lutando, acreditarem que unidas podem vencer. Ir contra o
sistema eurocêntrico e patriarcalista que por muito tempo influenciou seus valores é uma
barreira que teve que ser enfrentada, mas restabelecer exemplos passados de personagens
astutas e corajosas que foram atuantes em ações políticas, organizacionais e militares para
fortalecimento da resistência negra foi marcante para encorajar a bravura dessas atuais
militantes.
Para o encorajamento dessas forças militantes representações de mulheres fortes
como Dandara e Acotirene, lideranças femininas no período palmarina, eram o simbolo que
necessitavam para os discursos de resistência. Sua presença ainda é constante e essas
personagens trazem orgulho pra mulher negra de hoje. Devido à herança discriminatória
vinculada a imagem da mulher negra os estudos referentes aos quilombos ainda negligenciam
sua importância na dinâmica interna nessas comunidades de refugiados, excluindo sua
participação na história da política brasileira como uma estratégia de manter essas classes

25
Para alguns exemplos de conferências e dos avanços realizados pelas mulheres negras nessas oportunidades, o
artigo de Sueli Carneiro, “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma
perspectiva de gênero”, destaca brevemente algumas, como a de Beijing, e como foi a participação dessas
mulheres.
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numa posição de subordinação, mas na medida em que há um


aumento nos interesses acerca dessa temática, seja pela pressão social ou pela maior presença
dessas mulheres na academia, a apresentação desses costumes e valores são cada vez mais
presentes para reafirmar o lugar da mulher negra na história. Por isso a importância dos
estudos históricos para restabelece o lugar das mulheres na sociedade, as mulheres de
Palmares seriam uma inspiração, um símbolo de resistência que as manteriam unidas e fortes.
Desse modo é nítida a razão de essas mulheres reviverem essas personagens em seu cotidiano,
denominando instituições e crianças, para elas são heroínas e são retratadas como forma de
reconhecimento e orgulho.
Nem todas as mulheres negras têm um acesso essas informações e nem ouvem falar
dessas personagens, por muitas vezes seu cotidiano difícil em busca de sustento as
impossibilitam de manter contato com esses ideais de luta, muitas acabam desistindo dos
estudos devido às longas jornadas de trabalho. O sistema educacional brasileiro também tem
muitas falhas em sua didática se tratando de discussão acerca de questões raciais e de gênero,
ainda são limitadas por uma visão patriarcal e eurocêntrica que reflete diretamente no
conteúdo escolar. Um espaço voltado para possibilidades de inclusão e construção de
identidade acaba se tornando apenas mais um artifício para a disseminação de idéias fictícias
de democracia enquanto cada vez auxiliam no desenvolvimento hierarquização social. Tratar
de uma história propriamente negra nos conteúdos escolares, valorizando suas origens e
costumes, pode ser uma forma de gradativamente extinguir a degenerada imagem retratando a
mulher negra e, dessa forma, levar reconhecimento positivo da identidade negra para essas
jovens que podem se estimular a permanecer na vida educacional que a proporcionou o
espaço necessário para ir em busca de experiências que as proporcionem sucesso e prestígio
social, sendo mais um caminho para a expansão de idéias de igualdade social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARNEIRO, Edson. O quilombo dos Palmares. 4 ed. fac-similar. São Paulo: Editora
Nacional, 1988.
FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. 4 ed. São Paulo: Editora Graal, 1982
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GOMES, Flávio (Org.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séculos XVI-XIX). Rio
de Janeiro: Editora 7letras, 2010
GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades
de fugitivos no Brasil (Séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP: Ed. Polis, 2005.
MOURA, Clovis. Rebeliões da senzala. 1 ed. São Paulo: Editora Zumbi, 1959.
PINTO, Regina Pahim. Movimento negro e educação do negro: uma ênfase na identidade.
Cad. Pesq. São Paulo. N.86. p 25-38. Agosto, 1993.
SCHUMAHER, Schuma. Gogó de Emas: a participação das mulheres na história do Estado
do Alagoas. Rio de Janeiro: REDEH, 2004.
SILVA, Eduardo; REIS, João J. . Negociação e Conflito: a Resistência Negra no Brasil
Escravista. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009
WERNECK, Jurema (Org.). Mulheres Negras: um Olhar sobre as Lutas Sociais e as
Políticas Públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Grupo Criola, 2008.

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NATURALIZAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS(AS) DOCENTES NO


MUNICÍPIO DE GOIÂNIA

Flávia Rodrigues Alves de Freitas | flaviarodal@hotmail.com


Lúcia Helena Rincón Afonso

INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresenta alguns resultados de investigação de pesquisa de


mestrado, realizada com docentes da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia (SME),
que objetivou investigar a formação e a valorização dos(as) professores(as) do município. No
recorte aqui feito para este artigo, apresenta-se a naturalização das representações sociais da
profissão docente percebida pelos(as) professores(as). A fundamentação que direcionou a
pesquisa foi a perspectiva do materialismo histórico e dialético de Marx e Engels, por se tratar
da observação da realidade como ela é, objetiva, como se apresenta no social e também no
pensamento. Adotou-se o enfoque qualitativo, entendendo que há um significado subjetivo e
intersubjetivo na ação humana, ou seja, o que é individual também se refere a regras e normas
de crenças coletivamente compartilhadas por um grupo social e que se constroem nos
processos interativos de uma realidade particular na sua complexidade. Aplicou-se
questionários aos professores do município de Goiânia com 67 perguntas, contendo questões
fechadas e questões abertas, concernentes à realidade dos(as) respondentes, relacionada aos
dados pessoais, aspectos econômicos, sociais, familiares e profissionais. Constituiu-se como
lócus da pesquisa seis escolas da Rede Municipal de Educação de Goiânia (RME). Para a
realização das análises e o direcionamento da pesquisa foram utilizados como referenciais
teóricos Bruno (1996), Enguita (1989), Louro (1997, 2003), Rincón (2005), Saffioti (2000),
dentre outros. Participaram do estudo 74 professores(as) do ensino fundamental público de
Goiânia, sendo 63 mulheres e 11 homens. A seleção dos(as) professores(as) foi aleatória. A

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profissão docente no Brasil ainda é em número maior composta por mulheres, fato que não é
diferente no município de Goiânia. O interesse pela pesquisa se deve a algumas questões
identificadas nas leituras de teóricos que estudam gênero e os dados obtidos nos questionários
aplicados nas escolas. Dentre as questões está a naturalização das representações sociais da
profissão docente e a divisão social do trabalho presentes no município de Goiânia,
evidenciando a vocação, a missão e a profissão docente como mais adequada para as
mulheres.

NATURALIZAÇÃO DAS DIFERENÇAS BIOLÓGICAS E A DIVISÃO SEXUAL DO


TRABALHO

As relações sociais entre indivíduo e natureza, em um processo histórico, são o ponto


de partida para a compreensão do modo de agir e pensar dos seres humanos. Estes, que
produzem ideias ou representações para a compreensão de suas próprias vidas, estão
inseridos, de forma às vezes involuntária, em instituições (como a família, a religião, a escola,
o trabalho) já determinadas (CHAUÍ, 1980). Por esse motivo, muitas vezes, conservar as
crenças transmitidas por essas instituições, é uma forma que os sujeitos encontram de
compreender o mundo que os circunda. Assim, os ideais e as representações já constituídas,
legitimam as condições sociais de dominação e exploração, transparecendo como verdadeiras
e justas. Essa ideologia produzida pelas relações sociais em suas instituições, oculta a
realidade e dificulta a emancipação dos seres humanos. O caminho emancipatório implica a
capacidade de reconstruir conhecimento, e para que isso aconteça, o ser humano deve

[...] alcançar a necessária consciência crítica para compreender sua


situação histórica, e, a partir daí, elaborar o confronto dialético com os
obstáculos, em especial com a exclusão, rumo a uma sociedade de
sujeitos orientada por um projeto de bem–comum (MENEZES, 1996,
p. 271).

As dificuldades para a valorização de uma profissão, principalmente para as


mulheres, podem ser observadas através de suas representações, pois trazem aspectos sociais
que tratam de uma realidade que se situa entre o público e o privado, entre o profissional e o
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doméstico, entre afazeres de homens e afazeres de mulheres. Para compreender esse


fenômeno, é fundamental discuti-lo a partir da problematização das questões de gênero.
O termo gênero começou a ser construído no final da década de 1960, a partir de
questionamentos acerca das desigualdades entre homens e mulheres observadas no meio
social. Construções teóricas com relação ao conceito emergem, então, nos grupos feministas
(LOURO, 1997). Na identificação do gênero, o que é relevante é a maneira que os sexos são
representados socialmente em um determinado contexto histórico-social.

[...] a forma como essas características são representadas ou


valorizadas, aquilo que se diz ou pensa sobre elas que vai constituir,
efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade
e em um dado momento histórico (LOURO, 1997, p. 21).

A construção do que é ser feminino ou masculino é feita a partir de seu meio social,
pois são sujeitos suscetíveis às transformações a partir das relações com o mundo a que
pertencem. O meio social a que pertencem (família, escola, igreja) impõe moldes
comportamentais que acabam sendo absorvidos pela sociedade como naturais e justificados
pela distinção biológica, o que serviu de base para a exploração das mulheres em sociedade.
Mesmo em momentos históricos que oportunizam mais espaços para a presença
pública das mulheres, com mais oportunidades, as diferenças sexuais/biológicas não
deixavam de ser apontadas como barreiras para a emancipação da mulher, como, por
exemplo, a função reprodutiva. Em um mundo patriarcal, a organização social deve ser
mantida, o trabalho produtivo ou remunerado deve ser parcial, para que não sejam
abandonadas as obrigações domésticas.
Historicamente, as contradições sociais, inclusive as de gênero, resultam em
discriminação e opressão em muitos âmbitos da sociedade, inclusive no profissional.
(SAFFIOTI, 2000). Diante desse quadro socialmente imposto, as mulheres não tiveram as
mesmas oportunidades que os homens de se especializarem como profissionais, o que
resultou instabilidade no trabalho e salários baixos. A naturalização das diferenças biológicas
é que cria a divisão sexual do trabalho, colocando homens e mulheres em lados opostos
(NOGUEIRA, 2004). A sociedade é um conjunto formando uma totalidade, não é composta

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por fragmentos (SAFFIOTI, 2000, p. 74), por isso, todas as formas de separação e de
injustiça, ideologicamente sustentadas, carecem de intervenção.

FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO

O número de docentes do sexo feminino no ensino fundamental é significativamente


maior com relação ao sexo masculino. Os dados estatísticos do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas26 (INEP), de 2013, revelam que no Brasil, em um total de 2.148.023
professores/as do ensino básico, apenas 423.370 são homens e 1.724.653 são mulheres (mais
de 80,3%). Os dados confirmam que há “ligações entre o ensino e a história da política dos
sexos” (APPLE, 2002, p. 43), e que a distinção de papéis imposta pela sociedade para homens
e mulheres ainda é representativa nas relações sociais, e que serve de suporte para a divisão
sexual do trabalho (LOURO, 1997).
Com o processo de industrialização no início do século XIX, os homens deixavam a
sala de aula e buscavam outras atividades supostamente mais bem remuneradas, e com isso,
as mulheres passam a assumir o magistério O discurso da sociedade patriarcal para justificar
esse processo de “feminização” da profissão, era que as mulheres tinham por “natureza” a
inclinação para lidar com as crianças, o que seria uma extensão da maternidade, do lar, um ato
mariano, de doação (ENGUITA, 1989).
Esta construção, da representação de professora, serviu como suporte para a
aceitação, da não reivindicação de salários melhores e planos de carreira adequados, uma vez
que além do sentido de “ato de amor”, a mulher deveria considerar a profissão de professora
como transitória, pois a verdadeira carreira feminina deveria ser a de se dedicar ao lar e à
maternidade. Para aquelas que se dedicavam parcialmente ao ensino, o salário era apenas
complementar por não se tratar da provedora do lar, o que, para Enguita (1989), dificultava a
profissionalização da professora.
Reconhecer a lógica das coisas quando já se tornam tradição de uma sociedade não é
tarefa fácil. O processo de “feminização” do magistério nem sempre é reconhecido

26
Sinopses Estatísticas da Educação Básica do Inep de 2013 por sexo. Disponível em:
<http://www.inep.gov.br>. Acesso em: 07 out. 2013.
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socialmente. Por fazer parte do acervo cultural, já foi incorporado às normas sociais, é uma
espécie de lema em que “as coisas são assim porque assim é natural que sejam e sempre serão
assim porque assim foram sempre” (BIANCHETTI, 1996, p. 76).
É no contexto deste discurso que as representações de “professorinha” ideal foram
sendo tecidas, e que identificou as educadoras dos anos de 1950, depois profissionais de
ensino dos anos de 1970, e as trabalhadoras da educação a partir dos movimentos sindicais
posteriormente (LOURO, 2003). Historicamente, a educação está profundamente implicada
na política da cultura, afinal,

[...] a decisão de definir o conhecimento de alguns grupos como digno


de ser transmitido às gerações futuras, enquanto a história e a cultura
de outros grupos mal veem a luz do dia, revela algo extremamente
importante acerca de quem detém o poder da sociedade (APPLE,
2002, p. 42).

Rincón (2005) analisa que há representações de imagens de papéis tradicionalmente


destinados a homens e mulheres em todos os âmbitos da sociedade, não sendo diferente na
profissão de professores/as, o que permite observar a relevância de atentar para o fato de que
as questões de gênero são constitutivas da realidade social. E foi nesta perspectiva que alguns
dados foram analisados para a análise apresentada a seguir, sobre as representações dos/as
docentes referentes a gênero.

REPRESENTAÇÕES DE UMA PROFISSÃO

Procurou-se entender melhor o professorado, os significados de uma realidade


particular em sua complexidade, realidade esta compartilhada no grupo social do município e
construída nos processos de interação. Interessou à pesquisa perceber as concepções do grupo
de professores/as que influenciam a formação de opiniões, e tentar descortinar o quadro a que
estão submetidos/as no que diz respeito a identidade de gênero, a partir da naturalização das
representações sociais da profissão docente.
Dos 74 respondentes, a maioria trabalha na Rede Municipal de Ensino (RME) por
mais de 10 anos, professores/as de uma ou duas instituições de ensino, com jornada dupla de
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trabalho, e a grande maioria dos/as respondentes está na Educação Fundamental da Infância e


Adolescência. Assim, ao analisar os dados coletados, percebeu-se que a maioria dos
respondentes estava com idade acima dos quarenta anos (quase 70%), 46 se consideram
brancos(as); 14 afrodescendentes; 11 amarelos(as); 02 não responderam e 01 pardo(a).
A maioria dos/das professores/as é do estado de Goiás e com parcela bem
significativa de mulheres:
Gráfico 1 – Respondentes por sexo

Sexo
0 0 Femini no

11
Masculino

Não
63 resp ondeu

Fonte: Elaboração para este estudo baseado nos dados dos questionários

Comparando-se os resultados do perfil entre o professorado de Goiânia com o do


território nacional, os dados se revelam equivalentes. Mostra a Sinopse Estatística da
Educação Básica do Inep27 de 2013 por sexo, que de um total de 2.148.023 docentes,
1.724.653 (mais de 80%) são mulheres, enquanto 423.370 são homens. Em território goiano,
esta proporção não é diferente. De um total de 59.631 docentes, 49.779 (também mais de
80%) são mulheres e 9.852, homens. A sinopse de 2013 confirma que a profissão docente
ainda é mais ocupada por mulheres.
É comum escutar que para ensinar deve-se ter dom, paciência e cuidado com os
alunos, e o “dom” de cuidar normalmente vem associado às atribuições das mulheres, que são
consideradas mais “jeitosas” com as crianças. Essas atribuições ditas femininas é que são
referenciadas na divisão sexual e social do trabalho, e que naturalizam a profissão de
professora, como sendo mais ideal para mulheres. O que acontece, com isso, no entendimento

27
Disponível em: <http://www.publicacoes.inep.gov.br/web/guest/basica–censo–escolar–sinopse–sinopse>.
Acesso em: 30 jun. 2014
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de Rincón (2005), é uma contribuição para com a naturalização da existente construção social
das representações. Como faz parte dessa naturalização o não reconhecimento do trabalho
como tal, no espaço doméstico, e a desvalorização do trabalho da mulher com ele
identificado, no espaço público, consequentemente, acontece à desvalorização do magistério,
por ser tratado como um trabalho feminino. Somente com a desnaturalização das
representações sociais pode-se desfazer a divisão sexual do trabalho, caso contrário, as
docentes “continuarão exploradas como profissionais, vivendo como cidadãs de segunda
categoria e reproduzindo as mesmas relações sociais de gênero sustentadas por essas relações
[...]” (RINCÓN, 2005, p. 193).
Os questionários revelaram em algumas falas28 das professoras, que há uma
naturalização nas representações sociais por parte das respondentes. Quando perguntadas qual
a motivação para o exercício da profissão, algumas responderam que:

[...] é a minha missão buscar caminhos significativos para o ser


humano (professora da área de Pedagogia e mestre em Educação).
[...] Foi a profissão que escolhi por vocação, amor (professora da área
de Letras e especialista em Memória, Cultura e Linguagem).
[...] Poder conciliar com filhos, por ser meio período e gostar de
crianças (professora da área de Educação Artística e especialista em
Educação Especial).

Este fenômeno se dá pela compreensão de que as mulheres desempenham “melhor”


alguns papéis, como o papel de educadora. A distinção biológica serve aqui de suporte para a
divisão sexual do trabalho (LOURO, 1997). A profissão foi considerada pelas respondentes
como mais “adequada” para as mulheres, motivo pelo qual são as mulheres as responsáveis
pelos filhos e pelo lar, assim, com um trabalho entendido como de meio período, elas
conseguem, sem questionar, manter o papel a elas reservado pela sociedade.
Procurando perceber a afinidade dos/as professores/as com a carreira docente, foi
perguntado aos respondentes se eles(as) gostavam de sua profissão. O resultado foi que 53
respondentes disseram que sim; 02 não gostam da profissão; 17 gostam em alguns aspectos;
01 já gostou no passado e 01 não respondeu. Alguns(mas) respondentes que afirmaram que

28
Optou-se em destacar as falas dos/as docentes usando itálico, com o intuito de diferenciá-las do restante do
texto.
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não gostam da profissão ou gostam em alguns aspectos, justificaram, em sua maioria, a falta
de reconhecimento social, como o baixo salário e a desvalorização da categoria. Estes são os
problemas que mais pesam.
Quando questionados/as sobre o motivo de escolha pela profissão docente,
Gráfico 2 – Motivo de escolha pela profissão docente
Escolha pela profissão docente

31 A vida me levou à profissão


Sempre quis ser professor/a
22 Profissão mais fácil
Não respondeu
48

Fonte: Elaboração para este estudo baseado nos dados dos questionários
Interessante revelar que a maioria dos(as) respondentes que optaram pela resposta “a
vida me levou à profissão”, justificam que a profissão docente facilita a dinâmica do dia a dia
pela flexibilidade de horários. No caso da resposta “profissão mais fácil”, as 03 respondentes
são mulheres. Esse resultado sugere que pela condição de mulher e mãe, como revela pelo
estudo que é a maioria, a profissão facilita os compromissos com a família, conforme justifica
uma das respondentes:

Criei os filhos, agora estou fazendo o que eu sempre sonhei.


(professora especialista graduada em Pedagogia).

Nota-se que a respondente, seguindo a norma “padrão” da sociedade, cumpriu as


“obrigações” destinadas à mulher primeiramente, para depois ter condições de realizar seu
sonho profissional de ser professora, que, notadamente, conforme a pesquisa apresenta, é mais
almejada pelas mulheres. Mostra a pesquisa que os(as) respondentes que sempre quiseram ser
professores/as, 20 são mulheres e 2 homens, o que pode sugerir uma identificação maior das
mulheres com a profissão docente.
Os dados apontam que a docência, como uma profissão considerada mais feminina, é
uma forma de inserção social e de realização numa perspectiva do não privado/doméstico. A

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escola, dessa forma, passa a representar um espaço pertencente ao mundo das mulheres, é o
acesso ao espaço púbico, remunerado, valorizando o papel social vivido por elas na divisão
social do trabalho e na construção de um sujeito social (ENGUITA, 1989).
A fala de duas respondentes com relação a motivação profissional retrata bem essa
valorização do papel social da profissão.

Saber que em algum momento fazemos a diferença, ver o crescimento


de cada educando. (professora especialista em inclusão, com
graduação em Pedagogia)
É a profissão que eu escolhi […]. Estou na educação porque é aqui
que me realizo [...]. (professora com graduação em Pedagogia)

Porém, quando questionados(as) com relação ao status da profissão, os resultados


demonstram que quase 70% consideram muito baixo, ou baixo.
Gráfico 3 – Como os/as docentes consideram o status da profissão
Status da profissão

Muito baixo
3 3 Baixo
27 Regular
18
Alto
Não responderam

23

Fonte: Elaboração para este estudo baseado nos dados dos questionários
Esta questão foi disponibilizada fechada e aberta, ou seja, os docentes poderiam
justificar sua resposta. Pontuam-se aqui algumas justificativas.

Eu me considero importante para a sociedade, sem o professor nada


acontece de verdade. (professora especialista da área de Pedagogia).
A sociedade em geral não valoriza o professor. Não é uma profissão
na qual temos oportunidade de crescer porque o nosso salário não
nos proporciona condições para pagar cursos, viagens que poderiam
possibilitar uma melhor capacitação. (professora especialista da área
de Letras).
De modo geral a sociedade não enxerga o professor como formador
de opinião e como peça chave para a construção do conhecimento.
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Não existe respeito por parte da sociedade e dos governantes. Somos


tratados como a escória da sociedade. (professora especialista da área
de Letras).

Os dados revelam que uma das maiores preocupações do/as docentes é com relação
ao reconhecimento social da profissão docente. Os resultados sugerem que o
reconhecimento/prestígio social dos/as professores/as está intimamente ligado às questões
econômicas que ressignificam a categoria. Os/as professores/as não se sentem valorizados
com os salários que recebem, que não são compatíveis com a formação exigida e nem com as
tarefas que lhes são atribuídas. O rendimento médio do/a docente é muito menor se
comparado com as demais profissões com as mesmas exigências de formação superior, e as
implicações aparecem nas dificuldades de se atrair os estudantes para a carreira docente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se destacar aqui, algumas das representações sociais da profissão docente


manifestas pelos(as) professores(as) da Rede Municipal de Educação de Goiânia (RME).
Considerando a realidade vivida pelos(as) docentes pesquisados e os resultados dos
questionários, algumas considerações podem ser tecidas. A naturalização das representações
sociais da profissão e a divisão social do trabalho são presentes na fala dos(as) respondentes,
evidenciando o lugar comum da vocação, a missão e a profissão docente como mais adequada
para as mulheres. A falta de reconhecimento social também foi percebida na análise dos
dados, em destaque os baixos salários. Percebeu-se, principalmente na fala das professoras,
que há um clamor por reconhecimento social, o que sugere que as áreas mais ocupada por
mulheres, onde há maior precarização do trabalho e dos salários, deveriam ser mais
valorizadas. A dupla jornada de trabalho, o cuidado de familiares, a reprodução e as
responsabilidades domésticas, sem o devido apoio do Estado, são as dificuldades para o
exercício do trabalho em condições de igualdade, assim como a profissionalização.
O que se espera, é ter revelado algumas especificidades das representações sociais da
profissão docente, no que se refere às mulheres professoras. O desafio que aponta para a
prática educativa é desfazer os moldes comportamentais inculcados socialmente como
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naturais e justificados pela distinção biológica na construção do que é ser mulher ou homem,
para que as mulheres consigam se inserir em outros espaços profissionais até então mais
ocupados por homens e mais valorizados socialmente e economicamente.

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NILZA FERNANDES DE SOUZA: EDUCADORA DO INSTITUTO MODERNO EM


MAMANGUAPE/PB

Thais Jussara de Oliveira Guedes Isidro


Marcia Cristiane Ferreira Mendes
Tatiana de Medeiros Santos | taty_ms11@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Este trabalho nasceu das analises feitas nas aulas da disciplina Tópicos em História da
Educação: História Oral e Memória: Biografia e Autobiografia, do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Como afirma Burke (1992), na história a visão tradicional não permitia que as
consequências do modelo vigente viessem à tona, a exemplo: somente os grandes feitos
realizados pelos homens apareciam na história. Então, durante duas décadas, no século XX, os
historiadores perceberam o potencial de explorar novas perspectivas do passado a partir de
novas fontes.
Mediante esse contexto trago neste estudo a educadora Nilza Fernandes de Souza, cuja
trajetória pessoal e profissional é marcada pela dedicação ao ensino. Segundo Pinto (2003), o
gênero feminino passou por muito tempo a ser silenciado pela história, devido à cultura
repressora e autoritária do século XIX. Portanto, trazer a história de Nilza Fernandes de Souza
é contribuir para que sua história saia do silêncio histórico e ganhe maior visibilidade,
trazendo o sentido de que as mulheres são parte constituinte da história.
O objetivo deste trabalho é trazer à tona a importância das práticas ocorridas no
interior do Instituto Moderno, localizado em Mamanguape/PB, através das memórias da
educadora Nilza Fernandes de Souza.
Contudo, o estudo situa-se metodologicamente na Nova História Cultural e no campo
da História Oral, enfatizando na pesquisa, os “novos problemas”, “novas abordagens” e
“novos objetos”, o que quer dizer que com a evolução da história surgem novos olhares,

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outras abordagens, outros problemas e outros objetos que devem ser considerados e
pesquisados.
Segundo Duarte (1995), os obstáculos fazem parte de todo o processo de interpretação
e pesquisa histórica e, consequentemente, transforma-se em relevantes produções que
impulsionam superar os desafios, à medida que exige do pesquisador atentar novamente aos
detalhes despercebidos e a leitura nas entrelinhas das fontes.
Na busca de tentar trazer a trajetória de vida e profissional de Nilza Fernandes de
Souza, de sua contribuição como educadora recorreu-se as entrevistas e fontes iconográficas
por se tratar de inicio de pesquisa, ainda há muito a ser pesquisado. A entrevista realizada
para esta pesquisa foi realizada em 11/10/2015.

QUEM FOI NILZA FERNANDES DE SOUZA?

Nilza Fernandes de Sousa nasceu em João Pessoa em 24 de outubro de 1942. É a


filha mais velha de uma família de cinco filhos. Seu pai nasceu em Paulista-PE. Passou a
morar na Paraíba, a convite de um funcionário da Companhia de Tecidos Rio Tinto. Veio
depois dos anos 1940, muito depois que a fábrica fora estabelecida na cidade em 1928. Passou
os primeiros anos de sua vida vivendo com a família em Miriri, indo depois morar em Rio
Tinto e, por último em Mamanguape-PB, onde reside atualmente. Sobre Nilza, a informante
mencionou que:

Eu nasci em João Pessoa em 24 de outubro de 1942. Meu pai veio de Pernambuco.


[...]. Ele veio de lá com a fábrica, pra cá pra Rio Tinto. Ele foi um dos funcionários
da fábrica já depois dos anos 40. Não foi logo de início que ela foi fundada em 1928
mas ele veio depois. Ele encontrou minha mãe aqui pois ele tomava conta de um
pessoal de um corte de lenha em Miriri. Perto da Usina Miriri, ali naquela região.
A fábrica nesse tempo eles derrubavam madeira para alimentar as sessões da
fábrica, alimentar o fogo da fornalha que tingia os tecidos e eles tinham campos de
lenha. Eles plantavam a madeira. Eles devastavam mas depois plantavam a
madeira, quer dizer, conservavam sempre. Meu pai tomava conta desse corte de
lenha e lá encontrou minha mãe, em Miriri, numa fazenda onde meu avô era
capataz, tomava conta da fazenda. Nessa história, encontrou minha mãe e casaram.
Depois nós viemos morar em Rio Tinto, mas os meus primeiros anos de vida foram
lá.

Nilza informou que passou seus primeiros anos de vida morando na propriedade da
fábrica, como era de costume a qualquer funcionário. Seu pai a partir da compra de um
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caminhão para transporte de madeiras pediu para deixar de trabalhar na fábrica e apenas
prestar serviços a esta, no que também pediu para continuar a residir na propriedade da
fábrica:

A minha família foi sempre muito movimentada. Quando meu pai veio pra Rio Tinto
trabalhar na fábrica, a princípio e depois ele viu que pra transportar a lenha, eles
fizeram uma linha de ferro, fizeram trilhos e tudo. Mas havia necessidade de mais
transporte. E meu pai percebeu e se interessou. Comprou um caminhãozinho e
começou a transportar lenha. E dali a pouco já tinha dois caminhões, três
caminhões; e então ele fez um acordo com a fábrica. Ele disse: ‘Eu gostaria de ficar
aqui com vocês, mas eu não queria mais... Eu queria sair da fábrica e eu não peço
nada.’ Ele já tinha treze anos lá. Naquele tempo também não havia essa questão de
leis trabalhistas... ‘Eu não faço questão, só quero poder continuar a ficar aqui.’ Lá
só morava quem fosse operário, funcionário da fábrica. ‘Eu me desligo da fábrica e
não vou dar trabalho, mas eu queria ficar morando aqui.’ Aí eles deixaram. Papai
ficou morando lá, mas ele já fazia parte de uma empresa própria que ele tinha
criado transportando a madeira.

A depoente informou que brincou muito durante sua infância, no que por várias vezes
trouxe preocupações a sua mãe com os exageros das brincadeiras:

Da minha infância eu tenho muitas recordações porque nesse tempo a gente


brincava muito com a vizinhança, não havia essa questão de você não poder sair na
rua. As brincadeiras, algumas eu me lembro com muita saudade das brincadeiras
porque na época de cheia, a cheia batia. Os rios enchiam e atrás da minha casa
alagava um pouco e a gente brincava muito, eu, meus vizinhos, meus amigos,
minhas amigas. Ainda hoje eu tenho lembranças. Eles faziam embarcações com
bananeiras, enfiavam varas nos rolos das bananeiras e nós ficávamos em cima
navegando. A minha mãe quando via ficava louca. Brincávamos, fazendo jangadas
com as bananeiras. Era muito sério. Minha mãe não queria de jeito nenhum, né!
Longe da minha casa tinha uma maré. A maré que passava ainda tem, tudo desse
Rio Mamanguape que ainda passa lá. Era atrás, longe, mas meu irmão gostava
muito de ir para lá com a meninada, mas era perigoso porque a maré fazia aquelas
ilhas e tinham as partes que eram profundas e as vezes morriam crianças. Mamãe
não queria de jeito nenhum. Foi um tempo de folguedos, de brincadeiras mesmo.

Nilza Fernandes iniciou sua vida escolar em uma pequena escola particular que
funcionava em uma única sala multiseriada, em Miriri. Sua primeira professora, Dª. Alta de
Assis que era uma vizinha que colocou uma escolinha no alpendre da casa. Mas sua grande
incentivadora foi sua segunda professora, Magliana Furtado de Assis Paiva. Dona Magna,
como era chamada, filha de uma família tradicional da capital foi morar em Rio Tinto, após o
casamento com um comerciante, e fez a grande diferença na formação e na vida de Nilza, pois
notou a sua potencialidade, sabia que podia “ir além” das lições da alfabetização e da escola
229
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multiseriada da qual fazia parte.

Eu tenho quatro irmãos. Somos três mulheres e dois homens. De lá pra cá eu comecei
a frequentar as aulas lá (em Miriri) e minha professora, Dona Magna, que tenho
muito carinho eu tenho por ela, uma lembrança muito grande. Ela em mim, assim,
que eu podia dar mais. Isso eu devo muito a ela porque os meus pais, eles se fixaram
em produzir algo que pudesse ajudar a família e tudo mais, mas essa minha
professora, ela viu em mim alguma coisa que eu podia ir além. Eu comecei com a
escola particular que ela tinha e ela depois, ela era professora do estado, uma das
únicas que tinha lá na época, em Rio Tinto, mas ela se orgulhava disso. E ela ficou
minha amiga. Eu era uma criança, eu tinha pouco mais de dez anos, uns doze anos,
por aí, mas ela me levava, trazia e era aquela festa. É tanto que eu sou madrinha de
uma menina dela, você acredita? Sou madrinha de apresentação de uma filhinha que
ela teve. Perdeu contato comigo, eu não sei mais de Dona Magliana. Ela foi um anjo
na minha vida. Ela ensinava numa das escolas lá de Rio Tinto pelo estado e disse
assim ‘Nilza, aqui na minha escola você já deu o que tinha que dar. Agora você vai
fazer o quarto ano lá no estado comigo, que é uma classe só’. Porque na escola
particular dela eram vários meninos de vários níveis. ‘E lá na escola onde eu ensino,
(que chamava Grupo Escolar naquela época) é só quarto ano. Você vai aproveitar
mais.’ Aí eu fui com ela estudar lá, embora eu continuasse pagando a ela como se eu
estudasse na escola dela, mas ela me levava pra lá. E lá foi muito bom esse ano.
Nesse tempo você tinha que fazer o quinto ano, era o exame de admissão. Ah, era um
vestibular! Aí ela disse ‘Você não vai ficar só no quarto ano, não. Você vai pro
quinto ano, vai ser em Mamanguape’, que era esse colégio daqui (Instituto Moderno)
que tinha começado recentemente.

Segundo a depoente o seu primeiro contato com o Instituto Moderno aconteceu por
intermédio de sua professora:

Era em 1948, a fundação dele (do Instituto Moderno). Não funcionava aqui,
funcionava ali na frente, lá naquele prédio onde é a Moto Honda. Ali era uma casa
antiga e ele começou lá, mas depois passou pra cá (local atual). Quando eu vim pra
cá ele já estava aqui neste prédio. Não era desse tamanho, mas foi funcionando e foi
aumentando, os pavilhões foram aumentando. Então, ela (a professora, Dona Magna)
disse assim ‘Você vai pra lá. Vai fazer o exame de admissão. Vai! Seu pai pode
pagar.’ Meu pai nessa época podia pagar mesmo. ‘E você vai estudar lá.’ Então tá
certo. Ela veio comigo aqui, me apresentou ao diretor que não era esse, não, que está
ali a foto (Dr. Adailton Coelho Costa), mas era Doutor Lins, um dos fundadores
também. Chegou aqui ela me mostrou a ele e disse: ‘Essa moça vai fazer o exame de
admissão, Dr. Lins.’ ‘Traga. Pode trazer.’ Me lembro como se fosse hoje! E eu vim.
Era assim: o exame de admissão, ou você estudava o quinto ano todo, ou você fazia o
quarto ano... Por exemplo, eu estudei o quarto, aí fazia nas férias, janeiro, fevereiro,
com aula todo dia aqui. Aí quando terminava, você fazia as provas. Se você fosse
aprovado, pronto. Entrava no primeiro ano ginasial. Eu pulei um ano de quinto ano,
quer dizer, você podia pular. Se você fizesse o quarto ano e no fim do ano fizesse o
curso nas férias e passasse, você já entrava no primeiro ano ginasial. E se não
entrasse você vinha cursar o quinto ano aqui (no Instituto), que era o exame de
admissão todinho pra no fim do ano fazer a prova. Aí ela disse ‘Você pode fazer.’,
‘Dona Magna, eu posso?’. ‘Pode e você vai. Você vai se arriscar agora, vai fazer
agora. Do quarto vai pular pro primeiro ginasial.’ Ela acreditou e eu passei. Eu vim
fazer o curso de férias e, no fim, vim estudar aqui. Então foi essa a minha formação
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de começo. E depois que eu comecei aqui, não saí mais [risos].

Nilza Fernandes além de ter estudado no Instituto Moderno se tornou funcionária de lá


é em plenos dezesseis anos de idade e ainda continua trabalhando lá, na função de Gestora
adjunta. Trata-se de uma escola particular que oferta atualmente os cursos de Educação
Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. Aos sábados o Instituto Moderno cede seu
prédio para o funcionamento da UVA – Universidade Vale do Acaraú.
A seguir se visualiza o primeiro prédio do Instituto Moderno em Mamanguape:

Primeiro prédio onde funcionou o Instituto Moderno em Mamanguape, PB.

Fonte: Arquivo do Instituto Moderno. S/d.

A depoente informou que era de uma família católica e sua mãe trabalhava como
doméstica. Nesse empenho aos estudos lembrou que:

Eles não cobraram nada de mim. Ela só queria que eu estudasse. Ela se empenhou
muito. Ela fazia questão! Lá. Ela passou... Assim: ela ficava nas escolas procurando
uma melhor, outra melhor pra mim.

Sobre os seus irmãos, mencionou que:

Meu pai ficou com aquele negócio de carro, pouco interferiu. Nunca me cobraram.
Meus irmãos também. Minhas irmãs são professoras. Todos estudaram. O meu irmão
mais velho, depois de mim tinha outro. Esse foi que se envolveu com meu pai com
história de carro, que naquele tempo era um sonho. Todo mundo só queria dirigir, ter
carro. Naquele tempo não existia quase transporte. É tanto que meu pai ia pra Recife
pegava aqueles carros, carro de passeio, tem fotos dele, ele pegava aqueles carros lá
que não estavam bem novos ele transformava aquilo em carrão. Ele chegava em Rio
Tinto era novidade. Porque não tinha carro. Aí ele se envolveu com isso, meu irmão
encostado a mim, e não foi muito chegado a estudo, não. Ele ficou lá, se envolveu com
papai, de repente começou a dirigir e começou naquela vida de carros. Mas os outros
todos se formaram. Nós viemos pra cá (Mamanguape). Aí eu puxei tudinho pra cá.

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Sobre a professora que lhe alfabetizou, explicou:

Quem me alfabetizou foi dona... [pensando] Dona Alta. Era minha vizinha. Ela botou
uma escolinha e foi quem me alfabetizou. Havia umas canetas tinteiro que a gente
cobria as letrinhas. Molhava e cobria, depois apagava com o mata-borrão. Eu sou
desse tempo ainda. A princípio você cobria com lápis comum. Ela fazia as letrinhas e
você ia cobrindo. Aí, depois você já estava molhando ali, e fazendo a letrinha
cobrindo. Aí fui treinando e aprendi a ler. Aprendi a ler com ela, com dona Alta. Alta
de Assis. E depois, essa escola de dona Magna, ela era parente ainda de dona Alta.
Tem a família dela ainda lá em João Pessoa, Furtado de Assis Paiva, que são
dentistas e não sei o que mais. São pessoas tradicionais de João Pessoa. [...] Quando
dona Magna chegou em Rio Tinto ela usava luvas. Era tão chique lá. Ela estudava no
Colégio das Neves29. Ela chegou lá parecia uma princesa. Aí depois casou com seu
Maurino. Seu Maurino parece que veio de lá também, de João Pessoa, mas ele era
comerciante. Mas mesmo assim ela casou com ele, mas ela continuava com aquela
educação de moça bem educada, que estudo no Colégio das Neves. Ele era mais
simples, mais popular, mais chegado. O comércio deles não era grande coisa, não,
mas mesmo assim eles conseguiram viver um tempo em Rio Tinto e depois eles foram
embora de lá. E eu fiquei. Eu perdi contato com ela. Nunca mais. Porque naquele
tempo era tão difícil, sabe?! Não tinha essa facilidade de comunicação. A gente pra
chegar em João Pessoa você passava quatro horas, de uma as quatro dentro de um
ônibus viajando por Sapé. Era. Chegava lá as luzes já se acendendo. E foi assim que
eu comecei a estudar. Eu ia no domingo e voltava na quinta pra dar aula aqui, mas
isso foi muitos anos depois.

Sobre a saída da família de Nilza de Rio Tinto para morar em Mamanguape, foi muito
sofrida, pois todos gostavam de Rio Tinto e os negócios de seu pai em Mamanguape não
prosperaram muito:

[...] A gente foi obrigado a vir embora pra cá (de Rio Tinto para Mamanguape),
porque se não meu pai não vinha nunca porque a gente gostava de lá. Eu saí de lá
muito triste, mas me adaptei aqui. [...] Eu tinha... deixa ver... eu tinha uns treze anos,
por aí assim. Doze pra treze anos. Mas eu já tinha começado a estudar aqui (no
Instituto Moderno), eu vinha de ônibus todo dia pra cá. Estava no primeiro ano
ginasial. Quando viemos pra cá não precisava mais vir de ônibus. Meu pai veio aqui,
comprou uma casa. A situação da gente não era ruim. Ele comprou uma casa aqui, a
gente foi morar. Só que depois a coisa começou a piorar e não deu certo. Aí eu já me
formei aqui, terminei o ginásio, com dificuldade financeira. Foi a força. Aí quando
terminou eu disse ‘Não quero deixar de estudar, não. Eu quero estudar.’ Eu falei.
Meu pai: ‘Mas, minha filha, agora tá difícil. Como é que eu vou fazer? Nesse tempo
admissão, ginasial, não tinha estudo de graça pra ninguém aqui, não tinha escola. E
nem tampouco o que eu queria, que era já o segundo... Eu já ia pro Médio. Aí ele
disse ‘Agora não posso mais, não.’ Eu tinha que estudar em João Pessoa. O primeiro
ano clássico, ou técnico ou científico. Eu já estava no científico. Ele disse ‘Mas eu
não posso. Você já fez o ginásio.’ Aqui já era muito ter o ginásio. Só tinha em João

29
Para saber mais sobre o Colégio Nossa Senhora das Neves, ver a dissertação de mestrado de Tatiana de
Medeiros Santos: Magistério em Declínio: Histórias e memórias de ex-alunas da última turma do magistério do
Colégio Nossa Senhora das Neves (1970). Mestrado em Educação. UFPB, 2009.
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Pessoa. Como é que eu ia se não estava podendo nem pagar aqui? Mas eu disse:
‘Não vou parar de estudar, não. Seja o que for.’ Nisso, aqui (no Instituto Moderno),
abriu o curso de Contabilidade. Doutor Adailton1 era um homem de visão. Ele achava
que a pessoa que estudasse aqui devia continuar a estudar, mas não tinha. Ele criou o
Curso Técnico de Contabilidade aqui. No Instituto Moderno mesmo. Aí já podia
continuar aqui. Aí eu disse: ‘Pronto, eu vou ficar é aqui no Curso Técnico.’ Mas
como pagar? Aí veio minha tia minha de Recife pra cá. Aí começamos a conversar e
eu disse pra ela. Eu vou embora é com minha tia. Ela queria me levar porque ela não
tinha filhos. Ela queria terminar de me criar, mas minha mãe não quis: ‘Não, não vou
dar. Eu sei que é pro bem dela, mas eu vou deixar essa menina ir embora?’ Ela não
quis. Foi bom. Aí, ela disse: ‘Pois então, vamos fazer o seguinte: não tem um jeitinho
de tu arranjar um dinheiro?’ Eu disse ‘Olha, doutor Adailton, que me ensinou, ele
disse assim: Você vai ser professora daqui, viu Nilza! Você vai ser professora de
Geografia.’ Porque eu tirava notas boas, tudinho. Então eu me lembrei dessas
palavras dele. Aí eu disse ‘Tia Alta o diretor dizia isso comigo, mas eu tenho
vergonha de pedir isso a ele.’ Ela disse: ‘Não tenha, não, que eu vou com você.
Vamos, eu vou com você.’ Aí quando ele veio eu falei ‘Doutor, o senhor me disse e eu
estou precisando. Meu pai não pode pagar. O que é que eu faço?’ Ele disse assim:
‘Olhe, a essas alturas os professores já estão todos’... Eu já queria ensinar. Terminado
o ginásio. [risos] Mas o sucesso daqui foi esse, sabia. Ele foi pegando os alunos que
ele achava que foram bons e foi botando pra ensinar. Depois ele foi dando
oportunidade de você fazer um curso. Porque era difícil trazer professor de João
Pessoa para ensinar aqui. O colégio não podia pagar. Não podia. A distância era
grande e não eles podiam morar aqui.

Então, como Nilza Fernandes mesmo falou, o diretor do Instituto Moderno era um
homem de visão e buscou formar sua própria equipe para não ficar na dependência de trazer
professores de João Pessoa:

Ele ia formando. Tinha uma história aqui de um curso que você fazia em João
Pessoa, durante as férias, que vinham professores de fora. Ai, meu Deus, como era
o nome? Não estou lembrada. Vinha professores de fora e eles iam qualificando
professores. Era. Isso era feito pelo governo. Os professores eram sérios e severos.
Você não passava toda vez, não. E aquele bando de professores eles aconselhavam
dois ou três a fazer uma prova. Depois de um tempo que você fazia aquela prova
eles iam qualificando você. Havia isso. Ele me disse assim ‘Eu já consegui os
professores, mas você vai trabalhar. Eu quero lhe dar uma chance. Não tem nem
aonde, mas você vai trabalhar lá.’ Aí ele me trouxe. Eu fiquei na secretaria. Eu
disse a ele ‘Eu só quero pelo estudo. Eu não preciso ganhar dinheiro.’ Aí ele disse
‘Não, você ganhar o seu salário.’ Então tudo bem, eu fiquei e fui estudar no curso
técnico. Graças a Deus. [...] Do Primário até o curso de Contabilidade. E depois
ele teve mais ideia porque o Curso Normal, que foi quando começou o Instituto
Moderno foi com o curso, que foi desativado um pouco porque o ensino de
professores não foi muito procurado, aí eles transformaram em ginasial, mas ficou
lá Normal. Aí depois que começou o Técnico ele disse ‘Não, eu quero fazer é
professores, que eu preciso é de professores.’ Aí reativou o curso de professores,
dessa vez já era com outro nome, Pedagógico. Aí ele trouxe o Pedagógico também.
Então já havia outras opções. Quem não queria o Técnico fazia o Pedagógico. As
turmas ficaram cheias aqui a noite. E ficaram esses cursos. Aí eu fui me envolvendo
aqui com o trabalho, fiquei na secretaria e esqueci de ensinar. Que também não era

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muito a minha vocação. Eu queria fazer Direito. Mas enquanto eu não fiz Direito, a
gente foi se acostumando. Aí o Colégio passa a Estadual porque ele queria dar uma
oportunidade aos professores que ele já tinha formado e eram bons professores.
Eram todos professores daqui e fizeram esse curso que eu esqueci o nome e que já
tinham passado. Todo mundo já estava qualificado a ensinar. ‘Mas eu quero mais
pra esse povo. Eu vou trazer um colégio estadual.’ Nesse tempo ele se envolveu com
política, Pedro Gondim, daquele povo. ‘Eu vou trazer o Colégio Estadual aqui pra
Mamanguape que todo mundo vai poder estudar. Vai acabar com esse negócio de
só estudar quem paga e fica particular só o Técnico e o Pedagógico. Eu vou ceder
as instalações do Instituto Moderno pro Estado. Mas eu quero que todos os meus
professores sejam nomeados logo.’ Nesse tempo não tinha concurso. Mas não é que
eles não merecessem, não, Todos eram muito bons professores. ‘Uma das sugestões
que eu vou fazer é isso. Eu não vou alugar. Eu vou ceder pra que os meus
professores sejam nomeados.’ Aí nós fomos, entramos pra nomear. E tinha uma
história: quem fosse professor logo era chamado professor catedrático porque
fundava cadeira e ganhava mais, ganhava igual aos formados em João Pessoa. E
nós entramos nessa. E ele me disse ‘E você vai ensinar o que?’ E eu sei, doutor? Tô
tão bem aqui na secretaria. ‘Não. Isso não é futuro, não. Você vai ser professora.
Você gosta de que?’ Eu gosto de Português, o senhor sabe. Eu gosto de Português.
Gosto de Inglês. ‘Então vamos começar com Português.’ Aí pronto! Entrei em
Português. E fui me acomodando. E nisso passando o tempo. Aí eu disse a Inês: Nós
precisamos fazer um curso. Já que estamos na dança, vamos dança. Eu digo a você
que nessa época, depois veio Wilson Braga1, o professor ganhava cinco salários
mínimos. Na época de Wilson Braga era. Veja. Faça a conta de hoje. A gente nem
pensava mais em nada, em fazer outra coisa. Só que isso foi temporário. Teve
menina que passou no INSS aqui, professora, e não quis ir. Porque disse ‘Eu não
vou passar o dia todinho no INSS quando pra ensinar eu não preciso nem passar o
dia, tem os dias alternados. Não vou querer.’ Coitada. Entraram pelo cano porque
depois quando ele saiu acabou. Mas houve tempo disso. Então nós estávamos um
pouco acomodadas mas eu disse assim: Inês, já que a gente tá na dança, vamo
dança. Vamos estudar. Vamos voltar a estudar. Eu já tinha abandonado o meu
sonho do direito. Nós estávamos aqui ensinando então ela disse ‘Eu vou fazer pra
Geografia’, ela já ensinava Geografia, e eu: Vou fazer pra Letras. Eu gosto muito
de Inglês, vou fazer Letras e Inglês também. Tá certo? ‘Tá.’ Então nós duas
começamos a estudar. A pegar programas pra estudar. Passar no vestibular
naquele tempo era um sonho, ainda mais em cidade do interior que não havia
assim... nenhuma preparação. Era sem nada. Então, pegamos o programa de
estudos e fomos estudando. Tcham, tcham, tcham e tcham . E fomos, fomos, fomos
fomos, né?! E fomos. E então conseguimos.

A seguir se visualiza Dr. Adailton Coelho Costa, diretor do Instituto Moderno, ao lado
de alguns professores e alunos da instituição, que posam no acesso principal da escola. Nesta
fotografia se encontram Terezinha, Zezé, Dinha (filha de Seu Pedro Paulo), as professoras de
Inglês Otilia e Nilza Fernandes, Benê, Nininha (filha de Seu Souza), Eunice, Inês Lyra e a
irmã, Irene, Anita, Izolda, Ana Lúcia, Newman, Socorro Ramalho, Pedro Jorge, Muniz e....

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Fonte: Pedro Jorge de Carvalho Neto – Mamanguape. Disponível em: https://www.facebook.


Com/media/set/?set=a.490253351019423.117568.41015811236 2281&type=3. Acesso em 18/10/2015

Nilza explicou como fazia para estudar e ensinar e trabalhar no Instituto Moderno:

Eu dava quarenta horas/aulas, né. Fosse à hora que fosse. E a noite. Como é que
eu faço? A cabeça doeu, foi aquela confusão. Procurei lugar para ficar lá (em João
Pessoa) que eu não tinha parentes, mas não conseguia, não conseguia. Aí doutor
Adailton disse ‘Você está se estressando em vão. Eu tenho umas irmãs’, ele tinha
umas irmãs que trabalhavam lá, ‘Você vai ficar lá na casa das meninas. Não tem
problema.’ Eu fiquei encabulada. Eu conhecia todas daqui, mas eu fiquei
encabulada. Mas não tinha o que fazer e aí eu fiquei. Do domingo até quinta-feira.
Eu não podia ir e vir todo dia pois não havia esta estrada até aqui, passava quatro
horas pra chegar. Vinha por Sapé. Quando era quinta a tarde eu vinha embora.
Dava aula aqui quinta a noite, sexta de manhã, sexta de tarde e de noite e no
sábado de manhã que sábado também tinha aula. Antigamente tinha. E como eu
fazia? Aí eu esqueço lá (UFPB) e venho pra cá (Instituto). Só que aí eu voltava no
domingo. Como eu estudava lá? As tardes. Todas as tardes eu pegava o programa
de lá e ficava estudando que eu ficava em casa as tardes. Mas não contente, eu
disse assim: tem um curso de extensão universitária aqui de Inglês e eu vou fazer
mais pra melhorar. Mas consegui, consegui. Dois anos nessa luta. Quando foi de
repente, fizeram a estrada, a BR 101. Então, os últimos dois anos eu já terminei em
casa. Aí eu vim me embora e ia e vinha todo dia que nesse tempo a passagem era
mais barata e eu consegui terminar assim, nessa luta. Aí nessa época inventei de
casar também, que foi um desastre. Só durou dois anos, eu tive uma filha e a gente
se separou. Houve essa revolução na minha vida mas eu voltei pra casa e retomei,
continuei a minha vida. Foi em 68. Muita coisa aconteceu no Brasil nessa época,
as confusões dos hippies, aquela coisa!

O curso que Nilza Fernandes foi para a Universidade Federal da Paraíba foi em Letras
Inglês:

Não tive dificuldade, graças a Deus. Deu tudo certo. Era ali onde é a... era a
Faculdade de Filosofia, junto do Liceu. Estudei ali. Terminei na Cidade
Universitária. Eu me casei no segundo ano da universidade. Foram tempos
horríveis. Foi um desastre. Mas passou, graças a Deus. Ele era ciumento demais,
demais. A gente achava que esse negócio era, era... Ficava até vaidoso, né, porque
o cabra era ciumento. Mas casa com um ciumento!! Deus me livre!! Porque é um
desvio, uma coisa assim. É terrível. Foi terrível. Eu sucumbi. Eu só aguentei por
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causa da minha família porque eles foram muito contra. Eles sentiam que ele... Mas
eu quis casar porque eu quis. Mas depois eles me deram muito apoio.

Sobre as práticas ocorridas no Instituto Moderno, Nilza Fernandes afirmou que:

O Instituto foi a primeira escola, pode-se dizer assim, de formação de professores


aqui da região. Já existia o que chamavam na época de Grupos Escolares, era
aonde ensinava da primeira a quarta série. Pra você fazer o curso ginasial na
época, tinha que fazer um exame de admissão que esse era feito nesses colégios que
já funcionavam do primeiro ano ginasial até o quarto. Só podiam fazer o admissão
esses colégios que funcionavam o ginasial porque antes, o que era considerado o
primário, era dados nos grupos escolares. E então aqui foi a primeira escola que fez
o exame de admissão para o ginásio. Como não era ginásio, o Instituto Moderno
não começou como curso ginasial, começou como Curso Normal Regional.
Começou assim. Foi 1948 que a escola foi fundada e ela começou ali na frente, não
era nesse prédio, era noutro prédio. Era Curso Normal Regional, então as pessoas
vinham e faziam, eram quatro anos também equivalendo, na época, a um Curso
Ginasial mas só que o Curso Ginasial não formava professores e o Curso Normal
Regional, que foi o primeiro daqui, formava professores. Era um curso paralelo ao
ginásio, sendo que era profissionalizante; se preocupava em formar professores. E
os juízes, promotores que se juntaram na época foi com essa intenção, de melhorar
a educação aqui na região.

Sobre o Instituto Moderno, Nilza Fernandes explicou que não ofertava o primário:

Não. Nessa época não. Pera aí deixa eu me lembrar... Não. Começava no exame de
admissão, o primário era feito fora, nos grupos escolares. Quando vinha pra cá já
vinha fazer o exame de admissão. O primeiro edital que se fez aqui no colégio foi
convocando pro exame de admissão e ingressava no Curso Normal. Então as duas
primeiras turmas, houve uma turma, depois houve outra, a casa onde funcionava ali
na frente era pequena também, mas não foi por isso, não. Foi porque o número de
alunos não era tanto assim porque, na verdade, era pago. Era iniciativa privada. E
além do mais, as pessoas que vinham pra cá já eram pessoas que tinham parado de
estudar fazia tempo. Não era nem tanto os jovenzinhos como é hoje. Eram pessoas
que haviam parado que aqui não oferecia outras escolas então você fazia o curso
primário e parava. Por isso que eles viram essa necessidade de fazer com que a
juventude estudasse, porque os adolescentes propriamente ditos, não estudavam.
Então a turma primeira foi formada mais de adolescentes. Nós temos até fotos aqui.

Sobre a prática pedagógica do Instituto moderno, Nilza Fernandes mencionou sobre a


palmatória:
Eu peguei na escola onde eu estudei lá em Rio Tinto, mas aqui também tinha
palmatória. Eu ainda sou desse tempo. Não que a professora batesse, não era
assim. Como é que chamava aquilo? Não era arguições, não. Nem era debate. Ohh,
meu Deus era... Era sabatina. Principalmente da tabuada de multiplicar. Três vezes
quatro? Aí quem não sabia, fazia uma roda e quem não sabia dava o bolo no outro
de palmatória. Isso eu ainda alcancei. Agora essa palmatória de a professora bater
no menino, essa eu não alcancei. Nas escolas que eu passei não tinha, não. Eu acho
que na época ainda existia pois o professor as vezes se exaltava, mas eu não vi;

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pessoalmente não participei em nenhuma das escolas que eu estudei, nem antes
daqui. [...] O Instituto Moderno funcionará este ano os cursos... [lendo] Pronto.
Tinha primário. Admissão... [lendo] Admissão era um curso que você estudava pra
ir para o curso Normal que equivalia ao Ginásio. Curso Primário e Admissão,
também curso de Ilustração Prática e também matérias avulsas... [lendo] aqui era
propaganda. Transporte especial para os alunos de Rio Tinto. [risos] Foi mais ou
menos na época em que eu vim pra cá. Eu vim pra cá em 55 e isso aqui foi em 52.

Enfim, este é só o inicio de uma história da educadora que enfrentou dificuldades para
estudar e por persistência conseguiu seus objetivos, com a sua efetivação na escola privada
Instituto Moderno, em Mamanguape e por lá ainda atua à cerca de trinta anos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nilza Fernandes de Souza contribuiu de forma significativa para a educação e também


para os alunos que passaram pelo Instituto Moderno. Sua trajetória como aluna e educadora a
fizera repensar novas formas de educar e também de alcançar novos horizontes como
profissional, no que, como resultado, tornou-se educadora nesse instituto.
No decorrer da pesquisa verificamos que Nilza Fernandes de Souza teve uma presença
marcante no espaço educacional. Por diversas vezes em sua fala sempre procurava alcançar
novos voos em seus estudos e não foi diferente, pois procurava proporcionar aos alunos do
Instituto Moderno novas aprendizagens. Seu legado está marcado pelos alunos que passaram
nesse instituto de ensino e também em sua memória, deixando assim uma contribuição e um
reconhecimento, através de seus alunos e da sociedade de Mamanguape – PB.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURKE, Peter. A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
COSTA, Adailton Coelho. Mamanguape, a Fênix Paraibana. Campina Grande, GRAFSET
LTDA. Endereço atual do Instituto Moderno: Rua José Vieira, S/N – Centro Mamanguape-
PB, 1986.
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta: vida e obra. Natal: UFRN, 1995.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2003.

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O COTIDIANO DE TRABALHADORAS NEGRAS DO BAIRRO RUA NOVA.


(1960-1970)

Flávia Santana Santos | ayofemy@hotmail.com


Emanoel Luis Roque Soares

INTRODUÇÃO

Parte como premissa para composição deste trabalho a referência da história de vida
da minha mãe Tecla de Santana Araújo, migrante da zona rural para cidade de Feira de
Santana. Aos 17 anos consegue seu primeiro trabalho de carteira assinada em um moinho de
café, mas pouco tempo depois se casou no civil e teve seu primeiro filho. Nesse momento
finda a vida de trabalhadora, o casamento e o filho os colocaram no clausto da vida
doméstica, mas a busca pela autonomia a fez transformar o ambiente do cuidado, o lar, no
espaço de trabalho no qual ela passou a costurar e fazer outros pequenos serviços. Essa vida
circundada pelo trabalho, ele, multifacetado recheados de afazeres os quais garantiram a
sobrevivência e o expericiamento de uma mulher negra como dona de casa atenta as
sinonímias que permeia a vivência de uma família negra, a qual o papel do pai era colocar
comida no lar, e da mãe, criar e assistir os filhos dando conta de compreender a subjetividades
embebidas e confundidas com o desejo do bom alimento e do bem viver, sacralizadas na
busca essencial por uma inalcançável qualidade de vida.
Mas qual o tempo dedicado a si que cabia na dinâmica eufórica do trabalho intra/extra
– doméstico? Seria essa mulher invisível a si mesmo no demasiado cuidado ao seu marido, a
sua proli e suas obrigações de trabalhadora? O que de resto ao passar tempo cabia nas
vivências de uma mãe de família, que agora fazia do lar morada e lugar de trabalho?
Neste trabalho os relatos orais são imprescindíveis, pois, cumprem o papel de dar cor,
voz e vez as memórias, saberes coletivos e individuais de indivíduos e grupos que por muito
tempo estiveram in-visibilisados, e sem predileção para serem elegidos como elementos de
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privilégio para a construção histórica , assim, são eles que embasam a discussão e aprofundam
a reflexão a cerca do cotidiano das trabalhadoras negras. São esses relatos que dão conta da
percepção da subjetividade dessas mulheres e seu ponto de vista sobre sua situação. Elas
como indivíduos imersos numa sociedade exclusiva travam lutas diárias as quais a condição
de objetificação é desconstruída por elas de forma inconsciente, mas não suficiente para
reversão de algumas sujeições. Sendo isso, a projeção dessa mulher como mãe de família e a
chefe da mesma, cumprindo o papel de mantenedora mesmo quando se tem a presença do
homem, esse não desempenha de forma equacional e numeral as atividades as quais as
mulheres desempenham.
A mensuração no trato do subjetivo só é possível de ser percebida no transcurso das
falas com gestos e entonações, essa mulheres são invisíveis a uma sociedade marcada pelo
poder masculino, no qual o labor do mesmo é de grande valia e enaltecedor, sendo o trabalho
da mulher minucioso e menos prestigiado, o trabalho leve e irrelevante. Seria essa idéia
apenas pontuada no campo do abstrato no qual o real não contém consistência nem tão menos
substanciamento. Mas seria o real o flagrante das injustiças sociais as quais as mulheres estão
subjugadas aos salários baixos, a informalidade e a incerteza de uma qualidade de vida.
Talvez o bálsamo dessa tortura sócio-antropológica seria a realização enquanto seres maternos
e educadores o quais podem projetar em seus filhos a possibilidade do rompimento das
limitações impostas pela falta de estudo, pela condição social e espacial que estão inseridas,
seriam essas mulheres o contrapelo imposto pelo ideal de benignidade, docilidade e
moralidade. Muitas delas casadas por influências de uma educação moral e cívica na qual boa
moça, seria a boa esposa, mães de filhos bem criados, outras tantas amancebadas, amantes,
mulheres solteiras e mães de filhos sem pai, mas filhos de mães que exerciam sua dignidade
no labor cotidiano dos dias de Feira de Santana.
Mulheres que extrapolaram os limites dos lares e transgrediram com seus corpos
negros as ruas do comércio de Feira de Santana, expondo suas mercadorias na feira livre,
lavando roupas nos tanques e aguadas, no trato com as panelas nas casas da senhoras bem
nascidas e bem de vida, cuidadeira dos filhos dos outros e protetora dos seus em preces. Essas
mulheres viviam divididas entre a sobrevivência e a luta da existência e criação da sua proli.
Outras mulheres inseridas em espaços como o famoso Mercado do Fato, onde as mesmas
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limpavam e separam as vísceras, as conhecidas fateiras – essa função conhecida como


minuciosa e delicada somente cabida a elas, ou na efervescente feira livre localizada o centro
da cidade.
RUA NOVA UM LUGAR DE MORADA E VIVÊNCIAS

No período abordado por este artigo a cidade de Feira de Santana mantinha como
projeto de cidade uma urbe organizada e higienizada, nessa época o curral de venda de bois e
artigos derivados do couro, estava localizado mais distante do centro da cidade, logo as
boiadas não passavam mais pelas ruas principais do centro, assim, os tumultos e algazarras
ocasionadas pela passagem dos vaqueiros e suas dezenas de cabeça de gado não mais eram
vistos como ameaça a organização do espaço civilizado. A feira livre se avolumava e era tida
como corpo, parte e essência do coração do centro comercial, não por ser aceita pelo que
pensavam e projetavam a cidade como capital do sertão, mas sim por ser tradicional, pois, foi
a feira que traçou os primeiros planos de ruas as quais vieram surgi o comércio central da
cidade.
O bairro de Rua Nova surgi de uma fazenda a qual sua proprietária a senhora
Enerstina Carneiro decide doar, e vendar a preços baratos, pequenos lotes de terra as pessoas
que chegavam até ela e confessavam seu desejo de ter um pedaço de terra para construir uma
casinha, ter um lugar seu. A situação comum naquela época era morar em pequenos casebres
os quais formavam as conhecidas avenidas de quartos, com banheiros coletivos – um modelo
reduzido dos hsitóricos cortiços. A fazenda pertencia geograficamente a toda área conhecida
como Calumbi30, bairro que Mayara Pláscidos em sua dissertação de mestrado intitulada
Experiências de trabalhadores/as pobres em Feira de Santana (1890-1930). Declara ser um
lugar habitado por ex-escravos e seus descendentes, destacando que maior parte do
contingente pobre e negro da cidade, estava vivendo e sobrevivendo, criando estratégias para
garantir pelo menos a sub-existência, esses indivíduos estavam colocados nas funções de
menor remuneração no mercado de trabalho, eram eles os carregadores, carroceiros,
aguadeiros, e elas, as lavadeiras, fateiras, domésticas, costureiras e feirantes.

30
Faz referência a uma árvore comum na caatinga que possui muitos espinhos. O lugar leva esse nome porque
no decorrer da estrada nas cercas que fronteirava as propriedades, existiam inúmeras árvores deste tipo.
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Praça da Televisão – como era conhecida a praça onde se encontrava instalada uma
televisão coletiva no bairro de Rua Nova, com horário de funcionamento das 17h às
23hs. Foto: Antônio Magalhaes. In: História nas lentes: Feira de Santana pelo olhar do
fotógrafo Antônio Magalhães. Ed, UEFS, 2009

A famosa praça da televisão era o lugar de encontro e confraternização de laços


fraternos formados pelas trabalhadoras, essas mulheres que durante o dia estavam nos
armazéns de fumo, na feira, nos tanques lavando roupas, eram as mesmas que matinha
relações afetuosas com vizinhas de rua, era muito comum ter famílias morando em ruas
diferentes do bairro, e ir a praça da televisão também era re-encontrar familiares e amigos de
trabalho. “O local coloca em forma o mundo da vida diária, sendo ele próprio fundador da
relação com o mundo do indivíduo, mas igualmente da relação com o outro, da construção
comum do sentido que se faz o vínculo social.” BOUDIN (2001, p. 36). Assim como ir as
rezas, aos candomblés, mesmo imergidas no trabalho intra/extra – doméstico, elas
conseguiam manter sue laços de sociabilidades e nesse momento compartilha de estratégias
para se manterem fortalecidas enquanto mães, amigas, esposas e trabalhadoras

NO ROMPER DA AURORA: O TRABALHO COMO SÍMBOLO DA DIGNIDADE

Trabalhar sempre foi reconhecido como símbolo de dignificação e elevação de

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homens e mulheres. Ter um emprego, uma ocupação significa antes de qualquer coisa se
perceber um ser munido de utilidade e dignidade, um pensamento influenciado pela bíblia a
qual afirma que o trabalho edifica o homem, assim, o indivíduo vive e sobrevive do suor do
seu trabalho, do exercício cotidiano do serviço. Se tratando das mulheres, no contexto das
décadas abordadas pelo artigo, trabalhar era uma busca pela autonomia, pelo bem viver, pela
garantia mínima de vida, a sobrevivência.
Feira de Santana vivia o fomento a modernidade citadina com implantação do Centro
Industrial Subaé (CIS)31, ocorrida na década de 1970 que também marcada um avanço
espacial da cidade e a redução da população rural o que consequentemente acrescia a
demografia feirense. Mas quem eram os sujeitos contemplados com os processos
modernizantes, qual o lugar daquelas que saiam dos roçados para tentar a vida na cidade
grande? No contexto social de Feira de Santana entre às décadas de 60 e 70, cabia as mulheres
negras, o mesmo papel de sempre, aquele que historicamente estava relegado a população
negra desde o pós-abolição, a subalternidade empregatícia.
Secas, restritas possibilidades de trabalho, forte concentração de
terras e sucessivo repartimento das pequenas propriedades entre
herdeiros numerosos jogaram no mercado de trabalho das grandes
cidades um número significativo de mulheres vindas das zonas
rurais, muitas vezes analfabetas[...]. SANCHES, 1998, p. 57

Maria Aparecida Sanches em Pratos e Panelas: poderes, práticas e relações de trabalho


doméstico. Salvador 1900/1950, descreve as condições as quais as mulheres chegavam cidade
grande, mesmo trazendo o contexto da cidade do Salvador, a discussão traçada pela autora
evidencia o processo migratório feito por mulheres que ocorreu da zona rural para a cidade,
permitindo se refletir sobre os condicionantes que relegavam as mulheres migrantes,
independente do destino escolhido, a posição de subalternidade as esperava em qualquer lugar
para o qual elas migrassem.
Se tratando das experiências cotidianas de mulheres negras espacialmente localizadas
no subúrbio da cidade de Feira de Santana, o dia de trabalho começava cedo muitas vezes na

31
Ver: Freitas, Nacelice Barbosa. Modernização Industrial em Feira de Santana: uma análise a da implantação
do Centro Industrial do Subaé-CIS. In: Sitientibus, Feira de Santana, n. 41, p.139-160, jul./dez. 2009

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madrugada, o que sinaliza D. Tecla de Santana Araújo ao dizer que acordava bem cedo para
bucar água no tanque, água do gasto doméstico, para fazer o café, tomar o banho.
Eu acordava cinco horas da manhã e ia buscar água em um tanque lá
no Jardim Cruzeiro, vinha com aquela lata na cabeça, depois que
fazia as coisas, eu subia pro trabalho, lá no moinho de café.

Essa conjuntamente com a rotina do serviço era uma demanda cotidiana e


imprescindível, nesse período o bairro de Rua Nova ainda não tinha água encanada, logo o
primeiro e religioso labor do alvorecer era buscar água, para depois disso, tocar o dia de
trabalho. Essa e tantas outras dificuldades permeavam a vida das mulheres negras e
trabalhadoras, o que D. Clementina da Silva Ferreira, a qual trabalhava no armazém de fumo
relata sua rotina diária salientando o acúmulo exaustivo de funções enquanto, trabalhadora,
mãe e esposa:
[...] minha rotina era sair de manhã, vir em casa almoçar, e voltava
pra trabalhar, eu já era casada e tinha filhos, tinha que se virar, ou
deixar em casa só ou pagar par alguém olhar, era uma vira dura e
cansativa! Eu tinha que dar conta da casa do marido e
principalmente dos filhos, eu tinha que mi virar em cem32.
Essa mulher carregava consigo o peso da responsabilidade de trabalho, da casa e do
arranjo familiar que estavam sobre seus cuidados, subjetivamente se observa na fala de D.
Clementina que acúmulo de funções a sobre carregava e o cansaço era companheiro da sua
rotina diária, o que trazia fôlego para viver sua conjuntura de vida era essa busca pela
autonomia que estava subentendida na saída de casa para o trabalho, nas relações tecidas no
ambiente do armazém, os laços de fortalecidos pelas vivências com mulheres que tinha seu
cotidiano semelhante. Mesmo com o exaustivo trabalho no armazém de fumo, a valorização
dada ao fato de sair de casa, a translocava do lugar da objetificação e a colocava como
protagonista e também atora social enquanto esposa e mãe.
Santa Bárbara (2007) ao estudar a trajetória das lavadeiras que tinham como seu
ambiente de trabalho o Tanque da Nação33, em Feira de Santana, ela discute sobre a busca
pela visibilização enquanto indivíduo dentro de uma sociedade que não projetava lugares para
as mulheres pobres em sua maioria negras, mas essas mulheres se enxergavam como

32
Clementina da Silva Ferreira (in memorian), entrevista concedida em: 06 de abril de 2015.
33
Tanque de abastecimento de água, onde as lavadeiras, aguadeiros mantinham como ambiente de trabalho.
243
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protagonistas da sua própria história e ali entre idas e vindas da lavagem de ganho elas entre
elas se dignificavam e ganhavam a vida, enfrentando as sujeições impostas pela falta de
estudo, de colocações mais qualificadas no mercado de trabalho34. A saída da invisibilidade se
dava quando as mesmas conjuntamente criavam laços de sociabilidades e estrategicamente
elaboravam parâmetros para seu trabalho informal que era a lavagem de ganho, essas
mulheres optavam por não ter patrões, e assim, poder coordenar seu próprio tempo de
trabalho, realizando outros serviços que conjugadamente acrescentavam na sua renda.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que fica explicitado nos dois pequenos trechos citados no texto é a versatilidade que
acompanhavam essas mulheres e suas responsabilidades enquanto trabalhadoras e donas de
casa, sair para trabalhar significa sair do silenciamento que as acompanhava enquanto
senhoras dos seus lares. Ter uma ocupação fora de casa seja ela formal ou informal permitia a
essas mulheres uma autonomia sobre suas vidas, o direito ao trabalho mesmo que mal
remunerado e muitas vezes exaustivo, as colocava no lugar do sujeito social que interagem,
interfere e condicionava suas relações sociais, mesmo que subalternizadas e vista de cima
para baixo. A relação de D. Tecla no moinho, como conferente e em alguns momentos
ensacadora, simbolicamente a dignificava como um ente do ambiente de trabalho que
contribuía para o bom serviço daquele moinho, assim, como D. Clementina que trabalhava no
armazém de fumo, o trato com as folhas, o cuidado aplicado à seleção das folhas de fumo e no
fim, resultado compensador do minucioso serviço, promovia nela também dignidade exercida
pelo poder da utilidade promovida pelo trabalho. O cansaço das lavadeiras e feirantes e
fateiras, elas, as quais estavam na informalidade, era subtraído pela sensação de autonomia,
pela operacionalização do tempo o qual poderia se realizar tantos outros serviços que
conjuntamente a renda da lavagem de ganho, a venda na feira e o tratamento das vísceras
bovinas e suínas, contribuíam para seu sustento. As estratégias eram as mais variadas, a
dignidade companheira próxima, pois, todas essas trabalhadoras negras elaboravam para si
formas de se conceberem enquanto indivíduos e agentes modificadores e transformadores da

34
Ver: SANTA BÁRBARA, Reginildes Rodrigues. O Caminho da Autonomia na Conquista da Dignidade:
Sociabilidades e Conflitos entre Lavadeira em Feira de Santana - Bahia (1929-1964). Dissertação –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

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sua própria realidade, mesmo guetizadas vivendo muitas vezes apenas entre o espaço do
trabalho, do bairro de moradia, criavam nesses momentos espaços de visibilidade dentro da
própria comunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIN, Alain. A questão local. Tradução de Orlando dos Santos Reis. Rios de Janeiro:
DP&A, 2001, 240p.
MAGALHÃES, Antônio Ferreira et al. História nas lentes: Feira de Santana pelo olhar do
fotógrafo Antônio Magalhães- Feira de Santana: UEFS Editora, 2009.
SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. Fogões, Pratos e Panelas: Poderes, práticas e
relações de trabalho doméstico. Salvador 1900-1950. (Dissertação Mestrado em História)
– UFBA, Salvador, 1998
SILVA, Mayara Pláscido. Experiências de trabalhadores/as pobres em Feira de Santana.
(1890-1930). (Dissertação Mestrado em História) – UEFS, Feira de Santana, 2012.
SINGER, Paul L. E MADEIRA, Felicia R. Estrutura do Emprego e Trabalho Feminino no
Brasil 1920 – 1970, Caderno CEBRAP 13, São Paulo: Brasiliense, 1975. Pp. 18/20

FONTE ORAL:
Clementina da Silva Ferreira (in memorian) – Entrevista concedida em: 06 de abril de 2015.
Tecla de Santana Araújo (costureira) – Entrevista concedida dia 22/09/2014

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O JORNAL PEDAGÓGICO COMO DISPOSITIVO DE FORMAÇÃO DA MULHER


(1921-1922): REPRESENTAÇÕES E CONCEPÇÕES DA EDUCAÇÃO
FEMININA NA PARAHYBA DO NORTE.

Alanna Maria Santos Borges | alannam.borges@gmail.com


Shirley Targino Silva | shirleyzinhatargino@hotmail.com
Stelyane de Oliveira Melo | stelyanemelo@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O desejo de pesquisar, estudar e escrever sobre a educação feminina, buscando as


ideias e concepções sobre a formação da mulher veiculadas na imprensa da Parahyba do
Norte, no período de 1921 a 1927, surgiu durante o nosso percurso na graduação, no momento
tratando-se de pesquisas de Iniciação Científica (PIBIC). O presente artigo aponta a
constituição dos múltiplos discursos produzidos sobre um tempo, tempo este em que a
sociedade elucidou preceitos sobre as mulheres e a sua educação, a disciplina moral e dos
corpos e entre outras questões durante o período escolar, estando associado aos preceitos
higiênicos e eugenistas, isto porque socialmente e historicamente se construíram saberes e
expectativas sociais em relação à formação dos indivíduos e à sua civilidade.
Durante o período republicano, o país passou por um processo de mudanças, entrando
em destaque novos hábitos sociais (CARVALHO, 2011). Todos estes fatores, ou seja, esses
novos ordenamentos interferiram na organização da sociedade na época e consequentemente
nos modos de comportamento dos sujeitos e na maneira de vivenciar o dia a dia e de se
apresentar nesta mesma sociedade.
A história social da mulher é de suma importância, pois contribui significativamente
para um melhor entendimento da própria História da Educação. Educação esta que não só
conceituamos como a institucionalizada no ambiente escolar, mas como aquela que carrega
todas as concepções e ideologias que influenciam uma sociedade. Essa nova visão ou
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estratégia no campo da História da Educação nos permitiu interrogar os repertórios culturais,


políticos e educacionais da realidade paraibana no tempo estudado, averiguando a circulação
do discurso higienista sobre a mulher, as regularidades e descontinuidades presentes nos
discursos, sobretudo, a existência de conteúdo eugenistas.
O interesse em pesquisar e estudar sobre a história da mulher na Parahyba do Norte
nos impressos pedagógicos se deu pela importância da temática abordada, além do jornal
pedagógico ser fonte de pesquisas na literatura nacional, faltando investigações na Paraíba,
especialmente na perspectiva higienista. As pesquisas realizadas apontam a representatividade
da imprensa, sobretudo do jornal, como fonte e, no presente caso, a imprensa pedagógica,
cujo discurso higienista é um indício do que pensava a sociedade paraibana sobre o processo
educacional das mulheres no período mencionado, configurado como Primeira República.
Como espaço de produção de discursos e sentidos, aborda temáticas relacionadas à educação,
já que esse jornal foi produzido para professores com a finalidade de se constituir em guias de
suas ações.
Com o objetivo de investigar os discursos médico-higienistas produzidos e construídos
socialmente sobre a mulher nos anos de 1921 a 1922, procuramos analisar como foram se
constituindo no cenário local, a produção e as práticas não discursivas sobre a mulher e sua
educação, associadas aos preceitos higiênicos e eugenistas. No início, realizamos a coleta
documental e a escolha bibliográfica, as quais deram suporte aos objetivos e à temática
escolhida, em busca dos documentos que se constituíram em fontes históricas para a pesquisa
e que tratavam do discurso médico-higienista na escola.
Escolhemos trabalhar com um jornal pedagógico que circulou no início do século XX
na Paraíba, entre 1921 e 1922, propagando assuntos do interesse da sociedade em todos os
seus exemplares, tornando-se representativo para a impressa pedagógica por circular durante
um período em que muitos pesquisadores destacam como um momento de ruptura e de
mudanças no processo civilizatório da população no Brasil durante a Primeira República. A
análise da fonte pesquisada teve como referência a analítica de Michel Foucault, através das
estratégias da arqueologia e da genealogia, segundo a análise do discurso, considerando sua
produção em cenários das relações de poder-saber, seguindo duas etapas: análise do conteúdo
propriamente dito e catalogação dos documentos. Sobre a importância do documento para a
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História, assevera Foucault (2000, p. 8):


A história, em sua forma tradicional, se dispunha a “memorizar” os monumentos do
passado, transformá-los em documentos e fazerem falar estes rastros que, por si
mesmos raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que
dizem; em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumento
e que se desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se
tentava reconhecer em profundidade o que tinha sido, uma massa de elementos que
devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados
em conjuntos.
Foram selecionadas todas as matérias que tratavam das representações e concepções
da formação da mulher em uma perspectiva higienista com foco no disciplinamento dos
corpos e com a higiene mental e moral das mulheres durante sua escolarização/formação no
período histórico abrangido. Nesse sentido, pretendemos, com esta pesquisa, demonstrar os
aspectos da sociedade da época pela visão civilizatória e disciplinadora, sobre as mais
variadas faces educacionais. Portanto, reconstruir o passado é compreender o que fizemos na
história das mulheres paraibanas, os modos como a significamos ou quais concepções e ideias
sobre as mulheres esses discursos inventaram.

AS REPRESENTAÇÕES DOS PAPÉIS FEMININOS VEICULADOS NO JORNAL


O jornal pedagógico pesquisado possibilitou-nos compreender e conhecer o que a
sociedade paraibana esperava da mulher, através das representações dos papéis femininos
veiculados em suas páginas jornalísticas. Os papéis femininos divulgados no jornal estão
ligados ao cuidado social, ao disciplinamento dos corpos e a qualidade de vida, sendo possível
perceber em algumas matérias a preocupação em relação aos papéis femininos, tendo em vista
a condenação da participação da mulher na sociedade, colunas estas explanadas em O
Educador, intitulado como: A Mulher, e de acordo com as matérias, a mulher deveria
trabalhar exclusivamente no lar.
Dialogar sobre essas representações e o papel feminino para a sociedade da época é
procurar veicular a representação desses papéis como primordiais, já que é atribuído à mulher
o papel de salvadora e redentora de uma sociedade decadente, repleta de mazelas. Para tal
atribuição, a mulher é tida como uma fonte inesgotável de pureza, de ordem e postura. Dessa
forma, a mulher seria um bom exemplo de filha, esposa e mãe.
Nesse processo histórico também é reconhecido que a história das mulheres pode ser
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escrita. Hoje, finalmente, é uma área acadêmica consolidada. Depois do silêncio rompido a
que estavam confinadas, é que tem início um movimento de luta coletiva das mulheres em
todo mundo. Porém, devido ao acesso da escrita chegar tardiamente às suas vidas, poucos
vestígios diretos, escritos e materiais, sobre suas produções historiográficas. Os escritores,
observadores e cronistas da época, em sua grande maioria eram homens, a escrita era reduzida
ou ditada de estereótipos, diziam pouco sobre as mulheres reais.
O mesmo ocorre com as crônicas medievais e as vidas de santos: fala-se mais de
santos do que de santas. Além disso, os santos agem, evangelizam, viajam. As
mulheres preservam sua virgindade e rezam. Ou alcançam a glória do martírio, que é
uma honra suntuosa. (PERROT, 2013, P.18).
Já no século XX, as mulheres têm acesso à universidade, algumas se interessam pela
história das mulheres, mas ficam à margem do processo revolucionário sobre historiografia,
que estava acontecendo na França, com o movimento dos Annales. A escola dos Annales traz
um caráter inovador sobre a historiografia, rompendo com o exclusivismo político,
enfatizando a visão econômica e social como suas prioridades. Para os membros dos Annales,
a história das mulheres não era cogitada como diferença de sexos e também não se constituía
como uma categoria de análise. O movimento era composto apenas por pesquisadores
homens.
O nascimento da história das mulheres acontece primeiramente na Grã- Bretanha e nos
Estados Unidos da América nos anos de 1960 e na França surge nos anos de 1970. Foi nessa
década que aconteceu uma renovação na crise dos sistemas (Marxismo e Estruturalismo), a
história passa a se aliar com a antropologia e redescobrem a família e começam a pensar nas
medidas de todas as dimensões familiares. Essa trajetória nos leva ao funcionamento de um
novo processo de historiografia, pelo viés da família, novos personagens surgem na história: a
mulher, a criança, o jovem, as idades da vida e outros. A Nova História Cultural, também
conhecida como a terceira geração dos Annales, muda o clima intelectual das academias e a
maneira de escrever história.
Por fim, os rumos que as leituras realizadas tomaram nos levaram a analisar a trajetória
individual dessas mulheres que, através da imprensa, puderam militar e divulgar suas ideias
de forma a despertar em outras mulheres um sentimento de valorização de suas conquistas.
Essa primeira imprensa é muito original, não somente por seu conteúdo, mas
também por sua representação. Além do uso antipatriarcal do patronímico, abre uma
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“tribuna de leitoras”, que suscita muito interesse e manifesta a vontade de criar uma
rede. (PERROT, 2013, P.34).
Face ao exposto, pondo em comparação com a realidade paraibana da época à qual nos
reportamos, pode-se perceber que essa impressa reivindica o direito da mulher ao trabalho, a
autonomia na escrita, a formação de grupos e cooperativas e até um engajamento maior pelo
poder do sufrágio.

A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO PARA A MULHER PRESENTE NO JORNAL


Nos artigos publicados no jornal, encontramos discussões sobre a educação feminina e
a preocupação com os novos hábitos sociais que foram proferidos ao longo do recorte
histórico mencionado. A educação feminina moldava-se aos preceitos higiênicos e a
delimitação de diferentes papéis atribuídos ao dia a dia das mulheres da época. Essa educação
foi defendida com base nos ecos de mudanças propostos pelos republicanos na Parahyba do
Norte e nos novos ordenamentos políticos e sociais de um regime governamental com ideais
desenvolvimentistas e civilizatórias, tornando-se um recurso para solucionar os males
existentes que dizimavam o nosso país, especificamente a população da Paraíba. Sobre a
importância da educação civilizatória e sanitária, declaram Souza e Vieira (1936, p. 13):
Effectivamente, as transformações no modo de vida, principalmente a partir dos
ultimos anos do seculo passado, e devidas não somente ao desenvolvimento
verificado nos grandes centros, como ás difficuldades crescentes com que luctam as
populações pobres, trouxeram á tona grande numero de problemas de ordem social,
cuja repercussão sobre a saude publica tem sido consideravel.
O imaginário das representações para mulheres feito pelo higienismo era vasto e
reservava várias surpresas e representações. Aos poucos, os discursos, as práticas e a
medicina higienista invadem todo o espaço urbano e tornam-se aparelhos de intervenções
higiênicas. A partir daí a condição de vida dos indivíduos passa ser associada à condição de
saúde das cidades.
Várias transformações marcaram a década de 1920 e isso gerou uma grande
transformação social pois, com a migração dos povos para as grandes cidades, foi organizado
um novo modelo de sociedade. Essa nova forma organizacional possibilitou a inserção da
mulher no mercado de trabalho, para suprir uma mão de obra barata. A presença das mulheres
no mundo do trabalho revela grandes questionamentos, porque a sociedade entendia que a

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educação das mesmas deveria ser voltada para o lar e seus aprimoramentos nos estudos eram
para a educação de seus filhos, para administrar bem sua casa, contribuindo com o bom
desempenho do homem como provedor da família. Foi justamente contra esse modelo de
educação que as mulheres se uniram em busca de uma nova posição social, assim, procuraram
seguir as carreiras do magistério e inserir-se em outras áreas do mercado de trabalho.
A sociedade da época foi marcada pela transição do antiquado para o moderno, pois
trouxe uma nova discussão baseada na igualdade e na liberdade. Os artigos publicados nas
revistas se referiam à beleza, moda e ao comportamento feminino, isto é, uma linha de
pensamento ligada à educação, pois os jornais como veículos de informação, possuíam um
amplo conceito e englobavam, principalmente, o processo de ensinar e aprender. Com o
passar dos anos, as revistas e jornais comandados por mulheres começaram a apresentar uma
nova dimensão de conhecimento com uma base de transformação da sociedade, pois até então
a mulher era vista como um objeto.
Por termos contato com várias fontes dessa mesma época, podemos afirmar que
muitas dessas mulheres envolvidas com a impressa também eram professoras. E
contemplavam a educação como sendo um passo para o desenvolvimento econômico e
industrial do país, de modo que a formação seria necessária à população para que esta pudesse
adquirir melhores condições de vida.

O DISCURSO HIGIENISTA SOBRE A MULHER PRESENTE NO JORNAL


A escola apresenta-se como um novo instrumento para a ação higienista, se
constituindo em um campo fundamental para a execução intervencionista do movimento
higienista. Nessa percepção, fez-se necessária a atuação dos médicos-higienistas no cotidiano
escolar, buscando inculcar um padrão higiênico que possibilitasse uma ação salvacionista no
desenvolvimento físico e mental na vida das mulheres, jovens e crianças, cabendo às
educadoras sanitárias corrigir os maus hábitos de seus alunos e discipliná-los com
ensinamentos higiênicos.
Como destaca o discurso abaixo:
Estamos, agora, na éra da hygiene. Cimenta-se, no espirito do que observam e
investigam a convicção de que o futuro humano depende, preponderamente, da
obediência ás normas sanitarias, por parte das sucessivas gerações; e que a incúria e
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o menoscabo, no tocante á hygiene, tem sido e está sendo de consequências funestas.


Os grandes males physicos ante os quaes a medicina, muitas vezes, cruza os braços,
parece que se universalizam. Para combatel-os em tão grande numero, e abrir a
perspectiva de melhores tempos, um só instrumento existe de reconhecida efficacia:
a hygiene. Só a hygiene, convenientemente obedecida pelo individuo, poderá oppor-
se á torrente morbida, e estancal-a no nascedouro. (Almeida Junior, 1922, p. 29).
O discurso higienista entrou em evidência na Parahyba do Norte ratificando os
enunciados defendidos pela sociedade da época, penetrando desta maneira, no seio familiar e
modificando a forma de relacionamento entre os indivíduos. No Jornal O Educador, tais
discursos são apresentados ao leitor (a) e a população de modo geral com aspecto
conscientizador, ou seja, traduzindo tal discurso como um caminho de prevenção para os
males existentes na região, a partir dos argumentos modernistas e de civilização de um povo.
O movimento higienista durante a Primeira República na Paraíba ocorreu em prol do cuidado
social com a cidade e com os sujeitos e o seu corpo.
As análises do discurso sobre a mulher no jornal pedagógico O Educador nos
conduziu aos conteúdos jornalísticos condizentes com as concepções da higiene escolar e
pública e o papel do médico na escola (o médico-higienista escolar e a inspetoria de higiene
escolar). Tal perspectiva de análise nos possibilitou compreender o discurso higienista, cujos
enunciados centrais eram o cuidado social com a mulher e sua moral, segundo os autores das
matérias jornalísticas publicadas. A importância da utilização de impressos, no caso particular
deste estudo os jornais pedagógicos –, guardadas as devidas proporções sobre o que
significavam e a importância concedida a esses dispositivos no tempo que compreende o
estudo –, como fontes de pesquisa para os estudos em História da Educação vincula-se a
estratégia de investigar os registros que os jornais faziam circular sobre a mulher como
categoria social na particularidade do cenário paraibano, e tem implicações que carecem que
se problematize quanto à própria produção e circulação, pois:
Os impressos também selecionam, ordenam, estruturam o acontecido, os fatos.
Estrategicamente, narram aquilo que passou, selecionando interesses, atuando num
jogo desequilibrado de forças. Forjam, legitimam e retificam valores, ideias,
projetos, mobilizam discursos na produção de verdades. Operam na eleição dos fatos
que chegam ao público, e na forma como os mesmos devem ser recebidos
(LIMEIRA, 2012, p. 369).
O discurso higienista feminino começa a ser discutido no jornal O Educador no dia 30
de Janeiro de 1921 e se estende até o dia 16 de Junho de 1922, com tiragem semanal, sempre

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expondo na segunda página matéria sobre A MULHER. O discurso higienista presente no


jornal carrega as influências das questões do contexto social e pedagógico do tempo
pesquisado, ou seja, as mudanças na educação e na sociedade, tendo em vista a necessidade
de transformá-las segundo os preceitos europeus modernistas, através de estratégias para
incutir nas crianças as práticas higiênicas, “libertando-as dos vícios” e das mazelas da
sociedade. As matérias sobre a mulher estiveram nesse período interligada com a higiene
pública, definida como um meio de propagar a prevenção das doenças e o cuidado com a
saúde (controle das moléstias), a mente e o corpo.
Como destaca matéria do jornal:
A mulher é inexgottavel thesouro de bens, que necessita cuidar e zelar com muito
tino, não incuntindo-se-lhe nos espiritos malfadados e preceitos que arruinam-lhe os
bons sentimentos, dando o reverso... Tudo está dependente de uma bôa e rumada
educação, firmada na sã moral. (JORNAL O EDUCADOR, 1922, p.1).
Os higienistas adentraram as escolas buscando atingir a população paraibana sobre a
importância da transformação da sociedade a partir dos ensinamentos de higiene pessoal e
pública, tendo por finalidade proporcionar uma vida sadia, ativa e útil para as mulheres. Os
ensinamentos pedagógicos aliados à higiene escolar se propunham ser o caminho
“salvacionista” para os males existentes na sociedade paraibana, propondo-se atuar na
mudança social de acordo a disciplinamento e o controle dos corpos e mentes para a formação
de mulheres aptas fisicamente para as diversas circunstâncias da vida. As matérias
jornalísticas do jornal O Educador sobre a higiene nas escolas paraibanas configuram um
momento de constituição e apropriação do discurso médico-higienista sobre a educação e
sobre a escola, centralizando-se na concepção de bem social da população: médicos e
professores viam a escola como espaço coletivo disseminador dos males existentes que
assolavam a sociedade, pois as condições sanitárias e higiênicas da Paraíba eram precárias,
não havia controle sanitário e os cidadãos estavam sujeitos e expostos às doenças e epidemias.
Nota-se que o discurso higienista insere-se, portanto, neste período como um controle
social e exercício de poder por parte do Estado sob a população em geral, população esta que,
em sua grande maioria, não tinha condições e nem meios para acompanhar e exercitar tal
discurso por vários fatores, sejam eles econômicos, políticos ou sociais. Assim, a Paraíba
passou a afirmar o discurso médico como um caminho de prevenção para os males existentes

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na região.
Consideramos, a partir da fonte documental, que os médicos higienistas consideravam
a escola como um espaço para transformação dos males existentes, e, por esse motivo atuaram
fortemente na área educacional, produzindo e fazendo circular discursos sobre o equilíbrio
dos indivíduos em vários aspectos, tendo como objetivo sanar as dificuldades geradas no
campo pedagógico, começando pela instrução infantil e, em seguida, na formação da mulher.
Era preciso que a higiene se fizesse presente em todos estes espaços da escola (dimensões da
sala de aula, construção do prédio, entrada do ar e mobílias).
Nas minuciosas prescrições e detalhes das matérias presentes no jornal, notamos a
vontade de um controle absoluto; ou seja, o higienismo como um meio para o
esquadrinhamento da mulher, corpos dóceis a serem governados, com o intuito de prevenir os
desvios morais, físicos e intelectuais, dando relevância à elaboração de critérios para sanear a
sociedade das problemáticas existentes, sendo este fator fundamental para transformar o país
numa nação civilizada, moderna. Assim, a Paraíba passou a afirmar o discurso médico como
um caminho de prevenção para os males existentes na região. Através desse discurso e de sua
concepção sanitária, a educação escolar e as mulheres passaram a ser um objeto de ação
higienizadora e moralizadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O diagnóstico desse estudo apresenta que foi exatamente pelo processo de educação
que algumas mulheres ingressaram na sociedade, as mesmas passaram a ter uma importância
social, política e cultural. A participação da mulher nos meios de comunicação teve
fundamental importância para as mudanças de pensamento da sociedade paraibana, por isso
negar a participação da mulher nos acontecimentos históricos da sociedade é um desserviço à
produção histórica. Com base nos resultados e nas discussões que realizamos sobre as
matérias que foram escritas no Jornal O Educador – Orgam do Professorado Primario entre
os anos de 1921 e 1922, explicitamos as representações divulgadas no periódico, como
também, percebemos que o discurso higienista, instrução feminina e o cuidado social sempre
estiveram expostos no jornal como ideais, procedimentos e hábitos que deveriam ser seguidos
e que mudaram a rotina dos habitantes da Parahyba do Norte.
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A nossa pesquisa buscou expressar os discursos proferidos pela sociedade sobre a


higiene escolar e pública e o processo de mudança sofridos pelos sujeitos no decurso do
processo de higienização nos espaços públicos e privados. Vimos também que o jornal
pesquisado criou páginas importantes para entendermos o contexto social da época, embora,
por muitas vezes, as autorias de tais escritos fossem repetidas, o que demonstra que apenas
um pequeno grupo de escritores tinham o espaço garantido no jornal. A partir da interpretação
que fizemos com relação ás representações apresentadas no jornal e sobre a sociedade, todas
as suas questões não se distanciam das demais que estão a sua volta, ou seja, daquelas que
escolhemos analisar. O cenário apresentado na pesquisa caracteriza a história das concepções
de ensino e educação para a mulher, mostrando-nos a ordenação dos sujeitos pelas instituições
escolares, através das estratégias de regulação e controle efetivadas pelas ações de poder e
saber estabelecidas pelos poderes vigentes (República) sobre a população e, principalmente,
sobre a mulher. Por fim, acreditamos que estes resultados e descobertas que aprendemos no
Jornal O Educador satisfazem os objetivos propostos por esta pesquisa, pois pudemos
compreender esse tempo e os mecanismos que instituíram a educação feminina e o discurso
higienista na Paraíba, ampliando e aprofundando os nossos conhecimentos e competências
para a pesquisa em História da Educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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seus sujeitos na história. Belo Horizonte, MG: ARGVMENTVM, 2007.

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OS GRÊMIOS ESTUDANTIS NA PARAHYBA DO NORTE: ASPECTOS


HISTÓRICOS, POLÍTICOS E EDUCACIONAIS – 1880\1930

Favianni da Silva | favianni_silva@yahoo.com.br


Ursula Lima Brugge
INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a investigar, com ênfase nas análises históricas, os


grêmios e associações estudantis na Parahyba do Norte, criados no âmbito do Lyceu
Parahybano, ou sob sua influência, entre os anos de 1880, época da criação e surgimento das
primeiras organizações na Parahyba do Norte, a 1930.
De uma maneira mais especifica, geral, trata-se, um ensaio autoral, com intenções de
tecer algumas questões a respeito da Historia dos movimentos estudantis, partindo do
pressuposto de que os grêmios estudantis, mais especificamente, aqueles criados por
iniciativas dos estudantes e/ou orientados por mentores políticos e /ou professores do Lyceu
Parahybano, foram espaços educativos destinados à formação intelectual da elite paraibana e
de atuação política de maioria liberal e republicana. Essa formação e atuação políticas se
davam por meio das inúmeras associações cívicas e literárias (ou recreativas), criadas no final
do século XIX, cujo modelo organizacional antecede as atuais organizações estudantis do
início do século XX e que tinham como objetivos o estímulo “à cultura dos sentimentos
morais e cívicos” e ao desenvolvimento do “gosto pela instrução científica, literária e
técnica”, constituindo-se, assim, em uma problemática de estudo por excelência.
Nesse sentido, trata-se de entender estas agremiações enquanto espaços estratégicos de
atuação e participação política e social, cujos sujeitos históricos, isto é, os estudantes, eram
portadores de uma determinada cultura escolar, entendida, aqui, como um conjunto de normas
e práticas (educativas, políticas e culturais), produzidas historicamente por sujeitos e/ou
grupos determinados, com finalidades específicas, que estão relacionadas às definições dos
saberes a serem ensinados, às condutas a serem modificadas e a todo um processo, não só de
transmissão de saberes, mas de modificação do habitus pedagógico35.

35 NUNES, C. “(Dês)Encantos da modernidade pedagógica”. In: Lopes, E. M. T., Faria Filho, L. M & Veiga, C. G (Orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte,
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Inscrito na perspectiva da Nova História Cultural e a Nova História Política, mais


especificamente, numa (abordagem) forma de fazer História relativa à História do Discurso
(com relação às fontes). Já com relação aos campos de domínios das pesquisas históricas,
destaque para a História do movimento estudantil (em relação aos agentes históricos) e para a
História da educação (em relação aos ambientes sociais ou objetos). O estilo preferencial é a
narrativa, mas não a narrativa ficcional, pois a analise se apoia em fontes documentais, em sua
maioria bibliográfica e jornalística, levando em conta uma rigorosa análise das mesmas. A
metodologia adotada é algo muito próximo àquilo que Ginzburg36 intitulou de “paradigma
indiciário”, denominada por Barros37 de “análise intensiva das fontes”, entendida aqui como a
maneira pela qual é possível se movimentar sistematicamente em torno de um termo como
este, tomando como fontes privilegiadas jornais e revistas da época, registros oficiais, além da
historiografia. Nessa perspectiva metodológica, adota-se um conjunto de princípios e
procedimentos que contém a proposta de um método heurístico centrado no detalhe, nos
dados marginais, nos resíduos tomados enquanto pistas, indícios, sinais, vestígios ou sintoma.
Quanto as notas bibliográficas, as mesmas se encontram no rodapé de do texto, dispensando
assim as referências no final do texto.
Para isso, o uso recorrente do conceito de cultura escolar e do conceito de práticas
escolares evidencia a fertilidade desta temática para explicar a complexidade da educação
moderna e contemporânea, nas quais se entrecruzam muitos fatores e determinantes que,
embora abordados de modo específico para garantir o necessário aprofundamento, devem ser
integrados a um quadro mais amplo que lhes der significação. É assim, portanto, a riqueza dos
estudos sobre o cotidiano escolar, os ritos escolares, os valores preponderantes, as estratégias,
a produção e circulação de ideias e a constituição das formas de organização e representação
estudantis, tendo como objetivo aprofundar o conhecimento sobre determinado período,
região, espaços e sujeitos que ganham significado como componentes da cultura produzida e
disseminada numa instituição de ensino.38
Dessa maneira, o estudo das culturas e das práticas escolares será problematizado à luz

2000. pp. 371 – 398 (coleção Historia, 6).


36 GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” IN Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
37 IDEM, Barros 2004.
38 MONARCHA, Carlos. Estudos Históricos em Educação: entre antigos e modernos. In: SOUZA, Rosa Fátima de e VALDEMARIN, Vera Teresa (orgs). A cultura escolar em debate:
questões conceituais, metodológicas e desafios à pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. Apoio Unesp/FCLAr – (Coleção educadores contemporâneos).

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das relações de poderes que se estabeleceram para legitimação de um modelo de


representação estudantil, na forma de grêmios e associações estudantis criados na Paraíba,
levando em consideração as tensões e conflitos desencadeados entre alunos, professores e
família e o poder estatal.39 Lembrando a advertência de Burke40, “é preciso investigar as
mudanças nas permanências como estratégias de inteligibilidade, as singularidades dos
acontecimentos na história”.
Assim, a historia abre-se para questionamentos, mesmo que de forma sucinta, que
permitam não apenas reexaminar os acontecimentos de uma época, através da configuração
do ambiente histórico da sociedade, mas também, reconstruir, historicamente, questões
educacionais, políticas e culturais que possibilitaram a participação dos estudantes nas
atividades de sua instituição de ensino, bem como, participar na construção da história da
organização política estudantil na Paraíba.

BREVES ANOTAÇÕES SOBRE OS GRÊMIOS ESTUDANTIS, POLÍTICA E


CULTURA ESCOLAR

No Brasil, a participação dos movimentos populares nas questões políticas, sociais e


econômicas do país sempre contou com diversos setores da sociedade, entre eles os grêmios
estudantis.
Segundo Poerner, autor da mais importante obra sobre a historia do movimento
41
estudantil, “o poder Jovem” , o Grêmio Estudantil constitui-se no espaço coletivo de
discussões, onde os estudantes tiveram a oportunidade de expor suas opiniões a respeito da
comunidade escolar (suas necessidades, desejos, funções, tanto nas questões administrativas
como nas questões pedagógicas), participando ativamente na construção do processo
educacional.42
Em 1710, ocorre a primeira manifestação estudantil anotada na história brasileira,

39 VIDAL, Diana Gonçalves. Cultura e prática escolares: Uma reflexão sobre documento e arquivos escolares. In: SOUZA, Rosa Fátima de e VALDEMARIN, Vera Teresa (orgs). A
cultura escolar em debate: questões conceituais, metodológicas e desafios à pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. Apoio Unesp/FCLAr – (Coleção educadores
contemporâneos).
40 BURKE, Peter. História e teoria social. Trad. de Klauss Brandini Gerhardt, Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p.63.
41 POERNER, A. J. O poder jovem. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1979.
42 AGUIAR, R.C.L.; GRÁCIO J.C. Grêmio Estudantil: construindo novas relações na escola. In:

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onde estudantes de conventos e colégios religiosos se revoltam contra os franceses que


haviam invadido o Rio de Janeiro. Os estudantes participaram ativamente também da
Inconfidência Mineira e se engajaram nas campanhas pela Abolição da Escravatura,
Proclamação da República, Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, e Sabinada e
Guerra de Canudos, na Bahia.43
Em 1901, surge a Federação de Estudantes Brasileiros. Em 1917, surge a Liga
Nacionalista que organiza a juventude em campanhas de cunho cívico e social. Com a
Revolução Constitucionalista, a juventude mais organizada e politizada se integra à Juventude
Comunista e à Juventude Integralista. Com a fundação da USP – Universidade de São Paulo –
, em 1934, e a criação da UNE, em 1937, o movimento estudantil, que até então congregava
tanto os secundaristas quanto os universitários, ganha corpo e marca sua preocupação com os
problemas nacionais, que vão desde a discussão sobre o analfabetismo, a luta pela indústria
siderúrgica nacional e a criação da Petrobrás.44
Na Paraíba, as entidades estudantis dessa natureza não existiram nos primeiros 50 anos
de existência do Lyceu (1836 – 1873).45 Por essa razão, pouco influiu o corpo discente, “com
seus líderes e suas associações, sua consciência estudantil e sua expressão literária”, na
política escolar ou repercutiu como política cívica.46. No recorte especifico do texto (1880 a
1930), o contexto histórico é marcado pelo processo de implantação do modelo Republicando
de Estado, conhecida como Primeira Republica. Nela, o poder passou a ser exercido pelos
coronéis e as oligarquias locais. A República oligárquica caracterizou-se pela maior
concentração de poder pelas elites regionais, fazendo uma teia de alianças e rivalidades que se
estendia do poder local até instâncias políticas e burocráticas dos Estados e da União, naquilo
que ficou conhecido como a política dos governadores. (FAUSTO, 2006).
Na Parahyba, assim como no resto do País, durante a Primeira Republica (1891 a
1930), o poder passou a ser exercido pelos coronéis e suas oligarquias47 (GURJÂO, 1999 p.

43 IDEM, Poerner, 1979.


44 IDEM, Poerner, 1979.
45 IDEM, Menezes, 1982.
46 IDEM, Menezes, 1982, p. 235.
47 Em sua configuração original, a palavra oligarquia indica o “governo” (archein) “de poucos” (oligos). Contudo, o pensamento político ligado à oligarquia não esteve rigidamente
submetido a essa única forma de compreensão. Na Grécia Antiga, a expressão oligarquia era negativamente empregada para se fazer referência a todo o regime que fosse comandado por
pessoas com alto poder aquisitivo. Desta forma, os governos oligárquicos foram confundidos com o governo das elites econômicas. Apesar dessa acepção, o termo oligarquia poder ser
muito bem empregado em outras situações políticas. Quando observamos, por exemplo, que um mesmo partido político ocupa os mais altos escalões de um governo, podemos identificar o

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53 a 95). Os “novos donos do poder”, passaram a governar a Nação com base na dominação
da política de seu estado, exercendo uma prática política personalista e patrimonialista
(FAORO, 2001). Segundo Linda Lewin (1993, p.73), o Estado da Parahyba do Norte passou
por três oligarquias: o “venancismo”, comandado por Venâncio Neiva. (juntamente com
Epitácio Pessoa), primeiro governador republicano do estado, no período de 16 de novembro
de 1889 a 27 de novembro de 1891. Com a dissolução da primeira junta governativa estadual
(Neiva – Pessoa), em seu lugar é endossada uma nova, cujo grupo político, daria origem a
oligarquia “Machado – Leal” ou simplesmente “alvarista”, na figura de seu líder maior,
Álvaro Machado. Por fim, a terceira oligarquia, foi o epitacismo (antigos venancistas e
epitacista), na figura do ex-presidente da República Epitácio Pessoa, quando assumiu o
controle do Partido Republicano Conservador – PRC, em 1912, comandando assim os rumos
da política até 1930.
Do ponto de vista da Historia da educação, segundo Romanelli (2010, p.42), a
Constituição da República de 1891, que instituiu o sistema federativo de governo, consagrou
também a descentralização do ensino, ou melhor, a dualidade de sistema48, cabendo a União o
direito de “criar instituições de ensino superior secundário nos Estado” e “prover a instrução
secundaria no Distrito Federal”, o que, consequentemente, delegava aos estados competência
para prover e legislar sobre a educação primária. Na prática, cabia à União criar e controlar a
instrução superior em toda a Nação, bem como criar e controlar o ensino secundário
acadêmico e a instrução em todos os níveis do Distrito Federal, e aos estados cabia criar e
controlar o ensino primário e o ensino profissional, que, na época, compreendiam
principalmente escolas normais (de nível médio) para moças e escolas técnicas para rapazes.
Ainda segundo essa autora, neste período, o ensino secundário no Brasil ainda
guardava muitas heranças do período Imperial, entre elas, o caráter elitista e a formação
essencialmente propedêutica. No âmbito do ensino secundário, cabia ao Governo Federal criar
e legislar sobre o ensino secundário por ele mantido. Essa legislação atingia diretamente os
estabelecimentos mantidos, pelos estados e pela iniciativa particular, por duas razões mais

desenvolvimento de uma oligarquia. Em geral, a presença das práticas oligárquicas impede que amplas parcelas da população participem do debate político. Dessa forma, podemos ver que
a oligarquia diverge do atual sentido dedicado à democracia. Na História do Brasil, o termo oligarquia é costumeiramente empregado para se fazer menção às primeiras décadas do seu
regime republicano. Em tal período, compreendido entre 1894 e 1930, os grandes proprietários de terra utilizavam de sua influência política e econômica para determinar os destinos da
nação. Apesar da presença de um sistema representativo, a troca de favores, a corrupção do processo eleitoral e outros métodos coercitivos impediam a ascensão de outros grupos políticos.
48 Art. 35, itens 3 e 4 da Constituição da República de 1891.

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importantes: primeiramente, porque o Governo Federal controlava e regulamentava o ingresso


nos cursos superiores, levando os estabelecimentos de ensino secundário a procurarem
adequar seus cursos a tais exigências; em segundo lugar, aqueles estabelecimentos estaduais e
particulares que seguissem as normas federais seriam equiparados ao Colégio de Pedro II, isto
é, aqueles que neles se formassem teriam os mesmo direitos que os formados pelo Pedro II,
como o direito de ingressar em cursos superiores sem prestar novos exames. (IDEM. P.43).
Na Parahyba do Norte, havia três escolas equiparadas ao Colégio Pedro II. A Escola
Normal, o Colégio Nossa Senhora das Neves, destinado essencialmente ao sexo feminino, e o
Lyceu Parahybano, a mais antiga instituição de ensino de nível secundário do Estado. Este
último estabelecimento educacional foi estabelecido na Capital parahybana pela lei de nº 1, de
24 de março, e regulamentado, a primeira vez pelo decreto nº 11, de 19 de abril de 1837.
Desde então, era a principal instituição de ensino do Estado, berço cultural capaz de reunir
homens de estudos e líderes comunitários letrados, na Província da Parahyba. Por muito
tempo, O Lyceu parahybano foi a principal instituição de ensino do Estado, berço cultural
capaz de reunir homens de estudos e líderes comunitários letrados, na Província da Parahyba.
Segundo Ferronato, na Província da Parahyba do Norte, a criação do seu Lyceu Provincial,
em meio aos problemas do período regencial, esteve inserida no processo do chamado pacto
imperial, estabelecido entre as elites provinciais com o poder central, particularmente,
conduzido pelos liberais.49
Para José Rafael de Menezes, entre 1850 e 1929 a sociedade paraibana foi lyceana.
Segundo o autor de “História do Lyceu Parahybano”, todas as lideranças administrativas
‘nasceram’ no Lyceu. Todos na condição de professores ou alunos. Durante meio século
(1880 a 1930), foram criados diversos grêmios estudantis, muitos deles pela comunidade
lyceana, o último deles foi o Grêmio Cívico Literário 24 de Março, fundado no dia 02 de
Abril de 1921, nome em homenagem a lei de criação da Instituição.
Em sua obra sobre a “História do Lyceu Parahybano”, Menezes afirma que na Paraíba,
as entidades estudantis dessa natureza não existiram nos primeiros 50 anos de existência do

49 FERRONATO, Cristiano de Jesus. Das aulas avulsas ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações do ensino secundário na Província da Parahyba do Norte/ Cristiano de Jesus
Ferronato. - João Pessoa: [s.n.], 2012.

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Lyceu (1836 – 1873).50 Por essa razão, pouco influiu o corpo discente, “com seus líderes e
suas associações, sua consciência estudantil e sua expressão literária”, na política escolar ou
repercutiu como política cívica.51. O autor elenca dois fatores principais para a pouca
atividade cívica e cultural dos discentes do Lyceu. O “autoritarismo pedagógico” pautado no
ensino tradicional, onde a distância entre “mestres e pupilos” não favorecia a associação dos
discentes em centros autônomos. Além disso, havia o relativo isolamento institucional do
Lyceu, haja vista a inexistência de outras escolas na Província naquele período. Essa situação
somente mudaria a partir dos anos de 1870, quando a geração dos “bacharéis políticos”
passou a libertar-se das influências dos “Padres Mestres” (eruditos, sisudos, os donos do
saber) na direção do Lyceu, influenciando, assim, a formação de centros autônomos, sob
estímulos e diretrizes de matriz institucionalizadora, como, por exemplo, a campanha pela
Guerra do Paraguai, o abolicionismo e o republicanismo.52
Por conta disso, a relação entre professores\diretores e alunos adquiriu outros
significados. Segundo Menezes, a geração dos “bacharéis políticos” foi responsável por uma
melhor aceitação dos alunos, principalmente, entre aqueles que assumiam por idade do que os
outros eleitos pela congregação e\ou nomeados dentro de critérios políticos. Um exemplo
disso foi dado pela “liderança diplomática” de Lindolfho Correia Neves, então diretor do
Lyceu, em 1923, no “infausto” mês de setembro da “tragédia” de Sady Castor. Segundo
Nóbrega, Autor do livro História Republicana da Paraíba (1950). “sem o seu prestigio junto
aos estudantes e aos professores jovens, tudo teria se agravado, com possíveis chacinas
estudantis”.53
Durante quase meio século, inúmeros grêmios se sucederam, muitos com curtíssima
duração. Infelizmente, não é ainda possível saber quantas agremiações existiram ou quais suas
orientações cívicas e\ou literárias. Sabe-se, apenas, que os primeiros grupos estudantis só
foram reconhecidos institucionalmente em 1889. Nesse ano, os alunos do Lyceu fundaram o
Grêmio Benjamin Constant, em homenagem ao “Fundador da República Brasileira”, na

50 IDEM, Menezes, 1982.


51 IDEM, Menezes, 1982, p. 235.
52 IDEM, Menezes, 1982, p.235 -236.
53 NÓBREGA, Apolônio. História Republicana da Parahyba. Departamento de Publicidade. Divisão de Imprensa oficial. João Pessoa – Paraíba – 1950.

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ocasião da visita de Silva Jardim a Paraíba,54 demonstrando claramente suas intenções


republicanas. Segundo Luiz Hugo Guimarães55: o “Clube Benjamin Constant” foi fundado em
1º de junho de 1889; dele teria participado Irineu Pinto, que mais tarde teria sido seu
presidente, segundo seu filho Piragibe, e J. Veiga Júnior. Esse informe não foi possível
comprovar nem nas anotações de Álvaro Carvalho nem no trabalho de Eduardo Martins, que
descreveram as atividades desse grêmio. Ainda segundo Menezes56, “o civismo da juventude
lyceana intervalava-se, segundo a repercussão das campanhas e dos eventos lá fora, com os
caravaneiros despertando e convocando em emergências idealistas”. Curiosamente, alguns
julgaram prematuro o movimento, como registra Celso Mariz57.
Já Olivina Carneiro da Cunha58 fez anotações sobre alguns dos inúmeros grêmios
provincianos da brilhante época cultural em que liderou o grupo feminino, a evidenciar-se na
belle époque paraybana59. Essa autora cita grêmio como o Benjamin Constant (1889), Clube
Cívico Valpaizio (1898), que logo depois passou a chamar Tiradentes, em homenagem ao
Mártir da Inconfidência Mineira. Foram seus fundadores Manuel de Carvalho Neves, Alfredo
Monteiro, Fernão Aragão, Jonatas Costa, João Aurélio de Souza Lemos e Jader de Almeida.
Este ultimo viveu seis anos e possuía um jornal chamado O Patriota. Ainda segundo essa
autora, havia também o Grêmio Sete de Setembro (1900), que também durou seis anos.
Foram seus sócios fundadores, Mateus Ribeiro, Álvaro de Carvalho, Francisco Falcão,
Claudiano Carneiro da Cunha, Manuel Simplício Paiva, Paulino Marcos de Araujo, Eugenio
Ribas Neiva, Manuel Neves, Diogo Flores, Algusto Belmont e Carlos Pinto. Havia, ainda, o
clube Sinfônico, em 1902.60
Em 1912, foram criados os Grêmios Maciel Pinheiro e A Colmeia (1916 – Clube

54 IDEM, Menezes 1982, p. 241.


55 GUIMARÃES, Luiz Hugo. Irineu Ferreira Pinto. João Pessoa: A União, s/d, p.9. (Coleção Historiadores Paraibanos).
56 IDEM, 1982, p. 241.
57 MARIZ, Celso. Apanhados históricos da Paraíba. 2 Edição. Editora Universitária UFPB, 1980, p 288.
58 Nasceu em 26 de maio de 1892, na Cidade da Parahyba e faleceu em 12 de março de 1977, em João Pessoa-PB. Filha de Silvino Elvídio Carneiro da Cunha (Barão do Abiahy) e de
Maria Leonarda Bezerra Cavalcante (Baronesa do Abiahy). No ano de 1904, diplomou-se pela Escola Normal Oficial da Paraíba. Desde cedo mostrou seu interesse pelo magistério
dedicando-lhe grande parte de sua vida e mais tarde também às letras. Foi professora de português do Colégio Estadual e do Ginásio N. S. das Graças. Como poeta, colaborou em vários
jornais e revistas da Paraíba como A União - com destaque na coluna "Página Feminina" - e A Imprensa, Era Nova, Manaíra, entre outros. Na década de 1930, juntamente com outras
adeptas à emancipação feminina, funda a Associação Paraibana Pelo Progresso Feminino, cuja meta era licenciar as mulheres em busca dos seus direitos como seres pensantes e atuantes na
sociedade. Também participou da reorganização da Academia Paraibana de Poesia. No dia 06 de abril de 1938 entra para o quadro de sócios do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
Em homenagem a sua contribuição à educação paraibana foi designada patronesse de uma das maiores escolas estaduais no município de João Pessoa.
Fonte: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario9/biografias.html.
59 CUNHA, Olivina Carneiro da. Associações de outrora. (palestra realizada na sessão de 3 de Outubro de 1937). In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
Comissão de Redação – Celso Mariz, Cônego dr. Florentino Barbosa e J. Veiga Junior. Vol. 10 -1946. Departamento de Publicidade. João Pessoa – Paraíba, 1946, p. 93-98.
60 IDEM, Cunha, 1946, p.97.

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61
Literário) , estes últimos fundados com os esforços de João da Mata. (LIMA, 1951, p. 22).
Na verdade havia uma efervescência de clubes literários, jornais, agremiações e organizações
femininas e religiosas. Para Rafael Menezes, entre as inúmeras as associações criadas nas
décadas de 1880 a 1930, “Grêmio Benjamin Constant” e o “Grêmio Escholastico
Parahybano” foram os mais “duradouros” e “operosos”. O primeiro deles, de ex-alunos, como
Irineu Pinto62, conduzindo-o para a defesa do patrimônio histórico, enquanto os discípulos de
Eugenio Toscano de Brito63 preferiam a apologia republicana. Este último teve maior
atividade, favorecido pela “esplendorosa” fase lyceana, no período do governo de Castro
Pinto. Era uma associação estudantil, como sólido apoio da administração do Dr. Thomas de
Aquino Mindello, diretor daquele estabelecimento de onde saíram alguns nomes importantes,
em especial, os Drs. Miguel Santa Cruz, João da Mata, João Dantas. Estes senhores eram
representantes de uma elite em ascendência, portadores de uma visão liberal de sociedade e
que almejavam ascender na carreira política. Naquele ano de 1923, João da Mata e João
Dantas haviam fundado o Jornal e articulavam a fundação de um partido de oposição ao
situacionismo, para concorrer a sucessão de Solon de Lucena, de que falarei em seguida.
Quatro anos depois, em 1928, fundariam o Partido Democrático que teve vida curta devido a
revolução de 1930.
A geração seguinte da década de 1920 daria origem ao Grêmio Cívico literário 24 de
Março, como representantes de uma cultural “cívica literária”, fortemente marcado por
atuação política de cunho liberal. Segundo Mello (2000, p. 170), a agitação cultural dos anos
vinte expressava ascensão de classe média que não viria a destruir o patriarcalismo oligarca.

61 Fundado por João da Mata Correia Lima, Eusébio Coelho, Roberto Lira, José Antonio de Carvalho Melo, Alfredo Coêlho e Vasco Tolêdo. Fonte: Idem, 1946, p.97.
62 Irineu Ferreira Pinto nasceu na cidade da Parahyba do Norte, hoje João Pessoa, em 7 de abril de 1881 e faleceu em 27 de março de 191870. É considerado um dos mais influentes
historiadores da Paraíba no século. Aos dezenove anos de idade, tornou-se funcionário público da Secretaria do Estado (1900) e, em seguida, dos Correios da República (1903). Foi sócio
fundador do IHGP e também seu primeiro bibliotecário (1905); depois acumulou os cargos de bibliotecário e secretário (1910-1912) e, finalmente, apenas secretário (1912-1918). Durante o
governo do presidente Camilo de Hollanda (1916-1920), que era seu amigo e admirador, já no período de hegemonia do “epitacismo” foi, por um breve período, diretor do Arquivo Público
do Estado. Irineu Pinto foi também, na sua juventude, um dos fundadores do Clube Benjamin Constant que promovia grandes manifestações públicas de caráter cívico a favor da República
e mantinha, como porta-vozes, o jornal O Combate, bem como uma revista, a Revista Benjamin Constant, que tinham o objetivo de divulgar as ideias positivistas. XX, em especial devido
à sua maior obra, a Datas e Notas para a História da Paraíba, publicada, pela primeira vez, entre 1908 (volume 1) e 1916 (volume 2). Fonte: Meneses, Hérick Dayann Morais de. As
Contribuições de Maximiano Machado e Irineu Pinto para a construção da cultura histórica sobre o período holandês na Paraíba (1634-1654) / Hérick Dayann Morais de Meneses. – João
Pessoa, 2009.
63 Nasceu na capital da Província da Parahyba do Norte, em 10 de outubro de 1850 e faleceu no dia 31 de janeiro de 1903; filho do Comendador Felizardo Toscano de Brito e D. Eugênia
Accioli Toscano de Brito. Casado com D. Josefina Roy Toscano de Brito. Fez o curso primário e os preparatórios na Parahyba, capital do Estado, depois foi para o Rio de Janeiro, onde se
diplomou em Medicina, no ano de 1879. De volta a sua cidade, dedicou-se à medicina, ao magistério e ao jornalismo. Foi nomeado Inspetor da Saúde Pública e do Porto; exerceu as
funções de Vacinador Provincial, Diretor do Serviço Médico da Santa Casa de Misericórdia, Cirurgião-Mor da Província; Médico Legista da Polícia da Estrada de Ferro Conde D'Eu. Era
sócio correspondente da Sociedade de Medicina Cirúrgica do Rio de Janeiro; Professor de Trigonometria, Pedagogia, Ciências Físicas e Naturais, Geografia, Álgebra, Biologia e História
Natural. Foi, também, Diretor da Instrução Pública, Diretor da Escola Normal depois, Externato Normal e do Lyceu Provincial. Fundador de A Gazeta da Paraíba.
Fonte: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario9/biografias.html.

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Antes se comporia com ele. Em outras palavras, a pequena burguesia de vivências urbanas
não era revolucionária, mas reformista e quando muito, radical.
64
O Grêmio 24 de Março, pivô dos desdobramentos do caso Sady e Ágaba, como
ficou conhecido o assassinato do estudante do Lyceu Parahybano, Sady Castor, no dia 22 de
setembro de 1923, na cidade de Parahyba, capital do Estado da Parahyba do Norte,65 é um
exemplo emblemático, pois expressa essa relação entre política escolar e política partidária,
ideológica. Por trás da repercussão da morte de Sady Castor e dos desdobramentos por ela
originados, estava a atuação dos componentes de uma “agremiação cívica literária”,
organizada política e “ideologicamente” e, assessorada por diversos “elementos” políticos
oposicionistas ao governo de Sólon de Lucena, mais especificamente, alguns representantes
de uma elite urbana, portadores de uma visão liberal de sociedade e que almejavam acender
na carreira política e profissional, como, por exemplo, o bacharel Miguel Santa Cruz, João da
Mata Correia Lima e o ilustre João Duarte Dantas, este último atuando através das páginas de
O jornal. Todos estes ex-alunos do Lyceu, na sua época de estudantes, entre 1908 e 1916,
eram atuantes no “movimento estudantil”.
Fundado em 02 de março de 1921, o Grêmio Cívico Literário 24 de Março relativa
duração, existindo sete anos, isto é, até o inicio de 1930. A escolha do nome foi dada em
homenagem a data de fundação do Lyceu Parahybano, instituído pela lei N 11, de 24 de
março de 1836. Fundação ocorreu no salão de honra do Lyceu Parahybano. Para aquela
ocasião, foi convidado pela diretoria “o ilustre homem de letras patrício Dr. Carlos Dias
Fernandes”, então Diretor d’ A União, cuja conferência intitulada “A cultura clássica”, teceu
uma “bela apreciação da língua latina e grega”, constituindo, segundo a Revista Era Nova, um
dos maiores acontecimentos literários dos “últimos tempos”66.O Grêmio Cívico Literário 24
de Março foi a última agremiação estudantil antes da Revolução Tenentista de 1930, com
forte atuação no âmbito político institucional.
Assim, e para concluir, apesar de tudo, não é possível saber os impactos dessas

64 Fonte: Revista Era Nova, abril de 1921/Revista Era Nova, Maio de 192.\. Fonte: Revista Era Nova, abril de 1921.
65 O crime abalou sensivelmente o cenário político Parahybano, principalmente, quando os estudantes do Lyceu, liderados pelo Grêmio Cívico e Literário 24 de março, apoiados por
elementos oposicionistas ao governo do Estado, passaram a explorar politicamente a tragédia. O incidente, muito bem documentado pela imprensa da época, acabou tendo amplas
repercussões no âmbito político e estudantil, justamente num dos momentos mais delicados da política paraibana, marcada pelo agravamento das tensões políticas faccionais, em meio às
divisões intraelites e aos rearranjos das forças políticas locais e nacionais de 1922.
66 Fonte: revista Era Nova, abril de 1921.

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agremiações na “cultura escolar” das instituições, mas apenas deduzir que, dentro das
associações de estudantes, havia interesses diversos e em constantes conflitos pelo poder, ao
ponto de serem espaço disputado pelas lideranças políticas, como atestam a influencia de
professores, políticos e intelectuais, na organização e atuação das mesmas. No caso do grêmio
24 de março, figuras como os professores e baixareis, Miguel Santa Cruz e João da Mata,
haja vista a tendência dessas associações serem orientadas por ex-alunos e (ex) professores da
respectiva Instituição.
O primeiro deles, o professor Miguel Santa Cruz era, professores do Lyceu Parahyba,
lecionava de História do Brasil. Junto com João Mata, foi testemunha dos protestos e das
manifestações dos estudantes. Estiveram presentes às missas e romarias em prol da alma do
casal. Miguel Santa Cruz, como professor do Lyceu, esteve sempre ao lado dos estudantes, os
orientado nos momentos difíceis, coordenando reuniões do Grêmio 24 de Março, nas
solenidades, palestras e conferências promovidas pelos gremistas. Muito embora o professor
Miguel Santa Cruz nunca tenha assumido cargo político, foi um árduo defensor das causas
estudantis, juntamente com seu colega João da Mata Correia Lima, considerado o “general da
mocidade”. A atuação desde ultimo junto a “classe- estudantina” foi tão marcante, que o
Grêmio seguinte, pós-Revolução Tenentista, faria homenagem justamente ao professor líder
dos estudantes dos anos de 1920, o Dr. João da Mata67.
Já João da Mata era filho do Dr. Lindolfo Correia Lima, este ex-deputado estadual,
secretário do governo e emérito professor do Lyceu. A época do crime, o Dr. Lindolfo era
então diretor do Lyceu Parahybano. Notável advogado, brilhante orador, ex-aluno do Lyceu
(turma de 1908), João da Mata mostrou logo cedo suas aptidões intelectuais. Ingressou no
Lyceu em 1912, concluindo o curso em 1915. Líder estudantil a sua época, era considerando
um aluno excelente. Em 1912, fundou o Grêmio Maciel Pinheiro, onde colaborava para a
revista Lyceum. Em 1915, é aprovado no exame de admissão para a Faculdade de Direito do
Recife, baicharelando-se em 18 de dezembro de 1919. Segundo Lima, João da Mata atuou em
diversos jornais, onde deixou “traços marcantes de sua pena”. Como em “(...) A Noite, onde
publicou diversos sonetos sob pseudônimo de “C. L” (1915); Renascença (1916); Correio da
Manhã, a partir de 1917, com pequenas interrupções; o Norte; o Comercio da Parahyba; Era
67 Fonte: A União, Sábado, 22 de outubro de 1932.

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Nova; O Jornal; O Diário do Povo (1929) e a Gazeta Humorística”. Foi no Jornal Correio da
Manhã porém, onde exercitou sua vocação de jornalista e onde construiu os alicerces de sua
carreira política (LIMA, 1951, p. 22).
Ao longo de sua formação, atou como jornalista, orador, literato, poeta, professor e
advogado, esta última considerada sua maior vocação. No inicio da década de 1920, de volta a
Parahyba, trabalhou defendendo causas polêmicas, juntamente com seu amigo e sócio, o Dr.
João Duarte Dantas. Segundo Melo “(....) apesar do absoluto contraste de temperamento, era
considerado verdade amigo de João Dantas”. Ambos militaram na imprensa, no fórum e na
política parahybana, durante toda década de 1920 do século passado (MELO 2002, p.55 e 56).
Assim, os dois bacharéis representaram o Grêmio 24 de Março, perante o Supremo
Tribunal de Justiça no processo do habeas corpus, impetrado dois dias após a morte de Sady
Castor. A ação foi vencida, mas a custa do fechamento, por tempo indeterminado, do Lyceu e
da Escola Normal. Os dois também atuaram como advogados, durante os vários julgamentos
do guarda 33, contratados pela família Castor e Nóbrega para auxiliar a acusação. Ou seja, de
modo geral, foram principalmente essas duas figuras que melhor orientaram os estudantes até
o ano de 1929.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Universitária\UFPB, 1982.
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M & Veiga, C. G (Orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte, 2000. Pp. 371 –
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GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” IN Mitos, emblemas, sinais:
Morfologia e História. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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debate: questões conceituais, metodológicas e desafios à pesquisa. Campinas, SP: Autores
Associados, 2005. Apoio Unesp/FCLAr – (Coleção educadores contemporâneos).
VIDAL, Diana Gonçalves. Cultura e prática escolares: Uma reflexão sobre documento e
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BURKE, Peter. História e teoria social. Trad. De Klauss Brandini Gerhardt, Roneide
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POERNER, A. J. O poder jovem. 2. Ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A.,
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AGUIAR, R.C.L.; GRÁCIO J.C. Grêmio Estudantil: construindo novas relações na escola.
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PARTICIPAÇÃO DA MULHER NO COMANDO TÁTICO MOTORIZADO


(COTAM) EM FORTALEZA

Helena de Lima Marinho Rodrigues Araujo | helenamarinho@virtual.ufc.br


Karla Vasconcelos Colares | karlinha@virtual.ufc.br
Maria Assunção de Lima Marinho | assuncaomarinho@ifce.edu.br

A INSERÇÃO DA MULHER NA POLÍCIA MILITAR

Este estudo teve como objetivo geral conhecer como era o trabalho da única
mulher na Polícia Militar de Fortaleza, integrante do COTAM. Osobjetivos específicos
foram:: fazer uma reflexão sobre gênero e a inserção da mulher no mercado de trabalho e
trazer alguns aspectos sobre a polícia feminina.
A condição da mulher no processo histórico de forma abrangente, foi retratada
de várias formas com características peculiares, que estigmatizava um ideal de mulher para
desempenhar seu papel de acordo com a vontade masculina e aprovação da sociedade. Com
efeito, a mulher era vista como submissa, eficiente nos afazeres domésticos e cuidado da
família, trabalho que não precisava de ter salário, por ser uma obrigação da dona de casa;
satisfação de desejo sexual, condição de subalterna ao homem, devendo obediência primeiro,
ao pai, depois, ao marido, sem direitos e sem privilégios sobre os espaços públicos,
principalmente bares, restaurantes, participação política; era ausente no mercado de trabalho,
sem direito a educação institucional, sendo dela esperadas qualidades de sensível e dócil.
Então, com essas qualidades, ela servia para se casar, adquirir reconhecimento
pelo sobrenome do marido e este casamento deveria ser eterno. Assim, as mulheres eram
definidas e não definidoras de sua própria história. Corroboram essa discussão, os autores
Calazans (2003), Pinto (2008), Nash (2005) e Rago (2004) e também a fala da entrevistada,
quando abordou a parte mais difícil para ela no relacionamento com seus colegas de trabalho,
referindo-se ao tratamento que ela recebia na Corporação:
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SM – Foi a parte mais difícil que achei. O preconceito com as mulheres de que não
sabe trabalhar, é escorona, protegida de alguém. Eu tinha que mostrar que não era
nenhuma dessas a minha intenção ao ingressar na corporação. Isso só foi possível
com a aprovação nos cursos e mostrando meu trabalho com seriedade e
pretendendo sempre manter minhas conquistas.

A instuição da Polícia Militar é um espaço secularmente masculino, regido por


normas e regras com a predominção marcante da disciplina e respeito à hierarquia. Essa
realidade começa a denotar mudanças com a divisão do trabalho e os direitos adquiridos na
Constituição Federal (BRASIL, 1988) quando se consolidou a igualdade entre homens e
mulheres e pelas novas exigências de um mercado que prioriza não mais a força física, mas as
ideias, eficiência e eficácia. As mulheres ingressaram na Polícia Militar com a criação do
Pelotão da Polícia Militar Feminina ou companhias femininas que tinham como missão
o trato com crianças, idosos, trânsito, escolas e aeroporto; com menores
delinquentes ou abandonados e com mulheres envolvidas em delitos penais. Com o
passar do tempo as policiais femininas começaram a ser empregadas tanto na
atividade operacional, quanto na atividade administrativa da corporação.
(CALAZANS, 2003 p.18).

No Brasil, atualmente, 19 estados contam com a integração de mulheres nos quadros da


Policia. Dentre essas unidades federais, se destacam: São Paulo, como pioneiro, no ano de
1955; seguido do Paraná, em 1997; Amazonas, em 1980; Minas Gerais, em 1981; Pará, em
1982, e Santa Catarina, em 1993 (CALAZANS, p. 2003). No Ceará, no ano de 2014, a
Polícia Militar Feminina completou 20 anos, portanto, sua criação se deu em 1994. Sobre a
importância da mulher nessa Corporação, nesse aniversário, elas foram parabenizadas:
O comando da PMCE parabeniza todo o corpo de policiais femininas da Corporação
pelos 20 anos de sua inclusão em nosso Estado. Duas décadas após o ingresso da 1ª
turma feminina na Polícia Militar do Ceará é inegável a nova roupagem que a
presença daquele sexo trouxe para um universo até então exclusivamente masculino.
Atualmente o efetivo feminino atua nas mais diferentes funções, tanto administrativa
como operacional. Há mulheres pilotando aeronaves, em ações de choque, cavalaria
dentre outros. A força do competente trabalho da mulher na Corporação fez com que
os companheiros de profissão, bem como a sociedade cearense reconhecessem a
relevância da policial feminina na área da segurança pública; não sendo mais
possível imaginar a instituição sem sua presença68.

Mesmo com os avanços registrados, tomando o ano de 2014 (data da publicação


de onde se extrai essa citação) e da entrevista neste ano de 2015, é constatado reconhecimento

68
Fonte: Disponível em <http://www.pm.ce.gov.br/index.php/sala-de-imprensa/noticias/43647-20-anos-de-
policia-militar-feminina-no-ceara>. Acesso em setembro de 2015.
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do trabalho da mulher na Polícia Militar, por um lado, mas, também, a permanência do


preconceito na Corporação na fala da policial entrevistada. Mesmo com essa divergência e
outras, a mulher ocupa cada vez mais postos de trabalho, antes somente destinados aos
homens. Enfatiza Jucá, (2014, p. 62),
A igualdade e as práticas de equidade de gênero no Brasil ainda não estão
consolidadas.
Em pleno século XXI vemos o problema de gênero, adiscriminação sexista no
mundo do
trabalho e a marginalização das mulheres nos postos de tomada de decisão política,
militar e econômica, refletindo de certo modo o contexto mundial, no qual as
mulheres ainda são minoria em cargos de poder.

Na seção a seguir serão abordados a caracterização da pesquisa, o instumental


utilizado, sujeito e a instituição COTAM.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta é uma pesquisa qualitativa, descritiva e com estudo de caso. Teve como
base o referencial teórico abordado no decorrer do texto e mencionado nas referências, tais
como: Bahia & Ferraz (1999), Scott (1991), Bonneti e Souza (org.) (2011), Calazans (2003),
Capelle & Melo (2010) e Tribuna do Ceará (2013).
A pesquisa qualitativa permite que o pesquisador perceba os sentimentos, as
entrelinhas sobre o assunto discorrido, por estar em contato direto com o entrevistado,
olhando nos seus olhos e observando, não só a fala, mas também todo o cenário e
comportamento de quem se expressa. Considera a concepção de mundo do pesquisador, sua
subjetividade, e busca compreender fenômenos vivenciados pelos sujeitos, considerando
assim sua interpretação sobre o objeto estudado. (POLAK, DINIZ e PEQUENO, 2014).
A pesquisa descritiva, consoante Gil (2002), é um dos tipos quando ela é
classificada pesquisa quanto aos objetivos, que visam a especificar as características
relevantes dos fenômenos em questão. O estudo de caso possibilita o uso de várias fontes,
observações, documentos e entrevistas (YIN, 2001), considerando-se o fato de se haver aqui
entrevistado somente uma pessoa.
Em relação à estrevista semiestruturada, dentre os aspectos positivos, se destacam:
a utilização de questões abertas e fechadas, pois permite que o entrevistador norteie a
entrevista, tendo como foco os objetivos a serem logrados, a elasticidade da duração do
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tempo, a utilização de apresentação de documentos e fotos ao entrevistado no momento da


entrevista, por exemplo. (SELLTIZ, 1987).
Por outro lado, é importante também que o entrevistador deixe o entrevistado à
vontade, sinta-se seguro e também lhe explique o lado ético da pesquisa, esclarecendo o
objetivo da entrevista, para fins apenas acadêmicos, o fato de que seus dados pessoais serão
esguardados e solicite que seja preenchido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O instrumental foi a entrevista semiestruturada, efetivada no dia 27 de agosto de
2015, com a única mulher que trabalha no COTAM, em Fortaleza. Essa instituição, tropa de
reação do BPCHOQUE, foi criada pelo Comandante Geral, Francisco Justino Ribeiro Neto,
no dia 9 de setembro de 1999, com a missão de, mediante o patrulhamento tático, coibir e
combater crimes violentos ocorridos em Fortaleza e Região Metropolitana, tais como: assaltos
a bancos, estabelecimentos comerciais e similares, ao crime organizado, crimonosos armados
em locais de acesso difícil e combate agangues.
Atualmente, o COTAM possui um efetivo 118 policiais, que cumprem escalas de
12 horas diárias, seguidas de expediente usado para aprimorar a parte física e técnica de seus
policiais, como: Educação Física, Defesa Pessoal, Armamento e Equipamento, Tiro de
Combate, Doutrina de Choque, Gerenciamento de Crises, dentre outras disciplinas69.
Alguns dados pessoais da entrevistada: profissão – soldado, estudante de Direito.
Altura 1,77m; Peso – 78 K. Alimentação saudável, gostando de chocolate (em pouca
quantidade). Tipo de música – romântica. Livro – romance e filme – policial.
A seguir serão analisados eexpressos os resultados da entrevista, em que serão
atribuídas às respostas, as letras “SM”, a primeira se referindo à patente da entrevistada
“soldado” e a outra, a letra inicial de seu sobrenome, que representa o grito de guerra e como
são reconhecidos na corporação.
ANÁLISE DOS RESULTADOS

Nesta seção aduzem-se aspectos que retratam o cotidiano e trabalho da


entrevistada nessa Companhia. Em decorrência da rotina de trabalho fora da Instituição, bem
69
Fontes: < http://www.pm.ce.gov.br/index.php/sala-de-imprensa/noticias/43830-comando-tatico-motorizado-
da-policia-militar-do-ceara-cotam-comemora-15o-aniversario>. <http://www.pm.ce.gov.br/>. Acesso em
setembro de 2015. Referências completas ao final do texto.

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como da proximidade desta com a residência da entrevistadora70, tendo como objetivo


proporcionar o bem-estar e comodidade da entrevistada. Esse momento aconteceu no dia 27
de agosto de 2015 no período da manhã na casa da entrevistadora.
A primeira questão foi direcionada à escolha da profissão policial: - por que você
escolheu ser policial? SM - desde pequena assisto aos filmes policiais, adoro! E queria
quebrar barreiras da imagem da mulher como uma policial escorona, que trabalhava
somente no serviço burocrático, era protegida de alguém. Na ocasião, foi perguntado se ela
não teria recebido alguma “cantada” ou gracinha. Ela respondeu que não, pois era séria e
sabia me comportar no ambiente de trabalho.
Observa-se na fala que ela demonstra o sentimento de quem sofre na pele o
preconceito histórico sofrido pelas mulheres no qual ela estava fazendo paere naquele
momento. Contribuem para essa discussão (CALAZANS, 2003; PINTO, 2008; NASH, 2005;
RAGO, 2004). O segundo aspecto foi sobre o cotidiano de trabalho, como era a rotina e quais
as atividades que ela desempenhava.
SM – Trabalho dois dias consecutivos na semana no primeiro dia chamado de AB
vai de 7h às 21h. No segundo seguinte chamado de turno c das 21 as 7h da manhã.
Portanto, 14 hs de trabalho em cada dia”. Iniciao com educação física e todo dia
tem, exceto quando tem alguma missão ou comemoração extraordinária que precisa
ser cedo então não tem”. “De 7 as 8 – educação física e agora está sendo no prédio
do antigo colégio cearense, eles cederam para a gente e lá tem uma pista de cooper,
fazemos corridas e a natação. Fazemos todos da esquipe de serviço que são 5
(cinco) equipes com quatro integrantes para 5(cinco) viaturas. Portanto, eu e 19
(dezenove) homens. Somente muito raramente é que tem seis equipes e 9h as equipes
assumem suas viaturas e saem para os bairros.
A rotina que a entrevistada descreveu exige muito esforço físico, mas que ela
cumpre igual a todos os homens, portanto, não havia distinção. Continuando sua fala ela
explica sobre o uso do fardamento.
SM – Calça e gandola (espécie de blusão de mangas compridas) estampadas (na
cor cinza claro e escura), coturno (botas), na cintura um cinto preto (faixa)
portando algema, pistola .40 (ponto 40) com carregador de 15 balas sendo que
cada integrante da equipe tem 5 carregadores.
Quando vou trabalhar uso cabelo preso, com o fardamento completo, brincos
pequenos, unhas com esmaltes claros e batom pode ser na cor escura

Usar o fardamento completo é uma das exigências que deve ser cumprida. Essa
norma foi descrita na Lei nº 13.407, de 21.11.03 (PUBLICADA NO DOE N° 231, DE 02

70
A autora 1.
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DE DEZEMBRO DE 2003) que institui o Código Disciplinar da Polícia Militar do Ceará e do


Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Ceará, dispõe sobre o comportamento ético dos
militares estaduais, estabelece os procedimentos para apuração da responsabilidade
administrativo-disciplinar dos militares estaduais e dá outras providências. Na Seção II – Da
Transgressão Disciplinar – Art. 12 – Transgressão disciplinar que, em sua graviae, pode ser
grave (G) , média (M) ou (L) “é a infração administrativa caracterizada pela violação dos
deveres militares, cominando ao infrator as sanções previstas neste Código, sem prejuízo das
responsabilidades penal e civil”. Especificando a questão do uso do fardamento, o artigo
XLVI expressa que: “apresentar-se, em qualquer situação, mal uniformizado, com o uniforme
alterado ou diferente do previsto, contrariando o Regulamento de Uniformes da Corporação
Militar ou norma a respeito”, é uma transgressão média.
Foi inquirido sobre o que ela sabia usar e como era o treinamento para usar as
armas, ao que ela respondeu:
SM – Armas letais armas de fogo, fuzil, (eu sei atirar e o tiro é bem preciso). Uma
vez em serviço eu atirei no pé de um e de raspão na orelha. Era uma troca de tiros e
não dava nem para se situar direito. Tenho medo da situação, mas o medo é que nos
faz ter cuidado, cautela, de pensar na família, nos filhos.
Em relação aos treinamentos de tiro eu atiro bem, mas tenho colegas que atiram
bem melhor que eu, assim também considero o trabalho do motorista da viatura e
que alguns colegas dirigem melhor que eu. Mas também existem os que são regular.
No contexto geral, são os melhores e mais qualificados, pois o nível é muito alto lá
no COTAM.
Outro aspecto comentado foi sobre as ocorrências diárias com a participação da
equipe. As ocorrências são muito parecidas. Quando há greve nos presídios, no
patrulhamento normal é evitar assaltos a banco e estabelecimentos comerciais, abordagens de
pessoas nas bicilicletas; motos e carros é mais o ronda. Todo dia tem cinco equipes nas ruas e
mais nas periferias, principalmente favelas. Foi pergundo sobre algum problema ocorrido com
ela, por ser mulher, na prisão de um homem. Sua resposta foi negativa.
Aproveitando a sua fala, a entrevistdora sobre a questão do medo desses bandidos
se voltarem de alguma forma contra ela ou sua família, uma vez que o policial está de cara
limpa quando faz a prisão, portanto, mais propício ao reconhecimento, ainda mais ela a única
mulher da Coroporação nesse serviço. Sua resposta foi positiva: SL – tenho medo, pois eles
não esquecem não, tenho esse receio. Nunca aconteceu nada comigo e minha família, mas
os bandidos não esquecem da gente. Já prendi muitos, coloco algemas e tudo o mais.
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O outro questionamento foi direcionado ao relacionamento no trabalho, como era


tratada pelos colegas de trabalho, sendo a única mulher integrante nesse serviço? SL – No
início eles tinham preconceito, quando assumi a equipe de viaturas os policias (meus 3
colegas) na hora de ocorrência alguns pediam para me tirar da viatura porque não queriam
mulher lá. Essa resposta aponta para a discussão, já mencionada, de que a mulher deve
ocupar o espaço privado famíliar, a casa e deixar o espaço público para os homens,
sobretudo, quando se necessita de força física e racionalidade. Calazans (2003, 17) traz alguns
elementos para se pensar essa questão da mulher inserida no trabalho policial
A igualdade No Brasil, a filosofia tradicional de policiamento é movida pelo
espírito belicoso do Exército Nacional, por ideologia machista e trata ainserção das
mulheres nos quadros das Polícias de uma forma muito limitada e com pouca
visibilidade. Nos estados brasileiros encontramos os mais diversos tratamentos à
inserção de mulheres principalmente quanto as restrições legais e informais,
determinando o processo de mulheres nas corporações policiais militares.

Como você fez para conseguir trabalhar nesse ambiente, já que havia essa
situação? Como trabalhar em um serviço que exige muito fisica e psicologicamente, sem a
aceitação dos colegas de equipe? Foi um trabalho de conquistas e paciência como apresentado
a seguir:
SM – Na polícia temos ascensão pela formação de cursos específicos. Fui aprovada
em concurso em 2007 na polícia militar e fui para o ronda, em 2012 para o
Batalhão do Choque, fui para o CDC na época a 1ª companhia. Em 2014 fui para o
COTAM. Para ingressar em cada uma das 5 companhias precisa ser aprovação em
cursos. Depois de aprovação fui para o CDC mediante aprovação em curso, depois
fiz o curso de patrulhamento urbano que é do COTAM, e o curso do COTAR que
dura 45 dias (em 2013) falar da matéria do jornal. Falta somente o do GATE. Em
relação ao grau de dificuldade esse é o 1º e o do COTAR o 2º.71

O seu reconhecimento teve como suporte as aprovações nos cursos, nos quais
competia com homens, acumulando currículo e experiências. Essas conquistas deram respaldo
junto a sua equipe, uma vez que muitos homens foram reprovados ao longo dos cursos. Como
exemplo no curso do COTAR72, realizado em 2013, como a entrevistada assinalou, seu
primeiro grande desafio foi logo na inscrição:

71 Para complemento listam-se as informações sobre as siglas mencionadas: Controle de Distúrbios Civis (CDC), Comando

Tático Motorizado (COTAM) e Comando Tático Rural (COTAR).


72
A aprovação da entrevistada como a única mulher participante do curso foi registrada em uma reportagem na Tribuna do
Ceará, jornal de Fortaleza, com o título - Missão dada é missão cumprida - conheça a Soldado Maia, do Pelotão Especial do
Batalhão de Choque da Polícia Militar, a única mulher a concluir o curso do Comando Tático Rural (COTAR) no ano de
2013. Referênca completa ao final do texto.
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SM- Todos ou quase todos achavam que eu seria a primeira pessoa a desistir. O
meu primeiro desafio foi fazer a inscrição, eles não queriam mulher para fazer o
curso, devido a rigidez e ao preconceito. Na época precisei falar com o comandante
para garantir minha inscrição e fui perguntar qual era o motivo que não estavam
aceitando minha inscrição. Então ele falou: - você não é do batalhão, então você
vai se inscrever sim. Então me inscrevi e passei na primeira prova que foi o teste
físico com média 10 e mesmo assim quando saiu a relação dos policiais aprovados
meu nome não estava na lista.

Não aceitando essa condição, ela foi em busca de seus direitos junto aos superiores:
SM – Lá vai eu falar de novo e dizer que havia passado e meu nome não estava na
lista. Então ele entrou em contato com o responsável pela companhia do Cotar para
saber explicações. Depois de algumas explicações colocaram meu nome na lista dos
aprovados. Esse resultado da primeira prova já foi surtindo efeito, pois alguns
tiraram a média 10, mas muitos ficara abaixo. Lá somos conhecidos pelo
sobrenome que é o nome de guerra. E com isso fui ganhando respeito entre os
colegas porque eu fui ficando no curso e vários colegas foram desistindo. E os
colegas que antes falavam foram se admirando e dizendo que eu estava resistindo.
As aprovações davam suporte para que ela conseguisse ser respeitada e vista
como uma profissional como os demais. Na sequência, estão relatos de como aconteceu o
curso do COTAR e as atividades vivenciadas ao longo dos 45 dias de duração:
SM – O curso do Cotar começou com 55, no caso 44 homens e só eu de mulher,
finalizamos com 30. Era um curso de muita resistência e o curso não reprovava por
notas e as pessoas iam desistindo por si só. Era muito puxado. Estivemos nos
municípios de Crateús, Nova Russas e Canindé. Equipe de 6 pessoas, matava
cobra, carneiro cozido com sal e água e os instrutores botava mais sal ainda para
dá mais sede. Cantil com 2 l de água. Tinha aranha, inseto. Pior momento - matar
o carneiro e viver sem água. 5 dias sem tomar banho e sem escovar os dentes.

Sobre esse depoimento a entrevistadora perguntou por que era ela que tinha de
matar o carneiro. Ela respondeu que os seus colegas designaram essa missão, e ela pensa
que foi como prova, se ela teria coragem ou não pela sua condição de mulher. Ela disse
que, na hora, teve realmente muita pena do animal, por ser grande e por gritar muito na
hora da morte. Foi, porém, obrigada a fazer este serviço. Pode-se fazer uma reflexão,
hipotetizando que seus colegas apostavam que ela não iria conseguir, tendo como certeza
a questão do sentimento e da força física, qualidades atribuídas ao sexo masculino.
Corrobora para se pensar a questão a ideia de gênero, abordada por Meyer (2001, p. 32)
citada por Calazans (2003, p.22):
Igualdade gênero reforçaa necessidade de se pensar em que hámuitas formas de se
pensar em que há muitas formas de sermos mulheres e homens, ao longo tempo ou
no mesmo tempo histórico, nos diferentes grupos ou segmentos sociais. Não se
referindo mais ao estudo da mulher, é um conceito que procura enfatizar aconstrução
relacional e a organização social dasdiferenças, entre os sexos, desestabilizando

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dessa forma o determinismo biológico e econômico vigente.

Como o curso é muito intenso e exige muito, psicologica e fiscicamente, foi


indagado acerca de quais cuidados após a finalização do curso; como a instituição cuidou dos
participantes e/ou de que modo ela tomou providências em relação a sua saúde, visto que
passou mais de um mês com muitas privações em relação à saúde. SM – tivemos avaliação
psicológica. Eu é que procurei o médico tomei soro para hidratação. Quando se indagou
sobre a sua alimentação no cotidiano, ela se expressou da seguinte forma:
SM - Quando estou de serviço como na rua no dia a dia como muitas frutas,
verduras, legumes, carnes e bebo muita água e suco. Procuro manter uma
alimentação saudável.
Os rapazes que tomavam suplemento sentiam falta e talvez tenha ajudado a desistir.
Durante o curso não tive nenhum problema de saúde.

Ao final, a entrevistadora solicitou que ela falasse sobre o que gostaria de


complementar acerca dos assuntos abordados e alguns trechos são abaixo ressaltados: o
reconhecimento dos colegas no trabalho
SM - Após a conclusão do curso eles passaram a me respeitar como policial. E
viram que eu não estava ali para brincadeiras e que tinha escolhido ser policial.
Depois que fui aprovada em todos esses cursos fui reconhecida e os colegas que não
me queriam na viatura hoje me tratam de igual para igual.

O relacionamento com a família e o seu trabalho:


SM - Tenho uma filha e se ela quiser seguir minha profissão eu apoio, mas prefiro
não. Não que seja uma profissão ruim, pelo contrário, é muito importante só perde
para médico, porque se não tiver policial tudo para por falta de segurança. Todos
ficam em casa com medo se a polícia não trabalhar. Como é uma profissão de muito
risco para uma mãe é muito difícil porque sai para trabalhar e não sabe que horas
volta, se volta porque o bandido não tem amor nem a própria vida quanto mais a
do policial, eles atiram para matar e nós policiais não. Atiramos quando necessário
e temos que prestar atenção a quem está do lado, quem vai passando, o entorno.
Meu marido tem ciúmes porque só tem eu de mulher em uma instituição somente de
homens, mas reconhece meu trabalho.

Observa-se a importância que a entrevistada tem por sua profissão e o papel da


Polícia na segurança da população. Ao mesmo tempo, a incerteza da própria segurança do
policial está em jogo, por lidar com situações que podem trazer risco de morrer. Esse fato é
constantemente noticiado em jornais e televisão, denunciando as mortes de policias, que
podem ser atribuídas a vários fatores, dentre eles: ausência ou pouca políticas públicas de
segurança, quadro limitado de policias, baixos salários, falta de motivação, falta de

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equipamentos adquados e até mesmo apoio de uma formação psicológica e técnica, mas que
não é uma situação estanque havendo mudanças em busca de melhorias para a categoria.
A entrevistada finaliza a sua fala, acrescentando sua pretensão em realizar o
último curso que lhe falta para fazer parte do Grupo de Ações Taticas Especiais (GATE) que
somente sai às ruas quando é para uma missão ostensiva de sequestro ou roubo grande a
banco, mais uma vez, ela será também a primeira mulher a fazer parte dessa corporação,
mudando o seu grau de qualificação, prestígio, respaldo e reconhecimento

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assinala-se para o crescimento dos espaços ocupados pela mulher de suas


conquistas no tocante aos direitos e reconhecimento no campo de trabalho, embora mulheres
ainda sofram com preconceitos, sendo tratadas de forma diferentes porhomens, mesmo
desempenhando a mesma função.
A entrevistada é um exemplo de que pode haver essa mudança, pois ela
conquistou o seu espaço e reconhecimento na Polícia Miliatar, mas conformeela mesmo
salientou, foi difícil trilhar esse caminho em decorrência do modo como foi tratada, ao chegar
a essa instituição. Não só as mulheres, como também, todas as minorias (índios, negros,
deficientes etc) ainda sofrem preconceitos de formas diversas pelo fato de serem vistos como
diferentes e, nessa condição, pessoas concluem que as minorias não têm os mesmos direitos
e igualdade.
No decorrer deste estudo, pôde-se perceber além, de pontos de vista dos autores,
como na história da entrevistada, que os conceitos, relacionamentos e ideologias são
constituídos historicamente no cotidiano. Assim, onde convivem homens e mulheres
desempanhando as mesmas funções, habitando os mesmos espaços, devem repensar a sua
maneira de ver o outro, respeitando o direito de igualdade inerente a todos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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REDES ESGARÇADAS – TRAJETÓRIAS FEMININAS NUMA FAVELA DE


NITERÓI

Patricia Zürcher | patriciazurcher@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se construiu como desdobramento de reflexões acerca de


políticas habitacionais e a questão da moradia em favelas – tema da pesquisa de doutorado em
curso no Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense.
O projeto original da pesquisa partiu de duas constatações básicas, cada uma delas resultante
de observações concretas, realizadas no entanto, em contextos bastante distintos, mas relativas
à mesma problemática: a questão da moradia e a favela. O universo da pesquisa se localiza no
entorno da Lagoa de Piratininga, em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, na chamada “favela
da ciclovia”.
No ano de 2012 a comunidade começa a ser reunida pela associação de moradores
para discutir um projeto aprovado pelo INEA – Instituto Estadual do Ambiente – que previa a
“recuperação” da Lagoa com remoção de 460 famílias para unidades do Programa Minha
Casa Minha Vida a serem construídas numa localidade próxima, conhecida como “favela do
Jacaré”. Tal movimentação chamou a atenção no sentido do questionamento acerca da
adequação de um certo modelo de gestão ambiental, onde o ser humano estaria sendo
colocado em segundo plano, e em que as ações centradas na remoção de famílias careceriam
de maiores reflexões acerca dos impactos sociais. Por outro lado, observações advindas de
experiências profissionais anteriores em projetos de regularização fundiária, tinham trazido a
incômoda constatação de que aqueles que mais se interessavam pela titulação da terra, viam
nessa formalização justamente o caminho para a saída do local, através da valorização
imobiliária que visualizavam pela via da legalização da propriedade, e a possibilidade de um
ganho financeiro atraente com a venda da casa – o que possibilitaria a construção de outra
casa melhor, em outro terreno irregularmente ocupado.
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Dessas duas constatações – a possibilidade de remoção e a “ineficácia” da


regularização no tratamento da questão da moradia em favelas, surgiu portanto a iniciativa do
projeto apresentado ao Programa de Pós-graduação em Política Social da UFF. As reflexões
aqui desenvolvidas são resultado de um recorte neste cenário observado, buscando privilegiar
a discussão sobre papéis femininos nesse contexto.
A metodologia utilizada se concentrou, para este momento do trabalho, na coleta de
depoimentos orais, obtidos através de entrevistas informais, em virtude da grande resistência
apresentada, por parte dos moradores do local, em conceder entrevistas gravadas. Tal
resistência se ancora, bastante provavelmente, em dois fatores: o crescimento da violência
relacionada ao comércio ilegal de entorpecentes – que sabidamente silencia os habitantes das
favelas – e a expectativa com relação à possível remoção, tendo em vista a grande
movimentação urbanística já em andamento na região. Além dessas fontes orais, foram
incorporados na construção do projeto mais amplo, do qual este trabalho é um recorte,
chamamentos para assembleias e suas pautas, documentos do INEA referentes ao projeto de
revitalização da Lagoa – que prevê a remoção das famílias -; e panfletos de candidatos que se
dirigem àquelas populações remetendo-se à questão da posse da terra. Também foram
utilizados materiais produzidos pela imprensa local.

DE COMO NASCE UMA FAVELA

No início dos anos 90 o movimento S.O.S. Lagoa, em defesa da Lagoa de


Piratininga, em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, experimentou um momento de especial
efervescência, em função das discussões que se travavam a respeito do projeto de construção
de uma ciclovia no entorno da Lagoa. Em linhas gerais, o grupo criticava o fato do projeto
prever o aterramento da parte da orla da Lagoa que viria a ser transformada em ciclovia.
Havia também a “suspeita”, por parte dos ambientalistas, de que a largura da ciclovia
conforme apresentada no projeto, apontava para uma futura avenida. Em defesa do projeto
havia o argumento de que conteria as invasões e os aterros clandestinos que vinham se
intensificando na beira da Lagoa. Em outras palavras: o projeto previa a “invasão derradeira”
ao espelho d’água da Lagoa, a ciclovia funcionaria como um delimitador das invasões.
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A despeito de toda essa movimentação, durante o ano de 1992, a prefeitura investiu


pesado na construção da ciclovia, sem no entanto, ter chegado a concluí-la: o projeto previa
que a ciclovia circundasse todo o espelho d’água da Lagoa, mas a obra “esbarrou” na
residência dos proprietários de uma importante empresa de transporte coletivo, que têm na
Lagoa uma extensão de seu quintal, com acesso direto para seus veículos aéreos e/ou
marítimos. Por essa razão (aparentemente) a obra da ciclovia foi “abandonada”. Na parte
“concluída” surgiu uma favela, cujos moradores respeitaram os limites impostos pela ciclovia
e não invadiram, nem “permitiram” mais, a invasão do espelho d’água; na parte “abandonada”
observou-se posteriormente a retomada das invasões ao espelho d’água da Lagoa, dessa vez
promovidas por residências de luxo.
No processo da construção da ciclovia, que previa o aterramento da faixa marginal
da orla da Lagoa, o nível dos “caminhos” (ainda não eram bem ruas) transversais e da
primeira paralela à futura via, ia sendo elevado – o que justificava a doação, por parte da
prefeitura, de caminhões e caminhões de aterro aos moradores dessas “ruas”, para que
pudessem também elevar o nível de seus terrenos e prevenir problemas futuros com enchentes
e alagamentos. Nesse processo de aterramento em “efeito dominó” (aterrava-se a orla da
Lagoa e por isso era preciso aterrar também o seu entorno) surgiram terrenos que antes não
existiam73, e criou-se uma situação em que a grilagem de terras passa a ser visualizada, por
alguns ocupantes da localidade na ocasião, como possibilidade real de melhoria de vida.
Nesse contexto se encaixa a “família Miranda”74, oriunda de Natividade, cuja matriarca, D.
Dalva Carvalho Miranda – mais conhecida como Vó Dalva – desempenhou papel de inegável
importância no “cenário geopolítico” de nascimento da favela. Ao “término” (que, na
verdade, foi um abandono) da obra da ciclovia, a família Miranda já possuía “muitas” casas75
na localidade e D. Dalva já havia “conseguido trazer” seus 17 filhos para Niterói.

73
Na verdade, foi localizada posteriormente, uma planta de um loteamento ali previsto, embargado
provavelmente por invadir a Lagoa. Os terrenos que foram surgindo com o aterramento da ciclovia eram
identificados então com pedaços daqueles lotes.
74
Visando preservar a identidade dos atores mencionados, em virtude de possíveis constrangimentos, até mesmo
já sugeridas por outros moradores do entorno, optou-se neste contexto pela utilização de nomes fictícios.
75
É a própria Vó Dalva que faz questão de não precisar a quantidade de casas que possuía, se questionada sobre
o porquê de continuar pobre mesmo tendo sido “proprietária” de tantos “imóveis” na favela. Limita-se a dizer
que “muitos ali dentro pegaram suas casas para morar e deixaram de pagar o aluguel”.

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PERSONAGENS FEMININAS NA FAVELA

É da leitura de Goffman (1975) que se extrai a concepção dramatúrgica da vida


social, em que os sujeitos são percebidos como atores, desempenhando um papel. A
personagem da Vó Dalva, encarna a materialidade de duas representações reunidas: a da
mulher e da “velhinha”. Nesse momento é importante destacar que desde a chegada da família
Miranda ao local até os dias de hoje – portanto decorridos 25 anos – D. Dalva é “uma
velhinha” aos olhos dos habitantes e profissionais que circulam naqueles espaços. Tal
observação contribui para a compreensão da dimensão estratégica na “invenção do cotidiano”
(DE CERTEAU:2008). Muito embora fazendo questão de estabelecer uma distinção entre
táticas e estratégias (id.p.46), o que importa reter da contribuição do pensamento de Michel
de Certeau para a análise em pauta, é a idéia de que, na vida cotidiana, os sujeitos estão
permanentemente criando seus próprios contextos e espaços, (re) significando suas
“realidades”, aparentemente já dadas e sob(re) as quais não teriam muitas escolhas – o que se
torna especialmente “frutífero” para a compreensão de situações de precariedade material
como as observadas em favelas:
D. Dalva Miranda, em sua trajetória de mãe de 17 filhos, os quais “consegue trazer”
para uma cidade onde visualiza melhores oportunidades do que as que pareciam-lhe
disponíveis em sua terra natal, o faz exatamente com uma “astúcia de caçadora” (op. Cit,
p.47) “aproveitando a ocasião” (id.) da ocupação dos terrenos surgidos na orla da Lagoa com
a construção da ciclovia. “Tira partido de forças que lhe são estranhas” (ibid.), e no bojo dessa
sua “decisão”, incorporar os papéis de mãe e avó, construir e desempenhar seu personagem,
combinando “elementos heterogêneos” advindos das representações sociais da mulher e da
“velhinha”, são “táticas” que dão forma substancial ao projeto familiar de “melhorar de vida”.
Dessa forma pode-se perceber então, como se torna estratégico, para D. Dalva,
transitar entre os papéis da mulher forte e “guerreira”, que consegue trazer seus 17 filhos do
interior e o da “velhinha”, frágil, que necessita de toda a “ajuda” que possa obter, seja de
instituições governamentais, seja de políticos clientelistas, dos vizinhos ou de organizações
não governamentais que eventualmente atuem na localidade. O acionamento de um papel -
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mulher forte guerreira – ou outro – “velhinha” frágil, varia conforme o jogo e a interação , a
natureza e a dinâmica do campo. A opção por um ou por outro não necessariamente ocorre de
forma deliberada e nem mesmo excludente, mas responde a uma percepção irreflexiva das
representações sociais da mulher e do idoso.
Para entender melhor o acionamento de papéis por parte dos sujeitos, nas dinâmicas
de interação do “campo de possibilidades” (VELHO,1994), auxilia-nos a noção de espaço
social de Bourdieu. Para este autor, o espaço social se caracteriza como um campo de forças e
um campo de lutas, e os resultados das lutas vão depender das posições ocupadas pelos
sujeitos no campo de forças. Tais posições não são fixas, vão variar de acordo com a luta em
questão, e a constituição dos grupos de forças vai se dar de maneira artificialmente
construída, especificamente para aquela situação. Bourdieu (1989) enfatiza, e muito
apropriadamente, que a constituição de um grupo social não é um processo “natural”, é
resultado de um trabalho de acionamento de identidades, e destaca as variáveis que podem
atuar na maior ou menor eficácia dessas construções.
No momento de constituição da ocupação irregular da orla da Lagoa de Piratininga,
D. Dalva Carvalho Miranda era uma mãe de 17 filhos que precisava prover moradias para sua
prole. Através dessa identidade era possível “sensibilizar” as “autoridades” locais para ir
conseguindo mais um “terreno” e mais um pouco de aterro, mais um pouco de tijolo, mais um
pouco de areia... Nesse jogo, D. Dalva conta com seu próprio grupo: seus 17 filhos, eventuais
noras, genros e netos. Para esse “interesse” – o de ocupar terrenos e construir moradias – a
família constitui o “grupo unido”. Mas no decorrer da vida cotidiana num espaço de muita
precariedade, outros interesses se impõem, e é preciso se movimentar em busca de outras
alianças, num fazer e refazer de identidades. Assim surge o personagem da Vó Dalva,
responsável pela imposição de respeito diante da crescente violência imposta nesses contextos
pelas organizações responsáveis pelo comércio ilegal de entorpecentes. Não mais uma mãe,
mas agora uma avó – personagem que conjuga mais um elemento da identidade feminina –
traça suas estratégias, aciona suas táticas, procurando através dessa construção identitária,
visualizada como oportuna para esse objetivo, acumular “capital político” (BOURDIEU,
1989:28) conquistar “poder simbólico” (id.). O personagem da avó, neste contexto específico,
adquire maior poder simbólico ainda por sua ascendência sobre os demais elementos
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femininos de identidade: se entre suas filhas e noras muitas podem também acionar o papel de
mulher e mãe, até uma certa data, apenas D. Dalva pode ocupar a posição de avó – o que
garante, de certo ponto, vantagem na liderança do grupo familiar, vantagem essa que se
“espalha” para outros momentos em que há necessidade do acionamento da posição de líder.
Mas como enfatiza Bourdieu, o campo (de possibilidades, na terminologia de Velho)
é um campo de lutas, e a constituição das alianças se dá a partir das necessidades específicas
de cada luta, e nem o acionamento da identidade familiar garante homogeneidade permanente
à constituição dos grupos de força. Assim é que, diante da precariedade material da vida
cotidiana da família Miranda, uma filha pode se descolar de sua própria mãe, se aliando ao
pai de seus filhos – acionando portanto seus papéis de mãe e esposa em detrimento de seu
papel de filha – e deixar de pagar o aluguel devido a D. Dalva, a despeito das eventuais
consequências para a situação financeira de sua própria mãe. É o que se apresenta como
possibilidade, nesse caso específico, para o “fazer e refazer da identidade” feminina, num
espaço social marcado por fortes assimetrias de distribuição de poder simbólico entre homens
e mulheres.
Em seu trabalho Mulheres e militantes, Mirian Goldenbererg (2005), declaradamente
influenciada pelo pensamento de Bourdieu, demonstra com clareza como mulheres
socialmente identificadas como fortes, são ocupantes de posições “secundárias” no campo de
forças e lutas em questão, e para superá-las são levadas a atuar dentro de padrões associados à
masculinidade. Assim é possível compreender como, no momento em que se vê na situação
de escolher entre pagar o aluguel à sua mãe ou resguardar esse dinheiro para sua própria
família – nesse contexto específico, endurecida pelas precariedades materiais, distanciada de
sua mãe pela dominância do pai de seus filhos – a filha de D. Dalva recorre à segunda opção.
A dominação masculina (BOURDIEU,1999), se inscreve no campo, dando contornos
definidos às possibilidades das trajetórias femininas. O fato da filha comprometer os
rendimentos financeiros da própria mãe, em virtude da adesão a uma decisão oriunda de seu
marido, não será mal visto pelos demais membros da família pois não contraria nenhum
preceito da moralidade androcêntrica – é normal, aliás até mesmo desejável, e não só pelos
homens, mas pela própria mulher, que a decisão do marido prevaleça. Conceder a prevalência
às decisões do marido passa a ser, sob esta ótica, não só um elemento de submissão, mas
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sobretudo, e de certa forma perversamente, de auto-afirmação, dentro de uma estrutura de


dominação masculina: é a mulher que também “ganha” e duplamente: por dar uma
demonstração de dureza e impessoalidade – atributos masculinos valorizados no campo – e ao
contribuir para a dignidade de seu marido, afinal é ela que tem um marido digno. Submeter o
marido à sua vontade, não deixando de pagar o aluguel à sua mãe, mesmo mantendo a
vantagem do exercício de uma “atuação masculina”, por outro lado, o transformaria, aos olhos
do grupo social no qual estão inseridos, num homem submisso – o que comprometeria, por
sua vez, a “qualidade” de seu próprio casamento.

CAMPO DE POSSIBILIDADES FEMININAS NAS FAVELAS

Num espaço social tão marcado por precariedades materiais como são as favelas,
locais portanto de escassez de capitais tanto econômico como cultural (de valor simbólico
elevado, que fique claro, pois não se trata aqui de discutir a importância da chamada “cultura
popular”), as possibilidades do campo, que são disponibilizadas às mulheres, atuam de
maneira mais restritiva em suas trajetórias do que em outros espaços mais bem providos de
recursos. E aquele permanente transitar entre diferentes “províncias de significado”
(VELHO,1994) nesses contextos fica comprometido, chegando mesmo à interdição em certas
construções identitárias.
Assim se observa em referências presentes nas letras de grupos de rap da periferia de
São Paulo, analisadas por Maria Rita Kehl (2000). Na tentativa de constituição de um “grupo
social”, os “manos” do rap constroem uma identidade fraterna na qual as mulheres não são
bem-vindas, a não ser aquelas que passam a se comportar como eles, se destituindo portanto
dos atributos associados à feminilidade, como também observa Kehl:
...em um programa apresentado pela MTV sobre o rap, comandado por KL Jay,
algumas bandas formadas por garotas de favelas cariocas foram tratadas pelo
apresentador com o mesmo respeito e consideração que as bandas masculinas.
Seriam as primeiras manas a furar a barreira da misoginia e colocar-se ao lado dos
rapazes? (id., p.242)

A autora reconhece, nesse movimento, uma possibilidade de construção de uma


“nova” província de significado, onde a circulação de mulheres possa ser aceita, mesmo que

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não veja nesse movimento uma garantia de superação de uma situação de opressão
(KEHL,2000:242-3)
A menção ao “mundo do rap” neste trabalho, muito embora esteja de acordo com a
iniciativa de analisar um espaço social classificado como favela – intrinsicamente relacionado
ao desenvolvimento desse gênero musical no Brasil – não se baseia no interesse por esse
universo específico, até porque, na localidade estudada não se observa a ocorrência de
nenhum grupo com essas características. Interessa reter dessas discussões apenas o que elas
trazem para pensar como o campo de possibilidades para as trajetórias femininas pode tomar
contornos mais restritivos nesses espaços que, por suas marcantes precariedades, terminam
por propiciar constituições de grupos “fraternos” – pela necessidade da busca daquela “zona
de conforto” que tais “unidades englobantes” (VELHO,1994) proporcionam, ser mais
premente do que em outros campos – cujas identidades, o quanto mais procuram se fortalecer,
tanto mais correm o risco de se tornarem segregacionistas. E, como “a corda sempre arrebenta
do lado mais fraco” quem tende a “sobrar” são as mulheres, que vão encontrar, no entanto,
possibilidades de se constituírem enquanto grupos de compartilhamento de capital simbólico
em outras redes.
Em seu trabalho “Em nome dos filhos, a formação de redes de solidariedade:
algumas reflexões a partir do caso Acari”, Freitas (1994) aponta para essas possibilidades que
se apresentam às mulheres moradoras de favelas. A autora destaca a função materna – ao
invés da função fraterna analisada por Kehl, e onde o feminino está “interditado” - como
elemento aglutinador de mulheres na constituição de um grupo social dotado de um interesse
comum, e enfatiza a importância da construção dessas “redes de solidariedade” para a luta
política:
Ao estudarmos esses movimentos vemos as mulheres como protagonistas. E elas
fazem isso a partir da dimensão materna. São como mães e a partir do que esse papel
suscita em termos simbólicos e culturais que se lançaram às ruas. [...] E essa
estratégia vem dando mostras de ser um importante caminho para a negociação
política. (p.96)
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nenhum filho de D. Dalva logrou uma melhoria de vida além da que ela mesma já
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havia proporcionado, pelo contrário, atuaram eles mesmos no sentido de degradação do


patrimônio familiar pelo qual a matriarca lutou para construir. D. Dalva gostaria de ser
removida para uma unidade do Programa Minha Casa Minha Vida, morar em apartamento,
com a sensação de que aí sim, vai melhorar de vida. Mas também, “se vier [a regularização
fundiária] vai ser bom”, vai conseguir “vender melhor” sua casinha. D. Dalva bota sua cadeira
de plástico, de manhã, na frente do portão da servidão que toma com seu “quintal” e toma sol
quando tem sol, quando está nublado só olha a rua (que não foi contemplada com
pavimentação e drenagem pelo Projeto Bairro Melhor, atualmente em curso na região),
quando está chovendo não sai. Ninguém senta ao lado dela, está com dificuldades de audição,
de forma que os poucos que se dirigem a ela têm que fazê-lo gritando – o que sempre dá a
sensação de rispidez. Mas D. Dalva continua sonhando em “melhorar de vida”, só não acha
mais que possa fazer isso pelos seus filhos – que demora um pouco pra lembrar quantos ainda
são.
Em sua obra “O desencantamento do mundo”, Bourdieu (1979) procura demonstrar,
através da análise das condições do trabalho e dos trabalhadores na Argélia, como as
“probabilidades objetivas” se inscrevem nas “esperanças subjetivas” e aponta que “o campo
dos possíveis tende a se alargar à medida que a pessoa se ergue na hierarquia social” (p. 79).
Com a observação das trajetórias de D. Dalva, seus personagens Vó Dalva e a mãe guerreira
que “conseguiu trazer” 17 filhos para a “cidade grande”, podemos observar o mesmo
fenômeno, mas em direção inversa: seus sonhos se restringiram a medida em que suas
conquistas se desfizeram.
Para constituir um grupo social de interesse na defesa do direito à moradia não é
possível “chamar à luta” D. Dalva sem incluir seus filhos; tampouco é possível “chamar à
luta” seus filhos, cujas trajetórias e estratégias sempre se desenvolveram num campo de
possibilidades determinado pela influência da matriarca – que não mais a possui, na medida
em que seu capital simbólico acumulado vai perdendo valor no campo, com a entrada em
cena de outros atores e valores que se impõem, seja pela violência física ou simbólica. Mas
Vó Dalva ainda faz planos para uma “vida melhor”, sentada sozinha em sua cadeira de
plástico, sem conseguir definir muito bem o que isso seria, “talvez porque a consciência das
dificuldades interpostas se torna mais aguda, como se nada fosse realmente impossível
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enquanto nada é realmente possível.” (BOURDIEU,1979:82)


Nessas breves considerações sobre trajetórias femininas na favela, tomando, na
verdade, basicamente, uma só mulher – mas que, na concretude de sua existência
desempenhou vários papéis e percorreu inúmeros caminhos em sua luta cotidiana, “criando
sozinha” seus 17 filhos – o que se procura é apontar também possibilidades no campo para a
superação da dominação masculina. Como já apontado por Freitas, a função materna cumpre
um importante papel na formação de redes de solidariedade que atuam para além do mundo
privado. E através dessa função D. Dalva constituiu seu grupo social de ocupação e
consolidação de poder simbólico no território, mesmo que seus passos não tenham sido
seguidos por seus sucessores.
Se pararmos agora para refletir a partir do que é apontado por Kehl em sua análise do
mundo do rap, de que no âmbito da “fratria” a mulher só consegue trânsito ao se comportar
como “os manos”(2002,p.243); acrescentarmos a essa reflexão as constatações de Goldenberg
em sua análise do contexto da militância, onde igualmente a mulher que se destaca é aquela
que assume uma “atuação masculina” (2005:134), podemos nos perguntar até que ponto vale
a pena seguir essas trajetórias, já inscritas elas mesmas num campo de possibilidades
masculinamente dominado. Ou se não seria mais frutífero, dentro das “probabilidades
objetivas”, nortear a “luta” no campo, pela “feminilização” das estratégias. Retomando a
proposta de um famoso “lutador” em sua frase mais célebre, seria possível propor para um
“novo feminismo”, não de “endurecer-se pero sin perder la ternura”, mas sim de fazer com
que a “ternura” passasse a ocupar posição de vantagem como capital simbólico no campo de
forças, ao invés do “endurecer-se”. Trata-se de subverter a estrutura de classificação dos
capitais, para talvez assim, subverter a própria estrutura de distribuição de poder simbólico no
campo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.


BOURDIEU, Pierre O Desencantamento do mundo. São Paulo: Perspectiva, 1979.
________________. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papiros, 1996.
________________. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
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________________. A Distinção: crítica social do julgamento, Porto Alegre, Editora Zouk,


2007.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2008.
FREITAS, Rita de Cássia Santos. “Em nome dos filhos, a formação de redes de solidariedade
– algumas reflexões a partir do Caso Acari.” Revista Serviço Social e Sociedade, n.71, São
Paulo: Cortez, 2002.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petropólis, RJ: Vozes, 1975.
GOLDENBERG, Mirian. De perto ninguém é normal – estudos sobre corpo, sexualidade,
gênero e desvio na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
KEHL, Maria Rita [org.] Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de
Janeiro, Zahar, 1994.

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RELAÇÕES DE GÊNERO NO CARNAVAL OITOCENTISTA DE PORTO ALEGRE

Caroline P. Leal | carolpleal@yahoo.com.br

Até o último quartel do século XIX, Porto Alegre comemorava o carnaval sob a
forma do entrudo. Brincadeira de origem ibérica tinha aqui como principal objetivo molhar e
sujar o adversário, seja através dos limões de cheiro, de bisnagas, seringas ou, até mesmo, de
água jogada de bacias e baldes. Foi somente em 1873 que surgiram as primeiras sociedades
carnavalescas – Esmeralda e Venezianos – e com elas um novo modelo de carnaval, com
desfiles em carros alegóricos e bailes para seus sócios.
Essa mudança não se restringiria somente na forma como o carnaval seria
comemorado. Ela também alterou os espaços, os lugares e as condições destinados a homens
e mulheres na brincadeira. Dessa forma, este artigo busca analisar a construção das relações
de gênero, tomando como lócus investigativo os festejos carnavalescos do último quartel do
século XIX, na cidade de Porto Alegre, quando essa festa passa por uma mudança
significativa, o surgimento do carnaval veneziano. Nosso objetivo é mostrar que tal
festividade, sendo um campo de invenção do social, serviu para edificar e reforçar sentidos e
significados para as relações de gênero. Através dos festejos de carnaval temos acesso ao
mundo das relações estabelecidas entre homens e mulheres, o que nos permite enxergar a
diversidade das atividades práticas e representacionais que compõem esses universos.
O entrudo foi praticado em Porto Alegre desde o início de sua colonização
(FERREIRA, 1970:11). Em nossa pesquisa de mestrado pudemos verificar o protagonismo
feminino nessa brincadeira, tanto nas classes populares, quanto entre membros da elite
(LEAL, 208:26-44). John Luccock, viajante inglês, que visitou a cidade no início do século
XIX e que teria tomado um banho das filhas do governador relatou que “[...] ficar de tocaia
nas janelas e ensopar passantes distraídos era um dos prazeres prediletos das donzelas da
terra, ainda mais se as vítimas fossem estrangeiro” (FERREIRA, 1970:10).
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Contudo, muitas vezes, a brincadeira atingia níveis de maior aproximação corporal,


como podemos perceber nessa descrição do jornal A Reforma:
Eu já não quero falar nesta liberdade de que nos apossamos de entrar por qualquer
casa alheia, e ir até o quintal para molhar a sinhá, as velhas e as meninas, até que
nos deitam nalguma gamela, cedendo à força de frágeis mãozinhas que nos seguram
e nos roçam.
O brinquedo tem outros mil atrativos, e dá lugar a episódios burlescos, aconchegos
ternos, a que empreguemos com toda a sem-cerimônia um dos nossos cinco
sentidos, coisa que nos é inteiramente proibida nos tempos comuns (A Reforma, 23
de fevereiro de 1873).

Denota-se que, com o entrudo, se encontrava formas de burlar as normativas afetivas


e sexuais apregoadas na época, sobretudo, no que tange ao feminino. Recato e pudor eram
qualidades da virtude feminina. As seduções do corpo, tidas como maléficas, deviam ser
controladas, pois a moral só responderia pela mulher com a condição de que essa fosse
inviolável em sua dignidade (CARELI, 1997: 28). De acordo com Careli “os padrões de
controle do comportamento feminino objetivavam não só submetê-las à autoridade familiar,
para que os ensinamentos virtuosos fossem ministrados, como também impedir seu contato
com outras formas de conduta ou pensamento que viessem a corrompê-la e afastá-la do seu
caminho” (CARELI, 1997: 277). O carnaval, celebrado na forma do entrudo, era um
momento propício para a quebra desses padrões de controle do feminino, dava “ao belo sexo
o delírio das bacantes” (A Reforma, 18 de fevereiro de 1875). E isso, talvez, fosse um dos
motivos para o seu sucesso junto ao público às mulheres: seria um dos únicos momentos em
que as senhoritas podiam exercer sua sexualidade de forma mais declarada. Em outras
condições, tais molhadelas poderiam não ser percebidas como a expressão de uma
sexualidade ou como um ato imoral: é a partir da internalização de estruturas mentais através
daquilo que Bourdieu definiu como o “sentido do jogo” que os códigos são decifrados.
Sohiet, analisando o carnaval carioca, justifica essa atitude pelo fato de que “apesar
da repressão sexual que recaía sobre as mulheres, buscando nelas incutir o estereotipo da
frigidez feminina, das exigências de virgindade e de sobriedade de conduta, confirma-se o
pressuposto de Freud de que a sexualidade, o ingrediente mais poderoso da constituição
humana, não pode tão facilmente ser descartado” (SOHIET, 2000:105). Para a autora, “as
mulheres, vivendo outra modalidade de opressão, utilizavam-se igualmente da festa
carnavalesca para entrar no reino do prazer, em sua variada significação, empregando-a como
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alavanca para a sua liberação” (SOIHET, 1989:107). As mulheres “estavam, igualmente,


procurando festejar o corpo e extrair o prazer que ele é capaz de proporcionar, ao invés de
permanecer numa atitude passiva, conforme lhes era apregoado” (SOIHET, 1989:107).
De acordo com Pierre Bourdieu, as mulheres, desde o nascimento, por serem
mulheres, são tratadas como objetos cuja função é manter o capital simbólico – especialmente
a honra – em poder dos homens. Assim, desde o nascimento, introjetamos construções
culturais que evidenciam inúmeras desigualdades e hierarquias, produzindo significados e
testemunhando práticas de diferentes gradações. Esse poder é exercido nas mais diversas
instituições e apreendido por nós como algo natural, sendo a dominação masculina entendida
como uma estrutura invariável, necessariamente incorporada por ambos os sexos. O poder
simbólico, portanto, é construtor da realidade que conhecemos, ao mesmo passo que também
é construído por ela e se eterniza através dos instrumentos de dominação simbólica, como por
exemplo, os mitos, as lendas, as ideologias (BOURDIEU, 2005:46). Evidenciaremos, assim,
que o próprio carnaval passará a ser ordenado por meio desta luta simbólica que constituem os
gêneros.
Em Porto Alegre, as mulheres que permanecessem fieis a esse antigo costume eram
bastante criticadas. Vejamos, por exemplo, o caso da primeira dama da Província76, que foi
severamente recriminada pelo jornal A Reforma por ter jogado o entrudo: ”[...] que essa
renovação do passado fosse obra da ex-marquesa nada há que admirar, pois é muito conhecida
por seu ardente temperamento e extraordinário calor” (A Reforma, 15 de fevereiro de 1871).
O jornal atribui condições para as mulheres que permaneciam entrudando, características que
visavam desqualificá-la moralmente e destacar atributos que reportassem a um
comportamento sexual mais liberal. O respectivo periódico seguia com sua critica, advertindo
que tal comportamento não era “digno das humanas filhas do Rio Grande” (A Reforma, 15 de
fevereiro de 1871).
Era preciso, portanto, uma nova forma de se celebrar o reino de Momo. No domingo

76
A ex-marquesa de Monte Alegre, era mulher do ex-presidente da Província, Antônio da Costa Pinto e Silva
(exerceu mandato de 16/09/1968 a 20/05/1869) Acreditamos ser ela Maria Isabel de Souza Alvim, a segunda
esposa do Marquês de Monte Alegre, José da Costa Carvalho, com quem casou-se em São Paulo, em 1839. O
Marquês de Monte Alegre morreu em 1860 e ela se casou novamente com Antonio da Costa Silva e Pinto
(AITA, 1996); Lista genealógica, Jornal Brasileiro de Cultura, disponível em
http://www.jbcultura.com.br/gde_fam/pafg109.htm. Acessado em 31 de março de 2007.
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de carnaval do ano de 1873, na coluna Folhetim do jornal A Reforma, Desjenais77, saudava a


festa, como “o dia da folia, da loucura, do regozijo, da mais ampla liberdade. Momo, com
seus guizos e suas caretas, atordoa a humanidade inteira” (A Reforma, 23 de fevereiro de
1873). Apesar disso, criticava a forma pela qual o carnaval estava sendo celebrado – através
do entrudo, que de acordo com o colunista “traz sempre prejuízos físicos e morais” (A
Reforma, 23 de fevereiro de 1873) e conclamava as pessoas a que trabalhassem “para acabar
com o Entrudo. Olhem: no Rio Grande e Pelotas já há Carnaval. E é até vergonhoso para a
mocidade porto-alegrense ter deixado a rapaziada daquelas sociedades pôr-lhes o pé na
frente” (A Reforma, 23 de fevereiro de 1873). Se em Rio Grande e Pelotas78 já havia
sociedades, como Porto Alegre, a capital da Província, ainda não as possuía? Era necessário
modernizar os festejos da cidade. Afirmava ele que:

[...] precisamos acabar com o Entrudo. Temos tantos carros na cidade e uma
rapaziada que se distingue por seu bom gosto e fino espírito (é preciso elogiá-la);
por que não havemos de organizar uma sociedade carnavalesca que enterre para
sempre o antiquário Entrudo? Apareça aí um mais corajoso, tome a iniciativa, e verá
que há de ser acompanhado. Se aparecer este herói, prometo desde á endeusá-lo,
num discurso ad-hoc que há de ser proferido na sexta-feira gorda de 1874, por
ocasião do banquete oferecido pelo Deus Baco, em regozijo à entrada da Quaresma
(A Reforma, 23 de fevereiro de 1873).
A iniciativa de criação de uma sociedade a fim de fazer carnaval deveria ser tomada
por um corajoso, que seria considerado um herói. Se, no ano seguinte, houve esse discurso de
endeusamento não conseguimos averiguar. Mas os heróis foram lembrados no ano de 1875 e
comparados a ardorosos defensores de tempos medievais, com nobre missão a executar.

Como os antigos paladinos da Idade Média, que batiam-se galhardamente só para


receberem em troca um sorriso, ou uma lembrança grata da dama de suas afeições,
assim também venezianos e esmeraldinos, à porfia, se atiram à luta, aspirando, como
único galardão, a uma recepção estrondosa, a uma manifestação de simpatia; mas as
suas armas são mais delicadas, e a sua causa é mais nobre que a daqueles, pois eles

77
Desjenais era o pseudônimo de Joaquim Antônio Vasques. Foi pagador do Exército na Guerra do Paraguai, Inspetor Fiscal
da Fazenda Provincial até 1879 e deputado provincial pelo Partido Liberal de 1873 a 1876. Foi homem de confiança de
Gaspar Silveira Martins, o cacique supremo dos liberais gaúchos, sendo seu Oficial de Gabinete quando este esteve no
Ministério da Fazenda do Império em 1878 (MARTINS, 1878). Segundo Lazzari, “não consta que ele houvesse participado
da fundação da Sociedade Carnavalesca Esmeralda em 1873”(LAZZARI, 1998: 85). Entretanto, o mesmo foi sócio e chegou
a presidir a sociedade na gestão de 1880/1881(Mercantil, 16 de fevereiro de 1880).
78
Em Pelotas, a partir de 1860, já havia sociedades carnavalescas, quando a elite começou a introduzir o Carnaval Veneziano
ou Grande Carnaval, mais refinado e civilizado. Caracterizado pelos suntuosos carros alegóricos e bailes de máscara. Nesse
período se estabeleceu um conflito entre a festa selvagem do entrudo - praticada pela população em geral - e a folia de
exibição organizada pela elite (BARRETO, 2003).
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batem-se pela civilização, pela inoculação de ideias adiantadas, enquanto que


aqueles somente o faziam para satisfazerem um capricho pessoal, sem fim algum,
nobre, que os justificassem.Nós saudamos com verdadeiro entusiasmo os iniciadores
e sustentadores dessa ideia grandiosa (A Reforma, 08 de fevereiro de 1875).

É interessante notar que, assim como os heróis da Idade Média, venezianos e


esmeraldinos lutavam pela civilização de Porto Alegre. Nesse caso, o carnaval das sociedades
era relacionado com a civilidade, com ideias avançadas; enquanto o entrudo, em
contrapartida, seria um costume bárbaro e atrasado que deveria ser erradicado. E, nesta
missão de remodelação do carnaval, é dado total destaque à figura masculina. Eles seriam os
heróis, portadores de ideias adiantadas, que lutavam pela civilização de Porto Alegre.
E assim, no final do carnaval do ano de 1873, surgiriam as sociedades carnavalescas
Esmerada e Os Venezianos. Entre seus objetivos se encontrava a eliminação da antiga
brincadeira – o entrudo, pois nele havia o perigo dos “abraços traiçoeiros que começam na
porta da rua e iam terminar mesmo nas barbas dos senhores pais de família” (A Reforma, 14
de fevereiro de 1875). Desta forma, no novo carnaval não haveria mais correrias, nem
agarramentos, como na antiga brincadeira. Os rapazes desfilariam nos carros alegóricos,
enquanto as moças assistiriam e aplaudiriam seu desfile, devidamente afastados em termos
corporais.
Os rapazes... Pois bem, nesse novo carnaval o principal papel passara, então, a ser
desempenhado pelos homens: “[...] os mascarados venezianos e esmeraldinos serão a nata dos
moços da nossa sociedade, a boa gente da terra. E, por isso, tem direito a todas as atenções
dos habitantes, aos quais cabe também de sua parte secundá-los no abrilhantamento das festas
carnavalescas” (FERREIRA, 1970:32).
O protagonismo da festa estava no masculino, era quem organizava o carnaval e
desfilava nos carros. O público, incluindo as mulheres, somente os assistiria e jogaria flores se
apreciasse a exibição, colaborando para o “abrilhantamento” da festa: “[...] combate
magnífico [entre Esmeralda e Venezianos] que deu em resultado ficar o campo juncado de...
flores, tal foi o empenho das moças em jogar-lhes lindos buquês” (FERREIRA, 1970:39).
Queria-se, contudo, a adesão das mulheres para o novo carnaval, embora elas não
fossem ativas partícipes, deviam ser expectadoras e apreciadoras da festa, trocando o antigo
jogo do entrudo pelo carnaval veneziano. Dessa forma, os discursos dos jovens carnavalescos
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eram frequentemente dirigidos a elas: “Castas donzelas desta terra ingente, lindas estrelas de
eternal fulgor, daí hoje aos filhos da Veneza ardente, flores, sorrisos e um olhar de amor [...}”
(A Reforma, 11 de fevereiro de 1875). Discurso que reforçavam as ideias de pureza, candura e
continência sexual: a única a coisa a ser dada deveria ser flores sorrisos e olhares de amor...
Percebe-se, dessa forma, que a adequação do comportamento feminino durante o
reinado de Momo foi uma das principais preocupações e objetivos a se atingir com a
introdução do novo carnaval. Era uma forma de controle do feminino, colocado sob a tutela
do masculino. Se durante o entrudo se encontrava formas de burla, com o carnaval veneziano
o domínio masculino passa a ser reforçado.
No entendimento de Pierre Bourdieu, os gêneros podem ser apreendidos como
“habitus sexuado” (BOURDIEU, 2005:06), ou seja, como a incorporação das disposições
culturais do princípio de divisão sexual dominante sobre os agentes sociais, resultado de um
extraordinário trabalho coletivo de socialização difusa e contínua no qual “as identidades
distintivas que a arbitrariedade cultural institui se encarnam em habitus claramente
diferenciados” (BOURDIEU, 2005:34). Para Bourdieu

as aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo trabalho coletivo de


socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas
mentes conjugam-se para inverter a relação entre as causas e os efeitos e fazer ver
uma construção social naturalizada [...], como o fundamento in natura da arbitrária
divisão que está no princípio não só da realidade como também da representação da
realidade e que se impõe por vezes à própria pesquisa (BOURDIEU,2005:09 e 10).

As pré-disposições culturais de uma sociedade é que formariam, portanto, o que é ser


homem e o que é ser mulher. Na relação de forças material e simbólica entre os sexos, é
destinado aos homens uma posição de dominação, onde o princípio dessa relação de
dominação reside em instâncias como a “Escola ou o Estado, lugares de elaboração e de
imposição de princípios de dominação que se exercem dentro mesmo do universo mais
privado” (BOURDIEU,2005:11). Desta forma, no carnaval do século XIX em Porto Alegre,
vemos as mulheres saindo do protagonismo nas brincadeiras de entrudo (e aquelas que
permanecessem desclassificadas moralmente), um momento em que podiam subverter a
lógica da dominação, passando a ser coadjuvantes da festa. Enquanto isso os homens passam

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a ser a figura do carnaval.


De acordo com Bourdieu a divisão entre os sexos está presente em “todo o mundo
social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como
sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação”. (BOURDIEU, 2005:17).
Desta forma, ela parece “estar na ‘ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que
é normal, natural, a ponto de ser inevitável” (BOURDIEU, 2005:17). Assim, o carnaval
também passara a ser percebido de forma diferenciada: o entrudo estava ligado ao feminino,
enquanto as sociedades carnavalescas ao masculino. Não só pelo protagonismo de quem
levava a cabo as brincadeiras, bem como pelos adjetivos utilizados para classificar aos foliões.
Enquanto as mulheres que jogavam o entrudo tinham “ardente temperamento”, os jovens das
sociedades carnavalescas eram corajosos, “antigos paladinos da idade média”. A condenação
ao entrudo e a tentativa de substituí-lo pelo carnaval veneziano pode ser interpretado dentro
da lógica da dominação masculina, na qual práticas femininas são percebidas como práticas
inferiores as masculinas.
A brincadeira do entrudo e a liberação sexual por ele facilitada permitia que as
mulheres pudessem exercer suas vontades sem maiores reprimendas. Eram as protagonistas
da festa. A partir do nascimento das sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos. Elas
sairiam do protagonismo que apresentavam nos jogos das molhadelas para a passividade de
assistir ao préstito veneziano. O discurso a respeito do carnaval buscava inculcar
coletivamente a superioridade masculina através de um discurso virilizante da folia de Momo.
Fazendo uso de adjetivos como heroico e moderno, buscava-se a construção de uma festa que
fazia uso de símbolos culturalmente compreendidos como masculinos, da qual as mulheres
não fariam parte, exceto como apreciadoras.
Em ambos os períodos se construiu distintos símbolos e significados culturais a
respeito das diferenças sexuais, muitas vezes utilizados para a compreensão não só do
carnaval, mas de todo universo daquela sociedade. Afinal, o saber sobre os corpos femininos e
masculinos e a criação de determinadas características (a pecadora para elas e heroico para
eles) sobre estes corpos foi uma forma de hierarquizar essas relações e está imbricado em
redes de poder.

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Concluímos que as disputas em torno do carnaval marcaram disputas em torno de


poder e que as mudanças realizadas na festa, a partir do surgimento do carnaval veneziano,
objetivavam manter as mulheres dentro dos padrões de comportamento e ação que são
atribuídos pelo processo de socialização do sistema de dominação masculina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RELEVÂNCIA SOCIAL DO ESTUDO SOBRE MULHERES CAPOEIRISTAS NO


ESTADO DO CEARÁ

Sammia Castro Silva79| sammiacastroef@gmail.com

INTRODUÇÃO

A reivindicação de métodos históricos mais abrangentes proporcionou o surgimento


de novos campos científicos e promoveu significativas transformações na historiografia do
decorrer do século XX. É um fato que estudos históricos tradicionais, anteriores ao
movimento da Escola de Annales80, não se reportaram ao estudo da condição social da mulher
nas diferentes sociedades. Diante da insurgência do movimento de Annales, verificou-se a
necessidade do estudo da História das Mulheres, mesmo antes do desencadeamento e
efervescência do movimento feminista na década de 1960. Contudo, é interessante ressaltar
que um estudo que se reporte a essa temática não significa o desejo de obter uma simples
retratação quanto à exclusão desse grupo social nos procedimentos historiográficos, mas sim a
tentativa de obter domínio sobre um tema que é um objeto categórico útil e passível de análise
histórica.

79
Doutoranda e Mestre em Educação Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do
Ceará (FACED/UFC); Especialização em Arte-educação e Cultura Popular pela Faculdade de Tecnologia Darcy
Ribeiro (FTDR); Graduação em Educação Física pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Professora
efetiva do ensino básico no município de Fortaleza e Tutoria pelo Instituto UFC Virtual. E-mail:
sammiacastroef@gmail.com
80
Movimento historiográfico iniciado com o lançamento da revista Anais de História Econômica e Social,
na França no final da década de 1920, por Marc Bloch e Lucien Febvre, representantes da primeira geração desse
movimento que rompeu com a concepção estritamente polítca de História. Essa primeira geração constitui a
vanguarda de uma renovação de métodos históriográficos, aspirantes à construção de uma História Total e cuja a
interdisciplinaridade e questionamento de fontes é uma estratégia importante. A segunda geração foi liderada por
Braudel, notadamente reconhecido pelo apreço à longa duração do tempo histórico. A terceira fase é iniciada
com o início da presidência da revista por Jacques Le Goff, interesssado em questões simbólicas e culturais, a
multiplicidade de métodos, a valorização de narrativas e de biografias também fazem-se relevantes nesse período
(BURKE, 1992).

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O registro e análise de fatos e comportamentos de diferentes grupos sociais, outrora


marginalizados por estudos científicos, envolvem pesquisas em toda a área de Ciências
Humanas da atualidade. O estudo de gênero e a questão da mulher se constituem,
paulatinamente, como uma área de conhecimento interdisciplinar, passível de abordagem em
inúmeros campos científicos, perpassando, naturalmente, o universo histórico e educacional.
O objetivo central desse estudo é investigar elementos históricos originários da participação
feminina na prática cultural da capoeira no estado Ceará, utilizando como recurso central a
história de vida das únicas quatro mestras de capoeira do estado do Ceará.
Pretendemos contemplar essencialmente a questão da relevância social de um estudo
histórico-educacional sobre a condição feminina das antigas adeptas. Na ocasião das
entrevistas foram explanados os saberes e fazeres dessas mulheres, o percurso histórico que
envolve o contexto familiar e profissional relacionado a ser capoeirista, aptidões físicas,
artísticas e musicais, religiosidade e a questão da violência, discriminação e opressão na
prática. A partir desses objetivos primordiais verificamos a necessiadade de um estudo mais
contemplativo sobre o percurso histórico que aborde os saberes e fazeres advindos da mulher
capoeirista em território cearense.
Atualmente a capoeira é considerada um patrimônio cultural imaterial brasileiro.
Entretanto, precisamos compreender que nem sempre houve esse pensamento da sociedade
brasileira pois ela passou por um longo processo de criminalização e, embora tenha servido
aos interesses políticos do país em diferentes momentos políticos, somente foi aceita no
decorrer do século XX. A aceitação social dessa prática ocorreu diante da política nacionalista
da Era Vargas, pela ótica do esportivismo e da luta marcial eminentemente brasileira. Nesse
período, higienista e eugenizador, também ocorreu a implementação da Educação Física nas
escolas e faculdades em que mulheres eram proibidas de praticar inúmeras atividades, tais
como lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático,
pólo, rugby, halterofilismo e baseball. A atividade física para elas era restrita a práticas
trabalhos manual, jogos infantis, ginástica educativa e outras práticas que não se
contrapusesse ao futuro papel de reprodução.

RELATOS HISTÓRICOS SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA CAPOEIRA


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Sobre a presença da mulher capoeirista no Brasil, Leitão (2004) constata que essa
participação foi evidenciada ainda no início do século XIX. Essa afirmação é sustentada a
partir da análise de um documento pertencente ao Arquivo Nacional Brasileiro de 1817 e
1819, em que Joaquina Angola de João dos Fatos foi presa e condenada a levar 300 açoites
por estar com um “estoque” na mão e jogando capoeira. O mesmo autor reconhece que
somente a partir do século XX houve uma maior participação de mulheres capoeiristas na
sociedade brasileira, citando nomes contemporâneos à década de 1940 e 1950, tais como
“Nega Didi”, “Maria Homem”, “Satanás”, “Maria para o bonde”, “Calça Rala” e a tenista
campeã brasileira Lucy Maia, treinada pelo Mestre Artur Emídio de Oliveira na década de
1950. Material jornalístico, fotografias, vídeos e discos gravados ainda na década de 1950,
comprovam a participação de mulheres no canto das rodas de capoeira, especialmente no
samba de roda.
Ainda sob a ótica da repressão, Soares (2002) aponta uma notícia que menciona o
nome de mulheres que passavam a vida a brigar e a desafiar quem lhes desagradassem. Essas
mulheres atendiam pelo nome de “Isabel” e “Ana”, mostrando-se peritas na arte da
capoeiragem, em meio às lutas travadas por elas, nas ruas do Rio de Janeiro. Conforme as
pesquisas de Barbosa (2005), existem sete nomes de capoeiristas que ficaram famosas no
século XX: Maria Homem, Júlia Fogareira, Maria Cachoeira, Maria Pernambucana, Maria pé
no Mato, Odília e Palmeirona. A autora afirma que a documentação escrita relacionada a essas
mulheres é escassa e geralmente se refere ao “comportamento masculino” adotado por elas.
A partir das inúmeras cantigas de domínio público da capoeira, depreende-se o
caráter proximal das mulheres às práticas da capoeiragem. Percebemos isso de fato quando
essas cantigas se referem às Quitandeiras do Largo da Sé, no Rio de Janeiro, e às Baianas do
Acarajé, das ruas de Salvador. De acordo com a lenda N`Golo, amplamente difundida pela
tradição oral, a origem da capoeira também é contada de um modo que a mulher apresenta
um caráter passivo na ritualística. Conforme Bola Sete (2001), a capoeira decorre de uma luta
africana que era uma espécie de ritual de passagem da mulher para fase adulta, a efêndula.
Nesse ritual os homens disputavam a pontapés e cabeçadas, similarmente às lutas que
ocorriam entre as zebras, o direito de desposar as mulheres da tribo. No decorrer do
consagrado estudo etnográfico de Rego (1968), mulheres não são citadas como as maiores
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detentoras e executoras dos conhecimentos dessa prática, restando às mesmas um papel


secundário:

“[...] usavam pouco a navalha. Geralmente entregavam às mulheres de saia, como


eram chamadas as negras africanas ou descendentes, para esconderem na cabeça
entre o cabelo e o torso, tomando-a no momento preciso”. (REGO, 1968, p. 297).

O DISCURSO DE TRÊS MESTRAS DE CAPOEIRA CEARENSES SOBRE A


NECESSIDADE DE ESTUDOS QUE ABORDEM A QUESTÃO DE GÊNERO NESSA
PRÁTICA
Este segundo aspecto a que estamos conferindo elevado grau de importância, questão
de gênero, é parte integrante do objetivo desse estudo de estar dando continuidade à
dissertação de mestrado de minha autoria, Silva (2013), que tratou do protagonismo dos
primeiros mestres de capoeira do estado e que não se ateve à complexa questão de gênero do
universo capoeirístico cearense, apesar de ter constatado interessantes evidências desse
aspecto no decorrer das pesquisas de campo. Em pesquisas prévias, verificamos o
reconhecimento local das seguintes mestras de capoeira: Vanda, Paulinha Zumba, Carla Mara
e Janaína. Um outro fator relevante constatado, no cenário capoeirístico atual, foi o elevado
número de capoeiristas cearenses com distintas graduações, sugerindo uma boa perspectiva e
facilidade de acesso a indícios que reconstrua o fato histórico da participação da mulher na
prática cultural da capoeira no estado do Ceará, a partir da década de 197081.
Baseado em informações contidas no estudo de Scott (1992), Rago (1997) e Del
Priore (2013), resguardaremos em nossos discursos o termo “relações de gênero” como uma
organização social da diferença sexual. Empenhamo-nos numa busca pela compreensão
crítica da história, enquanto lugar de produção de saber das relações de gênero e buscando
evidenciar a diversidade de significados para as diferenças corporais. Assim como a capoeira,

81
Segundo Silva (2013), é impossível afirmar, com a devida certeza, o primeiro capoeirista do estado do Ceará,
pois, em períodos remotos e por diferentes necessidades, por aqui passaram diversos adeptos dessa arte. No
entanto, ficou constatado que, na década de 1970, mestre Zé Renato iniciou o ensino da capoeira em instituições
formais de ensino da cidade de Fortaleza/Ceará. Foi relatado que, desde o início, mulheres que pertenciam ao
grupo folclórico do CSU Presidente Médici tiveram contato com a capoeira. Entretanto, nesse estudo a condição
feminina no universo capoeirístico do estado do Ceará não foi devidamente estudada pois o objetivo central
desse estudo dissertativo foram as relações entre lazer, aprendizagem e formação profissional dos primeiros
professores de capoeira do estado, onde não havia representantes do sexo feminino.
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o estudo de gênero e a questão da mulher se constituem uma área de conhecimento


interdisciplinar, passível de inúmeros estudos e perpassando, naturalmente, o universo
histórico e educacional. Ressaltamos o entendimento que, entre todas as semelhanças e
diferenças existentes entre os sexos, interessante é reconhecer em ambos os sexos a luta por
três causas: sobrevivência, poder e liberdade.
A liberdade de expressar-se e sentir-se das mestras de capoeira do estado constitui
um acesso ao conhecimento sobre a participação e organização feminina atual nessa prática.
A invisibilidade acadêmica desse tema de estudo traz uma iminente necessidade de registrar,
em meio ao contexto do Campo de Saberes da Capoeira, os inúmeros fazeres, saberes e
reivindicações que percorrem a oralidade de mestras da arte da capoeiragem. Segundo
Simões (2002), p.1:
Ser mulher na capuera (sic) envolve questões referentes à discriminação, opressão,
educação, musicalidade, maternidade, violência, religiosidade, força e condição
feminina, história da mulher na capuera (sic). Mulheres lutando pela liberdade.
Faço, enfim, um convite à quebra de encadeamento de opressões na educação por
meio de uma discussão sobre a mulher na capuera (sic).

Existem alguns poucos artigos científicos que abordam exclusivamente a questão de


gênero na capoeira. Em nível de pós-graduação strictu-sensu, destacamos a dissertação de
mestrado de Simões (1999) cujo título é “Capoeira: um convite ao jogo feminino”. Para
mestra Janja, Araújo (2002), a luta feminina por um espaço no mundo capoeirístico vem se
constituindo paulatinamente, havendo uma necessidadede mais pesquisas nessa área. Em
território cearense, conversamos previamente com três das quatro mestras de capoeira do
Estado do Ceará. Consoante Dias (2014), mestra Vanda, primeira mulher a se tornar mestra de
capoeira no estado, afirma que:

Eu acho que todo estudo tem importância, com relação às mulheres esse estudo tem
um caráter de denúncia. Vamos falar de gênero né? [...] Porque houve discriminação
[...] Sempre houve nessa primeira etapa toda aí, a mulher sempre foi discriminada,
no sentido também de um capoeirista chegar mais rápido a graduações mais
elevadas [...] Então a questão da forma, a questão do mérito, não que a gente faça
por mérito, mas você que tá pesquisando deve saber que era difícil aparecer uma
mestra. Hoje aparece, mas não aparecia não! [...] Tudo foi uma luta né, nesse sentido
da mulher ter seu espaço, seu reconhecimento. A importância é isso, porque ela vem
desvelando todo esse preconceito.

Sobre a relevância de se pesquisar a questão educacional das mulheres capoeiristas

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do Ceará Mara (2014), mestra Carla Mara, enfoca também a questão da emergência do
registro histórico:

Acho importantíssimo, um tempo atrás estava conversando com a mestra Vanda em


relação a isso... Porque a gente não tem registros! Eu vou conversar com ela, aí
tenho ela falando, contado a história dela! Mas as minhas alunas, os alunos futuros,
não vão ter essa pesquisa! E mulheres fizeram um papel muito importante, meninas
antes de nós abriram o caminho pra gente está aqui, e não era fácil! Não é fácil como
hoje, que eu pego um ônibus, boto minhas coisas numa bolsa e vou para o trabalho!
Era o preconceito! E na capoeira era de não poder tocar, de não poder cantar, de
mulher só servir para bater palma! E elas romperam isso pra gente, hoje a gente vai
de igual pra igual num campo masculino, mas na capoeira sinto falta de mais
mulheres [...] Eles se fecham dentro dum conceito e eu perco força pra defender o
que acredito, e nem tudo aquilo que eu gostaria de passar é compreendido [...] O
reconhecimento ainda é muito lento! Quantos grupos têm? E quantas mestras?

Fidelis (2014), mestra Paulinha Zumba, fala do momento atual de crescente inserção
da mulher na capoeira, que atingiu uma maior proporção somente a partir da primeira década
do século XXI, com a iminência de alguns movimentos. Ratifica também a relevância de
ilustra esse aspecto numa pesquisa pelo fato de se registrar e repassar o conhecimento acerca
da trajetória de vida de mulheres que lutaram pelo reconhecimento no universo capoeirístico.
Nas palavras de mestra Paulinha Zumba: “... Tá faltando esse outro lado né? De pesquisar
mesmo as mulheres! Nós estamos aqui também! E somos referência!”.
[...] e mesmo com faculdade e filho era sempre treinando! Meu treino é constante
[...] Fui formando alunos, viajando bastante! Viajei levando a capoeira praticamente
pelo Brasil todo. Viagem lá fora também. Vários países. Fui representar em 2010 as
mulheres do Brasil na Califórnia [...] Fui a única representante do Brasil e do Ceará
nesse evento só de mulheres (FIDELIS, 2014).
Observamos no discurso das mestras um desejo de serem historiadas como uma
oportunidade de valorização pelos trabalhos realizados no decorrer das próprias vidas. A
produção de pesquisas relacionadas às desigualdades de gênero e raça na sociedade brasileira
tem se apresentado de maneira crescente, mas ainda se mostra insipiente através de inúmeras
reivindicações societárias. Importantes órgãos, tais como ONU mulheres, têm apoiado estudos
nessa área que envolve gênero e sexismo com o intento do combate à erradicação da violência
e da pobreza que acomete mulheres brasileiras. Resultados de pesquisas realizadas
recentemente ratificam a necessidade de políticas públicas, respaldam a relevância de estudos
em meios acadêmicos e a organização de movimentos sociais em defesa das mulheres.
O sexismo e o racismo são ideologias geradoras de violência e estão presentes no
cotidiano de todos(as) os(as) brasileiros(as): nas relações familiares, profissionais,
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acadêmicas e nas instituições, o que permite afirmar serem dimensões que


estimulam a atual estrutura desigual, ora simbólica, ora explícita, mas não menos
perversa, da sociedade brasileira (Marcondes, 2013, p.9).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os múltiplos saberes e ensinamentos de mulheres capoeiristas em território cearense
é um importante recurso para se debater a questão da democracia e inclusão na educação, da
função social da mulher e a perspectiva de equidade de gênero, constituindo elemento
determinante na compreensão sobre a complexidade da capoeira cearense no século XXI.
Com a coleta dos discussos das primeiras mestras de capoeira estamos contribuindo, de
maneira interdisciplinar e através de levantamento de dados históricos, com uma área de
estudo insipiente de visibilidade científica que é a História das Mulheres Cearenses.
A questão do estereótipo e do sexismo que procura determinar funções sociais e
inibir potencialidades e capacidades estão fortemente arraigadas na cultura popular e provoca
constrangimento e revolta naqueles que são vitimizados por tal prática. No estado do Ceará,
assim como em outros lugares, esse aspecto cultural vivenciado por inúmeras mulheres foi
denominado popularmente de “machismo” e vem sendo rechaçado, veemente, no decorrer do
processo histórico de transformação cultural. É comum encontrar em obras literárias a questão
do lazer feminino, na antiga sociedade cearense, sedimentada ao tripé renda, religião e
passeios acompanhados em praças e teatros. Entretanto, pela quantidade de escravas
residentes no estado do Ceará, representando cerca de 50% do total de mulheres ainda no
século XIX, podemos crer que práticas de cunho afro-brasileiro, por exemplo a capoeira,
sempre se fizeram presentes nesse território.

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A BOEMIA E AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA OBRA DE


GILBERTO MILFONT

Ana Luiza Rios Martins | luiza_sky@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO
João Milfont Rodrigues nasceu em Lavras da Mangabeira, pequeno município
localizado na mesorregião do Centro-Sul Cearense, no dia 07 do 11 de 1922. Segundo o
pesquisador Marcos Antônio Marcondes (1999), o cantor e compositor ainda na adolescência
integrou um grupo regional onde atuava ao lado de Zé Cavaquinho (Zé Meneses). Contam
que sua voz na época se assemelhava muito à de Carmen Miranda. Durante o período de dois
anos, fase de mudança de voz, afastou-se das atividades artísticas. Já como adulto, seu modelo
musical foi Orlando Silva, em cujo fraseado se inspirou.
O autor supracitado também comenta que a primeira apresentação pública de Gilberto
Milfont ocorreu em 1936, quando se apresentou no programa Hora Infantil na PRE – 9,
levado por um tio, repetindo o feito em 1938. Como os lançamentos de discos feitos no Rio
de Janeiro demoravam a chegar ao Ceará, de maneira curiosa, buscou uma alternativa para
que seu repertório não ficasse ultrapassado: enquanto ouvia os programas de rádio das
emissoras cariocas, taquigrafava as letras e sua irmã aprendia a melodia das canções. Desta
forma, foi capaz de apresentar em primeira audição no Ceará o samba: Atire a primeira pedra,
de Ataulfo Alves e Mário Lago, antes mesmo que a gravação de Orlando Silva tivesse sido
lançada.
Miguel Ângelo de Azevedo (1982) aponta que Gilberto Milfont ampliou seus
horizontes musicais após transferir-se em 1945 para o Rio de Janeiro, onde estreou na Rádio
Mayrink Veiga, fazendo parcerias com grandes músicos de sua época. No ano seguinte, o
cantor Dick Farney gravou uma composição sua, o samba Esquece. Em 1946, estreou em
disco com as gravações das canções Geremoabo e Maringá, compostas por Joubert de
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Carvalho e acompanhadas pela orquestra do maestro Gaó. No mesmo mês, lançou os sambas:
Estão vendo aquela mulher e Apelo, da dupla Pedro Caetano e Claudionor Cruz. Ainda nesse
ano, gravou os frevos-canção E...nada mais, de Capiba e Quando lhe vi chorando, de Eduardo
Barbosa com acompanhamento de Zaccarias e sua orquestra. No final do mesmo ano, gravou
a clássica canção Minha terra, de Valdemar Henrique, o choro Framboeza e a valsa Uma
serenata...uma despedida, de Pedro Caetano e Claudionor Cruz e o samba É muito tarde, de
Lauro Maia.
Em 1947, gravou os sambas O meu prazer, de Haroldo Lobo e Doroty, de Erasmo
Silva. Em 1948, lançou da dupla Haroldo Lobo e Milton de Oliveira os sambas: Ela não
voltou e Seis horas da manhã. Nesse ano, Dick Farney fez sucesso com o samba “Esquece”
gravado na Continental. Apresentado por Luiz Gonzaga, conseguiu fazer um teste na Rádio
Nacional. Tendo sido aprovado, estreou no programa A canção romântica, de Francisco
Alves. Em 1949, gravou os sambas “Capricho inútil”, de Marino Pinto e Mário Rossi, Ódio,
de Wilson Batista e Paulo Marques, Falsa mulher, de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira e
Covardia, de J. Piedade e Alex e a marcha Cabeleira de verão, de Peterpan e Ari Monteiro.
Nesse ano, lançou para o carnaval do ano seguinte o samba: Um falso amor, de Haroldo Lobo,
Milton de Oliveira e Jorge Gonçalves. Ainda nesse ano, seu samba: Não devemos mais
brigar, parceria com Milton de Oliveira foi lançado na Odeon pelos Vocalistas Tropicais.
Em 1953, gravou os sambas Perversa, do russo Georges Moran e Castigo, de
Lupicínio Rodrigues e Alcides Gonçalves, este considerado um dos clássicos da dupla
gaúcha, o samba-canção Tu não me dizes, de Wilson Batista e Erasmo Silva e o frevo-canção
Margaret, de Sebastião Lopes. Em 1954, lançou o bolero Champanhe para dois, de P.
Trellese Lourival Faissal, o beguine Meu grande coração, de Haroldo Eiras e Lourival Faissal
e os sambas Se você souber, de Ari Monteiro e Amigo do peito, de Raul Sampaio e Rubem
Silva. Nesse ano, foi contratado pela Continental e nessa gravadora estreou com o fox-trot
Amor secreto, de S. Fain, P. Francis Webster e Ghiaroni e a toada-baião Valei-me Nossa
Senhora, de Paquito e Romeu Gentil. No ano seguinte, gravou os sambas Cadê meu
marinheiro, de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira e Testamento, de Paulo Soledade, a
marcha Você falou demais, de Paquito, Romeu Gentil e Airton Amorim e com o Trio
Melodia, o baião Matando o tempo, de João de Barro.
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Em 1958, em seu último disco na Continental gravou o Hino à Getúlio Vargas, de


João de Barro. Em 1959, foi contratado pela RGE e lançou em seu disco de estréia o samba-
canção Cabrocha Maria e o samba Timidez, ambas de Adelino Moreira. No mesmo ano,
gravou a marcha A cara não ajuda, de Valdir Machado. Já em 1960, gravou a dupla René
Bittencourt e Raul Sampaio o tango Vida e o samba Enquanto a cidade dorme. Em 1963,
lançou outro disco pela Continental com a marcha Arlequim palhaço, de João de Barro e Jota
Júnior e o samba Cremilda, de Haroldo Lobo e Milton Oliveira. Pouco depois abandonou o
canto, mantendo, no entanto, sua atividade de compositor. Funcionário da Rádio Nacional do
Rio, foi transferido e trabalhou durante quase dez anos na Rádio MEC, bem como no Projeto
Minerva, da Rádio MEC do Rio de Janeiro, onde seria assistente do produtor e apresentador
Cravo Albin por quase cinco anos.
No período que costumeiramente é chamado de A Era do Rádio, muitos compositores
cearenses migraram para o sudeste, sobretudo para o Rio de Janeiro, e passaram a produzir
músicas para as principais gravadoras nacionais. Getúlio Vargas foi um dos principais
interessados na propagação do que eles chamavam de Boom da Música Nordestina, pois o seu
projeto idealizado de Brasil só poderia ser concretizado com a exaltação das culturas das mais
diferentes regiões. As nascentes gravadoras incentivaram também esse projeto de uma
produção de música urbana heterogênea, fruto da experiência musical de compositores,
intérpretes e instrumentistas com as mais diferentes formações e contrataram artistas como
Humberto Teixeira, Luiz Gonzaga, Lauro Maia; e grupos como Quatro Azes e um Coringa,
Vocalistas Tropicais e Trio Nagô.

AS MULHERES E A OBRA DE GILBERTO MILFONT


A pesquisadora Constância Lima Duarte (2003), aponta que quando começa o século
XIX, as mulheres brasileiras, em sua grande maioria, viviam enclausuradas em antigos
preconceitos e imersas numa rígida indigência cultural. Urgia levantar a primeira bandeira,
que não podia ser outra senão o direito básico de aprender a ler e a escrever (então reservado
ao sexo masculino). A primeira legislação autorizando a abertura de escolas públicas
femininas data de 1827, e até então as opções eram uns poucos conventos, que guardavam as
meninas para o casamento, raras escolas particulares nas casas das professoras, ou o ensino
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individualizado, todos se ocupando apenas com as prendas domésticas. E foram aquelas


primeiras (e poucas) mulheres que tiveram uma educação diferenciada, que tomaram para si a
tarefa de estender as benesses do conhecimento às demais companheiras, e abriram escolas,
publicaram livros, enfrentaram a opinião corrente que dizia que mulher não necessitava saber
ler nem escrever.
A autora supracitada também comenta que no século XX já inicia com uma
movimentação inédita de mulheres mais ou menos organizadas, que clamam alto pelo direito
ao voto, ao curso superior e à ampliação do campo de trabalho, pois queriam não apenas ser
professoras, mas também trabalhar no comércio, nas repartições, nos hospitais e indústrias.
Constância argumenta que a década de 1920 foi particularmente pródiga na movimentação de
mulheres. Além de um feminismo burguês e “bem-comportado” que logrou ocupar a grande
imprensa, com suas inflamadas reivindicações, viu ainda emergir nomes vinculados a um
movimento anarco-feminista, que propunham a emancipação da mulher nos diferentes planos
da vida social, a instrução da classe operária e uma nova sociedade libertária, mas
discordavam quanto à representatividade feminina ou à ideia do voto para a mulher.
Dessa forma, percebe-se que para uma parcela da população feminina ocorreram
mudanças circunstanciais na educação formal, todavia, a liberdade do seu próprio corpo ainda
é um tema polêmico em pleno século XXI. A sociedade patriarcalista em que nós vivemos
parte de leis não escritas para definir o comportamento ideal da mulher brasileira. Tudo que
foge desse conjunto de normas é rechaçado por homens e por outras mulheres que
reproduzem esse discurso para os seus filhos e filhas. No entanto, os grupos que mais sofrem
pela projeção social desse padrão são as mulheres pobres. São essas mulheres analfabetas e
moradoras de nossas favelas que muitas vezes tinham que vender o próprio corpo em troca da
sobrevivência e é para elas que o julgamento sempre foi mais pesado.
É difícil encontrar nas expressões artísticas do início do século XX, movimentos que
quebram o padrão de representação feminina. Esse padrão se forma de uma maneira bastante
dicotômica, pois elas passam a ser concebidas no imaginário social de duas maneiras: ou são
representadas como a Virgem Maria, modelo de mãe e esposa; ou como Eva, àquela que
corrompeu Adão e contribuiu para a saída do casal do paraíso. No entanto os boêmios foram
na contramão da maioria. No século XVII, com Tallemant des Réaux, bohème passa a
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designar também o indivíduo “que leva uma vida desregrada”, num estilo de vida
caracterizado pela despreocupação com relação a bens materiais, a grandes projetos, às
normas. Era para descrever uma vida à margem da sociedade e cultivar uma nova forma de
liberdade de pensamento, e uma preocupação de usar nomeadamente roupas excêntricas.
Jerrold Seigel (1992) aponta que o termo passa, por empréstimo, do francês ao
português, na acepção do século XVII: vagabundo, indivíduo de vida desregrada ou não
convencional, eventualmente ligado às artes ou à literatura, ou mero aventureiro que vivia de
forma despreocupada. Nesse sentido, mais tarde, no século XIX surge um movimento artístico
e literário, constituído à margem do movimento romântico, mais “aristocrático” e fora do uso
da sua época. Segundo o Seigel, será Balzac, que em 1844, ao escrever Um Príncipe da
Boémia, faz rasgados elogios a tal juvenil comportamento. Balzac afirmava que a palavra
Boémia diz tudo. Ela não tem nada e vive de tudo. A esperança é a sua religião, a fé em si
mesma é o código, a caridade o seu orçamento. Todos esses jovens são maiores do que o seu
infortúnio, abaixo da sorte, mas acima do destino.
O autor ainda comenta que a boêmia deve ser analisada como um fenômeno social e
literário que teve lugar em diversos pontos do planeta e em diferentes épocas. O autor
considera a boêmia como uma manifestação de jovens burgueses que, no século XIX e
sobretudo nas décadas de 1830 e 1840 na França, buscavam um estilo de vida especial e que
se tornou popular principalmente a partir dos escritos de Henri Murger, autor de Scènes de la
vie de bohème. O romance foi escrito a partir das experiências de Mürger como um escritor
pobre vivendo na Paris de meados do século XIX. A obra inspirou a famosa ópera La
Bohème, de Puccini.

Já Leonardo Mendes supõe que no Rio de Janeiro do século XIX, a experiência da


boêmia carioca vinculava-se imediatamente à experiência da boêmia de Paris, surgida no
contexto das revoluções de 1848. “Boêmia” se torna sinônimo da vida que levavam os jovens
intelectuais e artistas sem fortuna, num momento histórico que, também nos trópicos, é
marcado por grandes transformações sociais, políticas e estéticas. Dessa forma, é nesse
contexto que entra a análise diferenciada do compositor e intérprete Gilberto Milfont. As
figuras femininas representadas em suas obras são àquelas que a sociedade oprimia, mulheres
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decadentes que viviam em bares ou no meio da prostituição.


Em julho de 1958, Gilberto Milfont gravou com parceria de Adelino Nogueira, pelo
selo RGE, o samba intitulado Cabrocha Maria. Nesse samba o compositor comenta sobre ida
em uma festa na favela e seu deslumbre por perceber que o lugar é repleto de pessoas alegres,
apesar da extrema pobreza. Aborda também a relação com uma moça do morro, que não quis
se subjugar aos reclames de uma relação estável, e, com certa ironia, comenta que é
“Cabrocha Maria, não Conceição”.

Cabrocha Maria
Eu ouvia dizer,
Que a gente do morro,
Era mais feliz,
Que nós aqui da cidade,
E um dia zuando um pedaço,
Parti para o morro, paletó no braço,
Para saber a verdade.

Quando vi, a madrugada chegando,


O morro inteiro sambando,
E lá em baixo a cidade deserta, quase morta,
Compreendi, que afinal essa gente,
É pobre porém é contente,
Tem o céu bem pertinho da porta.

Compreendi quando a lua bonita,


Surgiu tão catita, clareando o chão,
Quando vi que as estrelas no alto,
Estavam longe do asfalto,
Mas quase na minha mão,
Compreendi quando vi a cabrocha,
Gingando faceira e de pé no chão.

Mas sofri quando ouvi dos seus lábios,


Aquela frase, ironia,
Eu sou a cabrocha maria,
Não pense que eu sou conceição.... (MILFONT, Gilberto. Cabrocha Maria, RGE,
1958).

Em setembro de 1946, Gilberto Milfont gravou pela Victor a música Maringá, com
parceria de Joubert de Carvalho. Nesse samba o compositor relata uma situação inversa da
que costumeiramente ocorria nos casos de migração para as grandes cidades no período de
longas secas. No caso em questão a retirante fugiu do sertão de Maringá, município do Pará,
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para Belém, a capital do estado. Normalmente os homens iam em busca de trabalho e


deixavam esposas e filhos para trás, mas como a letra aponta a moça deixou o rapaz
apaixonado sem a esperança de retorno.

Maringá
Foi numa leva que a cabocla maringá
Ficou sendo a retirante que mais dava o que falar
E junto dela veio alguém que suplicou
Pra que nunca se esquecesse de um caboclo que ficou
Maringá, maringá
Depois que tu partiste
Tudo aqui ficou tão triste
Que eu garrei a imaginar
Maringá, maringá

Para haver felicidade

É preciso que a saudade


Vá bater noutro lugar
Maringá, maringá
Volta aqui pro meu sertão
Pra de novo o coração
De um caboclo assossegar
Antigamente uma alegria sem igual

Dominava aquela gente da cidade de pombal


Mas veio a seca, toda água foi embora
Só restando então a mágoa
Do caboclo quando chora. (MILFONT, Gilberto. Maringá, Victor, 1946).

No entanto, Gilberto Milfont também não estava livre do discurso patriarcal


reproduzido pela sociedade de seu período. Em uma de suas músicas que estruturalmente se
trata de um samba-canção, gravado pela RCA em maio de 1954 e lançado em julho seguinte,
o compositor e intérprete escreve sobre a história de dois homens que eram amigos, mas
brigaram por conta de uma mulher. Ele usa então da parceria culturalmente construída entre
homens para focar a culpa da traição na figura feminina, àquela mesma representação de Eva
que corrompe Adão e leva o ser masculino ao “pecado da carne”.

Amigo
Meu velho amigo do meu peito
Deixemos de preconceito
E conversemos à sós
Bebamos juntos na mesa de um bar qualquer
Vamos falar da mulher
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Que está mesmo entre nós

Amigo
Amas quem amo também
Mas compreendermos convém
Que estamos cegos no amor
Vamos fazer um tratado
Pra não sofremos depois
Se nós brigarmos por ela
Ela vai rir de nós dois.

Fala-me além da razão


De que vale mulher tão vulgar
Porém, se não queres perder
Do capricho eu preciso ganhar
Mas se ela ficar sozinha
Irá chorar logo após
Pelo que já sofremos por ela
Ela que sofra por nós. (MILFONT, Gilberto. Amigo, samba-canção, RCA, 1954).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os diferentes olhares do compositor e intérprete sobre as mulheres jamais substituirá o
lugar da fala feminina. No entanto, a historiadora brasileira Maria Odila Leite, chama a
atenção em seu livro: Quotidiano e Poder em São Paulo do século XIX (1984), que em muitos
casos nas fontes oficiais escritas por homens, a fala feminina pode ser encontrada “escondida”
nas entrelinhas do documento. Nos inúmeros processos crimes analisados por Maria Odila
Leite, existem acusações de mulheres que não obedeciam às leis, que desordenavam o espaço
urbano e causavam o verdadeiro caos na São Paulo do fim do século XIX. Todavia, a
pesquisadora interpretou a venda ilegal em quitandas e tabuleiros realizadas no espaço
público como a tentativa de mulheres empobrecidas driblarem a fome e outros problemas
causados pela falta de recursos.
No caso das músicas de Gilberto Milfont, é preciso fazer uma operação historiográfica
muito semelhante ao de Maria Odila. Apesar das músicas se tratarem de um material
documental que pode nos dar pistas sobre o passado sem a mesma pretensão de um processo
crime, o método da leitura nas entrelinhas é eficaz para compreender certas práticas
femininas, sobretudo relacionadas as suas experiências afetivas. Se em algumas obras é fácil
encontrar elogios de forma direta a estilo de vida de certas mulheres descritas pelo
compositor, em outras conseguimos observar de forma indireta práticas femininas afetivas
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transgressoras, que quebram com o padrão de amor romântico e a submissão das mesmas aos
homens.
Por fim, para Sandra Pesavento (2003), as representações são operações mentais e
históricas, que criam sentidos ao mundo, sem elas este, em si, não possui significado. É por
meio delas que se age no mundo, que se constroem identidades. Nesse sentido a representação
fica no lugar da realidade, porém, não como uma imagem perfeita do real: o representante não
é o representado, ele guarda relações de semelhança, significado e atributos com este. As
representações se expressam nos discursos, assumindo múltiplas configurações, as quais se
tornam concorrentes, estabelecendo relações de poder. Assim, a percepção dominante acaba
ganhando foro de realidade, de verdade, sendo naturalizada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, M. A . de (NIREZ) et al. Discografia brasileira em 78 rpm. Rio de Janeiro:
Funarte, 1982.
BUITONI, Dulcília S. Mulher de papel. A representação da mulher pela imprensa feminina
brasileira. São Paulo, Loyola, 1981.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no séc. XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
DUARTE, Lima Constância. Feminismo e literatura no Brasil. Estud. Av. Vol.17 no.49 São
Paulo Sept./Dec. 2003
MARCONDES, Marcos Antônio. (ED). Enciclopédia da Música popular brasileira:
erudita, folclórica e popular. 2. Ed. São Paulo: Art Editora/Publifolha, 1999.
PESAVENTO, Sandra Jathay. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2003.
SEIGEL, Jerrold. Paris boémia: cultura, política e os limites da vida burguesa. 1830-1930.
Porto Alegre: L&PM, 1992.

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A DOMINAÇÃO MASCULINA:
JUGOS DA MORAL E DA FIDELIDADE

Hermano de França Rodrigues | hermanorg@gmail.com

INTRODUÇÃO
Numa integração entre imaginário coletivo e história social, as narrativas populares
apresentam-se, indubitavelmente, como documentos “legítimos” e reveladores de um tempo,
de um povo, de um mundo. Constituem, de fato, fontes discursivas de onde se podem extrair
os vestígios e dados que vivificam e homem e a sua identidade. Esta, envolta pelas amarras da
tradicionalidade e transformada pelas imposições das novas eras, permanece singular, viva e
atuante entre aqueles que, culturalmente situados, comungam de certos valores, conceitos,
ditos e proibições. É por meio de suas práticas que o indivíduo faz significar o meio em que
vive e os outros a sua volta. Através de seus textos, manifesta, tacitamente ou não, os valores
axiológicos capazes de tornar visível uma determinada visão de mundo, um saber
compartilhado que, no dizer de PAIS, traduz “as grandes linhas de um mundo semioticamente
construído”.
Nesse contexto, o romance oral, expressão ímpar da cultura popular, alimenta,
incorpora e sustenta um self identitário que pode ser compreendido e apreendido levando em
consideração não apenas o discurso subjacente às estruturas lingüísticas, mas também através
do exame da própria organização conceptual que perpassa e, muitas vezes, ultrapassa essas
estruturas. Justifica-se, então, a proposta do nosso estudo: analisar a presença e o papel das
ideologias em versões do romance oral A Mulher Infiel, coletadas em cidades do interior e da
zona urbana da Paraíba. Buscamos observar como se constrói a imagem do homem e da

DO ARQUITEXTO AO ARQUICONCEPTUS

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Evidenciam-se na narrativa dois arquissememas intimamente relacionados à cultura


nordestina: honra e desonra. Ambos encontram-se ligados ao matrimônio, num contexto em
que a dignidade do homem está condicionada à conduta da esposa. Desde épocas remotas, à
mulher é imposta a obrigação de manter sempre um perfil de conduta irrepreensível, além
das já cristalizadas atribuições de mãe, dona-de-casa e responsável pela criação dos filhos.
Traição feminina pode significar um erro cujas conseqüências levam a extremos
irreversíveis.
O romance A Mulher infiel narra a história de um homem que, ao chegar a casa para
almoçar, surpreende a mulher em ato de adultério. Desapontado e enfurecido, o marido traído
tira a vida da infiel esposa, a fim de salvar sua reputação. Em seguida, dirigi-se ao delegado
da cidade e confessa o crime que cometera em nome da própria honra. Em momento algum, o
delegado desaprova o ato bárbaro. Pelo contrário, assente a atitude do probo marido. A sogra,
ao saber do homicídio, reprova a atitude do genro afirmando ser dever da mãe aplicar o
devido castigo à filha. O homem, refeito em sua honra, muda-se impunemente para outra
cidade à procura de uma mulher que lhe fosse fiel companheira.
A narrativa constrói-se num ambiente social altamente impositivo à figura feminina,
de sorte que os deveres da mulher simplesmente suplantam os seus direitos. O homem, por
outro lado, dispõe do pleno gozo de prerrogativas. A figura da mulher, no romance em
questão, ocupa os dois pólos que sustentam a narrativa – honra e desonra. Isso significa dizer
que honra corresponde à integral fidelidade que a mulher deve dedicar ao marido. No entanto,
essa regra é violada pela esposa que, além de infiel, demonstra total descaso com seu
compromisso marital ao praticar atos de absoluta indignidade e impolidez que resultaram na
desonra do marido. Vejamos o trecho de uma das versões coletadas:

Cheguei em casa com o sol tão quente,


Quando entrei em casa, eu encontrei outra gente
Mulher danada bote o meu jantar
Você já vem com sua danação
Volte pro roçado, não tem jantar não...

Depois desse episódio, o marido, para livrar-se da ignomínia que lhe sucedera,

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assassina a mulher indigna. Caso o adultério não ocorresse, o homem, evidentemente, não
teria cometido esse ato condenável, pois teria ao seu lado uma companheira íntegra e
verdadeira, cuja fidedignidade lhe asseguraria o necessário respeito perante a sociedade. Com
isso, pode-se afirmar que honra e desonra são conceitos potencialmente atrelados à mulher:
no plano do ideal, mulher corresponderia à garantia de respeito e prestígio social; no plano do
real, no caso específico desta narrativa, a mulher representa a aviltante e vexatória condição
do homem vitimado pela traição e para o qual a ‘única solução’ é a morte da ‘então traidora’.
Vejamos a ilustração:

Subconjunto da <<mulher ideal>>

Arquiconceptus 1

[+Dever ser]
[+Dever fazer] Subconjunto da
[+ Fidelidade] <<mulher real>>
[+ Submissão]
[+ Honra] Arquiconceptus 2
[+Complacência]
[+Bondade]
[+Saber-fazer]
[+/-Honra] [+Querer-fazer]
[+Adultério]
[-Submissão]
[-Honra]
[-Complacência]
[-Bondade]

NAS REDES DA CULTURA: O METACONCEPTUS

Como sabemos, em lugares distantes de áreas urbanas, os conceitos que desfavorecem


a mulher permanecem ainda insidiosamente arraigados. A superioridade masculina é algo
inquestionável no imaginário popular. A religião cristã, nesse caso, contribui de maneira

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preponderante para a fixação de um pensamento socialmente discriminatório à mulher.


Segundo a bíblia, o homem foi criado à semelhança de Deus e representa a glória de Deus; ao
passo que a mulher foi formada a partir do homem e representa a glória do homem. Disso
decorre inevitavelmente a crença na supremacia masculina.
No Nordeste brasileiro, principalmente nas regiões interioranas (onde foram coletadas
as versões aqui analisadas), o apego à religiosidade é bastante acentuado. Acredita-se
irrestritamente em milagres, promessas, enfim, na efetiva atuação do poder divino. A maioria
das pessoas pratica assiduamente a religião cristã, esta imbuída de princípios e ensinamentos
preconceituosos. O próprio vocábulo que designa a divindade suprema é do gênero masculino
– Deus –, que, em geral, remete-nos para um ser soberano, impositivo, severo, por vezes
vingativo e intransigente.
A mulher é convencionalmente considerada um ser frágil, vulnerável, desprovida de
certos atributos caracteristicamente masculinos, ao mesmo tempo em que representa o pecado,
a fraqueza do homem; porquanto, de acordo com as escrituras sagradas, foi Eva quem
convenceu Adão a comer do fruto proibido. O castigo divino sobreveio a ambos: à mulher,
dores ao conceber o filho; ao homem, trabalho para a provisão do lar.
A religião exerce inegavelmente forte influência na formação da concepção de mundo
das pessoas. Por isso, o homem é concebido como ser dotado de força, autoridade e domínio,
enquanto à mulher são atribuídas susceptibilidade e inferioridade, cabendo-lhe tão-somente o
cumprimento de obrigações impostas por “leis naturais e divinas” e sua total sujeição ao
homem.
Na história A Mulher Infiel, a esposa comete um erro que compromete a dignidade e o
prestígio do marido: o adultério. Isso ocorreu num ambiente social em cuja atmosfera
fervilham preceitos de imposição e de repressão à mulher, de tal forma que ela pode perder
até a vida para propiciar a redenção do cônjuge. Com isso, não houve escapatória: a infiel
esposa sucumbiu aos atrozes golpes de punhal do impiedoso marido que, após esse ato,
confessou o crime ao delegado da cidade, o qual sequer hesitou em aplicar a lei: simplesmente
aprovou a execução da ignominiosa esposa. Todavia, o marido violou um princípio religioso
basilar: não matar. Por isso, convém ressaltar que a religiosidade opera até o momento em que
os valores masculinos prevalecem. A soberania do homem está acima da religião e da lei.
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A isenção de qualquer culpabilidade ou punibilidade que a autoridade legalmente


competente – o delegado – concedeu ao marido uxoricida justifica-se pela necessidade que o
meio social impõe ao homem de “salvar a honra custe o que custar”, principalmente quando a
mulher for o motivo de sua conspurcação. Trata-se de valores ideológicos que se convertem
em regras sociais a serem irremediavelmente seguidas pelos indivíduos. O delegado, de fato,
descumpriu a lei. No entanto, no contexto em que ocorreu o crime, só lhe coube o dever de
eximir o marido da punição, asseverando tacitamente não haver crime maior do que uma
desonra ao provedor do lar. Além disso, o fato de o marido entregar-se à polícia já evidencia
outros valores relacionados à figura do homem: bravura e coragem – marcas típicas do
homem interiorano. Sua intrepidez ratifica-se e se reforça quando ele afirma, em algumas
versões, ser capaz de matar outra vez caso seja novamente traído. Em outras versões, é o
próprio delegado quem lho recomenda, como se observa no fragmento:

Pegue seus dois filhinhos e leve pra o sertão


Chegue lê, torne a casar
Se a mulher for falsa, torne a matar

Apesar das variantes, a concepção discriminatória permanece intacta: a mulher está


peremptoriamente sujeita à sentença fatal quando macular a imagem do homem.
A sogra, inconformada com o crime, condenou a ação do genro. Em algumas versões,
ela afirma que deveria ter sido comunicada do adultério, a fim de aplicar a correção adequada
à filha promíscua. Já outras versões constam apenas da desaprovação, o que não nulifica o
papel de extrema submissão da mulher, pois, em nenhum momento, o marido sofre ameaça de
sentença condenatória, conforme se constata no trecho:

Oh minha sogra, eu matei Maria


Pela falsidade qu’ela me fazia
Você matou foi de desgraçado

O gráfico abaixo explicita bem essas relações.

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Subconjunto <<marido>>

Metaconceptus 1 Subconjunto
<<esposa>>
[+Dever-ser]
[+Dever-fazer]
[+Poder-fazer] [+Dever-ser]
[+Supremacia] [+Querer-ter]
[+Provisão [-Supremacia]
do lar] [+Honra] [+Promiscuidade]
[+Bravura] [+Infâmia]
[+Impolidez]

Metaconceptus 3

[+Dever-fazer]
[+Fazer-ser]
Metaconceptus 4 [+Correção]
[+Dever-ser]
[+Fazer cumprir] [+Cuidado]
[+Justiça] Metaconceptus 2
[+Ordem]

Subconjunto
Subconjunto <<delegado>>

O AGIR DO HOMEM: O METAMETACONCEPTUS

Para agir sobre o outro, um sujeito utiliza-se de vários mecanismos de manipulação.


No patamar metametaconceptual de A Mulher Infiel, nota-se claramente que o homem,
aproveitando-se dos privilégios que o meio lhe atribui, sobrepuja a mulher. Porém, ele
ultrapassa a simples demonstração de superioridade: usa de um engenhoso artifício para
legitimar a sua ação medonha: Deus e até mesmo a figura do diabo, o que dá maior

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complexidade à interpretação da história.


Numa das versões, o homicida afirma ter amparo divino para executar o crime,
acreditando que, com isso, livrar-se-ia do opróbrio matrimonial. Em grande parte das versões,
porém, ele, como que reconhecendo sua perversidade, diz ter ido para o “cão”, numa alusão
ao diabo. Por se tratar de textos da modalidade oral, é comum a coexistência de versões com
certas divergências entre seus segmentos temáticos. Vejamos:

Passei de Deus, fui para o cão


Dei-lhe uma punhalada, ela caiu no chão

A efervescência de marcas da religiosidade popular transparece no trecho acima.


Figuras do mundo espiritual, Deus e o diabo consubstanciam-se numa antítese que traduz
conceitos dicotômicos muito marcantes no discurso religioso e que, basicamente, se resumem
na oposição bem x mal.
Os lexemas Deus e cão aparecem em cinco das versões analisadas. Recorrendo a
Deus, o marido visa a mostrar que possuiu aval divino para matar a mulher, ou seja, que seu
ato foi respaldado por um ser culturalmente superior, e que, portanto, não deve haver
contestação. Mencionando o “cão”, ele intenta impactar, isto é, projetar-se como o temível
vingador de cuja valentia e honradez não se deve duvidar. Ser reconhecidamente um varão
valoroso é o que ele anseia de maneira ardente. Sua avidez pela honra é tamanha, que ele
pode passar da bondade para a malevolência. Em outras palavras: enquanto trabalhava,
cumpria a função para a qual Deus o designou; agora que foi traído, agiu conforme a vontade
do diabo.
Nas versões em que não aparecem Deus e o Diabo, o marido recorre a outra
autoridade superior: o delegado. Numa demonstração de impavidez, o marido entrega-se à
autoridade legalmente constituída, talvez até totalmente consciente de que será absolvido.
Além da absolvição, recebeu a aprovação do delegado, como se verifica no trecho:
– Seu delegado, eu matei Maria
Pelas falsidades qu’ela me fazia
Você matou e não tem crime não
Pegue seus dois filhinhos e vá pra o sertão
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Essa diversidade, entretanto, possui um núcleo comum: a intencionalidade, que nesse


contexto se configura como a finalidade de mostrar que a honra do homem está acima de
qualquer coisa. A honra masculina tem de se consolidar, mesmo para isso que seja necessária
a intervenção divina, diabólica ou judicial.

Subconjunto do <<marido/Deus>>

Metametaconceptus 1 Subconjunto do
<<marido/diabo>>
[+Querer-ser]
[+Deus]
[+Respeitabili- [+Querer-ser]
dade] [+Diabo]
[-Culpabilidade] [+Perversidade]
[+Absolvição] [+Honra] [+Força]
[+Bravura]

Metametaconceptus 3

Metametaconceptus 4 [+Fazer-crer]
[+Firmeza de
[+Poder-fazer] caráter]
[+Autoridade] Metametaconceptus 2
[+Sinceridade]
[-Condenação] [+Destemor]
[+Amparo legal]

Subconjunto do
Subconjunto do <<delegado>> <<marido/justiça>>

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura popular é uma fonte inexaurível de marcas lingüísticas e não lingüísticas

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através das quais se configuram comportamentos, sistema de valores, ideologias e outros


componentes sociais. Quando se penetra nas camadas profundas do texto popular, percebe-se
nitidamente a forte influência da religiosidade popular e da vigência de costumes que
remontam para uma esfera espaço-temporal que vem se perpetuando desde os primórdios: a
prevalência do homem, que logra a preservação de sua imagem, seu prestígio e sua honra ante
a sociedade, em detrimento dos valores femininos.
A proeminência masculina se acentua nas narrativas populares, tendo em vista que
elas se fixaram em regiões interioranas, em cujo imaginário a superioridade do homem já está
cristalizada. A permanência dos textos populares orais dá-se graças à tradição popular de
manter vivas as cantigas, os contos e todos os outros gêneros da narrativa oral, passados de
geração a geração.
Este trabalho observou como é concebida a figura da mulher, na condição esposa, e do
homem, como marido defensor inarredável da honra, no imaginário do povo nordestino.
Analisando onze versões do romance A Mulher Infiel, que narra a história de uma esposa
adúltera, verificamos a veemente influência dos valores sociais e axiológicos que confirmam a
supremacia masculina. Fato interessante é a alternância do homem em relação à religiosidade:
ora o apego (quando esta ratifica o seu poderio), ora o total afastamento (quando os preceitos
religiosos o sentenciam punitivamente).
Além disso, vimos também como a honra do homem se sobrepõe à força da lei,
principalmente quando ela (a honra) é ameaçada por um “desvio de conduta” da esposa. Desta
forma, examinou-se aqui a presença da cultura nordestina em textos da literatura oral popular.
Esta constatação contribui sobremodo para o entendimento da nossa cultura, em suas raízes e
fundamentos sócio-ideológicos, além de despertar para um eventual estudo mais completo e
aprofundado dessas sociedades – em seus princípios e normas de comportamento –, quer
numa abordagem sociológica, quer antropológica, quer psicológica, numa relação
multidisciplinar com os estudos lingüísticos aqui apresentados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BARBOSA, Maria Aparecida. Estruturas e Tipologia dos Campos Conceptuais, Campos


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BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. A tradição Ibérica no Romanceiro
Paraibano. João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 2000.
__________. O Romanceiro Tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem
semiótica. Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Lingüística. São
Paulo: USP, 1999.
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Editora
Universitária, 1984.
PAIS, Cidmar Teodoro. Texto, Discurso e Universo de Discurso. In: Revista Brasileira de
Linguística – SBPL, n° 1, v.8. São Paulo: Plêiade, 1995.
__________. Conceptualização, denominação, designação: relações. In: Revista Brasileira
de Linguística – SBPL, v.09. São Paulo : Plêiade, 1997.

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A REVISTA PR’A: MODELOS E PARADOXOS FEMININOS

Ewennye Rhoze Augusto Lima | ewennyerhoze@gmail.com


Rafael Porto Ribeiro
Raquel da Silva Guedes

INTRODUÇÃO
Considerada a Paris nordestina, a cidade de Recife, capital do estado de Pernambuco,
se consolidou como referencial de modernidade no inicio do século XX. A cidade recebeu
esse titulo devido às reformas urbanas que sofreu semelhantes às reformas realizadas
primeiramente em Paris, ainda no século XIX, e depois em várias outras cidades do mundo.
George-Eugéne, o Barão de Haussmann foi o administrador de Paris que recebeu o poder
cedido por Napoleão III para modificar permanentemente a estrutura da cidade,
desapropriando uma área central de 300 km e mais de cem mil habitações tidas como focos
epidêmicos, constituindo vias largas favorecedoras de manobras militares, mansões, praças e
bulevares.
Seguindo o exemplo, em 1902 o Rio de Janeiro começa a sua reforma urbana
promovida pelo então administrador da cidade Pereira Passos, que derruba os cortiços,
eliminando não só as edificações como também transferindo os moradores para áreas que
estavam à margem do centro, gerando uma profunda insatisfação na população –
semelhantemente a Paris; as passagens estreitas e fétidas também foram substituídas por ruas
esgotadas e pavimentadas, combatendo os focos epidêmicos e modificando o aspecto da
capital do Brasil. As próprias ruas passaram a ter novos nomes, eliminando as vulgares
nomeações e instituindo as figuras importantes do progresso.
Recife apresenta-se então como uma cidade diferente. O período de modificação
intensiva encontra-se entre 1909-1926, todavia se somado os outros momentos em que houve
alterações na paisagem da cidade, aproxima-se de um século. Esta modernização do aparato
urbano foi profundamente importante para Recife, tendo em vista que modificou a feição

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colonial da cidade e incentivou a circulação de capital, já que esta região vinha sofrendo de
uma profunda decadência econômica.82
Os discursos médicos sobre da insalubridade dos mocambos e habitações semelhantes
envolviam Recife – eugenia e higienismo se confundiam; estes eram reforçados pelas diversas
epidemias que acometiam várias cidades do Brasil. Engenheiros sanitaristas como Saturnino
de Brito foram fundamentais para as modificações já tão mencionadas. Aliando a construção
civil e a medicina, em 1930 foi fundada a Liga Social contra o Mocambo que visava derrubar
essas habitações, construídas muitas vezes de palha, barro vermelho e pau-a-pique – que
Gilberto Freyre tanto elogiava por ser o verdadeiro símbolo recifense em seu Manifesto
Regionalista.
Nessas novas ruas largas, limpas e iluminadas transitavam os Marmon, Ford e Dogde,
os bondes e as pessoas – que agora tinham uma nova forma de se relacionar com o espaço
publico. Novos meios pedem novas maneiras – higiene, bom porte e boa aparência. Tudo isto
era ensinado nas escolas. A idéia seria de que as crianças ensinariam aos demais. Todavia a
escola não era a única forma de abordar os indivíduos a respeito de como se comportar diante
dessa modernidade. Desde o século XIX os periódicos foram fundamentais para propagar
inúmeras informações: moda, comportamento, cinema, eventos social, etiqueta, entre tantas
outras.
Cada vez mais uma pequena parcela da população se beneficiavam materialmente
nesta sociedade de consumo. Quanto maior o volume das saias, maior era o aspecto de
prestigio e esplendor capitalista. O conceito de alta costura já existia, o que fazia da moda
muitas vezes uma forma de arte – uma arte extremamente comercial “Na alta costura, ou
mesmo na moda mais sofisticada os nomes femininos sobrepuseram-se aos masculinos.
Chanel continuava sua marcante carreira” (BRAGA, 2008: 78). Em contra ponto a mulher
bibelô, vemos os homens que surgem com suas roupas que simbolizam a sociedade produtiva
e saudável.

A REVISTA E AS MULHERS
É nessa efervescência que surge em fevereiro de 1930 na cidade do Recife o periódico
82
MOREIRA, Fernando Diniz. A construção de uma cidade moderna (1909-1930).
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P’ra Você – semanal ilustrado tendo como proprietário a Empresa Diário da Manhã S.A.
Publicou matérias sobre vida social, cultura, moda, arte e literatura, contando entre seus
colaboradores com Jorge de Lima, Álvaro Lins, Aurélio Buarque de Holanda, Josué de Castro
e Mario Melo. Foi suspensa sua publicação numero 18, de 28 de junho de 1930. A capa e as
ilustrações do texto são do pintor Manoel Bandeira e os pequenos desenhos e charges
políticas de J. Ranulpho.
O objetivo da nossa pesquisa é investigar o modelo feminino apresentado na revista
P’ra Você a partir da indumentária retratada em inúmeras matérias, que permeiam o seu
primeiro ano de circulação, e como estas constituíram a mulher moderna nesse centro urbano
recifense. Qual o estereótipo feminino idealizado neste periódico? Buscamos desta forma,
pensar sobre a figura feminina na Recife de 1930, observando a indumentária como ponto
chave para a apresentação desta.
Gilda de Melo e Souza em sua obra “O Espírito das Roupas”, nos demonstra como a
vestimenta transfere o status do individuo dentro do período temporal e da sociedade que o
cerca. Assim, a roupa passa a ter uma profunda representação simbólica da classe econômica,
fazendo com que muitos indivíduos tentem se apropriar deste símbolo na tentativa de se
enquadrar a uma imagem que não condiz com sua realidade sócio econômica.

No momento em que a alta costura desponta, não haverá mais distinção apenas pela
roupa. É por isso que a formação de um comportamento tido como adequado torna-se
sumariamente importante para as mulheres que leram as colunas da revista P’ra Você –
especificamente as matérias que falavam como elas deveriam se portar nos eventos sociais alem
do que deveriam trajar.

Gylberto Freyre destaca essas diferenciações em sua obra “Modos de Homem e Modas de
Mulher”, todavia há um ponto de sua obra em que discordamos, tendo em vista que o mesmo em
alguns momentos destaca a moda como uma preocupação da sociedade de estar fora dos
parâmetros desta moda é ser praticamente um herege, todavia sabemos que este periódicos que
circulavam com matérias sobre moda e comportamento estavam voltados para um setor
especifico da sociedade.

Desta forma, concordo com Diana Crane quando esta percebe que “As variações na
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escolha do vestuário constituem indicadores sutis de como são vivenciados os diferentes tipos de
sociedade, assim como as diferentes posições dentro da mesma sociedade” (Crane, A moda e seu
papel social: classe, gênero e identidade das roupas, 2000, p. 22).

A mulher, tantas vezes tido como o sexo frágil, dependente do marido e com a única
função de cuidar do lar, apresenta-se como o pilar de sustentação imagética simbólica da família.
Seu comportamento é a chave para a manutenção das boas relações, principalmente a da figura
masculina que a representa na sociedade: “Num certo sentido, os homens eram bastante
dependentes da imagem que suas mulheres pudessem traduzir para o restante das pessoas em seu
grupo de convívio. Em outras palavras, significavam um capital simbólico importante, embora a
autoridade familiar se mantivesse em mãos masculinas, do pai ou do marido.” (D’incao, Historia
das mulheres no Brasil, 2011, p.229).

Podemos perceber que conforme as práticas sociais femininas vão sendo modificadas,
seus trajes tornam-se espelhos, como menciona João Braga em “Historia da moda: uma
narrativa”: “O banho de mar estava em evidencia, mais que isso, também o banho de sol. [...]
Talvez a moda propriamente dita, assim como a moda da roupa de banho, estivesse uma
influenciando a outra e as duas ficaram afinadíssimas” (BRAGA, 2009: 76).

Desta forma Manon Salles em sua pesquisa sobre a indumentária paulista e mineira nos
anos 1930 reintera: “Nos anos trinta as ilustrações nas revistas de moda trazem as novidades e
personagens como “A Melindrosa” criada pelo caricaturista J.Carlos, passa simbolizar a mulher
brasileira da época. A grande influência para a moda vem das divas do cinema de Hollywood
como Greta Garbo, Marlene Dietrich e Catarine Hepburn. A mulher deveria ser magra e
bronzeada com sobrancelhas desenhadas com lápis” (SALLES, 2009: 4).

FONTE E METODOLOGIA
O presente artigo tem como objetivo principal analisar a revista P’ra Você,
especificamente as colunas que falam sobre moda, poesia e eventos sociais, observando
cautelosamente as figuras apresentadas nas mesmas colunas, a fim de captar com maior
capacidade a representação da figura feminina idealizada. Buscamos nas edições digitalizadas
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descontinuadas do periódico o cotidiano de uma mulher que se encontra numa sociedade ainda
patriarcal, eugênica e capitalista, onde a mulher muitas vezes representa apenas um belo ‘bibelô’.

O período de análise vai de fevereiro de 1930, mês de lançamento da revista ilustrada, até
junho do mesmo onde, onde suas atividades foram suspensas por motivo desconhecido. Todavia
é importante ressaltar os fatos anteriormente ocorridos, como a reforma urbana de Paris e a
importância da moda parisiense, cujas tendências foram perseguidas pela elite tupiniquim desde
o século XX. Temos como proposta a catalogação das revistas, observando o estado físico do
material a fim de fazer a leitura e analise de como a presença feminina e os seus caracteres
indumentários são fundamentais para a sua afirmação e participação no espaço urbano moderno.

As vias de trabalho desta pesquisa firmam-se numa base teórica e metodológica que
discute questões sociais, de gênero e historia cultural. Primordialmente, nos anos 1980 o
historiador inglês Peter Burke, ao dar uma palestra no Brasil, tentou traçar os novos paradigmas
da historiografia. Mostrando uma nova vertente, Burk buscou em Marc Bloch e Lucien Febvre a
gênese de uma historiografia que não seria objetiva, mas sujeita as referencias culturais de um
determinado período.

Na imersão desta nova fronteira, percebemos que outras fontes fazem parte da nossa
busca. A historiadora norte-americana Lynn Hunt em 1989 nos faz perceber que os documentos
não seriam simples reflexos transparentes do passado, mas que na verdade por trás destes
existem ações simbólicas com significados diferentes – a partir dos produtores e sua estratégia.

Partindo desta perspectiva, podemos observar como o paradigma indiciário do italiano


Carlo Gisburg torna-se fundamental para a analise do periódico. Seguindo o modelo dos sinais,
percebemos como os menores detalhes podem nos fornecer informações importantíssimas para a
compreensão da imagem feminina nos anos 1930. “Desse modo, pormenores normalmente
considerados sem importância, ou até triviais,” baixos”, forneciam a chave para aceder aos
produtos mais elevados do espírito humano” (Ginzburg, Sinais: raízes de um paradigma
indiciário, 1990, p.149).

Outra questão relacionada a historia cultural e de cunho importantíssimo para a


compreensão do que foi analisado é o que o historiador Roger Chartier nos apresenta; o conceito

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de que a fonte é uma representação da realidade – uma representação de múltiplos sentidos,


como podemos perceber no discurso do periódico acerca da presença feminina.

É a partir da sua obra Historia cultural, que sentimos a necessidade de identificarmos em


1930, na cidade do Recife como uma realidade social feminina foi edificada, pensada e dada a
ler. A luta da representação é fundamental para que percebamos como estas mulheres tentam
impor suas concepções, valores e domínios diante da modernidade.

A representação será vista na exibição da presença feminina publica moderna. Por isto, os
símbolos de moderno em seus trajes e no seu comportamento serão fundamentais para criar uma
imagem – apropriada pelas leitoras da revista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Passagens. São Paulo. Editora IMESP. 2006.

BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: A escrita da história:
novas perspectivas. São Paulo. Editora UNESP. 1992. Pag. (7-38).

CHATIER, Roger. A Historia Cultural: entre praticas e representações. 2ª edição. Lisboa.


Editora DIFEL. 2002.

CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. 2ª edição.
São Paulo. Editora SENAC. 2006.

D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In: DEL PRIORI, Mary (org). Historia
das Mulheres no Brasil. 10ª edição. São Paulo. Editora Companhia das letras. 2011.

DEL PRIORI, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena historia das transformações do
corpo feminino no Brasil. São Paulo. Editora SENAC. 2000.

ECO, Umberto. Historia da beleza. 2ª edição. Rio de Janeiro. Editora Record. 2010.

ERNER, Guillaume. Vitimas da moda? Como a criamos, porque a seguimos. São Paulo.
Editora SENAC. 2005.

FREYRE, Gilberto. Modos de Homem e modas de mulher. 2ª edição. Rio de Janeiro. Editora
Record. 1986.

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GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” In: Mitos, emblemas, sinais:
Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

HUNT, Lynn. Apresentação: Historia, cultura e texto. In: HUNT, Lynn (org). A nova Historia
Cultural. 2ª edição. São Paulo. Editora Martins Fontes.

MELO E SOUSA, Gilda de. O Espírito das Roupas: a moda no século dezenove. São Paulo.
Editora Companhia das Letras. 1987.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Historia e Historia Cultural. 2ª edição. Belo Horizonte. Editora
Autentica. 2005.

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AMADOS NAMORADOS: A PREVENÇÃO DE SOCIABILIDADES JUVENIS NA


IGREJA CATÓLICA

Cícero Edinaldo dos Santos | ciceroedinaldo@live.com


Allana de Freitas Lacerda

INTRODUÇÃO

Na Idade Média, não se fazia distinção entre o mundo infantil e o mundo adulto,
entre o que poderia ser feito dentro e fora do seio familiar. Assim que aprendia falar e se
locomover, a criança era logo misturada aos adultos e partilhava de seus trabalhos e jogos,
isto é, não passava pela suposta fase físico-psicológica que chamamos de juventude (ARIÈS,
1981; LEVI, SCHMITT, 1996).
Ao longo dos anos, com o avanço de pesquisas cientificas e políticas públicas, a
juventude passou a ser ressignificada. Em 1985, a ONU definiu a juventude como o período
de 15 a 24 anos. Posteriormente, em 2000, acatou a ideia de que outras definições existiam
nas mais distintas sociedades, onde apareciam novas delimitações etárias, como resposta a
circunstâncias sociais, econômicas e ideológicas.
No Brasil e no resto da América Latina, vai se estabelecendo o consenso de que a
juventude se estende até os 29 anos. Desde meados do século XX, a sociedade vem passando
por um conjunto de mudanças culturais que afetam diretamente as suas práticas corporais,
individuais e em grupo. Um novo cenário social passou a interferir diretamente na produção
social dos indivíduos e na forma como eles se relacionam com as instituições sociais e com o
próprio corpo, redimensionando, assim, o encaminhamento dos seus projetos de vida e do que
a sociedade espera para eles (DAYRELL, 2013).
Diante disso, pensamos que a referida categoria é produtora de práticas e
representações. Para investigá-la, não é viável simplificar uma realidade complexa que

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envolve elementos relacionados aos condicionantes histórico-culturais que estruturam as


sociedades. Deve-se ficar atento às sociabilidades legitimadas ou refutadas historicamente,
bem como as estratégias para direcioná-las.
Estas sociabilidades estão relacionadas à condição juvenil (DAYRELL, 2007), ou
seja, referem-se ao modo como uma sociedade constitui e atribui significado a juventude, no
contexto de uma dimensão histórico-geracional, ao mesmo tempo em que ressalta à sua
situação, isto é, o modo como tal condição é vivida a partir dos diversos recortes referidos às
diferenças sociais de gênero, sexualidade, etc.
Nesta perspectiva, este artigo introdutório, tem a intenção de entender a relação entre
as sociabilidades juvenis e a Igreja Católica. Esta última é vista como uma instituição social
milenar que busca direcionar modos de viver e conviver em sociedade. No século XX,
produziu inúmeros artefatos culturais direcionados para a educação da juventude brasileira.
Todavia, muitos deles são desconhecidos e não foram problematizados na historiografia
nacional.
Partindo desses pressupostos, temos o objetivo de apresentar um desses artefatos
culturais, destacando suas representações sobre as sociabilidades juvenis e as possíveis
articulações com as relações de gênero e os aparatos preventivos da sexualidade.
Entendemos o gênero como uma categoria histórica que busca diferenciar e
padronizar os corpos humanos. Compartilhamos a ideia de que ninguém nasce homem ou
mulher, mas torna-se um deles, podendo transgredir ou reiterar o gênero esperado. Todavia:
Uma pessoa não é livre para adotar qualquer posição de gênero em interação,
simplesmente como um movimento discursivo ou reflexivo. As possibilidades são
massivamente limitadas pelos processos de incorporação, pelas histórias
institucionais, pelas forças econômicas e pelas relações familiares e pessoais.
(CONNELL, 2013, p.258).

O poder regulador, que atravessa as relações de gênero, possui características


históricas e influencia na criação de distintas normas culturais. No entanto, o próprio poder
regulador é generificado, direcionando permissões e repressões. O gênero, por sua vez, não
faz parte de uma operação reguladora ampla, pois requer seu próprio regime regulador e
disciplinar específico.
Se partirmos dessa ideia, compreendemos que existem visões normativas sobre as
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masculinidades e feminilidades, contudo:

Gênero não é exatamente o que alguém ‘é’ nem é precisamente o que alguém ‘tem’.
Gênero é o aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do
feminino se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais,
cromossômicas, físicas e performáticas que o gênero assume. Supor que o gênero
sempre e exclusivamente significa as matrizes ‘masculino’ e ‘feminina’ é perder de
vista o ponto critico de que essa produção coerente e binária é contigente, que ela
teve um custo, e que as permutações de gênero que não se encaixam nesse binarismo
são tanto parte do gênero quanto seu exemplo mais normativo (BUTLER, 2014,
p.254).

Assim como as regulações de gênero, a sexualidade também apresenta-se inserida


pela ação do poder regulador. Muitas vezes, ela é ensinada de forma sutil, tendendo a
naturalizar a heternormatividade, ou seja, um aparato de poder e força normalizadora da
ordem social que representa às expectativas, demandas e obrigações sociais derivadas do
pressuposto da heterossexualidade como natural, e, portanto, fundamento da sociedade
(MISKOLCI, 2012).
A seguir, iremos descrever algumas representações católicas sobre as sociabilidades
juvenis de outrora, sinalizando os aparatos preventivos das relações de gênero e da
heterossexualidade. Nossa descrição centra-se no livro “O Namoro – Grito de Alarme”.
Publicado em 1952, o mesmo está dividido em oito pontos, “servindo de guia para os pais de
família”. Foi escrito por um padre-missionário, Elias Maria Gorayeb, e recebeu o custeio das
Filhas de Maria da Matriz de Nossa Senhora do Líbano. Teve a aprovação e bênção do Exmo.
Senhor Bispo Diocesano de Juiz de Fora – MG, D. Justino José de Sant’Ana.
Atualmente, o livro é considerado uma obra rara da literatura católica, tendo poucos
exemplares originais preservados. Mesmo escrito por um sujeito específico o livro citado,
pode ser visto como um artefato cultural da Igreja Católica, onde podemos encontrar
representações baseadas nos ensinamentos eclesiásticos e no contexto sociocultural vigente.
Em linhas gerais, podemos dizer que as representações possuem duas possibilidades
de sentido. A primeira exibe um objeto ausente que é substituído por uma imagem capaz de o
reconstituir na memória. A segunda exibe uma presença, como a apresentação pública de algo
ou alguém. Logo, a História Cultural, vista como domínio epistemológico, pode tomar por
objetivo “a compreensão das representações do mundo social, que o descrevem como pensam

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que ele é ou como gostariam que fosse” (CHARTIER, 1990). P.19), sabendo que as mesmas
são determinadas pelos interesses dos indivíduos ou grupos que as forjam.
Nesse sentido, optamos por uma descrição minuciosa das representações83, contidas
no livro “O Namoro – Grito de Alarme” (1952), com o intuito de entender as representações
católicas sobre as sociabilidades juvenis de outrora, sinalizando os aparatos preventivos das
relações de gênero e da heterossexualidade, ou seja, o modo como uma determinada
conjuntura social foi construída, pensada e dada a ler na sua contemporaneidade.

NAMORO: GRITOS E SILÊNCIOS

“Se alguém observa um edifício em chamas fica com o dever de pedir socorro dando
grito de alarme”. Esta afirmativa inicia o livro estudado e é complementada pela seguinte
argumentação: “O namoro de hoje com o seu desenfreio, é esse fogo feroz, que está
devorando o coração da Mocidade moderna, encaminhando-a para a degeneração do Futuro,
levando também com ela a sociedade, e mesmo a Pátria, a um fim deplorável” (p.5).
Conforme o autor, Elias Maria Gorayeb, o namoro é “o lapso do tempo que precede
ao noivado, como entendimento prévio para o casamento” (p. 6). Para ele, a palavra, namoro,
não deixa de ser inconveniente, pois em seu sentido moral, não é tão elevada nem corresponde
à altura da missão do casamento. Logo, acha mais oportuna a utilização das palavras
“pretendente”, “simpatia” e “cortejo” para exprimir as sociabilidades entre os jovens, uma vez
que “A palavra namoro soa mal entre gente fina e educada” (p.6).
Adverte que, baseados exclusivamente na aparência física ou bens materiais, o
namoro pode resultar em graves riscos a posteriore, pois “além da beleza, existe um cérebro,
do qual depende o ideal da felicidade. Além do corpo elegante, existe um coração e uma
vontade dos quais poderão vir todos os bens da personalidade dos jovens, ou ao contrário,
poderão produzir todos os males da vida” (p.6).
Em suas postulações, o autor menciona que existem dois fatores primordiais na

83
Optamos por montar um esquema sintético de trechos do livro, ressaltando as principais representações do
autor sobre o tema proposto. Todas as citações do tópico “Namoro: Gritos e silêncios” estão contidas no livro “O
Namoro – Grito de Alarme” (1952)”.
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concepção do namoro, a saber, paixão e razão. A primeira é “uma inclinação cega, movida
pelo prazer e pelo gosto”. A segunda “é um ideal elevado para casar-se e cumprir uma missão
divina na sociedade humana, constituindo uma família”. Enquanto aquela leva os pretendentes
ao fracasso, esta os leva ao bem-estar da vida e ao cumprimento do dever. Por isso “deve-se
seguir as luzes da razão e vencer as inclinações naturais da paixão” (idem).
Nesse encaminhamento há, conforme seus pareceres, duas faces do namoro. Uma
delas é inspirada por Deus e “eleva o coração além da aparência cingindo os pensamentos
para preparar os cônjuges à responsabilidade do futuro e a cumprir o Sacramento do
Matrimônio”. A outra é “arte diabólica”, ilícita, inventada para corromper o coração à matéria
e ao prazer, “dirigindo o pensamento à sensualidade” (idem).
Buscando sintetizar as duas faces do namoro, Padre Elias Maria Gorayeb cita
algumas condições características das mesmas. Para ele, o “namoro bom e de Deus” é aquele
em que tem o consentimento dos pais ou tutores. Evita toda a familiaridade, liberdade ou
intimidade entre os jovens, tratando o outro como um estranho, querendo-o como um irmão e
tratando-o com cuidado e pouca confiança. Os bons namorados comportam-se como duas
pessoas prontas a realizar um negócio relevante, pois dependendo dele os jovens podem
ganhar grande fortuna ou perdê-la totalmente.
O “namoro bom e de Deus” tem idade apropriada para começar. Conforme o autor, o
rapaz deve entrar nos tramites do casamento na idade de 25 anos, aproximadamente, enquanto
a moça aos 20 anos. Podendo alterar a faixa etária para um ano a mais ou a menos, diante de
certas conveniências e aconselhamentos. Um dos motivos da determinação da idade está
articulado ao contexto sociocultural vigente, onde alguns jovens desejam estudar ou
profissionalizarem-se.
O namoro “bom e de Deus” torna-se excelente quanto tem pouca duração, pois a
demora expõe os jovens a “inumeráveis perigos”. O tempo de namoro não deve exceder de 3
meses, seguindo-se 3 meses de noivado e, posteriormente, a preparação para o casamento.
Logo, entre o contato inicial e a oficialização do casamento não se deve passar de um ano.
O “namoro diabólico” possui características peculiares. Começa escondido dos
pais. Realiza-se nos portões, nas praças, nas ruas, em lugares afastados e escuros. “Executa-se
de uma maneira bem artística nos cinemas e automóveis”. Deixa-se levar pelos instintos,
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paixões e prazeres ilícitos. Mantem-se ancorado na liberdade e intimidade desenfreada,


ofendendo a moralidade e o pudor. “O namoro do Demônio não tem idade nem tempo. Pode
começar desde 10 anos para não acabar nunca” (p.7).
Segundo Padre Elias Maria Gorayeb essa face de namoro inclina os jovens aos
vícios, cega a inteligência, enquanto focaliza a sensualidade. Arrasta ao fatídico, a inquietação
e ao desespero. Afasta do trabalho, do estudo e do dever. Causa discórdia, desgosto, brigas e
inimizades. “Raramente leva à realização do casamento ou conduz a um casamento puro.
Priva da felicidade familiar futura e mesmo da felicidade eterna” (p. 9).
Almejando concretizar meios para o não cumprimento das características citadas
anteriormente, ou seja, do “namoro diabólico”, o referido autor faz uma lista com os “Dez
Mandamentos do Namoro”. A mesma será escrita a seguir:

1) Não pense no namoro antes de chegar à idade e às condições correspondentes ao


casamento; e, chegando, o namoro, ou noivado, devem ser breve não passando mais
de que uns meses.
2) No caso de namoro, noivado e mesmo casamento, não considere beleza nem
riqueza nem se deixe levar pelo gosto, paixão ou outra aparência. Isto é grande erro
que poderá conduzir ao fracasso. Deve-se considerar, muito mais a beleza da alma, o
caráter, a virtude e outras boas qualidades de espírito.
3) Cuidado e, muito cuidado em dar confiança, liberdade ou intimidade durante o
namoro e mesmo o noivado. Nesta época, a reserva é de suma importância, mas
sempre acompanhada de bondade e cortesia devendo respeitar-se como amigos ou
verdadeiros irmãos.
4) Não confie em si mesmo na questão de namoro e casamento, nem se deixe levar
pelas inclinações. Deve neste caso consultar e seguir a orientação dos maiores, como
pais, relações de confiança, especialmente deve confiar seu empreendimento a um
sacerdote, diretor espiritual. Todas estas são medidas que podem ajudá-lo para o
êxito da vida futura.
5) Os namorados devem considerar, que o namoro deve ser um meio santo para um
fim santo, que é o casamento. Para o êxito de ambos, devem saber que o casamento
não é para satisfazer um prazer. O matrimônio é uma missão de responsabilidade
grave diante de Deus, da sociedade e da própria consciência.
6) Deve saber que um namoro mole, livre e sensual será difícil de chegar a um
casamento agradável e feliz. Este tal namoro, em caso de conduzir a um casamento,
será acompanhado pela discórdia pela desconfiança e pelo desgosto e acabará pelo
desquite e separação.
7) Para a nobreza e retidão do namoro convém pensar também que o casamento é
um Sacramento sagrado, instituído por Deus, para a multiplicação, conservação e
santificação da família e da raça humana. Cada demasiada confiança neste sentido,
cada liberdade desordenada, cada pensamento desviado é pecado grave, desmancha
a pureza do casamento e priva da bênção de Deus, que é a própria felicidade.
8) Não se deixe enganar pelo exemplo do namoro da sociedade moderna. Esta
atitude de namoro é um grande erro condenado por Deus, pela sociedade ciente, e
pela razão sã e acabará mal. É um desvio da Moral que está degenerando a
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personalidade humana.
9) No ideal de escolher cônjuge, tenha bem presente certas igualdades, semelhanças
e aproximações, como: caráter, gênio, cultura, origem, religião, cor, idade, físico,
estatura, e outras qualidades. Estas condições são grandes fatores para a harmonia e
paz da vida conjugal futura.
10) Os jovens, ao empreenderem os primeiros passos do namoro, devem ter um
ideal elevado, nobre e sobrenatural; e ao chegarem a vida conjugal, devem seguir
também santificando-se por uma conduta virtuosa e piedosa, servindo desta vida
como meio para a vida eterna. Devem pensar sempre na felicidade eterna do Céu,
muito mais que na felicidade fugaz da terra (p. 10)

Em consonância as postulações do autor, o namoro forma um compromisso moral,


que “prende dois jovens” e “não admite que esses comprometidos possam ainda se relacionar
com outros”. Para ele, ao término de um relacionamento, independente do motivo, os jovens
ficam desprestigiados e prejudicados diante da Sociedade, uma vez que “ninguém já poderá
tomar a sério outro namoro com um destes jovens” (P.13).
Conclui que namorar segundo as condições prescritas por ele, nos 10 mandamentos,
inspirado na Igreja Católica, não resulta em inconveniente. Todavia, “o namoro materializado
e livre, é um pecado grave e mortal, que será punido com a desgraça da vida, e o castigo
eterno do Inferno” (p. 13).
Adverte que este pecado e, o consequente castigo, aumenta mais, tantas quantas
forem às repetições, sendo mais graves ainda os prolongamentos dos abusos do namoro.
Argumenta que os mesmos castigos também serão executados nos pais dos jovens, caso eles
descuidem da vigilância dos filhos e permitam contatos antes do tempo apropriado e das
condições necessárias para o êxito do mesmo.
Parece-nos interessante também suas indicações preventivas sobre o beijo. Para ele,
“raro, raríssimo, ser o beijo entre os namorados como sinal do amor puro e mais raro ainda ser
isento de um pecado”. Quanto mais praticado, maior possibilidade há de o beijo despertar o
pecado.

O beijo nesta circunstância é uma faísca capaz de originar um incêndio das paixões,
encaminhando a alma para o abismo dos vícios. O beijo é tentação do Demônio para
profanar a santidade do futuro matrimônio. Citarei uma prova curiosa que demonstra
bem claro, a maldade pecaminosa do beijo dos namorados, isto é, que aquele beijo
nunca procede em presença dos pais ou família, mas sim, em lugares afastados e
escuros onde está sempre presente o Demônio, Inimigo da Mocidade e da honra (p.
14).

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Padre Elias Maria Gorayeb afirma que, em suas experiências eclesiásticas, escutou
lamentações sobre os términos dos namoros e cita um exemplo. Em certa ocasião, uma jovem
o confessou que fazia de tudo para agradar o seu namorado, dançava em clubes, apresentava-
se com elegância, detinha atrativos de enfeites e pinturas, acompanhava-o nos passeios,
cinema e piqueniques, porém o término tinha sido inevitável.
Segundo ele, isso tinha acontecido porque o meio empregado para conquistar foi
exatamente o que contribuiu para o fracasso antes do matrimônio. Logo, respondeu para a
moça que a dança, a entrega às vaidades, aos enfeites, as aparências de encanto, a perda de
tempo em passeios e futilidades, foram decisivos no fracasso do relacionamento.
Um rapaz sério, que procura verdadeiramente casar-se e constituir família, nunca
procura uma bailarina nem uma moça muito atirada às vaidades, às futilidades e à
perda de tempo. É por esse motivo que existe uma infinidade de moças que
destruíram a felicidade de suas vidas pelos mesmos meios com que pretendiam
construir. Namoraram muito e por isso não casaram. Eis a causa desta lamentável
anarquia que domina esta pavorosa crise de casamentos na sociedade moderna. Aqui
está uma prova: A mocidade de hoje namora muito, sendo pouco, pouquíssimos, os
que se casam... Escutai mocidade – ‘Ou corrigirás o teu erro, nessa maneira de
pensar para constituir um lar, ou terás que permanecer num estado degradante,
perdendo por completo a felicidade de teu futuro’ (p.14).

Antes de finalizar o livro, o autor cita dois países que servem de “modelo” para os
relacionamentos entre os jovens. O primeiro deles é a Suíça. Segundo ele, o governo do país
europeu, notando que existia uma liberdade demasiada na sociedade, principalmente entre os
jovens, decretou que nenhum rapaz tinha licença de acompanhar publicamente a uma moça, a
não ser da família mais próxima, ou então, deveria ter um documento que creditasse que era
noivo dela, estando perto de casar-se brevemente, dentro de um prazo não superior a um ano,
começando desde a data marcada no documento.
Conforme seus escritos, na Suíça, “as moças sérias, ajuizadas e nobres, apoiando este
ato do governo, formaram uma sociedade”, cujo principal fim era o seguinte: nenhuma moça
sócia poderia “dar confiança” a um rapaz, nem acompanhá-lo, nem conversar com ele, no
sentido de namoro ou noivado, antes de pedir-lhe um documento com a sua assinatura e a de
um dos membros de sua família, autenticando o documento perante a autoridade civil, a fim
de evitar abusos e assegurar um futuro garantido. “Esta sociedade alcançou em pouco tempo
mais de 10.000 sócias, chegando-se a endireitar as intenções de muitos rapazes em relação ao
casamento” (p. 17).
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Padre Elias Maria Gorayeb também destaca outro país que servia de modelo para os
jovens, a saber, sua pátria de origem, o Líbano. Para ele:
O casamento no Líbano é algo extraordinário, digno também de ser mencionado
aqui. É tradicional e comum na sociedade Libanesa, que a mocidade quando chega à
idade do casamento, deve casar, confiando-se seu casamento, antes de tudo, a seus
pais. Uma vez feita à compreensão entre pais e filhos, os pais do rapaz vão à casa da
moça escolhida para pedi-la em casamento. Então, as reuniões dos rapazes e moças
candidatos ao casamento são sempre em sociedade e em presença das famílias. (p.
17)

Nestas circunstâncias, o autor conclui que o namoro não existe no Líbano. Um rapaz
nunca acompanha uma moça sozinha às festas sociais. O entendimento entre eles é feito com
raciocínio, nobreza e em presença da família. As conversas giram sempre sobre a
responsabilidade da missão que vão assumir e sobre a organização do novo lar.
O compromisso entre os jovens é feito por intermédio das famílias envolvidas. O dia
e horário do casamento pega os jovens de surpresa. Todavia, sem grandes enfrentamentos,
exceto “nas grandes cidades, onde existem elementos estranhos que trazem ao Líbano certos
costumes modernos que são sempre combatidos e condenados pela massa” (p.18).
Os casamentos no Líbano, em sua maioria, são felizes, pois são frutos de uma base
sólida fundada sobre o amor de Deus, a razão e a Doutrina da Igreja. Muitos na
sociedade moderna estranham o que dizemos e talvez recebam o que publicamos
com semblante constrangido. Entretanto, a verdade deve ser anunciada em toda
parte, mesmo que não haja aceitação, porque a moral é moral sempre, e a verdade é
verdade até o tempo sem fim! (p. 18).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desse estudo introdutório descritivo, podemos aferir que o artefato cultural
citado, problematiza as sociabilidades juvenis, destacando elementos oportunos para reflexões
sobre as experiências do passado recente e suas influencias no presente. Há uma preocupação
em educar os corpos jovens fora do ambiente escolar. Logo, instaura-se uma tentativa de
pedagogia familiar, onde os pais são responsáveis pelo bom amadurecimento afetivo-sexual
dos seus filhos.
No artefato cultural estudado, o foco está nas sociabilidades juvenis, todavia
encontramos indícios de como os aparatos preventivos das relações de gênero e da
heterossexualidade apresentavam-se. Tais aparatos revelam-se de forma sutil, tendendo a uma
representação de naturalidade construída para ser imposta como verdade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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_______________. Regulações de Gênero. In: Cadernos Pagu, São Paulo, v.1, n.42, jan/jun.
2014.
CONNELL. Robert W; MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade Hegemônica:
repensando o conceito. In: Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n.21, jan/abr. 2013.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro:
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DAYRELL, JUAREZ. A Escola ‘Faz‘ as Juventudes? Reflexões em torno da Socialização
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___________________. A Juventude e suas Escolhas: As relações entre Projetos de Vida e
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Geografias Plurais em Confronto. Instituto Politécnico de Portalegre – Escola Superior de
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LEVI, Giovanni & SCHMITT, Jean-Claude (orgs). História dos jovens II: a época
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MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte:
Autêntica Editora/UFPO, 2012.

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CARTAS AO DIRETOR DA CASA DOS EDUCANDOS ARTÍFICES DA PARAÍBA

Vanessa Gonçalves Lira | vanessaglira09@gmail.com

INTRODUÇÃO

Este artigo teve como objetivo analisar as estratégias discursivas das cartas
destinadas ao diretor do Colégio dos Educandos Artífices da Paraíba no jornal diário O
Publicador. Para isso, partimos dos indícios dos conteúdos das epistolas como: ao diretor do
Colégio dos Educandos Artífices, pagamento de trabalhadores da Casa dos Educandos,
compra de materiais para obra no Sítio Cruz do Peixe dentre outros. Os documentos-
monumentos utilizados nas análises foram os relatórios de presidente de província da Paraíba,
ofícios manuscritos e leis e regulamentos da Paraíba.
As cartas destinadas ao diretor do Colégio do Educandos Artífices da Paraíba nos
jornais no Império brasileiro possibilitaram a percepção das práticas culturais de leitura e
escrita que permitem ao pesquisador entender a cultura escolar da época. Nesse sentido,
corroboramos com Chartier (2002, p.16) quando explica que ela “tem por principal objeto
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social
é construída, pensada, dada a ler”.
Em nossos resultados sobre as análises discursivas postas neste artigo percebemos
como o inspetor do tesouro provincial publicava a prestação de contas de seus serviços,
comunicando suas ordens ao diretor do Colégio dos Educandos Artífices da Paraíba, e
fazendo uso das cartas e de suas regras de produção. Assim, verificamos que ao passo que
versaram sobre a obra de reforma no estabelecimento deram visibilidade aos recursos
destinados ao pagamento de materiais para construção e especificaram os valores de
pagamentos das despesas. Dessa forma, ainda constatamos que o diretor poderia ocupar mais
de um cargo público, além do que desempenhava na instituição que atendia a pobres livres,
órfãos e desvalidos da Paraíba.

ADMINISTRAÇÃO DO COLÉGIO DOS EDUCANDOS NO JORNAL O


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PUBLICADOR

O jornal do século dezenove como suporte de debates de ideias e de trocas de


opiniões públicas, a carta assumiu a forma de intervenção pública Sena (2014, p.270). De
modo que as cartas destinadas ao diretor da Casa dos Educandos Artífices da Paraíba
publicadas no periódico O Publicador em seus conteúdos contemplaram assuntos distintos e
trataram principalmente sobre os pagamentos de trabalhadores e despesas referentes à obra do
colégio.
Uma das características singulares das cartas públicas no jornal pesquisado foi a
ausência de assinaturas dos signatários. Para Fonseca (2007) essa prática ocorria, em razão
dos destinatários das cartas se comunicarem por meio de seu conteúdo. Desse modo, ainda
que o signatário não assinasse as cartas, compartilhava informações sucintas ou longas com o
destinatário que o identificava como um sujeito que possivelmente estava inserido na
administração da instrução pública da Paraíba. Assim, as cartas no jornal se constituem em
réplicas de diálogos que mostraram as interações verbais entre aqueles que administravam a
instrução paraibana. Nessa perspectiva, as epistolas nos jornais pressupõem um
distanciamento entre locutor e interlocutor, como Roquette (1997, p.208) afirma: “admirável
invento que aproxima ausentes dos presentes, encurta as distancias”
A escrita das cartas públicas era moldada para atender às exigências de uma escrita
erudita padronizada por meio dos manuais. Assim, leitores e escritores (GOMEZ, 2009) ao
adaptarem a sua escrita a recomendação do manual buscavam mostrar como controlavam os
recursos destinados a obra de construção e reforma do estabelecimento no jornal O
Publicador.
Os manuais de escrever cartas foram em sua época essenciais para ordenar à escrita
e estabelecer um padrão ideal de comunicação epistolar. Sobre esse assunto Barbosa (2011,
p.100) afirma que: “é possível perceber a longa duração epistolar e dos seus manuais ao
mesmo tempo em que se anunciam as mudanças suscitadas pelos novos padrões de escrita,
que incluem novos temas, novos destinatários e até mesmo mudança de suporte, no caso das
cartas publicadas em jornais e periódicos.” Assim, entendemos que os escrevedores de cartas
demonstraram não apenas o conhecimento deles, mas seguiam todas as orientações possíveis
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para fazer uso dos recursos de retórica, na intenção de tornar os textos das cartas persuasivos.
Para ocupar o cargo de Diretor do Colégio dos Educandos Artífices da Paraíba, era
necessária a nomeação da presidência como poder ser conferido no relatório de 1867 no qual
o diretor do colégio dos educandos era nomeado pelo presidente da província. E, ainda
apresentar as exigências apontadas no regulamento. Nesse sentido, o Regulamento da Casa de
Educandos Artífices no artigo 14 determinou que:
O Diretor, que deve ser de preferência um Sacerdote, é a primeira autoridade do
estabelecimento, e reside no Colégio. Todos os empregados lhe devem respeito e
obediência, e perante o Presidente da Província é ele o único responsável pela
prosperidade e pela representação do estabelecimento. (REGULAMENTO N.7 In
CURY, p.122 grifos nossos).

No artigo 14, há dois pré-requisitos para que um sujeito fosse nomeado à direção do
colégio técnico para pobres, órfãos e desvalidos. O primeiro era que esse preferivelmente
devia ser sacerdote e, o segundo tinha que residir no estabelecimento de ensino. Segundo
Cunha (2000), a escolha por padres a frente de instituições escolares ocorria porque esses
tinham sólida formação intelectual. Nessa direção, Pinheiro (2010, p.227) afirma que no
século dezenove existiu uma “íntima relação entre o Estado imperial e Igreja Católica [...] que
era a religião oficial da nascente nação brasileira. ”
Pelo regulamento do colégio, percebemos que o diretor administrava o colégio em
parceria com os outros servidores da província como consta no artigo oito e no relatório de
(1867,p.02) “a administração do Colégio fica a cargo de um Diretor e de um Conselho
Administrativo, que será composto do mesmo Diretor, do Diretor da Instrução Pública, e do
Procurador Fiscal da Fazenda Provincial”. Segundo determinou o artigo dez do regulamento
o conselho do colégio devia se reunir mensalmente no terceiro dia útil de cada mês. Por isso, a
fiscalização do trabalho do diretor Joaquim Victor Pereira contava era rigorosa e burocrática.
No ano da compra do sítio Cruz de Peixe que sediou o Colégio dos Educandos
Artífices da Paraíba uma das cartas publicadas no jornal O Publicador chamou atenção do
leitor para as obras de reforma e construção que passou o respectivo estabelecimento.
Vejamos uma das cartas:

–Idem ao padre Joaquim Victor Pereira. –Achando-se Vmc. Nomeado, por portaria
de hoje, diretor do collegio de educandos artífices creado em virtude da lei

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provincial n.6 do 1º de setembro de 1859, recomendo-lhe que promova quanto


antes as acomodações e obras precisas na casa do sitio Cruz do Peixe onde deve
o mesmo collegio ser estabelecido, e para o que receberá do inspector do tesouro as
respectivas chaves ; ficando entretanto prevenido de que pode requisitar ao
comandante do corpo de policial provisório uma praça para vigiar o estabelecimento
a seu cargo.
Comunicou-se ao thesouro e ao corpo policial provisório.
(BRITO In O PUBLICADOR, 1865, p.2 grifos nossos).

Identificamos no conteúdo da carta que possivelmente o signatário dessa foi o


presidente de província, o Sr. Toscano de Brito, presidente da província da Paraíba, pois
dentre suas funções tinha a responsabilidade de administrar a instrução em suas distintas
esferas de realização. Sobre as condições físicas do sítio o diretor Joaquim Victor Pereira
(1867) afirmou que esse estava velho e arruinado, ou seja, inviável para o funcionamento do
Colégio dos Educandos Artífices da Paraíba.
Percebemos que o gênero do discurso apresentando estava direcionado a três
pessoas: ao diretor do colégio, ao tesouro provincial e ao corpo policial provisório. Todavia,
notamos que a fundação do colégio não significava que as oficinas, as missas e as aulas de
ensino primário aconteceram naquele momento. Contudo, essa epistola de ordem foi um meio
de intervir para que a efetivação do processo de organização física e da dinâmica funcional do
estabelecimento. Entendemos conforme Junior (2009) que as cartas foram formas de
intervenção pública que tanto buscavam persuadir o leitor como mostrar o autor quando
versava sobre os acontecimentos na Casa dos Educandos Artífices da Paraíba. Inferimos com
isso, que essas intervenções foram possíveis pelas tipologias recomendadas pelos manuais de
escrever cartas. Dessa forma, supomos que não era pretensão do emissor da carta publicada
no ano de 1865 detalhar informações sobre a reforma, e sim, designar ordem pública ao
diretor para que fosse iniciada.
Entretanto, no ano de 1866, outras cartas transmitiram informações acerca da obra e
descreveram como aconteceu o processo de liberação de renda para a dita reforma. Essas
tiveram em comum o signatário que era o inspetor do tesouro provincial. Vejamos:

– Ao mesmo. – Tendo o director do collegio de educandos artifices desta capital,


padre Joaquim Victor Pereira, comprado dez milheiros de tijolos de alvenaria para
as obras que ali se vão fazer, pelo preço de 14$000 cada milheiro, determo á Vmc..
que lhe mande pagar a importancia de semalhante despeza como a da conducção dos
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ditos tijolos, a rasão de 12$000 cada milheiro.


Communicou-se ao director do collegio dos educandos artifices.
(INSPECTOR DO TESOUSO In O PUBLICADOR, 1866, p.01 grifos nossos)

– Idem ao mesmo. – Em vista da inclusa conta mande Vmc. Pagar ao director do


collegio de educandos artifices, padre Joquim Victor Pereira, a quantia de
164$00rs. Porelle despendida com a compra de materiais para obras do mesmo
collegio, fazendo outrossim adiantar-lhe com semelhante destino de 500$00. De
que deverá elle presta conta opportunamente nessa repartição.
Fez se a precisa communicação. (INSPECTOR DO TESOURO In O
PUBLICADOR, 1866,p.02, grifos nossos)

Observamos que as cartas citadas apresentaram em seu conteúdo aspectos


semelhantes. A primeira semelhança estavam destinadas ao padre Joaquim Victor Pereira que
exercia a função de diretor, tesoureiro do colégio, sacerdote, e quando necessário substituiu o
secretário da instituição como determinou o Regulamento 7 de 1865 no eixo função do diretor
e, a segunda é a tipologia de ordem. Destacamos que à substituição no cargo de secretário
ocorria em função da determinação do artigo vinte, parágrafo primeiro que versou sobre da
função de secretário e ordenou que o diretor quando necessário exercia essa função.
Segundo o Relatório do presidente de província do ano de 1866, o diretor da
instrução pública o Dr. João Leite Ferreira acompanhou o processo de construção e reforma
do estabelecimento dos educandos artífices da Paraíba. Quanto às despesas de materiais para
obra anunciada nas cartas citadas verificamos que também podiam ser encaminhadas ao
presidente por meio de documento manuscrito por ele a seguir:

Passo ás mãos de V. Ex.ª a conta junta da despesa feita com o material da obra do
Collegio d`educandos artifices, na semana q. Passou, afim de q V. Ex.ª se assim
mandar satisfaser a sua importancia.
Dº Jº a V. Exª (ilegível)
Il.mo e Exmo Sr. D.orFelisardo Toscano de Britto
(ilegível)Presidente da provincia
(PARAHYBA DO NORTE, PROVINCIA DA, 1866 s/p)84

Outro aspecto observado nas cartas no jornal do ano pesquisado apresentou um


vestígio discursivo comum à época como nos mostrou O Publicador, o vocativo “ao mesmo”
esse normalmente utilizava-se quando em uma seção existia mais de uma epístola destinada a
um único sujeito, por exemplo, na seção oficial que as citadas se encontravam existiam outras

84
Documento manuscrito. CX.48. Arquivo Histórico do Estado da Paraíba. FUNESC.
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cartas que abordavam conteúdos diferentes que foram referentes ao diretor, e, por isso,
observamos que esse por ter sido responsável pela administração financeira do Colégio dos
Educandos Artífices da Paraíba interagiu recorrentemente com o tesouro provincial. Sena
(2014) ao tratar do uso de vocativos nas epistolas afirma que essa era uma forma de marcar
uma singularidade no discurso. Entendemos que possivelmente tal adaptação competia ao
editor do periódico. Nesse sentido, Chartier (1999) ao discorrer sobre o controle da produção
dos textos escritos afirma que o autor não tem domínio de sua produção textual, essa por sua
vez passa pela revisão do editor que tem como competência adaptá-la ao espaço de publicação
de maneira que fique agradável ao leitor. Nesse sentido, as cartas no jornal não tinham um
lugar fixo e uma forma que a padronizasse.
Nas epistolas citadas acima percebemos que a direção da primeira instituição de
ofícios financiada pelo estado destinada a treinar pobres livres, órfãos e desvalidos prestava
contas com detalhes dos recursos utilizados para compra de materiais de construção para
reforma do estabelecimento. Nesse sentido, o regulamento no artigo sexto determinou essa
responsabilidade para o diretor “organizar a vista dos balancetes mensais do Diretor, e
apresentar ao Presidente da Província no fim de cada mestre, o balanço da receita e despesa
do estabelecimento. ” Desse modo, concluímos que o inspetor do tesouro público era o
responsável pela mediação dos dados financeiros transmitidos pela gestão do Colégio dos
Educandos Artífices da Paraíba.
Além dos materiais para obra do colégio o jornal O Publicador pelas cartas deu
visibilidade as interações com outra esfera administrativa da província da Paraíba que
interagiu com o Colégio dos Educandos, a saber: o comandante superior interino da capital
que como a informação acerca da ordem do comandante superior da Paraíba que recebeu
ordem para liberar um pedreiro que devia contribuir no adiantamento da reforma. Segue a
carta:
– Idem ao commandante superior interino da capital. Achando-se actualmente
empregados, como offictaes de pedreiro nas obras do edificio do collegio de
educandos artifices os guardas nacionais do 4.º batalhão desse commando superior
Joaquim Francisco dos Santos, e Vicente Nunes, que acabam de ser designados para
o serviço do destacamento desta capital ; determino a V. S. Que dê suas ordens para
os fazer dispensar do dito serviço em atenção não so á urgente necessidade, que
ha de prompto acabamento do mencionado edificio, como a terem eles
regressado do destacamento em janeiro do corrente anno, segundo sou informado.

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Fez-se a necessária communicação. (BRITO In O PUBLICADOR,1866 p.01 grifos


nossos).

A emergência para a finalização das obras certamente se dava pela necessidade


latente de inserir os educandos na instrução primária e anunciada pelo quantitativo de sujeitos
que não estava inserido nesse ramo de instrução. Essa informação foi observada nos relatórios
do diretor da instrução em 1861 e dos presidentes da província da Paraíba nos anos de 1860 a
1863 que em seus relatos afirmaram que o número de alunos inseridos na instrução primária
era inferior ao dos que não estavam inseridos nesse nível de ensino. E, além disso, segundo
Lima (2008) a Casa de Educandos Artífices da Paraíba no âmbito nacional foi a última a ser
criada, o que nos faz perceber que essa emergência também estava voltada para inserir a
província nesse movimento de capacitação de mão de obra popular que passava o Brasil
imperial na segunda metade do século dezenove.
Conferimos que o presidente também disponibilizou serventes que colaboraram com
o fim da reforma. A carta de aviso abaixo mostrou que o referido recebeu ofício que pedia
mais um servente para agilizar a obra. Vejamos: “– Idem ao diretor do collegio dos
educandos artifices. –Attendendo ao que Vmc. Me pede por officio de hoje, lhe concedo
autorisação para contratar mais um servente, que julga indispensavel para o serviço do
collegio a seo cargo”. (INSPECTOR DO TESOURO In: O PUBLICADOR, 1866, p. 03,
grifos nossos). Conforme Peixinho (2009, p.2838) “a carta funcionava como um espaço
discursivo plurifuncional, polimorfo, adequando-se facilmente a uma vasta gama de
assuntos.” Por isso, podemos entender que a carta além de intervir com ordens a serem
cumpridas era utilizada para anunciar ações ordenadas e executadas concernente a obra de
reforma do estabelecimento.
No relatório do diretor do ano de 1867 houve vestígios que certificaram que a
instituição passou todo o ano de 1866 em reforma e, no ano seguinte começou a atender os
educandos matriculados. Vejamos:
D`entre os educandos mais antigos no Collegio nenhum há que sómente tenha
consumido dous pares de sapatos, ao passo que é este o numero de calçado limitado
pelo regulamento para cada educando derunte um anno inteiro, entretanto o
Collegio existe há pouco mais de sete mezes. Tal tem sido o consumo deste genero
de suprimento. (PEREIRA In MARAÚ,1867,p.05 grifos nossos)

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Inferimos que o colégio teve seu funcionamento de forma precária e, que a obra
seguia enquanto os educandos eram atendidos, pois a Paraíba vivenciava segundo Silveira
(2009), a crise econômica que se refletiu em todas as esferas sociais do seu espaço regional, e,
em virtude da seca no Norte que prejudicou a produção açucareira e algodoeira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da historiografia considera as cartas como práticas culturais, apropriadas


por seus signatários que deram visibilidade tanto a rotina administrativa do diretor do Colégio
dos Educandos Artífices da Paraíba ao diretor do Colégio dos Educandos Artífices da Paraíba
como as ordens que trataram da reforma dessa instituição. Assim, segundo Chartier (1999)
cartas enquanto produtoras de ordenamento mostraram em seus conteúdos os processos
administrativos da refoma do estabelecimento.
Dessa forma, Joaquim Victor Pereira diretor do colégio que atendia pobres livres,
órfãos e desvalidos do período imperial teve publicada a cobrança do cumprimento de sua
função de controlar os recursos referentes a construção necessária para adaptar o espaço para
que as missas, aulas e oficinas ocorressem. Pelas cartas é possível verificar as interferências
referentes aos serviços do diretor para manutenção do controle sobre as finanças do colégio
que por sua vez eram uma prestação a presidência da província e a corte.
Destacamos que para que tais análises fossem feitas a contribuição de Ginzburg
(1989) foi significativa quando sugere a necessidade de partir das minucias da escrita das
cartas, buscando contar uma história apreciada por causa dos documentos-monumentos (LE
GOFF, 2003). Contudo, Sena (2013) as cartas não se constituem como retrato fiel da
realidade, de modo que mostraram a representação do sujeito responsável pela administração
do estabelecimento estudado e, parte de sua rotina administrativa que esteve presente nos
conteúdos das epistolas.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1863 à Assembleia Legislativa Provincial da Parahyba do Norte.
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Brito em 1865 à Assembleia Legislativa Provincial da Parahyba do Norte.
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CENÁRIO DE ALAGOINHAS-BA/SÉCULO XX:


MARIA FEIJÓ (ALECRIM DO TABULEIRO, 1972)

Maria José de Oliveira Santos | marmano2010@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Direciono a comunicação para selecionadas crônicas de Maria Feijó de Souza Neves


através de um trecho do livro de crônicas Alecrim do tabuleiro (1972, 9. 97), quando
demonstra dedicação a terra natal, Alagoinhas-BA, através da preocupação com a educação
local: “[...] Tudo o que recebi, apliquei; procurava aplicar, de maneira positiva e válida para
que também se impregnasse na alma de meus alunos, como em mim, por toda a vida, ficou
impregnado. Tudo o que meus professores ministraram”.
Os estudos que sugerem a educação das cidades se encontram cada vez mais
crescentes em busca de aprofundar representações sobre experiências e entender mecanismos
relativos à sua historiografia. O sentido da recordação é particular ao sujeito que se implica ao
narrar o retido na memória e este tipo de recordação contribui na pesquisa educacional e
possibilita desconstruir imagens sobre a prática docente, contrapondo-se à disseminação da
memória oficial.
O registro de experiências possibilita eleger aprendizagens no âmbito do trabalho
escolar, daí a intenção deste trabalho: analisar os valores educacionais que orientaram a vida
da professora primária, bibliotecária e escritora Maria Feijó, nascida em Alagoinhas que,
enquanto professora primária sentia-se injustiçada e “perseguida” pela política partidária por
manifestar suas vontades. Assim sendo, este trabalho suscita a pergunta: de que modo uma
professora sugere o contexto educacional de uma região? Imagine-se no início do Terceiro
Milênio e a classe docente não conseguiu avançar, conforme lamentou a escritora no livro em
estudo. (Alecrim do tabuleiro -1972).

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Inicialmente, apresento Maria Feijó, filha de família de classe média nascida em


27.11.1918 e falecida em 04.06.2001, Rio de Janeiro (seus restos mortais se encontram no
cemitério de Alagoinhas). Realizou um curso técnico de Bibliotecária em Salvador (1949),
fato que lhe motivou a fundar a Biblioteca Rui Barbosa na Escola Brazilino Viegas (“sonho
de consumo”). Em 1953, concluiu o Curso Superior em Biblioteconomia no Rio de Janeiro e
seu nome consta na Enciclopédia de Literatura Brasileira (Afrânio Coutinho e J Galante de
Sousa, 2001, v. I, p. 676, 2001), Dicionário de poetas contemporâneos (Francisco Igreja, 2.
Ed. 1991), Retratos à margem: antologia de escritoras das Alagoas e Bahia (1900-1950),
organizado por Izabel Brandão e Ívia Alves, EDUFAL, 2002, e, no livro do II Encontro de
História Oral do Nordeste (EDUNEB, 2000) encontra-se o texto “O canto que veio
desnudar o Brasil de 500 anos na poesia alagoinhense de Maria Feijó”, apresentado por
Daniela Brandão Gomes, sob minha orientação e ainda em textos esparsos publicados em
congressos e simpósios nacionais. No livro de poemas Beduíno do sonho (sonetos e poesias
outras), 1992, consta a lista, dentre outros: Bahia de todos os meus sonhos, Perfil da Bahia,
Alecrim do tabuleiro e Pelos caminhos da vida de uma professora primária.

CENAS DA VIDA DE UMA PROFESSORA PRIMÁRIA NO INTERIOR BAIANO

Coisas de infância permanecem latentes, [...] em nosso subconsciente e, lá um dia,


sem que o queiramos, tomam um impulso, enchem-se de forças e vêm à tona,
emergindo do seu emaranhado e distante mundo, para retratar-se ao emaranhado
mundo adulto, como uma fuga às atribuições rotineiras. [...] isto me veio, [...] num
querido álbum quase esquecido num canto, uma fotografia evocativa [...] (FEIJÓ,
1972, p. 26).

Maria Feijó formou-se no Magistério pela Escola Normal de Alagoinhas, exercendo


a profissão em Senhor do Bonfim, Santo Amaro da Purificação, Aramari iniciando em
Alagoinhas. As crônicas selecionadas para este artigo são ricas em exemplos de “perseguições
políticas”, que se manifestaram através de sucessivas transferências para outras cidades, já
que não se intimidava com ameaças e declarava suas preferências. Este comportamento pode
ser justificado por Tereza Fagundes (2005, p. 160) ao entender “A escola como espaço de
socialização e de produção, [que] se constitui como lócus privilegiado de construção e

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legitimação das identidades de seus atores” e isto seguimos no fragmento do livro Alecrim do
tabuleiro (1972, p. 16):

era isto: livre escolha e nada mais. Logo... Todavia, professores como éramos, não
podíamos manifestar muito nossa opinião. Muito, não. Nem muito, nem pouco.
Nada. Se assim procedêssemos, mesmo longe da escola, a perseguição, em forma
de transferência, não tardava: parece que vinha...2 a jato. [...] (Nessa hora o
‘Departamento de Educação’ andava depressa, ‘despachando os papéis...’)
professora não tinha vez, nem vontade. Era teleguiada. Eu mesma sofri na pele, alta
perseguição, transferida segundo quiseram que eu fosse, para lugares dantes nunca
povoados, muito pior, em se tratando de professora. Isto porque, sempre fui teimosa
e não conseguia esconder minhas simpatias... Achava que a democracia

Maria Feijó representa uma mulher que não se deixa vencer pelas injustiças e
punições, pois acreditava ser a educação a mola-mestra da transformação. Este pensamento
justifica sua satisfação em tornar-se professora primária e pensar contribuir para uma
sociedade composta por cidadãs/os defensoras/es dos seus ideais. Inspirava-se nas suas
professoras quando cursara o Curso Primário para “alimentar seu ideal.”
Desde jovem valorizava as comemorações escolares, como o dia da árvore, momento
em que ela e suas colegas saíam vestidas de camponesas, supervisionadas por uma professora
em busca de local para plantar uma árvore:

Pois bem, meus amigos, e no dia 21 de setembro, saíamos em fila, com a alegria nos
olhos e alvorada nos sorrisos, de estarmos vestidas de camponesas, com todos os
aparatos para o plantio da árvore que, à frente era conduzida, condignamente, por
uma aluna maior, em geral, boa aluna, de ótimas notas e exemplar conduta. Baldes,
enxadinhas, pás, picaretas, cavadores, etc., nos acompanhavam, tudo em miniatura
[...]. (FEIJÓ, 1972, p. 86).

A escritora exasperava-se com determinadas ordens. Em Aramari, o diretor da escola a


advertiu através do delegado escolar, ressaltando que as datas cívicas eram comemoradas na
escola e desabafa:

2
A escrita de Maria Feijó é marcada com o uso de reticências antes e depois de frases. Outra característica da
escritora reside no uso de palavras e frases em caixas altas.

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‘Ora! Senhor Delegado Escolar’ – quase lhe respondi – ‘logo a quem o senhor vem
dizer isto! (E porque não me conhece!...) Se não posso ver uma Bandeira Brasileira
tremulando, muito menos ouvir o Hino Nacional, que não sinta vibrar em mim toda
a brasilidade trazida dos longes do meu curso primário, desde tenra infância’ [...].
(FEIJÓ, 1972, p. 50).

Ufanista, amava a pátria, bens e valores morais, o que externava nas aulas de
Educação Moral e Cívica ampliadas pelo sentimento religioso:

Graças a Deus, a grande Pátria despertou a liturgia de muitos de seus filhos,


chamando-os à luz da verdade, do Bem e da Razão. Prazam aos céus e aos homens
de boa vontade que despertaram a razão e o bom senso em muitos brasileiros
esquecidos do Brasil; que estes consigam ler, com amor e orgulho, a cartilha da
Moral e rezem a Ave – Maria do Civismo nos bons exemplos... (FEIJÓ, 1972, p.
52).

Para Elizete Passos (2000) os ideais pedagógicos que permearam o século XX


estavam carregados de valores morais adequados à época. O patriotismo, a partir da década de
40, passou a ser mais valorizado, sobretudo quando permeou um clima político conflituoso e à
educação coube o papel de transmissora dos valores nacionalistas para que a população não
causasse nenhum impedimento no cumprimento do dever patriótico. Cabia à mulher
disseminar esses valores nos espaços: “A mentalidade da educadora [...] via nisso os
princípios morais dos indivíduos. Ser patriota, defender e reverenciar a pátria era um dos mais
altos indícios de padrões morais elevados, ao lado da defesa da família e da religião”.
(PASSOS, 2000, p. 229).
Em meio às mudanças, 1949 transformou-se para Maria Feijó no começo do desejo
de lecionar e para isto investiu em sua formação:

Foi no ano de mil novecentos e quarenta e nove, a ano da ressurreição e da


redenção da Bahia, comemorando os seus quatrocentos de existência. Foi [...] neste
ano de redenção, que também tive a minha, descobrindo dentro do Magistério
Primário – minha profissão básica por excelência, sempre querida e afagada [...]
(FEIJÓ, 1972, p. 89).

[...] Achei-me, achando-a. Encontrei-me comigo mesma, [...] fazendo aquele


abençoado “Curso Intensivo de Biblioteconomia para professoras primarias’, em
Salvador, que deveria ter tido continuidade e, não compreendo qual o motivo de,
numa terra privilegiada de inteligências nobres e realizações outro tanto como é a

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Bahia, nunca mais proporcionarem essa oportunidade às professoras primárias.


(FEIJÓ, 1972, p. 89, 90).

Em Alecrim do tabuleiro consta que, no decorrer de sua atuação como professora


primária jamais esqueceu as lições das suas professoras, por isto as transmitiu à juventude:

E os ensinamentos dos velhos mestres não foram esquecidos: da Escola Primária,


da Escola Normal. Tudo o que recebi, apliquei; procurava aplicar, de maneira
positiva e válida para que também se impregnasse na alma de meus alunos, como
em mim, por toda a vida, ficou impregnado. Tudo o que meus professores
ministraram... (FEIJÓ, 1972, p. 87).

Enquanto firme de seu papel de formadora de opinião Maria Feijó compreende a


escola como um “espaço de socialização”. (FAGUNDES, 2005, p. 160). Por isto, interessou-
se pela propagação do ensino, e em 31.12.1972, transmitiu uma mensagem pela Rádio
Emissora de Alagoinhas3 endereçada a juventude: “O Saber é eterno e universal, meu jovem,
e a educação não é mais privilegio de uns e, sim, OBRIGAÇÃO DE TODOS. Tudo o mais é
ilusão. Passageiro. Transitório”. (1972, p. 57). E continua: “[...] Só a educação faz um povo
totalmente feliz. Ela é a religião das raças em todos os tempos”. (1972, p. 105).
Em “Férias de verão” (FEIJÓ, 1972, p. 22-24) lembra os três meses de férias que a
categoria gozava e ela os passava em Salvador, aproveitando o Farol da Barra. Em meio a
lembranças do sol, mar e praia refere-se à saudade do tempo de professora primária,
enfatizando que a situação mudou tanto no que se refere à estação do ano, quanto ao período,
que correspondia ao verão, e, quase sempre, pós-carnaval. Mas, tambén ressalta a continuação
dos trabalhos em casa como se fosse “higiene mental” – como se a professora não tivesse
outros afazeres e prazeres a não ser a atividade escolar. Assim, defende a ideia de vocação:

3 Maria Feijó foi “Miss Alagoinhas”, fundou a “Hora da Biblioteca” com uma “Escola de Brotinhos” no Serviço de Alto-

Falantes local e foi única mulher que integrou a redação de um jornal da década de 30 dedicado aos homens. (O Alarma).
Estes dados foram obtidos através de uma entrevista concedida pela escritora ao extinto jornal Educarte, produzido pela
Secretaria de Educação do Município (199-?) em uma das suas vindas a Alagoinhas, haja vista, que se mudou para o Rio de
Janeiro nos anos 60.

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Férias alongadas você terá (pelo menos mais do que em qualquer outra profissão),
momentos de aula com intervalos descansáveis para a devida pausa repousante,
necessária (embora o prosseguimento dos deveres escolares em casa. Mas em casa,
no seu lar, à sua vontade, até mesmo servindo de uma higiene mental, um nobre
espairecimento), tema esse que caberia, se possível, uma tese em sua defesa.

A narrativa suscita maior dedicação ao magistério: “(‘FÉ, SACERDÓCIO MUITO


SÉRIO, AMOR À ARTE para AGUENTAR os ESPINHOS [...] (e... por que enganar?,
financeira também) para a luta encetada”, mas sem esquecer a remuneração, acrescento.
Mesmo defendendo a “bandeira” da vocação não se esquece da remuneração.
Em “Coisas de infância” (FEIJÓ, 1972, 26-30) relembra uma escola citada em
documentos oficiais do município, porque seus irmãos a frequentavam (Escola Mario Laerte)
à época considerada uma das melhores norteada pelo ideal de uma educação de qualidade:

[...] Escola Jesus, Maria, José dos saudosos professores Mário e Maria José Laerte
[...] Particular primária e uma das melhores, senão a melhor da época, em toda
Cidade, mantendo ainda um Curso Complementar. [...] (Esta escola, para nossa
alegria, ainda hoje é mantida pelo mesmo casal, com igual gabarito e muito mais
vivência nas experiências adquiridas num caminho extenso de feliz sacerdócio, em
Salvador, no Politeama de Baixo). Logo foi procurada por todas as famílias locais
na ânsia de sempre serem oferecidos melhores dias aos filhos, em futuro alicerçado
no estudo. Poder-se-ia dizer desta Escola, guardando-se as devidas proporções no
tempo e no espaço, que foi a precursora da educação lá implantada, tempos depois,
por Alcindo de Camargo.

“Começam as aulas” (1972, p. 34-37) é iniciada pela epígrafe “– Para você, MÃE-
AMIGA” – contemplando práticas que antecedem as aulas, desde a pasta escolar aos
uniformes. Melancolicamente, lamenta o término do carnaval ao tempo que anuncia a
chegada das matrículas e do ano letivo com início no mês de março, desde o Jardim até a
Faculdade. Destaca a prática de repassar livros aos irmãos mais novos, pessoas carentes e
bibliotecas e que isto não acontece se a mãe não colaborar com a professora e insinua
acontecimentos nas escolas particulares:
[...] Para cada ano que passa, um livro especial é providência que, se não for
estudada para ser refreada e substituída, vai chegar a vez de, principalmente, em
escola particular, não mais poder se continuar estudando. Ainda bem que nas
escolas públicas, há um bom auxílio em livros para os alunos. Mas... e as
particulares? Enfim... nada temos a ver com isso).

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Contempla os deveres de casa e sua relação com o caderno de férias, lembrando que
a mãe é responsável por lembrar às filhas e filhos essa responsabildade e que o cuidado com o
“Português” era importante:

Além [...] do DEVER DE FÉRIAS, que não sabemos se muita professora primária
usa hoje para com seus alunos. [...] Apenas, temos ciência [...] nos nossos tempos
de professora, no encerramento das aulas, antes dos exames finais, quando os
alunos faziam as escritas para o ‘Caderno de Férias’ [...]. E quando outra coisa não
entrasse em vigor, em se tratando de aprendizagem, entraria o Português, língua-
mãe para todos nós e Disciplina Básica [...] no curso primário. Isto [...] em relação
ao Curso Primário, [...] porque, no nosso tempo de Professora, [...] não havia
Jardim de Infância. Ou a criança era 1º ano ou não era...

Maria Feijó vislumbrava o ensino primário como algo ligado à mulher,


relacionando-a ao papel de “esposa-mãe”, moldável ao “senso maternal”, no entanto, faz uma
ressalva: para exercer essa profissão é necessário vocação, já que o amor à profissão se faz
necessário para suportar “os espinhos do oficio”:

Broto amigo, mais ainda da parte feminina, ouça-me, por favor e... se puder, siga o
meu conselho: queira ser PROFESSORA PRIMÁRIA, SEJA PROFESSORA
PRIMÁRIA, profissão quão espinhosa, mas também... tão nobre, indicada,
ajeitável, ajustável, amoldável à alma, à vida da mulher, principalmente em uma
Cidade de Interior, dando continuidade àquele clássico ‘esposa-e-mãe’, a ele,
perfeitamente acrescentável: Mestra! (FEIJÓ, 1972, p. 23).

Inserida nesse contexto a professora primária utilizou-se de crônicas para estimular


na turma jovem o desejo pelo Magistério:

[...] sim, minha querida amiga jovem, SEJA professora para você poder derivar a sua
vida na vida de suas crianças-alunos, que são as nossas crianças, as crianças de todas
nós, tão maleáveis (grifos nossos) ao sentimento, ao carinho, à ternura, ao senso
maternal que vive em cada MULHER... (FEIJÓ, 1972, p. 24).

Alecrim do tabuleiro (1972, p. 36) é um livro que suscita a posição da escritora


quanto ao papel do homem na educação escolar das filhas e filhos, tratando-se de um papel da
mãe que, em conjunto com a professora formaria o perfil educacional da criança:

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[...] você deve colaborar com a Professora. Isso se chama, indiretamente, mas...
eficazmente, aquela GRANDE, ÚTIL e PROVEITOSÍSSIMA ‘ALIANÇA entre
PAIS e PROFESORAS...’ – Digamos de passagem: entre MÃES E
PROFESSORAS. Pais, aqui aplicamos no sentido genérico, porque sabemos, em
verdade, que esses cuidados imprescindíveis à educação integrada da
criança, cabem é a VOCÊ, MÃE-AMIGA.

Percebemos na citação resquícios de uma estrutura mental burguesa moldada pelos


conceitos patriarcais. A produção literária romântica vigente à época dissemina a ideia de que
a educação da mulher deveria voltar-se ao lar, às prendas domésticas como ressalta Ívia Alves
(2002, p. 87):
A construção de um ‘modelo’ para a mulher se deve às próprias práticas e
organizações da sociedade burguesa capitalista. Primeiro, pela organização desta
sociedade através da divisão sexual do trabalho, delimitando o espaço de atuação
do homem e da mulher; segundo, estabelecida a forma de participação através de
papéis, os modelos passaram a ser perpetuados pelas instituições que sustentam e
alimentam as práticas sociais desta época.

Segundo Lajolo e Zilberman (1988, p. 262) a campanha favorável à educação da


mulher acompanhava-se de outra necessidade: “Idealizava-se a professora, chamando-a
de mãe, sugerindo que, lecionando, ela continuaria fiel à sua natureza maternal”. Assim, a
tarefa de ensinar não ameaçava a divisão social, pois não era considerado um trabalho
propriamente dito. Logo, destinar a mulher ao ensino justificava a necessidade de educá-la e
solucionava a falta de mão-de-obra já que era uma profissão pouco procurada por ser mal
remunerada e desobrigava o Estado de melhorar os proventos do profissional – o salário da
mulher deveria ser inferior. O exercício do magistério não escandalizava as bases machistas
da sociedade brasileira, permanecendo intocada e idealizada a associação mulher-esposa-mãe,
mesmo quando fora de casa trabalhando. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1988).
Para Tereza Fagundes (2005, p. 233) o fato da mulher idealizada como dócil,
paciente, gentil e possuir afinidades com crianças convergem para profissões tipificadas como
femininas:
A educação da mulher no lar e na escola vem servindo para reforçar esses
estereótipos ligados ao gênero feminino, fazendo com que a conciliação dos papeis
de educadora com os de esposa e de mãe tenha se tornado uma obrigação
estimulada na mulher pela sociedade, que vem atravessando os tempos.

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Para Elizete Passos a sociedade baiana comungava da educação da mulher formada


para ser mãe. Assim, os valores morais e religiosos ligados à sua formação manifestavam-se
nos espaços e funções convenientes. Sob essa estrutura mental Maria Feijó foi regada. Por
isto, ao tempo que seu impulso inquieto era instigado as resistências raízes burguesas
ressurgiam. Maria Feijó buscou no Curso Primário a base de sua formação educacional
demonstrada, através de ações pedagógicas, o compromisso com a formação integral, mas
sempre relacionando a figura da mulher ligada ao Magistério.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Maria Feijó, com uma postura “revolucionária” para a época, na luta pelos seus
ideais resiste a preconceitos, mas, quando se vê oprimida muda-se para o Rio de Janeiro.
Ocorre que, na “cidade grande” estranha o comportamento das mulheres dos pensionatos por
onde passou. Deste modo, apesar de suas participações carrega ranços de uma cultura
patriarcal, que determina o lugar da mulher: mãe, professora e dependente de orientações
masculinas. Sob essa estrutura foi educada, por isto, ao mesmo tempo em que seu impulso
revolucionário era instigado, suas raízes conservadoras a reprimiam. Este comportamento
possibilita duas reflexões: primeiro, não aceitou as amarras de sua cidade natal; no entanto, ao
manter contato com novos conceitos os rejeita. Essas reflexões demonstram a segurança como
os fundamentos patriarcais foram difundidos e encontram-se modificados e espalhados nas
diversas culturas. Em meio a essa diversidade, a escola é ainda um local ideal para a
disseminação de valores e a prática pedagógica pode influenciar no comportamento das
pessoas e insistir na busca de um lugar no mundo idealizado para e pelos homens. Portanto, as
ideias surgidas no texto em estudo devem ser analisadas criteriosamente, pois é importante
percebermos que as crônicas de memórias possibilitam refletir sobre a construção da exclusão
da mulher e, por isto mesmo, merecem releituras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ALVES, Ivia. Imagens da mulher na literatura na modernidade e na contemporaneidade. In:


FERREIRA, Sílvia Lucia; NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. (Orgs.). Imagens da mulher
na cultura contemporânea. Salvador: NEIM/UFBA, 2002. (7 Coleção Bahianas).
FAGUNDES, Mulher e pedagogia: um vínculo re-significado. Salvador: Helvécia, 2005.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da literatura no Brasil. São Paulo:
Ática, 1988.
PASSOS, Elizete. Crenças morais de uma educadora. In: FERREIRA, Sílvia Lucia;
NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. (Orgs.). Imagens da mulher na cultura
contemporânea. Salvador: NEIM/UFBA, 2002. (7 Coleção Bahianas).
SOUZA, Maria Feijó. Alecrim do tabuleiro. Rio de Janeiro: Max, 1972.

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ENTRE A DÚVIDA E O DELÍRIO: OS FANTASMAS DA TRAIÇÃO

Tatiana Fabíola Ferreira Dias | tati_anajp@hotmail.com


Jeane Lima Aragão
Hermano de França Rodrigues

ESCRITA, DOR E FANTASIA

D.Casmurro foi publicado em 1899, cuja narrativa se passa na cidade do Rio de


Janeiro, entre a metade e final do século XIX; é o próprio narrador-personagem que faz uma
retrospectiva desde sua infância até a idade adulta, expondo seus dramas e conflitos, numa
posição de vitima. Dois amigos de infância, Bentinho e Capitu, que, contra a resistência da
família do jovem, que deseja vê-lo padre, casam-se, graças à astúcia e artimanhas da menina
para livra-lo de tal promessa. Vivem felizes ate que, com a morte de Escobar, colega do
tempo de Seminário, Bentinho passa a desconfiar da relação de sua mulher com o seu amigo.
Atormentado por tal desconfiança passa a ver no filho a figura do velho amigo, e, a dúvida
gera constantes desavenças que resultam na sua separação e isolamento. Mas, sendo o
adultério um tema tão antigo quanto à literatura, o que faz essa obra tão instigante? Que
mistérios permeiam e explicam seu sucesso ate os dias atuais?
O romance machadiano é, sem dúvida, um marco dentro da Literatura e uma das
obras mais estudadas de Machado de Assis; exauríveis estudos referentes a esta obra
perduram até os dias atuais assim como a celebre dúvida: a personagem Capitu traiu ou não
Bentinho? Construído a partir das lembranças do narrador-personagens, a trama é alicerçada
sob a ótica de Bentinho, que conduz o leitor a imaginar que o seu comportamento sempre
esteve dentro de padrões sociais adequados, e a atitude de sua companheira é narrada
conforme seu julgamento, isto é, toda a história é uma projeção de uma mente fraca, assim
definida pelo próprio narrador e protagonista:
[...] A vida é cheia de tais convivas, e eu sou acaso deles, conquanto a prova de ter a
memória fraca seja exatamente não me acudir agora o nome de tal antigo; mas era

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um antigo, e basta. Não, não a minha memória não é boa. Ao contrário, é


comparável a alguém que tivesse vivido por hospedaria, sem guardar delas nem
nomes nem caras [...] (ASSIS, Cap. LIX, p.138). [grifos nossos]

O caráter dos personagens em Casmurro é construído a partir de uma análise


psicológica feitas pelo narrador para justificar ações ou fatos desenrolados durante todo a
trama. Bentinho é criado apenas pela mãe (já que o pai morre antes do seu nascimento), uma
figura materna melodramática, que enfrenta o dilema de ter que cumprir sua promessa, de
fazer seu filho padre, uma vez que seu primogênito nasce morto, e de se separar do mesmo:
Os projetos viam do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o
primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,
prometendo, se fosse varão, mete-lo na Igreja. [...] Viúva, sentiu o terror de separar-
se de mim; mas era tão devota temente a Deus [...]. Unicamente, para que nos
separássemos o mais tarde possível , fez-me aprender em casa primeiras letras, latim
e doutrina, por aquele Padre Cabral, velho amigo do tio Cosme, que ia jogar lá às
noites (ASSIS, Cap.X, p.51).

Nessa citação, vemos que o destino de Bentinho já tinha seu destino traçado desde
sua concepção; ele expõe à promessa feita pela mãe como uma justificativa de fé e amor. Ao
narrar o motivo pelo qual sua mãe quisera vê-lo padre e o porquê de ele ter suas aulas em
casa, vemos que Bentinho tem nas atitudes da mãe a expressão de amor e cuidado e suas
ações são unicamente para um bem maior como honrar a Deus e amar ao filho. As palavras de
Bentinho expressam sua conformidade em atender as decisões da mãe e ver nelas seu destino
já decidido, sendo ele, apenas espectador dos acontecimentos futuros, o que podemos concluir
como uma falta de atitude de nosso narrador. Insegurança, dependência, repressão, ansiedade,
neurose são algumas caraterísticas da personalidade de Bentinho e que serão refletidas em
todas as suas atitudes e ações. Poder-se-ia dizer que Bentinho sofreu, durante seu processo de
desenvolvimento pessoal, o que Freud conceituou de castração. De acordo com Freud,
castração é o processo pelo qual a criança passa a reconhecer a diferença sexual entre os seres
masculino e feminino; o filho passa a “desejar” a mãe só para si, e vê no pai, um rival assim
com a filha “deseja” o pai e a mãe passa ser sua rival. Embora não tenha tido muito contato
físico com o pai, a figura paterna é desempenha, através da mãe, de maneira simbólica,
verbal, como fica expresso no trecho abaixo:
São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido,
parece dizer: “Sou toda sua, meu guapo cavaleiro!”. O do meu pai, olhando para a
gente, faz este comentário: “Vejam como esta moça me quer...” [...] Depois da morte
dele, lembra-me que chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o
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encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão (ASSIS, Cap.VII, p.46).

Bentinho admira o amor que a mãe tinha por seu pai e que mantinha mesmo depois
de sua morte. Vemos que ele retrata a atitude da mãe como uma entrega ao amado, diferente
do pai, que, expressa no olhar o orgulho da conquista de sua amada. Bentinho projeta no olhar
da mãe a certeza do verdadeiro amor e é por esse olhar que ele busca na mulher amada que,
como a mãe, o olhasse de maneira a se entregar para ele.
Já na visão de Melanie Klein (1996), Bentinho vive uma situação transferencial, pois
a mãe projeta no filho a figura do marido, como podemos observar a seguir:
[...]-Mano Cosme, é a cara do pai, não é?(...)-Justamente! Exclamou minha mãe.
Mas veja bem, mano Cosme, veja se não é a figura do meu defunto. Olha Bentinho,
olha bem para mim. Sempre achei que te parecias com ele, agora é muito mais. O
bigode é que desfaz um pouco... (ASSIS, Cap.XCIX, pag.199-200)

Nesse trecho, vemos a comparação feita ao marido morto por dona Glória com seu
filho e este, como narrador, relata a beleza vista pelos olhos da mãe que o compara a seu pai,
demostrando a transferência por ela criada na figura do filho. Embora criado para satisfazer os
desejos da mãe, Bentinho, não se identifica com os desígnios da mesma em fazê-lo padre.
Angústias e dúvidas permeiam o grande conflito que precisa enfrentar: impor-se frente à mãe
ou simplesmente obedece-la. Tal postura demonstra, nas palavras de Klein (1996), uma
fraqueza do ego:

Dúvidas quanto ao objeto bom surge facilmente numa relação criança-mãe: isso se
deve não apenas ao fato de o bebê ser muito dependente da mãe, mas também à
ansiedade recorrente de que sua voracidade e impulsos destrutivos venham a
preponderar – ansiedade que é importante fator nos estados depressivos ( KLEIN,
1991, p.225).

Elza Macedo, em seu artigo Apontamentos sobre a angústia em Lacan, afirma, nas
palavras de Lacan, que a angústia é um afeto porque é algo certeiro:

A angústia não é a dúvida, a angústia é a causa da dúvida(LACAN, 2005,


p.88).
A mãe abdica sua própria vida para dedica-se totalmente a criação e educação de
Bentinho, a mesma usa de subterfúgios para prendê-lo e torna-lo dependente de si, ou seja,

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nota-se que a mesma manipula essa situação para que ela seja centro da vida do filho, este
então busca responder ao amor e cuidados recebidos por esta mãe tão dedicada, passando a
viver de forma a agradá-la e, inconscientemente, passando a depender de suas decisões. Tal
atitude, Klein identifica como sendo um sentimento de amor e gratidão, pois o indivíduo
sacrifica seus próprios desejos e sentimentos em nome do outro:

[...]- Vida de padre é muito bonita.


- Sim, é bonita; mas pergunto é se você gostaria de ser padre, rindo.
- Eu gosto do que mamãe quiser. [grifos nossos] (ASSIS, Cap.XXI, p.72)

Numa atitude passiva, Bentinho renuncia sua satisfação submetendo-se a vontade da


mãe; no decorre da vida, conhece Capitu, tornam-se amigos de infância e, descobre outro
sentimento além de uma simples amizade. Melanie Klein (1996), em AMOR, CULPA E
REPARAÇÃO E OUTROS TRABALHOS, afirma que os “sentimentos do homem pela mulher
são sempre influenciados pela sua ligação inicial com a mãe (p.364)”; embora Capitu tenha
características opostas à mãe (dissimulada, minuciosa, manipuladora, rompia com o padrão da
mulher submissa do séc.XIX), Bentinho identifica na mesma a capacidade de iniciativa para
resolver as questões pessoais das quais não consegue lidar e, nesse comportamento passivo,
ele transfere a direção de sua vida às decisões que Capitu tomar e, assim como sempre
aconteceu com a mãe, a amiga passa a direcioná-lo em suas ações.
Não conseguindo impor-se frente ao outro, nesse caso, a própria mãe, Bentinho
recorre a Capitu, que passa a direcionar o destino de sua vida. A ida para o seminário tira de
Bentinho o controle sobre a vida de Capitu e as consequências que começam a serem
construídas a partir desse relacionamento acabam provocando mais fragilidade: ódio, raiva,
neurose obsessiva são apenas alguns dos reflexos sofridos como pode ser observar no trecho
abaixo:
[...] A noticia de que ela vivia alegre , quando eu chorava todas as noites, produziu-
me aquele efeito, acompanhado de um bater de coração tão violento, que ainda agora
cuido ouvi-lo.(...)Outra ideia, não, - um sentimento cruel e desconhecido , o puro
ciúme, leitor de minhas entranhas.(...)Tive o ímpeto de atirar-me pelo portão afora,
descer o resto da ladeira, correr, chegar a casa do Pádua, agarrar Capitu e intimar-
lhe que me confesses quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da vizinhança
(ASSIS, Cap. LXVII, p.144-145). [grifos nossos]

Bentinho passa a afligir-se por está no seminário e não poder ficar perto de sua
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amiga, o que o leva a demostrar sua impotência sobre as atitudes de Capitu e a agonia por não
ser seu único objeto de prazer. A restrição que o impede de ir ao encontro de Capitu não está
relacionado apenas a distância física mas ao sentimento; é o que Lacan chama de
impedimento: “o impedimento não é do movimento, mas do sujeito, o que nos aproxima da
angústia” (MACEDO, 2008). A repetição da palavra “quantos” demonstram todo o
desequilíbrio psicológico e o ressentimento do personagem ao tomar ciência do
comportamento de Capitu; nesse trecho, o narrador-personagem começa a insinuar que é
traído, embora de maneira inconsciente, e sente o ímpeto de destruir o objeto amado.
Podemos identificar que, tal sentimento não é direcionado apenas para Capitu, mas também
para aqueles que hipoteticamente, teriam se relacionado com ela. Bentinho deixa sua
insegurança conduzi-lo ao ódio que sente em saber que Capitu poderia olhar para outros
rapazes e já passa a imaginar sua atitude diante da situação, deixando claro seu pavor em ver
sua amada voltar seu olhar a alguém que não fosse ele.
De acordo com Klein (1996), o sentimento de amor e ódio sintetiza aspectos bons e
maus da mãe: conforme afirmamos neste artigo, Bentinho vive um processo transferencial da
mãe com Capitu: aquela, viúva, abstém-se de novas núpcias e vive como se o marido estive
vivo; esta, ao contrário, separada por um breve momento “permite-se” ser cortejada. Nessa
situação Bentinho não vê em Capitu a postura de fidelidade que está na mãe. O ciúme surge
então como um elemento constituinte do ódio e desejos de morte, e sendo vivenciados,
transfere os sentimentos hostis não apenas ao objeto (neste caso Capitu), mas principalmente
contra os rivais (o peralta da vizinhança). Esse sentimento despertado em Bentinho é o que, de
acordo com Marco Antonio Coutinho Jorge (2007), em seu artigo Angústia e Castração,
Lacan define em sua teoria, como um fator desencadeador da angústia considerado como um
sinal real que invade o imaginário, o que fica ratificado no trecho a seguir:

Tudo isso é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que perturbava
assim a adolescência de um pobre seminarista. (ASSIS, Cap.LXIII, p.146)

Fica notório, na fala do narrador-personagem, que a culpa para tal sentimento é do


outro, ou seja, o outro provoca e desencadeia nele tais emoções e frustações. Bentinho não
possui maturidade emocional para lidar com sua afetividade de infância e agora, de
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adolescência, e acaba sendo dominado por eles, assumindo um papel de vítima. Capitu, na
visão de Bentinho, é culpada por sua agonia e por seus sentimentos de raiva, como podemos
conferir no trecho abaixo, numa revelação cheia de desequilíbrio emocional e ímpetos de ódio
e vingança:
Corri ao meu quarto, e entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu
atirava-me à cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do
lençol. Jurei não ir ver Capitu naquela tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de
uma vez. Via-me já ordenado, diante dela, que choraria de arrependimento e me
pediria perdão [...] A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoço,
enterrá-las bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue... (ASSIS, Cap.LXXV, p.163-
164)

Toda essa fusão de sentimentos provém, segundo Lacan, da relação de desejo que
intervém no amor, mas não diz respeito ao objeto amado; Macedo (2008) afirma que, para
Lacan, a angústia, enquanto sentimento, não está relacionado a pessoa do outro, e sim o
“Outro”, significativo, que está dentro de nós mesmos:

A angústia coloca um enigma: O que o outro quer de mim? “Introduzi a angústia


como a manifestação do desejo do Outro”. O desejo do Outro é sinal, o sujeito é
avisado de alguma coisa que o questiona – na raiz, na causa de seu desejo e não
quanto ao objeto – que o anula “para que o Outro se encontre aí. Isso é que a
angústia” (LACAN, 2005, p.169)

Bentinho não consegue expressar seus desejos e vontades, ou seja, não se impõe
frente as suas relações pessoais, seja com a mãe, seja com Capitu; essa indefinição de sua
personalidade, a contradição de quem sou com quem devo ser, do ideal representado
buscando dentro de si mesmo um Outro para completa-lo e traze-lo a existência, é o eixo
causador da angústia bentiana.
Separado da mãe e de sua amiga, no seminário, Bentinho consegue desenvolver
relacionamentos de amizades, desta vez com o sexo oposto, dentre as quais destaca- se a com
Escobar. Contrário ao sentimento amoroso que sente por Capitu, Bentinho também se deixa
ser seduzido por Escobar, numa relação que lhe causa prazer e satisfação:

A princípio fui tímido, mas ele fez-se entrado na minha confiança. [...] Escobar veio
abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente ,
como sabes, é uma casa assim disposta... [...] Não sei como era a minha. Eu não era
ainda casmurro, nem D.Casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas como
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as portas não tinham chave nem fechaduras , bastava empurra-las, e Escobar


empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que... (grifos nossos) (ASSIS,
Cap.LVI, p.134-135).

Ao conhecer Escobar, Bentinho passa a lidar com uma relação diferente na qual está
habituado. Ele descreve seu encontro com o amigo como sendo algo que lhe “abriu a alma”
([...] Escobar veio abrindo a alma toda... p.134) e essa nova amizade lhe dar prazer. Embora deixe
claro, mais uma vez, que sua alma era fraca, Bentinho fala de Escobar com o encanto que a
postura do amigo lhe causa. A maneira pela qual se da à relação entre Bentinho e Escobar, são
o que Klein (1996) faz referencia como sentimentos afetuosos dissociados daqueles de caráter
sexual:
Apesar de novas gratificações e elementos correspondentes à personalidade adulta
penetrarem na amizade de um homem com outro, este também busca uma repetição
da sua relação com pai ou um irmão, tenta encontrar uma nova afinidade que
preencha desejos do passado, ou então, procura aperfeiçoar relações insatisfatória
com aqueles que um dia lhe foram mais próximos (KLEIN , 1996, p.375).

Conforme dito neste artigo, Bentinho não teve relacionamento com pai nem com
irmão, uma vez que foi filho único e a figura paterna limitou-se a uma função simbólica; já
Escobar, tinha uma irmã e foi criado pelo pai advogado; sua entrada no seminário é para
satisfazer desejos familiares, embora sua paixão seja o comércio. Os sentimentos de castração
de Bentinho encontram em Escobar, uma satisfação de liberdade e que, em seu inconsciente,
Bentinho vê no amigo as atitudes que ele sempre quis ter e teve coragem para vivenciar. Essa
afinidade, entre os dois, corrobora as palavras de Klein, como podemos observar:

-Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você é a
pessoa que mais me tem entrado no coração, e lá fora, a não ser a gente da família,
não tenho propriamente um amigo (ASSIS,Cap. LXXVIII, p.166).

O relato feito sobre os sentimentos de Bentinho são sempre com palavras de dentro
dele. Ele relata que o amigo “entra no coração” e na alma. Podemos observar que, ao longo da
obra, Bentinho vai construindo relacionamentos significativos, embora de sentidos
diferenciados com Capitu e Escobar; estes passam a ter importantes papéis na formação de
sua personalidade e na sua vida pessoal. Capitu sempre é tida como uma amiga, apesar de
tornar-se esposa, mas a Escobar, Bentinho o retrata como alguém que nasce de dentro dele,
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invadindo sua alma e seu coração, tornando-se uma “amizade grande e fecunda”, embora o
mesmo tivesse “uns olhos policiais a que não escapava nada”. Escobar é, então, o oposto de
Bentinho: decidido, inteligente, perspicaz, e consegue interferir na vida dele na mesma
maneira que Capitu: Bentinho passa a contar com dois aliados para tira-lo do seminário.
Bentinho, em um determinado momento converte em dúvidas e dissabores, a
amizade entre Capitu e Escobar, de modo a se insinuar, numa perspectiva paranoica, um
triângulo amoroso entre eles. É pela voz de Bentinho, que imaginariamente Capitu e Escobar
estão próximos, e se envolveram fisicamente. A priori, Capitu não confia em Escobar e até
questiona Bentinho por lhe confiar segredos:

-Escobar é muito meu amigo, Capitu!


-Mas não é meu amigo.
-Pode vir a ser; já me disse que há de vir cá para conhecer mamãe.
- Não importa; você não tem o direito de contar um segredo que não é só seu, mas
também meu, e eu não dou licença de dizer nada a pessoa nenhuma (ASSIS,
Cap.LXV, p.148).

Fica expresso nesse dialogo que Bentinho, confia plenamente tanto em Escobar
quanto em Capitu; a aproximação de ambos só ocorre quando Bentinho vai estudar Direito e
Escobar, já negociante do ramo de café, serve com intermediário na troca de cartas entre
Bentinho e Capitu:
[...] Ele foi o terceiro na troca de cartas entre mim e Capitu. Desde que a viu
animou-se muito com nosso amor. [...] Nem depois de casado suspendeu o
obséquio... Que ele casou, - adivinha com quem, - casou com a boa Sancha, amiga
de Capitu... (ASSIS, Cap.XCVIII, p. 199).

Casados, Bentinho com Capitu e Escobar com Sancha, vivem cada vez mais
próximos; no entanto, o narrador-personagem sempre enfatiza a importância tanto de Capitu e
Escobar na sua vida:
[...] mas as cautelas que Capitu empregou para o fim de descobrir-me um dia o
cuidado de todos os dias. Escobar também se me fez mais apegado ao coração. As
nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais
intimas. (ASSIS, Cap.CVII, p.212)

Os laços de amizades paulatinamente vão se estreitando; a filha de Escobar e Sancha


recebe o nome de Capitulina, em homenagem a Capitu e Bentinho coloca o nome do seu filho
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de Ezequiel em homenagem a Escobar. Embora a desconfiança começa a rondar nosso


narrador-personagem ao notar semelhanças entre o seu filho Ezequiel, acaba tomando
proporções enormes no enterro Escobar ao flagrar o olhar de sua esposa para o amigo morto:
[...]Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa,
que não admira lhe saltasse algumas lágrimas poucas e caladas...As minhas
cessaram logo. Fiquei a ver as delas; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto
para a gente que estava na sala (ASSIS, Cap.CXXIII, p.236).

A partir desse episodio, o narrador-personagem passa a acreditar que de fato, foi


traído pela sua esposa com seu melhor amigo; e o filho, não sendo seu também sofre o mesmo
processo de rejeição. Bentinho não mata fisicamente Capitu e Ezequiel, mas a rejeição e
desprezo que lhes amputam, o levam até as últimas consequências; manda-la exilada para
outra cidade, causa-lhe um gozo mortífero e, sem nenhum sentimento de remorso, passa dali
em diante, a conviver com o fantasma da traição,

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bentinho sempre teve sua vida direcionada pelos outros; no decorrer de sua vida, não
consegue estabelecer relação com o seu Outro e passa a viver uma dependência, como sujeito,
do outro. Bentinho estabelece com da mãe, Capitu e Escobar suas relações mais intimas nas
quais, ele relaciona seus sentimentos. Criado só com a mãe, ele passa a tê-la como modelo de
mãe dedicada e de esposa fiel, tendo assim sua imagem como sendo de perfeita conduta.
Capitu, por sua vez, é sua amiga mais antiga e seu amor de adolescência e projeta nela seu
desejo transferencial que, inconscientemente, nutria pela própria mãe. Em Escobar, Bentinho
descobre um sentimento que sai de dentro dele, que não nasce com a amizade, mas sim como
se já existisse; Escobar tem sua figura relatada como alguém que nasce da alma e coração de
Bentinho, e que, aquele, seria objeto de desejo de Bentinho, não no sentido sexual, mas de
personalidade, ou seja, uma projeção do seu próprio Eu, o Outro que sempre buscou dentro de
si.
Nas relações construídas por nosso narrador, vemos reflexos psicóticos, fruto de sua
falta de confiança construída ao longo de uma infância de castração, Ao procurar no olhar a
Capitu o mesmo sentimento demonstrado pela sua mãe ao pai morto, e, ao vê-la demostrar o
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mesmo sentimento, através do olhar, para Escobar morto, tem como uma desconexão com sua
esposa; quando Capitu olha para seu amigo morto, desperta o fantasma da traição, que passa a
angustiar Bentinho pois, inconscientemente encontra naquele olhar o amor que se havia
perdido, ou que jamais tivesse possuído. A agonia da traição e a dúvida provoca fraturas
irreparáveis em Dom Casmurro, tornando-o um homem fechado, que perdeu seus amores para
a morte e para dúvida, passando a viver seus dias com a alma endurecida pois nunca soube
liberta-se da incerteza.

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ESCRITAS DO CORPO FEMININO: UMA POÉTICA DA LIBERDADE EM


VIOLETA FORMIGA

Rayana Benicio de Oliveira85 | rayanabenicio@yahoo.com.br

Nadja Claudinale da Costa Claudino86

INTRODUÇÃO
Conhecer a vida de alguém através de relatos, crônicas e reportagens é uma tarefa
complicada que exige bastante cuidado com o tratamento das fontes, pois os discursos são
construtores dos sentidos da “verdade”, ao passo de normatizar as identidades. Por isso,
pensar na relação das mulheres com a linguagem é ultrapassar as barreiras rompidas pelas
mulheres em meados da década de 60 e 70 pleiteando direitos no âmbito público,
deflagrando um processo de afirmação identitária. A poética será a via produtiva do
reencontro do desejo de enunciar sentidos de libertação feminina. A arma dos poetas é a
palavra, e neste sentido corta, transforma, possibilita meios de reflexão. Desta forma a
escrita é a subversão da ordem estabelecida.
Nesses discursos não é difícil notar o silêncio sobre as histórias plurais das
mulheres e de forma mais intensa percebemos o silêncio de exaltação do trabalho das
poetas. Foi a partir dos feminismos que as mulheres passaram a desconstruir narrativas que
excluíam suas vidas da história nacional buscando produzir novas cartografias existenciais,
dessa maneira este texto propõe questionar as relações de poder na sociedade, em detrimento
da hegemonia das forças, e das relações de alteridade entre os seres humanos.
Diante desse contexto de descaso ao trabalho literário feminino, a credibilidade
atribuída, em geral, ao trabalho realizado por mulheres nas sociedades ocidentais é um fato
recente e ainda constitui uma problemática que requer a preocupação das estudiosas

85 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB. rayanabenicio@yahoo.com.br


86 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB. nadjaclaudino@yahoo.com.br
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feministas que se empenham em desconstruir o discurso falocêntrico e as relações de poder


na sociedade. Essas escritas, longe de relatos confessionais, ou exaltação da figura feminina
buscam revelar sentidos escondidos outrora, disfarçados diante do contexto de completa
dominação social. Questionando a força e linguagem estabelecida culturalmente frente a um
processo de marcas de poder e da violência impressa em seus corpos.
As mulheres foram constituídas como alvo privilegiado da agressão masculina,
devido ao corpo que impõem um lugar no mundo. Este corpo é reflexo das marcas de poder
e dos mecanismos de controle que delimitam os corpos em respectivos lugares sociais e
morais. Dessa maneira, as temáticas como cotidiano e sensibilidades femininas não fazem
parte das questões sociais valorizadas num universo no qual os temas eleitos pela
masculinidade é que estão na ordem do dia e assim as poesias de Violeta Formiga caíram no
esquecimento, como se não tivessem importância, como se não merecessem ser lembradas,
nem discutidas.
E mesmo diante de tantos problemas sociais e domésticos, Violeta Formiga, moça
humilde do interior paraibano, conseguiu enfrentar os obstáculos dessa sociedade patriarcal,
graduando-se em filosofia, psicologia e sendo escritora e poeta. Neste sentido ela escapa das
redes biopolíticas que aprisionavam seu corpo à figura de mãe e esposa. Esta rede de poder
forma um tecido espesso, responsável pela estratificação social e as unidades individuais
que fazem da palavra mais uma forma de estratégia de controle. Essas relações de poder são
feitas através de cálculos precisos diante da necessidade de combater as táticas de
resistência, que tentam burlar a ordem dominante. Neste sentido a noção foucaultiana da
história da sexualidade fomenta discussões complexas:
“A sexualidade é um nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não a
realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas a grande rede da
superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres , a
incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das
resistências encadeiam-se uns aos outros, segundo estratégias de saber e poder.” (
Foucault, 2014, p. 115)

Em outras palavras o dispositivo funciona como uma estratégia de controle que


depende de saberes específicos.
Foucault comenta que os discursos são controlados por formas de poder e
repressão, dessa forma todas as palavras proferidas por nós são controladas, selecionadas
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organizadas e distribuídas. E por isso a escrita feminina tornou-se sinônimo de resistência.


Os discursos são uma busca constante pelo poder, lançados no intuito de controlar o que
anunciam, os discursos femininos foram rejeitados no sentido de excluir as mulheres de uma
consciência política, já que consigna para as mulheres a possibilidade de construir um
conhecimento de sua subjetividade e dos outros, voltado para um compromisso estabelecido
com a linguagem em relação ao papel afirmativo do gênero feminino em suas intervenções
no mundo público. Logo os poemas são instrumentos e efeito do poder veiculando e
produzindo significados, assim a escrita feminina busca criar um conjunto de brechas para
escapar do controle masculino, suscitando um momento de resistência.
A produção escrita feminina, especialmente a literária, conhece de perto esse
fato. A indiferença ainda existe no universo literário quando se compara uma obra literária
de autoria feminina com uma masculina. Razão disso, a formação de uma lista de escritores
consagrados constituídas essencialmente por homens brancos, isto é, o cânone literário. Por
isso, Violeta torna-se uma mulher que representa muitas histórias de outras mulheres, que
tem e tiveram suas vidas aprisionadas em redes tracejadas por silêncios, dores e violência
empregada em seus corpos. E assim, ela assume um corpo que tende a falar de muitos outros
corpos, que morreram nas mãos masculinas. Corpo dócil, inútil, domesticado, puro,
invisível, imposto a desempenhar relações pertinentes ao desenvolvimento da ordem social.
Esposa e mãe, papéis importantes mais submissos à figura do pai e marido. Dessa forma
perguntamos que direito tem um sexo de designar uma identidade sobre um corpo? Corpo
impuro, corpo dócil, corpo afetuoso, corpo feminino, corpo representado pelo seu
pertencimento ao homem.
Percebe-se assim que a diferenciação entre os sexos se instala em formações
sociais históricas, como um processo político, assegurando e transmitindo poder,
justificando e aprovando o uso da força e da violência no controle das mulheres. Tania
Navarro Swain observa que o domínio do Patriarcado, realiza-se como um tripé, que
instituem corpos, ordena e classifica os seres segundo sua genitália. A construção da
diferença sexual é, portanto, um processo político que produtor de diferenças,
desigualdades, cria hierarquia e assimetria, permite e estimula o uso da violência

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institucional e social, centradas na valorização do sexo masculino e desvalorização do sexo


feminino.
Este trabalho, não tem, como seria esperado, uma conclusão, por isso não
pretendemos oferecer respostas, mas levantar discussões e hipóteses. A linguagem não é
apenas expressão de uma individualidade, mas como o lugar de construção da subjetividade e
por isso tudo o que enuncia nos versos, é singular e plural ao mesmo tempo. Neste sentido a
linguagem é o lugar onde as formas de organização e desdobramentos políticos são definidos
e contestados. A escrita é política e completa de sentidos, esse ato corresponde a se render a
um destino, a completar-se de saber e assim perpassar conhecimento.
Levantar essas discussões sobre uma escrita feminista é um forma de resistir,
mesmo que para isso tenhamos que eliminar os discursos sexistas que entendem a mulher
como propriedade masculina. Pela intervenção da memória, construímos uma narrativa que
liberta as mulheres do estereótipo. Cercada de constantes perguntas, refazemos nossas
certezas a todo o momento, levando novas interrogações ao nosso objeto. Logo, pretendemos
problematizar a questão da “identidade” da mulher, das representações do corpo nessa
identidade aprisionada e finalmente pensar na construção do sujeito lírico e o sujeito
representado no corpo do texto.
Suzana Bórneo (1994) comenta que embora a literatura seja reconhecida como
manifestação artística, até pouco tempo atrás, a sexualidade da escritora ao ser afirmada,
trazia consigo uma marca de inferioridade como na conotação geralmente atribuída a poetisa.
Baseado no discurso que reconhece a literatura como manifestação artística masculina, o
trabalho do poeta é perceber antes dos outros a efemeridade do tempo, nos direcionando para
a construção de uma identidade que se pauta no eixo da diferença. O questionamento da
condição feminina envolve os valores sociais e culturais, e por isso possuem certa dificuldade
para mudanças, pois foram responsáveis por definir o lugar da mulher na história. Com a
utilização da poesia objetivamos mergulhar na trajetória das histórias das mulheres buscando
retratar sua vida e suas contribuições para a modernização do espaço. E dessa forma
perguntamos, quais os preceitos para receber reconhecimento artístico e intelectual? Como
alguém que teve uma participação fundamental na lliteratura paraibana e no enfrentamento da
violência doméstica no estado da Paraíba permanece na obscuridade? Por isso se nota a falta
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de uma fortuna crítica sobre a autora, porque seu nome foi tão negligenciado?
Marina Colansanti (1997) comenta que ao longo de muitas décadas, as mulheres
foram as grandes narradoras das memórias milenares patriarcais e dessa forma negligenciaram
sua existência. E, no momento que se tornaram narradoras de suas próprias histórias, seu
próprio texto, passa a representar um perigo constante mediante ao domínio do discurso
exercido pelos homens.
Feministas como Margarete Rago e a Tania Swain têm defendido que o corpo impõe
uma identidade ao indivíduo, conduzindo-o a exercer determinadas funções sociais, morais e
comportamentais. Dessa forma, observo o poder como essencialmente repressivo,
funcionando em cadeia, situando-se por todos os lados, dominado por poucos. Seu
funcionamento assemelha-se a uma rede, onde todos os indivíduos são capturados por ele e da
mesma forma a sexualidade. É esta a primeira ideia que avanço, para entender como foram
elaborados os discursos poéticos de Violeta de Lourdes Formiga Maia e assim passo de
imediato a um poema que represente um ponto de partida.
A porta fechada
a sala deserta,
silêncio.
E eu estava por fora
não percebia a dimensão
da vida
infinita no ângulo
da espera,
circulando na esfera
onde as pessoas sentem
da ilusão da esfera
que as portas se abram
magicamente,
que as pessoas não se façam
ausentes,
na importância dos fatos.
Mas a porta
magicamente não se abriu
e ninguém dela, por ela
surgiu
e eu me fui no espanto
de porta fechada,
na sala deserta.

Silêncio.
(FORMIGA, 1983, p.18)

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A experiência das mulheres com a escrita é diferente da escrita e leitura masculina,


iniciando uma rede de rupturas na Paraíba. Dessa literatura, emergem coleções de
subjetividade singulares que nos levam a refletir sobre os modos de existência feminina, a
violência inscrita em seu corpo e as formas de resistência dessas mulheres buscando a
afirmação da autonomia.
A poesia de Violeta Formiga nos servirá de suporte de leitura para construção da
identidade sexual e social da mulher. Desse modo, buscaremos refletir através de alguns de
seus poemas, o lugar de passividade reservado às mulheres, e de forma mais específica na
vida da autora. Pra tanto, algumas palavras do seu poema, foram colocadas em negrito, pois
acredito que as mesmas carregam grande representação do lugar de atuação da feminilidade
compulsória, e tais teorias instauradas e construídas por homens estabeleceram um discurso
de restrição da liberdade. Sobre o aprisionamento feminino Tania Navarro Swain87 comenta
que há quatro ou cinco séculos, no Ocidente, atribuiu- se um modelo à figura feminina. Como
uma forma singular de representação, a capacidade reprodutora da mulher, tornou-se com o
passar dos anos, o destino natural e obrigatório das mesmas. Esta imagem ligada às
características biológicas das mulheres foi amplamente difundida pelos diversos discursos da
sociedade tornando-as figuras condicionadas a o lugar de mãe. Seres moldados para o âmbito
privado, pois o referente é sempre o masculino, branco, de preferência abastado; o indivíduo
dominador é sempre o que elege o discurso.
Já em 1949 Simone de Beauvoir em sua obra denominada de “Segundo sexo” já
questionava a ideia da feminilidade obrigatória, pois as definições do ser mulher delimitam o
espaço de atuação das mesmas. Mãe e esposa, sexo domesticado, espaço privado, são estes os
lugares que as mesmas devem permanecer, assim as mulheres só realizariam seu destino
natural concedendo os desejos masculinos e gerando filhos. O silêncio é a palavra
fundamental que representa a educação feminina. Reflexo de uma herança binária e,
sobretudo, hierárquica. Condicionadas a representarem o papel de esposas, muitas mulheres
viam na escrita a melhor forma de expressar sua enorme paixão pela vida. Buscando refletir
seus sentimentos e almejando um espaço de liberdade, Violeta Formiga encontrou na poesia

87 Professora do Departamento de História da UnB, doutora em história pela Sorbonne / Paris III.
http://www.tanianavarroswain.com.br/chapitres/bresil/utero.htm
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não apenas a expressão de sua individualidade, mas o lugar de construção da subjetividade.

Minha vida
por uma única
palavra:
Liberdade.
(Então eu
serei feliz
como os anjos
que ainda não
nasceram).
(FORMIGA, 1983, p.23)

O poema “INTEIRA”(Sensações, 1983) é um esclarecimento sob uma de sua maiores


vontades, a liberdade. E assim, Violeta desafia o poder patriarcal, por não acreditar em um
conhecimento de si, fundado no medo e na submissão. Sua marca foi questionar através de
suas poesias, as antigas formas hierárquicas, ousando difundir, a constituição de um novo
modo de experiência de si, corajoso, ousado, independente e livre. Pois toda discursividade
produzida pelo sujeito feminino carrega consigo um sentido, que assumidamente ou não,
carrega possibilidades de construção da consciência feminista, consciência que é, sem dúvida,
de natureza política.
Levantar essas discussões é um ponto de resistência, no intuito de colaborar na
intervenção da memória feminina, que há muito tempo, esta aprisionada aos discursos
masculinos. Entretanto, as relações humanas, ainda são forjadas em um imaginário discursivo
patriarcal, que criam a todo momento origens universais para melhor justificar sua
manutenção. Dessa forma entendemos sua poética não como relatos confessionais, mas uma
forma de escapar do controle, escapar das falas reservadas as mulheres e construir discursos
que questionam a força e os modos de linguagem estabelecidos. Para Michel Foucault o
discurso não é simplesmente o que traduz as lutas, mas aquilo pelo que se luta, “é o poder
pelo qual queremos nos apoderar” ( FOUCAULT, 1996, p. 10). Pois o autor é aquele que dá
significado. Dessa forma a escrita de Violeta passa a ser encarada como expressão de seus
sentimentos.
Violeta Gonçalvez de Lourdes Formiga nasceu na cidade de Pombal, no dia 28 de
maio de 1951. Vivendo sua infância e adolescência no interior paraibano. Mudou-se para João
Pessoa, capital paraibana, afim de continuar seus estudos no intuito de cursar psicologia, na
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Universidade Federal da Paraíba. Como um sonho de liberdade possível, a educação


representa um alargamento para a atuação feminina e a quebra de lugares fixos a identidade
das mulheres representando a fuga da biopolítica88.
Essa história que estamos tecendo, é singular e plural ao mesmo tempo, reflexo de
uma sociedade machista e misógina que mantém o discurso sobre controle e coerção, neste
cenário a literatura produzida por mulheres foi por muito tempo ignorada, pois havia o medo
da diminuição do domínio, motivado pela perda do discurso que garantiria poder aos homens.
O regime de domesticação e normatização imposto às mulheres, naqueles anos, foi
profundamente marcado pela nítida distinção das identidades sexuais. A literatura feita por
mulheres é um fenômeno que ganhou maior projeção nos últimos anos do século XX. Pois até
então o espaço das mulheres era reservado ao interior de sua casa. Michelle Perrot (2005)
observa que o corpo feminino está no centro de todas as relações de poder, sua aparência, sua
beleza, suas formas, suas roupas, seus gestos, seu sorriso, suas lágrimas, tudo é motivo de
suspeita. Suspeita que visa seu sexo, suspeita que busca aprisionar o corpo feminino para que
não o olhem. “O corpo das mulheres não lhes pertence.”( PERROT, 2005, p. 447) Em casa ele
pertence ao seu pai, quando casa pertence ao seu marido. “Invisibilidade” que faz parte da
história das mulheres, ou dos lugares reservados a elas historicamente, lugar que Violeta de
Lourdes Formiga Maia não aceitou ocupar. As mulheres possuem um corpo, mas não falam
deles, possuem uma vida, mas não possuem o domínio dela, pois o pudor é a característica
essencial feminina, devido às forças de poder investidas em seus corpos. Condicionadas a ser
submissa aos homens, a conveniência ordena às mulheres que sejam discretas, que
dissimulem suas formas: o peito, as pernas, a cintura, são objetos de censura. Mediante a isso
a mulher casada, deve mostrar descrição nos gestos, não deve erguer a voz e deve conter suas
emoções. O sorriso é proibido, o olhar é vigiado e os sentimentos devem ser escondidos.
Dessa forma, podemos perceber que não há apenas um, mas diversos poderes no corpo social,
multiplicados e passados por todos os grupos.
Entre as palavras e o silêncio, Violeta preferiu falar silenciosamente em meio a um
processo de escrita, construindo uma série de discursos que visam à liberdade feminina. Lúcia

88 Entende-se bio-poder como um conjunto de práticas e discursos consolidado a partir do século XIX, que
através das técnicas de controle, modela o corpo da mulher ao homem, marcado pelo assujeitamento.
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Helena (2015) explica que poética feminista busca estabelecer uma relação de consciência e
conscientização em relação ao papel afirmativo do gênero feminino. Usando a palavra como
recurso transformador do lugar a que se referia, uma boa poesia cria modelos de sensibilidade,
mergulhando na linguagem no intuito de regenerar sentimentos e sentidos que envolvam os
leitores. Seus poemas quando não falavam diretamente de liberdade, exaltavam a figura dos
pássaros como símbolo de independência que tinham no seu vôo a representação da liberdade
que sua poética buscava.

O passáro
aparentemente acorrentado
voa firma
voa
nas asa do homem
feito cavalo alado
voa
extraindo da terra seca
a semente
pincel/sangue
carne/papel
rasga o véu
sai do ovo
e legitimamente
voa

A produção de autoria de mulheres sempre foi excluída, por várias razões, dentre elas
o puro preconceito de uma sociedade atrelada a valores patriarcais que reservava à mulher o
papel de esposa e mãe. Assim, sua produção sempre foi avaliada como deficitária em relação
à norma de realização estética, vista com aspectos masculinos. Dessa forma por muito tempo
a literatura dessas autoras, foi esquecida, apagada, relegadas ao encobrimento da memória
social. A partir da década de 1960 a irmandade feminista emergiu de forma mais intensa no
texto, deflagrando um processo de afirmação identitária.
Para um estudo depositado de valor cultural, necessita-se de análises que não excluam
a realidade diferenciada entre homens e mulheres, trata-se de avançar para uma história capaz
de perceber a complexidade dos processos sociais. Logo, os estudos feministas denunciam o
caráter particularista, ideológico, racista e sexista existente na história dos indivíduos. O
estudo dos sujeitos é considerado efeito das determinações culturais, inseridos num campo de

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complexas relações sociais, culturais e sexuais. Logo, a mulher deve ser pensada como uma
identidade construída para a projeção em uma sociedade patriarcal, condicionada as práticas
disciplinadoras que impedem seu desenvolvimento e liberdade.
O conceito de gênero aqui será entendido a partir da elaboração de Tereza Lauretis
(1994), sendo um conjunto de construções socioculturais que somado as representações,
identidades que foram historicamente conflitantes, são assumidas pelos sujeitos dentro da
sociedade, onde o feminino aparece atravessado por múltiplos discursos, posições,
significados e contradições. Coadunamos com Joan W. Scott (1990) que observa a categoria
gênero entre duas proposições fundamentais: “1)O gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseada nas diferentes percepções entre os sexos e 2)“o gênero é uma forma
primária de dar significado às relações de poder”. (1990:6) Logo, a inferiorização da mulher
aparece como resultado de uma essência atrelada ao seu corpo “deficiente”: fêmea, espírito
fraco e superficial, exigindo vigilância constante e a domesticação de seu ser, logo ao decorrer
deste trabalho mostraremos que por trás das divisões entre os sexos há um conjunto de
discursos responsáveis pela construção dos estereótipos dos indivíduos.
No nível das interrelações e nas relações de gênero em particular, o desafio
constante é manter os poderes que definem as posições e práticas nos relacionamentos. Pois, é
no âmbito da família que as disputas de gênero tomam-se ainda mais acirradas. Para Tereza
Lauretis (1994), o feminino aparece como uma construção atravessada por múltiplos
discursos, posições, significados e contradições. Para a autora – o casamento – aparece como
um discurso de controle, a partir de sua construção unificadora de vocação inata a todas as
mulheres, alvos constantes da vontade do outro, nesse cenário suas vontades e desejos são
esquecidos, pois estão submersas ao poder nelas depositado. Logo, damos a tais ocorrências a
nomeação de violência, porque notamos que esses comportamentos transgridem os direitos
pessoais dos indivíduos.

“A educação, pelo contrário, que é a formação dos bons hábitos e produz boas
esposas, mães e donas de casa parecem essencial. As virtudes femininas de
submissão e silêncio, nos comportamentos e gestos cotidianos, são centrais nela. E,
acima de tudo, o pudor, a honra feminina do fechamento e do silêncio do corpo.”
(PERROT, 2003, p.28)

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A organização do cotidiano continua a ser o grande teatro da vida das moças e a base
de sustentação do seu poder, o local de seu trabalho, de seu sofrimento, mas também de sua
alegria e satisfação pessoal. Nessa perspectiva apenas o espaço privado, a família, o lar, os
filhos são o espaço adequado para as moças. Mediante essa educação machista, levantar tais
discussões em torno das palavras é um ponto de resistência, ultrapassando as barreiras da
linguagem. Nélida Piñon no conto I love my husband, critica a atuação da vida feminina
apenas no espaço privado, cuja a matriz temática do texto é o papel devotado da mulher ao
casamento e ao marido, em nome dos quais rejeita seus mais secretos sonhos de liberdade, de
espontaneidade, de autonomia. Cenário por ela abalado, já no título do poema, eu amo meu
marido, seu texto é uma paródia comportamental feminista, tudo o que as mulheres não
devem seguir, ou ao contrário assumirão um lugar de submissão absoluta aos homens. Este é
sentido em torno da poética feminina, promover um reencontro com a personalidade de
muitas mulheres, é este um processo de afirmação identitária. Para tanto a poesia de Violeta
Formiga, tem muito a dizer as próximas gerações, pois o poema é a síntese, é a representação
de algo em poucas palavras. A poesia transforma, possibilita e cria novos sentidos com uma
intenção explícita de apontar alguns paradoxos existentes na sociedade.

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ESCRITOS DE E PARA MULHERES NO SÉCULO XIX: A REPRESENTAÇÃO DA


MULHER NO JORNAL DAS SENHORAS

Dayanny Deyse Leite Rodrigues89

Dêis Maria Lima Cunha Silva90

O Jornal das Senhoras tem vontade e desejo de propagar a ilustração


e cooperar com toda a sua força para o melhoramento social e
emancipação moral na mulher” (Jornal das Senhoras, 01 de janeiro
de 1852)

Nesse ensaio, pretendemos analisar os escritos destinados e produzidos por mulheres


nos séculos XIX, e compreender as representações das mulheres presentes no Jornal das
Senhoras, periódico que surgiu em 1852, na cidade do Rio de Janeiro, com circulação até
1855. Fundado pela feminista argentina Juana Manso, O Jornal das Senhoras tratava de
temas como belas-artes, literatura, moda, e, buscava despertar a consciência feminina para
que estas reivindicassem melhores condições educacionais e acesso ao mercado de trabalho.
Durante toda segunda metade do século XIX vários jornais dirigidos por mulheres passaram a
circular pelo Rio de Janeiro e por todo Brasil, tais como O Bello Sexo, O Espelho, Jornal das
Moças, Jornal das Famílias.
Desde sua gênese a imprensa foi e é um dos principais meios de circulação de ideias.
No Brasil, desde a implantação da Imprensa Régia em 1808, a imprensa em si teve papel
importante dentro da vida política, pois era por meio dela que ocorria os principais embates
eleitorais. Com a vinda da família Real para o Brasil, parte do que era hábito cotidiano da
corte portuguesa, foi trazido para a então colônia. Assim, as primeiras tipografias chegaram

89
Graduada em História pela Universidade Federal da paraíba (2014). Especialista em Gênero e Diversidade na
Escola pela Universidade Federal da paraíba (2015). Mestranda em História pela Universidade Federal da
Paraíba − UFPB. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior − CAPES. Email:
dayannydeyse@hottmail.com.
90
Graduada em Pedagogia pela Universidade do Vale do Acaraú – UVA (2002) e em História pelas Faculdades
Integradas de Patos – FIP (2012); Pós-graduada em Psicopedagogia Pelas Faculdades Integradas de Patos – FIP
(2009). Pós-graduada em Fundamentos da Educação: Práticas Pedagógicas Interdisciplinares pela UEPB (2014).
Professora de História na Rede Estadual de Ensino-PB. deis.maria@hotmail.com
390
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ao Brasil.
De acordo com Sousa (2003), juntamente com o crescimento do comércio, a
invenção da tipografia foi umas das responsáveis pela explosão da comunicação. O sucesso da
imprensa se deveu ao aperfeiçoamento contínuo das técnicas de tipografia, à diminuição dos
custos e ao aumento das tiragens, que acabou estimulando a leitura e incentivando a instrução.
Ocupando um lugar social de destaque no Brasil durante todo o século XIX, a
imprensa assumiu o lugar de porta voz social, político, cultural e econômico da sociedade. Por
meio de seus diferentes gêneros, dentre eles jornais, livros, revistas, almanaques e folhetins, a
imprensa se configurou enquanto portadora de diferentes representações do passado,
carregando consigo marcas de distintas culturas políticas que marcaram a história do Brasil.
“Acompanha-se, assim, uma tendência da historiografia recente, que procura reconhecer que a
imprensa é mais do que um registro de acontecimentos da época. Suas informações não
devem ser tratadas como verdades, mas como representações acerca das questões de seu
tempo” (KNAUSS, 2011. P. 08).
No entanto vale destacar que o processo de aceitação da imprensa periódica enquanto
fonte história é um processo que ocorreu de forma não tão pacífico e linear. Embutido por um
fazer histórico ancorado na descrição de documentos oficiais, durante o século XIX a
imprensa sofreu duros golpes ao ser adotada enquanto contribuidora da história, pois era
considerada parcial e subjetiva, fugindo das características que deveriam portar um
documento histórico. O processo de desmistificação desse pensamento ocorre em diferentes
espaços, desde a Escola dos Annales até o campo do Materialismo Histórico, sendo
intensificado, apenas a partir da década de 1970. Assumindo uma postura mais flexível e
interdisciplinar, a História passou por um processo de alargamento em relação às fontes,
métodos, objetos e perspectiva91, abraçando para si a imprensa periódica enquanto grande
portadora de representações. Na atual conjuntura, o historiador não pode mais se privar de
fazer uso dessa vasta documentação, tendo em vista a grande quantidade de impressos
conservados e disponibilizados, assim como a grande importância do teor que os mesmos

91
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. A 3ª Geração dos Annales: cultura histórica e memória. In: Cláudia Engler
Cury; Elio Chaves Flores; Raimundo Barroso Cordeiro Jr Cultura (Ogrs). Histórica e Historiografia- Legados e
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carregam consigo.
Inserida no contexto do século XIX, a imprensa fazia parte de uma série de
instituições que configuravam e regulavam a vida social das pessoas, fomentando um novo
espaço público para o debate. Nessa conjuntura os homens compunham esse espaço público,
enquanto às mulheres eram atribuídas ao espaço privado. Como afirma Telles (2006), o
contato com a imprensa era uma forma das mulheres ultrapassarem as barreiras que
separavam o espaço público do privado, inserindo-as assim, mesmo que de forma indireta,
nos espaços públicos e seus embates.
Em um país com uma alta taxa de analfabetismo universal, as mulheres não deveriam
nem podiam priorizar a instrução, voltando-se para o aprendizado dos afazeres do lar. No
entanto, apesar de vários obstáculos, desde o início do século XIX, o Brasil contava com uma
produção periódica destinada às mulheres, sendo o primeiro jornal escrito e dirigido por uma
mulher fundando em 1852, o Jornal das Senhoras. Nesse sentido Rabay e Carvalho (2010)
destacam que o direito de acesso à educação foi umas das primeiras bandeiras de lutas
levantadas pelos grupos de mulheres já no século XIX.
De acordo com Carlos Costa (2012), o caráter da imprensa mudou na passagem para
a segunda metade do século XIX. Seguindo uma conjuntura de mudanças políticas e sociais,
as décadas posteriores a 1850 se configuraram enquanto momentos de inflexão de um país em
formação, marcados por fortes debates em torno do fim do tráfico de escravos, movimentos
abolicionistas, governo de D. Pedro II e suas características. Knauss (2011) afirma que a
liberdade de expressão foi a grande marca da imprensa brasileira da segunda metade do
século XIX, dando um ar mais despreendido aos periódicos, que não se prendiam apenas a
assuntos da política oficial, mas juntamente com esta, tratava de temas variados. “Tornou-se
um espaço fundamental da manifestação de ideias, opiniões e gostos”. (KNAUSS, 2011. P.
08)
Nesse contexto surgiram também novas demandas a fim de atender a uma
aristocracia emergente. Regras sociais são importadas da Europa, juntamente com roupas e
comida. Os trajes franceses eram os preferidos das mulheres. Vale ressaltar que aqui se fala de
um determinado grupo de mulheres, aquelas pertencentes à classe média alta. Carlos costa
(2012) salienta que essas novas demandas geravam grandes impactos sociais, por elas
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demarcarem o lugar do “outro”, o daquele que não era atendido por elas.
Nesse cenário de valorização do que trazido da Europa para o Brasil, as regras
sociais se estabeleceram como reafirmadoras de uma divisão social e sexual do trabalho,
determinando o público como masculino e o privado como feminino, nascendo a ideia da
mulher como “rainha do lar”. Ultrapassar essa barreira continua sendo uma luta diária em
pleno século XXI.
É preciso ressaltar o papel fundamental desempenhado pelos produtos culturais, em
especial o Romance, na cristalização da sociedade moderna. Escrita e saber
estiveram ligados ao poder como forma de dominação ao descreverem modos de
socialização, papeis sociais e até sentimentos esperados em determinada situação.
(TELLES, 2006. P. 401 e 402)

Em contrapartida, também foi no mesmo século XIX que surgiram diversos


movimentos sociais, dentre eles o Sufragismo. Tendo sua origem nos processos de
industrialização e modernização, o movimento sufragista nasceu na Inglaterra e nos Estado
Unidos da América na segunda metade do século XIX. De acordo com Rabay e Carvalho
(2010), o movimento tinha como principal bandeira de luta o direito ao voto feminino, mas
também reivindicava outras demandas como o direito à educação. A escritora inglesa Mary
Wollstonecraft foi uma das precursoras do movimento. Nos Estados Unidos Susan Anthony
se destaca na luta e no Brasil o Principal nome foi Bertha Lutz, uma das fundadoras da
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino em 1922.
Rabay e Carvalho (2010) destacam que a imprensa foi um dos instrumentos mais
utilizados pelas mulheres que compunham o movimento sufragista aqui no Brasil, sendo sua
maioria pertencentes a classe média, tendo a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino,
seu próprio folhetim informativo.
Telles (2006) e Oliveira (2011) consideram o século XIX como o século do romance,
tendo este gênero recebido muita influência dos folhetins, espaço onde os escritores
ensaiavam suas narrativas e podiam atingir um amplo público, dentre eles as mulheres.
Apesar de considerado uma leitura perigosa para as mulheres, os romances eram muito lidos
pelas mulheres da classe média. Vale destacar que esses escritos representavam a mulher em
dois extremos. De um lado a mulher honrada e rainha do lar, pronta para o casamento e para
servir a seu pai e depois a seu marido, ajudante do marido e criadora dos filhos; do outro, a

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adúltera, a pecadora que fugia às regras e deveria ser banida da sociedade.


Nesse contexto, de acordo com Oliveira (2011), apesar de estabelecido a noção de
público e privado como dois espaços opostos, o acesso à leitura e à escrita, seja de livros,
revistas ou jornais, demonstra certa quebra da barreira que separava as duas esferas. De
acordo com a historiografia, não foram muitas as mulheres escritoras no século XIX, mas
algumas delas se destacam, dentre elas Nísia Floresta, que em 1832 traduziu o livro de Mary
Wollstonecraft, Direito das mulheres e injustiça dos homens.
Nísia Floresta, pseudônimo de Dionísia de Faria Rocha, casou-se em 1823, aos
13 anos de idade. Deixou seu marido no ano seguinte e foi repudiada pela família. Como
afirma Telles (2006), Nísia foi figura atuante, defendendo a ideia de igualdade entre homens e
mulheres, assim como o direito à educação às mulheres. Outra escritora reconhecida pela
historiografia foi Eurídice Eufrasina. Esta tinha como grande bandeira de luta o direito de
participação feminina na vida pública do país.
Narcisa Amália foi mais um grande nome feminino atuante no cenário da
escrita do século XIX. Escritora e jornalista, Narcisa pertencia a classe média carioca, filha de
pai e mãe professores. Casou-se muito cedo, aos 14 anos de idade, mas logo se separou do seu
conjugue, sendo atacada e mal vista por parte da sociedade. Em 1870 escreveu o romance
Nebulosas, assim como também atuou em diferentes periódicos da época, como nos jornais O
Resende, Diário Mercantil Paulista e A Família.
Vale destacar que por mais que algumas mulheres conseguissem ultrapassar a
barreira do cenário privado por meio dos escritos, produzindo romances e atuando em jornais,
esta situação eram casos que fugiam a regra. Como salienta Telles (2006), a própria crítica
literária feita aos escritos femininos era diferenciada daquelas feitas a obras produzidas por
homens. “Nota-se que para os críticos, as escritoras deveriam permanecer no seu lugar, aquele
lugar que lhe era atribuído e se situava bem longe da esfera pública com suas lutas e batalhas
para modificar a sociedade” (TELLES, 2006. P. 420).
Nesse segundo momento do século XIX, mais especificamente após 1870, muitos
periódicos defendiam a ideia do direito à educação feminina, como a Revista Mensageira, os
jornais O Sexo Feminino e o Parteson. A questão do voto não era tratada diretamente, mas
esses mesmos periódicos noticiavam as lutas sufragistas em outros países, inclusive da
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América Latina. Os periódicos pretendiam adentrar o lar, assim não trazia temáticas
polêmicas de forma escancarada, ao mesmo tempo que não se omitiam por completo delas.
Telles (2006) destaca que o campo da profissionalização começara a se abrir para as
mulheres.
Ainda na primeira metade do século estudado, surgiram jornais que mesmo sendo
organizados por homens, tentavam adentrar o universo feminino, tratando principalmente de
assuntos relacionados à moda, romances, receitas, teatros. Dentre eles, Oliveira (2011)
destaca O Espelho Diamantino de 1827, O Mentor das Brasileiras de 1829, O Espelho das
Brasileiras de 1831, e O Correio das Modas de 1839
Com citado acima, o Jornal das Senhoras foi o primeiro periódico escrito e dirigido
por uma mulher. Periódico semanal, foi publicado durante três anos consecutivos, de 1852 a
1855, e seus exemplares se encontram disponíveis para consulta na Seção de Obras Raras da
Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro92. O mesmo era formado por seções de Moda, Belas
Artes, Teatro e Crítica, além de espaços dedicados a partituras de piano e a romances que
eram publicados em sua maioria em forma de folhetins. Circulava aos domingos, era
composto por oito páginas numeradas em ordem crescente. Nos primeiros anos o Jornal das
Senhoras era impresso na Tipografia Parisiense, localizada na então rua Nova do Ouvir.
Posteriormente, o periódico tinha sua própria tipografia, demonstrando assim prestígio social
e econômico.

Os três grandes nomes do Jornal das Senhoras foram, a argentina Joana Paula de
Manso de Noronha e as brasileira Violante Atalipa Ximenes de Bivar e Velasco e Gervásia
Nunes. Esta última ficou a frente da direção do jornal até 1855, ano que o mesmo deixou de
circular. Telles (2006) destaca que um dos principais motivos que levaram ao fim do jornal
teria sido a falta de recursos financeiros para manter a publicação de um periódico semanal
que sobrevivia graças às assinaturas e aos recursos próprios das suas diretoras. Na última
edição do periódico, datada do dia 30 de dezembro de 1855, a redação do mesmo lança uma
nota à suas assinantes, se despedindo delas, justificando a pausa na publicação e prometendo

92
OS exemplares também encontra-se disponíveis no acervo digital da Biblioteca Nacional:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/per700096/per700096_anuario.htm
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um retorno no ano subsequente, fato que não ocorreu.


Deixarmos de confessar a nossa viva e cordial gratidão às nossas boas e nobres
assignantes, em todo o tempo, seria um revoltante crime, perante a Deus e a
sociedade, que viu nascer o Jornal Das Senhoras sob sua animadora influencia,
florescer cultivado por ellas, e por ellas existindo para seus cuidados e vida
consagrar somente a ellas. Há quatros anos é o Jornal Das Senhoras protegido por
um crescido números de assignantes que constantemente o tem sustentado com as
avultadas despezas de uma publicação de sua ordem. Ainda não havia esmorecido,
nem uma só, sua tão franca e leal protecção. Nem tão pouco nós emorecemos,
Senhoras. Não esmorecemos jamais. Fazemos apenas uma parada, que julgamos
necessária, no próximo ano de 1856; e com o favor de Deus o Jornal Das Senhoras
reaparecerá em 1857, para porseguirmos ao honroso fim a que nos proposemos,
cultivando com esmero innarcesciveis flores do caminho tão nobremente encetado
pela nossa antiga redactora, a Sra. D. Joanna Paulo de Noronha. (Jornal das
Senhoras, 30 de dezembro de 1855)
O Jornal das Senhoras, como bem destaca Joana Paula Manso Noronha na primeira
página da edição número um de 1852, “tem vontade e desejo de propagar a ilustração e
cooperar com toda a sua força para o melhoramento social e emancipação moral na mulher”
(Jornal das Senhoras, 01 de janeiro de 1852).
Ainda no texto de abertura, intitulado “As nossas assignantes”, Joana Paula Manso
Noronha questiona suas leitoras sobre a surpresa que é a presença uma senhora a frente da
redação de um jornal. A redatora afirma que na França, Inglaterra, Itália, Espanha, Estados
Unidos e até mesmo em Portugal, existem muitas mulheres dedicadas à literatura e que
colaboram em diferentes jornais.
Por ventura a America do Sul, ella só, ficará estacionaria nas suas idéas, quando o
mundo inteiro marcha ao progresso e tende ao aperfeiçoamento moral e material da
Sociedade? Ora! Não pode ser. A sociedade do Rio de Janeiro principalmente,
Corte e Capital do império, Metropoli do sul d’America, acolherá de certo com
satisfacção e sympathia O JORNAL DAS SENHORAS redigido por uma Senhora
mesma. [...] Ei-nos pois em campanha; o estandarte da ilustração ondula gracioso á
briza perfumada dos Tropicos; acolhei-vos a elle, todas as que possuis uma faísca de
intelligência, vinde. Confidente discreto das vossas producções literárias, ellas serão
publicadas debaixo do anônimo; porém não temaes confiar-mo-las, nem temaes dar
expansão ao vosso pensamento; se o possuis é porque é dom da Divindade e aquillo
que Deus dá, os homens não o podem roubar. (Jornal das Senhoras, 01 de janeiro de
1852).

A vida urbana contava com novas demandas e novas perspectivas de convivência


social. As mulheres das camadas privilegiadas passavam a ser presença importante nos bailes,
saraus, concertos e espetáculos teatrais. Assim, ela necessitava aprender a se comportar em
público e a estar atenta aos eventos sócio culturais. O papel feminino se redefinia e,
acompanhando essa perspectiva, o Jornal das Senhoras convocava as mulheres a se
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emanciparem moralmente, não ficando exclusivamente fechadas em seus lares. Se inserir


nesses novos espaços era encarado como uma forma de emancipação.
No referido periódico encontravam-se sessões de romance, música, em especial de
piano, e de moda, no qual eram apresentadas as últimas novidades de Paris. O Jornal das
Senhoras a cada mês publicava o modelo de um figurino encomendado de Paris para suas
assinantes. Essa estratégia chamava atenção das senhoras da classe média carioca, que
buscavam copiar a risca os modelitos estampados nas páginas do periódico. Fazia parte de
uma prática social, na qual essa camada emergente se inserira.

Modelo apresentado na edição do dia 30 de dezembro de 1855


Na seção “Modas” do dia 18 de janeiro de 1852, o Jornal das Senhoras coloca a
moda como uma arma da luta. Joana de Paula Manso Noronha, sua então redatora, demonstra
grande conhecimento a respeito de debates pertinentes que estavam ocorrendo na França, e
tenta de forma viável, trazer esses debates para o contexto brasileiro. Joana Paula Noronha
afirma:
Dizia eu no meu último artigo de Domingo passado, que a moda do colete de
emancipação fazia grande furor em Paris há meses, á esta parte, e que
necessariamente teria o mesmo sucesso em todos os lugares onde ela aportasse, à
vista das suas conveniências e da sua elegante novidade esta realizado o meu dito.
Assinantes [...] receberão com especial agrado o meu artigo e os competentes
moldes e durante a semana tive o gosto de saber que muitos coletes já se estão
fazendo pelas delicadas mãozinhas mesmo das nossas patrícias, além de outras
muitas, que o mundo elegante confiou aos cuidados de nossas primeiras modistas,
que não tem mãos a medir. (Jornal das Senhoras, 18 de janeiro de 1852)
Em diversas edições o Jornal das Senhoras também demonstrou grande preocupação
com as doenças que se faziam presentes do cotidiano carioca. Nesse contexto de
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modernização do Rio de Janeiro, a capital do Império, ainda era assolada por epidemias e
pragas no século XIX. Cuidar da saúde também era encarada com uma forma de emancipação
moral. O que se pode perceber é que o Jornal das Senhoras, com o seu objetivo de
emancipação moral da mulher, pretendia formar e informar as suas leitoras. Porém, não
podemos ver a emancipação feminina com um olhar contemporâneo, pois as editoras do
Jornal das Senhoras entendiam essa emancipação como sendo a ilustração da mulher.
A partir de 1853, o Jornal das Senhoras passou a ser dirigida por Gervasia Nunezia
Pires dos Santos Neves. Sob sua direção os artigos que tratavam de forma mais esclarecida
sobre a emancipação moral da mulher foram aos poucos desaparecendo, sendo esse tema
tratado de forma, mais sutil e camuflada, pois as diretoras da revista entendiam por
“emancipação moral da mulher” fornecer instrução e educação às mulheres a fim de que elas
desempenhassem bem seus papéis de esposa e mãe. O incentivo a instrução se inseria nesse
contexto, de formação da rainha do lar.
A leitura meus amigos!...sabeis vós bem o que é a leitura?! É de todas as artes a que
menos custa e a que mais rende. Há livros, que, semelhantes a barquinhas
milagrosas, incorruptíveis e inaufragáveis, [sic] nos levam pelo oceano das idades a
descobrir, visitar e conhecer todo o mundo, que lá vai: os povos antigos revivem
para nós com todos os seus usos, costumes, trajes, feições, crenças, idéias, vícios,
virtudes, interesses e relações: a história é a mestra da vida, e as suas lições,
ampliação e complemento ao nosso juízo natural. (Jornal das Senhoras, 31 de julho
de 1853).
Dessa forma, fugindo do anacronismo, buscando analisar as representações
femininas no Jornal das Senhoras sem impor nosso olhar contemporâneo, entendemos que
apesar do periódico não conseguir atingir toda população feminina da corte, pois não era o seu
objetivo, aquelas que tiveram acesso ao seu conteúdo conseguiram ter contato com alguns
ideários em torno das questões de mulheres que estavam sendo discutidos em boa parte do
mundo, demonstrando assim que nem todas as mulheres se mantiveram passivas e caladas no
contexto patriarcal do século XIX, assim como evidencia o papel da imprensa nesse processo
de ascensão feminina na vida pública por meio da escrita.

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GÊNERO DO FEMININO NA MÍDIA ON LINE: ANALISE DE IMAGEM DO SITE


EGO

Munique de Souza Freitas | munique.sf@gmail.com


Bruna Germana Nunes Mota | brunagermana@yahoo.com.br
Cristine Brandenburg | crisfisio13@gmail.com

INTRODUÇÃO

A exposição da forma e figura feminina está atualizada na rede mundial de


computadores e em seus cybers espaço, como as redes sociais. A imagem do corpo feminino
se tornou usual e o abuso cada vez maior nesse sentido, que é gerado principalmente pela
mídia que ocupa uma forma extraordinária no cotidiano de jovens e adultos. Neste intuito, o
presente trabalho tem como objetivo analisar as representações do gênero e da sexualidade
feminina em sites de entretenimento, especialmente em relação ao corpo que é visto como um
elemento provocador de desejos. Para contemplar o objetivo do estudo, foram coletadas vinte
notícias do site Ego, do portal G1 de notícias, que é voltado a abordar a vida de celebridades
femininas. A metodologia de pesquisa fará do uso da análise de discurso, com base nos
escritos de Foucault e dos estudos culturais, e da análise imagética com base nos estudos de
Bauer e Gaskell (2014). Dentro dos procedimentos metodológicos está a coleta dos dados
(notícias), com as suas respectivas imagens. O site Ego, do Portal Globo de notícias, foi
escolhido devido à veiculação de notícias focadas na vida de supostas celebridades, com
intuito de atrair internautas e movimentação para a página virtual. De acordo com a definição
da página de venda de anúncios do portal, o site é “referência em comportamento, estilo de
vida, moda e celebridades. Suas notícias, fotos, vídeos, entrevistas, colunas e coberturas de
eventos formam um ambiente editorial leve e com foco no lado descontraído da vida”.
Sabe-se que os veículos de comunicação vivem praticamente da venda de espaços
para anúncios. Com a finalidade de conseguir o maior número de anunciantes, é necessário ter
e manter uma grande audiência. Segundo informações da própria rede de comunicação que o
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site faz parte, o portal Globo possui uma ferramenta chamada Ogon que fornece informações
sobre os interesses dos internautas, fornecendo às marcas que desejam investir com
publicidade e propaganda no portal, um panorama específico de cada perfil de público-alvo. A
ferramenta coleta dados dos 51 milhões de visitantes do portal Globo e compõe um guia,
dividindo os internautas em categorias que indicam o nicho de mercado desejado pelo
anunciante. Entre os perfis estão: Automaníacos, Moda & Beleza, Noveleiros, Futeboleiros,
Viajantes, entre outros. A definição desses grupos foi construída a partir do histórico de
navegação, da audiência dos sites do portal e os temas que despertam interesse.
Só no site Ego são 135,2 milhões de visitantes por mês, com um tempo médio de
permanencia na página de 2 min 28s. Os acessos são divididos 50% entre homens e mulheres,
sendo 56% dos internautas da Classe AB, 40% da Classe C e somente 4% da DE. Entre a
faixa etária que mais acessa o site, 35%, estão pessoas de 25 a 34 anos, seguidas por visitantes
de 15 a 24 anos, com 22%, empatadas com os visitantes de 35 a 44 anos.

O GÊNERO FEMININO NA MÍDIA

No que se refere ao gênero, durante muito tempo essa discussão pesa sobre as
mulheres e houve um longo percurso de elaboração deste conceito. Segundo Charlot (2009)
tanto os homens quanto as mulheres são dotados/as de razão e inteligência. A diferença é que,
nos meios sociais, exalta-se a tal da “sensibilidade feminina” – a noção biologizante de que as
mulheres seriam dominadas por seus hormônios, o que explicaria o seu suposto descontrole,
impulsividade e emotividade. Nada mais dominador e masculinista do que encerrar as
mulheres na tal onipotência da TPM.
Diversos discursos tendem a abordar as mulheres como idênticas entre si e opostas
entre os homens, devendo-se superar essas diferenças para se alcançar a igualdade de sexos.
Dentro da visão iluminista para alcançar igualdade, entre homens e mulheres não pode haver
diferenças.
Charlot (2009), tece a hipótese de que, em um mundo onde os valores são
masculinos, a forma pela qual as trinta e uma mulheres aprendem a lidar com tais situações
traz-lhe benefícios nas interações sociais. Para elas, que já aprenderam a suportar tanta coisa,

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é mais fácil ser tolerante a condições que para os homens soariam extremamente incômodas.
A sociedade ainda convive com a cultura machista, a mulher que expressa seus desejos e
vontades ainda é vista como uma mulher que não merece respeito. É por esse motivo que
muitos homens utilizam desse ato para vingar-se de algumas mulheres, porque sabem que elas
serão humilhadas e rejeitas pela sociedade e aos poucos se darão conta de que ela é vítima.
Segundo Charlot (2009), as mulheres, sofrem mais opressões na sociedade em função do sexo
que os homens.

Figura 1- Charge sobre a pornografia de vingança

Fonte: http://revistasamuel.uol.com.br/blogs/transtudo/nao-e-pornografia-nem-vinganca-e-machismo/

A foto acima remete a ideia de que a mulher é sempre a culpada no cenário


pornográfico. Para Maingueneau (2010), o consumo da pornografia liberta o sujeito das suas
amarras morais. Se o homem tem o direito de se desprender da moral e buscar os princípios
do prazer, a mulher também tem o direito de desfrutar do erotismo e da sedução. A sociedade,
no entanto, caracteriza esse discurso como um pseudorrelato, de que quando se inicia o ato
sexual deve-se atingir satisfação, numa explosão de sentimentos prazerosos, sem a
culpabilização da moral, mas de fato, não é isso que acontece, não para as mulheres, pois a
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sociedade ainda é sexista e preconceituosa.

ANÁLISE DAS POSTAGENS E DO COMPORTAMENTO DOS USUÁRIOS

A pesquisa analisou 20 notícias, com suas imagens, coletadas no site Ego do portal
Globo de notícias. Segundo Banks (2009), a análise de imagens preexistentes, geralmente, é
utilizada por estudiosos dos campos da comunicação, dos estudos culturais e da mídia, não
dispensando a contribuição de sociológos e antropólogos. A metodologia utilizada para o
estudo das fotos segue os escritos de Banks cuja interpretação da imagem é centrada no seu
contexto, que inclui a sua produção e o consumo.
O estudo gerou também dados qualitativos que não podem ser desprezados. Ao todo
foram coletadas 78 imagens em 20 notícias, uma média de 3,9 imagens por notícia. Em uma
havia somente um parágrafo com 12 fotos e esse comportamento se repetia em outras notícias,
com a presença bem maior de fotos do que de textos informativos. Em oito (8) notícias esse
comportamento foi alterado, já que essas somente tinham uma (1) foto cada. A explicação
para isso é que as imagens foram retiradas das redes sociais das próprias celebridades, como o
Instagram93. Os textos só eram mais extensos em entrevistas realizadas em estilo ping-pong,
ou seja, perguntas simples e respostas rápidas no qual o entrevistador já possui um
quetionário pré-estabelecido. Os números demonstram uma grande presença de imagens em
quase todas as notícias, reforçando o apelo visual para chamar a atenção do leitor. Outro dado
interessante é que todas as fotos eram em plano geral, focando no corpo das celebridades.
Na análise imagética, se pode constastar também a utilização de fotos com foco no
corpo dos personagens, por isso das 78 imagens coletadas somente seis (6) eram de rosto ou
perfil. Foi possível verificar também que algumas celebridades faziam poses como se
estivesem interpretando, conforme as imagens abaixo.

Figura 2 – Notícia “Mãe de Nicolas Prattes: ‘Ele tem ciúmes quando os homens me olham”

93
O Instagram é uma rede social online utilizada para o compartilhamento de fotos e de vídeos pelos seus
usuários, permitindo também a edição dessas imagens e publicação, simultaneamente, delas em outras redes
sociais, como o Facebook.
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Fonte: Site EGO

Figura 3 – Notícia “Laura Keller capricha na cruzada de pernas e deixa calcinha à mostra”

Fonte: Site EGO

O corpo da mulher é constantemente revelado e ressaltado em quase todas as fotos


coletadas no site EGO. A sexualidade é utilizada como forma de explorar a beleza e
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feminilidade, até para elogiar a atuação de alguma atriz que esteja em novelas, utilizam-se
cenas sensuais e imagens sexuais dessas mulheres. Conforme imagem a seguir:

Figura 4 – Notícia “Sequência de sexo em novela rende elogios a Yasmin Brunet”

Fonte: Site EGO


O reforço da mulher como objeto de uso e contemplação também é feito pelas
próprias celebridades que utilizam a sua imagem para se manter nos holofotes da mídia.
Como exemplo, a foto abaixo divulgada pela rede social da usuária que foi repercurtida no
site.

Figura 5- Notícia “Aline Dahlen sobre bumbum perfeito: ‘Ginástica, dieta e boa genética”

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Fonte: Site EGO

Na análise do discurso, se percebe também a utilização de palavras que remetem a


objetivação do corpo feminino. Em uma manchete como “Paula Fernandes usa fantasia
decotada em sua festa de aniversário” (EGO, 26/08/2009), a palavra “decotada” chama a
atenção do leitor diretamente para uma parte do corpo da celebridade, como se nada mais na
imagem tivesse importância. Em outra notícia, a manchete ressalta novamente a roupa da
celebridade, dando demasiada relevância ao que a apresentadora veste durante a sua rotina e
explorando, como sempre, o corpo. Conforme segue “Sabrina Sato ignora frente fria carioca e
embarca de shortinho” e subtítulo “A apresentadora foi fotografada no aeroporto Santos Dumont, no
Centro do Rio.” (EGO, 25/08/2010). A análise leva em consideração o contexto e o próprio discurso, não
somente o signo linguístico, que são designados para as coisas.
Desse modo, as notícias e as suas manchetes continuam enfatisando e explorando o corpo
feminino, conforme o título a seguir de outro texto “Graciele Lacerda usa fantasia sexy em festa com Zezé Di
Camargo” (EGO, 28/08/2009). A foto do casal mais o texto da matéria focam na vestimenta e

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na sexualidade de cada um. O que pode ser percebido na imagem abaixo:

Figura 6 – Notícia “Graciele Lacerda usa fantasia sexy em festa com Zezé Di Camargo”

Fonte: Site EGO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A imagem da mulher e por extensão do seu corpo com realce assim fragmentados
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está presente no cotidiano através da rede mundial de computadores e em seus espaços


virtuais, como as redes sociais e ainda é altamente explorada enfatizando a exploração do
corpo feminino.
Nesse sentido, são recorrentes as observações de que a mulher é vista em todo o
mundo como alvo da exploração da sua própria imagem. Chamando a atenção em que o
problema tenha caráter universal, em um panorama atual, caracterizada pelas redes sociais de
comunicação e a grande velocidade e difusão da informação.
Sendo assim, não há como não notar que há discriminação perante a imagem
corporal da mulher. A sexualidade é utilizada como forma de explorar a beleza e
feminilidade, através de decotes, de ênfase em comentários e gerando uma grande questão
ética, e é nesse campo que devem se dar as discussões e o sentido das modificações.
Neste trabalho, podemos concluir que as mulheres, apesar de todas suas conquistas
no campo profissional quanto na vida amorosa, ainda podem ser vistas como objetos de
consumo, desejo, explorando a sexualidade. Estamos ainda perante a coisificação da mulher.
Almejando a continuação do estudo, em outro momento, a pesquisa que produziu
este artigo ainda pretende apresentar as imagens para o público-alvo para que esse atribua
significado ao que vê.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BANKS, Marcus. Dados visuais para pesquisa qualitativa; tradução José Fonseca;
consultoria, suprevisão e revisão técnica Caleb Farias Alves. – Porto Alegre: Artmed, 2009.
BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualidade com texto, imagem e som:
um manual prático; tradução de Pedrinho A. Guareschi. – 12.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
CHARLOT, Bernard. Ensaios de Gênero: Um espaço para se ensaiar política, educação,
feminismo e coisas do gênero. Disponível em: <
https://ensaiosdegenero.wordpress.com/tag/bernard-charlot/. Acesso em 13 de out de 2015.
Ego. Ensaios sensuais, celebridades, horóscopo.
http://anuncie.globo.com/redeglobo/sites/entretenimento/ego.html. Acesso em 21 de set. De
2015

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FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucalt e a Análise do Discurso em Educação. Caderno de


Pesquisa, n.114, novembro/2011.
Globo lança novo serviço de avaliação de público-alvo direcionada a anunciantes
http://www.portalimprensa.com.br/cdm/caderno+de+midia/63364/globo+lanca+novo+servico
+de+avaliacao+de+publico+alvo+direcionado+a+anunciantes. Acesso em 03 de set. De 2015
MAINGUENEAU, Dominique. O discurso pornográfico. São Paulo: Parábola Editorial.
2010.
NÃO é pornografia, nem vingança: é machismo. In: BLOG da Revista Samuel Transtudo.
Rio de Janeiro, 2013. Disponível em:
<http://operamundi.uol.com.br/blog/samuel/transtudo/nao-e-pornografia-nem-vinganca-e-
machismo/>. Acesso em: 13 out de 2015.

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HOMOEROTISMO PÓS-MODERNO: NA CONTRAMÃO DO DESEJO

Eduardo Souza Falcão94| eduardo.souza.falcao@gmail.com


Hermano de França Rodrigues²

INTRODUÇÃO
Na sociedade atual o quesito homossexual é gerador de questões que perpassam por
temas como a discriminação, o preconceito e repressão quanto aos valores tido como éticos
históricos e sociais representados por uma classe heterossexual dominante em agravo às
minorias homossexuais. Neste trabalho propõe a análise da vida de dois personagens, Eduardo
e Alexandre, retratados do romance Um estranho em mim (2008), de Marcos Lacerda, bem
como a composição de vida é fruto para reflexão evidenciando, nas sociedades, a legitimidade
das identidades sexuais se compõe em conformidade a orientação sexual para que se tenha um
campo de aceitabilidade para o personagem principal.
Partiremos para a observação do autor, Marcos Lacerda, sobre seu romance, que
permitirá repensar atitudes, conceitos e julgamentos acerca do imaginário homossexual. Sobre
o que concerne a história proposta, faremos um recorte do que o autor nos sugere ao falar de
seu trabalho

Este romance arrebatador nos conta a história de Eduardo, bem-sucedido médico de


meia-idade, e de seu amor por Alexandre, adolescente de 17 anos. Ousado e sem os
moralismos tradicionais, Um estranho em mim fala das vivências profundas do ser
humano – homossexual ou não -, da solidão e do medo que todos experimentamos
ao longo da vida. É, em suma, um mergulho na alegria, no desespero, no abandono e
na dor de quem já experimentou o que é amar – e perder. (LACERDA, 2008).

UM PERCURSO NO HOMOEROTISMO: A REFLEXÃO IDENTITÁRIA

94
Graduando em Licenciatura em Letras – Português – UFPB, atualmente integrante do grupo de pesquisa
LIGEPSI (Literatura, gênero e psicanálise), participando do projeto de iniciação científica PIBIC, intitulado: A
análise da construção das identidades homoeróticas nos romances contemporâneos.
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É posto, por questões diversas, que se faz necessário atentar o campo para algumas
discussões contidas em algumas publicações que enfocam questões individuais, familiares e
sociais, que se sobrepõe em tributos junto ao amalgama de pesquisas consistentes capazes de
suprir, mobilizar e corroborar com pesquisadores de inúmeras instituições e diferentes
formações, visando a projetos de interesses comunitários. O que ocorre mais facilmente é
negar as discussões sobre os reais conflitos que se suscitam como possíveis propostas que,
muitas vezes, distanciam o real do suposto imaginário que aparecem como aporte, do qual
podem ser abordados nos territórios literários. Visando suscitar discussões familiares ou
mesmo acadêmicas, as vivências dos novos casais é sempre um motivo para se compreender
como as mudanças afetam os enlaces modernos atuais. Sãos tais questões que movem muitos
autores a embarcarem no mundo obscuro da homossexualidade abrindo caminho para que se
discuta como se constituem a vida cotidiana, os conflitos internos e externos, a presença do
olhar social sobre a constituição familiar moderna. Os casais homoeróticos de certa forma
invadem nossas casas, seja pela televisão, pelos jornais, ou mesmo pela literatura, buscando
atentar para a concepção de uma nova realidade que possa ser respeitada e aceita pela maioria
social.
Para uma compreensão sobre a posição identitária do sujeito, utilizaremos como
suporte adicional o conceito de identidade na concepção proposta por Stuart Hall, em seu
estudo a respeito da “noção de sujeito sociológico” (HALL, p. 10, 2014), inferindo o
pensamento de que o sujeito não se insere no mundo de forma única, mas parte do princípio
de interação com o outro. Tanto em um diálogo com o outro, ou mesmo em seu entorno
social, o indivíduo transcorre em interação, ou seja, “A identidade nessa concepção
sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior”- entre o mundo pessoal e o
mundo público”. (HALL, p. 11, 2014).
Já nos meados do século XVII, segundo Foucault (2014), era cabível aos indivíduos
que não procurassem, em suas práticas sexuais, o segredo, pois as coisas eram ditas e
praticadas sem que fossem maquiadas ou mesmo escondidas em meio aos discursos
familiares. Segundo o autor “eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da
decência, se comparados com os do século XIX”. (Foucault, 2014, p. 7). Os costumes da
época eram todos lícitos e suportáveis aos olhos familiares de forma que não agredia aos
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sujeitos o fato de viver uma vida sem as regras convencionais que cercariam os séculos
posteriores. Mas com o passar dos tempos, as famílias seguem um novo discurso. O que era
exposto aos olhos passa a ser reprimido em seus íntimos enlaces. Como nos narra Foucault:
A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A
família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de
reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei.
Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de
falar, reservando-se o princípio do segredo. (FOUCAULT, 2014, p. 7)

Numa busca de se condensar um desejo que por muitas vezes pode estar ocupando um
imaginário desejado, e ao mesmo tempo ainda em face de construção e pré-concebido por um
desejo que ainda está por vir, Freud (2011), em seu livro O mal-estar na civilização
sugestiona que em geral as pessoas idealizam almejar coisas que ainda pode não estar
preparadas para dominarem, ou mesmo não estarem preparadas para terem. Freud reconhece
que muitos ignoram tais diferenças de ideais ao inferir o pensamento de que “a coisa pode não
ser tão simples, devido à incongruência entre ideias e os atos das pessoas e à diversidade dos
seus desejos”. (FREUD, p. 7, 2011). Ao almejar algo novo, o indivíduo por vezes tenciona
abarcar o que nem sempre está preparado para lidar em sua vida. O novo pode surpreender de
forma a aniquilar expectativas antes concretizadas no imaginário do indivíduo.
O sujeito poderia estar preparado facilmente para lidar com as questões homossexuais
com uma maior naturalidade, maior conforto e segurança, precisão com as palavras. Uma
autoconfiança sobre suas ansiedades, articulação de ideias, troca de experiências. Mas nem
sempre o pensamento individual compreende tais suposições, podendo infringir determinados
acordos com o seu modo de ser e buscar satisfazer-se com outras experiências que possam
evocar um lado ainda não percorrido por si.
No que tange a produção de conhecimento acerca da “homossexualidade” podemos
inferir uma passagem de Foucault (2014) sobre a especificação dos indivíduos. Segundo o
autor,
O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história,
uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma
anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no
fim das contas, escapa à sua sexualidade [...] agora o homossexual é uma espécie.
(FOUCAULT, 2014, p. 48-49)

Nos meandros de sua existência, a homossexualidade surgiu como uma das figuras da
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sexualidade ao ser transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia


interior. Em sua concepção existencial o ser humano é partido em classes normativas quanto à
sua sexualidade que a dualiza em heterossexualidade e homossexualidade. Tais classes não
passam de supostas identidades socioculturais que condicionam o modo de viver das pessoas,
bem como o que pensam, como agem, como amam ou sofrem. Não há uma lei universal da
diferença de sexos.
O sujeito homossexual deveria aceitar a manifestação de suas práticas homoeróticas
como algo natural a si, no entanto, não é concebido desta forma. O que comumente ocorre é
que a sociedade identifica os homossexuais, os apontam e intimidam. Com isso, o indivíduo
se sente ameaçado por si próprio, pois carrega, ao longo dos anos, uma cultura de valores
acima de seus desejos. A sociedade estabelece um limite que os expulsam por estarem
conspurcando as ditas normas dos heterossexuais, pois o que prevalece são as regras
estabelecidas pelas convenções sociais.

UM ESTRANHO EM MIM: UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO


O autor Marcos Lacerda nasceu em João Pessoa, em 28 de dezembro de 1968,
desenvolvendo, desde cedo, um peculiar gosto pela leitura. Tal ato, de divertir-se com os
livros, o apresentou a diversas obras, tanto mundiais quanto brasileiras, como diz Lacerda:

Esse foi, segundo o autor, o despertar do gosto pela literatura em sua vida. Esse
fascínio por narrativas continuou vida afora, não tanto sob a forma da escrita, mas
principalmente sob a da escuta, motivo pelo qual se tornou psicólogo clínico e
especializou-se em teoria psicanalítica. (AMIGOS DO LIVRO).

Podemos entender que Lacerda buscou, na literatura, um modo de expressar os


sentimentos obtidos, em sua jornada literária, como aporte para a escrita de seus romances
intuindo passar para o público o que também alcançou como psicólogo.
O personagem principal, vivido por Eduardo, deixa uma carta ao seu, até então,
desconhecido irmão Guilherme com a intenção de revelar um passado escondido, mas que foi
vivido com intensa paixão com Alexandre, um rapaz jovem, bonito e cheio de vigor pela vida.
Eduardo, ao deixar evocar seus sentimentos mais profundos, como o medo, e partilhar ao seu
irmão, busca uma sinceridade que poucos possuem ao falar de si, mesmo sendo por

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intermédio de uma carta como podemos observar em uma passagem, onde diz:
Sei o que estou lhe dizendo porque um dia também vivi isso com outro homem. De
um modo diferente, é certo, do que sinto por você. Mas, igualmente, minha vida
passou a ter um sentido que antes não experimentara. Você entenderá o que acabei
de escrever à medida que eu lhe for contando o que se passou. Tudo começa com
uma cena. Tudo termina nessa cena. (LACERDA, 2008, p. 10)

O romance inicia-se em meio aos pensamentos perdidos de Eduardo, um médico bem


sucedido em seu trabalho, mas pouco feliz com a vida pessoal que lhe abraçava dia após dia.
Era casado, sem filhos e vivia uma vida feliz ao lado de sua esposa, Virgínia. Por uma
tragédia do destino, Eduardo fica viúvo e passa a viver somente para o trabalho de médico em
um hospital. Mas, com o passar dos tempos, a vida lhe reserva outro caminho. O romance,
ambientado na cidade de João Pessoa/PB, aborda questões relacionadas a âmbitos de pessoas
comuns.
Por estar se sentindo solitário e ao mesmo tempo livre para viver uma vida antes
acobertada pela culpa, Eduardo aposta que estaria pronto para uma nova aventura. Tal
experiência fora vivida num quarto de hotel logo após uma noite intensa envolta de muita
conversa e bebida. O desejo pelo mesmo sexo elevaria pensamentos antes mantidos em
segredo pelo personagem que, ao ver-se nu diante de outro homem, narra o real sentimento
que estaria vivenciando:
Por mais que tentasse negar, eu sempre sentira a ausência do masculino em minha
vida e, de forma especial, sempre desejara ver homens nus. A nudez masculina,
sempre tão bem ocultada, em contraposição aos corpos femininos, sempre tão
vulgarmente expostos, inspirava-me um segredo possuído pelos homens que, no
entanto, eu não reconhecia em mim mesmo. (LACERDA, 2008, p. 21).
Ao relatar o ocorrido, Eduardo acentua de subjetividade a história, fazendo com que
percebamos o envolvimento afetivo e sexual de ambos. Notamos que o processo de
identificação é vivenciado tanto no plano do prazer quanto no sexual, que permite ao
personagem viver suas secretas fantasias. Nesse momento, Eduardo se vê livre de
preconceitos que envolvem pessoas do mesmo sexo, mas não esperava que tal liberdade
pudesse despertar também o pensamento de qual era o seu papel na relação, como podemos
notar a seguir:
Ele entrou em mim com violência, e, naquela dor, encontrei um misto de alegria e
terror. Era uma imensa confusão de sentimentos e sensações; eu me sentia forte, mas
também humilhado – e, sem suor, sem forças para reagir, desejava matá-lo. Seu
hálito quente, sua pele, seu suor, seu cheiro, tudo se misturava em mim, e eu já não
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sabia o que era masculino e feminino; quem era ele ou eu; o que era dor ou prazer; o
que era vida ou morte. (LACERDA, 2008, p. 22)

Observamos, pela descrição erótica narrada pelo personagem que, mesmo envolvo
nessa relação homoerótica de desejo e atração sexual, Eduardo possui um preconceito
internalizado que se correlaciona em meio as suas dificuldades de viver uma relação
homoerótica em sua plenitude não tendo o desejo como forma de pertencimento de um para
com o outro.
NA CONTRAMÃO DO DESEJO: OS IMPULSOS DE EROS
No romance, Um estranho em mim, os personagens Eduardo e Alexandre se
conheceram ao acaso. Alexandre fora apresentado a Eduardo por intermédio de Beatriz uma
amiga e confidente que servia como sua consciência em alguns aspectos de sua vida. Mas tal
encontro foi ao mesmo tempo o ápice do desejo reprimido de Eduardo em querer viver uma
vida que pudesse transpor sua antiga relação no tempo em que vivia ao lado de uma mulher
(Virgínia), um relacionamento até então com atos de ternura e amor. O primeiro encontro foi
surpreendente e constrangedor devido à jovialidade de Alexandre ante a meia idade de
Eduardo, como narra o próprio personagem:
(...) o garoto, apesar da pouca idade, já era um homem fisicamente amadurecido e
extraordinariamente belo. Sentindo-me atraído e vendo minha irritação esvanecer
diante da masculinidade juvenil daquele rapaz, pus-me a observá-lo mais
atentamente. (LACERDA, 2008, p. 57)

Numa abordagem sobre o amor, o autor Nicola Abel-Hirsch (2010) aborda o tema de
Eros sob a ótica freudiana partindo de uma reflexão sobre o ideário do amor. Para o autor,
No que se refere à sexualidade, amor e pensamento, há uma diferença entre, por um
lado, ver a relação entre si - -próprio e o outro como se gostaria que ela fosse, e, por
outro lado, descobrir o que ela realmente é. (ABEL-HIRSCH, 2010, p. 37)

O primeiro olhar pode despertar para o amor idealizado num primeiro momento, bem
como um desejo distorcido daquilo que se espera do ideário primeiro. Ao mesmo tempo, pode
despertar a idealização real de alguém que começa a encontrar o outro enquanto pessoa.
Num processo por escolhas naturais, as diferentes experiências humanas vivenciadas
em pessoas distintas são tão comuns como suas semelhanças. A posição sexual é mantida em
uma experiência complexa e percebida num momento diferente para cada pessoa que a
experimenta. Vazia ou preenchida para seus sujeitos, e por vezes, em contraposição aos
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percalços de sua correta definição.


A história transcorre em meio ao convívio dos personagens centrais na busca do
conhecimento um do outro, e, em um passeio planejado surge o primeiro ato sexual, desejado
pelos dois corpos. Eduardo narra tal fato em singela harmonia aos seus desejos pelo belo
jovem:
Foi com alegria que acolhi todo o peso de Alexandre sobre mim, e, ao sentir seu
peito apertar-me contra o meu, tive a sensação quase física de que nossos corpos se
diluiriam e se misturariam em um só para sempre. Abraçamo-nos ainda mais
fortemente, e não tardou muito até que eu visse o clarão de fotos de artifício que
começavam a explodir dentro de minha cabeça. Naquele instante, compreendi
finalmente a diferença entre o sexo e um ato de amor. (LACERDA, 2008, p. 82)

A sexualidade pode ser vivida no medo, na incerteza, e mudando dramaticamente ao


longo de seu percurso, deixando marcas infinitamente profundas. Passa por fases de euforia e
pode culminar em completo tédio. Pode nascer no armário e terminar atrelada,
emocionalmente, dentro de um relacionamento distante, distorcendo os anseios previstos e
acarretando feridas, mágoas, dissabores para toda uma vida.
Toda experiência quando vivida de forma a se concretizar, mesmo desconfiando que
tudo possa vir a sair de forma contrária ao planejado, é filtrada pela premissa da reflexão e da
auto-reflexão, não se permitindo nos ser dado em estado bruto advindos do mundo empírico a
experiência de descobrir-se homossexual. Mas em outros momentos, pode ser um acréscimo
impensado de um fulgor adormecido que segue transformando o sujeito e remodelando sua
visão acerca daquilo que fora somente percebido como algo racional.
A sobrevivência depende da auto-ocultação. O controle da sublimação, de esconder
seus reais sentimentos. Mas contrapõe-se a enganação e autodesprezo que nunca deixa sua
consciência. O que lhe dá sentido para a vida é justamente o que mais pode vir a destruí-lo,
tanto seu interior de um homem de meia-idade apaixonado em meio aos seus sentimentos,
quanto aos olhos dos outros, estando alheios.
A condição básica para sobreviver em certas situações é subjugar a si mesmo diante
das observações pouco animadoras e enriquecedoras para transcorrê-lo de tais sentimentos. O
personagem acredita em suas emoções e convicções para o seu desenvolvimento, o seu
caminhar para a liberdade do seu corpo, de ter domínio sobre seus desejos; ir ao encontro
àquilo que lhe é fator favorável de aproximação, de pele, suor e gozo.
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A vida dos personagens segue em plena harmonia. Eduardo está em êxtase por estar
vivendo ao lado de Alexandre que é o seu alimento para a vida. A paixão pelo surfista segue a
toda a prova. A relação é vivida como sempre sonhara seguindo os padrões de uma vida a
dois. Mas nem tudo é cabível a ambos. Alexandre quer algo além. Sua liberdade. Até então é
o médico quem custeia sua vida e isso se torna um impasse na vida do casal. A partir do
momento em que Alexandre começa a trabalhar, Eduardo sente que está perdendo seu
companheiro aos poucos, pois não concebe a ideia de não estar mais no controle da relação,
abrindo espaço para possíveis desconfianças. O ciúme vai preenchendo a cabeça de Eduardo
ao ponto de desconfiar da fidelidade de Alexandre.
Alexandre estava buscando viver algo novo em sua vida pautada em relações para ele
naturais de um homem. Queria viver algo ainda não experimentado. Eduardo não aceitava tal
pensamento e atitude, pois sua relação de poder estava buscando um exercer uma maior
influência sobre seu companheiro. Segundo Fávero (2012), sobre as relações de gênero e
desenvolvimento das relações interpessoais, que abarcam os sentimentos emocionais,

Podemos nos referir ao poder como a capacidade de se ter o que se quer, de se


alcançar nossos próprios objetivos. O exercício do pode diz respeito à manutenção
ou aquisição daquilo que tem valor para nós, [...] para estabelecer e sustentar as
relações de dominação. (FÁVERO, 2012, p. 136)

Os sujeitos tornam-se críticos de sua própria vida e oportunam exercitarem e partir de


encontro aos seus pensamentos primários, buscando produzir novos sentidos que possam
responder seus questionamentos internos acerca de como se inserir na sociedade de forma a
não se sentirem excluídos. Tais modificações de sentimentos contribuem para modificar
pensamentos próprios e alterar os espaços sociais onde comumente atuam. Sendo assim, no
limiar de sua capacidade e contribuição pensante, o sujeito se constitui no exercício de sua
capacidade central de caráter processual de sua subjetividade, e naquilo que uma sociedade
culturalmente impôs ao longo dos séculos.

Partindo ainda da contribuição de Freud acerca da constituição de sujeito, podemos


inferir um potencial pensamento que possa conjecturar intenções a respeito da formação do
sujeito. Segundo Freud,

A patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu


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ante o mundo externo se torna problemática, ou os limites são traçados


incorretamente; casos em que partes do próprio corpo, e componentes da própria
vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não
pertencentes ao Eu; outros em que se atribui ao mundo externo o que evidentemente
surgiu no Eu e deveria ser reconhecido por ele. Logo, também o sentimento do Eu
está sujeito a transtornos, e as fronteiras do Eu não são permanentes. (FREUD,
2011, p. 9-10).

Podemos entender que, segundo Freud, o sentimento do Eu que um adulto se apropria


ao constituir-se como sujeito pode não estar com conformidade com o mesmo sentimento
desde o princípio. Ou seja, na correlação com o mundo, nas dimensões marcadas pelo
convívio com o outro, nas convicções e pressupostos que demarque sua história de vida, o
sujeito pode não ter plena compreensão do quanto evoluiu como pessoa, mas que pode ter um
parâmetro que como pode vir a estar no futuro. A abordagem subjetiva pode correlacionar
dimensões possíveis de vida que faz com que o indivíduo atente para o modo de se ater e se
posicionar diante das questões que resgatem as opiniões passadas, sejam de seus conflitos
acerca do que pensa no mundo, e que o permite pensar acerca do que lhe é imposto no dia
atual.
Podemos compreender que o sujeito tenciona abarcar o seu mundo histórico-cultural
manifestado na dialética entre o momento social atual e o individual. Tal contexto reflete um
sujeito em concomitância e reflexão permanente com suas práticas sociais junto aos seus
sentidos subjetivos de vida que lhe permite manifestar seus desejos e fantasias, bem como a
exploração íntima também da sexualidade reprimida, da aceitação conflitante de sua
completude masculina num âmbito dual, ou seja, numa convivência interacional com o outro;
de diálogo e comunicação. O modo como nos permitimos partilhar o mundo o qual habitamos
e nos fazemos presente, em concomitância ao conjunto das relações humanas e suas
confluências, nos faz pensar e repensar os sentidos e sentimentos que, por vezes, nos
influenciam e até mesmo nos perturbam, mas que fazem parte da construção do imaginário e
do ideário de vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A possibilidade de se ler um romance pode vir a gerar e a galgar um lugar nos
grandes estudos, possibilitando um amálgama de questionamentos que provoquem o
imaginário individual ou coletivo, permitindo, se não a compreensão, mas ao menos

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suscitando uma busca por questões atuais a serem discutidas. Compreendendo como um
processo, o leitor pode se permitir uma maior compreensão, um novo enfoque, um olhar, ou
até mesmo um pensamento do qual seja capaz de entender as vicissitudes do ser humano em
meio a seus conflitos, seja de ordem individual ou em sociedade, bem como seu
posicionamento para enfrentar os desafios sugeridos.
Lacerda ressalta que os personagens de seu romance representam grupos minoritários
marginalizados da sociedade sendo por vezes interpretados como transgressores das regras
sociais e morais impostas por seus conservadores. O recorte deste trabalho fecunda numa
identidade homossexual ainda persistente pelo desrespeito e violência quanto à negação de
políticas para reverter tal quadro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABEL-HIRSCH, Nicola. Conceitos de psicanálise – Eros. Tradução de Miguel Serras
Pereira. – Portugal: G.C – Gráfica de Coimbra, Lta, 2010.
AMIGOS DO LIVRO. Disponível em:
http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=5291. Acesso em: 25
de mai 2015.
FÁVERO, Maria Helena. Psicologia do gênero: psicobiografia, sociocultura e
transformações / Maria Helena Fávero. – Curitiba: Ed. UFPR, 2010.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber, tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. – 1ª ed. – São Paulo, Paz e
Terra, 2014. Do original francês: Histoire de la Sexualité 1: La volontè de savoir.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. – 1ª ed. – São Paulo: Pinguin Classics
Companhia das Letras, 2011.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina,
2014.
LACERDA, Marcos. Um estranho em mim. – São Paulo: GLS, 2008.

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IGUALDADE DE GÊNERO EM QUADRINHOS: FRONTEIRAS DO


CONSTRANGIMENTO NOS X-MEN

Alan Araújo Duarte∗


Daniel Camurça Correia∗∗
Yasmim Fernanda de Lima Holanda∗∗∗ | yasmimholanda@hotmail.com

INTRODUÇÃO

No atual Mundo Ocidental há uma tendência em desconsiderar o estudo do


feminismo por parte do senso comum, levando em consideração que houve, inegavelmente,
um ganho de direito por parte das mulheres, levando a uma aparente equiparação jurídica
entre os sexos. No entanto, o estudo de Pierre Bourdieu nos demonstra que não basta atribuir
direitos, uma vez que a própria lei é fruto, não de uma entidade metafísica intitulada de “O
legislador”, mas fruto de vários legisladores, pessoas que estão inseridas em um ambiente
histórico, sendo passíveis de serem produtos de uma incorporação de estruturas objetivas de
violência simbólica, levando-as, ainda que inconscientemente, a legitimar e perpetuar certos
descompassos entre os sexos (BOURDIEU, 2007).
Ademais, a dominação masculina, por ser fruto de um poder simbólico específico do
“espaço social” se insere sob os corpos, de tal forma que ainda que hoje o direito de liberdade,
ou de ir e vir, permita que as mulheres possam ocupar determinados espaços públicos ou
desempenhar certas profissões, ambos no passado de exclusividade masculina, ainda assim
não demonstra plena liberdade, no plano social. Prova disto é o descompasso que há na


Estudante de Graduação do Curso de Direto (UNIFOR). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia do
Direito (UNIFOR).
∗∗
Doutor em História Social (PUC/SP). Líder do Grupo de Pesquisa Justiça em Quadrinhos (UNIFOR).
Professor das disciplinas de Filosofia do Direito e Ciência Política (UNIFOR).
∗∗∗
Estudante de Graduação do Curso de Direito (UNIFOR). Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Justiça em
Quadrinhos (UNIFOR).

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representação política no Congresso Nacional brasileiro ou mesmo em determinados


empregos ou cursos universitários, em que se nota o predomínio masculino, atrelado a
mentalidade machista, disseminada às vezes por instituições de ensino ou até mesmo pela
família, estigmatizando profissões que, por algum motivo, não seria para mulheres.
Desse modo, é de suma importância o estudo do feminismo. Estudo este que deve ser
ainda mais cuidadoso e detalhado, pois, como demonstrado, a dominação masculina,
principalmente hoje, não é tão óbvia, fruto inclusive da própria característica da violência
simbólica, a qual é sutil. Não obstante, a forma de estudo e libertação das mulheres contra a
opressão não pode se contentar a simples conscientização da classe “oprimida”, como pensara
Marx, como se todo o processo do machismo ocorresse no plano do consciente. Na realidade,
há estruturas objetivas e históricas que insistem em eternizar o status quo, retirando seu
caráter social e atribuindo uma parcela de “biológico” ou “natural” (MIGUEL; BIROLI,
2014).
Assim, o objetivo do presente texto é analisar como os personagens em quadrinhos,
publicadas pela Marvel, com grande circulação nacional, são elaborados dentro de um sentido
da igualdade de gênero. Mas que de forma sutis apresentam pensamentos e atitudes machistas,
que constrangem e inferiorizam as personagens femininas.
Os personagens dos X-men foram desenvolvidos por Stan Lee e Jack Kirby, em 1963,
para entreter os leitores e no intuito de ampliar o número de vendas das tiragens, porém é
preciso questionar como essas histórias podem influenciar o público leitor quando reafirma
comportamentos machistas e retrógrados, ao transmitir a imagem da mulher como frágil e
dependente do homem.
Para responder aos problemas levantados, foi elaborada uma metodologia de pesquisa
que aponte como a questão do machismo, mesmo que de forma sútil, pode ser compreendido
dentro do Universo Marvel. Por isso, a pesquisa tem caráter bibliográfico, para analisar a
maneira pelo qual a desigualdade de gênero pode ser apreendida dentro das mídias produzidas
no século XX (CHOMSKY, 2013).
Da mesma forma, foi realizado um arrolamento de diferentes cenas das primeiras dez
revistas dos X-Men, que fazem parte da primeira série lançada, em 1963. Nas quais, se busca
discutir as ações tomadas pelos personagens masculinos, em determinados momentos, para
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entender as fronteiras do constrangimento contra as personagens femininas, com ênfase na


Jean Grey. E compreender porque o Stan Lee, criador dessas histórias, as escreve dessa
forma.

O CONSTRANGIMENTO EM CENA

É possível visualizar nas revistas dos X-men cenas em que as personagens femininas
são constrangidas por atitudes dos personagens masculinos, que invadem a privacidade,
agridem o corpo e a moralidade das mesmas. Uma das cenas em que acontece essa situação de
constrangimento é apresentada na primeira revista dos X-men produzida por Lee e Kirby.
A cena mostra o professor Xavier e os membros masculinos do X-men sendo
apresentados à nova integrante do grupo, Jean Grey, que passa a ser chamada de Garota
Marvel e é a primeira mulher a entrar para a equipe dos X-men. Ela é apresentada a todos e dá
uma demonstração do seu poder. Após esse momento, o professor Xavier sai e deixa o Anjo,
o Fera, o Ciclope e o Homem de Gelo sozinhos com a Garota Marvel, para que eles
conversem e se conheçam melhor. (LEE, 1963, p.10)
O Fera é o primeiro a falar com ela e a dar boas-vindas à sua maneira. Ele beija-a no
rosto sem autorização da mesma, segurando o rosto dela com uma de suas mãos, impedindo
que ela se esquive do beijo, forçando-a. Na imagem é perceptível pela expressão do rosto da
Garota Marvel o espanto e o constrangimento dela com a atitude do Fera.
Foucault, filósofo e psicólogo do século XX, no seu primeiro volume da História da
sexualidade, intitulado A vontade de saber, cunhará seu pensamento acerca da relação do
saber com o poder, a partir do pensamento da época, de que a sexualidade ao longo da história
foi marcada pela figura da repressão. Aonde falará o autor: “a menor eclosão de verdade é
condicionada politicamente” (FOUCAULT, 1988, p. 11). De tal forma é possível desprender
que quem detém o poder, ainda que temporariamente, poderá afirmar o que é a “verdade” ou
não. Sobre a ligação do sexo com a política, reitera o autor: “também o sexo se inscreve no
futuro” (FOUCAULT, 1988, p. 12). Ligação, talvez, acidental com o pensamento de George
Orwell (2009, p. 47), na medida em que ambos deixam implícitos que uma das prerrogativas
que o grupo detentor do poder possui é alterar a história do passado, a partir do hoje, ou
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alterar a história do presente, a partir do futuro, de tal forma que o grupo que no futuro
permanecerá no poder poderá afirmar a “verdade” sobre o sexo de hoje.
A ligação fica mais óbvia com a questão da sexualidade na medida em que o Foucault
redimensiona seu campo de análise. “A questão que gostaríamos de colocar não é por que
somos reprimidos, mas por que dizemos, com tanta paixão, tanto rancor contra nosso passado
mais próximo, contra nosso presente e contra nós mesmo, que somos reprimidos?”
(FOUCAULT, 1988, p. 14) Redimensionamento que leva a outra passagem da sua obra, na
qual ele questiona não a questão da repressão sexual em si, mas o “benefício do locutor”
(FOUCAULT, 1988, p. 12).
O que nos interessa aqui é a forma do autor de pensar, na medida em que o presente
trabalho não pretende perquirir acerca da dita repressão sexual. O autor foge da formulação
óbvia, na medida em que ele se questiona quem é o locutor e qual o benefício que este adquire
ao inscrever a verdade na lógica do discurso, revelando, portanto, o oculto nas “instâncias de
produção discursiva”. Nesse sentido, a correta colocação nos termos deste artigo seria:
quando a revista passa uma determinada imagem do sexo feminino como se fosse verdade,
independente desta imagem ser certa ou errada, quais as estruturas de poder sustentam e se
beneficiam desta lógica afirmativa?
Levando isso em consideração, desprende-se que pouco adianta buscar as explicações
no consciente do autor da revista para o modo em que ele retrata as personagens do sexo
feminino, uma vez que o próprio Stan Lee é fruto da historicidade das estruturas objetivas de
poder, as quais atuam no inconsciente, denotando a necessidade de uma nova formulação da
categoria de “sujeito”. Isto fica claro na medida em que o autor tenta construir uma imagem
da Jean Grey como se ela fosse independente e segura de si, seja através de suas roupas, uma
vez que ela não se veste como criança, mas como mulher, seja pelas suas palavras ou ações.
Porém, é tratada como uma pessoa que não pode manifestar contrariedade ao
posicionamento masculino. Os personagens se sentiram à vontade para cortejá-la como
quisessem, sem levar em consideração o fato dela aprovar ou não. Em evidência, encontra-se
nesta fragmento da revista o uso/abuso do poder masculino, interpretado como algo dado e
cristalizado, ou seja, não poderia ser questionado.
Na sequência, Grey se impõe, afirmando que “tem o direito saber” como é a escola em
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que está ingressando. Posteriormente, em meio à curiosidade dos rapazes, ela afirma que com
o tempo eles saberão mais sobre ela. A Garota Marvel se recusa a deixar os rapazes puxarem
uma cadeira para ela, pois a mesma se antecipa, utilizando seus poderes telecinéticos (LEE,
1963, pg. 10). Ela igualmente se recusa a deixar o Warren defendê-la diante da ação invasiva
do Fera, em tentar beijá-la (LEE, 1963, pg. 11). Tais cenas demonstram que o autor tenta
passar a imagem de uma mulher forte e independe, porém, surgem os seguintes
questionamentos: se ela era independente, por que os rapazes não a trataram desta maneira?
Se a personagem detinha poder, por que eles, mesmo sabendo disso, agiram de forma
invasiva, sem se questionar sobre suas vontades, como se somente eles tivessem poder?
Nesse sentido, as categorias de pensamento formuladas por Bourdieu ajudam a
compreender o motivo pelo qual as intenções de Stan Lee em criar uma mulher forte e
independente parece ser constantemente frustradas. Tal intelectual afastará a noção clássica de
poder, como um elemento em que, apesar de sua abstratividade, pode-se observar em
determinadas instâncias normativas, como o Estado ou o Direito, como algo que se pode
“possuir fisicamente” de modo muito claro; construirá Bourdieu sua noção de “poder
simbólico”:
O poder simbólico como o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e
fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação
sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o
equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito
específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado
como arbitrário. (BOURDIEU, 2007, p.14)

O poder simbólico, portanto, possui uma função de alterar a percepção que possuímos
acerca do mundo. Para isso, ele necessita ser “ignorado como arbitrário”. Nesse sentido,
Bourdieu formulará sua concepção de habitus: “longo trabalho coletivo de socialização do
biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para
inverter a relação entre as causas e os efeitos, e fazer ver uma construção social naturalizada”
(BOURDIEU, 2014, p.14). Nota-se, pois, que o âmbito da dominação masculina, fruto deste
poder simbólico, escapa o domínio da razão, inscrevendo-se nos corpos dos sujeitos, a partir
do inconsciente.
Dito isto, deve-se esclarecer que o âmbito desta dominação masculina não alcança
somente as mulheres, mas igualmente os homens, na medida em que cria uma “expectativa
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social” sobre eles. Retrato disto é a cena já descrita do Fera constrangendo a Garota Marvel na
sua apresentação e o subsequente constrangimento dele, quando ela decide se defender. É
imperativa a compreensão de que ao tentar beijá-la à força, o Fera não faz isto para
impressioná-la, mas para impressionar os rapazes que o cercam, destacar-se entre eles. Prova
disto é que o fruto de seu constrangimento ao ser “atacado” pela Jean Grey reside na vergonha
que ele passa diante de seus companheiros. (LEE, 1963, p.11)
Em face disto, Bourdieu explica a virilidade masculina, associada ao sentimento de
honra, sendo indissociável da virilidade física, como uma expressão desta honra masculina
que insiste em se reafirmar.
Como a hora – ou a vergonha, seu reverso, que, como sabemos, à diferença da culpa,
é experimentada diante dos outros –, a virilidade tem que ser validada pelos outros
homens, em sua verdade de violência real ou potencial, e atestada pelo
reconhecimento de fazer parte de um grupo de ‘verdadeiros homens’. (BOURDIEU,
2014, p.77-78)

No entanto, a virilidade exigida socialmente do homem traz um problema


fundamental, na medida em que o obriga a manifestar constantemente suas “capacidades” em
face de outros homens, impondo, portanto, um ideal inalcançável. Tal cilada gera medo. Não
tanto por não alcançar o ideal de virtude e honra que transformam os rapazes em homens, mas
pôr os assemelharem a mulheres ou “efeminados” quando não o conseguem.
[…] paradoxalmente, no medo de perder a estima ou a consideração do grupo, de
‘quebrar a cara’ diante dos ‘companheiros’ e de se ver remetido à categoria,
tipicamente feminina, dos ‘fracos’, dos ‘delicados’, dos ‘mulherzinhas’, dos
‘veados’. Por conseguinte, os que chamamos de ‘coragem’ muitas vezes têm suas
raízes em uma forma de covardia: para comprová-lo, basta lembrar todas as
situações em que, para lograr atos como matar, torturar ou violentar, a vontade de
dominação, de exploração ou de opressão baseou-se no medo ‘viril’ de ser excluídos
do mundo dos ‘homens’ sem fraquezas, […] (BOURDIEU, 2014, pg. 78-79)

Desse modo, fica claro a origem do constrangimento do Fera, o qual difere do


constrangimento da Jean Grey, uma vez que tentam impor a ela um comportamento que é
contrário a sua vontade.

AS DIFERENTES FACES DO CONSTRANGIMENTO

Retomando a cena do constrangimento ocasionado pela Jean Grey contra o Fera, no

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qual, não só ela fica incomodada com a situação, como um dos X-men, o Anjo, vai em defesa
de Grey mandando o Fera soltá-la. (LEE, 1963, p.11). A forma de agir do Anjo em defesa da
Jean Grey mostra que ele a considera frágil e que por ser mulher ela não conseguisse se
defender sozinha. Inconscientemente, ele esquece que a Jean Grey também é uma mutante,
que tem poderes, então, ela conseguiria se defender sozinha.
Em face disto, resta perquirir acerca da expectativa social sobre a mulher que a
dominação simbólica masculina gera. Expectativa esta que pode ser observada primeiramente
pelo aspecto biológico e físico da mulher, partindo de um ponto de vista relacional, em que se
analisam opostos cujo valor que se atribui é fruto de uma incorporação das estruturas
objetivas de dominação, como Estado e Igreja, relacionado o feminino ao negativo. Exemplo
deste ponto de vista relacional pode ser observado nas oposições “seco/úmido”, “alto/baixo”,
“forte/fraco”, “razão/sensibilidade” (frases rotineiras como “o homem é a razão e a mulher a
sensibilidade”), dentre outras. Nesse sentido, intenta-se encontrar na própria constituição
feminina a justificativa para a sua posição de inferioridade (BOURDIEU, 2014, p. 29), de tal
forma que se constrói toda uma “ciência da sexualidade”, como ilustra Foucault (1988, p. 57-
58), para construir um fundamento de cientificidade e assim dita a “verdade” em relação aos
corpos, cabendo à mulher “dar, a todo instante, aparência de fundamento natural à identidade
minoritária que lhes é socialmente adquirida” (BOURDIEU, 2014, p. 50).
Nesse sentido, esta dominação se inscreve nos corpos ao ditar os trajes adequados,
penteados impecáveis e a forma de se portar das mulheres, sempre de modo a se fazer
“pequenas” e “delicadas”. Tal fato pode ser observado nas revistas pelo modo da Jean Grey se
vestir. Além de suas vestes impecáveis e femininas, ela está usando uma saia, ao adentrar na
mansão, que impossibilita boa parte de sua movimentação, criando uma espécie de
“confinamento simbólico” à personagem, fundamentando sua aparente “feminilidade”. (LEE,
1963, p. 9) Não obstante, mesmo nas situações em que a personagem está lutando, seu
penteado permanece impecável, como se parada estivesse.
A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo
ser (esse) é um ser-percebido (percipi), tem por efeito colocá-las em permanente
estado de insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica: elas existem
primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos,
atraentes, disponíveis. Delas se espera que sejam ‘femininas’, isto é, sorridentes,
simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. E a
pretensa ‘feminilidade’ muitas vezes não é mais que uma forma de aquiescência em
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relação às expectativas masculinas, reais ou supostas, principalmente em termos de


engrandecimento do ego. Em consequência, a dependência em relação aos outros (e
não só aos homens) tende a se tornar constitutiva de seu ser. (BOURDIEU, 2014, p.
96)

Assim, esse tratamento frágil inexplicável é direcionado as personagens femininas nas


histórias dos X-men, pois a Garota Marvel e a Feiticeira Escarlate são consideras umas das
mutantes mais fortes das histórias, influi na forma como os personagens masculinos no
decorrer das histórias a tratam, infantilizando-as. Uma das cenas que ocorre essa
infantilização das personagens femininas também é na primeira revista. Assim que a Jean
Grey entra na mansão, a forma como o professor Xavier pede para ela entrar dizendo “Entre,
minha criança”, a infantiliza. (LEE, 1963, p. 9)
Outro momento em que Jean Grey é infantilizada ocorre na revista número 2, dos X-
men, de 1963. Quando estão todos em treinamento, o Homem de Gelo começa a disparar uma
metralhadora de cubos de gelo, então o professor Xavier diz para ela mostrar como se
defenderia de um ataque desses, e o Ciclope diz “Manda ver boneca” (LEE, 1963, p.9).
Na mesma revista, a Jean Grey está treinando na sala de perigos, levitando uma esfera
vermelha gigante com o poder da telecinese, então, em um determinado momento, quando ela
não aguenta mais o esforço, o professor Xavier pede que o Ciclope a ajude, e, ao terminar o
trabalho diz: “Pronto, mocinha! Este aparelho de treinamento não vai mais te atrapalhar”.
(LEE, 1963, p.13).
Portanto, a constante infantilização que se atribui a Garota Marvel nada mais é do que
fragilização da mesma, levando em consideração que crianças são frágeis, imperativo este que
não se atribui às mulheres adultas. Tal fator parte tanto da atuação da dominação simbólica
sobre o inconsciente do autor das revistas quanto do seu próprio desconhecimento em relação
a lógica do campo social em face da atuação do poder, e das próprias características deste.
Apesar desse tratamento inferior ser dado as personagens femininas pelos personagens
masculinos da história, a Jean Grey mostra que consegue se defender sozinha. Ela é considera
uma mutante forte, que na cena da revista número 2, depois que o vilão Vanisher é capturado,
seus capangas tentam achar alguma forma de fugir, então eles falam olhando para a Garota
Marvel “Pega a garota! Ela parece inofensiva! Será a nossa passagem para cair fora daqui”. A
Garota Marvel mostra que não é inofensiva, pega as armas dos bandidos e aponta para eles. E
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os bandidos que iam capturá-la dizem que ela é mais perigosa que os outros X-men. (LEE,
1963, p.23)
A Garota Marvel também mostra sua capacidade de se defender na cena da primeira
revista, quando o Fera a constrange e o Anjo vai defendê-la. Ela interrompe o Anjo dizendo
que ele não precisa se preocupar, pois ela não é tão indefesa quanto ele pensa. Ela mostra isso
usando os seus poderes de telecinese, contra a agressão do Fera, levitando-o e girando-o no ar.
Quando o personagem masculino é colocado nessa situação, ele passa a agir como se
fosse a vítima e ela, agora, fosse a agressora ao se defender. Ele pede para a Garota Marvel
ser boazinha e colocá-lo no chão, pois o que ela estava fazendo era constrangedor. E que a
forma que ele agiu se justifica, por que ele estava apenas sendo simpático. Então, ela coloca-o
no chão e diz para o professor Xavier “Espero não ter sido dura demais com ele”.
Desde o momento que a Jean Grey se defendeu usando seus poderes, ela passou a ser
desenhada pelo Stan Lee como sendo a agressora e o Fera sendo vítima, pois ele se sentiu
constrangido por ser “atacado” por uma mulher. Sendo visível nessa cena a ilustração da
vitimização masculina, ocorrendo a inversão dos papéis, no qual a mulher constrangida ao se
defender e punir o homem agressor, passa a ser a agressora.
Nesse sentido, por mais claro e evidente que seja a correspondência entre a realidade
natural e a realidade socialmente construída, Bourdieu (2014, p. 28) afirma que há sempre um
espaço para uma “luta cognitiva”, proporcionada pela indeterminação parcial de certos
objetos, o que propicia a diferentes agentes a capacidade para a determinação da visão
legítima de mundo. Tal teoria se aproxima da construção teórica de Foucault (1988, p. 89-90),
o qual define o Poder como uma “correlação de forças”, situacional e complexo, de modo que
quando percebe-se, erroneamente, uma estrutura rígida e dogmática entre “dominante e
dominado”, nada mais é do que um “recorte temporal”, levando em consideração que o poder
é fluído, fruto de uma “luta simbólica”, o que impossibilita fragilizar e vitimizar por completo
qualquer agente social.
Tal descrição pode ser observada na revista nas inúmeras cenas em que a Jean Grey se
afirma como uma mulher forte, independente e superpoderosa, enfrentando seus adversários
como igual.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível com o presente artigo analisar de forma detalhada as cenas e mostrar
como os comportamentos machistas sutis nas histórias em quadrinhos, que normalmente são
aceitos como normais, geram o constrangimento contra mulher e torna difícil o alcance a
igualdade de gênero.
A Marvel inovou nas histórias em quadrinhos ao produzir personagens que erram e
sofrem dos mesmos problemas dos leitores ao se questionarem sobre a vida, sobre suas
atitudes e sobre amores. O que os diferencia dos leitores são os poderes, que os tornam irreais.
Com isso a parte, as formas de agir e pensar dos personagens são similares às atitudes do
cotidiano dos leitores, pois o Stan Lee se baseia na realidade que o rodeia para criar os
personagens. Com isso, o público alvo acaba recepcionando a forma como os personagens são
elaborados, os valores éticos e comportamentos que eles apresentam nas histórias sem um
crivo crítico, questionando se as atitudes dos personagens são corretas, ainda mais quando
essas atitudes se mostram sutis, sendo perceptíveis apenas com uma análise mais detalhada.
Assim, para o intelectual do Direito é impreterível o estudo dessas histórias, pois ao
ver como é retratada a desigualdade de gênero nas histórias em quadrinhos, ele pode
comprovar que a universalização das leis, a criação de tratados e a Declaração Universal dos
Direitos Humanos não garantiu a igualdade de gênero. Portanto, o intelectual do direito tem
que pensar em outros mecanismos para ser alcançado o patamar de igualdade de gênero, já
que a lei posta pouco se dinamiza em meio as novas mídias.
As revistas estudadas foram publicadas no século XX, suas histórias retratam o
machismo que em vários aspectos, quando comparadas às situações da sociedade
contemporânea, se mostram ainda muito atuais. O constrangimento contra a mulher, a figura
feminina como um ser frágil, a infantilização da mesma, e a vitimização dos homens são
alguns aspectos que foram levantados no artigo por meio da leitura das revistas. Porém, há
muitos outros temas que não foram tratados no presente artigo, que são perceptíveis como
fatores que geram a inferioridade da mulher perante o homem e que precisam ser estudados.
Pois, é necessário ir além do que é visível para entender e discutir o cerne dos
comportamentos machistas que impedem a igualdade de gênero.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 11ª ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2007.
________. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. 1ª ed. Rio de Janeiro:
BestBolso, 2014.
CHOMSKY, Noam. Mídia. Propaganda política e manipulação. São Paulo: Martins Fontes,
2013.
FOUCAUTL, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 12ª ed. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1988.
LEE, Stan. Os X-men: X-men. Tradução Eduardo Sales Filho.Nova York: Marvel Comics
Group, 1963.
________. Os X-men: Ninguém pode deter o Vanisher. Tradução Eduardo Sales Filho. Nova
York: Marvel Comics Group, 1963.
________. Os X-men: Cuidado com o Blob. Tradução Eduardo Sales. Nova York: Marvel
Comics Group, 1964.
MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flavia. Feminismo e política. São Paulo: Boitempo, 2014.

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IMAGENS E CONTEÚDOS PARA O FEMININO NAS CAPAS DA REVISTA


QUERIDA NOS ANOS 50

Raquel do Nascimento Sabino | kelsabino@hotmail.com


Thayana Priscila Domingos da Silva
Valdegil Daniel de Assis

INTRODUÇÃO

A imprensa feminina surgiu no Brasil em 1827 com o lançamento do primeiro


periódico feminino, O Espelho Diamantino, lançado por Pierre Plancher no Rio de Janeiro.
Comparando-se que desde 1641 já havia sido fundado em Portugal o primeiro jornal
português, A Gazeta da Restauração, o despontar da imprensa feminina aqui no Brasil apenas
em 1827, acompanhava o surgimento tardio da imprensa brasileira, que chegou ao Brasil pela
influência da presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro em 1808, com a publicação do
jornal A Gazeta do Rio de Janeiro em 10 de setembro de 1808. Segundo Abreu, O Espelho
Diamantino era uma revista feminina quinzenal que teve 14 números, seu conteúdo versava
sobre moda, literatura, política e artes (ABREU, 2008).
De fato, a gênese da imprensa feminina no Brasil está ligada à moda. Conforme
esclarece Buitoni (2009), com a chegada da família real ao Brasil no século XIX, nossa
sociedade sofreu mudanças estruturais, o Rio de Janeiro começou a perder o aspecto
provinciano e adquiriu ares de capital. A existência da corte exigia mais a presença da mulher
na vida social e a moda assumiu importância para a mulher. Nesse contexto, a moda europeia
era tomada como referência e cumpria à imprensa brasileira a função de importar essa moda,
publicando-a em jornais e revistas.
Com o processo de industrialização no século XX e o crescimento das cidades, a
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imprensa passou por modificações significativas. De acordo com Barbosa (2007), as adoções
das tecnologias do novo século fizeram com que a imprensa que antes era artesanal, passasse
a ser comercial. Dentre as inovações redacionais, a ilustração e as imagens adquiriram lugar
de supremacia nas publicações.
Acompanhando esse processo de modernização, as revistas femininas inovaram com
fotografias em suas páginas e assim como os jornais, elas transformaram-se, revelando o
intuito da imprensa, que era seguir a estrutura e organização de empresas na sociedade
capitalista de modelo industrial.
Desde o seu surgimento, a imprensa feminina, sob a justificativa da função de
entretenimento e distração trazia conteúdos sobre moda, beleza, comportamento e culinária,
que além de estimular o consumo, representavam uma importante ferramenta de difusão de
imagens e conteúdos para o público feminino. Era carregada de intencionalidades.
Materializada em jornais e revistas, a imprensa feminina assumia o papel de difusora das
ideias europeias, reforçava em suas páginas o papel da mulher como mãe e esposa, mas
também serviam como instrumento de difusão das ideias emancipatórias femininas. Com o
advento da industrialização, a imprensa feminina transformou-se num potente negócio
editorial com discurso persuasivo apoiado no texto e nas imagens.
Este estudo lança um olhar sobre a imprensa feminina no Brasil, trazendo à baila
considerações sobre as revistas femininas a partir de Buitoni. Toma como eixo central a
análise de capas da revista Querida da década de 1950, período de seu lançamento. Buscou-se
com isso perceber quais as imagens da mulher e os conteúdos para o feminino se espraiavam
nas capas da revista Querida, nos anos 50 através dos títulos, das chamadas e das imagens.
O estudo utilizou como objeto e fonte as capas da revista Querida. Para tanto, foram
utilizadas na análise duas capas da revista dos anos de 1954 e 1955. Destaca-se as
dificuldades para encontrar exemplares da revista, por isso as fontes que se pode lançar mão
foram capas disponibilizadas na internet. Entretanto, este aspecto não comprometeu o objetivo
da pesquisa, pois a virtualidade das fontes continha os elementos necessários à pesquisa.
Na perspectiva Bakhtiniana, as capas de revistas constituem um gênero discursivo
por serem unidade comunicativa, e por conterem um tipo de enunciado. De fato, elas possuem
elementos verbais e não- verbais que compõem seu enunciado. Cavalcante (2011, p. 44)
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define gêneros discursivos como sendo “padrões sociocomunicativos que se manifestam por
meio de textos de acordo com necessidades enunciativas específicas. ” Tratando-se de “[...]
artefatos constituídos sociocognitivamente para atender aos objetivos de situações sociais
diversas. ”
Sendo assim, as capas das revistas aqui analisadas cumprem um papel de
comunicabilidade, pois são portadoras de enunciados cuja intencionalidade era
estrategicamente propagar comportamentos a serem seguidos e despertar nas leitoras o desejo
pelo consumo de determinados produtos. Ou seja, através da veiculação dos conteúdos
contido nas capas das revistas eram transmitidas ideias, padrões de comportamentos, de
modas e de costumes.

IMAGENS E CONTEÚDOS NAS CAPAS DE QUERIDA NOS ANOS 50

Nos anos 50 o Brasil vivia os chamados Anos Dourados, em que a classe média
ascendia, adotando um estilo de vida mais moderno e utilizando bens de consumo, os quais
eram fruto das novas tecnologias descobertas durante as Guerras Mundiais. Aos brasileiros,
ampliava-se as possibilidades de acesso aos bens de consumo, lazer e informação.
De acordo com Buitoni (2009), na década de 1950 a imprensa brasileira vivia um
período de desenvolvimento na industrialização, refletido, sobretudo, nas revistas femininas.
A autora esclarece que nesse período, os jornais modernizavam-se lentamente quanto à forma
e ao conteúdo, muitos conservando ainda os velhos padrões. Neles, as sessões femininas
mantinham-se atrasadas em relação às revistas.

Suas sessões eram pobres, sem imaginação, com diagramação e ilustração pouco
trabalhadas. Eram colchas de retalhos, que juntavam receitas de tricô e crochê, uma
crônica ou poesia, culinária, moda, conselhos de beleza, frases de amor, etc. Boa
parte do material publicado era tradução de textos enviados por agências
estrangeiras. A mulher, como público não era muito considerada. A impressão que
se tem é que o jornal editava a página feminina mais para constar. (BUITONI, 2009,
p.97).

Diferentemente dos jornais, nesse período as revistas femininas iam assumindo um


formato mais industrializado, conforme as demandas empresariais. Iniciava-se assim “[...]

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uma nova fase do mercado editorial feminino no Brasil”. (BUITONI 2009, p.98). Nesse
cenário, as revistas eram instrumentos de captação de consumidoras em potenciais, pois elas
pretendiam guiar o gosto e as compras das mulheres. Entretanto, há de se considerar que além
desse objetivo capitalista, as revistas também eram portadoras de imagens e condutas
femininas que serviam para difusão ou legitimação de comportamentos de cada época através
das imagens, conteúdos e discursos contidos nelas.
É nesse contexto que surgiu a revista Querida. Editada no Rio de Janeiro em 1954,
pela Rio Gráfica Editora. De propriedade das Organizações Globo da família Roberto
Marinho, essa editora era considerada a principal produtora de periódicos no período entre
1950 e 1970. A revista circulou quinzenalmente de 1954 até 1971, e era destinada ao público
adulto. Em 1989 foi relançada pela Editora Globo, passando a ter como público-alvo as
adolescentes, circulou durante a década de 90.
Na primeira fase de lançamento, Querida revelava a expressividade da marca da
industrialização. Era uma publicação com excelente qualidade de papel e de impressão, de
formato americano 21x27.50 cm, apresentando capas coloridas.
O próprio nome Querida indicava que era uma revista destinada às mulheres. O
conceito de querida para Fernandes (2001), corresponde a uma pessoa de estima elevada,
amada ou tida com predileção. Além dessa definição, de acordo com a classificação
gramatical, dependendo do contexto, a palavra querida pode ser um substantivo quando se
refere àquela pessoa a quem se quer muito bem, e pode também ser um adjetivo que qualifica
a quem se quer muito bem. Percebe-se então no próprio nome da revista essa duplicidade de
significados, ou seja, era uma revista querida pelas mulheres, ao mesmo tempo em que a
mulher era o próprio ser querido. Havia no título da revista um chamamento, um diálogo entre
emissor e receptor.

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FIGURA 1 – Querida nº 1, junho de 1954

Fonte: Acervo Ed. Globo95

A capa de Querida nº 1, possibilita-nos perceber qual era a representação da mulher


da época. Ou seja, tomando como referencial o entendimento de representação apresentado
por Chartier (2002), que a expõe como estratégia de construção de significados, como
tentativa de legitimação da concepção de mundo social de grupos ou indivíduos a outros,
podemos inferir que a representação da mulher presente nas capas da revista Querida da
década de 1950 era a imagem da mulher da classe média da sociedade burguesa.
Observando a imagem acima, vê-se que Querida nº 1 trazia na capa cores quentes e
frias. É possível inferir que a cor azul como fundo da imagem feminina suscitava a pureza, já
o vermelho no espaço destinado aos títulos e às chamadas, além de ser uma cor que
aumentava a visualidade remetia à intensidade. A tipografia de letras caligráficas e sinuosas
que compunham os títulos dos conteúdos da revista, além do cumprir o objetivo de chamar
atenção da leitora, demonstra a intencionalidade de fomentar a imagem da delicadeza
feminina. Mesmo com toda essa inovação e expressividade das capas de Querida, resultante
da industrialização, a linearidade vertical que divide imagem e chamadas da capa reforçava o
estilo sério, clássico e tradicional da mulher dos anos 50.
A revista trazia na capa a imagem da mulher branca, de olhos azuis altivos, moderna,

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Disponível em: http://www.robertomarinho.com.br/obra/editora-globo/detalhes-de-verbete.htm/ Acesso em:
20/01/2015

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elegante e sensual, com ares de feminilidade. Era o retrato da mulher de classe média da uma
sociedade burguesa urbano-industrial. Sociedade que assumia um novo estilo de vida,
adotando novas práticas de consumo e comportamento, sobretudo a população dos centros
urbanos.
De fato, no período pós-guerra, vivia-se a vitória da modernidade, o usufruto e a
potencialização do conforto que o capitalismo oferecia através dos produtos resultantes dos
avanços tecnológicos. A propagação desse conforto objetivava fomentar cada vez mais o
consumismo que, também, era praticado como uma forma de ostentação e adesão à
modernidade. O próprio modo de se vestir da mulher desse período retrata o ideário de vida
da burguesia moderna.
FIGURA 2 – Querida nº 16, janeiro de 1955:

Querida nº 16, janeiro de 1955


Fonte: Acervo Ed. Globo96

Assim, as revistas femininas, neste caso Querida, como se pode observar na imagem
acima, propagava a imagem da mulher glamorosa, com vestidos fartos de tecidos e cortes
delicados que delineavam suavemente a silhueta feminina sem tirar o ar de decoro. O cabelo
curto com corte chanel reproduzia a moda das estrelas de Hollywood. Cultivava-se desse

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Disponível em: http://www.robertomarinho.com.br/obra/editora-globo/detalhes-de-verbete.htm/ Acesso em:
20/01/2015

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modo, o perfil de mulher bela, jovial, moderna e sofisticada, que deveria também estar bem
maquiada.
Juntamente com o cultivo desse perfil feminino de beleza, conservava-se o culto à
imagem da mulher de conduta irreprovável, comportada, obediente. Pinsky (2012) ao
discorrer sobre as mulheres dos Anos Dourados, argumenta que, apesar das condições de vida
nas cidades provocar mudanças nos comportamentos sociais entre homens e mulheres;
modificando as práticas de namoro e intimidade familiar, diminuindo a distância entre os
casais e as diferenças entre os papéis da mulher e do homem, a sociedade continuava
arraigada nos antigos modelos tradicionais. “A mulher ideal era definida a partir dos papéis
femininos tradicionais- ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido e das
características próprias da feminilidade, como instinto materno, pureza, resignação e doçura”.
(PINSKY 2012, p. 608).
Coadunando com esse propósito, Querida nº1 edição de junho de 1954, na sua
primeira fase de lançamento, trazia nas capas anúncios dos conteúdos sobre moda: “Paris
decretou... A última palavra da moda para a última estação”, sobre comportamento: “Você
admite o ciúme? ”. Trazia também novelas em cores com seus temas ousados sobre amor:
“Lutarei por meu amor”. As novelas em cores era outra inovação atrativa das revistas
femininas.
Percebe-se que neste período de avanços no mercado editorial feminino, sobretudo
nas revistas, onde se cultivava a mulher moderna, os ditames da moda vinham de Paris e
adentravam no Brasil pelas revistas. Além da moda, os contos e novelas, estrategicamente
destacados nas capas de Querida, traziam temas considerados ousados para a época por
abordarem assuntos sobre traição e divórcio.
Embora este estudo não tenha analisado os textos desses temas, pode-se supor, pelas
características da sociedade dos anos 50, que esses assuntos eram abordados como uma forma
de fomentar os bons costumes, a moral, reprovando os comportamentos que naturalmente
emergiam na sociedade. Além disso, tratar sobre divórcio e traição por meio de contos e
novelas era uma estratégia de forte persuasão, pois ler como forma de entretimento era algo
prazeroso para a mulher e, desse modo, a mensagem ia sendo difundida suavemente através
das páginas das revistas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na primeira fase de Querida, nos anos 50, as revistas femininas tradicionais eram
instrumentos da indústria de bens de consumo que espargiam seus produtos por meio delas.
Também difundiam imagens e condutas femininas próprias da sociedade burguesa da época.
Seguindo esse perfil, Querida direcionava-se para a mulher casada, adulta comprometida com
as atribuições do lar. Trazia nas capas um discurso persuasivo através das imagens e
chamadas de texto.
Estampava a imagem da mulher de classe média branca, elegante, feminina, que
espraiava sensualidade comportada. Os temas versavam sobre beleza, decoração, culinária,
contos e novelas, estas com forte papel persuasivo em relação às condutas adequadas às
mulheres da família burguesa. O objetivo dos temas que compunham as capas de Querida,
além de favorecer a indústria do consumo, era fomentar os valores, os bons costumes e a
moral nos anos 50, além de sutilmente reprovar os comportamentos que fugissem aos padrões
estabelecidos pela sociedade da época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Alzira Alves. Mulheres e Imprensa: passado e presente. In: RIBEIRO, Ana Paula
Goular; HERSCHMANN, Micael (orgs). Comunicação e História: interfaces e novas
abordagens. Rio de Janeiro: Mauad X: Globo Universidade, 2008.
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
BUITONI, Duicília Helena Shoroeder. Mulher de papel: a representação da mulher pela
imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summus. 2009.
CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2011.
Chartier, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2 ed. Tradução Maria
Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
FERNANDES, Francisco; LUFT, Celso Pedro; GUIMARÃES, Marques F. Dicionário
Brasileiro Globo. 54.ed. São Paulo: Globo, 2001.
PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. In: DEL PRIORE, Mary (Org.).
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História das Mulheres no Brasil. 210º ed. São Paulo: Editora Contexto, 2012.

FONTES

QUERIDA nº 1, junho de 1954.Disponível em:


http://www.robertomarinho.com.br/obra/editora-globo/detalhes-de-verbete.htm/ Acesso em:
20 jan. 2015.
QUERIDA nº 16, janeiro de 1955. Disponível em:
http://www.robertomarinho.com.br/obra/editora-globo/detalhes-de-verbete.htm/ Acesso em:
20 jan. 2015.

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INDÍCIOS DE ESCRITA FEMINININA NA IMPRENSA DA PARAÍBA: TEXTOS NO


JORNAL LIBERDADE (1930)

Stelyane de Oliveira Melo | stelyanemelo@hotmail.com


Maria Lúcia da Silva Nunes | mlsnunesml@gmail.com

INTRODUÇÃO

Falar da história das mulheres é citar inúmeras manifestações para reivindicação de


direitos negados as mesmas, estes concedidos apenas ao sexo oposto. Isto porque socialmente
e historicamente se construiu a ideia de inferioridade do sexo feminino com relação ao sexo
masculino. Podemos perceber em algumas religiões, que muitas vezes, direta ou
indiretamente se referem às mulheres como seres em constante lugar de submissão, um
exemplo é o cristianismo, Ora! Se Deus é homem, e símbolo de benevolência e Eva, mulher e
símbolo do pecado, em quem devemos confiar? Sigmund Freud fala do ciúme e da inveja que
a mulher sente, quando criança, com relação ao órgão genital masculino, por ele possuir e ela
não. Não é o nosso intuito afirmar que Deus ou Freud são machistas, mas apenas demonstrar
que estes são exemplos de teorias que tiveram grande repercussão e que de alguma forma, em
tempos históricos distintos, contribuíram para a consolidação do pensamento de inferioridade
feminina.
Se desde a antiguidade se nutre este pensamento, não é difícil imaginar que nas
décadas que nos propomos pesquisar, ainda havia negações e restrições a espaços de escrita
para a mulher, mesmo que ainda os encontremos, na imprensa paraibana, até mesmo antes
deste recorte temporal.
Na década de 1930 ocorreram vários eventos sociais, de grande repercussão, que nos
fizeram imaginar a importância da análise dos impressos deste período, como exemplo pode-

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se citar a revolução de 1930, a conquista do direito ao voto feminino, o Manifesto dos


Pioneiros em 1932, a criação da filial paraibana da Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino em 1933, entre outros. Acreditamos que todos esses fatos interferiram na
organização da sociedade da época e consequentemente nos modos de escrever e assim
representar esta mesma sociedade.
Sabemos o quão difícil é fazer história, mas sabemos também que é necessário irmos à
procura das fontes, em busca dos vestígios do passado. Mesmo após esta busca, e o encontro
com as fontes, faz-se necessária uma “desconfiança” inicial, pois devemos entender que tudo
aquilo que ali está exposto são representações do que foi permitido transparecer de uma
determinada época, por isto corroboramos com o pensamento de Chartier, quando diz:
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor autoridade à
custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a
justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (CHARTIER,
2002, p.17)

A história das mulheres e da escrita feminina é de suma importância, pois contribui


também para uma melhor compreensão da própria história da educação. Educação esta que
consideramos como não só a institucionalizada no espaço escolar, mas, como todas as
concepções e ideologias que influenciam uma sociedade, por isto entendemos que:
O volume e a natureza das fontes das mulheres e sobre as mulheres variam
consequentemente ao longo do tempo. Eles são por si mesmos índices de sua
presença e sinal de uma tomada da palavra que se amplia e faz recuar o silêncio, às
vezes tão intenso que chegamos a nos perguntar: “Uma história das mulheres é
possível?”. (PERROT, 2005, p.13, apud NUNES, 2013, p.3).

As palavras de Perrot em relação à escassez de fontes de e sobre o sujeito feminino


têm sido uma constatação permanente para quem está nessa seara investigativa.

CONHECENDO A FONTE
A imprensa é um importante meio de comunicação pelo fato de ter visibilidade por
grande parte da população. A riqueza de informações que um jornal pode nos transmitir vai
muito além das que estão contidas nos noticiários publicados, podemos perceber nas
entrelinhas aspectos representados da sociedade de uma época, além disso, podemos ver por
diferentes óticas os mesmos assuntos ou temáticas, como elas (são)eram abordadas, o teor de
relevância que (é)era dada, etc. Por este fato entendemos a imprensa como uma importante
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fonte para pesquisas na área de história da educação. Toda esta riqueza de informações antes
não era considerada fonte histórica, a história tradicional não admitia para pesquisas
científicas qualquer fonte que não fosse as provenientes dos arquivos oficiais de governo. A
virada historiográfica que culminou na Nova história Cultural, favoreceu o reconhecimento de
diversos artefatos como fonte; a imprensa foi uma delas, e vem sendo muito utilizada nas
últimas décadas no campo da História da Educação, por exemplo.
No início da pesquisa visitamos os seguintes arquivos: o Núcleo de Documentação e
Informação Histórica Regional – NDIHR, Arquivo do Instituto Histórico Geográfico
Paraibano (IHGP), a Fundação Espaço Cultural da Paraíba (FUNESC), a Fundação Casa de
José Américo, e o Arquivo da Cúria Metropolitana, para dar início a identificação e seleção, e
posterior catalogação, digitalização e análise das fontes documentais.
O jornal Liberdade teve seu primeiro número publicado em 15 de janeiro de 1931,
sob a direção de Adherbal Pyragibe, tendo como redator chefe, Alves de Mello e redator
gerente, Anchises Gomes. Era um jornal que se descrevia, como seu próprio nome diz, o
jornal da liberdade de expressão, “o jornal do povo e para o povo”, era seu lema. No entanto o
que se via era uma postura não muito diferente dos demais, quando o comparamos com outros
jornais já explorados, tanto no que diz respeito a sua organização quanto ao conteúdo das
publicações.

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Figura 1. Jornal Liberdade


Fonte: Fundação Casa de José Américo

Em sua primeira publicação o Liberdade deixa claro quais são as suas pretensões em
um texto de apresentação intitulado: “O que vamos fazer”, como podemos ver na figura 1
acima. Iniciando o seu corpo textual com uma fotografia do ex-presidente assassinado, João
Pessoa, enaltecendo sua “grandiosa” figura e o seu papel no cenário político local e nacional.
Nas palavras do Liberdade:

O nosso programa está synthetizado na eloquencia do próprio titulo.


Por isso mesmo, quase nada teremos a adiantar aos nossos leitores, quanto às
diretrizes jornalísticas do <<Liberdade>>.
Os animadores deste vespertino são muito conhecidos do heróico povo pessoense:
são os mesmos batalhadores d’<<O Liberal>>, são os mesmos discípulos do
Immortal João Pessôa, cujos sabios ensinamentos de civismo nortearão os nossos
destinos.
<<Liberdade nasce, assim, da nossa veneração à memoria infinita do Bravo dos
bravos, d’Aquele que, no seu remigio condoreiro às alturas andinas da Gloria, fez da
Parahyba a arca sagrada das reivindicações nacionaes, o Sinai onde há de transluzir
para sempre a sarça ardente dos idéaes democráticos e dos mais puros sentimentos
republicanos. [...]. (Liberdade, p. 1, jan. 1931)

O jornal era organizado da seguinte forma: possuía quatro páginas, a primeira


destinada a notícias consideradas relevantes, eram as manchetes; a segunda e terceira páginas
eram destinadas às propagandas; a quarta a textos aleatórios, artigos de opinião, notícias,
datas comemorativas ou funerais de pessoas influentes da sociedade. Esse era o formato
inicial do jornal, no entanto, com o passar de alguns meses passou a possuir seis páginas que
eram alternadas entre notícias e artigos, entre outros, e propagandas. Uma característica
peculiar do Liberdade era que sempre em sua primeira página, na parte superior, eram
redigidas citações ou frases de efeito relacionadas ao nome do jornal, em primeiro número foi
publicada uma citação de Ruy Barbosa que dizia: Ou esse povo é escravo, que se liberta,
removendo o oppressor, sem feril-o, ou um degenerado, que na enormidade de sua ingratidão
trae a natureza das influencias educativas que lhe formaram o caracter. (Liberdade, p. 1, jan.
1931)

A PRODUÇÃO FEMININA
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Quanto à produção escrita de mulheres, no período de 1931 a 1939, encontramos


apenas nove textos publicados, dentre eles cinco eram entrevistas, três poesias e um artigo de
opinião. Vejamos no quadro a seguir.

Quadro 1: Textos publicados por mulher no jornal Liberdade de 1931 a 1939

Título e data de publicação Tipo de texto Autora/entrevistada

Enquete: Os direitos Entrevista Alice de Azevedo Monteiro


Políticos da mulher.
(01/03/1931)

Enquete: Os direitos Albertina Correia Lima


Políticos da mulher. Entrevista
(08/04/1931)

Enquete: Os direitos Entrevista A.C.L.


Políticos da mulher.
(02/05/1931)

Monstros! “Liberdade” ouve


a mulher Terêza Marques da Entrevista Terêza Marques
Silva no Hospital Santa
Isabel.
(21/09/1933)

O protesto de uma paraibana


contra as infamias de certa Carta Desconhecida
gazeta. (13/11/1933)

Uma brilhante inteligência Entrevista Marina Lins e Silva


feminina. (27/08/1934)

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Ultimos Lampejos. Poesia Maura de Oliveira Brasil


(15/10/1936)

Paraíba. (16/11/1936) Poesia Belmira Parnaiba

As rosas que eram tuas. Poesia Palmyra Wanderlei


(26/11/1936)

Fonte: Dados da pesquisa, 2015.

Como já citamos, encontramos no período pesquisado apenas nove textos, sendo cinco
entrevistas, dentre essas, três são respostas a uma enquete feita pelo jornal intitulada: “Os
direitos políticos da mulher”. A figura 2 abaixo, se refere à primeira entrevistada que foi Alice
de Azevedo Monteiro, educadora na época.

Figura 2. Jornal Liberdade


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Fonte: Fundação Casa de José Américo

A enquete pretendia descobrir o que as mulheres da sociedade paraibana pensavam


sobre o direito ao voto feminino, que já havia sido garantido em 1932, por um decreto, mas
que só aconteceria em 1934. A entrevistada Alice de Azevedo se diz a favor do voto
feminino:

O voto feminino é uma conseqüência lógica do progresso da humanidade.


Não é cousa de que se possa discutir a conveniencia ou incoveniencia. Deixou de ser
assumpto para estudo: é fato inevitável, certo, mathematico. Agrade ou desagrade é
um fructo maduro a ser colhido. A semente foi atirada á terra com as primeiras
normalistas, medicas, bacharéis.[...]. (Liberdade, p.1, Mar. 1931)

A segunda entrevistada da enquete foi Albertina Correia Lima, que foi uma figura
feminina com grande visibilidade no estado da Paraíba. Filha de Lindolfo Correia das Neves.
Formou-se em Direito pela Faculdade do Recife em 1931. Deu início a sua carreira no
jornalismo em 1912, publicando em alguns jornais do estado, ingressou no Instituto Histórico
e Geográfico Paraibano em abril de 1938, e foi oradora, no ano de 1933, da Associação
Paraibana Pelo Progresso Feminino. Teve uma vasta publicação, faleceu no dia 18 de março
de 1975. (BARBOSA, 2009)
Albertina publicou também outro texto no qual defende o direito ao voto, em 1933 no
jornal A União, e vários outros em que fala da força feminina e o seu papel social. No entanto,
o que nos chamou bastante atenção na enquete é uma declaração da mesma, afirmando que o
direito ao voto feminino deve ser restrito a algumas mulheres:
O voto é a legitima expressão da consciência nacional. Para não perder sua alta
significação e finalidade, deve ser restricto ás mulheres independentes intellectual e
economicamente, isto é, áquellas que possam fazer uso livre e consciente desse
direito. [...]. (Liberdade, p. 1, Abr. 1931)

O terceiro e último texto publicado foi assinado apenas com iniciais, no entanto
suspeitamos que seja de autoria de Albertina Correia mais uma vez, pois as iniciais assinadas
são A.C.L. e o texto foi publicado logo após o assinado por ela. No entanto não podemos
afirmar com certeza quem respondeu à enquete. As justificativas apresentadas pela autora,
para a defesa do voto feminino, são semelhantes às apresentadas por Albertina, fato que pode
ser considerado comum, mas, como citamos acima, ela tem a opinião de que o voto não deve
ser direito de todas as mulheres, neste outro texto não há tal afirmação, entretanto é citado
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novamente o fato de as mulheres que votam serem mais importantes que as demais:
A mulher intelligente, culta, independente, a mulher que trabalha, não pode deixar
de sentir-se humilhada perante suas irmães de outros paizes, em que os direitos
políticos lhes são extensivos. Ella que se engrandeceu pela intelligencia e pelo
trabalho, se elevará muito mais pela plenitude de seus direitos, porque,
incontestavelmente, aquella que vota, vale mais que as outras. [...]. (Liberdade, p. 2,
maio. 1931)

Ainda sobre as entrevistas encontradas, localizamos um depoimento de uma mulher


que delata um acontecimento em que a mesma acredita ter escapado de uma violência.
Segundo a entrevistada, ela foi convidada para um passeio com duas amigas e alguns
chaufeurs, mas, percebeu que haviam outros veículos os acompanhando e que estavam indo
para um lugar distante, a mulher estava com muito medo e decidiu pular do carro onde estava,
mesmo em movimento. Ao pular, feriu-se, caída no chão, foi novamente colocada no veículo,
e mais uma vez ela saltou, desta vez o condutor do automóvel decidiu voltar e levar a mulher
para ser socorrida. Ela contou também que os outros condutores não queriam socorrê-la,
pretendiam deixá-la no local.
A mulher se chamava Terêza Marques, ao final da descrição da entrevista o jornal
indicou o nome de todos os chaufeurs envolvidos. Após a publicação do fato alguns deles se
sentiram ofendidos pelo fato do acontecimento ter sido ligado diretamente à sua categoria, o
jornal publicou, alguns dias depois, uma nota de esclarecimento onde afirma que não foi sua
intenção ofender a categoria dos chaufeurs.
Vimos que dentre os textos publicados por mulheres havia uma carta, trata-se de uma
correspondência, em que uma leitora do jornal escreve para a redação falando sobre um outro
jornal de circulação na Paraíba, o Correio da Manhã. Ela critica o Correio da Manhã por
motivos políticos, afirmando que os seus gestores eram inimigos de João Pessoa, presidente
assassinado da Paraíba, e o Ministro José Américo. Aautora diz ainda que os gestores do
jornal Correio da Manhã apelidavam João Pessoa e José Américo de “João Porteira” e “Zé
Ramona”, respectivamente. Acreditamos que pelo jornal Liberdade apresentar-se
explicitamente como admirador de João Pessoa, a autora do texto viu nele um meio de viável
para apresentar sua opinião. Se dizendo uma admiradora de João Pessoa, ela inicia sua fala
afirmando que não é a favor de a mulher se manifestar em assuntos políticos:

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Sou, por princípio, contraria ás manifestações da mulher em assuntos políticos. Por


isso mesmo sempre me mantive arredada de todas as campanhas que sacudiram
violentamente a alma de minhas patrícias. [...] (Liberdade, p. 1, nov. 1933)

Após essa declaração, a autora do texto diz que, mesmo com essa concepção, sempre
se manteve bem informada de todos os fatos ocorridos no estado. O texto foi publicado no dia
13 de novembro de 1933, a autora assina como “Uma admiradora de João Pessoa”, por este
motivo desconhecemos sua identidade.
Dentre as entrevistas encontradas uma se tratava de uma pernambucana, que estava
residindo em um bairro da capital, João Pessoa. Marina Lins e Silva era uma escritora um
tanto conhecida, conforme podemos deduzir por informações no jornal, que cita algumas de
suas obras. Na entrevista, interrogada sobre o que acha das mulheres intelectuais da capital, dá
um riso sarcástico, segundo informa o jornalista, que já um tanto irritado pergunta novamente,
e ela responde
---Tenho lido a pagina feminina d’<<A União>>. Exercicios escolares... Nada de
positivamente estético. Poesias de pobre inspiração...
Para ser justa, devo excetuar um trabalho de critica assinado por Beatriz Ribeiro
sobre uma poetisa chilena. Está bem traçado. Dizem que Beatriz é uma adolescente
ainda. Promete... [...]. (Liberdade, p. 4, Ago. 1934)

A crítica não foi bem recebida pelo jornalista, ela falou negativamente da Página
Feminina do jornal A União, imprensa oficial, uma conquista das mulheres paraibanas que
compunham a Associação Paraibana pelo Progresso Feminino, fundada em 1933, seguindo os
moldes da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, criada em 1922, por Bertha Lutz e
outras mulheres.

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Figura 3. Jornal Liberdade


Fonte: Fundação Casa de José Américo

Além dos textos já citados, encontramos três poesias, uma intitulada “Paraíba”, de
Belmira Parnaiba, “As rosas que eram tuas” de Palmyra Wanderlei, por fim “Ultimos
Lampejos” de Maura de Oliveira Brasil . Não encontramos informações sobre Belmira
Parnaiba e Maura de Oliveira Brasil. Palmyra Wnderley era uma conhecida escritora
Potiguara, precursora do jornalismo no Rio Grande do Norte, suas poesias eram publicadas
em vários jornais paraibanos como A União, A Imprensa, entre outros.

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Figura 4. Jornal Liberdade


Fonte: Fundação Casa de José Américo

Este gênero textual, a poesia, era o mais constante escrito por mulheres na imprensa
paraibana, em resultados de pesquisas anteriores, encontramos 30 poesias de um total de 52
textos escritos por mulheres no jornal A Imprensa, ou seja, mais de 50%. Não consideramos
menos importantes, pois este foi um dos primeiros espaços de escrita para mulheres na
imprensa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos o quanto é difícil escrever sobre história de mulheres, porque por muito
tempo o único espaço concedido a elas, “generosamente” pelos homens, era o doméstico,
espaço que não merece de forma alguma menosprezo, no entanto talvez pelo motivo de a
mulher ser a sua maior atuante, o que não é sinônimo de dominante, isto ocorresse.
Acreditamos também que a dificuldade de produzir sobre história de mulheres é uma
constante, como disse Perrot:
Porque são pouco vistas, pouco se fala delas. E esta é uma segunda razão de

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silêncio: o silêncio das fontes. As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos
ou materiais. Seu acesso à escrita foi tardio. Suas produções domésticas são
rapidamente consumidas, ou mais facilmente dispersas. São elas mesmas que
destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem interesse. Afinal, elas são
apenas mulheres, cuja vida não conta muito. Existe até um pudor feminino que se
estende à memória. Uma desvalorização das mulheres por si mesmas. Um silêncio
consubstancial à noção de honra. (PERROT, 2015, p. 17)

Com base nos resultados e nas discussões que realizamos sobre os textos que foram
escritos por mulheres na década de 1930, percebemos que houve uma grande abertura no que
se refere à discussão sobre os direitos da mulher, mesmo que, elas mesmas não tivessem
muitas publicações no jornal pesquisado. Não haviam muitas mulheres escritoras, nem muitas
redatoras ou diretoras de jornais. O que podemos perceber é que as mulheres que publicavam
em jornais, em sua maioria eram intelectuais, detinham algum poder aquisitivo e, muitas
vezes, tinham sobrenomes conhecidos por pertencerem a famílias tradicionais da Paraíba,
tendo seus nomes atrelados aos parentes homens, pai, marido, irmão.
O jornal Liberdade não era um dos considerados mais importantes na história da
Paraíba, não encontramos referências que mencionem sua história ou fale sobre suas
publicações. Todas as informações aqui mencionadas foram extraídas do próprio jornal, pois,
tivemos acesso ao seu primeiro número. Criado no auge da discussão sobre direitos e
liberdade, de um modo geral, sem distinção de gênero, o Liberdade teve um discurso a favor
da liberdade de expressão, embora se demonstrasse situacionalista, muitas vezes, nos
posicionamentos políticos. Encontramos exemplares desde 1931, data de inauguração, até
1939, último ano de interesse da pesquisa. Sabemos que o Liberdade foi fechado, pois nos
dias atuais não há circulação dele, entretanto não temos a informação sobre o seu fechamento,
como se deu, em que ano ou os motivos que levaram a tal acontecimento.
Não se pode negar a crescente visibilidade das mulheres na imprensa e em outros
espaços públicos, a década pesquisada era o momento propício, já que vários direitos foram
conquistados. No jornal Liberdade, no entanto, não encontramos um volume de publicações,
considerado razoável, já que em outros, mesmo considerados tradicionais, como A Imprensa,
que tinha interesses predominantemente religiosos, encontramos mais que o triplo em textos
escritos por mulheres. No entanto, não podemos realizar julgamentos de uma época onde
escrever era um privilégio para poucas mulheres e poucos homens, também, reconhecendo-se
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que a escolarização ainda era de oferta limitada, e considerando também que ainda hoje há
novos espaços a serem conquistados pelo dito“sexo frágil”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACL. Enquete: Os direitos políticos da mulher. Liberdade. João Pessoa. p. 2. Mai. 1933.
ANONIMA. O protesto de uma paraibana contra as infamias de certa gazeta. Liberdade.
João Pessoa. p. 1. Nov. 1933.
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Pequeno dicionário dos escritores/jornalistas da
Paraíba do século XIX: de Antonio da Fonseca a Assis Chateaubriand. João Pessoa: Editora
Universitária, UFPB, 2009.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria
Manuela Galhardo. 2 Ed. Algés Portugal, . Difusão Editora S.A., 2002.
LIBERDADE. Paraíba-Brasil. De 1931 a 1939
LIMA, Albertina Correia. Enquete: Os direitos políticos da mulher. Liberdade. João Pessoa.
p.1. Abr. 1933.
MONTEIRO, Alice de Azevedo. Enquete: Os direitos políticos da mulher. Liberdade. João
pessoa. p.1. Mar. 1933.
NUNES, Maria Lúcia da Silva. Quando as mulheres escrevem: textos sobre educação na
imprensa da Paraíba (década de 1930). Projeto PIBIC 2014/2015. Universidade Federal da
Paraíba, 2013.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução Angela M. S. Côrrea. 2 ed.-
São Paulo: Contexto, 2015.
SILVA, Marina Lins e. Entrevista: Uma brilhante inteligência feminina. Liberdade. João
Pessoa. p. 4. Ago. 1934.

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JOVEM, BONITO E VIRIL: PROBLEMATIZANDO AS CAPAS DA


G MAGAZINE (1997 – 2007)

Ms. Fábio Ronaldo da Silva97| fabiocg@gmail.com


Raquel da Silva Guedes98 | raquel.silva.guedes@gmail.com
Rafael Porto Ribeiro99 | rafaelporto2@hotmail.com

INTRODUÇÃO
Falar do Outro é tão complexo quanto o ser. O Outro pode ser aquele que tem
alguma deficiência ou limitação física, o mendigo que fica pedindo um trocado lá no centro
da cidade, a mulher que faz faxina na minha ou na sua casa ou aquela velhinha que está
esperando o ônibus. Convivemos com o Outro, e o somos para eles, todos os dias, em vários
ambientes e situações. Mas, na maioria das vezes, fingimos que não existem ou os toleramos.
Todavia, há momentos onde esse “preconceito velado” se faz aparecer em pesquisas
divulgadas pela mídia e foi com base em uma que a ideia desse trabalho surgiu. Em 19 de
junho de 2005, a Folha de São Paulo no caderno “Mais” publicou uma matéria intitulada “Só
os viris e discretos serão amados?” que trazia uma pesquisa feita entre os participantes da
Parada Gay paulista com a seguinte informação:
Na pesquisa do Datafolha, chamou a atenção o fato de 76% dos entrevistados
concordarem, total ou parcialmente, com a idéia de que "alguns homossexuais
exageram nos trejeitos, o que alimenta o preconceito contra os gays". A mesma
pesquisa no Rio de Janeiro revelou que, entre os homens homossexuais, 44,6%
preferem parceiros "mais masculinos", contra apenas 1,9% que os preferem "mais
femininos". Para alguns, por aumentar o preconceito, a feminilidade parece
politicamente incorreta nos homens. Para outros, deve ser cuidadosamente policiada
pelos que se aventuram no mercado dos afetos e paixões.

97
Doutorando em História pelo PPGH/UFPE. fabiocg@gmail.com
98
Mestranda em História pelo PPGH/UFCG. raquel.silva.guedes@gmail.com
99
Graduando em História pela UAH/UFCG. rafaelporto2@hotmail.com
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Trocando em miúdos, mais de 40% afirmavam que nunca teria nenhum tipo de
relacionamento com homossexuais não viris, ou seja, com aqueles homossexuais chamados,
no cotidiano, de “bicha”, aqueles que “dão pinta”, também chamados, vulgarmente, de
“viado”. Esse Outro é o outro do homem “a categoria serve para assinalar sujeitos cujo
processo de materialização enquanto homem de verdade fracassaria”100 e o Outro do
homossexual. Esse Outro não virilizado seria então uma figura abjeta que, quando trazido pela
mídia televisiva, por exemplo, será, na maioria das vezes, representado como um pícaro,
alguém que serve para divertir e, quando muito, ajudar quem esteja passando por alguma
situação difícil.
Escolhemos então, fazer uma análise das imagens trazidas nas capas da revista G
Magazine (1997-2007) – publicação voltada para homossexuais masculinos e que esteve101
por 16 anos, sem nenhuma interrupção, em circulação no mercado editorial brasileiro – no
intuito de perceber qual a representação de masculinidade que ela apresentou para o público
que consumia a revista. Para tanto, será feita não apenas uma análise da representação do
modelo que posa na capa, mas o personagem que ele representa, o gestual, bem como os
elementos que vão compor o cenário que, juntos, contribuem para reafirmar a virilidade do
personagem ali representado.

A IMPRENSA “SAI DO ARMÁRIO”

As publicações sobre e para “entendidos” começaram a ser produzidas no Brasil na


década de 1960. Como nos lembra Green (2006) “foram raríssimos aqueles que ousaram
deixar testemunhos de próprio punho sobre a sua condição, pelo menos até os anos 1960”
(p.17). Antes de 60, o que se podia ler sobre os homossexuais estaria em relatórios médicos,
boletins ou páginas policiais e em matérias jornalísticas sobre o carnaval. Periódicos como O
snob (1960), Lampião da Esquina (1978), e revistas como SuiGeneris (1995) foram algumas

100
OLIVEIRA, Leandro de. As realizações polimorfas da figura da bicha. Anais do VII Seminário Fazendo
Gênero. UERJ, 2006, p. 01.
101
A revista deixou de ser publicada em junho de 2013 quando saiu a edição 176 que trazia o modelo Sergey
Henir na capa.
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das principais publicações que marcam a história da mídia voltada para o público gay no país.
Todavia, por questões de espaço, nos deteremos apenas a G Magazine, periódico que tinha
como especialidade o nu masculino, e que passou a se destacar das demais já existentes e que
tinham a mesma proposta, pelo fato de trazer em suas capas personalidades famosas, como
jogadores, atores e cantores que expunham nu frontal e o falo ereto.
Nunan (2003, p. 185) afirma que,
Com relação às publicações com fotos de homens nus masculinos pode-se citar,
primeiramente, as revistas Spartacus e Alone (surgidas entre as décadas de 60 e 70).
Em abril de 1997 chega às bancas de todo o país a Bananalouca, revista paulista que
depois de algumas edições e mudanças de direção se transforma na G Magazine, um
fenômeno editorial, chamada por muitos de ‘Playboy gay’. Dirigida para os
homossexuais masculinos, a G Magazine se tornou conhecida do grande público
devido à adoção de uma estratégia semelhante à da Playboy, isto é, convidar
personalidades famosas para posarem nuas na revista. [...]. Em junho de 1997 a SG-
Press (mesma editora da Sui Generes), de olho no filão dos nús masculinos, lança a
Homens, revista de qualidade bastante inferior à da G Magazine. Entre as demais
publicações com conteúdo sexual citamos: Gold, Porn, Sex Symbol, Sodoma (a
primeira revista nacional a mostrar sexo explicito entre homens, também da editora
SG-Press) e Top Secret (fotonovela gay da editora Fractal, a mesma da G
Magazine), entre outras.

Assim como as condições de organização política dos homossexuais em grupo, o


surgimento, bem como a manutenção da imprensa especializada, é uma forma de
manifestação da explosão discursiva sobre o homoerotismo, o que não significa
necessariamente a aceitação da homossexualidade como prática legítima. Se observarmos, a G
Magazine, periódico do qual nos propomos analisar as capas, está cheia de significados e
valores tais como o de homem viril, de um corpo a ser desejado e, até mesmo, de uma
masculinidade representada. As quatro primeiras edições saíram com o título Bananaloca,
uma quinta edição saiu com o título Bananaloca apresenta G Magazine, até a revista adotar
seu nome definitivo e recomeçar do número um, em outubro de 1997.
É importante perceber que, desde a sua primeira capa, a revista já começava a
construir, no imaginário dos seus leitores, uma virilidade representada, como vamos ver mais
adiante. A proposta era de mostrar o falo ereto já na primeira edição, como podemos observar
nas informações existentes no site da revista e que aqui transcrevemos:
Não tínhamos plena certeza de que deveríamos publicar fotos de homens com o
pênis ereto. Já apareciam, mas timidamente. Uma espécie de tabu interno a ser
resolvido... Entretanto, diante dos inúmeros pedidos de leitores (que a partir de então
pautariam todo o caminho da G), finalmente nos rendemos à ode ao falo “erectus”.

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A ordem era que as fotos do modelo de capa da edição nº 1 da G Magazine já


contemplassem a anatomia do pênis em todos os estágios... Mas, na última hora,
Vitor Xavier acabou dando pra trás e não se deixou fotografar assim... Os primeiros
a aparecerem com pênis eretos mesmo foram os modelos Johnny e Luciano Muller,
que saíram na seção Desejo da primeira edição da G102.

A revista está cheia de elementos sígnicos que reforçam e representam a imagem de


virilidade masculina e isso, ao mesmo tempo, serve para reforçar o preconceito existente entre
os próprios gays no que se refere aos estereótipos “afeminados” e “não-afeminados”. Pois o
que é mostrado, representado nas capas dessa revista é o macho, o homem forte, másculo e
viril e não o contrário.
Para nós, historiadores, é importante nos debruçarmos sobre a imprensa voltada para
grupos minoritários, em especial o público homossexual masculino, pois a existência desse
tipo de publicação não atribui automaticamente um lugar de fala para o homossexual na
sociedade. Desta feita, torna-se ambígua a existência de uma imprensa segmentada: de um
lado, indica o reconhecimento de uma identidade, o que significa que os homossexuais não
precisam se esconder, não são mais “indesejáveis”. Por outro, estes ainda são sinais da
acentuação de diferenças, ou melhor, de desigualdades; é preciso que haja uma publicação
específica para eles, pois nas outras; eles não encontram espaços, o que significa que a
sociedade reconhece a diferença, porém, essa se encontra marcada e isolada em relação à
orientação heterossexual (auto) proclamada como dominante.

MASCULINIDADES EM REVISTA

Toda identidade é um constructo, um artifício, bem como toda teoria, todo discurso,
todo pensamento. Se todas as identidades estandardizadas são verdadeiras ou todas falsas,
então essas categorias, tomadas isoladamente, não dão conta do problema. Assim, o
importante nesse caso é saber como as pessoas se veem, se definem e reagem aos modelos
identitários difundidas pelas imagens – nos deteremos aqui, as estáticas, produzidas e
veiculadas nas capas da revista G Magazine. São imagens reais na medida em que indivíduos
ali se reconhecem, são falsas para aqueles que se sentem de algum modo agredidos,

102
Informações retiradas do sítio: http://gonline.uol.com.br/site/arquivos/estatico/memorias.htm
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caricaturados, ludibriados.
A masculinidade tem a ver com relações sociais como nos lembra Keijzer (2001,
p.3), a masculinidade é “un conjunto de atributos, valores, funciones y conductas que se
suponen esenciales al varón en una cultura determinada”103.
Autores como Nolasco (1995) e Goldenberg (2004) apontam uma crise da
masculinidade ao surgirem tensões entre o padrão tradicional de identidade masculina e a
possibilidade de viver novas formas de ser homem. Assim também o estudo de Oliveira
(2004), sobre a construção social da masculinidade, aborda uma possível crise da
masculinidade em um contexto específico da sociedade, mas não a defende como algo
generalizado, pois, diz ele, que nas camadas populares o modelo tradicional de hegemonia
masculina predomina. De modo geral, tanto homens como mulheres ainda alimentam o ideal
de comportamento dos homens baseado na força, no poder e na virilidade (GOLDENBERG,
2000), mas o que se encontra é um modelo em que o comportamento tradicional já não é mais
valorizado. A virilidade fica ameaçada.
A masculinidade é social e culturalmente construída, sendo secundária, frágil e
desenvolvida a partir da feminilidade. É fácil constatar quanto os homens se preocupam em
demonstrar, comprovar e reafirmar sua virilidade.
A necessidade de “restaurar” a masculinidade dominante conduz à revalorização da
masculinidade tradicional. Este esforço de restauração de uma imagem deteriorada provocou
o surgimento de cultos que são comumente definidos como a verdadeira masculinidade.
Demarcada pela excessiva valorização da virilidade, do sentido do dever, do sacrificar-se pelo
bem da sociedade, do ideal de guerreiro, este culto da masculinidade fez surgir, nas décadas
de 1980 e 1990, modelos de homens como os atores Silvester Stalone e Jean Claude van
Damme, inspirados no antigo ideal masculino do cowboy104.

103
“um conjunto de atributos, valores, funções e condutas que se supõem essenciais ao homem em uma cultura
determinada” [Tradução do autor].
104
Segundo Pollakapud Vincent (1983), “cabelos curtos, bigode ou barba, físico musculoso... As imagens míticas
mais freqüentes na imprensa homossexual e nas revistas pornográficas especializadas são o caubói, o
caminhoneiro e o esportista” (p. 371), personagens esses que, serão representados nas capas da G Magazine que
analisaremos no decorrer desse trabalho.
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Fig. 01: Outubro de 1997 Fig. 02: Abril de 2006 Fig. 03: Agosto de 2000

Sobre isto, podemos perceber na capa da primeira edição com o modelo Vitor Xavier
(fig. 01) e nas capas com Ricardo Vilani (fig. 02) e Esnar Ribeiro (fig. 03) que aparecem com
elementos que nos remetem à própria imagem do cowboy. O primeiro, está representando a
figura de um vaqueiro ou cowboy, personagem que, no imaginário, se destaca sempre pela
bravura, agilidade e, o mais importante, masculinidade e virilidade. A representação desse
personagem será utilizada algumas vezes pela revista em diferentes capas, sendo este o
personagem que mais se aparece nas capas da revista.
O leitor perceberá que eles estão representando vaqueiros ou cowboys pela existência
de alguns símbolos como o cinto e o chapéu que os modelos estão usando, bem como o
cenário onde se encontram. Isso é o que Chartier (1998) vai chamar de apropriação, ou seja, a
forma como os indivíduos dão sentido ao que vêem e/ou lêem. Trata-se da construção de
sentido e interpretação. A apropriação é, por definição, histórica. No campo da leitura, seja
esta textual ou imagética, os fatores que determinam a apropriação são as competências do
leitor, derivadas por sua vez das práticas de leitura que ele possui; os dispositivos discursivos
e formais (inclusive materiais) etc. A apropriação tem suas determinações sociais,
institucionais e culturais.
Já Ricardo Villani (fig. 02) aparece mais como um vaqueiro do que um cowboy e
isso pode ser visto pela existência de alguns elementos que chamaremos aqui de signos: o
fundo verde, mesmo que desfocado, que nos passa a ideia de um pasto e o chapéu de
vaqueiro.
Para haver entendimento dos signos, existe a necessidade da emissão de uma
mensagem para alguém. Então temos uma mensagem, um emissor e um receptor. Para que

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haja uma boa relação entre estes três elementos deve haver uma boa codificação de signos e
sinais. Se o receptor não reconhecer os sinais, então não entenderá a mensagem. Estes signos
transformam-se em uma linguagem clara e cada cultura possui signos diferentes e com
características próprias, mas com a globalização, em especial, culturas de determinados
povos, até então não conhecidas, puderam ser visualizadas por outros povos e aquelas já
conhecidas, receberam maior massificação no intuito de serem absorvidas. Por isso, mesmo a
figura do cowboy não fazendo parte da nossa cultura, já a introjetamos através dos filmes das
décadas de 1950 e 1960, pelos comerciais de cigarros da década de 1980 e 1990.
Ainda sobre a segunda capa, na figura 02, apenas o rosto do modelo é mostrado e a
representação de virilidade estará, não apenas no personagem que é utilizado pelo modelo,
mas no rosto, ou seja, pela a barba e pelo o olhar. Enquanto que na figura 03, similar a figura
01, o foco é o corpo do modelo e a atenção do leitor estará voltada para a área da genitália do
Esnar Ribeiro que ganha destaque devido ao tamanho da fivela do cinto que ele está usando
junto a cueca de couro.
Segundo Mira (2003), os produtores de revistas eróticas e/ou pornográficas, muitas
vezes, compartilham do mesmo universo cultural dos consumidores de determinadas revistas,
sabendo como “agradá-los”, isso implica que, possivelmente, o leitor/consumidor da G
Magazine não encontrará nas capas desta publicação, por exemplo, mulheres como atração
principal nem tampouco um modelo representando um apanhador de lixo, pois isso não faz
parte do imaginário desejante de quem consome essa revista.
Ainda segundo a autora, os produtores sabem a quem se dirigem, sabem quem e qual
é o seu público e falam a mesma linguagem “proibida” e conhecem os seus códigos de
deciframento. Como é um jogo compartilhado, existe um processo de cumplicidade, de
comunicação entre o leitor/consumidor e os produtores.
Se tomarmos Nolasco (1998) que afirma que o sentimento de identidade masculina
está mesmo ligado à identidade sexual, podemos afirmar que será no campo sexual onde
haverá as maiores exigências. Isso porque, na cultura ocidental, masculinidade implica ser
masculino, logo, ativo. Ser ativo, utilizando a discussão sobre gênero, significa ser ativo
sexualmente, ou seja, penetrar o corpo de outra pessoa. É possível perceber na figura 05 que
segue a ideia de virilidade, força e poder que estarão presente devido a presença de um
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elemento, a “viga de aço” entre as pernas do modelo, representando o falo.

Fig. 04: Fevereiro de 2006 Fig. 05: Abril de 2002 Fig. 06: Fevereiro de 2007

Enquanto que o negro que aparece na fig. 06 representa um malandro, aquele homem
que seduz a todos para conseguir o que quer, se é uma pessoa que consegue o que quer e
seduz quem deseja, é um macho em potencial pois, a todo momento, está mostrando que é
uma pessoa forte, máscula e viril.
Como nos mostra Machado (1997),
O malandro se constrói positivamente como aquele que rouba, assalta, mata, bebe e
se droga, associando estas atividades à valorização positiva do macho: corajoso,
dono de sua vontade e capaz de impor sua vontade. A idéia de “macho” no campo da
sexualidade, centrada no lugar simbólico do masculino como lugar da iniciativa é
que parece fundar a crença da idéia de “macho social”, aquele que tem a iniciativa e
a imposição da vontade no plano social (p. 238).

Tanto nas imagens já mostradas o destaque que foi dado ao corpo dos modelos.
Estes, na maioria das vezes estarão sem camisa, exibindo um corpo forte, malhado, com
músculos definidos.
Ao mesmo tempo em que traz e mostra modelos viris e com corpos definidos,
tomaremos como exemplo aqui, as figuras 04 e 05, a revista acaba contribuindo para
influenciar no que tange ao desejo do corpo desejado e o desejoso, pois, como afirma Oliveira
(2004), a mídia, assim como a publicidade exploram características tidas como típicas da
masculinidade reafirmando as prescrições comportamentais contribuindo para reproduzir e
representar a masculinidade como um lugar imaginário de sentido estruturante junto aos

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processos de subjetivação do agente, neste caso, do consumidor da revista.


Assim, ao mesmo tempo em que se quer “possuir” aquele corpo exibido nas capas e
nos ensaios trazidos pela revista, há também o desejo de se construir, moldar o próprio corpo
para que seja semelhante ao corpo exibido. Podemos ver que, o modelo da figura 04, possui e
oferece um corpo com músculos “esculpidos”, sendo este um padrão físico a ser alcançado.
Além disso, Leandro Becker (fig. 04) traz consigo o sorriso, que nos atesta a alegria,
possivelmente, pela saúde física que o mesmo possui. É como se ele estivesse alegre por ter
um corpo musculoso, sentindo um certo prazer por isso.
O erotismo desses corpos estará ligado a alguns elementos, tais como: o corpo
musculoso – uma musculatura definida - o famoso “bombado” ou “barbies”, mas que não
chegam aos limites extremos dos boudbuilders105 norte-americanos – e o pênis grande, sendo
que este último, quase nunca será mostrado, mas insinuado. Símbolos de virilidade e força, o
corpo musculoso e o pênis grande vão ser postulados como características imprescindíveis
para representar a virilidade masculina nas capas da G Magazine.
Além da ausência de pelos, outro ponto que merece ser destacado é que tanto os
modelos das figuras 04 e 05, por exemplo, possuem rosto de uma pessoa jovem ou de um
adolescente, mas nem por isso ele perde sua virilidade. A ausência de barba contribui para que
os modelos se aproximem da imagem de garotos novos, pois, dentro do padrão de
normatização que faz parte do imaginário de nós, ocidentais, barba, além de outros atributos,
traz consigo a ideia de pessoa mais velha e, em alguns casos, pessoas sujas e descuidadas.
Podemos afirmar então que, para muitos, o ato de se barbear e eliminar os pelos do corpo é
uma forma, também, de esconder o envelhecimento e aparecer jovem e saudável. A
normatividade ou normalização teve ação disciplinar direta sobre o corpo. Era sobre ele que
se refletiam os diferentes saberes-poderes.
Notamos a “atividade” frequentemente relacionada com força física, corpos
musculosos, homens viris. Desta feita, podemos perceber a influência da historicidade na
construção dessas analogias. Tal influência está inteiramente relacionada com a história da
higiene corporal.

105
Aqueles que trabalham no corpo como um “artesão”, moldando-os de acordo com o desejo de se sentir mais
musculoso e viril.
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Em quase todas as capas todos os modelos se encontram sozinhos, o que sugere que
esse outro para quem olham e sorriem e com quem tentam estabelecer um diálogo pode ser o
fotógrafo que está por trás das lentes, o qual, também ausente na fotografia, dá seu lugar ao
leitor, que passa a ser o interlocutor da cena.
A instauração de uma interlocução se dá no jogo enunciativo “eu-tu”, denunciado nas
revistas pelo olhar dos modelos fotografados, que se volta constantemente ao leitor, o que
atrai, de alguma maneira, o olhar do leitor para o corpo fotografado, como se o convidasse a
participar dessa cena. Esse convite começa como é de se imaginar, já nas capas. A capa,
considerada como o espaço de apresentação da revista, constitui o primeiro contato entre o
leitor, e anuncia em destaque o conteúdo mais importante da edição; no caso das publicações
consideradas aqui, os ensaios de nu.
Magnavita (2008) discutindo a respeito do “ideal” que há na mente das pessoas, e em
especial, naquelas que são homossexuais afirma que,
um sujeito pode ser homossexual, contanto que não seja uma "maluca desvairada e
caricata" (leia-se: afeminado) e, ao que parece, ser "velho" é também um demérito, e
não uma condição natural e inevitável da biologia. Tal discurso não dá espaço para a
invenção da homossexualidade a partir de um ativismo constante e auto-
questionador, conforme nos propõe Foucault. Existe, para este tipo de militante, uma
forma ideal de ser homossexual, uma forma que, justamente por ser idealizada,
exclui terminantemente uma realidade: efetivamente, existem homens homossexuais
afeminados, quer gostem disso ou não os gays descolados, modernos e másculos106.

Tal afirmação do autor nos indica que, dentro do próprio grupo que já é estigmatizado
por grande parte da sociedade heterossexual, existem outros grupos que sofrem preconceitos
por não serem viris, por serem gordos, velhos etc. O que nos mostra que há uma seleção,
dentro do grupo homossexual, do que é e o que não é bem-vindo, o que podemos denominar
de preconceito, havendo dessa forma, um grupo que domina, isto é, os másculos, viris, pois
são discretos, logo, não percebidos pela sociedade quanto a sua orientação sexual e os
dominados, os efeminados, não viris, tidos como passivos e que causam “vergonha”. São
esses últimos à que será negada a existência nas capas da revista G Magazine.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

106
Retirado do sítio: http://www.portalcienciaevida.com.br/ESFI/Edicoes/22/artigo87205-1.asp .
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CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações: Difel, 1998.


GOLDENBERG, Maria. Os novos desejos: das academias de musculação às agências de
encontros. Editora Record, Rio de Janeiro, 2000.
GREEN, James. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX.
São Paulo: Editora UNESP, 1999.
____________. Frescos trópicos: fontes sobre a homossexualidade masculina no Brasil
(1870 – 1980). Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006.

KEIJZER, B. Hasta donde el cuerpo aguante: género, cuerpo y salud masculina. In: R
Briceño-León, MCS Minayo, & CEA Coimbra Jr. (coords.). Salud y equidad: una mirada
desde las ciencias sociales. Fiocruz, Rio de Janeiro, 2000.
MACHADO, Lia Zanotta. Masculinidades e violências. Gênero e mal-estar na sociedade
contemporânea In SCHPUN, Mônica R. (org). Masculinidades. SP: Boitempo Editorial;
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MIRA, Maria Celeste. O Leitor e a banca de Revista: A segmentação da cultura no século
XX. São Paulo: Olho d’água, 2003.
NOLASCO, Sócrates. De Tarzan a Homer Simpson: banalização e violência masculina
em sociedades contemporâneas ocidentais. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
NUNAN, A. Homossexualidade: Do Preconceito aos Padrões de Consumo. Rio de Janeiro.
Editora Caravansarai, 2003.
OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A Construção Social da masculinidade. Belo Horizonte.
Editora UFMG, 2004.

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LIGAÇÕES PODEROSAS: DISCUSSÃO DE GÊNERO ENTRE JUVENTUDES NO


WHATSAPP

Amanda Nogueira de Oliveira 107 | olivanog@gmail.com

INTRODUÇÃO
Toda semana, diferentes agrupamentos juvenis se encontram em locais estratégicos
pré-determinados via WhatsApp108. Ruas, praças, vielas, diferentes locais de encontro, veem-
se abarrotados de jovens, de diferentes identidades de gênero, provenientes de vários locais da
cidade, com diferentes gostos, vontades e, também, que trazem múltiplas perspectivas de vida.
Nos encontros, a música vira componente básico, especialmente o funk, trilha sonora
fundamental desses encontros. Autodenominados família, tais grupos mantêm contato
permanente, mediados pelo uso do celular. E, dia após dia, mais e mais jovens entram e saem
dessa esfera.
Para além de toda uma gama de agrupamentos urbanos que também seguem essas
características apresentadas no primeiro parágrafo, esse artigo leva em consideração as
práticas sociais plurais geradas por um agrupamento específico: a família “Os Poderosos e As
Poderosas”. Composta por adolescentes e jovens de diferentes bairros de Fortaleza (CE), a
família mantém grande concentração de participantes provenientes das comunidades da
Secretaria Regional VI, onde estão localizados bairros como Messejana, Barroso, Castelão,
Curió e, principalmente, a Sapiranga de onde vem a maior quantidade de integrantes da
família.
Nesta família, há uma quantidade extensa de representações sociais, ligadas também

107
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Universidade Federal do Ceará
(PPGCOM-UFC), como bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Email: olivanog@gmail.com
108
Aplicativo de celular utilizado como ambiente de comunicação bidirecional, entre duas pessoas em ambiente
caracterizado como privado, e multidirecional, entre duas ou mais pessoas, caracterizado como grupo, mantendo
a internet como rede-base para sua utilização.
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às identidades de gênero construídas por cada um dos que fazem parte desse âmbito. Exemplo
disso é a criação de funções pré-determinadas para a diretoria, que rege o agrupamento, da
família ainda baseada na dicotomia homem/mulher, e crises geradas pela incompreensão, de
alguns integrantes, quanto aos que se sentem representados por identidades de gênero que
fogem dessa dicotomia.
A opção metodológica para esse trabalho é a etnografia por se configurar como a mais
indicada para acessar os sentidos dos usos do celular no estabelecimento, fortalecimento e
desfazimento de vínculos entre os jovens da referida “família”. Tal etnografia se dá tanto na
forma como essas juventudes se encontram nas praças e ruas, quanto nos grupos presentes no
WhatsApp. Esta opção metodológica também coaduna com uma discussão recente acerca do
uso da etnografia em aspecto virtual. Levando em consideração que tais mediações,
provocadas por diferentes tecnologias a partir do advento da internet, propiciaram a geração
de diferentes agrupamentos e comunidades em âmbitos digitais, é importante destacar que
internet também deva ser encarada como um lugar gerador de práticas sociais (POLIVANOV,
2013).
Diante dessa perspectiva apresentada, é objetivo deste artigo compreender, no campo
da sociabilidade (SIMMEL, 1983) as relações sociais tecidas por esses adolescentes e jovens
pertencentes à família “Os Poderosos e As Poderosas”, quanto à discussão de gênero
existente, percebendo como ela está inserida na construção e fortalecimento de vínculos deste
agrupamento, por meio de seu contato estabelecido por WhatsApp.

CONHECENDO A FAMÍLIA “OS PODEROSOS E AS PODEROSAS”


Caminhar pelo espaço urbano oferece múltiplas formas de vivenciar a cidade e resulta
em experiências que acontecem de forma única e diferenciada para cada habitante. Cada
indivíduo nutre uma relação própria com a cidade e com outros indivíduos e, mais que isso, o
ato de “caminar por la ciudad lleva consigo la posibilidad de recibir e interpretar múltipies
mensajes que hablan a sus habitantes, emiten sefiales e intervienen em los comportamientos"
(MARGULIS, 2009, p. 90).
Assim é que, logo no começo de 2015, em meus trajetos pela cidade, observei nas
calçadas da praça do Lago Jacarey, localizada na Regional VI de Fortaleza (CE), uma
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movimentação diferente de tudo o que já tinha visto até então: causou-me espanto e certa
estranheza o fato de tantos jovens, em plena sexta-feira à noite, por volta das dez horas,
estarem reunidos em um espaço como aquele. No entanto, mesmo tendo sabido da existência
da família na Praça do Lago Jacarey, não é lá onde ela mantém seus encontros. “Os Poderosos
e As Poderosas” utilizam como espaço de convivência e convergência a “praça do
Imprede”109, também chamada por eles de “Via Sul Boladão” ou “Praça do Via Sul”, por estar
localizada perto do Shopping Via Sul. É o que mostra as imagens de divulgação dos encontros
que a família compartilha por WhatsApp (Imagens 1, 2 e 3).

Imagem 1 Imagem 2 Imagem 3


O caráter performativo (PAIS, 2006) das juventudes é único, o que reforça que elas
nem sempre se enquadram nas formas de cultura pré-estabelecidas pelo meio e pela sociedade
em que se encontram. Assim, o WhatsApp, criado como mais um ambiente comunicacional de
trocas informacionais, passa a ser reelaborado por essas juventudes e, também, passa a se
transformar em ambiente de produção de diferentes sentidos, gerando variadas culturas
performativas, diferentes modos de atuação, e mostrando que “a natureza dos objetos é
construída através das relações sociais nas quais eles estão inseridos” (GUIMARÃES JR.,
2010, p. 48).
Autointitulada família pelos que fazem parte do “Os Poderosos e As Poderosas”, essa
categorização revela uma capacidade de organização interna e manutenção de vínculos
afetivos, a partir de uma ideia de troca, de solidariedade, e de ações de ajuda mútua entre seus

109
No caso, quando os/as integrantes da família “Os Poderosos e as Poderosas” divulgam seus encontros tanto
pelo whatsapp como pelo facebook, eles denominam a praça onde o Instituto da Primeira Infância (Iprede) está
localizado, como praça do Imprede.
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integrantes. É o que reforça Kelly110, 22 anos, integrante da família desde o começo de 2015:
Uns a gente já conhece quando a gente entra. Outros a gente não conhece. Mas a
gente pega um afeto, um carinho, por justamente estar muito reunido, por encontros
e estar juntos a gente forma aquele laço de amizade que a gente começa a considerar
uma família. Porque, tipo assim, se você é dedicada pro grupo, quando você não está
em casa com a sua família, você tá lá na outra família que é o grupo, ou no encontro,
ou numa festa deles, de alguma das pessoas, então por isso que é chamado de
família. Só que toda família tem seus defeitos, né? Brigas, desavenças e tal, mas por
isso que tem o nome de família, pela ajuda de um ao outro [Entrevista com Kelly, 22
anos, junho de 2015].

Ora, para Simmel, a família se define como “socialização de um pequeno número de


pessoas, que se reproduz no seio de cada grupo mais vasto exatamente sob a mesma forma e
que emana de interesses simples, acessíveis a cada um – portanto, um fenômeno facilmente
conhecível por todos esses motivos” (SIMMEL, 2001, p. 20). Nesta visão, família seria, em
geral, uma forma de agrupamento duradouro exercida, principalmente, a partir de relações
matrimoniais e de parentesco.
Contudo, partindo desse conceito, podemos observar que o termo também pode
nomear diferentes formas de agrupamento social. No caso dos “Os Poderosos e As
Poderosas”, para além do que se consideraria uma espécie de extensão da família
consanguínea, esse tipo de família é um âmbito de construção de laços e vínculos de amizade.
São afetos gerados a partir de ações de amizade. No entanto, isso não quer dizer que não
existam crises e desavenças, como esclareceu Kelly.
Criado em 2012 em Fortaleza, a família “Os Poderosos e as Poderosas” surgiu
primeiro a partir da organização de adolescentes e jovens a partir de um perfil no Facebook. A
perspectiva apresentada já neste primeiro momento pelos fundadores era a de consolidar os
Poderosos como uma família, que fugiria apenas da “curtição”111. No caso deste agrupamento,
como tantos outros existentes em Fortaleza (CE), seus integrantes são regidos por uma
diretoria específica, que mantém diversas funções, dentre elas a de convocar os encontros
semanais.
Percebe-se uma fluidez de fronteiras, a existência de um outro ambiente: um tipo de

110
Nome fictício dado a si mesma pela própria entrevistada.
111
Categoria nativa empregada para famílias que apenas querem curtir. A proposta dos fundadores era ir mais
além, montar uma família onde cada um se ajuda e ajuda os demais.
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dobra ou de interstício entre os sistemas on line, o WhatsApp, e off line, a praça (DIÓGENES,
2012; 2013). É nesse entremeio que as relações sociais são construídas entre os integrantes da
família “Os Poderosos e As Poderosas”, tecidas pelo uso do Whatsapp e pelos encontros
estabelecidos semanalmente na praça. É nesse âmbito onde vínculos de amizade são tecidos,
fortalecidos e até desconstruídos. É nesse espaço onde também as performances de gênero são
evidenciadas. Adolescentes e jovens dialogam e se conhecem. Paqueram e são paquerados. É
um espaço intenso de trocas possibilitado pelo acesso desse mecanismo à internet.
O nome original da família é baseado nos personagens do jogo de videogame “The
King of Fighters”112. Existem dois personagens que representam o feminino e o masculino na
família: a Leona e o Iori Yagami. E são esses personagens que aparecem gravados nas
camisas tanto femininas como masculinas dos Poderosos. A justificativa se dá por o Rafa
considerar que o desenho mostra “querer agir sempre pelo certo, nunca pelo errado”
[Entrevista com Rafael, junho/2015], o que deu a ideia para que o slogan da família fosse
“fechar com o certo é a nossa meta”. A ideia central para o Rafa seria fundar uma família em
que seus componentes tivessem oportunidades de crescimento pessoal e ajuda mútua, e onde
não houvesse o tráfico ou o uso de drogas ilícitas, algo que já fez com que outras famílias ou
equipes acabassem.
Entre os meses de março a outubro de 2015, estive inserida em três dos grupos da
família poderosa no WhatsApp: o geral, onde permanecem todos os integrantes, o do bonde
feminino, que congrega as que se reconhecem desse gênero, inclusive mulheres trans, e o da
diretoria, composto pelos adolescentes e jovens que regem a família.
No começo de 2015 eram onze componentes no grupo da diretoria no WhatsApp, entre
adolescentes e jovens do sexo feminino e do sexo masculino. Durante o ano, alguns
componentes entraram na diretoria, outros saíram, houve os que permaneceram na família
mesmo com a saída da diretoria, e os que saíram definitivamente. Em setembro, a quantidade
passou para sete pessoas. Esse caráter fluido acompanha o agrupamento e evidencia sua
constante mutação, onde não cabe serem transformados em grupos fechados ou considerados
como tal (LATOUR, 2014).

112
Abreviado oficialmente como KOF, é uma série de jogos de luta produzidos pela empresa SNK Playmore.
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OS VET E AS NOVINHAS
No processo de conhecimento daqueles que integram a família, ao mesmo tempo que
me via por entre ricas construções de sociabilidades e possibilidades de ajuda mútua entre
adolescentes e jovens, observava que diversos conflitos entre o ser mulher, o ser homem e,
ainda, ser trans, também geravam crises.
O princípio da discussão acerca da discussão de gênero parte da dicotomia
homem/mulher, onde temos como interlocutora inicial de peso a pós-estruturalista Simone de
Beauvoir, cujo marco é a percepção essencial de que a mulher não nasce mulher, torna-se
(1949). Durante décadas, permanecemos dialogando com esta perspectiva. Somente a partir
dos mais recentes estudos com base na cena queer, passa-se a discutir a concepção de gênero
em uma perspectiva multi e trans. A ideia é rever o posicionamento inicial de reforço da
dicotomia homem/mulher, entender a pluralidade dos diferentes eixos de gênero, e entender
que a compreensão de gênero não deve ser determinada por genitálias (BENTO, 2006).
Na família “Os Poderosos e As Poderosas”, há uma clara divisão de gênero tanto nas
funções estabelecidas para os que fazem parte de sua diretoria, assim como na forma como as
mulheres e os homens são vistos. No caso, eles são normalmente chamados, entre eles, de as
novinhas e os vetin, ou vets113. Tanto um como outro podem virar “botes” 114 na cena.
Na família, existem atribuições específicas dadas pelo patrão Rafael115, 17 anos, aos
componentes da diretoria do “Os Poderosos e as Poderosas”. Tais atribuições também
demonstram uma clara divisão de gênero. Todos reconhecem o Rafa como dono da família, às
vezes também chamado de patrão, e o têm como referência. Isso não evita que haja certas
crises, ou que as determinações do Rafa sejam totalmente aceitas. Em entrevista, Rafael nos
fala sobre as funções na família e quem pode exercê-las:

Diretoria na verdade são só três pessoas. Mas como os poderosos sempre gostam de
fazer um algo diferente, então eu como sou dono, o Richell como é dono, a gente

113
Enquanto que novinhas são as meninas, as mulheres, os vets são os homens, numa redução do termo
“pivetes”.
114
Possíveis esquemas. Tem um caráter altamente sexual, configurando-se como uma possível comida. Remete
ao bote que as cobras dão em suas vítimas.
115
Nome fictício dado para o idealizador da família, é também administrador (adm) dos grupos no WhatsApp.
Fundou a família com mais um amigo e uma amiga e, até hoje, todos são membros da diretoria, sendo que a
jovem está afastada porque deu à luz há pouco tempo.
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tem dois propósitos. Um de que? Deixar um pra apoio da diretoria, no dia que a
gente não puder fazer algo, eles puderem fazer. Tipo organizar, eh... as camisas e
deixar uma patroa pra ir buscar, outra pra entregar às meninas, um patrão arrecadar o
dinheiro, pra ir deixar, e outra pra entregar aos meninos. E tem as puxadoras. As
puxadoras foi uma intenção minha de fazer porque caso isso, eu não puder, e quem
tá na diretoria não puder, pra diretoria as puxadoras são um braço direito. Isso é
dentre elas, não vai chegar a comunicação pra mim. Vai chegar acaso o que? As
puxadoras não puder, isso vai chegar pra mim. Dizer que não “ah eu não vou poder
Rafael, por causa isso isso e aquilo”, isso vai ter que tá no papel de outra puxadora.
Então, eu escolhi o que? Cinco puxadoras de Messejana116, Castelão117, Barroso118,
Siqueira119 e, onde eu moro, na Sapiranga. Essas cinco puxadoras, três faz com que
evolua o grupo e as duas fazem o papel de braço direito da diretoria [Entrevista com
Rafael, 17, junho/2015].

As puxadoras, no caso, têm a função de chamar mais pessoas de seus bairros de


origem a fazerem parte da família. São escolhidas por serem mulheres para que possam
exercer forte apelo perante os que ainda não conhecem a família poderosa. Quanto às festas, é
comum vermos, que as mulheres ou não pagam ou pagam menos que os homens. É
estratégico já que, segundo eles, as mulheres são consideradas a “diversão” das festas. Os
homens encaram, assim, o papel de financiadores do momento. Exemplo disso é um banner
de um evento criado por uma família aliada120 dos Poderosos e divulgado nos grupos de
WhatsApp.

116
O bairro Messejana está localizado na Regional VI. É o coração da Regional, por vezes também chamada de
grande Messejana, onde existem outros bairros. Possui população de 41.689 pessoas, de acordo o Instituto de
Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE).
117
Também inserido na Regional VI, o bairro Castelão conta com população de 5.974 pessoas, de acordo com
dados do IPECE, configurando-se entre os bairros mais pobres da cidade, com Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) de 0,25.
118
Localizado na Regional VI, o Barroso possui população de 29.847 pessoas, de acordo com dados do IPECE.
O fato de eu escolher o âmbito da Regional VI para pesquisa, se dá principalmente pelo fato de eu ter bastante
relação com a história do local. Cabia, em um primeiro momento, ao ser perguntada sobre onde seria minha
moradia, a referência de um lugar próximo para que os interlocutores da pesquisa me reconhecessem como parte
da localidade. O Barroso também é um local extremamente pobre, situando-se no ranking, da Prefeitura de
Fortaleza, dos bairros de pior situação, com o IDH de 1,8.
119
O Siqueira se encontra na Regional V, vizinha à Regional VI, e possui população de 33.628 pessoas, também
de acordo com dados do IPECE. Mantém IDH ainda mais baixo, com 1,4.
120
São consideradas as famílias que mantêm aliança. Isso quer dizer que uma família ajuda a outra a crescer,
participa dos encontros enviando representantes, e constrói de laços de amizades. É comum, ainda,
relacionamentos amorosos entre integrantes de famílias diferentes.
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Imagem 4

Em toda a pesquisa, até o momento, fui apenas a uma festa: a de comemoração de três
anos das Poderosas. Festa regada a muito álcool, churrasco e som de carro, eram as mulheres
que prioritariamente dançavam ao som alto das músicas de funk ostentação121. Geralmente, a
família poderosa, em parceria com MCs122 locais, criam os próprios funks e compartilham por
WhatsApp. Esse, especificamente, evidencia as mulheres integrantes das Poderosas como
meninas espertas que não se deixam levar facilmente.

Ela chega na balada


Instiga a rapaziada
Os cara quer tirar racha
Pra ver quem leva pra casa
Mas é as Poderosas
Que deixa de boca aberta
Sò tem menina gostosa
Só tem menina esperta
Deixa elas passar
É o bonde das Fabulosas
Se correr elas te pega
Se ficar sei que tu gosta

As músicas com as quais estas meninas lidam em suas performances trazem letras
voltadas para a construção de movimentos sensuais e sexuais, além, claro, da própria música
que incentiva o lento ou, dependendo da música, o frenético balançar da região da pélvis,
sendo a representação do corpo feminino como locus primário da sexualidade e do prazer
sexual (LAURETIS, 1994). O funk é o estilo de música normalmente escolhido para animar
os encontros nas praças e nas festas. Na praça, os homens demonstram todo o seu desejo ao
voltar o olhar para a dança sensual que as meninas protagonizam em via pública. Esse desejo
é provocado deliberadamente pelas performers.

121
Estilo musical de funk, originado nos bailes de São Paulo (SP), prega o consumo como prazer. Nas músicas,
normalmente, as mulheres são taxadas como interesseiras.
122
Os cantores de rap são conhecidos como rappers ou MCs, abreviatura para mestre de cerimônias.
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Tanto o funk como o reggae são tocados por carros de som presentes nos encontros
das praças. Nas divulgações nos grupos de WhatsApp, há também a informação de que os
participantes dos encontros poderão contar com carros de som. A música faz parte do
cotidiano desses jovens. Nos próprios grupos do WhatsApp, a troca de músicas acontece entre
os seus integrantes. Demonstrações de alegria, paixão e até tristeza acontecem pelo
compartilhamento de canções. Nos grupos de WhatsApp, os forrós também tomam contam
das intenções e sentimentos de seus integrantes.
Para além das crises e ruídos com os quais passei a lidar, em momentos diversos as
relações estabelecidas demonstravam aceitação do ser diferente. Tal aceitação vez por outra
era colocada por terra, a partir da forma com as quais, particularmente jovens do sexo
masculino pronunciavam-se no WhatsApp, entre os seus considerados iguais. Entre chacotas e
sarros com palavras como “gay”, “viado”, além de imagens altamente abusivas de mulheres
trans, houve ainda um momento de crise na família onde uma de suas integrantes foi o centro
de brincadeiras justamente por ser trans (Imagens 6, 7, 8 e 9).
Durante a discussão, vê-se claramente a tentativa de superação após o fato sofrido. A
adolescente em questão é mulher trans e reconhecida como tal entre a família poderosa. No
entanto, outros integrantes da família não respeitaram sua identidade de gênero. Vendo que
estava sendo vítima de preconceito, ela ainda saiu do grupo. Depois foi recolocada pelo
administrador Rafael, que como seu porta-voz, e a reconhecendo como mulher, destacou que
não toleraria desrespeitos com ela. Afinal, ela estaria representando, quer dizer, estaria
também, além do Whatsapp, participando dos encontros semanais na praça, algo necessário
para que a família sobreviva.

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Imagem 6 Imagem 7 Imagem 8 Imagem 9

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante meu percurso intenso de pesquisa acerca da família “Os Poderosos e As
Poderosas”, várias outras situações envolvendo o feminino e o masculino foram colocadas.
Interessante observar que qual for o ambiente comunicacional construído, a discussão de
gênero encontra lugar.
No caso da família poderosa, a força da discussão de gênero é percebida já na sua
autodenominação, dividida entre feminino e masculino. Para além dessa dicotomia, que cai
por terra quando esclarecemos a importância dos estudos queer contemporâneos para a
compreensão acerca das pluralidades existentes, é necessário perceber que “gênero representa
não um indivíduo e sim uma relação, uma relação social” (LAURETIS, 1994, p. 211).
Em diálogo com os que fazem a família acontecer, seja por parte da diretoria ou
mesmo os próprios integrantes, é geral uma percepção de que tanto homens como mulheres
exercem o mesmo poder de decisão e participam da mesma forma nos ambientes de encontro
e discussão. No entanto, ao observar assiduamente como as relações são construídas, percebe-
se diferentes condutas, formas de diálogos, tecidas essencialmente de forma diferenciada
também por representações de gênero.
Apresentei apenas algumas considerações, no entanto a pesquisa ainda está em
andamento, e necessariamente trará ainda mais olhares quanto às posturas desses que fazem a
família poderosa.
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
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Disponível em: <http://www.fortaleza.ce.gov.br/sites/default/files/u2015/25.02.2014_-
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IPECE Informe. Prefeitura Municipal de Fortaleza. Tema VII: Distribuição Espacial de
Renda. N° 42. Outubro de 2012. Disponível em: http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/
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LAURETIS, Teresa De. A Tecnologia do Gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque.
Tendências e Impasses – o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
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Implicações dos conceitos. Esferas: Revista Interprogramas de Pós-Graduação em
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RIFIOTIS, Theophilos (org). Antropologia no ciberespaço. Florianópolis: Editora da UFSC,
2010.
SIMMEL, Georg. A natureza sociológica do conflito. In Moraes Filho, Evaristo (org.),
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___________. Filosofia do amor. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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MAL-ESTAR E HISTERIA: AS MULHERES SOB A ÓTICA FREUDIANA

Rafael Porto Ribeiro123 | rafaelporto2@hotmail.com


Ewennye Rhoze Augusto Lima124
Ms. Fábio Ronaldo da Silva125

INTRODUÇÃO

Na sociedade atual, a informação é abundante e os preceitos éticos mudam


constantemente, enquanto que o entretenimento é mais fácil e acessível do que nunca. Nesse
contexto, a insatisfação psicológica humana (o “Üngluck” ou “Unbehagen” de Freud,
traduzido como “mal-estar”) é facilmente mascarada, e por alguns instantes, o indivíduo se vê
distraído da própria condição humana.
Tal prática não deixa de ser um escapismo, que é descrito desde o século XIX a partir
da literatura romântica. O escapismo, segundo a definição do dicionário126 é a “atitude de fuga
ao cotidiano”, retratado também no discurso médico. Essa prática de fuga é, essencialmente, a
forma que o indivíduo encontra de negar a própria rotina, se desvencilhando das práticas e
normas que regem a sua vida social, e visitar a sua própria utopia pessoal.
Essencialmente, o escapismo existe devido à necessidade do indivíduo de se livrar do
mal-estar cotidiano. Sigmund Freud, ainda no século XIX, já argumentava que o ser humano
não é naturalmente adaptado às regras sociais, e que por isso, era necessária essa medida de
escape.
Ora, se até os dias de hoje o escapismo é presente nas sociedades modernas,

123
Graduando pelo curso de licenciatura em História da UFCG. Rafaelporto2@hotmail.com
124
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFCG. Ewennyerhoze@gmail.com
125
Doutorando em história pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPE fabiocg@gmail.com
126
http://dicionariodoaurelio.com/escapismo
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subentende-se que a própria condição humana e sua relação com as regras impostas é, no
mínimo, problemática. Nesse aspecto, a leitura de Freud sobre a mente humana é bem atual,
quando mais de uma vez ele se refere à sociedade como sendo a causa da insatisfação do
homem.
É só durante o século XX que Freud publica “O mal-estar na civilização”, que procura
explicar, por exemplo, porque e do quê escapamos. No período de publicação dessa obra,
Freud já era um autor reconhecido, e sua publicação de caráter pragmático torna-se
rapidamente uma de suas produções mais famosas.
Não é difícil compreender o motivo de Freud ser um autor influente até os dias de
hoje. Além de boa parte de suas teorias não terem sido desconstruídas, sua perspectiva sobre o
ser humano é construída através da ideia de que todos os homens são naturalmente iguais, e as
diferenças comportamentais só existem devido à formação externa ao corpo humano.
Freud também se torna bastante polêmico a partir do momento em que atribui
diferenças entre o sexo masculino e o feminino desde antes da criação, argumentando que,
além da criação distinta, homens e mulheres possuem o corpo mais ou menos adaptados para
a vida civilizada e em sociedade. Não sem surpresa, Freud argumenta que o corpo (e a
formação) feminino é justamente o menos propício para a vida moderna.
Tendo em mente a proposta da obra original e a data em que foi inicialmente
publicada, procuramos entender como a comunidade científica europeia do começo do século
XX definia a mulher e seu estado psíquico, através de um dos autores científicos mais
influentes do século, e que até hoje é estudado não só por seguidores, mas também por
críticos. É importante lembrar que o discurso científico desde então mudou bastante, assim
como os pontos de vista não só dos cientistas como também dos leigos de cada época.

HISTORIOGRAFIA: CONSTRUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE SABERES


No decorrer do século XIX, no contexto do cientificismo e da inspiração iluminista, o
Positivismo127 (de caráter mais pragmático, e em muitos aspectos, similar aos preceitos das
ciências da natureza) popularizou-se entre os pensadores de diversas áreas das ciências

127
O Positivismo foi uma filosofia ocidental, surgida na França no começo do século XIX, e tinha como
principais expoentes os filósofos Auguste Comte e John Stuart Mill.
477
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humanas, tendo em vista o sucesso das ciências naturais neste século, responsáveis pelo
“progresso” no qual toda a Europa estava embriagada. A influência no campo da história não
tarda a se fazer presente, e rapidamente influencia nas metodologias e na teoria da história.
Tamanha a influência dessa filosofia na história, que o emprego do conjunto de
métodos e técnicas elaborados principalmente pela dita “Escola Alemã” é frequentemente
nomeado de “método positivista”. De certo modo, os preceitos dos pensadores mais
conhecidos da Escola Alemã são bastante similares, como por exemplo, a noção de que, do
mesmo modo que há uma organização científica para as áreas da química e da física, há
também uma organização prévia (de acordo com o desenvolvimento das práticas humanas,
científicas ou não) da memória e da retórica, organizada em documentos e outros escritos
(DROYSEN, 1868), ou a noção de que história é ciência, tanto quanto a filosofia128 ainda que
com uma pitada de arte, através da poesia (RANKE, 1831).
Através desse esforço da história em se aproximar da metodologia científica (seguindo
o exemplo do Positivismo) é que o conceito de fonte histórica e documento foram
inicialmente propostos. Nesse primeiro momento, dado o contexto histórico, a fonte do
historiador é, exclusivamente, documentos, escritos, oficiais, preferencialmente organizados
em arquivos (e, se não estiverem em arquivos oficiais, devem para lá ser relocados). Assim,
com esse conceito inicial de fonte histórica, é excluído todo conhecimento transmitido de
maneira não-verbal, e todo escrito que se refere a crenças, superstições ou narrativas
ficcionais.
Para a historiografia do século XIX, o escrito de Freud não seria considerado uma
fonte histórica, mesmo sendo a organização de um discurso anterior. Curiosamente, é mais
provável que suas obras fossem usadas mais como aporte teórico que trabalhadas como fonte,
dadas as conjunturas da escrita da história até então.
Ainda durante o século XIX, a historiografia desenvolveu-se, e exemplos de obras de
história com métodos mais “flexíveis” podem ser encontrados, como as obras de Jules
Michelet e Johann Huizinga (VAINFAS, 1997). Apesar do uso das conceituações mais
flexíveis, é apenas no começo do século XX que o conceito de documento sofre grandes

128
A própria teoria positivista via a filosofia como uma ciência exata, inclusive no que se diz respeito às noções
de progresso, metafísica e ética.
478
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mudanças, a partir da chamada “revolução historiográfica" através dos colaboradores da


revista francesa Annales d'histoire économique et sociale, por volta dos anos de 1920. A partir
de diálogos interdisciplinares envolvendo as áreas de conhecimento da História, Psicologia,
Psicanálise e Sociologia (BURKE, 1991), e, posteriormente, a antropologia, a própria noção
de documento e o “dever” da história sofrem mudanças tão profundas que os Annales chegam
a afirmar, não por acaso, que estão encabeçando uma revolução.
Graças a essa revolução que materiais menos ortodoxos começaram a serem
considerados fontes históricas. O exemplo trabalhado a todo o momento no artigo é o da
literatura – seja ela ficcional ou científica. Para compreender melhor porque a literatura (e até
a crítica literária) é passível de ser interpretada pelos historiadores, é necessário compreender
alguns preceitos do historicismo do século XX.
Em seu livro: “A prática do Novo Historicismo” (2000) GREENBLATT e
GALLAGHER fazem um ensaio sobre o método historiográfico que passa a aderir à história
cultural a crítica literária. Para endossar a importância dessa prática, e ao mesmo tempo
exemplificar a atuação do novo historicismo, os autores usam dos ensaios já famosos de
Clifford Geertz129, focando na inovação que estes ensaios trouxeram para todas as ciências
sociais, bem como as anedotas trazidas pelo antropólogo para ilustrar sua própria teoria.
Usando das anedotas passadas a Geertz, os autores argumentam a importância para a
história cultural, logo no início de seu ensaio:
“A anedota, no dizer de Geertz, ‘é citada de forma tosca, um bilhete numa garrafa’.
Como tal, terá não apenas de veicular a idéia do ‘empírico’ (em contraposição às
histórias ‘artificiais’ dos filósofos), como também suscitar pasmo, curiosidade
intensa e interesse, que são elementos necessários à interpretação das culturas.”
(GALLAGHER e GREENBLATT, 2005 p. 33).

Percebe-se também uma crítica à “história dos filósofos”, quando os autores defendem
a narrativa de tradição oral, transmitida entre gerações, chamadas de anedotas no ensaio.
A partir de então, os autores do livro partem para a própria teoria: a crítica literária
possui valor semelhante ao da análise historiográfica, baseados na premissa de que as
anedotas não são mais do que literaturas – narrativas (ficcionais ou não) produzidas
129
Os trabalhos utilizados pelos autores estão publicados no livro “A interpretação da Cultura” (1973) de Geertz.
No livro, o antropólogo utiliza de suas observações durante viagem à Indonésia para descrever práticas culturais
singulares ou paralelas e seus respectivos simbolismos, e como tais práticas podem ser operacionalizadas e
compreendidas pelas ciências humanas no geral.
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conscientemente, como qualquer outro fruto da cultura local ou individual, assim como a
narrativa histórica. Baseado no ponto de vista dos autores presume-se, então, que a análise
crítica da produção literária – conceito esse abrangente o bastante para englobar também as
obras de Freud – também é uma operação historiográfica, indistinta das outras operações mais
“tradicionais”.
Analisar as obras de Freud, então, torna-se uma atividade duplamente historiográfica:
analisaremos o discurso científico do século XIX que influenciou inclusive a história, ao
mesmo tempo em que, ao tecer críticas sobre seus famosos escritos, estamos produzindo
opiniões e observações passivas de análises históricas.
A respeito da análise do discurso científico do século XIX, e principalmente sobre a
imposição do discurso científico à condição feminina, é importante que se compreenda o
contexto da história das mulheres e os postulados que essa área do conhecimento elaborou no
decorrer do tempo.
Quanto à história das mulheres, este próprio campo tem um caminho traçado, e
ganhou força principalmente após a terceira geração do movimento dos Analles, o mesmo
movimento responsável pela “revolução historiográfica” responsável pela maior abrangência
do conceito de fontes históricas.
Por volta dos anos de 1960 e 1970, este campo de estudo ganha força, e cada vez mais
publicações na área os estudos de gênero podem ser encontradas, ao ponto de ser considerado
um hábito na França escrever sobre as mulheres (PERROT, 2008). Apesar da força e do
crescente interesse na área, o campo de estudo demorou a se firmar, devido ao caráter mais de
rupturas que de continuidades, muitas vezes entrando em conflito com normas sociais
preestabelecidas e em outro momento inquestionáveis.
Há ainda uma dificuldade técnica inerente maior que o comum ao se fazer a história
das mulheres: as documentações costumam tratar das práticas e das ações masculinas, ou por
ela realizadas. A presença feminina, aparentemente preterida pelos documentos, torna-se rara
em contextos que deveriam ser abundantes (PERROT, 2008). Em certos aspectos, até as
regras gramaticais (também contidas em todo um código sociocultural) dificultam a pesquisa
deste campo, na medida em que as estatísticas tornam-se assexuadas e a partir do casamento
os registros da mulher passam a ter o nome da família do homem (PERROT, 2008).
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Desde a antiguidade ocidental, a mulher é relegada à posição coadjuvante na vida do


homem, e quase sempre esse papel é imposto, ao mesmo tempo em que há um silenciamento
forçado para a validação desse mesmo discurso. Durante muito tempo, o cotidiano feminino
resumira-se à esfera do privado, e o ambiente público (e todas suas relações sociais),
reservadas apenas ao homem. O papel da mulher, resumido às atividades caseiras, ganha até a
irônica alcunha de “rainha do lar”, aquela que “rege” a casa, mas nada além dela.
Para Michel Foucault, proeminente filósofo francês do século XX, a expressão de um
saber – em outras palavras, a construção de uma narrativa organizada – é também a
demonstração de conhecimento que constitui a relação de poder com o interlocutor. O
exemplo mais memorável130 utilizado por Foucault em seu livro Microfísica do Poder (1979)
é justamente o do saber científico da medicina, ao justificar a histeria, denominada loucura.
Assim, interpretando os escritos de Freud sob a ótica de Foucault, deduzimos que o
austríaco é um detentor do poder, que expõe o seu saber oficial (através da organização de
suas ideias através de uma narrativa), tornando-o virtualmente uma verdade, incorporada pela
sociedade. Mais que isso, toda a obra de Freud continua influenciando o mundo ocidental
moderno, tendo em vista que a psicanálise, inicialmente proposta por ele, é hoje uma área
reconhecida na medicina, apesar de controversa. Escritos científicos ou literários citam Freud
como revolucionário para a psicologia, muitas vezes deixando tabus e misticismos de lado,
para expor uma visão pessimista e animalesca do ser humano, que destina boa parte de sua
vida procurando simplesmente conter os instintos antissociais que constituem a natureza
humana. Nesse sentido de influência e criação de verdades, as ideias de Foucault nos fornece
uma terceira perspectiva histórica: observar a construção de um saber-poder em seu
determinado tempo é visivelmente mais uma operação historiográfica.

O MAL-ESTAR FEMININO NO MUNDO MODERNO

Ao tentar explicar a condição humana na sociedade moderna, Sigmund Freud postula


que o instinto humano é incompatível com a civilização, e que a infelicidade é fruto da

130
O exemplo do discurso da medicina tornou-se memorável principalmente devido à própria condição do
autor: Michel Foucault fora internado em uma clínica psiquiátrica em 1948.
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tentativa incessante de domar os instintos e tentar saciá-los simultaneamente. O conceito de


tabu por ele desenvolvido acrescenta à sua teoria. Tendo em vista que na sociedade ocidental
o discurso sobre a mulher tem um caráter opressor e redutor de sua importância, é pertinente
avaliar com exemplos a percepção de Freud e, consequentemente, de ao menos uma parcela
considerável da sociedade europeia dos séculos XIX e XX.
Freud comenta que homens e mulheres percebem diferente a civilização, e atribui um
fator principal a essa discrepância:
Além do mais, as mulheres logo se opõem à civilização e demonstram sua influência
retardante e coibidora - as mesmas mulheres que, de início, estabeleceram os
fundamentos da civilização pelas reivindicações de seu amor. As mulheres
representam os interesses da família e da vida sexual. O trabalho de civilização
tornou-se cada vez mais um assunto masculino, confrontando os homens com tarefas
cada vez mais difíceis e compelindo-os a executarem sublimações instintivas de que
as mulheres são pouco capazes. (FREUD, 1930 p. 24)

Fica evidente, ao analisar esse trecho, que Freud vê a mulher como antagonista da
civilização, contribuindo para retardar o progresso, ainda que tenham sido elas as criadoras
das primeiras regras que fundaram a civilização (os tabus). Engajados em uma vida social –
um modo de desenvolver o processo civilizatório, segundo o autor - o homem divide suas
energias entre o espaço público e o privado. A mulher, restrita apenas a esse último âmbito,
gasta muito mais energias em suas práticas, ao mesmo tempo em que se vê disputando
atenção com a própria “civilização”, ou seja, os costumes sociais.
Nesse sentido, as mulheres seriam culpadas pelo não desenvolvimento da sociedade,
pois não faziam parte da tão necessária vida social, as quais elas foram excluídas, com o
argumento, segundo Freud, de que não eram aptas para a atividade. Dentro da narrativa do
autor nota-se a tentativa de atribuir “mais responsáveis” e “menos responsáveis” pela
insatisfação do mundo moderno:
(...) Sua constante associação com outros homens e a dependência de seus
relacionamentos com eles o alienam inclusive de seus deveres de marido e de pai.
Dessa maneira, a mulher se descobre relegada a segundo plano pelas exigências da
civilização e adota uma atitude hostil para com ela. (FREUD, 1930 p. 24)

A partir do momento em que a mulher adota “uma atitude hostil” para com a
civilização, ela se torna inimiga declarada do processo que o homem procura tanto. Vale
lembrar, o século XIX é marcado pela admiração do progresso e do desenvolvimento

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científico. A tentativa de reviver o “século das luzes” através da ciência implicou também em
reviver a “idade das trevas” para as mulheres, que se tornaram, mais uma vez, inimigas da
humanidade, assim como foi o discurso durante o período medieval.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sigmund Freud é, até hoje, um pensador importante para a compreensão da psique


humana. É dele a interpretação que a personalidade humana é formada por três estruturas do
aparelho mental, cada uma delas se relacionando mais ou menos com o subconsciente –
pensamentos inalcançáveis dentro do cérebro de cada um. A noção de que nossas ações são
determinadas após o processo de avaliação do Id, Ego e Superego, e que, por esse motivo,
sonhamos com o desconfortável e/ou constrangedor para a sociedade, mas não saímos pondo
esses sonhos em prática.
Devido a sua importância para as áreas de conhecimento da psicologia e psicanálise,
Freud é considerado uma autoridade no assunto da natureza mental humana. Sua opinião de
que a mulher é inerentemente menos apta à civilização decerto influenciou teorias misóginas
no decorrer do século XX. Ainda assim, a linguagem científica se renova automaticamente,
impulsionada por progressos sociais, e algumas teorias de Freud já foram revisadas ou melhor
interpretadas.
Compreender como o discurso, relacionando o saber-poder, influencia no pensamento
de uma geração é crucial para a operação historiográfica em questão. É sabido que Freud
influenciou muitos em sua época e nos anos seguintes. O que é passível de discussão é:
porque o discurso de Freud, dentre tantos outros, influenciou tanto? O caminho para essa
solução está na interpretação de que o psicanalista detinha o conhecimento, a possibilidade
discurso, e, mais importante ainda, já representava a opinião de vários indivíduos de sua
época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURKE, Peter. A escola dos Annales – 1929 – 1989: A revolução Francesa da


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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 15a Ed. Graal - RJ, 2000.

FREUD, Sigmund. O Mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias e outros


textos (1930-1936) Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GALLAGHER, Catherine e GREENBLATT, Stephen. A prática do novo historicismo.
Tradução Gilson César Cardoso de Souza – Bauru, SP: Edusc, 2005. P. 33
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Universal (1831) In: A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do
século XIX; Tradução Pedro Caldas e Sérgio da Mata. São Paulo: Editora Contexto, 2009. pp.
37 - 46 e 202 - 214
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2008.
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e História cultural, In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História – ensaios de teoria e metodologia.
Rio de Janeiro: Campus, 1997:127-162.

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“MI CASA ES SU CASA, QUERIDO”:


EXTRAVIOS DA CARNE E DO DESEJO

Rafael Venâncio 131 | venanciorafaelecritor@gmail.com


Hermano de França Rodrigues132

INTRODUÇÃO
A figura da prostituta ainda é marcada pelos signos de uma sensualidade exacerbada e
capacidade de dissimulação incomparável, tanto no imaginário brasileiro, quanto nas obras de
ficção dos atuais dias. Neste sentido, não é raro que a teledramaturgia faça ressurgir
personagens que vivem da prostituição de onde advém não só seu sustento, quanto o gozo de
uma vida voltada, exclusivamente, para proporcionar o prazer ao outro que esteja disposto a
pagar.
Considerando-se este fato, nossa pesquisa, numa interface entre a psicanálise de base
freudiana e a teledramaturgia, com os pressupostos teóricos de Georges Bataille (1987) e Lujo
Bassermann (1968), pretende analisar a ambivalente personagem da minissérie brasileira
Amorteamo, exibida pela Rede Globo de Televisão, no ano de 2015, seu nome é Dora, dona
de um luxuoso bordel no Recife do início do séc. XX. Esta personagem chamou-nos a
atenção, entre os demais, por mostrar indícios de um imaginário vívido com relação às
profissionais do sexo, ao mesmo tempo em que atesta um pesar, carregado durante 18 anos,
por ter sido, indiretamente, a causadora da morte do homem que amou. Em vista de tamanho
paradoxo, Dora se sobressai as suas subordinadas por não só alimentar o desejo masculino,
mas de, ela mesma, não se satisfazer enquanto mulher que almeja, sobretudo, ser a única na
vida de um homem.

131
Graduando em Letras Português pela Universidade Federal da Paraíba, pesquisador do LIGEPSI/CNPq.
132
Professor Adjunto II do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em
Letras na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
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O enredo da série é centralizado nas relações trágicas de amor, onde a morte se faz
presente de maneira constante: Arlinda, esposa do coronel Aragão, se envolve com Chico, um
homem sedutor e boêmio, com quem vive um tórrido caso até o dia que o esposo traído os
flagra na cama e assassina o amante da mulher a sangue frio. Após aprisionar a traidora no
porão da casa, Aragão se vê obrigado, pelas chantagens do padre Lauro, com quem a mulher
confessa-se e circunstâncias do momento, a adotar a criança que procedeu da relação adultera
de Arlinda. Dezoito anos se passa e o menino chamado Gabriel, crescido, apaixona-se pela
amiga de infância Lena, filha da criada Zefa, com quem deseja casar-se, mas é impedido
quando lhe é revelado que a menina é, segundo a mãe dela, sua irmã, uma vez que era filha de
Aragão. Decepcionado e desnorteado, o rapaz entrega-se a vida boemia e, antes tão calmo e
gentil, converte-se num rebelde, desordeiro, andando na companhia de declarados vagabundos
e bêbados. Influenciado por eles, é levado ao bordel de Dora, onde, necessariamente, objetiva-
se que perda a virgindade, mediante relação com uma das prostitutas do local. Lá encontra o
pai, com quem tem uma séria discussão, e é expulso, após sofrer uma agressão do mesmo.
Dora é uma personagem secundária na trama, mas é definida, pelo próprio Gabriel, e
vista pelos demais integrantes da localidade, como a autoridade máxima sobre as prostitutas
da cidade. A cafetina, por sua vez, se mostra extremamente arbitrária e metódica: exige,
conforme a cena da contenda que descrevemos, ordem em seu estabelecimento, ou seja, não
admite nenhum tipo de escândalo ou insubordinações por parte das meretrizes. Apesar de suas
atitudes e aspectos rígidos, a alcoviteira é madrinha da prostituta Maria, a única que, em
comparação com as outras, goza da atenção e dos cuidados afetivos da patroa.
Estes são os aspectos da personagem que analisaremos nesta pesquisa, procurando um
diálogo possível entre a teledramaturgia e a psicanálise. Valemo-nos, para isso, das instruções
de Bellemin-Noel (1978, p. 17) que nos ensina que é admissível, sim, aplicar a metapsicologia
em corpus semelhante a esse.

PROFISSIONAIS DO SEXO: DA ANTIGUIDADE AO RECIFE DO SÉC. XX


O Recife do início do séc. XX ainda passava pela significativa transação do Império à
República, onde a classe aristocrática procurava, sob a nova realidade, se firmar. Títulos de
nobreza foram desconsiderados e as vantagens inerentes do antigo regime, perdidas. Somente
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os bordéis continuavam a lucrar como dantes da República em vista de cultivar a profissão


mais antiga do mundo. Neste contexto o lupanar de Dora é o mais frequentado da cidade,
marcado pela música, bebida e alegria que, desde sua entrada, é notada. Dora exige um alto
padrão de beleza de suas subordinadas, para isso, cores vividas são incorporadas as roupas
que exibem, sem que as deixe completamente nuas, partes do corpo que atraem os olhos e
atenção masculina. Ela mesma se vale de roupas semelhantes, mas destacando-se, entre todas,
pela cor escarlate que a difere das demais. Há, neste apelo a sensualidade, nuances da
Antiguidade Clássica da Grécia, onde as prostitutas eram vestidas a caráter para melhor se
evidenciar aos futuros clientes. Bassermann (1968, p. 16), discorrendo sobre esta
característica, explica que “[...] certas cores deveriam chamar a atenção dos guardas para
quem as usasse e tudo indica que as meretrizes não reagiram com excessiva violência contra
essa identificação”. Entendamos que, diferentemente da forma como se vê a prostituta nos
dias atuais, na Grécia Antiga elas eram consideradas verdadeiras servas das divindades
gregas. Bassermann nos descreve em sua obra História da Prostituição o quanto os serviços
prestados por elas beneficiavam ao Estado, que se aproveitava para cobrar uma taxa de
imposto dos bordéis que surgiam. Apesar de serem escravas, compradas por comerciantes que
almejavam sobre elas obter fortuna, havia grupos de prostitutas que se distinguiam por suas
formas de agir e, logicamente, se vender133. Ceccarelli (2008, p. 2), ao fazer uma distinção
entre um destes grupos, acrescenta que as hetairas tinham uma grande relevância social, uma
vez que eram inteligentes, participando, não só da vida pública, como do universo masculino,
livremente.
Roma, entretanto, se mostrou bem mais envergonhada, no que se referiam as suas
origens, pois, conforme rezava a lenda, seus fundadores, os gêmeos Remo e Rômulo, foram
criados por uma meretriz do campo, por nome Lupa134, cujas economias, alcançadas pelo
ofício do meretrício135, possibilitaram a edificação das primeiras construções do que viria a

133
Eram elas as dicteríades, compradas, exclusivamente, para se relacionar sexualmente com os clientes; as
aulétrides, dançarinas e tocadoras de flauta, possuidoras de certa autonomia de ficar ao seu critério relacionar-se
com o cliente e, por fim, as hetairas, o grupo de maior destaque neste período, pois eram possuidoras de
habilidades e competência para ensinar escravas iniciantes no oficio de serem exímias servas de Afrodite.
134
Bassermann (1968, p.44) esclarece que o nome dela era Laurência, mas chamada de Lupa pelo marido, que
resgatou os dois meninos da morte certa, porque se entregava a muitos homens.
135
Meretrício, no sentido que empregamos aqui, diz respeito à comercialização do próprio corpo.
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ser o Grande Império Romano. Com o advento do Cristianismo, a prostituição foi encarada
como prática impura, caraterística do paganismo que, principalmente no campo da
sexualidade, intentava desvirtuar os homens do bom caminho. À prostituta, portanto, cabia
arrepender-se de seus pecados e procurar viver uma vida piedosa. Bassermann (1968, p. 105)
revela que medidas adotadas para erradicarem a prostituição não surtiram o efeito desejado,
pelo contrário, “as casas [de prazer] ficaram e com elas as raparigas , já agora associando ao
prazer canúbio carnal o novo sabor da consciência de estar pecando.” E, diga-se de passagem,
os bordéis existiam com o nítido conhecimento da Igreja e, na cortes européias, com sua
omissão que, via de regra, era permissiva. Mas isso não significa dizer que as cortesãs eram
vistas com respeito ou admiração. Em Amorteamo, por exemplo, Dora e suas subordinadas
são constantemente desprezadas pelas mulheres casadas do Recife que as veem como uma
ameaça ao seu matrimonio, conforme esta cena que selecionamos mostra. Neste contexto, o
casamento de Gabriel com Malvina está para ocorrer136. Dora e suas companheiras saem às
ruas da capital a passeio já que, segundo explica no diálogo com o vendeiro Manuel, durante
dia de casamento, os homens não aparecem no bordel sendo, portanto, uma espécie de
feriado. A cafetina, petulantemente, entra na venda de seu Manuel a fim de cumprimentá-lo, o
vendeiro a recebe com alegria demasiada, mas assim que a esposa nota a presença delas,
dirige-se ao marido:

Dona Cândida: Que desmantelo é esse, homem? Isso aqui virou filial da casa da
perdição, foi?
Seu Manuel: Não tamos em condições de escolher freguesia não, mulher...
Dora: Dona Cândida tá se emperequetando toda... Ai... Vai aonde?
Dona Cândida: Vou no casamento fino do filho de seu Aragão, conhece?
Dora: Conheço, não conheço, Maria? [...] Conheço seu Aragão melhor do que a
senhora pode imaginar.
Dona: Ah, mas pro casamento, as mariposas não foram convidadas, foram? Não
foram (ri)! Que lástima, e pode e tomando seu rumo que aqui também não são bem

136
É importante saber que os dois personagens são os protagonistas da trama: Gabriel é obrigado por seu pai a se
casar com a judia a fim de que as dívidas e o tratamento de Arlinda sejam pagos. O rapaz, desiludido após saber
que Lena é sua irmã, se submete as ordenanças do pai.
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vindas.
Seu Manuel: As senhoras podiam voltar um outro dia, quando a minha mulher tiver
mais calma.
Dora: Seu Manuel, eu vou atender um pedido do senhor porque o senhor é muito
gentil, mas a gorjeta vá buscar na nossa casa, não é?
Dona Cândida: Vá! Não bula comigo não! Mariposa! Messalina! Marafaia! Mulher
da vida! Rapariga! Espreguiça daqui!

As reações de Dona Cândida refletem bem o desprezo que a profissão inspirava às


donas de casa, assim como, a conivência dos homens casados para com as meretrizes. Na
verdade, os paradigmas morais da sociedade é que determinam a maneira como, pela história,
a prostituta e mulher honesta eram opostas entre si.

O EROTISMO PARA EXECUÇÃO DA PROFISSÃO


Arlinda foi jogada no bordel de Dora pelo próprio marido, depois que ele descobriu
que a esposa revelou a Gabriel a verdade sobre sua paternidade. Dora não se mostrou surpresa
ou, muito menos, rejeitou a nova prostituta que se lhe era oferecida, pelo contrário, tratou de
acomodá-la ao seu bordel, e, após uma noite, revelou-lhe, em termos práticos, que para que
Arlinda fosse mantida na sua casa de prazer, devia trabalhar, agradando os clientes.
A situação bem tipifica algumas razões e motivos que levaram muitas mulheres ao
meretrício, conforme Bataille (1987, p.88), “a origem da baixa prostituição está
aparentemente ligada ao aparecimento das classes miseráveis que uma condição degradada
isentava da preocupação de observar escrupulosamente os interditos.” Dora, nesta
continuidade, avisa a Arlinda o que a esperava, caso optasse por manter sua honestidade: nada
mais que o desprezo e a miséria, o que, de qualquer maneira, faria com que tivesse de vender
o próprio corpo para que pudesse sobreviver, além disso, estando na rua, evidentemente,
estaria exposta a todo o tipo de violência que poderia sofrer de algum homem que a desejasse.
Bassermamn (1968, p.111) vai além em suas considerações ao elucidar a origem da Casa de
Mulheres na Idade Média: há de se considerar que as prostitutas, a fim de sobreviverem à
fome, dispunham de maneiras diversas para conseguirem o pão necessário: o corpo era,
segundo o historiador, usado por elas “como triunfo a quem acenasse com melhor lance”.
Logo, ante o grande número de meretrizes nas ruas, os nobres consideraram lucrar a partir do
trabalho exercido por elas. É necessário, do corpus do qual dispomos, nos utilizarmos de uma
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cena a fim de confirmamos nossas suposições: Arlinda nunca foi prostituta, nem sequer sabia,
conforme alegou, se deitar com um homem sem amor; desnorteada tem uma desagradável
surpresa logo em seu primeiro dia como profissional do sexo: Aragão a vem visitar, não para
resgatá-la do meretrício, e sim notificá-la dos acontecimentos desencadeados pela atitude de
Gabriel que, influenciado pela mãe, abandonou Malvina no altar. No calor da discussão e
trocas mutua de acusações, Aragão exigiu que, uma vez que tinha pagado pelos serviços da
nova prostituta, fosse o primeiro dos muitos que viriam. Transtornada, Arlinda procurou
defender-se, mordendo a orelha de Aragão, seus gritos atraem a atenção de Dora que, irritada,
ordena que parem com o escândalo, pois o mesmo está afastando os clientes:

Aragão: Tu já tivesse funcionária mais qualificada, Dora, desde quando é comum


guenga agredir cliente?
Arlinda: Vá embora, Aragão!
Dora: Baixa o latido que a casa tá lotada...
Aragão: Talvez eu tenha me enganado, Dora, essa aí tá num nível bem mais baixo
do que o seu estabelecimento merece. [...]
Dora: Lição número um: quem manda é o cliente...
Arlinda: Ele não é cliente...
Dora: Se tem dinheiro não me interessa se é teu pai, teu irmão ou teu marido, o que
me importa é minhas contas pagas no fim do mês. Agora te apruma e desce que eu
vou te ensinar como é que se trabalha aqui, pessoalmente.

As duras palavras de Dora dirigidas a Arlinda demonstram o quanto à prostituta de


baixo meretrício não poderia haver qualquer tipo de escrúpulos, caso quisesse fazer um bom
trabalho: nada mais do que o dinheiro valia nesta relação, uma das partes, cliente ou
prostituta, devia estar ausente de qualquer afetividade (outra imposição de Dora) bem como
de noções moralistas: não importava quem é ou havia sido Aragão, o que interessava era que,
Arlinda, pronta a se esquecer do passado, entregasse seu corpo para satisfazê-lo, pois, afinal
de contas, se o cliente tivesse dinheiro estas questões são postas de lado. Dora se constitui,
com estas lições, a mentora de suas subordinadas e logo entendemos a razão do sucesso de
seu bordel: ela mecanizava as prostitutas para que se tornassem condicionadas a obter
dinheiro dos ricos senhores. Dora se mostra, com isso, indiferente aos interditos sociais, e
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certamente, com Bataille (1987, p. 89), acreditamos que ela esteja no último grau de
rebaixamento moral uma vez que não parece ter vergonha do que exige de Arlinda e das
demais subordinadas, pelo contrário, como bem frisou, o que importa mesmo é ter as contas
pagas no fim do mês, ou seja, manter o bordel funcionado com todas as comodidades que o
tornaram um sucesso. A indiferença é, supomos, a forma encontrada pela alcoviteira de
conseguir conviver consigo mesma visto que, de acordo com Bataille, ela tem consciência dos
interditos, ou melhor, está ciente de, como uma porca, chafurdar na lama. Mas, com Bataille
(1987, p.88), devemos esclarecer que “não é, na verdade, o pagamento que faz a degradação
da prostituta”, o que está em jogo aqui é o fato de Dora fazer questão de, não só ela, bem
como as demais serem indiferentes aos interditos. Desta forma, sem dúvida, a cafetina estaria
no que Bataille classifica como o baixo meretrício.

A MELANCOLIA E O TRÁGICO FIM DE DORA

Com as bases teóricas que dispomos, buscaremos analisar, sob a ótica psicanalítica, a
prostituta Dora, tema de nossa pesquisa, procurando descobrir nesta protagonista como seu
desejo fica a deriva, por meio da erotização do corpo. Expliquemos que Chico retorna dos
mortos a procura de Arlinda no bordel, mas, na verdade, o que o defunto deseja é vingança
contra Aragão que o matou com um tiro a queima-roupa. Ele convence a amante a denunciar
o marido e, com isso, o inquérito é reaberto. Dora é convocada a depor e revela o que fez:

Dora: O Chico vivia visitando a cama de tudo quanto é de mulher casada, mas
sempre voltava pro meu bordel, até ele conhecer essa tal de Arlinda, e quando ele
me ameaçou de me abandonar... Eu fiz o que fiz.
Delegado: A senhora fez exatamente o quê?
Dora: Fui eu quem contei pra Aragão da safadeza dos dois.
Maria: Por que tu foi fazer uma coisa dessa, madrinha?
Dora: Pra me vingar: nunca perdoei Arlinda por ter roubado meu homem [...] não
tem uma noite que eu não chore de remorso...

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Freud, em seu artigo intitulado Luto e Melancolia (1917, p. 128), discorre sobre esses
dois processos no psiquismo do sujeito, de acordo com o mestre vienense, “luto é a reação à
perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade,
um ideal etc.” Em outras palavras, o luto se dá por diversos motivos e, não significa,
necessariamente, que a razão para o mesmo, signifique somente a morte, Freud esclarece que
o enlutado assim está em virtude de uma perda, de qualquer ordem. Considerando que a vida
é repleta de perdas durante a evolução do individuo, ele é, na visão do doutor, um processo
137
normal. A melancolia, por outro lado, demonstra ser de uma ordem patológica e
insatisfeita, “observamos, em algumas pessoas, melancolia em vez de luto, e por isso
suspeitamos que nelas exista uma predisposição patológica.” (Ibid, p. 128). Aparenta ser o
caso de Dora que, diante da perda do objeto amado, não faz um luto por ele, mas sofre um
constante pesar que faz com que este objeto retorne dos mortos, mas não para ela. Sabemos,
com Freud, que a realidade se apresenta de modo a dizer ao sujeito que este objeto não existe
mais, embora que ninguém esteja disposto a, dia um dia para o outro, abandonar “uma
posição de libidinal”. A melancolia, no entanto, Freud explica, não está pronta a abandonar a
idealização de que este objeto não existe mais, ou seja, nas palavras de Freud, “[...] essa
oposição pode ser tão intensa que se produz um afastamento da realidade e um apego ao
objeto mediante uma psicose de desejo alucinatória [...]” Isso significa que, de fato, para
Dora, Chico continua vivo138, mas em seu psiquismo, por conseguinte, no melancólico, que se
difere do enlutado, é difícil saber o que, de fato, se perdeu, ou seja, o que Chico representava
para Dora, a ponto de sua perda ser sentida de forma a levá-la a uma atitude drástica. (Ibid, p.
130). Neste sentido, a melancolia seria, sempre, de uma ordem inconsciente, isto é, no luto o
sujeito tem consciência do que perdeu, o oposto daquele que ignora o verdadeiro sentido de
sua perda. Considerando isso, devemos nos valer de uma última cena para darmos
continuidade a nossa análise, seguindo as teorias de base freudianas: Dora logo se dá conta de

137
Para que compreendamos melhor o sentido de luto em Freud, consideremos o seguinte: nossas relações
afetivas, profissionais ou de qualquer ordem, são marcadas por ideais que desejamos e/ou pretendemos alcançar,
para isso dispomos e emitimos, em direção ao objeto amado, uma gama de energia libidinais, ou seja, a
expectativa inerente ao desejo ou, em termos psicanalíticos, se faz um investimento narcísico. Ao perdermos o
objeto amado, no processo de luto, a energia libidinal investida retorna a seu emissor, de modo que, durante o
processo, o sujeito vai se esquecendo do ideal ou desejo, e está pronto, no término, a investir em outros objetos.
138
A interpretação que estamos fazendo diz respeito aos processos psíquicos que envolvem o luto e melancolia,
o corpus em questão é ficcional permitindo que o entendamos de uma maneira figurativa
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que algo errado está ocorrendo em seu bordel: ao entrar no quarto de Maria, sua afilhada,
percebe que ela está nervosa. Desconfiada, a cafetina recomenda que a subordinada se
arrume, pois os clientes não tardariam a chegar. Em vez de se retirar, Dora se afasta alguns
passos e ouve a voz de Chico e Maria, confabulando sobre as relações sexuais que tiveram.
Dora, enfurecida, entra no quarto, bate no rosto de Maria e a expulsa do bordel. A afilhada
replica as acusações garantindo que, em primeiro lugar, não existia exclusividade de homens
naquele estabelecimento e, além disso, a lição primária ensinada por Dora é que “puta não se
apaixona”, por causa disso, néscia havia sido Dora por se apaixonar pelo homem mais
mulherengo do Recife. Dora retruca a Chico que, o fato dele ser de muitas mulheres, não era
nenhuma novidade, entretanto, não era admissível que, em seu castelo, ele a traísse daquela
forma. Chico, no entanto, revela saber que foi ela que o denunciou a Aragão e provocou sua
morte. Desnorteada, a cafetina desfere um golpe de faca do peito do defunto que ri e garante-
lhe que ela não pode matá-lo por duas vezes, indo embora definitivamente. Desesperada, Dora
corta os pulsos com a mesma faca com que tentou matar Chico. Maria, de malas prontas, bate
a porta do quarto a fim de pedir perdão pelo que fez, ao abri-la se depara com a cafetina
estendida no chão e tenta ajudá-la.

Maria: Pelo amor de Maria Madalena, o que é que tu fez?


Dora: Puta se apaixona sim... E quando isso acontece ela junta todo o amor que
fingiu por tudo quanto é homem que se deitou e dedica a um só... Pois eu matei o
meu amor e agora eu morro por ele... Chico foi o único e agora vai ser o derradeiro.
Maria: Tu entregou teu coração à pessoa errada...
Dora: Eu sinto muita tristeza de não ter quem chore a minha morte porque eu não
sou amada por ninguém.

A cena que selecionamos comprova a existência de sintomas melancólicos na


personagem. Pelo diálogo e as circunstâncias, percebemos que Dora sente um profundo
remorso por ter contribuído para a morte de Chico, sentimento de culpa que, conforme
afirmou, lembrava-se todos os dias. Já verificamos que o melancólico não sabe o que
representa o objeto amado, acrescentemos a isso que, num processo de luto normal, o mundo

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exterior é completamente vazio, ou seja, o sujeito perde o interesse pela vida exterior, mas, na
139
melancolia, é o ego que se torna vazio, sendo, a partir daí, consumido pelo ideal. Freud,
relatando como exemplos casos clínicos, esclarece o que ocorre com frequência:
O doente nos descreve seu Eu como indigno, incapaz e desprezível; recrimina e
insulta a si mesmo, espera rejeição e castigo. Degrada-se diante dos outros; tem pena
de seus familiares, por serem ligados a alguém tão indigno. Não julga que lhe
sucedeu uma mudança, e estende sua autocrítica ao passado; afirma que jamais foi
melhor. [...]

O mais interessante neste processo, no entanto, é que essas auto recriminações e


acusações, na realidade, são contra o outro que foi perdido, ou seja, quando Dora diz que
matou seu amor, ela quer dizer, na verdade, que Chico buscou a morte no instante que a quis
abandonar; da mesma forma quando deprecia a si mesma, lamentando não ter sido amada por
ninguém, ela nos quer revelar que potencial tinha para ser amada, mas o mulherengo é que
não as notou. Acontece que, em virtude da ambivalência inerente num caso melancólico,
todas estas acusações são direcionadas para o próprio ego, conforme Freud elucida, ao [...]
ouvir com paciência as várias autoacusações de um melancólico se tem “a impressão de que
frequentemente as mais fortes entre elas não se adequam muito a sua própria pessoa, e sim,
com pequenas modificações, a uma outra, que o doente ama, amou ou devia amar”. (Ibid,
p.132). Para entendermos melhor este fato, devemos compreender como se dá a melancolia:
com o fim da ligação com o objeto amado, na melancolia, não há um desinvestimento
narcísico, pelo contrário, o objeto permanece, e, por causa desta permanência, o ego se
identifica com este objeto de modo que viver sem ele, torna-se insuportável. Novamente,
recorremos a Freud para que ele nos explique esta atividade:

[...] a sombra do objeto e a partir de caiu sobre o Eu, então este pôde ser julgado por
uma instância especial como um objeto, o objeto abandonado. Desse modo a perda
do objeto se transformou numa perda do Eu, e o conflito entre o Eu e a pessoa
amada, numa cisão entre a crítica do Eu e o Eu modificado pela identificação. (IBID,
p. 133).

Em outras palavras, o sujeito se fundiu com o objeto e o ego passa a ser massacrado

139
Freud acredita que, justamente por estar em tal situação, o melancólico tem consciência de verdades sobre si
mesmo que o não melancólico não teria.

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por este agente especial (o ideal do ego) por ter perdido este objeto tão essencial à
continuidade da vida. Diante desta realidade, que Dora é incapaz suportar, o suicídio é a
solução eficaz para se livrar deste ideal de ego extremamente tirânico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Discorremos, neste artigo, acerca da forma prática e fria de Dora agir: sob seu
comando, o bordel apresenta-se como a melhor opção para se esquecer dos problemas e, para
as novas integrantes, o passado. Dora alimenta o imaginário popular na medida em que
procura fazer com que as prostitutas percam a subjetividade, de modo que, como bem
afirmou, as suas contas estejam pagas no fim do mês. Além disso, Dora não admite nenhum
tipo de confusão em seu estabelecimento, a fórmula se mostra eficaz, ao menos, no que diz
respeito a lucro. Com atitudes deste gênero, a cafetina é uma eximia negociante e se mostra
bem mais esperta que grande parte dos personagens da série. A fim de respondermos nossas
inquirições, recorreremos a quatro cenas que manifestam, entre outros aspectos, a humanidade
da personagem, que ela resguarda debaixo de uma roupagem de alcoviteira impiedosa.
Descobrimos, com base nas teorizações freudianas, que Dora se encontra num quadro
de extrema melancolia, a ponto de não suportar ser trocada ou abandonada por Chico, seu
objeto de amor. Em vista de não suportar a perda, ela, em um nítido surto psicótico, originado
pela melancolia, corta os pulsos, a fim de se matar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASSERMANN, Lujo. História da prostituição: uma interpretação cultural. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1968.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
BELLEMIN-NOEL, J. Psicanálise e literatura. São Paulo: Editora Cultrix, 1978.
CECARELLI, P. Roberto. Prostituição: corpo como mercadoria. Disponível em:
<http://ceccarelli.psc.br/pt/?page_id=157> Acesso em: 12.10.2015.
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: Obras completas – Volume 12. São Paulo: Cia
das Letras, 2010.
GARTON, Stephen. História da sexualidade: da Antiguidade à revolução sexual. Lisboa:
Editora Estampa, 2009.
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PAIVA, Cláudio; ARRAES, Guel; MORENO, Newton (Criadores). (2015). Amorteamo


[série de televisão]. Recife, Brasil: Rede Globo.

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MULHER E CANGACEIRA, SIM SENHOR! REPRESENTAÇÕES DO FEMININO


NA LITERATURA E NO CINEMA

Mirian Dos Santos Marques140 | mirianmarques74@hotmail.com

Há um silêncio na historiografia no que refere-se às mulheres no cangaço, diante de tal


incógnita, faz-se tarefa fundamental analisar a produção cinematográfica e literária sobre o
sertão, cangaceiros e sertanejos, para compreender como as mulheres que participaram do
fenômeno do cangaço foram representadas em tais obras.
Ressalta-se o modo pelo qual, as cangaceiras e o sertão foram representados na
literatura, observando como estas mesmas narrativas influenciaram os cineastas na construção
dos perfis femininos sertanejos e do sertão, para assim compreendermos as representações
sociais atribuídas as cangaceiras e ao sertão.
O estudo é relevante para se constituir uma historiografia sobre a mulher, e sobre esta
mesma no movimento do cangaço entre as décadas 1950 e 1980, percebendo a repercussão de
vários estigmas sobre as cangaceiras e o sertão, no momento em que imperava um modelo
desenvolvimentista-civilizatório, patriarcal, cristão e clientelista.
Buscamos estudar as produções literárias, mapeando a presença das mulheres que
atuaram no cangaço, analisando de que maneira, estas mesmas foram retratadas e os porquês
de um signo visível que não correspondia ao não visível141.
Através do supracitado projeto, empreendemos análises biográficas dos cineastas e
literatos e a atuação destes no contexto político e cultural, pois nos revela certas inclinações,
discursos e características das obras. Buscamos estabelecer ligação entre o momento histórico
do surgimento do fenômeno do cangaço e as representações

140
Discente do V semestre do curso de Licenciatura Plena em História, pela Universidade do Estado da Bahia,
do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – Campus XVIII – Eunápolis.
141
O historiador afirma que a aparência vale pelo real, ‘‘a relação de representação é, desse modo, perturbada
pela fraqueza da imaginação, que faz com que se tome o engodo pela cerdade, que considera os signos visíveis
como índices seguros de uma realidade que não é’’. CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. In:
Revista Estudos Avançados, Vol.5, N° 11, São Paulo. Jan./Abr. 1991.
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produzidas sobre as mulheres que participaram de tal movimento através de obras literárias.
A discussão aqui proposta busca dar voz às protagonistas de uma história, que por
vezes foram citadas enquanto meras figurantes, de uma história em que as mesmas eram
donas. Silenciadas por modelos e estigmas, este estudo busca mais que escutá-las, fazerem-na
serem ouvidas.
A literatura referente a tal temática aponta que desde finais do século XIX e início do
XX, os literatos, cineastas e intelectuais buscavam forjar uma unidade identitária para a
cultura brasileira. Naquele momento sentiu-se a necessidade de incorporar à civilização
brasileira o sertanejo e consequentemente o sertão – o sumo da brasilidade, sui generis. Deste
modo, avolumou-se as narrativas literárias e cinematográficas que buscavam significar e
representar o sertanejo e o sertão, e é nestas mesmas obras que se traçou os perfis femininos
sertanejos dentro e fora do fenômeno do cangaço.
O projeto desenvolvimentista vivenciado pelo Brasil nos ‘‘anos dourados’’ que
desejava atualizar o país, não admitia a inserção do sertão, pois era terra de atraso e miséria,
era tudo o que os governos do nacional-desenvolvimentismo-progresso aboliam.
As narrativas literárias contribuíram de modo decisivo para a invenção do sertão como
um espaço selvagem, bárbaro, inabitável, mísero e o sertanejo enquanto incivilizado selvagem
(ARRUDA, Gilmar apud SILVA, José Luís de Oliveira e, 2008, p. 3) fez parte do ciclo
denominado literatura regional. A obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, lançada em 1902
que narra a repressão de tropas federais ao movimento de Canudos no interior da Bahia em
1897, é inaugural no que refere-se ao modo dicotômico pelo qual era representado o sertão.
Ao mesmo tempo em que o sertão e o sertanejo eram o que deveria ser ‘‘extinto’’, era a mais
legitima expressão do ‘‘o que é ser brasileiro’’.
Partindo da premissa defendida por José Luís de Oliveira e Silva (2008, p. 2) que toda
representação, ainda que mostrando-se revestida de um caráter natural, ocorre no campo das
lutas que dão formas as estruturas culturais de um dado momento histórico. Estas mesmas
representações revestem-se de um caráter antagônico, sendo responsáveis por tornar viáveis
elementos simbólicos que possibilitam ao sertão uma existência que rompe com o sentido
físico-geográfico.
A discussão em torno das lutas que ocorrem no campo da representação é fulcral para
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se compreender as estratagemas que cristalizou-se sobre o vocábulo sertão que na América


Portuguesa não possuía relação com à aridez do local; mas com lugares desconhecidos, que
não foram ‘‘desbravados’’. Entretanto, um significado possível já o retirava do ‘‘significado
primitivo’’ e o colocava no mundo das representações sociais, naquele momento histórico o
sertão representado e significado era o espaço da barbárie, aridez, miséria.
Deste modo, as representações sobre o sertão e sertanejo feitas pela literatura e mais
tarde pelo cinema, nasceram da necessidade de autoafirmação da cultura brasileira, que
experimentava avultada expansão durante o século XX. Estas representações foram marcadas
pelo caráter dualista que opunha rural e urbano. Deste modo, foi sendo estereotipadas a
geografia e a cultura sertaneja com características antagônicas, pois encontrava-se em disputa
a luta pelas representações.
Roger Chartier (1991, p. 185-186) afirma que ao tomarmos o visível enquanto
‘‘expressão verdadeira e segura’’ do não visível, assim a relação de representação de sertão e
sertanejo é, permeada por uma imagem mascarada, que faz com que tomemos o falso pela
verdade, ou seja, o sertão é inóspito, sinônimo de atraso, miséria e seca, considerando que
símbolos visíveis – literatura, cinema e ‘‘textos científicos e eruditos’’ - são sinais confiáveis
de uma realidade que não representa e sim mascara.
A representação de um sertão e sertanejo desvinculada de sua realidade transforma-se
em arma de controle nas mãos dos que buscam cristalizar tal imagem como o fizeram
intelectuais através do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e literatos da fase
regionalista.
Para Carlo Ginzburg (p. 103) a representação levanta a hipótese de que a
representação é apreendida e interpretada enquanto a presença concreta de ‘‘algo’’/alguém
representado. Deste modo, o sertão e o sertanejo enquanto símbolo de estereótipos imagéticos
depreciativos são efígies verdadeiras da coisa representada, assim, como a ‘‘comunhão
heráldica e equestre’’ o foi.
A reflexão empreendida em torno do conceito de representação do sertão e sertanejo
faz-se fulcral para as reflexões sobre como foram representadas as cangaceiras na literatura,
desde que, as representações que surgem sobre estas mulheres são produzidas no mesmo
‘‘espaço simbólico’’ em que são representados sertão e sertanejo, logo a cangaceira é também
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a representação de todas as mulheres nordestinas.


Ana Paula Freitas (2005, p. 117) afirma que a discussão sobre as mulheres no cangaço
são escassas e a falta de pesquisas e estudos nas produções acadêmicas são poucas – deixando
diversas indagações que são pertinentes -, o que se tem sobre as cangaceiras são trabalhos de
memorialistas e cordelistas.
Tais questionamentos nos faz pensar sobre as representações que foram dadas às
cangaceiras na literatura. Maria Bonita não representa somente a ela mesma, mas todas as
mulheres nordestinas, com o estereótipo da ‘‘mulher macho’’, pois Maria de Déia possuía
características que a masculinizavam e que nem mesmo seu marido Lauro as possuía.
A ‘‘estética da fome’’ também é marca para caracterizar as mulheres nordestinas,
como demonstrada na obra Vidas Secas (Graciliano Ramos, 1938), Sinhá Vitória mata o
papagaio da família para saciar a fome, estas mesmas são vítimas da miséria e do abandono
do Estado, como demostrada na obra O Quinze (Rachel de Queiroz, 1930) em que Cordulina
assiste a morte de seu filho de mãos atadas, com o completo abandono do Estado, e quando
este a socorre é através de um campo de concentração que abrigava moribundos prestes a
morrer.
A construção do ‘‘ser mulher’’ é uma construção social segundo Simone Beauvoir:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,
econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o
castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir
um indivíduo como um Outro (1967, p. 9).

Logo é preciso considerar o que vivenciava tais mulheres nestes espaços sociais em
que não era fácil lidar com sentimentos ambíguos e contraditórios, e que não foram
considerados por literatos.
Estas mulheres eram retratadas enquanto cangaceiras ou criminosas, que entravam no
cangaço por vontade própria, sem considerar que a maioria delas foram raptadas e violentadas
pelos homens que tornar-se-iam seus companheiros. Algumas mulheres entraram no cangaço
por vontade própria atraída pelo status que tal atividade proporcionava, ascensão social e
desejo carnal que se despertava nas mulheres pela imagem da virilidade masculina dos
cangaceiros.

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Por ascensão ou desejo carnal estas mulheres entraram no cangaço de modo


voluntário, e tal prática tornou-se subversiva, pois as mesmas mostraram que tinham vontade
própria escolhendo o que desejava, e não o que já estava estabelecido como os trabalhos
rurais e casamentos entre famílias, que iam de contra seus sentimentos. A alternativa do
cangaço torna-se uma subversão a uma ordem social, patriarcal, cristã e clientelista.
As informações coletados para a construção dos perfis femininos de Rachel de
Queiroz em sua obra Lampião; Maria Beata do Egito fora permeados por uma perspectiva de
visão civilizatória e cristã sobre as cangaceiras, que possuíam caráter duvidoso, no momento
em que rompiam com a ‘‘ordem social, patriarcal e clientelista’’ que regia o meio em que
viviam.
A iniciativa de diversas mulheres de entrar no cangaço de modo voluntário
representou segundo Lima romper com as normas da sociedade patriarcal brasileira, regida
por lei.
Para a história das mulheres, a iniciativa de seguir o cangaço representou o
rompimento com as normas da sociedade patriarcal brasileira, baseada no Código
Civil de 1916, no qual a união ilegal era condenada com o apoio da Igreja Católica,
rompendo-se com a ideia de família para ter o direito de escolher o próprio marido,
no caso, o companheiro, Lampião. Sua inserção no cangaço a qualificou como
adúltera e mulher de conduta duvidosa, tal qualificação foi resultado da ousadia de
Maria Gomes, que abandonou o marido para se tornar a Rainha Maria Bonita.
(LIMA, Caroline, 2010, p. 12).

Não era sob a perspectiva que encoraja a mulher, que se avolumaram as narrativas
literárias, cinematográficas e da imprensa – qualificando-as enquanto criminosas, bandidas,
amantes, cruéis -, mas sob um olhar que a inferioriza seu papel no cangaço, pois o exemplo de
mulheres que rompem com uma ordem, mostrando que isto é possível, não é o exemplo
adequado para uma sociedade patriarcal, no qual não há espaço para se pensar a mulher, o
modelo adequado era o da moral cristã.
A imprensa em geral as tratava como meras coadjuvantes no movimento do cangaço,
as diversas páginas que se enchiam com as proezas do bando, só mencionavam os nomes dos
cangaceiros, a elas cabiam à menção de serem companheiras ou amantes de cangaceiros,
objetificando-as.
[...] as cangaceiras foram qualificadas de forma homogênea como criminosas e
bandoleiras construindo, assim, um estereótipo masculino, belicoso e violento de
mulher, ou então, tratando-as como meros objetos de satisfação sexual,
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descrevendo-as como amantes ou companheiras dos homens. E por fim, como


números, sempre de modo depreciativo. [...] Os cuidados femininos com o
embelezamento do corpo, com a aparência, foram anulados pela construção de uma
identidade belicosa e marginal (FREITAS, 2005, p. 130).

Neste ponto, percebe-se como as reflexões sobre representação sob a perspectiva de


Roger Chartier e Carlo Ginzburg fazem-se indispensáveis desde que, o visível – os diversos
periódicos depreciativos sobre a mulher cangaceira – tornam-se a imagem verdadeira de um
símbolo não visível.
Entre os memorialistas e cordelistas, Maria é bonita, sedutora e apaixonada. Nas
imagens do Mascate Benjamim Abrahão Botto, a exemplo da fotografia acima, as
cangaceiras apareceram penteadas e bem vestidas, com postura alinhada
demonstrando que havia vaidade nelas. Entretanto, para o Estado, a mulher no
cangaço foi “amante”, “companheira” e dependente do marido, eram as “megeras” e
“criminosas” e deveriam receber a mesma punição que os cangaceiros, suas cabeças
cortadas (LIMA, 2010, p. 12).

A produção cinematográfica, assim como a literária criou estereótipos em torno do


sertão e das cangaceiras. A película O Cangaceiro de Lima Barreto (1953), nos possibilita
perceber os estigmas em torno da personagem Maria Clodia que fica entre o ‘‘mau
cangaceiro’’ Galdino e o ‘‘bom cangaceiro’’ Teodoro. No decorrer da trama, percebemos de
modo claro que a mesma fica em segundo plano na vida dos dois. Observa-se também a
depreciação da cangaceira Maria Clodia por ter sido trocada pela professora Olivia – esta sim
representava o modelo ideal de mocinha e de mulher civilizada, por outro lado a cangaceira,
era a adúltera incivilizada, que não merecia admiração, mas espanto e desprezo.
Os filmes Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos (1963) e Deus e o Diabo na Terra
do Sol Glauber Rocha (1964) mostram um sertão árido, violento, bárbaro e beirando a
insanidade acabando por ‘‘coroar’’ tudo o que deveria ser superado.
O filme enquanto expressão humana deve ser analisado e problematizado, pois
constitui-se em um riquíssimo instrumento para realização da pesquisa histórica, ao passo que
o mesmo possui autonomia, fala por si só, ele (obra cinematográfica) sempre testemunha,
como atesta o historiador Marc Ferro.
Não é suficiente constatar que o cinema fascina e inquieta: os poderes públicos e o
privado pressentem também que ele pode ter um efeito corrosivo e que, mesmo
controlado, um filme testemunha. Noticiário ou ficção, a realidade cuja imagem é
oferecida pelo cinema parece terrivelmente verdadeira. É fácil perceber que ela não
corresponde necessariamente às afirmações dos dirigentes, aos esquemas teóricos, à
análise das oposições [...] As imagens, as imagens sonoras, esse produto da
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‘‘natureza’’, não poderiam ter, como o selvagem, nem língua nem linguagem. A
ideia deque um gesto poderia ser uma frase ou um olhar um longo discurso é
completamente insuportável: não significaria isso que a imagem, as imagens
sonoras, o grito dessa mocinha ou essa multidão amedrontada constituem a matéria
de uma outra história que não é a História, uma contra análise da sociedade.
(FERRO, Marc, 2010, p. 31-32).

Desvendando lugares antes nunca descobertos e desestruturando verdades nunca


contestadas, a imagem tem o poder de se fazer compreender de modo singular o que a
sociedade não mostra, não visualiza, não sente. O filme a este ponto vai além da oposição
maniqueísta de bem/mal, o mesmo nos concede uma contra análise da História e da
sociedade, acaba por dizer o que nem sempre se quer ouvir, aí reside à riqueza de se trabalhar
com a obra cinematográfica.

A discussão aqui apresentada sobre a representação da cangaceira no fenômeno do


cangaço busca mostrar que a estigma sobre as cangaceiras não era meramente por ser parte do
cangaço, e sim por serem mulheres e romper com uma ordem que as subjugavam. Em uma
sociedade machista, em que o macho está no centro dos acontecimentos e o verbo das
palavras pertence a ele, não é aceitável que uma mulher ouse entrar, lutar, atirar, aventurar-se,
o seu papel de fêmea é servir o macho, procriar e cuidar dos afazeres domésticos era a sina da
fêmea, até romperem com a ordem patriarcal.
No segundo volume de seu livro O Segundo Sexo – A experiência vivida, Simone
Beauvoir discorre sobre a sina machista que instala-se na fêmea uma vez na adolescência o
Outro diz-lhes como tornar-se mulher, pois mulher, é uma construção social.
Uma vez púbere, o futuro não somente se aproxima, instala-se em seu corpo, torna-
se já realidade mais concreta. Conserva o caráter fatal que sempre teve; enquanto o
adolescente se encaminha ativamente para a idade adulta, a jovem aguarda o início
desse período novo, imprevisível, cuja trama já se acha traçada e para o qual o
tempo a arrasta. Já desligada de seu passado de criança, o presente só se lhe
apresenta como uma transição; ela não descobre nele nenhum fim válido, mas tão
somente ocupações. De uma maneira mais ou menos velada, sua juventude
consome-se na espera. Ela aguarda o Homem. (1967, p. 66).

A sina da mulher é esta no momento em que reconhece-se um ser dependente, o que


não ocorrera com as mulheres, que escolheram o cangaço enquanto estilo de vida, rompendo
com a sina de cumprir com suas obrigações e esperar o príncipe encantado.

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A Cinderela descobre a felicidade e liberta-se das maldades de sua madrasta e irmãs


depois de conhecer o príncipe, ‘‘entregando-se, passiva e dócil, nas mãos de um novo
senhor’’(BEAUVOIR, 1967, p. 67).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das análises empreendidas em torno de como foram representadas as
cangaceiras através de jornais, literatura, filmes, dentre outras possibilidades foi possível
perceber as motivações pelas quais as cangaceiras foram estigmatizadas.
Percebeu-se que os estereótipos e representações criados em torno das cangaceiras não
fora somente por participarem do bando, mas por serem mulheres e tornarem-se cangaceiras,
rompendo com uma ordem machista e patriarcal. Estas mulheres sinalizavam alternativa para
as mulheres que não desejavam casar por acordos políticos e econômicos ou trabalhar na zona
rural. Ou ainda, desejavam desfrutar de um status social que o fenômeno do cangaço
possibilitava.
Em uma das análises realizadas, percebe-se a vitimização da cangaceira Maria Bonita
ao título da notícia do Jornal Estado da Bahia (1 de agosto de 1938) – Foi uma súplica a
última palavra de Maria Bonita /A amante rocambolesca pediu que não matassem seu amado
– para além, descreve-la enquanto amante do cangaceiro, busca depreciar a mulher
cangaceira. Encontra-se no título de tal manchete a mesma perspectiva em que aparece Maria
Clodia na película supracitada, enquanto adúltera, pois o vocábulo ‘‘amante’’ remete-nos a
esta definição, e enquanto representante da má moral e do incivilizado deveria ter a sua
cabeça cortada, assim como as dos cangaceiros.
A reflexão aqui apresentada não tem por intento ser um ponto final, mas sim o terceiro
ponto da reticência, que sinaliza que há muito por se discutir e refletir sobre as mulheres
cangaceiras, que foram assim como os celebrados cangaceiros, foram protagonistas de uma
história que as estigmatizaram e as deixarão à margem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Acervo
Biblioteca Pública do Estado da Bahia
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Filmes
BARRETO, Lima. O cangaceiro. [Filme-vídeo]. Produção: NETO, Anibal Massaini. São
Paulo. 105 min. Preto & Branco. Son.
ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na terra do Sol. [Filme-vídeo]. Produção: Luiz Augusto
Mendes; Luiz Paulino dos Santos. Bahia. 115 min. Color. Son.
SANTOS, Nelson Pereira dos. Vidas Secas. [Filme-vídeo]. Produção: BARRETO, Luis
Carlos; RICHERS, Herbert; SANTOS, Nelson Pereira dos; TRELLES, Danilo. Rio de
Janeiro. 103 min. Color. Son.

Artigos e livros
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: A experiência vivida. Tradução: Sérgio Milliet. São
Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
CHARTIER, Roger. O Mundo Como Representação. In: Revista Estudos Avançados, Vol.5,
N° 11, São Paulo. Jan./Apr. 1991.
FERRO, Marc. Cinema e História. Tradução: Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.
FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença Feminina no Cangaço: Práticas e
Representações (1930-1940). 2005. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade
Estadual Paulista, Assis, 2005.
GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira. Nove reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo
Brandão. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
LANGER, Johnni. ‘‘Metodologia para análise de estereótipos em filmes históricos’’. In:
Revista História Hoje. São Paulo, nº 5, 2004. Disponível em:
NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In. Carla Bassanezi Pinsky (org). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p.115-202.
NÓVOA, Jorge. A relação cinema-história e a razão poética na reconstrução do paradigma
histórico. In: Revista O Olho da História, n.10, abril, 2008.
QUEIROZ, Rachel. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.
SANTOS, Caroline Lima. De Maria Déia a Maria Clodia: As representações de Maria Bonita
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no cinema e na literatura. In: V Encontro Estadual de História ANPUH-Bahia, 2010,


Salvador. Anais do V Encontro Estadual de História ANPUH-Ba. Salvador: UCSAL, 2010.
V. único. P. 69-69.
SILVA, J José L de Oliveira E. História, cinema e representação: a significação imagética do
sertão no recente cinema brasileiro. In: Congresso Internacional de História e Patrimônio,
2008, Teresina: EDUFPI. Anais.

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MULHERES E PICHADORAS: COMUNICAÇÃO E ARTE CONTRA-


HEGEMÔNICA NOS MUROS DO RECIFE

Carolina de Toledo Braga | caroltbraga@gmail.com


Vittória Silva Paz Barreto | vittoriapazbarreto@gmail.com

Pichação é criação brasileira. Não o ato ou os símbolos, mas a palavra. No padrão


culto da língua portuguesa há um verbo para designar o ato de riscar muros, e uma palavra
para identificar quem o faz: o pichador, a pichadora. Os/as pichadores/as se apropriam dos
muros rabiscando seus próprios nomes com letras por vezes indecifráveis, mas sempre
coloridas. Por adrenalina, “safadeza”, vontade de gritar ou protesto. Os/as pichadores/as do
Recife não picham por um único motivo. O que faz alguém sair de casa a noite para pichar
muros na cidade?
Pichação é uma expressão artística, de resistência e de comunicação social não de
minorias, mas de pessoas marginalizadas, que buscam na escrita e no desenho um
reconhecimento próprio. As marcas da caligrafia são vistas, por vezes, como desordenadas e
sem senso estético, mas representam orgulho e status para quem individual ou coletivamente
escreveu aquela palavra, nome, tag142 ou símbolo na parede. O ato de pichar reconhece em si
um processo de criação, no qual o/a pichador/a passa anos em contato com a arte, seja
observando as paisagens da cidade, seja em contato com as pessoas do universo da pichação.
A partir dessa relação há o desenvolvimento da estética das letras dentro da própria
originalidade daquele indivíduo, característica muito prezada pelos/as pichadores/as. Para
uma pessoa ser considerada pichadora ela passa por um processo rigoroso de criação da
própria identidade, buscando na sua subjetividade representar todo aquele universo no qual
está inserida e criar uma tag, uma assinatura, uma marca própria. Assim, este artigo se
desenvolve pautado em dar visibilidade a estes grupos e levantar questionamentos sobre as

142
Tag: como os/as pichadores/as nomeiam a marca que identifica alguém ou algum grupo de pichadores/as.
Pode ser uma assinatura, um desenho ou apenas riscos.
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opiniões e o papel deles na sociedade.


O ativismo e militância política por sua vez, também fazem parte desta realidade
sendo frequentemente empregados por cidadãos e cidadãs insatisfeitos/as com o modo de
produção, governo, gestão e forma de fazer política existentes na sociedade. Em contraponto
com a norma culta da língua portuguesa e, buscando aproximação com as formas tipográficas
e ortográficas utilizadas por aquelas pessoas que picham para afirmar uma existência,
utilizaremos a partir de agora palavras inseridas no vocabulário informal de pichadores/as,
como a palavra “pixação” escrita com a letra “X”.
Este artigo visa apresentar a pixação como forma de comunicação, resistência e arte,
bem como demonstrar as ações dos grupos de pixadoras no Recife, capital de Pernambuco,
como produções ativistas e participativas, pautando o protagonismo feminino no universo da
pixacão. Na arte de rua, o protagonismo é masculino e as poucas mulheres atuantes
ressignificam os próprios referenciais subjetivos de identidade. Para isso, juntam-se,
confrontam-se ou se submetem aos padrões ditos como masculinos, buscando lugares e
formas de ocupar o espaço público – ocupação esta que lhes é negada historicamente. Para
isso, foram realizadas entrevistas com pixadoras recifenses, dando voz ativa a esses sujeitos
em uma visão contra-hegemônica143, enxergando a pixação como fissura dentre as políticas
urbanísticas verticalizadas dominantes na cidade. Analisaremos as dinâmicas do discurso,
demonstrando nelas as relações de gênero144. Nos restringimos aqui a citar apenas os
pseudônimos das pixadoras, nenhum nome próprio foi escrito, para não colocar em risco a
segurança de adolescentes e adultos perante o Estado, representado neste caso pela polícia.
Enquanto grito dentro da sociedade, o pixo abre espaço para expressar diferentes

143
Na significação gramsciana do termo hegemonia, esta palavra designa o papel imprescindível de manter
estável a ordem social em sua organização política superior, o Estado, em uma fórmula de soma da coerção e do
consenso. A força da hegemonia é realizada em dois planos: o monopólio da violência legítima por parte do
Estado e as necessidades se sujeição da população impostas pela ordem econômica vigente, com os meio de
produção controlados pela classe dominante. Indo de encontro a esta noção hegemonia, a contra-hegemonia seria
uma forma de atuar contrariamente as ordens sociais vigentes. GRAMSCI, A. 1978a. Concepção dialética da
história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ALVES, Ana Rodrigues Cavalvanti. O Conceito de Hegemonia:
de Gramsci a Laclau e Moufee. Lua Nova, São Paulo, 80: 71-96, 2010.
144
Utilizaremos gênero como categoria de análise histórica, como sugerido por Joan Scott. Para ela, gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e também a forma
primeira de significar as relações de poder. SCOTT, Joan Wallach. Gender and the politics of history. New York:
Columbia University Press, 1988.
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formas de opressões, como classe145, racismo e gênero. Um acúmulo de opressões,


inclusive, que acontece dentro do próprio universo da pixação, enxergando tal como inserido
na sociedade capitalista. Para as mulheres, muitas vezes, a vontade de gritar-se mulher torna-
se motor da pixação. Elas se arriscam para pintarem nos muros monocromáticos das ruas do
Recife frases como “Machismo mata” e “Ser mulher, ser livre”. Este artigo se desenvolve
pautado em dar visibilidade às mulheres pixadoras. Também levantamos questionamentos
acerca do papel dessas mulheres dentro do universo da pixacão e da sociedade. Em entrevista
realizada com pixadoras do Recife, as PixeGirls, é possível perceber a identificação própria
dos recursos artísticos utilizados na pixação pelas artistas visuais.
Pixação pra mim é uma arte vandal. Vandalismo por ser um protesto, por ser uma
afronta, pela sociedade, pela maioria das pessoas ser somente uma sujeira, um lixo.
Por tá dando prejuízo aos moradores, enfim. E arte por não ser só isso, é também. É
por isso que a gente sai pra rua, a gente sai pra protestar, pra afrontar. Aí, já vem o
lado a arte que não é só o rabisco, tem aquele processo artístico, tem a vaidade com
o próprio nome. (BUBU, 2015)

Com letras coloridas e questionadoras, as pixações ocupam o espaço e os muros


brancos das grandes cidades, em um movimento urbano na contra mão da construção
historiográfica oficial. Os/as pixadores/as se dividem em “galeras”, ou seja, grupos formados
de acordo com os bairros ou comunidades onde vivem, em torcidas organizadas, em
movimentos políticos contestatórios ou ainda em grupos de acordo com os gêneros. Os/as
pixadores/as são considerados/as criminosos/as no Brasil desde a Lei de Crimes Ambientais,
do dia 30 de março de 1998. A pena para este tipo de atividade, se pega em flagrante, é de
multa e três meses a um ano de detenção. A Lei federal número 12.408, do ano de 2011, vem
proibir a venda dos sprays de tinta para pessoas menores de 18 anos e alterar a legislação
anterior destacando a diferença entre o grafite e a pixação146. O primeiro é colocado no lugar

145
O conceito de classe aqui é usado e questionado em cima do utilizado por Thompsom, na obra Tha Making of
the English Working Class. O conceito de classe na obra é construído como uma identidade masculina, mesmo
quando nem todos os atores são homens. Assim, visto que as estruturas hierárquicas baseiam-se e compreensões
generalizadas da relação pretensamente natural entre masculino e feminino, as mulheres não são vistas como
sujeitos políticos dentro da classe. Apontamos a necessidade de identificar as várias formas nas quais as
diferenças sexuais são usadas para construir a classe trabalhadora questionando como o conceito de classe foi
criado e legitimado. SCOTT, Joan Wallach. Gender and the politics of history. New York: Columbia University
Press, 1988. P. 72-78.
146
“Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou
privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário
509
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de embelezamento dos patrimônios públicos e privados, enquanto a segunda assume o caráter


de “conspurcar edificações”, nas palavras da lei.
Reconhecemos neste artigo o caráter artístico do pixo, não no sentido da
institucionalização da atividade, como no caso do grafite, e sim no processo criativo rigoroso
pelo qual passam os/as pixadores/as desde o momento do teste de diversas tipografias no
caderno ou em folhas de papel, durante o tempo que passam em contato com outros/as
pixadores/as, até a tag ser pixada na rua e aprimorada. Assim, nos tornamos adeptas de uma
visão contra-hegemônica do que é institucionalizado como arte e do que referido como pixo.
Colocamos a pixação no pedestal da arte atribuindo-lhe este caráter ao rigor do processo
criativo e a conceituação de quem os faz. Assim, também deixamos um questionamento: o
que faz a arte ser caracterizada como tal?
Nesse processo de criação artística, o meio urbano onde se vive tem papel fundamental
no desenvolvimento estético das letras e desenhos. Em cada cidade, os/as pixadores/as tem
características coletivas de caligrafia. No Recife, o traço mais marcante nas tags é a união das
letras. A chamada caligrafia enrolada. Mais difícil de compreender, muitas vezes não é um
nome e sim uma marca.
Dentro dos estudos universitários, a maioria dos projetos e teses versam sobre o
caráter das artes plásticas nestas atividades e não sobre a busca comunicativa e de resistência
dos/as seus/suas praticantes.147 Com um outro olhar sobre o assunto, Célia Maria Ramos, em
seu artigo Grafite & pichação: por uma nova epistemologia da cidade e da arte148 alerta
para o recente tipo de produção:
Grande canal de comunicação, sem conexão com fibra ótica ou cabo elétrico, mas
conectado diretamente com a cidade, com o público, com o aqui e agora, os grafites
criados nos “udigrúdi” das cidades levaram o ocidente a presenciar pública e
anonimamente o questionamento de muitos de seus valores estabelecidos, entre eles
o da ocupação dos espaços da cidade e o da apresentação e valoração da Arte. Se
uma nova forma de política emerge desse contexto com ela uma nova forma de

ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a
observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela
preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.” As alterações da lei estão disponíveis
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12408.htm. Acesso em: 01/05/2015.
147
Exceto pela tese de mestrado de Thiago Santa Rosa, única sobre a história do pixo no Recife e a busca pela
territorialidade de pixadores. MOURA, Thiago Santa Rosa de. Pixadores, grafiteiros e suas territorialidades :
apropriações socioespaciais na cidade do Recife. Recife: UFPE, 2014.
148
RAMOS, Célia Maria Antonacci. Grafite, Pichação & Cia. São Paulo: Annablume, 1994.
510
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comunicação e de arte. (RAMOS, 1994, P. 18)

Por não haverem documentos escritos, nem fontes audiovisuais, é importante que esta
atividade seja contada e problematizada pelas próprias ativistas por meio de relatos orais.
Apesar de marginalizadas, as pixações e os grafites não podem e não devem ser desprezados
pelo fato de serem parte viva e pulsante da cultura urbana do Recife – e de muitos centros
urbanos no mundo. As pessoas que pixam e grafitam buscam uma maneira não oficial de
manifestar seus pensamentos. Como tática, inclusive, riscam por cima de propagandas ou
outros informes publicitários, já que dentro dos veículos de comunicação de massa suas
opiniões são consideradas irrelevantes e não são publicadas.149
Não tendo lugar oficial dentro da mídia hegemônica ou da produção historiográfica
para terem suas queixas, críticas, histórias e questionamentos ouvidos, as paredes e os muros
assumem a função da comunicação social. Lugar onde os/as pixadores/as despejam seus
discursos e reivindicações por meio de tags que imprimem a individualidade de cada pessoa,
como se identificam dentro dos próprios grupos e entre outras “galeras” de pixadores/as,
formando uma rede de comunicabilidade entre os/as pixadores/as, vista como agressão visual
às pessoas fora desse contexto. Ao serem colocados fora da história oficial, não tem apenas os
discursos invalidados por adjetivos e expressões como “vandalismo”, mas os próprios sujeitos
também são colocados na posição de criminosos sem haver forma de indagação do lugar
social daqueles indivíduos. Entendendo esta complexidade nas relações entre sujeito e meio
como exemplo da teoria das sistemacidades descontínuas, mas atribuindo-a todas as

149
Em entrevista realizada com pixadores da Zona Sul do Recife, os Anarquistas Detonadores do Pina (ADP),
eles mostraram-me uma coleção própria de jornais recifenses com notícias sobre pixo, grafite e a comunidade
onde vivem, chamada de Bode, localizada no Pina, bairro vizinho de um dos bairros mais elitizados da capital
pernambucana, Boa Viagem. A manchete do jornal Diario de Pernambuco, do dia primeiro de julho de 2013:
“Pichações invadem Boa Viagem.” (Disponível em:
http://siteantigo.mppe.mp.br/index.pl/clipagem20130108_pichacoes. Acesso em: 10.01.2015) Na matéria, os
pixadores são tratados como “vândalos”, “destruidores” do patrimônio alheio. No outro dia, no mesmo jornal,
uma matéria destaca o trabalho de grafiteiros e artistas visuais no bairro do Pina. São as mesmas pessoas
desenhando em ambas as matérias, só os jornalistas que não sabiam. Assim, é possível perceber como a
institucionalização da grafitagem como arte beneficia as instituições. “É assim que o governo pensa: vamos
institucionalizar o grafite, vamos dizer que o grafite é arte e assim todos os pixadores vão querer virar grafiteiros.
Mas não é isso que acontece. Tem muita gente fazendo o grafite bomb, não só de preto fosco, mas também de
cores, colorindo a cidade, sem autorização nem financiamento do governo”. (Stilo)
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características do tempo presente, para não soar anacrônico, em A ordem do discurso150,


Michel Foucault, indaga a série de relações simultâneas entre os sujeitos:
Não se trata, bem entendido, nem da sucessão dos instantes do tempo, nem da
pluralidade dos diversos sujeitos pensantes; trata-se de cesuras que rompem o
instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e de funções
possíveis. Tal descontinuidade golpeia e invalida as menores unidades
tradicionalmente reconhecidas ou as mais facilmente contestadas: o instante e o
sujeito. (FOUCAULT, 1970, P. 42)

Neste sentido, as relações sujeito-sociedade se dão meio a conceitos pré formados


pelos meio de comunicação de massa – jornais, televisão, rádio, cinema – no período pós
Guerra Fria, em uma campanha de afastamento a táticas de ação direta e desobediência civil,
associadas a movimentos de esquerda combativos. No Brasil, a situação de repulsa da
sociedade por este tipo de escrita, assim como a outras maneiras de ir de encontro ao sistema
diretamente, foi agravada após as manifestações urbanas iniciadas no levante popular de
junho de 2013, nas quais ações da tática black bloc se sobressaíram dentro dos protestos,
naturalmente ou não. Outro motivo se dá pelas instituições governamentais que colocam
como prioridade defender a propriedade privada e não os/as cidadãos e cidadãs.
Para as mulheres, o fato de ser pixadora surge como mais um fator de ser oprimida, e muitas
vezes é atribuído não a própria vontade dela enquanto sujeito ativo de se expressar, mas como
uma forma de querer se colocar numa posição dita como masculina, a de pixador, como
podemos perceber na fala da pixadora Vertigem, do grupo PixeGirls151.

Começa daí, de a galera não entender o porquê da pixação, é o primeiro


preconceito. E depois quando você é mulher, aí piora tudo, você além de pixadora, é
mulher. E pra galera entender isso é muito, bem mais difícil. E uma mulher se da
com mais preconceitos ainda do que com um homem. Não é só contra o sistema
[que pixam], é contra o sistema e o machismo, e o racismo, enfim, outras coisas.
(VERTIGEM, 2015)

Questionadas como uma forma de discurso marginal, as pixações são apontadas por

150
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
151
Entrevista realizada em Setembro de 2015, na praça do Marco Zero, no Bairro do Recife, com Tab, Bubu,
Kel, Vertigem, Lai e Mah, pixadoras do grupo Pixegirls. Os trechos das entrevistas estão reproduzidos
exatamente como os entrevistados falaram. As autoras fizeram mudanças de correções ortográficas apenas
quando imprescindíveis para garantir o entendimento do/a leitor/a.
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Marcos Corrêa de Mello Felisette, em seu artigo Outsiders da Escrita152, como meio de
alcançar status e reconhecimento que não seria possível através de órgãos burocráticos:

Seu discurso marginal nada mais é do que a marginalização de todos os direitos e


oportunidades que lhes são suprimidos. Isto é, a escrita, se torna espelho de toda esta
falta de oportunidade; da condição resumida e estreita de participação dentro do
corpo social, que impõe-se ao jovem escritor. É nítido portanto, que a maior procura
destes grupos seja por Ibope, e que deste modo, quanto maior for sua
estigmatização, maior seu desafio em tentar se incluir em um alto degrau de
visibilidade. A escrita portanto, é a resultante de um longo processo sócio-cultural
que deflagra, e em muito, a renegação do espaço e oportunidade às classes menos
favorecidas dentro da sociedade. (grifo do autor) (FELISSETE, 2008, P. 7)

Pixadores/as e grafiteiros/as compartilham a mesma mídia, apontando a parede como


veículo de comunicação, e no desejo de comunicar-se, produzem com expectativas e
objetivos parecidos. Na dissertação desenvolvida no Programa de Pós Graduação em
Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco, Pixadores, grafiteiros e suas
territorialidades : apropriações socioespaciais na cidade do Recife153, Thiago Santa Rosa
nos propõe uma visão da cidade produzida pela pixação e pela grafitagem:

A existência da imagem, a paisagem produzida a partir da apropriação por um


grafiteiro ou pixador, em todas as conexões possíveis a nível cognitivo que podem
ser realizadas com diferentes indivíduos e segmentos sociais gerando assim
diferentes interpretações e diálogos que em muito alimentam a sua dimensão
política, o tratamento legal que o Estado imprime aos pixadores e grafiteiros que
surgem como um bom exemplo dessa fricção de interpretações e projetos políticos
sobre a cidade, também imprime temporalidades diferentes àquelas hegemônicas ao
espaço urbano. (SANTA ROSA, 2014, P. 83)

Há uma relação afetiva entre os/as pixadores/as e suas territorialidades, a cidade onde
vivem, na qual precisam utilizar argumentos para assegurar sua própria existência diante de
um local que a nega por uma questão de classe. É neste sentido que as diversas noções de
temporalidade são mudadas e que a pixação aparece como noção contra-hegemônica no
âmbito artístico, comunicacional e classista.
Dentro das significâncias do processo de criação afetiva nas relações com o território

152
FELISETTE, Marcos Corrêa de Mello. Outsiders da escrita. São Paulo: XIX Encontro Regional de História:
Poder, Violência e Exclusão, ANPUH – USP, setembro, 2008.
153
MOURA, Thiago Santa Rosa de. Pixadores, grafiteiros e suas territorialidades : apropriações socioespaciais
na cidade do Recife. Recife: UFPE, 2014.
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onde vivem, a maioria em favelas na cidade - que não necessariamente são nas periferias, já
que no Recife as palafitas e comunidades ficam em áreas centrais, em cima do mangue, no
caminho para os bairros nobres – o pixo e o grafite estão inseridos dentro da resinificação
daquele território para virar um registro espacial do grafiteiro/a ou do pixador/a. Pixações
“riscadas” no centro comercial da cidade são uma forma de demarcação do território
daquele/a pixador/a, que busca como um meio intersubjetivo, dentro do universo deles,
disputá-lo em um sinal de status. Ao mesmo tempo que existem essas expressões humanas,
artísticas, comunicativas e ilegais, a cidade se organiza independente delas, se organiza para
proteger a propriedade privada, tornando quem desrespeita essa ordem imposta, um/a
criminoso/a.
Sabendo o quão real e forte a opressão de gênero se dá na sociedade, por muito tempo
houve o mito da igualdade nas relações entre os sexos dentro de grupos políticos organizados
de esquerda ou anarquistas. Essa igualdade relacional pode até existir em alguns grupos, mas
na maioria fica só no discurso. É essencial quebrar essa falsa ideia de igualdade em grupos
contestatórios para entendermos a opressão sofrida pelas mulheres por estarem exercendo
ações consideradas como masculinas. O caráter de oposição entre masculino e feminino é
construído historicamente e produz como um dos seus efeitos a aparência de ser invariável,
binário e fixo. Nesse sentido, os elementos constitutivos das relações sociais são fundados
sobre as diferenças entre os sexos, por meio de símbolos culturais, conceitos normativos e
análises teóricas que tendem a excluir a noção do político de esferas que não sejam a pública
– vista como masculinizada. De acordo com a pixadora Lai, o tratamento é diferenciado entre
pixadoras mulheres e homens.

Uma vez eu fui sair sozinha pra pixar, de madrugada, num local próximo à BR, que
era super perigoso. Aí, um senhor parou o carro e ficou me esculhambando, tipo,
eu fiquei morrendo que ele me botasse uma arma, botasse pra dentro do carro, que
me estuprasse e tal. Mas o que me chamou atenção é que ele não me esculhambou
de vândala, de coisas do tipo, por tá pixando. Ele me chamou de vagabunda, de
vadia, de puta, coisa que não tem nada a ver com o fato de tá pixando, só pelo fato
deu ser mulher. (LAI, 2015)

Enquanto a sociedade criminaliza o pixo, o universo da pixação (predominantemente


ativo por sujeitos homens) não aceita as mulheres dentro dele. No Recife, apenas

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recentemente, nos últimos dois anos, as mulheres formaram grupos próprios e entraram em
“galeras” mistas. A pixação de tag começou a se expandir no Recife na década de 1980154,
por meio dos pixadores Cano e Well. Eles trouxeram do Rio de Janeiro esse tipo de pixo de
representação do indivíduo e de “galeras”. O primeiro “comando”155, iniciado por eles, foi a
VC, que no Rio de Janeiro significava Vândalos de Copacabana, mas no Recife significa
Vândalos da Caxangá, nome da avenida principal da Zona Oeste da cidade. Foi somente em
2013 que pixações feitas por mulheres começaram a ser vistas e identificadas com frequência
nas ruas do Recife. Muitos pichadores partem do pressuposto de que as pixadoras tem
interesse em relacionarem-se com eles, retirando todo o caráter ativo das mulheres no
universo do pixe. Alguns, inclusive, se sentem no direito abusá-las. Para a pixadora Mah, é
indignante que a maior discriminação venha de dentro do próprio universo da pixação.

Pra mim a coisa mais absurda é o preconceito do pixo feminino sair de dentro do
movimento. O risco não é nem dos homens de fora, é de dentro do movimento
mesmo, dos próprios mano do pixe não dão valor, tá ligado, e isso é mais absurdo.
Só eles tem, só eles podem chegar num topo de um prédio e colocar o nome dele, e
a gente não pode, a gente não consegue, a gente é limitada. E pra gente, a gente
consegue. Pra mim, eu assim, no meu ver da pixação, quando eu tô pixando com
algum “brother” pra mim é tudo igual, é igualdade. (MAH, 2015)

Há cerca de dois anos, as pixadoras contam que era bastante hostil e difícil sair para
“rolés” com outros pixadores. Para elas, apesar de ter havido mudanças em relação, quando
novas meninas ou mulheres tentam se inserir, são alvo de um sexismo. Outro argumento
posto por parte dos homens é de que as mulheres irão atrapalhar os “rolés”, sob o argumento
de não conseguirem ou não serem capazes de fazerem as mesmas artimanhas, como subir em
prédios e muros ou correr.

154
A reconstrução da história da pixação do Recife se deu inteiramente através de fontes orais. Tendo em vista
que o movimento da pixação, apesar de presente nas grandes cidades, circula no meio da ilegalidade,
aparentemente não há nenhum interesse dos/as historiadores/as recifenses em dar voz às histórias do começo do
pixo na cidade. Não há nenhum documento escrito autenticando o início da atividade. Veículos de comunicação
tão pouco documentam essas histórias. Nesse âmbito, o presente artigo está se inserindo em um processo de
construção contra-hegemônico de documentação historiográfica da atividade pixadora enquanto ativismo de
resistência, na contra mão do modelo de desenvolvimento do Recife. Foram utilizadas como fontes principais as
falas do geógrafo Thiago Santa Rosa e dos pixadores Nemo, Optimus, Cano e Well.
155
Comando: grupo de pixadores. Sinônimo de galera.
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E por ser mulher, aí é que é complicado. Por que, é muita discriminação. Eles
acham que só por que é mulher, vai pra um rolé, mas pode dar errado, é mais fácil
de dar errado. Mas não é assim não. A mulher pode tá onde ela quiser, o lugar da
mulher é onde ela quiser. Ela é capaz e a gente não quer mostrar não, a gente vai
fazer com que eles saibam que a gente é capaz e não importa se for mulher ou não,
ta entendendo? (LAI, 2015)

O objetivo delas, no entanto, não é conseguir respeito por parte deles, mas mostrar
que já o tem e podem pixar tanto quanto eles, procurando quebrar esse preconceito de que a
mulheres não são tão hábis quanto os homens, como explica a pixadora Tab.

Tanto o preconceito de achar que por você ser mulher você vai atrasar o rolé e ia dar
errado alguma coisa. ‘Ah é mulher não vai não, a gente vai rodar por causa disso.
Vai atrapalhar de alguma forma por ser mulher simplesmente.’ E o que sofrer de
repressão, sofrer de chegar e dar errado mesmo, de chegar a polícia, e sei lá
qualquer coisa, vai ser uma coisa totalmente passível de acontecer, não é só por ter
uma mulher junto que vai ser mais fácil que aconteça. Outra coisa que percebi
assim que rola também, rolava assim, que eu via muito, hoje em dia não sei se é por
que a galera já tipo já saca que você tá fazendo um rolé e não tem muito essa
conversa assim, não expõe tanto isso, como antes de ouvia por ta começando.
Muitos caras quererem o contrário, querer que a mulher fosse, que a menina fosse
no rolé, mas com a intenção de ficar com ela. (...) E você tem que tá na rua um
tempo pra poder conseguir meio que um respeito que isso não aconteça, tá ligado?
Eu acho que a gente não passa tanto mais por isso, por já conseguir um pouco de
respeito. Mas, as que tão começado sempre vão passar por isso. (TAB, 2015)

O grupo PixeGirl, nascido há dois anos, define a própria ideologia como


“Feminismo, anarquismo e pichação”. Formado por sete mulheres atualmente com idades
entre 16 e 20 anos, surgiu por iniciativa de duas delas, cansada do preconceito sofridos para
pixar, decidiram se juntar a outras meninas para darem “rolés”. Estudantes, trabalhadoras,
grávidas e mães, essas meninas e mulheres buscam por meio da pixação expor toda a
realidade na qual estão inseridas, contestando o sistema que as submetem a determinadas
condições de exploração e desigualdade. Além dos “rolés” auto-organizados, elas fazem
rodas de diálogos, para empoderar outras meninas, trocarem experiências e discutirem
feminismos. Também participam de outros grupos, como a ADP (Anarquistas Detonadores do
Pina), formados por homens e mulheres.
O medo e os riscos das ruas durante a madrugada é grande, e esse medo junto a adrenalida é
um fator motivacional para pixadoras/es. Essas mulheres sofrem todos os riscos de pixar,
mais os riscos existentes pela questão do gênero, como o estupro. Se uma mulher é vista na
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rua de madrugada, sozinha, ou mesmo com outras companheiras, ela é imediatamente taxada
como “vadia” ou “prostituta”, e segundo a lógica machista, misógina e patriarcal os homens
se sentem no direito de violar os corpos dessas mulheres. Caso sejam pegas pela polícia,
muitas vezes a situação consegue ser “amenizada” por serem mulheres, já que não
correspondem ao estereótipo de “pixadores”. Por serem mulheres pixando, quando são
flagradas por policiais, os agentes do Estado não levam a atividade a sério e se sentem
responsáveis pelas vidas delas, indagando por que pixam, por que saem na rua tão tarde. As
mulheres pixadoras muitas vezes são mães ou estão grávidas, o que não as impede de darem
contribuições ao movimento.

Eu e Lai, a gente ta grávida, e é outra coisa mais punk ainda de respeito mesmo, da
galera achar que a gente ta fazendo rolé e que a gente é tipo irresponsável, por a
gente ta continuando fazendo, mesmo estando grávida. Como se a gente não
soubesse os riscos, até onde a gente pode ir, até onde nosso corpo permite. É como
se sempre tivesse que ter alguém pra cuidar da gente, orientar e dizer: 'ó, tu não
pode fazer isso.' (TAB, 2015)

O pixo é uma forma de agredir. A pixação deve ser agressiva156 para a cidade para
marcar a existência desses sujeitos e significar que este espaço urbano não está organizado e justo
como deveria ser. É por meio da agressividade contra a cidade que são mostrados indivíduos com
vontade de se comunicar, que precisam se expressar além dos meios de comunicação de massa
monopolizados pela elite. A característica da rapidez necessária ao ato de pixar faz com haja uma
temporalidade diferente, por exemplo, entre o pixo e o grafite autorizado. Na medida em que a tag
ou o bomb - expressão utilizada por grafiteiros quando o grafite não é autorizado - devem ser
feitos rapidamente para não haver embate com a polícia, há uma necessidade de apropriação cada
vez mais rápida da cidade.
Visto como forma de participação social e de resistência pelos/as próprios/as pixadores/as,
o ato de “riscar” muros pertence aos centros urbanos entrando em contraposição com o modelo de
desenvolvimento e desigualdade utilizado nas cidades. Além da necessidade de se comunicar, a
pixação também revela uma forma autônoma de existir frente ao caos urbano com temporalidades
e espaçamentos diversificados. Pixar é ato político, é “vandal”, é arte. E é feito por mulheres sim.

156
GELDERLOOS, Peter. Como a não violência protege o Estado. Tradução: Coletivo Protopia S.A. Porto
Alegre; Deriva, 2011.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: Sindicato Paralelo Filmes, 2009. Endereço:
<http://www.youtube.com/watch?v=JjS0653Gsn8> Acesso em: 01/07/2014.
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NA CONTRAMÃO DO DETERMINISMO DE GÊNERO?

Maria Tereza de Ávila Melo | terezacatanha@gmail.com

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por finalidade discorrer sobre gênero e as relações de poder
estabelecidas socialmente com base no determinismo dos sexos. Para isso usa-se como
referência a série de TV Guerra dos Tronos, produzida por David Benioff e D.B. Weiss
baseada na obra As Crônicas de Gelo e Fogo do renomado autor norte americano George
Raymond Richard Martin, até o momento com quatro temporadas exibidas.
Cada livro do cinco foi adaptado para série em dez capítulos, como em quase toda
adaptação algumas coisas ficam de fora e ou diferente do original, o que não prejudica o
estudo. É categorizada como fantasia épica voltada para um público adulto; traz em seu
enredo temas fortes e toca sem cerimônia no que Foucault (1995) categorizou de sexualidades
ilegítimas ou subversivas, e no que as pessoas são capazes de fazer em suas relações sociais
para manter-se ou chegar ao poder constituído ou delegado legalmente, aqui citando incesto,
assassinatos, traições, feitiços, vinganças, conflito familiar, casamento arranjados com
interesses político, prostituição entre outros.
O blog Adoro Cinema relata que fãs de série chamam o autor George R. R. Martin de
sádico, no que eles não estão errados, como provam os cinco livros lançados até o momento,
porém o autor diz que os criadores da série televisiva são muito mais sanguinários que ele.
Existem várias personagens femininas que chamam atenção em Guerra dos Tronos por
quebrarem paradigmas aparentemente imutáveis como uma fuga de determinações de padrão
de beleza feminino de Laide Brienne de Tarth extremante alta, considerada feia pra época, é
uma mulher guerreira que luta e se comporta como um soldado; se apaixona por Jaimi
Lannister irmão da rainha, mas tem constante sua sexualidade questionada. Ruptura de

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padrões heteronormativos, como o Cavaleiro das Flores, um jovem Lord, de face delicada que
tem um relacionamento homoafetivo com um dos irmãos do rei Robert, mas é um cavaleiro
vencedor de vários duelos, o que era entendido como uma atitude masculina já que estar
ligada a luta, coragem, agilidade e força obtendo assim desprezo de outros cavaleiros.
Ou mesmo a rainha Cersei e o seu irmão gêmeo Jaime que mantém uma relação de
incesto e todos os filhos dela também são dele e nenhum do rei Robert. Ou o casal de lords o
Príncipe Oberyn e sua esposa que frequentam bordel contratando moças e rapazes para seus
momentos íntimos para um ato sexual livre de preconceitos priorizando o prazer. Ou ainda
Daenerys Targaryen filha do rei louco que é vendida pelo seu irmão para um cavaleiro líder
de outro povo que não fala sua língua num acordo que prever usar o exército junto do
cunhado para tonar o trono já que é o herdeiro legitimo, a família Targaryen mantinha uma
prática antiga de incesto para manter a linhagem pura.
Ou então outra personagem que vive na floresta, além da muralha, maritalmente com
suas esposas, filhas e netas doando aos deuses as crianças do sexo masculino que nascem.
Sem esquecer uma das personagens mais fascinantes que o Tyrion Lannister ou o anão, a mãe
de morreu no parto, motivo pelo qual o pai e os irmãos o detestam, apesar de ser lord vive no
que se poderia chamar de guetos e tem como lugar preferido os bordéis, mas pelo fato de sua
estatura sofre muito preconceito e como forma de superar isso sempre estar lendo e
estudando, caso tivesse nascido numa família de camponês seus pais o teriam abandonado na
floresta para ser comido por algum animal.
Tendo que pontuar no percurso do texto algumas dessas personagens citadas
anteriormente por se cruzarem no desenvolver da trama. Em fim chegamos à figura dramática
que vai ganhar destaque é a filha mais nova dos Starks, uma adolescente que questiona as
normas de gênero baseada no sexo impostas para ela. Não apresenta ter dúvida quanto a sua
vivência de ser ele ou ela, tem certeza de si, mas ou invés de bordar, cantar e ou se enfeitar,
usa calças, luta, atira e sempre questiona e argumenta sobre o que lhe é esperado de sua
performatividade de gênero e em certo momento concorda em se disfarçar de menino para
proteger sua vida.
APRESENTANDO O ENREDO
Para melhor entendimento até chegar à personagem em questão é preciso elencar
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alguns detalhes, começando pela principal inspiração do autor para obra, que foi na Guerra
das Duas Rosas e em Ivanhoé157, ambas falam sobre conflitos numa sucessão de trono.
É um universo de fantasia épico, voltada para um publico adulto, que traz cenas de
violência, sexo, traição, política, mitos, feitiçaria entre outros, mas o que interessa na obra em
questão é a forma que é apresentada as relações de gênero, principalmente no tocante a
personagem Arya Stark vivida pela atriz britânica Maisie Willians, (no inicio da série ela
tinha 13 anos de idade e nunca havia atuado antes).
Em vídeo de divulgação Kit Harington, ator que interpreta Jon Snow, relata que ouviu
dizer que a série é feminista por trazer mulheres fortes que a todo o momento vão se
colocando e conduzem os fatos mais determinantes na trama.
Pois bem a história tem fortes características do período medieval, passa em um lugar
com um clima misterioso o continente Westeros, onde as estações duram décadas, e todos
temem a chegada do inverno. Havia um rei que governava com poder maior sobre os demais
reinos menores é tido como louco e posteriormente assassinado, deixando dois herdeiros
legítimos os Targaryen, que se refugiam em outro continente.
Robert Baratheon um guerreiro que venceu as guerras que lutou, depois do assassinato
do rei louco controla toda forma de rebelião com a força e violência que sua causa lhe permite
e assume o trono de ferro158. Principalmente por ser casado com Cersei Lannister, esta da
família mais poderosa de todos os reinos. A sede do reino fica no Sul em King`s Landing. É
quando o rei Robert morre, que os que se entendem merecedores do trono, os outros reis nos
reinos menores entram em conflito, daí o nome Guerra dos Tronos.
FAMILIA STARK
Os Stark são a família da Casa do Norte. São muito respeitados, governam-no há
muitas gerações, são de longe os que seguem os princípios mais justos e honestos de todos.
159
Eddard Stark é convidado para ser conselheiro do Rei Robert por ser de sua extrema

157
A Guerra das Duas Rosas trata de um conflito na idade média da disputa pelo trono da Inglaterra entre as
famílias York e Lancaster, as duas provenientes da dinastia Plantageneta entram em confronto pelo trono depois
da morte do Rei Luiz III. E Ivanhoé, um romance do francês Walter Scott de 1820, relata a peleja de saxões e
normandos e as intrigas de João sem Terra para retirar do trono Ricardo Coração de Leão.
158
Trono de ferro, forjado com as espadas dos inimigos derrotados em batalhas que fica no Sul.

159
Nerd ou Eddard Stark é a mesma pessoa, ele é chamado por um ou por outro nome na série.
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confiança depois que seu último conselheiro o chamado a “mão do rei” foi assassinado em
circunstâncias misteriosas e suspeitas.
Os dois foram criados juntos e companheiros de batalhas, Robert o considera quase
parente, já que desejava ter casado com a irmã de Nerd Stark já falecida que ele diz que foi a
única mulher que amou, demonstram uma relação fraternal de carinho e respeito mútuo.
A família Stark é a típica família tradicional, com pai, mãe e filhos; Nerd Stark é o
nobre de Winterfell no Norte como foi dito, a esposa é Catelyn Stark, que ao se casar recebeu
o nome do marido, o que acontece até hoje em muitas famílias, tem cinco filhos (duas
meninas e três meninos) e ainda um filho bastardo, filho só dele o Jon Snow, que não recebe o
nome do pai, os bastardo tem como sobrenome o lugar que nasceu, se tiver nascido em
Riverlands seria chamado de Rivers. Sansa a filha mais velha segue todo o padrão do
comportamento feminino esperado, estar sempre bem arrumada, tem uma governanta que lhe
dar aulas de bordado e deseja casar e ter filhos.
Para NASCIMENTO (1997)
A sociedade feudal foi, sem dúvida, patriarcal e, para muitos autores, estaríamos
falando de uma época histórica na qual as mulheres estavam obrigadas a circular
exclusivamente na esfera privada. E, ainda assim, estaríamos falando de uma
circulação somente permitida dentro dos limites da casa paterna, da casa marital ou
do convento. (NASCIMENTO 1997 pag. 83)

Já os meninos são os futuros sucessores do pai no leme do Norte, os três sem exceção
desejam tornarem-se guerreiros como pai, praticam caça, treinam, lutam e os dois mais jovens
também estudam a história de todos os reis, lords, reinos, amigos e inimigos, casas e batalhas.
A VISITA MALDITA: UM INCESTO REAL E UM HERDEIRO DESONRADO.
Uma visita dos Lannisters a Winterfeld vai dar desenvolvimento a trama,
desencadeando diversos acontecimentos. Um deles é quando um dos filhos flagra a rainha
transando com o irmão, para que o menino não revelasse o viu é empurrado de cima da torre
do castelo, mas não morre, fica muitos dias desacordado e quando recupera a consciência
estar paralitico e alega não lembrar-se do ocorrido.
Desde a chegada dos Lannisters, Sansa troca alguns olhares Jofrey, filho do Rei
Robert Baratheon, em um determinado momento eles saem para passear e encontram sua irmã
Arya treinando esgrima com um amigo, usando espadas de madeira, do alto de sua posição na

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hierarquia de poder Jofrey desembainha a espada o ferindo no rosto e ordena para que lute
com ele, o garoto filho de um açougueiro nega-se, vendo que seu amigo seria morto Arya
interfere, daí o filho do rei voltasse para ela, mas tem detalhe todos os filhos Stark incluindo
Snow tem um lobo com animal de estimação, e nesse momento a loba de Arya ao ver que sua
dona estava em risco ataca-o, é quando a caçula o desarma e joga sua espada no rio.
Esse episódio é exageradamente ampliado pela rainha Cersei Lannister que o
questiona bastante irritada e diz desacreditar que ele foi desarmado por uma garota, se as
pessoas soubessem desse episódio não respeitariam o futuro rei e teria que viver com essa
desonra.
Com isso Cersei provoca um julgamento, em depoimento Sansa influenciada para
nunca contra dizer seu “reizinho”, confirma toda acusação, enquanto Arya grita aos quatro
ventos que é mentira deles, mas Robert considera tudo uma briga de crianças, quando o Lord
da casa chega, pede que controle suas filhas e tenta acabar com o momento indigesto, porém a
insatisfeita Cersei exige que alguma punição aconteça e sugere ordenando que a loba seja
sacrificada por ter ferido Jofrey. Arya já temia que isso fosse acontecer já tinha espantado a
dela, dessa forma a que acaba sendo sacrificada é a Sansa, nesse momento Nerd Stark diz que
por respeito ao animal que é do Norte ele deve ser morto por uma pessoa do Norte, no caso o
próprio Lord.
Foucault relata em Vigiar e punir que o melhor carrasco era aquele que causava as
mais fortes dores nos apenados; os condenados do Norte geralmente não eram castigados por
carrascos e sim pelo nobre ao qual serviu em vida e com golpe fatal, esse ato era uma forma
de também demonstrar respeito. O produtor autor da série em vídeo de divulgação diz que
tratam de coisas que acontecem no mundo de hoje, falam de pessoas lutando pelo poder, e o
poder é o que move o mundo. Foucault também diz que o poder não é uma coisa que pertença
a um individuo ou a um lugar, mas estar nas relações estabelecidas entre esses indivíduos e
que todos tem capacidade de exercer poder e ou sentir um poder exercido.
Fica latente no exposto que Arya rompe com as expectativas comportamentais de
gênero pautadas pelo sexo, uma adolescente que ao invés de aprender a bordar, cozinhar e
obedecer às ordens usa calças, atira de arco e fecha, deseja lutar com espada, geralmente
surge despenteada, e quando orientada a ser como sua irmã não concorda e levanta diversos
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questionamentos sobre as regras que a obrigam a ser assim.


O sexo de um corpo é simplesmente complexo demais. Não existe isso ou aquilo.
Antes, existem nuances de diferença, [...] rotular alguém homem ou mulher é uma
decisão social. (FAUSTO-STERLING 2002 pag. 15)

A mulher deveria seguir as normas poder casar-se, dar filhos e ser protegida pelo
esposo geralmente escolhido pelo pai em acordos com outros homens de famílias amigas ou
até rivais, casamentos arranjados para selar a paz.
O Lord Stark aceita o convite de torna-se a mão do Rei Robert Baratheon, muda-se
para King´s Landing levando as duas filhas, Sansa e Arya, um detalhe por que não levou os
filhos? Como só tinha um já rapaz ele deveria ficar e o substituí-lo no comando do Norte. Ao
desperdice diz que Winterfeld nunca pode ficar sem um Stark, os outros dois ainda criança,
ficando assim aos cuidados da mãe e um ainda se encontrava enfermo pela queda.
Ao chegar ao centro do poder nota que o rei pouco esta envolvido na condução do
poder, passa a maior parte do tempo em orgias, bebendo ou caçando. E o Conselho do rei é
quem dita às regras de finanças, de estratégias de guerra, de quem vai receber algum titulo de
nobreza, de terras e ou de quem vai perder.
Enquanto Sansa vive nas salas de bordados, nos jardins e chás com as mulheres da
corte se preparando dentro dos bons costumes e etiqueta para tornar-se a futura esposa do
futuro rei.
Era corriqueiro casamento acordados nas famílias nobres até mesmo para garantir e
unir os bem materiais e os nomes, cessar conflitos armados, pagamento de dívidas e outros
para Rubin (1993):
Em sociedades pré-estatais, parentesco é o idioma da interação social, organizando
as atividades econômicas, políticas, cerimonial e sexual. As obrigações,
responsabilidades e privilégios de uns, frente a outros, são definidos em termos de
parentesco mútuo ou de sua ausência. A troca de bens e serviços, produção e
distribuição, hostilidade e solidariedade, ritual e cerimônia, tudo ocorre no interior
da estrutura organizacional do parentesco.
Enquanto isso Arya pede ao pai que contrate para ela um professor de luta com espada
para que ela possa aprender a usar, pois antes de vir para King´s Landing recebeu de presente
uma espada de seu meio irmão John Snow. Assim Eddeard faz, porém ele é apresentado como
um professor de dança e não como um espadachim.
Talvez Ned Stark tenha preferido esconder a real especialidade do professor de Arya

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para protegê-la de insultos e preconceitos como os que são lançados sobre Laid Brienne que
tem maior habilidade em montaria, escudo e espada que muitos dos homens. Para BUTLER
(2003) é necessário o entendimento da performatividade dos corpos sexuados sem torna-los
reféns das expectativas de comportamentais sociais atribuídas pelo sexo que esse corpo
carrega, e que não se deve prender-se radicalmente ao sentido estrito da palavra homem ao
corpo masculino e nem mulher ao feminino.
O erro de Ned Stark foi ser fiel no mais puro sentido da palavra ao Rei. Estando no
Conselho fica indignado com jogo de interesses e de beneficiamento próprio dos demais
membros, sente-se ameaçado principalmente quando investiga a morte do seu antecessor e
descobre que os herdeiros do Rei não são filhos dele, mas sim da rainha e do irmão. Pede à
rainha que fuja antes que o rei fique sabendo, porque ele irá avisá-lo da traição e ninguém da
família escapará da fúria de Robert e também sabe de outros filhos que o rei teve. O Rei que
sempre estar alcoolizado perde agilidade e é atacado por um animal na caça aos javalis, fica
gravemente ferido e antes de morrer dita um documento que dar poder a Ned Stark para
assumir o trono até que seu herdeiro legitimo atinja a idade adequada para reinar, devido aos
ferimentos morre antes que Ned Stark possa revelar sua descoberta. Ao entregar o documento
ao Jofrey e a rainha regente Cersei na presença do Conselho e da Guarda Real ela o rasga o
papel e o acusa de traição condenando a morte. Também dar ordem para matar os
empregados, soldados, escravos e servos que encontrarem que tiverem vindo do Norte com
ele. As filhas dele são ditas como prisioneiras.
Estando Arya em sua “aula de dança” recebe a notícia de que seu pai pede que ela os
siga, ela questiona a guarda real e diz que se ele quisesse vê-la não mandaria soldados
negando a cumprir ao convite-ordem, como os soldados insistem o professor aconselha que
ela fuga enquanto ele luta para defendê-la. Quando chega a casa onde estavam hospedados
todos estão mortos.
Sansa fica horrorizada com tudo isso pede clemência em relação à ordem do rei
Jofrey em plena audiência pública. A Rainha temendo uma revolta do Norte também
aconselha que o filho desista de sua determinação, porém o novo Rei embebido de arrogância
e inexperiência não dar ouvidos a mãe, quer demonstrar autoridade perante seus subalternos e
condena-o a decapitação na praça na frente de todos inclusive de Sansa.
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Arya consegue escapar, na fuga é reconhecida por garoto que ameaça estuprá-la já que
ela era filha do traidor do rei ele receberia uma recompensa por isso, tentando libertar-se do
garoto acaba o ferindo com espada que ganhou do irmão.
O estupro era comum com as mulheres e garotas das cidades conquistadas em
batalhas, elas representavam um prêmio para os soldados vencedores, aos homens vencidos a
morte ou a escravidão, já as mulheres a escravidão também significava ser estuprada, esse ato
também era uma forma de humilhar os homens derrotados.
Ainda tem o enfoque de classe, pois a partir de então ela não pertence mais a nobreza.
Um mercenário que a reconhece, a segura a força, corta seus cabelos e diz que a partir de
agora receberá um nome masculino, e que deveria agir como um menino. Assim ela o faz.
Passa um longo período vivendo com esse codinome, quando questionada diz que é filha de
um pedreiro para proteger sua própria vida, num mundo bastante perigoso que é mais seguro
ser ele do que ela. E é levada como um menino órfão a ser entregue para a Guarda da Noite160.
Capturada antes de chegar à muralha onde fica a Guarda tem seu disfarce descoberto e vai
servir de copeira para um Lord. Em momentos enfadonhos seu Lord inicia diálogos com Arya
descobre que ela é alfabetizada e que conhece todas as casas do reino com isso desconfia
também de sua origem social. Como que uma menina filha de um pedreiro conhecia a história
e a organização política dos sete reinos como também as regras de comportamento e etiqueta
da nobreza, porém na dá tempo dele descobrir que ela é na verdade uma Stark, mas ela sabe
que é o pai da rainha Tywin Lannister que estar em guerra com seu irmão.
No último episódio da quarta temporada Arya encontra-se com Laid Brienne que
procurava devido um juramento sagrado que fez a Catelyn Stark de encontrar as filhas dela, as
duas se olham, Arya pergunta se ela é um cavaleiro, Brienne responde que não. Arya diz com
olhar interrogativo que ela tem uma espada e sabe usa-la, Brienne responde que Arya também
tem. Arya pergunta pelo nome da espada161, ao responder “cumpridora de promessa” Briene
devolve a interpelação, Arya diz que o nome da sua é “agulha”. Brienne diz que seu pai não

160
Uma ordem de soldados que protegiam as muralhas que separavam os reinos de tudo que era desconhecido do
outro lado. Faziam juramento de obediência, de castidade, renunciavam de herança e qualquer coisa que
lembrasse sua família de origem. Geralmente eram destinados a guarda da noite órfãos, ladrões, devedores,
bastardos e todos os outro do gênero masculino que não se desejavam conviver com eles.
161
Na trama todas as espadas especiais tem um nome.
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aceitava o fato de ela querer lutar e que isso era coisa de meninos, Arya fala exatamente a
mesma coisa do pai dela. Esse encontro vai para além do diálogo estabelecido entre as duas
personagens, é como se o passado de uma estivesse refletindo um desejado futuro da outra ou
vise-versa.
Fica a sensação de que a pesar de tudo fizeram a escolha certa, satisfazendo a vontade
própria rompendo preconceito, na contramão do determinismo de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora sendo limitada para realização das tarefas domésticas e agropastoris
dependendo da classe social que a mulher pertencesse, dificilmente participavam dos espaços
públicos que dialogavam e construíam os rumos da vida em sociedade; o controle do saber
colabora na reprodução da questão de gênero e legitima a dominação masculina. Os estudos
de gênero possibilita um olhar diferenciado para condição histórica da desigualdade.
Atualmente encontra-se na sociedade características opressoras baseadas binarismo
que hierarquiza as relações pelo domínio patriarcal, assim inferiorizando as mulheres ou que
se refere ao feminino até mesmo se esta ação vier de um homem. Determinando papel e local
social com base no sexo e na vivencia do gênero. Para Scott (1995)
O estudo de gênero e o movimento feminista tem como um dos objetivos descobrir o
alcance dos papéis de sexuais e do simbolismo sexual nas diferentes sociedades e
períodos, é encontrar qual era o seu sentido e como eles funcionavam para manter a
ordem social e para muda-la. (SCOTT 1995 pag. 5)

De tantas personagens perturbadora de normas da literatura, da tele novela ou cinema


não é fácil fazer uma escolha, mas o momento histórico vivido por Arya Stark apresenta-se
com um enredo dos mais cruéis possíveis, e para as mulheres mais ainda. Ir de contrário ao
que se espera do seu comportamento em relação ao gênero é um desafio constante para quem
o vivencia.
Questionar é mostrar-se corajoso, isso num ambiente familiar conhecido não fácil,
mais complicado é em uma situação hostil, no qual a todo o momento se recebe ameaça de
estupro até a morte. O homem na guerra era morto, já para com a mulher não bastava matar
tinha que escravizada e abusar sexualmente.
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A violência contra mulher é o fenômeno presente na história, encontrado nas variadas


faixas etárias e classes sociais, segundo estudo do IPEA no Brasil estima-se que entre 2099 e 2011
foram registrados 16,9 mil feminicídios.
A luta no movimento feminista em parceria com os estudos de gênero tem um longo
caminho a ser trilhado em busca da quebra de paradigmas, disputando território com saberes e
discursos que preconizam a heteronormatividade e cristalização do gênero pelo sexo, e as
formas de subordinação das mulheres.
De acordo com KLEBA (2010) “Uma verdade não está pré- definida, ela faz parte de
um contingente contextual que deve ser mediado por diferentes concepções teóricas que
perpassam as questões de classe, de gênero, de raça/ etnia, que por sua vez se fundamentam
em múltiplos tipos de saberes.”.
Arya desperta a estranheza dos que a rodeiam, a compreensão dos que amam, mas
para isso é preciso conhecer de perto. Ao mesmo tempo em que desperta encantamento por
ser firme na certezas que tem de suas escolhas para além do pensamento alheio, o que a
interessa é viver conforme seus anseios e principalmente manter-se viva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FAUSTO-STERLING, A. Dualismo em duelo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17/18, PP. 09-
79, 2002.
FOULCAULT, Michael. Vigiar e punir, o nascimento da prisão. 41 ed. Petropóles, RJ:
Vozes, 2013. P. 09-214.
___________________ História da sexualidade I. A vontade de saber. 7 ed. Rio de Janeiro.
Edições Graal. 1995.
LISBOA, Teresa Kleba. Gênero, feminismo e Serviço Social – encontros e desencontros ao
longo da história da profissão. Rev. Katál. Florianópolis v. 13 n. 1 p. 66-75 jan./jun. 2010.
NASCIMENTO, Maria Filomena Dias. Textos de História. v. 5, n" I pag. 82-91.Espanha
1997.
SCOTT, Joan Wallach. "Gênero: Uma categoria Útil de Análise histórica". Educação e
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Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, julho / dez. 1995.


RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo. Recife:
SOS Corpo, 1993. (mineo).
Fonte eletrônica.
http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-111739/. Acessado em 22-02-2015
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=19873. Acessado em 25-
02-2015.

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NA TRAJETÓRIA DE HENRIQUETA GALENO E SUAS PRÁTICAS LITERÁRIAS


NA CIDADE DE FORTALEZA (1918- 1965)

Albertina Paiva Barbosa | tinapaiva_@hotmail.com

Fortaleza foi palco e inspiração para vários movimentos literários entre os séculos XIX
e XX (FIÚZA, 2011). Dessa forma, grande parte desses sujeitos atuantes foram homens das
letras, os quais com suas prosas e poesias, conseguiram deixar sua marca na cidade para que
as futuras gerações optassem por se inspirar ou a fazer diferentes deles.
Embora seja essa uma realidade marcada por vários trabalhos acadêmicos, também
encontramos mulheres que fizeram diferença no campo literário cearense, praticando nas
letras suas impressões sensíveis, mostrando suas visões de mundo. Temos o exemplo no
interior cearense, de Francisca Clotilde com seu jornal A Estrella e sua obra A divorciada162.
Nesse artigo, vamos abordar sobre como através da trajetória da Henriqueta Galeno, é
possível observar sua atuação no meio das letras, não somente por sua posição feminista, mas
também como escritora e poetisa, atuando também nos espaços culturais, como na Casa
Juvenal Galeno e na Academia Cearense de Letras. Não propomos aqui uma biografia163 de
Henriqueta, porém a análise de alguns fatos que fizeram parte de sua vida e de como isso
pode ser interpretado historicamente.
Henriqueta Galeno foi filha de Juvenal Galeno e nasceu meses depois da vinda de seus
pais para Fortaleza164. Sendo a quinta filha de um total de seis filhos, ela foi uma das que

162
Para entender melhor sobre Francisca Clotilde e sua história de vida ver em: ALMEIDA, Luciana de
Andrade. A Estrella: Francisca Clotilde e literatura feminina em revista no Ceará (1906- 1921). Fortaleza:
Museu do Ceará, 2006.
163
De acordo com Bourdieu, “(...) Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o
relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com
uma ilusão retórica, (...)” (BOURDIEU, 2006:185). Diante disso, o intuito não é simplesmente narrar eventos
que aconteceram de modo cronológico na vida de Henriqueta Galeno, mas questionar suas atitudes no período
em que aconteceram.
164
Para saber melhor sobre a genealogia de Henriqueta e familiares ver em: NETO, Raymundo. (org).
Cronologia comentada de Juvenal Galeno. Fortaleza: Comercial, 2010. (Coleção Nossa Cultura, Série
Memória)
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resguardaram sua vida para os cuidados de seu pai e da vida cultural ao redor de sua nova
casa, no endereço da rua General Sampaio, 1228. Ainda criança, teve parte de seus estudos
em casa e também no Colégio da Imaculada Conceição. É interessante entender que
Henriqueta não fugiu do aprendizado das prendas domésticas cotidianas, como bordar e
costurar, como afirma Adízia Sá no seu Elogio a Patrona
“(...) Henriqueta ganhava da mãe todos os conhecimentos domésticos, juntamente
com suas irmãs Júlia e Maria do Carmo, como diz Cândida Maria na biografia da
avó , << depois do almoço, as filhas Maria do Carmo, Henriqueta e Júlia tomavam
as suas grades e, na <sala da bola> , com as venezianas que davam para as ruas
fechadas, entregavam-se a tarefa de bordar flores e ramos em toalhas , colchas e
pastas. Não se admitia, naquela época, uma mulher que não soubesse bordar e
costurar (...)” (SÁ, 1971: 573)
Analisando o trecho, percebemos que o ato de bordar era o que se classificaria como
prática feminina comum. Logo, as mulheres desse período, em vista da educação e cultura
patriarcal a quem estavam expostas, tendiam a executar tarefas que tivessem mais a ver com o
lar e a família. Cabia a elas o espaço particular da casa e, dessa forma, os conteúdos que sua
educação permitia era limitada e, muitas vezes, não incluia a alfabetização delas. Percebemos
que a educação das filhas de Galeno, em especial Henriqueta, progrediu além dos afazeres
domésticos, utilizando-se dos estudos como meio para se destacar diante de sua família
posteriormente.
Em 1919, iniciando sua vida adulta, completa o seu curso de direito, se tornando uma
das primeiras mulheres advogadas pela Faculdade de Direito do Ceará. Contudo, não chegou
a praticar sua real profissão, lecionando no Liceu e na Escola Normal. Todavia, não é somente
no magistério que ela construirá sua carreira. Uma de suas principais atividades foi coordenar
as atividades do Salão da Casa Juvenal Galeno e, depois, transformar sua própria residência
em reduto cultural dos eventos literários e sociais de Fortaleza.
Entender como ela realizou isso é apontar para quais modos de fazer ela se utilizou,
dessa forma, entendemos a ideia de prática sob a ótica de Michel de Certeau, o qual expõe que
“(...) constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado
pelas técnicas de produção sócio-cultural.” (CERTEAU, 1994: 41). Logo, podemos refletir
sobre como, na sua vida, encontramos essas práticas influenciando a vida literária da capital.
Dessa forma, a priori identificamos um senso de liderança, esta, por sua vez, pode ter
sido desenvolvido pelo grau de leituras com as quais ela entrou em contato, desenvolvendo
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uma percepção política feminista, algo que foi defendido em seus escritos. No dia 27 de
setembro, o salão de sua casa se transforma na conhecida Casa Juvenal Galeno, instituição
“(...) cultural de utilidade pública, funciona com o seu salão desde o dia 27 de
setembro de 1919, realizando sessões lítero- artísticas, congregando os valores
intelectuais da terra cearense, recepcionando hóspedes ilustres (...).
Além dêsse seu programa, não há descurado de estimular e orientar as novas
gerações, homenageando em reuniões extraordinárias, os escritores cearenses
quando publicam suas obras, para, deste modo, infundir-lhes novas energias e o
necessário entusiasmo no prosseguimento da carreira literária.” (GALENO, 1949: 1)

Estas são suas palavras ao defender o espaço para a existência das atividades artísticas
e culturais. Prova disso, são os dois tomos dos Anais da Casa Juvenal Galeno dos anos de
1949 e 1953, onde há vários depoimentos de homens reconhecidos por suas atuações
intelectuais e políticas como Fernandes Távora165, Gustavo Barroso166, dentre outros, sobre a
importância do espaço e de como a direção da filha de Juvenal Galeno tem destaque para
aqueles que estiveram presentes nas festividades oficiais.
Além disso, podemos refletir sobre a prática de Henriqueta em apoiar a produção e a
exposição literária de seus escritores na capital, utilizando-se de idades comemorativas ou da
vinda de pessoas consideradas ilustres de sua época, a ex-diretora se utilizou dessas táticas
para fazer o ambiente de sua casa um espaço cultural. Utilizando-se dos argumentos de José
D’Assunção Barros, podemos assumir que a Casa se transformou em um artefato urbano que
se põe como um mecanismo de intercâmbio, de intermediação e de circulação (ASSUNÇÃO,
2012:83) de ideias e informações com a sua liderança.
Henriqueta não é conhecida somente por sua direção por quase cinquenta anos, mas
também por seu posicionamento político. Ela era feminista assumida, participando do
Segundo Congresso Internacional Feminista no ano de 1931, enquanto delegada juntamente
com a escritora Adília Albuquerque Morais, palestrou na capital do País, desenvolvendo a sua
ideia de que
“O feminismo, bem orientado não significa em hipótese alguma, a diminuição do
sexo oposto.
Não pretendemos desafiar o <sexo feliz> para uma luta, nem tampouco mostrar a

165
Henriqueta Galeno organizou o primeiro tomo dos Anais da Casa Juvenal Galeno, em 1949, com a publicação
de uma conferência ministrada por Fernandes Távora, intitulada “A telepatia e o psiquismo.”
166
Também organizado por Henriqueta, o segundo volume de anais intitulada “O que é a Casa Juvenal Galeno”,
em 1953, contém conferências e recortes de matérias de jornais, ampliando a divulgação do espaço cultural.
Nesse caso, temos a conferência de Gustavo Barroso, intitulada “A Casa Juvenal Galeno.”
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nossa superioridade neste ou naquele ponto. De modo algum.


Queremos é que se não sonegue mais os nossos direitos há tantos postergardos.
Desejamos compartilhar, igualitariamente, com os nossos pais, com nossos irmãos,
nossos amigos do sexo oposto, das mesmas lides afanosas. (...)” (GALENO, 1931:
10)
Refletindo sobre essa breve citação, podemos inferir que, além do direito ao voto,
principal base da luta feminista brasileira na década de 1930 (TELES, 1999), ela também
defendia uma maior inserção social da mulher brasileira, quando aborda sobre valores
fraternos entre familiares e amigos no que diz respeito a um sentimento de igualdade. Além
disso, percebe-se que seu discurso não é somente de combate, mas que procura uma
conscientização de ambas as partes ouvintes- homens e mulheres- para a questão da luta
feminista não ser pelo rebaixamento do homem, mas pela procura de uma maior
independência da mulher, esta alcançada por um maior nível de instrução, por exemplo, pois
se se deseja acompanhar nas “lides afanosas”, elas devem estar tão preparadas quanto eles.
Em seu retorno a Fortaleza, se responsabilizou pela luta feminista em terras
alencarinas167, mas que amadureceria anos depois. Em 1936, formou informalmente a Falange
Feminina168, mas por conta de documentação escassa, uma análise histórica mais apropriada
se torna inexistente. Contudo, será no ano de 1942, que a Falange se transforma em
departamento sob o nome de Ala Feminina da Casa Juvenal Galeno169, um grupo de escritoras
guiadas por índoles feministas, cujo objetivo é não somente reunir essas escritoras e
beletristas, mas de criar um espaço legítimo para a atuação dessas mulheres no campo literário
citadino.
É interessante que, mesmo no meio da Segunda Grande Guerra, participando de forma
direta com o envio de tropas de soldados, sendo atingida por consequências desse grande
evento violento (SILVA FILHO, 2002), a cidade de Fortaleza consegue ser espaço de novas
organizações que atendessem às premências sociais (ASSUNÇÃO, 2012:82). Diante disso,
temos um lugar criado para que mulheres conseguissem conversar, trocar ideias, escrever e se
exporem enquanto intelectuais e escritoras de modo a serem aceitas. Pois podemos lembrar

167
De acordo com seu discurso “Como vêdes, o meu esforço isolado eu o tenho dado espontaneamente pois me
anima este mesmo ideal de liberdade igualitaria da emancipação socio-política e material da mulher. (...)”, logo
ela expõe a vontade encabeçar a luta feminista em terras cearenses. Isso pode ser visto na coletânea que ela fez
sobre a visita ao Rio de Janeiro no período que participou do Segundo Congresso.
168
Isso pode ser visto na matéria “Histórico Ala Feminina” do primeiro número da Revista Jangada de 1949
169
Idem.
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que apesar da existência da Academia Cearense de Letras e do Instituto Histórico do Ceará,


por exemplo, não eram ocupados por várias mulheres, salvaguardando a presença de Alba
Valdez no Instituto.170
Henriqueta mais uma vez congrega a prática da reunião no que concerne ao seu
trabalho no campo literário: Reunir essas mulheres para que juntas possam “desenvolver a
inteligência da mulher cearense.”171 Para isso, o grupo da Ala Feminina se utilizou de um
ritual, nomeado de Elogio a Patrona, a qual a “iniciada” deveria propor uma construção
biográfica de alguma mulher e explicar por quais motivos sua vida teria sido importante e no
que havia contribuído para a sociedade. Assim, diante de uma comissão de três intelectuais,
uma mistura de homens e mulheres, ela poderia ser aprovada e vinculada de forma oficial ao
grupo.172
Entendemos que a principal prática de Henriqueta consistiu em reunir pessoas e delas
extrair o reconhecimento do ambiente do Salão e também do esforço dessas outras mulheres
em serem conhecidas como escritoras, e até mais do que isso, mais livres no espaço público e,
portanto, atuantes formadores de redes (CERTEAU, 1994) entre si.
Reforçando as redes de informação e interação entre essas escritoras, foi desenvolvida
pela Ala a revista Jangada. Foi publicada durante os anos de 1949 a 1955, dessa forma, teve
como objetivo expor as produções literárias não somente das cearenses, mas das brasileiras e
até do exterior, como no caso da Argentina e do Uruguai. A revista não possuía donas
específicas, era do grupo, tendo uma direção somente de mulheres, de Nenzinha Santiago
Galeno e de Jandira Carvalho. Henriqueta colaborou com poesias e escrevia na seção de
folclore.
Além dessa prática, Henriqueta, enquanto escritora, produziu prosas e poesias.
Iremos, nesse momento, focar em algumas dessas produções, analisando-as de forma a
entender qual objetivo em escrever sobre, em maior parte, mulheres que considerava

170
Isso pode ser visto nas matérias escritas por Alba Valdez na revista do Instituto Histórico, podendo ser
visualizadas de modo online.
171
Pode ver isso melhor na conferência de Mário Linhares “A Casa de Juvenal Galeno” na coletânea “O que é a
Casa Juvenal Galeno” de 1953.
172
No caso, como exemplo, podemos citar os elogios as patronas Francisca Júlia da Silva por Ligia Soares
Bulcão Vasconcelos; Isabel, a redentora por Susana Barreira Amaral e dentre outras na coletânea “Mulheres do
Brasil” publicada em 1971.
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importantes.
De acordo com José Martins Murilo, a maior parte de seus escritos foram sobre
mulheres, salvaguardando-se duas obras: Força Indômita (conjunto de versos) e Juvenal
Galeno, o legítimo criador do popularismo literário no Brasil (MARTINS, 2009). Dessa
forma, quando ingressou na Academia Cearense de Letras, em 1951, ocupando a cadeira
número 23, com o nome de seu pai, a maior parte de suas obras se compôs sobre a abordagem
de mulheres e de poesias de sua autoria, expondo de forma mais sensível suas impressões
pessoais.
Concentraremos nossos esforços na análise do perfil biográfico intitulado de “Maria
Quitéria de Jesus, Heroína brasileira” publicado na revista da Academia Cearense de Letras
no ano de 1954. A prática da escrita de biografias sobre personagens femininas poderia ser
uma tentativa de inserção dessas mulheres na história dita oficial? Podemos afirmar que sim,
pois de acordo com SOHIET
“De acordo com Mary Nash, o debate em torno da opressão da mulher e seu papel
na historia teria se inaugurado na década de 1940, por iniciativa da historiadora
norte-americana Mary Beard, que, na sua obra Woman as force in history, aborda a
questão da marginalização da mulher nos estudos históricos. Beard atribui as
escassas referências a mulher ao fato de a grande maioria dos historiadores, sendo
homens, ignorarem-na sistematicamente. Esse argumento provocou uma replica do
historiador J.M. Hexter, para quem a ausência das mulheres devesse ao fato de elas
não terem participado dos grandes acontecimentos políticos e sociais.” (SOHIET,
1997: 403)
Logo, refletimos sobre o propósito dessa intensa escrita biográfica: seria uma maneira
de fazer com que a memória dessas mulheres se fizesse vistas e, diante disso, justificar suas
ações e existências dentro da História?
Assim, sob quais características ela desenha o perfil de Maria Quitéria, por exemplo?
Vejamos,
“Maria era de temperamento vivo, irrequieto, expansivo. Gostava de correr
livremente pelos campos, manejar armas de fogo nas quais se exercitara
admiravelmente caçando. Gostava de montar e domar cavalos apontados como
perigosos. A caça era seu esporte favorito, notabilizando-se pontaria certa e
infalível.” (GALENO, 1954: 133)

Atentemos para as palavras usadas: vivo, irrequieto, expansivo. Logo, temos


características que diferem de um temperamento ameno, idealizado para uma mulher que
quisesse contrair matrimônio (D’INCAO, 2011: 230). Sua principal atividade era a caça, algo
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que demandava esforço e concentração, características consideradas masculinas. Por que ela
seria dotada de qualidades “masculinas”? Por ausência de uma presença materna? a própria
Henriqueta afirma que ela perdeu a mãe quando criança e que seu pai casara duas vezes, logo
essa não seria resposta mais correta. Podemos pensar que a mensagem da autora sobre o
temperamento e a agilidade na caça poderia ser comum a ambos os sexos? Ainda assim, a
personagem biografada teve que se vestir de homem para poder combater no período do
primeiro império, porém, tendo reconhecido sua eficácia e coragem nas batalhas enquanto
mulher.
Diante de tudo isso, sua atuação foi bastante significativa, contudo sua saúde foi
atentada pelo câncer, vindo a falecer em 1964. Maria Cândida Santiago Galeno, conhecida
por Nenzinha, em homenagem a sua tia, publicou postumamente no ano de 1965, pela mais
nova editora Henriqueta Galeno, a coletânea de biografias escrita antes de sua piora de saúde.
“Mulheres admiráveis” contém 17 biografias de mulheres brasileiras e estrangeiras, algumas
tais: Amélia de Oliveira, Andradina de Oliveira, Júlia Lopes de Almeida, Emily Dickson,
dentre outras.
É curioso como a autora mistura características consideradas femininas e masculinas,
como exemplo, na criação de Júlia Lopes
“Mais tarde, em colaboração com sua irmã Adelina, escritora também de grande
talento, publicou "Contos Infantis", nos quais as autoras preconizam o melhor
método para o ensino das crianças, baseado na prática constante de atos ern que se
refletem a bondade, a .meiguice d'alma, a generosidade e o exemplo do bem;
herdaram do genitor, abalisado mestre, hábitos de convivência com crianças.
Revelaram conhecer perfeitamente a delicada psicologia infantil.” (GALENO, 1965:
73)

Nesse trecho percebemos que a desenvoltura de Júlia e de sua irmã ao escrever o livro
foram inspirados em seu pai, aparentemente, dotado de uma sensibilidade singular e, por isso,
herdaram dele, “a bondade, a meiguice, a generosidade e o exemplo do bem”, essa
“sentimentalidade” exposta pela autora da descrição não condiz com o que se consideraria um
comportamento típico masculino (MALUF E MOTT, 1998)
Diante do exposto, concluímos que o percurso da vida de Henriqueta enveredou por
práticas coletivas e literárias. Assim, temos o destaque para a Casa Juvenal Galeno como seu
principal espaço de atuação enquanto diretora e enquanto ser atuante na intelectualidade
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fortalezense, com suas reuniões e eventos culturais, procurou apoio para que o ambiente da
casa não enfraquecesse, além disso, sua luta em prol das mulheres abriu alas para maior
interação cultural entre elas, principalmente, as que tinham maior interesse em demonstrar sua
inteligência e presteza com as palavras. Por fim, sua prática de escrever biografias é encarada
como uma tentativa de levar os nomes dessas mulheres, antes mais desconhecidos, a um
patamar maior dentro da história, misturando construções comportamentais naturalizadas de
homens e de mulheres, demonstrando que os dois podem ter o direito de compartilhar de
ações e sentimentos, antes cristalizados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Luciana de Andrade. A Estrella: Francisca Clotilde e literatura feminina em
revista no Ceará (1906- 1921). Fortaleza: Museu do Ceará, 2006.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO,
Janaina. (org.). Usos & abusos da história oral. 8.ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. pp.183-
191.
BARROS, José D’Assunção. Cidade e História. 2 ed. Petrópolis. Vozes, 2012.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira
Alves. Petrópolis. Vozes, 1994.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família burguesa. In: PRIORE, Mary Del (org.).
História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2011. P. 223-240
FIUZA, Regina Pamplona. O Pão...da Padaria Espiritual. Fortaleza. Expressão Gráfica
Editora, 2011.
MARTINS, José Murilo. Poetas da Academia Cearense de Letras 1894- 2009 (antologia).
Fortaleza: Expressão Gráfica, 2009.
MALUF, Marina. MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO,
Nicolau. (org.) História da vida privada no Brasil: República: da Belle Epoque à Era do
Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
NETO, Raymundo. (org). Cronologia comentada de Juvenal Galeno. Fortaleza: Comercial,
2010. (Coleção Nossa Cultura, Série Memória).
SÁ, Adísia. Henriqueta Galeno. In: VVAA. Mulheres do Brasil: pensamento e ação. 2º vol.
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Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1971.


SILVA FILHO, Antônio Luiz Macêdo. Paisagens do consumo: Fortaleza no tempo da
Segunda Grande Guerra. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do
Ceará, 2002.
SOHIET, Rachel. História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS,
Ronaldo. (orgs). Dominios da historia : ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997. p. 399-429.
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve História do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999.
FONTES CONSULTADAS
Anais da Casa Juvenal Galeno- 1949. Disponível em
https://pt.scribd.com/doc/97867452/Anais-Da-Cjg-1949
“O que é a Casa Juvenal Galeno”. Fortaleza: Editora Renascença, 1953. Disponível na própria
Casa Juvenal Galeno.
GALENO, Henriqueta. No Congresso Feminino; Na Academia Carioca de Lêtras; No
Centro Cearense. Est. Grafico URANIA. Fortaleza, 1931.
GALENO, Henriqueta. Mulheres Admiráveis. Fortaleza. Editora Henriqueta Galeno, 1965.
Revista Jangada. Fortaleza, Dezembro de 1949.

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O “PASSEIO PELO PASSADO” NAS NARRATIVAS DE UMA MULHER DO


RECÔNCAVO DA BAHIA
Priscila Licia de Castro Cerqueira173| priscilalicia@gmail.com
Katia Maria Santos Mota174

Estando inserida em condições sócio históricas, diferentes de mulheres que em


décadas anteriores eram destinadas a invisibilidade e ao silêncio, faço-me valer da ampliação
e garantia dos direitos destinados às mulheres ao saber sistematizado, a fim de me dedicar
neste texto à história de uma mulher que deixou seu legado no campo educacional, cultural,
social, artístico e político em Santo Amaro da Purificação-BA.
O meu interesse pela história de vida de Zilda Paim nasceu da escuta da sua trajetória,
do seu amor pela história do povo santamarense e das lutas para alcançar espaços públicos em
Santo Amaro, que me mostravam que ela “realizou um cuidadoso trabalho sobre si,
estetizando sua existência de forma a constituir-se como um ser diferente, original, único e,
por isso, digno de ser lembrado” (SCHMIDT, 2009; p. 158).
O silenciamento da sociedade, até então, sobre a história de mulheres não está
associado ao “silêncio das fontes”, ou seja, a ausência dos seus vestígios escritos ou materiais,
mas, sim, como afirma Perrot (2013; p. 22), devido à invisibilidade “sobre sua existência
concreta e sua história singular”. No caso de Zilda Paim as suas produções foram além do
socialmente previsto para a mulher, pois se tornaram fontes preciosas da afirmação da sua
“voz”.
Para este artigo utilizaremos aspectos da narrativa retratadas por Zilda Paim no livro
“Passeio do Passado”, portanto, consideraremos a perspectiva feminina, desta autora, que aos
70 anos lança esse livro memorialístico. Busco evidenciar que a escrita não é questão de
gênero ou sexo, mas conforme afirma Perrot (1989; p 15)“os modos de registro das mulheres
estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade. O mesmo ocorre com seu
173
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado
da Bahia. E-mail: priscilalicia@gmail.com
174
Professora da Pós-Graduação em "Educação e Contemporaneidade", da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB); doutora em Letras pela Brown University; pesquisadora em Interculturalidade e Educação Lingüística.

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modo de rememoração, da montagem propriamente dita do teatro da memória

“PASSEIO NO PASSADO” DE UMA MULHER DO RECONCAVO DA BAHIA


Santo Amaro da Purificação se destaca como um espaço geográfico e histórico que
contribuiu de “diferentes formas – das econômicas às culturais – para a formação da Unidade
Federativa da Bahia” (FREITAS, 2009). Localizada na região do Recôncavo Baiano, Santo
Amaro destacou-se, na época colonial, como o mais importante centro agrícola da região, pelo
plantio da cana de açúcar, seus engenhos e usinas. Constituída por imponentes edificações
arquitetônicas, que marcam nas suas ruas um tempo próspero da sua história. Sua formação
cultural advém da influência portuguesa, dos africanos e indígenas, tão presente nas suas
festas populares. A religiosidade, fosse ela ligada a Igreja Católica ou a Cultura negra, sempre
se fez presente na vida dos santamarenses.
As raízes de Zilda Paim, nascida a 73 km da capital baiana, em uma cidade situada ao
fundo do recôncavo da Bahia, estão na vivência e sociabilidade do cotidiano do povo
Santamarense, na história dos seus imponentes casarões, das famílias ilustres da cidade e das
mudanças advindas com o progresso, que promoveram as transformações, mas não apagaram
a memória.
Nascida em 03 de agosto de 1919, em uma casa de sobrado que ficava a margem do
Rio Subaé, na cidade de Santo Amaro. Zilda Costa Paim era a filha caçula do casal. Antes
dela vieram, pela ordem, o irmão Valter e sua irmã Dulce. Seu nome foi escolhido pelo seu
irmão, que havia lido e se encantado por este nome em um livro de história. Da casa de
sobrado, a família mudou-se para a casa de seus avós paternos, na Rua do Imperador, onde
passou a sua infância e adolescência.
Sua infância foi marcada sem muitas necessidades, sua educação ficava a cargo
especialmente da sua mãe, responsável pela sua formação moral. Na infância, as distrações
corriqueiras deveriam ser distantes das brincadeiras consideradas de menino e pela
necessidade, na época, de não colocar em risco a integridade do seu corpo de menina, pois
segundo Arend (2012; p.71):
As brincadeiras e diversões contribuíam no processo de educação dos indivíduos de
acordo com o que esperava de mulheres e homens na idade adulta. Docilidade,
meiguice, serenidade e resignação eram as características consideradas femininas ao
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passo que as esperadas dos varões eram a coragem, o poder de decisão e a


competitividade [...].

Ela narra que vivia sob o controle do pai, mas que mesmo assim viveu uma infância
saudável e uma adolescência que lhe oportunizou contar anedotas e fazer muitas amizades.
Na adolescência, na festa de Nossa Senhora da Purificação, embora sobre a vigília do pai,
tinha “liberdade” de passear pela praça. As festas religiosas eram os espaços de
sociabilidade no qual as meninas e as mulheres usufruíam de liberdade, pois para sair de
casa era preciso ter uma razão e um destino predeterminado (MIGUEL; RIAL, 2012; p.154).
Vê-se, assim, que as experiências vivenciadas na infância e adolescência, mesmo com
toda a restrição destinada à mulher, não só se constituíram em lembranças vitalícias da sua
trajetória como foram marcas indeléveis do amor e dedicação de Zilda Paim à cidade e ao
povo santamarense.
Em 1937, após concluir o ginásio passa a almejar uma carreira profissional, entretanto, por
viver sobre a tutela do pai, é impedida de ir trabalhar no sertão; decide, então, exercer a sua
profissão e ganhar o seu próprio dinheiro ao abrir uma escola, denominada de Escola São João.
Atuou nesta escola por 17 anos e foi durante essa época, em que trabalhou como professora, na
sua escolinha, que o gosto pela carreira profissional passou a assumir cada vez mais importância
em sua vida.
Criada numa época em que a mulher era educada principalmente para o trabalho
doméstico e que passar de senhorita a senhora era a meta das meninas de família, Zilda para ir
de encontro à sua educação contrai, em 1944, casamento com João Paim.
Em 1949, se torna mãe ao adotar uma menina, Margarida Lúcia Paim, a qual passou a
ter a sua atenção, mas não impediu que ela deixasse de atuar como professora. Longe de se
adequar à imagem de “mulher perfeita”, que não consegue se enxergar fora do casamento,
decide, em 1950, terminar o seu matrimônio de 7 anos. Tal fato marcou a sociedade
santamarense porque se constituiu no primeiro desquite da cidade.
A sua atitude demonstra total transgressão, pois:

As mulheres tinham um espaço de realização muito restrito, definido pelos papeis


que “a natureza” lhes havia determinado e pela moral imperante na época. Todo e
qualquer desvio de comportamento poderia gerar críticas, desqualificação e, até
mesmo, marginalização social. Não era fácil, por exemplo, a vida das mulheres que

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optavam por um comportamento “não conformista”, como aquelas que, depois de


casadas, reconheciam publicamente a escolha equivocada, a falência do seu
patrimônio e optavam pela separação. [...] Aquelas que tinham a coragem de
escolher a via do desquite eram frequentemente vistos como párias (sobretudo as
mulheres), indivíduos que haviam falhado na importante tarefa de constituir e
manter a família (SCOTT, 2012; p.21).
A decisão “não conformista” com o casamento e a de permanecer na cidade fez com
que ela enfrentasse a reprovação social e familiar em decorrência da sua escolha, o que a
levou a ter uma vida mais “acanhada”, para não correr o risco de ser ainda mais “mal vista” e
rotulada como uma mulher sem moral.
Após o desquite, na década de 50, presta concurso do Estado, e é nomeada como
professora. Com o tempo assume outras funções na área educacional como delegada escolar,
diretora de escola, coordenadora de ensino.
Como diretora promoveu diversos desfiles com as crianças pelas ruas de Santo Amaro,
e foi em uma dessas ocasiões que pintou o seu primeiro quadro, a imagem da Igreja Matriz e
da Prefeitura de Santo Amaro. Logo depois pintou outros quadros, que retratam a cultura e as
manifestações populares de Santo Amaro, que foram adquiridos por amigos.
Sua relação com a escrita advém da época em que estudava no Colégio das
Sacramentinas, quando escutou uma coleguinha pedir que a freira contasse sobre a “história
do Brasil na França”. Na época ela acreditava que existia um Brasil na França. Posterior a
esse fato ela passou a se interessar pela história de Santo Amaro, perguntava, lia jornais,
revistas, livros, embora fossem poucos, e passou a juntar algumas anotações. Seu primeiro
escrito foi para o jornal da cidade sobre o perfil de uma colega. Diante das leituras, das
pesquisas realizadas passou a se destacar pelo conhecimento histórico e cultural sobre a
cidade de Santo Amaro, mesmo não possuindo título de historiadora conforme narra:
“Pintar, escrever, toda besteira eu já fiz. Eu sempre fui rebelde, vamos dizer assim, porque
eu não estudei historia, não cursei faculdade de artes, mas entendi que devia fazer tudo ao
meu molde, da minha maneira e não tive estilo. Um cidadão aqui diz que eu não posso ser
historiadora porque não tenho “deploma”. Eu sou contadora de história. Minha faculdade
foram as pedras desta cidade e meus professores a gente do povo” (PAIM, 2010).

Ela demonstra o quanto ela foi desconsiderada por não possuir o título de historiadora,
mas deixa demarcado sua bagagem de conhecimento, que lhe garantiu evidencia e que foi
registrado nos seus cinco livros: Isto é Santo Amaro (1974); Passeio no Passado (1989);
Relicário da Memória (1999); Salve 2 de Fevereiro (s/n); Palestra Folclórica (2011).
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Especialmente para este artigo vamos abordar a obra “Passeio no Passado” (Figura 7
e 8), escrita a punho e ilustrada por Zilda, quando tinha 70 anos, e que por falta de recursos
foi impresso pela Bureau, em 1989. O livro constitui-se numa narrativa em que ela se imagina
sentada no bondinho, que antigamente circulava pela cidade, para contar a história dos
casarões, das famílias, dos costumes do povo do seu torrão natal.
A olhar de Zilda Paim sobre o passado surgem principalmente como manifestação de
conhecimento para as novas gerações, portanto, para aqueles que vivem em Santo Amaro com
o seu progresso e suas contradições. A sua escrita evidencia uma forma de ver e de
relacionamento próprio de Zilda com as suas raízes: a história da sua cidade, os ritos
cotidianos e a tradição das famílias que habitavam os casarões. A narradora assume um
discurso saudosista, conforme apresenta na dedicatória (PAIM, 1989):

175

A temática do livro, a história de Santo Amaro, é recorrente nas outras obras, sejam
elas escritas ou pintura. Especificamente neste livro a autora traz uma perspectiva
memorialista, pois descreve as ruas que fizeram parte da sua infância e adolescência, os
casarões, que fazem parte da história dos engenhos em Santo Amaro, e seus respectivos
donos, a emoção que outrora sentiu, a partir do que vivenciou e pela oportunidade de deixar
registrado as suas lembranças, conforme apresenta (PAIM, 1989; p. 01):

175
Trechos digitalizado do livro de Zilda Paim. Cf bibliografia.
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Por meio da sua narrativa a autora reconstrói lembranças de lugares, espaços, de


práticas cotidianas, sociais, religiosas, portanto, uma sucessão de situações (re)reconstruídas a
partir das histórias que escutou e das suas experiências (PAIM, 1989; p. 18):

Tais aspectos impedem o leitor de separar o que foi, de fato, realidade e do que é
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imaginário. Mas há, sem dúvida, um olhar sensibilizado e particularizado da autora em deixar
registrado, para a nova geração, um apelo para que se interesse pela história de seu povo, mas
que reconstruam esses velhos tempos, que ela os considera áureos e felizes.
Com estilo próprio e influência pública que possuía na cidade, Zilda Paim enriquece o
cenário da produção literária como mulher, ecoando as suas ideias e conhecimentos a
diferentes gerações. Sobre a produção escrita da mulher Woolf afirma que se “é verdade que
as mulheres sempre quiseram escrever, também é verdade que não puderam fazê-lo e, que
puderam menos ainda publicar”, por não possuir condições favoráveis para escrever e dar
conta das demandas domésticas.
Não se pode perder de vista que Zilda publicou esse livro aos 70 anos, mesmo com a
sua independência ela estava inserida numa sociedade patriarcal. A publicação desse seu livro
“Passeio no Passado” é marcada pela ausência de interesse do mercado editorial, por isso é
impresso numa editora pequena e com recursos próprios. Ao lançar esse livro Zilda Paim
deixa registrado a perspectiva feminina sobre os fatos históricos, ritos culturais, sociais e
cotidianos de Santo Amaro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AREND, Silvia Fávero. Trabalho, escola e lazer. In: PINSKY, Bassanezi. PEDRO, Joana
Maria (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
FREITAS, Antonio F. G.; ASSIS, Arthur de. Canô Velloso: lembranças do saber viver.
Salvador: EDUFBA, 2009.
MIGUEL, Raquel de Barros; RIAL, Carmem. “Programa de Mulher”. In: PINSKY,
Bassanezi. PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2012.
PAIM, Zilda. A Santo Amaro da educadora Historiadora Zilda Paim. Revista Muito – A
Tarde, Salvador, Domingo, 26/12/2010, p. 8 – 11. Entrevista cedida a Marcos Dias.
PAIM, Zilda. Isto é Santo Amaro. Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2005.
PAIM, Zilda. Palestra Folclórica. Santo Amaro: Gráfica TOKA, 2011.
PAIM, Zilda. Passeio no Passado. Salvador: BUREAU, 1989.
PAIM, Zilda. Relicário Popular. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da
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Bahia, EGBA, 1999.


PAIM, Zilda. Salve 2 de Fevereiro. Santo Amaro: Imprensa Oficial do Município, [s.d.].
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Trad. Ângela M.S. Corrêa. 2ª ed. São
Paulo: Contexto, 2013.
ERROT, Michelle. “Práticas da Memória Feminina”. In: Revista Brasileira de História . São
Paulo, v. 8, n. 18, ago/set.1989, p.15
SCHMIDT, Benito B. Nunca houve uma mulher como Gilda? Memória e gênero na
construção de uma mulher “excepcional”. In: GOMES, Angela de Castro; SCHMIDT, Benito
B. (Orgs). Memórias e narrativas (auto)biográficas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.
SCOTT, Ana Silvia. O Caleidoscópio dos arranjos familiares. In: PINSKY, Bassanezi.
PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
2012.
WOOLF, Virginia. Las mujeres y la narrativa. In: La torre inclinada. Barcelona: Editorial
Lumen, 1977.

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“O COLORIDO AZUL E BRANCO DAS NORMALISTAS”: AS FUTURAS


MESTRAS DESCRITAS SOB UM OLHAR MASCULINO

Leonice de Lima Mançur Lins | leonicelins@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO
Neste artigo objetiva-se analisar um texto publicado no Periódico Semanal “O
Nordeste”, em 1955, na cidade de Alagoinhas (BA), de autoria do jornalista José Galdino
Carneiro. A crônica apresenta o perfil típico da normalista da época. Estas são descritas como
um ser universal, como um grupo sem distinções entre si, isto é, sem quaisquer distinções no
tangente, por exemplo, a classe social e/ou raça. Como se fossem homogêneas. A ênfase dada
ao uniforme azul marinho contribuía para corroborar essa perspectiva. Percebeu-se que o
cronista visava consolidar a imagem da mulher/normalista como alguém nascido para
servir/educar a infância, contribuindo assim para o desenvolvimento do País, reforçando com
esse argumento, os papéis de gênero impostos pela sociedade de então.
A formação recebida pelas jovens mulheres não era percebida como fonte de
independência e liberdade. Contrário a isso, era mais um meio pelo qual a mulher melhor
poderia desempenhar os papéis sociais a ela destinados e considerados adequados ao sexo
feminino. Implicitamente, o autor revelava assim uma visão das relações de gênero e,
consequentemente das relações de poder existentes na sociedade da época. Ao longo do texto
analisado, o autor faz uma significativa comparação entre uma jovem comum e uma moça
normalista. Quando diferencia a moça em trajes comuns – simpática e sorridente – da moça
trajando o uniforme marinho, o cronista associa a imagem da normalista/professora a de
alguém de expressão severa, retraída, que pouco sorri e, pode-se dizer, nada tem de
encantadora. Constatou-se, a partir da análise da crônica, que a mulher/normalista estava
submetida a um controle rígido, não apenas da instituição escolar à qual pertenciam, mas da
comunidade como um todo. Isso impunha às futuras professoras, um modelo a ser seguido;

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permanente fiscalização; e conduta moral irrepreensível, o que as fazia se sentir obrigadas a


controlar seus desejos, suas ações, suas falas e gestos, porque disso dependia não só o bom
desempenho da profissão escolhida, mas toda a reputação particular a qual, certamente,
primavam por manter.
“O COLORIDO AZUL E BRANCO DAS NORMALISTAS”: AS FUTURAS
MESTRAS DESCRITAS SOB UM OLHAR MASCULINO

Em 1955, O Nordeste publicou, na sua Coluna do Meio, um texto de J. Godinho


Carneiro intitulado Normalistas. Apesar de afirmar na sua primeira edição se tratar de um
veículo de comunicação “sem partidarismo político”, seus redatores, ao longo da existência
do periódico (1948-1956), se tornaram homens públicos, isto é, se envolveram na política
local e estadual, tendo sido candidatos a vereadores e deputados estaduais, chegando mesmo a
ser eleitos.
Tem-se consciência que a publicação, como toda fonte histórica, tem historicidade e
limitações, não retratando a sociedade alagoinhense em si, com toda a gama de complexidade
existente entre esta e os seus membros. O jornal atingia uma parcela da sociedade, uma
camada letrada e participante, diretamente e indiretamente, das decisões econômicas e
políticas de então, excluindo-se grande parcela da população. Seguiu-se na tentativa de
perceber nas notícias veiculadas e principalmente nas opiniões e ideias, os conceitos morais e
valores por trás de tais registros. Ou seja, pelas lentes da imprensa local, se tentou conhecer
“coisas” reveladoras sobre a sociedade de então, mais designadamente buscou-se apreender o
lugar reservado às mulheres/professoras e os aspectos educacionais.
Segundo Luca (2005), no Brasil até a década de 70 apesar da preocupação existente
em se escrever a história da imprensa, eram poucos os trabalhos a utilizar jornais e revistas
como fonte, fato possivelmente explicado pelo peso da tradição positivista entre os
historiadores brasileiros. Na hierarquização das fontes históricas, Luca (2005, p.111) observa:
“os jornais pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez que (...)
continham registros fragmentários do presente, realizados sob o influxo de interesses,
compromissos e paixões”. O surgimento da Escola dos Annales e toda a gama de
transformações no modo de se fazer e pensar a história foi, aos poucos, mudando esse quadro
e os periódicos passaram a ser incorporados à produção do saber histórico. Acerca dos
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cuidados metodológicos, ao se utilizar os periódicos como fontes históricas, a autora citada


elenca alguns cuidados que devem ser seguidos pelo pesquisador, dentre os quais como estes
chegaram até os leitores, qual o conteúdo e as relações com o público leitor e comercial.
Na crônica em questão, as normalistas são definidas com o perfil típico da época:
educadas, tendo em vista os papéis sociais que comumente desempenhavam na sociedade, o
de mãe e o de professora primária. Segundo Passos (1999, p. 156), “a sociedade fazia questão
de divulgar as delimitações dos espaços femininos em todos os ‘aparelhos ideológicos do
Estado’, inclusive os meios de comunicação de massa”. A sociedade alagoinhense também
não se furtava a essa questão. Era o mês de março, as férias escolares tinham chegado ao fim
e, com a volta das aulas, o colorido azul e branco do uniforme das normalistas dava nova vida
ao cotidiano da cidade, informa-nos o cronista. A seguir o texto, mantida a grafia original das
palavras, onde a Normalista, na perspectiva do cronista, é assim descrita:
A cidade voltou ao colorido azul-e-branco das normalistas. A paisagem citadina
esteve com uma ausência que somente agora, com a volta das estudantes foi bem
sentida. Seja na manhã que nasce ou na tarde que morre, as ruas estão
ornamentadas de mocidade. São as jovens que voltam das férias para o reinício dos
estudos, deixando um namorado triste e as saudades do Natal e do Carnaval, duas
festas tão diferentes em espírito, mas, tão comemoradas neste Brasil, que a gente
tem que aceitar e gostar. (...) O homem que sabe sentir a cidade nos seus mais
diversos instantes e horários, recebeu a volta das normalistas como um
complemento ameno à aridez diurna. Dia, que valoriza a noite, como a guerra
valoriza a paz, tem nas moas de azul-e-branco, como uma fuga para a sua (...)
rotina. A figura da normalista é clássica: a menina passando para moça,
aprendendo para ser um dia mestra e mulher. E quanta admiração a gente tem
quando colhido pela surpresa, verifica que a moça simpática, leve e esportista é
normalista, pois encontrada foi envergando o uniforme marinho. A normalista tem
sido inspiração de poetas, prosadores e músicos. (...) Ensinar às crianças de hoje, é
ensinar aos homens responsáveis pela pátria de amanhã. Como fugir então à
conclusão de quem mais depende a pátria senão das normalistas? Qual o ministro,
telegrafista, advogado, general, medico ou poeta que não teve a sua professora?
Esta croniqueta, alinhavada, tem como finalidade não só dizer que a cidade recebeu
com alegria as normalistas que voltaram, como as andorinhas voltam no verão,
assim como, homenagear quem quer educação, cultura e espirito para os grandes
instantes da vida. Resta desejar boa sorte às moças que estudam, e pedir a Deus,
inspiração para os seus mestres. Vale destacar o trabalho e dedicação dos
estabelecimentos de ensino, não só os de caráter oficial existente entre nós, como
este outro, tão sabiamente dirigido, pelas irmãs religiosas, estas criaturas
dedicadas, que fazem da arte de ensinar o sábio método de melhor amar a Deus.
Normalistas, continuem cumprindo o dever: ornamentem a cidade com a
singeleza da silhueta azul-e-branco e robusteçam com as lições de hoje a pátria de
amanhã, sabendo carregar sempre no espírito, a mocidade, que é eterna quando
realmente sentida e vivida. (Grifo nosso)

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A crônica apresenta a normalista como um ser universal, como um grupo sem


distinções entre elas, isto é, sem quaisquer distinções no tangente, por exemplo, a classe e/ou
raça. Como se fossem homogêneas. A ênfase dada ao uniforme azul marinho contribuía para
corroborar essa perspectiva. Como se pode perceber, o cronista visava consolidar a imagem
da mulher/normalista como alguém nascido para servir/educar a infância, contribuindo assim
para o desenvolvimento do País. A formação recebida não era vista como fonte de
independência e liberdade. Contrário a isso, era mais um meio pelo qual a mulher melhor
poderia desempenhar os papéis sociais a ela destinados e considerados adequados ao sexo
feminino.

A esse respeito, Louro (2000, p. 464) remete ao jogo das representações que não
apenas espelharam essas mulheres, mas efetivamente as produziram. Para ela, “as
representações de professora tiveram um papel ativo na construção da professora, elas
fabricaram professoras, elas deram significado e sentido ao que era e ao que é ser professora”.
Defende a autora que observar como e por quem um grupo social é representado nos aponta
muito sobre as relações de poder transcorridas na sociedade. No caso das professoras, foram
os homens – parlamentares, médicos, padres, pais, legisladores – que, intitulando-se porta-
vozes da sociedade, dizem sobre elas. E, consequência do dito pelos homens, aponta Louro
(2000, p.465), “elas também acabam, frequentemente, definindo-se e produzindo-se em
consequência com tais representações”. No caso das normalistas de Alagoinhas, a fala, como
se constata, era mérito de um político – o prefeito da cidade – e de um jornalista, ambos do
sexo masculino, que diziam sobre a mulher/normalista.

Após a publicação, o cronista conquistou a admiração não só das normalistas da


cidade, como de algumas mestras. Na edição número 177 de O Nordeste, a segunda após a
publicação do texto, o jornalista reserva espaço no final da crônica semanal para:

Fazer dois agradecimentos mui sinceros. Ambos sobre a minha penúltima crônica
intitulada: “Normalistas”. O primeiro trata-se de uma carta recebida e assinada
por uma Normalista, onde os elogios são exagerados e os conceitos
demasiadamente benévolos. O segundo é um pedido de uma professora no sentido
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de uma crônica sobre as mestras. Pensarei... Muito obrigada pela agradável


missiva e também pela sugestão.

Muito provavelmente, as “normalistas” sentiram-se honradas por terem sido tema da


crônica de um jovem jornalista, solteiro e homem de “posses”176. Como no texto há sugestão
de “encantamento” do autor pela “moça simpática, leve e esportista” que depois descobre ser
“normalista”, ao encontrá-la trajando o uniforme azul e branco, pode-se conferir à normalista
a autoria da carta em agradecimento. Estava a jovem também “encantada”, não só com o
texto, mas com o autor. É significativa a contradição entre a jovem comum e a moça
normalista. Quando diferencia a moça em trajes comuns –simpática e sorridente – da moça
trajando o uniforme marinho, o cronista associa a imagem da normalista/professora a de
alguém de expressão severa, retraída, que pouco sorri e, pode-se dizer, nada tem de
encantadora. A mestra, ao sugerir que o autor falasse sobre e dela, estava, de certa forma,
reproduzindo o discurso vigente, o qual não permitia à mulher, mesmo se tivesse certo grau de
instrução, se manifestar publicamente. Era necessário que um outro, no caso, um homem,
dissesse sobre ela.
O COLÉGIO SANTÍSSIMO SACRAMENTO EM ALAGOINHAS: ESPAÇO DE
FORMAÇÃO DE PROFESSORAS
O CSSS, permeado pelos princípios cristãos e morais, iniciou as atividades na cidade
em 1940, oferecendo exclusivamente o curso primário até 1950; em 1951 começa a funcionar
o curso Ginasial e em 1955 o curso Pedagógico, formando a primeira turma de professoras
primárias em 1956. Foram 29 jovens concluintes, as quais, a partir daquele momento,
colocaram em prática os ensinamentos adquiridos durante a formação nessa instituição de
ensino, cujo maior objetivo da educação ministrada era “formar mulheres profundamente
cristãs que cumpram dignamente seus deveres na família e na sociedade, dentro da sã moral
e dos sublimes princípios da Santa Religião”177.

176
Nas edições posteriores de O Nordeste, encontram-se indícios de que o autor da crônica advinha de famílias
de posses, sendo chamado algumas vezes de ‘pecuarista e homem das letras’. Na edição de 25 de setembro de
1955 há uma nota no jornal registrando seu noivado com uma jovem da cidade e na edição de 16 de março de
1956 o registro do casamento, realizado na cidade de Salvador.

177
Regimento Interno do CSSS, em vigor nas décadas de 1950/60, encontrado nos arquivos da instituição.

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Essas mulheres, futuras professoras, deveriam ter como parâmetro, em suas vidas
profissional e pessoal, os valores cristãos católicos; seriam observadas e delas exigidos o
cuidado e o zelo com suas imagens e boas condutas morais e religiosas. A formação recebida
pelas alunas na instituição objetivava, para além do magistério em si, formar também o
caráter das alunas, pautado nos princípios morais cristãos. A mestra formada pelo CSSS
personificava um modelo de mulher da época: cristã, instruída, resguardada, apta a
desempenhar os papéis de esposa, dona de casa e mãe, e também o de professora primária.
De 1956, quando se diplomou a primeira turma de professoras primárias, até 2000,
quando o curso de magistério foi encerrado, foram formados pelo CSSS 1.964 professores,
dos quais apenas dois eram homens. A presença de dois professores num total de 1.964
formandos é significativa. Acredita-se que esse dado ratifica a “feminização do magistério”,
tema muito abordado na literatura da História da Educação Brasileira. Os anos nos quais se
evidenciou a presença de jovens do sexo masculino, foi entre 1993 e 1999. O século 20
chegava ao fim e os estereótipos acerca do magistério primário mantinham-se firmes na
sociedade brasileira. Contraditoriamente, desde o ano de 1975 o CSSS oferecia à mocidade
alagoinhense feminina o curso de Técnico em Patologia Clínica. De 1978, quando se
diplomou a primeira turma até 1982, foram 167 alunas formadas, que, obviamente, não
optaram pelo curso de Magistério. Abriam-se assim novas perspectivas de formação para o
sexo feminino e, posteriormente, de ocupação profissional. O curso de Patologia Clínica foi
substituído pelo de Química e, em 1983, dez alunas concluíram essa formação; em 1984
foram 14 alunas e em 1985 tem-se o registro dos primeiros alunos concluintes desse curso: de
um total de 14, apenas 3 eram do sexo masculino. Nesse momento, o CSSS já havia aberto as
portas, também, ao sexo masculino, adequando-se às mudanças ocorridas na sociedade e a
demanda em geral. De 1978, quando diplomou a primeira turma em Patologia Clínica até o
ano de 2000, já com o Ensino Médio, conforme legislação vigente foram 529 alunos e alunas
formados nesse nível de ensino pelo CSSS.
O CSSS, em sua prática educativa, buscava criar nas alunas um “jeito de ser
professora”, estabelecendo nelas, de acordo com Louro (2000, p.461) “um modo adequado de
se comportar, de falar, de escrever, de argumentar”. Mais que um ‘modo’ esperado de
comportamento social, criava-se um modelo a ser seguido pelo professorado, podendo isso ter
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representado para elas, em conformidade com Louro (2000, p.462-463) um “encargo social
pesado que teve profundos efeitos sobre as vidas de mestres e mestras”.
A educação feminina sempre foi alvo de discussões, dentro e fora do Brasil. Segundo
Passos (2004, p. 22), a Bahia dos anos 30 do século 20 também se inseriu nesta discussão,
defendendo este acesso, mas sem que isto significasse uma ruptura com os valores da época,
pois “a proposta não apresentava a educação como forma de libertação feminina, ao contrário,
reafirmava-se em todos os momentos que a mulher devia continuar sendo companheira do
homem, mãe primorosa e esteio da família”.
A pesquisadora baiana, dedicada ao estudo da educação da mulher baiana nos séculos
19, 20 e no atual, afirma, na introdução de um de seus trabalhos, qual o objetivo buscado: “a
partir da recuperação dessa memória, entender os silêncios e as falas, a que e a quem eles vêm
servindo” (PASSOS, 2004, p. 10). Segundo ela, a figura da mulher educadora estava
fundamentada em valores morais inspirados na religião católica, cuja prática deveria servir
também como transmissora de valores e ensinamentos religiosos. O sexo feminino prossegue
Passos (2004, p. 10), era tido como sinônimo de amor incondicional, encontrando no amor
materno a representação máxima a tudo aceitar e compreender.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Transitando num contexto no qual as vivências morais e os valores religiosos eram
uma prerrogativa, esperava-se das normalistas, futuras mestras, uma conduta moral
compatível com a formação recebida e com a profissão escolhida; que no cotidiano e no
exemplo confirmassem – e amplificassem para a sociedade – o apreendido durante a sua
formação. Nessa conjuntura, as jovens vestidas de “azul e branco” a partir da formação
técnica e profissional, deveriam, em sua prática docente, ser não apenas competentes na tarefa
de instruir, mas, e principalmente, de educar seus alunos/as inspiradas pela formação moral e
cristã dentro da qual eram formadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In. DEL PRIORE, M. História das
mulheres no Brasil. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2000.

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LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In.: PINSKY, Carla
Bassanezi. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
PASSOS, Elizete Silva. Palcos e Plateias: as representações de gênero na Faculdade de
Filosofia. Salvador: UFBA< Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, 1999.

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O DESAFIO DE FAZER-SE ESCRITORA: IMPRENSA, IMPRESSOS E ESCRITAS


FEMININAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX.

Dêis Maria Lima Cunha Silva 178 | deis.maria@hotmail.com


Dayanny Deyse Leite Rodrigues179

INTRODUÇÃO

A referente pesquisa tem como objetivo principal fazer uma análise por meio de
estudos bibliográficos sobre o que as mulheres brasileiras do século XIX escreviam, para
quem escreviam e como seus escritos eram recebidos na sociedade em que viviam. Sociedade
esta patriarcal, escravista com uma elite agrária imersa em situações conturbadas no que tange
a luta dos abolicionistas e insurreições causadas pelos mais diversos motivos, assim vivia-se
no Brasil Imperial. Dessa forma, os acontecimentos vigentes influenciaram em alguns pontos
as escritas das mulheres deste período. Nesta pesquisa observar-se-á as lutas e conquistas de
um restrito número de mulheres que ousaram insurgir sobre as normas sociais estabelecidas
no que se refere a aquisição de conhecimento e divulgação por meio da Imprensa de seus
escritos.
Sendo assim, é cabível questionar sobre o porquê as mulheres, sejam elas das
classes de elite ou das classes menos abastadas, durante tanto tempo foram tratadas como
seres incapazes de participarem ativamente da vida intelectual e quando lhes era dado este
direito, acontecia de forma restrita? Porque somente elas foram relegadas as prendas
domésticas? Do que os homens temiam? Em que momento da História brasileira a aquisição
do conhecimento lhes foi garantido mesmo com algumas ressalvas e com que objetivo? Para

178
Graduada em História pelas Faculdades Integradas de Patos – FIP; Pós-graduada em Fundamentos da
Educação: Práticas Pedagógicas Interdisciplinares pela Universidade Estadual da Paraíba.
179
Mestranda em História pela Universidade Federal da Paraíba.
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responder a esses e outros questionamentos se faz necessário uma pesquisa mais aprofundada
e adentrar também no campo da sexualidade, pois segundo a misoginia clerical do medievo
sendo a mulher culpada pelo pecado original e para se redimirem, as mesmas foram tratadas
como seres inferiores aos homens e sua presença somente era necessária no momento da
procriação. Assim sendo, de acordo com Perrot (2013), um número bem razoável destas
mulheres chegam ao século XIX com a mentalidade de que lhes cabe como participação
social cooperar para adquirirem um bom casamento, filhos educados, enfim um lar exemplar.
Mas algumas mulheres a exemplo de Délia pseudônimo de Maria Benedicta
Câmara Barmann (1853 – 1895), Júlia Lopes de Almeida (!863 – 1934) dentre outas,
romperam as normas e escreveram sobre os mais diversos assuntos e lutaram pelo direito das
mulheres estudarem e assim tonarem-se cultas, atuantes na vida social antes pertencente a
misoginia patriarcal.
A sociedade brasileira do século XIX vivia momentos de transição principalmente
a partir de 1808 com a chegada da família real, com ela veio também as influencias europeias,
sendo que estas interferiram em todos os campos da até então colônia portuguesa. Um grande
número de mulheres brasileiras deste período não interferia na vida política e econômica de
seus pais e/ou maridos, pois não eram consideradas dotadas de conhecimento suficiente,
segundo a misoginia vigente, para opinar e/ou participar e quando o fazia tinha de demonstrar
total ignorância nos assuntos que não fossem os das tarefas do lar. A imprensa chega ao Brasil
juntamente com a família real. Assim ao analisar textos referentes a Imprensa do século XIX
percebe-se como esta colaborou para o mercado de trabalho feminino, seja por meio da oferta
ou por meio da procura por emprego. De acordo com Carvalho180 (2006) o “[...] começo do
século XIX fatalmente transbordaria para o espaço doméstico, contribuindo para que fosse
construída uma noção do que deveria ser família civilizada. [...] o lar tornou-se metáfora da
pátria. [...]” (CARVALHO, 2006, p. 176). Sendo assim, a esposa não opinava, a família era o
povo, o homem da casa seu governante, este por sua vez era quem elaborava as leis para que o
“povo”, ou seja, a família mais especificamente a mulher obedecesse, pois esta poderia reinar

180
CARVALHO, Marcus J. M. de. A imprensa na formação do mercado de trabalho feminino no século XIX. In:
NEVES, Lúcia Maria Bastos P., MOREL, Marco, FERREIRA, Tânia Bessone da C. (orgs). Imprensa e História:
representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj, p. 176, 2006.

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no lar, mas as leis eram feitas pelos seus digníssimos cônjuges, pois a boa esposa
representaria a honra do esposo esta seria submissa, trabalhadora (do lar) e calada. Mesmo em
casa no momento em que o patriarca reunia a família, trazia discussões sobre política que era
o tema principal da Imprensa local, não era de bom tom para as mulheres demonstrarem
inteligência e opinarem, pois este assunto se reservara apenas para o mundo erudito
masculino. Mas nem todas se mantinham obedientes, algumas opinavam mesmo não sendo
ouvidas.
As mulheres sem posse e sem marido que eram livres ou libertas e que tinham
instrução, pois um grande número destas não sabiam ler nem escrever, enfrentavam
dificuldades para sobreviverem por isso em muitas situações recorriam aos anúncios de
professoras e empregadas domésticas em jornais da época como afirma Carvalho (2006)181
O trabalho doméstico destacava-se na lista das alternativas de sobrevivência. Na
década de 1840 não eram poucas as mulheres livres que colocavam anúncios nos
jornais em busca de trabalho doméstico. As possíveis patroas também anunciavam
indicando o perfil da empregada que desejavam. Esses anúncios não ficavam numa
seção separada nos jornais. Eles compartilhavam o mesmo quadro dos avisos de
compra e venda de cativos, o que denota que trabalho livre ainda não se separara
totalmente da matriz escravista. Até as mensagens de professoras em busca de
emprego situavam-se em local idêntico àquele em que os cativos eram postos a
venda. [...] (CARVALHO, 2006 p. 179)
Assim percebe-se a importância da Imprensa na vida dessas mulheres que
buscavam alternativas para sobreviver. Estas mulheres, as que se julgavam decentes, que
anunciavam a busca por emprego tinham o cuidado de deixar claro em seus anúncios que não
fariam trabalho fora de casa, porque o espaço da rua era um lugar indecente e inseguro e por
isso mesmo era um espaço masculino. Para as mulheres pobres o trabalho doméstico oferecia
segurança enquanto o trabalho de ambulante na rua muitas vezes era confundido com
prostituição.
Nísia182 Floresta, por exemplo, escreveu sobre a quantidade de prostitutas
existentes no Brasil oitocentista, sendo que para a mesma o fato é resultante da escravidão e

181
CARVALHO, A imprensa ..., p. 179.
182
Educadora, escritora e poetisa nascida em 12 de outubro de 1810, em Papari, Rio Grande do Norte, filha do
português Dionísio Gonçalves Pinto com uma brasileira, Antônia Clara Freire, foi batizada como Dionísia
Gonçalves Pinto, mas ficou conhecida pelo pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta. Nísia é o final de
seu nome de batismo. Floresta, o nome do sítio onde nasceu. Brasileira é o símbolo de seu ufanismo. Augusta é
uma recordação de seu segundo marido, Manuel Augusto de Faria Rocha, com quem se casou em 1828, pai de
sua filha Lívia Augusta.

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poucas alternativas para as mulheres pobres. A mesma era contrária a ideia de submissão aos
homens, questionou as imposições masculinas fundou o Colégio Augusta no Rio de Janeiro e
uma de suas principais obras foi Direitos das mulheres e injustiça dos homens publicado em
1832.
No Brasil oitocentista a Imprensa também colaborou com a educação das
mulheres, haviam anúncios, por exemplo, de professoras que buscavam alunos, e neste caso
alunas, pois as mulheres bem casadas, respeitáveis e honradas ensinavam as meninas e ao
ofertarem o ensino poderiam ter um meio de obterem recursos para sobreviverem. Alguns
discursos misóginos defendiam que não era necessário ocupar a mente das mulheres com
informações científicas, já que a função destas era cuidar da educação dos filhos e ser
formadora dos futuros cidadãos, para tanto lhes bastava uma formação moral sólida e
princípios como honestidade, pureza, castidade dentre outros. A mulher era responsabilizada
pelo caráter dos cidadãos e somente por isso recebeu instrução, pois dela dependia, na
concepção social da época, o fato de os homens serem bons ou maus. Os meninos aprendiam
a ler, escrever, além de lições de cálculos como geometria e as meninas além da leitura e
escrita aprendiam a bordar, costurar além das prendas domésticas.
De acordo com o discurso iluminista as mulheres deveriam ser educadas para
representarem as famílias moralmente. Porque o lar estaria representando a pátria e a honra do
lar dependia da mulher submissa e imaculada. Era preciso civilizar, mas para tanto se fazia
necessário trocar o trabalho das cativas pelo trabalho das livres ou libertas e assim afastar a
influência das africanas no cotidiano da boa família. No periódico O Popular183 há uma crítica
sobre as famílias que ao se envolverem com as escravas deixam filhos bastardos como fruto
de um relacionamento ilícito, assim era muito comum anúncios de venda de escravas pelos
mais diversos motivos e também pelo envolvimento sexual dos senhores com as mesmas nos
periódicos oitocentistas. Tais envolvimentos dificultava a relação entre patroas e empregadas
como afirma Carvalho (2006)184

183
9 de junho de 1830.
184
CARVALHO, Marcus J. M. de. A imprensa na formação do mercado de trabalho feminino no século XIX. In:
NEVES, Lúcia Maria Bastos P., MOREL, Marco, FERREIRA, Tânia Bessone da C. (orgs). Imprensa e História:
representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj, p. 191, 2006.

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O ciúme das negras da casa não só abalava a paz conjugal como adicionava fel ao
azedume natural da relação senhora-escrava. Esse exemplo explica parte da tirania
das sinhás no trato diário com suas domésticas. [...] A cativa estava exposta ao
assédio, ao estupro e à opressão sexual dos senhores, filhos e agregados, e sofria
ainda o ciúme das esposas traídas. As sinhás enciumadas vingavam-se como podiam
[...] as ‘melhores’ patroas deviam ser as viúvas e as solteironas convictas.
(CARVALHO, 2006, p. 191)

O envolvimento sexual dos senhores com suas escravas também foi usado para a
questão abolicionista, já que ao presenciar tais situações dentro de casa as moças poderiam
não ser castas e boas esposas de acordo com Carvalho (2006).
Percebe-se que a cultura africana vinda para o Brasil por meio dos escravos
influenciou até certo ponto alguns comportamentos da população, além desta a influência
francesa também chega por meio dos imigrantes logo após o fim da era napoleônica, sendo
assim nos jornais haviam anúncios de mulheres francesas que se ofereciam para ensinar os
costumes, a língua, o figurino, enfim os moldes franceses. Estes por sua vez iam se adaptando
ao modelo existente no Brasil Imperial, favorecendo assim uma quebra de fronteiras entre o
espaço da casa e o espaço da rua, ao modelo europeu agora as famílias passam a desfrutar o
cotidiano das cidades, da vida urbana, passam a visitar as confeitarias, os saraus mudando
assim as relações sociais.
Segundo Cláudia Oliveira185 (2011) a nova forma de viver o amor são mostrados
nos romances que emergem nas narrativas femininas do século XIX mulheres felizes,
infelizes, rejeitadas, românticas. Ao transgredirem as normas estabelecidas ocorre uma
transformação da mulher brasileira mostradas nos romances. Surge nesses escritos um novo
elemento: O adultério. Essas transgressoras foram combatidas pela imprensa misógina que as
via como uma ameaça a harmonia social. Essa mulher que busca a liberdade de escolha e de
seus atos seria retratada no romance folhetinesco como heroína moderna, uma mulher que
vive entre o amor e a paixão.
A produção folhetinesca do século XIX passa a associar a mulher ao mercado de
consumo, ou seja, a vaidade. O apelo emocional é uma constante para a imprensa em que os
personagens são bem caracterizados as mulheres são mostradas como frágeis e indefesas

185
OLIVEIRA, Claudia de. Mulheres de estampa: o folhetim e a representação do feminino no Segundo
Reinado. In: KNAUSS, Paulo et. Al. Revistas Ilustradas: modos de ler e ver no Segundo Reinado. Rio de
Janeiro: Mauad X: FAPERJ. 2011. P. 157-172.
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enquanto os homens são fortes e viris. Outro tema abordado nos folhetins direcionados ao
público feminino é a questão do casamento sem amor que não pode ser desfeito. Estes
romances folhetinescos em sua maioria eram escritos por homens, para e sobre as mulheres,
pois estas eram o público leitor.
De acordo com Martins186 (2001) no período do Brasil Império havia uma
Imprensa feita por mulheres e para mulheres, nestas escritas algumas confrontavam a ideia de
rainha do lar enquanto outras reafirmavam a condição de mãe-esposa, a mulher imperial lia e
produzia colaborando assim na produção de várias revistas. Algumas destas produções trazem
em seus títulos a “fragilidade da figura feminina”, por exemplo, A Camélia, A violeta, O lírio,
A crisálida, O espelho, dentre outras. Estas revistas ao mesmo tempo que propagavam o
movimento feminista, o direito ao divórcio, a participação política e o direito ao voto, outras
enfatizavam um comportamento moralizante, moda, decoração dentre outros.
Sendo a escrita e o saber, meios de poder e dominação as mulheres tiveram que
romper normas e lutarem pelo direito a leitura e a escrita. De acordo com Norma Telles187
(2011) ao romper às normas sociais as mulheres ascendem no papel de escritoras, assumindo
um novo papel, fora das paredes do lar. Sendo assim, o romance do século XIX muda da
fantasia para o real voltado para o cotidiano da vida doméstica. Tais romances são
denominados neste período como romances de família, agora quem os lerão são as mulheres
burguesas. Numa cultura em que as mulheres eram vistas como um ser de virtude o anjo do
lar as que desobedeciam eram vistas como as decaídas, assim sendo em seu texto Telles188
afirma
[...] À mulher é negada a autonomia, a subjetividade necessária à criação. O que lhe
cabe é a encarnação mítica dos extremos da alteridade, do misteriosos e
intransigente outro, confrontado com veneração e temor. O que lhe cabe é uma vida
de sacrifícios e servidão, uma vida sem história própria. Demônio ou bruxa, anjo ou
fada, ela é mediadora entre o artista e o desconhecido, instruindo-o em degradação
ou exalando pureza. É musa ou criatura, nunca criadora. (TELLES, 2011, p. 403)

186
MARTINS, Ana Luiza. A produção de uma nova mulher: Revistas Feminina. In: Revista em revista –
Imprensa e Práticas Culturais em tempos de República. SP (1890 – 1922). São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo: FAPESP: 2001.
187
TELLES, Norma. Escritoras, Escritas, Escrituras. In: PRIORE, Mary Del(org.), PINSKY, Carla Bassanezi.
História das mulheres no Brasil. 10. ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2011.
188
TELLES, Escritoras..., p. 403.
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Num período em que se valorizava o conhecimento à mulher era negada a


educação superior. De início leram o que foi escrito sobre elas. Os chamados anjos do lar,
assim eram chamadas as mulheres que passavam boa parte de seu tempo em casa cuidando do
lar, inspiravam as escritas masculinas. E para tornarem-se criadoras teriam que matar este
anjo e enfrentar o monstro da rebeldia.
Estas eruditas insurretas do século XIX escreveram sobre a participação das
mulheres em revoltas a exemplo da Revolução Farroupilha. Pode-se citar como exemplo Ana
Eurídice Eufrosina de Baranda influenciada pelas ideias de Nísia Floresta, era uma
monarquista, advogava pela participação das mulheres na política e escreveu Ramalhete ou
flores escolhidas no jardim da imaginação, publicado em 1845. Estas escritoras não eram
vistas com bons olhos como podemos perceber em Telles189 (2011)
[...] As interpretações literárias das ações das mulheres armadas, em geral,
denunciam a incapacidade feminina para a luta, física ou mental, donde concluem
que as mulheres são incapazes para a política, ou que esse tipo de ideia é apenas
diversão passageira de meninas teimosas que querem sobressair. (TELLES, 2011, p.
407)

As mocinhas deste período costumavam iniciar suas primeiras ideias e


pensamentos em um caderno que a autora chama de caderno goibada, sendo que depois do
casamento seus pensamentos passam a ser escritos entre uma receita e outra.
A maranhense Maria Firmina dos Reis sobrevivia com recursos que provinha da
carreira de professora. Muitas mulheres deste período viam na função de professora uma
oportunidade de erudição, já que em 1835 pela Lei provincial foi criada a primeira Escola
Normal do Brasil em Niterói – RJ com o objetivo de capacitar pessoas para o magistério.
Maria Firmina era abolicionista lecionava em casa, era mestra concursada. Em 1859 escreveu
o romance Úrsula, narra a história de amor entre Úrsula e um bacharel em direito. No enredo
é possível perceber a situação dos escravos do ponto de vista da valorização da cultura
africana. Outro escrito interessante da abolicionista é Gupeva publicado no jornal O Jardim
das maranhenses, narra a impossibilidade de um encontro harmonioso entre duas raças

189
TELLES, Norma. Escritoras, Escritas, Escrituras. In: PRIORE, Mary Del(org.), PINSKY, Carla Bassanezi.
História das mulheres no Brasil. 10. ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, p. 407, 2011.
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distintas.
Narcisa Amália de Campos, nascida no Rio de Janeiro em 1852, de acordo com
Telles (2011) era filha de professores, guiou-se por ideias européias liberais, se dedicou a
ideias democráticas progressistas, defendia o direito dos escravos receberem instruções, era
mais uma defensora do direito educacional e artístico das mulheres, foi acusada de
transgressão as regras morais.
Maria Benedicta Câmara Barmann usava o pseudônimo de Délia (1853-1895),
pertencia a uma família de prestígio, era abolicionista, defendia um conhecimento para a vida
e o conhecimento da própria sexualidade, pois a nova mulher do final do século XIX,
pretendia ser sexualmente livre e independente, criticava a insistência no casamento, estudava
e privilegiava a carreira profissional. Estas por sua vez tiveram que enfrentar as críticas de
médicos, políticos e jornalistas que uniram-se para condenar essa nova mulher, segundo
médicos ingleses o desenvolvimento do cérebro das mulheres implicava em não nutrir seu
útero. Entre os romances escritos por Délia estão: Aurélia (1883); Uma vítima, Três irmãs e
Magdalena (1884); Lésbia (1890); Celeste (1893) e Angelina (1894) segundo Telles (2011).
Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) era uma abolicionista, republicana, escritora,
jornalista, como afirma Telles (2011), fez campanhas em defesa das mulheres, da cidade, do
divórcio, pela instalação de creches e melhores condições do ensino. Tentou conciliar nos
seus escritos o papel de esposa com o papel da nova mulher. Em seus romances a escritora
trata do cotidiano do campo e da cidade, cortiços e palacetes. Escreveu peças de teatro, contos
e pertenceu a Legião de mulheres de Berta Lutz. Entre seus principais romances estão: A
família Medeiros (1899), Memórias de Marta (1885), A viúva Simões (1897), dentre outros.
No final do século XIX estas escritoras trazem em seus romances histórias de
ficção em que as mulheres tornam-se seres sexuais, sensuais ficando de lado a imagem do
“anjo do lar”. Nos romances que aparecem personagens (femininas) histéricas também trazem
a cura, o casamento e a maternidade. Neste contexto da descoberta e do conhecimento da
própria sexualidade estas mulheres escritoras forma combatidas por higienistas que se
empenharam na tarefa de consolidar a o exemplo de “mãe burguesa”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao concluir esta pesquisa percebi o quanto as mulheres tiverem que lutar para
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adquirirem conhecimento, tornarem-se eruditas, produzirem e publicarem seus pensamentos,


seus questionamentos. Com o olhar contemporâneo é absurdo perceber a misoginia social
enfrentada por estas insurretas das das normas vigentes, em Perrot (2013) Auguste Comte via
as mulheres apenas como seres dotados da capacidade de reproduzirem e multiplicarem a
espécie, outro famoso escritos do século XIX, Freud, afirma que as mulheres pouco
contribuíram com a história da cultura, lhe atribuindo apenas a invenção da tecelagem.
Apesar de alguns escritos femininos reafirmarem as normas sociais vigentes no
que se refere ao pudor, a uma vida religiosa, de obediência e submissão, mulheres como
Délia, Nísia Floresta, Júlia Lopes entre outras ultrapassaram o cenário privado e se fizeram
presente na escrita. Em suas produções percebemos a denúncia da misoginia, a reivindicação
pelo direito a educação, ao divórcio, ao voto dentre outros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Hemeroteca da Bibliografia Nacional


ALGRANTI, Leila Mezan e MEGIANI, Ana Paula (orgs.) O Império por Escrito – Formas
de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico séculos XVI e XIX. São Paulo:
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BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil 1880-1900. Rio de Janeiro;
Mauad X, 2010.
CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e história do Brasil. 1ªed. São Paulo: Contexto/
Edusp, 1988.
CARVALHO, Marcus J. M. de. A imprensa na formação do mercado de trabalho feminino no
século XIX. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P., MOREL, Marco, FERREIRA, Tânia
Bessone da C. (orgs). Imprensa e História: representações culturais e práticas de poder.
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COSTA, Carlos Roberto. A Mulher e a ilustração entram na Redação: 1850 a 1865. In: A
Revista no Brasil no século XIX – A história da formação das publicações do leitor e da
identidade do brasileiro. São Paulo: Alameda, 2012.
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revista – Imprensa e Práticas Culturais em tempos de República. SP (1890 – 1922). São


Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP: 2001.
OLIVEIRA, Claudia de. Mulheres de estampa: o folhetim e a representação do feminino no
Segundo Reinado. In: KNAUSS, Paulo et. Al. Revistas Ilustradas: modos de ler e ver no
Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ. 2011. P. 157-172.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2 ed. 1ª reimpressão. São Paulo:
Contexto, 2013
TELLES, Norma. Escritoras, Escritas, Escrituras. In: PRIORE, Mary Del(org.), PINSKY,
Carla Bassanezi. História das mulheres no Brasil. 10. ed., 1ª reimpressão. São Paulo:
Contexto, 2011.

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O FEMININO NA AURORA DO SÉULO XXI: LITERATURA E SUBJETIVAÇÃO

Maria do Socorro da S. Medeiros | msr_medeiros@hotmail.com


Tatianne Ellen Cavalcante Silva

INTRODUÇÃO

A história nos mostra que até pouco tempo o feminino encontrava-se amordaçado pelos
entraves que o patriarcado impunha. Este quadro foi pouco alterado até a atualidade, visto que
os prescritos para o feminino ainda são muitos e o silêncio ainda faz parte do universo
feminil. A sociedade heteronormativa, branca e classe média estabelece padrões, os quais são
introjetados deste da tenra idade. O binarismo de gênero é alimentado pelo cordão umbilical.
Mas o feminino é múltiplo e em sua complexidade é portadora de inúmeras questões,
dentre elas as de gênero. Se a mulher branca, hétero, burguesa encontrava um espaço mínimo
no convívio social, as mulheres lésbicas padeciam de um apagamento social quase absoluto.
Omitidas do enredo da sociedade estas mulheres se viram obrigadas a buscar mecanismos
para se colocarem no mundo. O amor entre iguais não tinha espaço no corpo social e era posto
como distúrbio passível de cura. Elas buscavam por representação, mas esta era quase
inexistente.
A tradição literária não apresentou muitas heroínas, nem muito menos heroínas que
amassem as suas iguais. Assim, a representação era algo de ordem quimérica até pouco
tempo. O século XXI chegou e poucas são as escritoras que conseguem publicar seus textos.
As grandes editoras, como foi analisado por Regina Dalcastagnè, continuam privilegiando a
produção masculina. Assim os escritos feminis padecem da certa invisibilidade e esta é mais
gritante quando falamos da produção lésbica. Deste modo as herdeiras de Safo precisaram

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buscar alternativas para falar sobre seus amores e os blogues literários surgiram como uma
alternativa eficaz para o desempenho de tal função, à medida que possibilitam uma
emancipação para as ficcionistas.
A necessidade de colocar-se no mundo, enquanto ser falante ficou evidente quando, no
século XIX, as histéricas freudianas fizeram de seus corpos verdadeiros outdoors. A mudez
pronunciou-se por si quando as jovens do Salpêtrière tinham partes dos seus corpos
paralisadas em forma de reivindicação. Os sintomas físicos alertaram o jovem médico sobre a
influência da sociedade a respeito da construção psíquica. Deste modo o imberbe iátrico deu-
se conta de que o único caminho para a “cura” vinha do ato da fala.
Em razão de uma visão de mundo talhada pelos ditames culturais a pena feminina
costumava discorrer sobre o universo da casa, da educação dos filhos e assuntos que eram
entendidos como próprio da orbe femínea. Tal atributo fazia com que a crítica, composta por
homens, enxergasse-se a literatura feminina como menor, à medida que não retratava temas
que fossem do interesse de todos.
A escrita sobre si atravessou os séculos e perpetuou-se através deles. Em pleno século
XXI com a proliferação das TCIs o feminino adentra a grande rede e faz dela mecanismo para
divulgação de sua escrita. Falar sobre si é o marco desta era, o self hodierno é marcado pela
capacidade de criação de sentidos e corrobora com o processo de representação.
Portadoras de um conhecimento teórico restrito as mulheres eram sentenciadas a
permanecerem à margem da sociedade, visto que a ascensão pelo saber lhes era negada. O
apagamento das conquistas femininas resultou em uma história repleta de homens
memoráveis, mesmo que para alcançar os louros eles tenha usurpado descobertas ou
publicados livros que não lhes pertenciam. Através do anonimato feminil é que a tradição
patriarcal alicerçou-se.
ESCRITA, AMOR E CONTEMPORANEIDADE
A arte surge para a humanidade como uma possibilidade de exteriorizar elementos que,
costumeiramente, seriam impossibilitados de serem expressos, devido a forças que
instituições hegemônicas exercem sobre os sujeitos. Esta prática é exercida pelas classes
dominantes deste sempre, em um processo cíclico de silenciamento. Tal mecanismo não é
caracterizado por agir sobre uma determinada classe, ele incidi sobre todo e qualquer ser que
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não adeque-se ao que é determinado, seja em maior ou menor grau. Segundo Bourdieu a arte
é um lugar de liberdade:

Eis por que amo a Arte. É que aí, pelo menos, tudo é liberdade, nesse
mundo de ficções. Aí se sacia tudo, faz-se tudo, é-se a um só tempo
seu rei e seu povo, ativo e passivo, vítima e sacerdote. Nada de
limites; a humanidade é ara, você um fantoche com guizos que se faz
soar na ponta de sua frase como equilibrista na ponta de seu pé.
(BOURDIEU, pág. 42, 1996).

Deste modo a arte auxilia na construção de novos prismas de visão do mundo, assim
como na viabilidade de representação de novas subjetividades. As quais conseguem, graças a
este meio, ofertar àqueles que buscam representatividade ou apenas saber sobre a diversidade
de nuanças que integram a existência humana.
Trazer a tona sujeitos relegados ao mutismo, assim como àqueles que não “ousam
falar seus nomes190” é um ato que requer habilidade e desenvoltura, à medida que não se
busca o empate, mas sim a reflexão. E é esta destreza que a arte apresenta. Retratar temas que
são desencadeadores de incipiência dos dominantes exige conhecimento na construção das
metáforas, as quais são usadas para minimizar o peso dos ditos.
Estabelecer diálogos que não desencadeiam contendas com as forças tidas como
majoritárias vem sendo um dos papéis desempenhados pelas artes ao logo de sua produção. O
homem usa de todas as artimanhas das quais dispõe para colocar-se no mundo. Existir não
está relacionado a nascer, nem tão pouco manter-se vivo, mas em ser visto, em ser percebido
como integrante da esfera social. Deste modo é de suma importância para os “menores” terem
voz, mesmo que para isto seja necessário fazer uso de canais alternativos. É-lhes vital falar
sobre quem são, onde vivem, como amam etc.
As transformações históricas da cultura juntamente com as mudanças culturais vêm
favorecendo o surgimento de hodiernas formas de narrar a existência das minorias, as quais
vivem açaimadas pela mão dos senhores dos corpos e saberes. É na busca por mecanismos
representativos que a literatura eclode como um aliado memorável para tais práticas. Falar
sobre os silenciados de forma inventiva, e os acomodando de maneira expressiva os seus
190
Oscar Wilde
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protagonista.
O homem narra as suas memoráveis sagas de vida, assim como falam sobre a
existência feminina. Regina Dalcastagnè (2012) em seu livro Literatura brasileira
contemporânea um território contestado faz um levantamento bastante significativo na busca
pelo entendimento de como funciona o sistema editorial no Brasil. Em sua pesquisa a
estudiosa constatou que 75% dos livros publicados pela Rocco, Record e Companhia das
Letras – maiores editoras no país – eram escritos por homens. Mas o mapeamento foi além e
constatou-se que 70% dos autores vêm de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio
Grande do Sul, além do que 93,9% desses escritores, entre homens e mulheres, serem
brancos. O estudo nos evidencia, com provas numéricas, o perfil dos autores que consegue
publicar seus textos nas grandes editoras nacionais.
O silêncio circunscreveu a biografia feminina desde sempre. Convidadas ao convívio
do lar e ao enclausuramento ditados pelas normas do masculino, o belo sexo191 padeceu com
os entraves que tal confinamento lhes causou. Ao serem privadas do acesso a todas as áreas de
conhecimento, as mulheres eram colocados, automaticamente, em segundo plano pela
sociedade, visto que não detinham conhecimento teórico necessário para a resolução de
questões de ordem especializada.
O letramento feminino estava ligado à fabricação de convites para bailes e festividades
de uniões conjugais, restringindo de forma significativa o que elas deviam aprender. Assim
como os fundamentos teóricos eram engessados pelo ditatorialismo patriarcal, a escrita era
desempenhada de forma esmerada. As meninas que tinham acesso ao saber, eram adestradas a
desenharem as letras, transformando assim o ato da escrita em uma prática requintada. Deste
modo, a elas cabiam os diários, os livros de receitas que eram repassados pelas gerações. Nos
quais elas deixavam suas marcas, conselhos e ensinamentos para as futuras gerações de
jovens de sua família.
O silêncio imposto era quebrado de forma criativa pelas mulheres, para tanto faziam
uso dos que lhes era ofertado e permitido para trazer a tona seus posicionamentos diante do
momento histórico em que estavam inseridas. Tal prática é seguida até hoje. O que
percebemos que o quê muda são os meios, mas as estratégias são semelhantes. De acordo com
191
Simone de Beauvoir – Segundo Sexo.
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Bourdieu:
A escrita abole as determinações, as sujeições e os limites que são
constitutivos da existência social: existir socialmente é ocupar uma
posição determinada na estrutura social e trazer-lhe as marcas, sob a
forma, especialmente, de automatismos verbais ou de mecanismos
mentais, é também pertencer a grupos e estar encerrado em redes
relações que têm a objetividade, a opacidade e a permanência da coisa
que se lembram sob a forma de obrigações, de dividas, de deveres, em
suma, de controles e de sujeições. (BOURDIEU, pág. 42-43, 1996).

Segundo Virginia Wolf em seu ensaio Um teto todo seu, “a mulher precisa ter dinheiro
e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção” (WOOLF, p. 8). Visto que a produção
ficcional feminina traz com sigo uma série de idiossincrasias dos mais diversos aspectos para
suas produtoras. Deste modo é indispensável que a escritora disponha de mecanismos que a
ajude a se manter se necessitar do lucro que seus livros renderiam, para que assim não padeça
tão duramente das forças externas sobre a sua ficção.
...penso que vocês podem levantar a objeção de que fiz demasiado
alarde da importância das coisas matérias. Mesmo concedendo uma
generosa margem ao simbolismo, no sentido de que quinhentas libras
por ano representam o poder de contemplar, e de que a fechadura da
porta significa o poder de pensar por si mesma...(WOOLF, p. 130,
1928).

Woolf deixa claro que o confinamento vivenciado pelas mulheres, não lhes garantia
qualquer tipo de privacidade, sendo assim elas não tinham espaço para reflexão, tão
indispensável para a escrita. A elaboração textual tem início bem antes do ato da escrita, ela
inicia quando o sujeito reflete sobre algo e este o motiva para a escrita. A reflexão é parte
fundamental na produção, visto que é ela quem desencadeia o processo produtivo.
Tal fato pode nos auxiliar a pensarmos nos porquês da prosa feminina ter sido
enquadrada no adjetivo que a qualifica como menor. O primeiro ponto que nos auxilia neste
entrave é o fato das escritoras não disporem do alento silencioso de um quarto próprio, como
nos lembra Wolf, no qual pudessem ousar debater sobre os mais diversos assuntos, sem que o
pai ou irmãos ficassem espreitando o que era manifesto pela pena feminina.

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Outro fator interessante que deve ser levado em conta quando falamos de escrita
feminina é que o mercado editorial sempre foi de domínio masculino, logo tudo que fugisse
do “gosto” deste não teria espaço nas tiragens editoriais. Ao debruçarmos sobre a história da
literatura, vemos que a ficção feminil foi sempre posta em subcategorias, que
automaticamente menor.
“... os autores não brotam espontaneamente de suas obras. Eles
precisam ser construídos, fabricados de acordo com regras específicas.
Precisam se situar dentro do espaço ocupado por outros autores,
disputar com eles as posições que estão disponíveis nesse espaço,
como os livros disputam os espaços de uma prateleira já abarrotada”
(COLONETTI, p. 8, 2014). (observe as normas para citação longa)

A indagação central das questões tocantes ao feminino encontra-se na dominação do


seu discurso. Segundo Bourdieu, uma das censuras mais eficazes consiste na exclusão de
alguns agentes da comunicação. Quando o patriarcado usurpa o direito à fala, ele exerce o seu
poder de dominação. Percebemos, aqui, que não se trata apenas do “não falar”, mas sim, da
não aceitação do discurso elaborado pelo “belo sexo”, como se pelo fato de ser belo, isto
excluísse as qualidades intelectuais.
O ato de escrever um livro sempre trouxe, em si, uma questão de status. Sua publicação
carrega um simbolismo próprio para o autor: o de ter suas ideias disseminadas, passíveis de
serem lidas e, dessa forma, tornar-se integrante da casta dos seres superiores, aqueles que se
atreveram a adentrar no cosmo literário, permite-se ser observado, julgado, analisado em seus
mínimos detalhes. Escrever é um ato para poucos, na medida em que a literatura estabelece
papéis públicos para seus (a) escritores (a). Margaret Atwood192, de forma clara, estabelece a
seguinte comparação:
Segundo Gilbert193 e Gubar194 (1984, p. 45) a mulher escritora detende a expressar em sua
obra, experiências eminentemente femininas e a partir de perspectiva feminina. Por

192
Margaret Eleanor "Peggy" Atwood é uma escritora canadense: romancista, poetisa, ensaísta e contista, que
foi reconhecida com inúmeros prêmios literários internacionais importantes. Envolveu-se no diálogo intelectual
feminino no Victoria College, na Universidade de Toronto, frequentemente retrata personagens femininas
dominadas pelo patriarcado em seus romances.
193
Sandra M. Gilbert (nascida em 27 dezembro de 1936, Nova York), professora emérita de Inglês na
Universidade da Califórnia. É uma influente crítica critica literária e poeta. Dedicou-se amplamente nos campos
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apresentarem tais características, costumeiramente os críticos tendem a rejeitá-la, posto


considera de um nível de significação “menor”, configurando, deste modo, um projeto de
produção falho na perspectiva de uma leitura mais óbvia e, socialmente, mais aceitável. Nesse
contexto, o que pertence ao feminino não cabe aos demais.
A escrita feminina mostrou-se, ao longo da história, como uma prática libertadora ao
feminino, pois se tornou palco para a sua fala. Tal faculdade, porém, não exclui o sujeito
masculino de suas linhas. Não é porque o texto é de escrita feminina que ele não trate do
masculino ou tenha suas narrativas protagonizadas por homens. Para Nessa Guedes – “E aí,
existe literatura feminina?” - quando uma escritora dá vida a um protagonista homem, ela
expõem a visão que detém sobre o universo desse, visto que a arte é construída a partir da
perspectiva de seus elaboradores. Deste modo é comum que as prosistas privilegiem o
universo que lhes é nato, condicionante que faz emergir fatos e perspectivas que, usualmente,
foram ignoradas e silenciadas pela cultura patriarcal. A literatura (de expressão) feminina se
apresenta de forma dual, aproximando-se do discurso tradicional, mas introduzindo elementos
novos que fogem ao conceito de habitual, subvertendo-o deste modo.
Como já citado o mercado editorial não é adepto a retratar temas que fujam da ossada do
corpo editoria branco - classe média - heterossexual. Fator que podemos constatar se
observarmos os números da Flip – Feira Literária Internacional de Paraty, evento literário
mais importante do Brasil. Das 13 edições da feira, apenas uma escritora foi homenageada:
Clarice Lispector. Segundo Laura Folgueira, umas das idealizadoras do projeto KD Mulheres
– um twitter criado para falar sobre escrita feminina- assim como sobre a importância de
mulheres a frente das feiras literárias.
“Laura relatou que a cadeia que culmina com poucas escritoras
recebendo visibilidade e/ou sendo publicadas está calcada em vários
nós, começando com a insegurança da mulher em mostrar seus
escritos e se assumir escritora (mulheres são mais cobradas que os

da crítica literária feminista, teoria feminista e crítica psicanalítica.


194
Susan D. Gubar (nascida em 30 de novembro de 1944), emérita de Inglês e Estudos da Mulher na
Universidade de Indiana. Ela e Sandra M. Gilbert coautora do texto padrão feminista, A Louca no Sótão: O
Escritor Mulher e da imaginação literária do Século XIX (1979) e uma trilogia sobre a escrita das mulheres no
século 20.

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homens? A pouca representatividade influencia essa falta de


coragem?), passando pela restrição das mulheres a determinados
nichos literários e culminando com menos títulos de mulheres
oferecidos no mercado e, consequentemente, com menos prêmios,
menos resenhas, etc”. (RODRIGUES, 2015).
Segundo a professora e pesquisadora Regina Dalcastagné, em seu estudo sobre A
personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990 – 2004, os grupos minoritários
recebem uma valorização negativa das esferas dominantes:

“O silêncio dos grupos marginalizados – entendidos em sentido amplo, como todos


aqueles que vivenciam uma identidade coletiva que recebe valoração negativa da
cultura dominante, sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição
nas relações de produção, condição física ou outro critério – é coberto por vozes que
se sobrepõem a ele, vozes que buscam falar em nome desses grupos, mas também,
embora raramente, pode ser quebrado pela produção literária de seus próprios
integrantes”. (DELCASTAGNÉ, 2005, pág. 3).

A junção entre o medo de visibilidade, juntamente com o mercado pouco favorável ao texto
lésbico, faz da internet um espaço privilegiado para a publicação da ficção feminina. A
medida que possibilita um tráfico pautado em uma exposição do fruto ficcional em caráter
imediato. Deste modo deixando à margem questões como aval de corpo editorial, por
exemplo.
As inovações no campo da informação, assim como no das comunicações possibilita uma
gama de alternativas para o artefato literário lésbico, visto que se mostram menos fixas no
195
tocante à “dominação simbólica” . Assim o acesso ao espaço dos blogs é realizado de
forma menos rígido. Segundo RIBEIRO, CERQUEIRA e CABECINHAS, 2008 “a questão
do acesso dos elementos femininos ao meio digital tem sido uma das prioridades de actores
políticos globais como a UNESCO, que consideram que se trata de uma ferramenta crucial
para o empoderamento das mulheres.”.
Quando o patriarcado usurpa o direito à fala, ele exerce o seu poder de dominação
mais eficaz. Percebemos, aqui, que não se trata apenas do “não poder falar”, mas também, da
não aceitação do discurso elaborado pelo feminino.
A possibilidade de narrar sobre a existência de verdades discordantes com as ditas pela

195
Pierre Bourdieu – Dominação Masculina.
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hegemonia social, faz do blog uma ferramenta de mais-valia. À medida que concede a
proliferação de percepções distintas.
Diana Klinger em “Escrita de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na
narrativa latino-americana contemporânea” traz questões bastante frutíferas no tocante a
experiência da fala de si. O “retorno a o autor” é uma prática que vem se tornando recorrente
na literatura latino-americana hodierna.
Tomemos o conceito de autobiografia para Philippe Lejeume: “narrativa retrospectiva
em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história
individual, em particular a historia de sua personalidade”. Mais a frente ele fala que o que
distingui ficção de autobiografia é o pacto selado direta ou indiretamente que é estabelecido
entre o leitor o escritor. Visto que é do leitor que estabelece o sentir-se como o personagem
criado e assim ver-se representado ou não. Assim o que está em jogo são questões
relacionadas à referencialidade e à ficção.
Em pleno século XXI a mudez ainda faz parte do cotidiano feminino, derivado das
forças que o patriarcado exerce. Assim as mulheres continuam buscando meios de
exteriorização de suas questões. Desta ânsia pelo intento de visibilidade é que o uso das TCIs
– Tecnologias da Comunicação e Informação surgem como uma alternativa viável para
desempenhar tal função, posto que apresenta uma vasta e crescente difusão.
No tocante à disseminação do pensamento feminino pelas TCIs o blogue irrompe
como um dispositivo que versa sobre vasto grau de interatividade, fato que possibilita uma
plasticidade do que é produzido. Princípio este, que auxilia no processo de identificação entre
o leitor e o texto. À medida que o leitor deixa a passividade da leitura para integrar o corpo
escritor da obra. Podemos afirmar que existe espécie de fundição entre o papel do leitor e da
função do escritor.
O blog ABCLes196surge como um bom exemplo para análise de como o fenômeno
supracitado ocorre, ao passo que as leitoras deste dispõem de um contato quase que imediato
com as escritoras das histórias lidas. A partir do uso da ferramenta comentário, as leitoras

196
Nascido em 2008 como o primeiro portal de literatura lésbica da internet brasileira, o ABCLES atrai público
específico de mulheres interessadas em uma escrita feita especialmente para elas. Conta com histórias, colunas,
notícias do movimento LGBTT e divulgação de eventos culturais.
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interagem quase que em tempo real com as escritoras, podendo propor “ingredientes” para a
história, assim como auxiliar na reescrita ou até mesmo sugerir fins desejados para os textos.
Outro ponto de suma significância deste contato são os incentivos motivacionais que são
dados para as escritoras. O blog foi idealizado pela escritora e artista visual Danieli
Hautequest como um recanto para a divulgação de histórias voltadas para o público lésbico.
O blog é direcionado para toda e qualquer menina que queira publicar seu texto. Não
há corpo editorial ou qualquer tipo de pré-requisito para ter o texto colocado na grande rede.
O que proporciona uma propagação da essência subjetiva que compartilhada pela escrita de si.
Deste modo o blog pode ser entendido como uma nova forma de escrever sobre si.
Os diários eletrônicos representam uma chave de acesso para o mundo da escrita,
assim como para a representação das minorias, na medida em que viabiliza o acesso a voz, ao
direito de expressar-se, de construir um discurso sobre si sem que aja um intermediário no
processo. As mídias representam um forte aliado na propagação e formação de ideias, por isto
elas são tão representativas para as minorias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O homem ao longo do percurso histórico consagrou-se como o dotado do espaço “de
fora da casa” e a mulher “de dentro da casa”. Assim ao masculino coube a socialização em
ordem macro. Tal procedimento fez com que o homem desenvolvesse sua capacidade de
liderar os bandos, assim como a ampliação da sua habilidade argumentativa. O discurso marca
a organização do masculino ao longo da história.
A experiência feminina foi eviscerada por fatores de ordem simbólica, os quais influenciaram
na alienação da condição feminina. Poucas insurgiram contra esta condicionante e colocaram-
se em movimento contrário. Nadaram contra a maré social e se colocaram como geradoras de
seu próprio discurso, mesmo que este fosse visto como menor, à medida que era perpassado
por elementos de seu universo.
A literatura mostrou-se como um forte aliado do feminino na construção de um contra
discurso sobre a moral hegemônica, visto que ela propicia a formulação de uma imagem de si
a partir das experiências vividas pelo sujeito escritor. Escrever sobre quem são faz com que o
feminil alicerce sua construção simbólica sobre fortes vigas, fator desencadeador do processo
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de representatividade por parte destas. A literatura retira o feminino da passividade discursiva.


A emancipação pela palavra representa uma mais-valia para o feminino, visto que a mudez
fez parte de sua pedagogia. As TCIs vêm auxiliando no escoamento do artefato ficcional do
feminino, assim como na construção de espaços voltados para a difusão das ideias do cosmo
feminino.
Dentro as TCIs os blogs literários revelam-se como espaço dinâmico na publicação textual,
visto que eles apresentam como marco central o processo de interação entre leitor e escritor.
Esta metodologia interacional auxilia na construção no processo da escrita de si como meio de
representatividade das questões femininas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATWOOD, Margaret. Negociando com os mortos: a escritora escreve sobre seus


escritos. Trad. Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
BOURDIEU, Pierre, As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário, trad. de Maria
Lúcia Machado, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
COLONETTI, Milton. Incubadoras literárias: o lugar do contemporâneo no campo da
literatura brasileira. 2014. 281 f. Tese (Doutorado) - Curso de Letras, Letras, Faculdade de
Letras Programa de Pós-graduação Tese de Doutorado em Letras, Porto Alegre, 2014.
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femininas na blogosfera: um olhar sobre a realidade do Minho. Porto: Observatório do
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DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura Brasileira Contemporânea em Território Contestado.
São Paulo: Editora Novo Horizonte, 2012.
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<http://lugardemulher.com.br/e-ai-existe-literatura-feminina/>. Acesso em: 12 ago. 2015.
GILBERT, Sandra M. et GUBAR, Susan, The madwoman in the attic: The woman writer and
the nineteenthcentury literary imagination. New Haven, Yale University Press,1984.
KLINGER, Diana. Escritas de Si, Escritas do Outro. Rio de Janeiro: 7LETRAS, 2012.
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LEJUEME, Philippe. O pacto autobiográfico: De Rousseau à Internet. Belo Horizonte:


Ufmg, 2008.
MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006.
RODRIGUES, Vanessa. KD Mulheres: escritoras, mercado e visibilidade. 2015. Disponível
em: <http://blogueirasfeministas.com/2015/07/kd-mulheres-escritoras-mercado-e-
visibilidade/>. Acesso em: 01 ago. 2015.
WOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Nova Fronteira, 1928.

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O FEMININO NO CANGAÇO: DISCURSOS SOBRE A CANGACEIRA MARIA


BONITA (1930-1938)

Nadja Claudinale da Costa Claudino197| nadjaclaudino@yahoo.com.br


Rayana Benicio de Oliveira198

O cangaço é um fenômeno que gerou e gera muito interesse nas pessoas, enorme
curiosidade, como se cada um, mesmo sem nunca ter estudado o assunto tenha algo a falar,
quase sempre por “ouvir dizer”. Por meio desse processo são perpetuadas e difundidas muitas
imagens dos cangaceiros e das mulheres cangaceiras. Nesse contexto, as imagens elaboradas
em torno das mulheres cangaceiras foram enunciadas de maneira paradoxal, com divergência
nas caracterizações feitas, dentre outros, pelos estudiosos, cordelistas e imprensa. As práticas
e vivências da mulher no cangaço se configuraram como exceção às regras, e foram
enunciativas para as imagens elaboradas acerca da mulher cangaceira na historiografia e na
literatura de cordel, positivando-se social e culturalmente, mas, foram pouco analisadas de
modo sistemático na perspectiva que ora propomos: a de problematizar tais elaborações.
Trabalharemos com algumas escritas sobre Maria Gomes de Oliveira199, conhecida
na sua comunidade como Maria Déa,200 nascida no dia 08 de março de 1911, na fazenda
Malhada da Caiçara, município de Santa Brígida, no estado da Bahia e que entrou para a
história com o nome de Maria Bonita. A história de vida de Maria Bonita é pensada pelos
estudiosos do cangaço não só pelo viés de sua trajetória de cangaceira, mas antes mesmo de
sua entrada no cangaço, por isso seu casamento, sua vida familiar, os motivos que fizeram

197
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB. nadjaclaudino@yahoo.com.br
198
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB. rayanabenicio@yahoo.com.br
199
Foi a primeira mulher a integrar um bando de cangaceiros, sendo companheira de Lampião, de 1930 a 1938,
ano da morte dos dois.
200
Era chamada assim por conta do nome de sua mãe, que se chamava Déa. Então para diferenciá-la de outras
Marias chamavam-na de Maria de dona Déa, que foi abreviado para Maria Déa.
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dela a primeira mulher a entrar no bando de Lampião são bastante discutidos. Muitas são as
versões para uma mesma história, de modo que as imagens formuladas sobre a “Rainha do
Cangaço” também são diversificadas. Muitos se apropriam de sua história, escrevendo sobre
uma mulher cheia de virtudes ou, ao contrário, uma mulher leviana, usada para aplacar os
desejos “doentios” de um “sátiro” governado por “super-sexualismo” (PRATA, 2010), que
demonstra nessa sua fala repleta de preconceitos o que nos adverte Lins (1997, p. 129) “É
como se para o imaginário masculino a mulher não existisse como sujeito. Ela seria ou um
objeto de consumo ou algo a ser ingerido, “comido”, ou ainda um outro homem.” Por isso o
corpo de Maria Bonita é examinado, sua sexualidade é “exacerbada” sendo colocada em foco
na cena de sua vida, suas lutas e inquietudes são cobertas pelo manto do sexo soberano,
sempre falado e imaginado. “Entre seus emblemas, nossa sociedade carrega o do sexo que
fala. Do sexo que pode ser surpreendido e interrogado e que, contraído e volúvel ao mesmo
tempo, responde ininterruptamente” (Foucault, 2014, 85). O dispositivo da sexualidade de que
nos fala Foucault (2014), a vontade de verdade sobre o sexo, a curiosidade e repulsa que ele
causa, o silêncio eloquente dos discursos sexuais, o controle do sexo, dispositivo de poder
dotado de vários instrumentos de dominação e anulação dos seres. Principalmente dos seres
femininos.
Com a entrada das mulheres, o cangaço da sua função bélica passa a ter uma função
amorosa e erótica nos textos dos memorialistas, as mulheres se entregando ao sexo, “sexo
animalesco”, “impuro”, porém desejado. Esse novo imaginário sexual parece dar uma
dimensão mais rica de significados ao cangaço. Lampião emerge como guerreiro apaixonado,
Maria Bonita, um corpo a ser possuído, tanto na época em que viveu, pelos homens que a
desejavam, como agora por homens que sentados nas suas cadeiras, participando dos diversos
grupos de estudiosos do cangaço, se apropriam do sexo dessa mulher, atribuindo nos seus
textos o papel, o paradoxal papel, de santa ou puta. Como nos adverte Swain, os homens
percebem as mulheres principalmente pelos aspectos ligados à sexualidade. “[...] já que os
papeis atribuídos socialmente às mulheres passam pela sedução, casamento, procriação,
prostituição (Swain, 2008, p.287).
No cangaço o feminino se manifesta, ousa ao romper a tradição sertaneja,
memorialistas e cordelistas tentam através dos textos explicar essa participação feminina.
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Assim atentamos para o uso da imaginação desses autores, como lugar de definição e
construção de uma Maria Bonita “conhecida” por quase todos.
Para Castoriades (1986) a base de todo o pensamento se organiza em função da
imaginação e do imaginário. Por ser parte integrante da natureza humana, o imaginário é uma
dimensão significativa das sociedades. Castoriades (1986, p.192) afirma ainda que: “É
impossível compreender o que foi, o que é a história humana, fora da categoria do
imaginário”. Por isso, a questão central da investigação é a de problematizar as imagens que
os autores (re)produzem sobre Maria Bonita e de como, ao fazer isso, estão representando a si
mesmo e ao mundo em que vivem.
Segundo Teves (2002, p.64)
Enquanto sistema simbólico, o Imaginário Social reflete práticas sociais em que se
dialetizam processos de entendimento e de fabulação de crenças e ritualizações.
Produções de sentidos que consolidam na sociedade, permitindo a regulação de
comportamentos, de identificações, de distribuição de papéis sociais.

Neste sentido, compreendo o imaginário como o conjunto de imagem que estão


guardadas no inconsciente coletivo. Lá estão depositadas as imagens sociais e mentais. As
representações e memórias sociais são abarcadas pelo imaginário. São imagens mentais,
culturais, que aparecem através da representação que delimita e explica um comportamento
social. Imagens que se positivam social e culturalmente por meio de sua instituição e de um
discurso que delimita lugares e práticas diferenciadas para os homens e mulheres. Podemos
inferir que o imaginário de um grupo social fala muito sobre a construção da imagem desse
próprio grupo, pois segundo Swain, (1994, p. 48)

O imaginário trabalha um horizonte psíquico habitado por representações e imagens


canalizadoras de afetos, desejos, emoções, esperanças, emulações; o próprio tecido
social é urdido pelo imaginário – suas cores, matizes, desenhos, reproduzem a trama
dos fios que engendrou.

Assim percebemos que alguns estudiosos do cangaço, analisados nesse texto, trazem
à tona aspectos negativos sobre Maria Bonita, muitos outros saem em sua defesa. Em razão
disso, consideramos que, ao entrar na história, ela tem sua imagem controlada pela ideologia
de outros que lhe dão forma seja na historiografia, na memória ou no cordel.
Assim também não nos furtaremos de imaginar essa mulher. Pensando na
compreensão de Prost (1996, p. 244): “Entretanto, no mesmo instante, o historiador procura
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levar o leitor a se representar o objeto de seu estudo. Para isso, faz apelo à sua imaginação e
não somente a sua razão”. Percebendo que o imaginário é muito presente nessa história de
homens e mulheres que enquanto viviam na caatinga só eram representados pelo olhar de uma
elite “culta”, branca e litorânea, portanto, afastada por questões geográficas e intelectuais, do
sertão e dos cangaceiros. As lacunas dessa história são preenchidas com a imaginação dos
autores. Em artigo que condena as “mentiras” contadas sobre o cangaço um estudioso do tema
ligado a SBEC201 defende “As inverdades rondam o mundo do cangaço como se fossem
tatuagens impregnadas na epiderme da história, fatos imaginários são tidos como verdadeiros
e propagados com a velocidade do raio” (LIMA, 2010, p. 41).
Percebemos que esses autores geralmente procuram apreender o “real” sobre a vida
de Maria Bonita e condenam o imaginário a um estatuto de inverdade. Podemos notar nesses
discursos o que Foucault (2013) chamou de vontade de verdade, que se transforma em um
sistema de exclusão de outras histórias possíveis. Ao analisamos os discursos acerca da vida
de Maria Bonita não estaremos investigando quais são as elaborações “falsas” ou
“verdadeiras”. Pois como nos alerta Swain (1996, p.130),
A busca do real em história é nos dias atuais e a partir de uma certa perspectiva
teórica, uma tarefa inútil, pois a realidade do passado chega ao presente através de
uma série de meditações, a partir do próprio sujeito que interroga os sentidos na
vereda do tempo.

Portanto, analisamos como esses discursos falam sobre quem os escrevem, seus
enunciados, suas significações e as tramas discursivas e seus jogos de poder através do que
foi pensado por Foucault (2013, p.10). “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar”. Analisamos as lutas de poder entre os escritores, sejam memorialistas
ou cordelistas, que engendraram as imagens e os discursos sobre a cangaceira Maria Bonita
e as construções identitárias que estas imagens instituem no imaginário social.
Trazemos aqui alguns exemplos dessa escrita sobre meu objeto de pesquisa. Em
LIMA; MARQUES (Orgs.) (2010), os autores tratam a infância de Maria Bonita baseados na
201
Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, com sede na cidade de Mossoró no Rio Grande do Norte. A
SBEC tem estatutos, mas parece não se preocupar em fazer uma história sobre associação. Ainda não tive
contato com esses estatutos, mas pretendo perceber as normas de ingresso e de como a produção de livros é
pensada pelos sócios.
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imaginação, pensam dessa maneira uma Maria Bonita que nasceu inocente, não predestinada
a uma vida cheia de percalços como foi a sua, uma menina que teve inquietações, sonhos,
angústias e medos próprios da sua idade e do seu tempo. Tendo uma vida plena de sensações:
“Se feriu, nos tantos espinhos, filetes de sangue a manchar-lhe a pele, a pele morena, morena
tão bela. Sarou feridas, criou cicatrizes. Sentiu saudades, essas muito mais que todos”.
(LIMA, In: LIMA; MARQUES (Orgs), 2010, p. 46).
Maria Bonita, nessa elaboração, teria sentido dores (dores da alma, dores físicas) e
saudades maiores do que as outras pessoas. O autor confere, através de seu texto, uma
dimensão poética sobre os caminhos trilhados por ela no cangaço. Por mais que tenha se
ferido e sofrido mais que os outros, ela teve o gozo de poder sentir a natureza de forma mais
próxima. Surge assim uma mulher natureza, pronta a receber o cheiro e mesmo as agressões
da flora sertaneja, com seus espinhos que lhe machucavam a pele, que para o autor era uma
pele morena, bela, reforçando dessa forma mais uma vez a imagem de beleza excepcional que
é atribuída a nossa personagem.
Uma Maria Bonita pusilânime, cabeça de vento, vaidosa em demasia, é descrita pelo
memorialista Alcino Alves da Costa no seu livro Lampião Além da Versão, Mentiras e
Mistérios de Angicos (2011). Costa se refere à Maria Bonita enfocando a sua juventude,
“Matutinha atirada, cheia de dengos, bonitinha, malcriada, faceira, alegre e apetitosa”.
(COSTA, 2011, p. 125). Essas características para o autor já apontavam para Maria um
destino diferente das outras moças. Sua formosura e independência não eram apropriadas à
uma vida anônima. “Positivamente, aquela caboclinha não era mulher para fazer a vida e ir
para uma cama com um paradão e desconsolado como o sapateiro de Santa Brígida”.
(COSTA, 2011, p. 125) Assim, nos é mostrada uma mulher com a sexualidade a flor da pele,
uma sexualidade julgada inadequada para o matrimônio nos moldes de sua época. Ao mesmo
tempo, o autor fala do primeiro marido de Maria Bonita com desdém, descrevendo-o como
um homem, ou meio homem, fraco, não afeito a violências e a arroubos amorosos, sem
capacidade para a decisão. Já Maria, é perfilada por ele como toda mulher, a precisar de um
homem forte, encontrando no cangaceiro, chefe do bando mais importante a exacerbação da
masculinidade, dada pela violência do sexo muitas vezes praticado a força, como pela
violência de um punhal pronto para sangrar os inimigos. Assim aparecem a definição dos
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papeis sociais a serem desempenhados pelo masculino e pelo feminino. Homens valentes e
poderosos, mulheres belas e dóceis. Swain (2000, p.48) reflete sobre a delimitação dos papeis
sociais quando diz.
No cadinho das práticas sociais o “eu” se forja em peles, delimitando corpos
normatizados, identidades contidas em papéis definidores: mulher e homem, assim
fomos criados, por uma voz tão ilusória quanto real em seus efeitos de significação,
cujos desígnios se materializam nos contornos do humano.

Por isso, mesmo autor que traz à tona a suposta traição de Maria Bonita a Zé de
Nené, seu primeiro marido, tenta reabilitá-la quando diz que ao conhecer Lampião: “Maria se
tornou a extraordinária amiga, a grande companheira, a mulher que guardava o mais absoluto
respeito pelo seu amante (COSTA, 2011, p.126).”
Para ele com a entrada no cangaço Maria deixa de ser a mocinha frívola, a esposa
adúltera e passa a ser a amante companheira, confidente, dona do destino de seu homem,
mulher merecedora do título de Rainha do Cangaço. Além de fazer a antiga Maria Déa
renascer sob a figura apaixonada e respeitável de Maria Bonita, o autor dá uma dimensão
heroica ao amor dos dois, uma parceria pautada na confiança, pois um homem que vivia
escondendo-se dos inimigos, não poderia confiar sua vida a uma mulher como a antiga Maria
Déa, agora renascida no cangaço como Maria Bonita. Para Mello (2012) Maria Bonita era
uma parte do corpo de Lampião, ajudando-o com o peso da própria vida e das cargas que
levavam:

Como poderia ainda o Rei do Cangaço, por cima de tudo, quanto vimos, honrar o
lastro-ouro de sua fazenda real, da ordem de 5kg, costurado ou cravado por todo o
equipamento, o restante jazendo nos bornais – correntes, anéis, moedas, lapiseiras,
tabaqueiras, tesoura de aparar charuto, relógio de algibeira, botões de punho e de
colarinho, cacos de jóias, tudo no metal nobre, embora em quilates variados – sem
se valer do concurso confiável e da resistência jovem de Maria Bonita, a um
tempo mulher e escudeira exemplar de seu homem? (MELLO, 2012, p. 146,
grifo nosso)

Ela era a única pessoa no bando que poderia dominar Lampião, pois com sua
meiguice adoçava-lhe o espírito combativo. Assim, a bela Maria acalmava o valente Lampião:
Suas palavras e jeito doce eram cheios de ternura. “E, passando as mãos pelos seus cabelos,
alisava-os carinhosamente, pedindo calma” (COSTA, 2011, p.126).
Dessa forma o autor define o papel feminino e masculino. A mulher doce, incapaz do
arrebatamento da violência, com sua calma e talento para a paz conseguia pelo amor controlar
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os instintos violentos dos homens, sempre prontos para a guerra, mas também prontos para se
deixarem seduzir pelos encantos femininos. Essa imaginada “vocação amorosa” das mulheres
que encontrou expressão em Maria Bonita é descrita pelo autor quando ele diz: “Foi Maria
Bonita, sem dúvida, o maior símbolo do amor e dedicação em toda a história cangaceira.”
(Costa, 2011, p. 126). A bondade de Maria Bonita é muitas vezes enfatizada, além disso sua
falada beleza é valorizada.
Maria Bonita, mulher que entrou para a história carregando o adjetivo de bonita ao
nome Maria, nome feminino por excelência, nome da mãe de Cristo, nome da prostituta mais
famosa da história Maria, a Madalena, que depois se arrepende e vira santa, nome de muitas
mulheres brasileiras, sertanejas: Maria de Lourdes, de Fátima, da Paz, dos Anjos, Maria
Bonita. O bonita do nome remete a uma beleza alvo de muitos debates. Suas fotos são sempre
interrogadas, sua beleza é procurada, sendo encontrada por uns e rechaçada por outros. Os
questionamentos e as expectativas sobre a beleza de Maria Bonita não deixaram de existir
nem depois de sua morte. Seu corpo trucidado ficou em Angicos202 servindo de pasto para os
urubus. Porém as cabeças dos cangaceiros transportadas em latas de querosene peregrinaram
de cidade em cidade servindo como prova de que o bando de cangaceiros que aterrorizava o
Nordeste estava acabado. As pessoas ao verem a cabeça de Maria logo perguntavam olhando
suas feições já disformes pela morte: Se era mesmo bonita a Maria Bonita? Gruspan (2006,
p.315) nos fala disso ao descrever como os jornalistas narraram a curiosidade que a cabeça de
Maria Bonita despertou na população sertaneja. “Paradoxalmente todos os jornalistas
insistiram na beleza do rosto de Maria Bonita”.

A mulher de “Lampeão” não foi atingida por nenhuma bala no rosto, conservando
uma physionomia serena, mostrando ter sido, em vida, um bello typo de cabocla
nordestina, com as linhas do rosto perfeito, lábios finos e duros. Bonita ainda depois
da morte. Serena sem rictus.
E quando o público desfilava deante dos tropheos trágicos, muita gente se
emocionou, vendo a cabeça de Maria Bonita, a sertaneja que fizera de Lampeão um
heroe a seu modo, seu companheiro de 12 annos de tragédia através o sertão,
enfrentando soldados, vencendo a galope as caatingas incendiadas pelos
perseguidores. (MELLO, Apud, GRUSPAN, 2006, P. 315)

202
A Fazenda Angicos, localizada no sertão de Sergipe, foi o local onde Lampião, Maria Bonita e mais nove
cangaceiros foram executados pelas tropas da força volante do tenente João Bezerra e do sargento Aniceto
Rodrigues da Silva, na manhã do dia 27 de julho de 1938.
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Mas o que é a beleza? Porque é tão cobrada das mulheres? Wolf (1992) faz essas e
outras perguntas e nos diz que a propagada beleza feminina é mais uma forma de controle
social, aprisionando as mulheres no desejo de se fazerem belas e cobiçadas. Sendo uma das
causas do sofrimento feminino ao impedir a libertação das mulheres, presas fáceis das
cirurgias corretivas, das dietas mirabolantes, de condutas exigidas de forma acintosa por uma
sociedade marcada pelo culto a uma beleza que se modifica com o tempo, mas que quase
sempre impõe padrões inalcançáveis às mulheres. Maria Bonita em vida e depois de morta
sempre foi julgada a partir de sua beleza, assim também apareceram muitos discursos em que
ela é criticada duramente como uma mulher vulgar, sem rastros de formosura que não fosse
apenas admirada por um criminoso como Lampião.203
A beleza ou a falta dela é, muitas vezes, citada nos livros por alguns autores que
escrevem quase num arrebatamento de paixão sobre Maria Bonita. Araújo (2012) colheu
depoimentos de pessoas que conviveram com Maria Bonita, antes dela ser cangaceira e depois
de entrar no cangaço, para escrever Lampião as Mulheres e o Cangaço. Nesse livro, o maior
capítulo é o que fala sobre Maria Bonita e discute a sua aparência. O autor apresenta Maria
Bonita na idade em que conheceu Lampião, defendendo que “Teria ela nessa ocasião dezoito
anos, morena, cabelos pretos, rosto mais para o redondo, nariz proporcional e bem feito,
lábios cheios em boca de dentes perfeitos, pernas grossas. O traseiro batido segundo Balão”
(ARAUJO, 2012, p. 73). Como se deduz, nessa elaboração, Maria Bonita possuía todos os
atrativos desejados pelo autor para seduzir o Rei do Cangaço, sua aparência resplandecia
beleza, feminilidade e juventude necessárias para fazer Lampião quebrar as regras tácitas de
não aceitar mulheres no cangaço. Pois, “O mito da beleza tem uma história a contar. A
qualidade chamada “beleza” existe de forma objetiva e universal. As mulheres devem querer
encarná-la, e os homens devem querer possuir mulheres que a encarnem” (WOLF,1992,
p.15). Nos discursos, tudo leva a crer que no imaginário sertanejo um homem como Lampião,
poderoso e rico, não iria escolher para si uma mulher que não fosse a mais bela entre as belas.
Desse imaginário da beleza da mulher de Lampião surgiu o nome - Maria Bonita -204, que foi

203
Ver GÓIS, Apud, LINS, 1997, p. 58.
204
Até hoje não se chegou a um consenso de como (tenha surgido) surgiu o nome Maria Bonita. Sabe-se pelos
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propagado dentro das volantes, mais para o final do cangaço. Porém, nem todas as opiniões
sobre as cangaceiras são no sentido de dignificá-las. Maria Bonita, por exemplo, foi também
agredida por meio de textos. Joaquim Gois, que diz tê-la conhecido pessoalmente, fala de
Maria Bonita de forma agressiva e preconceituosa, tirando dela qualquer qualidade. Mesmo
quando é para desmistificar, Maria Bonita não é tratada com indiferença, até seus inimigos se
sentem fascinados de alguma maneira por ela. É descrita por alguns como uma cabocla sem
atrativos, de peitos caídos, sem graça, feminilidade e ternura “próprias” da mulher. Eram
muitas vezes vistas como mulheres brutais, feras humanas, ainda mais marginalizadas do que
os homens. A mulher cangaceira também foi odiada nos textos:

(...) ao tentar descrever a “sociologia” das mulheres no cangaço, certos autores vão
vomitar seus próprios demônios, acordar seus medos infantis, numa narração que
confirma um etnocentrismo radical e a fobia à mulher como corpo e sexo perigoso,
néctar misturado ao veneno. (LINS, 1997, p.194).

Por tudo que foi exposto, acreditamos que as imagens e os discursos formados em
torno de Maria Bonita acabam engendrando lutas de poder entre os autores estudiosos do
cangaço. Os textos fazem nosso objeto de estudo refém das elaborações masculinas sobre a
feminilidade. Maria Bonita, não deu entrevista, nunca foi ouvida por jornalistas, não deixou
escritos, mas esse silêncio foi se fazendo espaço propício para que memorialistas, jornalistas,
cordelista formulassem a Maria Bonita que atendesse a seus interesses, reforçando imagens
ideias do feminino e das relações amorosas entre homens e mulheres, criando assim um
romance para o cangaço, romance protagonizado por uma mulher capaz de sacrifícios pelo
amor, e por um homem encantado por uma beleza incomum que o fez abrir as portas do
cangaço para essa mulher, assim são silenciadas a vontade de participar de uma luta, a fuga
de uma vida de dificuldades, a vontade de liberdade e um protagonismo feminino na vida
cangaceira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Antônio Amaury Correia de. Lampião, As Mulheres e o cangaço. São Paulo:

testemunhos de ex-cangaceiros que a (mulher de Lampião) não era tratada por esse nome dentro do grupo.

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Traço Editora, 2012.


CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e
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COSTA, Alcino Alves. Lampião além da versão: Mentiras e mistérios de Angicos.
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FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber.
Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz
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__________. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2
de dezembro de 1970; tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. -23.ed – São Paulo:
Edições Loyola, 2013.
GRUSPAN-JASMIN, Élise. Lampião: Senhor do Sertão. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2006.
LIMA, João de Sousa; MARQUES, Juracy (Orgs.) Maria Bonita – diferentes contextos que
envolvem a vida da rainha do cangaço. Paulo Afonso: Fonte Viva, 2010.
LINS, Daniel. Lampião o homem que amava as mulheres. São Paulo: Annablume, 1997.
MELLO, Frederico Pernambucano de. Estrelas de Couro: A estética do cangaço. São Paulo:
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PRATA, Ranulfo. Lampião. Natal: Sebo Vermelho, 2010.
PROST, Antoine. Doze lições de história. Tradução de Gulherme João de Freitas Teixeira.
Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
SWAIN, Tânia Navarro. A Construção Imaginária da história dos gêneros: O Brasil no
século XVI. Textos de História, v.4, nº 2, 1996, pp. 130-153.
_____. A invenção do corpo feminino ou “a hora e a vez do nomadismo identitário?”. Textos
de História, Brasília, v. 8, n. 1-2, 2000. Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/textos/article/view/5904>. Acesso em: 20 jul. 2015.
_______Você disse imaginário? In. SWAIN, Tânia Navarro (Org.) História no Plural.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1994.
_______. Entre a vida e a morte, o sexo.. In. Tânia Navarro Swain; Cristina Stevens. (Org). A
construção dos corpos: perspectivas feministas. Florianópolis: Das mulheres, 2008, v. ,p 285-
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302.
TEVES, Nilda. Imaginário social, identidade e memória. In: FERREIRA, Lúcia M. A. e
ORRICO, Evelyn G. D. Linguagem Identidade e Memória Social. Rio de Janeiro: DP&A,
2002.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres.
Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

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OS CAMINHOS POSSÍVEIS DO REAL: A FICÇÃO BIOGRÁFICA EM ORLANDO –


VIRGÍNIA WOOLF

Fernando Moreira Falcão Neto205 | moreirafalcaoneto@gmail.com


Iracema de Oliveira Lima206
Sayuri Grigório Matsuoka207

A CONSTRUÇÃO NARRATIVA EM WOOLF

Antes de enquadrar aspectos da construção narrativa de Orlando (1928),


compreendemos como necessário contextualizar o processo criativo de Virgínia Woolf. Como
não possuímos uma ampla leitura das obras e da dinâmica de escrita da autora, escolhemos,
como indícios, fragmentos de seus diários e de trechos de algumas obras que nos
possibilitaram ampliarmos a compreensão dos caminhos de escrita percorridos. Assim,
construímos uma interpretação possível sobre os aspectos da narrativa de Virgínia Woolf.
Portanto, localizamos a elaboração de Orlando como parte desse amplo exercício de escrita.
Antes de iniciarmos a leitura de partes dos diários da autora, conhecemos, com o
auxílio de um texto biográfico feito por seu sobrinho Quentil Bell (1989), à família Stephen
(sobrenome de solteira de Virgínia) com sua condição social e suas perdas irreparáveis.
Também conhecemos o Mr. Woolf, Leonard, e a editora Hogarth Press, comprada por Mr. e
Mrs. Woolf.

205
Comunicador Social e estudante de Letras-Português na Universidade Estadual do Ceará (UECE).
E-mail: moreirafalcaoneto@gmail.com
206
Estudante de Letras com habilitação em licenciatura de português – Universidade Estadual do Ceará (UECE)
E-mail: llimairacema@gmail.com
207
Professora Mestra orientadora do trabalho
E-mail: sayurigmb@gmail.com
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A editora do casal Woolf, de acordo com Arantes (1989), pretendeu publicar Ulisses,
de James Joyce, quando receberam a obra inacabada em 1918, mas, a prensa da Hogarth era
muito pequena. A obra só foi impressa quatro anos mais tarde, em Paris. Sobre Joyce, nos
conta Virgínia, em seu diário, no dia 20 de setembro de 1920:
[...] Joyce mostra o interior. Seu romance Ulisses apresenta a vida de um homem em
16 circunstâncias, todas ocorridas (acho eu) em um dia. Isso, até onde pôde
perceber, é extremamente brilhante, diz ele. Talvez tentemos publicá-lo. [...] Joyce,
como homem, não tem importância, usa lentes grossíssimas, parece-me um pouco
com [Bernard] Shaw, enfadonho, egocêntrico, & perfeitamente seguro de si. [...]
(WOOLF, 1989, p.69)

Na escrita de Virgínia, percebemos que ela, assim como afirmou sobre Joyce, também
busca mostrar o interior. Em Mrs. Dalloway (1925), a escritora nos apresenta um dia de uma
mulher comum que decide ir comprar flores, mas, a ação narrada não se detém aos
acontecimentos externos, como podemos ver:
Chegara aos portões do Parque. Deteve-se um momento, olhando os ônibus de
Piccadilly.
Não, agora nunca mais diria, de ninguém neste mundo, que eram isto ou aquilo.
Sentia-se muito jovem; e, ao mesmo tempo, indizivelmente velha. Passava como
uma navalha através de tudo; e ao mesmo tempo ficava de fora, olhando. Tinha a
perpétua sensação, enquanto olhava os carros, de estar fora, longe e sozinha no meio
do mar; sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um só dia que fosse.
[...] (WOOLF, 1980, p. 12).

Constrói-se o fluxo de consciência, no qual a narrativa abandona a superfície e coloca


em segundo plano as descrições dos acontecimentos externos. O narrador prioriza a ação
psicológica, os movimentos da subjetividade. De acordo com Sousa (2008), o fluxo de
consciência, como uma técnica narrativa, é usado por Woolf para demonstrar o confronto
entre a identidade interior de cada personagem e a realidade exterior do mundo.
A escrita de Joyce aparece para Woolf como um possível caminho narrativo que vai
ao encontro das inquietações provenientes do seu processo criativo. No dia 8 de agosto de
1918, ela escreveu:
Na ausência de interesse humano, que nos dá calma & contentamento, posso muito
bem continuar com Byron. [...] Acho que, de todos os poemas de igual extensão, é o
mais agradável de ler; uma qualidade que se deve, em parte, à natureza flexível,
impensada, fortuita e galopante do seu método. Esse método é, por si mesmo, uma
descoberta. É o que tenho procurado em vão – uma forma elástica, capaz de conter
tudo o que se queira pôr nela. Assim, ele podia registrar sua disposição de ânimo tal
como ela se manifestava; podia dizer tudo o que lhe vinha à cabeça. Não estava

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empenhado em ser poético; &, assim, livrou-se de seu gênio mau do falso romântico
& do falso imaginativo. (idem, 1989, p. 35)

Na busca de construir uma narrativa que abrangesse os movimentos provenientes das


questões articuladoras das ações das personagens, Virgínia inspirou-se em variadas fontes, o
que possibilitou a criação de uma estética própria a sua obra. Podemos interpretá-la como uma
mulher submersa nas contradições do seu tempo, mas que possuía uma séria necessidade de
resistir. “A melancolia diminui à medida que escrevo. Por que então não escrevo com mais
frequência?” (WOOLF, 1989). A literatura aparece como meio de resistência. Eagleton
(1990) ao perguntar-se sobre o que é literatura nos apresenta como um caminho possível a
compreensão de que literatura é um conceito formal constituído por valores histórico e
socialmente localizados. Portanto, a compreensão do que é literatura relaciona-se diretamente
com o que o autor nomeia como ideologia e Woolf (1978) compreende como espírito da
época. Em Orlando, a personagem narrador diz que um escritor, já que a personagem era
poeta, precisa captar o espírito da época, as inquietações do homem atual. A literariedade
constitui-se, portanto, do diálogo entre a obra e os tormentos provenientes do existir.
O romance moderno surge em um contexto sócio-histórico constituído por uma
sociedade centralizada em bens e valores, na qual, a posse material se sobressai aos valores
espirituais. “[...] A mercadoria se humaniza e o homem se desumaniza, é o fetiche da
mercadoria que vigora com uma força total” (DAFFERNER, 2008). Inserido nesse universo,
o indivíduo se torna solitário, constitui-se em conflito com o meio do qual faz parte. O
mergulho na subjetividade, a espiritualização e a introspecção se tornam uma reação a essa
realidade. No exercício da escrita literária, o homem busca formas de representar os discursos
que surgem da relação entre as inquietações subjetivas e as convenções e contradições do
meio.
O homem se vê isolado e busca, incessantemente, sair dessa condição. Comunicar-se é
o meio de construir essa ponte que o ligará ao outro. Existe a necessidade árida de entrar em
contato com o diferente de si. É preciso construir um diálogo entre os anseios individuais e os
do outro. Porém, há a dificuldade de aceitar a pluralidade humana. Em O quarto de Jacob
(1922), a personagem narrador questiona sobre essa necessidade humana:

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[...] Estarei condenada todos os dias a escrever cartas, a enviar vozes que caem sobre
a mesa do chá, fenecem nos corredores, marcando encontros para jantar, enquanto a
vida vai se encolhendo? Ainda assim, porém, as cartas são veneráveis; e o telefone
necessário, pois a jornada é solitária e, se estamos vinculados por bilhetes e
telefonemas, andamos acompanhados – quem sabe? -, talvez possamos conversar no
caminho. (idem, 2008, p. 131)

Compartilhar o mundo comum com o outro para se construir como sujeito. O estar em
sociedade e a representação de si, de acordo com as convenções do tempo do qual faz parte,
surgem como elementos mobilizadores do sujeito criado nas narrativas de Woolf. Em
Orlando (1928), o papel social de cada gênero e a constituição das subjetividades humanas
surgem em primeiro plano. No ensaio Um teto todo seu (1929), ao falar sobre a obra de
escritoras, Virgínia questiona-se sobre o que teria acontecido se Shakespeare tivesse uma irmã
semelhante a ele, até mesmo fisicamente, chamada Judith. Forçada a casar, a moça fugiria de
casa e tentaria ser atriz, porém, não poderia receber instrução para o ofício e teria como
destino:
[...] Finalmente — pois era muito jovem e tinha o rosto singularmente parecido com
o do poeta Shakespeare, com os mesmos olhos cinzentos e sobrancelhas arqueadas
—, finalmente, o empresário Nick Greene compadeceu-se dela. Judith viu-se grávida
desse cavalheiro e então — quem pode medir o fogo e a violência do coração do
poeta quando capturado e enredado num corpo de mulher? — matou- se numa noite
de inverno, e está enterrada em alguma encruzilhada onde agora param os ônibus em
frente ao Elephant and Castle. (WOOLF, 1985, p.61)

A narrativa de Orlando nos sugere pontos de partida tais como: se um dia eu acordasse
como mulher, como eu seria? (se pensarmos com o olhar do macho, temeroso em perder seus
privilégios de gênero) ou, como eu seria, se um dia eu tivesse vivido como homem? (se
partirmos do olhar da mulher, questionadora dos papéis sociais que lhes são impostos). À
medida que o meio e a personagem se modificam, a narração se transforma e o exercício de
escrita e a reflexão sobre o método narrativo se revelam ao leitor. As problemáticas da
comunicação e da constituição da personalidade surgem como articuladoras da narrativa.

A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA EM ORLANDO


A princípio, Orlando é uma narrativa ficcional sobre a vida de um nobre inglês que
desempenha sua performance de gênero de acordo com o indicado pelas convenções de sua
época. O livro inicia: “Ele – porque não havia dúvida a respeito do seu sexo, embora a moda

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do tempo concorresse para disfarçá-lo – estava atacando a cabeça de um mouro, que pendia
das vigas.” (WOOLF, 1978). A personagem é privilegiada: homem, nobre e belo. Sua
identidade se forma em perfeita harmonia com o meio. O mundo está a seu dispor a espera de
ser conquistado.
A personagem narrador surge com o que Proença (1992) nomeia como uma “visão
por trás”, conta sobre o observável e o documentado, busca agregar uma áurea de objetividade
às ações narradas. Como biógrafo, o narrador busca apenas os fatos e diz detestar “o tumulto e
confusão de paixões e emoções” (WOOLF, 1978). O seu compromisso é com a reconstrução
das ações exteriores e com a defesa da verdade, mas confessa a impossibilidade da sua tarefa:
“uma coisa é o verde na natureza; outra coisa na literatura. Entre a natureza e as letras parece
haver uma natural antipatia; basta juntá-las para que se estraçalhem” (idem). A limitação do
signo linguístico aparece como um empecilho à captura da realidade. Com linguagem poética,
o narrador persiste na busca da reprodução da verdade, a se contradizer e a criar aspecto
irônico ao discurso de imparcialidade que defende.
A vida de Orlando, como um script, segue o socialmente esperado. Orlando pensa e
ama como um homem deve pensar e amar. Constrói-se socialmente de forma admirável e
respeitável, como um homem de bem, até que um dia: “Espreguiçou-se. Levantou-se. Ficou
de pé, completamente despido na nossa frente, enquanto as trombetas rugiam ‘Verdade!
Verdade! Verdade!’ E não podemos deixar de confessar: era mulher” (ibidem). Orlando
acordou com o sexo feminino, sem nenhuma ação que justificasse a transformação. A
personagem não estranha a mudança do seu corpo, nada se altera na sua identidade. Orlando
continua a ser Orlando, mas a partir desse momento, ao se referir à personagem, o narrador
não usará os signos ele/o, mas ela/a. O signo muda, mas o referente (Orlando) não.
A imagem acústica se modifica, o conceito do que é ele passa a ser ela, o signo é
arbitrário, uma convenção social. O que também podemos compreender sobre o gênero
sexual. Portanto, demonstra a limitação do signo, conforme estudos de Saussure (2002). “Ele
considera ainda que o laço que une o significante é arbitrário, convencional e imotivado, quer
dizer, esse sistema que é a língua é formado de unidades abstratas e convencionais.”
(ORLANDI, 1992).

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Orlando inicia sua vida como mulher com um grupo de ciganos, em busca de
liberdade. Nesse contexto, a personagem se depara com seus preconceitos e as contradições
provenientes de se viver em sociedade. “Orlando, vendo o poente arder sobre os montes da
Tessália, exclamou: - Que bom para comer! - Os ciganos não possuem expressão para bonito.
Essa é a mais aproximada. Todos os jovens explodiram em gargalhadas. [...]” (WOOLF,
1978). Na página seguinte, o narrador prossegue:
(Pois é curioso que, embora as criaturas humanas disponham de tão imperfeitos
meios de comunicação que só podem dizer “bom para comer” quando querem dizer
“bonito”, e vice-versa, prefiram suportar o ridículo e incompreensão a guardar só
para si qualquer experiência). (idem, p. 80)

A necessidade de comunicar-se se depara com a limitação das convenções dos nossos


sistemas de linguagem. Ligar-se ao outro se apresenta como um processo de tentativas
constantes. Nesse momento da narrativa, Orlando decide voltar à sociedade a qual pertencia e
embarca com destino à Londres. No navio, depara-se, pela primeira vez, com as limitações
das condições sociais impostas ao seu novo gênero.
[...] “Agora tenho de pagar com o meu corpo por aquelas exigências”, refletiu; “ pois
as mulheres não são (a julgar pela minha própria curta experiência do sexo)
obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas já por natureza”.
(WOOLF, 1978, p.87)

Quando homem, as pernas de Orlando eram motivo de elogios, agora a exibição de


seus tornozelos era motivo de escândalo e, de acordo com as convenções sociais, para fazer-
se respeitável e evitar a vergonha, era preciso escondê-los. A obra não representa a
sociedade da época tal como um reflexo, representa sim os discursos que permeiam as
relações entre os sujeitos. Machado (1990) utiliza Bakhtin para apresentar a ideia de que, no
texto literário, a palavra não apenas representa, mas é representada. As ideologias, como
discursos, são representadas como ideologemas, o discurso literário se constrói do diálogo
entre outros discursos, no processo de dialogismo. Orlando contesta com o próprio corpo os
discursos que cristalizam o comportamento social do seu gênero, posiciona-se, portanto, em
diálogo com as convenções de sua época e as contesta.
Com o tempo, Orlando “tornava-se um pouco mais modesta, como as mulheres são
quanto ao seu espírito, e um pouco mais vaidosa, como as mulheres são, quanto à sua
pessoa” (WOOLF, 1978). Orlando, ora aceitava as convenções impostas, ora transitava entre
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o comportamento e o vestuário próprio aos dois gêneros. Conformava-se ao imposto e ao


mesmo tempo o refutava. De acordo com Machado (1990), Bakhtin afirma que o homem
posiciona-se em constante diálogo com o mundo, a questioná-lo e a reafirmá-lo como é. O
homem constitui-se em um processo dialógico. O texto literário representa o dialogismo
desses discursos.

A BIOGRAFIA FICCIONAL E A CONSTRUÇÃO DO EU


A personagem narrador, em Orlando, apresenta-se inicialmente como um biógrafo. O
texto é uma biografia de uma personagem fictícia, é uma ficção biográfica. A história inicia
com a observação do narrador sobre Orlando, as ações são externas, contadas por essa terceira
voz que pretende construir o caráter do seu personagem com o uso da observação e o auxílio
do documentado.
Até esse ponto da narrativa da vida de Orlando, documentos privados e históricos
têm tornado possível o cumprimento do primeiro dever de um biógrafo, que é
caminhar, sem olhar para a direita nem a esquerda, sobre os rastros indeléveis da
verdade; sem se deixar seduzir por flores; sem fazer caso das sombras; sempre para
diante, metodicamente, até cair em cheio na sepultura, e escrever finis na lápide
sobre as nossas cabeças.
(WOOLF, 1978, p.37)

O narrador se reporta constantemente a fontes documentais que confeririam a chancela


de realidade aos fatos narrados. Há a tentativa de reconstruir a vida de Orlando como um
trajeto percorrido, mas à medida que a narrativa prossegue o narrador biográfico depara-se
com as dificuldades do seu propósito, o que confere um aspecto ilusório ao seu discurso de
imparcialidade e reconstrutor do factual. Portanto, a narrativa biográfica não reproduziria o
vivido, mas o interpretaria e o ordenaria em uma narrativa coesa e compreensível. A
literariedade da obra construída com linguagem poética confere aspecto contraditório à
pretensão inicial da personagem narrador. Proença (1992) apresenta a linguagem literária
como conotativa, com a função de produzir sentido e não reproduzir. O biógrafo fictício com
a sua busca em reproduzir o vivido revela as transformações oriundas do exercício de escrita,
que se transmuda à medida que as inquietações humanas, em diálogo com o mundo
estabelecido, impulsionam o mover da compreensão sobre o real.

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Ao representar discursos, a literatura os desnaturaliza. Nada é como é, mas sim,


criação. Orlando vive cerca de 400 anos, mas termina a narrativa com 36 anos. Machado
(1990) apresenta o que Bakhtin, a partir da teoria da relatividade de Einstein, nomeia como
cronotopo. A literatura não é a representação ou imitação do tempo real, muito menos a sua
falsificação, mas sim, um meio de expandir a nossa percepção sobre a constituição do tempo.
A realidade ficcional possibilita ampliarmos a compreensão do que nomeamos como tempo.
Há uma desnaturalização do termo e um entendimento da nossa limitação sensorial para
compreendermos o que chamamos de realidade objetiva.
São questionadas, portanto, as naturalidades impostas. A própria unidade identitária,
surge como criação discursiva para ordenar o caos da pluralidade subjetiva. Orlando ao
chegar a Londres depara-se com as limitações das convenções sociais com as quais tinha que
lidar para desempenhar sua performance social. Estar naquela sociedade “significava
escravidão, significava fraude, significava renegar seu amor, algemar seu corpo, franzir seus
lábios e conter sua língua” (WOOLF, 1978). A sua própria identidade precisava ser atestada
por leis: homem ou mulher, definitivamente comprovado por uma certidão, um registro. A
personagem se constrói em diálogo constante com esses discursos. Os ideologemas, de acordo
com Machado (1990), constroem-se nos discursos representados.
À medida que a narrativa avança, a sociedade, o homem e o ambiente se transformam.
Os anseios humanos se revelam em novos questionamentos e as formas de buscar
compreender esse homem também se alteram. Com 36 anos, casada e mãe de um garoto,
Orlando chega ao ano de 1928, depois de ter vivido quase 4 séculos, compreendidos em
menos de 4 décadas. A época é outra e Orlando também. Presenciamos a personagem a lidar
com deveres banais de uma dona de casa: vai a compras domésticas. Mergulhada em sua
época, enquanto atua com a banalidade do cotidiano, a mulher questiona-se sobre quem é e
sobre o mundo do qual faz parte. Aqui, não temos mais a presença do biógrafo, a narrativa
não se prende à ação da superfície, mas a movimentação subjetiva e introspectiva. O narrador,
de acordo com Proença (1992), tem a “visão com”, narra a partir da personagem. A estrutura
narrativa se modifica para ampliar a possibilidade de compreender e ir ao encontro das
inquietações humanas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A palavra na literatura não reproduz sentido, mas os cria. O discurso literário não é a
reconstrução de uma conjuntura social, muito menos o espelho social, porém, é arena onde
discursos, dialogicamente construídos, se ordenam em um concerto de imagens e sons
polifônicos. Em Orlando, a autora não propõe uma teoria ou elabora um panfleto em defesa
de ideologias, mas questiona-se sobre o que nos faz humanos, o que significa as diferenças
convencionalmente estabelecidas em torno dos grupos humanos.
O diálogo constitui o romance moderno. O homem e o seu perpétuo embate dialógico
com o mundo comum que compartilha são os argumentos literários que articulam a
construção do romance. Virgínia sintoniza o humano, reflete sobre a dificuldade de se por em
comunicação com o mundo e a necessidade humana de comunicar-se com ele.
Contemporaneamente, possuímos caminhos teóricos que nos auxiliam a interpretar
Orlando, justificá-lo e associá-lo a diversas problemáticas sociais. Alguns anos após a
publicação da obra de Woolf, Simone de Beauvoir afirmou: “ninguém nasce mulher: torna-se
mulher” (BEAUVOIR, 1980). Plurais são as teorias sobre identidade, gênero e sexualidade.
Termos surgiram para nos auxiliar a compreender a pluralidade própria a humanidade:
cisgêneros, transgêros, pós-gêneros, entre outros. Mas Orlando não faz teoria, a obra, como
discurso literário, preocupa-se com o humano e, consequentemente, com a pluralidade
proveniente das angústias de se ter consciência da própria existência e individualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. v. 2. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1980.
DAFERNNER, Sílvia. Do romantismo burguês ao expressionismo. In: Academus Revista
Eletrônica da FIA. Vol IV, 68-79, 2008.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martin Fontes, 1990.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. O que é linguística. São Paulo: Brasiliense, 1992.
PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 1992.

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SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Organização de Charles Bally e


Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedlinger. Trad. de Antônio Chelini, José
Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 24ª ed. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2002.
SOUSA, Simone Elizabeth de. O fluxo de consciência em Mrs. Dallaway, de Virgínia Woolf.
In: Revista de Estudos Linguisticos e Literários. UNIPAM,(1): 146-150, ANO 1, 2008.
WOOLF, Virgínia. Mrs. Dalloway. Tradução de Mário Quintana. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1980.
________. O quarto de Jacob. Tradução de Lya Luft. Osasco: Novo Século, 2008.
________. Orlando. Tradução de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
________. Os diários de Virgínia Woolf. Seleção e tradução de José Antônio Arantes. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
________. Um teto todo seu. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Nova Fronteira, 1985.

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PRINCESAS DONZELAS, PRINCESAS GUERREIRAS: A PERCEPÇÃO DO


FEMININO NOS ESTÚDIOS DISNEY

Thais Barbosa de Siqueira Cavalcanti208 | juliaparente2@hotmail.com


Maria Júlia Parente Félix209 | thais_barbosa95@hotmail.com

Em 1937, Walt Disney lançava o seu primeiro filme intitulado “Branca de Neve e os
Sete Anões”, narrando a história de uma moça que era tida como a mais bela de todo reino,
despertando a ira de uma rainha má, o carinho e zelo de sete pequenos homens e a paixão de
um príncipe encantado que a salvaria de um terrível feitiço. Esta história não é original dos
estúdios Disney, mas sua repercussão se sobrepõe a de qualquer outra recriação da história –
cativando crianças e adultos através das gerações, principalmente as meninas.
Ao mesmo tempo, influenciadas pelos ideais do século XIX, ganhava força no século
vinte o Movimento Feminista, que se dividia, na década anterior ao lançamento do filme, em
duas grandes vertentes: Feminismo Liberal e Feminismo Socialista. Não só isso, eclodiam em
diversos países o direito feminino ao voto. Em tempos modernos, solidificava-se o
feminismo: “Foi, pois, na modernidade, que se consolidou o processo de organização das
mulheres, passando o feminismo a integrar a perspectiva de mudança, que envolveu a
emancipação dos indivíduos das formas tradicionais de vida social” (Guimarães, 2002). Não
só isso, o discurso e os estudos feministas voltam-se para a tese de que a subordinação da
mulher e o ideal feminino serão nada além de uma construção social210 que, por sua vez,

208
Graduanda em História na Universidade Federal de Pernambuco.
209
Graduanda em História na Universidade Federal de Pernambuco.
210
De acordo com a definição de Joan Scott, gênero é “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas
nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de
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originará a divisão de classes (GUIMARÃES, 2002, p. 12) e a opressão das mulheres em


detrimento dos homens – o que mais tarde fornecerá as bases para as primeiras discussões a
respeito de gênero.
Desta forma, temos um cenário confuso, dividido entre mulheres que lutam pelo
sufrágio universal e a desconstrução das desigualdades entre homens e mulheres, e o cenário
das animações e exibições em larga escala – Branca De Neve e os Sete Anões é um veículo
formador de opinião que doutrina o oposto do que defende a militância feminina. Não só ele,
outros desenhos virão a perpetuar esse ideal, cujos detalharemos com o decorrer deste artigo.
É natural que uma superprodução ganhe grandes proporções: o filme Branca de Neve
e os Sete Anões custou quase um milhão e meio de dólares211 – valor mais do que exorbitante
para a época. Seu impacto cultural é esmagador, potencializado ainda mais por estas
sucessivas regravações e variadas formas de divulgação dos personagens: cadernos, estojos,
roupas, fantasias, e todo tipo de material que a imaginação (e o capital) permitir que se faça
referência.
Assim, a constante exposição do público a não só este como a outros filmes e,
principalmente, personagens, propiciará a absorção do comportamento apresentado no longa.
Ou seja, teremos pessoas, em sua maioria meninas, influenciadas por todos os personagens,
principalmente pelo principal referencial feminino: Branca de Neve. Refletindo na preferência
das cores, no padrão de beleza, na percepção do amor e do sexo oposto. Desta forma, o
estereótipo da donzela branca, magra, delicada, trajando roupas claras e de aparência inocente
que se mostra incapaz de reagir com violência, dependente de um homem para que a salve,
sendo legitimado. E este “salvamento” é único e suficiente para se casarem. Inclusive, faz-se
aqui o final de quase todas as histórias chamadas “contos de fadas”: os protagonistas casam-se
e vivem “felizes para sempre”. Claramente, tudo isso esconde uma carga implícita de
machismo, racismo e gordofobia212.
No entanto, é importante reconhecer que este padrão se altera com o passar dos anos –

poder” (SCOTT, 1996:11) (Idem)


211
Fontes: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-27524/curiosidades/ (Acessado em 10/2015);
https://pt.wikipedia.org/wiki/Branca_de_Neve_e_os_Sete_An%C3%B5es_(filme) (Acessado em 10/2015)
212
Termo recente utilizado para se referir a qualquer tentativa de desmerecer, desprezar ou escantear qualquer
pessoa que não obedeça aos padrões de peso impostos pela sociedade e pela mídia, principalmente aqueles
considerados gordos ou obesos.
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Uma empresa deve acompanhar a mudança de percepção e cultura de seu consumidor, e os


Estúdios Disney não são exceção. Logo, os filmes da Disney – principalmente a franquia das
Princesas Disney – não fica engessado neste padrão, apresentando sutis alterações ao longo
das décadas, garantindo assim seu sucesso histórico para com o público e mantendo-se no
mais alto patamar como veículo formador de opinião. Baseado nisto, elaboramos, para melhor
visualização das mudanças e da construção do padrão feminino pelos Estúdios Disney ao
longo do tempo, quatro núcleos e um caso separado, nos quais grupos de filmes são reunidos
a partir da similaridade entre os contextos gerais de suas tramas. São eles: a) 1937-1959:
Branca de Neve e os Sete Anões, Cinderela e A Bela Adormecida; b) 1989-1992: A Pequena
Sereia, A Bela e a Fera e Aladdin; c) 1995: O caso Pocahontas; d) 1998-2010: Mulan, A
Princesa e o Sapo e Enrolados; e d) 2012-2013: Valente e Frozen.
A) 1937-1959: BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES, CINDERELA E A BELA
ADORMECIDA
Neste núcleo, incluímos três princesas cujas tramas se encaixam num mesmo
protótipo: O príncipe é o responsável por salvar a princesa, que é totalmente ingênua e
controlável, assim como o casamento é o fim obrigatório dos três. O arquétipo feminino que é
construído já foi mencionado: uma mulher sempre a esperar, indefesamente, pelo seu
parceiro.
É interessante que Branca de Neve não tem um reino de origem, ou mesmo um
sobrenome ou um título de nobreza. Convém comentar que a palavra “Princesa”, muitas
vezes, é associada ao ideal de docilidade, gracejo e passividade, enquanto que o termo
“Príncipe” já se entende como um rapaz nobre, corajoso e guerreiro. Fortalecendo a questão
estética, sua beleza é alvo de inveja da Rainha Má, que manda um caçador assassiná-la. No
entanto, ele fica comovido e incapaz de machucá-la devido ao seu dom – nunca se trata da
capacidade da garota de reagir, ou pelo simples fato de ser errado -, deixando-a, então, partir.
Ao chegar na casa dos anões, a princesa faz o que uma “boa mulher” sabe fazer de melhor:
arrumar a casa.
Avançando algumas partes, os anões concedem sua estadia na casa deles, e ela mora
lá, refugiada e protegida da Rainha. Com o decorrer dos dias, ela também não trabalha ou
procura qualquer tipo de ajuda, pelo contrário: permanece em casa, limpando e fazendo
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comida para os homens que foram trabalhar. É intrigante que ao invés de esta procurando
táticas para se defender da Rainha, Branca passa seus dias arrumando e cozinhando. A
questão do patriarcado aparece de forma muito sutil quando ele está perfeitamente alojado no
psicológico – a arte é um reflexo da sociedade e vice-versa.
Outros pontos muito bem observados é, justamente, alguns detalhes da trama da Bela
Adormecida. Uma jovem, que ao nascer é amaldiçoada por Malévola, que a condena a morte
aos 16 anos, quando espetar seu dedo numa roca de tear. Além do fato do príncipe vir a salvá-
la – igual como aconteceu com a Branca de Neve. Logo no início do filme, enquanto que o
narrador introduz a história do reino de Aurora, ele fala o nome do seu pai – Rei Estevão –
mas em nenhum momento fala o nome da sua mãe, que aparece somente no início do filme e
é referida como “esposa do Rei Estevão” ou “a rainha”. Até o final do filme, o nome da mãe
de Aurora não é revelado. Conforme se desenrola a animação, o narrador nos conta que desde
o nascimento a princesa já estaria de casamento marcado com o príncipe Filipe, que é uma
criança, para selar a aliança entre os dois reis amigos - Estevão e Humberto. Denunciando um
hábito claramente arcaico, mas que, na época que o filme foi lançado, ainda era recorrente em
alguns lugares do mundo.
Aurora recebeu o dom da beleza (reforçando o padrão de beleza elaborado por estes
longas), o dom de cantar e, se é que pode ser considerado um dom ou benção: ela no lugar de
morrer, adormecerá profundamente, e apenas um beijo a despertará. É inevitável questionar o
porque de a colocarem como o elemento passivo, ao invés dela mesma buscar sua salvação.
As três fadas que cuidaram de Aurora possuíam poderes suficientes para criar uma
espada que ajudou o príncipe a sair da prisão eterna e matar a vilã, sem a ajuda delas, ele seria
facilmente assassinado, mas mesmo assim quem leva todo o crédito é o príncipe. As fadas
sequer foram mencionadas como salvadoras ou ajudantes – fatos como estes reforçam a ideia
do protagonismo masculino nestas tramas, e da necessidade de um homem para tomar a frente
de tudo ainda que, como no filme, seja favorecido pela ajuda de mulheres.
No que se refere a história de Cinderela, a trama em pouco se diferencia: Uma moça
bondosa (magra, branca e loira) mora com sua madrasta e suas meia-irmãs, tratando-a como
uma empregada doméstica que faz todos os serviços e dorme no sótão, enquanto que as outras
vivem confortáveis. Como se não bastasse, mesmo sempre cheia de afazeres domésticos e
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com roupas maltrapilhas, sempre foi mais bonita do que suas irmãs (novamente, o elemento
inveja entre mulheres se torna recorrente, o que sugere uma rivalidade feminina a partir dos
padrões de beleza). Ao ser impedida diversas vezes de ir ao baile (cujo o critério para o
convite era ser mulher e ser solteira, lançando-se como candidata a um príncipe que nunca
conhecera), ela chora copiosamente até que sua fada madrinha aparece e lhe concede a
oportunidade de ir à esta festa, dando-lhe uma carruagem, cavalos e um vestido através de um
feitiço que seria quebrado na última badalada à meia noite. A história se desenrola, e a
princesa foge antes da última badalada e deixa seu sapatinho de cristal.
O príncipe, apaixonado, usa o sapatinho para encontrar a sua amada com quem dançou
uma única noite. Depois da busca incessante, acha-a e casa-se com ela. Seria repetitivo citar
todas as críticas que se faz a este filme, já que elas se repetem nas tramas anteriores: uma
mulher bonita se apaixona (em uma única noite) perdidamente pelo príncipe que mal conhece.
Doméstica, doce e manipulável, como todas as outras. Que outro estereótipo temos, além do
que torna a mulher como um elemento desprovido de reações que fujam aos limites da tristeza
(em relação ao príncipe ou as vilãs) ou da paixão por um homem desconhecido? Sem falar
que, sem exceção, em todas as histórias o contraponto se estrutura em vilãs. Questiona-se o
motivo de não haver um vilão, como se fosse impossível que um homem invejasse o outro.
Nesse recorte temporal, não temos homem algum disputando pelo amor de uma princesa, mas
o contrário.
B) 1989-1992: A PEQUENA SEREIA, A BELA E A FERA E ALLADIN.
Neste núcleo, a presença do príncipe prevalece, apenas com a exceção de Aladdin, que
era um ladrão (de boa índole). No entanto, ao contrário do núcleo anterior, nestas tramas as
princesas em questão já possuem características, ainda que sutis, que não se encontra nas
outras. Tanto Ariel, quanto Jasmine e Bela apresentam um certo espírito aventureiro e uma
considerável curiosidade, diferente das outras. Mas as críticas ao estereótipo feminino, aqui,
ainda permanece: todos os filmes terminam com o casamento.
Ariel, filha do rei Tritão, é uma sereia que se apaixona por um príncipe ao salvá-lo de
um naufrágio, trocando sua voz por um par de pernas com a bruxa do mar, Úrsula. Tritão é
um rei, pai, homem, que protege sua filha a todo custo e a priva de todos os contatos com o
mundo fora d'água: No ideal machista seria apenas de uma atitude bonita e cuidadosa de um
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pai, mas aqui há justamente a privação de informações pelo fato de se tratar de uma menina
aparentemente frágil e manipulável, mesmo com toda a sua audácia para aventuras. Assim, a
contra gosto do pai, Ariel se aventura pelo mar e pelo mundo humano. O príncipe só
lembrando-se da voz de sua salvadora, incapaz de se lembrar de seu rosto, chega a quase se
casar com Úrsula por esta ter roubado a voz de Ariel – sugere-se aqui a objetificação de uma
mulher, da exploração de apenas uma, de suas inúmeras qualidades, sem falar no fato de que,
novamente, a rivalidade feminina reaparece neste longa – Úrsula, uma bruxa tão poderosa
quanto Tritão, sente inveja de Ariel única e exclusivamente por conta de sua beleza e voz.
Observa-se que além de feia, Úrsula é gorda, fortalecendo o padrão de magreza.
A Bela e a Fera tem uma questão mais do que interessante, quando se analisa o grau da
gravidade do caso. A Bela se apaixona pela criatura que prendeu seu pai e que em seguida a
capturou em troca da liberdade deste. É verdade que o filme gira em torno da moral de que
“deve-se amar as pessoas não pelo que aparentam externamente, mas internamente”, no
entanto esse ideal esconde uma situação absurda. E Bela, apesar de gostar de ler e ser
corajosa, ainda é submissa. Recusou-se a casar com Gaston, e levou um certo tempo para
conhecer a fera, mas mesmo assim ela permanece enclausurada no arquétipo da feminilidade
exacerbada e falta de reações violentas. Diante da maldição da fera, é questionável o fato de
que apenas com Bela, ele conseguiu criar laços afetivos, mas com seus criados que viveram
com ele por anos, nenhum vínculo fora criado. Era preciso que a fera aprendesse a amar para
quebrar a maldição, mas ele não pôde amar sua família ou amigos, precisou amar uma
mulher. Aqui ainda está muito atrelada que a ideia de amor verdadeiro é unicamente o amor
que leva ao matrimonio, amor entre pessoas que não tenham qualquer linha de parentesco.
Apesar de ser Bela quem quebra o feitiço da Fera, eles acabam se casando e “vivendo felizes
para sempre”, caindo nessa obrigatoriedade do matrimonio e da felicidade inacabável.
No caso da animação Aladdin, é a primeira vez dentre os filmes citados em que a
princesa não é a personagem principal, mas suas aparições no filme também são
questionáveis. Apesar de recusar-se casar com seu pretendente, Ali (que era Aladdin
disfarçado de príncipe, retomando a ideia de que o príncipe era um ser honrado), ela acaba se
contradizendo ao mudar de ideia quando descobre a verdade sobre o rapaz. Novamente, trata-
se de um rapaz que mal conhece, e que, ainda por cima, mente sobre sua identidade, algo que
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dificilmente seria aceito por qualquer pessoa. Elementos aparentemente imperceptíveis na


trama, mas que fazem toda diferença quando levantados. Novamente, o responsável pela
proteção da princesa Jasmine é o pai, o Sultão, a mãe não aparece em momento algum, e,
aliás, Jasmine é a única mulher de toda a trama. Desta forma, questiona-se a participação das
mulheres neste cenário do Oriente Médio. A crítica mais óbvia é o fato de Jasmine utilizar-se
de sua beleza para conquistar e distrair Jafar – porque a beleza? Porque, quase sempre, a arma
que a mulher possui é sempre a beleza e sua tática de sedução? E outra: Porque os homens se
deixam levar por ela? Ao acreditar que uma mulher não é digna de confiança, implicitamente,
acreditam na capacidade desta de mudar de lado a partir do momento que ela se oferece para o
vilão – que, como o típico macho que tem pouco controle por seus impulsos, se rende aos
“caprichos desta dama”.
C) 1995: O CASO POCAHONTAS
A escolha em analisar o filme sobre a índia Pocahontas separadamente dos quatro
núcleos criados, deu-se pelo fato da história e a personalidade da personagem não se
enquadrarem em nenhum núcleo. Apesar de ir de encontro à figura paterna como o fizeram
Ariel e Jasmine, Pocahontas não sente o desejo de encontrar uma pessoa especial. A música
"Lá na curva", Pocahontas quebra a ideia de que um homem representa estabilidade, proteção
e segurança ao cantar: E o estável lar que eu terei/ Irá me proteger/ Quero segurança, ou um
homem que me ame. Neste trecho fica claro que o que lhe dará estabilidade e proteção será
seu lar, que pode ser uma casa, sua família, e não necessariamente um homem. A música
também mostra que estar com um homem não implica em estar segura, algo que as estatísticas
alarmantes de violência contra a mulher mostram.
A mudança esperada pela protagonista veio com a chegada de John Smith, o clássico
explorador europeu que acredita estar levando a civilização aos "selvagens" da América.
Quando Smith está contando à Pocahontas sobre Londres e os lugares que conheceu, ele
demonstra se achar superior às populações que encontrou em suas viagens, e Pocahontas
discorda com o pensamento dele e se recusa a escutar, e com a música "Cores do vento", ela
abre os olhos de Smith sobre a igualdade entre os seres.
O que marca Pocahontas como a heroína de sua própria história foi o momento em que
protege Smith com sua vida, e sua coragem faz com que os índios e os ingleses desistam de
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lutar. No entanto, o que mais surpreende é o fim, pois vemos um final feliz, sem sombra de
dúvidas, mas o casal não fica junto. Tanto o pai quanto Smith deixam-na livre para fazer sua
escolha, e ela escolhe recusar o convite de Smith para ir à Londres para ficar com seu povo. E
assim, o final termina diferente do imaginário de que para ser feliz, é preciso encontrar o amor
da sua vida e que fiquem juntos para sempre, algo problemático. Pelo fato das pessoas serem
constantemente cobradas para que encontrem a pessoa ideal sem se equivocar, sendo essa
exigência colocada por Alexandra Kollontai (1978. p.27) como uma das consequências do
matrimônio, devido ao seu caráter indissolúvel, a parte que mais sofre com a cobrança é a
mulher, que ao errar em sua escolha, tem seus sentimentos ignorados e é atacada
impiedosamente pela sociedade.
1998-2010: MULAN, A PRINCESA E O SAPO E ENROLADOS
A partir desse grupo, presenciamos uma intensa desconstrução de gênero e a
diminuição gradual da presença e da importância do príncipe na trama. Começando por
Mulan (1998), temos uma referência clara de uma mulher que não se enquadra nos padrões de
feminilidade, pois ao se encontrar com a casamenteira, é logo repreendida por falar sem
permissão e por ser magra demais, logo, não seria boa para ter filhos. Foi preciso que ela
anotasse em seu antebraço os "deveres de uma boa esposa" para responder à casamenteira e
esse encontro terminou com a sentença de que ela jamais traria honra à sua família. Esse
veredito a entristece e é perceptível na canção "Reflexo", onde canta sua tristeza por não saber
quem é.
De acordo com Butler (1987, 143), "as constrições sociais sobre a conformidade e
desvio de gênero são tão grandes que a maioria das pessoas se sente profundamente ferida se
lhes dizem que exercem sua masculinidade ou feminilidade inadequadamente". Mulan mostra
sua coragem ao cortar o cabelo e vestir a armadura de seu pai para se unir ao exército
imperial, causando assim uma ruptura com as características femininas. No exército ela
aprende a lutar e se destaca mesmo não sendo muito forte, e aos poucos vai aprendendo a "ser
um homem" através das maneiras de falar e de agir, visando não ser descoberta.
O filme A princesa e o sapo (2009) traz sua primeira protagonista negra e de classe
social baixa, que tem como grande sonho abrir um restaurante, sonho este que foi construído
com seu falecido pai, e para isso ela trabalha bastante para conseguir o dinheiro, pois sabe que
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apenas ele pode conseguir, não fica esperando a oportunidade aparecer. E essa determinação
de Tiana está clara na música "Quase lá", em especial quando diz: O meu pai me disse um dia
/ Tudo pode acontecer/ Ver o sonho realizado/ Só depende de você.
Assim como Tiana, Rapunzel de Enrolados (2010) também é determinada em realizar
seus sonhos. Rapunzel sonha em ver as "luzes flutuantes" e faz com que Flynn Rider, um
criminoso procurado, seja seu guia. O motivo que os levou a começarem uma jornada juntos,
foi por Rapunzel ter escondido a tiara da princesa perdida que Flynn havia roubado.
Perto do fim, é revelado que a princesa perdida é Rapunzel e que havia sido
sequestrada pela mulher que acreditava ser sua mãe. O final é inquietante porque Flynn acaba
morrendo ao cortar o longo cabelo de Rapunzel para impedi-la de curá-lo e para ela ser
finalmente livre, todavia, o vestígio de magia presente nas lágrimas de Rapunzel o salva.
Vemos novamente a ideia do príncipe salvador desconstruída como aconteceu com Mulan,
que salva Chang de uma avalanche, e com Tiana, que com seu beijo acaba com a magia que
transformara ela e Naveen em sapos.
Nos três enredos percebemos a presença constante do príncipe, e o sentimento
amoroso vai sendo criado no decorrer do longa, com ambos conhecendo melhor os defeitos e
qualidades do outro.
2012-2013: VALENTE E FROZEN
O quinto e último núcleo é o das princesas que não sonham com o casamento e nem
terminam com um par no fim. Não há a presença do príncipe e a ausência deste não afeta a
narrativa, pois o foco não é ele nem a relação dele com a princesa. Em Valente (2012), a
história gira em torno da relação entre Merida e sua mãe, Eleanor, e em Frozen (2013) a
relação fraterna entre Elsa e Anna é o foco da trama.
Em Valente, temos a figura feminina como empecilho para a felicidade da princesa, no
entanto, Eleanor não é má, ela tem apenas a visão de mundo ultrapassada, mas não é por isso
que deixa de querer a felicidade da filha. E é essa relação conturbada entre mãe e filha que o
filme procura explorar, trazendo para o debate a questão de serem pessoas diferentes com
pensamentos e vivências diferentes, e que superam as dificuldades devido ao amor que
sentem. Em Valente vemos a presença masculina praticamente anulada, e o poder que a
rainha possui é claramente maior do que o do rei, sendo demonstrado Eleanor tomando a
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frente de diversas situações e repreendendo o marido e os outros homens por certas atitudes.
Já em Frozen temos a presença de uma princesa e uma rainha, e a dicotomia entre as
duas. Enquanto Anna é uma garota sonhadora que espera encontrar o príncipe encantado,
Elsa é realista, e quando Anna lhe apresenta Hans, seu noivo, ela logo a repreende dizendo
que ela não poderia se casar com alguém que acabara de conhecer, situação clássica nos
enredos das primeiras princesas. O filme começa descontruindo a toda uma cultura de
princesas a partir desse ponto, e quando Anna precisando de um ato de amor verdadeiro para
se salvar tem que escolher entre Kristoff e a irmã, acaba se transformando em uma estátua de
gelo ao proteger Elsa da espada de Hans. Contudo, seu sacrifício foi o maior ato de amor, e
assim o feitiço foi quebrado, surpreendendo aos telespectadores que esperavam que o beijo de
Kristoff a salvasse. Dessa forma, foram as próprias irmãs que salvaram elas mesmas e o reino,
não um príncipe encantando que salva a todos em quinze minutos de aparição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os filmes infantis não funcionam apenas como entretenimento para crianças e adultos,
eles também agem como doutrinadores e passam através dos enredos, das personalidades das
personagens e das músicas, mensagens que são facilmente assimiladas, especialmente pelas
crianças. Até a nova geração de princesas, começada por Jasmine e Pocahontas aparecer, o
ideal de beleza que se tinha era apenas o padrão branco, e mesmo assim, das doze princesas
analisadas apenas três não são brancas, e até Merida não vemos nenhuma com o cabelo
cacheado. O que mostra que o avanço foi lento, todavia, o ano de 2016 traz grandes
promessas com a estreia de Moema, a mais nova princesa da franquia. Moema é filipina,
negra, cacheada e não possui o corpo magérrimo das princesas anteriores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUENA, Michele Escoura. Girando entre as princesas: performance e contornos de
gênero em uma etnografia com crianças. Dissertação. São Paulo, 2012.
BUTLER, Judith. Variações sobre sexo e gênero: Beauvoir, Wittig e Foucault. BENHABIB,
Seyla; CORNELL, Drucilla (coord.). Feminismo como crítica da modernidade. Ed. Rosa
dos tempo, Rio de janeiro, 1987, p. 139 - 154.
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GUIMARÃES, Maria de Fátima. Revista Gênero e História. Caderno de História do


Departamento de História/UFPE, 2002
KOLLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Global Editora e
distribuidora LTDA, 1978.
FILMES
A Bela Adormecida. Direção: Les Clarck, Eric Larson e Wolfgang Reitherman. Estados
Unidos: Walt Disney, 1959.
A Bela e a Fera. Direção: Gary Trousdale e Kirk Wise. Estados Unidos: Walt Disney, 1991.
A Pequena Sereia. Direção: Ron Clements e John Musker. Estados Unidos: Walt Disney,
1989.
A Princesa e o Sapo. Direção: Ron Clements e John Musker. Estados Unidos: Walt Disney,
2009.
Aladdin. Direção: Ron Clements e John Musker. Estados Unidos: Walt Disney, 1992.
Branca de Neve e os Sete Anões. Direção: Walt Disney. Estados Unidos: Walt Disney, 1937.
Cinderela. Direção: Wilfred Jackson, Hamilton Luske, e Clyde. Estados Unidos: Walt
Disney, 1950.
Enrolados. Direção: Nathan Greno e Byron Howard. Estados Unidos: Walt Disney, 2010.
Frozen: uma aventura congelante. Direção: Chris Buck e Jennifer Lee. Estados Unidos:
Walt Disney, 2013.
Mulan. Direção: Tony Bancroft e Barry Cook. Estados Unidos: Walt Disney, 1998.
Pocahontas. Direção: Mike Gabriel e Eric Goldberg. Estados Unidos: Walt Disney, 1995.
Valente. Direção: Mark Andrews e Brenda Chapman. Estados Unidos: Walt Disney, 2012.

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REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO DE PROFESSORAS ALFABETIZADORAS: AS


PRODUÇÕES DE IDENTIDADES

Claudiane de Souza Almeida213 | claudianealmeidai@hotmail.com

Em diversos espaços sociais e de diferentes formas crianças, jovens e adultos são


bombardeados por inúmeras representações de gênero que há em nossa sociedade.
Representação é aqui compreendido como as “formas de inscrição por meio das quais o
‘Outro’ é visto, apresentado mostrado” (PARAÍSO, 2004, p.59), “aquilo que se expressa ou
se diz sobre o ‘Outro’” (PARAÍSO, 2004, p.59) em diversos espaços sociais. Gênero trata-se
de uma “construção social” (LOURO, 1996, p. 10) que por meio de “práticas regulatórias”
(LOURO,1997, p. 174) tem o objetivo de produzir homens e mulheres adequados a suas
épocas. Desse modo, a representações de gênero concerne aos significados que são atribuídos
à masculinidades e a feminilidades.
Nas instituições religiosas, familiares, escolares, nas mídias, entre outras, é possível
encontrar inúmeras representações do que é ser menino e do que é ser menina.Os processos de
diferenciação entre homens e mulheres ocorrem deste muito cedo, como aponta Meyer
(2001), essa diferenciação pode ser percebida antes da criança nascer, ainda no útero da mãe
após a mesma descobrir o sexo da criança. Após a descoberta do sexo da criança uma série de
expectativas e artefatos diferenciados é comprado, levando em consideração essa informação.
E, isso, estende-se pela infância, onde nota-se que são disponibilizados para meninos e para
meninas artefatos culturais, adornos, brinquedos e brincadeiras permeados de significados
produzidos socialmente que representa cada gênero.

213
Estudante de pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, membro do
GECC- Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Currículos e Culturas da mesma universidade e bolsista de Iniciação
Cientifica do CNPq. claudianealmeidai@hotmail.com
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Os significados que são atribuídos e que caracterizam cada gênero são quase sempre
distintos e opostos. Estudos realizados por Michele Perrot (2005) mostraram que,
historicamente, os homens são incentivados a ocuparem o espaço público, enquanto as
mulheres são limitadas ao espaço privado. Desse modo, percebe-se que os significados que
compõem a representação de gênero, atribui ao masculino ser forte, valente, viril, destemido,
corajoso, entre outros. Ao feminino é atribuído significados distintos opondo ao masculino,
como: fracas, sensíveis, meigas, carinhosas, obedientes, frágeis, ou seja, “nascidas para o lar”.
Nesse trabalho, são analisadas e discutidas as representações de gênero de três
professoras que atuam nos três primeiros anos do Ensino Fundamental de uma escola pública
do município de Ribeirão das Neves no estado de Minas Gerais. A escolha em analisar as
representações de gênero dessas professoras foi impulsionada por observações que realizei
nessa escola como bolsista de iniciação cientifica, vinculada à pesquisa: “Currículo, diferença
e relações de gênero: modos de subjetivação na alfabetização de crianças”, coordenada pela
professora orientadora Marlucy Alves Paraíso. Nessas observações, notamos que as
professoras fazem diversas e distintas divisões e separações entre as crianças. Em muitos
momentos, essas divisões são realizadas tendo como referência o sexo das crianças, como: as
filas que são separadas entre meninos e meninas, os grupos de trabalhos em sala onde são
grupos formados por meninas e por meninos, algumas atividades que são diferentes para
meninos e para meninas, os brinquedos são colocados para meninos e para meninas, os
espaços onde as crianças irão praticar a Educação Física. Nota-se que com isso, essas divisões
e distinções contribuem na produção de um ensino generificado entre essas crianças.
Muito além de aprenderem os saberes escolares, as crianças, também aprendem na
escola a serem meninos e meninas. Em meio aos conteúdos, materiais didáticos, livros
literários, brinquedos e brincadeiras, jogos, entre outros, “operam diversas pedagogias que
definem como as crianças devem se comportar de acordo com o gênero”(SANTOS, 2011 p.
52.). Assim como em outras instituições, na escola, práticas que regulam modos adequados de
ser menina e menino são impostas às crianças. Professores/as, funcionários/as, diretores/as e
outros/as possuem representações, e estabelecem características, comportamentos, condutas e
qualidades adequadas para cada gênero. E essas representações produzem efeitos no processo
de subjetivação e na constituição das identidades das crianças.
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Para subsidiar as discussões apresentadas ao longo desse trabalho, utilizo como


referencial teórico os Estudos de Gênero e os Estudos Culturais. Os Estudos de Gênero
possibilitaram a compreensão de que a construção de sujeitos masculinos e femininos é algo
socialmente construído e que é permeado por relações de poder (SCOT, 1995). Já os Estudos
Culturais auxiliaram para compreender as representações de gênero das professoras.Uma vez
que, a representação é considerada nos Estudos Culturais “como um processo central na
formação e produção da identidade cultural e social”(SILVA, 2007, p. 127), ela é “ aquilo que
se expressa num texto literário, numa pintura, numa fotografia, num filme, numa peça
publicitária” (SILVA, 2007, p. 127), e também nas falas dos sujeitos, como as professoras,
que expressa como compreendem o Outro.
Para melhor explicitação desse trabalho, divido-o em três partes. A primeira trata-se
dessa apresentação, onde apresento meu objeto de estudo e os conceitos que utilizo para
analisar os dados da pesquisa. A seguir apresento, por meio do material empírico, como as
representações de gênero das professoras reforçam um ensino generificado e que gera efeitos
no processo de subjetivação e na constituição das identidades dos infantis. Na parte final,
trago as considerações finais desse trabalho, tentando não colocar uma conclusão, mas uma
reflexão sobre o ensino generificado oferecido para as crianças.

A CONSTITUIÇÃO DAS IDENTIDADES GENERIFICADAS: PRODUÇÃO E


AFIRMAÇÃO
Na escola circula diversos saberes que não são somente os saberes cientificos. Esses
saberes ensinam as crianças a se comportarem devidamente conforme ao gênero que lhes ram
atribuido socialmente. Dessa forma, podemos notar que “em meio aos conteúdos didáticos e
brincadeiras operam diversas pedagogias que definem como as crianças devem se comportar
de acordo com o gênero e, é nesse processo que as identidades de gênero e sexuais vão sendo
construídas.”(SANTOS, 2011, p. 52)
A construção de identidades ocorre por meio de um processo onde tem como base a
diferença. Ou seja, a identidade e a diferença “estão em uma relação de estreita dependência”
(SILVA, 2007, p. 74). A construção da identidade de gênero é algo relacional, ou seja,
podemos notar que quando uma professora vai se referir as caracteristicas de uma menina,
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logo pode deduzir qual será a de um menino. Conforme podemos ver na fala de uma das
professoras:
Eu acho a menina mais organizada, mais dedicada, mais comprometida,
participativas, os homens não são de falar, dá impressão que eles não envolvem com
os temas. As meninas não, só para ter uma idéia, nesse projeto da copa, as meninas
todos os dias queriam coisas novas, vamos fazer isso, vamos fazer... E os homens
estavam longe, o negocio deles era só perguntar se tinha bola, eu acho que as
meninas têm mais questionamentos, eu acho que elas se envolvem mais com as
coisas, e eu instigo muito também, eu acho que elas querem mais, aqui nessa sala
quanto de manhã também. (Fragmento de fala da professora 2, gravado no dia 09 de
junho 2014).

As construções das identidades femininas e masculinas são o que os estudos


feministas nomearam de contrução das identidades de gênero. Essa construção de
feminilidade e masculinidade é, como aponta Louro (1996) uma construção social. Essa
construção se dá de modo relacional, ou seja, quando a professora diz que a menina é mais
organizada, dedicada, comprometida e participativa, logo podemos deduzir que em oposição a
menina, o menino não é organizado, não é dedicado, não tem comprometimento e nem é
participativo.
Essas caracteristicas que são colocadas para meninos e meninas funcionam como
um “dispositivo de diferenciação” (SANTOS, 2011, p.52). Uma vez que a “a diferença é
estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a outras identidades”
(WOODWARD, 2009, p. 14). Essa marcação simbólicas são, em relação a identidade de
gênero, podem ser objetos como os adornos, roupas, brinquedos entre outros, e também
“comportamentos socialmente aceitos para um e outro gênero” (SANTOS, 2011, p. 52).
Podemos perceber nesse mesmo fragmento da fala da professora, essas
características colocadas para as meninas são também as representações que essa professora
possui sobre o gênero feminino. Socialmente espera-se que a menina tenha um
comportamento menos agitado que os meninos, conforme Reis e Paraíso (2012)“a quietude e
a passividade são atitudes demandadas às meninas desde a educação infantil”(p. 240). Essas
características, na escola, são valorizadas, pois para alfabetizar a criança precisa ficar
concentradas. Como podemos ver na fala de uma das professoras:
Eu tenho 13 meninas, eu diria que 9 estão assim com um desempenho muito bom,
não preciso citar não que você sabe. Mas, os homens não, os homens têm 2, eu
tenho 11 homens e só tenho 2, se você for pensar na proporção, eu só tenho 2 que
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estão alfabetizados, que participam da aula, que dedicam, que tem força, dedicação
mesmo! Tem uns e outros que estão se esforçando, mas, é questão da idade também,
tem meninos aqui com cinco anos, não estão com aquela maturidade.. (Fragmento
de fala da professora 2, gravado no dia 09 de junho 2014).

Por conseqüência, as professoras consideram ser mais fácil e até mesmo preferem
alfabetizar as meninas do que os meninos:
Eu acho que é mais fácil alfabetizar meninas, eu as acho mais organizadas, mais
interessadas, tem umas exceções, assim, tem uns meninos que são bem organizados
e interessados, mas é difícil. Esse ano eu tenho dois alunos que são assim, são até
melhores que as meninas, mas nesse tempo todo que eu trabalho eu acho que as
meninas estão dando um passo antes que os meninos estão indo antes. Os meninos
têm muitos outros interesses, as meninas têm vontade de aprender, querem
aprender. (Fragmento de fala da professora 1, gravado no dia 09 de junho 2014).
Eu acho que as meninas aprendem mais rápido, eu acho. (Fragmento de fala da
professora 1, gravado no dia 09 de junho 2014).

Além disso, podemos notar nas falas das professoras que consideram também que as
meninas sobressaia aos estudos em comparação com a maioria dos meninos, pois as mesmas
precisam ajudar em casa, e esse ato de ter que ajudar em casa, é um elemento que constitui a
identidade da menina boa aluna, como conforme Paraíso e Reis (2012) nomeia de menina-
aluna, “a menina-aluna é constituída como aquela que é mais disciplinada, que é mais cobrada
por ser responsável, pelo fato de ficar mais em casa e, por isso, receber maiores cobranças de
pessoas da família. (p. 245)”.
Eu acho elas mais dedicadas, são mais comprometidas com o trabalho e tem vontade
de aprender. Os meninos, às vezes, eles aprendem porque estão ali, na brincadeira, e
acabam assimilando, porque a inteligência está ali ajudando. Agora, os que tem, que
tem uns que tem um dificuldadezinha e não tem esse comprometimento, vontade,
não são alfabetizados. Ano passo eu trabalhei com o PROALE aqui de manha na
escola, meninos que estão no 6º ano e não sabem ler, 5º e 6º ano que não sabem ler,
a maioria era menino, pelo menos assim, eu não sei como é a nível nacional isso,
mas eu tenho visto que pelo histórico, eu tenho visto que as mulheres têm dado um
banho nos meninos ai na questão de estudar, até na minha família eu vejo isso, as
mulheres estão estudando mais. Aqui na escola a gente tem visto isso, vai nos 9º
ano para você ver, seis meninos e o resto é tudo menina, nos formando do 9º ano
está de um jeito assim, vai dando um funil e assim, eu vejo desde a base, as meninas
são mais cobradas porque tem aquela questão assim: tem que ter mais capricho, tem
que ter dedicação, tem que saber fazer as coisas bonitas e os meninos não. Então eu
acho que é uma questão cultural mesmo. tem uma parte que separa, que educa os
meninos diferente que as meninas, na mesma família as meninas estudam e os
meninos não. (Fragmento de fala da professora 1, gravado no dia 09 de junho 2014).

Nota-se nesse fragmento que há uma cobrança cultural, como colocada pela

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professora, para que as meninas se alfabetizem mais rápido, pois assim podem ajudar nos
trabalhos domésticos onde inclui o cuidado com os irmão mais novos. E devido a essas
cobranças em ter que ajudar nos serviço domésticos, fazendo com que as meninas tenham
mais responsabilidade com os estudos, e assim sobressaiam aos meninos em relação a
aprendizagem. Assim, as meninas acabam sendo em maior numero as primeiras a se
alfabetizarem.
No entanto, podemos perceber que nem todas as crianças incorporam essas normas
de modo pacíficas. Podemos notar que há diversos modos de resistências no qual se questiona
tais normas. E alguns desses modos de resistências são muitas vistos como desviantes, como
na fala de uma das professoras:
Normalmente são os meninos mesmo que se agrupam, por exemplo, na minha sala,
eu coloquei um menino e uma menina sentado na sala, mas quando a gente diz: hoje
vocês podem sentar onde quiserem, ai eles vão e separam, eles separam, os meninos
sentam com os meninos e as meninas sentam com as meninas. Igual, por exemplo,
sexta-feira eu os deixo sentarem onde eles querem, ai eu faço dois grupões, você já
viu na minha sala, eu faço dois grupões, assim, para a gente trabalhar com pintura,
desenho, aí um lado senta só menina e do outro lado senta só menino, aí eu já fiquei
olhando assim, porque os meninos estão todos desse lado aqui, eu acho que é porque
eles tem os interesses em comuns, gostam de... às vezes tem um menino que gosta
de ficar mais com as meninas, que tem uma menina que gosta de ficar mais com os
meninos, um ou outro que tem a dificuldade de saber qual é o gênero dele, eu acho.
Eu acredito também que isso seja genético. (Fragmento de fala da professora 1,
gravado no dia 09 de junho 2014).

As crianças que não comportam conforme o modos que lhe são impostos para o seu
gênero são colocadas como possuir algum problema. Mesmo dando a escolha para a criança
sentar onde deseja, espera-se que ela escolhe a opção de se juntar com os seus pares, ou seja,
que os meninos sentem com os meninos e que as meninas sentem com as meninas. Uma vez
que, posto pela professoras, meninos e meninas têm interesses divergentes. No entanto, se
uma menina ou um menino têm a preferência em ficar em algum grupo oposto ao seu sexo,
essas crianças são colocadas pelas professoras como um sujeito que possui “dificuldade” em
saber seu gênero. Essa dificuldade em reconhecer o gênero é algo que coloca essas crianças
como não se enquadram as normas, ou seja, normas que são estabelecidas socialmente para
cada sexo. Uma vez que a escola é lugar onde reforça as normas de gênero presente na
sociedade, tento como sua responsabilidade reforçar os “modos considerados “apropriados”
de ser homem e de ser mulher” (CARVALHAR, 2010, p.32).
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Além de não saber o seu lugar, se um menino possui um bom desempenho na


alfabetização e no comportamento, esse é visto como a exceção, do mesmo modo de uma
menina que não possui um bom desempenho escolar.
Eu vejo que elas têm muito mais compromisso, sabe? Elas participam mais das
aulas, os homens não, eles dispersam muito, é um brinquedo, é um carrinho, sabe?
Então assim, chama sempre atenção, eles não têm aquela concentração igual à
menina, não todos, porque tem meninas também que né?! Tem um comportamento
também difícil, são bem inquietas. (Fragmento de fala da professora 2, gravado no
dia 09 de junho 2014).
Elas ficam com papel, brincando. Uma dá aula para a outra, uma fica ajudando a
outra. Os meninos não. Na hora do recreio eles querem correr, jogar bola, pular
nem lembra que tem a sala e que podem fazer alguma coisa. Em casa também, eles
não tem essa preocupação que as meninas tem de está melhorando a letra, de ter
cuidado com o caderno, essas coisas, os meninos são mais largados, pelo menos a
minha experiência eu estou vendo isso, com raras exceções né?! (Fragmento de fala
da professora 1, gravado no dia 09 de junho 2014).

A escola é um espaço generificado, uma vez que “nela opera um conjunto de práticas
pedagógicas que regula os comportamentos de meninos e meninas, bem como suas
vestimentas.” (SANTOS, 2013, p. 52). Percebe-se que se um menino tem a preocupação em
ser bom nos estudos, em ter capricho com a letra ele é uma rara excessão. Já as meninas, se
não possuem essa preocupação, são consideradas desviantes. E isso constitue a criança como
sujeito pertencente a uma identidade feminina e/ou masculina. “Esses processos educativos
envolvem estratégias sutis e refinadas de naturalização que precisam ser reconhecidas e
problematizadas” (MEYER, 2010, p. 17).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos notar que as representações de gênero das professoras analisadas reforçam
as normas de gênero. Por meio dessas representações, colocam o que o Outro, a criança,
deve conduzir de acordo com o sexo no qual pertence. Colocam as meninas como mais
obedientes, disciplinadas, quietas e essas características são valorizadas no ambiente escolar.
Desse modo, para as professoras analisadas, as meninas têm êxito na alfabetização, uma vez
que as características demandadas para as meninas favorecem que asmesmas sejam
alfabetizadas primeiro que a maior parte dos meninos.
Em relação aos meninos a inquietude e indisciplina, são algo que é próprio do
gênero masculino. Desse modo, muitas vezes tolera-se mais esses comportamentos quando o
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mesmo vem de um menino. Mas, se o menino apresenta um comportamento que não condiz
com essa representação de masculinidade, começa-se a questionar se o menino tem alguma
dificuldade em saber seu gênero.
Desse modo, nota-se uma desigualdade no tratamento entre as crianças. Esse
tratamento desigual, têm efeitos na constituição das identidades das crianças. Visto que
muitas se comportam como demandam o seu gênero, mas as que não seguem as regras
também sofrem intervenções, gerando efeitos nos processo da constituição das identidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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passivo na produção cultural de corpos e posições de sujeitos meninos-alunos em um


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REPRESENTAÇÕES DE MULHER NOS ESCRITOS DA EDUCADORA E


POETA MARIA BRONZEADO MACHADO (1916-1986)

Adriana Vilar dos Santos | dryka.villar@gmail.com


Maria Lúcia da Silva Nunes | mlsnunesml@gmail.com
Thayana Priscila Domingos da Silva | thay_ pris@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objetivo principal identificar as representações do papel da


mulher no lar e na sociedade reproduzidas nos escritos da professora e poeta Maria Bronzeado
Machado, que esteve inserida no âmbito educacional paraibano, por mais de cinco décadas no
século XX (1934- 1986), exercendo suas práticas pedagógicas como professora e diretora nas
redes de ensino público e privado. Escreveu para jornais e revistas da época, manifestando sua
opinião acerca da política, das tendências pedagógicas em voga e das práticas que considerava
propícias ao aprendizado de seus alunos.
Neste texto utilizamos como fonte o livro de sua autoria, uma coletânea de escritos
organizada por seus filhos, intitulada Flôres do Caminho, publicada em João Pessoa pela
Editora do Jornal A União, no ano de 1980. Em alguns de seus escritos percebe-se que é uma
mulher muito religiosa e a representação da maternidade é evidenciada constantemente.
A perspectiva de estudo orienta-se pelas contribuições da Nova História Cultural,
com a ampliação de fontes, objetos de estudo e novas abordagens no campo historiográfico,
possibilitando assim, compreender a representação da mulher nos escritos da já referida
educadora, e junto trazendo concepções produzidas pela igreja e sociedade, que incitaram
perfis culturais da mulher como especialmente estruturada para a reprodução e equipada com
instinto materno. A análise dos textos selecionados nos expõe uma imagem de mulher com

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preceitos maternal e religioso. Porém em outros ela deixa vestígios que ser mulher também
necessita de autonomia e independência. Acredita-se que analisar os escritos da professora e
poeta Maria Bronzeado Machado converge para compreender, contribuir e revelar aspectos da
história das mulheres, da história da educação e da mulher paraibana.

A MULHER SEGUNDO A IMAGEM DA MÃE

A mulher durante anos recebeu uma educação voltada para a formação moral e
valorização dos bons costumes da sociedade. Suas funções correspondiam àquilo que era
pregado pela Igreja, ensinado por médicos e divulgado pela imprensa. Assim as mulheres
foram destinatárias das ideologias cultural e religiosa que lhe atribuía modos de ser
considerando adequados. “A religião seja de qualquer origem sempre foi decisiva na definição
de padrões comportamentais femininos - o catolicismo, ao impor às mulheres a imagem da
Virgem e Mãe, arquétipos ineludivelmente dicotômicos [...]”. (ALMEIDA, 2007.p.66).
A mulher era considerada frágil pela sua natureza, destinada ao lar e à maternidade,
seu papel era governar a casa, educar os filhos e cuidar do marido.
Edith Stein, no livro A Mulher sua missão segundo a natureza e a graça, mostra-nos
como a mulher é representada segundo os preceitos da igreja.

Só quem estiver ofuscado pela paixão da luta poderá negar o fato óbvio de que o
corpo e a alma da mulher foram formados para uma finalidade específica. A palavra
clara e incontestável da Escritura expressa aquilo que nos está ensinando a
experiência diária, desde o início do mundo: a mulher é destinada a ser a
companheira do homem e a mãe dos seres humanos. [...] A atitude da mulher tem
em vista o pessoal-vivente e visa o todo. Cuidar, velar, conservar, alimentar e
promover o crescimento: esse é seu desejo natural, genuinamente maternal. (STEIN,
1999, p. 57)

A autora descreve que a essa preocupação maternal se junta a de companheira. Seu


dom e sua felicidade consistem em dividir a vida com outra pessoa, participando de tudo que
lhe diz respeito e que a participação da vida do marido leva consequentemente à subordinação
e à obediência. Já o homem serve diretamente à sua causa; a mulher a serve por amor a ele, e
assim é adequado que ela o faça sob a orientação dele.
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Vejamos a mãe de Deus no seu papel de esposa: confiança tranquila, sem limites,
que conta com uma confiança ilimitada; obediência silenciosa; apoio fiel,
inquestionável, no sofrimento; tudo isso em subordinação à vontade de Deus que lhe
confiou o marido como protetor humano e cabeça visível. A imagem da mãe de
Deus nos revela a atitude fundamental da alma que corresponde à vocação natural da
mulher: obediência para com o marido, confiança e participação da vida dele
colaborando com suas tarefas objetivas e com o desenvolvimento de sua
personalidade; em relação ao filho: vigilância confiante, incentivo e promoção dos
dons que Deus lhe deu. (STEIN, 1999, p.60)

Segundo a citada autora, tudo isso é fundamentado na convicção de que o casamento


e a maternidade constituem uma vocação que vem de Deus e que deve ser exercida por
obediência a Deus e sob a orientação divina.
Para o autor César Parecido Nunes, o mundo descrito pela Bíblia é o mundo
patriarcal, registrado pela escrita, em que a elevação masculina é assinalada, pelo sacerdócio e
as funções produtivas e militares administrativas. Entre os hebreus, a mulher era um “ser
inferior” ao homem, não podendo participar ativamente da religião a não ser sob aprovação do
marido. A adúltera era apedrejada e a menstruação tida como impureza. A mulher era
discriminada e semi-escravizada pelo marido, pai ou senhor. (NUNES, 1987, p.39)
A igreja Católica destinou a mulher ao espaço doméstico e privado, fazendo desta
um suporte para a família e o lar, mantido segundo os costumes e normas morais
estabelecidos, visando assim um controle e uma padronização moral da sociedade. Paralelo a
isso, ao homem foi dado o poder, poder de chefe de família que detém o controle sobre sua
mulher e seu lar.
A imprensa também teve (ainda tem) o papel fundamental na divulgação de padrões
comportamentais. E no caso do jeito de ser mulher, a imprensa feminina direcionada
exclusivamente às mulheres, cria um modelo ideal de mulher e sugere que todas sigam esse
padrão tanto fisicamente quanto nas atitudes públicas e privadas. Para isso, as matérias trazem
sugestões de comportamento, vestuário, maquiagem, leituras, culinária, novelas etc.
Carla Bassanezi Pinsky no livro Mulheres dos anos Dourados (2014) mostra que
durante o período de 1945 a 1964 no Brasil houve significante avanço na vida das mulheres
com o aumento da participação feminina nos serviços de consumo coletivo (enfermagem,
medicina, magistério, funcionalismo burocrático etc.) e que mesmo sendo proporcionalmente
pequena se dava de forma crescente e representa a medida mais importante da integração das
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mulheres na atividade produtiva nacional. Marca uma ruptura simbólica com a exclusividade
do trabalho doméstico; o mercado passa a exigir qualificação, o que coloca as mulheres a
competir em relativa igualdade de condições com os homens pelos postos de trabalho.
Segundo a autora foi o período que apresentou um maior potencial de mudanças no
status econômico e social da mulher, contribuindo para o processo de emancipação feminina.
A participação da mulher no mercado de trabalho formalmente remunerado,
provocou mudanças nos padrões conjugais e familiares social e culturalmente estabelecidos,
levando a uma reorganização dos papéis familiares tradicionais referentes a homens e
mulheres.

O controle exercido por marido, pais e irmãos sobre as mulheres diminui


consideravelmente quando elas trabalham fora de casa. Contudo, ou por isso mesmo,
elas devem cuidar de sua reputação comportando se de maneira a não “reduzir as
oportunidades para o casamento” ou degradar o marido. (PINSKY, 2014, p.178)

A inserção social e familiar da mulher se deu de forma subordinada, e como já


mencionado acima, a esta foi destinada um lugar, ao longo da história, que lhe confere
algumas possibilidades, mas também lhe impõe limites.

Apesar das novas possibilidades para a mulher, ainda se espera que ela siga o
modelo antigo e – como afirma Jornal das Moças214, “inteligência e cultura apenas
não fazem a esposa perfeita” – o que conta neste aspecto é colocar o casamento em
primeiro plano, como objetivo de vida. Jornal das Moças aconselha à “mulher de
inteligência e de cultura superior” a considerar o casamento sua vocação
primordial”, assim “verá abrirem- se muitos caminhos”. A revista também sugere
que, quanto menos exigente e preocupada com questões extralar a mulher for, mais
chances terá de ser feliz. (PINSKY, 2014,p.192).

A ideologia que está arraigada e ainda perpassa culturalmente é a dos princípios


bíblicos, por serem considerados sagrados. Ainda nos dias atuais é perceptível ver no discurso
da “sociedade” que ser mulher significa antes de tudo experimentar o desejo da maternidade e
de dedicação ao lar. Mas a luta das mulheres vem passando por vários momentos. A violência
estrutural contra a mulher foi desvendada, foram denunciadas publicamente as estruturas

214
Pesquisa realizada por Carla Bassanezi Pinsky no livro Mulheres dos anos Dourados (2014) no período 1945
a 1964.
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educacionais machistas. As mulheres adquiriram alguns espaços, há novas formas de


agregação da mulher, houve equívocos, mas o que importa observar é que houve alterações
profundas na sociedade e na própria mulher.
De que modo, o sujeito aqui em destaque, Maria Bronzeado Machado vivenciou suas
experiências enquanto mulher? O tópico seguinte pretende situar contextualmente aspectos de
sua trajetória.

UM RECORTE BIOGRÁFICO DA PROFESSORA MARIA BRONZEADO


MACHADO

Primogênita do casal Severino Alves Bronzeado de Araújo e Olívia Alves da Costa,


Maria Bronzeado Machado nasceu em 07 de dezembro de 1916 na fazenda Serrinha em
Constantino, distrito de Lagoa de Remígio, no município de Areia, na mesorregião do Agreste
Paraibano e na microrregião do Brejo Paraibano.
Maria Bronzeado compunha uma família de doze filhos, sendo oito mulheres e
quatro homens. Teve participação marcante na formação de três dos seus quatro irmãos, para
os quais a irmã e professora é considerada uma heroína. Casou-se jovem, com o Sr. Edson de
Moura Machado com quem teve quatro filhos: Fernando Antônio, Luis Carlos, Luciano e
Maria Helena. Ficou viúva em 1983.
Fez o curso primário com a professora Júlia Leal em Areia/PB, interrompendo seus
estudos para cuidar da educação de seus irmãos, dando início ao seu exercício do magistério
em uma escola construída pelo próprio pai: a Escola Rudimentar Rural Mista de Serrinha. Na
época, essa iniciativa representou algo extraordinário. Além dos irmãos, a escola acolhia as
crianças dos sítios vizinhos.
Na década de 1950, Maria Bronzeado Machado veio com sua família morar em João
Pessoa, passando a residir na Avenida Epitácio Pessoa, no bairro Santa Júlia, atual bairro da
Torre. Com a ousadia e determinação, típicas à juventude da época, os jovens irmão
ascenderam socialmente, embora já viessem de uma família com longa tradição em Remígio,
inicialmente ligados ao meio rural e posteriormente ao campo político. Em João Pessoa e
principalmente em Remígio conquistaram poder e prestígio. A família Bronzeado por vários

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anos ficou à frente no governo da cidade de Remígio, e a memória de seus familiares ficou
imortalizada em nomes de rua, creche e escola.
Já casada, concluiu o curso Normal no Colégio Santa Rita - da Ordem das madres
franciscanas, fundado em 1937, na cidade de Areia - de maneira extraordinária em apenas 8
meses, quando normalmente seria concluído em 4 anos, recebendo seu diploma de professora
aos 32 anos no dia 28 de novembro de 1948. Era uma aluna exemplar, destacando-se como
primeira colocada em uma turma de 31 alunos, atingindo a média 9,3.
Em sua caminhada no âmbito educacional, oficialmente, começou a sua vida
profissional como professora concursada na Escola Elementar Mista de Serrinha (Remígio) e
dando continuidade, exerceu os seguintes cargos: diretora e professora da Escola Elementar
Mista de Remígio, diretora do Ensino Municipal de Areia, diretora das Escolas Reunidas
Noturnas “Santa Júlia” em João Pessoa, em cujo cargo se aposentou em 11 de abril de 1962,
despedindo-se do Serviço Público e dedicando-se, exclusivamente, ao Ensino Privado. Em
1953, criou o Externato Epitácio Pessoa, posteriormente denominado Instituto Presidente
Epitácio Pessoa (IPEP), instituição que alcançou prestígio na sociedade paraibana
principalmente entre as décadas de 1970 e 1980. Foi diretora proprietária do educandário que
constava de três unidades escolares com uma matrícula aproximada de 4.000 alunos. A este
educandário, a professora Maria Bronzeado Machado dedicou boa parte de sua vida,
acompanhando diariamente o seu funcionamento.
Pelos serviços prestados à comunidade no setor da Educação, a Câmara Municipal de
João Pessoa concedeu-lhe o título de “Cidadã Pessoense”, atribuiu seu nome a uma escola da
rede estadual de João Pessoa, a uma rua e uma praça desse mesmo município.
Após mais de quarenta anos de vida dedicada à educação, no dia 10 de junho de
1986, à uma hora e trinta minutos da madrugada, sua família e principalmente os pessoenses
foram pegos de surpresa pela morte da professora e poeta Maria Bronzeado Machado, aos 69
anos, vítima de vertículite no hospital Alberto Sabin no Recife- PE.
Conforme publicado no jornal A União no dia 11 de junho de 1986 na página 8,“A
Paraíba perde a última representante de uma geração de grandes educadores”, dizam
repetidamente as mães de alunos que estudavam no Instituto Presidente Epitácio Pessoa
(IPEP), durante o velório. Foi sepultada no Cemitério da Boa Sentença em João Pessoa/PB.
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Com sua morte, a escola ficou sob a administração de filhos, mas o seu declínio
começa a ser percebido.

REPRESENTAÇÕES DE MULHER NOS ESCRITOS DA EDUCADORA E POETA


MARIA BRONZEADO MACHADO

A professora e poeta Maria Bronzeado Machado deixa transparecer em seus escritos


seu modelo de mulher. A maternidade é tema constante de contos e crônicas que a mesma
publicava. Seus escritos publicados em revistas e jornais constituem-se por si só em
importante elemento para a recuperação do seu ideário. No poema Prece de uma Mestra
“inspirado na prosa de Gabriela Mistral215”, a professora demonstra seus princípios
carregados de ideologia maternal e religiosa.

Alarga meu coração de mãe


Para que eu ame aos meus discípulos
Como aos meus próprios filhos!
Quero vê-los seguindo retos trilhos
Na senda do futuro!
Faze de cada um, um homem de valor
Que cada qual saia das minhas mãos
Como um poema
Escrito com amor! (MACHADO, 1980, p.66).

Evidencia o papel da mulher pregado pela igreja católica, cujos ensinamentos


indicavam que a mulher era destinada a ser companheira do homem e mãe dos seres humanos,
e seus atributos naturais ligavam-se ao cuidar, velar, conservar, alimentar e promover os
mesmos. Foi com essa concepção ideológica de que a profissão exercida pela mulher é um
sacerdócio, que a professora Maria Bronzeado adentrou ao magistério. E essa forte influência
adquirida durante sua formação é retratada.
No poema “Ao coração de uma mãe”, a poeta dirige-se a mãe do Pe. José Fidelis em

215
Gabriela Mistral, pseudônimo de Lucila Godoy Alcayaga, (1889 – 1957), poeta chilena, primeira escritora
latino-americana a receber o prêmio Nobel de literatura. Parte de sua obra é marcada principalmente pelo
sentimento de frustração por não ter exercido a maternidade.

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sua ordenação sacerdotal. Retrata a felicidade de dever cumprido, revelando-se aí também a


sua formação cristã.
Dar um filho a Deus pelo sacerdócio é a ambição mais santa que possa ter uma mãe
devotada, humilde e pobre de bens materiais, mas rica de virtude, de amor, de
piedade e de fé, deu mais que do que o filho, pois juntamente com ele ofereceu a
Deus as suas preces para que o supremo ideal de sua vida fosse convertido em
realidade. [...] As lutas foram insanas, as dificuldades tremendas, mas a vontade de
ferro do filho coadjuvante pelas suas fervorosas preces conseguiram vencer todos os
empecilhos. [...] Que sublime e comovente emoção, ver aquelas mesmas mãos que a
mãe viu tão pequeninas, elevarem para o céu a Hóstia Consagrada no Santo
Sacrifício da Missa!Saber que daquela boca só sairão palavras de perdão e
amor!(MACHADO, 1980, p.125).

Enaltece o sacrifício, o desapego, a renúncia, aos bens matérias ao mesmo tempo que
também valoriza os princípios cristãos de fé e piedade deixando claro que a ambição mais
importante é para as coisas de deus, contrariando a sua prática, já que a professora poeta foi
também uma mulher empresária, fundou um dos colégios importante para época e que
ganhou prestigio por esse feito.
No poema “saudação a criança brasileira”, a educadora Maria Bronzeado explicita o
papel de mãe que ela demonstra ter incorporado para si, quando diz “Alarga meu coração de
mãe, E a minh’alma de mestre se extasia para trazer-te a minha saudação”. (MACHADO,
1980, p71). Nos princípios da igreja, esse é o modelo da mulher, onde quer que esteja no
âmbito profissional, vivendo como mãe em casa, que ocupe um lugar de destaque na vida
pública ou esteja atrás dos muros silenciosos de um convento, em todo lugar deve ser uma
serva do senhor.
Porém, essa imagem da “mulher moral”, que é boa esposa, boa dona de casa e boa
mãe, constante em seus escritos, cede lugar, às vezes a vestígios que apontam outra
expectativa do ser mulher, como alguém que também necessita de autonomia e
independência. No poema “Saudação a minha mãe” dedicado a sua mãe, a poeta vai
relembrando a figura de mãe que a sua representou e faz menção a injustiça que pode
performar o papel de mãe, quando diz:

Enquanto as meninas ricas já ingressavam na sociedade. Tu, minha mãe, pobre


menina já enfrentavas da vida a dura realidade! Seguindo o sublime exemplo de
Maria, em Nazaré na tua humilde casinha fazias todas as coisas inerentes à mulher.
Menina-mãe, menina-esposa, arrumadeira e babá, cozinheira, lavadeira, costureira,
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engomadeira e ainda prudente conselheira e companheira querida do meu pai. Pelo


teu trabalho ingrato e sem salário e tudo que sofreste para nos criar, eu te agradeço...
(MACHADO, 1980, p.112).

A própria poeta e educadora Maria Bronzeado no texto “Meus queridos filhos”


escrito no dia das mães de 11 de maio de 1975, dedicado aos seus filhos, descreve a mãe que
foi para com eles.

[...] sinto lá no intimo de minh’alma, um mixto de remorsos e uma vaga tristeza a


empanar a ternura deste momento de felicidade... Acho que não fui, para meus
filhos, a mãe-carinho a mãe-ternura, a mãe amor. Na minha ância de perfeição,
tornei-me por demais severa e autoritária. [...] Eu tinha que trabalhar, às vezes até
fora do lar, para ajudar ao seu pai, para que nada lhes faltasse pelo menos
materialmente. [...] Perdoem a Mãe que eu pretendia ser, mas as circunstâncias não
permitiram que eu fosse. Toda a minha vida sem conforto, todos os meus trabalhos,
e pensamentos, todas as minhas preocupações só tiveram um objetivo, meus filhos:
dar-lhes uma educação cristã e condigna e fazê-los homens de bem.
(MACHADO,1980, p.112).

Mesmo não sendo a mãe-carinho, passiva e submissa, no íntimo seu objetivo maior
era educar seus filhos nos princípios da igreja. Mas já se percebe a diferença de mãe que foi
das que descreve em seus escritos. Assim podemos observar que o enquadramento de funções
e papéis vividos, decorre da estrutura social e cultural. A regulamentação do comportamento
maternal é determinado pelos interesses estruturais da cultura. No entanto, as mulheres vêm
contribuindo para a construção de novos valores, ajudando a renovar e atualizar as ideias
condizentes com seu tempo.
A partir do texto acima é possível identificar que tentar ser uma mãe de acordo com
os preceitos cristãos, mas ao mesmo tempo buscar um espaço de atuação profissional pode
gerar na mãe uma culpa, advinda de um modelo de mãe que requer dedicação exclusiva e
integral aos filhos, ao marido e à casa. Sair de casa para trabalhar, embora os resultados do
trabalho revertam em bens culturais para a família, toma a feição de que a mulher está
deixando de cumprir bem o papel a que foi destinada "naturalmente" pela sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos escritos da educadora e poeta Maria Bronzeado Machado é visível que as


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representações do "ser mulher" enquadram-se nas concepções patriarcal e religiosa da igreja


católica a qual difundia ideais moralizadores que colaboravam para a “educação doméstica e a
orientação do espírito feminino”. O casamento era considerado o acontecimento mais
importante de uma mulher e devia sobrepor a qualquer outra aspiração.
Em seus escritos a professora evidencia a sua concepção de mulher, a qual deve
exercer a maternidade como predestinação, uma vez que a mulher nascera para servir o outro,
cônjuge ou filho; valoriza o sacrifício, a abnegação, ao mesmo tempo em que enaltece a
importância do casamento e da maternidade. Todavia em alguns momentos a autora deixa
transparecer que essa virtude de mãe bondosa, dedicada ao lar, fica difícil de exercer, quando
as mulheres de sua época e dos dias atuais precisam adequar-se às novas condições de vida
que lhes impõem outras necessidades, outras funções e a ocupação de novos lugares, gerando
uma soma de tarefas que restringem o seu tempo de estar em casa à disposição dos filhos e do
marido. Os tempos são outros, as mulheres buscam ter os mesmo direitos que os homens,
trabalham, são ativas e tem as mesma capacidades intelectual, moral e social.
A postura que a sociedade tem apresentado em relação à mulher varia de acordo com
aquilo que se espera, deseja ou exige que a mesma faça em cada circunstância. A
maternidade, por exemplo, pode ser posta como uma condição em que a mulher sobrepõe-se
ao homem, por ser capaz de gerar uma nova vida; em outros momentos pode ser utilizada para
subjulgá-la, colocá-la em um lugar de responsável maior por essa nova vida a quem precisa
dedicar-se integralmente, abrindo mão de seus próprios desejos e necessidades, para servir e
cuidar dos cidadãos do futuro.
A leitura dos escritos de Maria Bronzeado Machado permite-nos assinalar a presença
de sentimentos variados e extremos de origem remota refletindo os discursos religiosos,
científicos, literários, dentre outros, produzindo explicações, representações e preceitos muitas
vezes desfavoráveis, e não raro contraditórios, às mulheres.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Jane S. de. Ler as letras: por que educar meninas e mulheres? Campinas,

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Autores Associados, 2007.


NUNES, César Aparecido. Desvelando a sexualidade. Campinas-SP: Papirus,1987.
MACHADO, Maria Bronzeado. Flôres do caminho. João Pessoa/PB: A União Cia Editora,
1980.
PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos Anos Dourados. São Paulo: Contexto, 2014.
STEIN, Edith. A mulher: sua missão segundo a natureza e a graça. Tradução por Alfred J.
Keller. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

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REPRESENTAÇÕES SOBRE MULHERES NO JORNAL A TRIBUNA,


RONDONÓPOLIS, MT, DÉCADA DE 1980.

Ana Gonçalves Sousa | annninhasousa@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo discutir as representações da mulher veiculadas


no Jornal A Tribuna de Rondonópolis-MT na década de 1980. Para a análise, consideramos
um eixo de conteúdo, a saber: as colunas que demostram as mulheres que trabalham fora de
casa, mas pensam em arrumar um bom marido para se casar. Assim as matérias a serem
discutidas nesse trabalho são “As Românticas As ninfas do miraglia” “o 9.o mandamento”,
“As Românticas As ninfas do miraglia”, “da mãe de uma criança ao motorista”, “Conforto e
charme no Monte Líbano Palace Hotel” “Matou o Amante a tiros”, “Amor leva lavrador ao
suicídio”, “empregada doméstica rouba 200 mil em joias” e “com quatro facadas tentou matar
ex-esposa”.
Para analise representação da mulher vinculada à mídia impressa, optou-se pela
investigação do Jornal A Tribuna de Rondonópolis-MT, O objetivo do jornal era contribui
para memória jornalística e defesa de Rondonópolis, lugar do centro-oeste brasileiro que
desenvolveu sua economia entorna do agronegócio a partir dos anos 1970, recebendo forte
fluxo migratório composto por homens e mulheres que sonhava com uma vida melhor e
enriquecimento.
Trata-se da principal mídia jornalística impressa em circulação desde sua fundação,
com arquivo organizado e disponível para pesquisas.
O jornal A Tribuna esta localizado na Avenida Bandeiras, nº 2481, Centro,
Rondonópolis, MT.

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Entendo que trabalhar com fontes jornalísticas permite analisar as representações em


relação ao movimento das mulheres no contexto nacional e regional.
Em relação a estudar sobre representação das mulheres nos jornais, nas revistas e
demais impressos, Pinsky (2012, p. 470) afirma:
“Mulher é assunto. Todos falam dela – como é como deveria ser – e são muitas as
representações que envolvem a figura feminina em todas as épocas Dentre elas, há
as dominantes tomadas como modelo e referencia, identificáveis com maior clareza
em cada período. Algumas persistem no tempo, enquanto outras envelhecem a ponto
de provocar riso, estranhamento ou não serem sequer reconhecidas pelas novas
gerações.
Discutindo sobre as formas de apropriação das imagens femininas propagada por
Revistas e Jornais e as formas como cada época construiu representações sobre o feminino,
Pinsky (2012, p.470) pondera que,
É certo que nem sempre as mulheres se espelharam nas imagens construídas sobre
elas. E é evidente que os modelos não descrevem a realidade, esta muito mais rica e
cheia de possibilidades. Entretanto, e importante conhecer as representações que
prevalecem em cada época, pois elas têm a capacidade de influenciar os modos de
ser, agir e sentir das pessoas, os espaços que elas ocupam na sociedade e as escolhas
de vida que fazem. Os discursos sobre o que é “próprio da mulher” ou qual o “seu
papel” afetam também as politicas publicas, o valor dos salários, a oferta de
empregos, as prescrições religiosas, os procedimentos jurídicos, a educação
oferecida e ate o trabalho dos cientistas em cada época”. (PISNKY, 2012, P.470).
Em primeiro lugar, é possível identificar influências do contexto histórico e das
transformações culturais, sociais, políticas e econômicas que marcaram a década de 1980,
tanto no Brasil como em Rondonópolis.
Assim nos anos de 1980 o movimento das mulheres no Brasil estava em fase
consolidada. Conforme a autora Sarti:
Nos anos 1980 o movimento de mulheres no Brasil era uma força política e social
consolidada. Explicitou-se um discurso feminista em que estavam em jogo as
relações de gênero. As idéias feministas difundiram-se no cenário social do país,
produto não só da atuação de suas porta-vozes diretas, mas também do clima
receptivo das demandas de uma sociedade que se modernizava como a brasileira. Os
grupos feministas alastraram-se pelo país. Houve significativa penetração do
movimento feminista em associações profissionais, partidos, sindicatos, legitimando
a mulher como sujeito social particular. (SARTI, 2004, p.42).
Assim podemos observar que o movimento das mulheres no Brasil espalhou-se por
diversos espaços “legitimado a mulher como sujeito social particular”.
Ainda ao início dos anos 80 do século passado o Brasil vivia a ditadura militar. Ao
longo da década de 80, pressões por eleições resultou no movimento de “Diretas Já”, um
envolvimento cívico de várias camadas da sociedade, o qual contou com a participação de
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intelectuais, artistas, pessoas ligadas à igreja (e outras religiões que não a Católica), partidos
políticos (que se formavam como o PT, PMDB e PSDB), entre tantas personalidades
políticas.
A bandeira deste movimento era pela promoção do processo de redemocratização do
país, possibilitando a participação da sociedade civil na escolha de seus governantes. Embora
as diretas não tenham tido o efeito que se esperava (uma vez que o Congresso ainda era
controlado pelo governo, retardando as eleições apenas para o final da década), mesmo que
indiretamente um presidente civil foi eleito: Tancredo Neves.

No entanto, Tancredo faleceu em 21 de Abril de 1985 e não chegou a assumir o cargo


para comandar a transição para a democracia, fato que levou José Sarney, seu vice, a assumir
a presidência da República.

Para o desenvolvimento da região Centro Oeste surgiu “O Prodoeste”. Para a


historiadora Alves:

O prodoeste foi criado pelo presidente Emilio Garrastazu Médici com a finalidade
de promover o desenvolvimento da região Centro-Oeste. Este projeto surgiu em
1971, integrado no 1º plano de desenvolvimento econômico e social visava reforçar
a integração da região Centro-Oeste e a criação de uma infraestrutura para o
desenvolvimento da agropecuária regional. Objetivada ainda atacar em Mato Grosso
os problemas que retardavam o escoamento da produção de Mato Grosso. Por ser
um período de grande prosperidade econômica, o projeto foi recebido com muito
entusiasmo. Incentivados pelas facilidades oferecidas para financiamentos no setor
agrícola, muitas famílias adquiriram grandes extensões de terras próximas a
Rondonópolis.

Nessa época chegou o Sr. Adão Sales que “plantou pela 1ª vez em todo o estado de
Mato Grosso sementes de soja, da variedade Santa Rosa, fazendo com isso explodir
uma nova mentalidade agrícola em Rondonópolis e região (...). Adão Salles não foi
só o 1º gaúcho a vir com sua família para a região de Rondonópolis, o primeiro na
implantação de soja, mas também o primeiro a desfazer o mito de que o cerrado não
dava soja”. A partir dai grande numero de famílias do Sul vieram para a região
cultivar soja, sendo que atualmente é produto de pauta econômica do Estado.
(ALVES, 1995, p.48)

Assim podemos observar como foi feito o processo de povoamento do Centro Oeste,
demostrado que tinha terra boa para plantio de soja, e demostra que com o movimento do
PRODOESTE varias pessoas vieram em busca de enriquecimento rápido, e mostra o
povoamento rápido da cidade de Rondonópolis.

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Para compreender todas essas discursões que esta acontecendo nos anos de 1980,
voltemos a 1970 para entender o que estava acontecendo em relação ao movimento das
mulheres em Rondonópolis. Segundo a historiadora Oliveira (2014), que fez uma sua
pesquisa no jornal A Tribuna sobre as mulheres na década de 1970, destaca que
[...] reportagens que destacavam mulheres ocupando cargos elevados na sociedade
de Rondonópolis-MT eram raras nos jornais, entretanto, os estudos históricos, em
especial no campo das mulheres tem mostrado que as mulheres foram buscando
conhecimento e lutando por seus direitos. (OLIVEIRA,2014,Pág. 20).
A autora monstra que mesmo muitas mulheres tenham tido influencias do movimento
das mulheres ainda precisava ocorrer muitas mudanças, pois as mesmas ainda sofriam com
relação a violências e preconceitos. A autora podera que
Apesar de nos anos 1970 a mentalidade de muitas mulheres terem mudando
influenciadas pelos movimentos de mulheres e pelas mudanças ocorridas na
sociedade, o preconceito ainda existia, entretanto, é valido destacar que a imprensa
de Rondonópolis, já publicava muitos temas voltados para o universo feminino,
dentre eles podemos destacar, matérias sobre modas, concurso de beleza,
reportagens sobre mulheres ocupado cargos de destaque como desembargadora,
advogada, escritora, atriz, musicas, bailarinas, enfim, analisando os registros do
Jornal Tribuna do Leste foi possível perceber a publicação de matérias com essas
temáticas e as mulheres recebiam sempre novidades, dicas para que ficassem belas e
motivadas para conquistarem seu espaço na sociedade. (OLIVEIRA, 2014, Pág.47)
Assim a autora faz uma discussão sobre como o jornal mostrara a saída das mulheres
para o mercado de trabalho e como as mesmas eram vistas nessa época.
Para compreender as dificuldades que as mulheres passaram na década de 1980 em
Rondonópolis que eram consideradas como seres inferiores e que tinham que realizar tarefas
de acordo com o que era destinada a elas, a autora Luci Léa poderá que:
por isso, na Rondonópolis de hoje, que tem como base o uso da máquina, da técnica
e dos grandes investimentos (convencionado como espaço sexual do forte) não
somente não reconhecem o trabalho de “formiga” da dona de casa como reservam
para o restante das mulheres somente o desempenho em trabalhos considerados
menores ou alguns outros automatizados (secretárias, estenógrafas, digitadoras), sem
dizer que as desestimularam com salários mais baixos. (TESORO, 2002, P.38)
Desse modo, o “trabalho de formiga” desempenhado pelas mulheres nessa época era
tido inferior e mesmo os considerados “menores” elas ganhavam salários inferiores.

Assim, concluem-se, que as diferenças de gênero são constituídas a partir de


representações sociais, os discursos da mídia tornam-se espaços privilegiados para a
constituição de valores e para a reprodução de consensos. Afinal, estão criando representações
de gênero que repercutem, direta ou indiretamente, na sociedade.

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DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

Assim percebem-se, no jornal três representações preponderantes sobre o feminino.


A primeira representação recorrente mostra a mulher como dona de casa que cuida dos
afazeres domésticos e cuida do marido e de seus filhos, como na reportagem “Da Mãe de uma
Criança ao motorista”. a reportagem podera que

Acabo de matricular na escola meu filho de 7 anos. Apesar de ter-lhe ensinado as


cautelas para com os perigos do trânsito de veículos, não confio na sua
personalidade infantil, alegre e inocente. Rondonópolis, 21 de outubro de 1980, A
Tribuna, Página 4.
Infelizmente não posso acompanha-lo nas suas idas e vidas do colégio. Comigo
ficam as preocupações da mãe aflita que começa a ver seu filho exposto às pulações
do meio social. Pois no decorrer do dia tenho os afazeres de casa e não tenho
condições de acompanha-lo na escola. (Rondonópolis, 21 de Outubro de 1980, A
Tribuna, Página 4)
Os conteúdos referentes a mãe preocupada em deixar seu filho na escola e nos afazeres
de casa esta explicito na maior parte dessa reportagem. A reportagem acima traz um exemplo
de tais conteúdos, versando sobre a preocupação da mãe no cuidado do filho na escola e em
não poder acompanha-lo na nos momentos de estadia no periodo de aula e nos afazeres que
tem que fazer, e não preocupação que as maes tem no transito próximo a escola, aonde uma
das mães podera que os motoristas tenham cuidado nas proximidades da escola.

Outras reportagens mostram mulheres que trabalham fora de casa, mas quando
chegam em casa tem que cuidar de todos os afazeres de casa e dos filhos, como podemos ler
na reportagem/notícia com o título “As Românticas - As ninfas do miraglia” de 10 de
Fevereiro de 1980, A Tribuna, página 3.” Essa reportagem demostra o exemplo de família
comporta por pais e a filha, esta que estuda fora e vem passear na casa dos pais nas férias.

A reportagem afirma que a jovem estuda e sonha em fazer “engenharia química” e


sempre que pode vem passar as férias na casa de seus pais e nessas vindas nas férias sempre
cortejada pelo “galã Paulo Vítor”. Apresenta a ideia de que a mulher pode até estudar e viajar
para fora só que a ideia do casamento e de construir uma familia e ter uma vida fixa com com
seu marido.

Percebemos no jornal A Tribuna representação sobre mulher solteira que trabalha e


estuda, devendo buscar casamento como homens simples, pois, segundo a matéria publicada
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em 12 de dezembro de 1980, intitulada “Conforto e charme no Monte Líbano Palace Hotel.”

Jane é filha de ex-fazendeiros que deixaram São Jose do Rio Preto e vieram para
Rondonópolis e aqui dedicaram-se ao ramo de lanchonete. Jane e irma do conhecido
Batatinha... Jane cursa o 3° ano de magistério (normal) do colégio sagrado coração
de jesus, mas que se formar-se em Psicologia Clínica. E das 7 da manha até ao
anoitecer lá esta a eficiente Jane distribuindo gentilezas e atenções a todos os
hospedes indistintamente. Jane é simples não usa maquiagem, seu belo semblante já
é um quadro de rembrandt, sem precisar de retoques. (Diretora: Maria Janice
Logrado de Souza – Ano XII – Edição No. 1220 – Rondonópolis, MT 12 Dezembro
de 1980 – Fundador: Aroldo Marmo de Souza)
Jane teve um caso de amor. E esse caso deixou nitidamente rastros no seu
semblante. *ele era inspetor dos correios. Foi para São Paulo*... mas Jane que que
com seu charme, sua humildade e eficiência, logo terá outro eleito. E segundo os
padrões dela, terá que ser moreno, médio porte, até uns 40 anos, realizado
financeiramente e que tenha cultura, docilidade e generosidade. Jane merece até
muito mais, afirmamos. Porque na analise deste relator, Jane não ser psicóloga e
sim, relações públicas. Ela nasceu para essa atividade. (Diretora: Maria Janice
Logrado de Souza – Ano XII – Edição No. 1220 – Rondonópolis, MT 12 Dezembro
de 1980 – Fundador: Aroldo Marmo de Souza)
Nessa reportagem apresenta a figura da mulher que trabalha e atenciosa e delicada
que teve um romance de amor. Podemos perceber que na década de 1980, ainda existia um
conservadorismo muito grande em relação às mulheres saírem para o mercado de trabalho e
existia ainda a imagem da mulher dona de casa e boa esposa como modelo ideal.
Ainda, há reportagem especial sobre a mulher, como a que apresenta a entrevista com
o Padre Frei Otaviano, realizada em dia 25 de novembro de 1980, na qual o Frei classifica as
mulheres como “oportunistas e doutrinarias”.
Oportunistas e doutrinantes foram as palavras do frei Otaviano ao redator deste
jornal, na ocasião em que este o entrevistou para obter dados para reportagem
alusiva aos 40 anos de sacerdocio do santo frade: as mulheres devem obedecer ao 9º
madamento expressado-o de forma diferente: não cobiçar o marido alheio.
Essas mulheres na quase totalidade, vem de origens humildes, são incultas, e usam
seus dotes físicos de beleza e sexualidade para assim poderem aumentar suas rendas.
Não raro assim procederam quando ainda eram virgens, mocinhas, que capitularam
permissivamente as investidas de machões bem situados na vida. Poderiam ter mais
personalidade, amor próprio e espirito firme de decisão e mandar os assediantes
machistas às favas, estudarem e trabalharem e se transformarem em dignas esposas
de algum homem pobre, mas honrado, e terem chances de ambos subirem na vida
em uma escalada comum, com o fruto do trabalho de ambos. Seria uma união
profícua, que enalteceria cada vez mais a ambos e seus filhos se exaltariam quando,
chegando à idade adulta tomassem conhecimento da luta e jornada dos seus pais.
“casai-vos e multiplicai-vos” diz o evangelho. “vou curtir aquele coroa e tomar
grana dele”, dizem as concubinas deslumbradas, já com maldade latente nas
nefandas intenções. Mas as vitimas acabam sendo elas mesmas. Esses machistas,
que envergonham a sociedade e não raro as suas famílias quando são descobertas as
suas atividades extraconjugais, usam as concubinas como se usam as joias e
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bijuterias. (A Tribuna, diretora: Maria Janice Logrado de Souza – Ano XII –


Edição nº 1.208 – Rondonópolis, MT 25 de Novembro de 1980 Fundador: Aroldo
Marmo de Souza; Editorial).
Nessa reportagem apresenta uma entrevista com frei Otaviano, segundo o Padre as
mulheres podem trabalhar, estudar, mas tem que se preocupar em casar com um homem de
caráter e simples mesmo que não seja rico, mas que a trate bem para quando seus filhos
crescerem eles sintam orgulho dos mesmos e possam se espelhar neles para serem pessoas de
bom caráter.
Na esteira das considerações do padre, verifica-se que a mulher e tratada como objeto
que pertence ao homem. Em lugar disso, são enaltecidas suas características físicas, ao
mesmo tempo em que lhe é negada qualquer visibilidade enquanto sujeito.
Em uma reportagem especial publicada no jornal A Tribuna no dia 02 de fevereiro de
1983 com o titulo “matou o amante a tiros” mostra a imagem da mulher que se encontra fora
dos padrões de uma sociedade em que a mulher tem que ser a dona de casa, mãe de família e
boa esposa, na reportagem retrata o seguinte:
Iracema Leonor da Silva desfechou 5 tiros de revolver calibre 38 contra seu Amante
Antônio Aguillar na madrugada de domingo último, por motivos fúteis, segundo
informações da policia.
Aguillar era funcionário do IBDF e residia nos fundos da agência desse órgão. Na
madrugada fatídica retornava de uma reunião com sua amante Iracema, e ao chegar
em casa, houve uma discussão entre os dois. Aguillar chamou Iracema de cadela. A
mulher, indignada com o tratamento, mandou que fosse e seu amante titubeou,
repetiu silenciosamente Iracema Dirigiu ao IBDF, apossou de um revolver de
Aguillar retornou a sua casa e fermente desfechou-lhe cinco tiros que foram fatais.
Levado a santa casa de misericórdia, Antônio Aguillar ao dar entrada aquele
hospital, faleceu.
Iracema foi presa e atuada em flagrante, está recolhida a cadeia pública da justiça!
(Rondonópolis, 02 de fevereiro de 1983, A Tribuna, p. 9)
Nessa reportagem mostra a imagem da mulher que tem um amante e a mesma estava
situada na casa do mesmo quando os dois tiveram uma pequena discussão e a mesma disparou
5 tiros contra o mesmo e acabou sendo presa e levada para a cadeia publica.
Essa reportagem traz uma cena inusitada, pois retrata um assassinato aonde uma
mulher mata seu amante sem sequer sentir algum tipo de culpa ou caso do tipo e
provavelmente essa mulher foi jugada como uma fora dos padrões da sociedade
rondonopolinada da década de 1980.
Na reportagem “Amor leva lavrador ao suicídio” retrata a morte do “lavrador Joel
Gentil, de 24 anos, que residia no distrito de Nova Catanduva, suicidou-se na noite da última
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sexta-feira, ingerindo Aldrin”. Na reportagem explicita que:


O lavrador Joel Gentil, de 24 anos, que residia no distrito de Nova Catanduva,
suicidou-se na noite da ultima Sexta-Feira, ingerido Aldrin. Irmaos de Joel
encontraram seu corpo na manha de sabado, numa lavoura, no sitio onde Joel Gentil
Morava.
A policia de Rondonópolis foi chamada e compareceu ao local, tendo o logista feito
a autopsia e liberado o corpo para sepultamento.
O lavrador suicida foi sepultado em Nova Galileia, proximo a catanduva ainda na
tarde de sabado.
Os policiais descobriram que o motivo que levou Joel a suicidar-se foi o fato de que
sua mulher o abadonou há cerca de um mês. Parentes e populares informaram a
Policia, que Joel, desde sua separação vivia muito triste e desgostoso. Diante disso, a
dedução a que chegaram os policias é que o suicidio foi motivado pelo amor de Joel
à sua ex-mulher.

Segundo parentes da vitima, o mesmo cometeu o suicidio depois que sua mulher o
abadonou acerca de um mês antes, entao, por isso ele teria se suicidado.
Na reportagem “Empregada doméstica rouba 200 mil em jóias” retrata sobre uma
denuncia contra Lindaura Marques Palmira aonde retrata que a mesma trabalhava há poucos
meses na casa de Sidney celotim aonde a mesma roubou as joias da casa de Sidney. Assim
esta explicito na reportagem que:
Aconteceu no ultimo dia 22 de Novembro a prisão da empregada doméstica
Lindaura Marques Palmira, residente à rua Otávio Pintaluga 1133, Jardim
Pindorama, que foi denunciada pelo seu ex-patrão Sidney Celotim Ferreira, à rádio
Patrulha, que atendeu á ocorrência por ter furtado da residência deste, várias jóias
avaliadas em duzentos mil cruzeiros.
A referida empregada trabalhava já há alguns meses na casa de Sidney Celotim e
usando e abusando da confiança deste, entrou em seus aposentos e dali levou as
joias.
A ocorrência foi atendida pela plolicia Militar, que encaminhou a indiciada à
Delegacia Municipal de Vila Aurora.
Na reportagem acima mostra a figura da empregada doméstica que roubou as joias da
casa de seus patrões anonde trabalhava a poucos meses e que segundo esta explicito na
reportagem a empregada abusou da confiança de seus patroes para cometer tão atrocidade.
A riqueza do material coletado no Jornal A Tribuna permite afirmar que se trata de um
periódico primordial para a compreensão das representações sobre o feminino e as
controvérsias sobre as lutas por independência e autonomia das mulheres em âmbito regional,
uma vez que o Jornal A Tribuna noticiava para a cidade de Rondonópolis-MT e regional, ao
mesmo tempo em que, apesar de não ser o objetivo central do jornal, construía e reafirmava
representações referentes à mulher dos anos 1980.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do objetivo de identificar e analisar as representações da mulher no Jornal A
Tribuna problematizado relaçoes de genero da epoca, partiu-se alguns presupostos como a
utilização da midia impressa como portador de representações moralizantes acerca de papeis
sociais que deveriam ser desempanhados pelas mulheres.
Entende-se que a pesquisa empreendida por vir a contribuir para a produção de
reflexão cientifica sobre mulheres nos jornais regionais e para o ensino sobre história das
mulheres em Rondonópolis, MT.
Por fim, trata-se um estudo que desafiou a pensar as representações sobre o feminino a
partir de uma fonte histórica, ao mesmo tempo em que, exigiu a escrita e a dedicação no fazer
histórico. E que parece afirmar que o Jornal A Tribuna legitima um modelo de mulher construída
desde o século XIX, segundo a qual a mulher deve cultiva o papel de boa mãe, esposa e dona de
casa e castidade.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Laci Maria Araújo. História da Educação em Rondonópolis. Editora da UFMT/


Maria Araújo Alves. – Cuiabá: MT, 1995.
LEITE, Rosalina de Santa Cruz. Brasil Mulher e Nós Mulheres: origens da imprensa
feminista Brasileira. Ver. Estud. Fem. V.11 n.1 Florianópolis Jan./Jun. 2003.
LUCA, Tania Regina. Mulher em Revista. PINSKY, Carla Bassanezi. A Era dos Modelos
Rígidos. IN: Nova História das Mulheres/ Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro. –
São Paulo: Contexto, 2012.
OLIVEIRA, Cíntia de Jesus. Sociabilidades femininas em Rondonópolis na década de
1970. Trabalho de Conclusão de Curso. Licenciatura em História. Universidade Federal de
Mato Grosso, Campus Rondonópolis, 2014.
SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma
trajetória. Rev. Estud. Fem., Florianópolis , v. 12, n. 2, p. 35-50, Aug. 2004 . Available
from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2004000200003&lng=en&nrm=iso>. access on 24 May 2015.
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http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2004000200003.
TESORO, Luci Léa Lopes Martins. Luta das Mulheres. IN: Experiências de Mulheres/ Laci
Maria Araújo Alves, Luci Léa Lopes Martins Tesoro. Rondonópolis – MT: LMAA Editora,
2002.

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REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO ENVELHECIMENTO FEMININO EM UM


JORNAL DE FORTALEZA-CE

Kelly Maria Gomes Menezes| kellymariagm@gmail.com


Francisca Silverlene Marques Nunes Teixeira
Janny Reis Holanda

INTRODUÇÃO
O crescimento da população idosa é reflexo de uma melhoria nas condições de vida
que aumenta a perspectiva de vida dos seres humanos. Segundo Birren e Schroots (1996), o
envelhecimento pode ser definido em três divisões: envelhecimento primário; envelhecimento
secundário e envelhecimento terciário. Para Papalia (2010), o envelhecimento primário é um
processo gradual e inevitável de deterioração corporal que ocorre durante todo o ciclo de vida.
Ainda segundo o mesmo autor, o envelhecimento secundário são processos de
envelhecimento que resultam de doença e de abuso ou de falta de uso do corpo e que, muitas
vezes, são evitáveis. De acordo com Birren e Schroots (1996), o envelhecimento terciário ou
terminal é o período caracterizado por profundas perdas físicas e cognitivas, ocasionadas pelo
acúmulo dos efeitos do envelhecimento, como também por patologias dependentes da idade.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2009, do IBGE,
mostrou ainda que, nos últimos anos, a população do Brasil cresceu a uma média anual de
1,21%. No ano 2000, eram 169.799.170 milhões de habitantes, aumentando para 183.987.291
milhões em 2007. Especificamente, com relação à população idosa brasileira, a pesquisa
revela que o número de pessoas no Brasil com 60 anos ou mais chegou a cerca de 21 milhões.
Considerando apenas o segmento de pessoas com mais de 75 anos (cerca de 5,5 milhões), os
idosos no Brasil tomam proporções significativas, mudando bastante o perfil etário até pouco
tempo considerado extremamente jovem.
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Com o crescimento do envelhecimento da população, surgem novas necessidades


para a pessoa idosa, como mobilidade, saúde e segurança. Para garantir a proteção social e
ampliação de seus direitos, foram criados meios legais, como a Constituição Federal de 1988,
a Política Nacional do Idoso, estabelecida em 1994 (Lei 8.842), e o Estatuto do Idoso de
2003. Aumentaram os programas de benefícios, como o Benefício de Prestação Continuada
(BPC) e o Bolsa Família, com uma cobertura social que atende, com pelo menos um
benefício, oito de cada 10 pessoas idosas no Brasil (2004). Como avanço, também se
destacam a criação do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI) em 2002 e as
Conferências Nacionais de Direitos da Pessoa Idosa que contaram com a participação do
governo e da sociedade civil. Além disso, foram fomentadas políticas públicas e planos
setoriais, como o Plano de Ação para o Enfrentamento da Violência contra a Pessoa Idosa
(2004); o II Plano de Ação para o Enfrentamento da Violência contra a Pessoa Idosa (2007); a
Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (2006).
Conforme o Estatuto do Idoso brasileiro (2003), ser idoso é ter sessenta anos ou
mais. A esse respeito, Neri (1991, p. 18) afirma:
As “idades do homem” são puras invenções sociais: o conceito de infância emergiu
nos séculos XVIII e XIX, o de adolescência em fins do século XIX e o de juventude
há 20 ou 25 anos atrás. O conceito de meia-idade como etapa intermediária entre a
idade adulta e a velhice data dos anos 60. Os anos 70 assistiram à promulgação do
conceito de “velhice avançada”, sem dúvida um fato social e demográfico novo na
história da humanidade.

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), é legitimado o idoso a partir de


sessenta anos em países desenvolvidos e 65 anos em países em desenvolvimento. Conforme o
pensamento de Debert (2004, p. 33), a velhice é uma “construção sociocultural.” Assim,
podemos entender que não existe um conceito unívoco sobre o que é ser idoso.
Além disso, gradativamente, o número de mulheres tem superado o de homens,
constatando-se, assim, através de censos e dados estatísticos, que a velhice tem,
paulatinamente, se feminilizado. O fato é que a população velha já é predominantemente
feminina, são 34 mil mulheres acima dos 60 anos, contra 28 mil homens na mesma idade, o
que significa 22% a mais de mulheres, ou ainda, 10 mulheres para oito homens. (IBGE,
2010)

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Devido ao que foi exposto, surge a necessidade de discutir sobre como a velhice e o
envelhecimento femininos são representados pela mídia jornalística e como essa visão pode
ser assimilada pelos leitores. Dessa forma, essa pesquisa abordou a representação social da
velhice e do envelhecimento femininos, através da análise das matérias publicadas no
primeiro semestre de 2015, em um jornal impresso de Fortaleza.

METODOLOGIA
Nessa pesquisa, utilizamos a pesquisa bibliográfica e documental, através da coleta
dos dados de matérias publicadas em um grande jornal impresso de Fortaleza, que abordam o
assunto velhice e envelhecimento femininos, durante o primeiro semestre do ano de 2015, a
fim de analisar as representações sociais que são veiculadas por essa mídia a respeito dessa
população; o núcleo teórico central se deu à luz de Moscovici (2012).
A análise do conteúdo foi realizada através da pesquisa de natureza quantitativa e
qualitativa. (CHIZZOTTI, 2010) A partir de Moscovici (2012), analisamos a representação
social da velhice e do envelhecimento abordada em 49 matérias que continham os termos
velhice e envelhecimento, das quais 24 estavam relacionadas com o gênero feminino.
Levamos em consideração o grau de abrangência do público de leitores desses jornais, sendo,
portanto, um grande influenciador da formação das representações sociais da mulher idosa na
cidade de Fortaleza.
Em um primeiro momento, levantamos os dados publicados, quantificando-os pela
nomenclatura utilizada para se referir às idosas. Nós nos fizemos valer desse método com a
finalidade de adquirir os dados necessários, junto à leitura e à análise de todo o conteúdo
disposto, para realizar a pesquisa qualitativa. No segundo momento, pudemos submergir na
essência da matéria, em busca dos significados de como a velhice e o envelhecimento
femininos são representados através desse veículo midiático.
Segundo Moscovici (2012), as representações sociais são geradas a partir do
acúmulo dos processos vividos, pois sofremos transformações que dão forma a um novo
conteúdo. Dessa forma, os meios de comunicação possuem um poder de influência na
formação do senso comum propagado diariamente e as representações sociais acabam sendo
moldadas por esses meios. Através dessa influência, estabelecemos associações que nos
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guiaram, estabelecendo categorias analíticas centrais para o estudo que serão apresentadas a
seguir.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados que entraram na contagem desta pesquisa foram as matérias que


apareceram com os termos “velhice” e/ou “envelhecimento” relacionados ao gênero feminino
a partir da busca na página da internet do jornal, durante o primeiro semestre do corrente ano
(de janeiro a julho de 2015). É importante salientar que a quantidade de termos encontrados é
superior ao número de matérias pelo fato de em uma única matéria aparecer mais de um termo
relacionado ao tema da pesquisa. Assim, independente do número de vezes que o termo se
repete na matéria, ele só foi contabilizado uma vez a cada matéria.
Para uma melhor visualização, tabulamos os dados encontrados, em números
absolutos, por: “termos utilizados como sinônimos que tratam da questão da velhice e/ou do
envelhecimento com relação ao gênero feminino”, e por “assuntos relacionados à velhice e/ou
ao envelhecimento femininos”, de acordo com cada jornal.

TABELA 1: TERMOS ENCONTRADOS SOBRE VELHICE E/ OU


ENVELHECIMENTO COM RELAÇÃO AO GÊNERO FEMININO - JORNAL 1
TERMOS ENCONTRADOS QUANTIDADE
IDOSA 17
VELHINHAS 5
MULHERES NA TERCEIRA IDADE 4
MULHERES MADURAS 4
VOVÓ / AVÓ 3
SENHORA 3
VELHA 2
SUPERCENTENÁRIA 1
IDOSA LÉSBICA 1
Fonte: A pesquisa, 2015.
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Conforme a tabela 1, quanto à forma de se referir à mulher que se encontra na fase da


velhice, observamos que grande parte das matérias utilizam as representações sociais
“mulheres idosas” (17), “velhinhas” (5), “mulheres na terceira idade” (4), “mulheres
maduras” (4), “vovó” e/ou “avó” (3), “senhora” (3) e, em menor medida, “velha” (2),
“supercentenária” (1) e “idosa lésbica” (1), os quais podem remeter a uma visão estereotipada
da velhice e do envelhecimento femininos.
Corroboramos com as ideias do professor Rubem Alves (2001), e com autores
especialistas em gerontologia social tais como: Pedro Paulo Monteiro (2003) e Eliane Brum
(2012); quando teorizam que os vocábulos “terceira idade”, “velhinhos (as)”, “maduros (as)”,
são subterfúgios semânticos, uma maneira de eufemizar (ou maquiar) esta fase da vida,
trazendo à tona apenas a questão do “politicamente correto” ou do aspecto “legal”,
desconsiderando, assim, o lado real da palavra “velho”. Mesmo aqueles conceitos que
supervalorizam atributos positivos – como “melhor idade”, “feliz idade”, “idosos sábios” –
são considerados prejudiciais, pois romantizam a imagem que a sociedade tem sobre o idoso,
enxergando-os de forma benévola e até compadecida, não colaborando com a discussão
política e produzindo preconceitos positivos. (PALMORE, 1990)
Apenas duas matérias se referem a essa fase da vida com a representação social
“velha”. Beauvoir (1990, p. 353) evidencia como a palavra “velho” é estigmatizada, “toda
uma tradição carregou essa palavra [velho] de um sentido pejorativo – ela soa como um
insulto. Assim, quando ouvimos nos chamarem de velhos, muitas vezes reagimos com
cólera.”

TABELA 2: ASSUNTOS RELACIONADOS À VELHICE E/ OU


ENVELHECIMENTO FEMININOS - JORNAL 2

ASSUNTOS RELACIONADOS QUANTIDADE


ENVELHECIMENTO POPULACIONAL 8
ALIMENTAÇÃO E SAÚDE 5

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BELEZA E ESTÉTICA 4
DIREITOS SOCIAIS 3
CULTURA 2
GÊNERO E SEXUALIDADE 1
OUTROS 1
Fonte: A pesquisa, 2015.

No tocante aos assuntos relacionados à velhice e/ ou ao envelhecimento, Verificamos


ainda que o jornal trouxe mais matérias sobre o envelhecimento populacional (8), haja vista o
fenômeno de “feminização da velhice”, onde há um crescimento quantitativo e qualitativo
(presença nos espaços públicos) das mulheres na velhice.
Em termos sociológicos, o fenômeno de feminização da velhice toca a questão das
transformações das normas etárias e de gênero que ditam os padrões de comportamentos das
mulheres velhas, as relações intergeracionais e os intercâmbios de apoio material,
instrumental e afetivo entre gerações, pois “a ausência de relações intergeracionais causa o
abandono de crianças, a desorientação de jovens e a internação ou desvalorização social de
velhos.” (PAIVA, 2006, p. 82)
Mesmo que a velhice não seja considerada universalmente feminina, Lloyd-Sherlock
(2002) teoriza que ela possui um forte componente de gênero, pois as mulheres velhas são
mais propensas a ficarem viúvas e/ou a sofrerem com situações econômicas bem menos
vantajosas que os homens. A grande maioria sequer teve algum tipo de trabalho remunerado
na vida. Assim,
O retrato geral da saúde feminina no mundo desenvolvido mostra que as mulheres
vivem mais do que os homens, mas são mais suscetíveis a contraírem doenças e a
experimentarem mais problemas de deficiência. [...] De modo geral, os homens
tendem a adoecer com menos freqüência (sic), mas as doenças que afligem os
homens tendem a ser mais ameaçadoras à vida. [...] As mulheres mais velhas tendem
a ter rendimentos mais baixos que os homens. Essa discrepância pode ser percebida
no acesso reduzido a recursos que promovem a independência e facilitam uma vida
ativa. [...] As mulheres como um todo estão economicamente em maior
desvantagem do que os homens, sofrendo mais os efeitos da pobreza.” (GIDDENS,
2005, p. 133- 134)

Há ênfase também nas matérias sobre alimentação e saúde (5), trazendo à tona a
cultura do corpo da mulher jovem e das possibilidades de adiar as marcas do envelhecimento.
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As matérias relacionadas à alimentação e à saúde demonstram o avanço das tecnologias, cada


vez mais modernas, as quais garantiram à humanidade um conforto bem maior que as
gerações anteriores. Porém, observamos que o tema se ateve ao estímulo da prática de
exercícios em busca não apenas de um corpo saudável, mas à representação social de um
modelo padronizado do que é considerado um corpo belo na sociedade atual. Uma
consequência dessa reviravolta dos tratamentos corpóreos com o advento da indústria da
beleza foi que induziram os indivíduos a tornaram-se cada vez mais “consumidores de
serviços de saúde”, mas não necessariamente a refletirem sobre a sua própria saúde e bem-
estar. (GIDDENS, 2005)
O jornal também abordou as relações de beleza e estética (4), o que também denota
uma fuga do envelhecimento, sobretudo feminino, com a recorrência a procedimentos
cirúrgicos e estéticos diversos. A questão da beleza e da estética surge nas matérias como uma
expressão da sociedade contemporânea que enfatiza cada vez mais a juventude. Nessa
realidade do novo e do belo, caracterizada pelo consumo exacerbado e pelo culto
incondicional ao corpo, a velhice emerge como um conjunto de representações sociais
negativas, ligadas a doenças e à decadência física, que conferem ao idoso um local periférico
nas relações sociais. O corpo, enquanto retrato dos indivíduos, é espetacularizado e
considerado um bem valioso. Dessa forma, “submetido a essa cultura da imagem e do
consumo, este sujeito passa a investir narcisicamente no seu corpo, objeto primeiro do seu
amor e fonte de seu prazer (o hedonismo é outra forte característica deste sujeito) individual.”
(AMORIM, 2001, p. 156)
Observamos que há pouca menção nas matérias sobre os direitos sociais das mulheres
velhas (3), sobre cultura (2) e menos ainda com relação às questões que envolvem gênero e
sexualidade (1). Os temas vinculados aos direitos sociais são desenvolvidos com base no
fenômeno do envelhecimento, pois, conforme expresso na introdução deste trabalho, as
estatísticas têm demonstrado o aumento do número de pessoas idosas em nível mundial. Desta
feita, o cenário brasileiro traz à valsa propostas, na forma de políticas públicas, voltadas ao
referido público, na intenção de contemplar suas demandas, tais como: educação, saúde,
acessibilidade, lazer etc. Além de ter seus direitos expressos na Constituição Federal de 1988,
as matérias destacam a importância da criação de duas legislações específicas voltadas à
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população idosa que são a Política Nacional do Idoso (1994) e o Estatuto do Idoso (2003).
O tema cultura surge, na maioria das matérias, numa perspectiva mais legalista,
colocando que é dever do Poder Público criar oportunidades de acesso a cursos especiais que
abranjam também o domínio de novas tecnologias e à cultura em geral. No sentido da
preservação da memória e da identidade culturais, os idosos podem participar das
comemorações de caráter cívico ou cultural. Além disso, a pessoa idosa tem direito ao
desconto de 50% em eventos artísticos, culturais, esportivos e de lazer. (BRASIL, 2003)
As pesquisas de dados mostram que, embora as estatísticas comprovem o aumento da
expectativa de vida e o avanço das tecnologias e da medicina, o idoso brasileiro de hoje não
tem condições de prover sua subsistência da melhor maneira de que necessita. Nessas
matérias, fica claro que a velhice é representada, principalmente, pelo fator cronológico.
Porém, devemos esclarecer que é também socialmente construída, posto que a velhice e o
processo de envelhecimento assumem especificidades, papéis e significados distintos
conforme a sociedade e a época em que são enfocados. (DEBERT, 2004)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os meios de comunicação são responsáveis por um dos principais reforços de
representação social dos valores atribuídos à velhice, ao envelhecimento e ao lugar da mulher.
Logo, a representação social de quem está nessa fase, ou seja, da mulher velha, não é vista
com bons olhos nos veículos de comunicação, haja vista o interesse capitalista estar voltado
para as novidades e para o consumo, desqualificando o passado. Com isso, há a reprodução de
uma concepção deturpada e estereotipada do que é e do que pode vir a ser a velhice,
problematizando ainda mais a aceitação dessa fase da vida.
Constatamos, portanto, que a velhice e o envelhecimento são representados a partir
de uma ausência, seja ela de trabalho, de saúde, de direitos, de beleza, enfim, de vida. Essa
ideia revela que, aos olhos da sociedade, quando o ser completa 60 anos ou quando se
aposenta, é considerado inválido e improdutivo. Assim, o preconceito contra o idoso está
ligado também ao modo de produção capitalista no mundo globalizado em que vivemos, o
qual considera útil apenas quem produz. Não podemos, pois, descartar a influência da mídia
sobre a velhice e o envelhecimento femininos, uma vez que as informações podem apresentar
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uma imagem fantasiosa dessa fase da vida, reforçando estereótipos e colaborando para
processos de múltiplas exclusões.

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SOCIOLOGIA E LITERATURA: PERSPECTIVAS ANALÍTICAS SOBRE AS


PRODUÇÕES DAS RELAÇÕES DE GÊNERO

Kenia Almeida Nunes216 | keniaanunes@hotmail.com

INTRODUÇÃO
O poeta, o escritor, o pintor, o escultor transformam a realidade, combinado-a com a
sua percepção, produzindo ao mundo uma interpretação própria e subjetiva, longe de ser um
mero espelho refletor da realidade que o cerca. Destarte, deve-se pensar a influência exercida
pelo meio social sobre a obra de arte como uma relação recíproca, ou seja, de influência
mútua. É necessário ressaltar que só a partir do século XVIII a literatura passa a ser também
um produto social, pois ela passa a expressar uma série de condições de cada civilização em
que é produzida. Uma obra traz para o universo inteligível a singularidade que o autor produz
sobre o mundo, a partir de uma leitura, em alguma medida, independente, pois a obra literária
tem uma autonomia em relação ao mundo, haja vista que nem sempre ela está diretamente
ligada aos acontecimentos por excelência públicos. Enfim, a obra literária é singular e tem
uma autonomia relativa em sua manifestação pública, mas é também uma obra ou produto do
discurso que rege a sociedade em que se encontra. O meio social disponibiliza as matérias
para constituição da obra, assim como atua na constituição do que há de essencial na obra,
enquanto obra de arte.
As reflexões e as críticas que são tecidas em torno de uma obra literária devem ser
atribuídas sem deixar ao acaso a perspectiva estética da obra, a vista de que, a obra é uma
ressignificação da relação entre tempo e espaço, pois o trabalho literário é uma obra diferente

216
Aluna do doutorado no Programa de Pós-Graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde
se dedica as áreas do conhecimento dos corpos, das relações de gênero, das sexualidades, do cinema, da teoria
Queer.
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de um texto científico, o que não se deve entender como uma desvalorização desta, afinal, não
há uma espera por uma exclusividade científica, e sim, uma produção para o presente e para o
futuro, a obra não tem, de certa forma, um fim como algumas teorias científicas quando
superadas, em alguns casos ela estará para a posteridade. Dessa forma, a obra literária é
produto da manifestação do discurso de uma época, mas também, representa a ressignificação
desse discurso, já que ela não tem o objetivo de servir inteiramente a algo ou alguém, pois em
muitos casos ela subverte essa situação.
O trabalho sociológico de reflexão e crítica em torno de uma obra literária deve
atingir as relações sociais que são expostas na obra. Assim como afirma Antônio Cândido,

Quando fazemos uma análise desse tipo, podemos dizer que levamos em conta o
elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na
matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada;
nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da
própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo.
(CÂNDIDO, 1985, p. 16).

Aqui, quando se reflete sobre as relações que os personagens realizam na obra


estudada, é preciso levar em consideração os espaços formadores daquele que realiza a ação
literária, pois a obra é um produto tanto da vida social objetiva do autor como da realidade
subjetiva do mesmo, fruto de sua reflexão diante das coisas objetivas, as quais estão expostas
no mundo que o dizem real. Nesse caso, o livro A Hora da Estrela além de fornecer essa
perspectiva, sobre a relação sociedade e literatura, também traz uma autora transfigurada em
um narrador-personagem que tem por objetivo não só contar fatos, como também exercer o
papel de colonizador dos personagens. Ele (narrador) é aquele que diz o que os outros são a
partir de sua perspectiva diante de fatos, um processo que é fruto da manifestação de sua
subjetividade.
Toda obra literária tem sua fonte no social ou como queira, na realidade, não há obra
que ultrapasse essas fronteiras, pois o pensamento não é uma substância. O pensamento existe
através da relação de experiências sociais. Tudo está dentro das possibilidades do discurso, até
mesmo as obras que subvertem a regra estabelecida pelo discurso, representam um espaço
formado dentro do mesmo, para tanto, o que mais tarde fará parte da mesma ordem que se

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tentou outrora subverter. O que não pode ser pensado como algo insuperável, afinal há as
frestas que são deixadas pelos discursos e, são essas fissuras que formam novo pensamento e,
dessa forma, há a possibilidade de se formar o novo diante do que se está dado.
É a partir dessas considerações sobre a relação literatura e sociedade que exponho a
construção da identidade da personagem principal do livro A hora da estrela (1998) de
Clarice Lispector. Tal identidade foi erigida por intermédio das relações que ela mantém com
os outros personagens. Contudo, para fins desse artigo, somente as relações estabelecidas
entre Macabéa e Olímpico serão analisadas. A metodologia utilizada para fornecer suporte ao
objetivo proposto foi a análise bibliográfica, presente em todo trabalho acadêmico, e a análise
de discurso, a qual tem como alicerce Michel Foucault no livro A ordem do discurso (2006).
O discurso não é aquilo que emana da boca dos sujeitos, a fala. O discurso é uma prática
social de regulação, que define regras para a manifestação e organização de um campo de
experiência. Todas as sociedades são controladas, selecionadas e organizadas pela produção e
manifestação do discurso, embora sejam exprimidas de formas diferenciadas. Dessa maneira,
o sujeito não é anterior ao discurso, nem tão pouco o sujeito da fala ou do enunciado, mas sim
um efeito, uma produção do discurso.

SOBRE OS ESPAÇOS E AS IDENTIDADES: UM É O QUE O OUTRO NÃO É

Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior
nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e
expirando. Na verdade – para que mais que isso?. (LISPECTOR,
1998, p. 23).

O Nordeste não existia até meados da década de 1910 e, conseqüentemente, o


nordestino também não existia. A região Nordeste é uma invenção da historiografia em seu
discurso sobre a História Regional que se deu no final do século XIX e no início do século
XX. A figura do nordestino como é percebida hoje é uma produção bem recente, tendo seu
início a partir da década de 1930. Uma construção que tem como marco fundador o
Movimento Regionalista e Tradicionalista, que pretendia desenhar a nova região a partir da
preservação da tradição através da recusa ao mundo moderno e ao mundo urbano. É através

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da Proclamação da República (1889) e da Abolição da Escravidão (1888) no Brasil que gerou


certos tipos de sentimentos de ameaça à ordem estabelecida no país. Dessa forma, com o
iminente declínio da sociedade dita patriarcal217, há, consequentemente, um declínio da
autoridade que está transfigurada na personagem do homem e, principalmente da hierarquia
social, que estabelecia os papéis de homens e mulheres na sociedade. O processo de
democratização da sociedade brasileira é vista através da ótica do embaralhamento das
verdades existentes para homens e mulheres na sociedade, e com isso haveria um impulso
para o nivelamento dos diferentes grupos que dão segmento à sociedade, o que provocaria
uma feminização desta.
A imagem do feminino na modernidade foi modificada pela expressão de uma nova
corporeidade, que tem como consequência uma ameaçava às fronteiras entre os gêneros. A
mulher nesse novo espaço passa a ser vista sob o ângulo do ser traiçoeiro, pérfido, enganador,
dominador, ameaçador.
Para frear a propagação dessa nova identidade feminina, produto das relações
modernas, a região que antes era conhecida só por Norte se reveste de discursos baseados na
preservação da tradição, e acaba produzindo um novo espaço, o Nordeste. E para fornecer
visibilidade a esse novo espaço, que é uma produção imagético-discursiva218 formada em
acordo com as sensibilidades existentes historicamente, tem-se a necessidade de construção
daquele que vem a ser o “salvador” da região que se encontra em declínio. O nordestino será
um tipo rural, que não se identifica com o mundo moderno e, por isso reagiria ao processo que
transforma a sociedade brasileira em urbano e industrial, uma sociedade capitalista e
burguesa. Segundo Albuquerque Júnior (2003, p. 231), ele “será definido, acima de tudo,
como uma reserva de virilidade, um tipo masculino, um macho exacerbado, que luta contra as
mudanças sociais que estariam levando à feminização da sociedade.”
O homem nordestino foi se constituindo a partir de uma série de figuras sociais que
tomava uma vasta área do país. Essas figuras sociais são até hoje identificações para os

217 Relativo ao exercício da autoridade, do prestígio e da explicitação do poder na figura paterna, o que
desencadeia nos traços definidores do monopólio do mando. Sobre as sociedades ditas patriarcais. Ver:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feminização da sociedade. In: Nordestino: uma invenção do
falo - Uma história do gênero masculino. Maceió. Edições Catavento, 2003.
218 Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras Artes. São Paulo:
1999.
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habitantes da região Nordeste, como a figura do cangaceiro, do jagunço, do retirante, do


caboclo, do matuto, do beato, do senhor de engenho, do coronel dentre outras. Foi a partir da
absolvição dessas figuras que se formou o que temos hoje por homem nordestino, uma
identidade construída em desacordo com a parte moderna do país, o Sul. Daí, os
estereótipos219 que por ventura surgiram para designar o habitante dessa região nada mais é
do que uma leitura que os outros fazem da construção da identidade desse homem nordestino.

O QUE UM É O OUTRO NÃO É

A figura masculina que a personagem de Olímpico de Jesus está transfigurada na


obra literária é o “cabra-macho”, uma junção do “cabra safado” e do “macho de briga”, duas
designações forjadas para ele na obra. Olímpico que não tem medo de nada é violento, forte,
viril, sabedor das coisas e destemido, um dominador por excelência, logo um “cabra-macho”.
Uma figura que aqui nesta pesquisa está sendo tratada como fonte da construção da identidade
atuante da personagem Macabéa, visto que, ela se mostra a partir do encontro com o outro.
Será através do encontro desses dois personagens, Olímpico e Macabéa, e da relação
que ambos estabelecem que a identidade de Macabéa será desenhada. Esse homem, Olímpico
de Jesus, não está sendo tratado como um tipo ideal220, ou seja, a categoria de “cabra-
macho” não foi aqui inventada para analisar esse personagem. No entanto, a categoria é uma
construção feita através da propagação de uma série de discursos, os quais foram
incorporados por aqueles que estão fora do espaço e também dentro dele (Nordeste). Portanto,
é uma categoria já existente. Esse homem designado como “cabra-macho” foi criado com
objetivos bem definidos, ele representa uma forma de reação contra a modernidade e contra as
mudanças forjadas por ela em todo o seu processo de desenvolvimento. É nesse processo que
encontramos a oposição desenvolvida pelo homem frente à mulher, que existe com o objetivo
de frear as conquistas femininas no âmbito da era moderna. O “cabra-macho” vai reerguer a
região em que ele se encontra inserido e, conseqüentemente, vai lutar contra a emergência da

219 Essa acepção diz respeito aos processos que geram os preconceitos, nesse caso designando as identidades
regionais. Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica ou de
lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007.
220 Sobre os tipos ideais, ver: WEBER, M. Os tipos de dominação. In: Economia e Sociedade. Ed. Univer.
Brasília. Brasília, 1999.
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mulher.
Eis que temos Olímpico de Jesus, um “cabra-macho” do sertão da Paraíba que não
veio à toa para o Rio de Janeiro, ele queria ser mais e tinha desejos por melhores dias na sua
vida, a qual não fora fácil, mas ele tinha tirado de letra, naquela terra seca de onde viera que
tudo se quer plantar, mas quase nada se colhe. Por isso, ele se mantinha resistente às
adversidades que se colocavam a ele, o homem nordestino já é criado para resistir à terra

Macabéa, ao contrário de Olímpico, era fruto do cruzamento de “o que” com “o


que”. Na verdade ela parecia ter nascido de uma idéia vaga qualquer dos pais
famintos. Olímpico pelo menos roubava sempre que podia e até do vigia das obras
onde era a sua dormida. Ter matado e roubado faziam com que ele não fosse um
simples acontecido qualquer, davam – lhe uma categoria, faziam dele um homem
com honra já lavada. (LISPECTOR, 1998, p. 58).

Olímpico não era inocente como Macabéa que não compreendia as coisas do mundo,
embora isso não a incomodasse, no entanto, ele sempre queria ter respostas e dar respostas
quando questionado, afinal ele era o homem, aquele que detém a sabedoria necessária para se
guiar e orientar os outros que, por alguma brincadeira do destino, o colocam em seu caminho.
Esse é o caso da personagem Macabéa, menina moça do sertão de Alagoas, que perde os pais
cedo e fica sob a responsabilidade de uma tia, beata que lhe dava cascudos e a privava de
comer o seu doce favorito, goiabada-com-queijo. Mas, “Maca”, como era chamada pelas
colegas de quarto, não era tão submissa quanto parecia, pois se assim fosse talvez essa história
não existisse, pelo menos não com ela. Macabéa teve coragem para romper com as suas
origens e construiu em si um desejo ralo, rasteiro por mudança, daí foi para o Rio de Janeiro.
No entanto, esse rompimento não fez dela uma lutadora ou transgressora na nova
selva de pedra que a rodeava. Ela viveu na sombra de não ser nada, e quando era vista ou
escutada, dependia dos outros para realizar tal feito. Olímpico é aquele que faz Macabéa
existir enquanto Macabéa, pois até então não se sabia quem era aquela moça de quem Rodrigo
S.M. falava tão impiedoso e ao mesmo tempo até amoroso, um amor um tanto cruel. Quando
em uma tarde chuvosa do mês de maio, eles finalmente se encontram e, assim foi

No meio da chuva abundante encontrou (explosão) a primeira espécie de namorado


de sua vida, o coração batendo como se ela tivesse englutido um passarinho

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esvoaçante e preso. O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram


como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejavam. Ele a olhara
enxugando o rosto molhado com as mãos. E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo
imediatamente sua goiabada-com-queijo. (LISPECTOR, 1998, p. 42).

Macabéa só existe em sua singularidade a partir desse encontro, visto como um


entrelaçamento de “animais” da mesma espécie. Afinal, até então ela era apenas uma moça
nordestina situada no mundo por um narrador-personagem, que se viu quase que obrigado a
falar sobre alguém que ele considerava ter na face o ar do “sentimento de perdição”, falar dela
então era tedioso e uma perda de tempo, mas se não tem o que fazer vai lá. “– E, se me
permite, qual é mesmo a sua graça?” e ela responde “ – Macabéa.” (LISPECTOR, 1998, p.
43). Desde então, eis que ela surge por entre um relacionamento duvidoso. Olímpico de Jesus
passa a ser a conexão entre Macabéa e o mundo.
O relacionamento deles é como os dias de chuva fina, não molha tanto, mas também
nada pode se secar ou esquentar. Era então de se esperar que nos três primeiros encontros
fossem realizados sob uma fina e fria chuva, o que obrigou Olímpico a perder o que
considerava uma finura que o padrasto tinha lhe fornecido a duras penas. “Você também só
sabe mesmo é chover!.” (LISPECTOR, 1998, p. 44). Namoro ralo. Era assim que era. As
conversas eram perguntas de Macabéa e respostas de Olímpico.

Você sabia que na rádio relógio disseram que um homem escreveu um livro
chamado “Alice no país das maravilhas” e que ele era também um matemático?
Falaram também em “élgebra”. O que é que quer dizer “élgebra”?
- Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher. Desculpe a palavra de
eu ter dito fresco porque isso é palavrão para moça direita. (LISPECTOR, 1998, p.
50).

E o namoro continua,

Ela achava Olímpico muito sabedor das coisas. Ele dizia o que ela nunca tinha
ouvido. Uma vez ele falou assim:
- A cara é mais importante do que o corpo porque a cara mostra o que a pessoa está
sentindo. Você tem cara de quem comeu e não gostou, não aprecio cara triste, vê se
muda – e disse uma palavra difícil – vê se muda de “expressão”.
Ela disse consternada:
- Não sei como se faz outra cara. Mas é só na cara que sou triste por dentro eu sou
até alegre. É tão bom viver, não é?
- Claro! Mas viver bem é coisa de privilegiado. Eu sou um e você me vê magro e
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pequeno, mas sou forte, eu com um braço posso levantar você do chão. Quer ver?
- Não, não, os outros olham e vão maldar!
- Magricela esquisita ninguém olha. (LISPECTOR, 1998, p. 52).

E assim, da mesma forma que começou o namoro acaba, sem alvoroços. Na verdade,
ele nunca demonstrou satisfação em namorar “Maca”, afinal ele “era um diabo premiado e
vital e dele nasceriam filhos, ele tinha o precioso sêmen.” (LISPECTOR, 1998, p. 58). Mas,
quando ele viu Glória, colega de trabalho de Macabéa, sabia que era uma mulher de verdade.
Farta de carnes o que a demonstrava como alguém que possui uma posição privilegiada. E
naquele momento, viu-se esfarelar o que ambos tinham, ele demonstração de rudeza e
macheza viril sobre ela e, Macabéa se percebeu novamente num espaço vazio do mundo.
Nada a conectava no momento com o mundo a não ser Olímpico.

Foi então (explosão) que se desmanchou de repente o namoro entre Olímpico e


Macabéa. Namoro talvez esquisito mas pelo menos parente de algum amor pálido.
Ele avisou-lhe que encontrara outra moça e que está era Glória. (Explosão) Macabéa
bem viu o que aconteceu com Olímpico e Glória: os olhos de ambos se haviam
beijado.
Diante da cara um pouco inexpressiva demais de Macabéa, ele até que quis lhe dizer
alguma gentileza suavizante na hora do adeus para sempre. E ao se despedir lhe
disse:
- Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. Me desculpe se
lhe ofendi, mas sou sincero. Você está ofendida?
- Não, não, não! Ah por favor quero ir embora! Por favor me diga logo adeus!.
(LISPECTOR, 1998, p. 60).

Nem tristeza ela pôde sentir, pois não fazia parte dela, mas o que fazia parte dela se
não o nada ou o quase nada? É nesse rompimento que ela perde aquilo que lhe liga ao mundo,
ela sempre precisou de elos que a ligassem ao mundo, mesmo que esses elos fossem
desastrosos como foi o caso do relacionamento que manteve com um “moço” que nem ao
menos sabia o seu nome durante tanto tempo e que, por ventura do destino cruel que teimava
em lhe seguir foi trocada pela colega, a qual passa a função de conectar Macabéa ao mundo.
Mesmo assim, não se via tristeza nos olhos dela, na verdade ela não era uma pessoa triste,
pois para ser triste é necessário saber o que se é. E ela não fazia ideia do que era, só sabia
viver e, só queria viver.

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Olímpico é fruto de um processo de socialização221 desenvolvido pela região, ou


seja,. ele é fruto de uma sociedade construída como violenta, o Nordeste222, uma sociedade
que tem por base duas características principais: a coragem e a honra. Duas características que
irão legitimar e dar visibilidade à violência exercida pelos homens sobre os homens e, acima
de tudo, à violência exercida sobre as mulheres, uma violência às vezes física, porém muito
mais simbólica, pois é essa violência que cria as relações entre os gêneros e,
consequentemente, produz a mulher nesse meio violento a partir do homem. Sendo que dentre
várias figuras surge o que podemos compreender como aquela que mais é pensada quando se
fala do Nordeste, a figura do “cabra-macho”, a junção de uma série de imagens e enunciados
sobre o habitante dessa região. Mas, não se nasce um cabra-macho. Esse ser é fruto da
tentativa de formação de uma raça regional223 que tende a naturalizar os papéis de gênero e
assim, justificar a dominação masculina. Esses papéis aprendidos nas instituições sociais vão
reproduzir a centralidade que o falo tem na vida dos homens, visto que, desde o nascimento,
os homens são tratados a partir do que o falo pode produzir nas relações, isso fica claro nos
rituais de masculinização a que os meninos são submetidos desde a infância para serem vistos
socialmente como homens e mais, como macho, um ser viril, forte e dominador. Temos então
a produção da figura da mulher de forma relacional. Macabéa é diferente de Olímpico. Uma
diferença construída por meio da exclusão224. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

221 Processo pelo qual todo indivíduo passa após o nascimento, com o objetivo de inculcar ou interiorizar nele
as regras, leis e normas que a sociedade em que ele está inserido mantém. A esse respeito, ver: BERGER, P. A
sociedade como realidade subjetiva. In: A construção social da realidade. Petrópolis. Ed. 14ª, 1985.
222 A formação do homem rústico tem por base a ideia de uma construção masculina a partir de uma sociedade
violenta, o Nordeste do cangaceiro, homem forte, viril, violento, honrado dentre outras características adquiridas
socialmente. Sobre a produção do homem rústico no Nordeste ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz
de. A invenção de um macho. In: Nordestino: uma invenção do falo - Uma história do gênero masculino.
Maceió. Edições Catavento, 2003.
223 Diz respeito à construção de um homem, no caso “cabra-macho”, com o objetivo de fazer frente à
modernização das sociedades, o que provocaria um afrouxamento da ordem tradicional vigente para os gêneros.
Ver: ALBUQUERQUER JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção de um macho. In: Nordestino: uma invenção
do falo - Uma história do gênero masculino. Maceió. Edições Catavento, 2003.
224
Sobre a formação da identidade por meio da diferença e, consequentemente, por meio da exclusão ver:
SILVA, Tomaz Tadeu de. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais/Tomaz Tadeu da Silva
(org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 15. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
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Se o macho representa o centro de tudo nessa região, a fêmea apresenta-se como


aquilo que o homem não é. Olímpico se coloca como um homem que aqui é exposto como
“cabra-macho”, aquele que sabe de tudo, é forte, viril e dominador. A mulher é construída a
partir de um princípio de inferioridade e exclusão social em relação às atividades e formas de
agir que os homens desenvolvem na sociedade. E da mesma forma que o macho é produto do
inculcamento desses princípios, a mulher também aprende socialmente a se comportar como
submissa. Isso ocorre porque há uma tendência a percepção desse comportamento ser natural,
pelo fato dos dominados acabarem aplicando as categorias construídas do ponto de vista dos
dominantes às relações de dominação225.
Assim como as mulheres, os homens também são produzidos a partir da dominação
masculina, o que faz com que estes vivam em uma constante cilada, pois a todo instante há a
necessidade de afirmar, em quaisquer circunstâncias, a sua virilidade. Conforme Bourdieu
(2005, p. 64), “A virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas
também como aptidão ao combate e ao exercício da violência (sobretudo em caso de
vingança), é, acima de tudo, uma carga.” A identidade masculina vista através da questão da
honra é produto de um trabalho de nominação e inculcação, pois só assim essa identidade será
conhecida e reconhecida no mundo social, tornando-se assim em um habitus, lei social
incorporada.
Para ser esse homem, não basta simplesmente nascer, mas passar por um longo
processo de inculcamento, ou seja, de interiorização de certas regras referentes ao que se
pensa por homem na sociedade atual. Olímpico não é apenas homem, ele é um “cabra-
macho”, um efeito do discurso fundador da região Nordeste e do nordestino.
A relação que a personagem Macabéa mantém com Olímpico é uma relação de
passividade. Ela vive às margens do que ele é, faz ou diz. Não há maiores questionamentos da
parte dela sobre a vida que leva ou sobre a relação que mantém com ele, até mesmo nas
conversas quando ela pergunta algo aparentemente sem importância, espera-se que ele saiba
das respostas mesmo não sabendo, isto só é esperado pela personagem porque ela foi
construída na relação a partir dele.

225 A respeito da violência simbólica, ver: BOURDIEU, P. Uma imagem ampliada. In: A dominação
masculina. Rio de Janeiro. 4 ed. 2005.
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Macabéa só reage, dessa forma, em relação a Olímpico porque foi construída dessa
maneira, afinal a ideia do homem como detentor da força, da sabedoria, da atuação frente à
mulher é uma realidade subjetiva e objetiva dentro da sociedade, pois além de se fazer
presente nas mentes de ambos, também faz parte dos discursos de manutenção de uma série
de instituições sociais que dependem da existência dessa dualidade hierárquica entre os
gêneros para se manter, como por exemplo, a família. A mulher é subjugada pelo homem e
por uma sociedade construída em comum acordo com padrões essencialistas, os quais buscam
interpretar as relações humanas a partir da biologização dos corpos masculinos e femininos,
fazendo-os em prol de uma polarização social do masculino como fonte única da verdade,
quando realiza o desejo heterossexual na busca pela manutenção de papéis sociais para os
gêneros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: uma invenção do falo – Uma
história do gênero masculino (Nordeste-1920/1940)/Durval Muniz de Albuquerque Júnior.
Maceió: Edições Catavento, 2003.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 3 edição - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 7.. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1985.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio.
Edições Loyola, São Paulo, 2006.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela/Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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UM DOCUMENTÁRIO SOBRE ELAS, MAS A HISTÓRIA É DELES!


REPRESENTAÇÕES E A DISPUTA DA MEMÓRIA DAS CANGACEIRAS

Caroline de Araújo Lima226 | carolimasantos@gmail.com

CANGACEIRAS: UMA HISTÓRIA DAS MULHERES

A história do movimento do cangaço é rica em fontes documentais e fílmicas, contudo no


que se refere às cangaceiras, ainda são poucos os estudos sobre a trajetória dessas
participantes. Quem foram essas mulheres? Elas tinham cor, classe social e diferentes
motivações, diante dessa pluralidade fala-se aqui de cangaceiras. Rachel Soihet (1997)
chamou atenção para essa pluralidade, como também alertou para essa marginalização das
mulheres enquanto objeto de estudo, isso não é um privilégio apenas das cangaceiras. Foram
poucos os historiadores, anterior aos Annales, que trataram da participação das mulheres na
história, segundo Soihet, Michelet227 ao escrever sobre a Revolução Francesa destacou nos
seus textos uma história, na qual, as mulheres apareciam, na esfera do privado ainda,
explorando a infidelidade e o cotidiano, contrapondo a mulher – natureza; ao homem –
cultura.
Os Annales contribuíram para que as mulheres tornassem tema e objeto de estudo da
História, tendo em vista seu interesse em história dos seres vivos, da sua trajetória, seu
cotidiano, dar voz aos subalternizados. Segundo a autora, o marxismo não se apropriou das
mulheres enquanto objeto de análise por entenderem que o foco estava na luta de classes, e
que a superação da mesma proporcionaria a superação das diferenças entre homens e
226
Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia, Coordenadora de Projeto de Iniciação Científica
sobre Mulheres no Cangaço e suas representações na literatura e no cinema; Coordenadora de Projeto de
Extensão “Contando História e Aprendendo com Imagens”, ações de formação docente; Mestre em História
Regional e Local pela UNEB.
227
Ver: MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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mulheres. (SOIHET, 1997, p. 276) Essa realidade na produção historiográfica mudaria, de


acordo com a autora, a partir da década de 1960, quando correntes revisionistas marxistas
ligados a história social assumem enquanto objeto os grupos ultrapassados pela história, as
massas populares, e então as mulheres do povo.
Essas mulheres do povo, que se tornariam cangaceiras eram mulheres sertanejas, mestiças,
negras. Como estas entraram para o movimento? Alguns depoimentos das sobreviventes do
movimento apontam para duas possíveis motivações: o voluntário, em geral movido pela
paixão por um cangaceiro ou a oportunidade de ascensão social e fuga do trabalho rural (ex.:
Maria Bonita; Inancinha, etc.) e o rapto, resultado de uma ação violenta (ex.: Dadá) e até
mesmo em circunstâncias de fuga. Independente da ação ou a forma que levaram essas
mulheres a participarem diretamente do cangaço, as mesmas em alguns depoimento colocam
de forma positiva suas experiências. Em relação aos depoimentos alguns chamam atenção,
como os de Dadá, a qual, em seus relatos que todas as mulheres que entraram no cangaço
eram de boa família e até mesmo de famílias abastadas, algumas eram “moças” quando
entraram no movimento e tinham boa índole228.
Observou-se a preocupação de registrar que estas mulheres eram “normais”, e estando no
movimento não significava que deixaram de ser “mulheres de boa índole”. Para Soihet o
registro aponta para a necessidade de defesa, romperam com o modelo de casamento,
ocuparem espaço no mundo público, quebraram a “normalidade”, elementos que já
criminalizavam moralmente as cangaceiras, pois
A menor sensibilidade sexual da mulher “normal” – que subordina sua sexualidade a
maternidade, em contraposição àquelas dotadas de erotismo intenso que se
figuravam como altamente perigosas, dadas como criminosas, loucas, prostitutas –
constituiu-se na visão dominante apregoada por autoridades como filósofos, médicos
e juristas. (SOIHET, 1997, p. 294)

A entrada no movimento empoderou essas mulheres, pegaram em armas, lideraram ao


lado dos companheiros, constituíram outro modelo de família, escolheram seus amantes,
romperam com o modelo de feminino instituído pela sociedade cristianizada, defendido pelo
Estado fálico republicano. Demarcar ser de “boa índole” também expressou a permanência da
ética sertaneja nos bandos, criminosas perante a República, mas sertanejas que respeitam seus

228
Ver: ARAÚJO, Antonio Amaury C. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço Editora, 1985.
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companheiros, monogâmicas e tementes a Deus.

Lampião e Família, Juazeiro do Norte


Fotografia de Lauro Cabral de Oliveira (1926)

A fotografia indica o lugar da mulher na sociedade no sertão nordestino, logo, entrar


para o cangaço não significava romper com a ética sertaneja. Isso não significou impeditivo
entrarem nos bandos, espaços outrora masculinizados. Subverteram a ordem, pois segundo
Wolff (2012, p. 423), “as armas e a guerra tem sido associadas a masculinidade. É como se a
violência fosse uma exclusividade masculina, uma forma de “provar que é homem”, e como
se as armas só pudessem ser usadas por homens”.
Diante disso, o Cangaço não era lugar para mulher, possivelmente, elas precisavam ser
esquecidas e marginalizadas. Para Ana Paula Saraiva de Freitas (2005), as fontes evidenciam
essa marginalização. Nos periódicos como O Estado de São Paulo e Jornal da Manhã a
autora identificou o silêncio em relação às mulheres que pertenceram ao movimento do
cangaço, observou a ausência de pesquisas e estudos sobre as mulheres no cangaço e reduzida
produção acadêmica relacionado ao tema. Apesar de diversos memorialistas, dentre eles
Amaury Araújo e Vera Ferreira, a neta da própria Maria Bonita, que escreveram sobre estas
“mulheres de coragem”, a produção científica referente às cangaceiras ainda deixam enormes
lacunas. A imprensa em geral as tratou como meras coadjuvantes no movimento do cangaço,
de acordo com a autora

[...] as cangaceiras foram qualificadas de forma homogênea como criminosas e

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bandoleiras construindo, assim, um estereótipo masculino, belicoso e violento de


mulher, ou então, tratando-as como meros objetos de satisfação sexual,
descrevendo-as como amantes ou companheiras dos homens. E por fim, como
números, sempre de modo depreciativo. [...] Os cuidados femininos com o
embelezamento do corpo, com a aparência, foram anulados pela construção de uma
identidade belicosa e marginal (FREITAS, 2005, p. 130).

A criminalidade atribuída a elas por estes periódicos não consideravam as


circunstâncias que levaram estas mulheres a entrarem no cangaço. Nesse ambiente da caatinga
e do medo, a construção do “ser mulher” não era algo fácil. A vaidade e o amor dividiam
espaço com a dor e o medo e essa construção de sentimentos não são considerados pela
imprensa e também nos filmes sobre o cangaço.
Nesse processo de condenação midiática das cangaceiras, a imprensa considerava
apenas a entrada voluntária no movimento. Para Maria Isaura de Queiroz (1975), a entrada
das mulheres no cangaço se dava voluntariamente, justificado pelo status e a possibilidade de
uma vida. Segundo a autora, ser cangaceira oferecia ascensão social, no entanto Freitas
contrapõe o posicionamento da socióloga, apontou a possibilidade das considerações de
Queiroz pautar-se na virilidade masculina dos cangaceiros, no desejo carnal dessas mulheres,
deixando de analisar os casos de rapto e estupros, que também inseriu mulheres nos bandos.
Ser cangaceira pareceu algo de subversão a uma ordem social, patriarcal e clientelista,
contudo deve-se considerar que na guerra entre volantes e cangaceiros as maiores vítimas
eram as mulheres. Quando não entravam de forma forçada para os bandos eram estupradas e
até mesmo mortas. Contudo, as mulheres não resumiam-se a “companheiras” dos cangaceiros,
também atuavam como lideranças nos bandos. Em matéria sobre o movimento noticiou-se no
Jornal A Tarde229 “Banditismo no nordeste/A prisão de um grupo de cangaceiros
pernambucanos chefiados por uma mulher”, nesta relatou a prisão de um grupo de
cangaceiros chefiados por uma mulher em Vitória, ainda segundo o relato com a chefa foi
encontrada uma lista de casas, engenhos e outras propriedades que deveriam ser assaltadas.
Passivas e maternas, a fonte jornalística indica que não foram. Femininas e articuladas
a trajetória dessas mulheres foram marginalizadas, apontando a necessidade de dar voz a estas
personagens na produção historiográfica. Contudo, foram fontes de inspiração na literatura e
no cinema. A produção fílmica sobre o cangaceirismo, partiu das representações de sertão na

229
Jornal A Tarde, de 21 de março de 1931. In: Arquivo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia.
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constituição de uma imagem essencialmente nordestina, segundo José Luís Oliveira e Silva
(2008) as representações sobre o sertão e sertanejo feitas pela literatura e mais tarde pelo
cinema, nasceram da necessidade de autoafirmação da cultura brasileira, que experimentava
avultada expansão durante o século XX. Estas representações foram marcadas pelo caráter
dualista que opunha rural e urbano. Deste modo, segundo o autor foi sendo estereotipadas a
geografia e a cultura sertaneja com características antagônicas, pois se encontravam em
disputa a luta pelas representações. A partir dessa discussão analisaremos a forma que as
cangaceiras foram representadas nos documentários A Musa do Cangaço (1982) e Feminino
Cangaço (2013), considerando as memórias das ex-cangaceiras e sua invisibilidade.
MEMÓRIA EM DISPUTA: OUTRAS HISTÓRIAS DELAS E DELES

A comunicação apresentada tem como objetivo problematizar a disputa da memória em


torno do cangaço, através da história das ex-cangaceiras e de sua invisibilidade em produções
fílmicas. Compreende-se aqui que o filme documentário é uma obra de arte composta de
sentidos, e só o percebemos porque nossos sentidos foram humanizados. No campo da
sociologia da arte230 os debates em relação a humanidade e a arte provocou novos sentidos,
deixamos de sentir por instinto para percebermos a essência das cores, das imagens e do
movimento. A arte deixou de ser coisa para ser um documento a ser lido, ouvido, sentido.
Diante disso, observou-se os depoimentos presentes nos documentários A Musa do Cangaço
(1982) e Feminino Cangaço (2013) na busca de sentir nas falas das depoentes se a história
contada eram delas ou eram deles.
Sobre esses depoimentos faz-se necessário analisar como se constituiu essas memórias,
tendo em vista, a história de Dadá que foi vítima de rapto e estuprada pelo homem que veio
em seus depoimentos ela o tratou como um querido companheiro. Então como não questionar
essa versão positiva nas falas da ex-cangaceira? Porque os documentaristas não exploraram
essas questões? Estas são algumas questões norteadoras da pesquisa. Referente a memória,
partimos das contribuições de Halbwachs (2004), o autor explicita que a formação da
memória e das lembranças podem, a partir das vivências em grupo, ser reconstruídas ou
simuladas. A partir delas, podem-se criar representações do passado baseadas nas visões e

230
CÂMARA, Antonio da Silva; LESSA, Rodrigo (org.). Cinema documentário brasileiro em perspectiva.
Salvador: EDUFBA, 2013.
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opiniões de outras pessoas, o que se imagina ter acontecido pela absorção de representações
de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com Halbwachs (2004, p. 76-78), “é uma
imagem engajada em outras imagens”. Ou seja, a lembrança é em larga medida uma
reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso,
preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, 2004, p. 76-78).
Entende-se que o envolvimento da ex-cangaceira num novo contexto e dos novos debates
em torno do movimento do cangaço, possivelmente, influenciou na constituição de suas
memórias, haja vista todo o trabalho por parte da família de Virgulino Ferreira – Lampião, e
de alguns memorialistas de defenderem a imagem deste como a de um herói. Tendo em vista
que essas lembranças, também, são fontes de pesquisa para se compreender o movimento do
cangaço, apontam uma opção por parte de Dadá, a de tornar positiva a experiência do
cangaço. Mas, aqui a questão é: como as memórias dessas mulheres foram representadas no
cinema documentário? Cabe então analisar os signos e símbolos presentes nessas obras.
Inicialmente deve-se considerar que nossa sociedade trabalha com signos; “a ciência social
deve tomar como objeto as operações sociais de nomeação e os ritos de instituição através dos
quais elas se realizam” (BOURDIEU, 1998, p. 81). Ou seja, a ciência social, de acordo com
Bourdieu, necessita investigar a parte que cabem as palavras na construção das coisas. A
proposta é investigar a partir dos depoimentos das ex-cangaceiras suas trajetórias,
problematizando como foram invisibilizadas nas obras supracitadas.
Essa invisibilização, ou esquecimento em relação à história das cangaceiras para Paul
Ricuer (2007) aponta para questões subjetivas, estas fariam parte de um processo humano,
segundo o autor, ambas associadas a memória e a história. Na medida em que questiona-se como
memória e história podem ser esquecidas, observa-se como estas podem ser perdoadas. Qual o
impacto da recepção destes depoimentos? Porque selecionar o que deve ser contato e registrado?
A memória também é um caminho que contribui nas relações do individuo com o mundo exterior,
diante disso, o estudo da memória e da história nesse trabalho poderá possibilitar análises
profundas sobre as formas que a Memória dessas mulheres deram vida a história de seus
companheiros, tentado compreender porque filmes produzidos para dar a voz a elas, culminaram
em produções fílmicas sobre eles, os Cangaceiros.

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MUSAS E FEMININAS: CANGACEIRAS EM EVIDÊNCIA


A arte não faz a história, ela participa dela. Partindo dessa afirmação de Marcos
Napolitano (1999), compreendemos os filmes documentários analisados como “espécie de
receptáculo de temporalidades, tradições e projetos sócio-históricos, que encontram nela uma
formulação material, concreta, submetida a um conjunto de códigos estabelecidos por cada
área de expressão, estilo e gênero artístico”. (p. 903) Faz-se necessário compreendermos a
arte não como monumento, e sim enquanto documento.
Os meios de comunicações nos trazem representações da realidade o que causa impacto e
influenciam o espectador. Por conta disso, os/as historiadores/as tem o cinema, a música, a
literatura e as imagens como fontes primárias, novas possibilidades na pesquisa histórica. O
papel do historiador não é descrever o filme ou os eventos relatados nele, mas “perceber as
fontes audiovisuais e musicais em suas estruturas internas de linguagem e seus mecanismos
de representação da realidade, a partir de seus códigos internos” (NAPOLITANO, 2005, p.
236). O filme não evidencia a “realidade”, mas sim as representações de um tempo passado,
ou do presente. Diante disso, o mais importante é entender o porquê das adaptações,
omissões, falsificações que são apresentadas num filme. Obviamente, é sempre louvável
quando um filme consegue ser “fiel” ao passado representado, mas esse aspecto não pode ser
tomado como absoluto na análise histórica de um filme (NAPOLITANO, 2005, p. 237).
Logo, os documentários sobre as mulheres são adaptações. Considerá-los arquivos
importantes nos estudos sobre as cangaceiras, mas não podemos afirmar que retratam a
“verdade” sobre o movimento. Ambos documentários utilizam as imagens de Benjamim
Abrahão, arquivo importante sobre a vida no cangaço, e partem do debate sobre as causas do
cangaço, e apontam para que estes surgiram do latifúndio e das desigualdades no sertão.
Sobre A Musa do Cangaço, o pesquisador Marcelo Dídimo trouxe uma análise interessante,
Como vimos, um dos motivos mais nobres para a entrada das mulheres para o
cangaço foi o amor, que formou casais até hoje conhecidos no imaginário popular, e
não foram poucos. Mas as mulheres não chegavam a guerrear diretamente com a
polícia em seus combates. Pelo contrário, elas sempre foram protegidas, e algumas
das táticas de Lampião consistiam em afastá-las desses combates. (DÍDIMO, 2010,
p. 213)

No inicio do documentário de José Umberto Dias o amor foi registrado também como
elemento motivador. Observa-se que ambos constroem uma imagem “frágil” das cangaceiras,
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e como estas também necessitavam de “cuidados”. O feminino para ambos estaria associado a
fragilidade e ao “dom de amar”. A violência, a guerra e o enfrentamento com as volantes não
eram coisas de “mulher”. Contudo, as fontes documentais apontam para algumas
contradições: mulher como chefe de bando; Dadá como liderança e pegando em armas. Para
José Umberto Dias, em suas pesquisas suas fontes não apontaram para a existência de
mulheres como chefes de bando? Um elemento que precisa ser investigado.
No Feminino Cangaço o documentário inicia com algumas falas de pesquisadores
(as), e então Dadá surge contando a violência sofrida por sua família após seu rapto, as
volantes entendiam que seus familiares eram coiteiros do bando de cangaceiros, a entrevistada
faz uma denúncia a violência praticada pelas volantes, a cena seguinte surge Frederico
Pernambucano Mello fazendo uma análise do cangaço, dos cangaceiros, sobre elas ou sobre a
violência a que elas estavam expostas nenhuma linha. A edição acabou por optar para a
história deles, e a delas ainda tardava a ser contada.
No depoimento de Deus te Guie o ex-cangaceiro deixa claro “as mulheres andava
igual homi (sic)”; só estavam vulneráveis segundo ele quando estavam “com problema de
gestação (sic)”. Mas, no decorrer do documentário a figura frágil das mulheres ainda persistia
em aparecer. Esses elementos necessitam ser estudados, precisa-se compreender porque a
“fragilidade” feminina deve compor a história de Cangaceiras, Guerrilheiras e Soldadas, e na
disputa da memória sobre o cangaço a permanência dos esquecimentos em relação a elas, as
cangaceiras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Antonio Amaury C. Lampião: as mulheres e o cangaço. São Paulo: Traço


Editora, 1985.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. 2º edição.
São Paulo: EDUSP, 1998, p. 81-126.
CÂMARA, Antonio da Silva; LESSA, Rodrigo (org.). Cinema documentário brasileiro em
perspectiva. Salvador: EDUFBA, 2013.
DÍDIMO, Marcelo. O Cangaço no Cinema Brasileiro. São Paulo: AnnaBlume, 2010.
FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença Feminina no Cangaço: Práticas e

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Representações (1930-1940). Dissertação (Mestrado em História). Assis-SP: UNESP, 2005.


NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org).
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto. 2005. p.115-202.
_______. História e Arte, História das Artes ou Simplesmente História. In: Fronteiras:
Histórias. Florianópolis - SC: Anais XX Simpósio Nacional ANPUH, 1999.
RICCEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas-SP: Editora Unicamp,
2007.
SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,
Ronaldo. Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p. 275-353.
SILVA, José Luís de Oliveira e. História, cinema e representação: a significação imagética
do sertão no recente cinema brasileiro. In: http://www.insite.pro.br/2008/04.pdf. acesso 20 de
setembro de 2009.
WOLFF, Cristina Scheibe. Amazonas, soldadas, sertanejas, guerrilheiras. In: BASSANEZI,
Carla Pinsky; PEDRO, Joana Maria. Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, p. 423-446.

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UMA EM DUAS: TRANSGRESSÃO FEMININA NUM CONTO DE LYA


LUFT

Sóstenes Renan de Jesus Carvalho Santos231 | srj.carv.s@gmail.com

O GÊNERO CONTO E O GÊNERO TEMÁTICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os sentimentos humanos e a linguagem verbal formam, por excelência, a matéria-


prima da literatura: daqueles, ela necessita para se apresentar como intérprete e recriadora do
Humano que somos e que vive em nós, em todos os tempos, espaços e conjunturas; esta é a
moldura, a roupagem, a feição, enfim, escolhida pela arte literária para se apresentar a nós:
seus expectadores, artesãos, admiradores, estudiosos, apreciadores... Já disseram que a Vida
sozinha não basta para dar conta de nossa existência, sendo a Arte uma necessidade sine qua
non a tal fim. Se assim for verdade, à literatura, como vida e pulsação, cabe a tarefa de, pela
palavra, jogar com as emoções humanas e nos incomodar, no sentido mais refinado da
palavra, pois que nos faz refletir, questionar e modificar a nossa própria realidade.
Neste artigo, apropriamo-nos dessas considerações porque o objeto central e ponto
de partida de nossa análise é um texto literário brasileiro contemporâneo: seu gênero (isto é,
sua classificação linguístico-textual) é o conto, com todos os elementos substanciais
necessários à história que se narra. Gênero textual que suscita debates em torno mesmo de sua
caracterização, o conto é das mais clássicas e, ao mesmo tempo, atuais formas de expressão
literária: menor que o romance e a novela, mas com as mesmas dimensões criativas que a
narração oferece, plasma-se nele a habilidade de o artista dizer o máximo com menos. Isso
porque, como afirma Fiorussi (2003, p. 103), “no conto tudo importa: cada palavra é uma
pista. Em uma descrição, informações valiosas; cada adjetivo é insubstituível; cada vírgula,
cada ponto, cada espaço – tudo está cheio de significado”.
231
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
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E esse significado ganha ainda mais força, pertinência e expressividade quando,


nesse gênero de texto, somos surpreendidos pela junção ideal entre a temática e a forma, isto
é, quando o contista, valendo-se de sua experiência e capacidade literárias, atinge um
resultado que se apresenta único e oferece uma obra de arte que harmoniza os elementos
temáticos e a linguagem utilizada para vazá-los. É o que ocorre, por exemplo, no texto
escolhido para nossa análise neste artigo: o conto Uma em duas, da escritora gaúcha Lya Luft.
Narrado na primeira pessoa do singular por uma personagem do sexo feminino, a
história apresenta um narrador autodiegético (ou seja, aquele que, além de narrar os fatos, faz-
se também protagonista deles). Toda a história é permeada pelo foco narrativo supracitado,
urdindo, com mestria, um rico exemplar da literatura construída por Lya: personagens
envoltas em densos conflitos interiores; dramas humanos universais, situados nas fronteiras
tênues da solidão, da morte, do amor, da tragédia, do mistério; dilemas existentes entre falar e
calar, entre o silêncio e a palavra pronunciada; seres humanos, homens ou mulheres, jovens
ou velhos, situados entre a coragem e a pusilanimidade, que amplia ou encolhe o viver...
E sobre a temática gênero/sexualidade, que dizer de Lya? Frequentemente
considerada por alguns críticos (ou pelos que se apressam em fazer um juízo de sua obra)
como uma autora de literatura feminina (feminista?), que escreve sobre mulheres e também
para mulheres, ela não aceita rótulos nem tampouco se preocupa com certos padrões,
sobretudo no terreno da criação literária, palco da liberdade. Eis o que declara: “É como ser
humano que devo questionar o que faço, o que pretendo, que significado posso dar à minha
vida. As particularidades biopsíquicas de cada gênero são uma complementação, não a
essência” (LUFT, 2006, p. 42).
Nessa perspectiva, a autora de Perdas & Ganhos merece ser distanciada de quaisquer
rotulações estanques que afastem o leitor de percepções mais claras e coerentes acerca de sua
obra. Ao dizer que é “como ser humano” que deve se questionar, ela está nos alertando: a
condição humana, independentemente das diferenças, é o que mais lhe importa. E, se em
muitos casos, a mulher e sua individualidade afloram em sua escrita com mais vigor, não seria
com a intenção de “levantar bandeiras”, que isso não é tarefa da literatura, mas, sim, para
tornar esse ser humano-feminino a matriz particular da criação e da reflexão sobre a vida e o
que a compõe em magnitude: os relacionamentos interpessoais – entre todas as raças e etnias,
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sexos e condições sexuais e sociais...


A partir de agora, trataremos de analisar os aspectos singulares do conto, buscando
relacioná-los à temática das representações de gênero pela linguagem, o que será possível, de
modo especial, graças à riqueza psicológica da protagonista e à complexidade dos temas
implicados. Visto que se trata de uma mulher, e visando à clareza na discussão, destacaremos
o narrador de Uma em duas com as seguintes acepções, em vários momentos: narradora;
protagonista; personagem central; Stessa (seu curioso nome).

NA INTIMIDADE DE UM ÂMAGO FEMININO


A produção literária brasileira moderna é diversa e dinâmica, marcada por
tendências, vanguardas, estilos inovadores e influências estrangeiras – nesse quadro, não
podemos ignorar, como defende Fischer (2008, p. 20): “um belo conjunto de autores com
tendência [...] que se pode chamar de intimista – autores para quem a vida interior dos
personagens em suas mazelas íntimas, sua psicologia, seus amores e temores, ocupam o
centro das atenções, muito mais, portanto, do que suas ações objetivas”.
Lya Luft pode ser considerada um desses autores porque, desde a publicação de seu
primeiro romance, As parceiras, em 1980, escreve nessa linha: o delineamento das
personagens e seus dramas, centrados no mais íntimo da alma, no âmago profundo da
personalidade que se esconde para o mundo exterior mas se revela e desdobra a nós, leitores,
em luz e sombra, devaneio e realidade, espectro e concretude, instigando-nos a questionar e a
desvelar o que ora se oculta ora se revela. É assim com Stessa, a mulher-arquétipo, nossa
personagem engima.
Tudo o que sabemos sobre ela e sobre os seus, no decorrer da história, é-nos revelado
única e exclusivamente por sua voz: trata-se de uma narradora que possui muita intimidade
com as palavras e está disposta a descrever o mais secreto de sua alma. A linguagem de que se
vale para tanto é clara e fluida, sem a presença de vocábulos eruditos ou qualquer organização
sintática mais rebuscada. Num tom confessional e familiar, essa mulher se presentifica na
própria narração para nos contar o mistério de sua história presente e pregressa, de maneira
direta e clara, mas nem por isso menos formal, escorreita, elegante, incisiva e reveladora.
Seu trajeto narrativo confirma a tese de que, num conto, nada pode sobrar ou faltar;
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tudo é medido e concentrado e faz diferença. Ela inicia: “Sonhei que corria por um campo, e
que fui atingida por um raio que me partiu em duas. Sem medo nem dor, eu era duas – duas
mulheres idênticas corriam em direções opostas” (LUFT, 2008, p. 95).
O sonho é um componente central na história contada por essa mulher, e vai
desencadear fatores decisivos em sua vida – uma vida comum, rotineira, enfadonha, linear,
estática e aparentemente sem sobressaltos, até aquele dia, no qual ela emerge desse sonho e já
não se sente mais a mesma pessoa. A imagem de alguém que corre num campo pode remeter
à sensação de liberdade, a depender do contexto; mas, de repente, no sonho, essa mulher é
abatida por um raio, que a parte em duas, e nisso poderia haver dor, sofrimento, morte,
tragédia. Contudo, não é o que se nota, no caso específico: ela não sente “nem medo nem
dor”. E poderíamos perguntar: por quê? O que representaria a ausência dessas sensações?
Indiferença? Destemor? Prenúncio de uma transformação que há de vir? Apenas, de uma hora
para outra, ela se vê dividida. O oposto se faz presente – e para ficar – no momento da
afirmação: “duas mulheres idênticas corriam em direções opostas”. Assim nos é apresentada e
se nos apresenta, a personagem central, em lances de extrema autopercepção e senso crítico.
Passemos a analisar a concepção da personalidade da narradora, através de seu ponto
de vista e das muitas pistas latentes, considerando, por ora, um viés fundamental: sua
infância, ligada aos familiares mais íntimos.
Como vimos, a narrativa se inicia com a apresentação do sentimento de dualidade,
por parte da protagonista. Contudo, a sensação de duplo, de oposição sempre esteve na vida
dessa mulher: sua mãe tivera uma filha antes dela, mas, ainda bebê, a menina morrera.
Novamente grávida, e uma vez com a segunda filha nos braços, a mãe exclamara: “– É a
mesma!”. A avó da criança, italiana que era, exclamou em sua língua de origem: “ma è la
stessa” (op. cit. 2008, p. 96). Pronto. O nome da menina estava escolhido – para marcar, de
saída e definitivamente, a condição primária de quem assumiu o lugar de outra, sendo esta.
Não podia ser outra, ela própria? Sobre o pai, ela diz: “Lerda, dizia meu pai, mas que menina
lerda, anda, menina!” (op. cit., 2008, p. 97). Eis, assim, a filha subjugada, desoriginal, alheia à
sua condição particular e única.
Isso nos leva a concluir que Stessa sempre esteve, de alguma forma, assinalada pela
diminuição de seu papel e de sua força enquanto mulher. As palavras da mãe e da avó, no
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momento mesmo de seu nascimento, inscrevem-se, nela, como signos que, uma vez
pronunciados, marcam de uma vez por todas a sua vida. Funcionam, assim, como rubricas
que, simbolicamente, definem um traço impulsivo na personalidade da menina; prenunciam a
sua condição subalterna posterior; e, de maneira bastante representativa, demarcam o
território do indesejado: como não ser considerada única – como indivíduo que se é – pelas
pessoas até então mais importantes em sua vida?
Assim também, quando escutamos a voz do pai, a acusar que a filha era uma “lerda”,
distanciando-se da manifestação de carinho, apoio e confiança, característica de
relacionamentos familiares saudáveis, encontraremos, outra vez, uma pessoa, em sua
condição feminina, destratada e desamada pela primeira figura masculina de sua existência, o
pai. Esses acontecimentos se constituem, por sua vez, em pistas muito significativas para
interpretarmos tanto a postura da personagem central no decorrer de toda a sua trajetória
seguinte, como mãe e esposa, quanto nos servem a acessar a sua própria percepção acerca do
lar que lhe formou, quando era apenas a filha.
O desenho familiar nesse conto (centrando-se, inicialmente, nas limitações afetivas
no tempo em que a narradora era criança, e, em seguida, na caracterização do ambiente
doméstico no presente narrado, em seus papéis de esposa e mãe) leva-nos a um dos traços
marcantes da obra de Lya: a subalternidade da mulher nos diferentes momentos de sua
história pessoal, desde a infância.
Segundo a pesquisadora Cintia Cecilia Barreto (2006, p. 12),

é importante observar a ambiência da narrativa luftiana centrada num lugar marcado


pelo declínio da família patriarcal, por símbolos ligados à representação da infância
como um momento doloroso. A infância aparece nas obras como uma etapa ligada à
opressão, à tirania, à rejeição e à ausência de amor.

O período infantil é um tema extremamente caro para Lya Luft. Em todas as suas
obras, sejam as ficcionais sejam as ensaísticas, é sempre possível observar a presença dessa
etapa da vida como um marco para as trajetórias afetivas que irão compor a existência dos
indivíduos ao longo do tempo. Como vimos acompanhando, em Uma em duas não é
diferente: o conto é curto, as situações de vivência familiar da personagem principal quando
criança são breves (o que em nada diminui a densidade dramática do conflito). Assim, de
todos os elementos citados por Barreto (2006), a rejeição, ligada à ausência de amor, aplica-se
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a Stessa, durante sua infância, de maneira destacada, não brutal e direta, mas sutil, direcionada
à não valorização de sua singularidade e completude.
Vale destacar, nesse contexto, alguns elementos de relevo, necessários à construção
da personagem tal como observamos e, também, ao desenrolar do enredo psicológico,
digamos, em outras palavras, da atmosfera intimista, base de sustentação para a complexa
construção da densidade interior dessa mulher. Já vimos que as demais personagens com as
quais ela se relaciona foram, no passado, a mãe, a avó e o pai, além de professores, os quais,
muito ligeiramente, são citados para mostrar o estranhamento diante do nome tão inusitado e
curioso, quando “levantavam os olhos da lista de presenças no primeiro dia de aula” (LUFT,
2008, p. 95). No tempo presente em que se passa a narrativa, porém, Stessa já convive, em seu
cotidiano, com o marido e a filha (relacionados em análise mais adiante) e com a empregada,
esta citada para mostrar que nunca acerta o nome da patroa, a quem se refere sempre como
“dona Estércia” – o que assinala, sem dúvida, um indício de que, nem ao menos para uma
pessoa subordinada a ela, a protagonista se sente ela própria, visto que seu nome não é sequer
pronunciado corretamente.
Toda a ambientação física, na história, é doméstica, sendo o lar, esse espaço restrito à
convivência familiar, o único a marcar presença com relevância. Já o tempo da narrativa é
predominantemente psicológico, pois está centrado nas reminiscências, nos desejos íntimos,
na imaginação e no conflito interior da personagem, desencadeado pelo sonho primordial.
Destarte, convém ressaltar os três momentos da passagem do tempo que afloram na fala de
Stessa: a infância, já destacada por nós; o momento que sucede ao referido sonho, cenário da
situação conflituosa; e o estágio de reinvenção interior da personagem, fixado no que
chamamos aqui de “transgressão”, o clímax da narrativa, alvo de observações subsequentes.

UMA MULHER, DUAS MULHERES: A CONSCIÊNCIA DE UM OUTRO EU


Muito acertadamente, o título do conto é Uma em duas. De maneira competente, a
narrativa é urdida em torno da dualidade. Na ordem anunciada no interior do texto, a ideia de
duplicidade começa pelo raio que, no plano onírico, parte a protagonista em duas; segue com
a personaficação concreta dessa outra mulher, idêntica à narradora na aparência, mas o oposto
nas atitudes e na forma de ser; depois, passa pela substituição da irmã que nascera morta; e
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continua com as oposições desenhadas entre a narradora e a outra, caracterizando-se, muito


significativamente, pela menção a um elemento de ordem material, um objeto, também
presente na infância de Stessa, e digno de alta representação imagética, em dois sentidos
especiais: a sua própria constituição como arte/pintura; e a carga simbólica/intimista, exercida
sobre a personagem.
Trata-se de um quadro, que a narradora qualifica como “despretensioso”, de moldura
simples, o qual ela nunca soube ao certo, nem o pai nem a mãe, de onde realmente viera, a
não ser que ele acompanha a família desde sempre, trazido da Itália pela avó, há muitos anos.
Agora ele estava com Stessa: ao casar, fora entregue a ela por sua mãe.
O que contém, então, esse quadro?

[...] uma pintura quase infantil, um jardim com duas árvores floridas, no meio um
banco onde se sentava uma menina com sua boneca na mão estendida. Ou era uma
jovem mulher com uma criança? De cada lado dela havia um gato: o preto sentava-
se nas patas traseiras a seu lado direito no banco; o branco estava no capim do lado
esquerdo. Sempre imaginei que era um daqueles gatos: minha irmãzinha morta seria
o branco, e naturalmente eu era o preto. Eu com minhas trapalhadas, meus medos,
eu tão mentirosa, não muito inteligente nem muito bondosa. Por que um daqueles
bichos não era ruivo? Tudo teria muito mais graça. (LUFT, 2008, p. 96)

A presença desse quadro/pintura, desde a infância da protagonista, revela uma


mulher que, ainda menina, sentia e pressentia a dualidade que já lhe acenava e iria fazer parte
de sua vida para sempre. Ao nos relatar sua primeira impressão subjetiva daquela imagem de
opostos, afirmando que, quando criança, via nos dois gatos ela e sua irmã, a narradora
também nos afiança a força peculiar de sua imaginação, em contato com uma obra de arte
cuja significação (pessoal), agora em seu presente, vai incidir sobre o conflito vivido por ela –
a duplicação de si mesma.
Assim, essa mulher, um dia menina, sabia que não era valorizada pela família como a
irmã poderia ter sido, pois, entre um gato e outro, ela não se via sendo o branco, mas o preto.
E por quê? A cor preta, naquela imagem (como também acontece em vários contextos das
artes plásticas) remetia ao sombrio, ao valor menor, à rejeição. Enquanto a “irmãzinha”
morrera em pequena (ainda um anjinho, na tradição popular), pura e sem máculas (daí ser o
gato branco), ela, Stessa, com suas “trapalhadas”, seus “medos”; “mentirosa, não muito
inteligente nem muito bondosa”, vingara, mas, em compensação, era o gato preto (que

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representa, também, em nosso folclore, azar e assombramento). E a cor ruiva, que ela defende
(“Tudo teria muito mais graça”...), que sugere? Se o branco e o preto indicam maniqueísmo,
separação delimitada entre bom e mau, agradável e desagradável, o ruivo seria a mescla dos
dois, o exótico, o diferenciado, o mais atrativo e curioso. Desafiador? Se “teria mais graça”,
também poderia ter o mistério encoberto, e a ânsia por desvendá-lo. Quem seria o gato ruivo,
se ele existisse? Ela, a “stessa”, sempre a “mesma”, desejaria sê-lo, sentir-se como ele?
Resta saber, ainda, o que representa e como é percebida essa mesma imagem (no
tempo presente da narração), tão carregada de valores autorreferenciais na vida da
protagonista, que confessa: “Agora, com essa outra mulher saída de mim, não um clone mas o
meu avesso, revejo o quadro e entendo que não somos o bebê morto e eu: somos eu e o meu
outro eu. Também percebo que eu sou o gato branco. A outra vem da escuridão, cheia de
maldade, e muito mais divertida” (op. cit., p. 96-97).
De posse da concretização de sua segunda persona, idêntica fisicamente, mas
contrária, nascida do sonho, presentificada em seu lar, agora a leitura do quadro é diversa da
primeira: sob o olhar da observadora, os dois gatos são seus dois eus, num jogo de espelhos e
reflexos que vão de fora para dentro e de dentro para fora. E poderíamos acrescentar, como
questionamento: e a boneca no colo da menina, por vezes confundida, no passado, com uma
criança no colo de uma mulher? Seria, agora, o bebê preferido, e morto em seguida, no colo
da mãe? A narradora não dá atenção a esse recorte, no hoje de sua idade adulta, mas nós, seus
leitores e confidentes, efetuamos nossas próprias conclusões.
Podemos caracterizar esse diálogo entre literatura e pintura, realizado, no conto, pela
voz e sob o ponto de vista da personagem, como um recurso temático e estilístico que
enriquece o teor subjetivo, imagético, sugestivo e simbólico da narrativa. Um texto
intersemiótico, ousamos dizer, pois que não se vale da inclusão de uma outra arte apenas
como mero artifício ou técnica de enfeite, mas promove leituras inusitadas e criativas, tanto
na voz que narra quanto no leitor que (re)interpreta. Numa confirmação, assim, da constatação
de Frederico Fernando Souza Silva (2010, p. 166), que destaca: “A literatura se aproxima da
pintura, na medida em que para esta o processo de criação também pode ser livre de estruturas
preconcebidas. Os aspectos sociais, o cotidiano e sobretudo o imaginário do artista são as
principais fontes de construção das artes plásticas”.
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Não pretendemos alongar a discussão acerca do quadro mencionado, mas


acreditamos ser de valia sublinhar a riqueza de sentido com que essas duas linguagens – a
literária e a plástica – se articulam artisticamente. Assim como, em seu processo criativo, o
artista da imagem se vale dos “aspectos sociais”, do “cotidiano” e de seu “imaginário” para
produzir, o escritor também o faz, e, no caso desse conto, temos a linguagem verbal
articulando esses três elementos, pela pintura: sobretudo quanto ao cotidiano, pela cena
retratada (a sobreposição da paisagem e das personagens o atestam); e em relação ao
imaginário, através de toda a atmosfera sombria de ambiguidade, incerteza, relatividade e um
certo mistério, que o todo da imagem sugere à observadora.
Tudo isso dá continuidade ao conflito primeiro, intensificando-o, na medida em que
a ele se associa: a personagem central resolve abandonar o cotidiano habitual que lhe oprime,
o que consegue por meio de um sonho que, ao longo da narrativa, traveste-se de realidade. Ela
se encontra, assim, num “devaneio consciente”. Mas o que é a consciência, nesse contexto, e
por que sua estreiteza com o que parece devaneio?
A psiquiatra e escritora Ana Beatriz Barbosa Silva (2014, p. 28) define a consciência
“como algo que sentimos”, e que “existe, antes de tudo, no campo da afeição ou dos afetos.
Mais do que uma função comportamental ou intelectual, a consciência pode ser definida como
uma emoção”. É assim com a narradora, que, inesperada e surpreendentemente, acorda
dividida em duas, com a absoluta consciência disso: ela sabe, sente e reafirma. O seu eu
avesso, sua imagem distorcida, seu reflexo inesperado está vivo, fora dela. Em seu quarto, sua
casa, seu cotidiano, ali está o gato preto que poderia ser ruivo. Mas quem é esse enigma? E o
que fará com ele? Num momento de rompimento com sua realidade subserviente, linear,
subjugada pelos deveres e compromissos ligados ao lar, à filha e ao marido, aquela mulher
decide por fazer da outra não mais o seu simples oposto, mas a que vai lhe ensinar a trocar de
papel.

SONHAR É TRANSGREDIR
É correto afirmar que a realidade, no sentido literal, não está no cerne que dá forma e
sentido ao conto. Temos, assim, a conotação de um evento, que poderia ser trivial (mas, no
contexto, não passa a ser), num dado irreal, considerando um dos traços mais decisivos dessa
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categoria – a recorrência ao que, objetivamente, consideraríamos absurdo e inconcebível: um


outro ser idêntico, mas o “avesso” de uma pessoa, emergir do sonho e invadir a sua vida e o
seu cotidiano.
Como interpretar essa invasão, esse inimaginável, no cotidiano de Stessa? A que
concepção de real e realidade recorre a autora para embasar-se na construção dessa
personagem, em seus enredamentos? A escritora Marina Colasanti (2004, p. 17) é quem nos
adianta um argumento coerente a esse impasse: “O real é pequeno. O real pouco nos explica.
O real nos angustia com suas lacunas. É no mais que real que encontramos o equilíbrio, o
bem-estar. E o mais que real se situa no imaginário”.
De que se alimenta a arte literária, a não ser da imaginação e de seus labirintos? O
que chamamos de real, diz ainda Colasanti (2004), é apenas uma convenção, visível e
palpável. Há muito de escondido e inexplicado (até mesmo pela ciência), que não se afigura
como real, e nem por isso perde em interesse e valor...
Desse modo, é através do sonho, o qual penetra a realidade e suas conveções, que a
protagonista aprende a capacidade de transgredir, isto é, de romper com os tabus, as
obrigações domésticas e sociais que tanto a descaracterizavam, roubando-lhe a
individualidade do seu ser mais humano e feminino. Stessa, a “mesma”, aprendera, com a
família que a oprimia na infância, a agir tal como a sociedade, muitas vezes, considera correto
e adequado para uma mulher. (Sempre “obedecer” e ser “útil”). E, com o marido, então,
intensificou ainda mais esse “aprendizado”. Isso vem confirmar o pensamento de Lakoff
(2010, p. 21), que aponta: “o comportamento que uma mulher aprende como sendo o ‘correto’
impede que ela seja levada a sério como indivíduo e, além disso, é considerado ‘correto’ e
necessário para uma mulher precisamente porque a sociedade não a considera seriamente
como um indivíduo”.
E não é isso, afinal, o que se aplica à narradora? (“Mas eu era assim, sempre culpada,
sempre em dúvida e me sentindo em dívida”) (LUFT, 2008, p. 98).
Dúvida e dívida, porém, que se desfacelarão mais adiante.
É quase dispensável confirmar a extrema ligação que esse conto de Lya Luft, em sua
totalidade, mantém com algumas ideias próprias da psicanálise, sobretudo às que se
relacionam com o material dos sonhos e sua imersão nos meandros da mente humana. Não é
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de estranhar que isso aconteça, e não somente pela marca intimista da obra luftiana, mas,
sobretudo, pelas relações fecundas e de há muitos revisitadas, entre a literatura e a psicanálise.
Aquela, arte e transubstanciação da realidade por meio da imaginação e da fantasia; esta,
desbravamento da alma humana e seus mistérios ainda encobertos, aos quais se dedica a
descobrir, desvelar e interpretar.
Foi com a publicação de “A interpretação dos sonhos”, que Sigmund Freud, o pai da
psicanálise, ofereceu à humanidade uma obra clássica, pioneira e perene na área.
Acerca do sonho (entre as inúmeras observações e análises que a obra contém),
Freud analisa:

É possível que surja, no conteúdo de um sonho, um material que, no estado de


vigília, não reconheçamos como parte de nosso conhecimento ou nossa experiência.
Lembramo-nos, naturalmente, de ter sonhado com a coisa em questão, mas não
conseguimos lembrar se ou quando a experimentamos na vida real. Ficamos assim
em dúvida quanto à fonte a que recorreu o sonho e sentimo-nos tentados a crer que
os sonhos possuem uma capacidade de produção independente. Então, finalmente,
muitas vezes após um longo intervalo, alguma nova experiência relembra a
recordação perdida do outro acontecimento e, ao mesmo tempo, revela a fonte de
sonho. Somos assim levados a admitir que, no sonho, sabíamos e nos recordávamos
de algo que estava além do alcance de nossa memória de vigília. (FREUD, 1900, p.
22)

Qual o material do sonho de Stessa, a não ser ela mesma? Ao “correr po um campo”,
de repente essa mulher se vê repartida em duas, e por “um raio”. A protagonista não sabe
explicar de onde vem aquele outro ser, o seu “avesso”, a sua transgressão personificada. Mas,
como o Velho observa acima, em sua obra cabal, o material do sonho daquela mulher era a
sua própria experiência: a ânsia por uma nova natureza íntima; o desejo de mudar; a vontade
de conquistar autonomia. No fundo, ela “sabia e recordava de algo que estava além do
alcance” de sua “vigília” e realidade – algo que a diminuía e deveria ser desbaratado,
ignorado, abnegado.
Stessa, até aquele momento tão desprovida de coragem e ousadia, no papel de mulher
que lhe coube exercer, agora, depois do sonho, já não se sentia mais assim tão “boba” (como,
em determinado momento, a filha dissera) nem tão distante da liberdade, outrora incompatível
com sua personalidade e postura.
Ela ironiza:
Começo a achar que a outra pode ser minha parte melhor.

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[...]
Estou aprendendo a trocar de lugar com ela, enquanto ela se diverte no meu, executa
as minhas tarefas com todas as suas artimanhas: o café fraco, a comida requentada, a
filha negligenciada, as gaiolas sujas, e a casa que caia aos pedaços [...]. (LUFT,
2008, p. 99-100)

Note-se a troca de lugares, de papéis, de posturas, de atitudes. Ao dizer que a


protagonista transgride, afirmamos que ela assume, de uma vez e para sempre, a possibilidade
plausível de exercer o oposto daquilo que, até ali, não teve a coragem ou a oportunidade de
ser. É a sua vez, então, de posicionar-se de igual para igual, de sentir-se a outra, sendo, ao
mesmo tempo, ela mesma. Pois não há, no conto – e nisso reside a mestria da narrativa –
como divisar, delimitar, com uma régua, onde começa a “Stessa” (subjugada, reprimida), e
onde ela termina. A um só tempo, as duas mulheres, arquétipos de tantas outras, estão
entremeadas, interligadas. Elas brincam de ser uma a outra e enganam seus convivas –
também um pouco a nós, os leitores.
Repare-se, por fim, neste trecho de grande subjetividade, em tom de agressiva
confissão figurada, o qual lemos com o sabor da merecida desforra. Um dos momentos mais
altos da narrativa:

A cada dia estou mais do outro lado; aprendi o pulo-do-gato. A cada dia aumenta o
meu poder de mudar – e a qualquer hora não volto. Deixo a outra aqui enrolada com
minha vida, e para sempre fico no seu mundo, onde sou má e relaxada, sou vulgar,
pinto as unhas dos pés de vermelho berrante e o cabelo de um louro medonho, dou
um tapa na minha filha e cuspo no meu marido, deixo os malditos canários
morrerem na sujeira. E saio voando montada no meu gato ruivo, que é das bandas
das maldades, como eu. (op. cit., p. 100)

Eis, em suma, a sublevação da narradora, o seu momento de gritar não às forças


externas que a comprimiam e oprimiam, e de dizer sim ao seu interior, no pleno fragor de sua
voz feminina. Muito tempo de sua vida foi perdido, jogado nos escombros da subserviência,
renegado às ausências e carências afetivas. Para ela, portanto, chegou a hora de realizar uma
nova colheita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com poesia e singularidade estilística, Lya Luft, no exercício de uma literatura em
franco diálogo com a psicanálise, e em sintonia com as reflexões sobre Gênero, consegue,

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com a narrativa Uma em duas, um de seus melhores resultados no terreno do conto. A escolha
desse exemplar literário, entre tantos de reconhecida qualidade artística, deu-se em função de
sua evidente complexidade em torno da personagem feminina central, alvo de nossa
discussão. Deve-se considerar que, por motivo de espaço, não poderíamos nos alongar em
aspectos secundários mas de importância no interior do conto. Acreditamos, contudo, ter
alcançado o objetivo proposto: desbravar a condição transgressora da mulher (representada
pela narradora protagonista), de modo a enriquecer o debate sobre gênero, sexualidade e
feminismo, servindo-nos de nossa eminente produção literária nacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Cintia Cecilia. A representação da infância em Lya Luft. Rio de Janeiro, 2006.
124 fls. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) — Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
COLASANTI, Marina. Fragatas para terras distantes. Rio de Janeiro: Record, 2004.
FIORUSSI, André. In: MACHADO, Antônio de Alcântara et alii. De conto em conto. São
Paulo: Ática, 2003.
FISCHER, Luís Augusto. Literatura brasileira: modos de usar. Porto Alegre: L&PM, 2008.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (Primeira parte). Vol. IV (1900). Disponível
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LAKOFF, Robin. Linguagem e lugar da mulher. In: OSTERMANN, Ana Cristina;
FONTANA, Beatriz (org.). Linguagem. Gênero. Sexualidade. Clássicos traduzidos. São
Paulo: Parábola Editorial, 2010.
LUFT, Lya. Em outras palavras. Rio de Janeiro: Record, 2006.
______. O silêncio dos amantes. Rio de Janeiro: Record, 2008.
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SILVA, Frederico Fernando Souza. Literatura e pintura: uma leitura possível em sala de
aula. TRAMA INTERDISCIPLINAR – Ano 1 – Vol. 1 (2010). Disponível em:

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Fortaleza – CE | 26 a 28 de Novembro | 2015 | ISSN 2447-5416

<http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tint/index>. Acesso em: 09/10/2015.

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A MARCANTE PRESENÇA DA PROFESSORA IDALINA MARGARIDA


ASSUNÇÃO HENRIQUES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA DA PARAHYBA DO NORTE
ENTRE OS ANOS DE 1850 E 1860

Francis Raniere Silva de Souza | Francis_ranieri@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Os discursos dos presidentes de Província da Parahyba do Norte, acerca de uma


figura feminina têm nos inquietado, sobre a sua marcante atuação na instrução pública na
província paraibana. A professora de geografia e história de primeiras letras, Idalina
Margarida de Assumpção Henriques aparece como destaque nesses discursos, num período
marcado pela predominância masculina no âmbito político, social, cultural e econômico. A
falta de trabalhos acerca da professora despertou o interesse maior para entender e analisar
sobre a mulher que fora tão mencionada nesses relatórios, que apresenta um destaque maior
na instrução paraibana. Optamos por um recorte temporal da segunda metade do Século XIX,
1850 e 1860, devido as citações constantes nos relatórios dos presidentes da Província ter tido
maior relevância em seus discursos a respeito da docente. Sobre o processo de feminização do
magistério, Zica aponta sobre a masculinidade no século XIX e o interesse sobre as questões
de gênero:
Levando-se em conta que a área de estudos sobre o processo de feminização do
magistério é uma das mais diretamente interessadas nas questões de gênero, dentre
as várias subdivisões existentes no campo da História da Educação (...). (ZICA 2011,
p.15).

As mulheres aos poucos estavam se inserindo e ganhando força, mesmo de forma


gradativa foram ganhando espaço na sociedade. Reforçando a compreensão desse processo,
Zica:

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Pesquisas recentes têm apontado que o magistério feminino foi construído, ao longo
da segunda metade do século XIX e décadas iniciais do XX, com argumentações em
torno, inclusive, de uma desqualificação masculina para o exercício dessa profissão.
(Ênfase adicionada)

Nesse sentido compreendemos que o progresso da mulher na profissão docente se


deu de forma lenta e, que a entrada da mulher no espaço público é permeada por uma
desqualificação do homem na instrução. Diante das análises dos discursos dos presidentes de
província nota-se que eles apresentavam uma preocupação em relação a educação do estado:
Não está ainda operada a conversão do liceu em internato, por falta de uma casa
conveniente. Entretanto, julgo da maior utilidade esse estabelecimento. E, além
daquele que for designado a instrução secundaria do sexo masculino, outro deve
haver com aplicação à educação do sexo feminino.
Tive e ainda tenho a ideia de criar um internato de meninas. Neste intento, havia
destinado para o lugar de diretora, uma senhora parahybana, cujas excelentes
qualidades são geralmente reconhecidas; mas, não só a falta de um edifício como a
de meios decretados para semelhante estabelecimento, embargarão completamente o
meu propósito.
(RELATORIO APRESENTADO Á ASSEMBLÉA LEGISLATIVA DA
PROVINCIA DA PARAHYBA DO NORTE EM 20 DE SETEMBRO DE 1858
PELO PRESIDENTE, HENRIQUE DE BEAUREPAIRE ROHAN. PARAHYBA,
TYP. DE JOSÉ RODRIGUES DA COSTA, 1858 P, 34)

Como vimos o Presidente que descreve sobre uma ampliação para educação de
ambos os sexos parece-nos, que sugere uma melhor estrutura para a realização desse ensino. A
presença de uma figura feminina para educar as crianças do sexo feminino mostra-se
relevante nesse relatório. O Presidente faz associações das estruturas físicas, a uma professora
qualificada para tal função, tecendo elogios as mulheres nessa profissão. Mas afinal, quais
poderiam ser os verdadeiros interesses postos nos discursos desse presidente, em relação às
atribuições do mesmo, da mulher na profissão docente, mais especificamente, a figura de
Idalina nesse processo?
Apropriamo-nos de conceitos sugeridos pelo filósofo Francês, Pierre Bourdieu que
discute a figura do homem como uma dimensão simbólica do poder sobre a mulher:

A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a


visão androcêntrica impõe-se como neutra não tem necessidade de se enunciar em
discursos que visem a legitima-la. A ordem social funciona como uma imensa
máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se
alicerça. (BOUDIEU 2014, p. 18).

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Nessa análise Bourdieu, posteriormente nos ajuda no entendimento sobre a


predominância do homem, no que tange as relações de gênero, em que o sexo masculino não
precisa expressar com clareza o que poderia ser feito para o outro sexo. Provavelmente alguns
dos políticos apresentavam seus relatórios como forma de mostrar a boa administração a qual
faziam. Ainda nesse contexto, fomentamos tais aspectos com o pensamento de Chartier
(2009): A História Cultural, tal como a entendermos, tem por principal objeto identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler. Desse modo, a maneira de como são construídas as
diferentes realidades, é de acordo com seu tempo e lugar em que os discursos são elaborados e
apresentados para diferentes classes e sociedades a que estão inseridos.

A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO DESENVOLVIDO PELA PROFESSORA


IDALINA NA INSTRUÇÃO PÚBLICA DA PARAÍBA

Ao se aproximar de um discurso que aponta uma melhoria da educação voltada para


o público jovem, o relatório apresentado ao Presidente da Província da Parahyba do Norte,
Beaurepaire Rohan, em 20 de setembro de 1858, sugeriam uma ampliação educacional para a
melhoria de uma instrução mais aprimorada do sexo masculino. Entretanto, para alunos do
sexo feminino, as iniciativas ainda pareciam carentes. Todavia, o presidente reconhece a
importância do sexo feminino, fator que poderia contribuir para a melhoria e o futuro da
província:

Tenho esperança, Senhores que não deixareis de dotar a província com tão útil
estabelecimento. Se uma boa educação a todos aproveita, muito maiores são as suas
vantagens, em relação aquelas que tem algum dia de exercer as funções de mães de
família. A senhora que possuem uma instrução variada transmite a seus filhos os
conhecimentos que adquiriu na infância, inicia-os nos elementos de literatura e arte
liberais, e dispõe a sua inteligência para estudos mais importantes. Seus cuidados
maternais, desenvolvendo-se em uma esfera mais larga, são sobre tudo, um recurso
precioso naquelas casas menos abastadas, ou de a mais estrita economia tem de
suprir a deficiência dos bens da fortuna.
(RELATORIO APRESENTADO Á ASSEMBLÉA LEGISLATIVA DA
PROVINCIA DA PARAHYBA DO NORTE EM 20 DE SETEMBRO DE 1858
PELO PRESIDENTE, HENRIQUE DE BEAUREPAIRE ROHAN. PARAHYBA,
TYP. DE JOSÉ RODRIGUES DA COSTA, 1858P. 34).

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De toda forma, a importância da mulher na educação era difundida pelo então


presidente como aprimoramento do lar, para exercerem seu papel de mães e mulher de
maneira que apresentasse maior qualidade ao âmbito familiar, mas não somente nesse sentido,
a mulher instruída também ajudaria nas lacunas financeiras de suas famílias.
O presidente se mostra bastante entusiasmado com a ideia de ver a mulher na
instrução pública, pois parecia trazer diversos benefícios familiares e econômicos para a
sociedade do período. Zica nos ajuda a ampliar o nosso entendimento sobre esse assunto:

(…) se as mulheres podem contribuir para o incremento do poderio do Estado, seja


como mães educadas, seja como professoras, elas terão respaldo para isso; se a
liberdade masculina rivalizava e enfraquecia o poder do Estado ele iria coibi-la. O
Estado no século XIX apesar de ser ainda uma instituição visivelmente masculina, já
não era, no entanto, tão parcial como as antigas leis portuguesas favoráveis que eram
aos homens. (ZICA 2011, p. 58).

Apesar do estado já demonstrar traços flexíveis em relação a presença da mulher fora


de casa, o conservadorismo prevalecia em relação as leis que eram delegadas aos homens. O
avanço que a instrução paraibana teve com a credibilidade atribuída a Professora Idalina
parece notável pelos presidentes, em relação a educação feminina do estado. Referências à
professora são feitas pelos demais sucessores.
Em 1861, o diretor Manoel Posfácio Aranha, relata ao presidente Francisco da
Araújo Lima, fazendo ressalva ao colégio N.S das Neves, em que Idalina atuou, e foi sobre
um ofício enviado em março daquele ano que foi decretado o fechamento do colégio, e
destaca as precariedades daquele estabelecimento:

Tendo uma experiência de mais de dois anos feito ver. Que o colégio de Nossa
Senhora das Neves criado nesta Capital em virtude da Lei Provincial n.13 de 4 de
Novembro de 1853, para a educação do sexo feminino, não correspondi de modo
algum ao dispendio que ele se fazia, visto que apenas era frequentada ultimamente
por cinco alunas, resolveu o Governo em 1 de Março, suspender os trabalhos do
mesmo collegio ate o ulterior deliberação de Assembleia provincial removendo a
respectiva professora de primeiras letras D. Rosalina Tetuliana de Almeida que era
ao mesmo tempo directora do Collegio para a cadeira do mesmo ensino da Vila
Campina Grande, e exonerada a Pedido da Professora de Geografia Idalina
Margarida de Assunção Henriques”.
(RELATORIO APRESENTADO A ASSEMBLEA PROVINCIAL LEGISLATIVA
DA PROVINCIA DA PARAHYBA DO NORTE NO DIA 1 DE AGOSTO DE 1861
PELO PRESIDENTE, DR. FRANCISCO D'ARAUJO LIMA. PARAHYBA, TYP.
DE JOSÉ RODRIGUES DA COSTA, 1861. P. AJ-1).

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Afinal, não sabemos ao certo sobre os reais motivos do fechamento da escola, a


princípio eles mencionam a quantidade de alunas do sexo feminino nesse processo, por outro
lado, mais uma vez a professora é mencionada pela exoneração de outra professora da mesma
instituição. Nesse sentido nota-se que a professora detinha um poder sobre a escola em
relação ao estado.
Idalina também é mencionada pela participação em outras instituições como o
Colégio de Nossa Senhora do Carmo que, também era uma instituição exclusiva para
meninas. Outra marca importante nesses relatórios é que, as escolas ditas para meninas eram
de cujos nomes, religiosos, o que poderia implicar na educação delas, uma vez que, o ensino
poderia ser embasado com os costumes religiosos até então, disseminados no período pela
igreja católica.
Nesse sentido no ano 1862, o mesmo diretor Diogo velho Cavalcanti de Albuquerque
ao contrário do que os comissários teriam apresentado no ano anterior destaca a Relevância
do Colégio N.S. Do Carmo e atuação da Diretora na Instituição:

Acham-se registradas na Secretaria desta diretoria 23 licenças para abertura de


escolas particulares.
Entre elas afigura do estabelecimento do colégio N.S do Carmo para meninas sob a
direção de Idalina Margarida de Assunção Henriques e duas irmãs. Os respectivos
estatutos foram aprovados pela lei de 25 de janeiro do presente ano: mas o colégio
ainda não funcionava regulamente, limitando-se ao ensino de primeiras letras.
A falta de estabelecimentos, desta natureza, que tantos os benefícios podem trazer a
educação das jovens Paraybana até hoje privadas dos meios de obterem uma
instrução condigna a sua natural aptidão, e capacidade da diretoria do Colégio de N.
S. do Carmo, o fazem merecedor de toda Proteção.
(RELATORIO APRESENTADO Á ASSEMBLÉA LEGISLATIVA PROVINCIAL
DA PARAHYBA DO NORTE, NO DIA 31 DE MAIO DE 1862, PELO
PRESIDENTE, DR. FRANCISCO D'ARAUJO LIMA. PARAHYBA, TYP. DE J.R.
DA COSTA, 1862, AG2).

Embora o colégio em que a docente desempenhava seu trabalho, não tivesse atuando
com maior abrangência ficando restrito apenas ao ensino primário, é evidente que esse
estabelecimento chamasse a atenção das autoridades do período pelo o bom desempenho na
instituição para as meninas. Quando falamos dos discursos produzidos pelos Presidentes de
província, acerca de uma escola para o sexo feminino, notamos que os mesmos se aproximam
dos discursos sobre a instrução do sexo oposto, como fora citado acima, apresentando o grau

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de importância que ambos tinham para o desenvolvimento da província.


No que concerne às relações de gênero, Bourdieu nos traz o entendimento sobre
essas questões:
A divisão entre os sexos parece estar na “ordem das coisas”, como se dizem por
vezes para falar do que é normal, natural, aponto de ser inevitável: ela está presente
ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas
partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social, e, em estado incorporado, nos
corpos e nos habitus dos agentes funcionando como sistemas de esquemas de
percepção de pensamento e ação. (BOURDIEU 2014, p. 17).

Nesse sentido, o autor esclarece na compreensão, de como era dada a separação entre
os gêneros, das atividades e lugares designados a cada um deles, no período oitocentista. No
processo de feminização no espaço público, a figura da professora Idalina foi fundamental
para o desenvolvimento da educação e inserção da mulher na Província da Parahayba do
Norte.
No ano de 1866, o diretor Fructuso da Solidade Segismundo fez um levantamento de
como estaria o ensino primário e secundário, fazendo um balanço das escolas de ambos os
sexos ao ensino que estava sendo aplicado. Em 1866, o relatório apresentado na província,
toma como contraponto duas escolas: Uma dirigida por um Padre e a outra por uma
professora de Geografia:

Os únicos colégios que presentemente tem a província são antigos e bem conhecidos
do sexo masculino da vila de cajazeiras, e outro de meninas. Ha poucos anos
instalado na Capital. Enquanto no primeiro que exclusivamente se há prestado a
estudos secundários, não é preciso testemunhos para evidenciar a regularidade de
seus trabalhos, e os variados conhecimentos de que há enriquecido a mocidade dos
sertões: o prestigioso nome do Rvm. Comendador Padre Ignácio de Souza Rolim
seu instituidor, sobejamente o acredita e circunda de bem merecida consideração:
mas a nenhuma correspondência, que no corrente ano há tido com da sua
continuação. Enquanto, porém ao de meninas dirigido por D. Idalina Margarida da
Assumpção Henriques tenho a satisfação em fazer saber a V. Exc. Que progride com
vantagem e aproveitamento de 22 alunas que ali aprendem.
(RELATORIO APRESENTADO Á ASSEMBLÉA LEGISLATIVA PROVINCIAL
DA PARAHYBA DO NORTE PELO 1.O VICE-PRESIDENTE, EXM. SR. DR.
FELISARDO TOSCANO DE BRITO, EM 3 DE AGOSTO DE 1866. PARAHYBA,
TYP. LIBERAL PARAHYBANA, 1866. P A8-9)

No primeiro momento ele toma como modelo, o colégio do sacerdote Padre Ignácio
Souza Rolim, pelo ensino secundário que era aplicado na instituição. Segundo momento vem
a preconizar o colégio de D. Idalina Margarida Assunção, pela boa educação que ela

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desempenhava quanto ao ensino primário, e que antes era aplicado com pouquíssimas alunas,
como foi supracitado acima. Mas uma vez, o diretor assim como seus antecessores destaca o
papel da professora que, tinha uma forte confiança por parte dos políticos como responsável
por administrar uma escola para meninas.
Entretanto em1867, o presidente Barão de Baurú, ressalta em seu relatório sobre a
decadência do ensino no Liceu, enfatizando a relevância de uma reforma. Desta vez, o
trabalho de Idalina é enaltecido pelo então presidente da província, argumentando uma
melhoria da escola com o aprovisionamento de mais professoras para a instituição:

O collegio de meninas, estabelecido nesta Capital sob a direção de D. Idalina


Margarida Da assumpção Henriques prestaria um optimo auxilio a educação do seu
sexo, se fossem melhor aproveitadas as condições em que se acha; porém tenho
informações que esse collegio, além de estar em uma casa acanhada e encommoda
para as internas, carece de mais mestras habilitadas.
(RELATORIO APRESENTADO A ASSEMBLÉA LEGISLATIVA PROVINCIAL
DA PARAHYBA DO NORTE PELO 2.O VICE-PRESIDENTE, EXM. SR.
BARÃO DE MARAÚ EM 5 DE AGOSTO DE 1867. PARAHYBA, TYP.
LIBERAL PARAHYBANA, 1867. P.22)

Diferente de seus colegas, o presidente, embora ressaltasse o bom trabalho realizado


pela professora, ele também apontou características dos problemas existentes, que impedia o
crescimento da instrução feminina. Apesar de a instrução paraibana percorrer numa acessão, a
precarização dos espaços físicos e os poucos recursos destinados para tal objetivo pareciam
deixar a desejar.
Fundado nas ideias de Roger Chartier sobre as representações:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a


universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos
interesses do grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento
dos discursos proferidos com a posição de quem a utilizam (CHATIIER 2009, p.17)

Dessa forma, o contexto social em que podemos observar através de documentos


oficiais, daquele período elaborado pelos presidentes denotam seus interesses, sejam eles de
ordem profissional, econômica, social ou pessoal. Porém, alguns dos relatórios apresentavam
contradições a respeito de tal desenvolvimento. No ano de 1869, o diretor Silvino Elvidio
Carneiro da Cunha mais uma vez faz ressalva a Idalina:

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Tratando destas escolas, cumpre-me mencionar entre outras com louvor os collegios
D. Idalina Margarida da Assumpção Henriques do sexo feminino, e Manoel José
Alves Branco, do sexo masculino, nesta Capital, pelo interesse dos seus mestres e
aproveitamento dos discípulos nas quaes se ensinão também matéria de instrução
secundaria.
(RELATÓRIO com que S. EXC O Sr. DR SILVINO ELVIDIO CARNEIRO DA
CUNHA 1º VICE-PRESIDENTE PASSOU A ADMINSTRAÇÃO DA PROVINCIA
DA PARAHYBA DO NORTE AO EX. SR. DR BENANACIO JOSÉ DE
OLIVEIRA LISBÔA 1869 P. AB6).

Nesse ano percebe-se nos relatórios que, a instrução secundária também já era
aplicada para meninas. Mas afinal, o fato de tantos presidentes referirem-se a uma figura do
sexo feminino na instrução pública, período tão marcado pela presença masculina, no caso da
professora Idalina mostra-nos como se deu o processo de feminização do magistério na
Província da Parahyba do Norte. O progresso na educação dessa província deu-se de modo
gradativo, porém satisfatório, segundo os relatórios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que, a figura da professora Idalina obteve destaque em um contexto


supostamente liderado pela supremacia masculina. Idalina sobrepujou destaque maior na
instrução para o sexo feminino. Ao contrário do que se pensava sobre os estereótipos voltadas
as mulheres, elas estavam se inserindo na instrução pública e se destacando no espaço social.

Nessa perspectiva ao introduzir a mulher na instrução possibilitou a ela um panorama


mais ampliado para conseguir suas conquistas, mesmo que essa educação lhes oferecesse uma
restrição naquele período.

Um dos instrumentos de viabilização nesse processo foi o estado. Mesmo com as


dificuldades na instrução pública da Parahyba do Norte, aspectos que constam nos relatórios
dos presidentes da Província, a professora parece ter tido um papel positivo, no processo de
feminização do magistério. O progresso da inserção da mulher no espaço público, na segunda
metade do século XIX, em que pudemos analisar, deu-se de forma lenta e dificultosa. Esse
trabalho contribuiu para novas pesquisas sobre os gêneros, mais especificamente na Província
da Parahyba do Norte no Século XIX relacionados com o contexto social, educacional e
econômico da época.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre, 1930-2002. A dominação masculina; Tradução de Maria Helena Kühner.


– 12ª ed. – Rio de Janeiro: Bestrand Brasil, 2014.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Tradução: Cristina Antunes. Belo


Horizonte Autêntica 2009, p. 80.
ZICA, Matheus da Cruz. Diversificação dos Modos de ser Masculino e Estatização da
Violência Masculina na Escrita Literária e Jornalística de Bernardo Guimarães (1869-1872).
Belo Horizonte: FAE-UFMG, 2011, p. 15 e 58.

Fontes Históricas
Relatórios dos Presidentes de Província da Parahyba do Norte
Todos os relatórios citados abaixo estão disponíveis no seguinte endereço eletrônico:
http://www.crl.edu/brazil/provincial/para%C3%ADba

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A RELAÇÃO GÊNERO E TECNOLOGIA NO AMBIENTE DA


CONSTRUÇÃO CIVIL

Zelivaldo Falcão Leite | zelivaldofalcao@hotmail.com

INTRODUÇÃO
Na contemporaneidade o mundo do trabalho se apresenta com novas configurações,
atividades culturalmente constituídas no imaginário social por indivíduos na condição
masculina, vem crescentemente sofrendo alteração, as mulheres vem apropriando-se de postos
de trabalho e profissões antes atribuídas apenas aos homens, a exemplo podemos citar o
aumento da participação feminina na construção civil. A presença das mulheres brasileira no
mercado de trabalho vem aumentando de forma consistente e significativamente nas últimas
décadas.
Desde a década de 60 a ideia de um ser cibernético, parte máquina, parte organismo,
essa ideia nos remete às ficções científicas, nos filmes: Star Trek, Exterminador do Futuro e
demais filmes e livros que mostram seres modificados, melhorados e reconfigurados a partir
das tecnologias. A relação do homem e da máquina parece retirar a priori parte da
humanidade que existe e afastar o ciborgue232 da realidade social, longe de ser apenas um ser
de ficção, o ciborgue corresponde às experiências vividas, além da realidade social que está
presente na contemporaneidade.
Para Andre Lemos (2003) o “nosso corpo é fruto de diversas combinações de
informação ao nível dos genes está em sintonia com a era da informação.”233 Ainda segundo o
autor, o corpo assume o papel de pura informação, este corpo é fruto de diversas combinações
de informação que está em sintonia com a era de informação, o corpo agora é objeto de
intervenção. Por isso a necessidade de se pensar nas representações como a mesma é
reproduzida, além da tecnologia que se torna aliada no sentido de possibilitar uma melhora na

232
HARAWAY, 2009, p. 36.
233
LEMOS, 2003, p. 7.
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qualidade de trabalho na construção civil, dessa forma outra relação com o corpo. Segundo
Joan Scott (1995):

O “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” – a criação


inteiramente social das idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres.
Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das
identidades subjetivas de homens e de mulheres234.

Pensando na intersecção entre gênero e tecnologia, busco interpretar a relação que


ambas mantem no ambiente da construção civil levando em consideração as dinâmicas que
envolvem a temática.

MOVIMENTOS DE LUTA PELA MULHER NO BRASIL

Nas décadas de 70 a 80 movimentos políticos liderados por mulheres começaram a


construir uma literatura de gênero como produção acadêmica, essa produção inicialmente
procurava entender a repressão do gênero feminino, como uma forma de construção social.
Nesse meio tempo o Brasil começa a organizar movimentos que lutavam pelos direitos das
mulheres, denunciando o racismo e tantas outras mazelas existentes em nossa sociedade. De
acordo com Ângela Figueiredo (2008), “No Brasil, este período foi caracterizado não só pela
abordagem do tema, mas também pela consolidação dos movimentos sociais que emergiram
no período de redemocratização.”235
Um fato interessante é a ausência de mulheres negras no cenário acadêmico, ou seja,
estas mulheres negras não ocupavam os espaços acadêmicos, uma vez que os estudos sobre
gênero e raça têm sido conduzidos majoritariamente por este grupo. As questões sociais no
Brasil começam a tomar espaço, com o desdobramento do campo sobre as relações sociais e
demandas especificas dos movimentos sociais negros.
Refletindo sobre as ideias de Souza (2005), a construção da masculinidade está
associada a um conjunto de ideias e práticas que identificam essa identidade à virilidade, à
força e aos poderes advindos da própria constituição biológica sexual. Ser homem,

234
SCOTT, 1995, p. 75.
235
FIGUEIREDO, 2008, p.238.
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culturalmente, é não ter medo, não chorar, não demonstrar sentimentos, arriscar-se diante do
perigo, demonstrar coragem, ser ativo.
Podemos considerar a masculinidade como o resultado de várias transformações
sociais, de papéis e conceitos que levaram os homens a comportamentos estereotipados tais
como: ser agressivo, viril, não afeminado, coloca o homem em uma situação nitidamente
superior em termos de poder social em relação às mulheres, gerando uma dominação e uma
subordinação não só em relação às mulheres especificamente, mas a tudo o que possa ser
associado ao feminino. Segundo Connell (1995), embora remetam a um corpo biologicamente
masculino, a construção e vivência das masculinidades ultrapassam a predeterminação física,
uma vez que os corpos masculinos são construídos, definidos e disciplinados especificamente
conforme o contexto.
Os estudos de gênero e raça é fruto da intersecção dessas mesmas categorias, tudo
ocorreu devido ao interesse politico e acadêmico das pesquisadoras negras, vale ressalta que
nesse momento a presença de mulheres pesquisadoras negras na academia ainda é limitada.
Porém as pesquisadoras negras tem uma vasta produção no que tangi o tema e contribui para a
percepção de gênero, nesses discursões políticos o tema mulher e negro, ainda estava
relacionada às características biológicas.

Os estudos sobre gênero que incorporaram as diferenças de cor/raça na análise no


Brasil, começam na década de 1980 [...] derivada da experiência de mulheres negras
na atuação em movimentos sociais negros que não respondiam às demandas
específicas, provenientes da experiência das mulheres negras.[...] Brasil era um país
racialmente desigual, a situação era muito pior para as mulheres negras236.

A autora chama atenção como o processo de construção reciproca entre gênero e raça
favorece ao processo de construção de torna-se ser mulher negra. Luiza Bairros considera
importante:

[...] entender diferentes feminismos mas pelo que ela permite pensar em termos dos
movimentos negro e de mulheres negras no Brasil. Este seria fruto da necessidade de
dar expressão a diferentes formas da experiência de ser negro (vivida atreves do
gênero) e de ser mulher (vivida atreves da raça) o que torna superfluas discussões a
respeito de qual sena a prioridade do movimento de mulheres negras luta contra o
sexismo ou contra o racismo'? - já que as duas dimensões não podem ser separadas

236
FIGUEIREDO, op. cit.
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Do ponto de vista da reflexão e da ação politicas uma não existe sem a outra.237

Desta forma o movimento negro, deposita nesse novo padrão de beleza negra, uma
espécie de arma para lutar contra o preconceito, o racismo, a discriminação, moldando uma
nova geração. Pensando nas desigualdades entre homens e mulheres e de como essas
desigualdades são reproduzidas e como as mesmas constrói hierarquias é que “gênero torna-se
uma forma de indicar ‘construções culturais’ – a criação inteiramente social das ideias sobre
os papéis adequados aos homens e às mulheres,”238 entender os processos de construções
culturais é de suma importância, pois é a partir da relação entre os símbolos culturais e
processos históricos que as desigualdades de gênero serão construídas, portanto atentar para o
fato que estas relações foram construídas, a partir de uma base sócio-historica, no sentido que
as construções vão sendo baseadas em um modelo que traz e envolve questões históricas.

A DESIGUALDADE ENFRENTADA PELA MULHER

Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais239 (RAIS) do Ministério do


Trabalho e Emprego, publicado pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção240 (CBIC),
o Brasil tem 3.094.153 operári@s da construção civil registrados, dentre estes 276.588 são
mulheres de carteira assinada, na Bahia são 15.744 operárias, dados do estoque de
trabalhador@s da construção civil no ano de 2013, a indústria da construção civil vem
crescendo nos últimos anos, prédios, viadutos, pontes, ou seja, diversos empreendimentos
estão sendo construídos, e a mulher de forma direta ou indireta está inserida nesse quadro.
Essas mulheres muitas das vezes possuem qualificação compatível ou superior aos
homens, mas pela diferença de gênero não ocupam a vaga, sendo relocadas como ajudantes,

237
BAIRROS, 1995, p. 461.
238
SCOTT, 1995, p. 75
239
É um importante instrumento de coleta de dados, que tem por objetivo o suprimento às necessidades de
controle da atividade trabalhista no País, além do provimento de dados para a elaboração de estatísticas do
trabalho e a disponibilização de informações do mercado de trabalho às entidades governamentais. Disponível
em <http://www.rais.gov.br/sitio/index.jsf>
240
A Câmara Brasileira da Indústria da Construção - CBIC foi fundada em 1957, no estado do Rio de Janeiro,
com o objetivo de tratar de questões ligadas à Indústria da Construção e ao Mercado Imobiliário, e de ser a
representante do setor no Brasil e no exterior. Sediada em Brasília, a CBIC reúne 79 sindicatos e associações
patronais do setor da construção, das 27 unidades da Federação. Disponível em <http://www.cbic.org.br/>
695
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rejuntadeiras, serviços gerais, não ocupando cargos de destaque ou de relevância na


construção. Essa relação também é encontrada no mundo computacional, de acordo com
Natansohn (2013), as mulheres participam pouco das decisões relacionadas as infraestruturas
física e logica das redes digitais em todo o mundo, isso se reproduz em um ambiente global,
poucas são as mulheres que ocupam cargos como engenheiros de computação,
empreendedoras na área das TIC’s, programadoras, desenvolvedoras de softwares e
administradoras de sistemas além de mulheres como ministras e secretarias politicas.
Para a autora supracitada não é o simples fato de denunciar nem reclamar pela falta de
mulheres nesse campo, criando medidas para estimular a participação das mulheres,
diminuindo a Brecha, mas, o importante é questionar “com esta forma de ver as coisa, é o
próprio funcionamento do sistema tecnológico e cientifico, da cultura tecnológica das
empresas, universidades e instituições sociais, muito resistentes as mulheres”241

A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo


feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode
ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os
gêneros e, principalmente, da divisão do trabalho.242

A discursão de Natansohn (2013) aborda uma situação reproduzida socioculturalmente


onde os pais e familiares principalmente, reproduzem essa diferenciação, que é altamente
desfavorável às meninas durante a infância.

Desde a infância, os meninos são elogiados quando desmontam os seus jogos,


bonecos e robôs. “Será engenheiro”, profetizam os pais (e as mães), orgulhosos.
Entretanto, quando nós meninas desmontávamos nossas bonecas, éramos
repreendidas por falta de cuidado. A relação entre o super herói de plástico
desmontado e uma boneca sem cabeça nem braços é a equivalente a do correto e o
incorreto, o normal e o patológico. Assim fomos crescendo, nessa espécie de hábitus
tecnológico binário, hierárquico e altamente desfavorável às meninas.243

Há o pensamento de que meninas devem brincar de boneca, de comidinha, de casinha,


enquanto isso, os meninos são encorajados a montar e/ou desmontar carros, autoramas, o
simples fato de presentear um menino e uma menina, já tenta induzir quem ele deve ser, para
elas uma boneca ou um kit de casinha, já para os meninos um carro, blocos de montar tipo

241
NATANSOHN, op. cit, p. 21.
242
BOUDIEU, 2007, p.20
243
NATANSOHN, op. cit, p. 17.
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LEGO244, ambos são brinquedos, mas o bloco de montar com dezena, centena ou milhares de
pecas que se unem formando um objeto ou modulo dentre tantas, estimula esse jovem a
construir, inovando, criando assim novos brinquedos, por outro lado a menina recebe algo
pronto, acabado, permitindo apenas interagir com estes brinquedos.
Podemos atentar para estas construções, como a própria Sherry Ortner (1979) aponta
que a mulher é sempre posta para o natural e o homem como ser social245, segundo Adriana
Piscitelli (2004), acrescenta que:

A subordinação da mulher não é justa nem natural como chegou a ela e se mantém?
[...] As diversas correntes do pensamento feminista afirmam a existência da
subordinação feminina, mas questionam o suposto caráter natural dessa
subordinação. Elas sustentam, ao contrario que essa subordinação é decorrente das
maneiras como as mulheres é construída socialmente.246

Estas ideias estão posta em nossa sociedade e no senso comum o que acaba gerando
desigualdades, visto que algo que é natural se transforma em social, pois os diferentes grupos
e sujeitos vão perpetuando a mesma, a partir de determinadas construções o que indica a
intensificação da mesma.
Fazendo uma comparação entre o setor da construção civil e o setor computacional em
relação à igualdade de gênero, acreditava-se que um ambiente comunicacional seria mais
propicio ao desenvolvimento da igualdade de direitos e oportunidades entre os gêneros, porem
isso não acontece, as relações de poder existem e continuam as desigualdades e contradições
no uso, desenho e produção das TIC’s, entre homens e mulheres, brancos e negros, ricos e
pobres. Sendo assim Graciela Natansohn (2013) aponta que surge então a “Brecha digital de
gênero”, que não se refere somente as dificuldades de acesso à rede, mas também, aos
obstáculos que as mulheres enfrentam para apropriarem-se da cultura tecnológica, devido a
hegemonia masculina nas áreas estratégicas de formação, pesquisa e no emprego das TIC’s.
De acordo com Deise Gravina coordenadora, o objetivo é a qualificação profissional
de mulheres na indústria da construção civil, o maior desafio para a inserção da mão de obra

244
O Grupo LEGO é uma empresa privada com sede em Billund, na Dinamarca. está envolvida no
desenvolvimento da criatividade das crianças através de jogar e aprender. Baseado no mundialmente famoso
tijolo LEGO ®, a empresa hoje fornece brinquedos, experiências e materiais de ensino para crianças em mais de
130 países. Disponível em<http://www.lego.com/en-us/>
245
ORTNER, 1979, p. 99
246
PISCITELLI, 2004, p.2
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feminina no setor da construção consiste em romper o paradigma de que mulheres não


poderiam estar em canteiro de obras.

O CORPO NO CANTEIRO DE OBRA

O corpo também é revestido de moralidade, conceitos e significados que remete a


cultura e grupo social no qual o indivíduo encontra-se inserido. Em Casa-Grande & Senzala,
Gilberto Freyre (1989) analisa a construção do corpo da mulher brasileira e seu lugar na
identidade nacional, apontando que desde o início da nossa história foi o colonizador o
responsável por definir as qualidades anatômicas e estético-corporais das mulheres, segundo
seus critérios e preferenciais sexuais. Segundo Welington Pereira (2014), “Ao refletir sobre o
corpo negro pensemos em como o mesmo foi construído ao longo da história cheio de amaras
e estereótipos [...] sobre as mulheres negras é construída e está no imaginário social como
mais propensa ao sexo”247.Os discursos relacionados ao corpo negro sempre esteve associado
a questões negativas, a sexualidade relacionada a algo desconhecido, essa impressão vem
desde a escravidão, quando o individuo negro não era dono do seu corpo, logo de sua
sexualidade. Para Figueiredo (2008), essa relação foi imposta pelo olhar do outro, não era o
negro que se vir como tal, mas o branco que o condicionava.
O corpo tem um significado, um valor para a cultura, o grupo no qual o individuo se
encontra inserido surge como distinção social ou pertencimento, no corpo também são
refletidos os desejos, comportamentos, limites de uma classe e/ou grupo social. As mudanças
podem ser percebidas de diferentes maneiras como, por exemplo, na estética, maneira de
vestir, de se comportar, como também na construção e concepção da imagem corporal,
portanto, isto torna a dimensão do corpo um importante fator para compreensão de qualquer
cultura, especialmente a brasileira.
Mauss (1974) afirma que a concepção de corpo em uma sociedade é caracterizada
segundo os costumes culturais, a época, o lugar, os hábitos e as crenças dos indivíduos. De
acordo com o autor o conceito de corpo está definido segundo as concepções culturais,
sociais, estéticas, religiosas determinadas por cada instituição. É a cultura que valoriza e
247
PEREIRA, 2014, p. 17.
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desvaloriza certos atributos corporais, criando um tipo físico para cada sociedade, segundo o
contexto histórico e cultural de cada lugar.
Para tanto é importante atentarmos para a construção do corpo de como o mesmo é
construído, e refletir sobre que corpo é este? Como ele se dá na construção civil? Como e qual
as condições desse corpo, Monteiro (2008) aponta para um processo de “dez –
universalização, a partir do momento que novas identidades masculinas e femininas buscam
se afirmar, buscando sua legitimidade a partir de uma oposição ao outro”, por isso Mauss
(1974) aponta que a partir da disposição e observação dos corpos é possível construir uma
teoria do corpo, como que os homens a partir das diferentes sociedades sabem-se utiliza-se de
seus corpos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tantos negros quanto brancos experimentam seu gênero, classe, sexualidade através
da “raça”, a racialização da subjetividade branca não é muitas vezes manifestadamente clara
para os grupos brancos, segundo Brah (2006) porque “branco” é um significado de
dominância, mas isso não torna o processo de racialização menos significativo. É necessário,
portanto, analisar a “mulher branca”, “mulher negra” como “homem branco”, “homem negro”
tal desconstrução é necessária se quisermos decifrar como e por quer os significados dessas
palavras mudam de simples descrições a hierarquicamente organizadas em certas
circunstâncias econômicas políticas e culturais. As diferenças são construídas de maneira que
os órgãos sexuais são sempre trazidos à cena social para representa a distinção entre homens e
mulheres, “a diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo
feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode ser vista
como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros.”248
O que reflete em uma construção da masculinidade baseada na negação do outro o que
vai implicar em uma construção diferenciada de masculinidade, como bem aponta Almeida
(2000), o mesmo dirige para uma percepção, sobretudo na sociabilidade e nos discursos e

248
BOURDIEU, 2007, p.20.
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praticas diferenciadas na pratica da masculinidade apontando como que o ato de tomar café na
ilha de Pardais, que é uma construção urbana e cosmopolita burguesa também é uma forma de
constituição da masculinidade.
Refletindo a cerca de como as desigualdades de gênero se constitui a partir de
determinadas hierarquias e que está implicada juntamente com raça, o que vai gerar uma
dupla desigualdade, podemos adicionar a essa a questão a masculinidade hegemônica que
segundo Connell (2013), é produzida em contextos específicos, podemos pensar em uma
hegemonia masculina.
Pensando na relação estabelecida no canteiro de obra entre os operari@s e a
tecnologias digitais, podemos aponta para as formas de relacionamento social através das
novas ferramentas de comunicação, que surge com uma gama de possibilidades de se
relacionar com o individuo e o mundo, e entre ambos. Ele ponta para a relação de semelhança
entre as relações online e a relação face a face, apesar do anonimato, da ausência física,
presentes nessas novas praticas sociais, além de certa dificuldade de estabelecer confiança nas
novas formas midiáticas online. Com base nessas informações podemos refletir qual a relação
que a tecnologia digital tem com essa pesquisa, quais as novas formas de relacionamento
moldadas nesse ambiente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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masculinidade Lisboa: Fim de Século, 2000.
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AS RELAÇÕES ENTRE HOMENS E MULHERES NA PROVÍNCIA DE


PERNAMBUCO NO INÍCIO DO SÉCULO XIX SOB A ÓTICA MASCULINA DO
VIAJANTE EUROPEU HENRY KOSTER

Danielle da Silva | daniellesilva300@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O interesse pelos estudos de gênero, através dos relatos de viajantes europeus deu-se
pelo trabalho de pesquisa PIBIC/CNPq realizado entre os anos de 2013 e 2014, na
Universidade Federal da Paraíba, intitulado: A docência masculina em tempos de feminização
do magistério: facetas de gênero no debate da profissão docente na Parahyba do Norte-
(1860-1920), sobre a coordenação e orientação do Professor Doutor Matheus da Cruz e Zica,
detendo-me ao meu plano de trabalho: Gênero e docência sob a ótica dos viajantes europeus
que visitaram o nordeste brasileiro ao longo do século XIX. Várias literaturas de viagens
foram consultadas, porém nesse trabalho focaremos nos relatos de Henry Koster, em uma
única Província.
Na perspectiva de entender, como as relações entre homens e mulheres foram
configuradas durante o processo histórico brasileiro a partir do século XIX, é necessário
compreender as multifaces estabelecidas sobre os papéis de ambos. Nesse trabalho
enfocaremos essas relações a partir da ótica do europeu, Henry Kostert, que esteve no Brasil
por duas vezes, com ênfase no sujeito masculino.
Suas descrições a respeito da Província de Pernambuco, durante o período
apresentado acima deixaram marcas de como teria sido as relações entre os homens e
mulheres associadas ao contexto do período. O viajante parece apresentar traços fiéis do
nosso país, aspectos relevantes que foram apontados por outros cronistas que, também
estiveram no Brasil naquele contexto. Koster é enfatizado pelos demais companheiros:
Nenhum dos grandes viajantes e naturalistas que visitam o Brasil no século XIX

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deixa de citar Koster, com distinção destacada, endossando observações ou


dispensando averiguações desde que o inglês, feito agricultor pernambucano,
registra. Southey utiliza abundantemente no III volume de seu History of the Brazil
(1819). Sem ele, Tollenare escreveria menos. Saint Hillaire, cioso das análises feitas
pelos outros exploradores, informa, seca mas serenamente, que “Koster descreve
bem as regiões que viu...” Henderson, visitando-o dera-lhe nomes que explicavam o
justo renome. Koster já não era o inlês tuberculoso, pequeno negociante que procura
viver mais um pouco no clima tropical do Brasil, mas a Gentleman known to the
literay world by the publication of this in the northern parto f the Brazil.
(CASCUDO, p.20)

O fato de Koster ser tão citado pelos seus compatriotas nos instiga a fazer uma
análise mais apurada sobre seus relatos, que estão compostos por uma diversidade de aspectos
como: os hábitos, a história, a religião, a economia, etc. Tantas características descritas por
ele, de certo modo despertou nos companheiros a curiosidade de conhecer mais sobre o
Brasil. Zica (2011) faz ressalva sobre as formas de como os viajantes europeus referencia os
aspectos do Brasil:
Nos relatos dos viajantes europeus que visitaram o Brasil ao longo do século XIX
podemos perceber referências a aspectos bastante diversificado do cotidiano. A
ansiedade por classificar detalhadamente os animais, os vegetais, os tipos de rocha e
clima de cada lugar em que pisavam, característica que perpassa a maioria deles,
parecia se espraiar também nas observações minuciosas que faziam do
comportamento social, cultural e econômico de cada população visitada.(ZICA
2011, p. 40).

Focando pelo viés das relações de gênero, mais detidamente sobre as condições dos
sujeitos masculinos, na província pernambucana, a seguinte questão nos inquietou: Como o
viajante Henry Koster descreve os comportamentos das mulheres e dos homens nas primeiras
décadas do século XIX? Esse questionamento também procede das lacunas de estudos sobre a
masculinidade.
Na tentativa de responder a esse questionamento apontamos sugestões propostas por
Bourdieu, em se tratando das questões de gênero:
Como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio objeto que nos
esforçamos por apreender, incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes de
percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina; arriscamo-
nos, pois, a recorrer, para pensar a dominação masculina, a modos de pensamento
que são eles próprio produto da dominação. (BOURDIEU 2014, p.13).

Nessa análise podemos perceber que, as estruturas sociais são construídas


historicamente e culturalmente pela predominância do homem. A propósito, observar como a
ótica masculina representa as relações de gêneros no século XIX é, levar em consideração
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essas estruturas para além do que está posto, mas acima de tudo, como a sociedade pensava
essas relações, nesse contexto específico. Chartier (2009) aprimora a compreensão de
Bourdieu no tocante as representações: As percepções do social não são de forma alguma
discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem
a impor uma autoridade à custa de outros (...). De fato, nenhum discurso apresenta-se neutro,
eles influenciam diretamente na compreensão de mundo conceituada a partir de quem escreve.

HENRY KOSTER SOBRE AS CONDIÇÕES FEMINISTAS


Analisando os relatos, trabalhamos as representações femininas construídas por
Koster. O viajante traz imagens diversificadas das mulheres pernambucanas, dentre elas nesse
primeiro momento podemos identificar a ausência delas nos espaços sociais:
(…) Não se veem mulheres além das escravas negras, o que dá um aspecto sombrio
às ruas. As mulheres portuguesas e as brasileiras, e mesmo as mulatas de classes
médias, não chegam à porta de casa durante todo o dia. Ouvem a missa pela
madrugada, e não saem se não em palanquins, ou à tarde, a pé, quando,
ocasionalmente, a família faz um passeio. (KOSTER, p. 36).

Percebe-se que, nesse discurso a ausência da mulher é posta como uma crítica, dando
sequência ao tom preconceituoso, com que se refere a presenças das mulheres negras nas ruas.
Essa forma de relacionar a ausência da mulher nas ruas e o “aspecto sombrio” ocasionado
pela presença da mulher negra desnuda as formas de representação desse europeu que, se
encontra diluído com as questões raciais e de classe diferenciado de sua cultura. Rodrigues em
sua obra, Literaturas de viagem (2013), conceitua as formas de como o europeu elabora as
narrativas de aspectos distintos de outros povos, outras culturas, outros espaço, se não o dele:
Essa apropriação realizada pelo olhar europeu deixa claros dois processos: o
primeiro, quando aquilo que se omite ou se fala sobre o outro desnuda muito sobre
aquele que fala; assim, a construção de uma identidade brasileira traz,
dialeticamente, o explicitar-se de uma identidade europeia, e o segundo, cujas
diferentes maneiras de apreender a realidade ambiental no Brasil, vão deixando
transparecer as modificações nos contextos socioculturais europeus e as
transformações nas mentalidades desses períodos. (RODRIGUES 2013, p.11).

Desse modo, se de um lado Koster aponta o regime de reclusão das mulheres


podendo elas ser vistas apenas em rituais religiosos, por outro, a presença das negras são
notadas como algo assustador. A forma de percepção do viajante mostra a influência e os
traços da cultura europeia, se tratando de pessoas de cor. Em outra parte dos relatos o cronista
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aponta as mulheres em ação pelas ruas do Recife:


Na quinta-feira santa, acompanhado por dois patrícios, saí três horas para ver as
igrejas que são, nessa época, bem iluminadas e perfeitamente ornamentadas. Toda a
cidade estava em movimento. As mulheres todas, da alta e baixa sociedade, enchiam
as ruas pelas tardes, a pé, contrariamente ao uso local. Muitas estavam vestidas de
sedas de várias cores e cobertas com correntes de ouro e outras bugigangas, e em
geral expunham tudo o que de mais fino tinham podido reunir. O número de círios
acesos, clareando as igrejas, era prodigioso. O fim ambicionado era impressionar
pela quantidade de luzes, pondo-se em vários lugares, espelhos por detrás das velas.
Nessa igreja, o meio da nave é completamente aberto. Não há bancos nem distinção
de lugares. A capela principal é, invariavelmente, na extremidade oposta à porta de
entrada. Sai do corpo da igreja e é bem estreita. Essa parte, destinada aos padres
oficiantes, é separada da nave por uma balaustrada. As mulheres, ao entrar, sejam
brancas ou de cor, ficam junto a essa grade, sentando-se no chão, no grande espaço
aberto no centro. Os homens se postam de pé, em cada lado da nave, ou ficam perto
da entrada, detrás das mulheres que, seja qual for posição ou cor, devem ser as
primeiras acomodadas. (KOSTER, p.53).

A presença das mulheres na igreja e, a vaidade a que se despunha se confunde com


os traços da modernidade. De um lado, a tradição que é mantida, por outro, a beleza da
mulher sendo aflorada pelos enfeites e entrelaçados com o jogo de luzes que apontam indícios
de um desenvolvimento na sociedade Pernambucana. Essas mulheres estando, ora ausente,
ora presente, dão sinais de movimentação no espaço público nas ruas dessa Província, nas
primeiras décadas daquele século.
Nos rituais religiosos, pessoas de todas as classes e cores se aglomeravam em um
mesmo espaço difundido em um processo de unificação da mescla social. A imponência do
homem no ato de ficar de pé por trás das mulheres é um ato que denota a masculinidade posta
em jogo nas relações sociais do período, ou talvez um ato de gentileza. Ele também reverencia
a beleza das moças, e a maneira de como se compunha a família pernambucana, mais uma vez
mencionando a presença da família em festas religiosas:
(...) Às dez horas da manhã, saímos da igreja, e seguindo uma família, tomamos
parte duma recreação, voltando muito tarde para casa. Fomos convidados para
passar o próximo domingo com a família que, se constitui de pai, mãe, filho e filha,
todos brasileiros, embora a moça jamais tivesse deixado Pernambuco, suas maneiras
eram desembaraçadas, tendo conversação viva e sedutora.
Sua tez não era mais morena que as das portuguesas em geral; seus olhos e cabelos
negros, suas feições eram agradáveis. Era pequena, mas muito graciosa. Embora
tenha visto outras moças bonitas, esta poderá ser indicada como o tipo branco da
mulher brasileira, mas é entre as mulheres de cor que se pode fixar as mais belas e
com mais vida e espírito, maior atividade de espírito e de corpo, mais adaptada ao
clima. As feições são frequentemente boas, e a cor, mesmo quando é desagradável
nos climas europeus, não parece mal esse ambiente, mas o padrão da ideia de beleza,
segundo as convenções da Europa, os mais lindos espécimes de forma humana,
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tenho visto entre as mulatas. (KOSTER, p.54-55)

A maneira como é abordada a beleza da moça pernambucana e a referência a uma


exclusiva moça, a quem tece inúmeros elogios mostra um “padrão de beleza” disseminado
pelos costumes europeus, porém o viajante diversifica a beleza da mulher brasileira como
uma mescla racial mais apreciada. Por vezes, o viajante faz grande confusão entre o
preconceito com que se refere às negras em oposição às mulheres mulatas. Na Província
Pernambucana, as mulheres tinham uma maneira específica de relacionar-se com o social, o
tempo todo, nota-se a presença delas em atividades nas igrejas.
O conceito desenvolvido por Roger Chartier, sobre a nova história cultural, que
trabalha com as representações contidas em vários elementos sociais: os livros, os jornais, as
cartas, etc., os viajantes mantinham uma forma diferenciada de fazer história, as formas de
subjetivar os olhares sobre o povo e a cultura brasileira estavam relacionadas ao modelo
eurocêntrico, já que pertenciam a tal cultura. Ainda baseando-se em Chartier, (1991), sobre
determinados aspectos: Toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática
histórica particular, num espaço de trabalho específico. Ou seja, em seus relatos, Koster
construiu um registro de acordo com sua suas experiências e subjetividades no qual, tornou-se
um trabalho importante para os demais viajantes.

A CONDIÇÃO MASCULINA SOB AS LENTES DE KOSTER


Na perspectiva de atender ao principal objetivo desse trabalho, nessa parte iremos
trabalhar com enfoque maior sobre o gênero masculino. Abordaremos as representações de
Koster sobre os modos de ser homem em Pernambuco. Através dos conceitos desenvolvidos
por Bordieu:
As injunções continuadas, silenciosas e invisíveis, que o mundo sexualmente
hierarquizado no qual elas são lançadas lhes dirige, preparam as mulheres, ao menos
tanto quanto os explícitos apelos à ordem, a aceitar como evidentes, naturais e
inquestionáveis prescrições e proscrições arbitrárias que, inscritas na ordem das
coisas, imprimem-se insensivelmente na ordem dos corpos. (BORDIEU 2014, p.
71).

Imbuídos pela lógica de Bourdieu sobre as relações de gênero entendemos que, a


sociedade de modo automático determina esses lugares para os corpos de ambos os sexos. Ao
analisarmos os discursos do então viajante, no início do século XIX, koster destacou a
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primazia com que enxergava essas relações:


Um homem de cabeleira curta e túnica verde era São João, e uma mulher de joelhos
ao pé da cruz, era Maria Madalena. Informaram-me que para manter o caráter, os
costumes da mulher não eram muito puros. O frade continuou com dobradas
veemências de gestos, a narrativa da crucificação, e no final d`alguns momentos
bradou: “Vêde-o, vão descê-lo”! Quatro homens, vestidos como os soldados
romanos avançaram. Seus rostos estavam meio cobertos por um crepe negro. Dois
deles subiram pelas escadas postas ao lado da cruz, e retirou a placa com as letras
I.N.R.I. Depois arrancou a coroa de espinhos e pôs sobre a fonte do Cristo linho
branco, apertando-a fortemente e depois o tirou, mostrando ao público a mancha
sangrenta e circular da impressão da coroa. Feito, puxaram com tenazes, os pregos
que seguravam as mãos, o que provocou violentas batidas nos peitos por todas as
mulheres presentes. Uma longa tira de linho alvo foi passada sob os braços da
imagem. Tiraram os pregos que prendiam os pés e o corpo desceu docemente e foi
envolvido em brancos lençóis. Tudo se fizera rapidamente sob o comando da
palavra do pregador. Concluído o sermão, deixamos a igreja. Ficara completamente
assombrado. Pensei que haveria de ser algo de surpreendente, mas nunca tive a ideia
de que levariam tão longe a representação. (KOSTER, p.49).

A associação que Henry Koster faz, entre a igreja e, a atuação dos homens e
mulheres nesse processo mostra-nos o quanto a sociedade pernambucana era bastante
religiosa e que, também aderiam um estilo de vida na época. De toda forma, como podemos
notar, os estudos sobre os gêneros não podem está de forma alguma separados. Como bem
conceitua Bourdieu:
A divisão entre os sexos parecem está “na ordem das coisas”, com se dizem por
vezes para falar do que é normal, natural, apontado de ser inevitável: ela está
presente ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo,
cujas partes são todas sexuadas), em todo o mundo social, e em estado incorporado,
nos corpos e nos hábitos dos agentes funcionando como esquemas de percepção, de
pensamento e de ação. (BOURDIEU 2014, p.5).

Nesse sentido compreendemos que, o lugar para cada sexo é demarcado por uma
ordem construída socialmente. Essa ordem que determina o lugar do homem e da mulher se
encontra incorporado e está presente o tempo todo de forma silenciosa. Em se tratando das
representações desse europeu, vemos a atuação de ambos em diversos aspectos, entretanto a
presenças das mulheres é frequentemente notada nos festejos religiosos.
Resolveu-se que regressaríamos ao Recife nessa mesma noite. Ao nascer da lua nos
pusemos a caminho. O grupo consistia em cinco frades, muitos leigos, a cavalo,
entre os quais se encontravam algumas senhoras em palanquins e os negros
portadores. Partimos à meia-noite, a lua estava brilhante e o céu perfeitamente claro.
A cena era estranha. A estrada fazia curvas bruscas, mostrando aos que se
adiantavam, no volver dos olhos, o séquito, todo inteiro ou parcialmente escondido
pelo alvoredo. Os frades formavam um bando bem extraordinário, com suas túnicas
dobradas na cintura e presa pela longa corda de flagelação, e seus imensos chapéus
brancos. Várias, entre eles, ficavam em Olinda e outros chegaram ao Recife Às sete
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horas da manhã. (KOSTER, p. 53).

A indumentária dos frades lhes chama a atenção pela forma de como representa os
detalhes. Ainda nesse contexto nota-se a presença de mulheres e negros que também
caminham durante o período noturno junto ao viajante e os frades, o que dá a entender que, as
mulheres caminhavam com os homens fora dos horários restritos descrito em outra parte dos
relatos, como já fora citado.
Pode ser observado, depois do que escrevi e tenho feito menção, que não é julgar a
sociedade por uma mesma regra. Famílias de igual posição, importância e riqueza,
têm maneiras inteiramente diversas. O fato é que a sociedade sofreu uma
transformação rápida. Não que o povo imitasse os hábitos europeus embora esses
tivessem influência, mas a proporção que a prosperidade aumenta, maior luxo é
exigido; quando a educação se aperfeiçoa, os divertimentos são mais polidos e altos
e, alargando-se o espírito, pelas leituras, muitos costumes tomam forma diversa. As
mesmas pessoas vão insensivelmente mudando e já olham com ridículo e desgosto,
em poucos anos, os hábitos que as haviam subjugado longamente. (KOSTER, p.61).

Em outras partes dos escritos, a vestimenta dos homens é citada com maiores
detalhes:
... O calção de seda, o sapatão de fivela de prata, o bastão alto, com cabo de ouro, o
lacinho para o cabelo masculino, fora se diluindo como fumo diante de um
ventilador. Senhoras e moças vêm para mesa do jantar ou do jogo, com homens,
conversando pilheriando, numa comunicabilidade que suicidaria o Sargento-Mor de
Ribeira vinte anos atrás. (KOSTER, p. 29).

O público masculino parecia dotado de elegância por seus adornos, bem trajados,
vaidosos e gozava da boa vida que, a economia dessa província podia lhes oferecer.
Características importantes são citadas em outros momentos, como, por exemplo, as mulheres
mais uma vez são vistas com homens jogando, conversando, jantando, aspectos que
aparentavam causar estranhamento em outros tempos na Província.
Os modelos de sociedade mencionados por Henry koster não apontam uma
linearidade, mas diferentes formas. As transformações ocorridas no período parecem está
relacionadas a essas características, nesse sentido as mudanças não ocorriam somente pelo
fato de imitarem a Europa em tempo de processo de modernidade, mas a riqueza, a educação,
a prosperidade de modo geral poderia influenciar no avanço da Província. Nessa conjuntura,
pode-se julgar que, o olhar do Europeu sobre um modelo de sociedade imperial provida de
poder, relacionava-se à educação e ao poder aquisitivo que, aos poucos ia transformando a
sociedade em novas formas de está no mundo, o considerado “mundo civilizado”,

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conceituado pelos europeus.


(...) Findo o quê, voltamos para cear na casa do velho gentil-homem, encontrei aí,
entre outros do mesmo convento, o frade que pregara o sermão da crucificação, Os
frades desse convento são todos missionários e italianos, e como não os reforçam há
muito tempo, mandando outros da Europa, são poucos. Uma longa mesa foi posta e
carregada de vitualhas. Muitas senhoras estavam presentes. Beberam-se quantidades
enormes de vinho, o tumulto começou e as senhoras não se moveram, por fim não
havia ordem; as garrafas e os copos foram derrubados e quebrados no arrebatamento
dos brindes levantados pela prosperidade de todos os membros da família, fossem
velhos ou moços. No meio disso, escapei-me pelas nove horas, acompanhado por
um frade franciscano. Tínhamos uma viagem em projeto para o dia seguinte, e era
bem oportuno sair. As reuniões dessa espécie não são frequentes e, em geral, o povo
vive de maneira muito tranquila. (KOSTER, p.50)

A prosperidade dessa Província é enfatizada pelo viajante e marcada pelo progresso


nos primeiros tempos do século, em Pernambuco. Podemos perceber que a vida de
comerciantes, sendo brasileiros ou europeus estava florescendo a cada dia, a diversão das
pessoas, as festas, os banquetes, os novos hábitos como já foi mencionado em outro momento,
estava inserido nesse processo de avanço.
As páginas antecedentes serão suficientes, creio, para dar uma ideia da sociedade
que se encontra em Pernambuco. É preciso advertir que essas famílias não são
numerosas. Raras se entregam ao comércio. São famílias de que é chefe português e
funcionário público, ou um brasileiro, rico e agricultor, que prefere residir em
Olinda ou Recife. Frequentemente a filha ou filho, estudando com padre secular,
fica embebido das ideias liberais e adquiriam o gosto pela sociedade racional. Como
é natural supor-se, as mulheres, nessas famílias, são sempre dispostas a ostentar
importância ou ser tratadas com respeito, vendo e sendo vistas. (KOSTER, p. 64).

As famílias e os agricultores eram de número pequeno podendo as pessoas residirem


mais frequentemente na vida da cidade, por apresentar condições financeiras favoráveis as
suas boas vidas. Por outro lado as mulheres também se vangloriavam de suas boas vidas com
os seus maridos. Nesse contexto, também podemos notar que, “a filha” ou “o filho”
estudavam com padres, que adotavam os ideais liberais, sendo eles, em sua maioria de origem
europeia, muitos, italianos e portugueses. Essas características também podem ter implicações
na forma de como o Europeu tece tantos elogios aos comportamentos dos pernambucanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisarmos os relatos de Henry Koster podemos ter a noção de como era a
província de Pernambuco. As relações de gênero davam-se sempre em conjunto, o tempo todo
se nota a presença das mulheres, mais especificamente, nos rituais religiosos. Diante desse
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fato, compreendemos que a igreja tinha uma influência muito grande nas relações sociais e
comerciais do período. Os homens parecem deter o poder que os eram atribuídos, ora sendo
atuante no comércio, ora na agricultura, nos negócios de modo mais geral.
Outra parte importante sobre as masculinidades é a presença de homens
teatralizando, articulado com pessoas do sexo feminino. Enquanto que a mulher fosse ela, de
qualquer classe ou cor, poderia ser vista nos ambientes mais destinados a elas, a casa, ou a
igreja. Entretanto, mesmo que, a sociedade do período fosse marcada pelo patriarcalismo, as
mulheres são constantemente citadas pelo viajante durante seus relatos sempre de forma
conjunta, em relação de ambos os sexos.
Esse trabalho nos instigou a conhecer sobre os papeis de gêneros no período
oitocentista no Brasil, mais especificamente na região nordeste, uma vez que, essa região
ainda é marcada pela virilidade masculina. Também contribuiu para desenvolvermos outras
leituras acerca do pensamento dos viajantes europeus em visita ao nosso país e, conhecer
outros aspectos em diversas regiões do Brasil em que estiveram presente no Século XIX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. 1930-2002. A dominação masculina; tradução Maria Helena Kühner. –


12ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2014.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. IN: À Beira da falésia: a história entre
certezas e inquietude. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
___A história ou a leitura do tempo. Tradução: Cristina Antunes. Belo Horizonte, Autêntica,
2009.
RODRIGUES, André Figueiredo. Literaturas de viagens: fauna, flora e etnografia
brasileira/André Figueiredo, José Otávio Aguiar, Wilton Carlos Lima da Silva. – São Paulo:
Humanitas, 2013.
ZICA, Matheus da Cruz. Diversificação dos Modos de ser Masculino e Estatização da
Violência Masculina na Escrita Literária e Jornalística de Bernardo Guimarães (1869-1872).
Belo Horizonte: FAE-UFMG, 2011, p. 40.

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Fontes Histórica
Koster, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Rio-São Paulo-Fortaleza: ABC-2003.
___ http://www.brasiliana.com.br/obras/viagens-ao-nordeste-do-brasil/pagina/4/texto

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DESCONSTRUINDO A MASCULINIDADE HEGEMÔNICA NO MEIO


ESPORTIVO? UMA ANÁLISE SOBRE O VOLEIBOL BRASILEIRO

Leandro Teofilo de Brito | teofilo.leandro@gmail.com

INTRODUÇÃO

Este trabalho busca problematizar a desconstrução do modelo hegemônico de


masculinidade, teoria amplamente desenvolvida pela socióloga australiana Raewyn Connell,
no âmbito esportivo, através da análise de noticias veiculadas pela mídia sobre atletas
profissionais de voleibol que publicamente “saíram do armário249” e a realização de
competições específicas para praticantes gays da modalidade.
Indo além da teoria dos papéis sexuais, muito discutida entre os anos de 1950 e 1970,
que não consideravam as questões de poder existentes no contexto das relações de dominação
entre homens e mulheres, Connell (2003), uma das mais renomadas autoras do chamado mens
studies250, formulou a teoria da masculinidade hegemônica, para discutir um padrão
normativo de práticas de masculinidades, ligada à legitimação do patriarcado e à dinâmica
cultural pela qual um grupo exige e mantém uma posição de liderança na vida social,
possuindo estreita ligação com a relação de dominância dos homens frente à submissão das
mulheres e à exclusão de outras formas de masculinidades. A masculinidade hegemônica
pode ser associada também às instituições de grande escala, relações econômicas, como
também à sexualidade.

249
“Sair do armário” é uma expressão muito utilizada aqui no Brasil para designar pessoas que se assumem
como gays e lésbicas. Sedgwick (2007) entende o “armário” como uma epistemologia que se constitui em um
regime de regulação e controle da sexualidade, perpassando o público e privado, que eram e são criticamente
problemáticos para as instâncias econômicas, sexuais e de gênero da cultura heterossexista que se pauta na nossa
sociedade desde o século XX.
250
Emerge, ao longo da década de 1980, em países anglo-saxões, estudos sobre homens e masculinidades,
desenvolvidos por pesquisadores homens vinculados ao movimento feminista (CECCHETTO, 2004).
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Nas palavras da autora:

A masculinidade hegemônica pode se definir como a configuração de prática de


gênero que incorpora a resposta aceita, em um momento específico, ao problema da
legitimidade do patriarcado, que garante (ou se presume garantir) a posição
dominante dos homens e a subordinação das mulheres (CONNELL, 2003, p.117,
tradução minha).

De todo modo, questiono se esta estrutura hierárquica de masculinidades ainda é um


modelo predominante no contexto social ou se novas configurações, pautadas na
desconstrução da masculinidade hegemônica, já se fazem presentes de forma significativa em
diferentes instâncias da nossa sociedade, como no esporte. Para subsidiar esta discussão, me
apoio na noção de desconstrução, do filósofo franco-argelino Jacques Derrida.
De acordo com o autor:

A desconstrução não pode limitar-se ou passar imediatamente para uma


neutralização: deve, através de um gesto duplo, uma dupla ciência, uma dupla
escrita, praticar uma reviravolta da oposição clássica e um deslocamento geral do
sistema. É só nesta condição que a desconstrução terá os meios de intervir no campo
das oposições que critica e que é também um campo de forças não-discursivas
(DERRIDA, 1991, p. 372).

Haddock-Lobo (2008) reafirma o que Jacques Derrida, com o movimento da


desconstrução, busca promover no que chama de “duplo gesto”, que se dá por meio de dois
momentos constituintes da atividade desconstrutiva, a inversão e o deslocamento, citado no
trecho acima. No primeiro momento, a inversão vai buscar colocar em destaque o que foi
reprimido, marginalizado, para posteriormente, no deslocamento, ir além das dicotomias, das
hierarquizações, dos binarismos, rompendo com qualquer nova hierarquização. A noção
proposta pelo filósofo é potente dentro de uma critica pós-estruturalista, pois assume que os
sentidos atribuídos são variados e diversos.

O que Derrida chama de feminino, por exemplo, está para além da mulher, para
além da distinção sexual homem-mulher: é justamente o fim da distinção polar e a
abertura para uma produção de múltiplas diferenças sexuais [...]. sob este prisma, o
feminino não é a mulher, mas sim a possibilidade de se lidar com a ausência da
verdade fálica, masculina, certa... É a possibilidade do desconhecido e do novo e,
por isso, a chance de pensarmos para além de qualquer classificação sexual, seja
hetero, homo, trans, metro ou mesmo pansexual (HADDOCK-LOBO, 2008, p. 20).

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Culler (1997) exemplifica a desconstrução através do exemplo da causa e do efeito,


sendo a primeira uma origem ou o que se considera temporalmente anterior e o segundo
secundário, dependente da causa. Deste modo, ao trabalhar a desconstrução nestes
enunciados, esta hierarquia será abalada, pois se o efeito é o que faz da causa uma causa,
então este deveria ser tratado como origem, produzindo assim deslocamentos de sentidos, já
que a causa pode ser usada a favor do efeito. Por fim, causa e efeito podem ocupar posições
de origem, rompendo com o privilégio metafísico da causa.
Jacques Derrida também usa o termo différance, para se remeter a diferença como
diferencialidade e como diferimento, segundo Haddock-Lobo (2008), um movimento que
também se volta à desconstrução, já que a tradução do termo se mostra inviável no português
e uma violação em sua língua original. Pensar a desconstrução e pensar a différance.

[...] o movimento da différance, na medida em que produz os diferentes, na medida


em que diferencia, é, pois, a raiz comum de todas as oposições de conceitos que
escondem nossa linguagem, tais como, para não tomar mais do que alguns
exemplos: sensível/inteligível, intuição/significação, natureza/cultura, etc. Enquanto
raiz comum, a différance é também o elemento do mesmo (que se distingue do
idêntico) no qual essas oposições se anunciam (DERRIDA, 2001, p.15).

Tomando como base estas noções discutidas, problematizo o estruturalismo


apresentado por Raewyn Connell na noção de masculinidade hegemônica, quando a autora
classifica modelos de masculinidades subalternas que se configuram a partir do modelo
hegemônico. Connell (2003) nomeia estas masculinidades como “cúmplices”, “subordinadas”
e “marginalizadas”: as masculinidades cúmplices representam homens que se beneficiam dos
dividendos patriarcais, mas que não se enquadram na sua totalidade em práticas instituídas
pela masculinidade hegemônica; a dominação de homens heterossexuais sobre homens
homossexuais representam a masculinidade subordinada, assim como na dominação de
homens adultos sobre homens mais jovens; e, por fim, a masculinidade marginalizada diz
respeito a exclusões relacionadas a classe social e raça/etnia vividas por alguns homens na
sociedade. Estes modelos, de certo modo, não enquadrariam as masculinidades em uma
estrutura hierarquizante?
Outra teorização oriunda do mens studies, inclusive que se contrapõe à masculinidade
hegemônica, é do norte-americano Eric Anderson, denominada de masculinidades inclusivas
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(ANDERSON, 2005; ANDERSON, 2009). Esta teoria afirma haver um declínio da


homofobia cultural no contexto das sociedades ocidentais, com reflexos nos espaços
esportivos, embora a masculinidade hegemônica, a homofobia e a misoginia ainda se façam
presentes e, muitas vezes, predominem nestes locais. As masculinidades inclusivas apontam
para a existência de uma consciência de que os homens heterossexuais podem agir de outra
forma em relação à homossexualidade, com menor ameaça à sua identidade pública como
heterossexual.
Para Anderson (2005) as atitudes conservadoras são passadas de geração em geração,
muitas vezes com pouquíssimas reflexões na busca por mudanças, como ocorre com as
estruturas vigentes de dominação masculina no esporte. Entretanto, assim como ocorreu com
as mulheres, que com muita luta se inseriram nos espaços esportivos, homens não
"hipermasculinizados" começam a contestar a lógica masculinista dominante do esporte.
Ao discutir este declínio da homofobia cultural, Anderson (2009) usa o termo homo
histeria para designar o medo de ser homossexual entre sujeitos do sexo masculino e
incorpora três variáveis a essa noção: entendimento de que a homossexualidade é uma
orientação sexual estática; desaprovação cultural da homossexualidade com associação à
feminilidade; e, por último, a necessidade de homens em se alinhar à heterossexualidade
compulsória buscando evitar suspeitas por parte da sociedade. As masculinidades inclusivas
estão diretamente ligadas à diminuição da homo histeria, tanto entre homens heterossexuais,
como na sociedade como um todo.
Neste contexto, ao se diminuírem as fronteiras entre masculino e feminino,
principalmente nesta área, desconstroem-se estigmas que são associados à homossexualidade,
vivenciados principalmente por homens heterossexuais, permitindo comportamentos mais
abertos e livres a rapazes e homens, a partir de um modelo que o autor chama de mais
inclusivo. Anderson (2009), ao desenvolver esta teoria, conforme citado, tece críticas ao
modelo de masculinidade hegemônica proposto por Raewyn Connell, pois afirma que a teoria
não esclarece a complexidade relacionada à diminuição cultural da homo histeria, na qual há
uma inclusão social das formas de masculinidades subalternas à hegemônica.
O autor nomeia duas formas dominantes de masculinidades em sua teoria: a inclusiva,
que dá nome à sua proposta, e a masculinidade ortodoxa, uma forma mais conservadora,
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construída em oposição à feminilidade e à homossexualidade. Na masculinidade ortodoxa, a


homo histeria ainda é predominante entre os homens. Ele também afirma que existem
múltiplas masculinidades ortodoxas e múltiplas masculinidades inclusivas, objetivando
afastar-se de um modelo fixo e polarizado na compreensão das masculinidades, evitando
assim qualquer tipo de essencialização nesta categorização proposta.
Com base nestas teorizações apresentadas, busco discutir, ao longo deste estudo, como
a desconstrução do modelo hegemônico de masculinidades está presente no contexto do
voleibol brasileiro. Apresento, no próximo item, pesquisas que se detiveram em questões de
gênero e sexualidade no voleibol.

O VOLEIBOL E AS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE:


INTERLOCUÇÕES
A discussão sobre gênero e sexualidade em pesquisas sobre o voleibol ainda são
bastante incipientes na produção brasileira, de todo modo, alguns/mas (poucos/as)
pesquisadores/as se detiveram sobre tais questões, que busco apresentar neste tópico.
Coelho (2009), apresentando dados de diferentes fontes de pesquisas, como
etnografias em jogos de voleibol e netnografia em grupos de discussão sobre o esporte nas
redes sociais, afirma que o vôlei é um esporte considerado híbrido no Brasil. Para a autora, a
trajetória do voleibol no nosso país aponta para predominância de um imaginário feminino
nessa prática, seja pelo número elevado de mulheres que historicamente praticavam e
praticam a modalidade , seja pelo maior engajamento delas nas torcidas e o fato de ter sido o
primeiro esporte olímpico coletivo a possibilitar a participação de homens e mulheres em sua
estreia nos Jogos Olímpicos. A pesquisadora justifica, a partir destas premissas, que, apesar
de ser um esporte originalmente masculino, o voleibol foi “invadido” pelo universo feminino,
o que explicaria sua hibridização.
Outro ponto colocado por Coelho (2009) diz respeito à comparação do futebol com o
voleibol. O futebol, de acordo com a pesquisadora, se mostra um espaço construído como
“viril”, palco da masculinidade hegemônica, pautando-se em Connell, excluindo assim todos
e todas que não se encaixam nesse padrão, como as mulheres e os homossexuais. Neste
contexto, o voleibol acaba sendo um local para novas sociabilidades esportivas, um espaço
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mais aberto e menos segregador para praticar e torcer. Conforme coloca a autora: “É nesse
cenário que o vôlei acaba se constituindo em um espaço de sociabilidade feminina e
homoerótica” (p.91).
As pesquisas de Pacheco (2010) e Pacheco, Lopes & Posteraro (2012), tiveram como
objeto de análise homens atletas profissionais de voleibol de clubes localizados em Minas
Gerais, e seus discursos sobre a construção de masculinidades, dentro e fora das quadras.
Dentre alguns dados da pesquisa, os atletas entrevistados associavam a palavra masculinidade
a preceitos da corporeidade, como a construção de um corpo que suporta dores e fadigas, e,
além da questão corporal, citam as masculinidades ligadas a questões éticas, como: não ser
falso, não fazer intrigas, honestidade, companheirismo, disciplina, coletividade, dentre outros
(PACHECO, 2010).
A questão da sexualidade, como uma interseção da pesquisa dentro do tema
masculinidades, não teve grande impacto nas respostas dos atletas investigados, explicitada
pelos autores por uma certa dificuldade burocrática encontrada no desenvolvimento da
pesquisa e na entrada no campo, assim como na falta de entendimento de dirigentes dos
clubes em “compreender” a importância da mesma, pois julgavam “polêmico” falar sobre a
sexualidade de atletas profissionais. As falas dos atletas estiveram associadas à justificativa
pela escolha do esporte, relacionando atributos tidos como “masculinos” nas habilidades
decorrentes do jogo:
É curioso perceber que a potência sexual passa ao largo do entendimento da
masculinidade enquanto percepção na descrição do que é ser homem. No entanto, ela aparece
na justificativa da escolha pelo esporte. O vôlei é esporte para homem porque é um esporte
envolto pela potência: potência do ataque, do saque. Além disso, é um esporte onde não é
possível se esconder, se omitir. É o homem com a visibilidade do público que supera a
dificuldade da prática, a força do ataque adversário, as dores do corpo e a violência da bola
(PACHECO, LOPES & POSTERATO, 2012, p. 15).
No âmbito de prática de voleibol com jovens, o trabalho de Clementino & Rossetto
Júnior (2008) investigou como jovens de 13 a 15 anos, meninos e meninas identificados como
heterossexuais, de um projeto de voleibol em um bairro da periferia da cidade de São Paulo,
conviviam com outros colegas – do sexo masculino - que identificavam-se como
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homossexuais no espaço de aulas. Apesar dos limites instituídos, a pesquisa buscava


compreender se a prática do voleibol e o convívio entre jovens com diferentes orientações
sexuais nas aulas rompiam com os preconceitos direcionados a uma sexualidade não
normativa. A pesquisa, apresentando dados de forma qualitativa e quantitativa, mostrou que
havia uma convivência harmoniosa entre jovens heterossexuais e gays nos espaços de aula,
auxiliando a diminuir o preconceito, segundo as respostas dos sujeitos. Os discursos dos/das
jovens heterossexuais remetiam a adoção de atitudes positivas perante aos colegas gays, ao
estreitarem laços de amizade no espaço de aulas de voleibol.

MASCULINIDADES NO VOLEIBOL BRASILEIRO: DESCONSTRUÇÕES


Utilizo a técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2011) para sistematizar dados de
artefatos midiáticos, que destacaram atletas brasileiros que se assumiram como gays
publicamente, um caso de transgeneridade de uma atleta brasileira e competições específicas
para o público gay masculino. Utilizei categorias pós-definidas, que emergiram pela leitura
dos artefatos midiáticos, pautando-nos na chamada categoria temática, classificada dentro da
categorização semântica (Ibid.).
Conforme citado, o voleibol brasileiro coleciona alguns casos de atletas profissionais
homens que se assumiram como gays e que atuaram/atuam em equipes profissionais, abrindo
um espaço, ainda restrito, entre os esportistas brasileiros que optam em falar publicamente
sobre sua orientação sexual. O primeiro caso de um atleta do voleibol a se assumir como
homossexual foi em 1995, o jogador Lilico. O atleta criou polêmica no meio do voleibol, pois
afirmou diversas vezes em entrevistas que não era convocado para seleção principal – embora
tenha participado de seleções de base – por ser gay. O atleta faleceu ainda jovem, aos 30 anos,
em 2007, por complicações causadas por um AVC - acidente vascular cerebral (MARTINS,
2011).
No decorrer da temporada 2010/2011, mais especificamente no primeiro jogo do
playoff semifinal entre os times do Sada/Cruzeiro e do extinto Vôlei Futuro, a Superliga
Masculina de Vôlei também foi palco de um caso de homofobia que envolveu o atleta
Michael, jogador do Vôlei Futuro, e a torcida do Sada/Cruzeiro. Michael, durante o jogo, foi
hostilizado pela torcida do time adversário, que atuava em casa, na cidade de Contagem/MG,
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com os xingamentos de “bicha” e “viado”. Logo após o episódio, Michael, com o apoio dos
companheiros e da equipe, assumiu-se publicamente como gay, com o objetivo de que o
episódio não fosse ignorado (MONTES, 2011). O fato causou muita repercussão na mídia
brasileira e internacional, gerando até algumas pesquisas acadêmicas sobre o fato
(BANDEIRA, 2013; ANJOS, 2015).
Mais recentemente, fora noticiado o caso do jogador brasileiro que atua na Liga
Italiana de voleibol, no time da cidade de Milano, Vinícius Santos, que assumiu sua
orientação sexual publicamente e fez um pequeno relato sobre ser homossexual dentro do
voleibol em um blog LGBT:

O fato de todos saberem abertamente de minha condição e conviverem comigo fez


as pessoas perceberem que não existe aquele estereótipo que muitas vezes pintam
por aí. Sempre fui, em todos os lugares, muito respeitado. Disse o que tinha que
dizer num primeiro momento e não precisei tampouco e quis falar sobre o assunto.
Com isto, acho que mostrei que somos iguais e conseguimos conviver perfeitamente
bem, apesar de vivermos em condições e situações diferentes (SANTOS, 2015, s/p.).

Um dos casos mais recentes e notórios sobre questões relacionadas ao gênero e à


sexualidade no voleibol, é o da atleta brasileira transgênero Tiffany Abreu, do time de
voleibol US Heren 1, de Amsterdã. Tifanny, que até o primeiro semestre de 2014 se
autodenominava como Rodrigo Pará, permaneceu como jogadora do time masculino mesmo
transitando em sua identidade de gênero (de masculina para feminina) e teve o apoio do clube
para permanecer jogando voleibol profissional, enquanto passa por todo o processo de terapia
de hormonização (ASBROEK, 2014). Tifanny, de acordo com estudo realizado, parece não
ter interesse em atuar em equipes femininas, mesmo se autoidentificando hoje como mulher
(BRITO & PONTES, 2015).
Outro ponto a ser discutido, diz respeito a torneios de voleibol voltados para o público
gay masculino, que têm crescido nos últimos anos, como a Liga Amazonense Gay (chamada
anteriormente de Superliga Gay), que teve a sua 23ª edição em 2014 (ALBUQUERQUE,
2014), e o Grand Prix LGBT, em sua 4ª edição, também em 2014 (SERRÃO, 2014). Estes
eventos tem se concentrado na região Norte do Brasil e recebem times de todo território
nacional, denotando como o voleibol brasileiro tem sido um espaço aberto para praticantes
gays. É interessante analisar que estes torneios não recebem times femininos de atletas
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lésbicas, e, deste modo, teço algumas justificativas para este fato: “naturalização” da
participação de atletas lésbicas no esporte, de uma maneira geral, competindo em equipes
femininas sem quaisquer problemas, o que ainda não acontece com atletas gays, por todo o
contexto histórico cultural que ainda permeia o esporte e os sentidos do masculino.
A partir deste quadro apresentado, reflete-se sobre como o voleibol brasileiro tem se
mostrado como o principal esporte que tem trazido à tona discussões relacionadas ao gênero e
à sexualidade. Entretanto, assumir-se como LGBT, no meio esportivo geral, ainda é um
estigma aqui no Brasil, já que muitos/as atletas ainda temem possíveis retaliações de fãs e
torcedores/as, assim como de possíveis “danos” às suas carreiras, como a perda de um
patrocínio esportivo, por exemplo. Todavia, assumir-se também pode ter um sentido
ressignificado mais amplo, pois além de uma posição política que se incorpora, se abre
possibilidades de discussões sobre o tema e de desmistificação da não existência de diferentes
sexualidades e identificações de gênero no meio esportivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste sentido, masculinidades não hierarquizadas começam a emergir no cenário do
voleibol brasileiro, pois deslocamentos e ressignificações sobre os sentidos do masculino
começam a ser visualizados no referido esporte, mesmo ainda existindo resistências, de uma
maneira geral, no campo esportivo masculino. A desconstrução do modelo hegemônico de
masculinidade e de seu viés estruturalista apontam para um movimento de desestabilização
normatizador no contexto do voleibol masculino brasileiro, fato que já é mais do que
perceptível, conforme se constatou neste estudo.
Reconhecer o rompimento da lógica metafísica do pensamento, dos binarismos, das
dicotomias e das classificações, nos mostra a multiplicidade de possibilidades que os
processos identitários, estes de gênero e sexualidade, que me debrucei neste estudo, se
expressam nos sujeitos, seja, inclusive, no esporte, campo ainda muito normatizador no que
diz respeito às sexualidades que fogem do modelo heterossexual, em especial entre os
homens.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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“HOMENS E MASCULINIDADES” NO SEMINÁRIO NACIONAL GÊNERO


E PRÁTICAS CULTURAIS

Larissa Meira de Vasconcelos | meiravasconcelos@gmail.com


Charliton José dos Santos Machado
Mariana Gomes Alves Ferreira

INTRODUÇÃO

O Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais (SNGPC) nasceu de uma parceria


exitosa entre o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba
e o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba. Com
o objetivo de reunir professor@s, pesquisador@s, estudantes e integrantes de movimentos
sociais, o evento tem propiciado o debate em dois âmbitos estratégicos: primeiro, a
articulação de pesquisas interdisciplinares e, segundo, a formação do educador, com vistas à
atualização do conhecimento e à socialização de experiências na referida área. Com efeito, os
estudos acerca da problemática de gênero têm contribuído significativamente para a
profundidade teórico-reflexiva, possibilitando entender as transformações constitutivas de
relacionamentos e estilos de vida em uma determinada época e espaço. Logo, a realização do
respectivo evento revela o compromisso dos organizadores251 em propor a continuidade e a
ampliação das reflexões e discussões teórico-metodológicas referentes à temática.
Organizado de forma bienal, sempre no segundo semestre do respectivo ano, o
evento orienta os participantes a enviarem trabalhos a partir de temas geradores: a primeira

251
Desde sua primeira edição, o Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais tem sido organizado pel@s
professor@s Charliton José dos Santos Machado (UFPB), Maria Lúcia da Silva Nunes (UFPB) e Idalina Maria
Freitas Lima Santiago (UEPB). Neste último evento, a parceria foi ampliada para além das fronteiras da Paraíba,
fruto de vínculos acadêmicos na Universidade Federal do Ceará e Universidade Estadual do Ceará, tendo a
participação ativa e fundamental da professora Lia Machado Fiuza Fialho (UECE).
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edição, em 2007, tomou como eixo central “Desafios Históricos e saberes interdisciplinares”;
a segunda, em 2009, voltou-se às “Culturas, leituras e representações”; em sua terceira edição,
em 2011, por sua vez, propôs o diálogo entre diversas epistemologias contemporâneas para
promover “Olhares diversos sobre a diferença”. Em 2013, a quarta edição optou pela reflexão
acerca das fugas, interstícios e brechas que escapam às formas de dominação, enfatizando as
“Subjetividades e Contradiscursos”. Em virtude do aniversário dos 80 anos da conquista do
voto feminino no Brasil, comemorado em fevereiro de 2014, a quinta edição do evento, na
qual este trabalho está inscrito, optou por definir a temática principal de “Feminismos,
cidadania e participação política no Brasil”. Embora existam especificidades entre uma edição
e outra, há, no entanto, um fio condutor que perpassa todo o evento.

Na ordem temática que se propõe o referido seminário, é importante enfatizar que a


categoria gênero é uma categoria relacional, isso quer dizer, por um lado, que os
gêneros se definem na relação com o outro, e por outro lado, sendo um aspecto das
relações sociais e culturais de poder e de subjetivação, o gênero se articula com
outros tipos de relações sociais - geração, raça, etnia, classe, profissão, sexualidade -
de maneiras cada vez mais diversas, indicando novos sentidos e perspectivas de
integração em relação à condição humana (Excerto do texto de apresentação do V
SNGPC, disponível no site <www.uece.br/eventos/seminariogenero>).

No entanto, uma análise (quali e quantitativa) pormenorizada dos anais das quatro
edições anteriores do evento, evidencia fragilidades na maneira como a categoria gênero,
entendida como relacional, tem sido operacionalizada. Como corpus de análise, observou-se
os resumos e palavras-chave de todos os 1001 trabalhos publicados e em 88% dos casos, usa-
se “gênero” quase como um sinônimo de mulheres/feminino. Comprovou-se, ainda, que o GT
“Gênero, homens e masculinidades”, presente desde a primeira edição do evento
concentrando os estudos voltados às masculinidades, tem, por sua vez, o menor número de
trabalhos publicados, compondo apenas 5% do montante. Longe de ser uma exceção, o
resultado desse “balanço” sugere a própria dinâmica no interior dos Estudos de Gênero.

A CATEGORIA GÊNERO NO SNGPC

Definitivamente, não há espaço neste pequeno artigo para realizar um apanhado


histórico ou uma genealogia da categoria “Gênero”, mas com o intuito de dirimir possíveis
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incompreensões, faz-se necessário tecer algumas considerações em torno desse conceito, já


que o termo encerra em si uma variedade de vertentes teóricas. Segundo Scott (1995), os
estudos feministas incorporaram a categoria “Gênero” em suas análises, a partir da década de
1980, a procura do que se poderia chamar de legitimidade acadêmica. Além da limitação
teórica da utilização dos termos “mulher” ou “mulheres” face às novas problematizações252,
esta nova categoria

indicaria erudição e seriedade de uma pesquisa, uma tentativa de dissociar-se da


política – (pretensamente escandalosa) – do feminismo. Neste uso, o termo gênero
não implicaria necessariamente numa tomada de posição sobre a desigualdade ou o
poder, nem mesmo designaria a parte lesada (e até agora invisível). Enquanto o
termo “história das mulheres” revela a sua posição política ao afirmar
(contrariamente às práticas habituais), que as mulheres são sujeitos históricos
legítimos, o “gênero” inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se
constituir em uma ameaça crítica (SCOTT, 1995, p. 75).

Conforme atestam Arilha, Unbehaum e Medrado (1998, p. 21), “uma tendência


marcante da produção acadêmica e política do feminismo brasileiro dessa época foi a de
estreitar laços com o marxismo, privilegiando a ‘mulher trabalhadora’ como tema”. Com
efeito, foram discutidas, denunciadas e propostas alternativas à condição feminina nos
diferentes campos da vida social. Dessa reflexão, porém, os homens (ou as masculinidades)
foram alijados ou, quando muito, apenas incluídos como contraponto aos estudos sobre a
mulher253.

252
Joana Maria Pedro, no esforço de historicizar a categoria Gênero, disserta sobre as limitações teóricas
envolvendo a utilização do termo “mulher”, na medida em que não há “a mulher” universal; substituída,
posteriormente, pela categoria “mulheres”, respeitando, dessa forma, o pressuposto das múltiplas diferenças que
se observa dentro da diferença; e, finalmente, o uso da categoria “Gênero” na narrativa histórica, o que permitiu
às pesquisadoras e pesquisadores focalizarem as relações entre femininos e masculinos, discernindo como as
tensões e acontecimentos foram produtores de gênero. Seguramente, estas categorias de análise não formam uma
evolução na direção da “categoria mais correta”, mas co-existem sendo apropriadas de diferentes formas em
contextos específicos. Ver mais em: PEDRO, 2008.
253
Embora, é verdade, já houvesse uma embrionária discussão sobre a necessidade de um diálogo entre as
perspectivas feministas e os homens na década de 1980. Arilha, Unbehaum e Medrado (1998) citam
como exemplo: 1) Rosiska Darcy de Oliveira que escreveu, em 1983, o artigo “As pequenas pedras no bolso do
feminismo” (Novos Estudos CEBRAP, nº3, v. 2, Nov. 1983), enfatizando a necessidade da participação dos
homens no movimento para que as conquistas feministas pudessem ter continuidade; 2) Ruth Cardoso, também
em 1983, que apresentou na VII Reunião Anual da ANPOCS o texto “A adesão dos homens ao feminismo”; 3)
Maria Lygia Quartim de Moraes que no mesmo encontro, discutiu no GT Família e Sociedade sobre “Família e
feminismo: o encontro homem/mulher como perspectiva”).

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Foi justamente por esta especificidade no emprego do termo que a categoria Gênero
tornou-se historicamente quase sinônimo de “mulheres”. No entanto, cabe ressaltar, o SNGPC
orienta-se pela dimensão relacional do termo, o que implica considerar as relações de poder
que fabricam condutas masculinas e femininas permitidas ou negadas. Ratifica-se, pois, o
posicionamento de Scott (1995, p. 82), quando afirma que “masculino e o feminino não são
características inerentes e sim edificações subjetivas (ou fictícias) que se encontram num
processo constante de construção” ou, ainda, “são categorias vazias e transbordantes, sem
significado definitivo e transcendente”. Amparando-se na analítica foucaultiana sobre o
poder, Scott questiona a afirmação de que as posições normativas são um produto da natureza,
um a priori histórico, e não de conflitos, sedições e insurreições cotidianas. “O gênero é,
portanto, um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado”
(SCOTT, 1995, p. 88).
Aproveitando-se do espaço promovido pela categoria “Gênero”, apenas no
final da década de 1980 e início dos anos de 1990, surgem, timidamente e de forma esparsa,
os, antes olvidados, estudos voltados às “masculinidades”. Pesquisas que se esforçam em
adotar uma perspectiva relacional, não polarizada, que rompa com a visão maniqueísta de
culpabilização dos homens e vitimização das mulheres são fundamentais, pois conforme
atesta Medrado e Lyra (2008, p. 820):

reconhecer a dimensão relacional do gênero possibilita desconstruir principalmente


os argumentos culpabilizantes sobre os homens que demarcam o discurso de parte
do movimento feminista e que ainda se faz presente, direta ou indiretamente, nas
produções acadêmicas contemporâneas. Ao invés de procurar os culpados, é
necessário identificar como se institucionalizam e como se atualizam as relações de
gênero, possibilitando efetivamente transformações no âmbito das relações sociais
“generificadas”, ou seja, orientadas pelas desigualdades de gênero.

Esta, vale ressaltar, não é uma especificidade do Brasil. A partir de levantamento


realizado junto à literatura latino-americana referente aos Estudos de Gênero, Medrado e Lyra
(2008) propõem uma reflexão sobre os motivos pelos quais os trabalhos sobre as
“masculinidades” são produzidos de forma assistemática, impedidos de desdobrarem-se em
uma consistente discussão teórica, epistemológica, política e ética sobre o tema. Segundo os
pesquisadores, determinadas abordagens de pesquisa dificultam, sobremaneira, o ponto de
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vista relacional. A saber: perspectivas voltadas à vitimização das mulheres, a autoflagelação


dos homens e, por fim, uma leitura enviesada do “patriarcalismo” que, de certa forma, adotam
uma postura maniqueísta, em virtude do pressuposto de uma busca em definir quem são
“bons” ou “maus”, mantendo polaridades que pouco contribuem ou avançam na compreensão
das desigualdades de gênero. Faz-se premente, pois, trafegar em uma terceira via, o que
significa considerar os conflitos, tensões e acordos, consentindo insurgir masculinos e
femininos múltiplos cada vez mais complexos e plurais. Afinal, quantos homens cabem num
só?
Nunca é demais advertir que longe de negar a contribuição dos “Estudos de/sobre
Mulheres” para o desenvolvimento do campo teórico de gênero, o que nos incomoda é
perceber como ainda é recorrente a abordagem unidirecional da temática, prejudicando a
discussão teórica acerca da perspectiva relacional. Pensar as masculinidades como
construções históricas não é adotar posição alheia – como pensam algumas feministas - ou
justificar, por outras vias, o machismo e a estrutura misógina que persistem na sociedade.
Absolutamente! Esforçar-se em refletir o Gênero enquanto uma categoria relacional, ou seja
considerando feminilidades e masculinidades como construções históricas, contigentes,
frágeis e provisórias é fomentar a mudança, é dar evasão a todo e qualquer argumento de
naturazalição dos sexos. É necessário, pois, demonstrar como uma estrutura é empreendida
para, então, dispormos de conhecimentos e possibilidades de sua futura desconstrução. Neste
ínterim, como nos lembra Medrado (1997, p. 42),

Descrições de homens quando aparecem são em geral imersas numa análise mais
profunda sobre os modelos femininos ou figuram como objeto/objetivo secundário
em estudos sobre fatores sociais amplos como violência, homossexualidade,
trabalho etc.

Os números provenientes da incursão nos anais do SNGPC são, portanto, reveladores


da grande produção teórica sobre gênero (entendido como Estudo de/sobre Mulheres apenas)
que obscurecem, de certa forma, reflexões acerca das masculinidades. Mais do que isso,
indicam a necessidade de pesquisas que reflitam sobre as mudanças nos comportamentos, no
papel do homem na família e na sociedade, uma vez que se por um lado há mudanças

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positivas provenientes do debate feminista no tocante à igualdade de direitos entre homens e


mulheres, por outro, permanece a concepção de masculinidade viril e machista. Interessante
notar que “nos últimos anos têm ganhado força argumentos que indicam que a saúde das
mulheres só se modificaria efetivamente na medida em que a população masculina, jovem e
adulta, também mostrasse movimentos de mudanças em seus padrões de comportamento”
(ARILHA; UNBEHAUM; MEDRADO, 1998, p. 16), por exemplo, em relação à transmissão
de doenças sexualmente transmissíveis, em especial a Aids, e em relação ao uso de
contraceptivos, incluindo o preservativo.
Afinal, a consolidação do feminismo enquanto movimento organizado e os
desdobramentos dos trabalhos de gênero demonstram, sobremaneira, a urgência em fomentar
novas e distintas estratégias para buscar maior equidade entre homens e mulheres. A pergunta
que se torna premente é como, no interior do princípio de igualdade de oportunidades entre
homens e mulheres, debater não apenas a “cidadania pública”, fundamental evidentemente,
mas também a “cidadania privada”. Ora, a maior participação das mulheres na vida pública
(isto é, o ingresso feminino maciço no mercado de trabalho, a participação em organizações
político-partidárias e sindicais etc.) não deveria corresponder à maior participação dos
homens na vida privada (ou seja, no comprometimento masculino com questões referentes à
vida sexual e reprodutiva do casal, a participação efetiva dos homens na criação dos filhos e a
divisão equitativa das atividades domésticas)?
Arilha, Unbehaum e Medrado (1998) indicam que as discussões sobre masculinidade
ingressaram de forma mais consistente na universidade a partir do debate envolvendo a
sexualidade, sobretudo, com os estudos voltados à homossexualidade (desbiologização do
sexo e maior ênfase na construção dos papéis sociais). Encampado pela bandeira da
diversidade sexual, o movimento gay obteve influência significativa e direta na forma como
as idéias sobre as masculinidades se constituíram ao longo das últimas décadas, bem como na
definição do conceito de masculinidade e no incentivo aos estudos sobre a condição
masculina, na medida em que se organizaram contra a discriminação que sofriam, os
homossexuais propunham outras mentalidades, outros comportamentos, outras perspectivas
para a relação entre os sexos, questionando, sobretudo, a masculinidade hegemônica (branca,
heterossexual e dominante). Assim, é salutar uma convergência entre os estudos feministas e
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as reflexões sobre homossexualidade e homofobia para ampliar os horizontes de compreensão


sobre como homens e mulheres se relacionam e produzem sentido em torno da sexualidade e
da reprodução em suas diversas facetas.
As discussões atuais envolvendo a construção social da masculinidade ainda são
marcadas por duas principais abordagens teórico-metodológicas, podendo ser agrupadas em
dois grandes blocos: 1) Aliados do Feminismo, i. é. pesquisador@s que reconhecem a base
dos estudos sobre a masculinidade no avanço das teorias feministas; 2) e os Estudos
Autônomos sobre a masculinidade, que embora admitam o avanço das discussões produzidas
pelo feminismo, acreditam que para dar conta do caráter complexo e multifacetado dos
fenômenos que envolvem a masculinidade, os trabalhos precisam ser elaborados a partir de
leituras psicossociais desvinculados diretamente das discussões conceituais sobre gênero ou
do debate em torno das conquistas do movimento de mulheres. Reconhecer a dimensão
relacional do gênero possibilita, portanto, desconstruir os argumentos culpabilizantes em
relação ao masculino, que demarcam o discurso de parte do movimento feminista e que ainda
se faz presente, direta ou indiretamente, nas produções acadêmicas contemporâneas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise dos trabalhos publicados nos anais das quatro edições anteriores
do SNGPC, pode-se observar que a categoria gênero que perpassa a criação do evento, isto é,
com caráter relacional, é pouco operacionalizada. De modo que os estudos voltados às
“masculinidades” são comumente concentrados no GT intitulado “Gênero, Homens e
Masculinidades”, compondo apenas 5% do total de artigos. Longe de ser uma exceção, esse
modesto balanço evidencia um modelo de pesquisas empreendidas dentro dos Estudos de
Gênero que precisa ser repensada.
Conforme lembra Priore (2013), as relações de gênero permanecem, sem dúvidas,
sob o jugo de desigualdades e injustiças. As mulheres precisam renovar de forma aguerrida a
luta contra formas díspares de opressão. Atuam, muitas vezes, de forma sorrateira, tática
(Certeau, 1994), por meio das brechas e interstícios, a fim de combater o machismo que se
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embrenha em todo o tecido social. Ainda assim, é importante salientar que o feminismo é uma
ferramenta importante aos homens também, pois questiona o “estereótipo (naturalizado) do
machão, valente e conquistador que assombra muitos homens” (PRIORE, 2013, p 12).
É necessário, pois, construir outros sentidos para as masculinidades, uma vez que o
culto à virilidade, fundada em um “ideal de força física, firmeza moral e potência sexual não
surge de um estado de natureza, mas está profundamente inscrita no estado da cultura, da
linguagem, das imagens e dos comportamentos” (COURTINE, 2013, p. 8). Destarte, longe de
constituir uma simples virtude individual, a virilidade impõe-se como um “sistema de valores
e normas, produzindo efeitos de dominação - dentre os quais o exercido sobre as mulheres é
apenas um elemento - no qual o homem deve, incessantemente, saber dar provas”
(COURTINE, 2013, p. 8).
O nosso intuito não é esgotar o tema, nem poderíamos fazê-lo se assim desejássemos.
O que realizamos é um estudo pontual, uma centelha que exige posteriores desdobramentos.
Assim, propomos esse pequeno artigo como um trabalho em aberto, passível de ser revisitado,
questionado e criticado a partir de outras problematizações. O que nos interessa é provocar
novos entendimentos acerca das masculinidades, para além da compreensão do “homem
unívoco e universal”, mas dos múltiplos significados e dimensões que se relacionam na
constituição do “homem de carne, osso e músculos”. Escolhemos, pois, a multiplicidade de
experiências femininas e masculinas negociadas, claudicantes, contingentes, mais ou menos
submetidas aos valores sociais de determinado contexto histórico, em detrimento de uma idéia
de “natureza” inerente aos Gêneros.

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MASCULINIDADES EM DISPUTA: UM OLHAR SOBRE O PROCESSO DE


CONSTRUÇÃO DAS MASCULINIDADES EM UMA ESCOLA DA PERIFERIA
URBANA

Paulo Melgaço da Silva Junior | pmelgaco@uol.com.br


Leandro Teofilo de Brito

INTRODUÇÃO

Este trabalho aborda alguns modos com os quais jovens adolescentes, de uma escola
da periferia urbana, constroem suas masculinidades e como estas masculinidades são
vivenciadas no ambiente escolar. Nesse aspecto, buscamos captar como dois jovens de uma
escola da periferia de Duque de Caxias se constroem como “homens”, criando significados
sobre a masculinidade legitimada e reconhecida pelo senso comum. Pretendemos mostrar
através de narrativas como os jovens Victor – autodeclarado homossexual - e Felipe –
autodeclarado heterossexual - (nomes fictícios) se posicionam como narradores e narram os
acontecimentos do evento, criando significados sobre a masculinidade legitimada e
reconhecida pelo senso comum.
Defendemos a grande relevância deste estudo, porque em nossa sociedade o domínio
discursivo da masculinidade hegemônica (CONNELL, 2000) ainda é muito forte e sufoca ou
desconsidera diversas outras formas de masculinidades. Assim, se por um lado,
masculinidades que não atendem às práticas discursivas preconizadas pelas formas
hegemônicas são consideradas subalternas ou desviantes, por outro, jovens buscam caminhos
para defenderem outras possibilidades de masculinidades destacando diversas perspectivas
para o entendimento de relações sociais e culturais presentes na escola.
Neste sentido, conhecer os discursos e narrativas sobre sexualidades e
masculinidades pode ajudar aos/às professores/as a desenvolver novas perspectivas de
trabalho e de ação em busca do combate a homofobia nas escolas e principalmente em prol do
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reconhecimento e valorização das diversas sexualidades presentes no cotidiano escolar. Para


tal, os principais instrumentos para geração de dados foram: as narrativas de masculinidades
de dois estudantes e a observação do cotidiano escolar.
O presente trabalho está estruturado da seguinte forma: Primeiro apresentamos a
base teórica que sustenta a análise dos dados como conceito de sexualidades, masculinidades,
performance, narrativas, situacionalidade e posicionamento. Em seguida, apresentamos o
contexto e a narrativa utilizada para análise. Concluimos destacando as questões relevantes
que apareceram durante a análise.

SEXUALIDADES
A sexualidade está diretamente ligada à forma como o sujeito utiliza seu corpo
sexuado para se relacionar com outro. Roland (2003) considera a sexualidade como uma das
identidades sociais que marcam as subjetividades: “é vista como fruto de um conjunto
complexo de processos sociais, culturais e históricos, fruto esse que é oscilatório inter e
intraculturamente, que é (re) interpretado ao longo do tempo e que possui significados
diferentes para pessoas diferentes” (p.115). Sendo parte integrante da vida do sujeito é
entendida por diversos/as autores/as como “construção social” (por exemplo, BRIZTMAN,
1996, 2001; LOURO 2001, 2003; MOITA LOPES, 2002, 2003).
Nesse sentido, considerações de Britzman (1996) podem ser úteis. A autora assinala
que toda identidade sexual é um construto instável, mutável e volátil, uma relação social
contraditória e não finalizada, sendo constantemente rearranjada, desestabilizada e desfeita
pelas complexidades da experiência vivida, pela cultura popular e pelas múltiplas histórias.
Então, pensar em identidade sexual significa abrir um leque de maneiras, segundo as quais as
pessoas vivem e apresentam socialmente sua sexualidade, tendo que ser vistas em relação às
outras identidades sociais de classe, de gênero, profissão, etc. Essa expressão, identidade
sexual, só terá sentido se for vista como polimorfa, fragmentada, fluída, múltipla,
contraditória, em constantes modificações e negociações, capaz de rearticular desejos e
prazeres.
Segundo a autora, as identidades sexuais são construídas e negociadas nas práticas
sociais cotidianas. As palavras reforçam o pensamento de que não existe uma identidade
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padrão na qual o sujeito social nasce e se adapta. Desse modo, a construção da identidade
sexual, também, depende de um projeto pedagógico (LOURO, 2001), que se encarrega de
moldar os diversos sociais, para que eles se enquadrem as regras legitimadas pala sociedade.

MASCULINIDADES
A masculinidade para Connell (2000) é uma configuração prática em torno da
posição dos homens na estrutura das relações de gênero e seus efeitos nas experiências físicas,
pessoais e culturais. Como existem diversos formas de construir uma masculinidade, esse
termo deve aparecer sempre no plural. Assim, masculinidades são práticas diárias nas quais
garotos são engajados, enfatizando agência (FROSH, PHOENIX & PATTMAN, 2002). Neste
sentido, as masculinidades são construídas e re-construídas, não podendo ser tomadas como
realidades imutáveis e objetivas, estando sempre de acordo com a história e a cultura, bem
como sujeitas às relações de poder.
Diversos tipos de masculinidades co-existem e são produzidas simultaneamente.
Existe uma hierarquia entre as diversas masculinidades. Neste trabalho, pretendemos repensar
a construção da masculinidade hegemônica, ou seja, um tipo de masculinidade que enfatiza o
papel do homem nas relações de poder, ressaltando seus privilégios e deveres nas estruturas
patriarcais. Destacamos, que esse é apenas um tipo de masculinidade entre as diversas
existentes. A masculinidade hegemônica nem sempre é o tipo mais comum de masculinidade
em nossa sociedade, ela pode ser destacada pelo gosto e prática de esportes, à oposição as
características femininas, pela naturalização da violência e uso da força, pela homofobia e
constante horror a ameaça da homossexualidade.
A necessidade de se tomar a heterossexualidade como dada e natural é um dos
maiores projetos de consolidação da masculinidade hegemônica. Fato que reforça o
pensamento preconizado por Butler (2003) quando diz que a partir da noção de construção
social das identidades, a heterossexualidade deve ser constantemente problematizada. Outro
aspecto relevante que deve ser destacado em Frosh, Phoenix, Pattman (2002) é o fato de que
nas discussões sobre masculinidade deve ser considerada a dicotomia entre o público e o
privado.
Em oposição à masculinidade hegemônica, alguns autores, por exemplo, Connell
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(2000); Frosh, Phoenix, Pattman, (2002); O`Donnell, Sharp (2002), nos apresentam as
masculinidades subordinadas ou marginalizadas como aquelas que são produzidas na
exploração e opressão de grupos e minorias. Essas identidades são construídas com base em
estereótipos e os sujeitos são marcados como abjetos, sem brilho e valores. A identidade
feminina, normalmente, serve como o elemento que reforça essas masculinidades. Assim,
aqueles garotos que apresentam uma determinada fragilidade, não praticam esportes, não
exercem a violência ou que não vivem, em público, o que se espera do modelo hegemônico de
masculinidade são considerados menos másculos ou gays.
Contudo, Sullivan (2003) lembra que uma forma possível de problematizar e tentar
desestabilizar esses discursos é operar simultaneamente com os traços performativos de raça,
gênero, sexualidade e classe social, uma vez que estes estereótipos foram construídos por
civilizações ao longo da história, que os utilizaram e consumiram. Como um exemplo de que
os construtos raça e sexualidade foram produzidos discursivamente, a própria autora lembra
que no século XVIII Charles Linnaeus propôs a existência de quatro raças, assim
classificando-as: o branco europeu, aquele que é gentil e inventivo; o vermelho americano, o
obstinado; o amarelo asiático, melancólico e ambicioso; e o negro africano, indolente e
negligente, ao mesmo tempo detentor de pênis grande e cérebro pequeno (o oposto dos
brancos). Este discurso confirma que raça é “uma fantasia móvel e instável” (SULLIVAN,
2003, p. 65).

NARRATIVAS, DISCURSOS E PERFORMANCES NO PROCESSO DE


CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DOS SUJEITOS
As narrativas constituem um modo de concepção do discurso, e constituem um
importante conceito para esse trabalho. As narrativas estão sempre presentes nas práticas
sociais (THORNBORROW e COATES, 2005). Entendemos que ao narrar, o sujeito está se
construindo e construindo o mundo em sua volta. Assim, a narrativa contribui para a
construção e exposição do nosso senso de quem somos (SCHIFFRIN, 1994) possibilitando
também que construamos nossas relações com os outros e com o mundo que nos cerca
(BASTOS, 2005).
Através das narrativas autobiográficas nossas experiências e nossas relações com os
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outros ganham significados. É a partir delas que falamos sobre nós, sobre nossas vidas e
acabamos nos tornando aquilo que contamos (SCHIFFIN, 1994). Em outras palavras, os
narradores podem construir o que são e se posicionarem sócio-culturalmente através das
histórias que contam. Nesta perspectiva, descrevendo eventos o narrador toma o controle de
sua vida e pode reforçar ou criar algo mais movimentado para afirmar o eu (WORTHAN,
2001).
Partindo do pressuposto de que os discursos, as narrativas e as histórias de vida
acontecem através da linguagem e que ao dizermos algo estamos fazendo algo (AUSTIN,
1990), pode-se dizer que ao narrar estamos realizando uma performance. O conceito de
performance é muito amplo, está relacionado a eventos, a espetáculos, a ensaios, assim como,
também ao ato dizer algo com convicção. Na performance o sujeito precisa acreditar no que
está dizendo ou fazendo para convencer a audiência (GOFFMAN, 1959). É essa crença que
leva o outro acreditar naquilo que está sendo dito ou realizado. Assim, todo discurso pode ser
compreendido como performance. Nesta perspectiva, as identidades sociais, identidades de
gênero, sexualidades e masculinidades são produzidas através da performance, onde a
repetição de gestos, de falas, reforça a idéia que existe uma essência, uma forma pré-
estabelecida de ser. Ao contrário, não existe uma essência, é a linguagem que constitui as
subjetividades. A teórica queer Judith Butler (2003) nos mostra que a identidade é
performativa, no qual o ato de fala tem efeito de materializar e criar os corpos, por meio da
repetição dos discursos, da forma que interessam ao poder ou à sociedade.
É relevante destacar que a performance é metacultural (COUPLAND, GARRETT,
WILLIANS, 2005), em outras palavras, para realizar sua performance o sujeito busca se
enquadrar de acordo com as regras culturais nas quais está inserido. A performance estabelece
uma relação entre o acontecimento e seus significados na cultura. Quem pertence a um
determinado grupo realiza um tipo de performance, fato que aponta seu nível de inclusão e
envolvimento, ou não, no seu contexto específico.

SITUACIONALIDADE E POSICIONAMENTO
Pensar em situacionalidade é pensar no cenário onde está ocorrendo a performance,
nos elementos que contribuem para realização do ato e que são empregados consciente ou
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inconscientemente durante o evento. As pessoas são constituídas a partir dos contextos nos
quais estão inseridas e os significados serão dados e entendidos a partir deste contexto. As
pessoas com as quais circulamos são pessoas que permitem construir aquele contexto
(PENNYCOOK, 2007). Já o conceito de posicionamento, em geral, se refere a como a pessoa
é localizada no discurso ou na conversa quando eles estão/são engajados construindo
significados com os outros. Assim, a partir da narrativa o eu é delineado de acordo como o
narrador se posiciona diante de outros personagens e diante do que está sendo narrado.
Neste sentido, os alunos que narraram suas historias são oriundos de uma escola
localizada no 2º distrito de Duque de Caxias e oferece desde a educação infantil ao segundo
segmento do ensino fundamental. A escola possui cerca de 1000 alunos e alunas, provenientes
de classe trabalhadora e de baixa renda. Os/as alunos estão divididos em 3 turnos: 7:30 às
12:00, 13:00 às 17:00 e 18:30 às 22:00. Os alunos que narram suas histórias estudam no 9º
ano, segundo turno.

SUJEITOS E CONTEXTO DA NARRATIVA/PERFORMANCE


Essas narrativas foram elicitadas com o objetivo de perceber como os rapazes, Victor
e Felipe (nomes fictícios), de 15 anos, se constroem como homens: homossexual e
heterossexual a partir das performances que eles narram. Victor (nome fictício) – 15 anos,
branco, alto, considerado muito bonito por meninos e meninas. É estudante do 9º ano, faz
questão de conhecer o mundo moda, usa cortes de cabelo sempre atualizado. Seu histórico na
rede: estuda na mesma escola desde a primeira série do ensino fundamental (7anos).
Assumidamente homossexual, conversa abertamente sobre sua sexualidade, já namorou
rapazes da escola. Felipe (nome fictício) – 15 anos, negro. Mais forte e mais baixo do que
Victor, Felipe se orgulha de sua sexualidade e de sua masculinidade. Segundo ele tem muita
dificuldade de aceitar “o jeitão” do colega. É amigo de todos na escola. Por ser bom aluno em
matemática e bom desenhista está sempre disposto a oferecer seu apoio a todos que
necessitarem.
As gravações aconteceram na escola, sendo a de Felipe no dia 03 de agosto e a de
Victor na semana seguinte dia 10. Ambas aconteceram antes do inicio das aulas. Um dos
autores deste trabalho conhece os dois rapazes há muitos anos, são alunos da escola desde a
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educação infantil e o clima foi completamente informal. A motivação para a gravação surgiu a
partir de observações de situações que vem se observando no decorrer deste ano, onde estes
dois rapazes se destacam pela forma como apresentam seus discursos e performances sobre
masculinidade. Esses trechos ocorreram em uma conversa gravada sobre o que é ser “homem
de verdade”. Conduzimos as perguntas. Assim, o trecho que interessa constitui uma narrativa
elicitada (THREADGOLD, 2005), ou seja, Victor e Felipe (em momentos distintos) foram
provocados para que falassem sobre o que é ser homem. Do material coletado selecionamos o
trecho que interessava a esse trabalho e transcrevemos. Ressaltamos que para realizar as
transcrições utilizamos as convenções indicadas por Bastos (2005). Assim, as palavras
escritas com letras maiúsculas indicam uma ênfase do narrador, ... uma pausa, os símbolos ↑↓
indicam frases ditas com uma maior ou menor entonação.
A entrevista com Victor aconteceu na primeira semana de agosto/2015. Combinamos
encontrar na escola momentos antes da aula. Ele chegou, cumprimentou e assentou de pernas
abertas, destacando uma perfomance corporal do que se espera do masculino. Disse para ele
que nossa conversa era sobre o tema: Ser homem.

Eu: - O que é ser homem para você?


Victor: - Para mim.... ser homem é me identificar com o gênero masculino. Mas o
que realmente te faz homem é AGIR como tal.
Eu: - o que é agir como tal?
Victor: - Usar roupas masculinas.... e se sentir bem, gostar sabe? Falando assim até
soa preconceituoso mas se você se identifica como homem, você é HOMEM.
Eu: - Explica melhor:
Victor: - Se uma mulher homossexual se identificar como homem e querer ser
homem, . ↑ beleza, ela pode ser sim um homem. . ↑ Ser homem não é apenas ter um
orgão genital masculino
Eu: - Você acha que existem várias maneiras de ser homem?
Victor: ↑ - Claro que sim. Ao meu ver, ser homem é se IDENTIFICAR como
homem, como eu disse antes. Mas, ninguém é igual, tem homem que curte pop e o
outro curte rock..... Ninguém é igual, você dizer que pra ser homem tem que jogar
futebol, assistir filmes de ação e etc é a maior mentira. Isso é rotular. Todos somos
diferentes.
Eu: - Mas você acha que no dia-a-dia, as pessoas pensam assim
Victor:-.... Infelizmente não... Não sei... algumas até dizem que pensam..
Eu: - Então como agir?
Victor: - Eu mostro ...falo que HOMEM que SOU... ↑ gosto e namoro meninos..
(risos)..
Eu: - Mas não sofre discriminação e preconceitos?
Victor: Na escola ↑agora não diretamente .... Mas... na escola mesmo eu fui vítima
de preconceito e sempre fiquei quieto porque eu achava que eu era errado mesmo.
Eu: - Como mudou:

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Victor: -Um dia que um dos meus professores conversou comigo e me disse que o
que faziam comigo era cruel. ....Ele passou um filme.....Conversou muito comigo..
Eu: - E o que mudou:
Victor: -Eu passei a exigir respeito... Eu passei a me aceitar. Mostro para as
pessoas quem sou e não me abaixo para as pessoas nesta escola e na rua. ↑Tenho
muitos amigos gays e bissexuais.
Eu: - Observo aqui na escola que alguns adolescentes são alvo de brincadeiras de
mal gosto, de discriminação em relação à sexualidade, mas isso não acontece com
você. Como justifica isso?
Victor: - Eu tenho PERSONALIDADE.
Eu: -Como assim?
Victor: ↑Eu sou o que sou, Não me abaixo para eles. Mostro que sou HOMEM
como eles. Estes garotos só encaram quando são idecisos que não sabem o que
querem..
Eu:- Será?
Victor: - ↑Com certeza.. olha o Lucas da manhã.. é uma mulher..mas tem
PERSONALIDADE. Vê se alguem brinca com a cara dele. Ele vai em
cima..enfrenta. Agora olha os que não se impoem... todos zoam..

Aqui podemos observar que para se construir como homem, dentro de um modelo
de masculinidade hegemônica, Victor deprecia a masculinidade de Lucas. Assim, a identidade
sexual de Lucas é construída como subordinada.
A entrevista com Felipe foi planejada no final do mês de junho e aconteceu no início
de agosto. Ele chegou à escola no horário combinado. Apesar de uniformizado, apresentava
um grande cuidado com a maneira de se vestir e portar. O seu jeito sério e ao mesmo tempo
atencioso chamava a atenção:

Eu: - O que é ser homem para você?


Felipe: - Ser homem.... é ter ATITUDE... é saber respeitar os outras... as
mulheres.. É saber HONRAR O QUE TEM! Honrar o sexo .... não ficar de
brincadeirinha..como muito aqui
Eu: - o que é ficar de brincadeirinha?
Felipe: - Ora professor.. brincadeirinha.. esses meninos que ficam de agarra agarra
tanto com outro como com as meninas...ficam zuando os outros.. falando dos outros
Eu: - Homem na escola tem que praticar esportes?
Felipe: - ↓tem que fazer tudo... Aqui na escola nen dá para fazer esporte
direito..olha a droga de quadra..mas.. acho que todos homens gostam de esportes
aqui..até as meninas... tem muitas que jogam bola.
Eu: - Aqui na escola alguns alunos que são gays assumidos, outros nem tanto.
Gostaria de pensar nos que são assumidos. O que você acha da postura deles?
Felipe: - Aqui tem muitos.. parece que tá nascendo muito viado... olha eu não
misturo com eles..não sou contra.. outro dia o Samuel me chamou de
homofóbico..sou não, mas não me misturo... Eu não acho legal eles ficarem
desmunhecando, chamando de mulher..
Eu: - Mas você faz trabalho junto com Victor que se assume como gay
Felipe: -Professor... sei lá.. o Victor fala dos namorados e tudo..mas ele se impõe
..ele sabe se respeitar e respeita os outros. É igual o Michael dança, brinca,
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desmunheca demais..mas briga com qualquer um que desrespeitar ele..


Eu: - E os outros?
Felipe: ...(pensou bastante).. pensa nos gêmeos.. o que é aquilo.. eles tem carater?
Não se assumem..desmunhecam..não se colocam... É acho que é isso ↑ ninguem
sabe o que eles querem.....

Devemos ressaltar que o ato de coçar ou pegar a região peniana foi uma constante
naquela tarde. Principalmente durante a narrativa na hora que ele queria falar sobre ser
homem. Este fato, pode mostrar a estreita relação entre a masculinidade hegemônica, raça,
classe social e valorização do falo. Para se firmar e reforçar sua posição como homem, o
narrador precisou mostrar que estavam presentes naquela conversa: ele e o falo. É relevante
observar a partir da fala de Felipe que as identidades subordinadas são construídas por
estereótipos, ou seja, que não se portam como as expectativas.
Ao proferir estas narrativas, Victor e Felipe se avaliam, refletem e se posicionam a
todo tempo como homens. Os jovens procuram agir e narraram fatos e situações que se
esperam de um homem . Um fato importante, pois, evidencia como as pessoas procuram se
construírem dentro de modelo legitimado socialmente. É relevante destacar que o discurso da
masculinidade hegemônica é tão forte que o próprio Victor, que se assume enquanto
homossexual, busca elementos para se enquadrar.
O pequeno trecho autobiográfico da historia de vida de Victor e Felipe, narrado por
eles, mostra, segundo Linde apud, Moita Lopes (2002), como uma proposição de verdade “é
homem” é seguida por uma série de razões que buscam afirmar essas verdades. Todas as
razões apresentadas pelos rapazes são destacadas nas características legitimadas pela
ideologia do senso comum. Aqui os narradores podem apresentar sua identidade de gênero e
se construir como homem dentro do discurso de masculinidade aceita e legitimada pelo grupo
social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão que esteve implícita ao longo deste estudo foi como que dois estudantes
constroem e apresentam suas masculinidades no contexto escolar. As narrativas nos permitem
perceber a força do discurso da masculinidade hegemônica, no qual os jovens adolescentes,
apesar de um se autodeclarar homossexual e o outro heterossexual, procuram se enquadrar de

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todas as maneiras. Nesse discurso a busca pela valorização da heteronorma, da superioridade


do masculino imposto pela força física nas relações de poder está muito presente.
Conhecer os discursos e as narrativas de sexualidade dos/das estudantes pode
contribuir para a construção de um currículo que busque valorizar e reconhecer as diversas
identidades sexuais e principalmente problematizar e desconstruir o discurso da
masculinidade hegemônica. E assim, colocar em xeque visões essencializadas e
congelamentos identitários, trazendo o diferente para a sala de aula e propondo o diálogo
entre as diferenças.
No entanto, é necessário compreender que essas observações e pesquisa aconteceram
em um contexto específico. Em outro contexto estes estudantes podem se construir de outra
maneira. Existe também a possibilidade de os adolescentes participarem de outras
experiências de vidas e então certamente, existe a possibilidade de agência, de reinvenção de
seus discursos e de suas masculinidades.

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RELAÇÕES DE GÊNERO: DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE O


PROFESSOR E A PROFESSORA

José Luiz Ferreira | zlferreira@ufcg.edu.br


Guilherme Lima de Arruda | guipedagogia@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Este texto é síntese de uma pesquisa realizada com o propósito de compreender as


práticas docentes de um professor e de uma professora a partir de suas semelhanças e
diferenças. Nos questionamos quanto às características atribuídas ao trabalho do professor e
ao trabalho da professora, a partir, das referências de gênero e de masculinidades.
No magistério infantil, aqui entendido a partir da educação infantil e aos anos iniciais
do ensino fundamental, a presença do homem na condição de professor é, ainda, uma
raridade, considerando o grande volume de mulheres professoras. Esses professores, mesmo
inexistentes em algumas realidades, em outras são sujeitos de permanente visibilidade e,
enquanto tais, sujeitos de nossos interesses de pesquisa.
Estudar a prática docente à luz dos estudos de gênero e masculinidades significa,
entre outras coisas, buscar entender o lugar que o homem e a mulher ocupam no magistério
infantil. Neste espaço social as mulheres são, em primeiro lugar, detentoras do maior número
no exercício da função docente, além de predominarem, também, em outras funções. Do outro
lado os homens são minoria, com baixa visibilidade em dada realidade, mas visíveis em
outras.
O interesse pelos estudos dos homens no magistério se coaduna com as preocupações
com a formação docente, uma vez que o curso de Pedagogia ao qual nos vinculamos tem a
finalidade de preparar profissionais para o exercício do magistério na educação infantil e nos
anos iniciais do ensino fundamental.

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Existe diferença e/ou semelhanças entre a prática do professor e da professora? Em


que bases teóricas e/ou filosóficas são concebidas? Que importância tem provocar essas
reflexões? Perguntas como estas nos guiaram durante a realização da pesquisa.
A pesquisa foi de natureza qualitativa, os dados para reflexões foram coletados a
partir dos processos da observação e da entrevista. Os aportes teóricos estiveram alicerçados
nos estudos de gênero e masculinidades. Os sujeitos da pesquisa foram dois docentes, um
homem e uma mulher, ele lecionando para uma turma de 5º ano do ensino fundamental e ela
trabalhando com crianças do 4º ano. A mesma foi realizada em uma escola localizada no brejo
Paraibano, num município com cerca de 25.900 habitantes, localizado a 166 km da capital
João Pessoa.

O HOMEM E A MULHER NA CONDIÇÃO DE DOCENTES

Em se tratando do magistério para crianças, os homens estiveram no exercício da


função por muitos anos, predominando desde a implantação da Ordem Jesuítica no Brasil em
1549 a aproximadamente meados do século XVIII. Se a feminização do magistério se
constituiu num fenômeno de inserção e predomínio das mulheres nas escolas e creches,
significou a superação ou a ocupação de um espaço antes ocupado pelos homens. A baixa
quantidade de homens no magistério é inversamente proporcional ao número de mulheres. De
acordo com o Censo Escolar de 2007 (INEP/MEC) os homens correspondem a menos de 4%
dos docentes na Educação Infantil e a 9% nos anos iniciais do ensino fundamental.
Na história da educação brasileira o processo de instrução foi inicialmente
desenvolvido por homens. Estes ligados à ordem jesuítica assumiram o comando da educação
das crianças e jovens até aproximadamente o século XIX, quando as professoras começam a
aparecer e ocupar o espaço da sala de aula.
A presença cada vez maior da mulher no espaço público se dá a partir de mudanças
sociais que acontecem desde o século XVIII. Essas alterações no campo social, e na educação
em particular, estão influenciadas pelos modos como a sociedade entendia o homem e a
mulher. As compreensões do mundo privado, reservado às mulheres e do mundo público,
referenciado aos homens, chegam à escola. Se na escola as mulheres começam a aparecer e

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assumir o lugar antes de maioria masculina, evidentemente esse processo traz em si as marcas
dessas mudanças. As características atribuídas às mulheres começam a substituir e a
influenciar o magistério de tal modo que se apaga, quase que totalmente, a percepção de que a
prática do exercício do magistério é também um espaço de participação dos homens.
O registro das instituições de ensino que se encarregam de instruir, educar os
meninos nos primeiros séculos da existência do Brasil tem, a grande maioria delas, a marca de
uma instituição religiosa e estas, por sua própria natureza são exercidas por sujeitos do sexo
masculino. É de se reconhecer, portanto, que a tarefa de instruir os filhos da nação estivesse a
cargo de homens, de padres, sacerdotes com conhecimentos sobre crianças. Responsáveis pela
tarefa de instruir e de consolidar uma filosofia de vida combinada com os valores religiosos,
estes senhores representavam os modelos de virtudes a serem seguidos, guias espirituais,
conhecedores das matérias das técnicas de ensino e viver a docência como um sacerdócio
(LOURO, 1997).
Várias obras retratam a figura do homem professor, algumas delas, como é o caso de
Memórias de um Sargento de Milícias (ALMEIDA, 2004, p. 53-54), obra publicada em
meados do século XIX, aponta as características de um professor que “baixinho, magrinho, de
carinha estreita e chupada, excessivamente calvo; usava de óculos, tinha pretensões de
latinista, e dava bolos nos discípulos por dá cá aquela palha”. A ele não podia escapar nada e
ao que lhe fugia do seu domínio, utilizava-se da palmatória, para assegurar seu poder de
dominação e seu reconhecimento como autoridade para o ensino. Se a palmatória não fosse
utilizada entrava em cena beliscões, reguadas, agressões morais ou qualquer outra forma de
castigo que resguardasse o poder de exercer o respeito e o medo sobre os alunos.
Em outro momento Almeida (2004, p. 54) descreve uma situação na qual as crianças
ao cantarem uma ladainha de número a fazem sob os olhares atentos do mestre:

o menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava no meio de todo o
barulho; fazia parar o canto, chamava o infeliz, emendava cantando o erro cometido,
e cascava-lhe pelos menos seis puxados bolos. Era o regente da orquestra ensinando
a marcar o compasso.

Almeida (idem), portanto, não faz outra coisa a não ser retratar em sua obra a figura
do mestre, do professor, cujo ideal social está associado ao sujeito homem, senhor da força,
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do poder, da ordem e da disciplina. O uso de instrumentos ou de práticas para castigo dos


alunos era uma prerrogativa das práticas exercidas pelos mestres-escolas.
Foucault (1992) advoga a favor da ideia de que a disciplina fabrica corpos submissos
e dóceis, sobre os quais vai operar uma “anatomia política”, compreendida como uma
mecânica do poder, no sentido de que o domino sobre o corpo dos outros seja feito não sobre
o que se quer, mas como se quer, com as técnicas, a rapidez e a eficiência determinada.
Assinala que “o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de
retirar tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar
ainda mais e melhor” (FOUCAULT, 1992, p. 153)
Corrêa (1983), escreve, ao final da década de 1930, uma obra cujo protagonista é o
menino Cazuza, natural do interior do Maranhão. Cazuza começa sua trajetória de aluno de
escola na própria área rural onde morava. No povoado onde morava existia apenas um
professor e sem alternativa, todas as crianças tinham que estudar com ele. O professor era
extremamente rigoroso em suas atitudes. O castigo parecia ser a regra básica para qualquer
deslize, seja ele de natureza comportamental, seja de natureza cognitiva, intelectual ou de
aprendizagem.
As expectativas do aluno Cazuza para o primeiro dia de aula aumentam, à medida
que o tempo passa vai construindo um ideal de escola que lhe provoca ansiedade. Antes de ir
à escola, o menino viu muitas vezes que os alunos saiam da escola em tom de alegria, o que
lhe fez pensar numa escola alegre, divertida, sem opressão.
Ao chegar o primeiro dia de aula descobre uma outra escola, que lhe impunha medo.

Tentei encarar o professor e um frio esquisito me correu da cabeça aos pés. O que eu
via era uma criatura incrível, de cara amarrada, intratável e feroz.
O Vavá veio sentar-se ao meu lado, como se tivesse medo de ficar sozinho no
banco, por trás do meu. O velho João Ricardo ergueu-se subitamente, agarrou-o pela
orelha e levou-o de novo ao banco.
O movimento foi tão brutal que o Pedrinho, que estava perto se espantou, e, com o
cotovelo, derramou o tinteiro. O Adão riu. O professor vibrou-lhe a régua na cabeça
(CORRÊA, p. 29).

Sobre as práticas dos professores, Corrêa (idem) diz que o uso da palmatória era tão
comum que podia faltar o mobiliário, material escolar, um profissional mais preparado, só não
podia faltar a palmatória.
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Se os homens construíram uma forma de ser docente com bases em estereótipos


vinculados aos ditames de uma masculinidade hegemônica detentora do poder de sobrepor-se
ao outro, a partir de atitudes grosseiras, fechadas, impessoais, racionais, anti-democráticas, as
mulheres ao adentrarem o universo da docência, apontam novos modos de ser docente,
imergindo nas relações novos modos de conviver, de tratar o outro.
O contraste entre o professor e a professora ficou retratado na obra de Corrêa (1983).
Cazuza ao encantar-se com a primeira professora apaga a imagem do professor com quem
teve as primeiras experiências escolares.

Dona Nenén, a professora da minha classe, foi quem primeiro me entrou no coração.
Vinte e quatro anos, pouco mais ou menos, leve, magrinha, pequenina, e olhos
pardos e grandes. Um rosto bonito e tranquilo e um riso tranquilo e bonito
clareando-lhe o rosto. Eu nunca tinha visto moça mais linda. E tão forte impressão
ela me causava com a sua beleza, que eu tirava constantemente os olhos dos livros
para ficar minutos esquecidos a olhá-la (CORRA, 1983, p. 78)

A imagem do professor era de um

Homem velho, bigode branco, óculos escuros, pigarro de quem sofre de asma.
Nunca lhe vi um sorriso no rosto. Vivia sempre zangado, com o ar de quem está a
ralhar com o mundo, cara amarrada, rugas na testa. Para as criancinhas do meu
tamanho, representava o papel de lobisomem. Tínhamos-lhe um medo louco (Idem,
p. 19).

Essa caracterização do professor do sexo masculino representa uma parcela desses


profissionais, considerando que muitos não se assemelham aos parâmetros que a grande
maioria das pessoas pensam. Pesquisar é então uma das possibilidades para melhor conhecer
estes sujeitos.
As representações das pedagogias atribuídas aos homens e as mulheres, eles
detentores de uma pedagogia dura e elas responsáveis por uma pedagogia branda não é uma
constante. Para Ferreira (2008)
A associação da pedagogia dura aos homens e da pedagogia branda às mulheres não
é linear, única, fixa, os homens ainda são vistos e exemplos não faltam, como mais
agressivos, frios e distantes afetivamente dos alunos de acordo com um modelo de
masculinidade tradicional, patriarcal, mas há também professoras que assumem
atitudes e comportamentos ditos masculinos (FERREIRA, 2008, p. 87).

A docência representada pelo sexo feminino, além de ser amplamente explorada,

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assegura-se a partir de estereótipos construídos ao longo da história, notadamente a partir do


momento em que a chegada das mulheres à educação já trazia a relação com o campo
doméstico, a relação com as crianças e a condição de mulher, mãe, com características
associadas ao afeto, aos modos carinhosos de tratar as crianças.
Os muitos estudos e pesquisas apontam para uma compreensão de que, a mercê do
componente político da função, a participação da mulher na educação das crianças está muito
atrelada à condição de mulher, motivos que levam a ser predominantes à medida que o nível
ou etapa escolar se refere às crianças. Quanto menor a criança maior a participação da mulher.
Esse dado indica que a experiência de mãe, de cuidadora é um dos pré-requisitos que levam as
mulheres às creches e pré-escolas e até nos anos iniciais do ensino fundamental. Esse dado diz
também que os homens não possuem habilidades, competências para lidar com crianças muito
pequenas. Ideias assim é que muitos estudiosos atribuem ao magistério infantil uma de suas
principais características, a de que está predominado pela maternagem.

DISCUTINDO OS RESULTADOS DA PESQUISA

Os resultados alcançados com a pesquisa foram derivados das informações colhidas


nas observações realizadas em sala de aula e das entrevistas com o professor e a professora.
Os procedimentos adotados foram o de atribuir, em primeiro plano, informações às práticas
do professor e da professora derivadas dos dados colhidos na sala de aula e nos depoimentos
dos sujeitos da pesquisa.
Para entender o que o professor e a professora apresentam de semelhantes e de
diferentes em suas práticas, estabelecemos alguns pontos de análise.
Um dos primeiros pontos diz respeito ao modo como ambos iniciaram suas
trajetórias docentes. Residentes em cidade de porte pequeno e tendo a possibilidade de iniciar
a experiência docente sem a prerrogativa da formação acadêmica para tal, a docência aparece
como algo inesperado. Assim, assemelham-se ao que diz respeito aos modos como cada um
se constituiu professor e professora. O tempo de experiência deles indica que suas inserções
no campo da docência foram anteriores à Constituição Federal, quando para ser professor ou
professora bastava um “quero” e “pronto” (profa.). A partir de 1988 o ingresso na educação só
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através de concurso o que geralmente exige a formação adequada. Tanto o professor quanto a
professora tem, cada um, mais de vinte anos de experiência.
Estando professor e professora a preferência por faixas etárias de crianças maiores é
um dado que aos dois são comuns, todavia, não é muito diferente para o professor já que
estudos têm apontado uma preferência dos homens pelas crianças maiores. A professora diz
“não tenho jeito de brincar e de estar com aquelas brincadeiras”, assim sua preferência é
também pelas crianças maiores. A preferência por crianças menores não é, via de regra, uma
exigência baseada no atributo do sexo ou do gênero. Acata-se de forma natural a aproximação
da mulher com as crianças e ao homem o distanciamento, mais ainda com crianças menores.
Neste espaço atravessado pelas questões de gênero e com predominância do sexo
feminino, são evidentes características que evidenciam implicações nas práticas pedagógicas.
As opiniões a respeito dos papéis que a sociedade atribui ao homem e a mulher refletem no
cotidiano escolar. Como o homem participa deste processo se a ele lhe são atribuídos
estereótipos que se contrapõem às mulheres? Arruda e Ferreira (2012) dizem:

Aos homens estão associados valores e atributos que os fazem diferentes e muito
mais do que isso, diferentes na dimensão de atributos considerados impróprios para
a maioria das situações que enfrenta no trabalho escolar. Se as mulheres são meigas,
carinhosas, os homens parecem ser identificados por características que vão de
encontro a estas, ou seja, são duros, impacientes, não apresentam jeito para cuidar de
crianças. (pág. 5)

Será mesmo que os professores são rudes, impacientes, incapazes de ouvir as


crianças? Que os estereótipos construídos para os homens são por todos assumidos? Que as
mulheres ao exercerem o magistério trazem em si as marcas da feminilidade como algo
estritamente exclusivo delas?
Tomando por referência os atributos atribuídos aos homens e às mulheres, fomos
identificando uma troca de valores nas práticas do professor e da professora. Nas primeiras
análises da prática do professor fomos encontrando modos de agir e de pensar que iam de
encontro aos estereótipos construídos para o sexo masculino. Na mesma lógica encontramos
na prática da professora atitudes e ideias consideradas comuns aos homens. Quando
procuramos ouvir o professor a respeito do modo como ministrava suas aulas, sobretudo no
que diz respeito ao comportamento dele e dos alunos, ele nos explicou:
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Na sala eu procuro ser pai, professor, psicólogo, de tudo eu procuro fazer para que
os conflitos que aconteçam na sala eles não levem tudo que aconteceu naquele
momento se o professor usar um pouco de inteligência, e nós somos inteligentes, ele
não deixa nada ir para casa. (depoimento do professor - grifos nossos)para casa, eu
procuro adoçá-los de uma forma que a raiva da criança não guarda mágoa, não
guarda rancor, para ela

O que seria então adoçar a prática? Enquanto o professor nos falava desse jeito de
relacionar-se com os alunos, a professora se intitulava grossa, seu jeito de ser com os alunos
era mais rígido do que o dele. Essas informações já apontavam para a necessidade de não
tomar as práticas pedagógicas com base nos estereótipos comumente atribuídos às pessoas de
sexos diferentes.
Na conversa com o professor ele nos falava de um segredo, de um modo de trabalhar
que lhe era muito próprio, algo que dizia não dividir com ninguém. Mas esta forma é
perceptível quando percebemos que a responsabilidade da sala e a autoridade de professor ele
toma para si como uma forma de fazer-se professor, razão porque diz que, em relação aos
colegas da escola
tem colegas que não sabem ter domínio, ter um segredo, começa, assim, faltar
paciência com os alunos, bate de frente com os alunos, bate de frente com os pais
dos alunos, ai acha que a gente que, no meu caso tem uns que ficam bajulando
porque quer descobrir o segredo, mas eu não digo, eu digo, eu não sei, vocês façam
o papel de vocês ai, isso ai é uma rotina que todo dia professor tem.

Enquanto a professora age do modo mais comum, desenvolvendo suas aulas da


maneira mais corriqueira possível, ele busca transformar a vida do aluno a partir do interior da
sala de aula. Contou-nos a experiência de trabalhar com um aluno que ao chegar a escola não
se comunicava e ele, a partir do seu modo particular de agir, levou o aluno a romper a barreira
da comunicação, passando a interagir com as demais pessoas. Esse fato nos fez refletir que o
exercício da docência é território ocupado por pessoas com suas próprias singularidades,
independente do gênero.
Tomando como parâmetros esses atributos impingidos aos homens, é mister
reconhecer que os mesmos se fazem presentes na sala de aula. O caráter de durão, agressivo,
que imputa poder pode até ser uma regra geral, todavia nem todos enquadram-se nesses
perfis. Os homens, como sujeitos de pouca visibilidade no cenário da docência, ainda não

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quebraram paradigmas que os colocam longe do entendimento histórico e cultural, ou seja,


mesmo considerando sujeitos homens que não desenvolvem suas atividades docentes com
este perfil, prevalece ainda à concepção de que eles não dispõem de recursos apropriados ao
exercício da docência com crianças.
Os modos como homens e mulheres são vistos no cotidiano da vida não se alteram
quando eles ou elas estão na condição de professor ou professora. Para Carvalho (1998) o
ensino nos anos iniciais do ensino fundamental tem como característica uma visão maternal e
feminina da docência, acentuando aspectos formadores, relacionais, psicológicos, intuitivos e
emocionais da profissão em contrapartida àqueles aspectos socialmente identificados com a
masculinidade, tais como a racionalidade, a impessoalidade, o profissionalismo, a técnica e o
conhecimento cientifico. Essas duas visões de docência podem conviver nas figuras de
docentes de ambos os sexos ou em docentes do mesmo sexo. Quanto mais à escola apresentar
uma docência centrada numa docência representada como maternagem, mas dificuldade terá
de aceitar o homem educador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização desta pesquisa nos fez perceber que não podemos atribuir ao professor ou
a professora representações de suas práticas baseadas em aspectos biológicos e sexuais.
Tomando por referencia o conceito de gênero trazido por Louro (2000, p. 77), que diz “o que
nos interessa não é propriamente a diferença sexual, mas a forma como essa diferença é
representada ou valorizada, aquilo que se diz ou que se pensa sobre a diferença”.
Acrescentamos que a construção social destas diferenças tem determinado práticas tanto de
discriminação quanto de superação do quadro de desigualdades entre as pessoas, sejam elas
de qualquer sexo.
As práticas docentes no magistério infantil não devem ser representadas como
territórios exclusivos das mulheres. A presença dos homens insere a necessidade de
aprofundarmos os olhares para os sujeitos que as tornam efetivas. A própria presença deles na
escola já denota um lugar de gêneros, masculino e feminino. As mudanças ocorridas nas
últimas décadas em vários campos da sociedade, principalmente nos modelos de relações
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entre pessoas do mesmo e de sexos diferentes, vêm exigindo a necessidade de convivermos


com os diferentes, com as adversidades e com a diversidade.
Práticas docentes de homens não devem ser, a priori, concebidas como diferentes das
práticas docentes das mulheres quando o elemento aglutinador estiver relacionado às
diferenças sexuais. Em outras palavras, homens e mulheres apresentam diferenças e
semelhanças em vários aspectos, não podendo ser incluídas como diferentes ou semelhantes
aquelas práticas subordinadas às concepções de homens e de mulheres dentro de um
paradigma dicotômico.

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REVISITANDO O ‘HOMEM DE VERDADE’254:


OLHARES PARA PAI E FILHO...

Sonia de Alcantara Gouveia | sonia.alcantara@ifrj.edu.br


Letícia Mendes Pereira

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem o objetivo de discutir questões geralmente silenciadas no cotidiano


escolar, neste caso o silenciamento de sujeitos que transgridam os padrões comportamentais
de gênero impostos, especificamente dando voz a um sujeito até então ignorado/silenciado
tanto no contexto familiar, quanto no escolar, considerando como um ponto de partida a
inquietação gerada pela ausência de estudos sobre as questões de gênero e sua
relação/presença com o contexto escolar. Preocupa, também, o silêncio tradicional da Escola
em relação a temas como este. Portanto, pretende-se com este trabalho discutir esta questão
no âmbito do Instituto Federal de Educação em um campus localizado na região do médio
Paraíba Fluminense.
Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa sobre questões de gênero no
contexto escolar e com tão complexa finalidade, faz- se necessário amplo embasamento
teórico, relevante e atual, que conta com renomados autores como Simone de Beauvoir,
Guacira Lopes Louro, Marília Pinto de Carvalho, entre outros.
Um Colégio Agrícola, que atualmente integra o Instituto Federal do Rio de Janeiro e
funciona em uma fazenda centenária que dispõe de cursos técnicos de Agropecuária, Meio
Ambiente, Informática e Agroindústria integrados ao ensino médio se constituiu em campo
desta pesquisa. São percebidas relações de desigualdade de gênero, portanto a pesquisa deu
voz a um aluno adolescente sobre sua auto percepção sobre questões de gênero. Verificou-se

254
Parafraseando título de texto de autoria de Sócrates Nolasco publicado em 1997.
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que a não conformidade com o padrão comportamental de gênero inviabiliza a interação deste
sujeito por reconhecer-se como transgressor das expectativas em si depositadas.

UM FILHO HOMEM: A EXPECTATIVA OU O HOMEM DE VERDADE: ONTEM –


OLHARES PARA O PAI

“É uma história muito engraçada até, porque eu tenho duas irmãs, e minha mãe e
meu pai tem 3 filhos né, eu e minhas duas irmãs, e meu pai não queria ter tantos
filhos assim, ele queria ter só um homem, garoto, um filho só e ele sempre quis ter
um filho chamado Vanderlei, porque aquela coisa clichê, que tinha um jogador
chamado Vanderlei, ele gostava desse jogador, que chamava Vanderlei, e como o
primeiro filho deles foi uma menina literalmente não pensou em outro nome e
colocou Vanderleia, porque ele queria ter o Vanderlei, Vanderlei, e o Vanderlei não
veio, tá então vai Vanderleia, e ele tentou de novo, aí veio outra menina, e aí, acho
que não tinha outra variação de Vanderlei, eles colocaram Vanessa e aí depois de um
tempo, 6 anos depois, aí veio eu, e ele colocou Vania, ficou todo feliz e aí eles
pararam de ter filho, senão eles iam continuar infinitamente até ter um garoto, ah
deixa eu ver... Assim eu sou filho caçula, então eles gostavam, gostam muito de
mim, mas é, ah eu não sei o que falar. ”

“Vai ser menino ou menina? ” Eis uma das perguntas mais proferidas durante uma
gestação e assim que possível obter uma resposta, inicia-se a construção do gênero da nova
pessoa que virá ao mundo: a escolha da cor de roupas e acessórios a serem comprados (rosa
para meninas e azul para meninos), brinquedos e as inúmeras falas e brincadeiras a partir de
então serão, praticamente todas, relativas a gênero. A pessoa passa a ter um ‘lugar’ para
ocupar e inúmeros padrões comportamentais a se encaixar que incluem o que fazer e o que
não fazer para ser aceito nos diversos grupos dos quais fará parte.
No caso do sujeito desta pesquisa, percebe-se um grande desejo por um menino, uma
grande valorização de um homem e uma desvalorização das duas meninas que já faziam parte
da família, como mostra Beauvoir: “Ele é o sujeito, ele é o absoluto. Ela é o outro” (1987). E
ainda, não um menino qualquer, mas um inspirado em um jogador de futebol... explicitando-
se assim, já, uma expectativa quanto ao comportamento e preferencias deste menino que a
cada gestação poderia estar a caminho. Ou seja, desde antes do nascimento já havia um lugar
determinado, uma expectativa de que a pessoa que poderia chegar, ocupasse um determinado
lugar e desempenhasse um determinado papel.
Após o nascimento, a expectativa, bem como as cobranças para que se faça
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exatamente o que se espera e não se faça o que não se espera apenas aumenta. Esse ‘lugar’
determinado inclui comportamentos relacionados a posição ocupada pela família e
principalmente a questões de gênero. O jeito de andar, brincar, falar, reagir a situações
diversas... tudo permeado por muitas cobranças. Ao longo do tempo a pessoa vai
internalizando os comportamentos desejados e repetindo-os, ou não...
“Ele sempre meio que esperou muito tempo pra ter um filho, sabe, meu pai, e
quando veio o filho dele parece que ele me criou como se fosse um bonequinho,
sabe, vou fazer tudo isso quando você nascer, aí quando eu nasci eu não quis nada
do que ele queria e isso foi frustrante talvez pra ele, eu entendo, mas isso acabou
sendo mais frustrante ainda pra mim porque eu me senti, me sinto muito reprimido
lá em casa, e aí ele queria que eu fizesse futebol, e eu não queria entrar na escolinha
de futebol e eu não queria entrar na escolinha de futebol, ele queria que eu fizesse
luta, porque ele fez luta, e eu não queria entrar na luta, ele queria que eu ajudasse ele
nas coisas ‘de homem’ que ele fazia em casa, que ele trabalha de pedreiro, as vezes
trabalhava, hoje em dia nem tanto, e aí eu era muito pequeno e eu não queria, sabe,
ficar segurando balde de terra, levando carrinho de areia. Eu queria ter um cachorro
e um gato, sabe, e ele não deixava, e aí acabava tendo bichinhos de estimação, por
exemplo galinha ou pato, porque o objetivo de ter aquele animal lá em casa não era
pra eu ter um pet ou qualquer coisa parecida, era pra crescer, botar ovo e depois
matar quando eu estivesse na escola, coisa que eles fizeram muito e foram outras
coisas que me deixaram magoado porque eu criava o bichinho de estimação e 9, mas
uma eu cuidei desde pequeno, essa uma, sabe, não era uma galinha, era um membro
da família e meu pai não entendia essas coisas, ele não me respeitava nesse sentido,
e minha mãe não queria matar, sabe, ela falava: ‘Não, João, não mata, porque...’ -
pra você ter noção eu dava banho na minha galinha – ‘...o Vanderlei cuida dela e é o
bichinho de estimação dele’” e meu pai não me respeitava nisso e matava, e ele não
entendia porque, e ele fazia isso, faz isso com tudo que eu gosto e ele não
entende.”minha mãe não ia matar, sabe, tipo, se tinha 10 galinhas no galinheiro e eu
não cuidava de

Percebe-se claramente que além deste pai ter esta postura em seu cotidiano, também tem a
visão analisada por Nolasco sobre o comportamento de meninos e meninas ser inato:
Tanto o menino quanto a menina crescem acreditando que mulher e homem são o
que são por natureza, já nasce sabendo cuidar dos filhos. Por outro lado, os homens
estão destituídos naturalmente dessas prerrogativas. Um homem de verdade se
constitui no distanciamento dessa cena de cuidados e contatos físicos com as
crianças. (NOLASCO, 1997)

É no cotidiano que se explicitam padrões tidos como naturais ou cientificamente


verdadeiros e, por isso mesmo, “inquestionáveis”. Após o nascimento esta construção tem
continuidade em todos os momentos de convívio social e em todas as instituições sociais.
Construção veiculada à criação e educação dada no lar, na escola, igreja entre outras

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instituições que ensinam como ser menino, menina e mais: feminina e masculino. Ou seja;
não se nasce pronto, homem ou mulher, sujeitos se constroem, apesar de chegar um ‘mundo
pronto’ com papéis e lugares definidos. (BEAUVOIR, 1987)
“Eu tenho um jardim, hoje em dia ele é minúsculo, porque antigamente ele era
enorme, e meu pai foi cimentando tudo, sabe, sem, sem se importar... e ele tem
muito isso de em reunião de família ou com amigos ele virar e falar assim: “não,
porque tudo que eu construí é pros meus filhos, porque tudo que eu tenho vai pra
minha família, porque tudo que a gente tem é nosso” blá blá blá, e quando ele decidi
fazer alguma coisa lá em casa, como cimentar meu jardim ele não pergunta, sabe, e
aí a gente briga e ele diz que a casa é dele, que ele construiu com o trabalho dele, ele
quem paga e que por isso a gente não tem que se meter em nada, e assim ele faz isso
com tudo, por exemplo, quando ele fez isso eu tive que ir me alocando, aí ele foi
cimentando, cimentando e agora é minúsculo o jardim, e ele até hoje briga comigo
mesmo assim, aí uma vez ele perguntou “Vanderlei porque você está bravo
comigo?” Ai eu disse: “Porque você se importa com as plantas que eu cuido, sendo
que elas são minhas e você deixar elas ali independente de você gostar ou não, aí ele
falou “a questão não é eu gostar ou não, eu não ligo de você plantar, eu só não gosto
que você fique cuidando, porque ficar cuidando das plantas é coisa de menininhas,
você ficar sentado cortando galinho, tirando mato, fica adubando, planta e deixar ela
ali, a planta você não precisa ficar cuidando dela como se fosse um menininha” aí
nessas horas eu não consigo falar nada, aí eu fico com raiva, aí eu vou e me tranco
no meu quarto pra tentar ser feliz.”

Mas afinal, o que faz uma menina e um menino? Como funciona o processo de
construção de gênero? O primeiro erro é tratar questões de gênero como algo inato, em que
cada gênero possui diferenças que são da sua natureza e, a partir dessas, cria-se o abismo em
ser mulher e em ser homem; nessa classificação dicotômica a mulher, inquestionavelmente é
o gênero fraco, o segundo sexo, inferior ao homem e, assim se justifica e naturaliza tanto a
sua desvalorização quanto de comportamentos a ela associados. O que nos leva a concordar
com a afirmação de Louro quando esclarece que: “A tarefa mais urgente talvez seja
exatamente essa: desconfiar do que é tomado como ‘natural’ (1997, p. 63). Pois se é natural o
homem ser mais forte, viril e agressivo, natural é lhe atribuir educação e modos que
desenvolvam sua masculinidade (hegemônica) e tais características, incentivadas até nas
brincadeiras agressivas como as “lutinhas”, brinquedos de armas, carros, explosões, que criam
meninos e os ensinam a ser mais agitados e agressivos, enquanto às meninas o “normal” são
bonecas, casinhas, e jogos de panelinhas, que criam um modo pacífico e tranquilo de ser e se
comportar, o que contribui para lhes ensinar a serem boas mães, cuidar de uma casa, fazer
comida, enfim ‘a ser mulher’. Já quando analisados adolescentes, a ora do recreio se
transforma num curioso objeto de estudos, onde se percebe a relação de gênero e sexualidade
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exercida pelos estudantes.


Em todos os espaços da escola as questões de gênero são visíveis e produzidas. Outros
estudos também se dedicaram a este aspecto, como por exemplo Wenetz e Stigger (2006, p.
60): “...não é difícil perceber que as diferenças acontecem tanto em momentos ‘oficiais’
quanto naqueles ‘não oficiais’ do contexto escolar”. Neste estudo perceberam que “a escola
constitui um sistema educativo, curricular e pedagógico, mas também um espaço social e
cultural no qual as relações entre as pessoas adquirem particular importância, pelo convívio e
pelos contínuos intercâmbios de ideias, de conceitos, de afetos e saberes”. (WENETZ e
STIGGER, 2006, p. 64). Ainda neste estudo destacaram vivências e sua contribuição na
definição dos corpos, delimitando o que se deve ou não fazer, de que maneira e o lugar
adequado a cada prática.
O discurso sobre o que é adequado a cada sexo num ambiente escolar juvenil é cada
vez mais proferido e incorporado, mas ignorado e ridicularizado, como se ser homem ou
mulher sempre tivesse sido exatamente como é, o que é amplamente criticado devido ao
acervo de informações histórico-culturais, em que percebe-se é que ser mulher/homem é de
um modo no Brasil, mas assume outros aspectos em outros países, portanto cada sociedade e
cultura constrói ao longo do tempo características aceitáveis para cada sexo. Por exemplo:
Não é padrão um homem brasileiro usar saia, mas é típico na Escócia (país europeu). Porém,
de um modo geral, qualquer cultura, inferioriza a mulher, apesar de cada cultura conhecida
possuir diferentes modos de ser homem ou mulher: “[...] em todo lugar, em cada cultura
conhecida, as mulheres são consideradas de alguma maneira inferiores aos homens [...] estou
falando que cada cultura, de sua própria maneira e em seus próprios termos faz estas
avaliações” (ORTNER, 1979, p. 99).
Como se pode ver, a escola é uma dessas instituições em que significados vão sendo
construídos e/ou reforçados, inclusive os relativos às questões de gênero. Brincadeiras, ações
disciplinares, formas de organização, piadas, conversas informais... tudo permeado e fazendo
parte da construção ou relativização de paradigmas. Tradicionalmente a escola sempre buscou
silenciar-se sobre o gênero e a sexualidade, afirmando-se neutra em relação a estes aspectos,
mais ainda se afirmava que na escola não estavam presentes. Entretanto o que se percebe é
que:
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Não se cria um espaço para refletir sobre qual é a responsabilidade da escola nessa
conversa: no que a nossa própria atitude como educadoras, como educadores, as
relações entre as crianças na sala de aula, no pátio de recreio, no que tudo isso
contribui para a formação desses modelos de feminilidade e de masculinidade
diversificados. É claro que isso está o tempo todo em construção. Está em
construção para nós, adultos, quanto mais para as crianças. Não vem pronto de casa,
ao contrário, está sendo elaborado na escola também. (CARVALHO, 2003, p. 190)

Não há mais como a escola silenciar a si e a outras neste aspecto, negando que em seu
interior relações e representações de gênero são construídas, o que se percebe é que “a
sexualidade está na escola porque ela faz parte dos sujeitos, ela não é algo que possa ser
desligado ou algo do qual alguém possa se ‘despir’” (LOURO, 1997, p. 81). É urgente que
assuma a sua responsabilidade e traga para o debate com intencionalidade estas questões, pois
como afirma Carvalho (2003, p. 192) “está posta diante de nós a tarefa de trazer a discussão
de gênero – e fundamentalmente uma discussão sobre as masculinidades – para o centro do
debate educacional, tornando-a visível”. Concorda-se com a autora, quando esta destaca ser
uma tarefa que apresenta dificuldades, afinal no campo educacional nem mesmo se discute
estas questões, o que dirá abordar o tema de feminilidade e masculinidades, o que ainda
representa tabu em nossa cultura, pois são discursos considerados “de mulherzinha”, por isso
a urgência em se desconstruir padrões de gênero e abrir discussão num espaço escolar é
importantíssimo.

OLHARES PARA O FILHO: a não conformidade e sua percepção

“Na 2ª série tinha a professora geral e partes e no final a gente ilustrava, ela pegava
uma xerox e colocava no nosso caderno e a gente ilustrava a borda. Aí tinha uma
fábula qualquer, eu não lembro direito, acho que era A rosa e alguma coisa, e aí cada
verso falava sobre, ou sobre a rosa, ou sobre o outro vegetal e ia intercalando, na
hora de ilustrar eu fiz um ramo, uma roseira em volta da minha folha e em cada
linha que falava sobre a rosa, eu desenhava uma rosa na roseira, aí a professora dava
o visto no caderno e quando ela viu meu caderno ela deu parabéns, disse que gostou
muito, daí fez um bilhete pra minha mãe, mandou mostrar pra minha mãe, mostrou
pra turma, eu fiquei todo feliz, daí eu cheguei em casa e fui mostrar pra minha mãe,
ela brigou comigo e disse que não era pra eu fazer flor no meu caderno e que isso
não era coisa de menino, que não era pra mostrar pro meu pai, que se não ele ia
brigar, ia me botar de castigo, aí ele chegou no meio do assunto, aí eu não contei,
porque ela falou que era pra eu não contar, mas provavelmente ela contou porque
tem essa coisa né de marido e mulher não guardar segredo, aí ela falou, ele ficou
chateado, bravo, depois queria ver meu caderno, aí acabou que eu não mostrei, essas
coisinhas sabe? Acabou que me deixou muito triste e aí com o tempo eu fui parando,
por exemplo, depois disso eu não mostrava mais as minhas coisas que a professora
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dava parabéns, e, é... ele sempre meio que esperou muito tempo pra ter um filho,
sabe, meu pai, e quando veio o filho dele parece que ele me criou como se fosse um
bonequinho, sabe, vou fazer tudo isso quando você nascer, aí quando eu nasci eu
não quis nada do que ele queria e isso foi frustrante talvez pra ele, eu entendo, mas
isso acabou sendo mais frustrante ainda pra mim porque eu me sentiu, me sinto
muito reprimido lá em casa.”ela tirava um dia da semana pra dar literatura, e aí a
aula, era sempre a mesma aula, ela pegava o livro, lia com a gente algumas

A aceitação e reprodução dos comportamentos desejados gera a aceitação no grupo a


que se pertence e muitas vezes em grupos que se quer pertencer, contudo quando esta
aceitação implica na negação constante do próprio sujeito este se constitui em alto preço a ser
pago, pois inclui auto cobrança para encaixar-se no modelo apresentado, é comum ainda que
por mais que se esforce não consiga continuamente dar sempre a resposta desejada. Esta
pressão para conformação gera riscos para os homens, especialmente os jovens, como se pode
confirmar em Barker (2008, p.10) “os jovens se esforçam por viver segundo certos modelos
de masculinidade – eles morrem para provar que são ‘homens de verdade’”. Ao nos
referirmos a este modelo de “homem de verdade”, Nolasco (1997, p. 24) esclarece que
“estamos falando de uma identidade de fachada, em que cabe a noção de homem de verdade”
e esta noção tem sua complexidade, pois pressupõe a necessidade de cuidados para que os
meninos se tornem este tipo de homem; esta ideia exclui a possibilidade de qualquer fracasso
ou limitação.
A relativização da normalidade de um único modelo de ser feminino e masculino, tem
sua origem em Joan Scott (1995) com a caracterização do gênero como uma categoria de
análise, assim estabelece-se os masculinos e femininos como construções sociais. Destaca-se
a ideia de Auad (2006, p. 19), quando ressalta que “as relações de gênero, do modo como
estão organizadas em nossa sociedade, são uma máquina de produzir desigualdades”.

A não aceitação, por outro lado implica em sanções, cobranças, exclusões... enfim,
marginalização contínua das pessoas que se negam ou não conseguem dar as respostas
exigidas, sobretudo uma tentativa extrema de silenciamento acompanhada pelo continuo
esforço de enquadramento, ainda que forçado...
“Então, hoje em dia eu não convivo muito com a minha família. Por quê? Porque,
meu pai e minha mãe eles até brigam, porque eu me isolo no meu quarto, desde
sempre, eu acho até, e eu chego em casa e fico literalmente trancado no meu quarto
e eu não saio de lá, lá é o meu ponto de conforto na casa, eu durmo lá, acordo lá, eu
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faço tudo lá, eu almoço, janto, estudo, faço as coisas que eu gosto, tipo eu toco
violão, vejo anime, leio, desenho, falo com os meus amigos dentro do meu quarto,
tudo no quarto e eu não convivo, não converso com os meus pais do meu dia a dia e
assim, começou isso, desde muito tempo, desde que eu era pequeno, e as coisas que
iam acontecendo, meus pais esquecem, ou talvez eles lembrem, ou não perceberam
o quanto foi difícil, e meu pai brigava muito comigo, e minha mãe brigava
razoavelmente ela se sentia pressionada, porque meu pai queria que ela brigasse, e aí
ela brigava por se sentir pressionada, sabe, e essas coisinhas foram, foram tirando...
não digo carinho, mas hoje se você perguntar o que eu sinto, pela minha mãe eu não
sei, mas meu pai eu sinto mais respeito, pela pessoa que ele foi, pelas dificuldades
que ele passou, e tal, mas eu não consigo falar assim, ah eu amo meu pai
incondicionalmente e eu não consigo ficar sem ele anos, sabe, eu consigo sair e
viver minha vida 20 anos sem falar com ele, porque eu já não falo com ele
normalmente e, porque disso, porque quando eu era criança ele sempre fazia coisas,
pequenas mas que me marcavam negativamente.”

Dar voz a vozes tradicionalmente silenciadas não é algo fácil... qualquer mínimo
desajuste sofre grandes sanções e cobranças, estar do lado de quem é silenciado também tem
um preço; é sair da zona de conforto e questionar o ‘natural’, o ‘certo’, assim, nos
empenhamos mais uma vez em trazer a tona uma voz continuamente silenciada, de um sujeito
que ri, que chora, que sofre, mas que é feliz e vive, sobretudo vive nesta zona de conflitos em
ser e tentar ser o que se espera dele ou não, tentar viver sendo quem considera que é....

“Se eu tivesse um filho não faria, eu acho que por mais que você crie expectativas de
coisas que ele vai gostar ou não gostar quando ele crescer você tem que conhecer
ele, não é como uma folha em branco que você vai pintando do jeito que você quer,
sabe, e ele aprendeu a fazer isso, ele não me conhece, minha família não sabe nada
sobre mim, se você sentar com um amigo meu e fizer 3 perguntas eles vão conseguir
responder, agora se você fizer isso com meus pais eles não vão saber responder, eles
não vão mesmo, ou então vão responder uma coisa que eles acham que sabem, e
hoje em dia eu espero sair de casa, sabe, espero sair de lá, eu não me vejo
continuando lá, porque, assim, aquilo não é minha casa, é a casa do meu pai, eu
sempre falo isso, aquele quarto não é meu, é o quarto do meu pai, as minhas roupas
não são minhas, elas são quase emprestadas, e quando eu sair de casa eu falei com a
minha mãe que não vou levar nada, somente o que eu comprei com o meu dinheiro,
ou que eu tenha ganhado de outras pessoas, e antigamente, pra você ter uma noção,
quando eu era pequeno, eu tinha 12, talvez menos, eu era tão infantil, eu me sentia
tão mal, tão mal em casa, eu acordava de madrugada, arrumava minha mochila,
colocava meus lápis, biscoito água sal e me arrumava pra sair de casa porque eu
queria ir embora, porque não queria mais ficar lá, abria o portão e ficava na calçada
e voltava porque eu ficava com medo porque sabia que não ia conseguir me virar
sozinho, aí acabava voltando e chorando, aí dormia, aí no outro dia fazia a mesma
coisa, aí não conseguia e voltava e chorava. Num círculo de amizades eu sempre fui
muito cabeça, cabeça num sentido de ser muito pai com os amigos, porque eu fui
obrigado a amadurecer muito rápido, porque eu nunca pude ser criança, nunca pude
ter aquela coisa de ter medo de escuro, meu pai brigava comigo, eu não podia chorar
a noite com medo do escuro.”

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Transgressão... é o que faz quem não se conforma com os padrões impostos. O


comportamento é uma forma de externar esta não conformidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da pesquisa realizada, notou-se uma certa insatisfação do sujeito pesquisado


por sua não conformidade com o padrão, o perfil de homem ideal sobre ele projetado,
contudo, apesar de todos os conflitos, da impossibilidade da mesma e a transgressão diária
deste sujeito, nota-se que a despeito de tudo isso vive e relaciona-se com diversas pessoas em
seu cotidiano que inclui o ambiente escolar.
Confirma-se que a educação dada aos homens, contrária à da mulher, é isenta de
carinho e amor pelo pai, que acha que um homem de verdade, não pode adotar atitudes
afetivas ou emocionais, caso contrário ele é homossexual. Culturalmente esse pensamento se
estabeleceu e hoje é incentivado desde casa até as instituições, principalmente as escolas, que
naturalizam a postura do homem como biologicamente menos emotivo e mais racional, e a
partir disto a imposição cotidiana deste homem inclui sua idealização quase como “super-
herói”; na realidade um ser que não pode importar-se com nada e/ou ninguém, incentivando-
se uma postura muitas vezes agressiva e irresponsável.
Ao final desta etapa da pesquisa, percebe-se que os padrões comportamentais de
gênero influenciam diretamente na convivência, em todos os ambientes de frequência dos
sujeitos, influenciando ainda no rendimento acadêmico, já que também na escola os
comportamentos são categorizados enquanto femininos e masculinos, destacando desenho,
concentração e música como características ditas femininas.
A partir de tudo que foi exposto anteriormente, é possível e até mesmo urgente
concordar com Louro (1997, p. 85) quando diz:
Portanto, se admitimos que a escola não apenas transmite conhecimentos, nem
mesmo apenas os produz, mas que ela também fabrica sujeitos, produz identidades
étnicas, de gênero, de classe; se reconhecemos que essas identidades estão sendo
produzidas através de relações de desigualdade; se admitimos que a escola está
intrinsecamente comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que
faz isso cotidianamente, com nossa participação ou omissão; se acreditamos que a
prática escolar é historicamente contingente e que é uma prática política, isto é, que
se transforma e pode ser subvertida; e, por fim, se não nos sentimos conformes com
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essas divisões sociais, então, certamente, encontramos justificativas não apenas para
observar, mas especialmente, para tentar interferir na continuidade dessas
desigualdades.

Faz-se necessário questionar, refletir e desnaturalizar as relações de poder cristalizadas


em nossa cultura, pois como nos esclarece Louro (2010, p. 31):
Homens e mulheres certamente não são construídos apenas através de mecanismos
de repressão ou censura; eles e elas se fazem, também, através de práticas e relações
que instituem gestos, modos de ser e de estar no mundo, formas de falar e agir,
condutas e posturas apropriadas (e, usualmente diversas). Os gêneros se produzem,
portanto, nas e pelas relações de poder.

Longe de se esgotar, a pesquisa abriu horizontes, inúmeras possibilidades de


investigação, mostrando a necessidade de se ampliar os estudos sobre gênero, campo em que
esta pesquisa se constituiu em um ponto de partida para que possamos continuar a trilhar
novos caminhos em busca de respostas e reflexões profundas para constituir a equidade entre
os gêneros e de vozes ainda silenciadas neste instigante tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. São Paulo:
Contexto, 2006.
BARKER, Gary Thomas. Homens na linha de fogo: juventude, masculinidade e exclusão
social. Trad. Valadares, Alexandre Arbex. Rio de Janeiro: 7 letras, 2008.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, 1987.
CARVALHO, Marília Pinto de. Sucesso e fracasso escolar: uma questão de gênero.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n. 1, p. 185-193, jan./jun. 2003.
LOURO, Guacira Lopes. Corpo, gênero e sexualidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2010
______. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis:
Vozes, 1997.
NOLASCO, Sócrates de Um “homem de verdade” in. CALDAS, Dario. Homens
comportamento, sexualidade, mudança. São Paulo, 1997
ORTNER, Sherry B. A mulher, a cultura, a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero:uma categoria útil de análise histórica. Educação &

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Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2,jul./dez. 1995, pp. 71-99.Revisão de Tomaz Tadeu da
Silva a partir do original inglês (SCOTT, J. W.. Gender and the Politics of History. New
York: Columbia University Press, 1988. PP. 28-50.), de artigo originalmente publicado em:
Educação & Realidade, vol. 15, nº 2, jul./dez. 1990. Tradução da versão francesa (Les
Cahiersdu Grif, nº 37/38. Paris: Editions Tierce, 1988.) por Guacira Lopes Louro.
WENETZ, Ileana e STIGGER, Marco Paulo. A construção do gênero no espaço escolar.
Movimento, Porto Alegre, v.12, n. 01, p. 59-80, janeiro/abril de 2006.

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UNIVERSO DA MASCULINIDADE, SEXUALIDADE E ALCOOLISMO

Lucas Silveira da Silva | psiclucas@gmail.com

INTRODUÇÃO

Em um contexto globalizado, onde assuntos de ordem cotidiana surgem


constantemente, a sexualidade e alcoolismo inserem-se de forma discursiva, onde são
apresentados ainda como tabus, cercados de mistérios e “não-ditos”. O tema será discutido
tendo como método o levantamento bibliográfico, consistindo na busca de dados secundários
em artigos, livros e textos, a fim de sustentar teoricamente o proposto no percurso do estudo.
O presente estudo consiste num levantamento bibliográfico sobre “Homem,
Sexualidade e Alcoolismo”, essa temática será delimitada da seguinte forma: os discursos
teóricos produzidos em livros e artigos científicos acerca do tema Sexualidade e Alcoolismo
na vida de Homens. Partindo dessa delimitação do tema, teremos como questão central “Quais
são as contribuições teóricas acerca da temática Masculinidade, Sexualidade e Alcoolismo e
como podemos analisá-la dentro da perspectiva teórica de Foucault e os dispositivos de
sexualidade?”. A partir dessa questão será apresentada uma análise crítica das principais
categorias encontradas e outras indagações surgirão no decorrer do texto.

GÊNERO E SEXUALIDADE

Embora conceitos diferenciados, ao tratar da sexualidade torna-se pertinente


problematizar acerca da questão de gênero, pois esta se insere no modo de subjetivação dos
sujeitos, ou seja, no modo como os sujeitos se constituem no processo de relacionar-se com
regras e reconhecimento de si mesmo. Primeiramente o presente estudo abordará questões
voltadas ao gênero a partir de autoras clássicas, pois quando nos deparamos com um corpo,
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nos questionamos se o mesmo é masculino ou feminino, fechando-nos, restringindo-nos


nessas duas possibilidades, como se não fosse possíveis outras formas de vivenciá-lo,
vivenciar o corpo, colocando o mesmo numa posição restrita (BUTLER, 2001).
Afinal, como afirma Foucault (2008) só podemos existir dentro da norma, algo que
nos objetive para nos construir enquanto sujeitos, esses muitas vezes normatizados pelo
hegemônico e esperado dentro de uma conjuntura social, assim são tratadas as presentes
categorias sexualidade e gênero, que embora confundidas como similares pelo senso comum,
não o são dentro da literatura científica que abordam os assuntos.
A partir da afirmação que vivemos a partir de normas, podemos nos perguntar quais
seriam as regulamentações dos corpos de homens no campo da sexualidade e alcoolismo.
Podemos dessa forma, construir uma linha de reflexão dessa normatividade a partir da noção
de dispositivos da sexualidade (FOUCAULT, 1988).
Falar sobre gênero torna-se extremamente necessário no presente estudo, pois quando
falamos em sexualidade e alcoolismo na interface do homem, acabamos nos remetendo a
questões voltadas à violência, abuso de substâncias, fragilização da mulher, entre outros.
Utilizando os descritores: Alcoolismo e homens; Gênero e alcoolismo no site Scielo
(Scientific Electronic Library Online), podemos observar uma grande relação entre o
alcoolismo e o sexo masculino, tais como homens sendo os maiores consumidores e
dependentes de bebidas alcoólicas em relação às mulheres, questões de violência contra a
mulher, transformação do feminino em objeto, etc.
Nos artigos encontramos questões sociológicas advindas da crença e construções
ideológicas frutos da sociedade patriarcal e de como essa ainda está pautando nossos
processos subjetivos, estes últimos entendidos como a forma dos seres humanos
relacionarem-se entre si e com o mundo. Para um entendimento do conceito de gênero e suas
repercussões, foram selecionados alguns autores para um breve entendimento do tema255.
Os estudos sobre gênero surgiram juntamente com as primeiras feministas e
intelectuais, tais como: Simone de Beauvoir, Betty Friedman, Kate Millet, etc. Junto a essa
eclosão, tivemos a luta da mulher pelo voto em meados da década de 60, a partir de então
surgiu o estudo da mulher, a tentativa inicial das feministas foi tirar as mulheres da
255
Embora seja necessário explanar sobre a temática gênero, será feita uma breve reflexão.
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invisibilidade no tangente a ciência, vida social e política (LOURO, 2000).


De acordo com Joan Scott (1994) gênero é um conceito complexo e multifacetado,
analisado e estudado por sociólogos, feministas e historiadores, podendo ser conceituado de
várias formas, o presente estudo o toma como uma maneira de referir-se à organização social
da relação entre os sexos, somado a esse conceito, o termo gênero surgiu no estudo de
feministas como indicando uma rejeição ao determinismo biológico, trazendo consigo as
ideias sobre os papéis e identidades subjetivas de homens e mulheres em determinados
contextos sociais, pois a sociedade estrutura-se a partir das diferenças entre os sexos.
Além disso, ressalta-se que o termo pode relacionar-se a uma maneira de indicar as
construções sociais: criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos
homens e às mulheres”. (SCOTT, 1994). A autora afirma ser o conceito de gênero “uma
categoria útil de análise histórica”, quando falamos em história, estamos pensando nela de
forma dinâmica, ou seja, em movimento, pois a história não é um simples registro de
determinadas matrizes sociais, mas também um instrumento de produção do saber nas
estruturas sociais. Diante dessa definição, podemos pensar acerca dos processos históricos e
analisar como se tem construído historicamente a produção do saber em relação às diferenças
sexuais.
Scott (1994) aponta que é preciso desconstruir o caráter permanente da oposição
binária masculino versus feminino, essa mesma sustenta o pensamento dicotômico e
polarizado sobre os gêneros, essas circunstâncias sustentam uma lógica de dominação-
submissão entre os pares homem-mulher, o que gera uma série de repercussões, dentre elas a
violência contra a mulher, aqui no estudo denominada violência de gênero. Essa oposição e
ou lógica dicotômica advém de raízes filosóficas que sustentam a oposição masculino-
feminino, ou seja, um pólo dominante e outro dominado.
Para fins de conclusão Saffioti (1987) nos traz o conceito de gênero não como sendo
uma forma de negar as diferenças entre homens e mulheres, pois esse seria um método
errôneo e obsoleto, mas sim de compreender que o mesmo está relacionado a uma
convivência social mediado pela cultura. Essa colocação enriquece a necessidade de uma
historicização voltada à compreensão e entendimento da repercussão que o conceito de
gênero e dominação tem perpetuado ao longo do tempo e que reflexos (não óbvios)
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conseguimos visualizar em nossos contextos sociais e históricos, ou seja, uma sociedade


marcada pela “falocracia”, o poder do macho.
Judith Butler (2008), por sua vez, conceitua gênero como significados culturais
assumidos por um corpo sexuado, ou seja, sexo e gênero estão implicados um com o outro,
visto que a sociedade engendra mecanismos para reduzi-los a papeis masculino e feminino,
normal e anormal.
Para Butler (2001) só existimos dentro de uma norma, o gênero é performativo. A
performatividade é entendida como uma prática produzida pela nomeação discursiva, a qual
materializa as diferenças sexuais a serviço da manutenção da heteronormatividade (BUTLER,
2001). E mesmo que os corpos não se conformem complemente, eles são subjetivados pela
norma e pela materialidade. Na obra, os homens devem dar conta dos os atributos de um
corpo viril, ou seja: suportar o trabalho duro, manter atividades sexuais regulares, não mostrar
medo frente os riscos que o trabalho oferece, prover uma família - ou mais de uma - e estar
sempre disposto para os lazeres (casas de prostituição, festas, esportes, jogos com os colegas
de trabalho).
Diante desse contexto, podemos pensar sobre o homem e a sua sexualidade, ao pensar
em papéis tradicionais em uma sociedade, nos reportamos ao “modelo hegemônico de
masculinidade”, tal conceito está relacionado à necessidade do patriarcalismo256 continuar se
sustentando, garantindo a dominação dos homens (CONNELL, 1995). Essa masculinidade
está relacionada ao homem viril, provedor, etc. É importante ressaltar que muitas práticas de
agressividade, somadas a necessidade de repressão das emoções, fazem parte do processo de
construção e socialização do ser homem (MEDRADO, 2003).
Nascimento (2001) afirma que a inserção do masculino nas questões de gênero,
permitiu que se pensasse em masculinidades, visto que nos dias hoje existem várias formas de
ser homem, independentes da noção de uma masculinidade singular e dominante, havendo
outros arranjos e possibilidades de ser homem. Essas novas possibilidade de ser homem,
trazem uma certa desestabilização das formas rígidas de ser e atuar desse homem na
sociedade, sendo questionado o lugar social dos clássicos homens viris e dominadores.
Essa necessidade de inclusão do masculino na discussão de gênero é imprescindível,
256
Modelo de sociedade onde o homem é tudo, sendo mulheres e crianças insignificantes.
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pois de acordo com Louro (2000) aos homens é incumbida a tarefa social de ser viris e
afastar-se de características ditas “femininas”, pois os homens que se afastam da forma de
masculinidade hegemônica são considerados diferentes e sofrem muitas vezes represálias
sociais, entre elas a discriminação e subordinação. Atualmente vemos uma transformação das
relações sociais, onde a passos curtos obtemos transformações nas relações societárias entre
os diversos atores sociais, transformações essas fruto de uma intensa problematização acerca
da do papel dominador do macho.
Saffioti (1987) denomina esse afastar-se de características femininas como “castração
do homem”, na medida em que um homem demonstra quaisquer indícios de sensibilidade, o
mesmo pode estar fadado a ser categorizado como homossexual, não-homem, etc. Esse fato se
deve ao lugar social ocupado pelo ser masculino e pela necessidade de naturalização desse
lugar, como provedor da família, detentor da coragem e poder. O homem, portanto, só poderá
ser considerado macho, na medida em que castra-se e ou distancia-se de características ditas
“femininas”, ou seja, só é homem quando for capaz de inibir, disfarçar e sufocar seus
sentimentos.
Dessa forma, naturaliza-se um funcionamento social que engloba muitas esferas da
vida, indo além do social, psicológico, chegando até a instância orgânica, afetando inúmeros
quesitos na vida de sujeitos sociais.

SEXUALIDADE NA VIDA DE HOMENS

Foucault (1988) em sua famosa obra “História da Sexualidade” direciona o leitor a


uma nova forma de pensar e compreender a sexualidade, ao mesmo tempo em que remete aos
múltiplos discursos que a circundam, regulam, normalizam, criam verdades e saberes. O autor
ainda afirma que a sexualidade na sociedade ocidental não é necessariamente reprimida,
entretanto, existe saberes científicos e religiosos que a capturam, essas áreas tem o poder de
julgar o normal do anormal, esses são os discursos dominantes em torno do sexo. Nas
palavras de Foucault, pode-se visualizar o seguinte: “Não digo que a interdição do sexo é uma
ilusão; e sim que a ilusão está em fazer dessa interdição o elemento fundamental e constituinte
a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito do sexo na Idade Moderna”
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(FOUCAULT, 1988, p.17).


Ainda dentro das contribuições de Foucault (1988) pode-se observar a estruturação na
sociedade ocidental de uma lógica sexual discursiva, influenciada tanto por contextos sociais
(Era Vitoriana) quanto por instituições (Ciência e Igreja Católica). Há uma forte influência da
confissão da igreja católica no campo da discursividade sexual e as estratégias de torná-la um
discurso obediente e jamais mencionado sem a devida prudência, devendo levar em
consideração todas as normas da confissão dos pecados, desejos e inquietações.
Podemos constatar essa ideia da sexualidade normatizada através de um discurso por
meio das próprias palavras de Foucault: “... não somente confessar os atos contrários à lei,
mas procurar fazer de seu desejo, de todo o seu desejo, um discurso”. O contexto citado por
Foucault (1988) criou dispositivos de sexualidade, ou seja, formas normalizadoras de lidar
com a sexualidade, cabendo a população encaixar-se, moldar-se de acordo com o modelo
hegemônico, sob duras penas de não vivenciar sua própria sexualidade, pois os contrários à
lógica correm o risco de serem taxados de “anormais” pelo saber/poder.
Homens, seres masculinos, cuja subjetividade deve estar subordinada a um repertório
social voltado à falocracia, cabe aos mesmos encaixarem-se ao dispositivo sexual de seres
dominadores, violentos e cujo comportamento não demonstre afeto e sim dominação. Essa
perspectiva intelectual de Foucault somada à análise do presente estudo nos direciona ao
inevitável: o homem deve ter sua vida sexual pautada na normatização.
Diante disso, lançamo-nos no dispositivo de sexualidade na vida de homens, que
sexualidade é essa? Qual modelo deve o homem encaixar-se? Qual é o ônus dessa penitência
na vida dos mesmos?
O estudo aqui apresentado relaciona a sexualidade ao poder e a masculinidade257, os
três conceitos são de extrema importância, pois os mesmos relacionam-se continuamente,
assim como o trio capitalismo-violência-racismo, descrito anteriormente. Quando falamos em
poder e sexualidade de homens, nos reportamos a questões de virilidade, potência,
performance, etc.

257
O estudo entende masculinidade como um conceito advindo da metade do século XX como ramificação da
teoria dos papéis sexuais, uma construção das Ciências Sociais acerca da ideia de lugar social e diferenças entre
homens e mulheres (SEIXAS, 2012:45).
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Os homens, devido a constituição social da masculinidade, que consiste na extremada


oposição a características femininas e abominação de tais aspectos ditos “femininos”, tornam-
se vítimas de um sistema que lhes impõe um modo de ser extremamente rígido e pautado em
normas comportamentais e sexuais, ocasionando os “medos sexuais” (GOMES, 2010).
Os medos sexuais resultam da extremada dificuldade masculina em reconhecer em si
características femininas, devido todo um imaginário social repleto de ideais para homens e
mulheres, sendo o primeiro extremamente cobrado socialmente, sentindo-se, sem dar-se
conta, pressionado, o sujeito homem (GOMES, 2010). Dentre os medos sexuais, podemos
citar: Homofobia, disfunção erétil e o tamanho do pênis. Ainda de acordo com o autor, muitos
homens fazem uso abusivo de álcool para suportar as demandas que a sociedade direciona ao
homem, que deve ser macho diante de todas as circunstâncias e nunca demonstrar medo.
A homofobia258 é um problema sério no nível de Brasil, o fenômeno explica-se devido
o imaginário social de que as relações sexuais devem ser pensadas única e exclusivamente a
partir do eixo da heterossexualidade, instituindo-se assim uma heteronormatividade, ou seja,
única possibilidade de relacionamento entre homens e mulheres (GOMES, 2010).
A disfunção erétil por sua vez, está vinculada a necessidade de ser viril, ou seja, a
preocupação excessiva de falhar na hora “h”, podendo ser taxado de “brocha”, de acordo com
Vinhal (2008 apud Gomes (2010) uma pesquisa realizada na Universidade de São Paulo, com
10 mil pessoas afirmam que a falta de ereção é um dos quatro maiores temores do homem
brasileiro, sendo outro dos temores à queda da libido.
O último medo masculino citado vincula-se ao tamanho do pênis, sendo Berg (2009
apud Gomes (2010) o órgão sexual masculino está repleto de um imaginário social,
costumando o mesmo a ser visto como “uma máquina”, “obra de arte” ou até mesmo uma
decepção, todas essas questões da importância e valor dado ao pênis, advém desde o incentivo
em meninos da extrema valorização do seu órgão genital.
Seixas (2012) faz uma análise interessante da revista “Men’s Health”, no seu estudo
trabalha questões de poder, masculinidade e sexualidade, trazendo uma forte crítica ao

258
De acordo com Borrillo (2010) a homofobia, ou seja, a intolerância à homossexuais surgiu na era cristão, pode
ser considerada uma prática que visa inferiorizar e desumanizar o indivíduo homossexual, semelhante À
xenofobia, racismo e antissemitismo. Aponta o autor que a mesma aponta para conflitos na temática da
sexualidade e gênero, criando fronteiras entre assuntos que deveriam estar articulados entre si.
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modelo de masculinidade hegemônico. Ao tratar de sexualidade a revista vincula esse tema


aos rituais de sedução, desempenho sexual, uso de álcool e necessidade de entender a cabeça
das mulheres, ou seja, uma ideia de sexualidade carregada de preceitos machistas. O referido
estudo apresenta a ideia universal de masculinidade como definida pelo desempenho sexual,
tamanho do pênis e o nível de consumo de álcool. Quanto mais consome álcool, o homem
está afirmando seu lugar social de poder e gozo em relação a vida.
Nesse sentido, podemos afirmar que estamos numa sociedade do sexo (FOUCAULT,
1988), um sexo que vai além da procriação e questões vinculadas a biologia, falamos de um
sexo que dominar, afirma poderes, um sexo dominador (no estudo a concepção de sexualidade
masculina), reproduzido por um dispositivo que vai além de uma análise superficial, ou seja,
necessita de reflexão minuciosa e crítica. Criticidade no sentido de se problematizar a lógica
hegemônica, de buscar novas formas de lidar e saber, pois é nesse mesmo dispositivo
normatizador e moralizador que podemos encontrar nossa “liberação” (FOUCAULT, 1988, p.
149).
Essa lógica reducionista pauta a sexualidade de muitos homens, para isso Swain (1996
apud Filho 2005) introduz o termo queer enquanto uma forma de vivenciar a sexualidade de
forma alternativa, ou seja, abrindo possibilidades e discussões no campo da
homossexualidade, esta última sendo vista como ameaçadora à masculinidade(s)259
hegemônica.
Em outra entrevista concedida à revista Época, Calligaris (2009), o psicanalista
falando sobre sua peça teatral “O Homem de Tarja Preta” revela que o homem do séc. XXI
não tem uma definição de qual o seu papel e isso tem gerado angústia ao mesmo, salientando
que em nenhuma língua se fala a expressão “seja mulher”, sendo esse imperativo construído
somente para o sexo masculino como algo imposto. Além dessas questões o autor levanta que
os homens estão preguiçosos em relação ao sexo, visto que os mesmos deixam de lado suas
fantasias sexuais, pois são essas que sustentam o interesse no ato sexual e vida conjugal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

259
No estudo fala-se em masculinidade hegemônica no sentido da sociedade patriarcal, o (s) significa pensar em
“masculinidades” como várias formas de ser homem e problematizar o modelo hegemônico.
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Diante do diálogo teórico entre os autores citados, pode-se verificar o quanto a ideia
de masculinidade hegemônica traz consigo uma série de impactos na saúde do homem, no
tangente ao alcoolismo e outros problemas. O impacto das questões simbólicas vinculadas às
questões da sexualidade na vida de homens são visíveis dentro das perspectivas teóricas, pois
o campo simbólico atua criando discursos hegemônicos e dispositivos de sexualidade
extremamente rígidos, ficando o homem restrito à posição de macho dominador.
Essa rigidez de ideias afeta diretamente as relações que o homem estabelece entre si
mesmos e com os demais atores sociais envoltos nessa dinâmica, pois ao homem é incumbida
a tarefa árdua de ser o provedor e todo poderoso, devendo o mesmo adaptar-se a duras custas,
tornando-se expectador e reprodutor de uma lógica que deve ser sustentada e reproduzida para
manutenção do status quo. Submissão e humilhação do homem que se afasta dessa norma e a
excessiva e árdua tarefa de se moldar, eis exemplos que ilustram a herança da sociedade
patriarcal que perpetuamos.
Conhecer o universo do homem no tangente ao alcoolismo e sexualidade traz consigo
uma reflexão acerca da importância de se pensar políticas públicas de saúde que respeitem as
idiossincrasias do homem, visto que esse também sofre com as ideias hegemônicas
perpetuadas acerca do ser homem, macho e provedor. O homem carece de cuidados, sendo
necessário que estes últimos sejam adequados à realidade e contexto em que vivemos, uma
realidade que, apesar de aparentemente “flexível” e “informatizada”, ainda assim perpetua e
segrega o ser masculino.
O homem também sofre, e como indaga Saffitoti (1987) “quantos homens tiveram que
engolir lágrimas diante da tristeza...?”; afinal a quem serve a perpetuação de ideias machistas,
que trazem inúmeros problemas tanto de saúde mental quanto física à realidade de tantos
homens? O alcoolismo e problemas sexuais são efeitos dessas ideias rígidas? Essas são
questões passíveis de análise e difícil conclusão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VULNERABILIDADE MASCULINA NA SOCIEDADE BRASILEIRA


CONTEMPORÂNEA

Francisco Armando Vidal | germanaelisa@yahoo.com.br


Germana Elisa Santos Rocha

INTRODUÇÃO

Majoritariamente, as políticas públicas com recorte de gênero têm se voltado para as


mulheres. Do ponto de vista histórico, há inegáveis razões para isso, uma vez que os índices
de homicídios envolvendo mulheres em decorrência de sua condição na sociedade são
bastante elevados. Por outro lado, nas últimas décadas, é perceptível que as taxas de mortes
violentas de homens, principalmente jovens, pobres e negros, têm crescido assustadoramente.
Diferentemente da atenção dispensada à problemática feminina, que ganhou
evidência junto à sociedade civil organizada, instituições governamentais e não
governamentais, mídia, entre inúmeros outros olhares preocupados em defender a
implementação de políticas públicas protetivas de direitos, o contexto social do homem não
tem sido suficientemente tratado, inclusive no meio acadêmico.
Muitas secretarias, coordenadorias, universidades, entre outras instituições,
promovem encontros, seminários, palestras, campanhas e diversas oportunidades para a
discussão sobre as questões de gênero, com foco na mulher, nas redes municipais, estaduais,
nacionais e até mesmo internacionais. Os movimentos sociais com base feminista também
têm desempenhado importante papel na trajetória dessa questão até a agenda pública.
Assim, a maior parte da literatura sobre gênero reflete a realidade apresentada nestes
debates majoritariamente feministas. É preciso, pois, avaliar a outra vertente relativa à
discussão sobre relações de gênero e os vários enfoques possíveis, inclusive o masculino.
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Trata-se de um artigo teórico que visa contribuir para a reflexão sobre o tema do
gênero masculino, suas relações com a violência no campo acadêmico.
Para embasar a discussão foram pesquisados e analisados artigos científicos, políticas
públicas sobre a temática e dados de mortalidade por causas externas e de morbidade por
agressões no Brasil e suas capitais colecionado no Mapa da Violência 2014. A população
residente usada no cálculo das taxas foi estimada pelo IBGE e encontra-se disponibilizada na
home page do próprio IBGE.
O estudo busca na revisão literária a aproximação entre as políticas, as informações
estatísticas e o pensamento de vários autores para instigar a discussão no meio acadêmico
para que possamos encontrar através do amplo debate explicar as relações entre
masculinidade, vulnerabilidade e violência.

ORIGENS DA FORMAÇÃO SOCIAL DE GÊNERO NO BRASIL


As bases da construção da identidade social brasileira são de caráter patriarcal, cujo
período, pode-se afirmar que, conceitualmente, que coincide com a hegemonia açucareira e,
com sua queda, há a transição na década de 1930 para o “semi-patriarcalismo”. Compreende-
se como modelo sociológico que confere, em um país que vivenciava mudanças nas estruturas
políticas e econômicas, um alargamento das possibilidades culturais, refletido na
reformulação na sociedade da época.
A relação histórica entre a carência de mão-de-obra escrava e o desgaste sofrido pela
estrutura rural reside no fato de que os negros desempenharam um papel fundamental para a
formação social no Brasil. Conforme afirmou Freyre (1998, p.445), eles costumavam ser “os
pés e as mãos dos senhores de engenho”.
Assim, abalada esta realidade, estariam desequilibradas, consequentemente, as bases
sociais que criavam as condições favoráveis para o desenvolvimento do modelo econômico
vigente na época.
Com a conversão de engenhos em usinas e o surgimento de fazendas de café, a
tendência que se cumpriu foi a de desagregação do eixo rural e gestação de um meio urbano.
O novo foco de produção, diferentemente da cana e do algodão, estava dissociado do cultivo
de outros gêneros alimentícios que porventura servissem de subsistência, abastecimento, ou
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até mesmo de fonte de economia paralela à principal. Ao contrário, repudiava-se este tipo de
procedimento e tudo o que se desviava do objetivo da colheita cafeeira. Comprava-se, então,
de outrem e, com isso, aumentavam-se os gastos, encareciam-se os custos, gerando uma
dependência cada vez maior do campo em relação à cidade.
Na visão de Holanda (1995), este processo de mudança nos rumos do país, iniciado
no século XIX, de um regime arcaico para uma nova ordem social, mais distante dos tempos
da colônia, continua em curso no século XX. E não é impossível afirmarmos que persiste
ainda no nosso século, de forma gradual e contínua, alterando sempre a configuração
nacional, no que diz respeito não só a classes sociais, mas também à economia, à paisagem, à
política, à cultura, enfim, em todas as esferas, estamos ainda em busca de nossa identidade, de
nossas raízes.
Quanto à família, a sua estrutura sofreu profundas transformações com o advento do
semi-patriarcalismo. Como o próprio nome sugere, no patriarcalismo, o núcleo familiar era
representado por um patriarca, caracterizado como autoritário, rígido, severo, ao qual todos
deviam obediência. Com a reestruturação social e o declínio deste modelo de família, os
hábitos, conceitos e valores, por sua vez, também são alterados.
A figura feminina, por sua vez, já não era tão nula assim, ou, pelo menos, algumas
mulheres não se restringiam a tarefas pré-estabelecidas dentro da sociedade, como acontecia
anteriormente quando se seguia a tendência de caracterizá-las como o sexo frágil, num
ambiente dominado pelo homem:
Da mulher-esposa, quando vivo ou ativo o marido, não se queria ouvir a voz na sala,
entre conversas de homem, a não ser pedindo vestido novo, cantando modinha,
rezando pelos homens; quase nunca aconselhando ou sugerindo o que quer que fosse
de menos doméstico, de menos gracioso, de menos gentil; quase nunca metendo-se
em assuntos de homem. (FREYRE, 2004, p. 224)

Apesar dessa evolução, a principal função social feminina continua sendo a de ventre
procriador, de mãe. Esta costumava ser “a aliada do menino contra o pai excessivo na
disciplina e às vezes terrivelmente duro na autoridade. Sua consoladora. Sua enfermeira. Sua
primeira namorada. Quem lhe fazia certas vontades. Quem cantava modinhas para ele
dormir”. (FREYRE, 2004, p. 230)
A mãe, neste sentido, tem um papel de protetora na educação do filho, o de um ser
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conciliador. No entanto, ela ainda não está em condições de prepará-lo para os passos que
deveria dar em sua vida. Ela está exposta a bem menos restrições, mas não chega a ser
socialmente atuante, nem formadora de opiniões ou regras.
Então, de certa forma, isto contribuiu muito para a precocidade da iniciação sexual
masculina, a promiscuidade, a pederastia, a contração de doenças sexualmente transmissíveis,
entre outros sobressaltos, já que “a influência de mulher que faltou sobre o filho menino ou
adolescente foi o da mãe que compreendesse o mundo para o qual ele caminhava às cegas e
sem um esclarecimento”. (FREYRE, 2004, p. 230)
Era mais do que comum o avanço da sífilis e da gonorreia, moléstias que os meninos
em geral ostentavam como verdadeiros prêmios, troféus para suas primeiras aventuras antes
mesmo da puberdade, em que não raras vezes contavam com a experiência de negras do
engenho ou até com a participação de animais nos atos sexuais. No nordeste brasileiro do
passado registra-se a exploração de escravas por seus senhores, frequentemente com a
aprovação das senhoras.
O regime patriarcal, aristocrático, escravocrata e elitista é característico de uma
época marcante para a formação de nossa história. O engenho é um dos símbolos mais
expressivos desta primazia rural. Durante o seu apogeu, representava a concentração político-
econômica no Brasil.
Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo
se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica. O engenho
constituía um organismo completo e que, tanto quanto possível, se bastava a si
mesmo. [...] Hoje mesmo, em certas regiões, particularmente no Nordeste, apontam-
se, segundo o sr. Gilberto Freyre, ‘as cômodas, bancos, armários, que são obra de
engenho, revelando-o no não sei quê de rústico de sua consistência e no seu ar
distintamente heráldico’. (HOLANDA, 1995, p. 80)

A formação desta estrutura colonialista, que perdurou por muitos anos após a
proclamação da independência brasileira, e também a sua decadência, são questões que
devem ser fundamentalmente consideradas para um entendimento adequado de como se
construiu a imagem da mulher como “sexo frágil”.

O HOMEM NA AGENDA PÚBLICA NACIONAL


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Pesquisas recentes revelam que o homem figura nos dois polos da violência: têm
matado e morrido, em um cenário no qual ocorre, não raras vezes, a banalização da própria
vida. Tratando-se, por exemplo, dos dados elencados pelo Mapa da Violência 2014, é
notório o perfil de vulnerabilidade associado ao panorama de mortes violentas no Brasil.

Ao longo dos diversos mapas que vêm sendo elaborados desde 1998, emerge uma
constante: a elevada proporção de mortes masculinas nos diversos capítulos da
violência letal do País, principalmente quando a causa são os homicídios. Assim, por
exemplo, nos últimos dados disponíveis, os de 2012, pertenciam ao sexo masculino:
91,6% das vítimas de homicídio na população total e ainda mais entre os jovens:
93,3%. (WAISELFISZ, 2014, p. 57)

Este estudo expõe muitos pontos de vista sobre este fenômeno. Evidencia, inclusive,
que se trata de um quadro registrado no país de forma geral. Além disso, ao se estabelecer um
paralelo entre homens e mulheres, o recorte de jovens do sexo masculino prevalece sobre os
demais perfis.
Quando relacionamos esses números com as respectivas bases populacionais, vemos
o significativo crescimento das taxas ao longo do período, crescimento mais drástico
para o sexo masculino, e mais ainda quando o foco são os jovens.
Efetivamente:
• Se no total das mulheres as taxas passam de 2,3 para 4,8 homicídios por 100 mil,
crescimento de 111%, entre os homens a taxa passa de 21,2 para 54,3, o que
representa um aumento de 156%.
• Em 2012, a taxa de 54,3 homicídios masculinos era 11 vezes superior à feminina,
de 4,8.
• Entre os jovens, essas diferenças são mais drásticas ainda: a taxa masculina cresce
199% - a feminina 113,0% - e resulta 14 vezes superior à feminina. (WAISELFISZ,
2014, p. 57)

Outros estudos, nos últimos anos, demonstram que houve um aumento no interesse
da inclusão dos homens nas agendas de pesquisa, porém, isso se deu na saúde com a Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem que está alinhada com a Política Nacional
de Atenção Básica – porta de entrada do Sistema Único de Saúde - com as estratégias de
humanização, e em consonância com os princípios do SUS, fortalecendo ações e serviços em
redes e cuidados da saúde, em 2009.
O próprio Ministério da Saúde reconhece que, por mais que tenhamos internalizado
um pensamento de fortaleza no ser masculino, o mesmo é mais vulnerável às doenças e

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morrem mais precocemente que as mulheres, de acordo com Nardi et. all. (2007); Courtenay,
(2007); IDB (2006) Laurenti et. all. (2005); Luck et. all. (2000).
O Ministério da Saúde vem cumprir seu papel ao formular a Política que deve
nortear as ações de atenção integral à saúde do homem, visando estimular o
autocuidado e, sobretudo, o reconhecimento de que a saúde é um direito social
básico e de cidadania de todos os homens brasileiros. (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2015)

Outro ponto importante, conforme Figueiredo, 2005; Pinheiro et. all. (2002), diz
respeito à maior vulnerabilidade e às altas taxas de morbimortalidade: os homens não buscam,
como as mulheres, os serviços de atenção básica. Preconiza ainda o ministério em sua
cartilha que “Muitos agravos poderiam ser evitados caso os homens realizassem, com
regularidade, as medidas de prevenção primária.” Tal resistência masculina à atenção primária
é responsável pelo aumento na sobrecarga financeira da sociedade e no “sofrimento físico e
emocional do paciente e de sua família, na luta pela conservação da saúde e da qualidade de
vida dessas pessoas”.
Segundo Gomes, 2003; Keijzer, 2003; Schraiber et. all. (2000) as causas da baixa
adesão por parte do público masculino a tratamento são explicadas por barreiras
socioculturais e institucionais. Estereótipos de gênero que são passados culturalmente através
dos séculos por nossa sociedade patriarcal fortalecedora da ideia de que o ser masculino é
forte e doença e cuidado é sinal de fraqueza, levando-o assim a renegar a frágil condição
humana e biológica, não se precavendo mesmo quando exposto diretamente ao risco de morte,
seja por trabalho fisicamente forçado (construção civil, estradas, policial, prostituição viril,
etc.), seja por envolvimento em situação de abuso de álcool e outras drogas, ou ainda
promiscuidades.
Em relação à agenda política da saúde, é indubitável o avanço desde 2009. Embora
seja recente tal marco, é preciso buscar o reconhecimento atual da importância de envolver os
homens nas intervenções de prevenção e promoção de saúde sexual e sexualidade para além
de seu papel instrumental, emerge um problema crítico de como promover universalmente
serviços em saúde, de modo atender o público masculino, uma vez que a masculinidade
promove ruptura com os padrões culturalmente dominantes.

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É importante observar sobre essa agenda o recorte que ela selecionou sobre a
população masculina, abrangendo a faixa etária de 25 a 59 anos. Mesmo não sendo uma
restrição essa população alvo, e sim uma estratégia metodológica; mesmo esse grupo etário
correspondendo a “41,3 % da população masculina ou a 20% do total da população do
Brasil”; mesmo ele correspondendo à “parcela preponderante da força produtiva e exercendo
um significativo papel sociocultural e político no Brasil”; mesmo com tudo isso, não é a
população mais atingida pela violência, que segundo (MOORE, 2015) comentando a análise
do Mapa da Violência 2014:
O Mapa da Violência (WAISELFIZS, 2014), documento produzido a partir da análise dos
atestados de óbito em âmbito nacional, faz o levantamento de mortes por acidente de
trânsito, homicídio e suicídio. Na sua última edição, o documento apresentou um avanço
alarmante da violência no país, com incremento de 148,5% nas taxas de homicídio desde os
anos 1980, de 62% nas taxas de suicídio e de 38,7% nas de acidente de transporte. Estes
dados apontam para um total de 556 mil cidadãos brasileiros mortos na última década, o
que supera o número de mortos em qualquer conflito armado existente no período. O foco
principal do documento é a morte de jovens de 15 a 29 anos, faixa etária que concentra a
grande maioria das vítimas. No recorte por sexo, os dados demonstram a gravidade do
problema, com 91,6% das vítimas sendo do sexo masculino, 93,3% se considerada apenas a
população jovem, sendo que em 2012 a taxa masculina é de 54,3 homicídios, 11 vezes
superior à a feminina (de 4,8). No caso do suicídio, mantém-se a maior vulnerabilidade
masculina, embora não tão acentuada, com a taxa masculina sendo quatro vezes superior à
feminina.

Extraindo informações ainda do próprio Mapa da Violência (WAISELFIZS, 2014),


chegam-se a algumas ponderações:

Como mostra o diagnóstico, os homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens de
15 a 29 anos no Brasil e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino,
moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos. Dados do
SIM/Datasus do Ministério da Saúde mostram que mais da metade dos 52.198 mortos por
homicídios em 2011 no Brasil eram jovens (27.471, equivalente a 52,63%), dos quais
71,44% negros (pretos e pardos) e 93,03% do sexo masculino. Por essa razão, os
homicídios de jovens representam uma questão nacional de saúde pública, além de grave
violação aos direitos humanos, refletindo-se no sofrimento silencioso e insuperável de
milhares de mães, pais, irmãos e comunidades. A violência impede que parte significativa
dos jovens brasileiros usufrua dos avanços sociais e econômicos alcançados na última
década e revela um inesgotável potencial de talentos perdidos para o desenvolvimento do
país. (p.09)

[...] Os estudos existentes demonstram coincidentemente que a vitimização homicida no


país é notada e fundamentalmente masculina. A feminina representa aproximadamente 8%
do total de homicídios, mas com características bem diferenciadas da mortalidade
masculina. (p. 105)

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Moscovici, renomado psicólogo romeno direcionou sua pesquisa para as


representações sociais. Como resultado preliminar do levantamento de dados, prevaleceu
também o aspecto da Saúde Pública. Ele apontou para o fato de que a violência contra o
homem aparenta uma carga negativa em relação ao conjunto social. Baseando-se neste ponto
de vista, associado a todos os outros apresentados, considera-se fundamental o
aprofundamento teórico-crítico sobre a vulnerabilidade social do homem na sociedade
brasileira contemporânea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabe-se que ainda há muito a se debater sobre as políticas públicas de gênero. A
admissão da perspectiva do homem como um sujeito e como categoria de gênero no âmbito
da agenda pública não tem sido um processo fácil. Há que se reconhecer que, grosso modo, as
experiências ainda são incipientes. O que torna ainda mais necessário o debate e a avaliação
crítica das experiências existentes no sentido de reforçar a construção de tais políticas.
É imprescindível discutir a problemática de gênero para além dos estigmas culturais,
das vicissitudes, das questões de profilaxia, já que mais comumente a vulnerabilidade
masculina é apresentada como aversão a práticas preventivas envolvendo saúde.
Como indicam os dados de violência, de empregabilidade, de insalubridade e
periculosidade, entre inúmeros outros fatores, há que se considerar certo desfavorecimento
sobre o gênero masculino sociologicamente, sem desprezar as outras perspectivas que se
correlacionam, como a vulnerabilidade da mulher, dos homossexuais, transexuais e
transgêneros.
Acredita-se que quanto mais amplo o debate sobre o gênero, mais se estará
aproximando da efetiva garantia dos Direitos Humanos e da construção da cidadania como
processo de inclusão e equidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Anuario de Derechos Humanos, 2012. Disponível em: <www.anuariocdh.uchile.cl>. Acesso
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FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 34ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. 569p.
______. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano.
15ª ed. rev. São Paulo: Global Editora, 2004.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de atenção à saúde departamento de ações
programáticas estratégicas política nacional de atenção integral à saúde do homem. Brasília,
2015.
MOORE, Rafael Alberto. Gênero e violência: vulnerabilidade masculina. Brasília, 2015.
SANTOS, A.M. dos. Texto Contexto Enferm. Florianópolis: 2011, jan.-mar., 20(1). pp. 76-
84.
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em Psicologia Social. Rio de
Janeiro: Vozes, 2003. 404 p.
WAISELFISZ, J. J. O Mapa da Violência 2014: Os Jovens do Brasil. Instituto Sangari. São
Paulo, 2014. Disponível em:
<http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf.>
Acesso em: 19 out. 2015.

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A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA CONSTRUÇÃO DO MOVIMENTO DE


EDUCAÇÃO DO CAMPO

Ana Maria Teixeira Andrade | anamariaprece@gmail.com

INTRODUÇÃO
Na Grécia antiga, a mulher ocupava as mesmas funções que o escravo, basicamente
compostas por trabalhos manuais, a extração de minerais, a agricultura ou fiar, tecer,
manipular a alimentação da família, a maioria ligados a subsistência do homem. O estar fora
de casa onde se realizavam atividades tidas como nobre era próprio somente aos homens
gregos. As atividades eram a filosofia, a política e as artes. Desse modo, estava limitado o
horizonte intelectual da mulher grega, excluída do mundo do pensamento, tão valorizado pela
sociedade da Grécia. Para não ficarmos de todo decepcionados/as com essa constatação,
destacamos um único registro histórico sobre um espaço dedicado a educação intelectual da
mulher grega, fala-se da escola de Safo, poetisa nascida no ano de 625 a.C. Ela é conhecida
por fragmentos de seus poemas que cantam os deuses e o amor e são por esses fragmentos que
ela figura entre os grandes nomes da literatura grega antiga.
Em tempos modernos, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, um número cada vez
maior de mulheres realizavam trabalhos domésticos e na indústria de confecções, contratadas
por intermediários. Por outro lado, sobre a formação profissional delas, não há registros de
frequência de alunas em universidades até o limiar do século XIX. Nesse mesmo século,
haviam mudanças profundas, motivadas pela consolidação do sistema capitalista, tanto do
sistema de produção quanto das questões trabalhistas que abarcarão várias outras
problemáticas ligadas com a mão de obra masculina e feminina, dentre outras transformações
da pós-modernidade. (ALVES; PITANGUY, p.14-19, 33,1982). Embora tenha havido muitos
avanços na emancipação da mulher no século XX e já nesse século, ainda persiste mesmo que
subjacente, em vários aspectos, a dominação masculina com o aplauso de algumas vozes
femininas alienadas.
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A participação dessa mulher no movimento de educação do campo tem sido percebida


no Brasil a partir da luta dos movimentos sociais pela Reforma Agrária e direitos
fundamentais do cidadão e cidadã desse espaço. No limiar da década de 1990, registra-se o
momento histórico do Movimento de Educação do Campo no Brasil. Assim, diante de um
currículo unificado para a escola urbana e rural, podemos classificar esse momento tendo
raízes sócio-políticas de uma renovação pedagógica importante para essas sociedades do
campo. Não podemos esquecer que a luta pela reforma agrária levantou o alicerce para os
pilares da educação do/no campo e também não nos furtemos de que a grande contribuição
que o Movimento Sem Terra deu para se levantar toda a discussão de educação do campo.
Esses movimentos além da luta pela posse da terra, reivindicam direitos fundamentais como o
de garantia de sua sustentabilidade local o que inclui mudanças no âmbito educacional em
ensino básico, técnico e acadêmico, todos devendo ser voltados a um projeto político
pedagógico que contextualize os problemas específicos a essas populações dos rincões.
Dentro desse cenário, há uma forte participação da mulher, de forma direta na construção das
pautas reivindicatórias dos movimentos sociais do campo que englobam as ações de lutas por
esses direitos fundamentais. Por exemplo, tem-se o “Movimento das Mulheres Camponesas
(MMC), o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais que patrocina a campanha chamada
‘Marcha das Margaridas’”, dentre outros. (CALDART, 2004).

PRECE260 - TRAJETÓRIAS DE RESISTÊNCIA


Quando casei levei a uma mentalidade tradicional legada pela minha avó e minha mãe
quanto a supremacia masculina para a minha nova família que eu iria criar, logo na primeira
gravidez, eu desejava ardentemente ter um filho homem e quando eu soube que seria uma
menina, fiquei muito triste. Depois, refletindo sobre esse sentimento e ao entrar em contato
com muitas leituras que me formaram nos quatro anos de faculdade, somado ao fato de que eu
ia tendo mais meninas até o número de três, fui vendo que não havia diferença entre os dois

260
Em 1994 o grupo era uma iniciativa que não tinha nome; em 1998, o projeto foi registrado na Pró-Reitoria de
Extensão da Universidade Federal do Ceará como Escola Alternativa; em 1999 como Projeto Educacional
Coração de Estudante; e em 2004 passa a ser Programa de Educação em Células Cooperativas. Conhecido
nacionalmente como PRECE – um movimento de estudantes, com a colaboração da classe de professores em
geral - secundaristas e universitários.
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sexos e que no passado a mulher era muito estigmatizada e sem espaço ou voz na sociedade
do saber, mas hoje, nos tempos modernos muita coisa havia mudado, apesar da dominação
masculina ainda velada, vivemos em um momento de liberdade e respeito as diferenças. Eu
passei por essas coisas e nunca havia percebido, percebi isso após um pouco de leitura acerca
das questões de gênero. De algum modo, nós mulheres sofremos algum tipo de dominação
masculina em nossa relação familiar e social, porém, penso que em minhas experiências, pode
ter ocorrido de modo simbólico, despropositadamente, por parte dos homens que trabalharam
comigo nesse movimento. (BOURDIEU, p.13, 2014).
Vimos de um contexto tradicional, solapado pela força da alienação que todas nós
carregamos, oriundas de um processo histórico que nos marcou, de modo extraordinário, por
séculos e séculos. Dessa forma percebo que é comum nos homens, mesmo os educados e
conhecedores da problemática do gênero, gostar de chegar em casa e nos ter à espera,
sorridente com uma comidinha feita e quando isso não ocorre, as coisas parecem mais pesadas
e cinzentas no ambiente familiar. Isso é mais um fato tido como natural, próprio do que ficou
designado “naturalmente” para a mulher; ter filhos, fazer as atividades domésticas, e essas,
como disse (ARENDT apund MENEGAT et all, p. 148, 2009) não existem pois “o poder só é
efetivado quando a palavra e o ato não se divorciam” e é com as palavras e os atos que nos
tornamos visíveis na esfera pública, no mundo humano”. Ela quis dizer que o trabalho
feminino a “portas adentro” não expressa essa unidade do discurso e do ato, não se tornando
visível, portanto não existindo.
Quando eu casei, logo depois de dois anos, iniciamos o trabalho social, todas as coisas
já começavam muito caras para mim, por exemplo, retornar aos fins de semana de Fortaleza a
minha cidade natal para trabalhar na creche da Associação Comunitária de Pequenos
Agricultores Rurais de Capivara e Cipó – ACOMPARCC se tornava uma perigosa aventura
por causa da minha barriga de oito meses e isso também era fator de incômodo para mim e
para meus familiares que não concordavam com nossa postura. Contudo apesar da minha
condição de mulher recém casada, em fase de constituir minha família e de ter a oportunidade
de estudar e fazer uma faculdade, algo negado as mulheres daquele contexto, logo me
identifiquei com os estudantes pioneiros e sonhadores daquele torrão seco pela falta de chuva,
o que me fez apoiar o meu marido Manoel naquela ousada empreitada que era a criação
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revolucionária de um movimento social em educação e de resistência em um ambiente difícil,


na busca de resposta àquela necessidade de apropriação do saber acadêmico. Assim, vendo a
situação dos jovens da sua região, como ausência de escolas rurais do ensino médio, de
professores qualificados, de escolas técnicas ou faculdades, além de outras dificuldades
materiais pois não se tinham recursos vindos nem dos órgão públicos e muito menos de seus
pais, simples agricultores, sem apoio agrário nenhum. Além disso, havia ainda a questão
climática, pois em ano de seca, as coisas pioravam para as famílias desses jovens, sem o fruto
das plantações da estação chuvosa, a ausência de alimento era uma constante em suas
famílias. Com as chuvas, vinha outro problema que eram os rios e riachos cheios que
atravessavam os caminhos entre essas comunidades e a escola, impedindo aos transportes
trafegarem com os estudantes até suas escolas. Isso causava a desistência de alguns que iam
se desestimulando frentes às adversidades que se punham no meio do caminho deles pela falta
de uma educação voltada a realidade do campo.
Conhecendo o contexto ao redor dessa problemática acima, Manoel Andrade, do
mesmo torrão, sentia na pele as agruras daquele espaço hostil e desprovido de chances e
possibilidades de uma mudança de vida real. Com isso resolve convidar alguns estudantes
para juntos estudarem. Ele era um exemplo vivo, presente ali e cheio de experiências pelas
dificuldades que teve para conseguir estudar e fazer um curso superior - pois se não fosse sua
avó tê-lo retirado aos 9 anos para estudar em Fortaleza, ele não teria conseguido se formar em
Química e passar em um concurso público para professor universitário na UFC. Com certeza
se Dona Alzira não tivesse feito isso, seu destino teria sido igual ao de seus amigos que
ficaram naqueles torrões secos pela falta de chuva, tateando sem rumo e nem redenção como
muitos vivem ainda hoje nas mesmas condições de vida, quase sem nada, sem recursos
materiais, serviços de saúde e educação de qualidade, esquecidos pelo descaso político,
próprio daquelas paragens interioranas. A vó Alzira era uma mulher obstinada em fazer aquilo
que ela acreditava ser uma mudança de curso de vida para mudar um destino que estaria
traçado pelas leis do determinismo social, justificado pelo próprio ambiente seco nordestino
sem vida. Esse fato nos remete a partir da história de vida de Manoel Andrade ao passado de
sua avó a qual fez de tudo para deixar um legado ao neto, o estudo como forma de superação
da ignorância e pobreza material e de espírito, hoje revisitado. Sobre isso nos fala (LANI-
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BAYLE, p. 305, 2008) acerca da dimensão intergeracional nas narrativas de vida”


significando que a nossa história é construída metaforicamente comparada a uma mola
propulsora que nos leva do presente ao passado e nos joga para o futuro. Desse modo, depois
de alcançar uma vida mais promissora – Manoel Andrade, talvez designado pelo criador,
pensa em sua missão social e resolve colocar um tijolo na construção de novas pontes que
conduzissem aqueles jovens a um novo mundo, o dos sonhos de vida digna e cidadania para
os futuros homens e suas respectivas famílias. Esse novo mundo foi se construindo a partir do
grande sonho coletivo para aquela pequena comunidade chamada Cipó e quando a semente é
boa, ela vai germinando em muitas terras e dando muitos frutos, incontáveis e esses frutos são
eles, “os precistas” e assim se fez o PRECE, de modo empírico e pela fé, Manoel resolve
convidar o Francisco Antonio da comunidade de Coelho, já um professor de educação infantil
dessa comunidade, para facilitar aulas na comunidade de Cipó, na casa de farinha. Os
encontros se dariam na semana e no fim de semana. Manoel, mais diretamente, levaria livros
e amigos colaboradores para darem aulas. Mas não somente o Francisco Antonio
permaneceria naquele espaço consagrado ao saber e partilha, simbolizado pelos atos de
cooperação e solidariedade que cercavam sempre o mover precista. Nesse projeto viriam mais
6 jovens e no meio desses, uma mulher, a Raquel, diferente de todas as outras, porque é única
em sua identidade. A casa foi, logo depois, o palco da epopeia de muitos precistas que se
deslocavam de pau de arrara de comunidades longínquas dos rincões de Pentecoste e ainda da
sede, além de outros municípios. Nessa trajetória é que me vejo ao lado como participante e
como observadora desse caminhar, nessa viagem do ir e vir que posteriormente se fará mais
forte para a alimentação desse movimente que nascia. Esse retorno me remete ao que fala
(JOSSO, p. 58, 2004) quando fala sobre a importância do “caminhar para si” no sentido de
que viagem e viajante são a mesma coisa no itinerário da vida que faz pelos “diferentes
cruzamentos com os caminhos de outrem”, as paradas longas ou curtas, os encontros e os
acontecimentos, dentre outras aventuras que a vida nos conduz quando nos lançamos a ela,
sem temer.
Como uma viagem que começou de um pensamento, se constituiu um movimento
educacional do campo que congregava estudantes, seus pais e irmãos/ãs que irmanados com
líderes comunitários e religiosos delineavam cotidianamente suas ações e partilhas do saber e
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de tudo aquilo que materialmente cooperavam para que todos os participantes desse
empreendimento social lograssem o êxito pessoal e social, dando mostra de que quando o
poder público não vem cumprindo o seu papel na construção de uma educação de qualidade
para os povos brasileiros, dentro de suas diversas culturas, seja do campo, do mar, da serra ou
de áreas urbanas, respondendo pela grande diversidade cultural existente em nosso país, a
sociedade civil se levanta para fazer acontecer porque somente ela sabe o que quer e como
deseja que as coisas aconteçam. (GOHN, p.8, 2005).

CONTRIBUTO DE ANA MARIA ANDRADE² À PRIMEIRA CÉLULA DOS SETE


ESTUDANTES DO PRECE
Eu procurava entender as pequenas situações da nossa rotina no trabalho social, por
exemplo, nosso carro sempre foi também do PRECE porque um ou mais dos sete estudantes
precisavam quase todo fim de semana para se deslocarem para fazer as provas do supletivo,
em fortaleza e, então, já era certo que iriam conosco. Haviam momentos em que algum deles
teria que trazer a Alzira, minha primeira filha no colo, e como nessas idas e vindas entre
Pentecoste e Fortaleza, eu sempre parava na casa de minha mãe, na comunidade São Pedro,
certa vez, ela me indagou: “minha filha você não se importa em deixar suas filhas viajarem
sempre nas coxas desses rapazes” e eu respondi: “não mamãe, eu confio neles, para mim, eles
como meus irmãos”. Pelo fato de minha mãe ser muito tradicional por conta de sua cultura
familiar, ela não concebia minhas filhas muito próximas dos meus amigos e isso me deixava
pensativa, mas sempre fui firme, apesar da sua doutrinação de separação dos sexos.
Trago uma inspiração pelo que diz (SOARES, p. 21, 1991) acerca da minha trajetória
quando a mesma olha para o passado para entender o presente, e nele me encontrar falando de
mim, do que fui e de como esse ter sido influencia o meu agora. Nesse meu caminhar de
professora desde muito jovem, sentia a necessidade de entender mais da área de leitura,
interpretação e escrita, somado ao apoio e orientação do meu marido, acabei decidindo fazer o
curso de letras na Universidade Federal para poder ajudar aos estudantes pioneiros do PRECE
na condição de universitária. Eu participava dos estudos preparatórios pro vestibular da UFC
aos fins de semana, dentro da dinâmica da primeira célula de estudo do PRECE em 1994, O
Francisco Antonio (Toinho) me ajudava em História, o Norberto na Química, física e o Beto
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na matemática, o Francisco Gonçalves na Biologia, talvez existam outras ajudas, porém essas
foram as que lembrei. Estudávamos em duplas, as vezes, juntos para ouvirmos um dos sete
dando uma aula, ou outras vezes participávamos de aulas de professores convidados pelo
Andrade. Eu dava minhas aulas no PRECE sempre aos fins de semana, às vezes, no sábado,
outras vezes no domingo, porque na semana, eu estava em Fortaleza. Certa vez, ao facilitar os
estudos de redação, vi que o Beto tinha uma letra muito ilegível, então, pensei numa saída
para ajudá-lo e a única que vi, naquele momento, foi pedir para que ele fizesse todas as
redações em folha de caderno de caligrafia e deu certo, ele melhorou muito e passou no
vestibular sem grandes problemas com sua produção textual. Ainda guardo algumas dessas
produções deles. Nossa moradia em Fortaleza era um pequeno apartamento de 42 metros
quadrados. Além das minhas três amigas que moravam comigo ainda vinham os sete
primeiros estudantes do PRECE para fazerem suas provas da EJA. Eles dormiam em
colchonetes na sala e toda vez que eu precisava ir ao único banheiro, pois havia apenas um, eu
tinha que passar entre os colchonetes espalhados pela sala. Eram, principalmente, o Noberto,
o Francisco, o Beto e o Toinho, esse permaneceu três meses estudando para o vestibular, e por
isso ele ficava o fim de semana em nosso AP enquanto nós viajávamos para Pentecoste. Na
hora do almoço, como nossa mesa era pequena, todos sentavam pelo chão com seus pratos nas
mãos. Enfim, era um verdadeiro calor humano por todos os lados de nossa vida, no carro, no
apartamento, no campo de futebol no interior e até na praia. Eu recomecei os meus estudos
para prestar vestibular pela primeira vez em 1997; nessa época, eu estava muito otimista e
achava que passaria logo de primeira, mas não passei. Fiquei revoltada com Deus, foi mais
um momento difícil. Depois que superei a decepção da reprovação, recomecei os estudos que
eram sempre diários, rotineiros, eu sempre usava os fins de semana, pois trabalhar no PRECE
sempre significou sacrificar sábados ou domingos, dependendo das particularidades de cada
projeto, de cada facilitador, etc. Nesse movimentar e desejo de entrar na universidade eu
estava ansiosa para fazer vestibular novamente e foi assim que em 1998, fiz e não passei, mas
a reação foi melhor. Nesse ano, tínhamos voltado para o apartamento e, mesmo eu tendo uma
pessoa para trabalhar em meu lugar nos serviços domésticos, os filhos sempre buscam
primeiramente a mãe, pois é da natureza da criança mesmo tendo uma babá querida e
especialmente eu que era uma mãe presente fisicamente, embora minha cabeça estivesse nos
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estudos preparatórios para o vestibular, eu participava de modo direto na criação de minhas


crianças. Essa presença constante só era possível pelo fato de eu estudar em casa, pois eu não
tinha nível para acompanhar um cursinho, isso eu já havia tentado, mas em vão. Desse modo,
eu estava numa situação difícil para estudar, pois Alzira e Alice de 6 e 4 anos,
respectivamente, a todo momento corriam, me chamavam querendo atenção o tempo todo,
naquele cubículo que era nossa morada; então eu e Andrade conversamos em busca de uma
estratégia que fosse bom para mim e para as crianças, então veio a ideia de eu morar por 3
meses no Cipó, pois isso seria bom para nosso objetivo de entrar na universidade, o que
incluía ainda minhas amigas Rosiane e Marcilene. No fim do ano veio a vitória, passei para o
curso de letras da UFC, e tirei uma ótima nota na redação – 76, sendo que a nota máxima era
80 o que me garantiu a aprovação já para o primeiro semestre. Poucos dias depois da minha
aprovação no vestibular, eu soube que estava grávida. Foram quatro anos de faculdade bem
difícil por conta da gravidez e, posteriormente, no acompanhamento da amamentação da
Ester, ainda pequena. Tive que fazer prova no resguardo, para diminuir o meu tempo fora de
casa, tranquei algumas disciplinas e quando eu ia para a faculdade participar das aulas das três
disciplinas, tirava leite e deixava na geladeira para a Lélia dar para a Ester. Nessa trajetória de
mãe e universitária, só fui reprovada numa disciplina e nunca deixei de dar aulas no prece
todos os fins de semana. (BEAUVOIR, p. 248, 1967).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse trabalho foi importante para mostrar quais papéis cabia a mim desempenhar no
grupo dos sete e como se articulavam esses papéis em relação ao gênero. A mim foi muito
difícil falar desse tema por ter sido a primeira vez que me atento a essa leitura. Percebi que a
construção foi muito superficial, mas pretendo explorar de modo mais aprofundado em breve
na minha tese, ampliando as discussões acerca da minha trajetória no PRECE. Mesmo assim,
levanto alguns papéis identificados como o de apoiar, como companheira do líder principal do
PRECE a todas as ações encabeçadas por ele, nesses vinte e um anos de história do
movimento. Outro papel foi o de professora desses estudantes nos processos educativos em
todas as horas, na disciplina por mim ministrada que era a de literatura e redação na
preparação dos estudantes para as provas de educação de jovens e adultos para a conclusão do
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ensino médio e na preparação para a prova do vestibular. Na vida familiar, no papel de


concordar em compartilhar o transporte e estadia em minha residência, nos momentos da
partilha do carro, de minha casa e refeições, dentre outras coisas. Enfim, no papel de amiga e
conselheira nos momentos de grandes decisões que eles deveriam tomar quanto a vida
profissional, emocional e na tolerância com as diferenças de cultura e temperamento próprios
de cada um.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Branca Moreira. PITANGUY, Jacqueline. O que é Feminismo. São Paulo:
Brasiliense,1982.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão europeia
do livro, 1967.
CALDART, Roseli S., (2004). Elementos para Construção de um Projeto Político e
Pedagógico da Educação do Campo. Por uma Educação do Campo, n. 5, p. 13-49.
Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo. Desafios e Proposta de Ação.
Luziânia. 1998.
GOHN, Marai da Glória. Movimentos Sociais e Educação. São Paulo: Cortez, 2005.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de Vida e Formação. São Paulo: Cortez, 2004.
LANI-BAYLE, M. Histórias de Vida: Transmissão Intergeracional e Formação. In:
PASSEGGI, Maria da Conceição.(org.) Tendências da Pesquisa (auto)biográfica. Natal.
EDUFRN; São Paulo. Paulus, 2008.Col. Pesquisa autobiográfica e educação.
SOARES, Magda. Metamemória – Memórias: Travessias de uma educadora. São Paulo:
Cortez, 1991.
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Pedagógico da Educação do Campo. Por uma Educação do Campo, n. 5, p. 13-49.
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TEDESCHI. Losandro Antonio. O uso da categoria gênero na história das mulheres camponesas:
Uma ferramenta necessária In: educação, relações de gênero e movimentos sociais: um diálogo
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necessário. Alzira Salete Menegat, Losandro Antonio Tedeschi, Marisa de Fátima


Lomba de Farias, organizadores. – Dourados, MS: Editora da UFGD, 2009.
ALVES, Branca Moreira. PITANGUY, Jacqueline. O que é Feminismo. São Paulo:
Brasiliense,1982.

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ANÁLISE DAS AÇÕES EDUCATIVAS DO CENTRO DAS MULHERES DE


VITÓRIA PARA O EMPODERAMENTO DOS JOVENS DE PIRITÍBA

Marcílio José da Silva | Email:marciliops@hotmail.com


Hulda Helena Coraciara Stadtler

INTRODUÇÃO

Este artigo constitui os resultados de uma pesquisa empírica que tem por objetivo
analisar as ações do Centro das Mulheres de Vitória de Santo Antão-CMV, junto aos jovens
da comunidade de Piritúba a fim de compreender as contribuições que o centro tem
desenvolvido num modelo educativo voltado para a construção da cidadania, a participação e
o empoderamento político das pessoas na localidade onde moram. O interesse inicial surgiu
por conhecer que o Movimento Feminista e suas preocupações com as questões de gênero e
relações de poder tem sido um dos elementos sociais mais presentes nos contextos de
resistência popular administrados por algumas ONsG.
Contextualizado como um movimento de confronto as questões neo-liberais, esses
grupos feministas atuam de modo a combater também alguns aspectos ilusórios da
globalização e da inclusão perversa ali contida. A globalização como um fenômeno mundial e
com desdobramentos em todos os campos sociais, trás no seu bojo a ideia de acesso,
liberdade e de que toda pessoa independente da sua localização territorial tem o privilégio de
está integrada aos acontecimentos, fatos, e oportunidades mundiais através do modelo de
comunicação atual. Contudo, é preciso cautela para analisar a realidade dessa condição
quando se trata do local. Um cenário diferente a essas ideias confronta no quotidiano todos,
ou quase todos, os indivíduos que percebem na crise do desemprego, no aumento da
concentração de renda, na luta pelo poder e na aceleração das desigualdades sociais, que a
globalização precisa ser percebida sobre vários anglos.
Mediante as inúmeras críticas à globalização e suas contradições profundas outros
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discursos aparecem com uma diferente leitura sobre desenvolvimento local. O


Desenvolvimento Local é um paradigma bastante discutido atualmente, é uma forma de pensar
o desenvolvimento que inclui um caráter mais humano e social. Está presente nesse novo
paradigma a ideia de que as pessoas devem assumir o papel de sujeito e com isso participar
ativamente dos processos de decisão e crescimento voltados para a melhoria das condições da
população. Sendo o Desenvolvimento Local uma categoria teórica discutida em vários
momentos da pesquisa, a referência ao termo será substituída pela sigla – D. L .

GLOBALIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO LOCAL

A globalização é uma ideia geralmente associada aos processos econômicos, como a


circulação de capitais, a ampliação dos mercados ou a integração produtiva em escala
mundial. Contudo, a globalização também integra fenômenos da esfera social como a criação
e expansão de instituições transnacionais e a universalização dos padrões culturais.
Para Vieira261, a globalização é a intensificação das relações sociais em escala mundial
que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são configurados por
eventos que ocorrem a milhas de distância e vice-versa. Entre as controvérsias apontadas,
Boaventura Santos262 faz uma distinção entre Localismo Globalizado e Globalismo
Localizado. O primeiro se refere à globalização bem sucedida de um fato local, por exemplo,
a atividade mundial de empresas transnacionais, a transformação da língua inglesa, a
globalização da música popular ou da fast food americana. Já o Globalismo Localizado diz
respeito ao impacto específico de práticas transnacionais sobre condições locais que se
desestruturam e reestruturam para atender os imperativos transnacionais. São exemplos desse
processo, os entraves do livre comércio, o desmatamento e a destruição de recursos naturais, a
conversão da agricultura sustentável para agricultura de exportação entre outros.
Segundo Franco263, essas observações somam-se às críticas ao modelo de

261
VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização, Edit Record, São Paulo, 1997. pg. 36.
262
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais. 3 ed. Cortez , São Paulo, 2005. pg.
45-48.
263
FRANCO, Augusto de. Pobreza e Desenvolvimento Local = pobreza e desarrollo local. Tradução Maria
Mercedes. Brasília, Edit. Arca, Sociedade do Conhecimento, 2002. pg. 74.
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desenvolvimento instaurado, projetando o DL como alternativa a conjuntura já estabelecida,


passando de uma perspectiva de desenvolvimento econômico e tecnológico excludente, para
uma proposta de desenvolvimento integrado a sociedade por meio de uma visão sistêmica de
articulação e mobilização dos diferentes setores sociais.
Segundo Pires264, D. L. trás implícita a ideia de que somos todos responsáveis pela
vida social, o que não significa destituir o Estado das suas responsabilidades históricas, mas
enfatizar que todos nós somos atores desse processo. Considera que dentro dessa perspectiva
de DL existe a necessidade de valorizar o patrimônio histórico e cultural ligados ao território
subsidiando atividades econômicas envolvendo atores locais. Contudo, esse patrimônio não se
restringe apenas a dimensão material, como a arquitetura, mas a bens imateriais como, as
tradições, a culinária e o próprio imaginário ligado ao território construindo assim uma marca
identitária. Um dado importante é dizer que o D. L. incorpora ideias como democracia,
autonomia e participação.
Para Rossi265, empoderamento é o processo pelo qual o indivíduo, organizações e
comunidade obtêm recursos que lhe permitam ter voz, visibilidade, influência e capacidade de
decisão. Nesse contexto empoderar significa permitir aos indivíduos exercer o poder de
agenda nos temas que afetam suas vidas. Rossi266, considera que o empoderamento das
pessoas não se dá de forma automática, consiste num planejamento e intervenção externa que
busca atingir indivíduos e organizações em projetos de combate à exclusão, que objetive a
promoção de direitos e o desenvolvimento das pessoas em âmbito local e regional, focando a
transformação das relações de poder na sociedade, principalmente nas camadas sociais de
menor poder econômico. Nesse contexto é que os Movimentos Sociais atuam com vistas a
auxiliar essas camadas no processo de construção da cidadania.

A EDUCAÇÃO NOS MOVIMENTOS SOCIAIS

264
TAVARES, Jorge (org.).; SOUZA, Josenildo de; Extensão Rural e Desenvolvimento Sustentável. Recife,
Edit. Bagaço. 2003. pg. 31.
265
ROSSI, Rodrigo Horochovski. Problematizando o empoderamento, Tese de Doutorado apresentada a
Universidade Federal do Paraná-UFPR, 2005. pg. 24.
266
____________. Problematizando o empoderamento, Tese de Doutorado apresentada a Universidade Federal
do Paraná-UFPR, 2005. pg. 24.
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Segundo GOHN267, os Movimentos Sociais conformam práticas coletivas de caráter


sócio-político e cultural demonstrando formas distintas da população de organizar e expressar
suas demandas. Em sua análise os Movimentos Sociais sempre existiram por expressar as
formas de resistência a modelos sociais opressores e se mostrando como fontes inovadoras de
transformação cultural. Nessa perspectiva é observado que assim como a cultura os
Movimentos Sociais evoluem e se transformam ao longo do tempo refletindo as relações
econômicas e políticas da sociedade no momento em que vivem. Para GOHN268, esses
movimentos embora tenham uma definição ampla podem ser compreendidos em diferentes
segmentos, podendo ser conservadores fundados em fundamentalismos com posturas
reacionárias se opondo a qualquer tipo de mudança ou progressistas, atuando com agendas
emancipatórias focados em desenvolver o empoderamento das pessoas ligadas à localidade.
Neste sentido, os Movimentos Sociais apresentam ações educativas que merecem uma
análise conceitual detalhada, por não se mostrarem comprometidas com a educação voltada
apenas para o mercado de trabalho, mas sobre tudo, com o resgate e construção da cidadania
das pessoas como forma de empoderamento, para que essas possam adquirir mais autonomia
e participação nas instâncias políticas que afetam diretamente suas vidas. Essa perspectiva
educativa é definida por muitos autores como Educação não-formal, e constitui a base do
trabalho de muitos grupos organizados, como os grupos feministas, que se estão focados em
trabalhar o empoderamento político das pessoas.
Educação não-formal é o conceito que busca definir as práticas pedagógicas dos
Movimentos Sociais na atualidade. Nesse texto, a educação não-formal foi utilizada para
refletir o trabalho executado pelo CMV, em direção ao Desenvolvimento Humano e Local a
partir do empoderamento e da cidadania.
Para GOHN269 educação não-formal constitui um processo de aprendizagem em
várias dimensões, aprendizagem política dos direitos individuais enquanto cidadão, a
capacitação para o trabalho por meio da aprendizagem de habilidades e potencialidades,
capacitação para organização das pessoas em torno de objetivos comunitários focados na

267
GOHN, M. G. Teoria de Movimentos Sociais. São Paulo, Edit. Loyola, pg. 22, 2004.
268
___________. Teoria de Movimentos Sociais. São Paulo, Edit. Loyola, pg. 29, 2004.
269
GOHN, M. G. Educação não-formal na pedagogia social. AN. 01, Congresso Internacional de Pedagogia
Social, pg. 03, 2006.
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resolução de problemas coletivos, educação para uma leitura crítica sobre o mundo.
Na Educação não-formal seus objetivos são construídos no processo interativo e tem
como base os princípios de igualdade e justiça social. Neste panorama de comparações fica
destacado que o conceito de educação não-formal tenta balizar as reflexões em torno das
práticas educativas voltadas para o Desenvolvimento Humano e Local, trabalho esse
executado por uma organização de mulheres focada na cidadania, questões que foram
apontadas anteriormente, mas que tem inquietado muitos pesquisadores voltados para pensar
as políticas de desenvolvimento de forma contextualizada aos seus aspectos históricos,
principalmente abordando as questões de gênero que perpassam todos os espaços educativos,
demonstrando a persistência de concepções do masculino e do feminino baseadas em relações
de poder , que hoje afetam diretamente a cidadania das mulheres.
Segundo Scott270 gênero pode ser entendido como relações de poder que perpassam os
papéis sexuais de homens e mulheres. É um ponto a partir do qual é possível compreender as
estruturas de poder em que se organizam os sistemas políticos de várias sociedades. Gênero
nessa concepção circunscreve não só o sistema político, mas que na forma de discurso
perpassa também o econômico, o jurídico e o educativo. É a forma principal de representação
do poder na maioria das sociedades ocidentais. Os sistemas políticos de diferentes sociedades
legitimam e concentram á figura masculina nos espaços de liderança e comando das nações.
Esse processo faz sentido na medida em que é compreendido como meio de consolidação do
poder e de controle da dinâmica social.
Scott271, ao levantar essa perspectiva sobre gênero enquanto identidade em torno da
qual se constitui os mecanismos de poder e controle social do gênero masculino em
detrimento do feminino, abre a possibilidade para questionar a transformação dessas
identidades com relação á realidade atual e o discurso educativo, seja ele, nas suas expressões
formais adotadas pelo Estado, ou informais adquiridos no cotidiano, ou por instituições como
ONGs especificamente as de base feminista que tem trabalhado em favor do desenvolvimento
através de ferramentas educativas.

270
SCOTT, Juan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. 3a edição, S.O.S. Corpo, Recife, Abril, pg.
07, 1996.
271
SCOTT, Juan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. 3a edição, S.O.S. Corpo, Recife, Abril, pg.
08, 1996.
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O AMBIENTE DA PESQUISA E ASPECTOS METODOLÓGICOS

O Centro das Mulheres de Vitória de Santo Antão CMV, é uma associação feminista
localizada na zona da Mata Sul do Estado de Pernambuco. As atividades se iniciaram em
1988, com a criação do departamento Margarida Alves que funcionava dentro do Sindicato
dos trabalhadores rurais, com o objetivo de tratar das questões ligadas saúde da mulher e a
violência de Gênero. Em função da grande demanda de mulheres que trabalhavam nos mais
de 40 engenhos da região e da mobilização do centro.
A pesquisa qualitativa foi utilizada como orientação metodológica para á construção
da pesquisa. Para Minayio (2009), a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de
significados, crenças, valores e atitudes das pessoas como parte da realidade social. É a
perspectiva de pesquisa que valoriza a linguagem e os diferentes sentidos que as pessoas
atribuem as suas experiências cotidianas. A amostra foi composta de 09 jovens e como
instrumento de coleta de dados foram realizadas entrevistas com homens e mulheres, que
passaram pela associação e receberam cursos de formação política sobre relações de gênero,
cidadania, geração de renda, sobre formação de lideranças comunitárias e órgãos de
representação para reivindicação de melhorias de serviços públicos.. Um gravador está sendo
utilizado como meio de registrar as narrativas dos entrevistados a fim de captar através das
suas falas os sentidos que possibilitaram estabelecer a relação entre os trabalhos do CMV e o
Desenvolvimento Local observado a partir do empoderamento político e cidadão.
Pensar em D. L. significa elaborar uma estratégia articulada à própria característica
local, na mobilização da coletividade. A formação política como trabalho educativo se
apresenta como elemento importante para sensibilizar as pessoas aumentando o
empoderamento político e a participação nas decisões locais.
“Já fiz vários cursos pelo centro, sou filho de agricultor, e quando tinha meus 15, 16
anos o centro foi no meu bairro perguntando se eu tinha interesse no curso de
formação, eu fiz e gostei já fiz eu acho que mais de 10 cursos pelo centro, e comecei
um trabalho aqui na comunidade com os jovens daqui, para dar palestras sobre
saúde, direitos, não é muito fácil não, mas agora estou estudando na Escola
agrotécnica e eu e meus amigos estamos pensando em montar uma cooperativa de
mel, o CERTA também nos apoia, vamos ver sic”Leandro 21 anos
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No âmbito da participação política foi observado na fala dos jovens um dado


importante com relação ao empoderamento desse grupo nas decisões locais. Hoje
multiplicadores da formação que receberam junto aos amigos na comunidade onde vivem em
Vitória, mostram iniciativas como a organização do centro comunitário e a mobilização para
organizar uma cooperativa de mel com o apoio do Centro de Tecnologia Alternativa CERTA.

“eu gosto de estudar então quando me chamam eu sempre participo. O que ficou pra
mim mais embaraçado foi quando fui falar na comunidade de sexo e
homossexualidade, e direitos da mulher, tem coisas que é mais complicada de falar.
Mas hoje é mais fácil falar sobre política ,num grupo tem sempre algumas pessoas
interessadas. Conseguimos numa reunião da associação que organizamos fazer um
ofício e levar na prefeitura pra colocar orelhão no bairro e conseguimos Não é fácil
reunir os jovens da minha comunidade pra falar de política que falta as coisas aqui
no bairro e ninguém faz nada” Marisa 20anos

Nesse sentido fica observado na atitude de alguns jovens um interesse por questões
ligadas às políticas públicas e o fornecimento de serviços de comunicação que se mostravam
precários dificultando o acesso da comunidade local, resultando por fim na elaboração de um
documento de reivindicação encaminhado aos órgãos responsáveis como meio de solucionar o
problema.

“Uma das coisas que percebi desde a fundação quando conseguimos fazer uma
grande articulação, com o Centro das Mulheres do Cabo, A associação de mulheres
de Carpina, é que o crescimento do centro depende das articulações que
conseguimos fazer, por que uma grande mobilização dá visibilidade e força ao
nosso trabalho, mostra a importância para a sociedade , assim conseguimos ter mais
respeito até pelos políticos . Agora o que tem sido sempre preocupante pra nós é a
questão do financiamento paras as capacitações, é sempre muito difícil encontrar um
apoio permanente.sic”. Socorro 55 anos sócia fundadora

Conforme o relato é possível destacar que a capacidade de comunicação desenvolvida


pela liderança do centro tem sido um ponto importante na projeção dos e ampliação seus
trabalhos no sentido da visibilidade com o apoio de outras organizações. Esse aspecto pode
sinalizar um ambiente favorável ao Desenvolvimento Local em sua concepção atual no
sentido de estabelecer uma rede de comunicação horizontal através de relações mais
solidárias.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O acompanhamento dos trabalhos do centro conduziu algumas reflexões em torno do


D.L. tendo como motivador as relações de empoderamento que são sinalizadas pelo grupo
pesquisado na comunidade onde vivem. Um estímulo nítido observado nos trechos acima de
alguns jovens, homens e mulheres ligados aos trabalhos do CMV mostram um envolvimento
maior com a educação formal, alguns deles ingressaram no ensino superior e dão
continuidade aos estudos. Esses dados apontam vetores para o D. L. na medida em algumas
meninas também acompanhadas pelo CMV, hoje trabalham como Agente de Saúde prestam
serviços à comunidade e funcionam como multiplicadoras de formação política nas Escolas
do Município.
Também foram observados indicadores de empoderamento em algumas iniciativas de
organização dos jovens fundamentada numa certa coerência política sobre o que estão
fazendo, e qual o objetivo que buscam alcançar com a mobilização que eles organizam. Essa
coerência se expressa nas falas, que revelam noções de direitos, ideias sobre a obrigação do
poder público e do orçamento destinado para investir na educação e outras áreas do
município. Entre algumas reivindicações organizadas se destacam as que foram destinadas a
melhoria nos serviço de comunicação da localidade, a liberação de verbas já orçadas para
cumprir o asfalto de algumas ruas e a mobilização na Câmera Municipal para discutir o as
políticas da juventude, que constitui uma proposta do governo federal integrada aos Estados e
Municípios. Entre os itens dessa proposta está o investimento na educação que estava sendo
cobrado. Nessa ação, foram adquiridas algumas mudanças como à reforma da estrutura física
em duas Escolas do Município e a complementação do quadro de professores que até então
estava defasada.
Esses dados, junto à capacidade de articulação e de comunicação que o CMV vem
apresentado no decorrer de sua história, têm demonstrado uma forte capacidade de alavancar
iniciativas para o Desenvolvimento Local. No entanto, o financiamento tem sido um problema
constante e que atrapalha o andamento de alguns projetos. Os recursos vêm de organizações
internacionais e em alguns casos do governo do Estado, porem, com limitações grandes em
relação aos valores e tempo de apoio ao trabalho. Desse modo é preciso chamar a atenção de
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que os trabalhos de grupos organizados como ferramenta para o D.L. precisam de um suporte
permanente do poder público para que suas ações possam ter continuidade e com isso gerar
mais resultados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRANCO, Augusto de. Pobreza e Desenvolvimento Local = pobreza e desarrollo local.


Tradução Maria Mercedes. Brasília, Edit. Arca, Sociedade do Conhecimento, 2002.
GOHN, M. G. Educação não-formal na pedagogia social. AN.01, Congresso Internacional
de Pedagogia Social, São Paulo,2006.
___________. Teoria de Movimentos Sociais. São Paulo, Editora Loyola, 2004.
ROSSI, Rodrigo. Horochovski. Problematizando o empoderamento, Tese de Doutorado
apresentada a Universidade Federal do Paraná-UFPR, Paraná, 2005.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais. 3 ed. Cortez , São
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SCOTT, Juan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. 3a edição, S.O.S. Corpo,
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SILVA, Tomas Tadeu, (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 2000.
TAVARES, Jorge (org.).; SOUZA, Josenildo de; Extensão Rural e Desenvolvimento
Sustentável. Recife, Editora Bagaço, Pernambuco, 2003.
VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização, São Paulo, Editora Record, 1997.

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CRECHE PÚBLICA: LUTA DAS MULHERES QUE NÃO PODE SER ESQUECIDA

Mara Tereza Oliveira de Assis | maratsocial@gmail.com


Michelle Rabelo de Souza
Mirella Cristina Xavier Gomes da Silva Lauschner

INTRODUÇÃO

A luta por creches no Brasil teve seu apogeu com o Movimento de luta por creche
que levantou uma das primeiras bandeiras do movimento feminista retomada em 1975, com
essa bandeira em defesa dos direitos das mulheres visava-se reconhecer uma necessidade
social. As mulheres trabalhadoras eram o alvo das organizações feministas em suas
reivindicações por creche, que promoviam a organização social dessas mulheres a partir dos
moradores dos bairros, convocando as mulheres trabalhadoras a manifestarem suas
necessidades de creche para o Estado, que insistia em não ver.
Essa luta ganhou espaço e se concretizou com “as novas políticas sociais do Estado
globalizado que priorizam processos de inclusão social de setores e camadas tidas como
‘vulneráveis ou excluídas’ de condições socioeconômicas ou direitos culturais” Gohn (2010,
p. 20), Dentre essas camadas de excluídos estavam às mulheres que ao longo dos anos foram
usurpadas em seus direitos, especialmente no que diz respeito à política de creche como
auxílio no cuidado de seus filhos e filhas. Posteriormente, essa conquista se ampliou e se
firmou ainda mais com a Creche sendo reconhecida como Política Publica de Educação por
meio da LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº9.394/96.
Esse reconhecimento garantiu direitos educacionais às crianças e deixou em segundo
plano uma luta árdua das mulheres que não pode ser esquecida. Desse modo, procuramos
regatar essa bandeira de luta, reafirmando o empenho das mulheres antes da efetivação dessa

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política publica e depois, para que a creche não seja apenas utilizada como bandeira política
para angariar votos, ou que seja lembrada somente como um direito educacional das crianças,
mas que represente realmente a conquista de direitos das mulheres, reconhecendo seu
engajamento e luta para a efetivação dessa Política Pública, sendo esse um dever moral para
o reconhecimento e efetivação das creches no Brasil.

A LUTA POR CRECHES NO BRASIL: UMA LONGA CAMINHADA


O processo de expansão das creches e pré-escolas tem seus marcos nos fins da década
de 60 na América do Norte e Europa. No Brasil, a discussão toma corpo com o movimento
feminista a partir da década de 70, sendo inserida no tema da Educação Infantil com a
Constituição de 1988. Em Manaus, a expressão dessa luta se afirma com o Movimento de
Luta por Creche (MLC) no Distrito Industrial, encabeçado pelas mulheres. Ghon, (2010)
destaca que estamos diante da ação de um grupo, enquanto ator coletivo, que expressa suas
necessidades coletivamente.
No Brasil as reivindicações por creche são provenientes da organização das mulheres
trabalhadoras das periferias de São Paulo, cuja organização demonstra que sua consciência de
classe expressa-se num pensar coletivo que, conforme explica Thompson (1987), é resultado
de experiências comuns construídas pelos sujeitos históricos e processadas nas relações de
produção e reprodução cultural destes sujeitos. A partir de necessidades coletivas as mulheres
se articularam para propugnar seus direitos sociais.
No entanto, a política de creche não saiu plenamente do papel. Seu atendimento ficou
restrito a uma parcela ínfima da população feminina que dela necessita, só sendo reabilitada
recentemente no Governo da Presidenta Dilma Rousseff, que reconheceu a luta das mulheres
e a necessidade de efetivação e ampliação da política de creche, compreendendo-a como
direito das mulheres trabalhadoras, sendo essa uma questão de gênero.
A política de gênero esteve sempre voltada para o reconhecimento do sujeito mulher na
sociedade e suas demandas sociais. Esta perspectiva constituiu-se no pano de fundo para a
fundação da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher no ano de 1920. Essa luta se
ampliou, segundo Caldas (1997), em favor da “cidadania plena” com uma organização mais
efetiva por parte das mulheres.
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O movimento feminista no Brasil foi aos poucos e às “duras penas” conquistando seu
espaço. Em 1975 com o Ano Internacional da Mulher decretado pela ONU tomou novo
fôlego, momento em que as mulheres reivindicavam liberdade e autonomia sobre seus corpos
na medida em que surgia a pílula anticoncepcional. Segundo Caldas (1997, p.437).
O movimento de mulheres sempre buscou fazer com que o Estado reconhecesse as
suas especificidades na elaboração de políticas públicas que viessem ao encontro de
suas necessidades, por exemplo: creche, auxílio maternidade, licença maternidade,
serviços de saúde, reconhecimento de sua dupla jornada de trabalho, entre outros.

As muitas lutas encampadas pelo movimento feminista procuraram trazer à tona as


inúmeras dificuldades vividas pelas mulheres, quer no âmbito privado do lar ou público,
sendo necessário o reconhecimento de suas especificidades. No Brasil o feminismo tem seus
marcos com a Proclamação da República e a promulgação da Constituição de 1891 que, em
seu Art. 72, estabelecia o sufrágio universal para todos os brasileiros, colocando-os todos,
homens e mulheres em “pé de” igualdade perante a lei, dando margem a inúmeras
interpretações.
O movimento feminista brasileiro tem seu início com as reivindicações em favor do
direito à educação e posteriormente em favor do direito ao voto. Em 1975 ressurge o novo
movimento feminista como um instrumento importante para discutir o papel da mulher na
sociedade sob uma nova ótica, visibilizando-a como sujeito histórico. Ultrapassavam-se assim
as limitações impostas pela ditadura militar que coibia a participação mais efetiva das
mulheres em órgãos de visibilidade e com a criação do Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher, articulado com as feministas do PMDB – Partido do Movimento Democrático
Brasileiro, cujo presidente era Tancredo Neves. Este conselho criou um organismo de Estado
responsável por elaborar e propor políticas públicas específicas para as mulheres. Este
organismo foi desarticulado no governo de Collor de Mello.
Com essa desarticulação ocorreu uma retração do movimento feminista que perdeu
visibilidade diante da mídia, mas não sua extinção, pois ele ganhou novas feições com
engajamento de mulheres dos diversos setores populares que construíram progressivamente
uma consciência de gênero que traz recortes de classe e de raça. (MOTA, 1991). O
movimento feminista no Brasil contou com uma participação crescente de mulheres de

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diferentes setores e segmentos, “abrindo novos campos como é o caso da luta por creches, da
luta contra a violência à mulher, dos programas e práticas de saúde da mulher” (BRANDÃO e
BINGEMER. 1994 p.108).Essas novas vertentes de luta deram aos movimentos sociais novas
características, levando-os a se reorganizar e assumir uma nova racionalização e método de
atuação.
Bruschini (1990, p.15) ressalta a importância dos estudos de gênero especialmente no
que diz respeito aos papéis das mulheres trabalhadoras com sua participação mais efetiva no
mundo do trabalho, fortalecendo nossa convicção de que as mulheres contribuem socialmente
para o desenvolvimento do país e sua luta nos movimentos de mulheres são necessárias para o
seu fortalecimento.
É nesse contexto de luta por direitos que as mulheres inseridas nos diversos
movimentos sociais como associação de pais e mestres; clube de mães; associações de
bairros; pastorais da igreja passam a se reconhecer enquanto sujeitos políticos capazes de
interferir nos rumos da história.
A história das mulheres, sua luta por direitos e cidadania é fator crucial para o
reconhecimento do sujeito feminino. Muitas de suas conquistas e participação social é
ocultada pela história oficial que por vezes insiste em deixar no esquecimento, impondo um
silêncio que amordaça e “a impossibilidade de falar de si mesma acaba por abolir o seu
próprio ser, ou ao menos o que se pode saber dele” (PERROT 2005, p.10). É preciso
romper com a mordaça da exclusão social que silenciou muitas mulheres e as manteve cativas
dentro dos lares. Reconhecer essa luta é um dever de todos.

OS REFLEXOS DA LUTA PELA POLÍTICA PÚBLICA DE CRECHE EM ALGUNS


ESTADOS
A luta das mulheres por creches teve repercussão em vários Estados e Municípios que
serviram de inspiração para a organização e luta dos movimentos sociais em busca da
efetivação dessa Política Pública. E o movimento feminista retoma a luta pra valer a partir do
ano de 1975 incorporando novas dinâmicas sociais iniciadas numa perspectiva internacional.
E conforme apontam Brandão e Bingemer (1994 p.118/119).

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A presença mais marcante de mulheres no mercado de trabalho, sua situação


discriminada e, principalmente, as dificuldades que são forçadas a enfrentar para
conciliar responsabilidades familiares e profissionais - fato que se agudiza pela
intensificação do ingresso de casadas e mães no mercado -, tem estimulado uma
relativa organização das trabalhadoras, visando pressionar o Estado para a adoção de
políticas públicas e lutar por uma legislação mais compatível com a realidade vivida
pelas famílias brasileiras.

O ano de 1975 é emblemático para a retomada da luta do feminismo porque foi o Ano
Internacional da Mulher decretado pela ONU. Nesse processo veio a público através da mídia
temas como o divórcio, aborto e mercado de trabalho para as mulheres, o que facilitou a
reabilitação do movimento feminista na cena brasileira (TORRES, 2005).
Em 1979 ocorre o Primeiro Congresso de Mulheres Paulistas no qual são tratados
assuntos diversos relacionados aos interesses das mulheres fazendo surgir oficialmente o
MLC - Movimento de Luta por Creche. Essa organização, segundo Costa (1995), contribuiu
para o fazer-se classe, para a construção coletiva, a luta autônoma e as mobilizações dos
trabalhadores. Homens e mulheres da região industrial se constituíram em espaços educativos
e formadores da compreensão social, demonstrando a relevância da iniciativa popular mesmo
frente às dificuldades impostas na construção das políticas públicas.
A criação do MLC272 no Brasil se dá incialmente na cidade de São Paulo onde a
indústria necessitava da mão de obra feminina e, ao se inserir no mercado de trabalho, as
mulheres mães não tinham onde deixar seus filhos. É assim que também elas passam a se
organizar para reivindicar melhorias na condição de vida, e através das pequenas associações
e organizações passam a pressionar o poder público para que o mesmo possa prover suas
necessidades básicas.
Nesse período a creche não era vista como direito e sim como uma forma de
assistência às mães trabalhadoras para que elas não abandonassem seus filhos, para eles não
ficarem sozinhos em casa e viessem a sofrer acidentes e danos irreparáveis,
As primeiras creches municipais foram criadas pela Prefeitura, que cuidou ainda de

272
O Movimento de Luta por Creches se gestou na luta contra a ditadura militar dos anos de 1970 junto aos
movimentos populares urbanos intensificando a reivindicação de creches como direito das trabalhadoras e dever
do Estado essa luta teve seu ponto central de organização na cidade de São Paulo em 1979, como resolução do 1º
Congresso da Mulher Paulista. O MLC conseguiu integrar feministas de diversas tendências, grupos de mulheres
associados ou não à Igreja Católica, aos partidos políticos legais ou clandestinos, grupos independentes de
moradores que reivindicavam o direito à creche nos bairros, sendo este movimento um importante ponto de
articulação para o movimento feminista no Brasil.
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garantir parte de sua manutenção, mas foram assumidas por entidade particulares
para seu gerenciamento. [...] implementava-se assim uma assessoria técnico
pedagógica ao lado da assessoria técnico-administrativa às creches. Por essas razões
históricas, quando em 1978, a Prefeitura de São Paulo solicitou da Cobes o
atendimento das reivindicações populares, o corpo técnico deste órgão promoveu
uma ampla discussão sobre os aspectos técnicos e políticos desta intervenção. E o
documento “Creche-Programação Básica – 1980” foi uma tentativa de mudança da
visão assistencialista, e das diretrizes de atuação (GAYOTO, 1992, p. 25).

A criação deste documento tinha como propósito a superação da visão assistencialista


da creche cujo resultado na prática não foi atingido e a prestação dos serviços de creche a
partir de 1980 aumentaram devido as constantes reivindicações dos MLCs, fazendo com que
os serviços da Coordenadoria do Bem-Estar Social da Prefeitura de São Paulo passassem a
implantar uma rede de creches municipal.
É preciso reconhecer a creche como um direito da mulher trabalhadora e um direito
educacional da criança e não como uma mera política em favor da liberação da mão de obra
feminina para o mercado industrial. Essa mudança só ocorreu mais tarde com o
estabelecimento da LDB – Lei de Diretrizes e Bases. De acordo com Veiga (2005, p. 20) “é o
momento em que a educação infantil, respeitando o direito da criança preconizado pela
Constituição Federal de 1988, passa, com mais lentidão do que queríamos, para a área da
educação”.
Em Belo horizonte na década de 1979 foi criado o MLPC – Movimento de Luta Pró-
Creche que já no seu início tinha criado 5 (cinco) creches com o auxílio da comunidade,
especialmente contando com a ajuda e coordenação dos clubes de mães. Conforme Veiga
(2005, p. 35) uma liderança comunitária, dona Eva Joana Brás, “conhecendo de perto a
situação das mães que tinham que trabalhar fora para sustentar a família, tendo muitas vezes
que deixar os filhos trancados e sozinhos dentro de suas casas ou mesmo soltos pelas ruas,
propôs a criação de uma creche, com o auxílio da própria comunidade”.
O movimento de luta por creche em Manaus se firmou dentro da pauta de
reivindicação dos trabalhadores operários do Distrito Industrial, portanto, não se deu
especificamente dentro do movimento feminista. De acordo com Torres (2005) ele ocorreu
dentro do movimento sindical mais amplo como uma das bandeiras de luta das mulheres
imiscuída nas demandas dos homens.

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Com a criação do Comitê da Mulher Trabalhadora a luta pela creche também foi
encampada pelos movimentos sociais e populares como um processo coletivo de
reivindicação das demandas de todas as mulheres que não tem com quem deixar seus filhos
quando vão trabalhar. Em Manaus essa luta se fez mais visível a partir da organização do
Comitê da Mulher Universitária que, segundo Caldas (1997, p. 441), “nasceu dentro dos
muros da Universidade Federal do Amazonas no dia 08 de março de 1980”. Mais tarde,
devido a divergências de concepções esse comitê se fragmentou, no entanto, a luta em defesa
dos direitos das mulheres não foi esquecida, apenas tomou novos rumos com a criação de
outras entidades de mulheres, como a Comissão de Mulheres Trabalhadoras Metalúrgicas,
uma espécie de coordenadoria organizada dentro do Sindicato dos Trabalhadores
Metalúrgicos, que representa a voz das mulheres que encamparam as suas demandas dentro
do próprio sindicato.
Essa organização conforme Torres (2005, p.184) tem seu ponto alto “no Encontro da
Mulher Operária de Manaus273 organizado pelas mulheres trabalhadoras da indústria”. A
Comissão das Mulheres Trabalhadoras Metalúrgicas e remanescente do Comitê da Mulher
Trabalhadora que nasceu do anseio das operárias em criar uma forma ou um organismo que
lutasse pela causa das mulheres junto às empresas pelo direito a creche para seus filhos,
ampliação da licença maternidade, equiparação salarial e melhores condições de trabalho.
Elas “colocaram-se à frente das marchas de enfrentamento com a polícia que procurava
desfazer as manifestações por melhorias salariais” (MASSARO e PESSOA, 1995, p.27).
Aos poucos as mulheres foram obtendo conquistas relativas à creche no âmbito da
Convenção Coletiva. E essa bandeira de luta não se restringia somente ao movimento
feminista das mulheres metalúrgicas, mas se ampliava e ganhava adeptos de outras categorias
de mulheres dos diversos segmentos sociais. Na década de 70 os movimentos de luta por
creche se intensificam ainda mais ampliando sua zona de atuação, chegando a mais lugares
como São Paulo, Minas Gerais e Belo Horizonte, ganhando mais visibilidade. As mulheres
tiveram, enfim, sua luta reconhecida com a Constituição de 1988 Art.208 cap. III da

273
O 1º Encontro da Mulher Operária de Manaus foi realizado no dia 07 de março de 1985 e organizado por
Antônia Nascimento Priantes, Cely Aquino, Rosenilda Oliveira da Silva e Izabel Alegria Ramos Feijó, com o
intuito de organização das mulheres no âmbito fabril. (TORRES 2005, p. 184).
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Educação. A Carta Magna que determina como obrigação do Estado o atendimento às


Creches e Pré-escolas para crianças de 0 a 6 anos, ultrapassando assim a atenção destinada
pela CLT às crianças que só visava o atendimento de 0 a 6 meses. A Constituição Federal de
1988 expande essa atenção às crianças até os 6 anos de idade.
A luta das mulheres operárias ganhava força e se fazia cada vez mais necessária,
exigindo delas determinação e altivez, o que não é tarefa fácil. Para Perrot (2005, p.288),
Na cidade, as operárias são duplamente negadas: como mulheres, por serem a
antítese da feminilidade (operária, esta palavra ‘ímpia’, diz Michelet); como
trabalhadoras, pois seus salário estatutariamente inferior ao do homem, é
considerado como um ‘complemento’ ao orçamento da família, que define sua tarefa
e seu destino. Setores produtivos inteiros lhes são fechados. E no século 20, a
identidade operária se constrói segundo o modo da virilidade, tanto no nível do
cotidiano e do privado, quanto do público e do político.

Embora haja garantia de creche de maneira formal na CF de 1988 ainda há muito o


que fazer e a luta pela efetivação da política pública de creche continua nos dias atuais,
embora de forma mais branda no Governo da Presidenta Dilma Rousseff, pois a política de
creche em seu governo tem sido um ponto prioritário com investimentos para ampliar os
aparelhos e os programas educacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A luta das mulheres pela creche ainda está ocorrendo em todo o Brasil, quer nas
grandes capitais como nas pequenas cidades, são mulheres operárias, donas de casa,
intelectuais, trabalhadoras ou políticas que vão tomando consciência de seu papel social
enquanto mulheres, sujeitos de direitos, se empoderando e empunhando as bandeiras de luta
por direitos iguais. Se os direitos não se igualam, há que se buscar meios para mantê-los em
“pé de igualdade” e por isso a luta se amplia.
As conquistas aconteceram e esperamos que continuem, pois mesmo hoje sendo
reconhecida como uma política pública pela Constituição Federal de 1988 e ratificada como
política educacional na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a creche pública ainda se
mostra como um vir a ser para a grande maioria da população que dela necessita.
As conquistas dos movimentos sociais e comunitários foram visíveis, saíram dos
espaços privados e passaram a atuar mais intensamente nos espaços públicos, tratando temas

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só antes debatidos na esfera privada, ultrapassando barreiras impostas socialmente e o


movimento feminista teve parcela de contribuição importante para essas conquistas e
visibilidades, vencendo assim o preconceito social que fora imposto às mulheres pela
sociedade.
Para vencer essa visão deturpada que a sociedade machista ainda reflete, é preciso
organização, força e muita determinação. Assim, a luta das mulheres por suas conquistas
continuaram, e nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff a postura
endurecida do Governo em relação aos movimentos sociais e sindicais se mostrou mais
maleável, pois começam a fazer parte do Governo membros desses movimentos.
Contudo, alguns se corromperam e se afastaram de seus ideais, no entanto, percebe-se
que a presença desses movimentos junto ao governo foram fundamentais para o
fortalecimento da governabilidade e legitimidade, estando assim como representantes diretos
do povo dentro do governo. Desse modo, a bandeira de luta da Creche tem se mantido
erguida, mesmo diante das inúmeras dificuldades impostas às mulheres. Neste atual governo
da Presidenta Dilma, após reivindicações e lutas, a creche tem merecido lugar de destaque na
pauta das políticas públicas, haja vista os investimentos feitos pelo Governo Federal com
vistas à ampliação do quadro de creches em todo o país.
É preciso que a luta por creches seja vista e lembrada como uma conquista árdua das
mulheres, que não desistem diante das dificuldades impostas, que vão à luta e encaram os
problemas, pois o que percebemos é que mesmo a Presidente Dilma Rousseff afirmando que a
creche é uma conquista das mulheres, essa verdade está encoberta pelo direito à educação das
crianças, ou na melhor das hipóteses em segundo plano. Mas se perguntarmos a uma mulher
trabalhadora a quem a creche favorece? Ela certamente reconhecerá que primeiro a ela como
trabalhadora mulher e mãe e depois ao seu filho como um direito educacional.
Portanto, que essa luta seja sempre lembrada para reafirmar uma conquista que ainda
se efetiva em nosso País, que continua com sua bandeira hasteada em prol de um direito que
aos poucos esta sendo efetivado, mas que temos ciência que ainda há muito a ser feito para
que se torne um direito reconhecidamente de todos que necessitarem. A creche é o passo
inicial no mundo do saber e ampliar essa luta é abrir portas para o desenvolvimento do pais,
assim como reconhecer o valor de quem primeiro empunhou essa bandeira é reafirmar nossa
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história e desmistificar a falácia de que não temos memória, precisamos reconhecer e


valorizar nossas conquistas.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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gênero [org]. Edições Loyola: São Paulo, 1994.
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cidadão: Associação de Moradores e Movimento de Luta pró-creche, Cidade Industrial
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Mestrado).
GAYOTTO. Maria Leonor Cunha....(et.al.). Creches: desafios e contradições da criação da
criança pequena. – São Paulo: Ícone, 1992.
GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Redes de Mobilizações Civis no Brasil
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PESSOA, Heliana Assunção e MAZZARO, Ana Cláudia Campos. Relatório de Pesquisa: O
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PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história / Michelle Perrot; traduzido
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do Amazonas – EDUA, 2005.


VEIGA, Márcia Moreira. Creches e políticas sociais / Márcia Moreira Veiga. – São Paulo:
Annablume; Belo Horizonte: FUMEC, 2005.

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FEMINISMO NEGRO E AÇÕES POLÍTICAS: O 25 DE JULHO E A MARCHA DAS


MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS (PARAÍBA 2014-2015)

  Janiffer Marianne Xavier Medeiros dos Santos | janifferufpb@hotmail.com

Solange P. da Rocha

INTRODUÇÃO

A referente pesquisa, intitulada O marco 25 de julho na Paraíba: ações, articulações


e contribuições políticas da organização de Mulheres Negras da Paraíba- Bamidelê (1999-
2014) deu seus primeiros passos no Projeto PROLICEN, realizado em 2014, vinculado ao
NEABI, Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-Brasileiros e Indígenas, sob a orientação da
Profa Dra Solange Rocha e o Prof. Dr. Elio Flores Chaves, quando teve como primeiro
resultado parcial a participação no ENID 2014, com o tema A atuação da Bamidelê no 25 de
julho: construção de uma data feminista e negra na Paraíba, sendo este o foco do estudo
apresentado.
É importante analisar de início, como se deu a relação da mulher negra no
movimento feminista - Sobre a criação dos Movimentos feministas de mulheres negras, seus
surgimentos se concretizaram a partir de reivindicações não pautadas ou pautadas
superficialmente no seio do Movimento feminista:

Na década de 1970, as mulheres negras, muitas ativistas de movimentos sociais,


começaram a se inserir no movimento feminista e absorver os conceitos feministas,
mas logo perceberam que as concepções não davam conta das questões
específicas das mulheres negras, especialmente no que diz respeito ao trabalho, à
saúde e a educação. Contudo, o movimento feminista não considerava em seu
discurso as diferenças existentes entre as mulheres, e as categorias de raça, classe,
etnia e orientação sexual não eram inseridas. Portanto, o movimento feminista
afirmava que as mulheres estariam unidas em uma só categoria, pois a opressão que
as atingia estava no fato de serem do sexo feminino (ANDRADE, 2012, p. 61).

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É aí que surgem as críticas ao feminismo tradicional, este que propunha uma defesa das
mulheres brancas, de classe média e intelectualizadas. Lélia Gonzales (1935-1994) entra
como importante ativista e intelectual negra neste momento. O Movimento de Mulheres
Negras vai surgir então no Brasil no ano de 1980 (CAVALHO; ROCHA, 2013, p. 5
apud BAIRROS, 1995).
Se no Movimento feminista, questões importantes eram colocadas de lado,
estabelecendo uma unidade identitária, sem levar a luta antiracial e demais questões
que não atendiam aos apelos de lutas da categoria de mulheres negras, no MNU-

Movimento Negro Unificado3, a luta pelo fim do patriarcado, com séculos de opressão sobre
as mulheres negras, assim como outras questões de gênero eram colocados em segundo
plano, e muitas vezes práticas machistas eram vistas dentro do movimento MNU
(SANTOS, 2014, p.
173-174). No artigo intitulado Gênero, História das mulheres e História Social, Louise A.
Tilly (1994) demonstrará as disparidades e peculiaridades que cercam as mulheres,
devendo ser primordiais para construção não só estudos voltados para as mesmas, mas
trazidos no seio dos movimentos sociais:

Ainda que definidas pelo sexo, as mulheres são algo mais do que categoria
biológica; elas existem socialmente e compreendem pessoas do sexo feminino de
diferentes idades, de diferentes situações familiares, pertencentes a diferentes
classes sociais, nações e comunidades; suas vidas são modeladas por diferentes
regras sociais e costumes, em um meio no qual se configuram crenças e opiniões
decorrentes de estruturas de poder (TILLY, 1994, p. 31).

De fulcral importância, o contexto histórico e o protagonismo das mulheres negras


não se configuraram apenas ao movimento feminista contemporâneo. É de imensurável
importância evidenciar a resistência, ousadia e sagacidade das mulheres negras
escravizadas, libertas e livres no contexto colonial (ROCHA, 2012, p 45).
Inúmeros espaços de resistência foram, ao longo da história, nichos de reuniões e
fortalecimento da afirmação da afroancestralidade:
As mulheres negras estiveram presentes em diversos movimentos e formas
associativas, seja nas irmandades, nas comunidades, nas religiões de matrizes
africanas, na igreja católica, na protestante, nas associações de moradores, nos
movimentos de favela, estudantil, feminista, negro, sindicatos e partidos políticos.
Essa experiência organizativa constitui o caminho trilhado pelas mulheres negras
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ao longo da história, desde a resistência à escravidão (ALMEIDA de, 2014, p. 108).

Então desde os anos 1980 as mulheres de movimentos sociais negros desenvolvem


pesquisas voltadas para a temática destas disparidades étnicas. “O surgimento do Movimento
de Mulheres Negras no final de 1980 marcou uma nova fase de ativismo político que
começou a superar as lutas por justiça racial e de gênero no Brasil” (CALDWELL, 2014, p.
93). É possível observar que as organizações não governamentais fundadas de 1980 para
1990 de mulheres negras estão localizadas no sul e sudeste, pode-se observar que no
nordeste não tempos exemplos de criação dessas organizações, o que se mostra como
necessidade (CALDWELL, 2014, p. 96).

As ativistas dessas organizações têm promovido uma maior consciência das


especificidades das experiências das mulheres negras em relação à saúde,
chamando a atenção para as maneiras pelas quais a questões de gênero, étnico-
raciais, e a dinâmica de classes formam modelos de doença e de bem-estar no
Brasil, bem como o acesso à qualidade de vida (CALDWELL, 2014, p. 96).

Nos anos 1990 aparecem as organizações transnacionais, com o primeiro e o


segundo Encontro Afro-Latino-Americano e Afro-Caribenho de Mulheres, 1992 e 1995
(CALDWELL, 2014, p. 97). Essas participações aumentaram, segundo a autora, a
visibilidade das mulheres e influenciaram bastante no Brasil para diminuir as disparidades.
Por exemplo, para entendermos essa importância, “A Articulação de Organizações de
Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) foi formada durante o processo preparatório para a III
Conferência Mundial contra o Racismo” (CALDWELL, 2014, p. 98). A organização foco
deste estudo, Bamidelê, faz parte da AMNB e participou da coordenação colegiada, junto a
outras organizações, entre 2006-2008 (CARVALHO; ROCHA, 2013, p. 9).
Rayssa Andrade Carvalho, em seu recente artigo publicado em 2014, consultou o
acervo da OMN/PB Bamidelê:

Dessa forma a organização de feministas negras na Paraíba atua, há mais de uma


década, com o objetivo de empoderar mulheres e jovens negras paraibanas,
para que estas ajam, de forma autônoma, na efetivação dos seus direitos,
principalmente, os direitos fundamentais que são negligenciados, pelo poder
público, a esses sujeitos. Portanto, a organização trabalhou sob a perspectiva de
capacitar, formar e informar as mulheres e jovens negras sobre “questões relativas
à saúde e direitos reproduzidos, identidade étnico-racial, auto-estima e direitos
humanos, temas fundamentais para a luta contra o racismo e o sexismo”
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(Relatório, BAMIDELÊ – OMN/PB, 2003, p.2 apud CARVALHO; ROCHA,


2014, p. 5).

Formada em 2001, a Bamidelê incorporou em seu calendário o 25 de julho como uma


das inúmeras estratégias para enaltecer e sinalizar a atuações, lutas e tais reivindicações
vistas acima. O 25 de julho gradualmente se firmará no cenário paraibano e será um
ensejador de tais ações.

Antes de tudo, a motivação que levou a pesquisa histórica presente, trajetória, luta e
protagonismo das mulheres negras na Paraíba, se deu pelo sentimento de pertencer a este
grupo social. O reconhecimento da identidade afrodescendente, da necessidade e importância
das reivindicações que o feminismo negro traz, pelo fim do patriarcado e da discriminação
racial ensejaram-me a atuar neste campo de luta social que compete a todas mulheres e
negras inseridas neste contexto. Apesar deste sentimento de pertencimento, se faz necessário
um olhar crítico sobre a Bamidelê. No que concerne aos termos de uma pesquisa,
percebe-se que, desde os anos de 1980, as mulheres dos movimentos sociais negros
desenvolvem trabalhos voltados para a temática das disparidades étnicas. “O
surgimento do movimento de mulheres negras no final de 1980 marcou uma nova fase de
ativismo político que começou a superar as lutas por justiça racial e de gênero no Brasil”
(CALDWELL, 2014, p. 93). É possível observar que as organizações não governamentais,
fundadas de 1980 para 1990, de mulheres negras, estão localizadas no Sul e Sudeste,
verificando-se que o Nordeste não apresentou atuações institucionais durante este período
(CALDWELL, 2014, p. 96).
Nesse sentido, com este estudo, pretendemos analisar a atuação e participação do
Comitê Impulsor Paraibano da Marcha das Mulheres Negras 2015, evento que ocorrerá no
dia 18 de novembro de 2015, em Brasília. Buscaremos, assim, evidenciar a construção do I
Encontro Paraibano de Mulheres Negras, realizado em João Pessoa/PB, entendendo as
articulações e ações políticas e ideológicas ocorridas no Encontro alusivo a data de
celebração das Mulheres Afro-americanas e caribenhas, a divulgação e ampliação da Marcha
Nacional das Mulheres Negras, tema principal que motivou o Encontro além de evidenciar as
estratégias realizadas no Encontro.
Através de um estudo etnográfico referente ao evento foi possível observar estas
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ações: A Marcha Nacional das Mulheres Negras foi o tema principal do pioneiro Encontro
Estadual de Mulheres Negras. Importantes lideranças negras feministas presentes como Vera
Regina Paula Baroni, Coordenadora da ANMB - Articulação Nacional de Mulheres Negras
Brasileiras, Advogada (UNICAP) com especialidade em Direitos Humanos (UFPB) e Saúde
Coletiva (UFBA) Coordenadora Geral da UIALA MUKAJI- Sociedade das Mulheres
Negras de Pernambuco e integrante da Coordenação Executiva Colegiada da Rede das
Mulheres de Terreiro de Pernambuco, que trouxe a no primeiro dia do Encontro a História e
trajetória do feminismo negro no Brasil, além da origem e articulações no construção da
Marcha Nacional das Mulheres Negras, evento idealizado em 2013, pela também
coordenadora da ANMB e militante negra Raimunda Nilma de Melo Bentes. Em resumida
explanação, vera Baroni explicou detalhes importantes como a meta inicial e questionada de
colocar nas ruas 100 mil mulheres negras e alguns objetos sugestionados pela ANMB que
posteriormente foram revisados: entender as demandas gerais, isto é, nacionais que envolvem
a população negra brasileira, em especial, as mulheres negras mas visando os desafios locais,
específicos de cada estado. Assim, a ampliação da Marcha com as articulações de todos os
estados foram gradualmente visibilizando-a e logo sua data foi alterada, explicou Vera
Baroni, devido a necessidade de maior ampliação de fortalecimento dos Comitês estaduais. A
data inicial da Marcha, 13 de maio foi alterada para 18 de novembro (Semana da Consciência
Negra) pelo Comitê Impulsor Nacional da Marcha das Mulheres Negras em reuniões no
início do ano de 2015, em Brasília, nos dias 10 e 11 de janeiro.
Além de um breve histórico sobre a luta e protagonismo do feminismo negro nacional,
Vera relembrou o caso de violência ocorrido no bairro Cabula, Salvador, que culminou no
assassinato de 12 jovens negros, mortos por policiais militares do estado. Com a absorção de
todos os policiais envolvidos nas mortes, evidenciando do descaso e a impunidade brasileira
com assuntos que envolvem racismo e opressão da polícia militar.
O Encontro buscou enfatizar os objetivos da Marcha. Amplamente discutidos e apresentados
de maneiras: lúdicas, reflexivas por meio de oficinas teóricas e práticas, palestras e
apresentações culturais. Além da importância em si como o primeiro Encontro a nível
estadual e regional, o evento também foi um canalizador de divulgação e chamada para a
Marcha nacional, sempre enaltecendo a importância da participação das negras paraibanas e
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residentes no estado: Paraíba Rumo à Marcha. As oficinas teóricas foram elaboradas para
contemplar todos os grupos e enfrentamentos diários e que as mulheres negras estão inseridas
e enfrentam. Saúde da Mulher negra; Intolerância Religiosa; A Mulher negra no Mercado de
Trabalho; Mulher negra e Educação- Aplicação da lei 10.639/2003 foram os temas levantados
no Encontro. Além das oficinas teóricas que objetivavam o empoderamento, e formação
política, realizadas no segundo dia do Encontro, 01 de agosto, no posterior e último dia foram
oferecidas oficinas práticas visando trabalhar a autoestima, a estética e identidade negra como
a Oficina de Maquiagem Negra, Danças Afros, Tranças nagô e Turbantes.
Além da participação da Vera Beroni como representação Nacional da Marcha das
Mulheres Negras, a profa. Dra. Ivonildes Fonseca, diretora da Bamidelê e do Comitê
Impulsor da Marcha das Mulheres Negras facilitou o Encontro apresentando todos os objetos
e desafios que serão apresentados junto a Brasília durante a realização da Marcha. Entre os
principais estão a violência doméstica nos núcleos familiares, quando se observa que a
maioria das vítimas são mulheres negras; os inúmeros casos de racismo nos hospitais
públicos e privados, quando as mulheres negras são destinadas a sentirem mais dores que
mulheres brancas nos partos e não recebem tratamento e atenção dignos; os inúmeros casos
na Paraíba de racismo ambiental e intolerância religiosa com a invasões de terreiros situados
em Cabedelo, Campina Grande e João Pessoa e a importância de resgatar e respeitar a
Cultura afro-indígena presente na Jurema Sagrada que tem como berço Alhandra, localizada
na Paraíba; o Genocídio da População Negra Pobre no estado da Paraíba, com destaque para
a cidade de Santa Rita que se encontra no ranking do Mapa da Violência.
Priscila Estevão, integrante da Bamidelê e coordenadora da FOJUNE-PB falou contra
o extermínio da juventude negra - João Pessoa / Paraíba. Priscila explicou a importância de
denunciar o alvo principal do extermínio através da Marcha que terá grande repercussão e
notoriedade. O genocídio não seria uma questão apenas social, mas sim racial no Brasil. Do
total de 56.337 homicídios ocorridos no Brasil em 2012, 57,6% tiveram com vítimas jovens
com idade entre 15 a 29 anos. Destes, 93,3% eram homens e 77%, negros. Todas as mães,
irmãs, tias, primas, companheiras e amigas negras sofrem com o genocídio e naturalização
dessas mortes ocorridas nas periferias e espaços majoritariamente ocupados por negros e
negras.
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O encerramento do Encontro que se deu no domingo (2) e tinha a expectativa de


reunir 100 mulheres. Muito além de sua alusão em Celebrar o Dia das Mulheres Negras da
América Latina e do Caribe, comemorado no dia 25 de julho o Encontro foi uma grande
atividade preparatória para formação de uma delegação que contemple o maior número de
mulheres negras do estado da Paraíba. O número de participantes ultrapassou as expectativas.
Durante o Encontro do ainda lembrado que, no Brasil, a partir de 2014 esta data também foi
instituída como Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.
Com pouco menos de duas décadas de atuação da Organização, a relevância
deste trabalho se ergue para contribuir com uma temática pouco explorada no seio
acadêmico, tendo em vista poucas produções disponíveis sobre a temática abordada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sobre os resultados que esta pesquisa almejou, buscou-se interpretar e investigar as


comemorações do 25 de julho na Paraíba, a atuação do Comitê Impulsor da Marcha das
mulheres Negras Paraibanas além do processo de construção e da Marcha das Mulheres
Negras que se realizará em novembro do presente ano que, certamente, se tornará assim
como o 25 de julho mais um de âmbito de impacto não só a nível nacional, e internacional ,
mas também não menos importante, de impacto local, visto as inúmeras oficinas,
conferências e intervenções articuladas para a construção da Marcha. Foram
examinadas as fontes primárias e secundárias, as narrativas das feministas negras e seus
empenhos, para a construção de um estudo que referencie o Dia Internacional das mulheres
negras da América latina e do Caribe e seus efeitos no território paraibano. Além disso,
buscou-se evidenciar o movimento no estado da Paraíba, referente ao I Encontro de Mulheres
Negras e sua importância como um chamado/preparação para a Marcha Nacional, na
perspectiva de que a Marcha será para além de novembro de 2015.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa: Editora


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GÊNERO E AÇÃO COLETIVA: REPENSANDO A PRESENÇA DAS MULHERES


NOS MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS

Emilayne Souto | emilaynesouto@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Tomando como ponto de partida que problemas sociais e pesquisas sociológicas são
retroalimentados, justifica-se a existência dos diversos paradigmas nos estudos dos
movimentos sociais e como eles têm se superado e se renovado. A pergunta “De onde vêm os
movimentos sociais e como eles são formados?” pode ser preenchida com um amplo leque de
perspectivas teóricas. Assim, há o paradigma da Mobilização de Recursos – com a perspectiva
de construção de estratégias -, o paradigma da Mobilização Política – com a perspectiva de
estruturas de oportunidades políticas -, e o paradigma dos Novos Movimentos Sociais – com a
perspectiva de construção de identidades274. Dentre esses paradigmas, percebe-se a oscilação
da categoria movimentos sociais entre processos de determinação econômica e a
fundamentação da cultura na constituição de sujeitos históricos.
Às teorias dos Novos Movimentos Sociais, associam-se os nomes de Alain Touraine,
Jurgen Habermas, Alberto Melucci, Claus Offe, Manuel Castells. Embora não constituam
uma escola de pensamento, todos estes autores se apresentam como

críticos da ortodoxia marxista, mas mantêm o enquadramento macro-histórico e a


associação entre mudança social e formas de conflitos. Nisso não diferem da Teoria
da Mobilização Política. A especificidade está em produzir uma interpretação
efetivamente cultural para os Movimentos Sociais (ALONSO, 2009, p.59).

Segundo Gohn (1997), como características gerais das teorias dos Novos Movimentos

274
Para Inglehart (1971), esses movimentos se diferenciam pela ênfase nas demandas “pós-materialistas”, no
sentido em que, organizados por jovens, mulheres, estudantes, de classe média, demandavam não apenas
melhores condições de vida ou redistribuição de recursos, mas afirmação e reconhecimento dos seus diferentes
modos de vida (ALONSO, 2009, p.50).
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Sociais, tem-se o enfoque nos estudos de cultura, ideologia, lutas sociais cotidianas,
solidariedade e processos de formação de identidade. Para estes autores, os movimentos
sociais são capazes de institucionalizar práticas sociais e modificar a linguagem cultural de
sua época, na medida em que representam e lutam por transformações culturais. Tanto para
Melucci (1987) quanto para Touraine (1987), os movimentos sociais não devem ser
considerados como simples respostas a uma determinada crise. Como “profetas do presente”,
eles revelam, antes de tudo, conflitos sociais. Nessa mesma linha, seguem os teóricos
contemporâneos Manuel Castells e Axel Honneth. Para ambos, o conflito está na base dos
movimentos sociais, é sua mola propulsora. Como aponta Gohn (2011), esses novos
movimentos sociais se apresentam assim como agentes de novos conflitos e renovação das
lutas sociais coletivas.
Dentro dos estudos dos movimentos sociais, Castells e Honneth se destacam pelo
enfoque da dimensão individual, da ação social moldada pelas experiências corporais e
afetivas. Diferentemente das teorias utilitaristas (Mobilização de Recursos e Mobilização
Política), ambos contribuem para a discussão dos movimentos sociais contemporâneos ao
demonstrarem a importância das experiências individuais para a mobilização social dentro de
uma sociedade injusta e não democrática. Sobre os movimentos sociais na
contemporaneidade, Gohn salienta que

há um novo cenário neste milênio: novos tipos de movimentos, novas demandas,


novas identidades, novos repertórios. Proliferam movimentos multi e pluriclassistas.
Surgiram movimentos que ultrapassam as fronteiras da nação, são transnacionais,
como o já citado movimento alter ou antiglobalização. Mas também emergiram com
força movimentos com demandas seculares como a terra, para produzir (MST) ou
para viver seu modo de vida (indígenas). Movimentos identitários, reivindicatórios
de direitos culturais que lutam pelas diferenças: étnicas, culturais, religiosas, de
nacionalidades etc. Movimentos comunitários de base, amalgamados por ideias e
ideologias, foram enfraquecidos pelas novas formas de se fazer política,
especialmente pelas novas estratégias dos governos, em todos os níveis da
administração. Novos movimentos comunitaristas surgiram – alguns recriando
formas tradicionais de relações de autoajuda; outros organizados de cima para baixo,
em função de programas e projetos sociais estimulados por políticas sociais (GOHN,
2011, p.344).

Há ainda os movimentos sociais em torno da questão urbana (o Ocupe Porto do Capim


pode assim ser considerado), movimentos por moradia, movimentos contra a violência,

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mobilizações em torno da modernização e da expansão dos espaços públicos, movimentos em


torno da questão da saúde, movimentos na área de demandas por direitos humanos e dos
animais, fóruns de mobilização da sociedade civil (Ex: Fórum Social Mundial), movimentos
nos setores de comunicação (Ex: mobilização pela democratização das mídias no país),
movimentos contra políticas neoliberais. Segundo Alonso (2009, p.61), os novos movimentos
sociais aparecem assim como um novo ator coletivo, portador de um projeto cultural, que
demanda não apenas outro tipo de democracia política ao Estado, mas também democracia
social, mudanças nas leis, nos costumes e, principalmente, na cultura. Há um forte horizonte
normativo em todos esses movimentos que gira em torno da preocupação com a formulação
de novos valores e objetivos. Exemplos principais desses novos atores coletivos estão nos
movimentos ambientalistas e feministas. Enquanto protagonistas desses novos movimentos
sociais, os movimentos feministas, ao politizar o privado, põem em discussão temas como

a forma de organização horizontal e descentralizada das práticas políticas, a


valorização das experiências cotidianas e privadas, a reconceituação do mundo
privado e do mundo público, o deslocamento dos lugares e dos tempos da política, a
reconceituação do que vem a ser participação e representação (PAOLI, 1990, p.116).

Ciente das diferenciações e implicações destas entre as categorias movimentos sociais


e ação coletiva, considero, como Tilly e Melucci, movimentos sociais como formas de ação
coletiva que se exercem em campos combinados de oportunidades, constrangimentos e
estratégias. No entanto, em concordância com Castells e Honneth, o foco de análise para os
movimentos sociais aqui posto reside na centralidade da experiência do desrespeito na vida
dos indivíduos. Tendo em vista que a própria noção de ação nas ciências sociais é tão
problemática quanto os motivos ou as intenções que levam os indivíduos a ela, ambos os
autores trabalham a ação social enquanto mediadora das interações sociais e das identidades
individuais ao discutirem conceitos como desrespeito, indignação, injustiça, redes e
semânticas coletivas dentro dos movimentos sociais.
Em termos de teoria da ação coletiva, o que os movimentos feministas apontam é a
“especificidade das práticas e identidades das pessoas que, coletivizando-se, expressam sua
experiência de mundo como ação e sociabilidade política” (PAOLI, 1990, p.117). Apesar de
propor novos temas, oposições e conceituações, no entanto, seja como “movimento
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feminista”, seja como “movimento de mulheres”, ao refletir sobre a temática da mulher dentro
dos movimentos sociais, o que se tem é que a mulher não possui visibilidade. Sobre a
diferenciação entre “movimento feminista” e “movimento de mulheres”, Gohn ressalta que

as feministas estão envolvidas nos debates e na organização do campo feminista,


interferem nas políticas, participam das coordenadorias e das políticas sociais. Elas
têm visibilidade, têm voz e dão voz às mulheres, multiplicam os espaços de atuação
das mulheres, estão nas ONGs, nas passeatas, nos protestos, etc. Elas levam à frente
campanhas e lutas em que as demandas e reivindicações estão centradas nas
mulheres propriamente ditas, tais como o câncer de seio e outras doenças que
atingem o corpo da mulher, a violência física contra as mulheres, as discriminações
no mundo do trabalho – simbólicas e reais, como as salarial, questões sobre o aborto
e sexualidade em geral, etc. (...) O “movimento das mulheres” é algo mais
numeroso, mas quase invisível enquanto movimento de ou das mulheres. O que
aparece ou tem visibilidade social e política é a demanda da qual são portadoras:
creches, vagas ou melhorias nas escolas, postos e equipamentos de saúde, etc. São
demandas que atingem toda a população e todos os sexos, mas têm sido
protagonizadas pelas mulheres (GOHN, 2007, p.41-42).

Apesar de protagonistas nas demandas, segundo Jelin (1987, p.11 apud PAOLI, 1990,
p.107), os estudos sobre movimentos sociais praticamente não identificam o gênero de seus
participantes nem se questionam sobre o caráter que este imprime à participação, às práticas
coletivas e aos sentidos da ação. Tratam da temática como se o movimento fosse assexuado.
Neste sentido, ao refletir sobre o gênero em uma teoria da ação coletiva, sobre a perspectiva
de gênero dentro dos movimentos urbanos contemporâneos, considero necessário pensar a
partir de dois pontos: gênero como categoria relacional e transversal (Scott, 1990; Lauretis,
1994) e a problemática da igualdade e da diferença, ou ainda do reconhecimento ou
redistribuição, nos movimentos sociais (Santos, 1999; Fraser, 2007; Honneth, 2007; Pierucci,
1999).
Enquanto categoria transversal e relacional, trabalhar as relações sociais de gênero
como construções de significantes e significados implica que

embora os significados constituintes das diferenças de gênero possam estar


funcionando “todo o tempo” eles são atravessados por outros discursos: discursos de
outras identidades e discursos cristalizados da repetição, das tradições, dos
estereótipos, todos postos em operação em contextos específicos (...)o que a
emergência dos movimentos sociais nos faz compreender mais profundamente é que
as relações sociais podem estar todas, em sua diversidade, prefiguradas no mundo,
mas são indissociáveis da capacidade de estarem significadas nas ações dos sujeitos.
E isto quer dizer que as categorias que figuram as relações sociais – gênero, classe,
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idade, etnicidade, nacionalidade – vêm à tona no fluxo e no movimento da


temporalidade, inscrita nos sujeitos e em sua ação. Por isso nenhuma delas é, a
priori, mais central que as outras quando se trata da constituição da ação e dos
sujeitos (PAOLI, 1990, p.118-119).

No que tange à constituição da ação e dos sujeitos, o gênero se apresenta assim como
“um elemento constitutivo das relações sociais baseado em diferenças entre os sexos”, mas
principalmente “um modo básico de significar as relações de poder”. Por isso a importância
de problematizar o reconhecimento (ou sua denegação) do gênero nos movimentos sociais.
Em referência às críticas pós-estruturalistas às categorias fundantes, ao trabalhar gênero como
categoria transversal e relacional, como aponta Scott (1990, p.4), considero que assim como o
termo “mulheres” não existe em si, classe, raça, idade, nacionalidade, também não existem
em si e a associação “classe, raça e gênero sugere uma paridade entre os termos que na
realidade não existe”, existem, na verdade, através da formulação de discursos que os
operacionalizam.
Quanto ao debate igualdade / diferença, Boaventura de Sousa Santos (1999) questiona
quando é interessante insistir na igualdade e quando interessa insistir na diferença para os
movimentos sociais. Seu já clássico aforisma "as pessoas e os grupos sociais têm o direito a
ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os
descaracteriza" coaduna com a perspectiva de Scott sobre o debate. Para ela, no que concerne
aos movimentos feministas.

existem momentos em que faz sentido para as mães pedir consideração por seu
papel social, e contextos nos quais a maternidade é irrelevante na conduta das
mulheres; mas ao defender que ser mulher é ser mãe encobrimos as diferenças que
tornam possível essa eleição. Existem momentos nos quais faz sentido pedir uma
revaloração de status do que tem sido socialmente construído como 'trabalho de
mulher' (...) e contextos nos quais faz muito mais sentido preparar as mulheres para
que ingressem em trabalhos 'não tradicionais' (SCOTT, 1999, p.221).

Enquanto Scott (1999), reivindicando o poder analítico da problemática, envereda pelo


requerimento da diferença em favor “das experiências das mulheres” como estratégia política
para os movimentos feministas, Pierucci (1999), em contraposição, argumenta que os
movimentos sociais de esquerda, ao reivindicarem o direito à diferença, acabam recaindo nas
“ciladas da diferença”. Em seus estudos, ele relembra que o recurso ao direito à diferença

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sempre fora uma característica da direita política, que, historicamente, sempre se negara a
aceitar o princípio da igualdade entre as pessoas. O racismo, por exemplo, está centrado no
princípio da diferença, na recusa de aceitação étnico-cultural do outro. O problema é que a
esquerda, ao reivindicar o direito à diferença, cai numa cilada no sentido que tenta desassociar
diferença de desigualdade. Ao mergulhar na lógica diferencialista, acaba-se incorrendo em
alguma forma de discriminação. Ao lutar por “igualdade na diferença”, sem atentar para as
distinções de valor, a esquerda acaba produzindo uma luta estabelecida mais no discurso do
que na realidade, enquanto a direita a exerce de forma concreta. Para ele, a tentativa da
desconstrução igualdade/diferença acaba por exigir “um trabalho intelectual muito sofisticado
e cheio de sutilezas, que torna dificílimo de ser apreendido pela militância” em face da
inconciliável luta pela igualdade junto com a defesa da diferença. (PIERUCCI, 1999, p.49).
Para Fraser (2007), esse debate não se sustenta, na medida em que ao lutar por políticas de
ações afirmativas, por exemplo, os movimentos sociais acabam por reivindicar o
reconhecimento da diferença, mas, o mais importante, exigem do Estado as possibilidades de
acesso à igualdade.
Ainda dentro deste debate, Paoli (1990, p.108) interroga se a luta por reconhecer o
gênero nos movimentos sociais se configura numa luta comum por um objetivo geral, pela
cidadania baseada na igualdade, ou se pelo direito de sustentar a diferença que encena.
Segundo Macedo (2002), o contexto urbano articula uma pluralidade de lógicas e contrastes
que atingem de forma diferenciada os diversos segmentos sociais, variando com o recorte de
classe, racial, de orientação sexual, de orientação religiosa, de gênero, etc. Pensar nesse
contexto as múltiplas formas de opressão que aproximam e diferenciam os sujeitos requer,
portanto, uma combinação de arranjos que expliquem sua existência. Em termos de
semelhanças e diferenças, tem-se, por exemplo, que homens e mulheres, na luta pela
ocupação de determinado espaço urbano, podem partilhar da mesma situação de despossessão
de moradia e estarem unidos na mesma causa. No entanto, eles vivenciam de formas distintas
em seu cotidiano a luta política devido aos fatores diferenciais daquilo que, dentre outros
autores, Lauretis (1994) vai chamar de experiência de gênero. Por experiência de gênero, ela
toma como sendo

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processo pelo qual a subjetividade é construída para todos os seres sociais. Procurei
definir experiência mais exatamente como um complexo de efeitos, hábitos,
disposições, associações e percepções significantes que resultam da interação
semiótica do eu com o mundo exterior (nas palavras de C.S. Peirce). A constelação
ou configuração de efeitos de significados que denomino experiência se altera e é
continuamente reformada, para cada sujeito, através de seu contínuo engajamento na
realidade social, uma realidade que inclui – e, para as mulheres, de forma capital –
as relações sociais de gênero (LAURETIS, 1994, p.228).

No limite, fica evidente que as mulheres, ao se constituírem enquanto sujeitos sociais,


estão cotidianamente reelaborando suas ações a partir de suas experiências de gênero. No
Brasil, em meio às lutas populares por moradia, as mulheres, diante das rígidas hierarquias de
gênero e de classe e das demarcadas desigualdades sociais a que são submetidas, passam a
reelaborar tanto a representação quanto a autorrepresentação que possuem sobre gênero.
Por fim, considero importante enfatizar aqui o que Pinto (1992) ressalta como
“questões estratégias de análise do espaço da mulher no campo político”. Tendo em vista que
a constituição do sujeito-mulher reorganiza, no seu cotidiano, o espaço público e privado, a
presença da mulher,

é modificadora das práticas sociais, quer pela presença em si e seu explícito


contraste com a presença dos homens, quer por constituir, pelo menos
potencialmente, um canal de aproximação com os movimentos feministas. Que a
presença da mulher no interior dos movimentos sociais, em geral, transforma a
mulher de sujeito privado em sujeito público, tornando-se um importante canal para
o aparecimento, nas relações de poder, tanto a nível público como a nível privado,
de novas posicionalidades da mulher em relação às desigualdades de gênero. Que a
presença da mulher, tanto em sindicatos como em cargos eletivos, tem em princípio
a mesma potencialidade de se tornar canal de expressão e de luta pela igualdade nas
relações de gênero, acrescida do fato de que, sendo canais institucionalizados, abrem
espaços para a luta por implementação de políticas públicas (PINTO, 1992, p.147).

Dessa forma, pensar nas mulheres como protagonistas dos movimentos urbanos
contemporâneos, seja em termos de lutas por moradia ou em termos de lutas por
reconhecimento, seja em termos de movimento feminista ou movimento de mulheres, seja
através de reivindicações igualitaristas ou diferencialistas, requer refletir sobre a ausência da
perspectiva de gênero nos estudos sobre esses movimentos, assim como sobre a invisibilidade
das mulheres como atrizes centrais desses movimentos sociais, não obstante sua presença
majoritária. Acredito que, como salienta Pinto (1992, p.149), destas questões vêm à tona as
possibilidades de pensar “a mulher, quando visível, emergindo como novo sujeito político e
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provocando novas relações de poder; e, quando invisível, apresentando-se como objeto do


estudo do silêncio do discurso político”, e eu acrescento, do discurso científico.

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HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA CAMPONESA JOSEFA ERMINA COBÉ (1975-1984)

Jadson Pereira Vieira | jadsonpv@gmail.com


Dayane Nascimento Sobreira

INTRODUÇÃO

Um traço marcante na formação subjetiva dos indivíduos é sua vivência em


comunidade. Nesta, traços e ordenamentos culturais são moldados de maneira particular em
cada ser, adequando a vida em grupo. Tal característica, nos torna diferentes de outros seres -
ditos irracionais - pois ao contrário destes, estamos em uma constante busca por marcos
identitários que nos trazem singularidades. São estes marcos, como diz Hall (2012), que nos
ajudam a formar identificações com anseios momentâneos.
Na subjetivação das identidades, marcos reguladores são construídos a partir das
memórias, nestes, vemos que aspectos particulares aos sujeitos históricos se entrelaçam aos
sujeitos coletivos (comunidade) na construção das lembranças. O anseio por liberdade, a luta
por algum direito cerceado ou a partilha de alguma lembrança comum tornam-se o modus
operandi de uma relação dialógica que alimenta os pensamentos coletivos de maneira
constante.
Este artigo ao traçar uma narrativa das memórias da camponesa Josefa Ermina Cobé,
líder social do movimento de reforma agrária ocorrido na comunidade rural Engenho Geraldo,
Alagoa Nova-PB entre os anos de 1975 e 1984, tem por objetivo perceber em suas narrativas
o caráter múltiplo da participação feminina no movimento, bem como colocá-la como
protagonista de uma história possível. Neste sentido, acionamos Halbwachs (2006) para
perceber como a memória individual desta mulher entrelaça-se com a memória coletiva da
comunidade:

Não há lembranças que reaparecem sem que de alguma forma seja possível
relacioná-la a um grupo (...). No primeiro plano da memória de um grupo se

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destacam as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria
de seus membros e que resultam de sua própria vida ou de suas relações com grupos
mais próximos, os que estiveram mais frequentemente em contato com ele. As
relacionadas a um número muito pequeno e às vezes a um único de seus membros,
embora estejam compreendidas em sua memória (já que, pelo menos em parte,
ocorreram em seus limites), passam para o segundo plano (Idem, p. 51).

O histórico da luta pela terra no Engenho Geraldo é refletido nas memórias dela, sob
os anseios básicos, tais como: ter onde morar; ter com quem construir relações de amizades;
ter um meio de sustentar sua família. Esta gama de reivindicações, são a priori simples, mas
abrem-se do seu interior para sua relação social com uma força que causa encanto. Temos
assim, um terreno fértil ao historiador, que sensibilizado pelas relações que os indivíduos
constroem nos diversos meios - em espaços e tempos distintos, tem em mãos um campo de
trabalho infinito para o estudo das relações socioculturais dentro desta história.
Este texto se caracteriza como uma contribuição à percepção das relações e
sociabilidades de Josefa Ermina Cobé, mais conhecida por “Nêm Cobé” – nome pelo qual
iremos nos apropriar nesta narrativa. Nêm Cobé, que em sua história de vida se constrói como
liderança na comunidade rural Engenho Geraldo275 de Alagoa Nova-PB, adquire em suas
relações sociais, desejos e anseios primordiais de busca pela liberdade, que a seu ver, está
relacionada a obtenção de um pedaço de terra para os/as trabalhadores/as de sua comunidade.
Falar dela é perceber que em suas práticas subjetivas foram construídos modelos de
educação popular276, que se fortaleceram nas suas sociabilidades dentro da luta social do
Engenho Geraldo, tornando-a deste modo, uma personagem relevante para os que
participaram do movimento de reforma agrária ocorrido entre o período de 1975 e 1984277 em
tal ambiente. Assim, ela se encontra em um contexto de movimento social, luta pela terra e de
mobilização dos trabalhadores/as do campo, que viviam em condições injustas de divisão

275
O Engenho Geraldo foi uma propriedade de 2.500 hectares aproximados pertencentes à família Tavares De
Mello Cavalcante, no município de Alagoa Nova-PB que em 1984 passou a ser espaço de reforma agrária
promovida pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Nestas terras, 555 famílias
foram beneficiadas com lotes proporcionais à sua renda e proporção familiar. (Dados obtidos na Gerência
Regional do INCRA, localizada em João Pessoa-PB em: 15 de maio de 2014).
276
Ver: GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de
projetos sociais. São Paulo; Cortez, 2010. p. 22-29.
277
O reconte temporal deste trabalho define-se entre os anos de 1975, ano da morte de Pedro Tavares de Melo
Cavalcante, último herdeiro direto dos “senhores do Engenho Geraldo” e 1984, ano da obtenção da posse
definitiva da terra pelos/as trabalhadores/as.
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social, onde eram obrigados/as a pagar arrendamentos aos “donos da terra” em condições
desumanas de trabalho. Sendo esta uma das responsáveis pela mobilização dos/as
camponeses/as apresenta-se neste artigo como uma das protagonistas deste acontecimento
histórico.
Buscamos perceber que nas práticas desenvolvidas junto ao movimento, Nêm Cobé
cria mecanismos de formação de uma consciência coletiva de pertencimento à terra e à
comunidade dentre os que participaram do movimento, para assim, sensibilizar todos/as da
reforma agrária naquela comunidade. Ela ainda se destacou por incentivar a participação das
mulheres no Engenho Geraldo, buscando nelas a força da mobilização para o engajamento de
todas as famílias de posseiros que ali moravam.
Sobre sua história de vida, a entendemos como parte de uma escrita de si278, construída
a partir de suas ações dentro do movimento e em sua própria vivência no mundo. Foucault
(2014) quando pontua a natureza textual das ações humanas, que são entendidas a partir de
uma relação de significantes e significados, nos ajuda a perceber a construção que Nêm faz
em sua vida. Pois, muito do quem entendemos dela hoje, faz parte de uma construção que ela
construiu durante sua trajetória.
Deste modo, utilizamos a metodologia da história oral a partir dos estudos
desenvolvidos por Alberti (2005), em interface com a autobiografia Souza (2008), para poder
a partir dos atos de memória dos idosos, Bosi (2009), discutirmos acerca da história dos
movimentos e sua luta pela terra, no contexto ditatorial e suas repercussões no município.

ENTRE MEMÓRIAS E A LIDERANÇA DO MOVIMENTO

Nêm Cobé, entrou no movimento do Engenho Geraldo em meados da década de 1970,


motivada por um sentimento que transcendia a uma busca pela liberdade de plantar e de ter
sua terra bem como os/as trabalhadores/as da comunidade, as suas. Ela começa a se

278
Entendemos escritas de si como um conceito defendido por Michel Foucault e seus comentadores, onde se
articula que as produções feitas pelos sujeitos históricos são elaboradas de maneira a possibilitar a construção de
um “corpo” para os sujeitos. Ver: FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa:
Passagens. 1992. p. 05.

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sensibilizar com os sofrimentos dos seus companheiros que estavam preocupados com a
eminente morte de Pedro Tavares de Mello Cavalcante, último herdeiro direto da propriedade
Engenho Geraldo e a possível vinda de seus sobrinhos, para reivindicarem direitos à herança,
fato que perpassaria o despejo dos moradores da comunidade.
Esta década, marcada por angústias dos que conviviam nesta comunidade, também era
um momento de incertezas, pois existia o medo da perda do lote de terra, - já que boa parte
dos/as trabalhadores/as eram posseiros279. Da perseguição política/ideológica de um regime
ditatorial que se instaurava no Brasil naquele momento, da justiça local, que os
caracterizavam como medrosos/as agricultores/as que não podiam e nem sabiam reivindicar
direitos junto às autoridades competentes. Estas nuvens de medos que pairavam sobre as
cabeças dos que viviam na comunidade foi o principal motivo apontado por Nêm Cobé para
sua entrada no movimento:

Eu comecei na luta por causa da reclamação e do sofrimento do povo, eles


conversavam com a gente, e diziam que viviam nas terras dos outros não tinham
direito de plantar um pé de banana, um pé de laranja, não tinham direito de fazer
uma casa, né, só faziam qualquer coisa quando o proprietário mandasse (NÊM
COBÉ, 2011).

Se torna importante lembrar que Nêm Cobé não nasceu e não morava no Engenho
Geraldo, ela migrou, ainda em sua infância da cidade de Soledade no Cariri paraibano280, com
12 anos de idade para o Brejo281, passando a residir em outra comunidade rural nas
proximidades do Engenho Geraldo. Em suas memórias percebemos que traços desta infância
são colocados como base para a sua formação de luta, algo que Bosi (2009) afirma ao narrar
que a não plenitude dos relatos dos velhos também nos traz muitas informações sobre sua
279
Posseiros e meeiros eram agricultores/as que trabalhavam nas terras de um “senhor de engenho”. Em troca
disto, a produção agropecuária deveria ser dividida com o dono da terra. Ou dias de trabalho deveriam ser
destinados para pagar o aluguel da terra.
280
Microrregião geográfica paraibana, o Cariri paraibano é formado por 29 municípios, abrigando uma
população de mais 160 mil pessoas. O clima é tipicamente semiárido. Disponível em
<https://www.flickr.com/photos/egbertoaraujo/collections/72157621392241019/>. Acesso em: 30 de julho de
2014.
281
Microrregião geográfica paraibana, O Brejo é pertencente à Mesorregião do Agreste Paraibano. Sua
população foi estimada em 2012 pelo IBGE em 115.923 habitantes e está dividida em oito municípios.
Disponível em<http://pt.wikipedia.org/wiki/Microrregi%C3%A3o_do_Brejo_Paraibano>. Acesso em: 30 de
Julho de 2014.
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vivência de juventude:

Há dimensões de aculturação que sem os velhos, a educação dos adultos não alcança
plenitude: o rever do que se perdeu de histórias, tradições, o reviver dos que já
partiram e participam então de nossas conversas e esperanças; enfim, o poder que os
velhos têm de tornar presentes na família os que se ausentaram, pois deles ainda
ficou alguma coisa em nosso habito de sorrir de andar e de agir (Idem, p.74).

A escrita de si que si inicia neste momento de sua vida e que amadurece pelos
ensinamentos passados pelo seu pai sobre a importância da luta por direitos, ganha cada vez
mais força quando a jovem vai crescendo. Os ensinamentos da JAC (Juventude Agrária
Católica) e os próprios engajamentos nos movimentos sociais vão sendo marcas construídas
na vida de Nêm Cobé, mesmo antes da entrada na luta do Engenho Geraldo.

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um "corpo"


(quicquid lectione collectum est, stilus redigat in corpus). E, este corpo, há que
entendê-lo não como um corpo de doutrina, mas sim – de acordo com a metáfora
tantas vezes evocada da digestão – como o próprio corpo daquele que, ao
transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita
transforma a coisa vista ou ouvida “em forças e em sangue” (in vires, in sanguinem).
Ela transforma-se, no próprio escritor, num princípio de ação racional
(FOUCAULT, 1992. p. 05).

Escritas de si que esta líder aprimora e edifica a partir da imagem que projeta para o
povo da comunidade e que constantemente alimentaram pela forma como se relacionaram nas
atividades da luta pela terra. Inscrições que não são necessariamente efetuadas pelo ato
laboral de escrever, mas sim, inscrições sociais, marcas de convivências que são cultivadas a
cada momento de suas vidas. Rago (2013), ao refletir sobre mulheres que de forma singular
lutaram contra as repressões sexistas e políticas da década de 1970, traz em seus escritos a
aventura de contar-se destas, que lutaram por direitos e afirmações em sua época, pensando
suas lutas como maneiras de se inscrever no mundo.
De maneira semelhante, pensamos que a liderança de Nêm no Engenho Geraldo
articulou sua vida de modo a projetar imagens que são perpetuadas dentro do contexto de
vivências com a comunidade. A cada atitude na luta, a cada ação feita em conjunto e,

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sobretudo, a cada fala que proferia, ela estava se lançando para o mundo e construindo uma
imagem para si. Cercada de um sentimento de luta que foi se fortalecendo em suas vivências
através do conhecimento que ganhava em sua comunidade e o respeito dos muitos/as que lhe
convidavam para ser madrinha de seus filhos/as.
Ainda sobre as formas de escrita de si, pensamos de maneira semelhante ao que disse
Paulilo (2004), pois as memórias edificadas por Nêm Cobé trazem um contexto de valores
intrínsecos em sua fala, fato bem comum às lideranças que se projetavam no protagonismo
social camponês neste momento histórico. Em seus relatos, palavras como: luta,
companheiros/as, latifundiários, Lei 4.504282 são corriqueiros, sendo perceptível que os
valores e sentimentos voltados para o social foram alimentados em sua construção subjetiva
na primeira infância.
Com seu discurso de fácil entendimento e amigável para com todos/as da comunidade
ela começa através dos encontros religiosos, a alimentar nas pessoas uma consciência de
classe que se sustentava na sua experiência de vida que a nosso ver era, sobretudo, uma
experiência transmitida aos outros moradores e moradoras do Geraldo através de seu
conhecimento adquirido pelas leituras que tivera.

Nos encontros a gente começava rezando e depois debatia os problemas, eles (o


povo) faziam umas perguntas dos problemas que sofriam aqui no Geraldo e depois
diziam o que podia fazer na comunidade para conseguir nossa terra. E foi assim que
eu consegui ainda mais conhecimento e eu passei a ser convidada pra os encontros e
eu ia com prazer. Eu estudava livros que tinha a Lei 4.404 pra poder lutar pelo povo.
Esses livrinhos falavam do sofrimento do pobre e como devia ser tratada as famílias
e o povo gostava do que eu dizia e ia cada vez mais mim chamando para se reunir.
Eu conversei muito também com Dom José Maria Pires que também dava conselhos
(sic) (NÊM COBÉ, 2011).

Percebemos que o debate que coloca Nêm na história, torna-se pertinente, pois vemos
que “basta pensar que entre as décadas de 1970 e 1980 as ações trabalhistas no país são
trabalhadores lutando pela liberdade, lutando por melhores condições de trabalho, lutando
para que o direito a uma alforria seja respeitado” (VASCONCELOS, 2005, p. 09).

282
Lei federal aprovada em 30 de novembro de 1964, estabelece e regula os direitos e obrigações concernentes
aos bens imóveis rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e Promoção da Política Agrícola. Ver:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm>. Acesso em: 07 de Outubro de 2014.
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Nêm Cobé diz, que suas experiências foram partilhadas com os demais
companheiros/as da luta, nos dez anos que a enfrentaram. Iniciando-se com a morte Pedro
Tavares de Melo Cavalcante em 1975 e tendo seu termino em 1984 - quando há a entrega
definitiva da posse das terras aos/as trabalhadores/as rurais do Engenho Geraldo:

A gente sabia que a coisa era bem maior do que nós, por trás tinha o povo da igreja
da JAC (Juventude Agrária Católica) e muita gente grande apoiando nosso
movimento. Tinha padres, bispos que já faziam isso em outros lugares e estavam
dispostos a ajudar. Eles já contavam para gente aquelas histórias que tinha
acontecido em outro lugar, e assim a gente foi aprendendo, eles deram a gente para
estudar o livrinho dos direitos humanos, aí com esse livrinho aprendemos também
muita coisa, como era que acontecia as coisas e como podíamos lutar (sic) (NÊM
COBÉ, 2011).

Perceber as possibilidades de construção de memórias nos coloca diante uma


complexidade no ato de problematizar suas falas. Lembramos de Catroga (2001) e Halbwachs
(2006), quando trazem a multiplicidade das narrativas dos sujeitos, com seus aspectos
individuais e coletivos para nos dar respaldo e subsídio na construção de nossa narrativa.
Pensar as narrativas de Nêm como um Engenho de Memórias é a maneira mais diversa
que encontramos para metaforizar o que observamos nas narrativas desta líder. São vários
conhecimentos sendo trazidos a todo momento, são diversos saberes partilhados nas suas
memórias, mas estes saberes se entrelaçam e são partilhados por todos/as que participaram na
luta do Engenho Geraldo. As novenas, os encontros, os debates e as relações de amizades
construídas por ela foram importantes para a tomada de um sentimento de pertencimento pela
terra dos que viviam na comunidade. Vemos isto como uma prática inclusiva que se
consolidou na vivência social do povo que conviveu neste movimento.

SOBRE O “SER MULHER” NO MOVIMENTO

Ao fazer uma reflexão sobre o contexto das mobilizações sociais em torno do


Feminismo, Pedro (2006) traz à tona análises que norteiam as mobilizações da chamada
“segunda onda feminista” ocorrida durante a década de 1970 no Brasil. Este período foi
marcado por várias mobilizações de mulheres que buscavam reivindicar direitos dentro dos

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movimentos sociais da época ou até mesmo através de mobilizações criadas por elas para
lutar por mais direitos civis. Assim, quando Nêm Cobé articula suas falas ela estava
reinvidicando também seus direitos de mulher, ela abre-se a um contexto bem maior que a
acompanhava nas suas mobilizações.
A época dos acontecimentos do Engenho Geraldo fora também um momento em que
as mulheres no contexto social brasileiro reivindicavam direitos e afirmavam-se em
movimentos sociais organizados, embora Nêm Cobé, naquele momento não tivesse
consciência do papel do feminismo nas lutas sociais, ela estava sim promovendo bandeiras de
luta que reivindicavam maior representatividade feminina nos espaços públicos:

Através da nossa luta, os homens também participavam, mais na maioria das vezes
quem entrava primeiro eram as mulheres aqui no Engenho Geraldo. Elas
participavam das novenas depois ouvia as reuniões na novena e chegavam em casa
contava ao marido. Olhe: tinha eu, Elza Vilar, Lourdes Paulino, aí vem Socorro
Barbosa, Toninha, ajuda de Teresa Braga (advogada), Hozana Japiaçu, Nelzinha,
Agmar Ferreira, era mulher que só, viu! (NÊM COBÉ, 2014).

É importante perceber que as mulheres tiveram protagonismos dentro do movimento,


conforme mostra o relato acima. E quando nos propomos a uma escrita da história que
evidencia as atuações destas, estamos buscando perceber que elas são exemplos de um
universo muito mais amplo de possibilidades para a história. As mulheres que atuaram e que
atuam em movimentos sociais foram por muito tempo silenciadas, mas é preciso refletir que
suas invisibilidades foram frutos de atitudes políticas que estão sendo repensadas pelas novas
narrativas que se constroem:

A invisibilidade que faz parte da história das mulheres, ou dos lugares reservados a
elas historicamente. Sabendo que, em sociedades patriarcais como a nossa o lugar
das mulheres ao longo dos séculos oficialmente, tem sido os espaços do privado-
espaço doméstico da casa, da cozinha, do quarto, etc., espaço guardado pela
invisibilidade e o silêncio (ROSA, 2013, p.45).

Mesmo que os discursos lançados por nossa sociedade sejam os da repressão e os da


contestação da liberdade feminina, é evidente que personagens como Nêm Cobé e suas

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companheiras são altamente importantes em um espaço de apresentação de um protagonismo


dos ditos “excluídos da História”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vemos em Nêm Cobé – a mulher, que como tantas outras, tomou para si um ideal de
luta por causas sociais. Sua luta que se baseia sobretudo por uma busca por valores
identitários de pertencimento à terra é também permeada pela própria construção de sua
feminilidade, eis a líder camponesa que buscou em uma sociedade machista se afirmar como
liderança para assim promover conquistas para a comunidade que viverá.
A prática de uma sensibilização do seu povo que também pode ser vista como uma
forma de educação para a liberdade, foi construída por Nêm Cobé na comunidade Engenho
Geraldo nos anos da luta em prol do direito à terra. Mas uma coisa deve ser analisada neste
momento: suas ações e lutas não se restringiram àquele tempo, pelo contrário, atingiu
ambições e demandas que até hoje são vivas na memória coletiva da comunidade.
Sobre suas práticas, também defendemos que ela constrói uma educação que não
tivera como objetivo instruir sobre sílabas ou números, mas sim, evidenciar o sentimento de
luta coletiva. Uma práxis que não teve como objetivo a criação de uma cátedra, mas sim a
consolidação de um respeito coletivo que a comunidade alimentou sobre a figura de Nêm
Cobé.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005.


BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009.
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra – Portugal: Quarteto,
2001.
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992.
Disponível em < http://eps.otics.org/material/entrada-outras-ofertas/livros/a-escrita-de-si-

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michel-foucault/at_download/file>. Acesso em: 18 de Maio de 2015.


GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador social: atuação no
desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010
HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,2006.
PAULILO, Maria Ignez S. Trabalho familiar: uma categoria esquecida de análise.
Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, Estudos Feministas, Florianópolis, n. 12, v.
1, janeiro-abril/2004.
PEDRO, JOANA MARIA. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-
1978). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, n.52, 2006.
RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismo, escrita de si e invenções de
subjetividade. Campinas: Ed. UNICAMP, 2013.
ROSA, Susel Oliveira da. Mulheres Ditaduras e Memórias: “não imagine que precise ser
triste para ser militante”. São Paulo: Intermeios / FAPESP, 2013.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil da análise histórica”. Educação e
Realidade. Porto Alegre: vol.20, n.2, 1995.
SOUZA, Elizeu Clementino de. (Auto)Biografia, identidades e alteridade: modos de
narração, escritas de si e práticas de formação na pós-graduação. Ano 2, vol 4. Jul-Dez de
2008.
VASCONCELOS, Tânia Maria Pereira. A perspectiva de gênero redimensionando a
disciplina histórica. Salvador: Ed. UNEB, 2005, v. 3.

ENTREVISTAS

JOSEFA ERMINA COBÉ. Entrevista concedida no dia 09 de julho de 2011.


JOSEFA ERMINA COBÉ. Entrevista concedida no dia 04 de maio de 2014.

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MARIA SALETE VAN DER POEL E O MOVIMENTO CEPLAR EM CAMPINA


GRANDE-PB283

Rosicleide Henrique da Silva | rose_netsr@hotmail.com

INTRODUÇÃO

A CEPLAR foi uma Campanha de Alfabetização de Jovens e Adultos na Paraíba que


contava com a participação dos estudantes de Campina Grande, fazendo parte do movimento
de educação e cultura popular que tinha como método do educador Paulo Freire a ideia de que
“a leitura da palavra implicava na leitura do mundo”. Grande parte dos estudantes que
compunham a CEPLAR fazia parte da JUC (Juventude Universidade Católica) e atuava na
sociedade como professores de jovens e adultos. De acordo com Poerner (1968)284 “os
estudantes, efetivamente, tomavam consciência da realidade nacional aproximavam do povo,
ao participar com destaque da Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos, conforme o
método especializado do professor Paulo Freire”.
Em matéria publicada pelo Jornal A União285, a CEPLAR promoveu Curso de
Alfabetização de Jovens e Adultos em Campina Grande-PB. De acordo com a publicação:

¹ Este artigo é parte do trabalho de dissertação da autora que se intitula O Movimento Estudantil em Campina
Grande –PB: Entre Sonhos, Frustrações e Lutas(década de 60), defendido junto ao Programa de Pós Graduação
em História da Universidade Federal de Campina Grande-PB.
²
É aluna especial do Doutorado em Educação pela UFPB. Possui mestrado em História pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (2014). Graduada em História pela
Universidade Federal de Campina Grande-PB (2011). Especialista em História do Brasil e da Paraíba pela
Faculdade Integrada de Patos- FIP(2013). Especialista em Fundamentos da Educação: Práticas Pedagógicas
Interdisciplinares pela Universidade Estadual da Paraíba (2014). Desenvolveu pesquisa acerca do Movimento
Estudantil de Campina Grande na década de sessenta e sua relação com as lutas sociais no contexto da Ditadura
Militar na Paraíba.
³ Este artigo é parte do trabalho de dissertação da autora que se intitula O Movimento Estudantil em Campina
Grande –PB: Entre Sonhos, Frustrações e Lutas(década de 60), defendido junto ao Programa de Pós Graduação
em História da Universidade Federal de Campina Grande-PB.
284
POERNER, Arthur José. O Poder Jovem: História da participação política dos estudantes brasileiros-
Rio de Janeiro: 1968. Civilização Brasileira (p.209)
285
Domingo, 21 de abril de 1963. CEPLAR vai levar Cultura Popular à Campina Grande. P. 05
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Para discutir com o Prefeito Severino Cabral as bases [...] a ser firmado entre com a
Prefeitura de Campina Grande a CEPLAR reuniu seu Conselho Deliberativo ante-
ontem a noite. Acompanhado do Governador Pedro Gondim e do Prof. José
Severino, Secretário da Educação de Campina Grande, o Prefeito Severino Cabral
compareceu a Sede da CEPLAR [...] Dos entendimentos mantidos ficou acertado
que a Equipe Técnica da CEPLAR continuará a tarefa de formação do pessoal de
Campina Grande que orientará o movimento de cultura popular naquele município
sob a supervisão técnica da CEPLAR. Segundo informações prestadas pelo Sr. José
Lustosa, Diretor da CEPLAR, será realizado de 24 a 29 do corrente, em Campina,
um curso para Formação e aperfeiçoamento da Equipe daquele município, ficando a
cargo da Organização que dirige assistência técnica, supervisão e orientação técnica.
(A UNIÃO, 21 DE ABRIL DE 1963).

Nesse cenário de formação do Movimento CEPLAR em Campina Grande-PB, chamo


atenção à contribuição da Educadora Maria Salete Van der Poel. Com formação na área de
Educação e mestrado em Educação de Jovens e Adultos pela UFPB, Maria Salete trabalhava
como professora quando da instauração do Golpe Militar na Paraíba em 1964. Era engajada
em Projetos de Alfabetização de Jovens e Adultos, se tornando Alfabetizadora, Coordenadora
e Fundadora da CEPLAR na Paraíba, considerado o maior Movimento de Alfabetização
daquela época286.
MARIA SALETE VAN DER POEL E O MOVIMENTO CEPLAR EM CAMPINA
GRANDE-PB: UMA TRAJETÓRIA DE VIDA E DE LUTA

Em seu depoimento, a senhora Salete nos informa como ocorreu o seu envolvimento
com o Movimento CEPLAR em Campina Grande-PB, ainda no período anterior ao Golpe
Militar na Paraíba.
Eu comecei a militância quando ainda era do Curso Ginasial no Colégio Alfredo
Dantas [...]. O padre Antônio Nóbrega era o grande articulador político daqueles
movimentos chamados de Vanguarda, de esquerda de Campina Grande [...]. Nessa
época eu comecei a militância, em janeiro de 1963 para o começo de fevereiro de
1963 e o assunto no Brasil era o “milagre” do método Paulo Freire que alfabetizava
em quarenta horas e isso interessou muitos políticos, isso interessou profundamente
ao Prefeito de Campina Grande Severino Cabral que era muito grande, muito alto e
o povo chamava “pé de chumbo”. Aí seu Cabral “endoideceu” e falou que “se fosse
esse negócio para fazer voto, alfabetizar em quarenta horas, então vamos alfabetizar
o pessoal de Campina Grande”.

286
Para maiores esclarecimentos ver: 8º Sessão de Depoimentos de perseguidos pela Ditadura Militar, realizada
em 31.03.2011. Auditório da Central de Aulas/ UFPB. Coordenação: Rosa Maria Godoy Silveira. Expositora:
Maria Salete Van der Poel. FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra e FERREIRA, Carmélio Reynaldo (Orgs).
Projeto: Compartilhando Memórias: Repressão e Resistência na Paraíba. Vol. 8- Maria Salete Van der Poel
João Pessoa: Editora da UFPB, 2012. 12 v.

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[...]
Eu fui para fazer um curso com Paulo Freire e da Equipe dele lá no SEC (Serviço de
Extensão Cultural) que era ligada a Universidade de Pernambuco, sendo o SEC
coordenado por Paulo Freire, mas eu não fui na Equipe do Severino Cabral, eu já fui
para esse Encontro como militante da AP (Ação Popular), eu fui como uma tarefa da
AP de assistir o Programa, me infiltrar e trazer o Projeto para Campina Grande para
que o projeto não caísse somente nas mãos dos políticos. Lá foi um curso de uma
semana e tinha universitários do Brasil todo. Foi um curso maravilhoso, uma parte
dada pelo próprio Freire, outra parte encantadora dada por Joamar Muniz de Brito e
a parte de Metodologia da Linguagem foi dada por Aurenice e por Adosina, que
carinhosamente nós a chamávamos de Dosa, que faleceu ano passado. (informação
verbal).

Na fala da depoente Maria Salete, compreendemos que houve interesse por parte do Prefeito
de Campina Grande, o senhor Severino Cabral, em trazer para a cidade o projeto de
Alfabetização de Jovens, uma vez que isso acarretaria votos no período eleitoral. Dessa
forma, há uma tentativa de apropriação do movimento de educação popular pelas oligarquias
locais, no sentido de tornar esse Projeto algo lucrativo e que servisse aos próprios
interesses da elite campinense.

De acordo com a historiadora Sousa (1988, p.17) a posição de Severino Cabral, na


época, enquanto “empresário e fazendeiro foi utilizada como veículo para o
assistencialismo, tornando-se uma espécie de “cacife político” que fazia a ponte entre ele e
as camadas sociais”. Ainda de acordo com essa autora, Severino Cabral possuía duas
posições que se complementavam: “o assistencialista- “amigo do povo”- e o Cabral
“rico”, pois enquanto o assistencialismo ocorria em sua própria residência com favores
em forma de remédios, por exemplo, o “rico” afirmava-se através de suas atitudes
financeiras”.

Dando continuidade ao seu depoimento, a senhora Salete evidencia ainda que, ao voltar
à Campina Grande depois do Curso de Formação dado pela Equipe de professor Paulo Freire
na Universidade de Pernambuco, ela juntamente com Ofélia Amorim287 e outros estudantes
começaram a se engajar, em Campina Grande, na Campanha de Educação Popular da
Paraíba, a partir de Março de 1963. Segundo nossa depoente, foi feito uma “experiência

287
Foi advogada que defendeu os camponeses que faziam parte das Ligas Camponesas de Sapé, na
Paraíba. A dissertação de Mestrado XAVIER, Wilson José Félix. As práticas educativas da Liga
Camponesa de Sapé: memórias de uma luta no interior da Paraíba (1958-1964). 234f. Universidade Federal
da Paraíba, João Pessoa, 2010 aborda, logo no inicio de sua escrita, sobre a atuação de Ofélia Amorim.
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piloto” nessa cidade, num bairro chamado “Casa da Pedra” (atual bairro Centenário),
havendo um considerável desenvolvimento deste Projeto, pois com o Golpe Militar em 1964,
a CEPLAR já contava com cinquenta e cinco núcleos.

Sobre a atuação da CEPLAR em Campina Grande e o também engajamento dos estudantes


na Campanha de Alfabetização de Jovens e Adultos, com a instauração do Golpe Militar,
encontramos uma edição de 01 de abril de 1964288 que nos informa o seguinte:

A CEPLAR continua desenvolvendo grande atividade no setor educacional. Há


mais de um mês vem funcionando cerca de trinta núcleos na cidade [...]. Novas salas
de aula estão sendo instaladas: cinco destas na sede deste município, uma em
Galante e três na vizinha cidade de Queimadas [...]. A Campanha de Educação
Popular conta com uma Equipe de professores que vem traçando novos rumos
visando à alfabetização de adultos. (DIÁRIO DA BORBOREMA, 01 DE ABRIL
DE1964).

Nesse sentido constatamos que, mesmo com o Golpe Militar, os estudantes continuavam
atuando na Alfabetização de Jovens e Adultos em Campina Grande, aumentando-se o
número de núcleos nesta cidade e nas cidades circunvizinhas. A matéria nos informa, ainda,
que a Campanha de Alfabetização tinha por objetivo mobilizar a população campinense
para a reivindicação dos problemas relacionados à educação, organizando-se vários núcleos
de Alfabetização na cidade, sendo que as primeiras experiências estavam sendo feitas,
principalmente, nos bairros Monte Santo, Catolé e José Pinheiro por se tratarem de
bairros carentes da cidade em que a falta de infraestrutura, saneamento básico e educação
eram notórios.

Ao nos depararmos com essa matéria do Jornal Diário da Borborema, nos


questionamos da seguinte forma: Os estudantes relacionados ao CEPLAR conseguiram
dar continuidade as suas lutas mesmo com o Golpe Militar? Será que o Golpe e a
instauração de um regime ditatorial não prejudicou, em nada, a luta desses estudantes? Foi
com base nesses questionamentos que conversamos com a senhora Léa Amorim289e ela

288
Campina Grande, Quarta-feira, 1 de abril de 1964. Objetivo da “CEPLAR” é dinamizar Plano
Educacional na cidade: Cultura Popular. In: Diário da Borborema, p.08
289
A Senhora Léa Amorim não participou do Movimento Estudantil de Campina Grande, pois segundo ela
“estudava pela manhã e noivava à noite”, dedicando o resto de seu tempo livre ao preparo de seu enxoval. Vale
salientar que mesmo não tendo participação direta também na CEPLAR, ela nos falou que sua família fora
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nos afirmou que, no caso de sua irmã Salete Vander Poel, esta buscou dar continuidade a
Campanha de Alfabetização da seguinte maneira:

A sala de nossa casa era cedida para as reuniões e discussões acerca dos
projetos de Alfabetização, mas ninguém poderia saber, pois tínhamos medo da
repressão. Lá em casa havíamos separado uma sala para aulas e, nesse ambiente,
eram realizadas as reuniões escondidas de nossa mãe quando ela ia para a Igreja.
Nesses encontros eram feitas leituras no plano teórico sobre Marx, Lênin, os
Marxistas de uma maneira geral, onde se discutiam realmente o que os estudantes
desejavam que fosse a mudança na sociedade290. (informação verbal).

O depoimento de Léa Amorim nos informa que uma maneira dos estudantes continuarem
suas discussões sobre a CEPLAR, com o Golpe Militar na Paraíba era se reunirem na
residência da Professora Salete, onde as aulas de alfabetização eram realizadas. Nesse
momento inicial do surgimento da Ditadura Militar na Paraíba o medo se fazia presente,
havendo a necessidade desses estudantes buscarem novas maneiras de dar continuidade
as suas lutas.

O MOVIMENTO CEPLAR NA PARAÍBA O GOLPE MILITAR NA PARAÍBA

É interessante ressaltar que o interesse das classes dominantes que apoiaram o Golpe
Militar estava relacionado a um caráter ditatorial que, em Campina Grande, passou a ser
combatido, principalmente pelos estudantes que buscavam mudanças na estrutura

impactada pelas ideias dessa Campanha, haja vista que sua irmã Maria Salete Van der Poel lutava pela causa
popular, pela alfabetização de jovens nos bairros mais carentes de Campina Grande. Mesmo não participando
das reuniões, Léa Amorim nos contou que era “cumplice” de sua irmã, ao mentir para a mãe afirmando que
aqueles estudantes em sua residência eram alunos de Salete que estavam se dedicando ao Vestibular. Segundo
Léa, sua mãe tinha receios do envolvimento de Salete em movimentos sociais, pois naquela época quem fosse
contrário ao Governo era tachado de comunista. Daí sua afirmação de que os “estudantes sabiam, eles
planejavam, mas não era uma coisa aberta, pois se encontravam na Livraria Pedrosa que era o local onde se
recebia livros de Engel, Marx, entre outros”. Mesmo não tendo participação direta nesse movimento como sua
irmã Salete, consideramos que Léa Amorim foi sim uma militante, haja vista que, nesse contexto, o seu apoio foi
fundamental para que as aulas e discussões acerca da Campanha de Alfabetização de Jovens e Adultos pudessem
ter continuidade. Não foi possível, ao longo de nossa pesquisa, uma entrevista com a senhora Salete Van der
Poel, devido ao momento delicado, relacionado à sua saúde, pelo qual estava passando.
290
Entrevista concedida à autora ela Professora Leonília Maria de Amorim, também conhecida no meio
Acadêmico como Léa Amorim. Campina Grande, 26 de março de 2013.
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educacional. De acordo Cittadino (2006, p.116), o Golpe de 64 “significou mudanças muito


mais profundas e estruturais na organização sócio-político-econômica do país, na medida em
que foi o responsável pelo fim do Estado Populista e pela implantação de uma nova forma de
governo”291.

Na Paraíba, com o golpe militar que coincidiu com o Governo de Pedro Gondim292, a
CEPLAR foi invadida e materiais foram apreendidos, conforme esclarece o seguinte
Inquérito Policial Militar - IPM293 (1964, p.28):

291
CITTADINO, Monique. Poder Local e Ditadura Militar: O Governo João Agripino- Paraíba (1965-
1975). Bauru, SP: Edusc, 2006. p.116. É interessante ressaltar que Gomes (2010) em seu texto apresenta
um debate acerca do termo Populismo, ao evidenciar que “as primeiras formulações sobre o populismo
surgiram no contexto da democratização de 1945, como uma imagem desmerecedora e negativa do
adversário político em que ele deveria ser combatido no decorrer da própria luta política, surgindo
posteriormente como uma categoria explicativa de âmbito acadêmico” (GOMES, 2010, p. 8-9). Ainda de
acordo com a autora, ao discutir o termo Populista em sua obra, ela nos informa que o populismo “se trata de
um conceito com um dos mais altos graus de compartilhamento, plasticidade e solidificação, não apenas no
espaço acadêmico da história e das ciências sociais, como transcendendo este espaço e marcando o que
poderia ser chamado uma cultura política nacional” (GOMES, 2010, p. 20). Ainda de acordo com essa autora
ao evidenciar a relação do golpe militar com a questão populista, ela nos afirma que “as causas do golpe
deixariam raízes no esgotamento da experiência populista, uma vez que passa a possuir uma clara
periodização, pois tem inicio em 1930 quando eclode o movimento militar liderado por Vargas e se conclui
em 1964 quando do movimento militar que depõe João Goulart” (GOMES, 2010,p. 27). Ver mais em:
GOMES, Angela de Castro. O Populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um
conceito. In: O Populismo e sua história: debate e crítica/ Organização: Jorge Ferreira, -2ª ed. – Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
292
De acordo com Cittadino (1998) Pedro Gondim “durante o período inicial dessa segunda fase de sua
administração (1961-1965) permanece fiel aos princípios populistas através dos quais foi eleito”. Ver mais
em: CITTADINO, Monique. Populismo e Golpe de Estado na Paraíba- Monique Cittadino- João Pessoa:
EditoraUniversitária/Ideia. 1998; p.115. Paulo Geovanni (2009) também concorda com Cittadino ao afirmar
que “essa postura que o Governo de Gondim, de procurar manter-se como árbitro entre as classes em
conflito era um reflexo da composição populista que o elegeu”. Para maiores esclarecimentos ver:
NUNES, Paulo Geovanni Antonino. Os Movimentos Sociais, o Governo Pedro Gondim e o Golpe Civil-
militar na Paraíba. ANPUH- XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA- Fortaleza, 2009, p.06.
Discordando das visões apresentadas por Monique Cittadino e Paulo Geovanni acerca da posição do Governo
Pedro Gondim, caracterizado como Populista, é necessário analisarmos a conjuntura social na qual ele estava
inserido, pois Gondim era um homem que pertencia à camada dominante da Paraíba, sendo ligadas às políticas
tradicionais do Nordeste Paraibano. No entanto, apesar de seu governo ser caracterizado como Populista, há
controvérsias quanto a isso, haja vista que mesmo incorporando algumas práticas populistas ao seu Plano de
Governo, Gondim poderá ter feito isso pela questão da mobilização social, pelas circunstâncias do momento
que a Paraíba estava vivenciando e não por convicções.
293
Pesquisando a documentação do DOPS (Delegacia de Ordem política e Social) na Universidade Federal
da Paraíba-UFPB, em João Pessoa, encontramos diversos IPMs- Inquérito Policial Militar sobre os mais
diversos personagens que constituíram a Paraíba na década de sessenta. Deparam-nos com um cenário de
luta e de resistência contra a ditadura militar instaurada naquele período, mas também um cenário propício
ás diversas formas de reivindicações sociais. Nesse contexto, vale lembrar que a documentação encontrada
revela como a polícia política esteva articulada no sentido de vigiar e punir os estudantes que eram contrários à
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Aos três dias do mês de abril de mil novecentos e sessenta e quatro, nesta cidade
de João Pessoa, em cumprimento de ordem expressa ao Senhor Coronel
Comandante da Guarnição de apreender todo e qualquer documento ou publicação
de caráter subversivo ou propaganda do regime comunista, nos dirigimos à Praça
D. Adauto, onde está sediada a Campanha de educação Popular (CEPLAR), segundo
fomos informados, e aí, depois de ter sido verificado que não havia ninguém no
recinto, presente as testemunhas 2º Sargento JOSÉ VASCONCELOS NETO e 3º
Sargento ROMILDO DOMINGUES DE MELO, abaixo assinadas, e, entrando na
casa supra declarada, procedemos a mais minuciosa busca, examinando todas as
salas quartos e lugares, fazendo abrir portas, gavetas, armários, etc, encontrando o
seguinte material: 1 (um) cartaz utilizado para solução do teste; 11(onze) provas
de inscrição de professores para as Escolas CEPLAR, contendo também uma
entrevista [...].
Vários foram os documentos apreendidos na CEPLAR por ordem do Comandante da
Guarnição de João Pessoa. Vale lembrar que os assuntos relacionados a esses
documentos versavam sobre a conscientização dos estudantes na sociedade acerca de
suas lutas reivindicatórias, chamando atenção para o contexto social no qual estavam
inseridos. Sendo assim, em nossas pesquisas relacionadas à CEPLAR encontramos modelos
de lições que eram utilizadas pelos estudantes campinenses nas salas de aulas. Vejamos o
que o Inquérito Policial

Militar - IPM 1426294 (1964, p.52) informa:

[...] 4- Quais são as principais necessidades dos homens? (Habitação, saúde,


alimentação, educação, trabalho, etc). 5- Como o seu trabalho de operário ele
consegue satisfazer suas necessidades? 6- Quantos homens veem nessa ficha? 7- Se
houvesse mais homens a construção iria mais rápida, por que? 8- Será que se pode
dizer o mesmo em relação à vida? (Se todos os homens se unissem e trabalhassem
de comum acordo conseguiria fazer muito mais coisa em menos tempo - A união
faz a força. Por exemplo, lembremo-nos da formiga, tão pequena, mas unida em
grande número consegue remover pesos maiores do que ela [...].

Nessa época, grande parte dos alunos alfabetizados pelos estudantes que faziam parte da
CEPLAR era oriunda das classes populares de Campina Grande, sendo temas como
“habitação, saúde, alimentação, educação, trabalho” alvos de debates porque provocava
inquietação aos estudantes naquele contexto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

ditadura militar na Paraíba. Nesse caso, estamos nos referindo ao 1º IPM 1426 VOL. 1.118, p.28.
294
Ver mais em 1º IPM 1426 VOL1.118 (p. 52).
849
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Ao longo da pesquisa compreendemos que o Movimento CEPLAR na Paraíba contou


com a participação dos estudantes de Campina Grande-PB que lutavam por melhorias
educacionais, não apenas dentro da Universidade da Paraíba com as greves, mas para além
dos muros desta Instituição. Essa Campanha de Alfabetização de Jovens e Adultos que
iniciou no momento anterior ao Golpe Militar na Paraíba teve como idealizadora a
educadora Maria Salete Van der Poel que, na década de sessenta com a instauração do Golpe
Militar, buscou dar continuidade as atividades desenvolvidas por esse Movimento. Se
constituindo numa trajetória de Luta, a CEPLAR contribuiu, através de estudantes também
educadores e educadores, de forma significativa na alfabetização de muitos jovens de
Campina Grande-PB.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CITTADINO, Monique. Poder Local e Ditadura Militar: O Governo João Agripino-


Paraíba (1965-1975). Bauru, SP: Edusc, 2006.

CITTADINO, Monique. Populismo e Golpe de Estado na Paraíba- Monique Cittadino-


João Pessoa: EditoraUniversitária/Ideia. 1998.

FÉLIX. Wilson José. As práticas educativas da Liga Camponesa de Sapé: memórias de


uma luta no interior da Paraíba (1958-1964). 234f. Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa, 2010.

GOMES, Angela de Castro. O Populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a


trajetória de um conceito. In: O Populismo e sua história: debate e crítica/ Organização:
Jorge Ferreira, -2ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

JORNAL A UNIÃO, 01 DE ABRIL DE 1964.


JORNAL A UNIÃO, 21 DE ABRIL DE 1963.
NUNES, Paulo Geovanni Antonino. Os Movimentos Sociais, o Governo Pedro Gondim e o
Golpe Civil-militar na Paraíba. ANPUH- XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA-
Fortaleza, 2009
POERNER, Arthur José. O Poder Jovem: História da participação política dos estudantes
brasileiros- Rio de Janeiro: 1968. Civilização Brasileira

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Fortaleza – CE | 26 a 28 de Novembro | 2015 | ISSN 2447-5416

Entrevista

Leonília Maria de Amorim (Léa Amorim).

Documentos

DOPS(Departamento de Ordem Política Social)

Arquivo e Bibliotecas

8º Sessão de Depoimentos de perseguidos pela Ditadura Militar, realizada em 31.03.2011.


Auditório da Central de Aulas/ UFPB. Coordenação: Rosa Maria Godoy Silveira.
Expositora: Maria Salete Van der Poel. FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra e FERREIRA,
Carmélio Reynaldo (Orgs). Projeto: Compartilhando Memórias: Repressão e Resistência na
Paraíba. Vol. 8- Maria Salete Van der Poel João Pessoa: Editora da UFPB, 2012. 12 v.

Arquivo do Jornal a União;

Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba(IHGP)

Arquivo Geral da UFCG

Biblioteca Átila Almeida da Universidade Estadual da Paraíba.

Biblioteca Central da Universidade Federal de Campina Grande(Dissertações e Teses)

1º IPM ( Inquérito Policial Militar)1426 VOL. 1.118.

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MOVIMENTO DE MULHERES TRANSFORMADORAS DO CAMPO:


TRAJETÓRIA DE CONQUISTA PARA MULHERES

Antônia Lenilma Menezes de Andrade | lirameneses@bol.com.br

BREVE HISTÓRICO DO MOVIMENTO DE MULHERES TRANSFORMADORAS


DO CAMPO.

Em 1968, na comunidade rural do Campo Verde (atualmente território quilombola


pertencente à Concórdia do Pará), foi criado o Movimento de Mulheres Transformadoras do
Campo e da Cidade de Bujaru (MMTCCB), primeiramente apoiada pela paróquia de São
Joaquim em Bujaru, depois apoiada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT)295 (CPT-2002),
cujo coordenador era o padre Sergio Tonneto296. Esse movimento surgiu diante de uma
conjuntura de organização da Comissão Pastoral da Terra, que atua na região desde o início
dos anos 1960, preocupado em discutir as situações de violência no campo e trazer os sujeitos,
mulheres e homens para as discussões de luta pela terra e organização política.

295
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) é um organismo de Igreja, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB). Foi criada em Goiânia, em julho de 1975, por um grupo de bispos, padres e leigos, com o
objetivo central de "interligar, assessorar e dinamizar os que trabalham em função dos homens sem-terra e dos
trabalhadores rurais". Sua proposta é promover as práticas alternativas dos trabalhadores contra a dominação
econômica dos grandes projetos agrícolas e energéticos, e da massificação cultural, as várias formas de
organização dos trabalhadores para conquistar a terra, melhorar a produção ou salário e participar ativamente nas
decisões políticas, a informação e a formação de trabalhadores e agentes de pastoral, recuperando a memória
histórica de suas lutas, o apoio aos trabalhadores rurais na luta pela terra e por uma reforma agrária ampla, a
solidariedade com os povos da América Latina e do Caribe.
A CPT se organiza em 20 regionais que articulam as equipes locais de acompanhamento aos lavradores. A
Diretoria Nacional é constituída por 5 representantes das grandes regiões, pelo Presidente e o Vice-Presidente
eleitos em Assembléia. O Secretariado Executivo funciona em Goiânia, com a missão de documentar as lutas
dos lavradores e assessorar as regionais em seu trabalho,pastoral.
Para informar e formar lavradores e agentes de pastoral, o Secretariado Nacional produz o Boletim da CPT e a
Sinopse (Eclesial Econômica e Política). Sobre temas específicos, publica os "Cadernos CPT".
Formada pela CEDIC, a partir de doações, a Coleção contém documentos sobre ação da Pastoral da Terra não só
no que se refere a trabalhadores rurais, como também à sociedade como um todo.
http://www.pucsp.br/cedic/colecoes/pastoral_da_terra.html Acesso agosto de 2015.
296
Padre Tonneto. Padre que coordenou a CPT na região da Guajarina de 1960 ate sua morte em 2000.
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Na equipe da CPT/Bujaru trabalhavam nesta época: Padre Sergio Tonneto, Irmã


Rosa Figueiredo, Irmã Adelaide, Irmã Ivodia, padres Amadeu e Santiago, na época párocos
em Bujaru. Segundo Irmão Rosa Figueiredo a CPT tinha como objetivo desperta a
consciência crítica nas mulheres:
Os homens participavam dos Sindicatos, já tínhamos um trabalho com os jovens,
clubes de mães em quase toda comunidade, então, era necessário fazer um
trabalho mais político com as mulheres, já havia pressão de organismos
internacionais para que isso acontecesse. No triênio que iniciou em 1990, nós
tínhamos a meta, como linha de ação organizar as mulheres da região, criar um
movimento que as reunisse, mas não podia ser homens a organizar. Então ia
começa? E foram a Socorro Lima, Gaída Silva que tomaram a frente, e foram
muito importantes no processo de organização do Movimento. Foi feito uma
espécie de proposta de desenho da criação do movimento. Foi identificado e
mobilizado mulheres de vários municípios da região que tinham uma consciência
crítica mais aprofundada. Reunimos com elas e começamos a discussão para
formar uma coordenação provisória. A CPT, não atuava só no Bujaru. Era no
Acará, Mojú, Abaetetuba, Tailândia, Concórdia só depois297.

Havia uma percepção que no processo de organização e participação dos


trabalhadores da região havia a ausência das mulheres na discussão, elas ficavam em casa
cuidando da família para os homens participarem. Ora, na luta social, a participação deve ser
geral: homens e mulheres. As mulheres estavam em vários setores: STTR, Clube de Mães,
mas de forma tênue, de não expressão da sua participação. É importante ressaltar que o
MMTCCB era um movimento composto por mulheres do espaço rural e da cidade, porém na
cidade não conseguiu se firma tanto quanto no meio rural. Por isso, é um movimento que tem
na categoria rural a maioria das participantes, embora a coordenação geral fosse da cidade.

Historicamente se observa que os movimentos sociais têm contribuído para


organizar e conscientizar a sociedade considerando que apresentam conjuntos de demandas
via práticas de pressão e mobilização e têm certa continuidade e permanência. Eles não são
apenas reativos, movidos somente por necessidades imediatas. De acordo com Gohn (2006),

297
- Excerto da entrevista com Irmã Rosa Figueiredo- CPT/Guajarina, 2015.
O movimento surgiu como uma demanda regional quando as mulheres se organizavam para terem direitos à
sindicalização. A CPT foi uma boa parceira
O movimento surgiu como uma demanda regional quando as mulheres se organizavam para terem direitos à
sindicalização. A CPT foi uma boa parceira nisso. Era preciso se organizar e conscientizar as mulheres do seu
papel nos seus espaços.

853
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os Movimentos Sociais são empreendimentos coletivos para estabelecer uma nova ordem de
vida, eles surgem de uma inquietação social conseqüência de situações de insatisfação e do
desejo de novas formas e oportunidades de vida, isso também era o desejo das mulheres
naquele momento: participar do movimento social, como seus maridos, e também ter acesso a
bens e serviços que melhorassem as suas condições de vida e trabalho.
O Movimento possui caráter sócio-político e cultural numa conjuntura específica de
relações de força que caracterizam distintas formas de organizar e expressar suas demandas,
de acordo com Gohn (2004). As ações do MMTCCB propiciam um processo de inserção em
espaços coletivos não institucionalizados, gerando transformações na vida pessoal e das
localidades em que moram as mulheres nele inseridas. As ações decorrentes dessa
organização balizam interesses, identidades e projetos de grupos específicos, da geração de
trabalho e renda à formação político-social, como podemos ver abaixo:
A mulher pobre trabalha muito, mas não possui dinheiro. Ela é explorada pelos
opressores e muitas vezes em sua própria casa. Outras vezes é explorada como
empregada por outra mulher, a patroa.
É, mulher sofre mais do o homem, porque é obrigada pela necessidade trabalhar na
olaria, em casa, na roça, fazendo paneiro, caeira... Para ajudar o marido e não ver os
filhos com fome.
A mulher tem muito saber e muito valor. È importante quando o homem sabe
reconhecer isso e então cuida de sua mulher com carinho. Eu acho muito bonito
quando a mulher é unida com seu marido. Mas tem muitas mulheres oprimidas,
desvalorizada pelo próprio marido, e não tem liberdade nem pra sair de casa, de
participar da Comunidade e do estudo.
O sistema capitalista e neoliberal desvaloriza a mulher de vários modos e quer que
ela se cale e não lute por nada. Eles, os capitalistas, não querem que a mulher pare
pra pensar nos seus direitos porque têm medo que elas descubram que são
exploradas e assim se organizem pra lutar. E tem mulher que obedece direitinho ao
SISTEMA e “se enterra” na casa, na olaria, na roça. Mas um dia nós mulheres
vamos conseguir o que queremos. Vamos ocupar o nosso lugar na família e na
sociedade.
Uma esperança de mudança é a participação em nosso Movimento e em outras
organizações. È juntar com as companheiras e os companheiros para enxergar mais
longe, se organizar e lutar pela vida. É ter consciência de seu saber e de seu valor. É
ter coragem de sacudir as cinzas do fogão, do nosso corpo e entra de cheio no
Movimento para transforma a sociedade298

As mulheres MMTCCB foram encorajadas a se posicionar, utilizar um discurso de


igualdade de gênero e oportunidades, mas foram despertadas também para um novo tipo de

298
Antologia do circulo de Cultura- CPT/Guajarina. Circulo de Cultura da Comunidade do Cravo, Timboteua
Cravo e Dona.
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ação política, questionando o seu status subordinado em razão do sexo na família, dentro da
igreja e no interior dos sindicatos de esquerda em que participavam. Na origem a participação
das mulheres ocorreu tanto pelo estímulo como pela vontade e necessidade de participação em
um movimento específico da categoria, como observado na narrativa:
Nasceu quando nós mulheres percebemos nossa marginalização na sociedade, na
família, no sindicato e sentimos quando era necessário buscar outra luta.299

Portanto, o MMTCCB surge com a finalidade de dar visibilidade ás demandas


especificas das mulheres, no interior do Estado do Pará, e garantir a participação delas nas
decisões políticas e de direito a terra.

O SENTIDO DO MOVIMENTO DE MULHERES TRANSFORMADORAS


A questão de compreender o momento em que surge uma demanda social está
localizada na leitura do contexto em que esse fato se encontra. Quando se trata do MMTCCB,
estamos nos reportando a uma questão de luta pela terra, mas também estamos diante da luta
pela igualdade de gênero, na qual, homens e mulheres em alguns momentos têm exercido
papéis diferentes na sociedade. Nesse sentido:
Entendemos por imagens de gênero configurações das identidades masculina e
feminina, produzidas social e culturalmente, que determinam em grande parte, as
oportunidades e a forma de inserção de homens e mulheres no mundo do trabalho.
Essas imagens são “prévias” a essa inserção, ou seja, são produzidas e reproduzidas
desde as etapas iniciais da socialização dos indivíduos e estão baseados, entre outras
coisas, na separação entre o privado e o público, o mundo familiar e o mundo
produtivo, e na definição de uns como territórios de mulheres e outros como
territórios de homens (CAPPELIN, 2000, p.130).

Para Cappelin coloca que a questão de gênero perpassa por subjetividades, englobam
o social e o cultural produzindo identidades do homem e da mulher, onde homens e mulheres
se localizam em suas funções desde tenra idade. Portanto, seus espaços são diferenciados.
Temos em Scortt (1995) dentro de suas analises o seguinte conceito:
O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações
de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre à
mudança nas representações de poder, mas a direção da mudança não segue
necessariamente um sentido único. Como elemento constitutivo das relações sociais

Depoimento de Antonina Borges retirado da Cartilha do Circulo de cultura CPT- O POVO TEM QUE
299

SABER Comunidade do Cravo- 1999.


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fundadas sobre diferenças percebidas entre os sexos, o gênero implica elementos


relacionados entre si. (SCORTT, 1995. P. 60)

Diante desses apontamentos, a importância de entender as relações de gênero no


espaço rural se dá na perspectiva de perceber que essas relações variam de acordo com os
diferentes espaços e escalas. Para Silva (2009), Há diferenças entre o privado e o público
significa espaços de submissão e poder. Com relação à mulher trabalhadora rural, o espaço
público está mais distante de sua atuação, reservando-se ainda em muitos casos ao espaço
privado. Nesses espaços temos o conceito de espaço vivido que se constitui em uma vivência
cotidiana que é conceituada pelo Frémont (1980, apud MENESES E GAMA, 2012) como
uma experiência de vida que não acaba, mas está em constante movimento.

O espaço vivido é uma experiência contínua. [...] O espaço vivido é um espaço


movimento e um espaço-tempo vivido. [...] O espaço vivido é também, desde a mais
tenra idade, um espaço social. [...] Mas temos de constatar que, se o espaço vivido
acende às conceitualizações racionais da inteligência, ao raciocínio num espaço
cartesiano e euclidiano, também se revela portador de cargas mais obscuras, em que
se misturam as escórias do afectivo, do mágico, do imaginário (FRÉMONT, 1980,
apud. MENESES E GAMA, 2012, P. 5).

Como esclareceu Fremont (1980 apud MENESES e GAMA, 2012) o espaço vivido
possui um caráter particular a cada pessoa, está também ligado ao imaginário, e ao espaço
social. Ele é construído por uma série de acontecimentos, onde homens e mulheres estão
posicionados de maneiras diferentes. Logo, ainda segundo este autor, no mesmo plano, o
espaço vivido das mulheres distingue-se dos homens, pois o espaço é constituído por encaixes
de Células fechadas e solitárias umas das outras, porém cuidadosamente distinta: a cidade, a
casa, o quarto etc. as mulheres vivem em espaço muito restritos quase secretos entre a casa e
poucos espaços públicos.
E nesse espaço vivido é que se encontram algumas mulheres do campo que como
relata o autor, possivelmente estão localizadas em um espaço menor, no foro íntimo, na casa,
quintal, na lavoura. Não obstante ela assume uma série de tarefas que lhes são ensinadas
desde muito jovens. Mesmo dentro desse contexto, algumas mulheres se destacaram com sua
forma de lidar com essas diferenças, nesse caso podemos destacar as mulheres que lideram o
Movimento de Mulheres Transformadoras, como mulheres que lutaram mesmo em suas

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condições femininas e camponesas. Ainda sobre as mulheres, Gonh afirma:


As mulheres estão nas redes associativas e de mobilização estruturadas em
organizações não-governamentais, nas associações e bairro e associações
comunitárias, em entidades assistenciais, nas organizações criadas por empresas a
partir de políticas de responsabilidade social, em organizações populares que atuam
junto a mediadores, como entidades articuladoras e os fóruns, nos movimentos
sociais propriamente ditos e nos diversos conselhos de gestão públicas
compartilhadas existentes (GOHN, 2008, p. 133).

Tem crescido de forma favorável o número de mulheres que querem sair do


anonimato e protagonizar suas conquistas, elas estão em diversos espaços. Tem mostrado sua
força e capacidade de liderança nos processos decisórios. Seja como líder sindical, como
ministra ou presidente da república, as mulheres de um modo geral estão saindo da
invisibilidade.

AÇÕES DO MOVIMENTO: MOMENTO DE SEMEAR


Os Movimentos de Mulheres trabalhadoras rurais no cenário nacional são recentes, o
marco histórico acontece a partir da década de 1980, conhecida como a Década da Mulher. Os
primeiros movimentos específicos de mulheres rurais datam do início dos anos 1980, muitos
deles foram motivados ou nasceram nos espaços da Igreja Católica Progressista, outros pelos
movimentos sindicais e por partidos políticos. Esses movimentos tiveram visibilidade a partir
das realizações de encontros, congressos, passeatas, caminhadas e marchas.
Um dos eventos aconteceu em 1982 no Rio Grande do Sul, que foi o 1º Congresso da
Mulher Camponesa, em 1983 o 1º Encontro de Líderes Trabalhadoras, celebração do dia 08
de março em 1984, que reuniu mais de mil trabalhadoras rurais e, em 1985, o 1º Estadual de
Trabalhadoras Rurais com a participação de mais de 10 mil mulheres. E mais caminhadas
rumo a Brasília que eram as mobilizações para a constituinte, registramos a Caminhada das
Mulheres da Roça em 1986. Na Região Nordeste foi realizado dois grandes eventos, um em
1984 no Estado de Pernambuco, que foi o 1º de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão
Central de Pernambuco e, em 1986, o 1º Encontro das Trabalhadoras Rurais da Paraíba.
(MENESES e GUSMÃO, 2012).
Esses processos regionais foram decisivos para a criação de dois grandes
movimentos: Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste-MMTR-NE, fundado

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em 1986 e o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Rio Grande do Sul – MMTR-


RS, fundado em 1989 e fomentar os movimentos menores que se consolidavam no Norte,
estado do Pará, como Movimento de Mulheres da Guajarina e o MMTCCB-PA.
As questões de pauta da luta das mulheres nesses movimentos passavam
primeiramente pelo reconhecimento da profissão como agricultora e que constassem em seus
documentos que eram trabalhadoras rurais ou agricultoras (e não como doméstica ou dona de
casa); a luta por direitos sociais, em especial a aposentadoria e o salário maternidade; o direito
de sindicalização e as questões da saúde da mulher.
Ainda nessa década foram feitas as primeiras reivindicações, como a titulação da
terra em nome do casal, ou em nome da mulher chefe de família, e o direito das mulheres
solteiras ou chefes de famílias serem beneficiárias da Reforma Agrária.
Na Constituição de 1988, as mulheres rurais tiveram duas importantes conquistas: a
menção explícita ao direito das mulheres a terra, e sua inclusão como beneficiárias da
previdência social, com direito à aposentadoria, à licença-saúde e à licença-maternidade, tudo
isso na condição de seguradas especiais. E para implantação como política pública para esse
segmento, são necessárias outras mobilizações e a ampliação de outros movimentos do
campo. (MENESES e GUSMÃO, 2012).
Nos últimos anos de 1990, podemos considerar que foi o período que as mulheres
rurais aparecerem publicamente como produtoras rurais propriamente ditas. Agora já
reivindicando o direito de serem beneficiárias de políticas produtivas, e exigindo tratamento
diferenciado por parte da sociedade e do Estado. Nesse momento é que inicia os primeiros
congressos e seminários do MMTCCB. Em cada um dos congressos, realizadas nos anos de
1996, 1998, 2003, 2006 e 2011 a plataforma política e pauta de reivindicações focalizou
questões estruturais e conjunturais e aquelas específicas das trabalhadoras do campo, todas
buscando a superação da pobreza e da violência no campo, o desenvolvimento sustentável, a
igualdade de gênero assim como um reforço a identidade de mulheres rurais (CPT, 2012).
Organizadas por um conjunto de organizações coordenadas pela Comissão Pastoral da Terra.
Paralelamente, avançaram também no aprofundamento da discussão das relações de gênero e
do seu papel dentro das famílias e na sociedade, reivindicando mudanças na divisão sexual do
trabalho, questionando sua falta de poder dentro de casa e denunciando a violência de
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doméstica (SILIPRANDI, 2008).


O primeiro Congresso Municipal do MMTCCB, aconteceu em 1996, centenas de
mulheres se reuniram no Município de Concórdia do Pará, nele foram definidas as diretrizes
do Movimento as estratégias, considerando que a maioria das mulheres pertencia segundo o
relatório da CPT, a uma classe trabalhadora oprimida que vivia do suor do trabalho e de seus
maridos e acreditavam de verdade que as mulheres têm importância na sociedade, que só elas
podem assumir (CPT, 1996). Também foram definidos os objetivos que norteariam a vida do
movimento, dentre os quais a libertação das mulheres, violência contra a mulher e luta pela
terra.
O congresso regional, das mulheres da região da Guajarina, ocorreu em 1999 em
Abaetetuba/PA, entre os dias 11 e 14 de novembro. Esse congresso tinha como objetivo reunir
todos os municípios que fazem parte do movimento de mulheres na região da Guajarina
participou Concórdia do Pará, Mojú, Abaetetuba, Acará, Barcarena, Tomé- Açu e Tailândia.
O tema: Mulher: Uma força construindo o Brasil, objetivos principal era apontar a
importância das mulheres rurais na construção da nação brasileira.
No que se refere à violência foi um tema comum nos congressos de 2003, 2006 e
2011, porém somente em 2014, foi instalada uma delegacia de atendimento a mulher na
região, mesmo a Lei Maria da Penha tendo sido promulgada em 2007, há um índice alto de
violência contra a mulher no Estado do Pará. Nesse sentido, temos uma preocupação especial,
por causa das condições em as mulheres agredidas ficam sem acesso aos equipamentos
públicos que possibilitem a elas ter algum tipo de ajuda. (CINTRÃO, 2011).
No que se refere à violência, esse foi um tema especial nas três Marchas de 2000,
2003 e 2007, porém somente em 2007 foi promulgada a Lei Maria da Penha, após muitas
lutas, de Maria da Penha que sofreu violência doméstica a ponto de quase ser morta por seu
agressor. Seguindo ainda a temática da violência, temos uma preocupação especial, por causa
das condições em que as mulheres ficam agredidas, sem nenhum acesso aos equipamentos
públicos que possibilitem a elas ter algum tipo de ajuda (CINTRÃO e SILIPRANDI, 2011).
Depois do primeiro congresso aconteceram os de 2003 contou com a presença de
2500 mulheres, em 2006 com mais de 300 mulheres e por último em 2011 com cerca de 500.
Nesses congressos municipais e regionais, as trabalhadoras rurais apresentaram toda sua pauta
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de reivindicação de todos os municípios e comunidades da região Guajarina, microrregião de


Tomé-Açu/PA que, futuramente, as reivindicações poderão se transformar ou se efetivar
como política pública Estadual ou municipal.

“COLHENDO OS FRUTOS” DAS MOBILIZAÇOES DO MMTCCB 1996, 1998, 2003


E 2011.
Os Congressos que aconteceram tiveram um forte caráter de denúncia, porém, as
trabalhadoras rurais também apresentaram uma pauta de reivindicações para negociação com
o governo. Grande parte dessas reivindicações voltou a integrar a pauta dos congressos
seguintes, realizadas nos anos 2003 e 2006 e 2011. Atualmente, as mulheres do Movimento
Transformadoras do Campo, podem contabilizar algumas conquistas. Contudo, ainda se
percebe que elas não foram suficientes para acabar totalmente com as desigualdades de
gênero. Algumas dessas conquistas já estão dando seus frutos e mudando a realidade de várias
mulheres na região. Abaixo, seguem algumas delas:
Documentação civil e trabalhista para todas as mulheres rurais
Acesso a terra, apoio às mulheres assentadas e políticas de apoio a produção na
agricultura familiar através das Emates;
Inserção de todas as mulheres da Guajarina no Programa Nacional de Documentação
da Mulher Trabalhadora Rural – PNDTR.
Criação de uma diretoria de Gênero ligada na Secretaria de Planejamento municipal de
Concórdia e Bujaru;
Apoio ao protagonismo das mulheres trabalhadoras nos territórios rurais;
Criação do Conselho Municipal de Mulheres;
A sindicalização de 98% das mulheres do meio rural;

Reconhecidamente o movimento de Mulheres Transformadoras do Campo, vem


contribuindo como um instrumento na luta para a conquista de direitos que lhes foram
negados historicamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Movimento de Mulheres Transformadoras do Campo e da cidade representou
acima de tudo um desejo de mudança das condições de milhares de trabalhadoras rurais da

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Microrregião de Tomé-Açu (Região Guajarina). Assim, ficou como uma semente plantada
para o futuro. Representa o desejo de muitas mulheres que querem ver uma sociedade mais
justa, para ambos os gêneros. O processo de luta ainda continua, pois em muitos espaços a
violência contra as mulheres rurais ocorre com frequência. Deste modo, é necessário o plantar
para colher os frutos de uma sociedade em que haja todas as possibilidades de um pleno
desenvolvimento humano, baseado no respeito e na tolerância entre os diversos setores da
sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPPELIN, Paola; DELGADO, Didice; SOARES, Vera (Org.). Mulher e trabalho: experiências de
ação afirmativa. São Paulo: Boitempo, 2000.
CITRÃO, Rosângela. SILIPRANDI, Emma. O progresso das mulheres rurais. In: BARSTED, Leila
Linhares; PINTANGUY, Jacqueline. (Orgs.). O progresso das mulheres no Brasil 2003-2010. Rio de
Janeiro: CEPIA: Brasília: ONU Mulheres, 2011.
FRÉMONT, Armand. A região, espaço vivido. Trad. Antônio Gonçalves. Reivão & Antônio G.
Mendes. Coimbra: Livraria Almeida, 1980.
GOHN, M. da G. (Org). Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos
atores sociais. Petrópolis: Vozes, 2008.
MENEZES, Elisangela Ferreira e GAMA, Andrea Nogueira, A busca pela visibilidade: A Marcha
das Margaridas e a trajetória de conquistas para mulheres rurais. Anais do V NEER, UFMT,
2012. Site. www.geografia.ufmt.br/.../eixo%202%20GT2%20artigo%20.
SCOTT, J. W.. “Gender: A Useful Category of Historical Analysis”. The American
Historical Review, vol. 91, nº 5. (Dec. 1986), pp. 1053-1075. Original inglês disponível em
JSTOR: <http://www.jstor.org/stable/1864376.
SILIPRANDI, E. Mulheres e Agroecologia: a construção de novos sujeitos políticos na
agricultura familiar. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília, Centro de
Desenvolvimento Sustentável, Brasília, 2009.
SILVA, Fabiane Ferreira; RIBEIRO, Paula Regina Costa. Diferenças de gênero no campo da
Ciência: um ensaio de análise sobre a presença feminina no CNPQ. In: VIII Seminário
Internacional Fazendo Gênero: corpo, violência e poder. Florianópolis: Mulher, 2008
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“MULHERES SEDICIOSAS”: A OPOSIÇÃO FEMININA À LEI “SORTEIO


MILITAR DE 1874”. CEARÁ (1874-1875)

Maria Regina Santos de Souza | mamuk2013@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

Em 26 de setembro de 1874, a reforma no recrutamento militar foi aprovada pelo


parlamento brasileiro. As transformações foram incorporadas pela Lei 2.556. Esta
determinava que o recrutamento para o Exército e a Armada (Marinha) fosse realizado por
meio de um sorteio universal, fato inédito no Brasil. O dia 1º de agosto de 1875 foi a data
marcada para o início dos trabalhos das juntas de alistamento em todo o Império300. Em
resposta ao governo, grande parte da população brasileira se colocou contra a aplicação da

300
Eis algumas partes da Lei 2.556 para entendermos como era feito o sorteio. “[...] No primeiro anno da
execução desta Lei o referido alistamento comprehenderá todos os cidadãos idoneos desde a idade de 19 annos
até a de 30 annos incompletos, que pela legislação actualmente em vigor estão sujeitos ao recrutamento. § 1º O
alistamento será feito em cada parochia por uma Junta composta: Do Juiz de Paz do primeiro anno como
presidente, da autoridade policial mais graduada, e do Parocho. O escrivão de paz servirá de secretario. Si a
parochia tiver mais de um districto, o Juiz de Paz, e a autoridade policial serão os do districto, em que a Matriz
fôr situada. §2º A Junta não poderá funccionar sem a presença de todos os seus membros. Na falta ou
impedimento de qualquer delles, servirá o 1º dos seus substitutos, que estiver desimpedido. § 3º As sessões da
Junta serão publicas, e os seus trabalhos se concluirão dentro do prazo estabelecido no regulamento, destinando-
se quinze dias pelo menos para as reclamações, que os interessados ou qualquer cidadão poderão apresentar. §
4º Concluidos os trabalhos do alistamento, serão, com as reclamações que apparecerem, registrados em acta
assignada pela Junta, extrahindo-se duas cópias, uma para ser publicada na parochia por editaes, e nas gazetas,
onde as houver, e outra para ser remettida ao Juiz de Direito da comarca; onde houver mais de um, ao da 1ª vara.
§ 5º Os alistamentos feitos pelas Juntas parochiaes serão apurados nas cabeças de comarca por uma Junta de
revisão, que tambem decidirá as respectivas reclamações. § 6º A Junta revisora será composta do Juiz de Direito
como presidente, do Delegado de Policia, e do presidente da Camara Municipal. O Promotor Publico assistirá ás
operações da revisão, reclamando contra as omissões havidas nos alistamentos, interpondo os recursos
competentes contra as inclusões e exclusões illegaes, e promovendo todos os termos do processo. Servirá de
secretario da Junta um dos escrivães que o Juiz de Direito designar. São applicaveis á Junta revisora as
disposições dos §§ 2º e 3º deste artigo. § 7º A Junta de revisão reunir-se-ha no dia marcado no regulamento, e
funccionará pelo modo, que neste fôr estabelecido.[...]”.Consultar a Lei 2.556 no site:
www2.camara.leg.br/.../lei/.../lei-2556-26-setembro-1874-589567-public...(último acesso: 22/julho/2015, às
10:00. (Grifos nossos)

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referida lei, o que resultou, de forma quase generalizada, em atos de violência nas províncias,
sobretudo nas províncias do Norte. No Ceará, por exemplo, as tentativas de execução da
legislação 2.556 causaram uma “onda de terror”, principalmente entre as mulheres que, “não
dispostas a perderem seus homens, reagiram com furor à sua prática, pois diziam que o sorteio
era injusto, intuindo que se tratava de um recrutamento para outra guerra no Paraguai”.
O objetivo deste texto é o de mostrar como as mulheres cearenses reagiram, de maneira
violenta, à “Lei do Sorteio Militar de 1874”. Para tanto, usamos como fontes principais: as
notícias de Jornais locais e também de outras províncias, bem como Ofícios e Relatórios de
Presidentes de Províncias da época, com o intuito de recompor o importante papel feminino
nas resistências às ordens do governo. Essas mulheres não eram sediciosas, como afirmavam
as autoridades do Ceará, mas opositoras a uma “decisão legal” que se mostrava inaceitável
dentro dos padrões culturais vividos por elas até aquele momento.

AS TENTATIVAS DE APLICAÇÃO DA “LEI DO SORTEIO MILITAR” NAS


PROVÍNCIAS: “A TEMPESTADE” NA PROVÍNCIA DO CEARÁ
O dia 1º de agosto de 1875 foi a data marcada para o início dos trabalhos das juntas de
alistamento em todo o Império. A lei 2.556 determinava que o recrutamento para o Exército e
Armada fosse realizado por meio de um sorteio universal. Atos de oposição ocorreram de
forma quase generalizada nas províncias.
De acordo com as notícias dos jornais cariocas, Diário do Rio de Janeiro e A Reforma,
a lei do sorteio por ser considerada inadequada a nação, encontrou oposição em muitos
recantos do Brasil. No Sul (hoje, entende-se Sudeste), a província de Minas Gerais foi a mais
visualizada, embora as de São Paulo e Rio de Janeiro tenham tido semelhante destaques 301.
Nas províncias do Norte (hoje, entende-se Nordeste), onde os protestos parecem ter
sido mais intensos, houve ações violentas variadas, percebendo-se por violência quaisquer

301Para saber mais sobre a oposição a “lei de sorteio” em Minas Gerais ver: Fábio Faria Mendes. Segundo este
autor, “durante todo o mês de agosto, pelo menos 78 localidades de Minas seriam atacadas por multidões que,
segundo os informes das atas de instalação das juntas, variavam entre 30 e 500 pessoas. Nessas ocasiões, os
alistamentos seriam rasgados ou queimados[...]. Em setembro, outras 30 paróquias rebelaram-se da mesma
forma. Entre outubro de 1875 e abril de 1876, pelo menos mais 19 localidades seguiram a mesma rebeldia”
(MENDES, 2010. p. 143.).

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atos de intimidação com armas, palavras e gestos direcionados aos membros das juntas e
outros agentes comprometidos com a feitura das listas de alistamento, então confeccionadas
depois do sorteio.
Segundo as colunas “Chronica Política”, “CORRESPONDENCIAS” e “FACTOS
DIVERSOS” do periódico A Reforma, no Norte, as províncias mais rebeldes foram
Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia e Ceará.
Em “Ouricuri, Pernambuco, os inspetores para o mais novo sistema de recrutamento
foram maltratados por um grupo de mulheres, e mais se fariam se encontrassem resistências e
que os homens se encarregaram de rasgar as listas”. Na freguesia pernambucana de
Leopoldina, “dizem que uma senhora distincta penetrou na igreja com diferentes pessoas e
rasgou todos os papeis relativos aos alistamentos, dando nessa ocasião uma morte em um
individuo de nome José Vieira [...]”. “No Recife, chegavam notícias desagradáveis do interior
com relação ao arrolamento a que está procedendo para o sorteio” (Biblioteca Nacional/BN/RJ.
Jornal A Reforma. 10 de setembro de 1875. [FACTOS DIVERSOS]).
Mas, o presidente de Pernambuco, apesar de reconhecer que houve algumas desordens
no momento dos alistamentos, negou a gravidade dos fatos. Ele relatou que,

[...] em 1875 apenas houve algumas e raras manifestações contra a nova lei, que não
tiveram importância e nenhuma influencia exerceram sobre o socego público.
Foram, pois, desmentidos pelos factos os boatos que por momentos circularam e
annunciavam graves desordens por occasião de reunirem-se as juntas de alistamento.
(Falla com que o Exm. Commendador João Pedro Carvalho de Moraes abriu a
sessão da Assembléia Legislativa Provincial de Pernambuco em 1ª de março de
1876. Pernambuco: Typographia de M. Figueiroa de Farias e Filhos, 1876.p. 27)

No Rio Grande do Norte, “cerca de 500 pessoas armadas, homens e mulheres,


invadiram, pela segunda vez, a matriz da vila de Goianinha, com intuito de innutilizar os
trabalhos da junta paroquial encarregada do alistamento de cidadãos aptos para o serviço
militar, sem nenhum respeito às autoridades e a força pública ali estacionada”, sendo que “A
Guarda Nacional foi chamada pela presidência no empenho de fazer respeito à lei e garantir a
ordem pública”. (BN/RJ. Jornal A Reforma. op.cit. 31 de agosto de 1875. [FACTOS
DIVERSOS/Enthusiasmos pela Conscripção]).
Nas letras d’A Reforma a “rebeldia baiana era total. Na comarca de Camamu que respondia
por mais de 5 districtos”, por exemplo, foi necessário “o destacamento da capital para conter
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os sedicciosos que vendo o desembarque dos soldados, dispersaram” (BN/RJ. Jornal A Reforma.
Op.cit. 28 de agosto de 1875. [FACTOS DIVERSOS. /Enthusiasmos pela Conscripção]).
Em diversas paróquias baianas, incluindo a de Salvador, houve “tantas disordens por
causa da atividade da nova lei do recrutamento” que: “durante os dias 2,3 e 4 do mês de julho
último (1875), nesta cidade, pozeram em desvario parte da população, sentindo-se seriamente
alterada a ordem pública, e das aggressões e luctas que se deram em diversas localidades por
occasião da reunião das juntas parocheais de alistamento”. Mas, o presidente garantiu que,
apesar disso, “a tranquilidade pública estava sendo mantida na província” (Relatório do chefe
de polícia da Bahia João Bernardo de Magalhães. Documentos annexos ao Relatório com que o Exm.
Sr. Presidente da Província da Bahia Dr. Luiz Antonio da Silva Nunes, abriu a Assembléia Legislativa
Provincial da Bahia em 1° de maio de 1876. Bahia: Typographia Correio da Bahia, 1876.p. 3)
No Ceará, as tentativas de aplicação da lei do “sorteio militar” na província também
causaram tumultos, agressões e mortes.
Durante o ano de 1875, o jornal A Reforma manteve-se tão bem informado sobre as
oposições à “lei do sorteio” na província cearense que previu: “o alistamento proposto pela
nova lei da conscrição e recrutamento tem provocado reclamações e queixas tais que é para
recear um levantamento do povo” (BN/RJ. Jornal A Reforma. Op.cit. 16 de julho de 1875
[CORRESPONDENCIA. Ceará, 28 de junho de 1875]).
Em algumas localidades do Ceará, as multidões agiram rápido. No momento de
“afixação dos edis de convocação da população nas portas das igrejas matrizes [que
explicavam a lei 2.556]”, portanto, antes das tentativas de confeccionar as listas, os “rebeldes
se pozerao em ação”. Em Acarape e Baturité, por exemplo, “as queixas sobre a execução da
lei do sorteio se fizerao desde maio de 1875”. Em Saboeiro, “a rebeldia foi vista no início de
julho desse ano”, conforme oficiou o presidente da província ao ministro da guerra:

No dia 19 do corrente comunicou-me o juiz de direito da Comarca de Saboeiro que,


no dia 2 deste mez, um grupo de mulheres e homens rasgara o edital que se achava
afixado a porta da matriz, para convocação dos interessados no alistamento do
exercito e armada...
Eles prometeram voltar, em numero maior, no dia 1º de agosto...
(Arquivo Público do Ceará/APEC. Fundo: Governo da Província do Ceará. Livro
nº 150. Ofício de 30 de julho de 1875).

No início do mês de agosto de 1875, o senador cearense Tomaz Pompeu falou, numa sessão
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da Assembleia, sobre os distúrbios causados pela “Lei do sorteio”:

[...] Não [era] uma ou outra localidade influenciada por inimigos da tranquilidade
publica, por indivíduos dominados pelas paixões más; [eram] muitas localidades em
diferentes províncias, e ao mesmo tempo.
No Ceará as juntas de qualificação não poderam funcionar em Limoeiro, Conceição
(Baturité), Quixadá e Acarape, tendo sido dispersos por grandes multidões de
homens e mulheres que alem de rasgarem os livros e mais papeis, teem ameaçado as
autoridades.
Na Parayba teem si dado movimentos dessa ordem, acrescendo que a população,
varonil de certa idade, para evitar a conscripção, tem recorrido aos casamentos,
acontecendo casarem-se muitos rapazes de 11 a 20 annos[...]
(BN/ RJ. Jornal Diário do Rio de Janeiro, op.cit.5 de agosto de 1875.p.2)302

Mas, ao que tudo indica, a “pólvora” para a explosão das multidões cearenses havia
sido a disseminação, por meio da imprensa do Ceará, de novas “notícias de guerra no
Paraguai”. As tentativas de execução da lei 2.556 intensificaram as memórias recentes dos
sacrifícios pessoais, outrora exigidos na “Guerra do Paraguai (1864-1870)” (SOUZA, 2012).
As viúvas, mães, filhas e irmãs cearenses ainda choravam as mortes de seus parentes
nesse conflito, também sofrendo com as perdas financeiras ocasionadas por ele. Além disso, o
preconceito, o descaso e a indiferença das autoridades do Império em relação às mulheres
“requentes da guerra”, faziam-se presentes no momento em que elas suplicavam a pensão dos
parentes mortos em combate (SOUZA, 2012.op.cit) . Não é surpreendente, portanto, que as
mulheres tenham sido as protagonistas mais visíveis nas oposições contra a “lei do sorteio”.
Vamos aos relatos.
No início dos trabalhos das juntas, na paróquia de Conceição, em Baturité, “um grupo
numeroso de pessoas, em sua maioria mulheres, invadiu a igreja e tomou os papeis das mãos
dos membros das juntas e dilaceraram, atrapalhando o trabalho de alistamento como mandava
a lei” (Biblioteca Pública Meneses Pimentel/BPMP/CE. Jornal A Constituição. 8 de agosto de 1875.
p.3).
Em algumas edições do jornal Cearense, o título metafórico “Continua a

302Durante a “guerra do Paraguai”, uma das táticas utilizadas pela população masculina para escapar do
recrutamento foi o casamento precoce. Essa prática, apesar de não ser exclusividade desse conflito, foi
demasiadamente utilizada durante sua vigência. Contudo, pelo menos para os homens menos afortunados, essa
medida quase não surtiu o efeito desejado. Muitos indivíduos casados acabaram sendo “laçados para o conflito
do Paraguai”. Mas, o que interessa na fala do Senador Pompeu é que muitas pessoas acreditavam que o
recrutamento realizado naquele momento era para outra peleja, daí a repetição da estratégia dos casamentos
precoces. Cf: SOUZA, 2012.op.cit.
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Tempestade”, usado nas notícias sobre a oposição à lei na província, indicava o clima
violento:
Continua a Tempestade.
Em vários pontos tem havido manifestações populares. Em Quixadá na ocasião em
que a junta qualificadora tratava de dar começo , a egreja foi invadida por homens e
mulheres que arrebatando os papeis e livros romperam-nos com furor. Nota-se que
nesses pronunciamentos tem tomado maior parte as mulheres. Estas, ao menos,
estarão isentas dos colletes longuinhos, que conquistaram a Parayba, acando com a
raça de quebra-kilo.
(BPMP/CE. Jornal Cearense. 12 de agosto de 1875. p. 2. [Noticiário. Grifos
nossos])303

Dias depois, foi a vez de Limoeiro do Norte rebelar-se. Anunciou-se que “uma
multidão de homens, mulheres e mininos em numero superior a 1.000 pessoas, anularam o
trabalho da junta de alistamento arrebatando os papeis, innutilizando” (BPMP/CE. Jornal
Cearense. Op. Cit. 22 de agosto de 1875.p. 2. [Noticiário]). Em Quixeramobim, onde se dizia que
“os trabalhos das juntas haviam sido adiados sem motivos aparentes”, o povo pronunciou-se
contra a lei, sendo que “um grupamento de homens e mulheres innutilizou os papeis,
quebrando cadeiras, mesas e tinteiros etc, retirando-se depois na santa paz” (BPMP/CE.Jornal
Cearense. Op.cit. 26 de agosto de 1875.p. 3.).
Ainda no mês de agosto de 1875, o jornal Cearense noticiou que o presidente da
província, Esmerino Gomes Parente, havia considerado crime de Sedição as ações das
multidões femininas contra a lei do sorteio:

Mulheres sedicciosas
Informa-nos que o sr. Esmerino Gomes Parente [presidente do Ceará] mandara
proceder, por crime de sedicção, contra as valentes Amazonas do Quixadá, que
fizeram correr da matriz daquela freguesia a junta de alistamento do exército. Em
nossa terra parecer ser facto virgem processar-se mulheres por crime de sedicção.
Há de ser cousa curiosa. No annaes da história ficará registrado este facto.
(BPMP/CE.Jornal Cearense. Op. Cit. 22 de agosto de 1875.p. 2. [Noticiário])

O crime de Sedição, então prescrito no Título IV, Seção III do Código Criminal, era
um delito grave “contra a segurança interna e pública tranquilidade do Império prevendo

303 Segundo Hamilton de Matos Monteiro, um dos castigos mais comentados na época da revoltas dos Quebra-
Quilos foi o colete de couro, inventado pelo capitão Longuinho. “O tórax e os braços do prisioneiro eram
envolvidos em couro cru molhado; ao secar, o couro comprimia o peito da pessoa a ponto de provocar vômitos
de sangue. Os que não morreram assim torturados ficaram doentes para sempre, com lesões no coração e nos
pulmões.” (MONTEIRO, 1995.p.29)
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pena, aos cabeças, de prisão com trabalho por três a doze anos”. Vejamos o que dizia o Art.
111 desse código:

Julgar-se há cometido este crime [sedição], ajuntando-se mais de vinte pessoas,


armadas todas, ou parte delas para o fim de obstar à posse do empregado publico
nomeado competentemente de titulo legitimo; ou privar do exercício do seu
emprego; ou obstar à execução e cumprimento de qualquer acto, ou ordem legal de
legitima autoridade.
(BPMP/CE-Código Criminal do Império do Brasil. Anotado pelo Dr. João Baptista
Pereira. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1869. O referido Código Criminal
de 1830. Este documento também se encontra disponível no site do Senado Federal)

O crime de sedição, como se pode ver, implica intenção política. Mas, o presidente
Gomes Parente afirmava que “a oposição era oriunda da ignorância das rebeldes”. Para ele, as
mulheres dificilmente pensariam por si sós ou entenderiam as ações do governo. Talvez, essa
autoridade esperasse que diante da “estupidez dessas turbas e da boataria que corria nas
localidades, o (s) líder (es) viesse(m) a ser delatado(s)”.
“Impedir o sorteio militar é crime”- reafirmava Gomes Parente. Diante disso, “o Juiz
de Paz da vila de Tamboril/CE” deve ter tido muitos problemas com as autoridades da
província, pois:
[...] Sua esposa encontrava-se a frente de um grupo de valentes amazonas que
impediu a reunião das juntas rasgando e queimando as listas sendo necessário o
envio de um destacamento de vinte praças do 15º e um alferes do mesmo batalhão
para chamar às mulheres a ordem. (BPMP/CE. Jornal Cearense. Op.cit. 09 de
setembro de 1875.p.2).

Ainda sobre esse ocorrido em Tamboril, o jornal A Reforma comentou que “o escrivão
quis repeli-las, mas as mulheres rebeldes o espancaram e foram logo socorridas por mais de
100 homens que correram ao lugar”. (BN/RJ. Jornal A Reforma. Op.cit. 25 de setembro de 1875.
[CORRESPONDENCIA]).
Na vila de Cachoeira, atual cidade de Solonópole/CE, deram-se distúrbios por ocasião
do funcionamento das juntas, sendo “a igreja invadida por grupo de mulheres que innutilizou
os papeis” (BPMP/CE. Jornal Cearense. Op.cit.10 de outubro de 1875.p. 4). Nesse ínterim, na
localidade de Milagres, os “effeitos da lei do sorteio” levaram a “invasão da matriz por um
grupo armado que dispersou a junta e depois destruiu os papeis não encontrando os
desordeiros a menor opposição”. “Os membros das juntas e seus assessores não reagiam à
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fúria das numerosas multidões vociferantes, por receios da falta de segurança nas vilas e
disctritos” (BPMP/CE. Jornal Cearense. Op.cit 14 de outubro de 1875.p. 2).
Mas, a ausência de agressão corporal entre os membros das juntas e a multidão, como
havia acontecido em Milagres, não se tornou frequente na província. À medida que “se
tentava fazer valer a lei, os ímpetos da população recrutavel aumentavao” e, por
consequência, a “violencia fisica foi crescendo nos levantes” (APEC/CE: Fundo: Governo da
Província do Ceará ao Ministério da Guerra. Livro nº 150. op.cit. 27 de outubro de 1875.).
Na vila de União, atual cidade de Jaguaruana/CE, também houve choque entre “um
grupo de mulheres” e os membros das juntas do qual nem o vigário escapou da violência:

Continua a Tempestade
Na villa da União havia também desordens por ocasião de se proceder ao
alistamento para o exercito e armada, um grupo de mulheres invadiu a matriz,
acometeram a junta, dispersou-a e acabando por incendiar todos os papeis. Houve
lucta do qual saiu ferido, segundo dizem do Aracaty, o Rvd. Vigário João Paulo
Barbosa. Do Aracaty seguio para aquella villa, o coronel Guilherme Azevedo.
(BPMP/CE. Jornal Cearense. Op.cit. 2 de setembro de 1875.p.2.)

Segundo a imprensa local, a “tempestade” promovida pelas mulheres cearenses contra


a Lei 2.556 continuou por muitos anos até que esta fosse considerada “letra morta”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos tumultos, momentos em que a população cearense “matava” a “lei do


sorteio militar”, os liberais “oportunistas” da província criticaram essa legislação, induzindo
às lembranças do “conflito do Paraguai” e apontando “a culpa do governo em arranjar
guerras”.

Tinha razão o venerado Visconde de Souza Franco quando prenunciava no Senado


as fataes consequências da barbara lei de 26 de setembro de 1874.
Bem previa o eminente estadista liberal a oposição das classes populares em face de
uma execução de uma lei, que, arrebatando-lhes das mãos os instrumentos de
trabalho convertia-se em machinas de matar gente.
Esta à prova nos lamentaveis acontecimentos que tem convulsionado as populações
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de diversas províncias do Império.


No Ceará os pacíficos habitantes do Acarape, Quixadá, Conceição [Baturité],
Aquiraz, União, Limoeiro, etc. acabão de levantar-se em hostilidade contra os
trabalhos da qualificação.
O povo a quem se nega o direito de votar, a quem se não permitte que vá dizer nas
urnas eleitoraes a expressão de sua vontade soberana, não quer também cumprir o
dever de morrer nas guerras arranjadas pelo governo que o despreza, nas guerras
para que não concorreu, porque aquelles que não acceitarão ou provocarão não tem
nenhum mandato seu, não são representantes de seus legítimos interesses.
Si não serve para cidadão, não pode servir para soldado. É esta lógica dos
movimentos populares que o governo deve aceitar como factos consumados, que
também é um symptoma de vida da opinião que o poder tanto se tem exforçado por
extinguir, vá por a culpa nos homens do governo.
Quando nas Câmaras discutia-se o projeto que hoje é lei, a oposição liberal
empenhou-se franca e denodadamente pela causa dos interesses que ião se
sacrificados à conscripção.
A palavra sincera e ousada dos nossos estadistas, depois de estudar e demonstrar
todos os vícios do projecto predisse os fataes e inevitaveis consequências, que lhe
teria: não se enganou o governo, nao se lhe garantio que o povo curvaria a cabeça
diante do atentado que se fazia aos seus direitos. (BPMP/CE. Jornal Cearense.
Op.cit. 2 de setembro de 1875.p. 1. Grifos nossos)

Retórica da imprensa? Pode ser, também! Porém, foi fato que a tentativa aplicação da
“Lei do sorteio” mobilizou uma parcela da população cearense que ainda estava no processo
de cicatrização das “feridas abertas” no conflito do Paraguai. Assim, essas pessoas,
destacando-se as mulheres, tiveram a certeza de que a lei 2.556 havia sido feita para novas
necessidades de guerra. (BPMP/CE. Jornal Cearense. Op.cit. 2 de setembro de 1875.p. 1.).
Mas, vale ressaltar que, no Ceará não havia conformidade entre a população masculina
em relação à nova lei do recrutamento militar feita por meio de um sorteio. Ao contrário, a
relativa invisibilidade dos homens em algumas manifestações opositoras, deveu-se a
prudência, afinal eles eram os principais alvos da nova “tributação de sangue (recrutamento)”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1945). (tradução Fábio Joly). São Paulo: EDUSP, 2009.

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Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004 (coletânea de textos).
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(tradução Heloísa Jahn). São Paulo: Cia das Letras, 1989.
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guerra do Paraguai. Cia das Letras, 2002.
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feminina na Guerra do Paraguai. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2005.
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(2° edição)
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Ceará, 1950.
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Doutorado em História/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, 2012.
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.
(tradução- Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes). São Paulo: Cia das Letras,
1998.

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RACISMO AMBIENTAL: A LUTA DAS MULHERES PESCADORAS


QUILOMBOLAS DO CUMBE

João Luís Joventino do Nascimento | joaodocumbe@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

A temática do Racismo Ambiental é um tema novo e atual para o Brasil, e que está no
bojo das lutas travadas pelos movimentos sociais que lutam por Justiça Ambiental. Na atual
conjuntura em que passa o Brasil e o mundo, essa discursão começa a ganhar espaço dentro
de algumas linhas de pesquisas que trabalham com as questões socioambientais, decorrentes
do efeito da globalização e das políticas econômicas, adotada pelo mercado mundial, onde
vulnerabiliza uma diversidade de grupos étnicos, raciais, tradicionais e de populações urbanas
e rurais pobres nos quatros cantos do planeta terra. Esse termo nasce nos EUA, no ano de 82 e
está relacionada à luta do movimento negro americano por direitos civis, onde denunciam a
imposição desproporcional – intencional ou não – de rejeitos perigosos às comunidades de
cor. (ACSELRAD, 2004).
Esta discussão em torno da injustiça ambiental e do racismo ambiental se insere no
bojo das lutas por justiça ambiental no cenário acadêmico brasileiro, após a visita de
representantes de algumas redes do Movimento de Justiça Ambiental dos EUA, que estiveram
no Brasil em 1998, difundindo sua experiência e estabelecendo relações com organizações
locais dispostas a formar alianças na resistência aos processos de ‘exportação da injustiça
ambiental’ (ACSELRAD, 2009).
Na Faculdade de Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira –
FACED/UFC, esse trabalho foi apresentado como parte de um conjunto de pesquisas
desenvolvido no Eixo Sociopoética, Cultura e Relações Étnicorraciais, da linha Movimentos
Sociais, Educação Popular e Escola, onde discutimos conceitos atuais como; raça, racismo,

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preconceito, religiosidade, discriminação, justiça ambiental, injustiça ambiental, racismo


ambiental, africanidades, comunidades quilombolas, gênero, conflitos socioambientais, dentre
outros.
Entendemos que no Brasil, a temática sobre o racismo ambiental, não está relacionada
apenas com a questão da raça, mas com uma serie de casos de injustiça ambiental, violações
de direitos e conflitos socioambientais ocasionados pelo crescimento econômico em vigor no
país, afetando, principalmente, as comunidades étnicas, raciais e tradicionais rurais, além da
população urbana pobre (HERCULANO, 2006).
A pesquisa se deu na Comunidade Quilombola do Cumbe, e contou com a
participação das mulheres pescadoras quilombolas do mangue, onde, há vários anos, travam
uma luta quase que diária, pela afirmação da sua identidade, modo de vida e defesa do
território tradicional. A escolha das mulheres se deu, por entender e perceber serem elas, as
que mais sofrem as consequências do crescimento econômico, que destrói vidas, costumes,
degrada a natureza, e a estarem à frente dos processos de lutas e resistências.
Desta forma, observa-se que a ordem capitalista e patriarcal na qual vivemos separa e
hierarquiza a produção e a reprodução, destinando aos homens a esfera produtiva, na qual está
às funções de forte valor social, e, às mulheres, a esfera reprodutiva, na qual são realizados os
trabalhos domésticos e de cuidado (MALERBA, 2010).
Estudar como se dar este processo é parte integrante desta pesquisa, como
possibilidade de debater e denunciar o processo de “invisibilidade” que recaem sobre essas
mulheres negras, contribuindo assim, na luta pela afirmação da sua identidade e garantia do
seu território tradicional livre das ameaças econômicas.
Com o objetivo de produzir informações e conhecimentos acerca das questões para
os quais procuramos uma explicação, utilizamos a metodologia que, atualmente, se dá
preferência à expressão abordagem qualitativa. Tendo na pesquisa participante, ou seja, na
luta das mulheres pescadoras do mangue do Cumbe e a partir dos seus relatos orais, um
entendimento para compreender o conflito/fenômeno para o qual buscamos uma resposta.
A abordagem qualitativa é um processo de reflexão e análise de uma determinada
situação onde o pesquisador e os participantes da investigação buscam juntos, a identificar as
causas dos problemas/conflitos para o qual se busca uma explicação. Foi realizada uma
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análise crítica do problema para que juntos possam construir os percursos da investigação.
Portanto, seu objetivo é resolução de um problema coletivo, no qual o pesquisador/a e
participantes da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou
participativo, estudando e refletindo uma perspectiva de superação dos problemas
identificados.
A pesquisa participante é um processo sistemático que terá como objetivo reconhecer
a situação existente dentro da comunidade do Cumbe, com relação a luta das mulheres
pescadoras quilombolas do mangue, e o porquê de sua existência, onde a construção do
conhecimento se fará com a intervenção e opinião das pessoas envolvidas nesta
pesquisa/realidade. A riqueza desta pesquisa está na disponibilidade da construção coletiva
das estratégias necessárias para solucionar e entender as causas e efeitos do problema
investigado (QUEIROZ, 2007)

ENTENDO O RACISMO AMBIENTAL E SUA IMPLICAÇÃO NA VIDA DAS


MULHERES PESCADORAS QUILOMBAS DO MANGUE DO CUMBE

As mulheres estiveram sempre presentes nas diferentes lutas e resistências que


marcaram a história da humanidade. O problema identificado de ondem patriarcal,
intencional, na historiografia são suas ausências e contribuições políticas. O que contribui, até
hoje, para inviabilizar a participação das mulheres nos espaços políticos e assim decidirem
sobre o que é melhor para suas vidas, denunciando medidas impostas pela sociedade e
governos machistas que não as reconhecem como cidadãs de direitos.
Diante desta realidade, as mulheres pescadoras quilombolas do mangue do Cumbe,
foram fundamentais para ampliarmos o debate sobre as realidades vividas nos territórios
invadidos pelos projetos e políticas econômicas, violando direitos garantidos
constitucionalmente, criminalizando os lutadores/as dos povos, desrespeitando o modo de
vida das comunidades étnicas, raciais e tradicionais, que habitam essas áreas há várias
gerações.

É nesse contexto que a ação política das mulheres emerge em meio a diferentes

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processos, dos quais se pode destacar: os conflitos fundiários e ambientais; as lutas


em defesa da pesca artesanal, pelo reconhecimento e garantia dos direitos das
pescadoras; na defesa dos manguezais; as lutas pelas reservas extrativistas; os
processos socioeducativos, de mobilizações sociais e de apoio jurídico e/ou político
de organizações da sociedade civil; e emerge também das muitas inquietações e
suspeitas sobre certas normas e processos sociais que geram, justificam e legitimam
as desigualdades e as opressões de gênero, as quais muitas mulheres estão dispostas
a questionar e, mediante mobilização das outras, transformar (FAUSTINO, 2011, p.
145).

No caso do Cumbe, vale ressaltar, que são elas, em maioria, as mulheres pescadoras
quilombolas do mangue, que saem de casa para os espaços políticos defenderem seus
territórios comunitários, modos de vidas, costumes, saberes e modo de fazer, mas para tanto,
muitas vezes precisam da permissão dos maridos, da família e da comunidade, para não serem
acusadas do abandono de suas casas e de seus filhos. Elas apontam essa situação com
preocupação, pois, além da tríplice jornada de trabalho, muitas delas não são valorizadas, o
que contribui para a não participação das mulheres nos espaços de lutas.
Desta forma, observa-se que a ordem capitalista e patriarcal se expressa na divisão
sexual do trabalho, que inferioriza grupos humanos, neste caso as mulheres. Portanto, na
sociedade na qual vivemos destina-se “aos homens a esfera produtiva, na qual está às funções
de forte valor social, e, às mulheres, a esfera reprodutiva, na qual são realizados os trabalhos
domésticos e de cuidado” (MALERBA, 2010, p. 18).
Com base nas desigualdades sociais entre homens e mulheres estabelecidas pela
sociedade patriarcal e machista, são diversas as formas de discriminações, que situam uns
superiores a outros, resultando em muitas negações de direitos, inclusive na subalternização
de formas de ser, como no caso das mulheres pescadoras quilombolas do mangue do Cumbe,
em que lutam para afirmar que a pesca é também uma atividade realizada por mulheres.
Percebemos assim, o grande desafio que recaem sobre elas, diante das críticas quando
rompem com o pensamento posto e passam a exercer atividades políticas que extrapolam o
espaço da casa, intervindo e transformando sua realidade.

A preocupação de ver a nossa comunidade se acabar aos poucos. Eu como sou


marisqueira, acostumada a pescar no rio. Todo canto a gente ia, pras gambôa, todo
canto a gente tinha liberdade e hoje em dia a gente não tem. Eu como pesco tem
certos cantos aqui que eu poderia ir, mas hoje eu não posso. Sou “priorizada” a ir
pescar, a tirar um marisco, uma coisa e eu não posso. Eu tenho que fazer muito
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caminho, “arrodeio” pra poder ir. Por isso que eu fico preocupada, se chegar um dia
a acabar, “priorizar” todos esses caminhos a gente vai pra onde, a gente vai passar
pela onde? A maioria do pessoal do Cumbe vive do marisco, e se acabar o marisco,
o que será do Cumbe? Nada! (Lidianne Silva Costa, depoimento concedido em
25/01/2014).

Na fala da pescadora quilombola do mangue do Cumbe, temos uma realidade


bastante presente nas áreas tomadas pelas atividades econômicas. A luta contra as violações
de direitos cometidas pelas políticas econômicas é uma luta permanente, pela garantia do
território quilombola e afirmação dos povos do mangue de maioria negra. Neste sentido,
reconhecer a importância das mulheres pescadoras nos espaços políticos, na articulação e
liderança frente às lutas comunitárias, sua forma de intervir nos movimentos sociais, a partir
de uma realidade vivenciada no seu dia-a-dia o que tem implicação direta na sua vida
(FAUSTINO; NOGUEIRA, 2010).
O critério para escolhas das mulheres pescadoras quilombolas do mangue do Cumbe,
para participarem da pesquisa se deu principalmente, pelas proximidades delas com as lutas
socioambientais e por participarem de outros espaços de luta fora da comunidade e dentro.
Além de serem elas, em maior parte, a estarem à frente dos processos de resistências, lutas e
organização comunitária.

Quando fala desenvolvimento, assim... como eu, que sou pescadora, que vivo da
pesca esses desenvolver às vezes me assusta, por que esse desenvolvimento às vezes
não traz o que a gente espera. Às vezes nos atrapalha essa forma de desenvolvimento
que a gente vê hoje. É uma forma que dificulta o nosso espaço mais natural. Esse
desenvolvimento tem um desrespeito muito grande com a forma do
desenvolvimento que você tem. Eles veem de uma forma agressiva, a meu ver. Eu
vejo um desenvolvimento muito desigual... melhora uns e dificulta a vida de outros.
No caso, a gente como pescadora, atrapalha muito essa forma de desenvolvimento.
De uma forma natural que a gente vive, de recursos naturais, de uma forma de
preservar. Nos prejudica esse desenvolver. É, rigoroso demais, exige demais do
nosso espaço, é agressivo demais (Cleomar Ribeiro da Rocha, depoimento
concedido em 25/01/2014).

O entendimento da pescadora quilombola do mangue do Cumbe sobre


“desenvolvimento” é bastante questionado pelos movimentos sociais que atuam na defesa dos
direitos dos grupos étnicos, quilombolas e das comunidades tradicionais. Como vemos, a
análise que ela faz, reforça a postura do Estado na efetivação das políticas econômicas, como

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ele age para violar os direitos dos povos étnicorraciais e das comunidades tradicionais,
expressa uma realidade que está presente em todas as regiões do país quando nos deparamos
com situações de invasão de projetos econômicos que expropriam grupos sociais dos seus
territórios e de suas formas de viver.
A disputa pelos bens não comerciais, presentes nos territórios, importantíssimos para
manutenção e reprodução socioambiental dos diversos grupos sociais, depende
necessariamente da garantia de políticas públicas que assegure o direito dos mesmos e
avançarmos na regularização fundiária dos territórios étnicos, raciais e tradicionais, para só
assim criamos áreas livre das ameaças econômicas.
O combate a práticas que reforçam o racismo ambiental e a exclusão social são alguns
dos desafios postos para os movimentos que atuam na defesa dos direitos humanos. Destacar
a importância da luta das mulheres pescadoras quilombolas do mangue do Cumbe pela
afirmação da sua identidade, defesa do território tradicional e dos seus meios de vida, vai
contra todo um pensamento hegemônico que diz que o lugar da mulher é cuidando da casa e
da família, e não nos espaços políticos cobrando políticas públicas justas e diferenciadas.
A luta das mulheres pescadoras quilombolas do mangue do Cumbe, contra as
violações de direitos e por direitos na zona costeira, litoral leste do Ceará é uma luta
permanente, pela garantia do território quilombola e pela emancipação dos direitos das
mulheres do campo.

Para as mulheres se apresentam os desafios de levar a vida cotidiana nos ambientes


social e ambientalmente impactados e/ou sob a constante ameaça de perdas
coletivas, e o de exercer a ação política. O primeiro exige múltiplas habilidades
domésticas. O segundo exige significativas rupturas, tais como a saída para o mundo
público, a necessária partilha das responsabilidades domésticas e o reconhecimento
da autonomia econômica, política, sexual e religiosa. Assim como o esforço de
ampliar a pauta coletiva, construir visibilidades, força de mobilização e incidência
na sociedade (FAUSTINO, 2011, p. 151).

Neste sentido, faz-se necessário o reconhecimento das capacidades políticas das


mulheres pescadoras quilombolas, de sua forma de intervir nos espaços dentro e fora da
comunidade, nos movimentos sociais a partir de uma fala que explicite as questões que todo
dia estão postas nas suas vidas diárias contra a negação de direitos cometida pelas políticas

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econômicas dos governos (FAUSTINO; NOGUEIRA, 2010).


Entendemos, que para compreendermos as diferentes dimensões da dinâmica
socioambiental nos territórios étnicos, raciais e tradicionais, mais precisamente a situação da
Comunidade Quilombola do Cumbe, se faz necessárias nos aproximarmos dos diferentes
conceitos e discussões, que aparecem nas mais diversas pesquisas e estudos sobre os conflitos
sociais e ambientais, em face do avanço dos projetos de desenvolvimento econômico e
disputas pelo território tradicional. Assim:

Conflitos sócio-ambientais são aqueles conflitos sociais que têm elementos da


natureza como objeto e que expressam as relações de tensão entre interesses
coletivos/espaços públicos versus interesses privados/tentativa de apropriação de
espaços públicos (...) (HERCULANO, 2006, p. 03).

A partir desse conceito, podemos apontar a existência, conforme nos diz a autora,
de conflitos socioambientais em consequência da dinâmica de invasão da Zona Costeira do
Ceará, principalmente quando fazemos menção à instalação dos empreendimentos da
carcinicultura, que repercute no modo de vida das comunidades tradicionais de pescadores/as
quilombolas do mangue, que habita territórios encravados em áreas de manguezais e
apicum304, como é o caso da Comunidade Quilombola do Cumbe.
A partir desta discussão entende-se que a degradação, poluição e privatização dos
ambientes litorâneos como manguezais e campo de dunas, é um dos exemplos claro da
invasão dos espaços tradicionais de uso coletivo publico. A verdade é que essas atividades
econômicas consideram apenas a questão do lucro, desconsiderando o modo de vida das
comunidades, os significados e usos que estas dão ao território tradicional. Portanto, podemos
inferir que os conflitos ambientais são aqueles em que modos de vida tradicionais estão
ameaçados por atividades de cunho econômico que se apropria dos bens não comerciais
existentes no território e que para ambas as partes têm usos e significados diferentes, ou seja,
privatiza ou degrada um meio natural de uso coletivo em detrimento ao interesse individual
ou de mercado (HERCULANO, 2006).
Neste sentido, demonstra a necessidade de aprofundarmos esta temática e articulá-la
com os processos locais de resistências, afirmação do seu modo de vida e contra os

304
Apicum palavra de origem tupi-guarani que significa terra inundada pela maré.
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mecanismos de produção de injustiça ambiental que recaem sobre a comunidade,


especialmente na vida das mulheres. Assim entende-se por injustiça ambiental a forma
desigual de como esses projetos econômicos destinam as mazelas do “desenvolvimento” aos
grupos étnicorraciais e comunidades que vivem nos entornos destes projetos com a
justificativa de interesse público, além da articulação que eles têm com as diversas estâncias
dos governos para justificar seus atos (ACSELRAD, et. al., 2009).
No Brasil, a luta contra o racismos ambiental, nasce a partir da experiência norte-
americana por justiça ambiental, onde entidades brasileiras, como a ONG IBASE,
representantes da Central Sindical do Rio de Janeiro e pesquisadores da UFRJ, produzem um
material de discussão em três volumes sobre “Sindicalismo e Justiça Ambiental”, cujo
impacto positivo foi restrito aos meios acadêmicos, no entanto, a partir daí houve um
fortalecimento da disposição de ampliar a temática da Justiça Ambiental, contribuindo para o
surgimento de grupos, Ongs e sindicalistas atentos a este tema no Brasil.
Foi essa iniciativa, que possibilitou a organização do Seminário Internacional Justiça
Ambiental e Cidadania, realizado em setembro de 2001 na cidade de Niterói, Rio de Janeiro,
onde teve a participação de diferentes movimentos sociais, ONGs, pesquisadores/as de
diferentes regiões do Brasil e, representantes do movimento por Justiça Ambiental dos
Estados Unidos. É neste seminário que a Rede Brasileira de Justiça Ambiental é criada.
Durante o seminário, foi elaborada uma carta de princípios, expandindo a abrangência das
denúncias para além da questão do racismo ambiental na alocação de lixos tóxicos que
fundara a organização nascida no movimento negro norte-americano (ACSELRAD, 2009).
Vejamos o que diz a declaração de princípios e práticas da Rede Brasileira de Justiça
Ambiental por Justiça Ambiental:

- assegura que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma
parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações
econômicas, decisões de políticas e programas federais, estaduais, locais, assim
como da ausência ou omissão de tais políticas;
- asseguram acesso justo e equitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do
país;
- asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos
ambientais, a destinação de rejeitos e a localização de fontes de riscos ambientais,
bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos,
programas e projetos que lhes dizem respeito;

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- favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e


organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos
alternativos de desenvolvimento que assegurem a democratização do acesso aos
recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso (ACSELRAD, 2009, p. 41).

Observa-se que, nos quatro pontos que regem a carta de princípios e práticas da Rede
Brasileira de Justiça Ambiental, há uma crítica ao Estado brasileiro e ao modelo de
desenvolvimento adotado pelo Brasil e imposto aos grupos sociais ou de classe. Como
também, reafirma que são os grupos étnicos e raciais os que mais sofrem os impactos
negativos dos projetos de desenvolvimento econômico. Conclui-se que, podemos afirmar a
existência de racismo ambiental no território brasileiro, no caso do Cumbe, a partir da
experiência de luta das mulheres pescadoras quilombolas do mangue do Cumbe, frente à luta
contra as políticas econômicas adotadas pelos governos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A EXPRESSÃO DA CULTURA CAMPESINA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA


PEDAGOGIA DA TERRA: EMANCIPAÇÃO E FORMAÇÃO

Solange Martins Oliveira Magalhães | solufg@hotmail.com

Ruth Catarina Cerqueira Ribeiro de Souza | ruthcatarina@gmail.com

INTRODUÇÃO

A cultura é todo processo humano que se constrói na prática social; à ela é delegado o
mérito da interpretação do mundo, da vida, dos sujeitos, do quotidiano, mas também, dos
domínios da transformação da produção do conhecimento. Fundamentalmente, a cultura ajuda
a projetar o modo de ser e estar no mundo, o percurso coletivo, os acordos sociais, a partir dos
quais a sociedade procura tornar-se coesa.
No caso dos sujeitos, à cultura é conferido papel principal na consolidação do sujeito
civilizado, autônomo, consciente; ajuda na construção de individualidades ao articular
dialeticamente as dimensões sociais que definem o processo histórico da passagem dos
sujeitos à condição de sujeitos sociais.
Nesse sentido, há crescente interesse pela cultura, seja nas esferas da vida cotidiana,
política ou acadêmica. A centralidade do tema tem uma dimensão epistemológica que vem
sendo denominada “virada cultural”, referindo-se ao poder instituidor de que são dotados os
discursos circulantes no circuito da cultura (VEIGA-NETO, 2003). Revela o interesse por
tudo o que acontece nas vidas dos sujeitos e atribui especial interesse a relação cultura-
educação.
A relação cultura-educação nos remete à educação e à sala de aula. No sentido
freireano, a educação liberta pela conscientização, é trabalho igualitário e dialógico, portanto,

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culturalmente político. A educação é responsável

(...) pela formação integral do sujeito educando, compreendendo que o sujeito deve
aprender a pensar por si-mesmo, e através do saber que constrói-com-outros para
saber-para-si torna-se uma pessoa mais livre e autônoma, tanto mais a sua liberdade
o impele aos seus outros. Tanto mais ele se torna livre por ser coparticipante e
autônomo por reconhecer-se inevitavelmente corresponsável pela criação de seu
próprio mundo de vida: sua sociedade (BRANDÃO, 2014, p.65).

Essa concepção de educação reclama um processo de “democratização da cultura”


(FREIRE, 1983, p. 102).
A sala de aula é lugar de sentidos e significados que atravessam tudo àquilo que é
social. É o espaço onde se estabelece o diálogo com as coisas do mundo, com a dinâmica de
grupos, e com diversos fundamentos teóricos ligados a diferentes projetos. As salas de aula
são espaços de práticas pedagógicas que vão desde transformação dos sujeitos através da
educação, à transformação de mundo através dos sujeitos educados (BRANDÃO, 2014, p.66).
As experiências que são inauguradas na sala de aula personificam a cultura como um
campo de ação social transformadora. Entretanto, mesmo com toda importância atribuída a
relação cultura-educação, em sala de aula ainda há o entendimento reduzido, deformado e até
estereotipado sobre essa relação. Geralmente, a cultura é relacionada apenas às manifestações
artísticas, muito embora façam parte da cultura, mas raramente relatavam os roteiros
simbólicos que a cultura concebe e articula; muito menos traduzem o entendimento de que a
cultura e a educação definem concepções de mundo, valores, representações sobre si,
identidades, conhecimentos, o que dificulta o reconhecimento das vozes que falam das
culturas, dos grupos sociais. Nesse sentido, a educação deixa de valorizar as possibilidades de
coletividade, emancipação e afirmação de direitos sociais.
Pensando a educação305 como prática libertadora, a sala de aula deve oportunizar
valorizar os roteiros simbólicos dos alunos, estimulando a participação de todos e o exercício
da coexistência de práticas que valorizem as demandas e diferenças culturais. Gadotti (2004)
sugere a definição de educação contextualizada, um processo calcado na realidade social dos
educandos e educandas e seus princípios possibilitam utilizar dessa realidade nos processos de

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construção conjunta do saber, levando em consideração a riqueza e a diversidade de


experiências e as condições e especificidades com as quais se realizam processos formativos
para professores e alunos, considerando a “garantia de parâmetros de qualidade e indicando
alternativas e perspectivas pedagógicas centradas em uma sólida concepção de educação,
escola e cultura” (DOURADO, 2007, p.925).
A educação contextualizada permite uma prática pedagógica atenta às relevâncias das
inter-relações e interdependências que dão suporte as atividades dos sujeitos. Essa concepção
busca valorizar o como os sujeitos se constroem e constroem seu conhecimento a partir de seu
contexto, mas sem deixar de compreenderem conjunturas mais amplas. Professores
formadores, no livre exercício da práxis pedagógica no campo da formação docente, têm
procurado resgatar a cidadania cultural dos sujeitos.
Conforme Chauí (2006), garantir os direitos culturais a todos os cidadãos é estimular a
geração de uma nova consciência política, envolve a apropriação da cultura como direito à
fruição, à experimentação, à informação, à memória e à participação.
Assim entendendo, no movimento de respeito às diferenças culturais, nesse artigo
relatamos uma experiência formativa sob o foco da valorização da cidadania cultural dos
sujeitos. Para tanto, construímos o seguinte trajeto: 1) historicidade do conceito moderno de
cultura; 2) a cultura a partir do foco interdisciplinar; 3) a cultura no contexto da sociedade
capitalista, e as diferenças culturais de um grupo representante da cultura campesina.

A CULTURA: A HISTORICIDADE DA CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO


MULTIFACETADO
A historicidade da construção do conceito de cultura tem na literatura do século XV o
marco do seu primeiro significado, em que a palavra se referia ao cultivo da terra, de
plantações e de animais. O termo vem do latim colere, que entendemos como agricultura,
cultivo. O segundo significado emerge por volta do início do século XVI306, quando foi
ampliada a ideia de cultivo da terra e de animais à mente humana. Passa-se a falar em mente
humana cultivada, mas essa mente não era para todos, somente alguns indivíduos, grupos ou

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classes sociais poderiam apresentar mentes e maneiras cultivadas, e por isso somente alguns
apresentavam elevado padrão de cultura ou civilização, consolidando um significado classista
ao conceito de cultura.
Nos séculos seguintes, principalmente no XVIII, quando do Iluminismo europeu, o
conceito passa a vincular-se ao de civilização. Gradativamente consolida-se o terceiro
significado de cultura, com caráter classista, que evidenciava que somente as classes
privilegiadas da sociedade europeia, atingiriam o nível de refinamento que as caracterizaria
como cultas e civilizadas.
O conceito iluminista de cultura passou a referir-se ao aprimoramento racional e
moral, tendo a civilização europeia capitalista como modelo para definir superioridade e
inferioridade social, cultural, econômica e política. Esse conceito de cultura foi pautado numa
epistemologia monocultural elitista que respondia as solicitações das elites, cujo significado
reforçava as modalidades de imposições que sustentavam as relações de dominação e
subordinação, divisão social das classes e a reprodução do ideário que cindiu a sociedade em
indivíduos cultos e incultos ou civilizados e não civilizados.
Esse movimento fez com que a cultura passasse a ser pensada como única e universal,
cujo acesso se dava via artes, ao bem apreciar música, literatura, cinema, teatro, pintura,
escultura, filosofia. Entendia-se como cultura um conjunto de tudo aquilo que a humanidade
havia produzido de melhor, fosse a termos materiais, artísticos, filosóficos, científicos,
literários, e outros, que o sujeito culto deveria conhecer. A epistemologia monocultural e
elitista gerou os homens do pensamento, das letras, das artes e das ciências, e esses ganharam,
em consequência, uma autoridade que superava o domínio próprio da atividade com que cada
um tinha alcançado reputação, pois as circunstâncias converteram-nos, genericamente, em
figuras importantes da vida coletiva. Inclusive, aqueles se tornaram representantes do saber,
participavam do tecer do destino comum promoveram os avanços civilizacionais, ao
divulgarem novas doutrinas - social, política, pedagógica, entre outras.
A cultura foi gradativamente sendo entendida em termos de maneiras de estar no
mundo, produzir e apreciar obras de arte e literatura, pensar e organizar sistemas religiosos e
filosóficos, e produzir conhecimento, nada mais propício do que sua união com a educação.
Nesse sentido, o ser um sujeito culto passou a traduzir um status elevado, a ser tomado como
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modelo a ser atingido, o que fortaleceu a ideia que a educação seria o caminho natural para a
“elevação cultural” de um povo (VEIGA-NETO, 2002).
Essa ideia sugere a crença em um processo harmônico de desenvolvimento da
humanidade, constituído por etapas claramente definidas, pelas quais todas as sociedades,
inevitavelmente, deveriam passar (ELIOT, 1968). Muito raramente se questionou esse
entendimento de cultura, por isso, ainda hoje encontramos vestígios desse entendimento no
campo da educação.
Ao buscar a equivalência de uma educação que seguisse os rumos das sociedades
europeias, no caso as únicas a atingirem o grau mais elevado de desenvolvimento, o processo
mostra sua face elitista. Em outras palavras, houve o “rebatimento de tudo e de todos a um
Mesmo (...)” em termos culturais, isso significa que se buscava formar uma identidade única,
ao mesmo tempo em que havia a rejeição de toda e qualquer diferença (VEIGA-NETO, 2002,
p.10).
Somente no século XX a monocultura elitista foi colocada em questão pela filosofia,
antropologia, linguística e parte da sociologia. Buscou-se o reconhecimento da
impossibilidade da homogeneização cultural. Gradativamente, firmava-se o entendimento que
a cultura não era apenas um conjunto de produtos acabados e finalizados que podem ou
devem ser transmitidos ou recebidos pelos outros sujeitos. Referendava-se que ela era relação
social, política, produtora de identidades e diferenças. Cultura passou a ser prática de
significação.
Passou-se a compreender a existências de “culturas”, todas legítimas, apesar de
“alguns grupos sociais estarem em posição de impor seus significados sobre outros (...),
donde se concluiu que cultura é um processo que ocorre [...] num contexto de relações sociais
de negociação, de conflito e poder” (SILVA, 2003, p. 17).
Apesar de isso ser esperado numa sociedade cindida em classes, quem teve e continua
tendo mais condições de impor os seus significados como válidos, manifesta essa imposição
(poder), o que não quer dizer que haja passividade, o processo sempre implica resistência,
possibilidade de subversão, transgressão, como afirmam Apple e Buras (2008).
Ao longo do século XX, os domínios do que costumamos designar como cultura se
expandiu e diversificou, tornou-se o grande elemento revitalizador do pensamento nas
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Ciências Humanas. A cultura passou a ser compreendida tendo-se em conta a enorme


expansão de tudo que está associado, superando-se o conceito monolítico de acumulação de
saberes via processo estético, intelectual ou espiritual.
No nosso século XXI, ressaltou-se a dimensão simbólica da cultura, o que faz em vez
de acentuar o que ela é. Essa mudança efetuou-se na transição do quê para o como, o que
ajudou a fortalecer um conceito de cultura efetivamente como prática social. Uma prática que
apresenta características históricas, implicações teóricas e compromissos políticos.
O percurso histórico da construção do significado moderno de cultura é assim definido
por Costa; Silveira e Sommer (2003, p. 36):

Cultura transmuta-se de um conceito impregnado de distinção, hierarquia e


elitismos segregacionistas para um outro eixo de significados em que se abre um
amplo leque de sentidos cambiantes e versáteis. Cultura deixa, gradativamente, de
ser domínio exclusivo da erudição, da tradição literária e artística, de padrões
estéticos elitizados e passa a contemplar, também, o gosto das multidões. Em sua
flexão plural - culturas - e adjetivado, o conceito incorpora novas e diferentes
possibilidades de sentido. É assim que podemos nos referir, por exemplo, à cultura
de massa, típico produto da indústria cultural ou da sociedade techno
contemporânea, bem como às culturas juvenis, à cultura surda, à cultura empresarial,
ou às culturas indígenas, expressando a diversificação e a singularização que o
conceito comporta.

Resumidamente, duas concepções de cultura são amplamente difundidas na


atualidade: a primeira elitista relaciona a cultura à erudição, uma concepção conservadora
nutrida via senso comum, para a qual somente alguns teriam a capacidade de erudição; a
segunda, com ampla aceitação no discurso filosófico e científico contemporâneo,
desconsidera as determinações materiais da produção da vida , afirmando a prática cultural
como dimensão do ser social: a cultura expressa e é a expressão do modo de produção da
existência humana em determinado momento histórico, por isso, todos os homens fazem
cultura.

O CONCEITO DE CULTURA: UM ENQUADRAMENTO CONCEITUAL


INTERDISCIPLINAR
As mudanças ocorridas no moderno conceito de cultura mostra que em uma sociedade
liberal e democrática há a exigência moral de se colocar a cultura ao alcance de todos os
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sujeitos, quer seja por meio da educação, ou via promoção e subvenção das artes, das letras e
das demais manifestações culturais (LLOSA, 2013).
Essa ideia foi construída com a colaboração de vários autores que transitam no campo
da Antropologia e da Sociologia, a saber: Tylor (1871), Keesing (1974), Bakhtin (2006),
Laraia (1997), Brandão (2002), Mello (1986), Hall (1997), Arendt (1991), Lakatos (1979),
Horton e Hunt (1980), Geertz (1989; 2008), e Llosa (2013).
Na construção do percurso interdisciplinar do conceito, temos Tylor (1871) que foi o
primeiro a formular o conceito de cultura do ponto de vista antropológico: cultura é o todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade. Ele foi o
primeiro a enfatizar a importância do aprendizado da cultura, em oposição à ideia de
aquisição inata, na definição dos sujeitos culturais.
Argumentando teoricamente sobre a forma como o conceito era analisado, Keesing
(1974) definiu três tipos de teorias: 1) sistema cognitivo ou de conhecimento que consiste de
tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para conviver dentro da sociedade; e 2)
sistemas estruturais que definem a cultura como um sistema simbólico, um sistema de
símbolos e significados partilhados pelos sujeitos que compreendem as regras sobre relações e
modos de comportamento; 3) sistema adaptativo ou responsável por padrões de
comportamento socialmente transmitidos que servem para adaptar as comunidades humanas
ao seu modo de vida socialmente estipulado (tecnologias, modo de organização econômica,
padrões de agrupamento social, organização política, crenças, práticas religiosas, etc.).
Tylor (1871) e Kessing (1974) coligam suas ideias no entendimento que a cultura é
uma lente através da qual o sujeito aprende, significa e adapta-se ao mundo. A esse processo
Geertz (2008, p. 14) soma a ideia que a cultura é essencialmente semiótica. Para o autor
cultura é:

[...] modo de vida global de um povo; [...] legado social que o indivíduo adquire do
seu grupo; [...] uma forma de pensar, sentir e acreditar; [...] uma abstração do
comportamento; [...] uma teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela
qual o grupo de pessoa se comporta realmente; [...] um celeiro de aprendizagem em
comum; [...] um conjunto de orientações padronizadas para os problemas
recorrentes; [...] comportamento aprendido; [...] um mecanismo para regulamentação
normativa do comportamento; [...] um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao
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ambiente externo como em relação aos outros homens; [...] um precipitado da


história.

Dizer que a cultura é semiótica significa afirmar que ela é contexto onde os símbolos
podem ser traçados de uma forma inteligível e com densidade, e que esses símbolos são
regidos por ordens discursivas descritas de forma inteligível num meio social. Também
significa que ela é contextualizada, temporalizada, e que guia comportamentos.
Costa (2000, p. 32) explica que as “sociedades e culturas em que vivemos, são
dirigidas por poderosas ordens discursivas que regem o que deve ser dito e o que deve ser
calado e os próprios sujeitos não estão isentos desses efeitos”. Desse modo, criam-se relações
discursivas de saber-poder, o que faz da cultura um grande espaço de discussões. Hall (1997,
p. 20) complementa:

[...] a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos – e mais imprevisíveis – da


mudança histórica do novo milênio. Não devemos nos surpreender, então, que as
lutas pelo poder deixem de ter uma forma simplesmente física e compulsiva para
serem cada vez mais simbólicas e discursivas, e que o poder em si assuma,
progressivamente, a forma de uma política cultural.

A ideia central é que “(...) a cultura é um local de diferenças e de lutas sociais”


(JOHNSON, 1999, p.13). Cada sociedade constitui sua própria cultura através da linguagem,
dos discursos, das relações de poder cultural, das imagens e produções, que em conjunto
determinam roteiros simbólicos que produzem a identidade cultural.
Conforme o pensamento de Bakhtin (2006), o roteiro simbólico diz sobre a lógica da
comunicação ideológica e sua influência na formação das consciências. Fundamentado no
pensamento marxista, ele resgata que as relações de produção e a estrutura sociopolítica que
delas derivam, determinam formas e os meios de comunicação verbal possível entre
indivíduos. Sob uma perspectiva de luta de classes, a classe dominante constrói o sentido
ideológico com o objetivo de ocultar as contradições presentes nas relações de classes, e ao
fazer isso, torna a linguagem (e a cultura) um signo monovalente.
Como a cultura é semiótica (GEERTZ, 2008), a palavra ou o signo monovalente que
sempre é carregada de um conteúdo ideológico unilateral, inviabiliza a compreensão da
história da constituição das ideologias, das lutas de classe, das crenças e das materialidades
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que atravessam a nossa existência. Isso influi na gênese da cultura, a qual vai surgir apenas
para responder uma necessidade a ser satisfeita na vida societária, e a linguagem monovalente
será à base dessa comunicação (HORTON; HUNT, 1980).
Dialeticamente, os sujeitos “(...) são capazes de agir, a reação, além de ser uma
resposta, é sempre uma nova ação com poder próprio de atingir e afetar outros” (ARENDT,
1991, p. 203-204). Lakatos (1979) em concordância com Arendt (1991) completa a ideia ao
assumir que os sujeitos nunca são simples agentes de cultura, mas também, ao mesmo tempo,
produtos e produtores do mesmo processo.
Numa proposta interdisciplinar, a cultura é roteiro simbólico que configura um
movimento promotor de individualização dos sujeitos perpassado por contradições. A cultura
“existe tanto fora de nós, em qualquer dia de nosso cotidiano, quanto dentro de nós, seres
obrigados a aprender, desde crianças e pela vida afora, a compreender as suas várias
gramáticas e a falar as suas várias linguagens” (BRANDÃO, 2002, p. 16-17).

A CULTURA NO CONTEXTO DA SOCIEDADE CAPITALISTA E A EXPERIÊNCIA


DA CULTURA CAMPESINA: EXERCÍCIO DA TOLERÂNCIA ÀS DIVERSIDADES
CULTURAIS

Como foi exposto, sem a cultura o conjunto social não progride e nem se mantém
coeso. Contudo, já é possível compreender que no atual contexto da globalização e
mundialização do capitalismo e dos mercados, ocorrem mudanças importantes no âmbito da
cultura. Atualmente, ela encontra-se cindida e destituída dos valores humanistas.
Na sociedade capitalista, a cultura dominante é a cultura da classe dominante, é a do
consumo imediato, o único valor existente é o fixado pelo mercado, isso implica no
enaltecimento de uma cultura global, cujos indicadores aproximam e igualam diferentes
tradições, línguas, crenças, criando uma cultura de massas. Essa cultura de massas empobrece
a força motriz da vida cultural implicando, ao mesmo tempo, no empobrecimento do humano.
Na maioria dos casos, o sujeito se torna fútil, privado de lucidez e livre-arbítrio, com
individualismo extremo, o que o faz “reagir à cultura dominante de maneira condicionada e
gregária, como cães de Pavlov à campainha que anuncia a comida” (LLOSA, 2013, p. 22 e
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25). Ideologicamente esvaziam-se os roteiros simbólicos da cultura nos processos de


democratização. A cultura é desnaturalizada e depreciada, equiparada para tudo uniformizar.
Entretanto, dependendo da correlação e forças sociais, a cultura pode ser compreendida como
força produtiva, ou seja, como cultura emancipadora na qual, pela consciência da dominação,
possa se construir um “novo” modo de existência como força propulsora da transformação
social.
Tanto num sentido quanto no outro, a cultura continua sendo necessária à
humanização, cada classe social segue produzindo a cultura que pode e que lhe convém,
inclusive compartilhando com outras classes muitas coisas como a língua mater e a religião.
Paradoxalmente, apesar de se evidenciarem diferenças marcantes relacionadas à condição
econômica, horizontes de experimentação, valores estéticos, os vários roteiros culturais
seguem coexistindo, o que nos leva diretamente a um velho problema: a relação cultura-
educação.
Hoje se recoloca de forma enfática o tema da relação entre a cultura e a educação. Essa
é uma questão antiga, desde o início da modernidade, quando novas formas de organização e
condução social são debatidas, a relação cultura-educação tem sido ressignificada,
principalmente quando passamos a entender que os vários roteiros culturais invadem as salas
de aula e no convívio pedagógico manifestam-se situações convergentes, outras divergentes, o
que torna a sala de aula um espaço de constantes manifestações de diferenças culturais.
A educação como prática cultural desempenha papel estratégico na conformação aos
padrões de sociabilidade dominante, mas também pode edificar pilares de uma relação social
livre da dominação de poucos. A relação cultura e educação fundamenta a dialeticidade entre
singularidade e coletividade e entre ser e consciência na análise das práticas culturais
contemporâneas.
A beleza é entender que elas educam, integram, ampliam e, às vezes, podem desalienar
e libertar no exercício da coexistência de práticas educativas emancipadoras. Chagamos a esse
entendimento com a experiência pedagógica vivida com 59 alunos, na disciplina Sociedade,
Cultura e Infância, no curso de Pedagogia da Terra307, Turma Salete Strozake, da Faculdade

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de Educação, Universidade Federal de Goiás (FE/UFG).


O curso foi fruto de um convênio entre Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra), Programa Nacional de Educação nas Áreas de Reforma Agrária (Pronera) e a
Via Campesina, liga internacional de camponeses representada pelos movimentos sociais do
campo e pastorais: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB) e, ainda, pelo Movimento Camponês Popular (MCP), que,
naquele momento, não fazia parte da Via Campesina, Pastoral de Juventude Rural (PJR) e
Comissão Pastoral da Terra (CPT) (SOBRINHA, 2012).
A escolha do grupo teve como base a singularidade dos sujeitos e as diferentes práticas
culturais manifestadas pelos alunos advindos de várias regiões do país, todos representantes
da educação do campo. Como professora formadora do curso, não houve como deixar de
observar a presença dos vários saberes sucedidos do mundo concreto e real dos alunos,
saberes que precisavam ser somados e impulsionados na formação acadêmica em
desenvolvimento.
Esses aspectos suscitaram o objetivo de buscar compreender a relação cultura-
educação no processo ensino-aprendizagem, uma busca reforçada por Cunha (1998, p.41)
quando ela afirma que o professor constrói sua ação pedagógica a partir inúmeras referências,
“entre elas estão sua história familiar, sua trajetória escolar e acadêmica, sua convivência com
o ambiente de trabalho, sua inserção cultural no tempo e no espaço”.
No caso dos alunos, o professor precisa provocar a organização de narrativas a partir
de suas referencias culturais, isso significa “fazê-lo viver um processo profundamente
pedagógico, onde sua condição existencial é o ponto de partida para a construção de seu
desempenho na vida e na profissão” (CUNHA, 1998, p. 41). Essa atitude faz com que
professor e alunos descubram os significados que tem atribuído aos fatos que vivem e, assim,
podem reconstruir a compreensão que tem de si mesmos.
A partir desse foco, a formação docente é aqui compreendida como práxis, promotora
de educação para além do capital (MÉSZÁROS, 2007), processo que ressalta a complexidade
dos sujeitos, possibilita manifestações da relação entre a cultura e a educação, cognição e a
afetividade, emoções e processos simbólicos, num movimento que ajuda o aluno a

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compreender o que e quem o orientou e orientará suas escolhas, recordando, revendo,


descrevendo e reestruturando o que crê e a forma como o faz.
Apesar de inúmeras contradições, as diversas experiências de Pedagogia da Terra, no
Brasil, são potenciais exemplos de se pensar a formação de educadores(as) em consonância
com o modelo da racionalidade crítica; mostra-se prática social que toca que possibilita aos
alunos a criação de novos sentidos que vão desde aqueles advindos da ocupação da
universidade pelo coletivo organizado do campo, à transformação dos espaços da
universidade em espaços de efetivação da sociologia das ausências e da sociologia das
emergências, de contra-hegemonia (SOUZA SANTOS, 2002; SOBRINHA, 2014).
No que se refere à relação cultura-educação, a interlocução deu-se por meio da
inclusão da cultura campesina. Esse movimento iniciou com a busca do entendimento e
valorização da organização interna dos estudantes, denominada por eles como núcleos de base
ou espaços de organicidade da turma Salete Strozake. Nesses núcleos ocorriam debates,
estudos, realização de atividades pedagógicas, avaliação de discussões coletivas e individuais,
e outros encaminhamentos (saúde, nascimentos, casamentos, desistências, etc.) dos estudantes
do curso. Os núcleos eram assim definidos:

Núcleo de Base Salete Strozake, “Estudo, trabalho, luta permanente, marco de Salete
na via está presente!”; Núcleo de Base Josué de Castro, “Josué de Castro, semeador
de ideias, lutou com coragem contra a fome e a miséria!”; Núcleo de Base Sepé
Tiarajú, “Índio brasileiro, na luta por justiça somos companheiros!”; Núcleo de Base
Paulo Freire, “Dos campos as sementes, dos povos a paixão, Paulo Freire é exemplo,
educador dessa nação!”; Núcleo de Base Rosa Luxemburgo, “Somos a semente que
Rosa semeou, lutamos pelo mundo com o qual ela sonhou!”; Núcleo de Base Keno,
“Keno Guerreiro lutou com o coração, lutou com a consciência, contra a
transgenização!” e Núcleo de Base Cora Coralina, “Cora Coralina vive em cada um
de nós, a Via Campesina eleva sua voz!” (SOBRINHA, 2012, p. 67-68).

Nos cursos regulares de Pedagogia não há a constituição de núcleos de base que


discutam a organização (do grupo e do curso), valores, lideranças, tomadas de decisões, o que
os tornaram muito interessantes no sentido de entender como o grupo pensava e resolvia os
problemas concretos do dia-a-dia como, por exemplo: conviver pacífica e organizadamente
em um espaço físico mínimo e restrito – 3 salas de aulas eram utilizadas como dormitório, um

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banheiro feminino e um masculino, mais o pátio da faculdade, onde ocorria uma série de
atividades como alimentação, debates, votações, exposições, festas, e as cirandas.
Aos núcleos se somavam ainda várias equipes de apoio, como: equipe de mística,
equipe de animação e cultura, equipe de comunicação, equipe da ciranda infantil, equipe de
infraestrutura, equipe de finanças, equipe da memória coletiva, equipe de esportes, equipe de
disciplina, equipe de saúde e equipe de formatura. Os núcleos de base e as equipes de apoio
tinham uma coordenação rotativa, como uma forma de garantir a todos os estudantes os
aprendizados necessários à tomada de decisões e na formulação de acordos na convivência
coletiva.
Dentre as atividades do grupo estavam àquelas relacionadas ao lazer, ao aspecto
econômico, coletivo e individual, e ainda à espiritualidade na forma de místicas (CODINA,
1996). A realização das místicas se faz foco central nesse relato, pois foi à atividade que mais
se destacou no contexto da universidade, por serem particularmente diferentes das atividades
acadêmicas, e por revelarem um momento profundamente cultural que marcou a memória de
muitos estudantes e professores.
As místicas eram realizadas todos os dias antes do início das aulas por 30 min, de
segunda a sábado, no saguão principal da FE/UFG. Aconteciam conforme relato de Sobrinha
(2012, p. 68):

Durante a realização das místicas, as equipes responsáveis, representadas pelos


núcleos de base, uma equipe diferente a cada dia, sempre utilizavam algum elemento
representativo da cultura camponesa ou dos movimentos sociais do campo e
pastorais da terra, como bandeiras, elementos naturais como o fogo, a água, a terra
e/ou as sementes dos alimentos, artesanato popular, instrumentos de trabalho usados
no campo, livros, materiais escolares, cartazes, faixas, etc.

Eram preparadas por um grupo que se reunia, discutiam e intuitivamente procuravam


representar as demandas do grupo; às vezes faziam com que as místicas traduzissem as
conquistas do grupo, outras eram pensadas para gerar forças para que o grupo aguentasse a
jornada formativa, para o fortalecimento das amizades e da coletividade, liderança e trabalho,
respeito, historicidade da luta camponesa, aspectos políticos do grupo, entendimentos do

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mundo acadêmico, casamentos, nascimentos, e até mortes (eles tiveram casamentos, perdas e
nascimentos durante o curso), dentre outras.
Reportamo-nos à sensibilidade de Sobrinha (2012, p. 68) quando a autora relata que
havia intensa criatividade durante a realização das místicas ao longo do curso, tendo estas se
tornado, também, “(...) espaços formativos e de renovação das concepções, dos sentimentos,
das emoções e da construção de sentidos que alimentavam e fortaleciam os estudantes”.
Conforme o entendimento de cultura até aqui formulado, as místicas traduziam
roteiros simbólicos da cultura campesina, e como tal despertaram muitas disputas de poder na
instituição, umas contra as místicas, outras a favor das mesmas, por entendê-las como
manifestação cultural.
Por várias vezes as místicas não foram compreendidas, quer seja por parte do corpo
docente, ou pela administração e funcionários da FE/UFG. Alguns relataram que as místicas
eram percebidas como um rito desnecessário, às vezes, até esquisitas. Entretanto, se não se
estivesse mergulhado nos roteiros simbólicos do grupo, dificilmente se entenderia
determinadas místicas como, por exemplo, as cantorias, acompanhadas por instrumentos;
eram altas, alegres e vibrantes, o que dificilmente acontece no rol de uma faculdade; em
outros momentos a mística tratava a questão da morte – houve a morte de um colega durante o
curso, como uma forma de percebê-la como parte do ciclo da vida; em outro momento,
quando uma professora do curso ficou gravemente doente, a mística realizada falava das
forças transformadoras da natureza, do como ela dá vida e tudo regenera. Especialmente no
dia dessa mística, as flores, sementes e objetos utilizados, o canto e os escritos foram levados
pelo grupo que preparou a mística à professora adoentada, como uma forma de entregar-lhe a
força resgatada pelo grupo na mística.
Por esses aspectos e muitos outros, as místicas foram proibidas durante certo tempo,
mas voltaram a acontecer após luta do grupo por seu grande valor simbólico para os
estudantes da Pedagogia da Terra. Confirmando a afirmação de Chauí (2006, p. 138):

[...] a cultura não se reduz ao supérfluo, ao entretenimento, aos padrões do mercado,


à oficialidade doutrinária (que é ideologia), mas se realiza como direito de todos os
cidadãos, direito a partir do qual a divisão social das classes ou a luta de classes
possa manifestar-se e ser trabalhada porque, no exercício do direito à cultura, os
cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito,
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comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras e


movem todo o processo cultural.

A luta pelo que as místicas representavam significava a construção de uma história de


busca da reconciliação entre os sujeitos e a busca da liberdade e essa ação, em muitos casos,
não dispensou uma subversiva ação social de teor político no domínio da cultura
(BRANDÃO, 2014). As iniciativas de organização e dos alunos da Pedagogia da Terra, na
luta pela realização das místicas recebeu uma conotação de luta no plano mais diretamente
político, realizada sobre a cultura e através da cultura.

Assim como um momento da história pode ser o da tomada do poder por


grupos opressores, que sujeitam os processos sociais de construção da
cultura aos seus interesses, um outro momento pode ser o da conquista de
um novo poder que recupere, não só para o povo, mas para todos os homens,
as dimensões perdidas das relações humanas, humanizadas e humanizadoras
do trabalho e da cultura (BRANDÃO, 2014, p. 59).

O sentido e os significados que as místicas têm para os movimentos sociais do campo


e as pastorais da terra são assim traduzidos pelos alunos:

“Esperança e motivação para seguir em frente (...)” (estudante 1); “Mística não é
teatro, ela é atitude, força, sentimento (...) é força crítica precisa, é a representação
do mistério e o porquê da luta e das coisas extraordinárias que nos motivam a viver e
lutar” (estudante 32). “A mística no nosso entendimento é toda essa espiritualidade
que aproxima a nossa utopia, o nosso sonho para nossa realidade é representação de
um projeto político” (estudante 13). Conforme relatos dos estudantes, “a mística fala
do que o povo não explica, só sente”. “É mistério que cada um pode sentir de modo
diferente” (estudante 31) (SOBRINHA, 2012, p.68).

As dificuldades enfrentadas para realização das místicas evidenciaram uma lógica de


embrutecimento por parte da instituição e alguns de seus membros, quando a mesma
precisaria considerar todas as diferenças culturais ao longo do processo formativo. Negar,
proibir a expressão das diferenças culturais, seria o mesmo que negar a capacidade de
resolução, criação, dos sujeitos e dos grupos.
Conforme Rancière (2007), a formação que busca a emancipação intelectual dos
sujeitos precisa romper com uma ordem explicadora do mundo e das coisas, ao mesmo tempo
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em que exige considerar a vontade de aprender dos sujeitos em parceria com trabalho
educativo emancipador de consciências (FREIRE, 1997; SOBRINHA, 2012).
A negação das místicas, que eram realizadas em 30 minutos durante as manhãs,
deflagrou uma questão importante: a formação ainda procura impor e controlar o conjunto de
práticas significantes dos grupos. Afortunadamente, nas salas de aula era realizado a
problematização sobre o assunto – místicas e sua negação, o que tornou as aulas espaços
ecológicos de cruzamento de culturas e saberes dos alunos (PÉREZ GÓMEZ, 1998).
Como mostra o percurso teórico empreendido, os princípios que originam e que o
qualificam a cultura campesina, no caso da Pedagogia da Terra, representava os roteiros
simbólicos construídos pelo grupo no sentido da libertação sociocultural. Como em sala não
se negou a relevância vital, social e política da prática cultural do grupo, houve a superação da
consciência associada à sujeição histórica dos sujeitos, e isso os ajudou na luta contra o
modelo imposto pelo ensino superior hegemônico.
A sala de aula tornou-se um ethos cultural, lugar de viver a liberdade, que implica,
segundo Freire (1997), na conscientização dos sujeitos de seus condicionamentos sociais, isso
abre caminho a sua intervenção no mundo porque reforma e sistematiza uma base
gnosiológica que sustente valores éticos e políticos. Nas discussões empreendidas, os alunos
se assumiam como sujeitos de direitos, cidadãos com direito de expressão.
A experiência mostrou que a valorização da cultura campesina em sala de aula,
promoveram análises e interações das influências plurais que a cultura exerce sobre o
processo ensino-aprendizagem. Foi possível perceber que o sentido e a consistência do que os
alunos aprendiam na vida acadêmica, se qualificava no cruzamento sempre vivo, fluído e
complexo de suas experiências culturais.
Na dinâmica da sala de aula houve a discussão de valores hegemônicos e contra
hegemônicos, debateu-se sobre as pressões do cotidiano da cultura institucional, presente nos
papéis, nas normas, nas rotinas e nos ritos próprios da instituição educativa, mas essas
também tiveram que ser trabalhadas, algumas rotinas foram adquiridas com muita resistência
por parte de alguns alunos (exigência de trabalhos, notas, frequência, horários, etc.), sua
aceitação e entendimento também se deu no mesmo influxo de diferenças culturais.
Gradativamente, a dinâmica da sala de aula buscou romper com a tendência
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homogeneizadora e padronizadora que impregna as práticas educativas. Superando as


dificuldades apontadas por Moreira e Candau (2003, p. 161): os professores em suas salas de
aula mostram “dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença”, por isso, tentam
“silenciá-las e neutralizá-las”.
A experiência mostrou que valorizar a relação cultura-educação acolhe, favorece a
crítica, coloca em contato saberes, manifestações de óticas diferentes. Nesse processo as
culturas conversam, trocam experiências, se misturam e ressoam, em um contínuo humano,
por ser ressonância (PRETTO, 2005).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: APRENDENDO COM A VALORIZAÇÃO DA


CULTURA

A cultura não é um elemento exterior à sociedade, de modo a completá-la; tampouco


se deve reduzi-la às manifestações artísticas, embora seja esta uma de suas dimensões; ou
apenas representação de determinado período histórico ou sociedade. A cultura representa
todas as manifestações dos homens relativas à práxis social. Por isso, a desvalorização da
cultura nos processos formativos tem efeito avassalador sobre a formação dos sujeitos.
Como afirmou Freire (1980, p.109):

[...] o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como resultado de seu
trabalho. Do seu esforço criador e recriador. [...] Descobriria que tanto é
cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como
cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um
grande músico, ou de um pensador. Que cultura é a poesia dos poetas
letrados de seu país, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Que
cultura é toda criação humana.

Somos sujeitos socioculturais, participantes da estrutura social, construtores de


roteiros simbólicos, de pluralidade cultural. Na experiência com o grupo da Pedagogia da
Terra, a cultura aparece como aspecto fundamental na reflexão sobre os sujeitos, suas vidas, e
a formação docente. Pensar as culturas relativizando-as e generalizando seus aspectos é
desvalorizar o ethos cultural e a visão de mundo, valores, construções e práticas que compõe

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os sujeitos sociais (GEERTZ, 2008).


As representações culturais do grupo da Pedagogia da Terra mostraram que as
estruturas de significado envolvem todos os sujeitos de uma cultura. No caso das místicas, os
estudantes as criavam e nelas estavam imersos seus valores, a forma como atuavam, sem
separar os aspectos objetivos e subjetivos de suas vidas. Para os alunos, o trabalho e respeito a
suas culturas denotava um afastamento da postura positivista, incorporava a importância dos
roteiros simbólicos, o que permite a interação e a criação dos símbolos norteadores da vida
social.
A experiência mostrou que quando estamos imersos no universo simbólico e cultural,
partilhamos símbolos, conceitos, a formação docente traduz uma realidade verossímil para os
alunos, pois possibilita estudar e pensar sobre as diferenças dos sujeitos, seus contextos e
costumes.
Nesse sentido, é especialmente incisivo que os professores sejam desafiados a
incorporar em suas práticas educativas os roteiros culturais dos alunos, valorizando o caráter
socialmente construído “de seus conhecimentos e experiências, num mundo extremamente
cambiante de representações e valores” (GIROUX, 1995, p. 101).
A pluralidade cultural se apresenta de forma impetuosa e imperiosa em todos os
espaços sociais, inclusive nas salas de aula. Não saber lidar com ela frequentemente acarreta
confrontos e conflitos, tornando cada vez mais agudos os desafios a serem enfrentados nas
salas de aula. Afinal, como salienta Brandão (2002), temos “culturas”, somos portadores de
cultura e ela nos humaniza.
Garantir o direito à educação é, portanto, garantir a possibilidade de uma existência
digna, compatível com o modo de vida democrático que proporciona um ambiente favorável
ao exercício da cidadania plena com seus direitos e deveres.
No final do século XVIII, surge o termo germânico Kultur que era utilizado para
simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, em contraposição com a palavra
francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo.
“O curso recebe a denominação de Pedagogia da Terra por sua forte vinculação à luta
pela terra, à luta pela reforma agrária e pela relação que os camponeses possuem com a terra e
com o planeta Terra, como espaço de vida, de criação e de transformação, expressão que
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também manifesta a sabedoria dos povos do campo (...). O curso ocorreu no período de 2997-
2011, e recebe destaque sua proposta de educação para além do capital, (...) além de ser
necessário cultivar a sabedoria camponesa” (SOBRINHA, 2012, p.56).

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AS RELAÇÕES DE GÊNERO IMPLICADAS NA CONSTITUIÇÃO DE


SUBJETIVIDADES FEMININAS EM CURSOS DE ENGENHARIA DO CAMPUS
UNIVERSITÁRIO DE TUCURUÍ DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA)

Edileuza de Sarges Almeida308 | esa@ufpa.br


Gilcilene Dias da Costa309

INTRODUÇÃO

Atualmente as discussões sobre gênero nos ambientes sociais ganham espaço. São
notórias as discussões veiculadas pelos meios de comunicação como internet, informativos,
representações dramatúrgicas e outras que demonstram as diversas formas de discriminações
assim como oportunizam discussões que possibilitam amenizações de preconceitos e
discriminações em relação às mulheres.
Historicamente, verificamos alterações nos modos de ser feminino que, devido às
reivindicações dos movimentos sociais, mais especificamente do Movimento Feminista,
tivemos conquistas como direito à educação, ao voto, publicação de leis contra a violência e
demais que denotam as possibilidades de contradições aos preconceitos e discriminações
direcionadas a elas.
Desse modo, esse artigo parte da discussão em andamento relacionada ao
desenvolvimento de uma dissertação de mestrado vinculada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Pará, que tem como objeto de análise as relações de

308
Discente vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará, orientada
pela Prof. Drª Gilcilene Dias da Costa – UFPA. E-mail: esa@ufpa.br
309
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS), linha de
pesquisa Filosofia da Diferença e Educação, 2008. Professora Adjunto III da Universidade Federal do Pará /
Campus Universitário do Tocantins/Cametá. Líder do Grupo de Pesquisa PHILIA - Filosofia, Linguagem e
Alteridade na Educação (UFPA/CUNTINS). E-mail: costagilcilene@gmail.com

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gênero em cursos de Engenharia.


Trata-se de uma temática relevante, pelo fato de que o lócus da pesquisa singulariza-
se por ser um ambiente de ensino superior caracterizado pela oferta de cursos vinculados às
ciências exatas, onde, geralmente não se observa a presença de mulheres nos cursos dessas
áreas. No entanto, com as possibilidades de acesso ao ensino superior, esse cenário encontra-
se em mudanças e cada vez mais nos deparamos com mulheres nos cursos de engenharia, por
isso, a necessidade de problematizar essa presença feminina a fim de verificarmos se há a
manutenção de preconceitos, ou não, nesses ambientes.
Pelo exposto, o texto apresentará inicialmente, a contextualização do ambiente da
pesquisa, seguido para discussão teórica em torno da temática de gênero e sexualidade, para
que então, discuta a presença feminina nos cursos de engenharia, nos remetendo para as
considerações pertinentes em relação ao estudo que estamos nos propondo a desenvolver.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO AMBIENTE DA PESQUISA

O Campus Universitário de Tucuruí – CAMTUC é uma instituição de ensino


superior vinculada à Universidade Federal do Pará, localizada na mesorregião do sudeste
paraense. No município, há um grande empreendimento caracterizado pela geração de energia
elétrica que é a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, construída em 1981.
Nesse contexto, para que a usina fosse construída, houve a necessidade de
disponibilizar infraestrutura urbana para os profissionais que atuariam nesse empreendimento,
assim, a Eletronorte disponibilizou casas, escolas, postos médicos etc na área denominada
Vila Permanente.
Com a conclusão na primeira fase de construção da Usina, no ano de 1984, muitos
trabalhadores foram dispensados das atividades que desenvolviam, e por isso, destinaram-se
para demais municípios da região, ocasionando problemas para o desenvolvimento da cidade
de Tucuruí. Especificamente, na Vila Permanente, houve problemáticas vinculadas à falta de
segurança, degradações de patrimônios públicos, redução de serviços relacionados à
educação, saúde e outros, demandando em diversos problemas sociais.
Na segunda fase de construção da usina, houve a retomada de profissionais, gerando
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benefícios na área da infraestrutura, educação e outros, já que a cidade foi novamente


colocada entre os municípios com possibilidade de vínculo empregatício na área de tecnologia
e construção civil. Mas, as problemáticas surgidas com a conclusão da primeira fase,
repetiram-se no ano de 2006, quando as obras da segunda fase foram concluídas.
Mas, a fim de amenizar as situações negativas causadas pela diminuição de
trabalhadores e a pausa no desenvolvimento local, a empresa Eletrobras-Eletronorte firmou
convênio com a Universidade Federal do Pará – UFPA, a fim de proporcionar oportunidade
de ensino superior na região, nas áreas de ciências exatas, e incentivar a permanência de
profissionais qualificados no município.
Desse modo, inicialmente foram ofertados cursos de Engenharia Civil e Engenharia
Elétrica, já que havia a necessidade de profissionais nessas áreas e a maioria dos que atuavam
na Usina vinham de outras regiões do país. A oferta desses cursos também oportunizou a
redução da carência de engenheiros na região, assim como, os trabalhadores que atuavam na
usina poderiam ter acesso ao ensino superior que os capacitassem ainda mais para
desempenharem as funções na empresa, buscando qualificações e aperfeiçoamento técnico.
Então, como havia a necessidade e o interesse da Eletronorte e da UFPA, em ofertar
esses cursos, inicialmente houve processo seletivo para constituição das turmas com 30
alunos. Já no ano de 2007, o Núcleo torna-se Faculdade de Engenharia mantendo a
quantidade de vagas ofertadas. E, no ano de 2009, a Faculdade de Engenharia torna-se
Campus, por meio da política Multicampi, oferecendo mais 30 vagas no curso de Engenharia
Mecânica.
Nesse sentido, devido o convênio firmado, a UFPA responsabilizava-se pelas ações
relacionadas à parte acadêmica, como estruturação do corpo docente, organização pedagógica
dos cursos, suas regularizações junto ao Ministério de Educação e Cultura etc, enquanto que a
Eletronorte ofereceu apoio logístico, infraestrutura para a constituição do Campus,
oferecimento de bolsas de ensino aos discentes, residências para docentes e demais ações
necessárias para o bom desempenho das atividades de ensino.
Atualmente, além dos cursos acima mencionados, o Campus oferece ainda
Engenharia da Computação e Engenharia Sanitária e Ambiental, havendo grande demanda
nos processos seletivos e refletindo turmas anuais com quantitativo de 48 discentes em cada
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curso. Por meio da tabela abaixo, podemos visualizar um panorama geral no período de 2005-
2015 relacionado ao quantitativo de discente nesses cursos:
Cursos Eng. Civil Eng. Elétrica Eng. Mecânica
Ingressantes 351 345 324
Mulheres Ingressantes 147 72 79
Concluintes 138 97 97
Mulheres Concluintes 68 28 32
Fonte: Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas – SIGAA/UFPA.
No que concerne ao corpo docente, atualmente o campus conta com 52 profissionais,
sendo 14 mulheres, cuja titulação é: 01 graduada; 08 mestres e 05 doutoras. Apesar dessa
oferta generalizante a ambos os sexos, consideramos que ainda trata-se de um ambiente
predominantemente masculino, desde os processos de aquisição dos conhecimentos até a
atuação profissional, demandando a necessidade de se investigar em torno da presença das
mulheres nesses cursos, enfatizando os estereótipos de gênero que mobilizaram as suas
constituições identitárias como engenheiras e como os mesmos refletem em suas atividades
práticas e a sua inserção, ou não, na empresa.
TEORIZAÇÕES SOBRE SEXUALIDADE E GÊNERO

Discutir sexualidade e gênero nos remete para diversos contextos históricos que os
conceituavam de diferentes formas. Durante muito tempo, pairou a divisão binária de sexo,
classificado por fatores biológicos que determinavam como homens e mulheres deveriam agir
nos ambientes sociais.
Essa binarização era considerada natural, já que as funções de homens e mulheres
eram postas para serem apenas exercidas, praticadas pelos sujeitos. Segundo Tânia Navarro
Swain (2000) isso contribuiu para que não tivéssemos discussões em torno das pluralidades e
multiplicidades do ser humano que implicavam nas formas de viver a sua sexualidade,
contribuindo para a manutenção de estereótipos e os efeitos negativos que os mesmos
abarcam.
No entanto, de acordo com Louro (2007) a sexualidade não se restringe apenas ao
corpo, mas envolve fantasias, linguagens, comportamentos, representações que estão

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relacionadas com desejos e prazeres, não sendo compreendida apenas pelo viés biológico,
mas sim por meio de demais mecanismos que constituem os modos de viver as sexualidades.
Isso referenda a discussão em torno do entendimento de que a sexualidade, ainda
segundo a autora acima, é uma construção histórica, e Weeks (2001) concorda com essa
historicidade, afirmando que não há a sua pré-definição, sua fixidez ou imutalidade da
sexualidade, mas sim está inserida na cultura e por isso, possui flexibilidade, instabilidade,
pluralidade e multiplicidade.
Foucault (2011) afirma que a sexualidade é um dispositivo histórico, por isso, não é
naturalmente dada e possui uma série de elementos como os discursos, leis, arquiteturas e
demais recursos que contribuem para a constituição sexual dos indivíduos. Sendo assim por
meio dos aparatos sociais, há a promoção, regulação, negação e etc da sexualidade dos
sujeitos, que contribuem para a determinação dos modos de ser masculino e feminino. Desse
modo, o corpo desnaturaliza-se e torna-se um espaço de poder que influencia e é influenciado
pelas suas micro-relações entre os sujeitos por meio dos discursos que contribuem para a
produção dos modos de subjetivação.
Nesse sentido, entendendo a sexualidade como um constructo histórico, gênero
também é compreendido como uma construção social de acordo com as teorizações de Louro
(1997) e Scott (1995). Dessa maneira, apresenta-se como uma categoria de análise, não de
acordo com os aspectos biológicos, mas sim construído historicamente através das diferenças
existentes entre os sujeitos e que está permeado por relações de poder.
Nesse contexto, evade-se de quaisquer padrões essencialistas e divisões de papéis,
pois ao compreendermos que há relações de poder nas relações de gênero, podemos dizer que
elas podem ser modificadas, alteradas de acordo com o contexto e ambiente em que os
sujeitos estejam inseridos. Sendo assim, segundo Scott (1995) gênero apresenta-se como um
constructo histórico, político e relacional que envolve as constituições dos modos de
subjetivações e seus modos de viver suas masculinidades e feminilidades.
Não se pode conceber em mulher sem se relacionar aos homens, e vice-versa, por
isso, gênero é relacional por estar inserido em contextos “recheados” por sujeitos e pela
diversidade. Nesse sentido, não podemos delimitar a discussão de gênero às mulheres, mas
sim envolver homens a fim de que tenhamos discussões mais significativas em torno das
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formas que os sujeitos vivem suas masculinidades e feminilidades e, além disso, discutirmos
em torno das desconstruções de “papéis”, estereótipos, padrões, estabelecidos e que
cotidianamente são re-criados e reinventados a fim de serem mantidos nos meios sociais, já
que é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos.
A proposição de desconstrução das dicotomias – problematizando a constituição de
cada polo, demonstrando que cada um na verdade supõe e contém o outro,
evidenciando que cada polo não é uno, mas plural, mostrando que cada polo é,
internamente, fraturado e dividido – pode se constituir numa estratégia subversiva e
fértil para o pensamento. (LOURO, 1997, p 31)

Essa “estratégia subversiva e fértil” para o pensamento nos remete para a visão de
compreendermos que não há neutralidade nos processos de constituição das identidades e,
assim, percebemos o caráter não natural, a fim de analisarmos as relações como construções e
por isso, passíveis de serem questionadas, analisadas, reformuladas e reconstruídas.
Nesse sentido, é importante ressaltar que o processo de constituição de homens e
mulheres não é linear, harmônico, não está finalizado, e denota a sua incompletude a cada
momento, pelo fato de que está envolvido em relações que influenciam e são influenciadas
pelos sujeitos.
Judith Butler (2014) afirma ainda os diversos aspectos que influenciam na
constituição dos modos de subjetivação dos sujeitos, enfatizando que não existem padrões
únicos, inflexíveis e estáveis, ressaltando que:
Se alguém é uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo
não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da ‘pessoa’
transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem
sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos
históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais,
classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas.
(p. 20)

Assim enfatizamos que a pluralidade em torno dos estudos sobre gênero relacionados
a outras categorias de análise é relevante para reconhecermos as diferenças entre os
indivíduos, a fim de que sejam postos em questão e assim melhor evidenciem a diversidade, a
multiplicidade e a pluralidade entre os sujeitos.

A INSERÇÃO FEMININA NOS CURSOS DE ENGENHARIA

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Sabemos que as discussões sobre as mulheres ganham ênfase por meio do Movimento
Feminista. No Brasil e em demais países, segundo Louro (1997), o Movimento é
caracterizado pelas reivindicações em torno do Sufrágio, ou seja, direito ao voto. Desse modo,
a Primeira Onda do Movimento Feminista almeja o alcance da igualdade de direitos entre
homens e mulheres.
A segunda onda do Movimento direciona-se para aspectos acadêmicos relacionados à
produção de conhecimento. São discutidos assuntos em torno dos processos de escolarização,
profissionalização, agressões físicas etc que proporcionam estudos e produções acadêmicas
que contribuem para a intelectualização do Movimento.
Nesse sentido, a mulher já não é vista como um ser submisso, mas sim é posta em
questão, evidenciando a relevância que a mesma possui para a constituição da sociedade. Isso
porque, durante muito tempo, manteve-se o padrão dominante de que a mesma deveria ser
formada para exercer atividades do lar, atuando como boas mães e esposas.
Beauvoir (2009) trata sobre a superioridade masculina, demonstrando as relações
desiguais entre homens e mulheres nos ambientes sociais, em que eles determinam os locais
femininos, são considerados como autoridades supremas, e elas vivenciam essas situações de
submissão nos ambientes familiares, nas igrejas, instituições educativas e outras.
Confrontando-se tais situações, faz-se evidente que a do homem é infinitamente
preferível, isto é, ele tem muito mais possibilidades concretas de projetar sua
liberdade no mundo; disso resulta necessariamente que as realizações masculinas
são de longe mais importantes que as das mulheres; a estas é quase proibido fazer
alguma coisa. (BEAUVOIR, 2009, 813-814)

Denotando que aos homens é possibilitado o exercício de liberdade de maneira plena,


isso permite com que o mesmo haja, atuem e realizem seus objetivos de modo mais efetivo,
enquanto que às mulheres restam as barreiras, haja vista que a mesma deve conter-se em suas
funções, em seus ambientes privados e não ultrapassá-los em busca de realizações pessoais.
Desse modo, historicamente, as mulheres foram educadas para atuarem como boas
mães e esposas, ou seja, ao ambiente privado. Mas ao serem inseridas nos ambientes públicos,
são educadas para atuarem no magistério, uma profissão, considerada feminina por, segundo
Louro (2013), requerer valores afetivos, amorosos, pacientes na atuação com discentes.
Esse foi um primeiro avanço na escolarização feminina. Atualmente, verificamos que

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elas ocupam ambientes considerados masculinos, como na área das ciências exatas, e neles,
ainda causam estranhamento, por estarem em áreas que, historicamente, são caracterizados
masculinizantes, em que as relações de gênero não são contempladas como relevantes para as
constituições dos modos de subjetivações dos sujeitos, conforme discutem Cabral e Oliveira
(2011):
Gênero é uma categoria não contemplada nesses indicadores, justamente porque a
ciência pretensamente neutra não tolera um sujeito do conhecimento situado social e
historicamente. Sendo androcêntrica, valorizará categorias historicamente
relacionadas a quem por mais tempo esteve no poder, ou seja, os homens.
(CABRAL e OLIVEIRA, 2011, p. 04)

Enfatizando que a ciência valoriza o que é historicamente tido como verdade. Assim,
mesmo com as mudanças sociais, onde há uma série de avanços em relação às mulheres, a sua
inserção em alguns ambientes é ignorada devido à hegemonia masculina. Desse modo,
podemos dizer que aquelas que avançam para áreas “masculinas” são consideradas como
“estranhas”, havendo a necessidade de que as mesmas atuem com dedicação, esforço, a fim de
sejam visualizadas nesses ambientes que reforçam o seu não-pertencimento nos mesmos.
Tebet (2008) denomina essas mulheres como “transgressoras”, enfatizando que:
Nesta direção, parece que para as ‘transgressoras’ há uma necessidade maior de
tentar demonstrar legitimidade no campo e isto não se faz admitindo a ajuda de
outrem, enquanto que os alunos não precisam ‘provar’ que são bons, exatamente
porque a engenharia já e considerada como um campo deles”. (TEBET, 2008, p. 03).

Refletindo que ao estarem nos cursos de engenharia, temos as valorizações de


características que remetem aos homens, como o domínio do cálculo e do pensamento lógico,
racional, técnico, sendo que isso sempre foi relacionado aos conhecimentos que eles deveriam
adquirir em suas formações, enquanto que para as mulheres, os conhecimentos pautavam em
aspectos ligados aos afetos, pensamentos emocionais, nas ciências humanas que as formariam
para atuarem nos ambientes privados.
Conforme Lombardi (2006), a presença feminina nesses cursos deve ser objeto de
investigação, com o intuito de que haja a percepção de como os modos de subjetivação, nos
indagando sobre as ações que definem e mantem os estereótipos nesses ambientes, e verificar
se isso influenciará em suas atuações profissionais.
Nesse sentido, podemos dizer que a necessidade de estudos que envolvam a presença
feminina torna-se relevante para que possamos entender de que forma isso se refletirá em suas
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atuações profissionais, haja vista que é notória a participação das mulheres no quantitativo da
população economicamente ativa, mas ainda persistem preconceitos e discriminações ligadas
ao gênero em diversos ambientes de trabalho, fazendo com que as mulheres tenham que se
sobressair em suas funções, não apenas pelo fato de que possuem capacidade para isso, mas
sim para mostrar aos demais sujeitos que ela é merece ser reconhecida, conforme Teixeira
(2011) enfatiza:
Sendo assim, a mulher, ao se inserir no mercado de trabalho, vive uma situação
extremamente paradoxal e desgastante no sentido em que, no ambiente de trabalho,
precisa adotar uma postura profissional, o que quase sempre significa ‘ocultar’ sua
identidade feminina para incorporar posturas características do homem profissional,
a fim de comprovar a todo instante que merece o cargo, ao mesmo tempo em que é
obrigada a se submeter às representações gerenciais e mesmo dos colegas de
trabalho, que remetem às imagens da mulher/mãe ou dona de casa. (TEIXEIRA,
2001, p. 348.)

Isso nos remete a uma afirmação de Navarro (2000) em que é preciso que a mulher
liberte-se das amarras de ser mulher, ou seja, que os aprendizados vinculados à submissão,
inferioridade, as padrões consideráveis desejáveis a serem adquiridos pelas mulheres sejam
questionados, denunciados, para que a mesma consiga, efetivamente, viver sua liberdade e
alcançar suas realizações pessoais, profissionais, sociais, políticas e culturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão sobre as relações de gênero nos cursos de engenharia é emergente, pois
denota a questão que atualmente cada vez mais aumenta o quantitativo de mulheres em cursos
historicamente considerados masculinos, onde os modos de constituição das subjetividades
devem ser analisados e investigados, haja vista que apresentam relações de poder, por isso,
não ocorrem de maneira natural.
É importante ressaltar que a presença de padrões fixos e imutáveis é evidente, no
entanto, torna-se necessário que os mesmos sejam questionados, a fim de que as mulheres
percebam que devem agir de maneira a intervir nos processos ligados à sua formação
acadêmica e profissional, com o intuito de que haja a amenização dos preconceitos e
discriminações existentes nos ambientes de ensino.
Além disso, podemos dizer que os documentos oficiais, os dispositivos, mecanismos e
demais artefatos existentes nos ambientes educativos devem ser considerados constructos
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sociais e por isso, são carregados por relações de poder que influenciam na manutenção dos
padrões existentes nos ambientes de formação.
Pelo exposto, enfatizamos que se trata de um estudo que tenciona a discussão em torno
da desnaturalização dos ambientes de formação educativa e profissional nas questões de
gênero, com o intuito de que as mulheres possam constituir suas subjetividades de acordo
com suas escolhas e seus objetivos, não se pautando em padrões históricos que contribuem
com sua invisibilização e dominação, mas sim almejando atuar no ambiente social de acordo
com sua singularidade, subjetividade, seja nos ambientes educacionais, como nos sociais,
políticos, religiosos, culturais e outros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Livro, 1960.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismos e subversão da identidade. 7ª ed. Rio


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CABRAL, Carla Giovana e OLIVEIRA, Angélica Genuíno de. Igualdade de gênero em


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em http://www.esocite.org.br/eventos/tecsoc2011/cd-anais/arquivos/pdfs/artigos/gt021-
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FOUCAULT, Michael. História da Sexualidade I: a vontade do saber. 21ª ed. Rio de Janeiro:
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LOMBARDI. Maria Rosa. A engenharia brasileira contemporânea e a contribuição das


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nº 2, p.109-131, 2006.

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estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.
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Brasil. 10ª ed. São Paulo: Contexto, 2013.


SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análises histórica. In. Educação e realidade.
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TEBET, Mani. Mulheres na engenharia: transgressões? Fazendo Gênero 8 – Corpo,


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em http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST38/Mani_Tebet_38.pdf
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reconfiguradas de exploração ou novos horizontes de emancipação? In: PIMENTA, Solange
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COM QUE ROUPA EU VOU? REPRESENTAÇÕES SOBRE O CORPO FEMININO


E A MODA NO JORNAL DAS MOÇAS.

Lourdes Rafaella Santos Florencio310


Luciana Kellen Gomes de Souza311

É indiscutivelmente na alvorada no século que XX que as mulheres submergiram a


inúmeros espaços sociais. Essa ocupação veio acompanhada do novo estilo de vida urbana
por qual o Brasil vivenciava desde meados do século anterior. Analisando essa relação a partir
do processo de industrialização do país, a historiadora Margareth Rago (1985, p.62) expõe
que desde final do século XIX estava sendo gestado um “novo modelo normativo de mulher”,
estabelecendo novas formas de relacionamento. Onde a “invasão do cenário urbano pelas
mulheres, no entanto, não traduz um abrandamento das exigências morais, como atesta a
permanência de antigos tabus como o da virgindade”. Marcada pela polarização liberdade-
intervenção, quanto mais às mulheres participavam da vida pública, “[...] mais a sociedade
burguesa lança sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento da culpa diante do
abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas longas horas de trabalho”
(1985, p.63).
Para além do debate sobre a mulher e sua inserção no mercado de trabalho ou
espaços educacionais formais, buscamos discutir sobre a formação moral dessas mulheres
nessa relação de liberdade e controle dos seus corpos e almas. Não podemos, entretanto,
desconsiderar que no já mencionado período houve um aumento substancial da figura
feminina aos espaços formais de educação, embora tal formação tivesse objetivos diferentes
da educação masculina. Ser uma boa filha, esposa e mãe, talvez fosse essa a tônica da
formação intelectual feminina.
Decisivamente, o letramento feminino permitiu inúmeras possibilidades inclusive

310
Doutoranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará, Bolsista CNPQ.
311
Doutoranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.

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profissionais, com destaque para a docência. No entanto, tomamos o contato com as letras,
como ponto de partida por entender que a maior aproximação com a leitura e a escrita dessas
mulheres e a possibilidade de comunicar-se e principalmente de absorverem tendências
femininas, isso tudo em âmbito nacional.
O sociólogo Renato Ortiz abaliza que muitas das mudanças ocorridas no Brasil nesse
período fazem parte do projeto de modernização do país. Especificamente sobre a
acessibilidade aos bens culturais e, para esse estudo, em especial o mercado de livros, revistas
e jornais, Ortiz (1988, p.121) diz que a conjuntura cultural brasileira está marcada pela
ampliação e volume do que ele chama de “mercado de bens culturais.” Para ele, na metade do
século XX “[...] ocorre uma formidável expansão, em nível de produção, de distribuição e de
consumo da cultura; é nessa fase que se consolidam os grandes conglomerados que controlam
os meios de comunicação e da cultura popular de massa”.
Os impressos são vistos como valiosa possibilidade de diálogo com vidas cotidianas
passadas, pois eles pintam parte dos debates comuns de uma sociedade.
Assim como se observa o aumento das mulheres no espaço escolar, igualmente se
ver o crescimento, nada tímido, de produções voltadas para esse público. A imprensa
feminina, comercial ou feminista, exerceu um proeminente papel na formação moral das
mulheres letradas. Diante dessa constatação posso intuir que as revistas femininas atuaram
como turbinas nos processos de manutenção e alteração do comportamento feminino
brasileiro.
A revista carioca Jornal das Moças312, destinada apenas ao público feminino e por
tanto, portadora de uma pedagogia feminina, seguramente desejada e compartilhada não
apenas pelas moças cariocas.
Fundada em maio de 1914, a revista tinha periodicidade semanal, permanecendo suas
atividades até dezembro de 1961. Embora publicada no Rio de Janeiro, o Jornal das Moças
era distribuído para várias regiões do Brasil. O periódico possuía uma média de paginas
volumosa e buscava discutir vários aspectos do mundo feminino. Para fins didáticos usarei a

312
Um enorme acervo dos exemplares do impresso Jornal das Moças encontra-se disponível para acesso e
download na página da hemeroteca Digital Brasileira, sob domínio da Biblioteca Nacional Digital. O exemplar
vão desde o primeiro, em 1914 até o último em 1961.
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sigla JM para me referir ao Jornal das Moças.


O texto de apresentação da primeira revista, em 1914, a define e se propõe a seguinte
tarefa:
Levar ao lar das famílias patrícias, além da graça e do bom humor que empolgam, da
música e canto que embalam, os brincos e cantos infantis que deleitam, a moda que
agrada, do romance que desfaz as visões tristes da existência, da nota mundana que
satisfaz a curiosidade insofrida, os conhecimentos úteis que instruem313

O cinema hollywoodiano e brasileiro; dicas de beleza; culinária; moda; higiene do


corpo; educação dos filhos; entre outros assuntos, faziam do JM um impresso completo para
as mulheres brasileiras. “Jornal das Moças - A revista de maior penetração no lar”, esse jargão
está presente em boa parte das revistas analisadas até então. Observando o periódico em seu
contexto, me sugere entender que de fato, muito mais que um jargão, o JM buscou penetrar
nas esperas mais profundas dos lares brasileiros.
Embora vá analisar de forma sistemática os exemplares da década de 50 e dos anos
de 1960 e 1961, busquei examinar algumas revistas anteriores a este período. Entendemos que
periódicos de grande circulação e larga escala de tempo, como o Jornal das Moças, em geral
carregam, excluem, incluem ou resignificam elementos de acordo com o contexto histórico.
Ainda no primeiro exemplar do JM, datado de 1914, a revista apresenta algumas
características que as mulheres deveriam possuir. Para ficar mais elucidativo, já que se trata
de um texto carrego de ordenações morais, importantes de serem salientadas, divido-o em
dois momentos, entretanto sem interferir na ordem do texto. Intitulado por “O QUE A
MULHER DEVE SER”, a coluna elenca dez importantes afirmações e conselhos.

1 – honrada por dever e não por calculo. É uma triste verdade que nem todas as
honradas se casam, mas não é também menos verdade que as maculadas só por
excepção se matrimoniam.
2 – coquette com o homem a quem amou, mas não com dois ao mesmo tempo, como
as vezes acontece, pois acabará por não apanhar nenhum.
3 – Usar de maior limpesa e asseio possíveis. Aos homens agrada tanto a mulher
asseiada como desagrada a que se descuida com a sua hygiene. Venus, em nudez, a
sahir das brancas espumas das aguas, é mil vezes mais bella do que uma senhorita,
cheia de enfeites e de oleos.
2 – É de bem que procure agradar o homem, pois para isso nasceu, mas sem que
tente deslumbral-o, afêctando dotes e qualidades que não possue. Com cadeiras

313
Jornal das Moças, Ano I, número I. Rio de janeiro, 1914.

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postiças e seios de algodão, raramente ateará incêndio ao combustivel do amor, ou,


quando isso aconteça, bem depressa extinguirá.
5 – Vestir com simplicidade, embora com bom gosto. Não exclue a modéstia e
elegância, nem aquella exclue a arte. Se é bella de rosto e possue outros atractivos
physicos, facilmente seduzirá a quem a encare com qualquer espécie de tecido. A
verdadeira formosura vence por si só. A falsa é a que tem necessidade de artifícios
para conquistar amores.314

O texto apreende e difunde condutas importantes, visivelmente pautadas na


civilidade. Educando suas leitoras e preparando-as para exercerem sua feminilidade. Ainda
com o escopo de intervir nas condutas femininas, o artigo continua:

6 – Si está enamorada e é correspondida, procure, si o seu coração consente, não


ceder ao namorado mais do que a boa educação permitte. Embriague-o com
plalavras, com suspiros, com promessas, com lagrimas, mas não consista nunca que
o amor sinta o sabor dos beijos. Póde algumas vezes, quando já se sente quasi
garantida pelo compromisso amoroso, fingir um instante de distração para que o
namorado a beije, reclamando, porém, em seguida, em termos brandos, contra a
ousadia. Isso aguçará o desejo do casamento para mais breve.
7 – quando for esposa, é que deve, mais do que nunca, galantear o marido, para que
este nunca se enfare do amor conjugal. Deve procurar levantar-se mais cedo do que
elle e sempre ás escuras ou sob a penumbra do aposentos, para que o marido não a
veja desgrenhada.
Algumas esposas,ao envez de procurarem agradar aos maridos, exibem-se, ao
contrario, aos olhos delles em grosseiro desalinho, sem comprehenderem quanto
podem perder com esse procedimento.
8 – Não convém despachar muitos pretendentes, pois cada vez mais escasseiam os
candidatos ao matrimonio. Não sonhe com príncipes nem com titulares ou doutores.
Contente-se com quem possua elementos physicos para ganhar a vida e bastante
força para tomal-a em seus braços algumas vezes por semana, em attitude carinhosa.
9 – Não olhe de má vontade os homens serios. São estes os únicos que pouco falam
e muito fazem pela vida.
10 – Não case com philosophos. Estes, ou são muitos distrahidos ou têm a mania de
analysar tudo. Tanto num como noutro caso são maus maridos, já por falta, já por
excesso.315

O texto passa claramente a opinião de que mulher nascera com a função social de
conceber matrimônio. Todavia, para ter sucesso no seu desempenho, lhe compete ter atributos
pré e pós-nupcial. Agradar o homem está presente em todos. Acima de tudo, comungando

314
Jornal das Moças, Ano I, número I. Rio de janeiro, 1914.
315
Jornal das Moças, Ano I, número I. Rio de janeiro, 1914.

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com os preceitos católicos, a mulher deve ter como virtude sua honra.
As moças deveriam sim paquerar, entretanto apenas um por vez. Alerta ainda que o
número de pretendentes com o passar do tempo diminuía, não sendo aconselhável despachá-
los. O texto ainda destrói o sonho de almejar o príncipe encantado dos contos literários e,
rapidamente prescreve os atributos que um bom pretendente deveria possuir como trabalhar
para sustentar o lar e ser forte, esse segundo atribuo referindo-se à virilidade masculina.
Enaltece o “homem sério” e despreza o “philosopho”.
Mesmo após casar-se, a saga feminina não acabava. Há uma veemência ao abordar a
questão da limpeza pessoal, cabe salientar que nesse período o Brasil ainda vivenciava
projetos de higienização, inclusive com intervenção médica. Aconselha as mulheres casadas a
acordem antes dos maridos para que eles as vissem sempre arrumadas.
Chama-me a atenção o quanto a aparência ganha destaque, porém, tendo como
medida a descrição, o “bom gosto” e a simplicidade, não devendo nunca apresentar-se com
“cadeiras postiças e seios de algodão”. Honesta, prendada, bonita, limpa e até certa medida
sedutora, compunha o leque de atributos que mulher deveria aprender.
A supracitada coluna não apresenta autoria, essa omissão merece ser analisada. Em
consonância com Foucault (2001, p.274) entendemos que o escritor, quando escreve, ele o faz
a partir da individualização de ideias, antes universal ou homogêneo. Dessa forma, em sua
função, o autor exprime “algumas características do modo de existência, de circulação e de
funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade”.
A Revista JM chega aos anos 50 com todo vigor. Embora passados quatro décadas
do objetivo inicial, já apresentado anteriormente, continua latente. Eclética nos assuntos o
semanário consolida o seu trabalho, expressa pelo volume anúncios e propagandas de serviços
e produtos mais variáveis, todos ligados ao universo feminino.
A beleza feminina, e os inúmeros produtos para esse fim estão em demasia no JM,
imprimem e evidenciam o desenvolvimento industrial e comercial brasileiro e joga luz sobre
as mulheres, identificando-as como consumidoras em potencial. Alude uma mulher prática,
moderna e essencialmente urbana. Que trafega pelas ruas, praias, cafés e outros espaços da
cidade. Sem ainda deixar de reforçar o modelo de mulher assentada no lar.
A seguir apresentamos uma, entre inúmeras, propagandas comerciais de sabonetes,
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retirada do JM.

Jornal das Moças, 16 de maio de 1950, pag. 22.

De antemão, o volume de propagandas de marcas de sabonetes acompanhado pelo


aconselhamento dos seus benefícios se usado diariamente, intui-se que a prática do banho
diário e a utilização do sabonete não fosse ainda uma prática rotineira na vida das leitoras. No
entanto, a escolha por esta, em detrimentos de outras imagens não se deu ao acaso, pois
destaca-se o Marketing, a figura de uma coroa acompanhada pela frase “Não é preciso coroa
para ser rainha”.
Essa referência a mulher como rainha, especificamente, a rainha do lar, remonta a
discussão de Rago (1985, p. 65), pois “certamente, a construção de um modelo de mulher
simbolizada pela mãe devota e inteiro sacrifício, implicou sua completa desvalorização
profissional, política e intelectual.” A historiadora ventila que o padrão feminino edificado
para as mulheres da primeira metade do século XX, aloca sobre a mulher a gerencia do lar,
anulando o seu papel em outras esferas de forma que a desvalorização é “[...] imensa porque
parte do pressuposto de que a mulher em si não é nada, de que deve esquecer-se
deliberadamente de si mesma e realizar-se através dos êxitos dos filhos e do marido.”
Observa-se, por tanto, uma tênue ligação entre o público e o privado ordenado pelo
culto a aparência, não apenas física. A própria família dentro dessa roupagem tem a sua
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intimidade envolvida por essa necessidade de externizar um estilo de vida onde a mulher seria
a coluna estruturante.
A dona de casa idealizada deveria manter uma organização do cotidiano do lar e dos
afazeres domésticos, cozinheira de “mão cheia, educadora dos filhos, e não obstante
possuidora de uma aparência impecável. Talvez por essa razão o JM tivesse algumas colunas
permanentes voltadas para esses fins.
Encontramos várias matérias relacionadas à decoração do lar, embora três sessões me
chamem atenção: Evangelho das Mães; Vamos Preparar os Quitutes e o suplemento de maior
destaque, Jornal da Mulher – Figurinos e Bordados.
As capas da revista, quase sempre coloridas, aludem à figura feminina enquanto ser
elegante e bem vestida, valorizando o corpo feminino sem com isso pôr-lhes a mostra.
Algumas vezes apresentando modelos nada condizentes com o clima brasileiro.
São várias as capas da revista que anunciam a existência de moldes no suplemento,
sendo este um dos principais atrativos da revista, a moda. Este vinha como suplemento da
revista intitulado por “Jornal da Mulher”, com dicas sobre moda baseada nas tendências
nacionais mais também na francesa, italiana e norte-americana.
Há desenhos de mulheres com diferentes looks, acompanhado de uma série de passo-
a-passo com as noções de corte e costura. Para além do aprendizado da costura, ou atualização
do mundo da moda, se percebe uma preocupação pedagógica com as questões
comportamentais das leitoras. Identifica-se discursos que orientam as mulheres a terem
comportamentos discretos não apenas nos espaços públicos mais também no privado, e essa
descrição partia também das indumentárias utilizadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo objetivou analisar representações sobre as indumentárias femininas e as


buscas de controle dos seus corpos e mente a partir da análise da revista Jornal das Môças na
segunda metade do século XX. Época marcada pelo recente processo de industrialização e
urbanização, logo, de ampliação dos espaços de convivência femininos. Novos hábitos que
geraram o ordenamento das posturas femininas nos espaços públicos e privados.

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A revista carioca era destinada ao público feminino e por tanto, portadora de uma
pedagogia feminina, seguramente desejada e compartilhada por mulheres de vários lugares do
Brasil. A aparência feminina ganha destaque tendo como medida a descrição, o “bom gosto” e
a simplicidade. Honesta, prendada, bonita, limpa e até certa medida sedutora, compunha o
leque de atributos que a mulher deveria aprender. A forma de vestirem-se, as regras de
etiqueta e os inúmeros comerciais de produtos de beleza têm amplo espaço no folhetim.

REFERÊNCIAS BIBLIORÁFICAS

ÁRIES, Philippe; DUBY, Georges: História Vida Privada: da Primeira Guerra aos nossos
dias . v.5. São Paulo: Companhia de bolso, 2009.
CALANCA, Daniela. História social da moda. São Paulo: Senac, 2008.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2003.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985.
______________. Os Prazeres da Noite. Rio de Janeiro/RJ: Paz e Terra, 1991.
FOUCAULT, M. O que é um autor? In: Ditos e Escritos - Estética: literatura e pintura,
música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001b.
____________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1997.
ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988

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CONTRADIÇÕES E CONVENÇÕES SOBRE A EDUCAÇÃO SEXUAL NA ESCOLA.


O CASO DA COMUNIDADE RURAL DE OUTEIRO REDONDO EM SÃO FELIZ -
BA316

Lucimere Falcão Lafite Leite317 | afitevieira@hotmail.com


Lucilia Falcão Lafite Leite318
Zelivaldo Falcão Leite319

INTRODUÇÃO

O interesse em abordar sexualidade e gravidez na juventude é fruto de constantes


leituras e observação do cenário contemporâneo, discutiremos o tema nos mais diversos
campos científicos, sendo um tema de grande relevância social. A escolha do objeto de
pesquisa não foi por acaso, foi motivada por frequentes visitas à Escola Estadual Rômulo
Galvão no ano de 2011, localizado no distrito rural de São Félix, chamado de Outeiro
Redondo, há aproximadamente 20 km da sede e 141 km de Salvador, segundo dados
coletados no acervo da biblioteca Municipal, a população que constitui o distrito de Outeiro
Redondo e suas adjacências possuem aproximadamente 4.000 habitam.
Do universo de 200 estudantes, cerca de 40 estavam grávidas do primeiro ou do
segundo filho e/ou já eram mães, além de relatos sobre aquelas meninas que haviam
abandonado ou se afastaram temporariamente da escola logo após a descoberta ou próximo do

316
Trabalho apresentado no V Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais, realizada entre os dias 26 a 28 de
novembro de 2015, Fortaleza/CE.
317
Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Ciências Educacionais, graduanda em Museologia pela
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, E-mail: merelafite@hotmail.com
318
Bacharela em Ciências Contábeis pela Faculdade Visconde de Cairu, Graduada em Matemática pela
Faculdade de Ciências Educacionais, graduanda em Museologia pela Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia, E-mail: lafitevieira@hotmail.com
319
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdade e Desenvolvimento
(CAHL/PPGCS/UFRB), E-mail: zelivaldofalcao@hotmail.com

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final da gestação. Aquelas que ainda permaneciam na escola fazia isso de forma irregular,
inconstante, faltando muitas vezes, semanas seguidas ou até meses. Ainda assim, a educação
sexual continuava sendo um tabu naquele contexto.
Estabeleço como critério de seleção dos entrevistados na pesquisa jovens que tenham
entre 18 anos aos 24 anos de idade. A coleta de dados contou também com a observação
participante, a parir da ida a campo, permitindo assim, o convívio com os sujeitos desta
pesquisa, presenciando ou participando de situações que possibilitaram um maior
entendimento do tema aqui proposto. Essa atitude estreitou os laços entre o pesquisador e os
(as) pesquisados (as), utilizando-se de técnicas privilegiadas entre as conversas informais e
sempre que possível introduzindo assuntos relevantes à pesquisa como: sexo, paquera, ficar,
namorar, ser mãe, ser pai e gravidez nas conversas, atitudes estas que possibilitou um maior
engajamento dos jovens.

ENFRENTAMENTO DA GESTAÇÃO NA ESCOLA RURAL

O crescente número de adolescentes grávidas vem aumentando nas ultimas décadas,


esse tema vem sendo discutido e popularizado pelos meios de comunicação, contribuindo para
sua maior visibilidade social. A passagem para a vida adulta apresenta especificidades como:
as condições materiais de existência do indivíduo levando em consideração as diferenças de
gênero e de raça/cor que possibilitam as trajetórias juvenis, essas trajetórias sociocultural são
diferentes quando comparados com países desenvolvidos.
No caso das jovens pesquisadas no Outeiro Redondo, o que percebemos é que a
maternidade é mais um elo para a renovação das famílias naquele grupo do que um fator para
aumento da pobreza local. No entanto, é necessário estimular mudança de pensamento e o
modo como os adultos encaram a sexualidade adolescente, como ainda há sanções sobre
prática de atividades relacionadas à sexualidade pré-marital em nossa sociedade, com isso
acabam perdurando as controversas sobre o acesso, ou uso de métodos contraceptivos e à
educação sexual.
A gravidez, a maternidade e a paternidade são temas antropologicamente relevantes,
uma vez que não se restringe a abordagem relacionada a três aspectos, mas abrangem

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dimensões que são construídas cultural, social, histórica e afetivamente. Eles não devem ser
estudados de forma isolada ou fragmentada, o correto é analisá-los de forma que estejam
integrados em uma rede de valores inseridos na sociedade.
Sendo assim, o estudo apresentado neste trabalho surgiu da necessidade de se pensar,
“como é ser mãe e como é ser pai na adolescência” e suas implicações no contexto escolar a
partir dos seguintes questionamentos: Quais as implicações na maternidade, paternidade e
gravidez na adolescência? Qual o papel da escola no acolhimento, na compreensão e na
discussão do tema? De que forma o jovem vê a família diante deste acontecimento? A
discussão da sexualidade talvez seja um dos tópicos mais importantes e ao mesmo tempo mais
difíceis, tanto para o jovem como para seus pais e também para a sociedade como um todo,
pois, diante deste diálogo um campo minado de conflitos e divergência se instaura, obrigando
todo o público envolvido a calcular toda e qualquer atitude adotada.

A sexualidade é um “dispositivo histórico”, visto que, é uma invenção social, uma


vez que, se constitui, historicamente, a partir de múltiplos discursos sobre sexo:
discursos que regulam, normatizam que instauram saberes, que produzem
“verdades”. Sua definição e dispositivo sugere a direção abrangência de nosso
olhar320.

A juventude se representa como uma fase de descobertas e transformações, onde o


corpo como um todo está em constantes mudanças, enquadrando-se perfeitamente na fase
intermediária, onde a mudança na forma e na estrutura do corpo está em maior evidência, bem
como um crescimento e uma diferenciação em relação ao estado inicial, caracterizado pela
infância, e posteriormente ate chegar à vida adulta, estagio este onde o indivíduo está saindo,
de certa forma, desabrochando para a vida lá fora, momento de grande ansiedade e
expectativas para o futuro e para a vida adulta.
A metamorfose apresentada pela juventude é representada como um estágio de
transição de descobertas, onde o indivíduo está em busca de identidade, personalidade e de
certa forma individualidade em constituir um ser adulto. Os meios de comunicação são parte
disso, assumindo uma grade de programação na qual sexualidade é facilmente requisitada e
alimentada. Durante conversas com professores e funcionários da escola acerca do índice de

320
FOUCAULT, 1982, p. 15.

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alunas grávidas e/ou alunos que eram ou iam ser pais, foi constatada uma crença de que a
maternidade e a paternidade precoce contribuem para o abandono temporário ou definitivo
da trajetória escolar destes sujeitos, reforçando assim a evasão, configurando-se em um
problema social.

REFLEXÕES SOBRE A SEXUALIDADE

A sexualidade é a passagem de maior repercussão na adolescência, esse tema não se


resume apenas a genitalidade ou relação sexual, trata-se de um autoconhecimento, de uma
experiência, de um desvendamento, que se acentua com maior intensidade nesta fase.
Maria Luiza Heilborn descreve que:

Em outras palavras, o namoro deixou de ser uma etapa preparatória para a


conjugalidade e adquiriu uma realidade em si como etapa de experimentação afetiva
e sexual para os jovens. Isso se traduz, por exemplo, pela queda da idade das
mulheres na primeira relação sexual (em torno de dois anos em duas décadas)321.

No final dos anos 1980, uma forma de não compromisso codificado foi agregada à
classificação das formas de engajamento, um novo modo de encontro ou de entrada na relação
intitulada ficar, difundiu-se na juventude: neste tipo de conhecimento que se estabelece
geralmente em um lugar público (festa, baladas, boate, bar), a atração dos indivíduos suscita
um contato corporal imediato (beijos, carícias, até mesmo a relação sexual), sem vinculo entre
os parceiros, que, em geral, se separam sem a perspectiva de se reverem. Já para Heilborn
(2006) o namoro assumiu:

O namoro atual não perdeu o papel de compromisso, por outro lado a prática de
relações sexuais tornou-se uma questão inevitável para a maioria dos jovens. O
namoro perdeu sua característica preparatória, abrindo espaço para uma etapa de
experimentação afetiva e sexual. Uma nova espécie de relacionamento foi criada no
final dos anos 1980 intitulado de ficar, essa relação geralmente se estabelece em
lugares públicos, propiciando um contato corporal imediato sem laços futuros322.

De acordo com a autora, a sexualidade se constitui num campo privilegiado para a


análise do social, num microcosmo em que se atualizam identidades de gênero,
pertencimentos de classe e trajetórias sociais.

321
HEILBORN, 2006, p. 36.
322
HEILBORN, op. cit.
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Estudar sexualidade é suscitar reflexões é dialogar com as representações dos sujeitos,


é buscar entender como os diversos grupos sociais manifestam e representam a
sexualidade. Ela pode ser abordada [...] como representação ou como desejo, como
um problema político moral ou como atividade sexual. Não existe abordagem unitária
da sexualidade323.

A sexualidade é apresentada ao jovem por meio da cultura, das representações


simbólicas que a sociedade as representa, assim esses jovens passam a se relacionar com essas
representações sexuais, “a sexualidade é uma das dimensões do ser humano que envolve
gênero, identidade sexual, orientação sexual, erotismo, envolvimento emocional, amor e
reprodução324”, na medida em que eles vão frequentando outros espaços de socialização, dar-
se início ao processo de identificação, ou seja, molda-se a sua sexualidade. A escola é um
importante espaço de socialização para esses jovens e para a construção de sua identidade,
não sendo único, o ambiente familiar também contribui de forma relevante para a
concretização da construção da identidade sexual de cada indivíduo.
É importante demonstrar como a descoberta da sexualidade relaciona-se a vários
aspectos e não somente à experimentação da relação sexual em si. Dessa forma, Heilborn,
(2006) demonstra que:

a adolescência caracteriza-se por diversas transições, sendo a passagem à


sexualidade com o parceiro a de maior repercussão. O aprendizado da sexualidade,
contudo, não se restringe àquele da genitalidade, [...]. Trata-se de um processo de
experimentação pessoal e de impregnação pela cultura sexual do grupo, que se
acelera na adolescência e na juventude. O aprendizado constitui-se na familiarização
de representações, valores, papéis de gênero, rituais de interação e de práticas,
presentes na noção de cultura sexual325.

Neste sentido, torna-se relevante a discussão dos fatores que envolvem o aprendizado
da sexualidade e de que forma estes aspectos influenciam os jovens a obterem determinado
conhecimento deste assunto. Por outro lado, as constantes transformações na vida
sociocultural nos últimos anos têm proporcionado à adoção de novos comportamentos,
hábitos e atitudes como o aumento de mulheres no mercado de trabalho, o advento da pílula
anticoncepcional e outros métodos contraceptivos, a liberdade de ser mãe ou não,

323
LOYOLA, 1999, p. 32.
324
ABRAMOVAY; CASTRO; SILVA; 2004, p. 29.
325
HEILBORN, op. cit, p. 35.
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proporcionaram uma mudança, ou seja, a possibilidade de escolha refletindo nos padrões


sexuais das mulheres, por exemplo.
A sexualidade está intrinsecamente relacionada com o contexto social de cada grupo, e
com os indivíduos. A partir dos símbolos e significados impostos pela cultura, a sexualidade
vai se nos manifestar diferentes indivíduos, a partir dos valores, dos códigos culturais, dos
sistemas de interação entre indivíduos, assim podemos pensar na juventude como sendo um
momento em que a sexualidade aflora, onde os mesmos aprendem entre si. É preciso
conceber a juventude não apenas como um grupo etário, reconhecendo a complexidade do
jogo de determinação que envolve a adolescência. A escola é um espaço em que os jovens vão
interagir com os pares, pois estão sempre em contato, permitindo assim uma troca de
conhecimento entre eles.
Desta forma é importante trazer a tona questões da sexualidade de jovens do meio
rural, no sentido que vai apresentar um contexto diferenciado sobre a juventude, contribuindo
assim para a discussão sobe gravidez na adolescência, maternidade e paternidade, dentro das
Ciências. O objetivo da pesquisa foi compreender quais os fatores sociais e históricos que
contribuíram para o aumento da gravidez na comunidade do Outeiro Redondo, e neste sentido
a questão da gravidez foi tratada além do fator biológico e passou a ser compreendida como
também uma construção social, de como cada indivíduo vivencia sua sexualidade como o
corpo é utilizado. A gravidez na adolescência é algo social. A escola deveria ser apresentada a
estes jovens como um espaço que discutisse não só gravidez na adolescência, como
sexualidade e tantos outros assuntos relevantes para a formação do indivíduo, pois a mesma é
um local em que os jovens ficam boa parte do tempo, é neste espaço que eles também são
socializados, interagindo com seus pares, na medida em que a sexualidade vai sendo
construída.
O Anexo da Escola Rômulo Galvão na zona rural de São Félix, contemplando toda a
zona rural da cidade demonstra que sua relação com a orientação sexual dos seus estudantes
está diretamente ligada a uma prática de controle moral e não educativo, mesmo diante de um
número relevante de meninas gestantes e garotos pais.
A escola não possui uma política de promoção à orientação sexual, aliado a isto
percebesse que a instituição emprega certa vigilância sexual a estes jovens, além do mais, o
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colégio não possuir muros nem espaço físico próprio que delimite seu espaço em meio à
comunidade local, esses fatores contribuem para a maior fiscalização tanto por parte dos
professores, da direção escolar como dos moradores da localidade, que assumem um papel de
fiscal da moralidade.
Brandão (2006) aponta que os jovens têm um conhecimento sobre os métodos
contraceptivos e uma meia consciência sobre os atos e mesmo agindo por impulso, praticando
o ato sexual sem pensar, conseguem refletir sobre a gravidez. Neste aspecto, a reflexão levou
a jovem à decisão em não abortar, e segundo ela assumindo com o pai, a responsabilidade
pelo ato praticado.

PERCEPÇÕES E REFLEXÕES A CERCA DA SEXUALIDADE E GRAVIDEZ NO


MEIO ESCOLAR.

A escola é um espaço educacional, é uma instituição que promove conhecimento e


debates? Será essa escola um espaço de pleno diálogo? Quais temas podem ser debatidos no
espaço escolar? Assim que cheguei ao Outeiro Redondo agucei meu olhar e o meu ouvir para
as representações da sexualidade, pensando em entender também as representações sobre
maternidade e paternidade, como os jovens da escola pensam ou representam a maternidade e
paternidade.
O que nos faz refletir sobre o papel da escola na abordagem e na divulgação de
informações sobre gravidez na adolescência bem como sexualidade. Faz-nos pensar qual o
papel da escola, qual o papel das disciplinas? Em que medida a escola pode contribuir para
esse debate?
A escola não está isolada da sociedade, ela faz parte da mesma, refletindo sobre esse
posicionamento, como a escola pode ou deve vencer o tabu de ter uma disciplina ou em
diferentes disciplinas falarem de temas tão evidentes nos dias de hoje, como: métodos
contraceptivos, gravidez na adolescência, DSTs, e tantos outros que acometem nossos jovens,
será que a escola assume realmente o verdadeiro papel de educar, de dar orientação sobre
temáticas que assolam nossa juventude.
Em um contexto em que a sexualidade aparece no cenário social como uma questão a
ser discutido cada dia mais precocemente, em que os jovens iniciam a vida sexual ativa, cada

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vez mais cedo, se faz necessário entender a representações da gravidez na adolescência, como
também o papel da maternidade e paternidade juvenil. Sendo assim podemos refletir sobre o
papel da escola como também o papel do professor. De acordo com Paulo Freire (2008).

Escola é [...] o lugar onde se faz amigos não se trata só de prédios, salas, quadros,
programas, horários conceitos [...] O diretor é gente, o coordenador é gente, o
professor é gente, o aluno é gente, Cada funcionário é gente. Nada de “ilha cercada
de gente por todos os lados”. Ora, é lógico [...] numa escola assim vai ser fácil
estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos, educar-se e ser feliz326.

No mesmo texto Paulo Freire diz “nada de ilhas cercada de gente”, refletindo um
isolamento, como a escola não discutir sexualidade, esse isolamento pode ser compreendido
no sentido em que a escola não aborda determinados temas, caracterizando assim um
isolamento direcionado para educação sexual juvenil.
A partir de uma maior liberação sexual as novas gerações começam a ver o desejo de
uma nova forma, o plano afetivo começa a se remodelar, a maneira de ver o corpo em
conformidade com os contornos corporais, como diria Foucault (1988) “a sexualidade passa a
ser vivida de múltiplas formas” o corpo passa a ser percebido de maneira diferenciada,
havendo a manipulação de métodos contraceptivos, da camisinha, desta forma, fazer sexo vai
além da reprodução, estando no plano do prazer e do desejo. Como também é expresso na
agenda das mulheres feministas.

[...] O feminismo lutava pela possibilidade de se fazer sexo pelo prazer, apesar de ao
mesmo tempo, contribuir para a efetivação das políticas demográficas antinatalistas,
que visavam o controle do crescimento demográfico e não o prazer. A busca pelo
prazer ficou subsumida na política de controle da natalidade em países como o
Brasil, que utilizou métodos contraceptivos radicais para diminuir a população.
Entretanto, é possível dizer que este paradoxo não comprometeu o teor do discurso
feminista pela busca do prazer e pela autonomia sexual das mulheres, pois ele
implicava produção de saberes327.

Assim a juventude passa a viver os prazeres sexuais com maior autonomia do corpo,
se os discursos dos grupos minoritários é por sexualidade mais aflorada, o discurso do
controle da natalidade e da sexualidade, vai estar embasado no poder público e na família.
Como por exemplo, no discurso do planejamento familiar, quando ocorre a gravidez

326
FREIRE, 2008,
327
SCAVONE, 2009, p.469
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indesejada vem o discurso da inocência, trazido a tona pelos pais.

A reprodução moral da sexualidade adolescente impediria a previsão do uso de


contraceptivos, o que corresponderia à assunção da prática regular da sexualidade.
Alguns pais “preferem” enfrentar uma gravidez “acidental”, fruto da “inocência” ou
“ingenuidade” da filha, do que admitir o planejamento racional da sua iniciação
sexual protegida, bem como de sua vida sexual subsequente, o que implica a adoção
regular de métodos contraceptivos, alternância de parceiros etc328.

É importante pensar na gravidez precoce na juventude, não como um acidente e/ou


inocência ou mesmo atribuir, uma irresponsabilidade juvenil, ou ainda, pensar que as filhas
fizeram determinado ato de maneira inocente, pois, os jovens têm um pré-conhecimento dos
métodos contraceptivos, dialogam de certa maneira com seus pares, contrapondo a ideia de
inocência, de certa forma já pré-estabelecida na maioria das vezes pelos pais. Como pensar
na gravidez precoce na juventude? Qual o papel da escola? Qual a função da família? Será
falta de informação e/ou falta de diálogo nos diversos espaços de socialização?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conversando com os professores e a diretora da escola, pude perceber que a tensão


está nos valores morais que eles atribuem à gravidez na adolescência, no entanto, nenhuma
ação efetiva é tomada para a aplicação de um modelo de educação sexual naquela
comunidade. Ocorre que a escola silencia sobre este fato, ainda que nas falas dos
representantes da instituição, os valores morais sobre este fato seja sempre negativo.
A orientação sexual dentro da escola é discutida de forma esporádica, em
determinadas disciplinas, de forma a limitar o conhecimento e o teor das informações
transmitidas, não havendo assim um comprometimento da instituição no aprendizado de
temas que envolvem a sua clientela, a escola não se torna atraente a partir do momento que
não aborda assuntos que envolvam seus alunos, além de que, as instalações físicas não são
propícias, possibilitando o afastamento ou desligamento dos jovens do ambiente educacional.
A família por sua vez, não contribui para a educação sexual destes jovens, muitas
vezes se eximindo de responsabilidade e/ou deixando a cargo do destino, ou seja, do
autoconhecimento, do descobrimento através de experiências vividas. Em outro aspecto,

328
BRANDÃO, 2006, p.73.
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percebi que a falta de orientação sexual reproduz uma lógica que assegura a maternidade
como um papel feminino, sendo por isso aceita pelos pais, ainda que as filhas estejam em fase
de formação. Mais uma vez, a naturalização do fato surge como um fator que sobrecarregará
as meninas mães fundamentalmente. Atribuindo a estas de forma indireta e precoce o papel da
maternidade, de manutenção da comunidade, ou seja, estás sendo mães logo cedo,
provavelmente criara laços que a manterão aprisionadas nesta realidade, e que possivelmente
reproduzi-ra a mesma ou semelhante realidade para suas filhas e filhos, fazendo girar o
moinho da vida na localidade.
Os membros da comunidade não interpretam a gravidez precoce como um problema
para a juventude local, esse acontecimento alimente a existência e permanência desses jovens
pais e dessas jovens mães.
A educação sexual não é um tema de interesse na escola desta comunidade, o que não
vem a ser diferente de outras escolas em outras regiões do país, mas também não é um
assunto que seja tratado em casa, exceto em relação a métodos contraceptivos e doenças
sexualmente transmissíveis, ainda que pareça contraditório. De acordo com a fala das minhas
entrevistadas, a maternidade é um mecanismo de renovação das famílias e do sentido à vida
naquela comunidade. E, ainda que alguns professores e a direção da escola atribuam à
gravidez precoce a causa do abandono escolar, nada é feito no âmbito escolar para interferir
na realidade local.
Percebi que a gravidez precoce não provoca uma desarmonia naquela comunidade,
uma vez que o destino daquelas jovens como membros daquele grupo talvez seja a renovação
das famílias através da gestação de um novo ser. Um caminho tão seguro que não se
problematiza em casa e na escola sobre o tempo certo para isso.

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CORPO TRANS E EXPERIÊNCIA DE SI: UM ENSAIO ESTÉTICO DA DIFERENÇA


SEXUAL

Silvane Lopes Chaves329 | silvanech@yahoo.com.br


Gilcilene Dias da Costa

Em tempos de exibicionismo em redes sociais, de aparente liberação e de proliferação


de discursos sobre sexo nos mais diferentes espaços de sociabilidade, seja virtual ou físico,
são lançados sobre a sexualidade muitos holofotes, o que nos instiga a suspeitar da
visibilidade posta. Atentas a essa “demanda”, julgamos relevante dar atenção ao processo de
construção discursiva das sexualidades, assim como de seus efeitos. Embora o tema
sexualidade já tenha sido explorado exaustivamente por diferentes campos de saber,
insistimos em colocá-lo em pauta por entendermos que a sexualidade dita dissidente é uma
dimensão da experiência da sexualidade em que pulsa uma tensão por transitar entre incitação
e silenciamento.
De início, vale elucidar que a dispersão e a proliferação de discursos sobre a
sexualidade, assim como a emergência das inúmeras vivências da sexualidade desde o final
do século XVIII, não implica em liberação. Conforme observa Foucault (1988, p. 48) “o fato
de poderem aparecer à luz do dia será o sinal de que a regra perde o seu rigor?”. Sua ressalva
concerne ao caráter cambiante com que poder exercido se desdobra, recorta, movimenta-se
estrategicamente e põe em ação uma nova economia geral dos discursos.
Em intersecção entre a teorização foucaultiana e a queer, pautamos o questionamento

329
Professora na Educação Básica na rede pública do Pará, com Mestrado em Educação pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Pará (PPGED/UFPA). Linha de Pesquisa Educação: Currículo, Epistemologia e
História. Membro do Grupo de Pesquisa PHILIA – Filosofia, Linguagem e Alteridade na Educação (UFPA/CUNTINS).
329
Doutora em educação pela UFRGS. Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) vinculada aos Programas
PPGED/UFPA, PPGEDUC/UFPA, PPEB/UFPA. Coordenadora do Grupo de Pesquisa PHILIA – Filosofia, Linguagem e
Alteridade na Educação.

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do próprio gesto explicativo adotado por parte da epistemologia sobre sexualidade, colocando
em suspeição se a visibilidade que lhe é atribuída não tem se constituído em um “efeito de
liberação do poder repressivo” e em uma promoção da invisibilização destas diferentes
vivências por operar por dentro de um sistema, cuja captura e produção da abjeção tem sido
enquadrada sob a categoria homossexualidade.
A emergência discursiva da produção da identidade homossexual, funciona,
historicamente, como uma economia discursiva da política de enunciados sobre o sexo como
categoria depurada rigorosamente, (re-) inscrita no vocabulário autorizado, de modo que após
incessante e longo uso, ganhou estabilidade, tornando-se a categoria de inteligibilidade ou
lugar da sexualidade “não-hegemônica”.
Importante falarmos em produção da sexualidade dita periférica. Butler (2008, p. 96)
nos auxilia a compreender tal produção, ao ressaltar que “a regulação produz o objeto que
vem regular; a regulação regulou antecipadamente aquilo que ela vai ver maliciosamente
apenas como o objeto de regulação. Para exercer e elaborar seu próprio poder, um regime
regulador vai gerar o próprio objeto que ele busca controlar”.
Trata-se de uma injunção ao silêncio e de uma reinscrição da diferença sexual a partir
da lógica polarizada homo-hetero e das formulações daí decorrentes. Tributária de uma
epistemologia fundada em díades, a formulação binária e interdependente homo-heterossexual
foi naturalizada, reinscrevendo “incessantemente uma hierarquia que privilegia e reitera a
ordem heterossexual, desprezando e subordinando sujeitos homo-orientados” (MISKOLCI,
2009, p. 332). Com isso, ocorre a “polarização entre normatividades identitárias”, de modo
que ao serem afirmadas “como conceito-lugar seguro para a afirmação identitária dos sujeitos
ficariam confinadas [a hetero e a própria homossexualidade] à construção imaginária de nossa
história e práticas sociais” (LIZARDO DE ASSIS, 2007, p. 149).
Nisto consiste a crítica do movimento queer, pois “tomar a identidade como um ponto
de organização política para a liberação seria sujeitar-se no momento em que se clama por se
livrar da sujeição” (BUTLER, 2008, p. 102). Consideramos que este é um ponto de
convergência entre a teorização queer e os escritos foucaultianos: a afirmação de que a
regulação e o controle operam como princípios formadores de identidade, tornando-a visível e
“inteligível”. Assim, a diferença torna-se ‘dizível’, pronunciável, a partir dessa
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‘inteligibilidade’. Em Foucault (1988, p. 33-34) consta a ressalva de que

não se deve fazer a divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é preciso
tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são distribuídos os que
podem e os que não podem falar , que tipo de discurso é autorizado ou que forma de
discrição é exigida a uns e outros. Não existe um só, mas muitos silêncios e são
parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam discursos.

Esse é o jogo ao qual nos referimos: incitação - silenciamento, em que ora proliferam
discursos sobre o tema, ora silenciam-se as vozes do múltiplo por meio de enquadramentos,
constituindo um paradoxo em que muitas vezes a visibilidade da diferença tem implicado em
silenciamento e exclusão. Trata-se de um processo insidioso, a partir do qual, segundo Bruni
(2006, p. 35), podemos perceber como resultado “o silêncio dos sujeitos, silêncio que é o
primeiro e o mais forte componente da situação de exclusão, a marca mais forte da
impossibilidade de se considerar sujeito aquele a quem a fala é de antemão desfigurada ou
negada”. E assim sua palavra sofre uma exclusão ritual que a desqualifica, aproximando-a da
dos desarrazoados, cuja palavra é “mentirosa”, patologizada e confinada ao silêncio.
Silêncio que repercute nos diferentes campos de pesquisa. Jorge Larrosa (2010, p.
171) nos faz uma provocação ao dizer que “sempre pode ser interessante pensar um pouco por
que um campo proíbe ou ignora. São as proibições e as omissões que melhor podem dar conta
da estrutura de um campo, das regras que o constitui, sua gramática profunda”. Uma
gramática que pode implicar em processo de homogeneização, constituindo a
homossexualidade como fenômeno fixo, trans-histórico e universal (LOURO, 2001).
Com a construção de polarizações se institui o apagamento das diferentes diferenças.
É nesse contexto que consideramos a experiência trans como insurgente ao normativo e ao
próprio abjeto por desafiar os processos regulatórios que a constrange à invisibilização, à
singularização e à fixação de sua vivência de forma universal impingida pelo dispositivo da
transexualidade, conforme problematiza Berenice Bento (2006).
Consideramos que o processo transexualizador carrega o legado do colonialismo e seu
hábito etnocêntrico de construir o Outro como objeto de opressão que requer apoio,
instituindo uma relação de paternalismo benevolente (BRAIDOTTI, 2002), na medida em que
as formulações das ciências psi, do saber médico e do jurídico lançam sobre as pessoas

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trans330 um olhar que as objetiva, instituindo um monólogo da “razão” sobre alguém


destituído de fala, momento a partir do qual tal relação passa a ser definida a partir da
universalidade abstrata da doença antes nomeada no jargão médico de “Transtorno de
Identidade de Gênero” e agora, na atualização de 2013 do DSM-5, nominada de “Disforia de
Gênero” (LIMA, 2013).
O exercício genealógico foucaultiano consiste, segundo Leme (2011, p. 99), em pensar
a atualidade, mostrando “os lugares de confronto a partir dos quais o nosso presente passou a
ser vivido”; ou, como se constituíram e o efeito que exercem, neste caso, sobre o próprio
modo de elaborar nossas questões e a epistemologia que as sustentam. Ao falar em
insurgência da experiência trans - ou do corpo trans como sua materialização -,
compreendemo-la como exercício de radicalização política da diferença sexual e de gênero,
uma vez que se coloca em labirinto a verdade do sexo dimórfico e as formulações que
impingem à transexualidade o lugar da “abjeção” e da “anormalidade”.
A experiência de si aqui é entendida exercício de liberdade em processo permanente
de produção de singularidade. O que significa reconhecer a instabilidade das posições e que
“não se tem em momento algum a interrupção definitiva da luta e a cristalização do real em
uma de suas possíveis configurações complexas” (CASANOVA, 2011, p. 199).

CORPOS NA FRONTEIRA, VERDADES EM LABIRINTO


Considerando que o corpo tradicionalmente nos situa em uma posição de sujeito
prescrita por uma lógica binária e excludente, temos como efeito uma delimitação rigorosa da
fronteira no próprio corpo dos atributos “próprios” ao masculino ou ao feminino, espaço em
que a ambiguidade torna-se inconcebível à inteligibilidade naturalizada, marcada pela relação
corpo-sexo-desejo, inscrita segundo essa lógica compulsoriamente no roteiro masculino (leia-
se: homem-pênis-heterossexual) ou feminino (leia-se: mulher-vagina-heterossexual). Uma
verdade contingenciada, por certo.

330
Lima (2013, p. 38) utiliza essa denominação “para abarcar os vários modos de vida que
transitam, resistem ou subvertem o binarismo identitário fruto da heteronormatividade. [...] O
uso de tal termo surge do incômodo com os rótulos que aprisionam os modos de ser,
produzindo verdades e gerando estratégias de poder e de controle”.

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Há contingências de toda ordem na composição da arquitetura dos corpos. A invenção


de novas formas de legibilidade do corpo foi composta a partir de deslocamentos nos campos
de saber e pela criação de novas epistemologias, desdobramentos e rearticulações políticas e
sócio-históricas, reiterados por convenções morais e linguísticas que vinculam a genitália à
definição do gênero e à fixação da existência de identidades fixas que tem como fundamento
o corpo-sexo. Um discurso que antecipa e prescreve à subjetivação quais modos de existir são
“legítimos”, criando um efeito de verdade que os sujeita ao par binário como referência,
fundamento, valor. É nesse sentido que Laqueur (2002) fala de “corpos construídos
discursivamente” e do sexo enquanto produção específica, contextual, situacional,
compreensível em lutas sobre gênero e poder.
A delimitação das fronteiras sexuais e do gênero demandou a produção de um discurso
científico mobilizado para ressignificar os corpos e produzir uma nova realidade corpórea.
Nesse contexto, o saber médico assume o protagonismo na definição e legitimação do
verdadeiro, imprimindo nova legibilidade ao corpo a partir da produção de um saber
especializado capaz de definir a verdade do sujeito pelo exame minucioso do corpo, o que
provocou um deslocamento no discurso que antes atuava em uma aproximação entre questão
jurídica e corpo, passando a partir de então a legitimar a presença de dois sexos
irreconciliáveis e opostos, fundado na biologia.
A legitimação do modelo dimórfico pelo discurso científico elevado ao estatuto de
verdade foi construída ao longo dos séculos XVIII e XIX. Segundo Bento (2006, p. 116), essa
“luta para a construção de uma leitura dos corpos baseada na diferenciação radical entre os
corpos sexuados se impõe hegemonicamente no século XIX, propiciando a emergência de
novas subjetividades e novas identidades coletivas”. Produz-se uma realidade corpórea
fundada no modelo dimórfico, o qual reserva ao pênis, à vagina e aos seios um estatuto de
verdade, um signo da essência de caráter ontológico, de modo que “a verdade última das
condutas será buscada no corpo” (Idem, p. 109).
A genealogia foucaultiana do corpo o constitui como “alvo e começo”, isto é, um
campo em que atuam discursos, “uma superfície de inscrição para o poder”, conforme Silveira
e Furlan (2003). Com a perspectiva foucaultiana, o corpo torna-se legível em outros termos,
sendo compreendido enquanto atravessado por poderes e saberes, elemento fundamental no
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processo de subjetivação do humano. Sobre o corpo incidirão diferentes tecnologias de poder


e saber em tempos e espaços determinados devido à crescente necessidade histórica de
controlar e disciplinar a vida por meio do dispositivo da sexualidade, de modo que a
“disciplina do corpo” e as “regulações da população” constituem dois polos em torno dos
quais se desenvolvem a organização do poder sobre a vida. “Uma sociedade normalizadora é
o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (FOUCAULT, 1988, p. 157)
em que “o sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie” (Idem, p.
159).

A categoria ‘sexo’ assim estabelece um princípio de inteligibilidade para os seres


humanos, o que quer dizer que nenhum ser humano pode ser tomado como humano
[...], a não ser que esse ser humano seja completa e coerentemente marcado pelo
sexo [...]. O ponto mais forte: para se qualificar como legitimamente humano, deve
ser coerentemente sexuado. A incoerência do sexo é precisamente o que separa o
abjeto e o desumanizado do reconhecidamente humano (BUTLER, 2008, p. 100).

O corpo transexual coloca em labirinto a verdade do sexo dimórfico, tornando


problemática a montagem do corpo sexuado. Torna-se, o corpo, lugar e instrumento de luta
política que atua como movimento desmontagem e desprivatização do binômio feminino-
masculino normatizado e tomado como excludente.
Compreendemos o corpo trans como um viver entre. A partir de um exercício
agonístico de liberdade compõe sua existência, promovendo com o corpo sua verdade. A
liberdade é aqui compreendida como uma possiblidade de invenção constante, de “viver a
existência como experimentos de liberdade” (SOUSA FILHO, 2011, p. 22). Em acepção
foucaultiana, podemos “pensar a liberdade não mais a partir de códigos morais e das
instituições, mas pela criação de novos modos de vida” (VIEIRA, 2013, p. 204).
Por assim perceber a vivência trans é que vislumbramos sua multiplicidade, sua
pluralidade, sua singularidade. É nesse contexto que o corpo trans emerge, não apenas como
tensionamento, interpelação, transgressão do normativo. Não apenas torna flagrante a
contingência da norma. Na experiência de si o corpo trans carrega ainda um paradoxo:
desestabiliza a “panóptica dos gêneros” ao mesmo tempo em que não escapa de seus
investimentos discursivos ao buscar uma “vida viável”, circunscrita na inteligibilidade da
matriz heterossexual. Atua como campo desorganizador da normalidade, carregando um
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dinamismo e um caráter de impermanência. Torna-se um intercessor, cuja experiência traz à


cena uma contra-imagem capaz de irromper e fazer calar discursos por ser uma linguagem
que fala antes de qualquer palavra.
E Sousa Filho (2011, p. 19) prossegue nos dizendo que “há os que inventam sua vida,
procuram se libertar, há aqueles que procuram os exercícios ascéticos de liberdade. Oferecem-
se como pontos de resistências à dominação, à ideologia”. Não se conformam pacificamente
aos investimentos normativos, como um corpo inerte, passivo, desarmado, vulnerável, à
espera de cumprir seu destino inelutável. Funciona, portanto, como índice disjuntivo por
incitar uma dupla subversão: a primeira, da ligação “necessária” entre essência-corpo, no
sentido de ligar substância masculina ou feminina ao corpo biológico; em segundo lugar,
contesta a sobreposição da alma, da substância subjetiva sobre o corpo, isto é, coloca em
evidência o corpo entendido como “luta entre afetos”.
É um corpo político insolente capaz de emergir das arestas de estudos de gênero e da
sexualidade, como parrhesia331 da diferença sexual e do gênero. Sua presença é intransitiva e
cínica. “Os cínicos debocham, portanto, das próprias leis erigidas para regular o exercício do
poder, assim como da capacidade do discurso filosófico em ensinar alguma virtude, alguma
sabedoria ao príncipe. Eles respondem ao poder com seu corpo que se dobra na gargalhada de
escárnio” (CHAVES, 2013, p. 38). Um dizer verdadeiro que é também prática política.
O corpo trans assume esse risco porque a sua verdade causa mal estar, desconforto,
borra fronteiras, interpela a mesmice, desnuda a artificialidade das diferentes normatividades
e suas territorialidades forçadas, desafia o patriarcado e o machismo, desestabiliza algumas
vertentes do feminismo e do movimento LGBT, irrompendo pelo corpo sua verdade com
todos os riscos daí decorrentes.
É um corpo cuja parrhesia fala nele e afirma que “não se trata de regular a própria
vida segundo um discurso e de ter, por exemplo, um comportamento justo defendendo a
própria ideia de justiça, mas de tornar diretamente legível no corpo a presença explosiva e
selvagem de uma verdade nua, de fazer da própria existência o teatro provocador do

331
- “A parrhesia é a liberdade de linguagem, o dar a liberdade de falar, o falar francamente, a coragem de verdade. [...]
supõe coragem, porque se trata quase sempre de uma verdade que pode ferir o outro e que assume o risco de uma reação
negativa da parte dele” (GROS, 2004, p. 11).

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escândalo da verdade.” (GROS, 2004, p. 163).


O corpo trans dança na fronteira, como parrhesia da diferença sexual. É um corpo
fronteiriço, que baila graciosamente exibindo seu feminino-masculino ímpar. É múltiplo e
singular. Inventa formas de embaraçar a gramática estável que o subalterniza (Afinal: é ‘ele’
ou ‘ela’?!). Produz o riso como dispositivo eficaz de dessacralização e de potencial corrosivo.
Ocupa seu espaço e lugar algum. Não pede licença, irrompe. Está lá, pronto. Ponto.

IMPROVÁVEIS PALAVRAS FINAIS


Nas linhas aqui expostas, pensamos o corpo trans na perspectiva de criação de uma
contra-imagem transfigurada em ferramenta capaz de destruir- criar novas formas de pensar
as questões atinentes à sexualidade a ao gênero para buscar constituir perspectivas capazes de
(re-) inventar o mundo, ainda que para isso faça ranger o próprio pensamento, bem como suas
verdades já cristalizadas, buscando “fazer do absurdo a mais alta potência do pensamento, isto
é, criar” (DELEUZE; GUATTARRI, 2010, p. 77).
Vislumbramos na pedagogia cínica a possibilidade de ação política transgressora-
criadora, na qual a alteridade e a heterogeneidade têm espaço para manifestar sua mensagem
micropolítica. Nela é possível desaprender a tradição que nos atravessa e impregna nosso
modo de operar o pensamento e de agir, conforme propõe seu exercício parrhesiástico. Trata-
se de um exercício de “aleturgia” que concerne “aos procedimentos, aos rituais que estão em
jogo na produção da verdade, e não o ‘desvelamento do ser’ (CHAVES, 2013, p. 48), que nos
faz questionar os procedimentos tornaram possível a manifestação de uma verdade sobre a
sexualidade “abjeta”, “desviante”, “não hegemônica”, “periférica” entendida como
representativa da diferença sexual.
Consideramos que a verdade do corpo trans incita um exercício parrhesiástico, pois,
“não se trata de um saber que captura a alma, que faz do eu o próprio objeto do conhecimento.
É preciso que esta verdade afete o sujeito, e não que o sujeito se torne objeto de um discurso
verdadeiro” (VIEIRA, 2013, p. 203). É um corpo que testemunha com sua existência
ambígua a possibilidade de transfiguração pela mescla, recriando sua singularidade no próprio
corpo. Com isso, assume um caráter de ferramenta por interpelar quadros teóricos e formas
modelares da identidade, além de desnaturalizar dualismos, tão caros ao modo de operar
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binário. Torna risível a ficção da normalidade, que é (sabido) inventada.


Concebemos a experiência trans como uma experiência de si, um exercício agonístico
de liberdade, vivido na tensão poder-resistência, que em contextos de lutas específicas
adquirem um valor coletivo. “A liberdade é da ordem dos ensaios, as experiências, dos
inventos, tentados pelos próprios sujeitos que, tomando a si mesmos como prova, inventarão
seus próprios destinos” (SOUSA FILHO, 2011, p. 16). Esse pode ser um caminho possível de
criação de uma “subjetividade-outra” em nossos “ensaios de existir”.
É nesse sentido que entendemos que o corpo trans serve de ponto de apoio capaz de se
constituir como micropolítica de resistência, uma vez que a experiência trans nos convoca a
“pensar a existência como perspectiva-em-devir e não mais como totalidade consagrada”
(HOPENHAYN, 2011, p. 258). Aqui, “a resistência não é unicamente uma negação. Ela é um
processo de criação”, conforme nos lembra Foucault (2004, p. 268).
Um corpo reinventado que nos convoca a pensar que cada singularidade está no
mundo orientado por uma ética (um modo de conduzir-se) particular capaz de criar uma
estética ímpar que não pode ser desprezada. A verdade cínica do corpo trans não cabe em
quadros totalitários, uma vez que cada experiência tem um valor singular, finito, imanente e
contingente, impossível de ser abarcado por sistemas universalizantes e homogeneizadores.
A agonística do corpo trans assume um valor coletivo na metamorfose experimentada
por todos os corpos, sempre caótica e processual. “Nietzsche leva em consideração a carne, o
corpo. Não um corpo idealizado ou teorizado. Mas um corpo que se alimenta, caminha, sofre,
um corpo que entende, que gosta e vê, sente e toca” (ONFRAY, 2014, p. 132), o corpo que
somos todos nós. Por isso consideramos que o corpo trans nos faz vestir sua pele ao nos
posicionarmos frente à arbitrária e absurda exigência da idealização territorializada da norma,
uma vez que ninguém consegue satisfazê-la, seja referida ao ideal de masculinidade ou de
feminilidade.
O corpo trans é uma irrupção que não quer ser decifrada pela nossa linguagem
habitual. Exige seu lugar e uma experiência de encontro poético, de modo a não tornar a
existência anêmica dada pela condução moral e renúncia em nome de supostos valores
superiores. De alguma forma desejamos produzir um efeito ético-político a partir desses
escritos, de modo a “incitar a produção de um outro de nós mesmos” (MARTINS, 2009, p.
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52). Acima de tudo, nosso desejo é produzir ferramentas para que, diante do imponderável,
frente ao poder daqueles que atravancam nosso caminho, sermos passarinhos332.

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passarão.../ Eu passarinho!”
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CRÍTICA QUEER: UMA DISCUSSÃO EM TORNO DA POLÍTICA LGBT DA UFPE

Jalinson Jonas Gomes da Silva | jalinsonjonas@gmail.com

INTRODUÇÃO

Muitos autores têm se debruçado para questões contemporâneas, a partir de ideias


pós-estruturalistas, principalmente no que se refere aos estudos de gênero e sexualidade.
Williams (2012) destaca que essas ideias mudam nosso mundo e nossas visões de mundo num
amplo leque de situações, como por exemplo, em termos de nossas relações com nossos
corpos, sexualidade, gênero, relações com os outros, com o ambiente e com nosso próprio
inconsciente. O autor destaca ainda que o pensamento pós-estruturalista pode nos ajudar em
lutas contra a discriminação em termos de sexo ou gênero, contra inclusões e exclusões com
base em raça, experiências prévias, background, classe ou riqueza.
Com relação aos estudos pós-estruturalistas de gênero e identidade sexual, a teoria
queer configura uma grande temática de discussões entre acadêmicos, inclusive no que se
refere à ampliação de políticas voltadas para as “minorias” sexuais, pois a teoria queer
promove a reflexão sobre a diferença e sobre sua politização, contribuindo assim para o
desenvolvimento de ações que permitem o indivíduo viver livremente sua sexualidade.
Essas políticas devem desenvolver ações efetivas que promovam uma cultura de
respeito à livre orientação sexual e identidade de gênero para essas ditas “minorias”. Louro
(2001) destaca em sua publicação um trecho do editorial da revista La Gandhi Argentina
(1998) que afirma que “as minorias nunca poderiam se traduzir como uma inferioridade
numérica, mas sim como maiorias silenciosas que, ao se politizar, convertem o gueto em
território e o estigma em orgulho – gay, étnico, de gênero”; isso justifica o uso das aspas na
palavra minorias usadas nesse artigo.
Ainda nessa perspectiva, precisamos compreender de que forma as identificações do
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sujeito estão sendo tratadas nessas políticas. Sampaio e Germano (2014) afirmam que
“embora essas políticas sejam importantes para assegurar os direitos da população LGBT,
envolvem o risco de contribuir para a naturalização de uma identidade gay, fundamentada na
irredutibilidade da anatomia e no determinismo biológico”. Os autores argumentam ainda que
uma política LGBT constituída a partir de uma concepção de identidade fixa, na tentativa de
assegurar os direitos de uma população “excluída”, termina por criar outras zonas de
exclusão, por isso é tão importante entender a subjetividade a partir de noções que privilegiem
as identificações, sempre transitórias e fluídas, reduzindo assim o risco de se criar novas
prisões identitárias.
Desta forma, o objetivo deste artigo é discutir acerca da construção de uma política
para as “minorias” sexuais à luz da teoria queer e compreender até que ponto uma política
LGBT configura-se como de caráter inclusivo ou excludente. Neste mesmo documento,
analisaremos a política LGBT da UFPE, destacando trechos que amparam o entendimento
acerca de uma política identitária.
O artigo está organizado em quatro partes. Após esta introdução, na segunda parte,
apresenta-se uma discussão teórica acerca da construção de uma política (pós)identitária e em
seguida uma discussão acerca da teoria queer apresentando as principais críticas feitas as
políticas que defendem a ideia de identidade fixa. Na terceira parte, numa perspectiva
discursiva crítica, examinaremos a política LGBT da UFPE à luz da teoria queer, propondo
uma politização da diferença. E, por fim, apresentam-se as considerações finais destacando os
principais pontos desenvolvidos neste artigo.

CONSTRUINDO UMA POLÍTICA (PÓS)IDENTITÁRIA

Com a epidemia de HIV/AIDS na década de 1980, o Movimento Homossexual


Brasileiro (MHB) começou a estabelecer parcerias com o Estado a fim de garantir uma
melhor assistência à população LGBT atingida pela doença. Com o resultado efetivo dessas
ações e, por conseguinte, o crescimento do movimento ativista LGBT, novas políticas
públicas foram pensadas com intuito de garantir o bem-estar da população homossexual.
Sampaio e Germano (2014) afirmam que neste momento houve uma ampliação dessas
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políticas, no entanto, estas foram adaptando-se ao modo de representação política vigente, ou


seja, de uma compreensão essencialista que fundamenta a política de identidade LGBT.
Na visão dos autores, mesmo que ampliadas as áreas de atuação das políticas
públicas para a população LGBT, o controle da sexualidade homossexual permanece central e
as ações ainda estão muito direcionadas nas políticas de saúde pública, principalmente com o
foco em ações preventivas de HIV/AIDS. Pelúcio (2007), por sua vez, destaca que essas
políticas de saúde refletem valores heteronormativos, pois estão pautadas num modelo
idealizado de gestão da sexualidade que utiliza de dispositivos reguladores que tendem a
patologizar as relações que escapam a esse modelo.
Segundo Pelúcio (2007), essa heteronormatividade não diz respeito à normatização
hétero que regula e descreve um tipo de orientação sexual. Ela se configura como um
conjunto de “instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas que fazem não só
que a heterossexualidade pareça coerente – isto é, organizada como sexualidade – como
também que seja privilegiada” (BERLANT e WARNER, 2002, P. 230 APUD PELÚCIO,
2007).
Conde (2004) argumenta que o movimento homossexual, não só no Brasil, mas em
todo o mundo, é baseado fundamentalmente na defesa da identidade; talvez, esse seja o
principal motivo para compreender o direcionamento que essas políticas têm tomado. A
autora reconhece que a identidade é parte constitutiva da formação do movimento, embora ela
também reconheça que se possa questionar a (in)conveniência da adoção de uma suposta
identidade homossexual como bandeira, já que o próprio movimento é composto por atores de
realidades identitárias distintas. Definir uma identidade homossexual, assim, é uma forma de
se privilegiar uma categoria em detrimento da multiplicidade de subjetividades que existe
dentro do movimento, excluindo-se sujeitos que não se encaixam; sujeitos marcados também
por outras identificações.
Ainda nessa perspectiva, mesmo com a ampliação dessas políticas e a força que o
movimento LGBT conquistou ao longo dos últimos anos, surge um debate em torno da
compreensão desses movimentos. Alguns autores (LOURO, 2001; PRECIADO, 2011)
compreendem que uma política elaborada a partir de um entendimento de identidade fixa
contribui para a normalização de gays e lésbicas numa cultura heteronormativa. Nesse
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sentido, Preciado (2011) argumenta que:

Quanto aos movimentos de liberação gays e lésbicos, uma vez que seu objetivo é a
obtenção da igualdade de direitos e que se utilizam, para isso, de concepções fixas
de identidade sexual, contribuem para a normalização e a integração dos gays e das
lésbicas na cultura heterossexual dominante, favorecendo políticas familiares, tais
como a reivindicação do direito ao casamento, à adoção e à transmissão do
patrimônio.

Nesse sentido, a autora afirma que o que importa não é a “diferença sexual”, mas as
multidões queer. Essa compreensão de multidão queer se opõe àquela de “diferença sexual”
como explorada em algumas ondas do feminismo, e sugere uma compreensão a partir de uma
multiplicidade de diferenças. Preciado (2011) defende a ideia da multidão queer como forma
de reforçar a impossibilidade de categorizar o sujeito em tipos previamente definidos;
qualquer rótulo aqui será insuficiente, já que as possibilidades são infinitas.
Nesse espaço de reconhecimento das diferenças, Fraser (2006) distingue duas
grandes abordagens para a injustiça marcada pela redistribuição-reconhecimento333. São os
remédios afirmativos e transformativos. Esses primeiros estão associados ao que a autora
chama de “multiculturalismo mainstream”. Esse “multiculturalismo propõe compensar o
desrespeito por meio da revalorização das identidades grupais injustamente desvalorizadas ao
mesmo tempo em que deixa intactos os conteúdos dessas identidades e as diferenciações
grupais subjacentes a elas” (FRASER, 2006, p. 237). Por sua vez, os remédios
transformativos estão associados à desconstrução, desestabilizando as identidades e
diferenciações grupais existentes.
Para ilustrar melhor o entendimento dessas abordagens, a autora destaca numa
perspectiva da sexualidade, que os remédios afirmativos para a homofobia e o heterossexismo
são associados com uma política de identidade gay, que visa a revalorizar a identidade sexual.
Por outro lado, os remédios transformativos estão associados à política queer, que se propõe a

333
É um termo usado pela autora para marcar um dilema a partir dos termos genéricos redistribuição e
reconhecimento. O primeiro está relacionado aos remédios para a injustiça econômica e sugere alguma espécie
de reestruturação político-econômica. O reconhecimento, por sua vez, está associado aos remédios para a
injustiça cultural e sugere mudanças de ordem cultural ou simbólica. “Pessoas sujeitas à injustiça cultural e à
injustiça econômica necessitam de reconhecimento e redistribuição. Necessitam de ambos para reivindicar e
negar sua especificidade”. (FRASER, 2006).
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desconstruir a lógica binária e uma concepção de sexualidade tida como “normal”.

UMA IDEIA SOBRE A TEORIA QUEER

A Teoria Queer emergiu ainda na década de 80 fazendo uma crítica aos estudos
sociológicos de minorias sociais e à política identitária de movimentos sociais. Miskolci
(2009) afirma que “o diálogo entre a Teoria Queer e a Sociologia foi marcado pelo
estranhamento, mas também pela afinidade de compreender a sexualidade como construção
social e histórica”. Mas foi em 1991, numa conferência em Santa Cruz, Califórnia, que Teresa
de Lauretis empregou o termo queer fazendo uma crítica aos estudos gays e lésbicos
tradicionais que são orientados pelo binarismo heterossexual/homossexual. O termo queer
pode ser traduzido por estranho, esquisito, excêntrico ou até mesmo ridículo. A palavra tem,
na língua inglesa, um conteúdo pejorativo e é utilizado para ofender aqueles que se desviam
das normas de sexo e gênero. Louro (2001) afirma que as condições que possibilitam a
emergência do movimento queer ultrapassam questões pontuais da política e da teorização
gay e lésbica e devem ser abrangidas numa perspectiva mais ampla do pós-estruturalismo.
Cabe ressaltar também que o termo queer tem fortes influências dos estudos
feministas. Nesse sentido, Miskolci (2011) considera que a tentativa de separar, ao menos no
Brasil, a teoria queer dos feminismos como se fosse uma superação ou um descarte do que já
havia sido feito, é preocupante. O autor destaca que a Teoria Queer nasce de uma vertente do
feminismo que buscou incorporar as questões de sexualidade com questões de gênero. A
sexualidade aqui é compreendida apenas como um dispositivo para se observar as questões de
identidade de gênero.
Louro (2001) argumenta que a teoria queer nos permite pensar a multiplicidade e a
fluidez das identidades sexuais e de gênero estabelecendo sua crítica da heteronormatividade
compulsória da sociedade, da normalização e da estabilidade propostas pela política de
identidade do movimento homossexual dominante. Nesse sentido, a teoria queer surge para
desconstruir qualquer classificação fixa de identidade, defendendo a fluidez e a diferença
como marcas das subjetividades, propondo, como foi dito, compreender a sexualidade a partir
de uma multiplicidade de identificações. Nesse sentido, os sujeitos queer apropriam-se e

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politizam suas diferenças, utilizando o termo para unir e dar visibilidade a diferentes formas
de viver e experimentar a sexualidade (SAMPAIO E GERMANO, 2014).
Essa teoria nos permite ainda romper com binarismos e (re)pensar a sexualidade e os
gêneros de uma forma plural fugindo da lógica heteronormativa, que coloca uma forma de
sexualidade como natural, ou até mesmo “normal”. Desta forma, Louro (2001, p. 549) afirma
que:

“Numa ótica desconstrutiva, seria demonstrada a mútua implicação/constituição dos


opostos e se passaria a questionar os processos pelos quais uma forma de
sexualidade (a heterossexualidade) acabou por se tornar a norma, ou, mais do que
isso, passou a ser concebida como ‘natural’.”

Preciado (2011) afirma que uma política da multidão queer não repousa sobre uma
naturalização da identidade nem sobre uma definição pelas práticas
(heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que resistem aos
regimes que os constroem como “normais” ou “anormais”. De acordo com Preciado (2011)
“não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de
relações de poder, uma diversidade de potências de vida”.
Desta forma, percebe-se um risco de se incorrer na criação de novas categorias fixas,
implícito nas políticas LGBT, pois estas políticas podem não contemplar essa multiplicidade
de corpos defendidos pela política queer.

UMA POLÍTICA (PÓS)IDENTITÁRIA PARA A UNIVERSIDADE


Mesmo com a ampliação das áreas de atuação das políticas voltadas para as
“minorias” sexuais, ainda percebe-se uma atenção maior nas ações relacionadas à área da
saúde, principalmente naquelas orientadas para a prevenção de HIV/AIDS. Por outro lado,
ainda que timidamente, outras ações vêm ganhando espaço nas discussões políticas que
atendam outras áreas, como a educação. Nesse âmbito, a Universidade torna-se um espaço
bastante rico aonde esse diálogo vai além da educação e alcançam áreas como saúde, mercado
de trabalho, direitos humanos, etc.
Diante da pressão social que vem sendo exercida para a criação de políticas voltadas
para as “minorias” sexuais, a Universidade Federal de Pernambuco lança sua política LGBT
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com o objetivo primordial de favorecer o acolhimento, a inserção e a permanência da


comunidade LGBT na instituição. A Universidade se coloca como pioneira entre as
instituições de ensino superior brasileira a contar com uma política para o público LGBT. Sua
política é organizada a partir de uma série de ações que buscam promover a inserção dessas
minorias no espaço acadêmico e até mesmo no mercado de trabalho. Essas ações envolvem:
a) ações afirmativas; b) ações preventivas; c) ações protetivas; d) ações direcionadas à saúde
da população LGBT, e por fim, e) ações voltadas para as pesquisas.
Todas essas ações voltadas para a comunidade LGBT, sem dúvida, representam um
avanço na garantia dos direitos de uma comunidade estigmatizada em sua história, onde o
acesso à universidade e até mesmo ao mercado de trabalho é muitas vezes um caminho árduo
e marcado pelo preconceito enraizado na sociedade. Muitos desses indivíduos, principalmente
as travestis e transexuais, são marcados pela vida noturna da prostituição, já que desde cedo
lidam com o preconceito e discriminação, o que os forçam a abandonar a escola e procurar
uma vida mais “fácil”. Podemos ainda ressaltar que essa violência tem sérias implicações na
construção da identidade sexual do sujeito, pois muitas vezes esses indivíduos não vivem sua
sexualidade livremente dentro de seu contexto social, seja por medo da violência ou pelo não
reconhecimento de sua própria identidade.
Trazendo essa discussão para o âmbito acadêmico, por exemplo, podemos observar
uma minoria de transexuais que ocupam um lugar na academia, seja na condição de docente
ou até mesmo de discente. Isso revela, na verdade, que essas pessoas têm suas necessidades,
desejos e identificações negados ao longo do processo de educação formal. Nesse sentido, um
dos projetos inseridos na política da UFPE que se propõe a abordar essas questões é o Projeto
“VAI TER TRANS NA UFPE, SIM!” que visa minimizar os efeitos das desigualdades sociais
e regionais, reduzir as taxas de retenção e evasão escolar das pessoas travestis, transexuais,
transgêneros e intersexuais, bem como, promover a inclusão social pela educação. Dentre as
ações afirmativas, outro projeto que merece destaque é o Projeto “NO MUNDO DO
TRABALHO CABE TODAS AS CORES” objetivando criar parcerias com instituições
públicas e privadas para inserção de alunos LGBT no mercado de trabalho.
Com relação à ampliação dessas políticas voltadas para as “minorias” sexuais,
discute-se a problemática de se elaborar políticas a partir de uma concepção de identidade
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fixa, o que acabam excluindo outras “minorias” sexuais também marginalizadas. Com relação
à política da UFPE, por exemplo, não há uma definição clara dos indivíduos que devem ser
resguardados pelas ações, o que acaba gerando múltiplas interpretações na efetivação dessas
ações dentro do espaço acadêmico. Desta forma, surgem algumas questões, tais como: a
política LGBT da UFPE contempla essa multiplicidade de corpos? E até que ponto é coerente
delimitar esses indivíduos assistidos pela política, levando em consideração que a política
queer se propõe exatamente a impossibilidade de definir?
A própria sigla LGBT passou por algumas mudanças ao longo do tempo na tentativa
de agregar os múltiplos fatores envolvidos, como por exemplo, foi retirado o S, da antiga sigla
GLS, e adicionada o B e o T. E já se pensam na inclusão de duas novas letras (o T e o I) para
representar os transexuais e intersexuais respectivamente (SAMPAIO E GERMANO, 2014).
A sigla do ponto de vista da teoria queer é um rótulo que mais aprisiona que liberta. Do ponto
de vista político, no entanto, a definição de uma base, de uma posição de onde se fala, é
altamente importante para legitimação da ação dos sujeitos.
Conforme podemos observar a seguir, o próprio texto da política LGBT da UFPE em
um dos seus projetos vai além da sigla LGBT que intitula sua política,

Projeto “VAI TER TRANS NA UFPE, SIM!” - Visando minimizar os efeitos das
desigualdades sociais e regionais, reduzir as taxas de retenção e evasão escolar das
pessoas travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais, bem como, promover a
inclusão social pela educação, garante a prioridade no acesso a bolsa de manutenção
dessa população

Nesse projeto, a política contempla os indivíduos “transexuais, transgêneros e


intersexuais” dentro das ações afirmativas. Em outro trecho da política, pretende-se a
elaboração de um regimento ético que preveja punições para homo-lesbo-bi-trans-fobia na
UFPE. Podemos observar que essas ações também vão além dos indivíduos percebidos pela
sigla comum, e que abrange diversos sujeitos. Essa multiplicidade de identificações é
absolutamente importante para a teoria queer.
A UFPE antes de lançar essa política LGBT já havia regulamentado o uso do nome
social para travestis e transexuais nos registros da Universidade. Esse reconhecimento é
importante para o sujeito, pois ele passa a ser identificado a partir de sua identificação de
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gênero. Diante dessas observações podemos considerar que essa política é orientada numa
política pós-identitária em sua natureza, mesmo havendo alguns equívocos na redação de seu
texto, como a limitação da sigla LGBT.
Numa perspectiva queer, essas limitações reforçam como essas políticas de
identidades sexuais são muitas vezes percebidas numa lógica binária
(heterossexual/homossexual), (homem/mulher), que consideram uma noção de identidade fixa
onde se conformam numa naturalização da identidade, ou até mesmo numa sexualidade
encarada como “normal”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse artigo buscou-se levantar uma discussão teórica a respeito da construção de


uma política LGBT à luz da teoria queer. Nessa perspectiva, observa-se que essas questões
são bastante discutidas no espaço acadêmico, mas quando levamos para outros espaços que
não o acadêmico, esse entendimento do indivíduo a partir de uma identidade fluída carece de
uma sensibilidade e conscientização de todos os envolvidos.
Ainda nesse sentindo, vale destacar a importância dessas ressignificação do
indivíduo queer como um sujeito de direitos. Esse reconhecimento faz-se necessário para a
consolidação de políticas que (re)pensem essa multiplicidade de identidades sexuais. Essas
políticas devem atender não só a demanda dessas “minorias”, mas o reconhecimento do
sujeito enquanto cidadão e incluir em suas propostas a reflexões sobre cidadania sexual,
questões relativas à raça/etnia, gênero e orientação sexual (PELÚCIO, 2007).
A grande proposta aqui levantada é que os indivíduos assistidos pelas ações da
política da UFPE não se restrinjam a uma população específica, mas sim todos aqueles que
desconstroem as classificações fixas de identidade sexual (GAMSON, 2006). Dessa forma,
percebe-se que essa política ainda que não tenha sido criada a partir de uma política para a
multidão queer, ou seja, uma política que contemple a multiplicidade dos corpos; ela está
mais direcionada para uma política de natureza pós-identitária, pois suas ações contemplam
indivíduos que estão além daqueles assistidos pela sigla LGBT. Cabe destacar que essa
política é importante, pois reconhece a fragilidade dessas subjetividades, mais expostas à
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violência simbólica e física do que outros grupos. E, possibilitam esses sujeitos a se


colocarem numa melhor posição social, assegurando seus direitos e distanciando-os de
estigmas que fragilizam sua identidade. Por fim, sugere que as discussões acerca de uma
política queer sejam mais exploradas, pois envolvem uma multiplicidade de corpos que
acabam sendo excluídos por políticas baseadas numa concepção de identidade sexual fixa.

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GÊNERO NAS PERFORMANCES DE PAQUERA ENTRE HOMENS:


VIVENCIANDO A “POP-ISMO”

Fabrício de Sousa Sampio334 | farcosousa@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO
Nas primeiras incursões etnográficas na “Pop-ismo” em 2012, o objetivo era mera
observação e descrição dos trânsitos corporais e da dinâmica da festa. Percebi depois que
existiam certos rituais de permanência e engajamento durante o transcorrer da noite. Depois
de algumas incursões, curti335 o perfil dessa festa no Facebook. E em poucos dias, comecei a
receber cutucadas336, curtidas em fotos e solicitações de amizade. Ao aceitá-las e com o
desenrolar das conversas que foram sendo realizadas, foram se tornando claros os objetivos
dos recém-incluídos como “amigos”: eles queriam paquerar, buscar parceiros amorosos e até
sexuais. Um dos usuários confessou ter buscado o meu “face”337 logo ao ter me visto na
‘“Pop-ismo”’. Conclui nesse primeiro momento que “Pop-ismo” e Facebook mantinham uma
relação íntima, de dependência, pois a existência da festa em si como também a continuidade
ou surgimento de novos contatos entre as pessoas tinham ora o Facebook como ponto de
partida ou a própria festa.
Desses jovens que iam solicitando amizade cuja maioria frequentava a “Pop-ismo”, fui

334
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – NATAL.
E-mail: farcosousa@yahoo.com.br. Bolsista Demanda Social/Capes.
335
Curtir e compartilhar são recursos disponibilizados na plataforma do Facebook que se relacionam a
postagens e publicações que são visualizadas tanto no Facebook quanto na rede como um todo, e que, na
linguagem “faceana”, clica-se curtir referente a algo que gostou e compartilhar para que outros – amigos ou não
– fiquem sabendo daquilo que você gostou de ver, ler, ouvir (SAMPAIO, 2014, p.13).
336
“O botão cutucar é muito polissêmico. Até os criadores dizem que ele não tem uma finalidade específica. As
cutucadas podem significar um olá, um pedido de amizade indiscreto, caso não conheça o usuário, e pode ser um
recurso de iniciar uma paquera ou investida sexual” (SAMPAIO, 2014, p.13).
337
Forma abreviada comumente observada no cotidiano dos colaboradores da pesquisa para denominar seus
perfis ou página na plataforma do Facebook.
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me apresentando como pesquisador e convidando para colaborar com a pesquisa em


andamento. Alguns rejeitavam me acusando de brincadeira ou de estar utilizando uma
justificativa interessante para dar um “fora” neles. Mas outros aceitaram. Além disso,
selecionei outros jovens do perfil da “Pop-ismo” no Facebook aleatoriamente. Destes, no total
de nove, após explicitar os objetivos da pesquisa, iniciei bate-papos através da página do
Facebook a fim de buscar os sentidos de determinados rituais, trânsitos e interações
observadas durante a incursão etnográfica na festa. Os nove colaboradores da pesquisa
preferiram manter o diálogo no bate-papo do Facebook. Para preservar o anonimato deles
foram escolhidos nomes aleatórios: Juliano, Romeu, Valdo, Fagner, Carlos, Alex, Elano,
Cláudio e Roberto.
PERFORMANCE, RITUAIS E CORPO
Centralizando sua definição em qualidades reconhecidas do teatro, Richard Schechner
(2012) concebe a performance como a ritualização de sons e gestos num processo de
estilização do comportamento (ibid, p.49). Os indivíduos utilizam técnicas de performance
para se dirigir aos diversos públicos com o objetivo de “manter, modificar ou inverter a ordem
social existente”(ibid, p.77).
A performance é um “comportamento ritualizado condicionado/permeado pelo jogo”.
Ela se origina da interação entre o jogo e o ritual. Os rituais constituem ações codificadas que
movimentam a memória e ajuda os indivíduos a lidar com relações sociais “ambivalentes,
hierarquia e desejos que problematizam, excedem ou violam as normas da vida diária”
(LIGIÉRO, 2012, p.49). Embora que os rituais se apresentem publicamente sob o caráter de
estabilidade e permanência, eles mudam dependendo das circunstâncias sociais
(SCHECHNER, 2012, p.84).
Schechner (2012) divide a performance em eficácia e entretenimento. Dois pólos que
fazem parte de uma ação contínua dependendo do contexto e da função. A performance é
ritual quando se vincular a eficácia ou buscar resultados. E é entretenimento quando o
objetivo for dar prazer, ser mostrada ou passar o tempo. Para o autor esse jogo binário –
eficácia e entretenimento – não são opostos e sim continuamente interdependentes. Não há
eficácia ou entretenimento puro. E é das tensões criativas desse jogo e suas várias finalidades
que se originam as performances (ibid, p.81).
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A paquera é considerada como uma interação orientada por regras e valores tanto no
aspecto microespacial dos envolvimentos quanto do macroespacial de regulações mais amplas
que afetam e normatizam as sociabilidades homoeróticas. Por essa razão a performance-
paquera é ritual ao se vincular a ação racional que busca resultados específicos nos termos de
Schechner (2012).
Para Erving Goffman (2009), a performance é uma atividade de emitir impressões
relacionadas aos papéis sociais preestabelecidos adequados conforme uma plateia
determinada. Ela é de teor cerimonial por rejuvenescer e reafirmar valores morais da
sociedade. Na sua teoria os rituais são eficazes por tornarem os indivíduos “participantes
autorreguladores em encontros sociais” (GOFFMAN, 2011, P. 49). Assim, os rituais e as
performances estão vinculados à ordenação equilibrada das interações sociais em contextos
específicos.
As considerações de Goffman sobre a performance e os rituais se relacionam a
qualquer interação ou quando dois indivíduos se encontram na presença um do outro. Na
interação social, os indivíduos devem expressar uma definição da situação mesmo diante da
possibilidade de inúmeras rupturas (GOFFMAN, 2009, p.233). Para tanto eles empregam
durante suas performances a “fachada”: um equipamento expressivo padronizado intencional
ou não que objetiva delinear uma imagem do eu socialmente aprovável (id, 2011, p.14).
Sendo a fachada algo sagrado, os indivíduos expressamente utilizam rituais para mantê-la
(ibid, p.26). Por isso que o autor enfatiza dois tipos básicos de preservação da fachada: o
‘processo de evitação’ e o processo corretivo. O primeiro é caracterizado por evitar contatos
em que há previsões de que as ameaças à fachada ocorram. E o segundo processo se
caracteriza pelo fato de os participantes por não conseguirem evitar a ocorrência de um evento
incompatível com os juízos de valor social a serem mantidos tentam corrigir os efeitos da
ameaça confirmada (GOFFMAN, 2011, P. 23-5).
Sendo a performance uma atividade cerimonial, Goffman(2011) distingue dois
componentes básicos: a deferência e o porte. Na deferência é comunicada uma apreciação
para um indivíduo ou para algo do qual ele “é considerado um símbolo, extensão ou agente”
(p. 59). É um ritual interpessoal geralmente expresso por pequenas saudações, elogios e
desculpas onde o indivíduo se vê preocupado com as implicações simbólicas de seus atos na
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presença de um objeto valorizado por ele (GOFFMAN, 2011, p. 60-3).


Goffman (2011) cita duas formas que a deferência pode assumir. Os rituais de evitação
que são empregados onde a deferência leva o ator a manter distancia do receptor e ao violar a
esfera que esta ao redor do receptor (p. 65). E o segundo tipo são os rituais de apresentação.
Nos primeiros é especificado o que não deve ser feito e nos segundos, aquilo que deve ser
feito. O autor menciona quatro formas muito comum desse tipo: saudações, elogios, convites
e pequenos serviços onde o “ator representa concretamente sua apreciação do receptor” (ibid,
p. 72-4).
O porte é o outro elemento do comportamento cerimonial. Ele é caracterizado pelas
interpretações que os outros fazem do indivíduo durante a copresença. Comunicado através de
vestuário, postura e aspecto, o porte expressa se um indivíduo possui qualidades desejáveis ou
indesejáveis. O porte encerra uma imagem de si criada para os outros (GOFFMAN, 2011,p.
78-9).
Goffman (2010, p.96) discute um tipo de cortesia comum que podemos relacionar aos
processos de paquera: a desatenção civil. Pois na desatenção civil, uma pessoa avisa
visualmente que percebeu que a outra está presente e depois retira o olhar para não
demonstrar que está curiosa ou quer iniciar alguma interação com a mesma.
Tendo como referência essas considerações sobre ritual e performance, é imperioso se
questionar sobre o contexto da paquera homoerótica: quem executa os rituais? Qual o
conteúdo das performances? O que é encenado e com qual objetivo?
A partir dos depoimentos e da observação participante podemos afirmar que na
paquera homoerótica masculina quem executa os rituais são corpos sexuados e generificados
e que buscam outros corpos sexuados/generificados, ambos marcados socialmente pela
heteronormatividade338, padrões estéticos de beleza dominantes e códigos sociotemporais
específicos de cada contexto cultural. E especificamente na paquera entre homens, a
efeminofobia – aversão aos trejeitos ditos femininos nas performances masculinas – atua

338
Termo criado por Wagner (1993) que identifica um conjunto de disposições – discursos, valores e práticas-
que naturaliza, sanciona e legitima a heterossexualidade como a única possibilidade de expressão dos sujeitos
(JUNQUEIRA, 2012, P.66). A heteronormatividade é sustentada pela heterossexualidade obrigatória conforme
Louro (2012). E, além disso, reforçada pela efeminofobia no caso das relações amorosas e sexuais entre homens.

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como reforçador auxiliar da heteronormatividade. Analisemos a seguir esses marcadores.


A performance durante a paquera objetiva dentre outras razões principalmente tornar
um corpo reconhecido como objeto de paquera ou de desejo, além de eficazmente conseguir
um “fica” ou amante. O conteúdo performatizado no curso da paquera são as performances de
gênero: “ficções sociais” impostas e geradoras de “estilos corporais” acionadas durante o ato
performático por serem consideradas naturalizadas, como próprias de um corpo masculino ou
feminino (BENTO, 2006, p. 92).
Tanto o sexo quanto o gênero que marca os corpos executores dos rituais de paquera
são performativos de acordo com a teórica Judith Butler. Através do conceito de
performatividade, a autora faz uma genealogia crítica tanto do sexo quanto do gênero os quais
correspondem a uma reiteração prática do discurso que objetiva produzir aquilo que nomeia.
Não é um ato singular ou intencional do sujeito. E muito menos algo pré-cultural através do
qual podemos conformar os corpos. O sexo e o gênero são uma reiteração de uma norma ou
conjunto delas que “oculta ou dissimula as convenções das quais ela é uma repetição”
(BUTLER, 2013, p. 166).
O gênero não é uma inscrição cultural de significado num sexo preexistente. Ele é um
meio “discursivo/cultural” pelo qual “‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como
‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a
cultura” (BUTLER, 2010, p.25). O sistema binário dos gêneros fundado numa relação
mimética entre gênero e sexo “na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito” é
problematizado pela autora (ibid, p.24). Assim, o homem não é homem pelo simples fato de
possuir um pênis. Tanto a genitália quanto a masculinidade que classifica seu corpo como
distinto de outro corpo oposto – vagina/feminilidade – é resultado de uma operação linguística
de repetição/produção articulada por normas regulatórias que atuam na conformação dos
corpos humanos. Ser reconhecido como homem é resultado de um processo de um prática
repetitiva da performance masculina considerada válida pelas normas regulatórias. É na
prática que o homem se torna homem ou um objeto viável para ser desejado e/ou paquerado.
A norma regulatória desse processo reiterativo de construção dos homens e mulheres é
a heteronormatividade. Esse marco regula as performatividades dos corpos reiterando a
heterossexualidade como a única forma possível de interagir entre as pessoas. Os espaços
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sociais, as vivências e os sentidos das práticas são avaliados e julgados conforme os padrões
de conduta heterossexual que os corpos devem performatizar. É no seio desse dispositivo que
as práticas e significados eróticos da paquera masculina são ordenados e por isso a grande
preocupação dos corpos em se conformarem numa “performance máscula” – constituída pelos
“machos superiores” – ao contrário de se apresentarem numa “performance rasgada”339. Esses
dois modelos performáticos são utilizados tanto como roteiros de encenação quanto de
classificação dos corpos em “tudo, um luxo, macho mesmo...” ou “bichinha, cansada,
passivona,...” (Juliano - setembro/2013) nos permitiram concluir: os rituais performáticos da
paquera homoerótica masculina são um continuum. Os corpos transitam durante a festa e são
constantemente avaliados e classificados tendo como referência esses dois polos: a
“performance máscula” – valorizada, triunfada, sem trejeitos – e a “performance rasgada”,
com trejeitos, afeminada, desvalorizada socialmente.
A execução performática nos processos de paquera é de teor estético, ou seja, avaliada
por um “indicador de níveis de masculinidade e de feminilidade” (BENTO, 2006, p. 163), por
isso a estética funcionaria como um pré-discursivo através do qual os corpos seriam
classificados como abjetos ou “glamourizados”.
Outro marcador social da paquera nas festas observadas são os códigos sociais
contextualmente distintos e temporalmente sustentados. Cada contexto é atravessado por
normas que afetam as performances de paquera. Os rituais de paquera num bar, em locais de
trabalho e numa festa como a “Pop-ismo” são diferenciados. Os frequentadores regulares de
cada contexto conhecem esses códigos que diferem também na extensão temporal do evento,
festa ou estabelecimento social.
OS “POPS” A
“Pop-ismo” iniciou em 2011 como uma festa particular realizada mensalmente entre amigos
em motéis da cidade de Sobral-CE. Hoje é totalmente pública e ocorre quase sempre numa
das maiores casas de show da cidade – Coqueiros clube. A música e um estilo de se vestir
“pop” que identificam a grande maioria dos frequentadores constituem elementos fundantes

339
Termo êmico que encerra homens muito afeminados ou trejeitados e que não se preocupam em esconder
publicamente seus trejeitos e até podem utilizar sua condição “rasgada” como, por exemplo, para divertir
conhecidos ou amigos em dado contexto social.
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dessa festa. Esses jovens que se autodenominam “pops” é que sustentam financeiramente essa
festa. Os “pops” como os
outros frequentadores parecem transitar também entre os pólos “performance máscula” e
“performance rasgada”. Ao se autoclassificarem e a avaliarem suas performances com
referência a esses polos eles reforçam a heteronormatividade. Embora que os “pops”
confessam muitas vezes “dar uma de boy” para conseguir “linha”340. Ou seja, encenam a
“performance máscula” para serem paquerados e “pegar alguém na noite”(Alex- junho/2013).
Alex relata ainda que malha muito porque “todo mundo gosta de gente malhada hoje em dia”.
Neste sentido, a “performance pop” poderia ser considerada uma determinada fissura nesse
continuum da paquera homoerótica: gostam de se “rasgar” com as músicas pop- atributo de
afeminamento, mas possuem corpos malhados – atributo relacionado à masculinidade.
Entretanto a fala de Alex é elucidativa, o corpo malhado é utilizado para manter a
“performance máscula”, numa encenação que reitera os polos performáticos cuja valorização
é tributária ao polo másculo, macho ou masculino.
OS RITUAIS DA PAQUERA
Na “Pop-ismo” os rituais não objetivam salvaguardar o anonimato dos interesses entre
os corpos, pois se subtende que todos que aí estão buscam engajamentos amorosos. Os rituais
objetivam, além de um processo de seleção cuidadoso, principalmente no inicio das festas,
também assegurar a glorificação ou “glamourização” dos corpos, a não-abjeção ou
subalternização frente aos outros e inclusive também alimentar narcisismos: “queima o filme
ficar com esses viadinhos pão com ovo....”(Roberto- dezembro/2013). Roberto avalia ser
extremamente negativo ficar com os indivíduos “afeminados” e que não “tem cultura”. Para
ele, ficar se “rasgando”, ou seja, dançando em frente do telão significa não possuir cultura.
Outros colaboradores compartilharam da mesma opinião de Roberto: “ficar com bicha
rasgada é o fim”. Por isso que eles disseram ser muito cautelosos ao selecionarem seus
“ficas”. Nesse sentido a ritualização buscar evitar: os possíveis “foras”, os “ficares” com os
“rasgados” ou “afeminados” e também manter ou demonstrar maior status corporal na
situação em que os que se consideram “glamourizados” e julgam outros corpos abjetos.

340
Termo êmico utilizado entre os jovens para se referir tanto ao processo de busca por parceiros amorosos ou
sexuais quanto à prática sexual propriamente dita.
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Os rituais analisados a seguir se referem às fases preparatória, desfoca e focada –


divisão aplicada aos processos de paquera – onde o “fica” e/ou a pegação é considerada a
última etapa de um processo que se inicia com olhadelas mútuas. A interdependência e
simultaneidade entre essas fases constituem os pressupostos dessa divisão sugerida. Assim, na
fase focada de um processo de paquera qualquer, o indivíduo pode estar continuamente se
preparando para manter o porte e a fachada, e ao mesmo tempo, pode estar lançando olhares e
selecionando próximos alvos de paquera – fase desfocada.
É na fase, designada nesta discussão como etapa preparatória dos processos de
paquera, que o indivíduo atua na construção de um porte bom, nas palavras de Goffman, ou a
criação de uma imagem com qualidades desejáveis para os outros. A escolha do vestuário, a
postura e o aspecto corporal será calculada de acordo com os interesses ao se dirigirem a
determinado estabelecimento social. E no calor das interações, os interesses, escolhas e
finalidades elencadas frente ao espelho e às vezes externalizadas durante o trajeto para chegar
a determinada festa ou espaço social específico, serão intersubjetivamente rompidas,
manipuladas ou reafirmadas pelos indivíduos no jogo da paquera. Pois, a (re) construção
desse porte é permanente e se vincula em ultima instancia nas paqueras homoerótica entre os
pólos masculinidade e “rasgação”.
Na fase desfocada que ocorre geralmente nas ruas e em festas sociais grandes, os
indivíduos selecionam visualmente seus objetos de paquera ou nos termos dos colaboradores
“vão atirando para todos os lados” (Cláudio-março/2014) até selecionarem “acertarem”.
O reconhecimento da paquera, em sua fase desfocada, se dá por infrações a desatenção
civil – olhar prolongado a alguém ou olhadelas mútuas – confirmada por outros sinalizadores
e pela contextualização espaço-tempo. Estando num espaço gay e ser fixamente observado
pode ser que “esteja sendo paquerado” embora que o paquerador ao ser descoberto possa
“desviar o olhar ou fingir” [desatenção civil] com relação a você (Juliano- setembro/2013). Os
próximos momentos serão confirmatórios. Todavia, nem sempre o ato de “encarar” pode ser
visto como inicio de uma paquera. Pode ser “um meio de sanção negativa, controlando
socialmente todos os tipos de conduta impropria” (GOFFMAN, 2010, P.100). Como num
encontro qualquer o da paquera é iniciado “quando alguém que faz uma jogada de abertura,
normalmente através de uma expressão inicial dos olhos, mas às vezes com um enunciado ou
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um tom de voz especial no começo de um enunciado”. O “engajamento” de paquera pode


começar quando a abertura oferecida por alguém é reconhecida pelo outro que “retorna um
sinal com seus olhos, voz ou postura para indicar que ele se colocou a disposição do outro
para propósitos de uma atividade olho a olho mútua [...]” (GOFFMAN, 2010, P.104).
A paquera focada – quando o individuo se liga a um único foco de atenção visual e
auditiva – a paquera inicia geralmente com a deferência, ou seja, um ritual interpessoal
através de pequenas saudações, elogios ou desculpas para comunicar apreciação ou estima ao
receptor. Esse ritual é utilizado para se aproximar ou fazer investidas aos corpos paquerados.
Entretanto é a fase mais complexa porque lida principalmente com a confirmação das
fachadas e das performances exibidas pelos indivíduos durante a fase desfocada ou não-
verbal. Aqui, ocorre uma exacerbação/manipulação/reformulação dos significados atribuídos
aos dois polos da paquera- cálculo e desejo- desde o inicio do processo. E, além disso, o jogo
binário de atribuição performática é acionado como em todo o processo de paquera: os
indivíduos são avaliados como “performes” másculos ou “rasgados”- afeminados.
Na “Pop-ismo”, a apresentação é um recurso da paquera, às vezes, utilizada sem ao
menos o paquerado tenha consciência da existência do paquerador através da figura do
cupido. Como forma de se assegurar da possível perda – o “fora”– a primeira pergunta quase
sempre do cupido é a de que se o individuo está solteiro e depois relata que “tem um amigo a
fim de te conhecer?” (Romeu- março/2013). O constrangimento sempre está presente nesse
tipo de conhecimento, pois mesmo que tenha existido uma correspondência de paquera,
muitos jovens afirmam se sentirem desconfortáveis com a presença do cupido que pode
assumir depois das apresentações varias funções e atitudes, inclusive a de “dar em cima” do
recém-chegado ao ajuntamento da paquera. Pois o cupido geralmente representa o papel de
intermediário ou mediador cuja atividade é estranha e vacilante podendo ser constituinte de
dois grupos. Ele “aprende os segredos de cada lado e dá a cada um a verdadeira impressão de
que os guardará; mas procura dar a cada lado a falsa impressão de que é mais leal a esse lado
do que ao outro” (GOFFMAN, 2009, p. 139). Às vezes um indivíduo pode assumir este papel
visando ficar com um dos envolvidos, principalmente se ele não for um amigo de ambos e
apenas colegas ou conhecidos da noite.
Outra forma de deferência por apresentação são os elogios. E estes são comumente
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usados porque geralmente funcionam. Conforme os relatos, quando esses elogios vem de
surpresa e por pessoas inesperadas podem causar incômodo e até repulsa, se for articulado
com o corpo do aproximador que não interessa ao receptor. Já vindo de um aproximador que
durante algum período já teve alguma troca de olhares, os elogios podem até substituir as
palavras e fomentar a ação do receptor. Muitos dizem elogiar já esperando como reação de
outros uma maior aproximação e investida. Como se elogiar já fosse a ação suficiente do
aproximador, cabendo agora a parte do receptor que deve iniciar o beijo ou toques que
autorizem o “fica” ou até a pegação.
Na fase da paquera focada, existem os rituais de evitação utilizados para o outro “se
mancar”: “não olhar para o outro”, “não perguntar quase nada”, “responder com poucas
palavras”, “manter o corpo pouco distante do outro” e “não corresponder aos toques que o
outro” (Cláudio- dezembro/2012) aplica durante as perguntas e pequenas brincadeiras. Esses
rituais executados de forma isolada ou em conjunto são geralmente deduzidos pelos
frequentadores como permissão para terminar o estado de fala ou a interação focada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A paquera é um ato essencialmente seletivo, calculista e avaliativo. Esse tripé seleção,
cálculo e avaliação são atravessados por vetores como a heteronormatividade, os padrões
estéticos corporais e os códigos sociotemporais. Transitando entre dois pólos performáticos –
“másculo” e “rasgado” – os frequentadores da “Pop-ismo” reforçam a heteronorma e
promovem na medida do possível fissuras na unidade sexo-gênero-performance-desejo
constituinte desses pólos. Os “pops” malham para construção da “performance máscula”,
centralmente como fase preparatória em interações com os “outsiders”, mas a deixam de lado
quando se juntam aos seus pares em “performances rasgadas” de dança em frente aos telões
de videoclipes e/ou em processos afetivos.
Nas fases da paquera – preparatória, desfocada e focada – os rituais constituintes
buscam uma eficácia: definir a situação mútua de paquera para ambos indivíduos. Na
desfocada a grande marca é a utilização da desatenção civil como ritual de seleção dos
pretensos alvos de paquera. E a fase focada ou de encontro é caracterizada em seu inicio pelos
rituais de deferência principalmente os de apresentação a partir de elogios ou perguntas sobre
o status conjugal do indivíduo. O cupido é a figura emblemática dessa fase. O encontro
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conversacional da interação-paquera focada tanto pode resultar no “fica” ou “pegada” quanto


no “corte” ou “fora” por algum indivíduo ou ambos envolvidos no encontro. De forma
unânime evitar o “fora” é uma das principais finalidades da ritualização da paquera, pois
conforme os relatos “cortar” as investidas de paquera pode ser um vetor de “glamourização”
dos corpos e inferiorizador daqueles que recebem o “corte”. Embora que o “cortador” possa
ter uma avaliação diferenciada para a plateia que assiste a cena: pode ser considerado “bicudo,
besta, riquinho” ou “ele pode né dar o fora em quem ele quiser [...]” (Romeu - março/2013).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MULHERES PRINCESAS: RELEITURAS SOBRE PERFEIÇÃO


FEMININA NO MERCADO DE BELEZA.

Avanúzia Ferreira Matias | avatias@bol.com.br


Larissa Naiara Souza de Almeida341

INTRODUÇÃO

A imagem da mulher e os padrões de beleza têm se modificado bastante ao longo dos


séculos. Corpo magro, malhado e sexy tem se tornado uma obrigação cada vez mais cultuada
entre as pessoas. A busca pelo corpo ideal é um comportamento cada vez mais tipificado na
sociedade moderna, quando se busca padrões de beleza sempre mais esculturais, com ideais
de perfeição.
Atualmente cuidar do corpo é algo indispensável tanto para homens quanto para
mulheres que estão sempre em busca de corpos melhores, mais magros, mais malhados ou
mais “perfeitos”. A mídia cobra esse ideal de perfeição a todo instante, seja por meio da
exploração da temática, da venda de produtos milagrosos ou simplesmente pela revelação de
corpos que fazem sucesso e seduzem milhares de telespectadores, persuadidos a lutarem para
adquirir padrões estéticos tidos como legítimos no contexto de beleza e perfeição. Além disso,
tem-se a ideia (muitas vezes equivocada) de que essa conquista atrai felicidade e mais
aceitação social.
Um comportamento perceptível e preocupante no contexto cultural da sociedade do
século XXI é a cobrança para que a mulher conserve ou alcance padrões de beleza que visem
agradar ao público masculino. Essa exigência transmite a impressão de que a mulher deve ser
objeto de desejo, deve ser dona de um corpo escultural, que justapõe beleza, jovialidade e boa
forma. A mulher pode sim ter tudo isso, mas essa não deve ser uma exigência prescrita, pois
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Bolsista CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
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não existe um corpo ideal; a perfeição corporal é encontrada quando se consegue aceitar
medidas que proporcionam conforto sem nos aprisionar, sem nos limitar ou restringir nossos
hábitos e atitudes, medidas que nos asseguram a sensação de prazer e satisfação com a própria
aparência.
Atualmente, o maior equívoco de perfeição corporal é associar beleza a um corpo
bem delineado, visto que essas alterações são ocasionadas por cirurgias plásticas cujos
resultados quase sempre são a aquisição de seios aumentados e glúteos proeminentes, ou por
longos períodos de malhação combinados com uma dieta limitada, ou ainda juntando tudo:
dieta, cirurgia e malhação.
O discurso de moda, da indústria de cosméticos e de cirurgias plástica, do mercado
de beleza, em geral, estão, frequentemente, reforçando a ideia de que a mulher precisa ser
magra e que não lhe é permitido envelhecer, engordar ou ter um corpo flácido, uma vez que já
existe no mercado inúmeras possibilidades para a reestruturação do corpo, e não usar esses
recursos é deixar de cuidar-se, de enaltecer a própria aparência, de valorizar-se enquanto
pessoa, enquanto mulher.

IDEAL DE BELEZA AO LONGO DO TEMPO

Todas as pessoas concordam que beleza é algo particularmente relativo, mas muitas
vezes essas pessoas se deixam influenciar por ditames que estabelecem padrões, e isso as
tornam prisioneiras de um ideal quase inatingível.
Ao longo dos séculos tem sido assim, as modificações dos padrões de beleza do corpo
feminino confirmam a influência da cultura de cada época para a formação de um modelo
ideal de mulher.
Durante a antiguidade clássica os padrões de beleza eram outros, na Grécia, havia
grande preocupação com a saúde do corpo, pois os gregos contemplavam o equilíbrio das
formas, assim como a proporcionalidade. Eles mantinham essas formas com exercícios,
massagens e banhos aromáticos, contudo não estabeleciam um padrão, um ideal de perfeição.
Os antigos egípcios priorizavam a juventude e o corpo magro, pois a silhueta fina
dava a impressão de alongamento do corpo. Os romanos praticavam exercícios e tentavam
manter a boa forma, hábito herdado da cultura grega.
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Na Idade Média, já com hábitos vaidosos, as mulheres aprenderam a clarear os


cabelos e a depilar as sobrancelhas. Logo depois, durante o Renascimento, o luxo do vestuário
entrou na moda. As mulheres apresentavam-se com vestidos esbanjadores e rostos muito
pintados, para retratar uma aparência jovem.
No século XVIII, o corpo feminino era considerado dentro dos padrões de beleza
quando tinha uma aparência rechonchuda, ou seja, as mulheres mais encorpadas pareciam
mais atraentes, mais bonitas, mais saudáveis. Os decotes chegavam até os mamilos, para
demonstrar a abundância e a sexualidade feminina. Adentrando no século XIX, as formas
arredondadas e meio flácidas ainda fazem muito sucesso. Ser um pouco mais gorda era
sinônimo de riqueza. Entretanto, com a revolução industrial, o uso do espartilho tornou-se
obrigatório para afinar a cintura e moldar uma silhueta escultural.
Chegando ao século XX, inicia-se o combate à gordura, cultuam-se a boa forma e as
curvas femininas. Nos anos 30 a mulher desejada era magra, bronzeada e esportiva, com
formas marcadas, porém algo muito natural, sem exageros. Nos anos 50, o corpo ideal para
uma mulher é aquele com curvas, que evidencia quadris e seios. Neste período, muitas
mulheres que se sentiam gordas recorriam ao uso de anfetamina para emagrecer. Cosméticos
também passaram a ser mais consumidos, assim como tintura de cabelo.
Nos anos 60, por influência das modelos magérrimas, o biótipo almejado é de mulher
excessivamente magra, sem muitas curvas. Neste período, muitas revistas femininas
começaram a publicar receitas de dietas que prometiam essa conquista. Nesse contexto, a
comida vegetariana tornou-se uma boa opção para evitar o ganho de peso e ganhou muitos
adeptos.
Os anos 80 chegam e trazem uma legião de fãs de academias, que procuram um
corpo esbelto e escultural ao aderirem à ginástica aeróbica. Os anos 90 fortalecem a ditadura
da magreza como padrão de beleza. Junto com essa obsessão, começa uma luta permanente
contra a balança. O uso de medicamentos, novamente, é uma boa opção.
Nos anos 2000, a obsessão pelo corpo magro se intensifica muito mais, e muitas
dietas, procedimentos tecnológicos e cirúrgicos tomam conta da cabeça das mulheres, que
buscam um corpo “ideal” a qualquer preço. Muitas também recorrem a esses procedimentos
para evitar o envelhecimento ou retardá-lo. O pavor pela gordura faz com que muitas
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mulheres desenvolvam a bulimia e a anorexia.


Atualmente essa busca sem limite pelo corpo ideal continua muito intensa, e pelo
menos três padrões de beleza são cultuado pelas mulheres: 1. o padrão magro e sem muitas
curvas ou músculos, que se encaixa no perfil de mulheres que participam de desfiles de moda;
2. o padrão malhado para quem gosta de músculos muito desenvolvidos, com seios e glúteos
grandes e 3. o padrão malhado, porém mais compacto, sem músculos exagerados, mas com
abdômen bem definido. O culto ao corpo ideal também continua estimulando a realização de
milhares de cirurgias pelo mundo todo, e, dentre os objetivos dessas intervenções em
mulheres, destacam-se principalmente o desejo de acabar com as gordurinhas localizadas e o
desejo de ter seios maiores e mais firmes.
A boa forma e a ideia de que a mulher magra é mais bonita começa a ser disseminada
ainda na infância, quando as crianças têm acesso às histórias de princesas, visto que todas as
personagens do mundo dos contos de fadas são magras e formosas, com cabelos longos e
sedosos e uma pele viçosa. A partir desse contato e também por influência de uma pessoa
adulta (geralmente mãe), a criança do sexo feminino vive essa fantasia, pois ganha vestidos de
princesas, festas temáticas com princesas, bonecas com nome de princesa. Tudo isso vai
formando no imaginário infantil um padrão feminino que deve ser seguido, pois esse é o
único que lhe é apresentado.

DIALOGISMO

Após essa breve recapitulação dos padrões de beleza feminina ao longo dos tempos,
é importante explicar como faremos o diálogo entre imagens que tratam do mesmo assunto,
porém sob perspectivas diferentes.
O conceito de dialogismo bakhtiniano surge na obra “Marxismo e Filosofia da
linguagem” como forma de oposição às duas correntes de estudo da linguagem na época: o
subjetivismo idealista, que considera o ato de fala como individual, e o objetivismo abstrato,
que privilegia a língua enquanto sistema de signo abstrato e autônomo. Diante dessas duas
correntes opostas entre si, Bakhtin (1992, p. 109) relata que a verdade não é encontrada
diretamente no meio, entre a tese e a antítese, ela “manifesta uma idêntica recusa tanto da tese
como da antítese e constitui uma síntese dialética”. De acordo com o autor, não há enunciação
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pura, o que há de fato é uma interação entre o que já foi enunciado e o que está sendo
enunciado. Nessa perspectiva, não basta compreender uma enunciação, tampouco afirmar que
ela é um ato subjetivo. É preciso compreender que qualquer enunciação mantém um diálogo
com outras enunciações, de outros enunciadores. Dessa maneira, “a enunciação enquanto tal é
um puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situação
imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto de condições de vida de uma
determinada comunidade linguística” (BAKHTIN, ibid., p. 121). O dialogismo é, portanto, o
princípio constitutivo da linguagem em uso, a condição para dar sentido ao discurso
Segundo Barros (1994, p. 2-4), “o dialogismo decorre da interação verbal que se
estabelece entre enunciador e enunciatário no espaço do texto”. Nesse aspecto, o termo
representa a interação entre o “eu” e o “tu” no texto, donde as constantes referências ao papel
do “outro” durante a construção do sentido afirmam que nenhuma palavra é nossa, porquanto
traz em si a perspectiva de outra voz. O dialogismo pode ser considerado também como o
“diálogo entre os vários textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define”.
Esse conceito de dialogismo é o mais difundido e explorado por Bakhtin.
A linguagem é, indiscutivelmente, dialógica, pois as relações dialógicas do discurso
formam uma condição para que se possa constituir o sentido. O homem e a linguagem são,
portanto, partes de um mesmo processo dialético e é a partir da palavra (polissêmica,
polifônica e dialógica) que o sujeito se constitui e é constituído.
Barros (1994, p. 3) afirma que “a persuasão e a interpretação envolvem sistemas de
valores, do enunciador e do enunciatário, que, como afirma Bakhtin, participam da construção
dialógica do sentido”. Nas imagens exploradas neste artigo essa concepção é extremamente
utilizada, pelo seu caráter crítico e questionador. Devemos entender as referidas imagens
como um mecanismo de denúncia, de exposição de fatos e de crítica, mas devemos também
levar em consideração nossos valores e os valores do enunciador para tentarmos construir o
sentido dialógico do assunto de forma que prevaleça a racionalidade.
De acordo com algumas reflexões de Bakhtin sobre o pensamento, a consciência
individual é construída a partir da interação, por isso o universo cultural também terá grande
influência para essa construção, pois, dialogicamente, através da elaboração de textos e
fazendo-se ouvir em diferentes contextos semióticos, a comunicação certamente
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proporcionará aos interlocutores a estruturação de relações que confirmarão ou questionarão o


já dito e possibilitarão acrescentar o ainda não dito, pois trata-se de um conjunto de fatores
que constrói a cultura e a história social como um grande e infinito diálogo.
Para Fiorin (2008, p. 27), a teoria de Bakhtin leva em conta as vozes sociais e as
vozes individuais, o que possibilita que as relações dialógicas sejam examinadas sob o olhar
filosófico, político, estético, econômico, mas também como fenômeno da fala cotidiana.
Contudo, os conceitos de social e de individual não são simples nem estagnados, pois as
pessoas quase sempre opinam socialmente. Por outro lado, “os enunciados não se dirigem tão
somente a um destinatário imediato, mas também a um superdestinatário cuja compreensão
responsiva, vista sempre como correta, é determinante da produção discursiva”.
As contribuições de Bakhtin a respeito de dialogismo constituem um conjunto de
conceitos que determinam a postura dialógica diante do discurso. Assim, o que nos interessa
na ideia bakhtiniana de dialogismo é a possibilidade de interpretar os enunciados de acordo
com as relações que eles têm uns com os outros, estando em contato direto ou não, estando
separados pelo tempo, pelo espaço, pela cultura etc.

O CORPUS E A ANÁLISE

Nosso corpus reúne imagens de princesas em quatro semioses. A primeira semiose


apresenta ilustrações dos contos de fadas, são desenhos reconhecidamente folclóricos, mas
que serviram para compor determinados ideais do que supostamente significa ser mulher: uma
feminilidade submissa, limitada às necessidades de um modelo patriarcal de pensamento.
A segunda semiose apresenta os desenhos do famoso ilustrador americano Jeffrey
Scott Campbell, que já trabalhou para as famosas revistas Wildstorm Comics, Marvel Comics
e também em alguns games. A ideia de Campbell foi criar uma série com ilustrações de
princesas de conto de fadas em um estilo sexy, para acompanhar os padrões de beleza
impostos pela sociedade moderna.
A terceira semiose apresenta fotos retextualizadas da fotógrafa canadense Dina
Goldstein, que teve a ideia de fazer esse ensaio fotográfico após perceber que sua filha estava
obcecada pelas princesas da Disney. Neste ínterim, ela recebeu o diagnóstico de câncer e
passou a questionar o conceito de ‘felizes para sempre’ e como seria se as personagens
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tivessem que enfrentar problemas do mundo real. O projeto ‘Princesas Decadentes’, em


tradução livre, tornou-se muito conhecido no mundo todo.
A quarta semiose apresenta desenhos de moda de estilistas mundialmente famosos.
Os desenhos foram feitos após o lançamento do desafio de criarem vestidos para serem
usados nos dias atuais, porém nos moldes dos vestidos de princesa. Este projeto conta com a
assinatura dos estilistas Oscar de la Renta, Donatella Versace e Jenny Packham.
Para nossa discussão, escolhemos as seguintes personagens: Branca de Neve,
Cinderela e Rapunzel. A escolha por estas personagens foi embasada pelo grau de
popularidade que possuem entre o público e por terem sido representadas em todas as
semioses utilizadas neste trabalho. Veja as imagens e os comentários a seguir.

As imagens acima apresentam a personagem Branca de Neve, primeiramente com toda


a pureza de donzela à espera de um príncipe encantado. Enquanto ele não chega, ela passa os
dias cozinhando para sete anões que resolveram dar-lhe abrigo. A segunda imagem é da
personagem fugindo do caçador pela floresta. A peculiaridade está em seu traje sedutor, que
deixa à mostra seus seios grandes, sua cintura fina e suas pernas bem torneadas. Junte-se a
isso, sua fisionomia de mulher sexy. A terceira imagem (foto), retrata uma possibilidade real
do futuro de Branca de Neve após o casamento, em uma casa pequena (nada de castelo), com
quatro filhos pequenos, um cachorro e um marido que gosta de ver esporte na televisão. Não é
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propriamente um ‘felizes para sempre’, essa é a reflexão que a fotógrafa deixa transparecer.
Na quarta imagem, Oscar de la Renta recria um vestido de princesa para ser usado por uma
‘princesa moderna’, uma jovem alta, magra e de cintura fina. No universo da alta costura os
moldes são feitos basicamente para mulheres magras, fortalecendo a concepção do padrão de
beleza ideal.

Nas representações de Cinderela, primeiramente temos uma jovem humilde com


pouquíssimas chances de conquistar um príncipe encantado, porque sua vida se resume a
fazer trabalhos domésticos na casa da madrasta. A segunda imagem apresenta a personagem
enquanto o encanto se desfaz. Logo que o vestido desaparece, desmonta-se a imagem de
princesa. O que chama a atenção é o corpo da jovem, pois expõe belos seios, cintura fina e
pernas longas e malhadas. Se a jovem existisse na vida real, deixaria qualquer príncipe
encantado por ela. A terceira imagem (foto), retrata uma jovem que, para resolver problemas
passionais, resolve sair para beber. Esta é uma realidade cada mais presente entre os jovens, o
acesso às drogas ilícitas, que são vendidas indiscriminadamente a qualquer hora para qualquer
pessoa. A quarta imagem recria um vestido de princesa projetado para um corpo magro, cujas
medidas estejam dentro dos padrões desejáveis pelos ditames da moda. É fácil perceber isso
pelo aspecto magro da cintura, dos braços e ombros da modelo.

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Na representação de Rapunzel, primeiramente temos uma adolescente inexperiente


que foi aprisionada numa torre e perdeu todo o contato com o mundo social. Enquanto o
tempo passa, a única mudança que acontece é o crescimento do seu sedoso cabelo loiro. A
segunda imagem revela a jovem Rapunzel num momento de nudez, enquanto penteia seu
longo e sedoso cabelo. O destaque é para corpo da jovem que, apesar de estar encoberto pelas
longas madeixas, evidencia uma silhueta ‘perfeita’ para o que se espera de um corpo de
mulher sensual: com cintura fina, pernas bonitas, seios rijos e, ainda, olhar sedutor e lábios
carnudos. A terceira imagem (foto), retrata uma Rapunzel doente. Há um real antagonismo,
pois a jovem cabeluda, agora com câncer, na verdade não possui cabelos, e suas tranças não
passam de uma peruca. Esta é uma possibilidade triste e dolorosa para muitas mulheres que se
sentem mais belas com cabelo longo. Na quarta imagem, recria-se o vestido da princesa para
um corpo longo e magro, contudo um corpo sem muitas curvas, típico dos corpos que
desfilam nas passarelas. Esse desenho parece comprovar que os estilistas trabalham com uma
imagem de corpo ideal, ou seja, de corpo que melhor se adequa a esse tipo de roupa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dessa pequena amostra, pode-se perceber que o mundo moderno compactua
com um padrão de beleza no qual prevalece a predileção por corpos magros. A novidade é a
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nova compreensão de perfeição, que exige, além de um corpo esbelto, pernas malhadas,
glúteos trabalhados, seios grandes e rijos, sem espaço para gordurinhas ou medidas mais
volumosas. A reflexão que se pode fazer a essa perseguição pelo belo, é que o corpo pode ser
surpreendido por problemas reais e reagir a eles de forma específica, o que poderá afastar a
mulher do padrão de belo, seja pela falta de tempo para cuidar si mesma, por um vício, por
uma doença ou por qualquer outra coisa que a impossibilite de tentar alcançar seu ideal de
perfeição. Mesmo quando se alcança essa meta, não há nenhuma garantia de que o corpo ideal
seja a resolução de problemas com a aparência, pois outros problemas poderão aparecer, já
que se exige um grande esforço e muita disciplina para manter-se magra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. (Trad.) Michel Lahud e Yara Frateschi.
São Paulo: Hucutec, 1992.
BARROS, D. P. de. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In BARROS, D. P. de. e FIORIN, J.
L. (orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade: Em torno de Bakhtin. São Paulo:
Edusp, 1994.
ECO, H. História da beleza. São Paulo: Record, 2012.
FELDMAN, R. Trinta anos de moda no Brasil: uma breve história. São Paulo: Livre
Editora, 2009.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
OLIVEIRA, C. G. M. Beleza na contemporaneidade. In Filosofia, Ciência & Vida. Ano 1, n.
3, 2006. p. 50-55.
WERLE, M. A. O belo e a razão. In Discutindo filosofia. Ano 1, n. 1, 2006.p. 40-43.

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NA ESQUINA DA DES(ORDEM): NOTAS SOBRE PROSTITUIÇÃO


TRAVESTI EM SOBRAL-CE

Ivaldinete de Araújo Delmiro Gémes | ivaldinete@ig.com.br


Márton Támas Gémes

Aquilo que procuramos possuir não é portanto um corpo,


mas um corpo animado pela consciência. O corpo é a
forma escondida do ser próprio. Merleau Ponty.

O Presente artigo é resultado de um estudo sobre o cotidiano de um grupo de travesti


feminina da cidade de Sobral. Nele busquei compreender um momento da trajetória de um
grupo de travesti que vivencia algumas experiências de trabalho/prostituição na esquina da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), localizada no Bairro Parque Alvorada. O objetivo é
investigar as repercussões e representações da prática da prostituição para as travestis. É
interessante lembrar que existem poucas pesquisas de campo que abordem a temática da
prostituição travesti e, que discutam as práticas sexuais, as performances e os jogos sexuais
envolvendo as relações homoeróticas e heteroeróticas em áreas periféricas da cidade de
Sobral.
A Esquina da Ordem é um território aqui definido através de dois aspectos. O primeiro
se refere ao aspecto geofísico, um determinado espaço que se inicia em um cruzamento da
Avenida do Contorno com a Rua Dr. Arimatéia Monte e Silva. Esta esquina está situada no
Bairro Parque Alvorada, fica localizado na zona Noroeste da cidade de Sobral/CE (fica
situada a 255 km de Fortaleza). É um Bairro residencial, mas que tem um espaço para a
prática do comércio e de outras modalidades. Atualmente a população desse bairro está em
torno 20.000 habitantes.
O segundo aspecto diz respeito a um tipo de espaço que é observado no aspecto
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relacional, como um território permeado pelas práticas sociais e simbólicas e pelos conflitos
entre os sujeitos da pesquisa. Há muitos modos e locais de entender e prostituição. Quando
pensei este locus como campo de pesquisa foi devido aos limites de preservação demarcados
e revelados pela ritualidade da prática da prostituição Travesti. Este território aparece aqui
como um lugar que privilegiei para observar, entrevistar e conversar com as travestis nas
noites quentes de Sobral.
Na clandestinidade da noite pareceu-me interessante observar quais as dimensões da
prática da prostituição travesti feminina de Rua, ou seja, da esquina da ordem protagonizada
como teatro da vida pelas travestis. E como se instaura as relações de interesses
sexuais/financeiros entre as jovens travestis que e seus clientes. Pode-se, aqui, tomar por
empréstimo o conceito de Wacquat (2002) de bas-fonds ou de lugares suspeitos cercados por
uma área sufurosa. Nesta lógica conceitual a esquina da Ordem torna-se um poço de perdição
social e moral. Significa um tipo de aviltamento do local, é um território maldito e mal visto.
Um território onde se propaga a desonra moral e corporal com os efeitos das marcas distintas
dos sujeitos e das tribos.
Ao reconhecer que tal espaço tem implicações diretas nas atividades de prostituição
travesti e nas representações de tais atividades, cumpre-se desde já apontar ao leitor outro
conceito similar ao de bas-fonds, o conceito de espaço profano que adquire uma significação
na análise de Arrais (2004:11) como aquele espaço não cristalizado, ou seja, este espaço
aparece como parte constitutiva da dinâmica das relações sociais entre as pessoas que por sua
vez, constroem e reconstroem os lugares em múltiplos interesses e vontades.
O campo de observação foi construído a partir das práticas e as trocas elaboradas em
um espaço público (esquina de uma rua) pelas jovens travestis que reinventam uma
expressividade demostrando códigos não cristalizados do “ser” prostituta e do “ser” travesti.
Trata-se de um universo social qualificado por uma trama específica de relações corporais,
afetivas, sexuais, profanas, econômicas e culturais que singulariza a questão das
representações coletivas da experiência de trabalho e da cartografia simbólica desse espaço
social.
Geralmente, quando adentramos no campo de pesquisa à emoção aflora de várias
formas. Na acepção lata o fazer o contato com o “outro” é tudo que parece mais complexo e
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interessante. As vivências em campo tornaram algo diferente. Os aspectos, os traços distintos


dos atores sujeitos pesquisados, pareciam-me um retrato colorido que eu precisava observar
conhecer e interpretar.
A delimitação do campo, a “Esquina da Ordem” foi valorizada como um espaço
privilegiado nos aspectos humanos e metodológicos. É um espaço que faz fronteiras visíveis e
in (visíveis) com outros espaços sociais e geográficos. Fica próximo à minha casa, do meu
mundo social, de minha condição humana e ao mesmo tempo distante do meu universo de
escolhas reais.
Assim privilegiei os critérios de valorização do humano, do diferente de mim. Tive a
atitude de respeito e considerei o lugar de trabalho e de experiências diversas. Nesse momento
fazer a pesquisa de campo não era (a meu ver) uma intromissão ou bisbilhotagem, mas um
momento de intermediário entre o campo da pertença e o campo da compreensão do
significado dessa construção social e simbólica nas experiências das jovens travestis
femininas.
Neste contexto senti-me, às vezes, calma e segura para pesquisar: Eu saí de minha
cabana para visitar o “outro”. Fiz o caminho com a ritualidade, emoção e com sensação de
achar o vivido ou a convivialidade da fala, do riso, do deboche, da excitação, dos sonhos, do
medo, do brilho e dos movimentos criados ou construídos pelos corpos a partir do tempo e
dos segredos da noite. Para Nietzsche (1984, p.23):
O cientista constrói a sua cabana junto à torre da ciência para poder ajudá-la e para
encontra proteção para si própria. E necessita desta proteção porque existem forças
temíveis que continuamente exercem pressão sobre ele e que põem à verdade
científica de uma espécie totalmente diferente, dos tipos mais heterogêneos.

Neste sentido, a construção da cabana o estudo se propôs a investigar as práticas da


prostituição foi feita nas redes do discurso e serviu como procedimento metodológico. Abri as
janelas da cabana para as conversas e entrevistas. No jardim dessa cabana fiz a análise dos
discursos e na porta da frente fui organizando a observação direta da rua ou Esquina da
Ordem. Neste percurso metafórico, eu pude construir através da bricolagem o jardim do fazer
etnográfico.
No estudo, ao tecer reflexões sobre a prostituição, construiu-se uma análise sobre o
cenário da Prostituição Travesti na rua e as questões que parecem influenciar no processo de
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consolidação dessa prática no cotidiano da cidade de Sobral-CE. Desta forma foi realizada
uma revisão teórica com a tentativa de elucidar discussões sobre o objeto de estudo.
Assim, possibilitou-nos elaborar uma análise a partir da compreensão de que a prática
da prostituição é aqui interpretada como um produto de uma relação direta com a experiência
cotidiana dos indivíduos que atuam nesse contexto social específico. Daí a escolha do objeto
ser um pequeno grupo (06) de travestis de camadas pobres da cidade, que durante um
determinado tempo, já vivenciavam na rua a condição de prostitutas.
No decorrer da pesquisa, foi realizada uma descrição densa do processo de
reconhecimento do espaço e das suas particularidades: cotidiano/atividades, focalizando uma
experiência de pesquisa interpretativa sobre os aspectos relevantes do cenário e dos
personagens envolvidos. Busquei estes sujeitos na esquina da Ordem como meio de
identificação e seleção de jovens travestis que partilham das experiências comuns de fazer os
programas/trabalhos e dividir o espaço ou território. Estar com as meninas quis dizer observá-
las conversar com elas para compreender algumas práticas de sua identidade e corporeidade.
De fato pesquisar a vivência a partir das práticas e dos discursos dos sujeitos,
significou operacionalizar as questões de gênero, inclusive, no elucidar os apontamentos
relacionados às possibilidades no universo da sexualidade humana. Pois para Mirian Grossi
(1992, p.34):
Apesar da diversidade destas experiências alguns pontos parecem recorrentes na
maior parte dos trabalhos: a angústia decorrente do contato com o “outro”, a
problemática da “sedução” mútua no trabalho de campo, a preocupação com o “mito
do antropólogo assexuado” que parece mais presente no relato das antropólogas, as
complexas relações de poder que se estabelecem entre “nativos” e pesquisador, a
dimensão política do trabalho do antropólogo em contato com grupos
“marginalizados”, e as ambiguidades dilacerantes com as quais os pesquisadores se
defrontam no momento de “escrever sobre os outros”.

O único ponto fraco dessa pesquisa é que ela foi realizada no campo de trabalho das
travestis. Este fato colocou-me de frente para meu dilema real, como a necessidade de
conversar ou dialogar no momento da abordagem dos clientes, no tempo de trabalho e
realização das trocas e diálogos. Nesse momento de conflito fui buscando negociar o meu
lugar de pesquisadora, de mulher, de negra, militante orgânica.
Nesse momento falei de minhas escolhas sexuais, do meu mundo, da ética de minha
militância e do imenso universo das escolhas humanas. Daí percebi, que eu tinha conquistado
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a senha de entrada: o olhar, o sorriso, o grito gestual de aceite, as performances daquelas


meninas afirmando que eu era bem vinda ao mundo da noite.
É eu vou logo dizendo que eu detesto as fofoqueiras, sou contra as curiosas. É
porque todo mundo quer saber de nossa vida. (Pausa). Só um minuto (joga os
cabelos longos e negros para trás). Acho que a mona é bem diferente. Sinto uma
coisa boa em você. Seu modo de falar com a gente. (risos). Ah você tem que ver
como outras pessoas nos olham. Fico toda armada. Mas com esse seu estilo mulher,
tu deve ser muito autêntica. Pode ficar descansada que conversaremos muito. (Grito
e risos). Bem gostei de tu, teu jeito diferente. Sei lá, é uma mona demais,
despachada e muito tranquila. (SERENA, 17 anos, Travesti).

Escrever sobre a prostituição é desenredar o complexo nó que me distanciava das


meninas da Esquina. É recorrer aos códigos de convivência humana, ao mesmo tempo, é
como sentir a textura de nossas ansiedades durante o encontro com “o outro”. A abordagem
na Esquina foi, às vezes, baseada na mera existência e na construção da empatia entre eu e o
outro. Em determinado momento surpreendi-me com esta aceitação. Veja esta nota do
caderno de campo.
Oi mulher, vem, pode se aproximar e falar, gosto desse seu jeito de vestir e de falar.
Eu já tinha lhe visto antes. A senhora lembra uma tia minha. Como você é chique,
colorida e ao mesmo tempo tão real, a senhora tá demais. É chique, linda e não é
mala como o povo daqui. É educada e tem esse jeito de ser gente boa. Vamos
conversar enquanto os bofes não chegam, tá? (Amora, 16 anos travesti).

Para realização da pesquisa recorreu-se a observação das práticas, das conversas e das
trocas simbólicas. As conversas foram realizadas no início da noite 20h00minhs e
prosseguiam até de Madrugada (02h00min horas). Muitas vezes estes diálogos foram
entrecortados com a chegada ou aparição dos sujeitos sociais (homens/clientes ou fregueses)
das travestis. O discurso narrativo foi compreendido através da análise de discurso que
auxiliou na interpretação das histórias de vida de cada sujeito.
Em alguns dias os procedimentos da observação da atividade da paquera ou do
programa foram bem interessantes. Eram 22.15m da noite de um terça feira de julho, o
homem freguês se desloca pela Avenida em seu automóvel, quando percebe que eu estou
observado, passa cumprimenta as meninas, conversa, mas não acerta logo o programa. Eu
sigo as sequências de movimentos desse cliente no processo da paquera. Percebo os gestos
que parece ser modelares da paquera na rua.
O cliente passa e segue em direção ao quarteirão. Eu continuo no posto de observação

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e converso com uma colega de trabalho que reside nas redondezas. O cliente reaparece e
dirige em direção do grupo. São três meninas travestis. Ele para diante delas e faz um sinal.
Vem um homem observa e depois ele se retira sem sair de dentro do carro. No terceiro
momento este cliente resolve voltar. Faz a negociação do programa e leva uma das meninas
para concretizar a experiência sexual.
O registro dos movimentos de aproximação de cliente e travesti é um fato recorrente,
que tomo nesta análise como uma troca das mais complexas e inquietantes. Eu observo que o
toque do corpo pelo cliente não acontece na rua, isto é muito raro de ocorrer, por vezes um
leve beijo ou toque nos cabelos, enquanto faz a cortejo.
A observação do campo de pesquisa possibilitou a compreensão da dificuldade de
adentrar nas questões relativas à sexualidade na dinâmica da prostituição, bem como por tratar
de vida sexual de cada pessoa, requerendo um longo período de tempo. Nesse sentido
percebe-se que a observação realizada na Esquina da Ordem possibilita a compreensão dos
dilemas e das dificuldades de abordar as questões relativas à vida, ao corpo, ao trabalho e à
sexualidade no processo real da prostituição travesti na cidade de Sobral, bem como por tratar
de assuntos íntimos342 das travesti, requerendo um longo período de tempo. Além desta
questão, houve limitações na minha aproximação ao objeto investigado, ou seja, entrevistas
que não foram possíveis realizá-las.
Em alguns momentos da observação, a esquina estava vazia. Nesse contexto são
revelados certos procedimentos de retiradas das meninas para outros programas ou por
motivos de saúde. Também devido a defensiva pelo território da prostituição. Essa defensiva
na prática é bem cruel. O território é defendido da invasão ou aproximação de pessoas nas
imediações que queiram fazer o mesmo tipo de programa ou trabalho. A possibilidade de
briga é bem evidente quando outra menina quer ultrapassar o limite demarcado pelas travestis.
Os procedimentos de defesas do território são bem claros, nada de sutilezas. Elas me
revelaram, por exemplo, quando alguém quer se fazer de besta apanha até sangrar. No mês de
junho pela manhã foi encontrada próximo ao Centro de Convenções, uma travesti que se
prostituía na rua com sinais de espancamento, muito ferida. Ela foi levada pelo SAMU para o

342
Luís F. D. Duarte utiliza esse conceito no seu estudo O Império dos Sentidos tratando de aspectos
relacionados à sexualidade no indivíduo.
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hospital. Dias depois contaram-me os seus colegas que a briga foi fruto de disputa (richa) pelo
território de trabalho.
As conversas que tive com uma das meninas foi bem marcante. A travesti foi visitar-
me e pedir ajuda. Toda vez que ela terminava de fazer “os programas” da noite, na manhã
seguinte passava lá em casa. Era esse o seu caminho, morava ali pelas redondezas do Bairro
Alto da Expectativa. Contava com 20 anos de idade. Estava muito magra, maquiagem
borrada, mal vestida. E no primeiro dia que apareceu lá em casa, chamou na porta e pediu ao
meu companheiro dinheiro/ajuda. Como ele lhe ajudou voltou outras vezes.
À medida que fui oferecendo ajuda (comida e às vezes contribuição em dinheiro) ela
fez outros contatos se aproximou de mim. Veio visitar ocasionalmente e relatou sua vida,
antes de se fixar como garota de programa na cidade de Sobral:
Eu já sofri muito na vida. Eu comecei esta vida logo cedo. Tia é tão ruim ser assim,
a gente sofre muito. Eu já fui até queimada quando estava trabalhando em
Fortaleza (levanta-se da cadeira e mostra as marcas da pele da coxa toda
deformada pelas queimaduras de 3º grau). Eu agora estou deixando o vício, estou
limpa, mas é bem difícil, os rapazes daqui bate na gente, às vezes não paga os
programas. Juro tia eu não estou usando mais a pedra. O dinheiro é para eu
comprar as minhas coisas. Eu hoje estou muito cansada é muita pressão. A gente é
muito mal vista. Todos mexem com a gente. A senhora é diferente deixou eu entrar
em sua casa, é bom conversar com a senhora. (entrevista com Carmem, em 13 de
maio de 2014).

Essa vida de dor que descobri na fala e no corpo de Carmem pôde ser registrada nas
outras vidas das meninas da ordem. A vulnerabilidade da vida de trabalho na rua é revelada na
cumplicidade entre a pesquisadora e as meninas: “Muitos dos bofes querem fazer o babado
sem preservativo, eu cobro mais, mas o meu risco é muito e a vida do outro também é um
risco (riso)”. É importante lembrar que o sofrimento aqui vem recheado com a pulsão de
destruição e preservação. A vida na esquina transforma-se em uma roleta russa a partir da
coexistência entre o medo de adquirir o HIV e a agressividade de ser uma portadora em plena
atividade sexual. Esse fato é um segredo quase tangível para os seus clientes.
A experiência no campo de pesquisa apontou-me para o fenômeno da percepção
articulada “do outro” no mundo. Essa percepção ocorreu devido ao meu interesse de
compreender uma experiência humana que envolvesse relações de sexualidade, corpo e
gênero. Nesse processo de significação do objeto pesquisado desvelei o meu campo subjetivo
e compreendi que, “Perceber é envolver de um só golpe todo o futuro de experiências em um
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presente que a rigor nunca o garante, é crer em um mundo. É essa abertura a um mundo que
torna essa verdade perceptiva.” (PONTY, 2015, p:398)
De acordo com as observações de campo constatou-se que a presença das travestis na
Esquina da Ordem em Sobral acontece em horário noturno. É durante a noite que pude
observar alguns aspectos da “inteligibilidade de gênero” que demarcam a vivência cotidiana
da prostituição travesti na cidade de Sobral. Pois, é fundamentalmente no tempo noturno ou
no tempo de trabalho noturno em que se pode observar pesquisar e compreender a
prostituição das jovens travestis em seus aspectos concretos e simbólicos.
O que chamo de tempo noturno, neste artigo, é aquele tempo revestido de sentidos
múltiplos. É o tempo organizado na produção das atividades dos corpos. O tempo dos
acontecimentos estranhos e esquisitos daqueles que vivem na sombra da ordem. O tempo da
abjeção que é assim definida, como “coextensiva à ordem social e simbólica tanto no nível
individual como do coletivo” (KRISTEVA, 1982, p. 68). É exatamente o tempo do disfarce,
da montagem dos sujeitos que se transformam. É o tempo da regra quebrada, da subversão da
ordem, do despertar e do brilho do ser abjeto mostrar-se incluído no mundo. Pois o abjeto é
entendido como:
O abjeto tem apenas uma qualidade do objeto – a de ser oposto ao eu. Se o objeto,
através de sua oposição, coloca-me dentro da frágil textura de um desejo por
significado que é abjeto, ao contrário, o objeto alijado, é radicalmente excluído e me
lança ao lugar que o significado entra em colapso. (KRISTEVA, 1982, p.1).

É bom ressaltar a que a dimensão performativa vivenciada pelos sujeitos na


experiência do trabalho da prostituição e em várias formas e ativações dos sentidos.
Considerando aqui que a dimensão performativa é experienciada no corpo dos sujeitos. A
noção de performance de Zumthor (2000) é elaborada a partir do engajamento do corpo. Este
processo de engajamento ocorre através de uma percepção sensorial.
Neste tempo os sujeitos sociais reinventam o corpo em uma atitude de Ser, em um
espaço das trocas mercadológicas e simbólicas. Sobre os corpos abjetos aponta Benedetti
(2005, p.43) “Dentre os corpos abjetos presentes na sociedade, figuram as travestis. Elas
modificam as formas de seu corpo com o intuito de torná-lo parecido com outros corpos que
merecem ou devem ser incluso. Elas criam outro tipo do feminino dentro da ressignificação
do corpo”. Na análise de Kristeva a abjeção auxilia na explicação do indivíduo como
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possuidor de um corpo duplo: o que tem dentro e o que está fora dos indivíduos, ou o que é
excluído e o que pertence a inclusão.
Nos estudos Queer, os gêneros são inteligíveis porque as normas que dão significados
ao corpo são reelaboradas e construídas no universo da performance. Para Butler (2011,
p.187) a noção de abjeção:
Designa uma condição degradada ou excluída dentro dos termos da sociabilidade
humana. De fato, o que é rejeitado ou repudiado dentro dos termos psicanalíticos é
precisamente o que não pode regressar ao campo do social sem que represente uma
ameaça de psicose, ou seja, da própria dissolução do sujeito. Quero propor que
determinadas zonas abjetas dentro da sociabilidade também apresentem ameaças,
constituíndo zonas indubitáveis que o sujeito fantasia como ameaçadora à própria
integridade, com a possibilidade de uma dissolução psicótica (ou morrer do que
fazer ou ser isto).

A definição de Gênero foi reconstruída a partir da Teoria da Performatividade pela


estudiosa Butler (2002, p.64) que assim descreve: “O gênero é performativo porque é
resultante de um regime que regula as diferenças de Gênero”. Nesse regime os gêneros se
dividem e se hierarquizam de forma coercitiva.
No universo pesquisado, as jovens travestis são sujeitos sociais que no campo das
possibilidades de classe, geração, raça e sexualidade, se travestem/transforma socialmente e
vivenciam uma identidade de gênero a partir de suas práticas sociais, corporais, afetivas
culturais e sexuais. Elas subvertem e renunciam a ordem heteronormativa construída e
imposta pela ordem social e elaboram novas práticas e performances de gênero onde se
identificam como pessoas que são diferentes. Veja nessa narrativa:
“Ser travestir é ser diferente. Eu sou uma pessoa rasgada, sem nenhum medo dos
comentários dos outro. Vivo minha vida como eu quero. Às vezes é difícil ser assim,
mas eu gosto de provocar de ser quase uma princesa e bela (risos). Olha minhas
coxas e a minha cara, eu sou linda. Fico pensando que eu não poderia ser de outro
jeito, os bofes gostam dessa mistura das duas coisas. Acho que eu confundo. Até
tento não pensar na confusão da cabeça das pessoas. O que é ser travesti? É ser
como eu sem uma definição exata. Fico ou acho que estou entre os dois mundos. O
menino que era e a menina que é assim agora. Isto é engraçado só que eu não me
escondo e vou levando a vida”. (Magnólia, 20 anos).

Na fala dessa jovem travesti, aparece uma conotação da sua identidade. Ela refere-se
ao híbrido de gênero, as diferenças, a mistura ou aos trânsitos de gênero que a torna diferente.
É bom ressaltar que a diferenças é um conceito essencial para entender a travestilidade e
outras identidades de gênero. Na análise de Pelúcio (2011, p:125), em seu estudo realizado
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sobre as subjetividades travestis da cidade de Campinas, ela afirma que a diferença pode
aparecer como ferramenta analítica que fornece elementos, no sentido de articular o nível
micro e macrossocial. Esta autora ainda afirma que devemos trabalhar a diferença:
De maneira que possamos por em causa os processos que marcam certos indivíduos
e grupos como desigualdade, os sujeitos se constituem subjetivamente. E procurar
ver nas potencialidades das diferenças de se converterem em lugares de produção de
identidades que resistem à normatização. Por isso me interesso aqui pelos trânsitos.
Pelas experimentações que resultam muitas vezes em incompreensões, expressas,
nas dificuldades dessas e desses jovens em acharem um termo, um enfrentamento
das normas que procuram negar as possibilidades ontológicas desses sujeitos.
(PELÚCIO, 2011, p: 125).

Conforme a observação, os sujeitos sociais possuem estatutos diferenciados no


mesmo espaço de trabalho, de comunicação, de lazer, de tempo social que os exclui da rede
de significações generalizante das identidades sexuais fixas propagadas pela
heteronormatividade. Como afirma Ponty (2015, p: 397) “O contato absoluto de mim comigo,
a identidade do ser e do aparecer não podem ser postos, mas apenas vividos aquém de
qualquer afirmação”. Na medida em que os indivíduos se travestem ou se transformam, estes
sujeitos sociais produzem de forma consciente, diferenciações na construção dos diferentes
sentidos atribuídos às identidades sociais e sexuais.
Nesses aspectos, permite-me fazer uma leitura dos estudos do antropólogo francês
Jean-Loup Amselle (1990) acerca do conceito de identidade. Para este autor, não há fronteiras
culturais claras entre os grupos étnicos dos fulani e os bambaras, e os indivíduos têm
identidades fluídas ou múltiplas distinguindo-se de diferentes outros de acordo com as
circunstâncias. Para Burke (2005, p.128) “A identidade é continuamente reconstruída ou
negociada.”.
Para a Política Queer adota a etiqueta da perversidade e faz uso da mesma para
destacar a “norma” daquilo que é normal, seja heterossexual ou homossexual, Queer não por
tanto se rebelar contra a condição marginal, mas desfrutá-la. (Gamson, 2012, p.151). O
discurso de Gênero é alimentado pelas experiências das práticas e das representações do corpo
como uma modalidade típica de inserção da ordem da desordem.
As literaturas, experiências e representações do corpo na modernidade esboçam uma
imagem de caleidoscópio cultural dos elementos constitutivos das diversos, sentidos e
expressões de gênero e corporeidades. As experiências humanas são dotadas de sentido
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(Verteshen), pois, pode-se compreender o comportamento dos indivíduos através da


intencionalidade dos sujeitos conscientes. Para Ponty (2015, p:398) “ O que é apenas vivido é
ambivalente: existem em mim sentimentos aos quais não dou seu nome e também felicidades
falsas em que não estou por inteiro”.
No ritual cotidiano da prostituição travesti posso observar que algumas travestis
transformam seus corpos em objetos desejados e reencantadores de desejos. Podem usar o
corpo como elemento catalizador da dor e do prazer. No uso e abusos de seus corpos muitos
sujeitos não seguem as regras sociais prescritas e proscritas. Pois o corpo é parte do todo da
vida, é o movimento da existência ou a referência da vida no mundo.

“A existência corporal que crepita dentro de mim sem minha cumplicidade é apenas
o esboço de uma verdadeira presença no mundo. Pode-se dizer que o corpo é a
forma escondida do ser próprio, ou reciprocamente, que a existência pessoal é a
retomada e a manifestação de um dado ser na situação” (PONTY, 2015, p:228).

No ritual da prostituição de rua elas tendem a deformar e transformar as regras


prescritivas de uma sociedade da moral e dos bons costumes. Fazem da rua e da prostituição
de rua uma gramática demarcada e ocupada por sujeitos resistentes aos sistemas binários.
Algumas travestis tende a organizar suas regras de espaço com seu corpo, seu jeito, sua
ritmicidade que na maioria das vezes pode conflitar com as ritmicidades dos demais sujeitos
sociais.
Para Aragão (2006, p.168) os sujeitos se reconhecem a partir de relações construídas
nos modelos disciplinares da sociedade, onde organizam espaços e define-se performance.
Pois, este autor ainda afirma que: “O dispositivo da disciplina requer do indivíduo que ele
observe em seu comportamento os modos de se apresentar socialmente, seus interesses seus
trânsitos, entretenimentos, pares, desejo erótico, o manejo do corpo, as conquista matérias”.
Vale ressaltar aqui, que o sentido atribuído aos conceitos de corpo e de gênero é
encarnado a partir das condutas humanas no terreno da intencionalidade que se propaga
através das experiências vividas. A abordagem configuracional de corpo e de gênero pode ser
interpretada a partir das dimensões de classe e etnia, com direcionamentos que se constroem,
nos diversos processos sociais. As dimensões de gênero e da cultura corporal resultam de
processos sociais, de produções e reproduções de práticas que são condicionadas e
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condicionam configurações sociais.


Para Cyrulnik (2006) as dimensões da cultura na vida humana nascem da produção
dos afetos aperfeiçoados através do compartilhamento dos projetos de vida de cada sujeito.
Pois para este autor (2006, p. 25) “o compartilhamento de um projeto é necessário para a
constituição de um sentido”. É bom ressaltar que esse projeto origina-se no âmbito das
diversidades, das diferenças e nos construtos temporais duradouros. Assim afirma Cyrulnik
(2006, p.25):

Quando uma cultura tem como projeto único o bem estar imediato, o sentido não
tem tempo para nascer na alma dos sujeitos que habitam essa sociedade.
Inversamente, quando uma cultura propõe como único povir uma sociedade perfeita
que existirá num outro tempo e num outro lugar, sempre, alhures, ela sacrifica o
prazer de viver em prol do êxtase por vir.

No curso desse processo, o corpo aparece como experiência do vivido e paralelamente


a esta experiência, o gênero se constrói como divergência/convergência da sexualidade, das
performances, do corpo indisciplinado e do tempo/lugar da desordem. É importante lembrar
que historicamente o corpo sempre foi objeto de intervencionismo dos sujeitos. Nas diversas
culturas humanas, simbolicamente os corpos representam inúmeras significações e por isso
ele é considerado por meio da agência desses símbolos a expressão ou representação da
existência objetiva e subjetiva dos sujeitos. O corpo é o lugar da passagem do transitório
biosocioantropológico.
A etnografia dos costumes, dos usos e das técnicas do corpo constitui uma abordagem
necessária para apreender o significado das experiências dos sujeitos na realidade mais
profunda da gramatica da prostituição travesti. A intenção da montagem do corpo e do gênero
existe de forma significativa. Pois é um marcador de muitas alternativas de transformações
transitórias de gênero. Como aponta Pelúcio (2009, p.121):

Essas possibilidades de transformação do corpo e incorporação de estilos não estão


simplesmente disponíveis como peças para o consumo. Elas são aprendidas. Nesse
processo são categorizadas, hierarquizadas, justamente porque nelas estão
implicados a valores que se confrontam ou se adequam a discursos hegemônicos
sobre corpo, (homo) sexualidade, ração, classe. A adesão a um estilo precisa ser
negociada, passa, portanto, por processo racionais de escolhas, ainda que não sejam
sempre desta maneira pelas pessoas que as adotam.

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Notar-se-á que essa pesquisa sobre a prostituição travesti abre uma porta para uma
relevante discussão de gênero através das experiências das práticas do corpo como elemento
constituinte e constituído de práticas, olhares e performances. A partir da literatura da
Antropologia do Corpo, da Antropologia das Relações de Gênero e de outros olhares, neste
trabalho de pesquisa buscou-se alimentar o debate e compreender as experiências sociais,
corporais, afetivas e sexuais dos indivíduos na cotidianidade.
Nesse sentido, esta pesquisa visa contribuir, através das análises empíricas e teóricas
atravessadas pela multidisciplinaridade do conhecimento com os Estudos Queer, Gênero,
prostituição, travestilidade e do corpo.

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NAS ASAS DA IMAGINAÇÃO: O QUE DOIS GAYS E UMA TRAVESTI TÊM A


NOS CONTAR? ESTUDO BASEADO NA TEORIA QUEER EM SOBRAL-CE

Maria Eline Medeiros de Almeida∗ | elinemedeiros2011@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Este é um trabalho de campo, fruto de uma pesquisa realizada na disciplina de


Antropologia das Relações de Gênero e Sexualidade, do Curso de Ciências Sociais da
Universidade Estadual Vale do Acaraú. O seu objeto de estudo é composto por narrações de
experiências diárias de dois gays e uma travesti que são moradores da cidade de Sobral –
Ce343. Tem como objetivo compreender as histórias desses sujeitos sociais, analisando as
nuances que percorrem essa realidade tão “desconhecida” do ponto de vista das experiências
individuais a luz da Teoria Queer.
Como princípio norteador me inquietei com as seguintes prerrogativas: Como ser
diferente e igual numa cidade diversa e ao mesmo tempo não tão diferente das demais cidades
brasileiras? Como essa cidade acolhe os homossexuais, lésbicas, bissexuais, travestis,
transexuais e transgêneros? Há espaço para eles nas escolas, universidades, nas empresas?
Que tipo de famílias formamos para acolher pessoas que se reconhecem como parte dessas
categorias?
Dessa maneira pensei em desenvolvi esta pesquisa numa tentativa de reflexão a luz
de um assunto tão oportuno, mas ao mesmo tempo, que incomoda muita gente, que
degeneram assiduamente as categorias que foram fogem do padrão heteronormativo, cunhado
como o correto.

Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Vale do Acaraú- UVA
E-MAIL: elinemedeiros2011@hotmail.com
343
Essa cidade que está localizada na zona norte do estado do Ceará, a 238 km da capital Fortaleza. De acordo
com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cidade de Sobral conta com 199. 750 habitantes
(população estimada para 2014).
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Metodologicamente lancei mão das leituras teóricas da disciplina de antropologia das


relações de gênero e sexualidade e encontrei na Teoria Queer um aporte teórico extremamente
relevante, capaz de “dar conta” como direcionamento maior, como caminho. Além de ser um
assunto ainda pouco conhecido do ponto de vista da academia e da sociedade como todo.
O campo empírico foi facilitado, pois escolhi trabalhar com apenas duas categorias
de gênero, dois gays e uma travesti, que se dispuseram a narrar suas histórias de vida. Como
ainda a sociedade mantém muito preconceito com relação a comunidade LGBTTT344, foi com
muito cuidado que escutei atentamente cada relato, onde os meus interlocutores fizeram uma
retrospectiva desde a infância a idade atual da entrevista.
345
A primeira entrevista foi realizada com o Rafinha (gay) de vinte e quatro anos,
que não tem problema com o nome, não importa se é interpelado por Rafael, Rafinha, Rafa.
Identifica-se como gay desde a idade de doze anos, porém ressaltou que na infância sempre
gostou de amizades femininas, brincadeiras com objetos construídos socialmente como
definidores de sexo, no seu caso gostava de brincar de bonecas. Apenas aos vinte anos a sua
família, principalmente sua mãe descobriu a sua orientação sexual. O que foi muito difícil,
quase uma catástrofe, segundo Rafinha346 “é como se o mundo tivesse parado, ficaram sem
chão, sem palavras”. Momento complicado, considerando que sua mãe descobriu através de
terceiros e o resultado foi ele ser expulso de casa. Após oito meses sua mãe pediu que ele
retornasse ao lar, porém Rafinha impôs uma condição que seria ele ser aceito como gay, o que
foi “atendido”, impreterivelmente por sua mãe, mesmo contra sua preferência. E durante o
período que ficou fora de casa, esclarece que foi muito ruim:

Durante esses 8 meses foi horrível, eu não tava na casa da minha família, tudo é
diferente. Lá você tem que lavar suas roupas, fazer sua comida, fazer tudo. Lá onde
eu tava também eles costumavam fazer umas brincadeiras e aí sumia dinheiro,
celular, outros materiais pessoais. Foi quando me decidi saí dessa casa e fui procurar
outra, após três meses voltei para minha casa. (RAFAEL, 24 ANOS, AJUDANTE
DE PRODUÇÃO).

344
De acordo como prof. Leandro Colling apesar da comunidade LGBT, ser reconhecida como: Gays, lésbicas,
bissexuais e travestis, ele acrescenta mais dois “TT”, representando os transexuais e os transgêneros.
345
Pseudônimo, nome real: Rafael.
346
Entrevista realizada em 10 de novembro de 2013.
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Rafinha esclareceu que tentou esconder ao máximo sua orientação sexual e para
disfarçar namorava com mulheres, porém era algo forçado. Ainda com relação sua família
ressaltou que a convivência tornou-se harmoniosa no sentido da aceitação de um Rafinha
assumido como homossexual. No trabalho, esclareceu não ter recebido “nenhum” tipo de
discriminação, ressaltou que o respeito e a amizade devem está acima tudo.
Com relação a sociedade acredita que haja ainda muito preconceito, no entanto,
lembra que isso não está restrito somente ao homossexualismo, pois o negro, pobre, a mulher
também se enquadram dentro desse mesmo conceito pré- estabelecido. É evidente que a
supremacia masculina tenta imergir essas categorias olhadas como submissas, como prova de
um poder historicamente manifestado pela classe masculina.
Com relação ao seu corpo explicou que não mudaria, pois tem medo, pode se
arrepender futuramente. Se caracteriza com vestimentas masculinas. Ainda assim poderia usar
uma saia, um salto, mas somente por diversão e também para sentir a sensação que as
mulheres sentem. Acrescenta que no seu rosto, gosta de usar uma base e um brilho nos lábios.
A nossa segunda entrevista foi com a Mirela (gay),347 de vinte e três anos, mora com
os pais. Sua orientação sexual foi revelada aos dezenove anos para a família e para a
sociedade. Assim como Rafinha, Mirela, também foi expulsa de casa e passado seis meses,
por pedido de sua mãe voltou para casa. No entanto havia uma condição que foi imposta,
onde Mirela não poderia ser vista com homem nenhum e principalmente levar para casa.
Indagado sobre sua afetividade esclareceu está se relacionando com alguém, não é
namoro fixo, apenas fica com ele de vez em quando. Contou que já coabitou com um homem
durante três meses, teve outro relacionamento nessa mesma condição com durabilidade de
seis meses. Com relação ao lazer gosta de curtição na companhia seja de homo ou hetero.
348
E finalmente a terceira e última entrevistada Renata (travesti) , de trinta e quatro
anos. Diferente dos demais entrevistados Renata sentiu necessidade de mudanças no corpo,
uma forte identificação com o sexo feminino, levando a ingerir hormônios para
desenvolvimento dos seios, tratamento no cabelo, vestimentas femininas, maquiagem.
Ressalta que é comum ser confundida com mulher, inclusive em muitos lugares é vista

347
Pseudônimo, nome real: Oclécio. Entrevista realizada em 04 de dezembro de 2013.
348
Pseudônimo, nome real: Benedito.
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não como travesti, mas como uma mulher:

As maiorias das pessoas me têm como mulher e não como travesti, eu me passo
como mulher em qualquer lugar, às vezes é até chato para namorar que a pessoa vem
achando que é mulher e na hora H não é, e tem gente que não gosta, mas quando a
gente gosta de uma pessoa que já sabe que a gente é travesti, é muito melhor.
(RENATA, 34 ANOS, AJUDANTE DE PRODUÇÃO) 349.

Sobre o preconceito da sociedade, tem consciência de que existe, mas quando se


depara com pessoas preconceituosas ela as ignora, é como se aquela pessoa não existisse.
Conta que tem um amigo que no mora no Rio Grande do Norte, é travesti e que no passado
apanhou bastante das pessoas na rua. Reforça que a travesti tem que ter respeito, antes de
tudo, pois as pessoas têm que saber que a prostituição, as drogas, por exemplo, não são
exclusivas apenas desde público, onde qualquer pessoa pode assim o fazer. O caráter tem que
prevalecer também. Renata se considera uma pessoa muito vitoriosa, pelas conquistas, pelo
que é hoje.
Na vida profissional relatou que o trabalho que mais sofreu preconceito foi o atual,
não no momento presente, mas no início, principalmente por chamá-lo pelo nome registrado
na frente de todas as pessoas. Outro ponto importante é a questão do banheiro, pois quando
Renata está utilizando, nenhum homem entra e ela se sente muito constrangida. Em sua
opinião deveria ter um banheiro alternativo. Como ela é muito parecida fisicamente com o
sexo feminino, ela é tida de fato como mulher, é confundida com mulher, por isso que o
banheiro é um problema. A questão não é ela se achar como mulher é como as pessoas a
veem.

REFERÊNCIAL TEÓRICO

Ao adentrar nessa temática com o pressuposto de que pelo histórico que possui é
algo gritante dentro de uma sociedade tão preconceituosa como a nossa. Como ponto de
partida não poderíamos deixar de nos fundamentar na teoria que mais nos levou a
compreender o que é o homossexualidade, bem como toda a comunidade LGBTTT.
349
Entrevista realizada em 18 de novembro de 2013.
996
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Refiro-me a Teoria Queer, surgida nos anos 90, tendo como aporte teórico os
estudos de Focault350, Derrida351 e Judith Butler. Ambos trabalharam a questão da
desconstrução, não como algo a ser destruído, mas como aquilo que deve ser analisado e visto
sob novo olhar, sob uma nova ótica. De acordo com Derrida (1967, aput LOURO 2001, p.
08):

A lógica ocidental opera, tradicionalmente, através de binarismos: este é um


pensamento que elege e fixa como fundante ou como central uma idéia, uma
entidade ou um sujeito, determinando, a partir desse lugar, a posição do ‘outro’, o
seu oposto subordinado. (DERRIDA ,1967, aput LOURO 2001, p. 08)

Ou seja, uma descontrução a partir do binarismo existente que separa os opostos. E


essa desconstrução usada como uma estratégia metodológica a exemplo de Louro (2001, p. 8)
que ressalta “aposta que a análise poderia ser útil para desestabilizar binarismos lingüísticos e
conceituais (ainda que se trate de binarismos tão seguros como homem/mulher,
masculinidade/feminilidade)”. Para além dessa construção social, insurge uma nova
possibilidade de expressão sexual, através da Teoria Queer.
Assim é a proposta dessa inovadora Teoria Queer, que é uma palavra não traduzida
essencialmente pelos teóricos para o português, mas o sentido em que é utilizada refere-se a
tudo que foge da normalidade, é uma anormalidade em busca de expressar sua essência.
Naturalmente, seu campo de atuação não é restrito, considerando inclusive sua forte presença
em destacar, valorizar a existência de todas as formas de orientações sexuais que diferem da
heteronormatividade.
Os estudos queer encontram poder de atuação nessa intercessão com as patologias,
uma transgressão que incomoda a heteronormatividade, sem dúvida, as exclusões sociais,
acontecem, naturalizam-se. Desde modo, ser queer é enfrentar toda uma sociedade que
propaga como correto a relação masculino/feminino; homem/mulher. Ainda segundo Louro
(2004, aput MIRANDA; GARCIA, 2012, p. 1).

350
Para este os queer incorporaram a analítica do poder, daí em suas obras o poder não ser algo que se possui ou
se delimita, mas que se exerce ou ao qual se é submetido em uma situação permanentemente dinâmica em
termos históricos e culturais. Obra: História da Sexualidade I: A vontade do saber (1976).
351
Com a obra gramatologia (1967).
997
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Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da


sexualidade desviante- homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o
excêntrico que não deseja ser integrado e muito menos tolerado. Queer é um jeito de
pensar e de ser que não aspira ao centro e nem o quer como referencias; um jeito de
pensar que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto
da ambiguidade, do entre lugares, do indecidível. Queer é um corpo estranho que
incomoda perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2004, aput MIRANDA; GARCIA,
2012, p. 1).

Importante também lembrar que os estudos Queer também tiveram uma relação com
a AIDS, onde a partir de sua política emergiu uma crítica que estava em oposição ao
movimento gay e lésbico, uma vez que este procurava se adequar aos padrões normativos. E
nessa mesma época (anos 90) no Brasil ocorreu um diálogo com o Estado na criação de um
programa assistencial de AIDS. Segundo Miskolci:

Graças às reflexões de Foucault sobre o bio-poder, podemos compreender como a


epidemia inicial de HIV/AIDS teve o efeito de repatologizar a homossexualidade em
novos termos contribuindo para que certas identidades, vistas como perigo para a
saúde pública, passassem por um processo de politização controlada. Este processo,
que Larissa Pelúcio (2009) denomina apropriadamente de sidadanização352, ou seja,
a construção da cidadania a partir de interesses estatais epidemiológicos, terminou
por criar a bioidentidade estigmatizada do aidético reconfigurando nossa pirâmide
da respeitabilidade sexual (e social). (Miskolci, 2011 p. 49 e 50).

No sentido defendido por Miskolci como crítica as tentativas de adequação da


homossexualidade no Brasil através das políticas públicas que analisavam como público
promissor tanto a receptividade, como a transmissão da AIDS, tornou-se também mais um
motivo de pluralidade dessa teoria queer tão abrangente, pois nada mais terrível do que a
tentativa de adequação dos LGBTTT ao padrão heteronormativo vigente.
Outro ponto importante nessa pesquisa ainda com relação a teoria queer é o texto
considerado fundante, o livro a Epistemologia do Armário (1990) de Eve Kosofsky
Sedgwick. Nesta obra, a autora mostra como o armário é um regime de conhecimento

352
O termo sidadanização utiliza criticamente a relação entre SIDA (sigla em espanhol da AIDS) e processo de
construção da cidadania dentro de um modelo dirigido biopoliticamente. Para a análise de Pelúcio consulte o
capítulo “Prevenção e SIDAdanização” de seu livro Abjeção de Desejo: Uma etnografia travesti sobre o modelo
preventivo de AIDS (2009, p.105-134).
998
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marcado por um falso dilema entre estar dentro ou fora, pois de uma maneira ou outra se
mantém enredado em certas relações de poder353. E no Brasil o texto que foi um grande
impulso para as discussões do Queer foi o de Guacira Lopes Louro publicado em 2001, na
Revista Estudos Feministas, o artigo Teoria Queer: uma política pós - identitária para a
educação.
Epistemologicamente essa pesquisa procurou sob as verdades defendidas por essa
teoria uma aproximação, ou seja, apesar dos nossos sujeitos sociais não terem conhecimento
de que estão inseridos dentro de uma discussão profunda em defesa de suas orientações
sexuais, é notório as coincidências encontradas, desde a não aceitação pela família, sociedade
fazendo com que por muito tempo estes se mantivessem trancados literalmente no armário,
além, é claro, das tentativas de enveredarem-se por outros caminhos, uma insistência de
adequação ao padrão socialmente aceito.
No panorama de vida das três entrevistas, além das histórias repetidas, a forma de
tratamento dada a muitos sujeitos sociais quando declararam para suas famílias ter uma opção
sexual diferente. No caso do Rafinha e da Mirela que foram expulsos de casa. Isso nos faz
refletir, mais uma vez, que nem todas as famílias foram preparadas para este tipo de realidade,
para elas a heterossexualidade é o único padrão a ser seguido, o que de fato quando Butler
(2002, p.64) fala na performatividade, ela está se referindo justamente a isso: “De uma forma
resumida e incompleta, podemos dizer que a teoria da performatividade tenta entender como a
repetição das normas, muitas vezes feita de forma ritualizada, cria sujeitos que são o resultado
destas repetições.” Já a segunda entrevistada Renata nos deixou claro que a sua família apesar
de estranhar a mudança, não chegou a expulsá-la de casa, no entanto sentiu bastante
preconceito da sociedade de um modo geral, principalmente no trabalho. Em suma, Goffman
(1988) declara que:

A partir da subversão da ordem operada por uma relação homossexual, os


homossexuais são invisibilizados e estigmatizados socialmente. O estigma se refere
ao conjunto de atributos inscritos na identidade social de um indivíduo, os quais, em
uma interação, podem desacreditá-lo/depreciá-lo, tornando-o um indivíduo “menor”
socialmente. (GOFFMAN, 1988).

353
O capítulo central da obra foi publicado em português no dossiê Sexualidades Disparatadas da revista
cadernos pagu. Consulte Sedgwick (2007).
999
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Desse modo Goffman só vem confirmar a ideia de que a sociedade é preconceituosa,


mesmo tendo se flexibilizado frente à luta por espaços e direitos iguais de todos os cidadãos
ainda assim há muito a ser melhorado. Os estigmas ou até a invisibilidade dos homossexuais
no meio social e nos seus trabalhos precisam ser banidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de conhecer histórias belíssimas, sem dúvidas, foi única. Cada sujeito
social com suas trajetórias por vezes semelhantes, porém marcadas por momentos críticos
considerando as condições de enfrentamento para aceitação familiar, social, como um ser
humano normal.
A Teoria Queer muito contribuiu como principal reflexão do verdadeiro papel junto
ao público alvo pesquisado. Incontestavelmente a desnaturalização, como consequência, de
uma condição nova, ou seja, assumir o estranho, o ridículo, o excêntrico numa perspectiva
que merece ainda ser bastante aprofundada, como diria o prof. Colling (2010) “a teoria vem
para pensar na possibilidade entre os trânsitos”, em outras palavras, toda a comunidade
LGBTTT, sente-se contemplada por fazer parte de uma teoria que trabalha na perspectiva da
aceitabilidade da comunidade via sociedade.
A descontrução também foi outro termo que ganhou vida nessa pesquisa, pois o
binarismo (homem/mulher) não é a única condição existente. Outras possibilidades insurgem
demonstrando que no século XXI ainda há muito trabalho a ser feito.
As suas histórias contadas, representaram um sentimento de abertura da mesmice da
heteronormatividade354 e mergulhar em um contexto presente, mas muito teoricamente
fincado apenas nas discussões, sem um devido aprofundamento. E o campo de pesquisa foi
desse modo satisfatório, foi o limiar de todas as discussões realizadas em sala de aula, como
um momento de êxtase.

354
Por heteronormatividade, entende-se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo
casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família (esquema pai-mãe-
filho(a)(s)). Vê em (FOSTER, 2001, p. 19).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2008;
FOSTER, David W. Consideraciones sobre el estudio de la heteronormatividade en la
literatura latinoamericana. Letras: literatura e autoritarismo, Santa Maria, n. 22, jan./jun.
2001;
GUERRILHA, os sentidos do sexo. Salvador: Cultura e pensamento, 2010. Entrevista em
vídeo;
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio
de Janeiro, Guanabara Koogan, 1988;
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/ >. Acesso em 29 de agosto de 2015;
LOURO, Guacira Lopes: Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação. In.:
O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica,
2001;
MIRANDA, Olinson Coutinho; GARCIA, Paulo César. A Teoria Queer como
representação da cultura de uma minoria. III Encontro baiano de Cul- Estudos em cultura.
Bahia, 2012;
MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da
normalização. Porto Alegre. 2009;
SEDGWICK, Eve Kosofsky: A Epistemologia do armário. 1990.

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O CORPO E A SEXUALIDADE DA MULHER NO BRASIL

Kelma Lima Cardoso Leite 355 | kelma.leite@hotmail.com

INTRODUÇÃO
Embora o corpo físico seja o habitat da sexualidade e demarcador das fronteiras
daquilo que é sexualmente possível, a sexualidade é mais do que simplesmente matéria
corporal e está amalgamada a nossas crenças, ideologias e imaginação (Weeks, 2001, p. 38).
Machos e fêmeas biológicos são igualmente submetidos a processos de sociabilização sexual
no qual representações culturalmente específicas de masculinidade e feminilidade são
modeladas no transcurso da vida.
Neste artigo, tal corpo físico-psíquico ou sexualizado foi percebido de maneira
mais complexa em sua singularidade, isto é, o enfoque teórico limitou-se às questões
referentes às mulheres, afinal, do corpo e da sexualidade feminina dependem muitas coisas
importantes para o Estado e a ciência, a saber, a reprodução da espécie humana e o avanço de
determinadas patologias sexualmente transmissíveis.
Considerando ainda que a dimensão material e psíquica do corpo da mulher foi
marcada como que por uma espécie de tatuagem físico-simbólica, julgou-se pertinente o recuo
“no tempo à procura do regime de verdade, do modelo de razão que nos construiu dessa
maneira, que deu certo sentido a nossos corpos sexualizados” (Colling, 2004, p. 51). Com
essas questões em mente é que se pode dizer que o binômio corpo e sexualidade, cerne de
uma preocupação individual e foco de uma discussão claramente crítica e científica, merece
uma investigação teórica multidisciplinar pautada em autores de áreas afins de conhecimento,
a saber, história, sociologia e filosofia.

355
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará, mestrado e doutorado em
Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente é professora da Universidade Federal do Ceará no
departamento de Ciências Sociais.
1002
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O PAPEL DA IGREJA NA CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES DO CORPO E


DA SEXUALIDADE DA MULHER NO BRASIL COLÔNIA

No Brasil, entre os séculos XVI e XVIII “num cenário em que ciência e culpa se
misturavam, o corpo feminino era visto, tanto por pregadores da Igreja católica quanto por
médicos, como um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e o Diabo se digladiavam” (Priori,
2006, p. 78). Neste período, todo o conhecimento científico subjacente ao corpo feminino
dizia respeito ao órgão identificado pelo termo madre (útero). Os médicos eram obcecados em
entender o funcionamento anatômico da madre, mas o olhar extremamente funcionalista
dirigia-se tão somente ao seu caráter reprodutivo.
Tal conhecimento limitado da anatomia feminina reproduziu um imaginário
repleto de simplificações obscuras: o corpo era compreendido como uma espécie de
receptáculo de um depósito sagrado que precisava ser fertilizado para frutificar. Certamente
não é exagero sublinhar que o saber científico construído sobre pilastras da filosofia e
medicina ocidental da antiguidade relegou o corpo feminino a uma posição de inferioridade
em relação ao corpo masculino: “as mulheres só diferiam dos homens por serem machos
menos perfeitos, [...] situados hierarquicamente mais abaixo” (Bozon, 2004, p. 36).
Esta carência de avanço científico inscrevia o discurso médico no dogmatismo do
discurso religioso da igreja, “dentro do qual doença e cura estavam relacionadas ao maior ou
menor número de pecados cometidos pelo doente” (Priori, 2006, p. 80). Deste modo,
metrópole e colônia naufragavam em obscurantismo científico. Não por menos, Priori afirma
que a falta de conhecimento anatômico e fisiológico amalgamado às fantasias sobre o corpo
feminino abriram “espaço para que a ciência médica construísse um saber masculino e um
discurso de desconfiança em relação à mulher. A misoginia do período a empurrava para um
território onde o controle [de seu corpo] era exercido pelo médico, pai ou marido” (Priori,
2006, p. 84).
Assim, coube primariamente às instâncias eclesiásticas instigar e disseminar uma
verdadeira explosão discursiva em torno do sexo por meio de alguns documentos básicos de
educação feminina como, por exemplo, o estatuto elaborado pelo bispo Azeredo Coutinho,
publicado em 1798, cujo objetivo era proteger às meninas “dos defeitos ordinários do seu
1003
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sexo” (Araújo, 2006, p. 50).


Dado que foi a mulher que manteve o primeiro contato com as forças do mal
personificadas na serpente do jardim do Éden, amalgamou-se o estigma da transgressão a
própria natureza feminina. Consequentemente, o peso do pecado original exigia que sua
sexualidade fosse policiada e a própria igreja atentava para isso no confessionário, vigiando
incisivamente gestos, atos, sentimentos e até sonhos, como revelam os manuais de
confessores da época.
Contudo, o ideal do controle completo nunca foi alcançado. Apesar dos esforços
da igreja em domar pensamentos e ações, “nem todo mundo aceitava passivamente tamanha
interferência quando o fogo do desejo ardia pelo corpo ou quando as proibições passavam dos
limites aceitáveis em determinadas circunstâncias” (Araújo, 2006, p. 53). Consequentemente,
os desvios de norma não eram incomuns, principalmente, entre as mulheres casadas.
Paradoxalmente, além do mato, da rede e da cama, a igreja era um refúgio muito propício ao
pecado. Nesse reduto sacrossanto as mulheres faziam o sinal-da-cruz e pronunciavam num
tom fervoroso as mais ardentes declarações de amor (Araújo, 2006, p. 53).

O PAPEL DA CIÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES DO CORPO


E DA SEXUALIDADE DA MULHER NO BRASIL DO SÉCULO XIX
Diante do estímulo discursivo e incapacidade prática de conter os desejos da
carne, mesmo com a punição severa que incluía a agressão física desmedida e o assassinato
das mulheres transgressoras “nasce uma incitação política, econômica, técnica, a falar do
sexo. Viu-se a urgente necessidade de ‘levar em conta’ o sexo, a formular sobre ele um
discurso que não [fosse] unicamente o da moral, mas da racionalidade” (Foucault, 1988, p.
27). Dentro desta concepção emergente, a partir das primeiras décadas do século XIX, os
corpos de machos e fêmeas se tornam opostos inquestionáveis, horizontalmente ordenados.
Termos foram atribuídos para diferenciar o que até então permanecera confuso.
Obras influentes no período novecentista ao invés de motivar uma revolução nas
representações científicas do corpo da mulher impulsionaram reafirmações da sua natureza
biológica para desempenhar o papel de mãe e esposa. Encyclopédie de Diderot e Alembert,
Dictionnaire des sciences medicales de Panckouke, Système physique et moral de la femme de
1004
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P. Roussel e Histoire physiologique de la femme de Lachaise foram responsáveis pela difusão


do determinismo biológico feminino como principal paradigma científico.
De acordo com Rodhen, foi nesse cenário que apareceram e consolidaram-se “as
especialidades médicas dedicadas exclusivamente às mulheres e à demarcação da diferença
baseada no sexo” (Rohden, 2000, passim). A ginecologia se constituirá como uma área da
medicina voltada exclusivamente para o corpo da mulher e se afirmará a partir da premissa de
que o corpo e o papel social feminino dependiam da função procriativa. Esta ciência não
estava interessada na importância do homem na reprodução, mas, sim, em estabelecer uma
fronteira bem demarcada entre os dois sexos, alicerçada na afirmação da maternidade como o
destino da mulher.
Segundo Bozon, “ficou, também, estabelecido que o encontro dos
espermatozoides com o óvulo poderia se realizar sem o orgasmo feminino, perdendo este
último qualquer função fisiológica” (Bozon, 2004, p. 37). Tal irrelevância do orgasmo
feminino na reprodução marcará o discurso científico do século XIX em torno da sexualidade
feminina. Até o século XVIII, contrariando as teorias aristotélicas e ratificando as teorias
hipocratianas, muitos médicos concordavam com o postulado do esperma masculino e
feminino – “sangue elaborado, escumoso e portador de um pneuma” (Seixas, 1998, p. 44).
Igualmente, existiam aqueles que não discordavam das mulheres que asseguravam que o
esperma produzido por elas provinha do gozo e era imprescindível no momento da
fecundação. Para alguns médicos oitocentistas, portanto, não haveria nenhuma procriação sem
prazer dividido. Contudo, do século XIX em diante, com o estabelecimento da certeza de que
o orgasmo das mulheres era desnecessário no processo fecundativo,
o pudor, a possibilidade da continência sexual, a moderação, a ausência de desejo
passaram a ser considerados qualidades naturais [femininas], vinculados à perda da
antiga função do prazer feminino. Inversamente, o desejo, a agressividade, e a
atividade foram definidos como próprios do indivíduo masculino (Bozon, 2004, p.
37).

Fundem-se, então, “biologização” e “psicologização” da diferença e para


percorrer os domínios biológicos e psíquicos mais recônditos da sexualidade e,
respectivamente, as práticas indiciadas patológicas a ciência usará o mesmo recurso da igreja:
a confissão. Não obstante, não se “trata somente de dizer o que foi feito – o ato sexual – e

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como; mas de reconstituir nele e a seu redor, os pensamentos e as obsessões que o


acompanham, as imagens, os desejos, as modulações e a qualidade do prazer” (Foucault,
1988, p. 62).
A ciência não tratará tão somente daquilo que o sujeito gostaria de manter oculto,
antes focará aquilo que permanece oculto ao próprio sujeito “e que só se pode chegar
progressivamente e através de uma confissão da qual participam o interrogador e o
interrogado, cada um por seu lado” (Foucault, 1988, p. 65). A escuta atenta possibilitou então
que no século XIX emergisse uma medicina dedicada ao sexo apartada da medicina geral do
corpo. Esta proto-sexologia produziu em seus discursos um mapa conceitual da categoria
‘perversão sexual’ que permitiu que fossem especificados os desvios e os processos
patológicos considerados degenerativos da espécie humana.
Consequentemente, durante esta primeira fase da ciência sexual no Brasil
consolida-se o tripé perversão / hereditariedade / degenerescência. Os perversos do século
XIX ofereciam um grande perigo a sociedade, dado que a degeneração dos mesmos poderia
ser transmitida para os seus descendentes. Esta lista dos perversos incluía as mulheres pobres
e mundanas: prostitutas, masturbadoras, homossexuais, criminosas, ninfomaníacas, neuróticas
e histéricas. Tais figuras foram rotuladas também como hipersexuadas. A mulher
diagnosticada histérica, por exemplo, foi alvo de grande investimento científico, pois
intrigava pela pretendida ânsia sexual e devido à incorporação de uma patologia que
curiosamente não deixava rastros físicos. Os médicos explicavam o mal da histeria fazendo
referência à natureza feminina, mais especificamente, ao útero e aos nervos.
Percebe-se que o discurso médico hegemônico no século XIX enquadrou as
mulheres no âmbito dos maus instintos, convertendo as “particularidades” do seu sexo em
anomalias, sinais de uma monstruosidade singular. Elas foram responsabilizadas pela
propagação de estigmas psíquicos, físicos e orgânicos degenerativos que deveriam ser
higienizados.
Portanto, se durante o Brasil colônia a igreja interagia com o Estado, após a
independência a medicina fará isso visando à propagação de seus ideais higienistas, ideais
estes muito úteis ao Estado, pois preencherão a lacuna necessária para sustentar às
transformações políticas e sociais imprescindíveis num país liberto. Enquanto na colônia a
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educação sexual era informal e alicerçada, sobretudo, nos usos e costumes ditados pela Igreja
e naqueles que se estabeleciam como populares, no regime imperial e republicano ela passou
a ser normatizada pela moral médica e documentada em teses, livros e manuais defendidos
publicamente (Ribeiro, 2004, p. 17-18).
Vale ressaltar que a construção do saber científico em torno do corpo e da
sexualidade feminina no Brasil ocorreu num momento de intensas transformações sócio-
econômicas. A necessidade de sobrevivência estimulou muitas mulheres pobres a procurar as
fábricas e, sobretudo, outras modalidades de trabalho de baixa remuneração no âmbito da
economia informal: vendas ambulantes nas ruas e negócios de fundo de quintal (Wissenback,
1988, p. 12). Neste cenário no qual a economia informal era subterfúgio seguro misturavam-
se negras quitandeiras e mulheres caipiras nas ruas a vender gêneros alimentícios. Aquelas
provenientes das classes média ou alta, por sua vez, lutavam por maiores direitos: exigiam a
participação na vida pública e ingresso nas profissões masculinas. Enfim, por um motivo ou
outro, mulheres pobres e ricas não estavam confinadas somente ao ambiente privado do lar.
Mas ao passo que a mulher timidamente se sobressaia ao adentrar no espaço da
vida pública, seu direito de desfrutar experiências privadas era constantemente desrespeitado.
As mulheres pobres e carentes testemunhavam a invasão e destruição dos casebres, cortiços,
barracos e mucambos nos quais moravam. Não houve qualquer “hesitação nem sequer em
bombardear a matriz da cidade de Canudos, com a população civil de mulheres e crianças que
haviam se refugiado no seu interior” (Sevcenko, 1998, p. 30).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente vivemos uma época na qual as concepções sexológicas se tornaram


hegemônicas. A maioria das pessoas parece não discordar da democracia sexual que apoia-se
em três ideias bastante específicas e caras desde as últimas décadas do século XX até hoje:

a primeira é a do altruísmo social (donde o dever de produzir orgasmo no parceiro);


a segunda, é a do direito à felicidade (donde o dever de obter seu próprio orgasmo);
a terceira, inclui as virtudes públicas: tolerância, racionalidade (as relações sexuais
devem ser refletidas, calculadas, decididas e programadas segundo seus custos e
vantagens, aceitação da opinião pública (no caso, a dos especialistas) e liberdade de
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expressão sexual (na medida em que a liberdade de expressão é um dos direitos


fundamentais do homem e do cidadão) (Chauí, 1984, p. 171-172).

As mulheres modernas acabaram sendo condicionadas a pensar que “a


sexualidade se reduz ao ato do orgasmo”, considerado por elas sob o prisma da “democracia
sexual”, portanto, um direito que lhes é devido. Além do mais, elas acreditam veementemente
que para serem felizes e sexualmente realizadas precisam de muitos e bons orgasmos, ou seja,
precisam inquestionavelmente de prazer. Estes valores globalmente disseminados que
circundam a sexualidade feminina no século XXI são frutos do processo de personalização
que envolveu todas as sociedades influenciadas pela cultura ocidental hedonista, dentre elas a
sociedade brasileira.
Para Lipovetsky (2005) tal processo pode ser compreendido como um tipo de
controle social que nos arrancou da ordem disciplinar-revolucionária-convencional que
predominou até os anos cinquenta em muitos países desenvolvidos e no Brasil até os anos 70.
Logo, o “processo remete para a fratura da socialização disciplinar” e “corresponde à
instalação de uma sociedade flexível assente” tanto na informação e estimulação das
necessidades como no sexo. Caracteriza-se ainda pelo culto exacerbado da libertação pessoal,
ou seja, “viver livre e sem coação, escolher sem restrições o seu modo de existência”.
Segundo este mesmo autor, não há outro fato social mais significativo e nem aspiração e
desejo mais legítimo do que esse aos olhos dos nossos contemporâneos: o direito a liberdade
ilimitada.
Assim, a vida libertária ocupa “o lugar da retórica do dever; os temas da livre
manifestação individual e emancipação sexual tomaram a dianteira em relação aos parâmetros
de virtude”. Se outrora “dever” era um termo que se escrevia com letras maiúsculas; hoje
grafa-se com minúsculas” e predomina “uma sincrética conciliação entre dever e prazer”. De
fato, “em poucas décadas, passamos de uma civilização do dever a uma cultura da felicidade
subjetiva”, uma cultura do prazer (Lipovetsky, 2005, p. 25-30).
Em decorrência disso, “promoção de valores liberais na vida particular” e
“felicidade acima de tudo” são lemas imperativos na cultura pós-moderna, consequentemente,
“a sufocante ideologia que orienta nossa época” pode ser compreendida como “pós-moralista,
porque é predominantemente baseada nas coordenadas da felicidade e da auto-realização”.
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Deste modo, “edificou-se uma nova civilização, não mais voltada para refrear o desejo, mas,
ao contrário, para levá-lo à sua exacerbação extrema, despojando-o de qualquer conotação
negativa” (Lipovetsky, 2005, p. 29-31). A revolução clitoriana e a orgasmoterapia são
produtos da promoção dos valores hedonistas propagados pelo processo de personalização
que culminou na liberação sexual e revolução completa da moral sexual tradicional.
Pode-se, então, afirmar que a ordem científica moderna aposta na transformação
de todas as práticas corporais, sobretudo sexuais, em experiências visando à busca dos
prazeres ilimitados. Enfim, fazendo minhas as palavras de Sant’anna: “o poder que investe no
controle e na estimulação constantes do corpo torna o próprio prazer uma ordem sem exceção.
Entretanto, os fantasmas do par ‘controle-estimulação’ não poderiam deixar de ser,
justamente, a ameaça do descontrole e o pavor diante da desestimulação” (Sant’anna, 2005).

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REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE NOS ESPAÇOS


ESCOLARES: REFLEXÕES COM DOCENTES DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Fabiane Freire França

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo consiste em analisar os discursos de gênero, corpo e


sexualidade de docentes das cidades de Sarandi, Campo Mourão e Boa Esperança no Estado
do Paraná, entre os anos de 2008 e 2014. O período esteve marcado pelas inquietações que
tivemos diante das leis aprovadas e das polêmicas discussões acerca dos Planos Nacional,
Estaduais e Municipais de Educação que tiveram como horizonte teorizações que envolvem a
temida “ideologia de gênero”356. A seleção das cidades, se deve ao fato de estarem localizadas
as escolas onde realizamos cursos de extensão de curta duração (oito à quarenta horas)
discutindo as implicações das discussões de gênero e diversidade no espaço escolar.
A produção das desigualdades de gênero e sexualidade é decorrente de processos
sociais mais amplos que designa as posições dos sujeitos no que diz respeito ao seu corpo, à
sua sexualidade, raça, etnia, classe social, religião, etc. Em razão da importância política e
social da discussão sobre gênero, bem como os resultados de estudos contemporâneos
voltados à instituição escolar, foram levantadas as seguintes questões: como os conflitos
relacionados a gênero, corpo e sexualidade se manifestam nas relações escolares? Como
contribuir para a formação de professores/as da Educação Básica acerca destas temáticas?
Para tanto, realizamos discussões em grupos com o intuito de repensar as concepções que
os/as docentes têm de gênero, corpo e sexualidade em um contexto sócio-histórico que produz
relações de poder.
Nesse texto analisamos os/as discursos que foram coletados desses sujeitos a partir do

356
Como pesquisadora de gênero compreendo que esse termo foi produzido por grupos religiosos
fundamentalistas com o intuito de despolitizar os estudos na área. Embora esse não seja o foco desta pesquisa,
considero relevante um alerta para produzirmos ações que resistam a esse tipo de discurso.
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quadro referencial da Pesquisa Ação Participativa ao considerar que “nem todas as vozes que
falam em um grupo carregam a mesma legitimidade, segurança e poder para se fazer ouvir e
acolher” (COSTA, 2002, p. 92). Por isso, com base na literatura dos Estudos Culturais,
consideramos que o poder e o saber circulam em todas as relações interpessoais e grupais, não
estão fixos em um único ponto, o que nos possibilitou compreender as significações dos
discursos ao longo da existência e experiência dos sujeitos da pesquisa.
Neste viés, as identidades de gênero não são naturais, são construções humanas que
envolvem valores, sentimentos e desejos. Os resultados deste artigo apontaram um
movimento de opiniões e definições de gênero, corpo e sexualidade durante as reuniões em
grupos, em diferentes localidades e contextos. Manter o grupo em constante discussão e
conflito de ideias foi um recurso que se mostrou interessante para repensar os paradigmas e
práticas hegemônicas sobre a construção das identidades destes sujeitos.
Na sequência, apresentamos a relação entre gênero, corpo e sexualidade permeada por
relações de poder. No segundo momento explicitamos o desenvolvimento da pesquisa e os
procedimentos das reuniões em grupos com os/as docentes nos diferentes espaços e tempo.
Por fim selecionamos algumas falas dos professores e das professoras para evidenciar o
movimento da pesquisa e tecermos algumas considerações.

GÊNERO CORPO E SEXUALIDADE NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

Gênero, corpo e sexualidade são compreendidos aqui como categorias que apresentam
potencialidades em comum. Ancoradas em relações sociais, históricas, políticas, econômicas
e culturais essas categorias problematizam as relações de poder, de privilégios, hierarquias e
desigualdades mantidas por discursos naturais, biológicos, universais e essencialistas com o
intuito de desconstruí-los para evidenciar a produção histórica das identidades sociais de
homens e mulheres, em suas diversas e diferentes formas de se relacionar, sentir e ser.
A ideia do reconhecimento das diferenças passa pela necessidade da compreensão da
produção dos discursos. A compreensão desta premissa – o discurso – se ancora em pesquisas
foucaultianas, fonte de discussões também dos Estudos Culturais.

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Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é,
os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e
instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios
pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados na
aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta
como verdadeiro (FOUCAULT, 1980, p. 131).

Para o autor a produção da verdade está relacionada ao conceito de poder que deve ser
entendido como tática e não como privilégio que alguém possui ou do qual se "apropria". O
poder se apresenta como uma rede de relações conflituosas que fabrica corpos dóceis e reduz
as ações políticas contestatórias dos indivíduos, visto que é função do “poder disciplinar”
manter as práticas individuais e grupais sob controle social e aumentar sua utilidade
econômica.
Contudo, é importante lembrar que as identidades de homens e mulheres, por
exemplo, não são construídas somente por meio de estruturas de repressão, na medida em que
a capilarização e a circulação do poder permitem a eles e elas se “inventarem” por meio de
práticas, gestos, modos de ser e de agir não hegemônicos. Nesse sentido, são os efeitos do
poder circulante que produzem verdades legítimas e não legitimadas socialmente.
Para Alfredo Veiga-Neto (1995), a filosofia foucaultiana constitui-se um método de
indagação das relações humanas enquanto definidas por “verdades”, ou seja, de reflexão sobre
o pensado considerado verdadeiro, absoluto e imutável. Esta filosofia não se ocupa em chegar
a uma verdade, mas a uma prática de “pensar sobre o próprio pensamento”. Não afirma a
inexistência de verdades, mas desconfia delas, uma vez que podem e devem ser revistas e/ou
reformuladas para responder às necessidades históricas, sociais e culturais dos indivíduos e
grupos. A “verdade” pode ser compreendida como uma representação, como maneiras
singulares de ver o mundo, algumas das quais são consideradas legítimas, mais que outras,
mediante as relações de poder que se estabelecem entre os indivíduos nos grupos sociais.
Para Louro (1997), o conceito foucaultiano de poder lhe é útil para compreender o
conjunto de práticas e saberes produzido para o controle de homens e mulheres, entre estes, os
que definem lugares sociais diferenciados para gênero. Isso fica claro, por exemplo, nos
papéis atribuídos ao casamento, à procriação e à normalização de condutas de meninos e
meninas.

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Com base nos estudos foucaultianos e Estudos Culturais, podemos compreender


gênero corpo e sexualidade como fonte de micro-poderes que produzem aos grupos
estratégias de sobrevivência e dispositivos de resistência. Quando não há condição individual
ou grupal de resistência de mulheres e homens que não se enquadraram na norma corpo-
gênero-sexualidade, não há exercício de poder e sim uma relação de violência, física ou
simbólica.
Nesse sentido, Louro (1997) sinaliza que é preciso problematizar as representações
sociais de gênero, corpo e sexualidade incluindo as que são apresentadas no contexto escolar
por meio de um processo desconstrutivo que supõe o questionamento da identidade dos
sujeitos no que diz respeito a valores e normas. Um procedimento desconstrutivo não elimina
o pensamento hierárquico construído historicamente em relação a gênero, corpo e
sexualidade, entretanto, busca inseri-los nas relações de poder existentes e analisá-los
criticamente de forma a não serem reproduzidas posturas que legitimam as desigualdades de
qualquer ordem entre os indivíduos.
Nesse sentido e com base na bibliografia consultada, supomos que resulta como
necessária à escola a tarefa de problematizar a “fabricação” das subjetividades, dos
sentimentos, dos anseios e dos conflitos decorrentes das diferenças de gênero, raça, etnia e de
classe. A instituição escolar não apenas “fabrica” os indivíduos que a frequentam como é
também produzida por eles e pelas representações e sentidos que nela circulam (FRANÇA,
2009). Aos professores e professoras, cabe (re)pensar o conceito em outras perspectivas para
favorecer aos seus alunos e alunas a oportunidade de compartilhar deste movimento.

TRAJETÓRIAS DAS PESQUISAS

Para responder a problematização do presente artigo selecionamos algumas das falas


de diferentes encontros de discussão com os/as docentes para evidenciar suas representações
acerca do conteúdo abordado. Na pesquisa inicial convidamos professores/as da cidade de
Sarandi/PR que atuavam na Educação Básica em 2008. Essa pesquisa foi replicada em outras
regiões nos anos seguintes (Campo Mourão e Boa Esperança, 2010-2013). Ao todo

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conversamos com mais de 70 sujeitos que atuam diretamente nas escolas e têm interesse em
compreender mais sobre as questões de gênero e sexualidade.
Em uma tentativa de construir um quadro geral sobre as concepções dos professores e
das professoras sobre as temáticas na educação escolar, reunimos nesse texto as formações
discursivas que mais reverberaram no decorrer dos cursos. Problematizar as concepções de
gênero, corpo e sexualidade por docentes, tornou-se um dos princípios norteadores de nossa
pesquisa que se evidenciou na busca pela (des)instalação de certezas absolutizadas e
cristalizadas dos/as docentes do significado desses conceitos (FRANÇA, 2009).
Veiga Neto (1995), inspirado nos estudos foucaultianos, assinala que os discursos são
definidos como produtos das relações de poder que produzem e consolidam a hegemonia
cultural de determinados grupos sociais em detrimento de outros. Assim, do ponto de vista
científico, conhecer não significa descobrir algo que já existe, mas sim descrevê-lo, relatá-lo e
nomeá-lo por meio de uma posição temporal e espacial sempre provisória.
Tomando como parâmetro estudos de Marisa Vorraber Costa (2002), situamos nossas
experiências como uma pesquisa-ação participativa. De acordo com a autora, essa modalidade
de pesquisa dialoga também com a vertente dos Estudos Culturais, na medida em que
favorece a afirmação das identidades. É seu pressuposto que as narrativas sobre o “eu” e o
“outro” podem vir a se constituir formas de resistência e de contestação à narrativa
socialmente legitimada e hegemônica. Isso significa problematizar as vozes silenciadas como
o fazem vários estudos situados nesta corrente.
No intuito de contribuir com a formação de professores e de professoras maiores
reflexões acerca de gênero, corpo e sexualidade em sala de aula em suas dimensões de
reconhecimento e valorização, organizamos cursos de extensão em parceria com os Núcleo
Regional de Educação de Maringá (NRE). Em 2008 os dados foram coletados durante os
meses de março a junho de 2008 em uma escola pública da cidade de Sarandi, por meio de um
curso-convite e oito encontros coletivos aos sábados, das 8h às 12 h, correspondentes às
discussões de gênero e diversidade na escola, totalizando 32 horas/aula. Nesta pesquisa
trabalhamos com 12 docentes de 5ª e 6ª séries, - 8 professoras e 4 professores. Essa
configuração foi replicada nas demais cidades em outras etapas e modalidades educacionais,
com grupos maiores de docentes.
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Durante os encontros com os professores e as professoras, utilizamos dois


instrumentos de coleta de dados: (1) Entrevistas semiestruturadas, que permitiam aos sujeitos
maior flexibilidade para expressarem seus posicionamentos. (2) Intervenção Pedagógica com
o grupo de docentes. Consistiu em encontros com a apresentação de situações-problemas
acerca das temáticas para que os docentes apresentassem suas opiniões e reflexões. Em ambos
os processos as falas dos sujeitos foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra.
Neste artigo destacaremos somente alguns dos aspectos da intervenção pedagógica.

COMPREENSÃO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE COMO


SOCIAIS, HISTÓRICAS E PROVISÓRIAS

Atendendo ao referencial teórico da pesquisa, no transcorrer dos encontros, os


conceitos de gênero, corpo e sexualidade presentes nas discursos dos/as docentes e fornecidos
pela pesquisa foram submetidos a um processo de “problematização”, que significou
interrogar-se sobre a condição histórica, social, cultural e de poder de sua formação pessoal e
institucional. Para incitar as discussões do grupo, apresentamos situações-problema, por meio
de filmes, músicas, imagens e ocorrências no espaço da escola que permitissem a exploração
dos temas e estimulamos a formulação de hipóteses, explicações, argumentações e contra-
argumentações sobre as situações.
O conjunto dos grupos de discussões caracterizados como um processo de intervenção
pedagógica destacou: a cultura, a tradição e a família como constituintes da formação da
identidade do sujeito. O professor José357 comentou que a produção dos conceitos de gênero e
corpo, sexualidade e família na escola constituem um processo que se modifica de acordo
com o contexto e a cultura e depende da vivência dos indivíduos em seus respectivos grupos,
mencionou, “os conceitos que vai se formando, o padrão de família que era antigamente,
depois aparece dois pais com uma criança e duas mães com uma criança. O conceito que a
gente forma e tem até preconceito”.

357
Todos os nomes dos/as docentes são fictícios atendendo aos termos éticos da pesquisa.
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Com base nessas colocações, dois docentes se perguntaram sobre o que pode ser
considerado errado e certo na escola se cada época e lugar possuem culturas diferentes. O
professor Marcos se perguntou: “O que a sociedade coloca como correto. O que é correto? É
possível duas mães ou dois pais?”. O professor João lembra que atitudes e comportamentos
têm significados diferentes conforme o tempo e o espaço ao expressar que “um dado material
em uma época tem significados diferentes de hoje, (...) pegar na mão, por exemplo, há alguns
anos atrás nem era possível e hoje vemos o tanto que mudou, a gente vê isso na rua, isso
mostra a diferença”.
Ao lembrar do caráter provisório dos conceitos, os/as docentes abriram caminho para a
problematização de seus próprios conceitos, ou seja, interrogar-se sobre a lógica interna de
sua verdade, sua naturalidade, sua legitimidade histórica. Estamos nos referindo, aqui, ao
processo de (des)construção sugerido por Louro (1997; p. 32).

A desconstrução trabalha contra essa lógica, faz perceber que a oposição é


construída e não inerente e fixa. A desconstrução sugere que se busquem os
processos e as condições que estabeleceram os termos da polaridade. Supõe que se
historicize a polaridade e a hierarquia nela implícita.

Foram abordados diferentes contextos fundamentados na concepção de distintas


culturas, ou seja, que apesar das pessoas viverem em um mesmo contexto, em um mesmo
tempo, cada uma faz escolhas de acordo com seus interesses que vêm de uma cultura e,
mesmo dentro de uma própria cultura, a brasileira, por exemplo, há diferenças. São visões
diferentes que possibilitam caminhos diferenciados às pessoas. E isso deveria ser trabalhado
no currículo escolar, porque pode permitir que os sujeitos – tanto docentes quanto discentes –
percebam que há múltiplas formas de identidade de gênero, de corpo e sexualidade
(FRANÇA, 2009).
Destacamos que, mediante os contextos culturais, sociais, econômicos, religiosos que
cada sujeito vivencia, são tomadas decisões sobre o que cada um acha melhor para sua vida.
Neste sentido, é interessante possibilitar aos alunos e alunas que percebam os diferentes
caminhos que podem seguir e que suas decisões dependem muito de suas crenças. Durante a
intervenção foram realizadas questões como: o que vocês acham das relações de gênero na
Idade Média? Os sujeitos, a seguir, responderam: Professora Maria – “Eu vejo a submissão da
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mulher”. Professor José – “Autoritarismo religioso”; Professora Joana– “Os casamentos:: não
eram as mulheres que escolhiam, eram as famílias que definiam o parceiro pra casar”.
Professor Marcos – “Fidelidade feminina e não masculina”.
Nesta direção, foram apresentados alguns aspectos referentes à história das mulheres,
com o objetivo de possibilitar ao grupo o conhecimento de fatos importantes sobre a trajetória
de mulheres, uma história que não foi contada pelo discurso hegemônico. Esta estratégia não
teve o intuito de traçar uma história, cujo fim é o alcance de um mundo melhor, no qual as
mulheres, por meio de muitas “batalhas”, alcançariam inúmeras conquistas. Buscamos, em
contrapartida, focalizar alguns aspectos referentes à trajetória das mulheres que, naquele
momento, serviriam para a percepção de que toda história é narrada de acordo com as
relações de poder entre grupos sociais, estabelecida como legítima em determinado momento
histórico.
Ao proceder de tal forma, acreditamos na possibilidade de criar condições para fazê-
los/las compartilhar suas impressões e problematizar os significados atribuídos ao gênero, ao
corpo e a sexualidade. O relato do professor João sugeriu que a abordagem adotada pela
pesquisa atingiu o objetivo de resgatar, historicamente, o caminho de construção das
identidades de gênero. “Quando você falou em Idade Média, a primeira coisa que vem na
cabeça eram as questões das fotografias, não eram nem fotografias, eram imagens, não era
esse nosso padrão hoje né, era mais arredondado358, não era [...]”.
Essas verbalizações causaram risos e tumulto por parte do restante dos sujeitos como
demonstram os comentários a seguir: Professor Marcos – “As roupas da época não
valorizavam as curvas, eram muitas roupas, muito babadinho”; Professora Marta – “As
mulheres eram chamadas de ‘potranca’”; Professora Joana – “A gordura era sinônimo de
saúde”; Professor Marcos – “Meu pai falava que, se as mulheres tivessem ancas largas, seriam
boas ‘parideiras’ [...]”.
Assinalamos que a mulher da Idade Média era considerada perversa, por natureza, a
ponto de qualquer traição levá-la à condenação, enquanto a ocorrência do mesmo fato com o
homem era considerado natural. Foram suscitados comentários sobre a permanência desta
visão tantos séculos depois. Duas professoras chamaram a atenção para o fato de que a
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Refere-se aos corpos de mulheres nesse período histórico.
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identidade da mulher não mudou tão radicalmente quanto se poderia esperar. Professora
Marta – “Mas, hoje não mudou muito”; Professora Maria – “Hoje a mulher que trai é biscate”.
Tais considerações, segundo Louro (2007), têm levado a sociedade a atribuir maior
valor às características consideradas masculinas. Desde o início do século XX, a afirmação do
caráter social desses aspectos tornou-se fundamental para a luta e o desenvolvimento da teoria
feminista, e um indicador das possibilidades de mudanças nas relações de gênero.
Para a compreensão do processo histórico de naturalização do conceito de gênero,
questionamos o grupo sobre o caráter de verdade e falsidade do processo de formação a que
os sujeitos são submetidos: É possível dizer que um processo formativo é melhor ou não que
outro? A estas questões, os sujeitos responderam: Professora Cleide – “Eu acho que as coisas
vão se aprimorando, melhorando, mas é difícil, por exemplo, tem coisas de agora que não
seriam corretas naquela época”. Professora Mirtes – “Isso depende muito do contexto! Até
hoje não existe melhor educação [...] No Brasil mesmo, há uma diversidade muito grande”. O
grupo expressou por meio dessas respostas percepção da relatividade dos conceitos de “certo”
e “errado”, “verdadeiro” e “falso” de acordo com o momento histórico vivido.
Destacamos, novamente, os conceitos de gênero, corpo e sexualidade como construções
sociais que identificam os sujeitos como homens ou mulheres em suas variadas formas de ser, agir e
pensar, apontando que ambos podem ser masculinos/as e femininos/as ao mesmo tempo, com corpos e
modos de relacionar diversos e diferentes com o intuito de desconstruir os padrões hegemônicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola pode favorecer a compreensão mais elaborada dos conflitos e tensões de


gênero, corpo e sexualidade que perpassam as relações de poder da sociedade. Dessa
perspectiva, mesmo com limitações, o ambiente escolar pode propiciar questionamentos sobre
os conceitos considerados naturais que os sujeitos trazem de suas diferentes vivências e
experiências.
Consideramos os encontros com os grupos de docentes como um recurso de
aprendizagem capaz de favorecer a pluralidade de pontos de vistas sobre gênero, corpo e

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sexualidade por parte dos/as professores/as, sobretudo por meio de problematizações


suscitadas em grupo.
Buscamos promover a desinstalação das certezas do/as docentes e fazer com que se
questionassem em relação aos conflitos que vivenciam nas escolas com seus/suas alunos/as.
Por exemplo, o fato do sujeio ter um corpo feminilizado ou masculinizado não está
diretamente ligado às identidades de mulheres e homens heterossexuais, respectivamente,
uma vez que essas identidades são construídas pelos sujeitos em relação ao outro. Podem
existir mulheres masculinas e homens femininos com variados desejos e formas de se
relacionar afetivamente. Perceber essas questões é abrir possibilidades para ir além da prática
pedagógica escolar, é permitir o convívio de identidades diferentes em um processo de troca
de conhecimentos. Por isso a necessidade da articulação entre as várias maneiras de ser
homem, de ser mulher, de apresentar-se e de relacionar-se. Há um leque de conceitos que
precisam ser abordados, repensados, questionados.
Embora propostas como estas, dentre outras, apresentem limitações, os comentários
dos/as docentes apontaram a necessidade de levar ao contexto escolar: eventos, debates,
projetos e estudos para confrontar posturas preconceituosas, discriminatórias e machistas, que
ferem a integridade de identidades que fogem ao padrão hegemônico. Essa forma de
abordagem está longe de ser a única, tampouco a melhor, mas nos permite outros olhares à
prática docente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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identidade. In: COSTA, Marisa Vorraber. (Org.). Caminhos investigativos II: outros modos
de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 91-115.
FRANÇA, Fabiane Freire. A contribuição dos estudos de gênero à formação docente: uma
proposta de intervenção. 2009. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Estadual de Maringá. Maringá, PR, 2009.
FOUCAULT, Michel. Truth and power. In: C. Gordon (Ed.). Power/knowledge: Selected
interviews and other writings 1972-1977. Nova York, Pantheon Books, 1980: 109-133.

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LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-


estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, G. L. (Org.). O corpo
educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 7-34.
VEIGA-NETO, Alfredo. Michel Foucault e educação: há algo de novo sob o sol? In: VEIGA-
NETO, Alfredo. Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Sulina, 1995. p. 9-56.

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SUBJETIVAÇÃO DO CORPO FEMININO:


UM OLHAR ARQUEGENEALÓGICO SOBRE A MÍDIA

Úrsula Lima Brugge | ulb16@yahoo.com.br


Favianni da Silva

TERRITORIALIDADES

Para iniciarmos este artigo, cremos ser válido demarcarmos algumas das
territorialidades próprias à nossa pesquisa. Primeiro, o que estamos chamando de educação
midiática. Não estamos tratando aqui de pensar, por exemplo, a inserção de um aparelho
televisor dentro de uma sala de aula tradicional, ou seja, pensar os aparelhos midiáticos
enquanto recursos didáticos. Estamos tentando elucidar o caráter formativo da mídia; ela em
si enquanto um aparelho de ensino; produtora de subjetividades, formadora, educadora, por
fim.
Um segundo ponto importante a ser esclarecido é que, para nós, processos
educacionais remetem, necessariamente, a um processo de subjetivação. Por tanto, formação
e produção de subjetividades são aqui a mesma coisa.
O terceiro ponto remete às fontes estudadas nesta pesquisa.

Existe no mercado, atualmente, uma grande quantidade de títulos de revistas que são
classificados enquanto revistas femininas por se tratarem de publicações que visam dissertar a
respeito de temáticas circunscritas ao universo cultural feminino, tais como, moda, beleza,
saúde da mulher, sexo, relacionamentos, maternidade, família, comportamento etc.. Cláudia,
Marie Claire, Elle e Gloss são alguns exemplos desse tipo de publicação.

Entretanto, dentro desse rol de revistas classificadas como femininas, há um segmento


que, apesar de também se voltar centralmente a atender o público feminino, diferencia-se pelo
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tipo de temática que aborda: são revistas que se dedicam a assuntos que envolvem o
embelezamento e os cuidados com o corpo como, por exemplo, dietas, fitness, estética
corporal, cirurgias plásticas, procedimentos de medicina estética etc.. É nesse grupo que se
situam, por exemplo, Nova, Woman’s Health, Plástica & Beleza, Corpo a Corpo e Boa
Forma.

A marca de diferença desses dois tipos de revistas voltadas ao público feminino é


perceptível já na observação das capas. As do primeiro grupo têm capas que valorizam o rosto
das modelos, ao passo que revistas desse segundo grupo valoram o corpo da modelo – que
sempre traja apenas um biquíni, enfocando-se, por tanto, a forma corporal da amostra-corpo
do mês.

É justamente esse segundo grupo de revistas que interessa a este estudo;


principalmente, Corpo a Corpo, da editora Escala e, secundariamente, Boa Forma, da editora
Abril, por serem as duas revistas de maior circulação dentro segmento de revistas femininas.
Nossa amostra data de agosto de 2008 a agosto de 2009.

São duas revistas demasiado parecidas em suas temáticas e no modo como as


abordam; semelhanças essas que se refletem quando comparamos os dados de público-alvo,
perfil dos leitores, seções e, até mesmo, preço.

Vejamos, por exemplo, os dados obtidos nos sites das respectivas editoras temos: 51%
do público leitor de Corpo a Corpo encontra-se na faixa etária entre 20 e 39 anos; 89% são
mulheres e 51% são da classe econômica B. Já Boa Forma, 58% de seu público encontra-se
nessa faixa etária entre 20 e 39 anos; 83% são mulheres e 52% encontram-se também na faixa
econômica B.

Uma forma interessante de obtermos um olhar mais abrangente sobre essas duas
publicações é analisar como as próprias editoras resumem suas publicações. No site da editora
Abril, encontramos a seguinte descrição de Boa Forma:

BOA FORMA é a revista que mais entende de beleza.


Ao abordar assuntos como alimentação saudável, exercícios e qualidade de vida, ela
ajuda a leitora a entrar em forma, emagrecer, cuidar da pele, do cabelo e prevenir
doenças, propondo um estilo de vida mais saudável em todos os sentidos.
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Por sua vez, a editora Escala assim descreve e define Corpo a Corpo:

Corpo a Corpo é a mais completa revista de beleza do País, pois valoriza a essência
de cada mulher. Em suas páginas, a leitora encontrará informações para ter uma
silhueta definida e um visual mais bonito e saudável, com dicas de moda, cabelo,
maquiagem e cuidados com a pele. Uma revista atual, feita para a mulher que sabe o
quanto a aparência é fundamental na vida moderna.
Corpo a Corpo é a única revista que trata da beleza – [sic] como um todo – [sic]
da mulher brasileira.
Em suas páginas, a leitora encontra todas as informações que necessita para manter
uma alimentação saudável e balanceada; escolher uma atividade física que lhe
transmita prazer e resulte num corpo definido e bem torneado; ter acesso às últimas
novidades e tecnologias que lhe ajudarão a conquistar uma pele mais hidratada,
protegida e, consequentemente, mais jovem e resplandecente - bem como um cabelo
sedoso, brilhante e com o corte e a cor da moda.
Corpo a Corpo é a revista que acredita que a beleza natural de cada mulher deve ser
valorizada e realçada, para elevar a sua auto-estima e seu bem-estar. Afinal, quem
não fica mais bonita e exala felicidade quando se sente feliz consigo mesma?

Demarcadas as fontes, chegamos então ao quarto e último ponto territorialização de nosso


estudo: a metodologia. O referencial teórico-metodológico que utilizamos como suporte desta
pesquisa é a arqueogenealogia de inspiração foucaultiana, entendendo esta fundamentalmente
como uma confluência dos dois momentos da pesquisa de Michel Foucault: o arqueológico e
o genealógico.

Existe, porém, uma forte dificuldade de se sistematizar uma divisão da obra


foucaultiana. Mais comumente se subdivide a mesma em três momentos: o primeiro, o
arqueológico, no qual Foucault estaria voltado à questão do saber; o segundo, o genealógico,
cujo centro seria a questão do poder; e, por fim, o terceiro, o arqueogenealógico, que seria o
momento em que as pesquisas foucaultianas estariam voltadas à problemática da ética. Mas,
como ressalta Veiga-Neto (2007):

(…) na terceira fase não há um método novo; a ética é um campo de


problematizações que se vale um pouco da arqueologia e muito da genealogia, o
que leva alguns a falar que, no terceiro Foucault, o método é arqueogenealógico
(VEIGA-NETO, 2007, p.37).

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Vale ressaltar que ainda que seja comum se subdividir a obra de Foucault nesses
momentos, não é correto afirmar que eles se opõem, se negam ou mesmo que a genealogia
seria um momento de superação em relação à arqueologia. Mas, independente dessas
dificuldades de sistematizações, buscaremos trabalhar com algumas de suas ferramentas
conceituais, reconhecendo em sua filosofia um campo fértil onde podemos encontrar
elementos para pensar a problemática por nós proposta.

Na busca de uma orientação geral deste trabalho, passamos agora a discorrer sobre a
divisão mais comum da obra foucaultiana, reconhecendo, portanto, a arqueologia como
momento inicial da pesquisa de Foucault. Neste período, segundo Machado (1979),

Seu objetivo não é principalmente descrever as compatibilidades e


incompatibilidades entre saberes a partir da configuração de suas positividades; o
que pretende é, em última análise, explicar o aparecimento de saberes a partir de
condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, que imanentes
a eles – pois não se trata de considerá-los como efeito ou resultante – os situam
como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente estratégica
(MACHADO, 1979, p. 10)

Já no período genealógico, Foucault abrange uma dimensão que, se até então não
estava completamente ausente, pelo menos fora pouco explorada: o poder. Suas análises
centraram-se nos mecanismos, efeitos, relações e dispositivos de poder. Segundo Machado
(Ibid., Idem), a arqueologia buscava estabelecer a constituição dos saberes, respondendo,
assim, ao como de seu aparecimento e de suas transformações. Já a genealogia, centralizando-
se sobre os percalços do poder, tinha como ponto de partida a questão do porquê desse
aparecimento e dessas transformações. Complementa o autor:

(…) é essa análise do porquê dos saberes, que pretende explicar sua existência e
suas transformações situando-os como peça de relações de poder ou incluindo-os
em um dispositivo político é o que Foucault irá chamar de genealogia (Ibid. Idem).

Do ponto de vista da arqueogenealogia, o sujeito é compreendido, fundamentalmente,


enquanto um efeito das relações de saber-poder. Saber que se produz a respeito deste corpo e
que o subjetivará. Poder que atravessa seu corpo e mente, produzindo-a enquanto mulher

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moderna. Ademais, nossa caixa de ferramentas será composta de algumas noções que se têm
mostrado centrais para operacionalização e análise da nossa pesquisa: prática discursiva;
regime de visibilidade-dizibilidade; processos de subjetivação e regime de verdade.
Para Foucault (1995), os discursos devem ser tratados enquanto práticas discursivas,
ou seja, práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Os discursos – em sua
materialidade constituidora da realidade – são sempre uma produção social, cultural e
histórica assim como os objetos que informam.
Entendemos, portanto, a subjetividade feminina, o corpo feminino como uma produção
discursiva e que noções como a do corpo belo, corpo magro, malhado e saudável são
igualmente produções sociais, culturais e históricas uma vez que envoltas em discursos. É
através do discurso – no caso específico desta pesquisa, o midiático – que a subjetividade
feminina, o corpo feminino e a percepção que a mulher moderna tem do seu próprio corpo são
produzidos. Em seções como a Contato Direto da revista Corpo a Corpo encontramos falas
de leitoras que servem como elementos para pensarmos essa relação entre o discurso
midiático e a produção dos corpos femininos:

“Nos dias de hoje, nós mulheres temos que dividir nosso tempo com trabalho,
marido, filhos, amigos, família, sobrando pouco tempo para nós mesmas. Nesses
dois anos em que leio a Corpo a Corpo, sempre tento seguir as dicas e posso dizer
que já obtive grandes resultados… Adoro a revista que abrange todos os temas que
uma mulher moderna precisa saber” (CORPO A CORPO, mar. 2009).

“A Corpo a Corpo é indispensável na minha vida pessoal e na profissional. Sou


cabeleireira e maquiadora e sempre estou atualizada, linda e em forma, por causa das
orientações, dicas e truques das matérias. E ainda deixo minhas clientes muito mais
bonitas, modernas e estilosas! É, sem dúvida, meu livro de cabeceira!… Obrigada
por fazer parte da minha vida!” (CORPO A CORPO, mai. 2009).

As falas das mulheres nesses depoimentos nos mostram claramente como a mídia, ou
melhor, como os discursos midiáticos investidos de saberes e poderes fazem circular regimes
de verdade subjetivando-as e as produzindo enquanto mulheres modernas, elucidando aí o
caráter normativo-prescritivo – ou educacional – da mídia: ela cria normas – cria ideais,
desejos e necessidades – ao mesmo tempo em que prescreve – através de dicas, imperativos e
receitas – como alcançar tais objetivos.

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Seguindo a perspectiva arqueogenealógica, podemos afirmar a idéia de que o corpo


para ser belo necessariamente precisa ser magro, malhado e saudável e que aceitamos hoje
como uma forma de verdade evidente e, portanto, inquestionável, na realidade é uma
construção histórica circunscrita ao nosso presente. Ou seja, o corpo feminino nem sempre foi
como se apresenta hoje e não necessariamente assim o será no futuro.
A produção da subjetividade passa na contemporaneidade, necessariamente, por um
regime verdade: verdades advindas da ciência, do desenvolvimento tecnológico e de sua
produção e profusão midiática. Hoje a subjetividade, no caso específico desta investigação, a
subjetividade feminina, o corpo feminino e a sua produção está circunscrito a um regime de
verdade que a mídia faz circular.
Essa produção que podemos denominar de produção midiática imagético-discursiva do
corpo feminino na contemporaneidade está articulada a uma noção central em nossa pesquisa:
processo de subjetivação. O termo subjetivação designa um processo pelo qual se obtém a
constituição de um sujeito. Os modos ou processos de subjetivação ocorrem, de um lado, a
partir dos modos de objetivação (práticas de objetivação) que transformam seres humanos em
sujeitos (significando que há somente sujeitos objetivados); de outro lado, a partir da relação
que os sujeitos estabelecem consigo mesmos, por meio de certo número de técnicas, que
permite a constituição do sujeito e de sua própria existência.
A idéia de produção midiática imagético-discursiva do corpo feminino está agenciada à
noção de regime de visibilidade-dizibilidade, noção está central para a análise dos discursos
em questão. Do ponto de vista dos procedimentos analíticos da pesquisa, podemos dar um
exemplo a partir das capas da revista Corpo a Corpo. É importante assinalar que a
combinação entre as imagens e os enunciados, ou seja, o par visibilidade-dizibilidade produz
efeitos de verdade sobre os ideais de corpo feminino, como o do corpo belo, do corpo
saudável ou do corpo desejável.
Este par imagem-enunciado, visibilidade-dizibilidade converge para o que Foucault
chama de discurso. Discurso, para Foucault, não se constitui apenas de enunciados; para ele, a
coisa dita e a coisa vista são indissociáveis, não-hierarquizáveis e, ambas produzem efeitos de
verdade; ambas possuem sua materialidade, sua força produtora de realidades.
Ao falarmos de regime de visibilidade-dizibilidade do corpo, estamos empreendendo
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um esforço de elucidar e problematizar as imagens, os enunciados que produzem efeitos de


verdade sobre o corpo feminino e que por isso mesmo nos permitem ver e falar do corpo de
forma diferenciada de outros contextos histórico-sociais. O fato é que hoje as práticas
imagético-discursivas veiculadas pela mídia ao fazer circular imagens-enunciados como do
corpo malhado, o corpo turbinado, o corpo saudável, o corpo desejável acabam por
conformar esse regime existente entre o que é visível e o que é dizível convergindo para a
criação de um regime de verdade – verdades naturalizadas nos ideais do corpo feminino.
Na sociedade atual, precisamente através do discurso midiático, observamos a profusão
e repetição de determinados ideais que envolvem e investem a subjetividade feminina – como
a beleza, a magreza, a juventude, a auto-confiança, auto-estima, a saúde, a felicidade – e
técnicas de produção do corpo – como as cirurgias estéticas, as dietas, os exercícios físicos –
que sugerem a produção do corpo feminino. Ser uma mulher moderna parece implicar
necessariamente o uso de tais técnicas a fim de se alcançar tais ideais.
Assim, o critério de seleção dos enunciados e imagens a serem utilizados nesta
pesquisa será a repetição, pois, seguindo um movimento da própria arqueogenealogia,
entendemos que é nessa insistência, nessa regularidade em que aparecem tais discursos, nessa
constância que um regime de verdade se estabelece.
Desse modo, no trabalho operativo focaremos as diversas modalidades enunciativas
que são faladas, onde podem ser encontradas as visibilidades-dizibilidades nos discursos da
mídia (nas revistas, as imagens e os enunciados); as vozes dos especialistas autorizados
(médicos, educadores físicos, nutricionistas, profissionais da beleza etc.); os vários campos de
saber ou espaços de produção de discursos que disputam uma significação (medicina,
educação física, nutrição); as práticas a que as enunciações fazem referência (cirurgias
plásticas, dietas, exercícios físicos) entre outras que surgirão – caso surjam – à medida que a
pesquisa for sendo desenvolvida.

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS DADOS…

De modo ilustrativo, lançamos mão de alguns encartes de matéria presentes em nas


revistas Corpo a Corpo e Boa Forma as quais têm por público alvo o feminino e cujos
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objetivos são atender aos anseios e dúvidas das mulheres contemporâneas no que se refere a
seu corpo.

Na matéria intitulada 1, 2, 3 adeus barriga da Corpo a Corpo, a revista expõe os sete


mandamentos de uma superdesintoxicação nos quais estão mesclados uma pitada de dicas
com uma super-dosagem de imperativos, a fim de ensinar como a leitora deve proceder e
condicionar seu comportamento ao longo da jornada rumo a perda de barriga:

7 MANDAMENTOS DA JORNADA – Dicas para ajudá-la a simplificar e garantir


o sucesso da sua iluminação!
1 estarás preparada. Certifique-se de que tem todas as frutas, os legumes e as
verduras necessários antes de começar.
2 deixarás a geladeira vazia. Realmente, esta não é uma tarefa fácil quando você
mora com outras pessoas. Mas a intenção aqui é acabar com toda a comida para só
depois fazer as compras para o programa e iniciá-lo. Assim, você não ficará adiando
a desintoxicação com a desculpa de que a comida na geladeira irá estragar.
3 irás preparar-te mentalmente. Tão importante quanto fazer as compras com
antecedência, é programar a sua cabeça para o plano. Procure ler sobre os benefícios
que uma desintoxicação pode trazer a sua mente e ao seu físico.
4 terás uma boa jarra. Para manter vitaminas, minerais e enzimas dos alimentos é
essencial bloquear a entrada de oxigênio e luz o máximo possível.
5 esvaziarás sua agenda noturna. Como o próprio nome da jornada diz, ela é da
iluminação. Então, é aconselhável, ao menos durante três esses três dias, cancelar
seus compromissos noturnos para dar à sua mente e ao seu corpo o descanso
merecido.
6 desligarás a tevê. Três dias sem televisão? Para alguns, é simples. Mas para outros
é a morte. Vários estudos mostram que queimamos menos calorias quando ficamos
na frente da telinha e, para piorar, é comprovado também que as pessoas tendem a
pensar mais em comida quando estão hipnotizadas por ela.
7 dormirás, dormirás e dormirás. Atualmente parece quase um crime admitir
cansaço. Aqui você pode e deve se dar a esse luxo. Não estranhe se você se sentir
mais fatigada nos dois primeiros dias, pois é normal. Afinal, seu corpo estará livre
de falsos estimulantes, como cafeína e açúcar refinado. Então, permita-se dormir!
(CÉSAR, 2008, p.148)

Esse encarte é excelente como ponto de partida de nossas reflexões a respeito da


função didática do discurso midiático. Rico em imperativos, esse enunciado nos revela alguns
dos artifícios desse tipo de discurso: antes de tudo, dita o que a mulher deve desejar ser (no
caso, magra) e logo em seguida lhe oferece o caminho, o como conseguir atingir tais fins (os
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sete mandamentos). Ou seja, cria-lhe uma necessidade e condiciona seu comportamento para
atingi-lo.

Seguindo com a análise, deparamo-nos com uma infinitude de investimentos sobre o


corpo da mulher que claramente desejam moldá-lo, produzi-lo, subjetivá-lo. Percebemos que
ademais do discurso, as imagens veiculadas são de imensa riqueza para compreendermos
esses investimentos de poder; essa espécie de jogo que tem como objetivo último produzir a
subjetividade da mulher contemporânea de uma dada forma. Percebemos que as imagens
unem-se aos discursos completando-os: elas são usadas como uma espécie de concretude do
que em outro momento foi ou será dito.
Sempre há algo a ser feito, a ser melhorado; a perfeição em si não existe, entretanto,
pode vir a ser alcançada desde que se siga a única via de acesso para tal: os investimentos
tecnológicos sobre o corpo – tais como, cirurgias plásticas, medicina estética, dietas,
cosméticos, cremes, regimes, fármacos para emagrecer etc.. Como ilustração disso, vejamos a
matéria Turbinada? Sim, naturalmente… presente na revista Boa Forma:

Ao ver sua imagem refletida no espelho, você gosta do conjunto. Mas é claro que,
como toda mulher, está sempre em busca de um retoque aqui, outro ali. É por isso
que passar por uma cirurgia para aumentar o tamanho dos seios está entre os seus
projetos. Junte-se ao time: o implante mamário é a segunda cirurgia estética mais
realizada no Brasil e só fica atrás da lipoaspiração. “O procedimento ganhou
popularidade porque a técnica evoluiu muito, o que garante menos risco e um
resultado extremamente natural”, diz Alan Landecker, cirurgião plástico de São
Paulo e autor do livro Cirurgia Plástica – Manual do Paciente (BBD Editora). Se
você está realmente decidida, saiba que vai precisar bancar a repórter
investigativa: converse com as amigas que já turbinaram o visual e, claro, escolha
um bom cirurgião plástico (…) (Lublinski, 2008, p.108).

Dentro desse mesmo encarte observamos o papel da ciência como recurso de


validação dos investimentos sobre o corpo aplicados. A ciência em si é um agente de
subjetivação dos corpos, pois ela é geralmente chamada a fim de dar fidedignidade ao que é
dito a partir das falas de seus interlocutores – educadores físicos, médicos, nutricionistas,
entre outros –, impondo-se, como via de conhecimento de qualidade ao mesmo tempo em que
ela própria vende seu discurso de forma tão midiática como qualquer outro produto.

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Mas não é apenas a ciência quem é convocada pela mídia como recurso de validação
do que é dito. As próprias leitoras entram nessa trama como agentes do investimento. As
seções de cartas e e-mails enviados às revistas são um dos recursos mais poderosos de
legitimação dos conteúdos publicados:

Adorei a matéria “Seu cabelo com final feliz”. Eu tenho fios finos e a técnica que
vocês ensinaram para dar volume é sensacional.

A solução mostrada na reportagem para acabar com o estilo lambido de quem tem
cabelo liso e ralo funciona mesmo. Além disso, achei bem fácil fazer (BILTOVENI;
RIBEIRO, 2009, p. 13)

Quanto ao uso de cosméticos, vale chamar atenção que a mídia além de dizer o que
caracteriza um cosmético como bom ou ruim, ela ensina como lidar com esses produtos,
como utilizá-los, que marcas comprar, que tonalidades preferir, etc.. Ou seja, ela ensina o que
e como usar:

ACERTE O ALVO! A pele possui necessidades diferentes em cada região. Isso


ocorre por causa da idade, dos hábitos de vida, do clima e até mesmo do ciclo
hormonal. Veja como atender à sua beleza (NEVES, 2008, p. 94)

Enfim, as revistas se propõem a ensinar o corpo a ser tornar moderno. Propõem-se a


ser uma válida via de informação, mas principalmente, de ensino. Definitivamente,
limitarmos nossas perspectivas a respeito da educação aos limites dos muros escolares é
fechar nossos olhos a toda essa complexidade por que o fenômeno educacional vem passando
ao longo das últimas décadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRL. PubliAbril. Disponível em:


<http://publicidade.abril.com.br/homes.php?MARCA=7>. Acesso em 28 de setembro. 2009.
BILTOVENI, Christina; RIBEIRO, Sandra Cristina. Boa Forma: São Paulo, ano 24, n.263,
p.13, fev.2009.
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CÉSAR, Karine. 1, 2, 3 adeus barriga. Corpo a Corpo: São Paulo, ano 21, n.238, p. 148, out.
2008.
ESCALA. MdiaKit: Disponível em:
<http://www.escala.com.br/midiakit/detalhe.asp?revista=2>. Acesso em: 28 de setembro de
2009.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Editora, 1995.
LUBLINSKI, Débora. Turbinada? Sim, naturalmente… . Boa Forma. São Paulo, ano 23, n. 9,
p. 108, set. 2008.
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica
do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. 13ª.ed.
NEVES, Kátia. Acerte no alvo!. Corpo a Corpo: São Paulo, ano 21, n. 238, p. 94, out. 2008.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & A Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 2ª ed.

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A PRÁTICA EDUCATIVA DE JULIETA PORDEUS GADELHA: GÊNERO,


CULTURA E EDUCAÇÃO NO CONTEÚDO DE SUAS OBRAS

Ana Paula Mendes Silva 359 | paula1bb@hotmail.com


Maria Arisnete Câmara de Morais 360

INTRODUÇÃO
O presente trabalho é fruto de nossa tese de Doutorado, que está em andamento, e faz
parte do Grupo de Pesquisa História da Educação, Literatura e Gênero, do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação da
professora Maria Arisnete Câmara de Morais.
A pesquisa tem como objeto de estudo a escritora paraibana Julieta Pordeus Gadelha e
como objetivo analisar sua prática educativa, através das obras publicadas Crônicas para
mamãe ler (1965) e Antes que ninguém conte (1986).
Partimos da compreensão de que a prática educativa não diz respeito somente a prática
pedagógica, é um conceito mais amplo, por isso, se constitui como um fenômeno social. Para
Libâneo (1994, p. 16) “A educação - ou seja, a prática educativa – é um fenômeno social e
universal, sendo uma atividade humana necessária à existência e funcionamento de todas as
sociedades”.
O desejo de escrever sobre Julieta Pordeus é antigo e nos acompanha desde a vida
acadêmica quando cursávamos a graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de
Campina Grande, no período compreendido de 2004 a 2008. Se por um sem número de

359
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
campus I, Natal – RN. E-mail: paula1bb@hotmail.com
360
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
campus I, Natal – RN; Coordenadora do Grupo de Pesquisa História da Educação, Literatura e Gênero/CNPq. E-
mail: arisnete@terra.com.br
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motivos, esse desejo foi adiado, agora se concretiza por meio desta tese de doutoramento.
Esse desejo, entretanto, percorreu uma trajetória que leva ao objeto de estudo do
presente trabalho. Por isso, relatar como e por que escrevemos sobre Julieta Pordeus, faz parte
de uma tentativa de tornar melhor a compreensão do texto para o leitor.
O primeiro contato com a escritora se deu na infância quando estudávamos no Colégio
Nossa Senhora Auxiliadora, uma instituição filantrópica da rede privada de ensino, dirigida
pelas irmãs da Congregação de Santa Teresa de Jesus do Crato – Ceará.
Naquela época, década de 1990, a partir da terceira série do Primeiro Grau,
começamos a estudar sobre a História do município, nas aulas de Estudos Sociais. De acordo
com a legislação brasileira vigente, o parecer n. 853/71, afirmava que o objetivo do
componente curricular Estudos Sociais era “a integração espaço-temporal e social do
educando em âmbitos gradativamente mais amplos” (BRASIL, 1971, p. 179).
Assim, as instituições de ensino atendiam a essa proposta curricular e a uma definição
metodológica baseada em círculos concêntricos “que partiam do mais próximo como a família
e o bairro e se estendiam até o país e o mundo” (SANTOS & SILVA, 1999).
Nesse componente curricular, estudamos sobre a historiografia e composição do
município de Sousa, localizado no Sertão da Paraíba, local em que morávamos. Eram essas
aulas, que nos proporcionavam o conhecimento sobre a história de Sousa, os costumes, os
primeiros habitantes, os acontecimentos religiosos e de cunho político, os monumentos hoje
tombados pelo patrimônio histórico.
Foram a partir desses estudos que tivemos contato com a obra Antes que Ninguém
Conte de 1986, da escritora sousense Julieta Pordeus Gadelha. Essa obra era adotada como
referência no colégio para o estudo do município.
A partir de então, passamos a admirar o trabalho da escritora, nos debruçando cada vez
mais, em suas obras, em suas publicações. Acreditamos que o fato de ser uma mulher, a
autora de um livro que traz a história como escrita, é um fator relevante, pois, na própria
história, a visibilidade de autoras desse tipo de gênero textual, história de um lugar, é muito
pouca.
Para Almeida, (1998, p. 45), “a História, como disciplina antiga e elitista, sempre foi
escrita por homens”. A título de exemplo, podemos citar os clássicos autores Nelson Piletti
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(1990) e Claudino Piletti (1990), Gianpaolo Dorigo (1982), Claudio Vicentino (1984), que
discutem sobre História Geral e História do Brasil.
Por esse e tantos outros motivos o desejo de analisar Julieta Pordeus Gadelha que
através de suas obras, provocou uma valorização sobre a historiografia do município de
Sousa, nos acompanha.
Esse desejo vem também, de nossa condição de ser mulher, que mesmo vivendo no
século XXI, ainda sofre as amarras do preconceito do gênero, do “sexo frágil”, de ser
professora e de querer fazer a diferença entre as mulheres ainda submissas, mesmo que seja
dentro das nossas aulas e nas pesquisas científicas.

METODOLOGIA
Os caminhos metodológicos da presente pesquisa indicam que a prática educativa da
escritora Julieta Pordeus pressupõe a utilização do enfoque metodológico da História Cultural.
História Cultural que, na concepção de Peter Burke, a partir da década de 1970, amplia
os horizontes da pesquisa historiográfica ao incluir novos objetos de estudo, novas fontes de
pesquisa e maneiras de analisar essas fontes. Esse novo paradigma de pesquisa abriu
possibilidades para o uso de conceitos como práticas, representações e culturas que foram
utilizados nessa pesquisa.
Ao analisarmos a prática educativa da escritora Julieta Gadelha, percebemos uma
heterogeneidade de significados, composto por crenças, valores, conceitos, preconceitos,
visão crítica, posicionamento, cultura e aspectos sociais que fazem parte de um jogo de
práticas e representações elencados nos seus modos de ser e fazer educação. De acordo com
Libâneo, (1994, p. 17)
A prática educativa não é apenas uma exigência da vida em sociedade, mas também
o processo de prover os indivíduos dos conhecimentos e experiências culturais que
os tornam aptos a atuar no meio social e a transformá-los em função de necessidades
econômicas, sociais e políticas da coletividade.

Assim, fundamentada na perspectiva de Libâneo, nos propusemos, nesse trabalho, em


analisar a prática educativa de Julieta Pordeus Gadelha, através de suas obras que rememoram
o cotidiano sousense
desde o surgimento das primeiras sesmarias, das primeiras glebas de terra; desde o
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surgimento do primeiro automóvel na cidade nos primórdios do século passado


quando nem estradas haviam, por aqui rodavam carros Ford e motocicletas Harley-
Davidson. Julieta retratou em seu livro a invenção do cinema mudo e seu surgimento
na cidade por volta de 1918 com seu Chico Casimiro como exibidor debaixo de um
certo Tamarindo... Julieta também falou do Cangaço, da Nau Catarineta, dos Autos
de Natal, da cultura de Sousa em "Antes Que Ninguém Conte", livro que ela lançou
a um tempo atrás, mas que se transformou num marco de registro da nossa história,
como ponto de referência da memória sousense. (ABRANTES, 2009)

Portanto, analisar sua prática educativa, as contribuições culturais que trouxe ao


município de Sousa através das obras e crônicas publicadas, além de sua representação
simbólica enquanto mulher e educadora se configuram como aspectos relevantes para esta
pesquisa.

SOBRE JULIETA PORDEUS GADELHA: A IDENTIDADE DE MULHER E


ESCRITORA

Julieta Pordeus Gadelha é filha legítima do casal Felinto da Costa Gadelha e Noemi
Pordeus Gadelha. Seu pai era tabelião do município de Sousa – PB, exercendo, também, a
função de prefeito nos anos de 1939 a 1942. Da união desse casal, nasceram onze filhos que
seguiram profissões diferentes, entre elas, médicos, professores, advogados e um frei.
Na obra Crônicas para mamãe ler, Julieta Pordeus apresenta insígnias que demonstram a
classe social a que pertenceu. Alguns objetos que ela descreve como sendo de seu cotidiano
demonstram características específicas da classe dominante, tais como o telefone, a máquina
de escrever e um aparelho utilizado nas minas para encontrar botijas.
Em Sousa havia uma equipe fabulosa dêsses homens(caçadores de botijas),
contando-se entre êles, dois tios meus: Pedro Gadelha e Murilo Pordeus. Para
facilitar o seu trabalho e dispensar os sonhos e as aparições que muitas vêzes, eram
considerados suspeitos, êles conseguiram um aparelho dêsses usados em minas para
localizar metais. O aparelho indicava, infalivelmente, a existência de ouro em certos
locais. [...]

Desde criança, Julieta Pordeus Gadelha estudou no Colégio São José, uma instituição
de ensino que educava as elites sousenses. O Colégio São José foi fundado em 1939 e teve
como diretor, o próprio fundador deste educandário, professor Virgílio Pinto de Aragão –
professor Senhorzinho, tio de Julieta.

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Amparado pelo Decreto n° 1414, de 30 de maio de 1939, passou a funcionar no


referido colégio, a Escola Normal Livre, em que formava professores. Segundo Julieta, “viu o
Colégio São José coroado o seu incipiente êxito, pelo reconhecimento de parte do governo do
Estado, do seu curso normal em funcionamento, como Escola Normal Livre” (GADELHA,
1986, p. 69). Para a autora, esta foi uma conquista alcançada pelos sousenses, como a “mais
justa solução do problema educacional sertanejo”. (Ibid)

Para a abertura do Colégio São José - Escola Normal no município de Sousa houve
uma preparação, uma vez que, os cursos normais estavam em voga como locais, por
excelência de formação de professores, sobretudo de mulheres professoras. Além disso, eram
instituições educacionais que representavam a instrução da elite, por isso, seus enormes
espaços, fachadas e janelas aludiam a uma classe social que lá estudava.

Escola Normal São José – Sousa PB


Fonte: Livro Além do Rio.

Na foto acima, podemos perceber a arquitetura que lembra uma enorme casa, com
portas e janelas grandes denotando a ideia de espaço reservado para atividades educativas de
cunho religioso católico, já que a Escola Normal São José foi fundada por iniciativa de
vigários locais. Além disso, estava localizada em local estratégico para uma educação
religiosa, ao lado da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário.

[...] As escolas normais, plantadas inicialmente nas principais cidades do país,


buscam, desde suas fachadas, frequentemente solenes, indicar a todas as pessoas que
por ali passam que são distintas dos demais prédios, que têm um objetivo especial.
(LOURO, 2012, p. 455)

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Antes do funcionamento da Escola Normal, existia no mesmo local, a Casa da


Caridade, que recebia e educava meninas órfãs. O gerenciamento da casa ficava por conta das
freiras que eram “responsáveis pela educação das órfãs que ali eram deixadas.” (PINTO,
2008, p. 100)

Em seu livro Antes que ninguém conte, Julieta Gadelha relata que o sobrado da Casa
da Caridade foi uma doação do Padre José Antônio Marques Guimarães transformando-se em
“orfanato erigido pelo benemérito Padre Ibiapina”. O orfanato funcionou durante muitos anos
até que as freiras foram cedendo lugar para a abertura da Escola Normal. (GADELHA, 1986,
p. 69).

São muitas as histórias contadas por Julieta Gadelha sobre o que precedeu a abertura
da Escola Normal São José, entre estas, a forma de gerenciamento das beatas e o destino das
meninas órfãs. Aos poucos, as últimas beatas que dirigiam o local, foram cedendo lugar dos
quartos às salas de aula, transformando-se, em 1939, em Colégio São José – Escola Normal.

[...] Foram abertos amplos salões de aula, de acordo com as normas de higiene
escolar; construíram-se parques para educação física e áreas abertas para recreio e
iniciação de clubes agrícolas escolares; dotou-se, enfim, o Estabelecimento de
mobiliário novo e de material pedagógico á altura da moderna concepção do ensino.
(Ibid, 1986, p. 69)

Não sabemos se Julieta Gadelha, atuou como docente dos Colégios Normal São José e
Nossa Senhora Auxiliadora. Em entrevista com Dona Mirtes Arruda Fontes, estudante da
primeira turma do Colégio São José, fomos informadas que Julieta havia lecionado no
referido colégio. Porém, não encontramos nenhuma fonte que comprovasse sua atuação
docente na instituição.

Por isso, partimos para outras situações em que Julieta teve sua prática educativa
concretizada. Foi na escrita que Julieta Pordeus Gadelha demonstrou sua prática educativa,
através de homenagens a Sousa, contando e rememorando aspectos de um passado que ainda
vem à tona, através dos costumes, das festas tradicionais, dos patrimônios históricos. São as
representações de sua prática educativa, através das obras.

Com acesso a educação e sempre cercada de pessoas que faziam parte da cultura
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letrada, principalmente seu tio, Virgílio Pinto de Aragão - o professor Senhorzinho, as


práticas educativas de Julieta revelam que ela teve muita influência desse mundo da leitura e
escrita, chegando a fazer parte de rodas literárias de intelectuais da época.

Lendo biografias e memórias de muitos escritores a exemplo de Raquel de Queiróz,


Graciliano Ramos, Magda Soares, Sophia Lyra, temos percebido que o contato com os livros
é sempre incentivo por alguém da família se tornando como ponto de partida para o gosto pela
leitura e pela escrita. Com a escritora Julieta Pordeus, não foi diferente.

É perceptível em suas memórias, o apreço e admiração que tinha pelo seu tio, o
professor Virgílio Pinto, talvez seu maior incentivador:

A mania de boa leitura, dos clássicos portugueses, a simpatia por Camilo Castelo
Branco, nunca o transformou numa pessoa sisuda, circunspecta ou antipática, quanto
mais conhecimento, mais se estendia a ânsia de passar para os outros o valor do
conhecimento. (GADELHA, 2000, p. 02)

Em contato com a cultura letrada sousense, Julieta Pordeus Gadelha entra para o grupo
de intelectuais escritores, publicando na Revista Letras do Sertão. A referida revista foi
fundada em 1951, também pelo seu tio. Considerada um “órgão de divulgação literária”
(MATOS, 2004, p. 12)

A Revista Letras do Sertão trazia a ideia de ser um meio de comunicação dos


sertanejos que a idealizaram, porém, os conteúdos veiculados passaram a ser os mais variados
que iam desde a política, assuntos do cotidiano, historiografia do município até aspectos da
vida pessoal dos autores.

No caso de Julieta Pordeus, a mesma publicava crônicas, que às vezes eram lidas nas
rádios, sobre assuntos diversos. Sua publicação inicial acontece na primeira fase de circulação
da Revista, de número 6, que ocorreu entre novembro de 1951 a julho de 1961 com a crônica
intitulada Igual Desdita.

Muitas foram as crônicas publicadas pela escritora Julieta Pordeus Gadelha que
trouxeram aspectos curiosos e interessantes que compunham o perfil social do município de
Sousa. Diversas foram as publicações em que relata aspectos de sua vida pessoal: quando vai

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ao tribunal com o irmão; a ida a cidade de Cajazeiras – PB em função da comemoração do


centenário de emancipação política; o uso da primeira farda; o fato de ter um grilo em seu
quarto.

Em outras crônicas, emite opinião sobre questões polêmicas da época como a política,
a religião, as festas tradicionais do município de Sousa, pessoas ilustres.

Em 1965, Julieta Pordeus reúne todas as crônicas e publica um livro intitulado


Crônicas para mamãe ler. Eládio Melo médico, professor da Escola Normal São José e
reconhecido intelectual dos meios literários sousenses, assim escreve na apresentação de seu
livro:

Os meios intelectuais sousenses estão em festa. Julieta Pordeus, a dmirada


intelectual contemporânea, que desfruta de largo prestígio em nosso setor literário,
acaba de reunir, em livro, muitos dos belos contos que sempre escreve, com os
quais, vêzes muitas, floriu as páginas de nossa revista “Letras do Sertão”, e de outras
publicações do mesmo gênero. (MELO, 1965, p. 01)

O referido livro de Julieta nos fez mergulhar nas memórias do passado sousense,
época da nossa infância, quando víamos um cenário rodeado de histórias que eram
representadas por vários lugares, por várias famílias, por pessoas que se tornaram imortais.
Desde criança, nas aulas do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, aprendemos a ter apego e
valorização pela cidade de Sousa.

O livro nos trouxe de volta ao passado quando aprendíamos, entre outros aspectos,
sobre o Milagre Eucarístico, símbolo de uma cidade marcada pela religião católica. Julieta
Pordeus discorre a respeito do chamado Milagre Eucarítico, um acontecimento marcante do
município, ocorrido no dia 25 de março de 1814. Na crônica intitulada Cavalheiros do
Santíssimo, Julieta enfatiza a forte religiosidade presente no município:

Sousa é uma cidade Eucarística, todos o dizem. No entanto, estava como que
paralisada, adormecida diante do fato que a enaltece. Um fato que para os católicos
sousenses deveria expressar, não somente a alcunha de filhos da terra eucarística,
mas uma completa gratidão dos que foram agraciados pelo milagre. Se Deus se
permitiu ao sacrilégio, foi para mostrar ao povo de Sousa que a Eucaristia é o centro,
a essência da nossa religião. O milagre significa o chamado de Deus para a
Eucaristia.

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O milagre Eucarístico é conhecido por todo sousense, pois, por fazer parte da história
do município, é sempre estudado e lembrado pelas instituições escolares. Além disso, existe a
Praça do Milagre Eucarístico, um monumento arquitetônico que representa o lugar do
acontecimento.

Em 1986, Julieta Pordeus, publica o livro Antes que ninguém conte, de gênero
memorialista. No referido livro, a autora aborda traços da historiografia do município de
Sousa, com aspectos novos e curiosos que vão desde a origem do nome aos principais
costumes vividos pelos habitantes do século XIX.

A obra Antes que ninguém conte de Julieta Pordeus nos trouxe uma vasta compreensão
sobre a constituição historiográfica do município, mas o que me chamava atenção mesmo era
o fato de ser uma mulher, a fonte de tantas informações, uma vez que, os livros didáticos,
tidos como referências para as aulas de História, eram, em sua maioria, de autores masculinos.

Na própria constituição do município de Sousa, encontramos jornalistas, médicos,


advogados, professores que atuaram como escritores e cronistas como Eládio Melo, Virgílio
Pinto, Deusdedit Leitão, Celso Mariz, entre outros, que hoje têm seus nomes lembrados nas
principais ruas e avenidas da cidade. Todos esses autores são referência na historiografia do
município de Sousa.

Dando continuidade as marcas de sua prática educativa, Julieta Pordeus, escreve, no


ano de 1975, o hino da cidade de Sousa, que “hoje é cantando nas escolas e solenidades locais
e obrigatório na abertura das sessões da câmara de vereadores” (ABRANTES, 2009). No ano
seguinte, junto a Marcílio Mariz Paiva, outro sousense, projeta a bandeira do município,
ganhando reconhecimento estadual, por isso.

Além das obras publicadas que tanto enfatizam o cotidiano do município, a construção
do hino e da bandeira a faz ficar com o nome cravado entre as contribuições que deixa para os
sousenses.

Enquanto mulher, escritora e educadora, a prática educativa de Julieta Pordeus carrega


traços do gênero que não pudemos deixar de perceber. Algumas crônicas revelam o papel
social da mulher, ainda atrelado na década de 1960, a condição de sexo frágil. Sobre o

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contexto histórico da época citada, Julieta assim escreve:

Ainda havia a ausência do respeito pela pessoa humana, os seus direitos eram
desacatados para se satisfazerem às exigências individuais, vivendo a classe média e
dos pobres à mercê das discriminações dos “chefes”. (GADELHA, 1986, p. 58).

A prática educativa, portanto, parte de um conjunto de fatores sociais mais amplos que
a condicionam, influenciam e direcionam fazendo com que os conhecimentos e as
experiências de cada indivíduo se tornem meios para a transformação de uma localidade.
As maneiras de se fazer educação estão imbricadas nos gestos, nos costumes, nos
papeis sociais, nos códigos culturais, de tal forma que constatamos que nada escapa a
educação.
É só olhar em volta... se ninguém, nem nada, escapa à educação, então há uma
dimensão educativa instalada na sociedade. A escola é instituição que educa e
instrui, mas cada sociedade cria, e cada uma a seu tempo, maneiras de educar
homens e mulheres, crianças, jovens e adultos. (LOPES, 1994, p. 21)

Por isso, trazer à tona Julieta Pordeus Gadelha e sua prática educativa se configura, em
reviver um contexto social sousense esquecido. Percebemos a relevância da autora, sua
importância para o município de Sousa através de todas as contribuições realizadas no sentido
da construção de uma identidade que abrange a trajetória histórica do município.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRANTES, Edilberto. Antes que ninguém conte. Disponível em:


<http://academiadepoetassousenses.blogspot.com.br/2009/11/antes-que-ninguem-
conte.html>. Acesso em: 22/03/2013.
ALMEIDA, Jane Soares. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo: Editora
UNESP, 1998.
BRASIL. Parecer n. 853/71, de 12 de novembro de 1971, do CFE. Núcleo - comum para os
currículos do ensino de 1° e 2° graus. A doutrina do currículo na lei 5.692. Documenta - Rio
de Janeiro, n. 132, Nov.
GADELHA, Julieta Pordeus. Crônicas para mamãe ler. João Pessoa: A União, 1965
__________. Antes que ninguém conte. João Pessoa PB: A União, 1986.

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__________. Professor Senhorzinho: o mestre. In: Virgílio Pinto de Aragão (Professor


Senhorzinho). Folheto em memória dos 110 anos de falecimento do professor Virgílio Pinto.
Sousa – PB: Gráfica E. Rocha Pinto, 2000.
LIBÂNEO, José Carlos: Didática. São Paulo: Cortez, 1994.
MATOS, Eilzo. Letras do Sertão: sumário cronológico (uma aventura de Sousa no mundo
da cultura – novembro de 1951 – março de 1968). Sousa Paraíba: Fundação Antônio Mariz,
2004.
PINTO, Evilásio Marques. O professor Senhorzinho. In: Virgílio Pinto de Aragão
(Professor Senhorzinho). Folheto em memória dos 110 anos de falecimento do professor
Virgílio Pinto. Sousa – PB: Gráfica E. Rocha Pinto, 2000.
PINTO, Lucíola Marques. Roteiro de uma cidade perdida em sua história: Sousa. Campina
Grande: EDUFCG, 2008.
LOPES, Eliane Marta Teixeira. Pensar categorias em História da Educação e gênero. In:
Projeto História. São Paulo 11 nov. 1994. (p. 19-29)

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EDUCAÇÃO E SEXUALIDADE: UMA ANÁLISE DO CURSO DE PEDAGOGIA DA


UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE

Scarlett O’hara Costa Carvalho361 | scarlettoharacc@gmail.com


Lorena Brenda Santos Nascimento362
Lia Machado Fiuza Fialho363

INTRODUÇÃO
Ao reconhecer a importância de estimular discussões que trate da sexualidade nos
âmbitos de formação educacional e social, disseminando respeito pelas diversidades e
posturas que imprima maturidade e tolerância para tratar as diferenças, tal temática se faz
fundamental no repertório do discente, considerando que este, muitas vezes necessita de uma
orientação norteadora sobre as transformações biológicas de seu corpo, para que assim possa
compreender a construção identitária que irá desenvolver ao longo da vida. Logo, faz-se
necessário que os educadores estejam preparados para tal discussão.
Nesse perspectiva, o presente trabalho tem como proposta fazer uma análise no curso
de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), a respeito da reformulação
curricular realizada no ano de 2008, objetivando verificar se o curso possui disciplinas que
abordem a temática da sexualidade. Ao mesmo tempo, também pretende-se perceber se os
profissionais que estão sendo formados pela instituição possuem aporte necessário para
amparar suas práticas, haja vista a sua influência nos sistemas de ensino e formação de
pessoas.

361
Pedagoga pela Universidade Estadual do Ceará –UECE. E-mail: scarlettoharacc@gmail.com
362
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará – 7° semestre - Bolsista PROMAC, Monitoria
– UECE. E-mail: lohsantos02@gmail.com
363
Professora do Programa de Pós Graduação em Educação na Universidade Estadual do Ceará –PPGE (UECE).
E-mail: lia_fialho@yahoo.com.br

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Problematizar, procurando refletir junto com os educadores sobre novas possibilidades


de intervenções com crianças, adolescentes e familiares, torna-se indispensável para
(re)pensar como a educação sexual tem sido abordada na própria universidade,
especificamente, no Curso de Pedagogia. Com efeito, a sexualidade tem sido problematizada
por meio de reflexões que se manifestam em linguagens culturais diferenciadas, visando a
diversificação das práticas e discursos, produzindo possibilidades de subjetivação.
Entretanto, percebemos que na infância a educação sexual é considerada
desnecessária, pois, tanto o ambiente familiar como a instituição escolar acredita ser
irrelevante ensinar sexualidade para crianças dessa faixa etária, por esperar que ela adquira
esse conhecimento no decorrer da sua vida (BRAGA, 2002). No entanto, nos dias atuais, essa
discussão se faz cada vez mais presente e indispensável, pois, com a globalização e o acesso
quase imediato às noticias e aos meios de comunicação, o contato com informações, sejam
essas gerais ou específicas, ganham proporções abrangentes afetando uma massa, por vezes,
despreparada para lidar com o assunto e as questões que o envolvem.
Identificamos que a ausência, no curso de Pedagogia e mesmo nas Licenciaturas, de
disciplinas voltadas para o estudo da sexualidade e da educação sexual deixa lacunas na
formação do docente, principalmente quando este atua nos sistemas de ensino nos anos
iniciais e ensino fundamental, uma vez que a sala de aula e a escola, num aspecto geral, é
espaço em que questões sexuais afloram cotidianamente. Nesse sentido, corroboramos com
Bonfim (2009) quando este nos afirma que os educadores não estão recebendo a formação
adequada para desenvolver ações para uma nova Educação sexual. Existe uma contradição na
inserção desta temática nos currículos escolares, pois essa não está inserida no currículo dos
cursos de licenciatura.
Diante dessas questões lançamos a discussão sobre a importância de ter no curso de
Pedagogia disciplinas sobre educação sexual, oportunizando aos envolvidos espaços de
saberes e trocas científicas sobre temas como: gênero, sexualidade e formação docente. Logo,
justificamos a escolha desse tema pela constatação da inexistência de conteúdos obrigatórios
norteadores da educação sexual escolar no referido curso da UECE, a partir da análise de seu
Projeto Político Pedagógico, em que os profissionais formados para o exercício de sua
profissão não possuem embasamento teórico sobre o ensino da sexualidade.
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PERCURSO METODOLÓGICO

Para o alcance de tal escopo, utilizou-se como metodologia uma análise documental,
que de acordo com Santos (2000) “é realizada em fontes como relatórios, atas, projetos de lei,
ofícios, discursos, documentos informativos arquivados [...]”, da matriz curricular do Curso
de Pedagogia, bem como do seu Projeto Político Pedagógico (PPP), com o intuito de conhecer
o perfil de formação do curso, bem como identificar se há uma oferta de disciplinas
relacionadas à temática. No tocante a metodologia escolhida, Ludke e André (1986) afirmam
que esta constitui uma técnica importante na pesquisa qualitativa, “seja complementando
informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou
problema”. Diante disso, para enriquecimento do estudo, fizemos um estudo bibliográfico
com referencial teórico-metodológico de alguns autores.
Nessa perspectiva, esclarecemos que o referencial teórico no qual se embasa a
construção do nosso objeto, fundamenta-se na literatura voltada para as discussões da
Educação para a Sexualidade no âmbito da formação docente (BONFIM, 2009; FIGUEIRÓ,
2006; NUNES, 1997), dentre outros autores que possuem um diálogo convergente com esta
pesquisa.
Nesse estudo, tomamos como premissa, que a sexualidade como todo fenômeno do
campo social, suscita a construção de um processo representacional dos sujeitos. E, dessa
forma, consideramos que as representações quanto à sexualidade expressas nesta pesquisa
podem contribuir para debates sobre a formação de educadores que lidam com o tema em seu
cotidiano de trabalho.
O CURSO DE PEDAGOGIA DA UECE

Como dito anteriormente, fez-se necessário o estudo do Projeto Político Pedagógico


(PPP) da instituição. Nesse documento pudemos conhecer um pouco da história do curso. No
PPP consta que:

O Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará teve início na antiga


Faculdade Católica de Filosofia e sua criação data de 1954, tendo sido autorizado
pelo Decreto nº 34.924 de 12/01/1954 e reconhecido pelo Parecer Nº 332/62 do
Conselho Federal de Educação, homologado em 12/12/1962. Novo reconhecimento
foi solicitado, o que ficou expresso no Decreto Nº 51.292 de 28/06/1963 do
1046
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Conselho Federal de Educação. (PPP, 2011, p. 15)

Inicialmente, o currículo do Curso de Pedagogia obedeceu à estrutura legal vigente à


época, onde: 3 (três) anos de bacharelado que se destinava ao técnico em educação, seguido
de mais 1 (um) ano, quando o aluno cursava disciplinas pedagógicas. Dessa forma, o aluno
passava a ter o direito de lecionar no ensino médio, 1º e 2º ciclos, especialmente, nos cursos
normais.
Com a instalação da Universidade Estadual do Ceará, em 10 de maio de 1977, tornou-
se necessário o desenvolvimento de um trabalho de reformulação do currículo do Curso de
Pedagogia para atender a nova estrutura organizacional desse estabelecimento de ensino
superior.
Hoje em dia, após a reestruturação curricular, o curso tem a duração de 9 semestres e
com a reformulação do currículo passaram a constar disciplinas peculiares visando formar,
especificamente, o profissional pedagogo, contribuindo assim para um novo projeto de
educador e de sociedade.
No entanto, apesar de passar por algumas reformulações, sendo a última implantada
em 2008.2, a matriz curricular ainda apresenta lacunas no que concerne à temática. Esta
matriz dispõe quarenta e duas disciplinas obrigatórias, mas nenhuma direcionada à educação
sexual ou à temática. Os alunos estudam um pouco na disciplina de psicologia do
desenvolvimento onde, dependendo do professor, este pode abordar de forma mais intensa ou
apenas superficial a relação do docente da Educação básica com a criança e o adolescente no
tocante à sexualidade.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Comungamos com Nunes (1987, p.23) que “[...] a sexualidade é sempre uma área de
saber e de investigação essencialmente polêmica, visto envolver-se com elementos de ordem
religiosa e ética de diferentes conotações e universos sociais ou subjetivos”. Logo, as
polêmicas geradas em torno da temática da sexualidade, como o desconforto em falar sobre o
assunto, são baseadas geralmente em conceitos religiosos, crenças, tabus, preconceitos; que,
muitas vezes, dificultam a ação dos professores na escola diante das manifestações da

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sexualidade ou curiosidades dos alunos. Segundo Costa e Joca (2009):

Apesar das ações empreendidas pela sociedade civil e organizada em torno do


enfrentamento às desigualdades vividas no campo do sexual, ainda hoje, vivemos
um movimento de transição, de transformação dos comportamentos sexuais e
afetivos em nossa sociedade, ou seja, ainda há muitos “nós” a serem desatados para
a compreensão da sexualidade na perspectiva do reconhecimento dos direitos
sexuais, incluindo nesse bojo, o enfrentamento das desigualdades ocasionadas pelo
sexismo e pela homofobia. (2009, p. 20)

Nesse sentido, também percebemos que a função social dos sistemas de ensino está
para além dos conceitos já preestabelecidos como verdade, não podendo ser isentos de
questionamentos e críticas, considerando a multiplicidade de pensamentos e condutas
encontradas na sala de aula. É nessa perspectiva que uma formação docente atualizada e
preparada para lidar com as dinstinções pode proporcionar uma práxis mais reflexiva e
transparente para lidar com as diversidades.
É fundamental que o trabalho docente esteja pautado em estudos sobre a sexualidade,
considerando a necessidade de problematizar, questionar, dialogar e compreender os
elementos culturais, sociais e históricos que constituem esse aspecto da vida. Salientamos a
importância da formação inicial e continuada em torno da temática.

As práticas educativas desenvolvidas pela escola na abordagem dos saberes sobre a


sexualidade e a diversidade sexual perpassam por fatores sociais diversos e
complexos. Tais fatores envolvem não apenas questões metodológicas e técnicas do
processo educativo de ensino-aprendizagem, como também os valores morais e
éticos que iterligam a escola aos demais espaços de sociabilidade dos sujeitos, de
modo que a educação escolarizada dialoga constantemente com valores
socioculturais advindos do contexto histórico e social em que está inserida. (JOCA,
2009, p. 100)

Concordamos com Braga (2009) quando nos fala que é necessário além de discussões
na graduação, que o pedagogo “participe de cursos, debates, grupos de estudos entre outras
atividades de capacitação, possibilitando assim uma troca de experiências entre o grupo
profissional” (p.133).
Compreendemos como algo necessário que os cursos de formação de professores
incluam em seus currículos a discussão sobre a sexualidade, bem como sejam propostos
cursos de formação continuada focando a educação sexual. Não podemos negar aos
estudantes informações e respostas às suas perguntas, pois a escola é um lócus privilegiado de
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informação, troca e conhecimento, promovendo debates e formação integral. Além disso,


como consta na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), é dever das instituições
proporcionar contato com as diferentes manifestações sociais e culturais, estabelecendo
conexão com as práticas cotidianas, estimulando o respeito e tolerância.
Segundo Louro (1998) “a sexualidade se constitui em um aspecto importante da
formação dos sujeitos e dos grupos, exigindo atenção no contexto das políticas e dos
programas educacionais”, e, consequentemente do espaço escolar (p. 87). Destarte,
advogamos, portanto, que essa discussão deve ocorrer na universidade, onde os profissionais
estão sendo formados, por isso a necessidade da temática na matriz curricular do curso de
Pedagogia. A formação dos professores e professoras deve englobar não apenas os
conhecimentos teóricos, mas, como cita Camargo (1999, p.51) “implica o despertar de suas
potencialidades, favorecendo a expressão de sua criatividade, de sua sensibilidade”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, constatou-se que das quarenta e duas disciplinas obrigatórias que a UECE
oferta em seu currículo nenhuma trabalha com a temática de sexualidade ou como isso poderá
ser abordado na escola, o que não dá um suporte teórico ao graduando, fazendo com que este
mostre despreparo para lidar com o tema em sala de aula, e consequentemente, subsidiar os
alunos a esse respeito.
Ademais, entendemos a educação sexual como um desafio a ser alçado pelos
professores que trabalham diariamente com crianças de qualquer faixa etária. No entanto,
esperamos que esta temática seja abordada em sua complexa constituição, como elemento
inerente e à vida, logo, como algo imprescindível para a formação integral da criança.
Diante disso, defendemos a importância da inserção dos conteúdos sobre sexualidade
nos currículos de cursos de formação para que este profissional possa atuar de forma efetiva e
completa no espaço escolar. Além da família, a escola é uma instituição onde há a
necessidade de um trabalho educativo sobre sexualidade, mas, para que isso aconteça é
preciso que haja uma formação e conhecimento entre os educadores sobre a temática.
Não é por acaso que a abordagem da sexualidade humana nas escolas secundárias e
nas universidades ainda é um tópico pouco debatido. Não existe orientação, de modo
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estrutural e sistemático, em relação à abordagem do aluno quanto às questões de natureza


sexual na formação do pedagogo. Em consonância com Leão (2009), à formação inicial de
professores, as licenciaturas, de modo geral, deveriam contemplar, no currículo, disciplinas
que abordem a temática sexualidade, de maneira que os futuros docentes tenham acesso ao
conhecimento necessário para a prática pedagógica.
Desse modo, salientamos que o estudo não se dá por encerrado, mas ao contrário,
indica a necessidade de fomentar discussões envolvendo a análise dos currículos nos cursos
de licenciatura a respeito das disciplinas ofertadas, buscando identificar ações e propostas que
integre termas de complexidade social e cultural nas rodas de conversa e aulas ministradas, a
fim de impulsionar posturas de respeito às diversidades, compreendendo que a formação
docente reflete diretamente no ensino e aprendizagem macrossocial do sujeito em
desenvolvimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRAGA, Eliane Rose Maio. Sexualidade Infantil: uma investigação acerca da concepção das
educadoras de uma creche universitária sobre educação sexual. 2002. 195f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia) – UNESP, Assis.
__________________. A importância da formação de professores (as) na questão de gênero.
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Ribeiro Comar (organizadoras). Maringá: Eduem, 2009.
BRASIL. LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/ Lei nº. 9394, de
20/12/1996. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 1996
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contradições, limites e possibilidades. 2009. 272 f. Tese (Doutorado em Educação)-Faculdade
de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.
CAMARGO, Ana Maria Faccioli de; RIBEIRO, Cláudia. Sexualidade (s) e Infância (s): A
sexualidade como um tema transversal. São Paulo: Editora da Universidade de Campinas,
1999.

COSTA, Adriano Henrique, JOCA, Alexandre Martins, LOIOLA, Luis Palhano. Desatando
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nós: fundamentos para a práxis educativa sobre gênero e diversidade sexual. In:______.
Educação escolarizada e diversidade sexual: problemas, conflitos e expectativas. Edições
UFC, 2009, p. 100.

FIGUEIRÓ, M. N. D. Educação Sexual. In:_________. Formação de Educadores Sexuais,


adiar não é mais possível. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006.

LEÃO, A. M. C. Estudo analítico-descritivo do curso de Pedagogia da UNESP de


Araraquara quanto à inserção das temáticas de sexualidade e orientação sexual na formação
de seus alunos. 2009. 350f. Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Universidade Estadual
Paulista – Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2009.

LOURO, Guacira Lopes. Sexualidade: lições da escola. In.: MEYER, Dagmar Estermann
(Org.). Saúde e Sexualidade na escola. Porto Alegre: Mediação, (Cadernos Educação Básica
4), 1998, p. 85-96.

LUDKE, M. ANDRE, M.E.D.A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo,


EPU, 1986.

NUNES, César Aparecido. Desvendando a sexualidade. Campinas, SP, Papirus, 1987.


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SANTOS, Antonio Raimundo dos. Metodologia Científica: a construção do conhecimento.
3.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
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AQUINO, Julio Groppa (Org.). Sexualidade na Escola: alternativas teóricas e práticas.3.ed.
São Paulo: Summus, 1997.

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EDUCAÇÃO E SEXUALIDADES NO ENSINO FUNDAMENTAL

Roberto Alexandre da Silva | robertoalexsilva@gmail.com


Cristiane Souza de Menezes

INTRODUÇÃO

A instituição do tema transversal Orientação Sexual nos Parâmetros Curriculares


Nacionais nos anos 1990 contribuiu para colocar em evidência na escola as discussões em
torno da sexualidade. Nesse contexto, em 2001 um dos autores do presente trabalho concluiu
uma pesquisa sobre a abordagem da temática no ensino fundamental. Na ocasião a
investigação evidenciou o foco na promoção da saúde (prevenção de DST/AIDS e gravidez na
adolescência) e o caráter marcadamente informativo, junto à precária formação docente.
Contudo, na atualidade, com os avanços das mobilizações e discussões em torno da
diversidade sexual e de gênero e, por outro lado, com manifestações de homofobia na
sociedade brasileira, nos questionamos sobre a abordagem das questões das sexualidades na
escola hoje.
O objetivo deste artigo é investigar as formas de abordagem da temática sexualidade
no âmbito dos anos finais do ensino fundamental no presente. Buscamos levantar subsídios
que contribuam para uma educação escolar que promova a formação humana, na perspectiva
de uma sociedade inclusiva e não discriminatória.
Para alcançarmos esse objetivo aplicamos questionários (questões abertas e fechadas)
a um grupo de trinta estudantes e a uma professora de uma turma do 8º ano do ensino
fundamental de uma escola da rede estadual de Pernambuco. Para que os sujeitos se sentissem
mais à vontade o anonimato foi garantido, sendo registrado apenas o sexo e a idade do
participante.

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SEXUALIDADE NA ESCOLA: NÃO ADIANTA COBRIR O SOL COM A PENEIRA...

Segundo Carvalho, Andrade e Menezes (2009), a sexualidade pode ser definida como
expressão de desejos e prazeres, envolvendo predisposições, preferências, experiências físicas
e de comportamento, orientadas a pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo ou de ambos os
sexos.
Embora inerente ao ser humano, a sexualidade muitas vezes é negada e silenciada em
diversos espaços da sociedade, não sendo diferente na escola, local onde muitas vezes
educadores, técnicos, pais, gestores etc. preferem não enxergar ou ouvir suas manifestações
no cotidiano escolar. Por outro lado, quando algumas vezes esses atores se veem impelidos a
admitir sua presença, que é natural, o posicionamento adotado é de repreensão ou mesmo de
repressão.
Contudo, apesar do posicionamento repressor de alguns educadores e técnicos, o tema
da sexualidade está na “ordem do dia” nas salas de aula e demais ambientes da escola.

Presente em diversos espaços escolares, ultrapassa fronteiras disciplinares e de


gênero, permeia conversas entre meninos e meninas e é assunto a ser abordado na
sala de aula pelos diferentes especialistas da escola; é tema de capítulos de livros
didáticos, bem como de músicas, danças e brincadeiras que animam recreios e
festas. (ALTMANN, 2001, p. 575)

Percebemos que é comum no dia-a-dia escolar as piadas, as brincadeiras, as pichações


nos banheiros e as conversas que envolvem a sexualidade, o “ficar” entre os(as) alunos(as), o
preconceito sofrido por estudantes homossexuais, as perguntas dos discentes sobre o tema
durante as aulas (muitas vezes seguidas do constrangimento do/a professor/a etc.).
No Brasil as discussões sobre a sexualidade (e uma educação sexual) no ambiente
escolar têm enfrentado fluxos e refluxos há várias décadas. Algumas experiências de
educação sexual foram realizadas nos anos 1930, mas foi só na década de 1960 (período de
grandes mudanças comportamentais) que o debate sobre o tema se ampliou no que diz
respeito à legitimidade de sua abordagem na escola, se tornando mais contundente nos anos
1970.
Já nas décadas de 1980 e 1990, devido ao grande crescimento do número de gravidez

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indesejada na adolescência e a comoção mundial em torno dos riscos de contaminação pelo


vírus da AIDS, a demanda por trabalhos de educação sexual aumentou, colocando as
discussões sobre a temática quase como um imperativo nas escolas.
Assim, a instituição dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) na década de 1990
inseriu o tema transversal “Orientação sexual” no currículo escolar de todos os níveis de
ensino.
De acordo com os PCN (BRASIL, 1998), a orientação sexual deve ser trabalhada em
todos os ciclos da escolarização. No entanto, a partir da quinta série (atual sexto ano), além de
ser tratada como tema transversal, a temática deve ser mais sistematizada e ter um espaço
específico para a sua abordagem de modo mais intensificado.
Ainda segundo os PCN,

[...] da quinta série em diante, os alunos já apresentam condições de canalizar suas


dúvidas ou questões sobre sexualidade para um momento especialmente reservado
para tal, com um professor disponível. Isso porque, a partir da puberdade, os alunos
também já trazem questões mais polêmicas sobre sexualidade e já apresentam
necessidade e melhores condições para refletir sobre temáticas como aborto,
virgindade, homossexualidade, pornografia, prostituição e outras. (BRASIL, 1998,
p. 308)

Os PCN também sugerem que o trabalho deve ser realizado em torno de três blocos ou
eixos norteadores: “corpo: matriz da sexualidade”, “prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis/Aids” e “relações de gênero” (BRASIL, 1998).
A partir dessa orientação, destacamos que há um avanço em relação às abordagens
propostas nas décadas anteriores, que eram unicamente focadas nas questões biológicas.
Assim, com o intuito de verificar se as orientações prescritas nos PCN de fato se efetivaram
nas salas de aula, um dos autores do presente texto realizou em 2001 uma pesquisa sobre a
abordagem da temática no ensino fundamental e mais de uma década depois da mesma
realizou nova pesquisa para ver os avanços e/ou retrocessos em relação aos resultados que
naquele momento foram encontrados. Trataremos sobre isso no próximo tópico.

ORIENTAÇÃO SEXUAL NO ENSINO FUNDAMENTAL: AVANÇOS E/OU


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RETROCESSOS APÓS QUASE DUAS DÉCADAS DOS PCN?

Em 2001, em pesquisa realizada por um dos autores (SILVA; SILVA, 2001) com o
objetivo de investigar as formas de abordagens do tema Educação Sexual em duas escolas
privadas situadas em Olinda, Pernambuco. Foram aplicados questionários com questões
fechadas e abertas a estudantes e docentes. A amostra consistiu de sessenta e um alunos(as)
com idades entre os 11 e os 17 anos de duas turmas do 8º ano (37 da Escola A e 24 da Escola
B) e de duas professoras, cada uma responsável pela disciplina Ciências nas respectivas
escolas.
Os dados levantados nessa primeira investigação evidenciaram que a maioria dos
sujeitos (igualmente alunos e alunas) detinha algum conhecimento sobre a vivência da
sexualidade (embora ainda repleto de dúvidas, equívocos etc.), dentre eles a relação sexual e a
prevenção de gravidez, sendo o primeiro assunto de maior interesse dos rapazes (que
revelaram maior preocupação com sua performance sexual) e o segundo de interesse das
garotas (por receio de ficarem grávidas). A questão da diversidade sexual não foi contemplada
em nenhum momento.
Os conhecimentos dos(as) estudantes eram obtidos por meio de conversas com os(as)
colegas de faixa etária aproximada a sua; embora as alunas tenham revelado que também
procuravam informações e conselhos com a mãe ou madrasta e que buscavam informações
científicas sobre o tema (adquiridas na escola, por exemplo), enquanto poucos alunos do sexo
masculino tenham assinalado conversar sobre sexo com o pai ou padrasto (embora a maioria
tenham registrado que as famílias, em sua maioria , falava abertamente sobre sexo). Alguns
dos rapazes também indicaram uma maior valorização das informações adquiridas pela
experiência (dos colegas ou suas).
Em relação aos tópicos de menor interesse entre os(as) estudantes, os alunos
apontaram a prostituição e as alunas o orgasmo (provavelmente indício de uma sexualidade
feminina reprimida e voltada para a satisfação do outro e não de si) e as DST.
Quanto ao trabalho desenvolvido nas escolas, a maioria dos(as) estudantes
consideravam que a temática deveria ser discutida na sala de aula, embora os mais tímidos
tenham indicado que não gostavam da discussão do tema na escola.
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Quanto à frequência da abordagem da educação sexual nas aulas, embora as


professoras tenham registrado fazê-la de modo ocasional (apenas quando havia
questionamento na aula ou quando abordavam métodos anticoncepcionais e as DST,
conteúdos da disciplina Ciências), os questionários dos(as) estudantes revelaram que o tema
não era trabalhado ou era pouco trabalhado nas aulas de ciências e que não era contemplado
como tema transversal no que diz respeito às outras áreas do conhecimento. Quando o tema
era abordado, isso se dava de maneira meramente informativa, também não levando em
consideração as experiências e o cotidiano dos(as) estudantes e de suas comunidades.
A alegação para esse posicionamento docente era a falta de recursos didáticos
adequados, a falta de tempo, a precária formação teórica sobre a temática, restrições pessoais,
preconceitos, tabus etc.
Carvalho, Andrade e Menezes (2009, p. 25) afirmam que, da parte dos(as)
educadores(as)

[...] uma das causas da resistência à adoção de propostas educacionais que abordem
a sexualidade segundo princípios do respeito à diversidade e da equidade é o
conflito entre os valores políticos e éticos inerentes a essas propostas e muitos dos
valores religiosos e morais, profundamente arraigados [...].

Quanto à metodologia utilizada, uma professora afirmava que era um trabalho


expositivo, abordando mais o conteúdo de reprodução destacando os aspectos biológicos,
como a anatomia dos sistemas reprodutivos masculino e feminino, ou seja, uma abordagem
mais informativa do que reflexiva.
Para Altmann (2001) os próprios PCN têm também um caráter informativo da
orientação sexual.

A sexualidade é concebida como um dado da natureza, como “algo inerente,


necessário e fonte de prazer na vida”. Fala-se em “necessidade básica”, “em
potencialidade erótica do corpo”, “em impulsos de desejo vividos no corpo” sobre o
que os sujeitos, principalmente os adolescentes, precisam ser informados (BRASIL,
1998, p. 580).

A outra professora, por sua vez, dizia que o trabalho era realizado em grupos de
discussão, inclusive indicando a importância de seguir as orientações dos PCN, ou seja, uma

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tentativa de criação de espaços de diálogo.


Seffner (2001, p.411) afirma que um bom conjunto de informações não
necessariamente dá margem a uma decisão racional e de acerto, sendo necessário um espaço
de diálogo onde os sujeitos expressem sua identidade, desejo e comportamento sexual,
confrontando com as informações, pois “é do jogo entre informação, racionalidade e acerto
que se geram os comportamentos, e isto não é uma sequência lógica”.
Embora com indícios da existência desse espaço mais dialógico revelado pela segunda
professora, percebe-se que a investigação realizada em 2001 evidenciou no trabalho de
orientação sexual o foco na promoção da saúde (prevenção de DST/AIDS e gravidez na
adolescência) e o caráter marcadamente informativo, junto à precária formação docente.
Passados quase quinze anos desse primeiro trabalho, buscamos no primeiro semestre
de 2015 investigar as formas de abordagem da temática sexualidade no âmbito dos anos finais
do ensino fundamental no presente: Em quais momentos a temática é abordada? Quais temas
são discutidos? Quais as metodologias são utilizadas? Quais os posicionamentos dos(as)
estudantes e da professora? Quais as dificuldades encontradas? Houve avanços após os PCN?
Este trabalho buscará se debruçar sobre os supracitados objetivo e questões que em 2015
estão sendo foco dos autores deste texto.
A metodologia consistiu na aplicação de questionários com questões abertas e
fechadas a trinta alunos(as) com faixa etária entre os 13 e os 16 anos de uma turma do 8º ano
de uma escola estadual pernambucana e também à professora de Ciências que leciona esse
componente curricular na turma campo da pesquisa. Buscamos garantir o anonimato dos
sujeitos identificando apenas a idade e o sexo.
O primeiro aspecto que chama atenção é que sete dos(as) estudantes afirmam que não
gostam que as questões da sexualidade sejam abordadas na escola porque falta maturidade
aos(às) colegas, que promovem brincadeiras durante as discussões, gerando
constrangimentos. Inclusive cinco estudantes (dois alunos e três alunas dizem não conversar
sobre sexo com ninguém).
Quanto à falta de maturidade dos(as) alunos(as), esse aspecto também é apontado pela
professora como um fator que dificulta as aulas sobre educação sexual. Esse motivo pode ser
a causa de não haver um trabalho sistematizado sobre a sexualidade na escola segundo
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dezenove estudantes, embora a docente afirme que o mesmo é realizado durante as aulas de
Ciências ou quando aparece algum questionamento da turma.
Apesar dessa última colocação, as respostas da professora deixam evidentes que na
prática da sala de aula a temática só é abordada quando são estudados aparelho reprodutor
masculino e feminino (anatomia e fisiologia) e a prevenção de DSTS/AIDS. Ou seja, o foco
novamente recai especialmente sobre os aspectos biológicos, com um trabalho
predominantemente informativo através de aulas expositivas.
A docente reconhece a importância também de discutir outros temas, como sexo na
adolescência, prevenção da gravidez e a diversidade sexual, contudo não registra ter
trabalhado esses temas na escola. Inclusive, o último é apresentado como objeto de interesse
apenas por dois alunos do sexo masculino. Os demais, tanto garotas quanto garotos, não
consideram o tema importante, sendo que os últimos parecem mais resistentes ao discuti-lo,
talvez como estratégia do que Kimmel (1997) identifica como um esforço dos homens para
manter uma fachada varonil e afastar qualquer suspeita a sua virilidade.
Os temas que mais interessam aos rapazes são a relação sexual (posições,
desempenho) e a virgindade. Para as garotas os temas mais interessantes são prevenção da
gravidez e virgindade, o que aproxima esses resultados dos encontrados na pesquisa realizada
em 2001. Embora no presente a prevenção da gravidez seja também um dos temas mais
citados pelos alunos e as alunas também desejem discutir a relação sexual.
Tais dados nos parecem um avanço, pois revelam que os cuidados com a
anticoncepção no presente é mais partilhado por garotas e garotos, como também trazem
indício de uma sexualidade feminina mais ativa.
Quanto à busca de conhecimentos ou de esclarecimentos de dúvidas sobre a
sexualidade por parte dos(as) estudantes, os rapazes dizem buscar informações principalmente
com os colegas e a família, embora a internet e os vídeos pornôs sejam também muito citados.
Quanto às moças, a família é a principal fonte de informação e lugar de explicitação de
dúvidas, embora o namorado e as amigas sejam igualmente citados. A escola é pouco citada
pelos(as) estudantes, talvez pela ausência de um trabalho mais sistematizado sobre o tema.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em comparação à pesquisa realizada em 2001 e a pesquisa atual, percebemos que não


houve mudanças significativas em relação à formação e à prática docentes relativas ao tema
transversal Orientação Sexual (mesmo passados quase duas décadas do lançamento dos PCN),
exceto pela abertura (mesmo tímida) para as discussões sobre a diversidade sexual, embora
quase a totalidade dos/as estudantes afirme não ter interesse em abordá-la nas aulas. Esse
resultado aponta que a diversidade sexual ainda se constitui num “tabu” para os/as estudantes,
o que revela a necessidade de que o tema seja mais profundamente abordado na escola
visando contribuir para questionar e desconstruir representações e preconceitos de gênero e de
sexualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTMANN, H. Orientação sexual nos parâmetros curriculares nacionais. Estudos


Feministas, ano 9, n. 2, p. 575-585, 2001.
BRASIL, MEC/SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais. Terceiro e quarto ciclos do
Ensino Fundamental: Temas transversais. Brasília, 1998.
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diversidade sexual na escola: por uma prática pedagógica inclusiva. João Pessoa:
Universitária/UFPB, 2009.
KIMMEL, Michael. Homofobia, temor, vergüenza y silencio em la identidade masculina. In:
VALDÉS, Teresa; OLAVARRÍA, José (Eds.). Masculinidad/es: poder y crisis. Santiago,
Chile: Ediciones de las mujeres, n.24, 1997, p. 49-62.
SEFFNER, F. AIDS e (é) falta de educação. In: SILVA, L. H. (org.). A escola cidadã no
contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 397-412
SILVA, L. M. M. da; SILVA, R. A. da. Uma investigação sobre como está sendo
trabalhada a educação sexual na escola: um estudo piloto. 2001. 77 f. Monografia
(Especialização em Biologia Aplicada à Educação) – Fundação de Ensino Superior de Olinda,
Olinda, 2001.
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ENTRE OS LIVROS E AS RECEITAS CULINÁRIAS: MEMÓRIA DA EDUCADORA


LIANA BARBOSA DA MATA ACERCA DO CURSO DE ECONOMIA DOMÉSTICA
EM BANANEIRAS/PB (1960-1970)

Wanderléia Farias Santos | wanderleiabr@hotmail.com


Maria Lúcia da Silva Nunes

INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata-se de um recorte de nossa Dissertação de Mestrado e tem por


objetivo analisar as práticas docentes da educadora Liana Barbosa da Mata, no Curso de
Economia Rural Doméstica do Colégio Agrícola Vidal de Negreiros (CAVN) em
Bananeiras/PB (1960-1970). O recorte temporal apresentado tem início no ano de 1960 e vai
até o ano de 1970, por ter sido o apogeu das turmas do Curso de Economia Doméstica no
CAVN, e, período em que a educadora mais se destacou com suas práticas docentes no local.
O aporte da Nova História Cultural possibilitou o desenvolvimento de estudos como
este, uma vez que deu importância a novos objetos de investigação, ao trazer à tona a voz de
indivíduos antes renegados pela História Tradicional. Práticas docentes e relações de gênero
são categorias que orientaram a análise, compreendendo que, não há como estudar as práticas
da educadora do Curso de Economia Doméstica, sem percorrer os espaços em que se
produziram as relações de gênero e suas representações. O texto que se segue, aborda
brevemente a Nova História Cultural, responsável pelo surgimento de novos objetos e
abordagens de estudos, permitindo assim, a construção também da memória e história da
educadora do CAVN.
Como fundamentos metodológicos, utilizamos a história oral e a memória como fontes

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historiográficas, memória que também foi evidenciada em outras fontes como: diário de
classe, plano de trabalho, livros e fotografias.
Analisar as práticas da professora em evidência nos permitiu compreender aspectos da
história da educação da cidade de Bananeiras marcada pelos colégios existentes e as práticas
escolares, com características de uma cultura escolar da época, impregnada pelas questões de
gênero que definiam espaços e atitudes “adequadas” a homens e mulheres daquele contexto.
Além do mais, possibilitou conhecermos e ressignificarmos à história do Colégio Agrícola
Vidal de Negreiros, a partir do recorte temporal utilizado no presente trabalho.
Na organização deste estudo, o texto encontra-se sistematizado em dois momentos. No
primeiro, aborda-se o campo teórico utilizado e as fontes historiográficas que serviram de
subsídios para o desenvolvimento desse trabalho. No segundo momento registra-se a memória
da Educadora, enfatizando suas práticas docentes.
Destarte, com esse trabalho, objetivamos contribuir com os estudos que estão sendo
desenvolvidos no campo da História da Educação, acerca das práticas docentes de educadoras
paraibanas, registrando suas histórias a partir de suas memórias e, contribuindo, ao mesmo
tempo, para a escrita da história da educação local. Pensamos que a educadora do Curso de
Economia Rural Doméstica do CAVN, deu contribuição significativa através do seu trabalho
para a educação local, além disso, “contar as histórias das educadoras é insistir no
rompimento de um silêncio histórico que perdurou tempo demais” (MACHADO, SILVA,
NUNES, 2012, p. 08).

SITUANDO A PESQUISA NO CAMPO DA NOVA HISTÓRIA CULTURAL

O campo da Nova História Cultural - NHC364 possibilitou as discussões deste estudo,


uma vez que o objeto só foi plausível de investigação devido ao movimento da Escola dos
Annales, iniciado na França e que, posteriormente, ficou conhecido como a nouvelle histoire
francesa na década de 1970, o qual abriu caminhos para se trabalhar com novas abordagens,
novos objetos e novos problemas, tendo em vista que “[...] o historiador dos Annales abordou
a história com um ‘novo olhar’” (REIS, 2000, p. 15. Grifo do autor).
364 Utilizaremos a sigla NHC para fazer referência à Nova História Cultural.
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Conhecido como a Terceira Geração dos Annales, o movimento da nouvelle histoire


tomou impulso a partir da década de 70 do século XX, o qual passou a valorizar a pesquisa
qualitativa em detrimento da quantitativa. Foi nesse período que historiadores
conscientizaram-se da relatividade do conhecimento histórico e passaram a questionar a
epistemologia da Disciplina de História e a repensá-la a partir de uma visão não linear. Assim:
”a nouvelle histoire não quer elaborar visões globais, sínteses totais da história, mas ampliar o
campo da história e multiplicar seus objetos” (REIS, 2000, p. 119. Grifo do autor). A NHC
trouxe consigo novos questionamentos e abordagens que antes nem se cogitavam em fazer,
uma história que o presente exige, como afirma o autor supracitado, é uma “[...] história
escrita por homens livres para homens livres ou em busca da liberdade, a serviço dos homens
em sociedade” (LE GOFF, 1988, p. 30 apud REIS, 2000, p. 120).
Destarte, a NHC dá destaque ao registro da história dos pequenos e daqueles que eram
excluídos pela história clássica, por algum motivo. Assim, a partir desta renovação do campo
historiográfico, “[...] é possível escrever história disso ou daquilo, ou seja, o desejo de estudar
qualquer coisa não é menos relevante que a história dos grandes homens e dos grandes
acontecimentos [...]” (PINHEIRO, 2011, p. 250).
Desse modo, uma vez que a NHC permitiu a abrangência de novas abordagens, o
objeto de estudo sobre as práticas docentes da educadora do Curso de Economia Rural
Doméstica tornou-se importante, pois agora a vida cotidiana, as práticas de trabalho, as
vestimentas, entre outros, são passíveis de estudos científicos, ou seja, “o historiador pode
tematizar tudo sob qualquer perspectiva” (REIS, 2000, p. 114).
Ao analisarmos as práticas docentes da educadora em estudo, não estamos analisando
trajetórias isoladas, mas levamos em consideração o contexto anterior a essas práticas, “o
período de formação, a história de vida de cada um dos sujeitos, o que os trouxe, em última
instância, a preparação para e ao exercício do magistério” (ESQUISANI & WERLE, 2009, p.
107).
Essas novas abordagens fortalecem o campo da História da Educação, ao alargar
estudos que colocam em cenário os grupos marginalizados, a partir de suas experiências
individuais e coletivas. Assim: [...] ”As questões da mulher ou de gênero (normalistas,
intelectuais e professoras), [...], passaram a ser abordados pela grande tese da preeminência da
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necessidade da inclusão desses diversos segmentos sociais” (PINHEIRO, 2011, p. 258).


Dessa forma, na História da Educação uma variedade de pesquisas tem se prontificado
a conhecer as práticas docentes de professores, utilizando-se de diferentes métodos de
investigação. Para tanto, foi preciso buscar métodos adequados para analisar/identificar as
práticas docentes da Educadora do CAVN. Optamos assim, pelo uso da história oral
(evidenciada na narrativa da memória), para o desenvolvimento desse trabalho, considerando
que “[...] novos interesses se impuseram somente tratáveis pela narração: emoções,
sentimentos, comportamentos, valores, estados de espírito, desejo sexual, relações familiares e
afetivas, indivíduos, ideias, crenças, costumes” (REIS, 2000, p. 135).
Destarte, a história oral em nosso trabalho foi de extrema importância para a
concretização do mesmo, pois foi através dela que a educadora evocou suas memórias,
narrando os acontecimentos da infância à vida adulta, proporcionando registrar suas falas,
consolidando a escrita de suas histórias de vidas, dando ênfase a fase em que ela exerceu a
prática docente no Curso de Economia Rural Doméstica, na qual ensinava trabalhos manuais.
O momento que se segue, descreve brevemente a história de vida da educadora que,
atuou no Curso de Economia Rural Doméstica do Colégio Agrícola Vidal de Negreiros em
Bananeiras. O texto relata a história dos primórdios da sua infância, dando continuidade aos
acontecimentos desde a vida escolar, até suas experiências como educadora do referido curso.

TECENDO MEMÓRIAS: TRAJETÓRIA DA EDUCADORA LIANA BARBOSA DA


MATA

O Curso de Economia Rural Doméstica do CAVN oferecia, também, a Disciplina Arte


Culinária. O objetivo era aguçar nas alunas o desejo em estar na cozinha e despertar a
importância de adquirir técnicas de Arte Culinária. Essa Disciplina era ministrada pela
educadora Liana Barbosa da Mata.
Natural da cidade de Bananeiras, Liana da Mata nasceu no dia 27 de março de 1934.
Filha de Francisco Francelino da Mata e Emília Barbosa da Mata, naturais de Bananeiras, mas
residentes das proximidades de João Pessoa em Mamanguape, Liana não chegou a conhecer o
seu pai e muito menos a morar com a sua mãe. Seu pai morreu vítima de um ataque cardíaco,
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quando ela ainda se encontrava no ventre materno. Sua mãe, então, veio dar à luz na cidade de
Bananeiras, acolhida por quatros tias que lá residiam. Dado todo o processo de parto, Liana
ficou sob os cuidados das quatro tias que acolheram sua mãe.
As lembranças da sua infância são proferidas com lucidez pela educadora. Ela relata
que tinha sim convívio com outras crianças, que gostava muito de brincar de boneca, toca-
toca, academia, ioiô, de jogar pedrinhas, costurar roupas de bonecas, e, de cozinhar. Pelas
palavras da educadora observamos que as brincadeiras vivenciadas por ela, eram típicas de
brincadeiras de meninas, e não é de se estranhar, pois a cidade de Bananeiras também via na
mulher um ser pertencente ao âmbito privado. Nesse caso, brincadeiras teriam que envolver o
ambiente doméstico e familiar, reproduzir os papéis de uma sociedade na qual viam no
homem a figura principal da família e, em contrapartida, viam na mulher um ser que não deve
se afastar das lides domésticas. Nesse sentido, essas representações:

Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos,


representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos ou
femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas
formas de ser e de estar no mundo (LOURO, 1997, p. 28).

De fato, essas representações foram sendo construída na vida da educadora, desde as


brincadeiras até a formação religiosa, e, esta última, embora não gostasse muito, era
incentivada por uma das tias a ir todos os domingos às missas da cidade. Além do mais, ela
estudava em um colégio religioso, o que reforçava essa obrigação.
Liana não deu continuidade aos seus estudos com uma formação de magistério, mas
iniciou o Curso Profissionalizante de Economia Rural Doméstica no CAVN. Concluído o
Curso como aluna, ela foi “convidada” pela Orientadora Educacional Clementina Augusta
Coutinho para ministrar aulas no Curso de Economia Rural Doméstica, mas sem vínculo
empregatício nenhum, mesmo assim ela aceitou. Nesse sentido, ela relata que:

[...] quando fiz um Curso de Economia Doméstica na Universidade, eu tinha


aproximadamente dezessete pra dezoito anos. Ai quando eu terminei eu tinha
muito jeito pra fazer comida, salgadinho, eu tinha jeito, ai mocinha (Clementina),
me levou pra lá, eu trabalhei sem nenhum vínculo com a Universidade. Tinha uma
verba que vinha no final do ano para a Universidade, ai me davam algum dinheiro,

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pouco, e às vezes nem vinha nada, perdia tudo, fiquei assim por muito tempo até
ser admitida lá como funcionária. Era muito difícil a entrada ali, eu só consegui
porque a coordenadora era mocinha (clementina) na época, e como eu tinha esse
vínculo, assim de muita amizade, e era família e tudo, ela viu que eu precisava e
que eu tinha jeito pra parte de culinária, ai me levou pra lá [...] (LIANA
BARBOSA DA MATA, 05/03/2013).

Liana Barbosa entrou no CAVN por meio de indicação e apadrinhamento, algo


comum na época, ela substituiu a esposa do Diretor vigente, Roberto Guedes Pereira, que
na época era professora de Arte Culinária. As vagas para trabalhar no curso de Economia
Doméstica iam surgindo de acordo com a saída de algumas educadoras. Umas casavam,
outras se mudavam para cidades distantes, e, de acordo com os vínculos de amizades iam
sendo convidadas para trabalhar, mas sem portaria, a princípio.
A entrevistada tece os fios do cotidiano daquele curso no CAVN e relata que
qualquer pessoa podia se matricular nas aulas de Economia Doméstica, mas a maioria do
público era da Zona Rural e as moças procuravam aquele curso para obter um meio de
renda financeira. Observamos que a ideologia de fazer com que a mulher se profissionalize
em um curso de “Arranjos do Lar” era um disfarce para que a mesma continuasse no
âmbito da esfera privada. O Curso de Economia Rural Doméstica oferecia a disciplina Arte
Culinária, objetivando a mulher ter uma formação mais ampla a respeito da preparação dos
alimentos.
A fotografia a seguir, apresenta alunas da Disciplina Arte culinária em aula com a
educadora Liana Barbosa da Mata no Curso de Economia Rural Doméstica do CAVN:

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Figura 28: Foto de Liana Barbosa da Mata e suas alunas nas aulas de Arte Culinária
Fonte: Acervo particular do Colégio Agrícola Vidal de Negreiros s/d.

O curso funcionava de segunda a sexta, mas o horário das aulas da Disciplina de Arte
Culinária era só pela manhã, e, atendia a um público numeroso como nos relata à
entrevistada. Todo o material para a prática das aulas era disponibilizado pelo Colégio
Agrícola, advindo de verbas federais.
A respeito do planejamento, se ela fazia ou não, a mesma relata que planejava sim
suas aulas, com as técnicas oferecidas à sua prática na época, como o Plano de Trabalho feito
pela Orientadora Clementina Coutinho e o livro Curso de Economia Doméstica, que davam
suporte as aulas de Arte e Culinária. Assim a respeito do planejamento e do procedimento das
aulas, relata que:

Eu fazia planejamento. Dava uma receita, passava para a aluna, copiava e depois
fazia a demonstração. A gente usava o livro ou qualquer receita boa que a gente
arranjava, que já conhecia, eu preferia fazer as que eu já conhecia, porque a gente
não tinha acesso a toda qualidade de material, não tinha, só tinha o que já tivesse
no almoxarifado, manteiga, ovos, farinha de trigo, coisas mais comuns. Todas
faziam as receitas, todas deixavam a cozinha limpa, não deixava nada sujo. Tinha
também uma frequência, fazia um caderninho e colocava a frequência delas
(LIANA BARBOSA DA MATA, 10/04/2013).

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Nas palavras de Liana observamos que, embora o planejamento não tivesse um


caráter teórico, ela o via como algo necessário, e buscava apoiar-se no livro Curso de
Economia Doméstica e no Plano de Trabalho que lhe era dado. Além do mais, havia
limitações para se cumprir tanto com o que o livro sugeria, quanto o que o plano de
trabalho exigia, uma vez que, nem todas as receitas podiam ser executadas, visto que não
havia a disponibilização de todos os ingredientes.
As instruções contidas no livro para a técnica de culinária eram pautadas numa
educação saudável, com hábitos e princípios de nutrição que fizessem com que as alunas
valorizassem e compreendessem a importância dos alimentos. Dessa forma, era
imprescindível saber preparar uma boa alimentação. Por isso o livro além de ensinar esse
preparo, apresentava receitas culinárias das mais simples as mais sofisticadas para as alunas
principiantes na arte de cozinhar, trazia orientações quanto à maneira correta de se alimentar,
a qualidade desses alimentos, entre outros.
Além disso, as diversas imagens contidas no livro reforçavam o papel da mulher
dentro do lar, como o principal e mais importante de todos os trabalhos, ideologizando a
cozinha como um dos passatempos favoritos da mulher. A Orientadora do Curso de
Economia Rural Doméstica se baseava nas instruções do livro para preparar os Planos de
Trabalhos das educadoras. Mas será que esse plano era cumprido por elas? Havia uma
relação entre o que estava escrito com a prática das suas aulas?
As receitas registradas no diário de classe eram o mais simples possível:
macarronada, bolo de cenoura, bolo de fubá, empadinhas, bifes enrolados, pudim de leite,
entre outras. Outro fator que chamou atenção, é a respeito do conteúdo, por vezes dado
continuidade no dia posterior, fato comum nas aulas registradas pela educadora Liana. O que
nos fez indagarmos se as aulas não eram registradas apenas por formalidade?
Dessa forma, as orientações contidas no Plano de Trabalho, para que fossem
discutidas as propostas do livro de Economia Doméstica, não aparecem nos registros, o que
nos leva a cogitarmos o não cumprimento de parte do referido Plano. Outro fator que
observamos, foi a não realização de aulas por falta de material para execução das receitas.
Por vezes faltavam gás e produtos alimentícios, o que impossibilitava a realização das aulas.
Havia também a alegação de doenças como um dos motivos para não haver aulas, esses
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fatores podiam ser uns dos motivos que explicam todas aquelas repetições de aulas.
Observamos que Liana pouco seguia os pressupostos do livro, tal qual estava exposto
nele, mas tentava nas rotinas de suas aulas discutir a organização do material, o lugar onde
ficavam guardados os mantimentos, a arrumação da cozinha ao término das aulas, e as
receitas eram estudadas antes de serem preparadas. Enfatizamos aqui, que a educadora não
fez o magistério, por esse motivo não tinha uma formação docente de como proceder
metodologicamente em uma sala de aula, justificando assim, sua falta de planejamento
sistematizado.
Com o tempo, o curso foi perdendo seu espaço decorrente de vários fatores. A
Disciplina Arte Culinária, por exemplo, foi sendo extinta aos poucos por falta de material
para as aulas práticas. Com a falta de verbas, a aposentadoria da maioria das educadoras, e
principalmente a falta de interesse da instituição em dar continuidade ao Curso, ele foi sendo
extinto aos poucos. O que restou foram umas alunas que trabalharam na Técnica de Couro
com Liana e que deram certa continuidade ao Curso, mas não dentro da instituição, e sim em
um anexo cedido pela Prefeitura de Bananeiras na cidade.
Liana deu entrada na aposentadoria em 1981, com deferimento em 1983. Após isso,
não exerceu mais nenhuma função trabalhista, ficando reservada em sua residência. A
educadora teve grande importância na educação local daquele município, e, foi significativa
sua contribuição para o curso de Economia Doméstica do Colégio Agrícola Vidal de
Negreiros em Bananeiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto, evidenciamos que só foi possível analisar as práticas docentes da


educadora, através da abordagem da Nova História Cultural, a qual me permitiu através da
memória, evidenciada tanto na oralidade, quanto nos documentos escritos, registrar a história
de vida de Liana Barbosa da Mata, dando ênfase ao período em que ela ministrou aulas no
Curso de Economia Rural Doméstica em Bananeiras.
Escrever a história das mulheres é algo árduo, visto que por muito tempo os relatos
historiográficos abordavam apenas a história dos homens. A Nova História Cultural abriu
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possibilidades com novas abordagens de estudos, os quais incluíam as mulheres na história.


Essas mulheres “comuns”, como é o caso da educadora do CAVN, através dos seus relatos
nos permitiu a partir da memória do tempo presente, rememorar e ressignificar sua história.
A educadora não era professora primária, e, sim de artes manuais. Tal constatação me
fez ver os vários espaços de formação educacional. Aquela que é voltada para o ensino da
instrução do ato de ler e escrever, e a outra para a técnica do fazer, que é o caso das aulas do
Curso de Economia Rural Doméstica, totalmente preparatório.
Nesse sentido, analisar suas práticas nos fez compreender uma parte da história da
educação da cidade de Bananeiras. Os colégios existentes, as práticas escolares, com
características de uma cultura escolar da época impregnada pelas questões de gênero que
definiam espaços e atitudes “adequadas” a homens e mulheres daquele contexto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Beltrão [et al] Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 1990.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-
estruturalista – Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
MACHADO, Charliton José dos Santos; SILVA, Fabiana Sena da; NUNES, Maria Lúcia da
Silva. Maria José Mamede Galvão: tessituras de memórias. João Pessoa: Editora da UFPB,
2012.
PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. As novas abordagens no campo da história da
Educação Brasileira. In: PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira; XAVIER, Libânia;
TAMBARA, Elomar;. (Orgs.). História da Educação no Brasil: matrizes interpretativas,
abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. Vitória: EDUFES,
2011.
REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em história. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
WERLE, Flávia Obino Corrêa; ESQUISANI, Rosimar Serena. Cursos de formação de

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professores de primeiras letras e formação do habitus. In. FERREIRA, Márcia Ondina


Vieira; FISCHER, Beatriz T. Dudt; Et.al (org.). Memórias Docentes: abordagens teórico-
metodológicas e experiências de investigação. São Leopoldo: Oikos; Brasília: Liber Livros,
2009.

Fontes orais
Liana Barbosa da Mata. Entrevista concedida a Wanderléia Farias Santos. Bananeiras - PB,
09 de novembro de 2012.
_____________________. Entrevista concedida a Wanderléia Farias Santos. Bananeiras - PB,
20 de fevereiro de 2013.
____________________. Entrevista concedida a Wanderléia Farias Santos. Bananeiras - PB,
05 de março de 2013.

___________________. Entrevista concedida a Wanderléia Farias Santos. Bananeiras - PB,


10 de abril de 2013.

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ENTRE-LUGARES DE GÊNERO/SEXUALIDADE E SUAS RESSONANCIAS NO


CURRÍCULO DA DIFERENÇA

Camila Claíde Oliveira de Souza365 | camilaclaide@hotmail.com


Gilcilene Dias da Costa366 | camilaclaide@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Este texto integra uma pesquisa de Mestrado Acadêmico em Educação da UFPA, na


qual se busca analisar as teias discursivas produtoras dos entre-lugares da diferença de
gênero/sexualidade no currículo do Curso de Pedagogia da UFPA-Belém, dando visibilidade
às vozes de estudantes e suas impressões sobre a produção da diferença no currículo
acadêmico de modo a pensar o currículo na perspectiva da diferença. A escolha do tema tem
em vista perceber a trajetória que o tema da diferença vem traçando nos estudos pós-críticos
de currículo com suas múltiplas possibilidades de criar, recriar, imaginar ou até mesmo
explorar o currículo na perspectiva da diferença.

Os caminhos desta investigação são construídos no campo teórico dos Estudos


Culturais, com Stuart Hall (1999), Homi Bhabha (2013); Teorização Pós-crítica do currículo,
com Tomaz Tadeu da Silva (1995; 1996; 2006; 2007); Corazza (2001); Gilcilene Costa (2003,
2013), Pavan (2015), Marlucy Paraiso (2005); Skiliar (2003); e com estudos de
gênero/sexualidade, com Louro (2004; 2008), autores que tecem discussões relevantes sobre a
problemática da diferença.

365
Mestranda 2014 da UFPA, bolsista CAPES; integrante do grupo de pesquisa PHILIA – Filosofia, Linguagem
e Alteridade na Educação –UFPA.
366
Doutora em educação pela UFRGS. Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) vinculada aos
Programas PPGED/UFPA, PPGEDUC/UFPA, PPEB/UFPA. Coordenadora do Grupo de Pesquisa PHILIA –
Filosofia, Linguagem e Alteridade na Educação.
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A pesquisa se caracteriza como um estudo bibliográfico, a partir de uma abordagem


pós-crítica do currículo, tomando como procedimento a análise discursiva das diferenças
(aqui com recorte de gênero/sexualidade) em diálogo com as vozes fronteiriças de autores dos
Estudos Culturais e de estudantes do Curso de Pedagogia da UFPA-Belém, a fim de obter um
maior entendimento do conceito de “entre-lugares” da diferença nas mediações do currículo
na educação.

A preocupação central nesta pesquisa é com a produção dos entre-lugares da diferença


no currículo acadêmico, atravessada por silenciamentos, constrangimentos, humilhações e
agressões, mas também, por movimentos de resistência, transgressão e afirmação das
diferenças, fluxos de um ir-e-vir presentes nas vozes de sujeitos/fronteiriços em constante
transição, bordejando a perspectiva de um currículo da diferença no campo curricular. Para
Costa (2013, p. 1-2),

o procedimento da pesquisa consistirá em seguir as pistas deixadas por


autores que bebem nas teorizações pós-crítica, numa tentativa de ensaiar a
construção de tópicos de formulação de pesquisa por meio dos quais seja
possível avistar as próprias concepções da diferença, a elaboração de um
problema de pesquisa, com o diálogo com intercessores, a construção do
método, as perspectivas de análise e estilos de escrita inspiradores de um
modo singular de pesquisar mediante a criação de problema.
Perscrutar os entre-lugares da diferença nas trilhas dos Estudos Culturais nos levará a
descobrir um pouco mais sobre os processos de (in)visibilização da diferença no campo
curricular, considerando a importância do conceito de entre-lugares para pensar o currículo na
perspectiva do “descentramento, desconstrução, agressão do pensamento metafísico ocidental,
efetivados pelos Estudos Culturais” (SOUZA, 2007, p.2). Levando em consideração a
expressão utilizada por autores que bebem em fontes no campo cultural, ressalta-se que o
conceito de entre-lugares constitui um importante operador de “leitura, que se costumou
chamar de Estudos Culturais, dialogando com noções e conceitos pertinentes à sua formação
discursiva” (SOUZA, 2007, p.1).

Sobre o termo, e dialogando com Souza (2007, p.2), pensamos com base em uma
visão teórica e historiográfica dos Estudos Culturais, não como área de conhecimento
fechada, hierarquizada e com princípios fixos, mas como um campo aberto às continuidades,
às descontinuidades, à concentração e à dispersão. Esse grande jogo interpretativo instiga a
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mergulhar nesse campo de estudo vislumbrando uma melhor compreensão e ampliação


temática.

Conforme Souza (2007, p.2), a dispersão ajuda a compreender a ideia de entre-lugares


não como fixidez, mas como possibilidade estratégica que permite a ativação de temas
incompatíveis, ou ainda, a introdução de um mesmo tema em conjunto, situações diferentes.
Souza (2007, p.5) sugere o que vem a ser esse termo entre-lugares tão americanizado, mas
que dá pistas para pensá-lo na contemporaneidade como:

Deslocar, descentrar, desconstruir poderia sugerir, respectivamente: tirar ou mudar


um lugar (ou de lugar), ser contrário a um determinado centro e a uma determinada
construção. O pensamento, entretanto, é mais sutil: dar visibilidade, reforçar as
ideias de lugar, centro e construção, para Foucault e Derrida é mais interessante do
que simplesmente negá-las, mesmo porque algo só pode ser contrariado ou atacado
se visto, e bem visto.

Um caminho de dispersão que pode ser feito da matéria dos sonhos, da escolha de ir
e vir, do nosso corpo e espírito. Esse movimento dos entre-lugares, sobretudo intersticial,
está relacionado com a diferença, diferença que buscaremos ler por novas lentes teóricas
capazes de repensar os caminhos de um currículo e uma educação atentas às questões das
diferenças de gênero e sexualidade como um dos recortes de suas tramas e produções.

FIANDO UMA INCURSÃO NOS ENTRE-LUGARES DOS ESTUDOS CULTURAIS

Corroborando tal perspectiva, faz-se imprescindível o estudo do conceito de “entre-


lugares” uma vez que se mostra “teoricamente inovador e politicamente crucial e a
necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de
focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças
culturais” (BHABHA, 2013, p.20).

As diferenças culturais estão presentes remotamente nas sociedades humanas como


um componente constitutivo, mas como campo de discussão fecundo elas se estabelecem na
contemporaneidade, de forma talvez mais acentuada nos Estudos Culturais que, ao
interfacearem o tema da diferença de gênero/sexualidade aos saberes culturais, impulsionam a
problematização do conceito de entre-lugares, incidindo nos modos de problematizar/pensar o

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currículo na perspectiva da diferença. O que leva a pensar, a partir de Bhabha (2013, p. 20),
os entre-lugares como um, “[...] terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação –
singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de
colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade”.

Apoiado na perspectiva Pós-crítica do currículo, o texto enfatiza a reinvenção de um


currículo como uma das possibilidades de respostas à multiplicidade de quereres e questões
que fazem dos “entre-lugares” da diferença no currículo um campo de investigação. É preciso
pensar a noção de entre-lugares da diferença no texto curricular como um processo de
significação e ressignificação do próprio currículo, como ou abertura ao novo, ao
desconhecido.

Sobre essa (re)significação pós-moderna, Bhabha (2013, p.29) diz que a

[...] ampla condição pós-moderna reside na consciência de que os "limites"


epistemológicos daquelas ideias etnocêntricas são também as fronteiras
enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes -
mulheres, colonizados, grupos minoritários, as portadores de sexualidades
policiadas.
Uma das formas de incursionar os entre-lugares da diferença no campo curricular
consiste em considerar que o estudo da diferença tem uma importância valiosa para a
educação e para a sociedade, sobretudo para a produção do conhecimento em uma abordagem
investigativa pós-crítica, relativamente recente na Pós-Graduação em Educação na região
Norte. Aprofundar essa temática instiga a ousar nesta abordagem em educação, como uma
“borboleta batendo asas” e voando pelo universo gigantesco do campo curricular.

Preocupada com os “entre-lugares” da diferença de gênero/sexualidade e suas


ressonâncias no campo curricular, essa escolha investigativa tem uma aproximação com a
linha de pesquisa Educação: Currículo, Epistemologia e História, que por sentir um desejo de
investigação dos entre-lugares da diferença no campo curricular permeado pelos Estudos
Culturais e Teorização Pós-Crítica em educação, temática construída em parceria com a
professora-orientadora do estudo.

Em função desses desejos, e pela pouca discussão sentida na academia a respeito do


estudo “pós” (pós-moderno, pós-estruturalista, pós-crítica), o presente texto visa um

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aprofundamento do conceito de entre-lugares da diferença no campo curricular, e ultrapassa


os interesses individuais dessa questão, uma vez que se soma aos esforços de pesquisas pós-
críticas em educação enquanto busca por outros olhares da Diferença de gênero/sexualidade e
o tensionamento dos saberes historicamente instituídos no campo curricular.

Segundo Costa (2013, p.8), no campo da pesquisa em educação, “o pensamento da


diferença nos chega pelas vias dos estudos do currículo e nos interpõem difíceis desafios:
imprimir um duplo exercício ao pensar da crítica mediante as ‘imagens dogmáticas do
pensamento’ que imobilizam o acontecimento e a singularidade dos fenômenos”.

As questões que ora nos instigam são: De que modo o conceito de entre-lugares,
desenvolvido por autores dos Estudos Culturais, permeia a produção de diferenças de
gênero/sexualidade no Curso de Pedagogia? Que entre-lugares a diferença ocupa nos jogos de
poder-saber que configuram seu processo de (in)visibilização no campo curricular? Por meio
de quais desdobramentos ou ressonâncias é possível pensar um currículo na perspectiva da
diferença?

O conceito de entre-lugares (e não propriamente “lugares”) configura aqui um


elemento intersticial onde se movimentam as diferenças (gênero/sexualidade, para
exemplificar algumas) no campo curricular, em meio aos jogos de poder-saber e seus
movimentos de negação e afirmação, (in)visibilidade e silenciamentos.

Nesse sentido, é indicado como indispensável que se tenha uma sensibilidade e


consciência que o estudo da diferença tem no currículo pós-crítico, sobretudo as bases
metodológicas pós-críticas como o traçado investigativo desenhado nessa pesquisa. Para
Dagmar Meyer e Marlucy Paraíso (2014), nas pesquisas pós-críticas o termo metodologia é
tomado de modo bem mais livre do que o sentido pós-moderno atribuído ao “método”.

A metodologia é entendida por Meyer e Paraíso (2014) é entendida como um certo


modo de perguntar, de interrogar, de formular questões e de construir problemas de pesquisa
que são articulados a um conjunto de procedimentos de coleta de informações que, em
congruência com a própria teorização, preferencialmente se chama de ‘produção’ de
informações e de estratégias de descrição e análise. [...] Compreende-se o método como uma

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certa forma de interrogação e um conjunto de estratégias analíticas de descrição.

O estudo da diferença, por se tratar de um campo de estudo diversificado em seus


matizes teóricos-metodológicos, toma por base estudos ao modo das teorizações curriculares,
na discussão da diferença, reiterando a ideia de que “o texto não visa apontar soluções ou
caminhos teórico-metodológicos que orientam as práticas de pesquisa em educação, e sim
realçar a ideia de que a forma de expressão desse estilo arrasta o seu conteúdo, criando
condições de possibilidades do novo campo da pesquisa”. (COSTA, 2013, p. 1-2).

Os argumentos aqui situados na perspectiva da diferença destacam que, “no


pensamento da diferença, a identidade é retomada pelo viés crítico do tratamento da
diferença” (COSTA, 2002). A autora ressalta que em diversos estudos críticos a diferença
existe em relação ao conceito de identidade como “falta”, “carência”, no entanto, na
perspectiva pós-crítica a diferença não é vista nem como “falta” ou “carência”, nem como
“totalidade” que serve para nomear pessoas, grupos, culturas de forma homogênea e unitária.
Para os novos olhares do pensamento da diferença no campo das teorizações curriculares pós-
críticas, a diferença tem relações com a identidade porque,

Embora tendamos sempre a classificar como “diferente” aquilo que é exterior a nós,
nossa própria constituição também é composta pelo outro que, ao mesmo tempo, é
interno e externo a nós. No entanto, esse [nosso] outro muitas vezes nos causa
estranheza e perplexidade diante da ‘norma’, e, então fazemos questão de ocultá-lo,
reprimi-lo sob o risco de vivermos “marcados” pela sombra da “diferença”.
(COSTA, 2002, p. 42).
O estudo da Diferença, para Costa (2002, p. 44), demonstra que “atualmente as
discussões e polêmicas em torno da diferença estão muito mais evidenciadas em diversos
campos de estudo e acredita-se que uma das coisas a fazer é ousar esbarrar nos limites e
fronteiras desse terreno, movidos pelo sonho de inventar e produzir outras escritas” abertas à
perspectiva de pensar “uma política e uma poética da diferença” que ultrapasse os cânones do
conhecimento e as fronteiras da benevolência social por meio da “subversão de certas práticas
historicamente naturalizadas no cotidiano de nossas atividades sociais, educativas, culturais,
profissionais”. Diante disto, consideramos que o currículo é marcado por diferenças de
gênero/sexualidade, pois a diferença está presente em todos os aspectos da vida, uma vez que
é parte constitutiva da cultura.

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Com o propósito de contextualizar essa discussão, no decorrer da pesquisa


adentraremos na abordagem curricular da diferença no Curso de Pedagogia da UFPA-Belém,
buscando uma visibilidade e um ressoar de vozes e impressões de estudantes concluintes do
Curso no tocante à produção discursiva da diferença no currículo acadêmico.
A realização de entrevistas por meio de diálogos e conversas livres com os sujeitos da
pesquisa terá por objetivo fazer emergir as ressonâncias e os vestígios da exclusão de sujeitos
fronteiriços no contexto curricular, no ecoar das vozes dos discentes, em sua trajetória de
formação no Curso de Pedagogia. A partir da escuta desses sujeitos, acreditamos ter a
possibilidade de compreender os movimentos dos entre-lugares da diferença no campo
curricular, ressaltando algumas características descritivas desses sujeitos e os deslocamentos
culturais operadores da diferença no contexto educacional de formação superior, buscando
fortalecer uma cultura eurocêntrica com pretensões de universalidade, (in)visibilização, e
outras culturas com seus saberes, suas crenças, seus costumes.

VOZES QUE NÃO QUEREM CALAR

O outro foi suficientemente massacrado. Ignorado. Silenciado. Assimilado.


Industrializado. Globalizado. Cibernetizado. Protegido. Envolto. Excluído.
Expulso. Incluído. Integrado. E novamente assassinado. Violentado. [...] E voltou
a estar fora e a estar dentro. A viver em uma porta que possamos ser tão impunes
ao mencioná-los e observa-lo novamente. O outro já foi medido demais como
parte que tornaremos a calibrá-lo em um laboratório desapaixonado e sepulcral.
(SKILIAR, 2003, p.29)

A possibilidade de descortinar a temática da diferença de gênero/sexualidade na forma


como nos propomos nesse estudo, constitui uma oportunidade de (re) significar conceitos e
saberes, chamando a atenção para um assunto que se interpõe no cotidiano social com a maior
relevância, mas devido a diversos fatores históricos e discursivos restou selado com o lacre da
(in) visibilidade e da (in) significância face ao predomínio da diferença no currículo superior
atravessada por silenciamentos, constrangimentos, humilhações e agressões, mas também, por
movimentos de resistência, transgressão e afirmação das diferenças, fluxos de um ir-e-vir
presentes nas vozes de sujeitos/fronteiriços em constante transição, bordejando a perspectiva
de um currículo da diferença.

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Os entre-lugares da diferença e suas fronteiras percorridas no currículo nos ajuda em


uma compreensão de “perda daquelas fronteiras, a existência de alguns entrelugares que já
não (re) representam com tanta claridade nem o centro nem sua suposta periferia” (SKILIAR,
2003, p.99). Essa compreensão ressoa na formação dos sujeitos do curso de Pedagogia.
Do ressoar das vozes desses sujeitos se colherão os indícios da dominação do outro
mas também as resistências das vozes da exclusão de grupos minoritários, silenciados, que, de
alguma forma, se escamoteiam historicamente em nossa sociedade. Na busca por mais uma
trilha no campo da pesquisa, os entre-lugares da diferença no campo curricular se justificam
com o objetivo de dar visibilidade às ressonâncias das diferenças no campo curricular, em
especial aos sujeitos concluintes do Curso de Pedagogia. Quando nos propomos a analisar as
teias discursivas produtoras dos entre-lugares da diferença de gênero/sexualidade no campo
curricular confrontamo-nos não mais com uma brisa, mas com pancadas de ventos fortes,
carregados de questionamentos por estudiosos no campo da construção do conhecimento, em
seminários, colóquios apresentados no percurso da pesquisa.
Nesta pesquisa, não temos a pretensão de tomar os discursos dos sujeitos como
“objeto” de análise, pois os sujeitos são efeitos das linguagens, dos seus discursos e suas
produções. Ao contrário, almeja-se estabelecer conjuntamente um diálogo como
interlocutores e colaboradores da pesquisa, dando relevo às suas vozes, impressões,
silenciamentos, presenças e ausências nos processos de construção dos entre-lugares da
diferença no campo curricular no Curso de Pedagogia.
No que tange a essa pesquisa, o discurso dos discentes são considerados como
construção de significados, o que para Foucault (arqueologia do saber), “são práticas que
formam sistematicamente os objetos de que fala”, nas relações com esses sujeitos, de culturas
e diferenças. Por isso, nessas entrevistas, não estamos supondo um sujeito preexistente às
formações discursivas assim como não temos a pretensão de encaixar a discussão da diferença
e o respeito dela na formação desses sujeitos, pois, de acordo com nosso campo investigativo,
os entre-lugares da diferença podem estar silenciados ou (in)visíveis nas relações culturais
desses sujeitos fronteiriços.
Pensamos que através dessas entrevistas encontraremos visibilidades ou
(in)visibilidades da diferença através de suas ressonâncias no campo curricular, em especial,
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certamente são concepções diferentes entre as quais esses sujeitos se movimentam e que
forjam seus entre-lugares no curso da formação.
As entrevistas com os discentes poderão nos mostrar o quanto a pós-modernidade
circula pelos porões367 dos nossos pensamentos no campo do conhecimento, em especial na
academia, subjetivando esses sujeitos a produzir conhecimento e a debater os entre-lugares da
diferença no contexto contemporâneo. As entrevistas foram realizadas por meio de conversas
livres ou diálogos, com base nos estudos pós-críticos, objetivando analisar as teias discursivas
produtoras dos entre-lugares da diferença de gênero/sexualidade no currículo do Curso de
Pedagogia da UFPA-Belém.
Foucault (2004, p. 180) enfaticamente assinala que:
A crítica consiste em desentocar o pensamento e em ensaiar a mudança; mostrar que
as coisas não são tão evidentes quanto se crê; fazer de forma que isso que se aceita
como vigente em si não o seja mais em si. Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos
fáceis demais. Nessas condições, a crítica – e a crítica radical – é absolutamente
indispensável para qualquer transformação.

Nesse sentido, mediante as falas dos sujeitos no decorrer da pesquisa, buscamos


mostrar como essas vozes silenciadas circulam na academia por meio de discursos
profundamente marcados pelos entre-lugares da diferença, pelo desconhecido. Ruth Pavan
(2015) nos faz lembrar que na perspectiva pós-estruturalista o sujeito é um efeito dos
discursos, que não existe sujeito anterior ao discurso, nem fora dos discursos. Portanto, o que
os discentes disserem no decorrer de suas entrevistas “não deriva do seu interior, mas é um
efeito do exterior que os construiu. Notadamente, como todos nós, os sujeitos são um efeito
de outros discursos, dos discursos modernos, com suas pretensões de universalidade cultural,
uma normalidade, homogeneização e diversidade e padronização” (TEDESCHI; PAVAN,
2015, p.3).
Essa pesquisa constitui uma oportunidade de chamar a atenção para um assunto que
se impõe a nós no cotidiano como algo natural, afinal, a diferença existe na própria natureza
das sociedades. Então, temos um cuidado de não tratá-la como uma fragmentação identitária,
desta forma, nos entrelaçamos com a importância desse estudo. Como ouvir as vozes que não
querem mais calar?

367
Veiga-Neto (2013).
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Além de tudo que já dissemos até aqui, podemos mais uma vez explicitar que esse
não é um assunto tão simples assim. Afinal, as diversidades, no geral, não são tomadas como
algo harmonioso, tomam a forma de conflito, lutos, lutas. Há uma espécie de resistência ao
diferente.
[...] um eu que pensa igual, acredita nos mesmos deuses, vive de modo “estável” e,
de repente, percebe que existe um outro que não compartilha das mesmas crenças.
Esse contato com que se mostra de modo distinto do padrão ocorre, em geral, de
modo turbulento: perturba e ameaça a desintegrar a identidade “estável” da
sociedade do eu. (MELLO E KRONBAUER, 2008, p.36).
Os debates tecidos sobre a problemática da Diferença de gênero/sexualidade de forma
autônoma vêm ganhando uma maior proporção em fóruns, seminários, grupos de pesquisa e
apontam que não se trata de uma questão simples. Em verdade, a perspectiva pós-crítica em
educação, recebe influências da chamada “virada linguística, e ou ontológica”, da “filosofia
da diferença” que desde algum período obteve espaço em debates e pesquisas, em especial na
pós-graduação stricto sensu, com a influência do pós-modernismo, do pós-estruturalismo, da
teoria Queer, em especial nesta pesquisa, dos Estudos Culturais.

PARA CONTINUAR FIANDO O PESQUISAR...

Esta pesquisa busca esboçar os estudos em construção no trabalho dissertativo do


Curso de Mestrado em Educação (PPGED/ICED/UFPA), visando descortinar os entre-
lugares e suas ressonâncias para pensar o currículo na perspectiva da diferença, aproximando
dos Estudos Culturais e das Teorizações Pós-críticas de currículo em educação, apresentando
uma análise preliminar da diferença de gênero/sexualidade nesse campo intersticial de
construção e reconstrução de saberes.

O diálogo a ser tecido com os interlocutores estudantes do Curso de Pedagogia da


UFPA, fazendo transparecer os entre-lugares da diferença de gênero e sexualidade nos
meandros curriculares, se articula à busca da relevância dessas discussões que visam
contribuir para um novo olhar sobre a diferença no currículo acadêmico, de forma a renascer
sua prática, desafiando as teorizações curriculares historicamente hegemônicas. Por ora
sinalizamos, nesses escritos, algumas pistas sobre essa pesquisa em torno da qual circulam
temas como entre-lugares, diferença e suas ressonâncias no campo curricular, com seus
desdobramentos e impactos nos cotidianos de nossas práticas, saberes, instituições
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG,2013.


COSTA, Gilcilene Dias da. Entre a política e a poética do texto cultural - a produção das
diferenças na Revista Nova Escola. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, UFRGS, 2003.
______. Labirintos do filosofar/pesquisar com Nietzsche e Deleuze,
36ª Reunião Nacional da ANPEd – 29 de setembro a 02 de outubro de 2013, Goiânia-GO.
COSTA, Mariza Vorraber. Estudos Culturais em educação: mídia, arquitetura,
brinquedo, biologia, literatura, cinema. Porto Alegre. UFRGS, 2000. In: Costa, Mariza
Vorraber. Estudos Culturais- para além das fronteiras disciplinares
FOUCAULT, Michel. O cuidado com a verdade. In Ditos e Escritos. Vol. V. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2004.
HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Humanas,
2013.
SOUZA, Marcos Aurélio dos Santos. O entre-lugar e os estudos culturais. the between-
place and the cultural studies. Revista Travessias, 2007.
SKILIAR, Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse ai? Rio de
Janeiro, DP&A, 2003.
VEIGA NETO, Alfredo. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

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GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NA ESCOLA: SABERES E PRÁTICAS


DOCENTES

Francisca Genifer Andrade de Sousa | geniferandrade@yahoo.com.br


Lorena Brenda Santos Nascimento | lohsantos02@gmail.com
Lia Machado Fiuza Fialho | lia_fialho@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

Na condição de bolsistas do PIBID realizamos observação e participação no


cotidiano de uma escola pública de Fortaleza-CE no período de Fevereiro de 2014 a Junho de
2015. As experiências adquiridas nos possibilitam argumentar que o ambiente educacional se
posiciona de modo alheio aos debates relacionados às manifestações de discriminação de
gênero e diversidade sexual. Considerando que a escola, em parceria com a família tem o
dever de formar o pleno cidadão, as atitudes desencadeadas dentro dos ambientes de ensino
formais influenciam diretamente nas posturas e ações dos educandos. O educador por sua vez,
assume um dever que vai além do desenvolvimento dos conteúdos estabelecidos pelos
currículos, na medida em que a formação do indivíduo ultrapassa tais questões. Em nossas
vivências no âmbito da Educação Básica, percebíamos que frequentemente os educadores
ignoravam as demonstrações de preconceitos no que concerne à diversidade sexual e
evitavam discutir sobre gênero em sala de aula. Os posicionamentos do educador frente a
essas questões possui significativa potencialidade para fortalecer ou amenizar ações
discriminatórias.
Aqui, questionam-se as compreensões de educadoras a respeito das abordagens
relacionadas a gênero e diversidade sexual em suas respectivas práticas docentes, enfatizando
o teor dos seus posicionamentos para a formação cidadã do educando e de respeito aos
direitos humanos. A pesquisa enseja compreender os conhecimentos de educadores da
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Educação Básica acerca da diversidade de orientação sexual, suas manifestações no âmbito da


educação formal e como essas expressões são interpretadas em sala de aula. Inferimos que se
os docentes não intervêm de modo a disseminar o respeito à diversidade, poderão
contribuir mesmo que inconscientemente, para a propagação de uma cultura preconceituosa e
discriminatória de determinados grupos, tais como gays, lésbicas e bissexuais que vem
ficando às margens não só da educação formal (ARANTES, 2015).

Desde 1970 começam surgir discussões de gênero e sexualidade na área acadêmica.


Essa foi uma conquista principalmente de gays, lésbicas e feministas, que neste momento,
lutaram contra a exclusão das suas representações nos currículos escolares. Essas discussões,
durante muito tempo ficaram restritas principalmente às áreas da sociologia e da psicologia,
portanto, questões como sexualidade, diversidade sexual e de gênero são recentes no
panorama educacional.
A escola é um dos locais mais propícios para se discutir pluralidade de identidades e
diversidade de comportamentos sociais. Assim, é de imensurável importância que ela
contribua para a formação dos valores, reconhecimento e respeito à pluralidade, pois, é
imprescindível que um ambiente que vise formar o indivíduo, considere tais aspectos. “Como
espaço de construção de conhecimento e de desenvolvimento do espírito crítico, onde se
formam sujeitos, corpos e identidades, a escola torna-se uma referência para o
reconhecimento, respeito, acolhimento, diálogo e convívio com a diversidade” (Secad/MEC,
2007).

METODOLOGIA
Esse trabalho foi realizado mediante uma pesquisa qualitativa (NEVES, 1996), que
objetivou tomar conhecimento das compreensões de docentes da Educação Básica pública
municipal de Fortaleza-Ce acerca da temática gênero e diversidade sexual na escola.
Enfatiza-se o modo que o fazer pedagógico fundamentado na diversidade é interpretado e
trabalhado em sala de aula. A investigação apoia-se no estudo de caso de 03 (três) professores
da Escola Municipal Professor Francisco Maurício de Mattos Dourado. Ambos os sujeitos
foram selecionados aleatoriamente.
1083
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As entrevistas desenvolvidas com docentes de turmas variadas assumiram um caráter


semiestruturado, e envolveram quatro questionamentos básicos. 01) O que significa afirmar
que há diversidade sexual? Percebe essa diversidade dentro da escola? 02) Você já presenciou
alguma manifestação preconceituosa entre os alunos por razões relacionadas à orientação
sexual? Como você se portou frente a esse acontecimento? ; 03) Considera importante discutir
sobre gênero e diversidade sexual na escola? Justifique. ; 04) A seu ver, a escola está sendo
capaz de contribuir para disseminar o respeito às diferenças, mais especificamente no que se
refere às diferentes orientações sexuais?
A escola lócus da pesquisa é espaço de atuação dos bolsistas de Iniciação à Docência
do Projeto PIBID, tornando o local propício para observação cotidiana e realização das
entrevistas. Ela oferta 15 (quinze) turmas nos turnos manhã, tarde e noite, que englobam a
Educação Infantil, Ensino fundamental I (do 1º ao 5º ano) e Educação de Jovens e Adultos -
EJA, contando ainda com o atendimento Educacional Especializado (AEE). Em média,
somam-se 1056 (mil e cinquenta e seis) alunos no total.
Dos 05 (cinco) professores abordados, somente 03 (três) se disponibilizaram a
colaborar com a entrevista. A participação de ambos ocorreu de maneira espontânea e todos
assinaram o termo de consentimento. Por questões éticas, nenhum dos sujeitos será
identificado, portanto, os professores serão renomeados de D1, D2 e D3, conforme sucedeu a
ordem das entrevistas.
As informações foram coletadas a partir da história oral temática, onde fazendo uso
das gravações, as falas foram transcritas, textualizadas e validadas para posterior análise do
discurso (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005), que por sua vez, apontam as respostas dos
professores às perguntas indagadas. As reflexões serão expostas com o intuito de melhor
encaminhar as discussões que sucedem objetivando cumprir o principal objetivo desse estudo,
que é conhecer e problematizar as compreensões e atitudes de professores das primeiras séries
da educação básica sobre as manifestações de gênero e diversidade dos sexos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
A atual Constituição Federal Brasileira foi promulgada em 1988. De acordo com esse
documento, é assegurado a todos, o direito à educação formal. Conforme explicitado em seu
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artigo 6°, devem ser garantidas pelo Estado, as condições necessárias para o acesso e a
permanência do indivíduo no ambiente educacional. Entretanto, pesquisas recentes mostram
que grupos específicos tem se afastado de maneira alarmante dos bancos escolares.
Gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (GLBTs) compõem outro grupo
populacional que tem seu direito fundamental à educação violado com, igualmente,
altas taxas de evasão escolar. (...) pesquisas qualitativas sinalizam a recorrência com
que a exclusão escolar aparece nas trajetórias de vidas das pessoas GLBT e são
sempre associados ao ódio e violência perpetrados contra essa população dentro do
ambiente escolar. As pessoas que não se submetem aos padrões de feminilidade,
masculinidade e orientações sexuais encarados como normais, a partir da ótica dos
padrões sociais dominantes, são reiteradamente expostas, no ambiente escolar, a
violação de direitos, agressões físicas e verbais e discriminação de todo tipo. Suas
diferenças convertem-se em reais desigualdades (ARANTES, 2015, p. 02).

Ainda que as práticas exclusivistas e/ou discriminatórias não sejam restritas ao


ambiente escolar, é evidente que esse local possui capacidade suficiente para fortalecer (ou
coibir) ações relacionadas a esse aspecto. Portanto, é imprescindível que questões
pertencentes à diversidade sejam (re)conhecidas, compreendidas e progressivamente
discutidas no ambiente escolar à luz dos direitos humanos. Em contraponto, muitos
educadores preferem evitar qualquer tipo de debate sobre essa temática nas salas de aula,
principalmente por julgar desnecessário. É o que condiz D1:
“Eu percebo as diferenças. A gente vive numa sociedade diferente.
Ninguém é igual a ninguém. Tem o homem, a mulher, e tem os
homossexuais, e outros que a gente sempre escuta falar, né? Na
escola a gente também percebe a diferença entre os alunos. Tem a
menina mais feminina, tem a menina que é mais forte, digamos assim.
Tem o menino mesmo e tem o menino mais delicadinho. Mas eu pelo
menos não discuto essas diferenças. Eles já veem a todo momento.
Acho que nem precisa a gente discutir sobre isso mais não.”

Um dos primeiros indícios de preconceito e discriminação já nas séries iniciais é


transparecido pelo bullyng. Há educadores que fazem “vista grossa”, mas esse necessita ser
visto com um problema grave a ser discutido nas relações entre professores, alunos e
comunidade. No entanto, não poucas escolas e docentes ainda permanecem silenciados
perante essas ações. As diferenças são encaradas como empecilho à prática do professor em
sala de aula, pois, abordar questões, de fato tão complexas, torna-se tarefa bastante delicada,
conforme é explicitado por D1:“Eu acho muito difícil trabalhar com o bullyng
principalmente porque isso acaba atrapalhando a aula. É por isso que em muitos casos o
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professor deixa passar muita coisa mesmo.”


De acordo com Louro (2000, p. 51) “talvez seja mais produtivo para nós, educadoras
e educadores, deixar de considerar toda essa diversidade de sujeitos e de práticas como um
“problema” e passar a pensá-las como constituinte do nosso tempo”. Discussões pertinentes à
diversidade sexual não são comuns no contexto escolar brasileiro (BRAGON, 2013), mesmo
que de acordo com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos:
[...] b) No âmbito escolar, deve ser concebida de forma articulada a combater o
racismo, sexismo, discriminação social, cultural, homofobia, toda forma de
intolerância religiosa e outras formas de discriminação presentes na sociedade
brasileira; [...] d) A educação deve ter função de desenvolver uma cultura de respeito
à diversidade em todos os espaços sociais; [...] e) Deve estruturar-se na diversidade
cultural e ambiental, garantindo a cidadania, o acesso ao ensino, permanência e
sucesso, a equidade (etnicorracial, religiosa, cultural, territorial, físico-individual,
geracional, de gênero, de orientação sexual, opção política, de nacionalidade, dentre
outras) (PNEDH, 2006, p.24-25).

As relações de afetividade entre pessoas do mesmo sexo, segundo Foucault (1992)


existe desde a antiguidade, mas somente no século XIX o termo homossexualidade foi
utilizado pela primeira vez e ainda assim, para fazer referência àqueles que necessitavam ser
vigiados e controlados. No que tange às compreensões das educadoras acerca da diversidade
sexual e como abordam essas questões em sala de aula, elas disseram que:
“Há sim diversidade sexual, até porque existe o homem e a mulher.
Eu trabalho aqui na escola somente com esses dois” –D1
“Eu entendo diversidade sexual assim: Existe o homem e a mulher e
também os que são homens, mas se consideram mulher e vice versa.
Mas isso é tão difícil para as crianças entenderem que eu restrinjo os
diálogos só sobre homem e mulher mesmo” –D2
“É claro que existe diversidade sexual. Assim, convencionalmente
existe o homem e a mulher. Mas também há os homossexuais, os
travestis, as lésbicas... Tudo isso é diversidade sexual. Por mim eu
não me importo de falar desses outros grupos não. Eu falo sempre
que posso” –D3

A formação escolar que eduque para a aprendizagem cognitiva e para (re)afirmar os


valores do indivíduo deve abordar questões como a diversidade sexual e educação em gêneros
(MEC/UNESCO, 2009). Perguntamos às entrevistadas se elas consideram importante discutir
sobre diversidade sexual na escola e elas responderam:
“Penso que só é bom tratar dessas questões se os alunos solicitarem
mesmo, porque no meu caso, como eles são ainda pequenos, isso pode
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confundir a cabecinha deles.” –D1


“Eu acho que não precisa não. Ao menos nunca me disseram que
precisava. Então eu não comento nada desse tipo.” –D2
“A escola é uma formação para a vida, e a diversidade sexual é uma
realidade da gente. É muito importante que o professor fale sobre
essas diferenças sim.” –D3

Cada professor no desenrolar da sua prática docente deve considerar a formação em


valores, um critério para que se conquiste o sucesso de formar o pleno indivíduo
(BENEVIDES, 2000). A escola constitui-se como um dos principais espaços onde se aposta
na formação. “Mesmo não sendo esta, a única que produz e reproduz conhecimento, é nela
que esse saber aparece sistematizado e codificado. Espaço social privilegiado onde se define a
ação institucional pedagógica e a prática e vivência dos Direitos Humanos”. (Plano Nacional
de Educação em Direitos Humanos, 2006, p.23). Quando falamos em educação em valores,
nos referimos a discutir, junto aos alunos, sobre questões atuais que vêm ficando nas
extremidades da educação escolar, como o preconceito e a discriminação de determinados
grupos. A escola precisa trazer à tona esses debates, pois, trata-se de uma temática importante
que contribui para a formação de uma postura crítica e reflexiva dos educandos.
A escola e, em particular, a sala de aula, é um lugar privilegiado para se promover a
cultura de reconhecimento da pluralidade das identidades e dos comportamentos
relativos a diferenças. Daí, a importância de se discutir a educação escolar a partir de
uma perspectiva crítica e problematizadora, questionar relações de poder,
hierarquias sociais opressivas e processos de subalternização ou de exclusão, que as
concepções curriculares e as rotinas escolares tendem a preservar. (SILVA, 1996, p.
49).

Da mesma forma, quando o educador presencia um ato de discriminação e/ou


preconceito em sua turma, ou mesmo em qualquer um dos espaços escolares, e simplesmente
o ignora, essa atitude de negligenciar e não problematizar o ato presenciado com os
envolvidos reflete diretamente na formação dos educandos, pois:
Os problemas cotidianos de qualquer instituição de ensino exigem atitudes por parte
do educador, e o modo como ele lida com a situação –a postura que assume, o tipo
de relação que estabelece com a turma e até mesmo a sua omissão- interfere na
construção da moralidade. Ou seja, queira ou não, influencia na formação moral dos
alunos. (VINHA, 2015, p.16).

No primeiro semestre de 2015 realizamos iniciação à docência em uma turma de 3°


ano. Nesta, estudava Átila (nome fictício). Tendo um jeito delicado, Átila sempre sofria
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bullyng dos colegas. Já havia se tornado comum ouvir os outros alunos o chamar de
“mulherzinha”, “gayzinho” ou algo relacionado. Certa vez, o garoto relatou para a professora
que se sentia incomodado com aquela situação e sugeriu que a mesma conversasse com os
colegas. A professora apenas se pronunciou da seguinte maneira para a turma: “Gente, vamos
parar de apelidar o Átila, senão todos irão ficar sem recreio”. Como já era esperado, o
menino continuou sofrendo bullyng frequentemente. Em outra situação, um aluno da turma
disse: “Átila para com essas tuas “frescuras”, anda direito, fala direito! Faz é vergonha.”
Dessa vez, a professora estava presente. Mas também não discutiu aquela cena. Só falou que
cada pessoa é diferente umas das outras, sem mencionar em nenhum momento, a diversidade
sexual e/ou de gênero.
Esse relato de experiência nos permite evidenciar o quão grave pode ser, quando o
educador ignora manifestações de preconceito. Se o professor não discute, nem problematiza
essas situações, ele deixa transparecer que consente e permite que tais atitudes voltem a
ocorrer. Portanto, a forma como o docente lida com esses acontecimentos, que inclusive, são
graves e merecem mais atenção pelos sistemas de ensino, colabora para moldar a identidade
dos estudantes.
O processo de ocultamento de determinados sujeitos pode ser flagrantemente
ilustrado pelo silenciamento da escola em relação aos/às homossexuais. [...] De certa
forma, o silenciamento parece ter por fim “eliminar” esses sujeitos, ou, pelo menos,
evitar que os alunos e as alunas “normais” os/as conheçam e possam desejá-los/as. A
negação e a ausência aparecem, nesse caso, como uma espécie da garantia da
“norma”. (LOURO, 2001, p. 89).
A escola não deve omitir o seu papel na formação moral dos futuros cidadãos. É
evidente que a sexualidade está, e sempre esteve presente no âmbito educacional, mas nunca
foi encarada como deveria. Ela é mascarada ou simplesmente ignorada pelos envolvidos que
visam padronizar os comportamentos considerados “normais” e acabam deixando excluídos
os que não se enquadram nesse perfil. O seguinte relato de D3 nos permite refletir tais
colocações:
“Uma vez eu vi um menino de uns 12 anos sendo agredido verbalmente pelos
outros. Isso foi em outra escola que eu trabalhei. Eu ia passando e tinha uma roda
de garotos e outro no meio dela. E os de fora ficavam gritando palavras como
“bambi”; “filhinho da mamãe”, “veadinho” só porque esse menino tinha um jeito
mais afeminado, entende? E eu só cheguei lá, disse para eles pararem com aquilo e
pronto. Não conversei nem nada, coisa que eu deveria ter feito. Isso deve ter
continuado acontecendo, não sei ao certo porque eu saí dessa escola logo depois
disso.”
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Tratar a diversidade sexual é de fato, muito delicado. Mas essa não é tarefa somente
de uma disciplina ou de um professor, é de todos os educadores que em meio a sua prática,
tornem viáveis discussões que muitas vezes, partem do próprio interesse ou conflito entre os
alunos.
O profissional que se responsabiliza por esse trabalho pode ser um professor de
qualquer matéria ou educador com outra função na escola. O importante é que seja
alguém que tenha bom contato com os alunos e, portanto, um interlocutor confiável
e significativo para acolher as expectativas, opiniões e dúvidas, além de ser capaz de
conduzir debates sem impor suas opiniões. [...] Importa é que tenha interesse e
disponibilidade para esse trabalho, assim como flexibilidade e disposição pessoal
para conhecer e questionar seus próprios valores, respeitando a diversidade dos
valores atribuídos à sexualidade na sociedade atual. (PARÂMETROS
CURICULARES NACIONAIS, 1997, p. 331-332).
A escola precisa reservar no currículo, um espaço para discutir gênero e sexualidade
na perspectiva do respeito mediante temas transversais (CEPESC, 2009). É indispensável a
atuação dos espaços escolares para cessar o preconceito, pois, conforme o relato de duas
educadoras, a escola não vem sendo capaz de contribuir para reduzir ações preconceituosas no
que tange às diferentes orientações sexuais:
“Eu mesma não falo sobre isso. Imagine quantos professores pelo Brasil inteiro se
comportam igual a mim... Isso é muito grave. A gente precisa fazer alguma coisa,
disso eu sei, mas eu não sei como fazer, porque eu acho que os meus horários em
sala já são muito curtos.” –D1
“As escolas ainda estão muito longe de conseguir trabalhar com direitos e deveres
do jeito que precisamos. É por isso que a gente vive num mundo desse jeito, com
pessoas tão intolerantes umas com as outras. Se a escola se preocupasse mais com
essas questões, certamente não ia acabar com o preconceito e discriminação, mas
eu tenho a plena certeza que iria diminuir muito.” –D3

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse trabalho teve como escopo compreender como a temática referente à
diversidade sexual e gêneros encontram-se abordadas no âmbito da Educação Básica,
ressaltando o entendimento dos professores acerca das potencialidades das suas práticas
docentes no tocante à formação do educando. A partir das entrevistas desenvolvidas, apurou-
se que há reconhecimento da diversidade sexual e de gêneros tanto pelos professores quanto
pelos educandos. No entanto, embora sejam recorrentes as situações de discriminação em
decorrência da intolerância às diferenças no ambiente escolar, os professores geralmente
optam pelo silêncio, posicionamento que fortalece o preconceito. A começar, alguns
educadores afirmam não julgar necessário discutir gênero e/ou sexualidade em sala de aula,

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pois, na concepção dos mesmos, esse é um assunto em que os alunos já vivenciam em suas
práticas sociais cotidianas e não necessita de aprofundamento na escola. Por outro lado,
quando o educador se empenha em conduzir tais questionamentos para a sala de aula, depara-
se com a dificuldade de reservar tempo para debate, uma vez que a carga horária do currículo
formal já se encontra preenchida por conteúdos de disciplinas consideradas de “maior
importância”.
Evidencia-se que os educadores, mesmo estando cientes que suas posturas refletem
diretamente na formação dos alunos, continuam fazendo “vista grossa” quando se deparam
diante de episódios de discriminação pelo fato do aluno não seguir o padrão sexual
considerado “normal” socialmente. Conforme discutido, um professor que presencia uma
situação de bullyng e não investe em discussões construtivas referentes ao ato, colabora para
que essa atitude continue a acontecer e dissemina a ideia de que aquela é uma postura correta,
deixando de lado assim, a formação em valores humanos. São situações como essas que
colaboram para a evasão de um grupo específico (gays, lésbicas, homossexuais, etc.) dos
bancos escolares. A partir desse estudo de caso, podemos inferir que as escolas ainda estão
muito distantes de abordar a formação moral e em direitos humanos nos seus currículos,
sempre preenchido por conteúdos prontos e pré-estabelecidos. Nesse âmbito, se faz necessário
um olhar mais atento acerca de tais abordagens pelos sistemas de ensino para que se possa
fazer acontecer na prática, a educação que tanto se discute e é proposta pelas leis que regem o
ensino formal: a educação de qualidade para todos.

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GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NA FORMAÇÃO DE ALUNOS/AS


UNIVERSITÁRIOS/AS: UMA PERSPECTIVA DISCURSIVA

Stella Márcia de Morais Santiago368 | sm_estrelinha@hotmail.com


Simone Joaquim Cavalcante369

INTRODUÇÃO

Os Estudos Culturais tem sido um campo bastante profícuo que tem nos permitido
adentrar em um território de possibilidades, principalmente quando nos propomos as
abordagens das práticas educacionais e políticas culturais que envolvam o debate e a
promoção da equidade de gênero e da diversidade sexual no universo da sala de aula,
território de investigação cada vez mais explorado, visto as necessidades e urgências de
atuação no mundo contemporâneo, a crítica política e cultural como ponto fulcral do debate
sobre o que almejamos para a comunidade global. Sim, porque as culturas se configuram
“como processos que tanto separam quanto unem” (FROW e MORRIS, 2006, p. 317), capaz
de “questionar as noções totalizadoras da cultura que pressupõe que, ao final dos processos
culturais, está a conquista de toda uma ‘sociedade’ ou ‘comunidade’ coerente” (idem, p. 317),
que também seja capaz de aniquilar as desigualdades de gênero, étnico-racial e sexual e outras
formas correlatas de preconceito, discriminação e opressão.

368
Professora da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG, Centro de Formação de Professores/CFP,
Campus de Cajazeiras; membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígena e de Gênero/NEABIG/UFCG/;
e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Informação, Educação e Relações Etnicorraciais/NEPIERE/
/UFPB.
369
Doutoranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da
Paraíba/UFPB e membro colaboradora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígena e de Gênero/NEABIG
da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG.

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Podemos dizer que tais questões, pensando na nossa realidade educacional, não
podem de modo algum ficar fora do debate, sobremaneira quando nos referimos aos cursos de
formação de professores/as que, ao nosso entendimento apresentam-se como lugar oportuno
para travarmos tais discussões do ponto de vista teórico e prático, visto que a teoria precisa
fazer sentido na prática dos sujeitos, ser uma pedagogia da práxis que envolva a vida e as
relações humanas. É preciso vencer as amarras das teorias engessadas que em “nosso modelo
teórico praticamente não nos permiti pensar o plural de sistemas interrelacionados”
(CERTEAU, 1995, p. 191) e, desatar o nó da política universalista que não contempla a
diversidade, a diferença e as políticas plurais.
Doutro modo, não podemos esquecer que as resistências são muitas, mas a vontade
de enfrentar tal desafio em um terreno de disputadas tem sido ainda mais latente, abandonar o
debate ou fazer de conta que as relações desiguais de poder entre os gênero não existem é
parte de uma visão ingênua sobre o que historicamente, socialmente e culturalmente temos
presenciado ao longo da vida, seja estampada nas mídias locais, nacionais e internacionais,
seja na casa do vizinho, nas nossas próprias casas, quando não no espaço profissional, na vida
política e nos mais diversos campos de existência e atuação entre mulheres e homens. Na
verdade, este é um campo de batalha onde a guerra travada é pela igualdade – de acesso,
modos de ser, estar, agir, outros –, pela equidade de gênero e respeito as diferenças.
Atuar na educação superior traz-nos a possibilidade de entender melhor os anseios
sociais e culturais que nos circundam e sua emersão a partir de realidades múltiplas. Isto
possibilita construir novas discussões em sala de aula que conduzam ao desenvolver de
práticas educacionais e políticas culturais inclusivas, que gerem o fomentar de novas ideias
sobre temas ainda considerados polêmicos mas não menos desafiante, que provoca uma
tomada de posição frente a realidades em que estamos inseridos(as) socioculturalmente.
Tomar uma posição de sujeito no mundo revela o quanto somos interpelados por outros
sujeitos em uma relação intersubjetiva constante e dinâmica.
Nas relações de gênero, a dominação masculina ainda tem sido bastante presente, o
campo fértil para essa dominação é preparado desde a infância até a fase adulta, quando pai
e/ou mãe estabelecem para suas crianças o que podem e o que não podem, identificando,
classificando e hierarquizando os gêneros, isto é, o que é permitido para meninas e meninos
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no contexto da vida privada. Da mesma forma, no exercício do seu trabalho, muitas mulheres
para serem reconhecidas parecem ‘masculinizarem-se’, trajam roupas mais masculinas que
femininas, empostam mais a voz do que o habitual, adotam trejeitos mais rígidos. Isto
significa também dizer, que um homem não pode adotar uma postura mais suave, ter uma
atitude mais acolhedora, e menos ainda, nascer com um timbre vocal menos encorpado e
grave, sentar com pernas cruzadas, e tantos outros exemplos que poderíamos aqui citar de
ambos os lados.
Onde estes estereótipos estão nos levando? E de onde advém? Não seriam fruto de
uma visão fortemente marcada pela cultura androcêntrica, onde a representação de ser
humano é masculina e qualquer elemento que fuja ao padrão masculino estabelecido são os
outros, diferentes e considerados supostamente “inferiores”? (WOODWARD, 2012;
HALL,2012).
Estes estereótipos ainda estão firmemente arraigados em nosso cotidiano,
pensamento, palavras e atitudes. Mas, o mais estarrecedor é que as coisas que são ditas,
apreendidas no mundo da vida privada ganham espaço na esfera pública, isto faz com que as
fronteiras entre o público e o privado comecem a se confundir, pois a dominação masculina
vai tomando corpo ainda na criança, passando pela adolescência, atravessando a juventude e
enraizando-se na fase adulta dos indivíduos, sejam homens ou mulheres. Certamente, esta
reflexão incomoda há muitas pessoas, mas, o fato é que, este exercício reflexivo ao qual nos
permitimos preexiste a nós e, embora já tenha sido amplamente visitado, precisa manter-se
vivo e forte, haja visto que muitas barreiras de insurgência de gênero permanecem fincadas
socialmente.

Como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio objeto que nos
esforçamos por apreender, incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes de
percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina; arriscamo-
nos, pois, a recorrer, para pensar a dominação masculina, a modos de pensamento
que são eles próprios produto da dominação. Não podemos esperar sair deste círculo
se não encontramos uma estratégia prática para efetivar uma objetivação do sujeito
da objetivação científica. (BOURDIEU, 2011, p. 13).

LINHAS METODOLÓGICAS

Neste sentido, este artigo tem como objetivo refletir sobre a necessidade de discutir

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as questões da equidade de gênero e da diversidade sexual no contexto da formação de


alunos/as universitários/as, tendo em vista sua integração social, política e educacional. A
metodologia adotada pauta-se na análise dos discursos registrados em questionário com
turmas de diferentes áreas do conhecimento (Matemática, Geografia, História, Física,
Pedagogia, Química e Biologia), além da observação desenvolvida sobre o tema em sala de
aula a partir de disciplinas ministradas, tais como: Projeto de Pesquisa, Estágio
Supervisionado, Política Educacional e Política para a Educação Básica.
Importa mencionar que este questionário fora aplicado a mais de 100 alunos/as dos
Cursos de Licenciaturas supracitados do Campus de Cajazeiras, Centro de Formação de
Professores (CFP), da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), que consta de um
percentual total em torno de 400 alunos/as. Entretanto, para este artigo, selecionamos,
aleatoriamente os 30 (trinta) primeiros questionários do montante respondido, o que nos gera
um percentual de mais de 1/4 da mostra total deste. Com esta seleção, obtivemos 11(onze)
questionários respondidos por indivíduos do sexo masculino e 19 (dezenove) do sexo
feminino. O questionário possui 28 perguntas, entre fechadas e abertas, nas quais utilizamos
as Categorias de: Idade, Cor, Origem (cidade/estado), Religião, Curso/Graduação, Deficiência
Física, Sexo, Sexualidade, Orientação Sexual, Homossexualidade, Homofobia, União
Homoafetiva, Afirmação/Empoderamento e Formação – totalizando 14 (quatorze) Categorias.
Entretanto, para este artigo, utilizamos 08 (oito) Categorias das já citadas. São elas: Idade,
Curso/Graduação, Sexo, Orientação Sexual, Homossexualidade, Homofobia, União
Homoafetiva e Formação. Haja visto que a análise deste material nos possibilita vários outros
recortes discursivos.
Começamos trabalhando com 03 (três) Categorias: Idade, Sexo e Curso/Graduação.
Quanto a Categoria Sexo, os questionários correspondem a participação de18 (dezoito)
mulheres e 12 (doze) homens, com Idades variantes dos 19 aos 38 anos, sendo destas/es na
faixa dos 17 a 19 anos 03 homens e 05 mulheres; na faixa dos 20 a 29 anos 08 homens e 10
mulheres; e na faixa dos 30 a 39 anos tivemos somente 03 mulheres. Um dos indivíduos do
sexo masculino não informou a idade.
FAIXA ETÁRIA FEMININO MASCULINO
17 a 19 anos 05 03
20 a 29 anos 10 08

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30 a 39 anos 03 0
Total 18 11
Tabela 1 - Categoria Idade, Sexo e Curso/Graduação

Já com relação a Categoria Curso/Graduação é importante repetir que os


questionários foram escolhidos aleatoriamente, haja visto que algumas das Licenciaturas
cujas/os alunas/os fazem parte desta pesquisa, não estão aqui contemplados. Ao fazermos uma
comparação de indivíduos por Curso, percebemos que a maior disparidade está no
quantitativo de indivíduos do sexo Feminino do Curso de Geografia. Assim, os
Cursos/Graduações citados foram:

CURSO/GRADUAÇÃO FEMININO MASCULINO


Geografia 09 04
História 0 01
Letras 03 03
Pedagogia 06 03
Química 0 01
Total 18 12
Tabela 2 - Categoria Curso/Graduação

Com relação a Categoria Homofobia, ao serem perguntados do que se trata, foi


necessário fazer uma subdivisão nas respostas, haja visto que algumas se enquadraram dentro
de uma subcategoria e outras foram muito específicas. Quanto as subcategorias obtivemos 06
respondentes disseram que Homofobia é Medo/Fobia/Pavor, destes 04 são mulheres e 02
homens; a subcategoria Preconceito foi resposta afirmativa dada por 07 mulheres e 04
homens; já a subcategoria Distúrbio de Raiva/Agressividade/Violência teve como respondente
03 mulheres e, apenas 01 homem. Tivemos ainda 06 indivíduos cujas respostas não se
enquadraram em nenhuma dessas subcategorias e, por fim, 03 mulheres afirmaram não saber
responder. A Tabela a seguir evidencia melhor estes dados:

HOMOFOBIA FEMI. MASC. IDADE CURSO


“É o indivíduo que não tem a capacidade de conviver com 01 21 Geog.
indivíduos gays, lésbicas ou indivíduos que não sejam
heterossexual”.
“Discriminar alguém por causa de sua opção sexual”. 01 17 Pedag.
“Ato de excluir pessoas com opções sexuais diferentes a 01 22 Pedag.
própria”.
“É a relação entre indivíduos do sexo masculino”. 01 19 Geog.
“É uma ‘antipatia crônica’ de heterossexuais para com 01 25 Letras
homossexuais”.
“É um sentimento que algumas pessoas tem a respeito dos 01 22 Letras
homossexuais”.

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02 17/20 Pedag.
Medo/Fobia/ Pavor/ 02 20/23 Geog.
02 18/23 Geog.

21/22 Geog. 2
Sexo Femi. 07 17 Letras 02
Preconceito 19/31 Pedag.03
Hist.01
Sexo Masc. 04 19 Pedag.01
22/26 Letras02

20/34 Geog.02
Sexo Femi. 03 21 Pedag.01
Distúrbio de Raiva/ Agressividade/Violência Sexo Masc. 01 20 Quím.01

Sexo Femi. 03 21/28/30 Geog.03


Não soube responder Sexo Masc. - - -
Tabela 3 - Categoria Homofobia

Importa mencionar que a subcategoria que mais teve respostas foi a Preconceito. Isto
nos demonstra que nossos/as alunos/as compreende a homofobia como um ato de preconceito.
Segundo Junqueira (2009, p. 13)

Diante do anseio de construirmos uma sociedade e uma escola mais justas,


solidárias, livres de preconceito e discriminação, é necessário identificar e enfrentar
as dificuldades que temos tido para promover os direitos humanos e, especialmente,
problematizar, desestabilizar e subverter a homofobia.

Isto significa dizer que, ainda trabalhamos em um sistema sexista e heterossexista de


dominação, que subjuga e marginaliza indivíduos que não sejam parte dele. Assim, aqueles/as
que fugirem do considerado normativo, permanecem sem vez e lugar.
Ao questionar sobre a categoria Homossexualidade, obtivemos 09 respostas as mais
variadas possíveis, 18 que cabiam na subcategoria Atração/Gosto pelo indivíduo do mesmo
sexo, e 03 que não responderam ao que fora questionado.
HOMOSSEXUALIDADE FEMI. MASC. IDADE CURSO
“Homossexualidade, é a qualidade ou vontade, 01 28 Geografia
de cada um ou que adquire no decorrer do
tempo. Ou seja ninguém tem a coragem de
impor sua sexualidade”.
“É a relação de pessoas do mesmo sexo do 01 21 Pedagogia
gênero masculino”.
“Uma escolha de proceder”. 01 34 Geografia
“Seria uma escolha sexual, não adotada pela 01 20 Geografia
sociedade, fugindo dos padrões determinados”.
“Uma escolha”. 01 17 Letras
“Homossexualidade é uma orientação seguida 01 22 Letras
por algumas pessoas”.

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“Uma orientação que se tem em relação a 01 22 Letras


vida”.
“Expressão de desejos e vontades”. 01 17 Pedag.
“D.M. Distúrbio Mental”. 01 23 Geog.

17-19 (03) Pedag.02/Letras01


20-22(05) Geog.04/Pedag.01
10 31(01) Pedag.01
(01-sem Pedag.01
Atração/Gosto pelo indivíduo do mesmo sexo idade)
17-19 (03) Geog.02/Pedag.01
08 20-22(04) Geog/Pedag/Let/Quí
(01-sem m.
idade) Hist.

Sexo Femi. 03 23/26/30 Geog./Let/Geog.


Não soube responder Sexo Masc. - - -

Tabela 4 - Categoria Homossexualidade

Nesta tabela sobre homossexualidade fica evidente a falta de compreensão do termo


quanto a realidade cotidiana, em boa parte das respostas dadas, o que nos remete a uma
perspectiva de invisibilidade pois, “as temáticas relativas às homossexualidades,
bissexualidades e transgeneridades são invisíveis no currículo, no livro didático e até mesmo
nas discussões sobre direitos humanos na escola” (JUNQUEIRA, 2009, p. 30). E embora
estejamos tratando de formação a nível universitária, podemos dizer que isto se estende
também a esta.
Partimos para a Categoria União Homoafetiva. A questão tratou da especificidade do
tema, ou seja, perguntou qual o posicionamento dos indivíduos com relação a União
Homoafetiva. É extremamente importante mencionar que dos respondentes do questionário 12
disseram que são a favor, sendo 06 mulheres e 06 homens. Mas, há um dado importante!
Dentre estes, a maioria (58,33%) é do Curso de Pedagogia (04mulhesres e 03 homens). Os
demais são 02 de Letras, 02 de Geografia e 01 de Química. Isto nos revela que alunas/os do
Curso de Pedagogia estão mais familiarizadas/os com a temática. Seguramente, sendo
apresentados mais vezes a questão. Particularidade esta que muito ocorre na disciplina de
Política para a Educação Básica do Curso de Pedagogia, a qual ministramos. E que nas outras
Licenciaturas, tratamos a partir da disciplina Política Educacional, correlata a primeira.
Dos que se posicionaram Contra a União Homoafetiva, 05 são mulheres e 04 são
homens. Sendo dos homens 02 de Letras, 01 de História e 01 de Geografia. E das mulheres,

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02 de Letras e 03 de Geografia. Apenas 01 não soube responder, identificada como sendo do


sexo feminino do curso de Geografia. Na subcategoria Indecisos temos 08 respondentes,
sendo 02 homens (ambos do Curso de Geografia) e 06 mulheres (04 do Curso de Geografia e
02 do Curso de Pedagogia).
UNIÃO HOMOAFETIVA FEMI. MASC. IDADE CURSO
06 Pedag. 04
A Favor 06 Pedag. 02

05 Geog. 03
Letras 02
Contrários/as 04 Geog. 01
Hist. 01
Letras 02

Indecisos/as 02 Geog. 02
06 Geog. 04
Pedag. 02

Não respondeu 01 Geog. O1

Tabela 5 - Categoria União Homoafetiva

Esta questão tem um dado interessante. Alguns dos/as respondentes que


mencionaram ser contrários, redigiram que só o são por conta de seus ideais religiosos.
Compreendemos então que a questão religiosa tem se mostrado como um obstáculo a posição
dos sujeitos (masculinos e femininos) diante da temática sobre a livre expressão sexual.
Adentramos agora, a última Categoria de análise elencada para este artigo,
Formação. Nesta categoria fizemos 05 perguntas que se complementam, sendo 03 fechadas,
01 aberta e, 01 fechada com solicitação de justificativa. As Fechadas são: há no seu Curso de
graduação discussão sobre sexualidade e gênero? Professores/as discutem sobre em sala de
aula? Há no Campus, formação quanto as questões de sexualidade e gênero? A pergunta
aberta está diretamente ligada aqueles/as que responderam que seus/suas professores/as
discutem a questão e, intenta saber de que forma acontece. Por fim, a pergunta fechada que
solicita justificativa questiona se eles/as gostariam que houvessem cursos de formação no
Campus sobre sexualidade e gênero. As respostas nesta Categoria foram as mais variadas
possíveis.
FORMAÇÃO

Discussão no Curso de graduação sobre SIM = 06 NÃO = 24


sexualidade e gênero (*CONTEÚDO)

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Professores/as discutem sobre em sala de aula? SIM = 11 NÃO = 14


(*COTIDIANA) NÃO RESPONDERAM = 05

Há no Campus, formação quanto as questões SIM = 01 NÃO = 24


de sexualidade e gênero? NÃO RESPONDERAM = 05

Gostaria que houvessem cursos de formação no SIM = 20 NÃO = 09


Campus sobre sexualidade e gênero? NÃO RESPONDERAM = 01

Tabela 6 - Categoria Formação

A tabela acima demonstra a necessidade de investirmos em formação quanto a


perspectiva da diversidade sexual e de gênero. Nossos/as alunos/as universitários/as estão
ávidos/as por conhecer mais sobre, até porquê esta perspectiva se faz presente em nosso dia-a-
dia e, já não se pode fazer de conta que é irreal, invisível, inverossímil, insignificante,
indiferente! E dito isto, “a postura aqui defendida procura não se confundir com o bom-
mocismo do ‘politicamente correto’ e nem o percebe como discurso necessariamente contra-
hegemônico” (JUNQUEIRA, 2009b, p.399), mas entende que cabe o cuidado em não ver o
“‘diferente’ a partir de prismas de idealização ou do exotizismo” (idem, 2009b, p. 401).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, os resultados estão aportados em análises e reflexões sobre as questões que
envolvem o debate e a promoção da equidade de gênero e da diversidade sexual, buscando
caminhos para tratar mais aberta e avidamente tais temáticas no campo da educação,
compreendendo-os como condição imprescindível para educadores/as deste século XXI. Para
Foucault (1989) falar de sexo é uma questão também política. Isto nos remete ao início deste
artigo, quando dissemos que as bases da construção do mesmo também estão pautadas nas
aulas ministradas no Campus, a partir das disciplinas citadas. Nestas, foi possível quanto
necessitamos formar para uma perspectiva humana de igualdade uma pedagogia da práxis que
faça sentido para os sujeitos.

Assim,

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Para que a diversidade conduza a uma ação pedagógica desmistificadora, libertária,


emancipatória, vitalizadora, é preciso [...] procurar fazer com que o ‘diferente’ (o
diverso) possa existir socialmente, sua presença e sua experiência de vida sejam
reconhecidas como possibilidades legítimas (JUNQUEIRA, 2009b, p. 408).

É nisto que acreditamos!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT. Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria


Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albiquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal,
1998.
FROW, John e MORRIS, Meaghan. Estudos Culturais. In: DENZIN, Norma e LINCOLN,
Yvonna. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. Tradução Sandra
Regina Netz. Porto Alegre: Artmed, 2006. p. 315-343.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da Silva (org.)
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 12. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes,
2012. p.103-133.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia nas escolas: um problema de todos. In:
JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações
sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Educação e Homofobia: o reconhecimento da diversidade
sexual para além do multiculturalismo liberal. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.).
Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade,
UNESCO, 2009.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da Silva (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. 12. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p.7-71.

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GÊNERO E EDUCAÇÃO: PATRIARCADO COMO BASE DE UMA EDUCAÇÃO


SEXISTA

Márcia Rejane Ferreira da Silva370 | marcia_rejanefasso2013@hotmail.com.br

INTRODUÇÃO

Esse artigo tem como objetivo discutir um pouco sobre a educação sexista nas escolas,
a partir do sistema patriarcal, onde nessa sociedade são destinados papeis sociais
diferenciados para ambos os sexos e muitas vezes essas funções são naturalizadas. No
primeiro momento iremos discorrer sobre Gênero e Diversidade na Escola, conceituando
gênero segundo a autora Saffioti, onde sabemos que gênero é algo socialmente construído, e
que a criança pode escolher ser menino ou menina, e desenvolver atividades pelas quais mais
se identifica independente do seu sexo. Considerando o papel da escola e da família, como
instituição que tem o poder de transformação desses sujeitos e muitas vezes, a primeira
instituição tem contribuído bastante para a produção e reprodução de uma educação sexista,
uma vez que dentro desses espaços, são inúmeros desafios que a criança tende a enfrentar
quando seu padrão de comportamento não esta dentro da heteronormativo. Logo em seguida,
iremos destacar sobre o sistema patriarcal, onde podemos considerar como base e fundamento
para uma educação sexista, homofóbica, conservadora e racista que tem contribuído para
negação de direitos e produtor de violação e violência. E por ultimo será enfatizado a respeito
da educação sexista no espaço escolar, onde neste espaço são manifestadas relações humanas
desrespeitosas frente às diferenças e diversidades humanas, e esta educação sexista são
manifestas nas brincadeiras, nos espaços, nos livros didáticos, no julgamento de valores,

370 Graduada em Pedagogia e docente da Rede de Ensino Municipal em Mossoró, especialista em educação e
graduanda em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN.
(marcia_rejanefasso2013@hotmail.com.br).
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inclusive manifestado pelos próprios profissionais da educação, inclusive pelos (as)


professores (as), papéis sociais segregadores de meninas e meninos, alimentando a
engrenagem do patriarcado, do racismo e do capitalismo tríade de dominação-exploração que
impacta fundamentalmente a vida de mulheres de forma geral, mas peculiarmente a vida de
mulheres, pobres e negras.

GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NA ESCOLA

Iniciaremos discorrendo um pouco sobre o conceito de gênero, que foi desenvolvido


pelas teóricas do feminismo da contemporaneidade, corrente na literatura feminista brasileira,
na perspectiva de compreender e responder cientificamente, a desigualdade existente entre os
sexos e como essa desigualdade opera na realidade social e interfere nas relações sociais.
Assim, podemos sintetizar gênero como uma construção socialmente histórica, em que
o gênero possui identidade subjetiva, aquilo que carregamos como valores sociais e culturais,
que definem o que somos socialmente. A dicotomia do gênero amparada pelos fatores
biológicos é a manifestação da desigualdade presente nos papeis sociais dos seres humanos,
de forma que a mulher passa a ser retratada como um ser passivo ao passo que o homem é
visto como sinônimo de força. E consequentemente essas desigualdades são naturalizadas, de
forma que as pessoas as veem como algo impossível de ser mudado. Entretanto é relevante
importar que não se deve confundir gênero com patriarcado, tendo em vista que embora haja
as proximidades, mas conceitualmente são totalmente diferentes, pois:

Gênero é um conceito por demais palatável, porque é exclusivamente geral, a-


histórico apolítico e pretensamente neutro. Exatamente em função de sua
generalidade excessiva, apresenta grande grau de extensão, mas baixo nível de
compreensão. O patriarcado ou ordem patriarcal de gênero, ao contrario, como vem
explicito em seu nome, só se aplica a uma fase histórica, não tendo a pretensão da
generalidade nem neutralidade, e deixando propositadamente explicito o vetor da
dominação-exploração. Entra-se, assim, no reino da historia. Trata-se, pois da
falocracia, do androcentrismo, da primazia masculina. É, por conseguinte, um
conceito de ordem política (SAFFITOTI, 2004, p.138-139 apud QUEIROZ,
RUSSO, GURGEL, 2012, P.156).

Destarte as relações de gênero, são construídas no campo cultural, compreende


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representações sobre o feminino e o masculino, que acarretam em visões estereotipadas, onde


são distribuídos papeis, por exemplo: “Homem não chora, lugar de mulher é na cozinha,
mulher no volante é um perigo, homem não vai para cozinha...”. O gênero veio romper com
determinismo biológico, mostrando que são no interior das relações sociais, nos espaços
públicos e privados, tais quais: (família, sexualidade, parentesco, mercado de trabalho, e etc.,)
que os estereótipos de gênero são construídos, reforçadas e repassados.
Em suma, o gênero em sua essência é passível de complexidade, não por incluir
relações desiguais e iguais, mas devido ao fato de inserir em seu entendimento a identidade
humana, os aspectos e características que constrói sujeitos de uma sociedade, o gênero é
complexo por ser algo construído pelo próprio homem.
Apesar de o Brasil possuir uma lei que é a 9.394/96 que a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, que garante uma educação inclusiva, onde assegura o direito à escola a
todas as pessoas, sem discriminar negativamente e singularidades ou características
especificas de indivíduos ou grupos humanos. Na sua materialização esta, não garante de fato
o atendimento na sua diversidade, onde de certa forma, existem sujeitos envolvidos nesse
processo e espaço educacional que tende a desrespeitar os sujeitos plurais, onde muitas vezes
não costumam dar a devida atenção às questões relativas a gênero.
Conforme observa Guacira Lopes Louro: “As politicas curriculares são, então, alvo de
atenção (de setores conservadores), na tentativa de regular e orientar crianças e jovens dentro
dos padrões que consideram moralmente sãos” (MEC, 2007,P.13).
E nessa perspectiva que a escola muitas vezes tende não só reproduzir, mas a mesma
produz o preconceito e a discriminação, quando não se abre para a diversidade e nem tão
pouco mantem o dialogo com o grupo, no que diz respeito à questão de gênero, assim como
aos direitos humanos.

SISTEMA PATRIARCADO

Iniciaremos destacando o conceito de patriarcado segundo Saffioti:


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O patriarcado é um sistema segundo o qual a mulheres são exploradas e dominadas.


Esse sistema estabelece uma hierarquia entre homens e mulheres em todas as
relações e espaços sociais, portanto, não se limita a esfera privada. Por isso, institui-
se como um sistema, por se fazer presente nas mais diversas relações, representando
“uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia como na violência” (SAFFIOTI,
2004, P. 57-58 apud QUEIROZ, RUSSO, GURGEL, 2012, P. 155).

A relação de gênero está bastante coadunada ao sistema patriarcal, porém sabemos que
a discursão do patriarcado é bastante recente com relação à questão de gênero, uma vez que o
patriarcado transgredi a igualdade entre gênero, partindo dessa feita com atitudes produtora e
reprodutora de violação de direitos e violência. É fato que muitas mulheres são vitimas de
violência, seja física, verbal, sexual, psicológica, violência financeira, e a violência de gênero,
onde esta ultima tem sido bastante frequente nos espaços escolares, são condutas que tendem
a causar sofrimento físico, psicológico ou sexual, inclusive danos materiais e esta violência
acontece tanto no âmbito privado como no espaço publico.
De acordo com Engels, o desmoronamento do direito materno foi à grande derrota do
sexo feminino em todo o mundo, a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em
escrava da luxúria do homem em simples instrumento de reprodução.
Vale salientar que o patriarcado se configura com o processo histórico do capitalismo,
sendo o homem, historicamente falando, “o provedor do lar” este era merecedor de obediência
e controle sobre o corpo da mulher. E é fato que o patriarcado se configura de diversas
maneiras, inclusive com expressões de dominação e opressão sobre as mulheres, onde por
muitas vezes ouvimos relatos de culpabilizar a mãe pelo “mau comportamento do filho”,
quando “a criança vem suja” para escola e quando não fazem as tarefas de casa, é como a
responsabilidade da educação da criança fosse só papel da mãe, omitindo assim a
responsabilidade do pai.

EDUCAÇÃO SEXISTA NO ESPAÇO ESCOLAR

É importante destacar que a pratica sexista, preconceito relacionado ao sexo, encontra-


se com bastante frequência na educação e na vida cotidiana, com determinadas ações, seja por
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meio dos gestos, da linguagem, dos livros, dos espaços arquitetônicos, que de certa forma,
acaba por distanciar os meninos das meninas, reforçando as diferenças e desfavorecendo a
igualdade de gênero.
Diante da experiência vivenciada no contexto escolar, podemos perceber o quanto a
escola é reprodutora e produtora de uma educação sexista, tendo em vista que, os próprios
educadores, conscientes ou não, estão a reproduzir essa relação de preconceito entre o que é
ser menino e menina, uma vez que, as crianças de 0 á 5 anos ainda não fazem distinção do que
é o ser menino e menina, o que mostra cada vez mais a contradição existente em naturalizar as
desigualdades entre as meninas e meninos.

A educação sexista é uma educação que se utiliza determinadas diferenças biológicas,


físicas e psíquicas para impor uma desigualdade e hierarquia entre os meninos e
meninas, portanto as instituições (família, escola, igreja etc.), são aparelhos que
perpassam e reafirmam a educação sexista, pois: “essas instituições alimentam um
conjunto de valores conservadores sobre o comportamento de homens e mulheres –
engendrando por meio da educação familiar, religiosa e escolar [...]” (CISNE e
BRETTAS 2009, p. 61).

Tal atitude faz com que a própria escola produza certa rivalidade entres os sexos, onde
podemos perceber quando a escola cria espaços e também brincadeiras diferenciadas para
ambos. Uma vez havendo essa distinção do que pode ser atividade de menino e de menina,
esse espaço escolar está reprimindo e controlando aqueles sujeitos que possui identidade de
gênero oposto ao que a sociedade heteronormativo impõe.
Para Guacira Louro (1997) “A escola delimita espaço. (...) ela afirma o que cada um
pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui”. (P. 61).
No entanto, esse espaço tem contribuído para segregar sujeitos envolvidos nesse
processo educacional, onde muitas vezes limita as crianças de expressar os seus anseios e sua
necessidade, pois meramente contribui para seguir determinados padrões estabelecidos.
Nessa perspectiva, destaca Cisne:

Assim, desde a infância, meninos e meninas recebem uma educação sexista, ou seja,
aquela que não apenas diferencia os gêneros, mas educa homens e mulheres de
forma desigual. Para isso, o sistema patriarcal conta com algumas instituições na
difusão da sua ideologia, das quais destacamos a família, a igreja e a escola.
Meninas são educadas para lavar, cozinhar, passar, cuidar dos filhos(as) e do

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maridos e serem submissas, passivas e tímidas. Meninos são educados para serem
fortes, valentes, decididos e provedores. (apud QUEIROZ, RUSSO, GURGEL,
2012, P. 160).

As meninas não podem jogar futebol, que é taxada como “macheira”, o menino não
pode usar a cor rosa, pois é “menininha”, “é coisa de menino ser valente”, “sente com as
pernas fechadas, você já está uma mocinha”. É como a liberdade fosse privilégios do sexo
masculino e as meninas tende a serem mais reservadas. São situações como essa que são
colocadas no nosso cotidiano escolar, situações meramente machista, homofóbica e sexista e
que sabemos que por trás dessas situações, tem um sistema patriarcal envolvente e
impregnado nas pessoas que tendem a se reproduzir.
Todos os fatos anteriormente discutidos tendem a inibir a liberdade do menino e da
menina a irem à busca dos seus desejos, privando-os de seguir as suas escolhas. Porém
sabemos que existem educadores com práticas que rompa com as determinações impostas
pela sociedade, que transgride as ações estabelecidas, reagem a essa pratica sexista e busca
legitimar uma educação não sexista, comprometida com o outro, que respeita as diferenças e
que busca romper com qualquer tipo de atitude que venha a comprometer e ferir a integridade
humana. Portanto,

[...] a escola é um espaço decisivo para contribuir na construção de padrões sociais


de relacionamentos democráticos pautados pelo reconhecimento e respeito à
diversidade sexual, contra a violência, por meio da desmistificação e da
desconstrução de representações sociais naturalizantes, estereotipadas e restritivas
concernentes a todas as minorias, dentre elas, a população LGBT. (MEC, 2007, P.
44).

Destarte, acreditamos no poder que a educação tem na construção dos sujeitos e que
essas mudanças venham contemplar a dignidade de todas as pessoas independente da sua
sexualidade. Conforme relata o caderno da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade (SECAD):

[...] a própria escola é elemento fundamental na construção de uma sociedade


democrática e pluralista, é imprescindível promover a formação e a capacitação de
profissionais da educação para a cidadania e a diversidade, pelo reconhecimento do
direito à livre expressão afetivo-sexual e à livre identidade de gênero de cada
cidadão e cidadã. Afinal, o problema não está nas diversas possibilidades de
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orientação sexual e de identidade de gênero. O problema reside no modo negativo


como se lida com elas, culpando-as, discriminando e excluindo seus sujeitos do
campo dos direitos, inclusive do direito à educação. (MEC, 2007, P. 44)

Essa exclusão citada parte de que, quando os sujeitos fogem dos padrões e regras
estabelecidos socialmente, de certa forma, irão se sentirem excluídos e porque não dizer que
são excluídos, não por sua vontade e não por não aceitarem a si próprios, mas porque a
sociedade não aceita a diferença e muito menos respeita os sujeitos, mas oprimem. Por muitas
vezes ouvir chingamentos e cochichos nos corredores dos espaços escolares, com relação à
pessoa gay, dizendo que não são “sérias”, “sem futuro”, "essa menina é uma sapatão pura”,
“ajeite esse andado menino”. Relatos totalmente homofóbicos, sexistas, discriminatórios e
excludentes que tendem a levar os sujeitos agredidos a se evadirem do espaço que poderia ser
de acolher e torna um espaço opressor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Debater sobre gênero no espaço escolar nos levar a refletir cotidianamente a respeito da
atuação profissional enquanto professora das Series Iniciais, tendo em vista o quanto podemos
levar os (as) discentes a refletirem sobre a formação que os (as) mesmos (as) estão tendo a
respeito de gênero, uma vez esses sujeitos inseridos numa sociedade homofóbica, sexista, racista e
conservadora, precisa de uma educação que venha a romper com o preconceito de gênero,
desnaturalizando todas as formas de opressão sofrida pela mulher, enquanto explorada e oprimida
nessa sociedade.
Portanto, precisamos lutar cotidianamente contra o patriarcado, e são nesses espaços onde
tem se produzido e reproduzido diferentes formas de opressão e exploração contra as pessoas e
em especial as mulheres que são vitimas desse sistema dominador e opressor, rompendo com isso,
a hierarquia que existe entre o homem e a mulher. Sabemos o quanto é desafiador lutar contra
essa Educação Sexista na escola, pois sabemos que inúmeras categorias se opõem ao debate sobre
a questão de gênero, usando argumentos religiosos, com essência meramente sexista, homofóbica
e conservadora.
É importante que esse debate possa ser ampliado no espaço escolar e em especial na grade
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curricular do curso de formação, para que os futuros educadores possam está preparado para
debater esse tema, com mais profundidade e principalmente que venha contribuir para uma
educação que respeite a diversidade humana, garantindo o direito à educação de qualidade que é
assegurado na constituição.
Destarte, essa analise que foi feita é para que possamos compreender que a educação
sexista precisa ser rompida, pois são formas de segregar sujeitos assim como aumentar cada
vez mais violência contra a mulher. A escola precisa ser espaço que possibilite construção de
relações igualitárias, que venha respeitar e garantir direitos básicos a todos (as) cidadãos (ãs),
independente da classe social, gênero e etnia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CISNE, Mirla. Gênero e patriarcado: uma relação necessária para o feminismo. In:
QUEIROZ, Fernanda. RUSSO, Gláucia. e GURGEL, Telma. (Orgs.) Políticas Sociais,
Serviço Social e Gênero: múltiplos saberes. Mossoró/RN: Edições UERN, 2012.
______. e BRETTAS, T. Que homens e mulheres educamos? In: TAVARES, J. M. C.
MARINHO, Z. (orgs). Educação, saberes e práticas no oeste potiguar. Fortaleza, UFC,
2009.
HENRIQUES, Ricardo. Et al. (Orgs.). Cadernos SECAD 4: GENERO E DIVERSIDDAE
SEXUAL NA ESCOLA: Reconhecer diferenças e superar preconceitos. Brasília/ DF: MEC,
2007. Disponível em: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_cad4_gen_div_prec.pdf
LAIZO, Denise. Você sabe qual é a origem da opressão da mulher? Blog Feminismo sem
Demagogia Original, Disponível em:
https://feminismosemdemagogia.wordpress.com/2013/06/29/voce-sabe-a-origem-da-
opressao-da-mulher-dica-de-leitura-a-origem-da-familia-da-propriedade-privada-e-do-estado/.
Acessado 13 de outubro 2015.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero Sexualidade e Educação: Uma perspectiva pós-
estruturalista-Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. Edição 6°.

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GENERO E SEXUALIDADE: CURIOSIDADES, DESCOBERTAS E


APRENDIZADOS CONSTRUÍDOS COM CRIANÇAS DO 4ºANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL

Profa. Ma. Kelly Cristina Brantes371 | kellybrantes@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

Sou professora efetiva nas redes estadual e municipal de São Paulo da disciplina de
Educação Física, em regime de acumulação de cargos públicos. No cotidiano do trabalho,
tenho observado e inquieta-me muito o quanto os discursos e práticas pedagógicas dos
docentes parecem convergir para um léxico comum na expectativa de que os/as alunos/as
vivenciem masculinidades e feminilidades a partir de modelos heteronormativos. Também
tenho observado na minha atuação docente que os/as alunos/as das diversas faixas etárias e
tipos de ensino recusam-se a vivenciar, nas aulas práticas, manifestações corporais tidas como
masculinas e/ou femininas pela sociedade. Nas práticas esportivas, espera-se que os meninos
pratiquem futebol e mais ainda que sejam “bons” jogadores, caso contrário serão hostilizados
ou simplesmente deixados de lado, da mesma forma que as meninas tendem a preferir
atividades “menos” agressivas e de menor contato físico; ou seja, essas práticas e concepções
parecem estar enraizadas nas práticas pedagógicas influenciadas pela subjetividade de cada
docente no tocante às representações de gênero e sexualidade.
Diante de tais observações no e do cotidiano das escolas, venho tentando desconstruir
essas “verdades” impostas pelas relações sociais ao adotar, em minhas práticas pedagógicas e
discursos, a importância de problematizar as questões do corpo, do gênero, da sexualidade na
educação escolar, especialmente com alunos/as dos anos iniciais.

Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho. Graduada em Educação Física. Licenciada em
371

Pedagogia. Professora nas redes de ensino estadual e municipal de São Paulo. Integrante o grupo de pesquisa em
Educação Infantil e Formação de Professores (GRUPEIFORP) da Universidade Nove de Julho.

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Assim, optei por investigar a temática gênero e sexualidade, no curso de mestrado em


Gestão e Práticas Educacionais da Universidade Nove de Julho (PROGEPE-Uninove), por
meio de uma pesquisa-intervenção com docentes dos anos iniciais de uma escola pública
estadual, localizada na região metropolitana da cidade de São Paulo.
Desse modo, este artigo traz um recorte dessa pesquisa-intervenção, concluída no ano
de 2014, o qual apresenta possibilidades educativas com o tema gênero e sexualidade e na
prática pedagógica de uma das professoras, com a intervenção da pesquisadora, com uma
turma de crianças do 4º ano do Ensino Fundamental, após a etapa de formação continuada em
serviço com as professoras tendo como eixo temático gênero e sexualidade na educação.
No sub-item a seguir elucidaremos as etapas do projeto em articulação com as análises
do referencial teórico desta pesquisa.

PROJETO “GÊNERO E SEXUALIDADE”: APRENDIZADOS CONSTRUÍDOS COM


AS CRIANÇAS DO 4º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

A pedido de uma das professoras que participou de todos os encontros de formação – a


professora Ana –, no segundo semestre de 2014, foi desenvolvido um projeto sobre o tema
gênero e sexualidade com uma turma do 4º ano do EFAI. Esta turma, da qual a professora é a
regente da classe, possui 35 alunos/as, sendo 18 meninas e 17 meninos.
Em uma conversa prévia entre a pesquisadora e a professora Ana, ficou decidido que
esta apresentaria para os/as alunos/as e juntos explicariam a dinâmica do projeto, bem como
as atividades a serem desenvolvidas, os eixos temáticos que foram discutidos e
problematizados.
Por ocasião da apresentação da pesquisadora foi entregue um termo de autorização de
uso de imagem e depoimentos para os/as responsáveis legais das crianças para fins
acadêmicos desta pesquisa. Do total de alunos/as, 20 responsáveis dos/as alunos/as assinaram
o termo de autorização de uso das imagens e depoimentos, 2 não autorizaram, e 13 não
devolveram. Contudo, todas as crianças acabaram participando das atividades. Por questões
éticas, utilizamos nesse trabalho apenas as imagens e depoimentos de crianças cujos/as
responsáveis autorizaram a divulgação.
O primeiro encontro ocorreu em 27 de agosto de 2014. Teve por objetivo identificar e
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problematizar como as crianças concebem a identidade de gênero, por meio do estudo do


meio dos artefatos presentes na sala de aula (materiais escolares), que determinam o que é “de
menino ou de menina”. Para estimular o interesse das crianças sobre o tema a ser refletido e
debatido, fizemos a leitura e mostramos as imagens conforme íamos narrando a história do
livro infantil intitulado A menina e o menino que brincavam de ser..., de Xavier Filha (2009a).
O livro conta a história da menina Ana Carolina e do menino Mateus. A temática central
refere-se à construção identitária de gênero em relação a inúmeros artefatos culturais como os
brinquedos.
Discutimos que a definição da cor de rosa para as meninas e azul para os meninos é
uma forma de a sociedade delimitar como vão constituir o seu jeito de ser. No livro são
ilustrados o corpo nu da menina e do menino acompanhados de termos como: “vulva” e
“pênis” com os seus respectivos apelidos como: “borboletinha”, “perereca”, “periquito”,
“torneirinha”. . As crianças deram muitas risadas e teceram vários comentários e perguntas,
conforme os depoimentos:

Menina (9 anos) – Dá pra um menino fazer uma cirurgia e ficar com as “partes de
baixo” igual mulher?
Menino (9 anos) – Por que os meninos tem as partes íntimas diferentes?
Menina (10 anos) –Homem menstrua?
Menino (9 anos) – A gente pode falar coisa pesada? Coisa que não deve?
Menina (9 anos) – Como é sexo? Por que as pessoas fazem sexo?

Assim que finalizamos a leitura do livro, pedimos para que as crianças observassem os
materiais escolares – mochila, caderno, agenda, lápis, caneta, estojo, etc. – disponíveis na sala
de aula. Problematizamos com eles/as a forte presença das cores azul e cor de rosa,
instigando-os/as a observar se predominava a cor rosa nos objetos das meninas e a cor azul
nos objetos dos meninos. Indagamos sobre o que ocorreria se as cores pertencentes a eles e a
elas fossem invertidas e os comentários foram os seguintes:
Menino (9 anos) – Ah! A gente ia zuar, mulherzinha! Rosinha! Gay! Viado!
Bichinha!
Menina (9 anos) – Cor azul é cor mais masculina!
Menina (9 anos) – Aqui na sala tem um menino que brinca com a gente, mas os
outros meninos zoam ele de bichinha, viado!

Esses questionamentos e curiosidades das crianças foram geradores de temas que


contribuíram para a definição dos eixos temáticos a serem desenvolvidos nos encontros
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seguintes, a saber: corpo, sexualidade, identidades de gênero e diversidades.


Ainda, nesse primeiro encontro, com o objetivo de identificar como as crianças concebem a
identidade de gênero, foi proposta a seguinte atividade: individualmente, foi sugerido como
atividade que elas fizessem individualmente um desenho e/ou registrassem com frases as
perguntas: O que é ser menino?; O que é ser menina? A seguir, os registros feitos por
alguns/as alunos/as:
O desenho foi elaborado por uma menina que escreve: “Ser menina é um jeito de
andar, de falar, é assim que acho” conforme o registro a seguir:

Figura 01- Desenho “ O que é ser menina?”


Fonte: Foto de Kelly C. Brantes

A exemplo do desenho acima, outros registros tanto produzidos pelas meninas quanto
pelos meninos indicaram a ideia de ser menina associada a:
a) Disciplina, gestualidade (“menina é comportada, o jeito de andar, de se vestir”);

b) Higiene (“andar sempre limpa e arrumada”);

c) Brinquedos (“brincar de boneca, pular corda”);

d) Sexo biológico (“parte íntima diferente”).


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Com relação ao “o que é ser menino?”, chamou-nos a atenção este desenho:

Figura 02 – Desenho O que é ser menino?


Fonte: Foto de Kelly C. Brantes

Este registro foi feito por uma menina que disse que: “ser menino é ser livre para
tudo!”, ao questionar a aluna sobre esta afirmação, ela nos disse: “ah, a gente por ser menina
não pode fazer quase nada do que a gente quer... eu acho que os meninos podem tudo e nós
não podemos nada! nem jogar bola a professora de Educação Física deixa!”.
No segundo encontro, que ocorreu em 3 de setembro de 2014, problematizamos com as
crianças questões relacionadas aos seguintes temas: corpo (aspectos biológicos), construção

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social do corpo, sexualidade. Nesta intervenção, a professora fez a leitura do livro Entre
explosões e cortes na barriga, as curiosidades de Rafael/Entre sementes e cegonhas: as
curiosidades de Gabriela (XAVIER FILHA, 2009b), com o objetivo mais específico de
discutir a respeito de curiosidades apresentadas pelas crianças sobre gravidez.
As crianças, na medida em que liam o livro, questionavam:
-Como engravida?
- O que é espermatozoide?
- Por que mulher menstrua?
No segundo momento, dialogamos sobre as expressões usadas para os órgãos sexuais
do corpo humano, a fim de que elas pudessem identificar as variações de linguagem:
nomenclaturas populares e científicas e também possibilitar às crianças conhecer as mudanças
corporais que ocorrem na puberdade em meninos e meninas.
Neste encontro com as crianças surgiram muitas indagações, mas o que nos despertou
a atenção e serviu de parâmetro para definir o tema do encontro seguinte foram as perguntas
sobre orientação sexual e identidade de gênero:
– Prô... existem corpo metade mulher metade homem?
– Travestis são homens ou mulheres?
– Conheço uma menina que gosta de se vestir de homem!
– Como é sexo entre homens? E entre mulheres? Dá pra eles engravidarem?
– Minha avó tem uma namorada e ela é minha madrinha !

Em 10 de setembro de 2014, ocorreu o terceiro encontro no qual tratamos dos


seguintes conceitos: sexo biológico x identidade de gênero x orientação sexual, e as diversas
formas de preconceito como misoginia, racismo, sexismo, transfobia, lesbofobia e
homofobia.Num primeiro momento, a discussão girou em torno da etimologia dos termos que
constituem as palavras “heterossexual”, “homossexual” e “bissexual”. Foi proposta a
discussão dos termos hetero, homo e bi, levando-se em conta que os radicais que dão origem
aos termos são de origem grega, logo, hetero = diferente, outro, e homo = igual. Assim
contextualizamos com as crianças a seguinte definição para os termos, heterossexual: pessoa
que se sente atraída sexual e afetivamente por alguém do sexo oposto ao seu; homossexual:
pessoa que se sente atraída sexual e afetivamente por alguém do seu próprio sexo; bissexual:
pessoa que se sente atraída sexual e afetivamente por pessoas de ambos os sexos; e o
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assexual: pessoa que não faz sexo.


Ao problematizarmos as identidades de gênero, conceituamos que é a forma como
você, na sua cabeça, pensa sobre você mesmo. Utilizamos os termos travestis, transexuais,
homem, mulher, transgênero.
A seguir, exibimos uma apresentação em powerpoint para ampliar o debate sobre as
identidades de gênero e orientação sexual, trazendo para o debate a história de vida do
cartunista Laerte. As crianças indagaram:

Menino (9 anos): Nossa, ele é avô, mas se veste como mulher!


Menina (10 anos): será que ele é gay?

Consideramos importante ampliar o debate problematizando a história de vida do


cartunista Laerte, problematizando as categorias identidade de gênero versus orientação
sexual.
Para que as crianças soltassem ainda mais as suas ideias, por meio de sua imaginação,
exibimos a reportagem “Wolverine não, Wolverina!” (TOTSKI, 2014). Trata-se de uma
história de empoderamento infantil da Maria para enfrentar os colegas de escola que lhe
disseram que não poderia ir de super-herói, afirmando a polarização herói para menino e
princesa para menina.

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Figura 03 – Imagem da reportagem de empoderamento infantil


Fonte: Foto de Kelly C. Brantes

Então, sugerimos que as crianças se subdividissem em grupos e com base nessa reportagem
produzissem desenhos, a exemplo do documentário, invertendo os papéis das identidades de
gêneros atribuídas aos personagens dos desenhos infantis. Dos trabalhos das crianças
surgiram:

a) Tartaruga Ninja – Mulher Tartaruga Ninja;


b) Homem-Aranha – Mulher-Aranha;
c) Ben-10 – Ben-Girl;
d) Homem-de-Ferro – Mulher de Ferro.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizamos este capítulo com a certeza de que existem inúmeras possibilidades


educativas para problematizar e desconstruir polarizações acerca das identidades de gênero
com as professoras, delas com as crianças e entre as crianças.
Evidente que esse processo formativo e educativo exige tempo e apropriação das
professores/as sobre temas tão complexos. No entanto, a abertura como teve a professora para
descobrir-se nesse processo de formação e desafiar-se a construir com a pesquisadora um
projeto com as crianças revela mudanças possíveis. Um exemplo de uma situação presenciada
pela pesquisadora e pelas crianças mostra que a professora, ao abrir-se para o diálogo e
compartilhar experiências, possibilitou às crianças que revelassem suas dúvidas por meio de
perguntas, como na cena descrita a seguir. Um menino perguntou se existiam mulheres que
não menstruavam. A professora Ana, devido à idade avançada, explicou que estava na
menopausa, que seu ciclo menstrual e ovulatório havia encerrado e, por isso, não menstruava
mais. Observamos que os/as alunos/as depois dessa resposta começaram a fazer inúmeras
perguntas sobre menstruação, ora dirigindo-se à pesquisadora, ora à professora. A professora Ana
comentou que, após esses encontros, ela pôde perceber o quanto as crianças sentem-se mais à
vontade com ela.
Um outro fato foi que, após o primeiro encontro, muitas crianças vieram procurar a
pesquisadora no intervalo com perguntas sobre sexualidade, porque tinham “vergonha” de
perguntar na sala de aula. Isso foi sendo superado na medida em que íamos problematizando,
quebrando o silêncio, dando visibilidade à “voz” das crianças e a partir daí, elaborarmos os
eixos temáticos que foram problematizados com elas nos encontros seguintes, possibilitamos
vivenciar novas práticas educativas com o tema gênero e sexualidade. O planejamento e o
desenvolvimento dos encontros pautados nas curiosidades delas também permitiu que a
pesquisadora e a professora fizessem descobertas sobre as formas de pensar e de se comportar
das crianças diante dos temas que estavam sendo abordados.
Marcadamente, no decorrer dos encontros, percebemos que, na medida em que
problematizávamos questões de gênero e sexualidade, as piadas e atitudes homofóbicas e sexistas
que as crianças traziam estavam relacionadas aos valores de uma sociedade que não inclui a todos

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e a todas e que cria mecanismos cada vez mais perversos para discriminar e normalizar as
pessoas, sejam elas crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

TOTSKI, J. Wolverine não, Wolverina: a história de empoderamento infantil e feminismo.


Disponível em: <http://pacmae.com.br/2014/11/05/wolverine-nao-wolverina-uma-historia-de-
empoderamento-infantil-e-feminismo-guest-post-por-jessica-totski/>. Acesso em: 12 de
outubro de 2015.
XAVIER FILHA, C. A menina e o menino que brincavam de ser... Campo Grande, MS: Ed.
UFMS, 2009a.
_____________. Entre explosões e cortes na barriga: as curiosidades de Rafael/Entre
sementes e cegonhas: as curiosidades de Gabriela. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2009b.

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GÊNERO E SEXUALIDADE NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA DO ENSINO


MÉDIO: NARRATIVAS A PARTIR DE UM CURRÍCULO INTERCULTURAL

Kátia Regina Xavier da Silva | katiarxsilva@globo.com

Leandro Teofilo de Brito

INTRODUÇÃO
Os processos de identificação relacionados à raça/etnia, classe, gênero, sexualidade,
geração, dentre outros marcadores identitários são produtos de lutas sociais travadas
historicamente, a partir de disputas de sentidos e significados, que buscam transformar as
relações sociais, culturais e institucionais a partir de um movimento de ressignificação. Dentre
estas instâncias, a escola se coloca como uma das principais protagonistas na emergência de
mudanças, em que dinâmicas sociais mais inclusivas, democráticas e participativas precisam
fazer parte de seu cotidiano, ou seja, há uma busca por uma escola que seja interculturalmente
orientada.
A perspectiva intercultural está pautada no reconhecimento do direito à diferença
entre os sujeitos e na promoção de uma relação dialógica e igualitária entre grupos
socioculturais distintos (CANDAU, 2012a; CANDAU, 2012b; WALSH, 2009). Ao
pensarmos em uma educação intercultural, a questão das diferenças no contexto mais amplo
da Educação deve fazer parte dos processos pedagógicos que constituem os espaços escolares
diariamente, perpassando ações, estratégias, planejamentos e, consequentemente, fazendo
parte dos currículos das diferentes disciplinas.
Apresentamos, neste trabalho, uma discussão sobre a inserção de questões de gênero
e sexualidade como conteúdos de um currículo intercultural em ação nas aulas de Educação
Física, objetivando refletir sobre o sexismo e a heteronormatividade tão presentes no contexto
das práticas corporais e esportivas escolares. Nos apoiamos na noção de gênero

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performativo372, de Judith Butler, explicitada pela repetição estilizada de atos corporais,


gestos e movimentos particulares, a partir do poder da linguagem e dos discursos, regulando
nossos modos de ser masculinos e femininos, assim como na normatização do sexo e da
sexualidade (BUTLER, 2015).
Com base nesta teorização, Louro (2010) afirma que os currículos e práticas de
nossas escolas permeiam-se a partir de uma noção singular de gênero e sexualidade, já que:
“[...] a instituição escolar tem a obrigação de nortear suas ações por um padrão: haveria
apenas um modo adequado, legítimo, normal de masculinidade e de feminilidade e uma única
forma sadia e normal de sexualidade, a heterossexualidade [...]” (p.43/44). Os discursos,
performativos, atribuem determinado significado aos corpos e às identidades, porém, também
acreditamos, que podem produzir deslocamentos nos sentidos mais fixos e estáveis
relacionados aos gêneros e às sexualidades, quando uma proposta intercultural de educação se
fizer presente nos espaços escolares.
Na sequencia deste trabalho, propomos um diálogo entre os estudos de gênero e
sexualidade com a perspectiva intercultural, e, em seguida, apresentaremos narrativas
(ARFUCH, 2010) da abordagem dos temas gênero e sexualidade nas aulas de Educação
Física, a partir de um currículo intercultural em ação.

ESTUDOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE EM DIÁLOGO COM A PERSPECTIVA


INTERCULTURAL
Para Butler (2015) o conceito de gênero, a princípio, formulado para dar ênfase aos
significados culturais assumidos por um corpo sexuado, direcionou-se a um esquema binário
no qual corpos masculinos se aplicariam aos homens e corpos femininos a mulheres, em
outras palavras o gênero refletiria o sexo e por ele seria restrito. Essa busca por identidades e
performances de gênero inteligíveis, buscam manter uma coerência entre sexo, gênero e
desejo sexual, regulando os sujeitos no social.
Com críticas a essa premissa, Judith Butler afirmou que:

372
Judith Butler, ao falar do gênero, se apropria do termo performativo, do filósofo Jacques DERRIDA (1991),
para afirmar o poder e a força da linguagem na produção discursiva intencional. Neste contexto, os processos de
identificação do gênero (assim como o sexo e a sexualidade) são construídos, com repetições constantes, através
dos discursos proferidos.
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Supor que gênero sempre e exclusivamente significa as matrizes “masculino” e


“feminina” é perder de vista o ponto crítico de que essa produção coerente e binária
é contingente, que ela teve um custo, e que as permutações de gênero que não se
encaixam nesse binarismo são tanto parte do gênero quanto seu exemplo mais
normativo. Assimilar a definição de gênero à sua expressão normativa é reconsolidar
inadvertidamente o poder da norma em delimitar a definição de gênero. Gênero é o
mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e
naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses
termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados (BUTLER, 2014, p. 253).

Os estudos de gênero na Educação Física adentraram a área, aproximadamente, na


década de 1980, com forte influência dos movimentos feministas e do crescimento de
programas de pós-graduação na área, que passaram a questionar os argumentos biologicistas
que historicamente segregaram e excluíram as mulheres das práticas corporais e, em especial,
das esportivas (DEVIDE et. al., 2011; GOELLNER, 2013; ALTMANN, 2015). O discurso
performativo se fez presente na Educação Física produzindo, historicamente, corpos
masculinos e corpos femininos distintos.
Nas palavras de Goellner (2013):

Os estudos de gênero e feministas, ao apontarem que os corpos não se traduzem em


matéria universalmente edificada pelos desígnios da natureza, enfatizaram a
importância da utilização do “gênero” como uma categoria analítica, visto que esse
conceito é importante para perceber os processos pelos quais, no interior das redes
de poder, a diferença biológica é tomada para explicar desigualdades sociais,
gestando, assim, formas de inclusão e exclusão de sujeitos e grupos (p. 25).

Pesquisas da área de Educação Física com um recorte na sexualidade (DORNELLES,


2012; WENETZ, 2012) começaram a se desenvolver há bem pouco tempo, quando se
considerou a mesma uma categoria de análise no âmbito dos esportes e práticas corporais, e,
neste contexto, passou a se apropriar de autoras/es que já discutiam o sexo e a sexualidade,
assim como o gênero, como construções socioculturais vividas pelos sujeitos. Este é um
recorte ainda bastante inicial nas pesquisas da área.
A partir destas afirmações, a inserção de questões de gênero e sexualidade em um
currículo interculturalmente orientado nas aulas de Educação Física escolar, busca
desnaturalizar concepções fixas e estáveis na construção de uma masculinidade e uma

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feminilidade hegemônica pelas práticas corporais e esportivas. Santos & Canen (2015), a
partir de uma pesquisa que problematizou preceitos da multi/interculturalidade373 com as
questões de gênero na Educação Física escolar, afirmam justamente a perspectiva supracitada,
buscando a construção de relações mais igualitárias entre os diferentes sujeitos, neste caso
reconhecendo as construções culturais que dicotomizam masculino e feminino nos espaços de
aula.
Segundo as autoras:

Reconhecer que questionar, desnaturalizar e desestabilizar a realidade


discriminatória e excludente, no qual se insere o sexismo, constitui um passo
fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária, não
só no que se refere ao gênero, mas em todos os seus níveis e relações (SANTOS &
CANEN, 2015, p. 84).

Nesta direção, a perspectiva intercultural busca valorizar a interação e comunicação


recíprocas entre diferentes grupos sociais e, no contexto da Educação, uma proposta que
favoreça a negociação cultural, pela qual as diferenças sejam dialeticamente integradas. Se
situa, também, em confronto com todas as visões diferencialistas que apontem para processos
radicais de afirmação de identidades culturais específicas, levando em consideração a
hibridização cultural, as relações de poder, além de não se desvincular de questões da
diferença e desigualdade presentes na nossa realidade e no plano internacional (CANDAU,
2012b).
A perspectiva da interculturalidade crítica se mostra importante nesta discussão
teórica, pois:

Como projeto político, social, epistêmico e ético, a interculturalidade crítica


expressa e exige uma pedagogia e uma aposta e prática pedagógicas que retomam a
diferença em termos relacionais, com seu vínculo histórico-político-social e de
poder, para construir e afirmar processos, práticas e condições diferentes. Dessa
maneira, a pedagogia é entendida além do sistema educativo, do ensino e
transmissão do saber, e como processo e prática sociopolíticos produtivos e
transformadores assentados nas realidades, subjetividades, histórias e lutas das
pessoas, vividas num mundo regido pela estrutura colonial (WALSH, 2009, p. 26).

373
Cabe colocar que os termos multiculturalismo e interculturalidade, em algumas teorizações, apresentam o
mesmo significado (CANDAU, 2012a; CANDAU, 2012b), o que, possivelmente, as autoras ao se utilizarem da
palavra multi/interculturalidade estavam pautadas.
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Candau (2012b) vai apontar ações que julga fundamentais para a promoção de uma
educação intercultural na perspectiva critica e emancipatória que são: desconstruir, articular,
resgatar e promover. Esta proposta orientou a construção de um currículo intercultural e a
ação de estratégias na Educação Física, que narramos, a partir do próximo item,
problematizando como os temas gênero e sexualidade foram inseridos nos conteúdos da
disciplina.

GÊNERO E SEXUALIDADE A PARTIR DE UM CURRÍCULO INTERCULTURAL


EM AÇÃO
Como escolha metodológica de pesquisa, nos pautamos no uso de narrativas para
relatar como questões de gênero e sexualidade fizeram-se presentes nas ações de um currículo
intercultural da Educação Física. Arfuch (2010) reconhece, dentro de uma das grandes
divisões do discurso, as narrativas, que contam, a partir de certa temporalidade e de diferentes
modos, histórias ou experiências de vida, adquirindo relevância filosófica, em especial no
tempo do relato. Neste contexto, os relatos não remetem apenas a disposição dos
acontecimentos em uma ordem sequencial e sim a relação existente entre contar uma história
e o caráter da experiência humana, dentro de uma ordem denominada de transcultural (Ibid.).
A partir do caráter narrativo da experiência vivida, relatamos como questões de gênero
e sexualidade, a partir de um currículo intercultural em ação nas aulas de Educação Física
escolar de turmas do Ensino Médio, foram problematizadas no primeiro trimestre do ano
letivo de 2015. A escola se situa na cidade do Rio de Janeiro e o recorte apresentado está
voltado para turmas do terceiro ano do Ensino Médio. Utilizamos de estratégias como aulas
teóricas, realização de um seminário, avaliação escrita e aulas práticas coeducativas374.
As questões de gênero e sexualidade, no plano de curso375 da instituição escolar,
estiveram presentes a partir do que se denominou como “contextualização sociocultural”,

374
A coeducação na Educação Física escolar diz respeito a promoção da igualdade e valorização entre masculino
e feminino, discussão sobre os diferentes sentidos atribuídos ao masculino e ao feminino, assim como a
percepção da existência de diferentes masculinidades e feminilidades no âmbito das aulas (CORSINO & AUAD,
2012).
375
Ver: <http://efen2.blogspot.com.br/2015/06/planejamento-didatico-organizando-as.html>. Acesso em: <18 de
Outubro de 2015>
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dentro do tema gerador “Educação Física e Interculturalidade”, apresentando o seguinte


objetivo: “Problematizar o conceito de gênero, compreendendo as construções culturais e
sociais sobre os sentidos do masculino e do feminino, nas práticas corporais e esportivas,
tendo como base a perspectiva intercultural de valorização das diferenças como vantagem
pedagógica”. Baseando-nos em Candau (2012a), devemos considerar a educação intercultural
um principio orientador e teórico dos sistemas educacionais em sua globalidade, quando
objetivamos colocar as diferenças em destaque. O plano de curso também faz referências aos
Parâmetros Curriculares Nacionais, tomando como base o tema transversal “Orientação
Sexual”, diretriz que se dispõe a discutir gênero e sexualidade em todas as disciplinas
escolares (BRASIL, 1998).
As estratégias do trimestre se iniciaram com três aulas teóricas seguidas, que se
pautaram nos seguintes temas: “Mulheres no esporte”; “Práticas corporais: masculinas e
femininas?”; e “Homofobia no esporte”. A primeira aula buscava apresentar o surgimento do
conceito de gênero, entre a segunda e a terceira onda do movimento feminista (década de
1970, aproximadamente), problematizando-o como uma construção social e cultural do sexo
biológico. Questionadas/os por uma das professoras se o tema não havia sido discutido nas
aulas de Sociologia, estudantes afirmaram que o termo havia sim, sido citado nas aulas (não
constantemente), mas nunca esclarecido dentro de um contexto histórico maior, sendo, de
fato, um conhecimento novo para alunas e alunos nesta primeira aula.
A compreensão do termo gênero buscava discutir o campo do esporte como uma das
maiores instâncias de segregação e desigualdades vividas pelas mulheres, ao apresentar dados
que abordavam um número pequeno de praticantes em variadas modalidades frente aos
homens, a dificuldade de patrocínios para equipes esportivas femininas, pequeno público para
determinadas modalidades e desinteresse da mídia. Um estudante, atleta federado de
basquetebol, relatou as dificuldades que os times femininos viviam no cotidiano de seu clube,
e exaltou que tinha como principal ídolo uma jogadora estadunidense que atuava na
WNBA376.
Altmann (2015) aponta que, com muita luta, as mulheres conquistaram o direito a

376
WNBA é a Liga profissional feminina de Basquetebol dos EUA. Ver: <http://www.wnba.com/>. Acesso em:
<18 de Outubro de 2015>.
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pratica esportiva ao longo da história. Essa luta travada pelas mulheres, segundo a autora, é
política e percorreu o século XX, seguindo até os dias atuais, sendo um dos grandes desafios
da Educação Física brasileira oferecer experiências esportivas igualmente acessíveis a homens
e mulheres. Nas palavras da autora: “Uma pedagogia do corpo atenta às dimensões de gênero
deve, portanto, produzir discursos e práticas que eduquem o corpo – seus gestos e
movimentos – tornando-o apto aos esportes” (p. 45).
A segunda aula problematizou as práticas corporais e sua dicotomia
masculino/feminino. Utilizamos, para discussão, um vídeo377 de uma reportagem que
apresentava jovens rapazes inseridos em aulas de balé, mostrando as barreiras, preconceitos,
mas também deslocamentos de sentidos em relação a práticas que, performaticamente, são
construídas como estritamente masculinas ou femininas. Ao complementar a aula, utilizamos
imagens de meninas e mulheres inseridas em espaços de prática do futebol, indo desde a
Educação Física escolar, passando pelas escolinhas de base, até de jogadoras profissionais
mais reconhecidas pela mídia. Alunos e alunas, em suas falas durante a aula, destacaram
pessoas que conheciam, dentro de seu convívio pessoal, como meninos que estavam inseridos
em diferentes modalidades de dança e meninas que jogavam futebol em escolinhas e clubes,
fato que parecia ser mais usual do que pensávamos.
Ressignificações nas práticas corporais e esportivas quanto ao gênero foram
perceptíveis nas respostas dadas por alunos e alunas em relação à aula, o que nos faz
concordar com Butler (2015), quando a filósofa afirma que:

O gênero não deve ser construído como uma identidade estável ou um locus de ação
do qual decorrem vários atos; em vez disso, o gênero é uma identidade tenuemente
constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição
estilizada de atos. O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser
entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos,
movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu
permanente marcado pelo gênero (p. 242).

A terceira aula teórica, mais polêmica, buscou colocar em discussão a homofobia no


esporte. Destacamos casos conhecidos da mídia como do jogador de futebol Richarlyson e do
jogador de voleibol Michael, vítima de homofobia em uma partida de voleibol da superliga

377
Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=TdVFe2Pzd4s>. Acesso em: <18 de Outubro de 2015>.
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masculina no ano de 2011 (ORSINI, 2012). Buscamos ir além do campo do esporte,


discutindo, de forma didática, como a sexualidade era vista pela área de ciências humanas e
sociais, como Sociologia, Antropologia, Filosofia e Psicologia. Durante a aula houveram
muitas colocações de alunos e alunas de religiões protestantes, afirmando ser contra qualquer
orientação sexual que fugisse da heterossexualidade, inclusive, reafirmando uma posição
polêmica imposta pelas igrejas, que seria a tal “cura” da homossexualidade. Não fugimos de
intervenções nas colocações, em especial para colocar que o conhecimento ali exposto se
pautava em teorias e pesquisas científicas, diferente de uma compreensão construída por
discursos fundamentalistas do senso comum.
Instâncias sociais como a igreja, assim como a família e a escola, são instâncias que
podem produzir os sujeitos através de seus discursos reguladores e normatizadores, segundo
Louro (2000). Estes discursos, segundo a autora, quando citamos a sexualidade, condenam a
homossexualidade como um desvio, um pecado e uma doença, passíveis de “cura”, como
pudemos constatar nas resistências colocadas em aula. Promover reflexões, por meio de
esclarecimentos através de teorias, como fizemos, talvez seja o caminho mais ético e viável de
discutir tais pontos. Tendo como base uma educação intercultural, o diálogo entre as
diferentes culturas, por vezes, pode direcionar-se a tensões nos grupos, que precisam ser
mediadas pelos/as professores/as, como afirma Candau (2012a; 2012b), no processo de
problematização das diferenças.
Utilizamos também como uma das estratégias, ao término das aulas teóricas, um
seminário em que as/os estudantes, divididos em grupos, expuseram discussões sobre temas
relacionados ao gênero e à sexualidade nas práticas corporais e esportivas. Os temas foram
escolhidos pelas/os professoras/es, em um primeiro momento, mas com possibilidades de
negociação com alunos e alunas, foram os seguintes: Mulheres no Futebol; Mulheres nas
Lutas; Voleibol e as questões de gênero (e sexualidade); Homens na Dança; Ginástica
Artística masculina; Nado sincronizado masculino; Hipismo e a igualdade de gênero;
Torcidas Queer no Futebol, Coeducação e a Educação Física escolar. O tema “Mulheres nas
Lutas” foi um tema não contemplado nas escolhas iniciais dos/das professores/as, mas
solicitado por um grupo de alunos, composto só por rapazes, que tiveram interesse em
apresentar a temática no seminário. Superando as expectativas criadas por nós professores/as,
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todos os trabalhos apresentaram discussões muito ricas sobre os temas, apresentando dados
estatísticos, entrevistas com atletas e praticantes, vídeos específicos dos temas, dentre outros
recursos que fizeram da atividade um “evento” dentro de duas aulas de Educação Física, já
que abrimos à comunidade escolar para que todas/os interessadas/os pudessem assistir as
apresentações.
Entretanto, resistências se fizeram presentes em dois momentos da atividade,
protagonizadas por rapazes: na apresentação do grupo que escolheu o tema “Voleibol e as
questões de gênero (e sexualidade)”, uma imagem dos jogadores de vôlei de praia da
Alemanha, Rechermann e Brink, campeões olímpicos nos jogos de Londres em 2012,
beijando-se na boca em uma campanha contra a homofobia378 foi apresentada, gerando revolta
em um aluno da turma, integrante de outro grupo, que assistia a apresentação e se exaltou,
retirando-se da sala até o término da apresentação do grupo. A outra situação, ocorreu na
apresentação do grupo que abordou as “Torcidas Queer no Futebol”, em que na hora da
apresentação, um outro rapaz externalizou verbalmente que o futebol não era lugar de gays.
As duas situações tiveram intervenções da professora e do professor presentes, embora os dois
alunos mostrassem-se irredutíveis em relação às suas concepções sobre o assunto.
Recorremos novamente a Louro (2000) para discutir esta questão, pois, de acordo com a
autora, a homofobia, culturalmente, se faz muito presente nos sujeitos masculinos, que
acabam colocando-se extremamente radicais com qualquer situação em que coloque a prova
uma representação hegemônica de masculinidade. Fato constatado nas atitudes dos dois
estudantes nos relatos apresentados.
Nas aulas práticas do trimestre, utilizamos o voleibol como estratégia, que conduzimos
através de aulas mistas e coeducativas. Utilizamos exercícios de fundamentos, jogos pré-
desportivos e o jogo, propriamente dito de voleibol, que ocorriam sempre com meninos e
meninas juntos em quadra, sempre numa busca por igualdade e não hierarquização nas
relações de poder entre os gêneros nas aulas. Esta estratégia foi, de uma maneira geral, a que
menos precisou de intervenções, pois a prática mista, pelo menos do voleibol, parecia ser bem
natural para meninos e meninas. Coelho (2009) afirma que o voleibol no Brasil se constituiu

378
Ver: <http://blogs.lancenet.com.br/foradecampo/campeoes-do-volei-de-praia-se-beijam-em-campanha-contra-
homofobia/>. Acesso em: <18 de Outubro de 2015>.
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como um espaço híbrido de socialização esportiva, pois a construção histórica do vôlei,


sempre permitiu que as mulheres praticassem o esporte no mesmo nível de participação dos
homens. A autora, com base em variadas pesquisas, afirma que a representatividade feminina
no voleibol o coloca como um esporte tido como feminino no nosso país. Estas afirmações,
talvez, respondam a relação harmoniosa entre meninos e meninas nas práticas realizadas
durante as aulas.
Ao fim do trimestre, uma prova escrita foi aplicada com o objetivo de refletir sobre as
questões levantadas e discutidas. Propomos três questões discursivas, que colocavam em
discussão o conceito de gênero, para problematizar as desigualdades sofridas pelas mulheres
no âmbito esportivo, uma questão sobre a linguagem homofóbica em situação dentro de uma
aula no voleibol e uma última questão em que se refletia sobre a coeducação nas aulas. As
respostas obtidas, de uma maneira geral, foram satisfatórias neste processo intercultural que
buscou problematizar gênero e sexualidade nas aulas de Educação Física.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos, com este trabalho, discutir como questões de gênero e sexualidade
presentes em um currículo intercultural nas aulas de Educação Física, possibilitava reflexões
sobre o sexismo e a heteronormatividade, tão presentes no contexto das práticas corporais e
esportivas. A construção performativa do gênero e da sexualidade, como já citamos, instituiu
lugares fixos para homens e mulheres em variadas instâncias sociais, e, desta forma, o esporte
e as práticas corporais não fugiram deste direcionamento. Promover desnaturalizações e
deslocamentos não foi uma tarefa fácil, conforme mostramos nos relatos da pesquisa, porém
também não foi uma tarefa impossível, já que os/as estudantes traziam consigo concepções e
percepções, em parte, desconstruídas, frente alguns pontos.
O reconhecimento do/da outro/a, o diálogo entre os diferentes grupos socioculturais, o
processo de negociação constante nas aulas, foram exemplos de um currículo orientado
interculturalmente na Educação Física escolar, favorecendo a articulação entre igualdade e
politicas de identidade, que promovemos nesta abordagem sobre questões de gênero e
sexualidade nas aulas. Acreditamos nesta educação, que se mostra democrática, plural,
inclusiva e que reconhece as diferenças cotidianamente no espaço escolar.

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GÊNERO E SEXUALIDADE:
PLANOS NACIONAL, ESTADUAIS E MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO

Girlane Martins Machado | gigidite@hotmail.com


Karyne Dias Coutinho

Figura 1 – Protesto contra a chamada “ideologia de gênero”, em abril de 2014. Fonte: Blog
Carmadélio. Disponível em: http://blog.comshalom.org/carmadelio/40633-votacao-de-6-de-
maio-podera-retirar-definitivamente-ideologia-de-genero-plano-nacional-da-educacao.
Acesso em 04 de outubro de 2015.

A imagem acima retrata a manifestação de alguns representantes de grupos religiosos


contra o que eles chamam de “ideologia de gênero”, expressão que ganhou força pela voz de
políticos conservadores, especialmente quando se passou a discutir a possibilidade de inserção
dos temas gênero e sexualidade no PNE. Tal imagem é, assim, emblemática dos conflitos
existentes nas relações entre gênero, sexualidade e educação, com atravessamentos que
recaem diretamente sobre os planos educacionais, seja na esfera federal, seja nos âmbitos
estadual e municipal.
O protesto específico a que essa imagem se refere foi contra a tentativa de inclusão, no
texto do PNE, da Estratégia 3.13, da Meta 3 (referente ao Ensino Médio), intitulada
“prevenção à evasão por preconceito ou discriminação”, e que consiste em “implementar
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políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação racial, por


orientação sexual ou identidade de gênero, criando rede de proteção contra formas associadas
de exclusão”379.
Contra a Estratégia 3.13, a expressão “ideologia de gênero” passou a ser usada por
grupos conservadores para designar conteúdos dos estudos de gênero e sexualidade, taxados
de “doutrina” supostamente capaz de alienar crianças e jovens. Segundo tais grupos, trata-se
de uma ideologia “desmoralizante” e “destruidora da família”. Abaixo, podem-se ler
comentários feitos por bispos de Tocantins e Goiás, em reportagem publicada no site do
Instituto Plínio Corrêa de Oliveira380, intitulada Cardeal e bispos brasileiros alertam contra a
implantação da Ideologia de Gênero nos Planos Municipais de Educação:

Essa ideologia, de maneira oculta e à revelia da população brasileira, pretende


acabar com as bases da nossa cultura e fundar uma nova ordem em que cada um
pode decidir autonomamente e de maneira não definitiva a própria orientação sexual
ou livre opção sexual. [...] Há organizações nacionais e internacionais muito
ocupadas em destruir a família natural, constituída por um pai, uma mãe e seus
filhos. Hoje um dos recursos mais perigosos para atentar contra a família se chama
“ideologia de gênero”, que destrói o ser humano em sua integralidade e, por
conseguinte, a sociedade, cuja célula-mãe é a família. (apud OLIVEIRA, 2015)

O ponto central destes comentários está no alerta de que a “ordem” estabelecida sobre
os discursos de gênero e sexualidade na educação estaria sendo supostamente abalada por
uma “doutrina” entendida como destrutiva e, portanto, danosa à formação de crianças e
adolescentes. De acordo com este ponto de vista conservador, a pretensão de inserir tais temas
como estratégia em Planos de Educação teria efeitos nocivos sobre a organização de
currículos e contextos escolares e, portanto, tal pretensão deveria ser completamente
desconsiderada pelas políticas educacionais.
Essa tentativa de incluir no PNE a discussão em torno dos problemas gerados pela
discriminação por orientação sexual e identidade de gênero foi impulsionada por polític@s,
educador@s e pesquisador@s ligad@s aos estudos de gênero, sexualidade e educação, mas

379
As metas e estratégias do Plano Nacional de Educação estão disponíveis no site Observatório do PNE
(http://www.observatoriodopne.org.br/metas-pne/3-ensino-medio/estrategias), acessado em 04 de outubro de
2015.
380
Instituto que se coloca como função primeira a “defesa dos valores da Civilização Cristã”, conforme
disponível no site www.ipco.org.br; acessado em 04 de outubro de 2015.
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não teve a repercussão esperada. Na época de aprovação do texto base do PNE (que aconteceu
em maio de 2014), o argumento religioso se sobressaiu, atingindo grande destaque na
cobertura midiática e apoio popular, tendo em vista a ampla variedade de canais televisivos,
instituições religiosas, rádios e sites que os grupos conservadores possuem para divulgar suas
premissas, enquanto os estudos de gênero e sexualidade se restringem muitas vezes aos
corredores acadêmicos381.
Em 2015, ocorreram diversas tentativas de inserir emendas nos textos dos Planos
Estaduais e Municipais de Educação das capitais brasileiras, que abordassem questões
relativas à discriminação por gênero ou orientação sexual. No entanto, em vários Estados e
Municípios foram vetadas as referências tanto a gênero, quanto a orientação e diversidade
sexual (BRITO; REIS, 2015).
Um dos argumentos usados nos discursos religiosos para incidir no debate entre
educação, gênero e sexualidade é o de que tais temáticas seriam de responsabilidade da
família, esta que deve “educar”, cabendo à escola o papel de “ensinar”. Referindo-se à
retórica de que “cabe à família educar e cabe à escola ensinar”, a estudiosa Furlani (2015)
afirma que isso não passa de

um entendimento simplista e totalmente desconectado da função da escola pública,


do processo ensino-aprendizagem, da formação para o exercício da cidadania, da
democracia e da construção de uma sociedade igualitária e inclusiva.[...] o termo
“gênero” é fundamental para as discussões acerca dos direitos das mulheres, para o
enfrentamento do machismo, da misoginia e do sexismo, para a mudança social
frente às formas de violência contra meninas, mulheres e idosas.

Segundo Furlani (2015), é de extrema importância a inclusão dos debates sobre gênero
na educação, mas negar essa relevância e minar qualquer ação que insira essa temática no
campo escolar parece ser a tarefa dos grupos religiosos envolvidos nas decisões políticas do
Brasil. Diante desse embate político, é evidente o recrudescimento através de vetos e rejeições
das políticas educacionais quando o assunto é gênero e sexualidade. Como efeito, a disputa se
tornou um desafio estimulador de maior produção de materiais e discursos diversos sobre o

381
Ainda que hoje em dia se perceba maior circulação e visibilidade de premissas e resultados dos estudos
acadêmicos em redes sociais da web, tais meios possibilitam tanto os discursos progressistas quanto os discursos
conservadores. Carecemos ainda de pesquisas que mostrem a força e o impacto da circulação discursiva
(referente a gênero-sexualidade-educação) por meio das redes sociais da web.
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tema.
Numa tentativa de problematizar as resistências às questões de gênero e sexualidade
em Planos de Educação, e num breve exercício de situar esse fato que constitui a história do
nosso tempo presente (FOUCAULT, 2008), discutimos a seguir alguns significados atribuídos
a gênero e sexualidade em suas relações com o terreno educacional.

A TRÍADE GÊNERO-SEXUALIDADE-EDUCAÇÃO

Especialmente nos últimos dez anos, inúmeros estudos têm sido desenvolvidos na
intenção de investigar “livros didáticos, paradidáticos, currículos e normas com referência à
discriminação de negros e negras, de índios e índias; à distinta valorização de atividades
profissionais, artísticas, etc.” (LOURO, 2005, p.89). Tais estudos encontram ressonância nas
discussões envolvendo a tríade gênero-sexualidade-educação, que vem granjeando cada vez
mais espaço como “ordem do dia” na área educacional em nosso país.
Nesse sentido, acompanhando a explosão discursiva propagada pela mídia sobre as
polêmicas causadas pela inserção de materiais educativos que abordem gênero e sexualidade,
assim como as reivindicações de diversos grupos engajados nas lutas por direitos das
mulheres, lésbicas, gays, travestis e transexuais, o universo acadêmico vem consolidando essa
temática como legítima na maior parte dos eventos científicos (encontros, seminários,
congressos, reuniões) ligados à área da educação.
Assim, ganham força a discussão e os estudos sobre formação de identidades a partir
do currículo e de diversos aparatos pedagógicos. Colocando foco nessa problemática, algumas
pesquisas –– Altmann (2001; 2005), Dulac (2009), Furlani (2005; 2009), Louro (1999, 2003,
2008), entre outras –– identificam dois universos distintos estereotipados, normalmente com
associações e características de um mundo público masculino e um mundo doméstico
feminino, incidindo em idealizações da família, representação de um sujeito branco,
heterossexual, de classe média urbana e cristão.
Com base nessas investigações, adotamos como premissa para abordar a conexão entre
gênero, sexualidade e educação, a ideia de que os discursos que operam na educação são
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“generificados”, isto é, produzem sentidos sobre homens e mulheres, sobre como devemos ser
e que tipo de sujeitos (sempre enfatizando o gênero masculino para se referir à humanidade)
querem formar.
Mas o que significa dizer que os discursos educacionais são generificados? Para tratar
disso, partimos da afirmação de Scott (1995, p.7) de que gênero é “uma maneira de indicar as
‘construções sociais’ – a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos
homens e às mulheres”. A ênfase na ideia de construção social atribui à educação um papel
central para a categoria gênero, já que é também e principalmente por discursos e práticas
pedagógicas que aprendemos os lugares apropriados para nós de acordo com o gênero ao qual
nos identificaram quando nascemos. Assim, na mesma medida em que os discursos
educacionais são generificados, gênero é também uma construção educacional, num
movimento imanente de retroalimentação.
Entendido isso, voltamos nosso olhar para o discurso pedagógico vigente, e para as
resistências frente à ínfima possibilidade de sua reinvenção, por ser ele tão marcado pelas
intenções de formar um sujeito coerente com as demandas do mundo moderno382. Nesse
sentido, a formação de homens e mulheres “civilizad@s” por meio do aprendizado de
códigos, regras e condutas é desenvolvido para que atuemos em um mundo de extrema
racionalização das relações e da vida.

Jovens escolarizados, aprendemos [...] a suportar o cansaço e a prestar atenção ao


que professores e professoras diziam; a utilizar códigos para debater, persuadir,
vencer; a empregar os gestos e os comportamentos adequados e distintivos daquelas
instituições. Os propósitos desses investimentos escolares eram a produção de um
homem e de uma mulher “civilizados”. (LOURO, 2003, p.18)

Sabe-se que a escola não possui exclusividade na produção a que a autora se refere; no
entanto, considerando sua centralidade nesses processos, faz-se necessário atentar para a
duração e a intensidade das condições que nos são impostas no decorrer de nossas trajetórias
escolares. Seja pela obrigatoriedade legal da escolarização a partir dos quatro anos de idade,
seja pelas próprias demandas de mercado, seja ainda por outras formas de organização

382
Referimo-nos aqui a mundo moderno a partir das grandes preocupações das ciências humanas acerca da
Modernidade, tais como: metanarrativas históricas; consciência unitária, homogênea e centrada do sujeito; ideia
de emancipação e utopias (MOREIRA, 1997), entre outras.
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sociocultural das sociedades ocidentais, o fato é que somos continuamente expostos às marcas
que a escola imprime em nossos corpos. Sendo assim, “é preciso reconhecer [...] que suas
proposições, suas imposições e proibições fazem sentido, têm ‘efeitos de verdade’, constituem
parte significativa das histórias pessoais” (LOURO, 2003, p.21). E os “efeitos de verdade”
que a escola e seus currículos produzem incidem diretamente na constituição de uma série de
identidades para os sujeitos: raça, etnia, classe, nacionalidade, gênero, sexualidade, entre
outras, já que “homens e mulheres são, ao mesmo tempo, muitas ‘coisas’” (LOURO, 2005,
p.86).
Acontece que essa pluralidade identitária se constitui com base numa concepção
binária de sujeitos que parece se colocar primeiro e que de certa forma lhe dá corpo: trata-se
da dicotomia homem/mulher que, situada nas intricadas tramas histórico-culturais das
relações sociais de poder (muitas vezes fundamentadas em teorias biológicas), transforma as
diferenças naturais em objetos de dominação de uns sobre outros. É nesse sentido que
concordamos com Scott (1995, p.88), quando esta autora afirma que gênero

é uma forma primária de dar significado às relações de poder. [...] Gênero é um


campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado. O
gênero não é o único campo, mas ele parece ter sido uma forma persistente e
recorrente de possibilitar a significação de poder no ocidente.

Assim entendido, gênero é um campo de significações (e, portanto, permeado por


relações de poder), que perpassa intensamente as relações sociais, estruturando-as e
organizando-as. Com esses movimentos, nomeiam-se sujeitos e práticas, produzem-se
distinções e estabelecem-se séries de hierarquias. Apenas como breves e conhecidos exemplos
de algumas das muitas distinções quanto ao que vimos tratando neste texto, destacam-se: a
noção de superioridade física do homem em relação à mulher; a ideia de que homens são mais
competentes em áreas exatas e tecnológicas; os estereótipos de feminilidade ligados à
docilidade e obediência; a associação que geralmente se faz entre mulheres e esfera
doméstica, maternidade, romantismo, sensibilidade, dependência; ao mesmo tempo em que se
associam os homens à esfera pública, provimento, virilidade, razão e independência.
As distinções sobre as expectativas de gênero são quase sempre fundamentadas na
ideia binária de classificação dos sujeitos por sexo, que prevê dois mundos opostos: feminino
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e masculino, com a supremacia deste em relação àquele. Atentemos aqui para a matriz
heterossexual que sustenta a concepção binária, e que pode ser também denominada de
norma, já que é amplamente foco de convencimento e afirmação por várias instituições
sociais. Sobre isso, Louro (2005, p.90) afirma:

Operar dentro dessa matriz pode acarretar problemas de duas ordens: de um lado,
pode dificultar a percepção de sujeitos e de grupos que não se “enquadram” na
polaridade aí suposta (impedindo, consequentemente, o reconhecimento daqueles e
daquelas que estão construindo formas distintas, novas ou transgressivas de
identidade feminina e masculina); por outro lado, pode permitir que se atribua aos
sujeitos que não obedecem a essa lógica dicotômica o caráter de desviantes,
problemáticos ou patológicos.

É dentro dessa lógica que muitos currículos e práticas educativas, de maneira sutil e
gradativa, imprimem gestos, condutas e significados ligados a questões de gênero e
sexualidade. Por intermédio de variadas estratégias é que a linguagem demarca sentidos.
“Através da linguagem é construída a identidade generificada” (SCOTT, 1995, p.82).
Assim, a linguagem de normas, procedimentos, estratégias e metodologias de ensino e
aprendizagem, de processos avaliativos e materiais didáticos de uma maneira geral procura
delimitar verdades sobre os corpos infantis e adolescentes, e nessas verdades fixam noções
apresentadas e tratadas como estáveis sobre identidades de gênero e sexualidade. Com relação
a isso, Britzman (2003, p.87) diz que, no contexto da educação, “supõe-se que o corpo normal
personifica um significado estável, mesmo quando se admite que aquele significado passe por
pequenos ajustes”.
Essa suposta estabilidade dos corpos com relação à sexualidade constitui uma matriz
tão cara ao pensamento educacional vigente que pensar fora desses enquadramentos consiste
num grande desafio. É na esteira disso que também podemos situar a adesão de muitos
profissionais do campo educacional aos movimentos de resistência impulsionados por certos
grupos conservadores que rejeitam a inclusão de preocupações com gênero e sexualidade em
Planos de Educação.
Tal rejeição está embasada numa concepção essencialista de mundo (usando
argumentos ora religiosos ora biologicistas), que vê o homem e a mulher na combinação
harmoniosa entre sexo, gênero e orientação sexual; isto é: supõe-se que se uma pessoa nasceu

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sob a égide do sexo masculino, deverá ter sua identidade de gênero associada ao masculino e
sua orientação sexual consequentemente deverá ser heterossexual. Segundo Weeks (2003,
p.71), “esta é a suposição por trás da tradição essencialista [...] Ela sustenta frases tais como
‘biologia é destino’. Supõe que o corpo expressa alguma verdade fundamental”.
Em consequência de noções simplificadoras e preconceituosas como essas, os planos
curriculares nacionais e os currículos escolares de modo geral tendem a ignorar a diversidade
existente. Assim, “a ampla diversidade de arranjos familiares e sociais; a pluralidade de
atividades exercidas pelos sujeitos; o cruzamento das fronteiras sexuais, de gênero, étnicas; as
trocas; as solidariedades e os conflitos são comumente ignorados ou negados” (LOURO,
2005, p.87).
“A ideia de que há um destino sexual pré-determinado, baseado na morfologia do
corpo” (WEEKS, 2003, p.71) e o binarismo homem-mulher que é subjacente a esta concepção
essencialista talvez nos ajudem a situar e entender as resistências de alguns grupos diante da
proposta de inclusão de questões sobre gênero e sexualidade em Planos Nacional, Estaduais e
Municipais de Educação. Tais resistências lutam por manter o silenciamento de identidades de
gênero que não correspondam às imagens estereotipadas, tais como gays, lésbicas, bissexuais,
e mais ainda: o silenciamento de identidades de gênero que transgridem o sistema binário
feminino-masculino, tais como travestis, transgêneros, assexuados e transexuais mulheres e
homens.
Como se vê, as justificativas para a visibilidade ou invisibilidade das identidades de
gênero e sexuais, debate que é suscitado quando o assunto é inclusão da temática gênero-
sexualidade no currículo brasileiro, são permeadas por relações de poder-saber. O que pode
ser dito em relação a gênero e sexualidade nas escolas? O que podem o Plano Nacional e
Planos Estaduais e Municipais quando o assunto é debater gênero e sexualidade na escola?
Tais questões possibilitam a reflexão em torno dos discursos que atravessam o embate
político vigente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GÊNERO E SEXUALIDADE: REFLEXÕES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Rodrigo Cirino Mendes | rodrigobiologogs@gmail.com


Profª. Dra. Anita Leocádia Pereira dos Santos

INTRODUÇÃO

O conceito de gênero se refere à construção sociocultural do masculino e do


feminino e emergiu do feminismo contemporâneo (LOURO, 2004). Esse conceito está
relacionado a um sistema cultural de relações de poder baseadas em um conjunto de
qualidade, papéis, identidades e comportamentos opostos, atribuídos a homens e mulheres
com imposições desde o nascimento, a exemplo dos enxovais: azul para os meninos e rosa
para as meninas (SOUSA; CARVALHO, 2003).
Os papéis de gênero, segundo Bourdieu (2005), são frutos da organização simbólica
da divisão social do trabalho e das construções arbitrárias do masculino e do feminino que se
apoiam, sobretudo, na reprodução biológica, o que fundamenta à visão “natural”
androcêntrica da divisão sexual do trabalho. Desta forma, a cultura define o gênero na
história, com estratégias sociais, a partir das características biologizadas dos sexos. O gênero
é relacional. Assim, a força da ordem masculina se evidencia, dispensa justificação, impondo-
se como neutra, e a sociedade funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a
reafirmar a visão legítima da dominação masculina pela distribuição das atividades atribuídas
a cada um dos sexos (BOURDIEU, 2005).
Conforme Louro (2001), a sociedade constrói contornos que demarcam fronteiras
entre aqueles que representam a norma, ou seja, aqueles que estão em consonância com seus
padrões culturais, e aqueles que ficam fora dela, às suas margens.
As mulheres são submetidas a um trabalho de socialização que tende a diminuí-las, a
negá-las e a conduzi-las a aprendizagem das virtudes de abnegação, resignação e silêncio. Por
vezes, as mulheres são rebaixadas socialmente a meros objetos ou símbolos, cujo sentido é

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contribuir para o aumento do capital simbólico em poder dos homens.


O privilégio masculino, porém, é uma cilada para o homem e encontra sua
contrapartida na tensão e na contensão que impõe a todo homem o dever de afirmar em toda e
qualquer circunstância sua virilidade (capacidade reprodutiva, sexual e social, e também
entendida como aptidão ao combate e ao exercício da violência), ou seja, pertencente a um
grupo de “verdadeiros homens” (BOURDIEU, 2005, p. 64). Dessa forma, tanto a mulher
como o homem devem se enquadrar em estereótipos de gênero, ou sofrem da violência,
preconceito e discriminação.
O gênero está nas instituições educacionais, como parte da sociedade, é relacional.
Nessa perspectiva, os comportamentos, modos de ser e disposições humanas são
influenciados por vários elementos, apontados por Bourdieu (2005) como principais, as
instituições: família, igreja, escola e Estado, cujos pesos relativos podem ser diferentes, nas
diferentes épocas. Atualmente, a escola encontra-se com grande peso de influencia social,
uma vez que dentre as instituições existentes, ela é responsável oficialmente pela educação
dos indivíduos e pode promover alterações no meio social.
De acordo com Carvalho (2000), o estudo das relações de gênero ainda é incipiente
na educação e na formação docente em nível nacional e, particularmente, na Paraíba e as
desigualdades de sexo e gênero estão pouco presente nas políticas e práticas educacionais.
Assim, os professores e professoras ainda não refletiram o suficiente sobre as problemáticas e
as desigualdades de sexo e gênero que estão pouco presente nas políticas e práticas
educacionais, embora estejam entre as questões consideradas de grande relevância às
problemáticas sociais, propostas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998).
A escola ainda hoje tem como principal finalidade a educação para o mundo do
trabalho com conteúdos tradicionais, e essa centralização compromete a aceitação de alguns
professores para trabalhar os variados temas transversais, que são Segundo Caetano (2008), as
temáticas de gênero e sexualidade são focadas na maioria das escolas apenas com relação às
preocupações de prevenção a gravidez e combate a AIDS e DSTs, sem um aprofundamento
crítico e sem debates inovadores nas instituições de ensino. Ademais, a educação sexista, de
acordo com Sousa e Carvalho (2003), tem sido sistematicamente apontada como um dos
obstáculos mais fortes à construção de uma sociedade com equidade de gênero.
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Felizmente, a preocupação com essa temática está sendo gradativamente


introduzidos nas universidades. Faz-se necessário que as instituições de ensino busquem
ações voltadas para o enfrentamento dos hábitos e costumes criados socialmente, por meio de
discussões sobre gênero e sexualidade, que objetivem o respeito à diversidade.
Conforme Junqueira (2008), as discussões acerca da pluralidade dos corpos, da
diversidade sexual e de gênero devem partir de uma perspectiva de inclusão social, do
reconhecimento, da emancipação e da produção e democratização do conhecimento. O autor
ainda aponta que, para se construir um modelo de escola e sociedade democrática, será
preciso empenho em particular para desestabilizar as noções de masculinidade e feminilidade,
promover a equidade social entre homens e mulheres, e reconhecer os direitos de lésbicas,
gays, bissexuais, transgêneros, travesti e transexuais, sem deixar de observar e problematizar,
é claro, todas as formas de preconceito, discriminação e violência ligadas ao sexismo e à
homofobia.
Nessa direção, o objetivo desse trabalho é analisar as aprendizagens de gênero de
graduandas e graduandos, evidenciadas no decorrer do Curso de Extensão “Gênero e
Sexualidade em Debate”, realizado no Centro de Ciências Agrárias - CCA, na Universidade
Federal da Paraíba - UFPB, no ano de 2011.

METODOLOGIA
A pesquisa foi realizada com abordagem de investigação qualitativa, registrando as
expressões e opiniões sobre gênero e sexualidade dos cursistas, bem como os preconceitos
explicitados no contexto do Curso de Extensão “Gênero e Sexualidade em Debate”, com
carga horária de 30 horas, no período de abril a julho de 2011, cujas aulas foram ministradas
pela Profª Dra. Anita Leocádia Pereira dos Santos, no Centro de Ciências Agrárias
CCA/UFPB, no município de Areia/PB como parte das atividades do Projeto de Extensão
“Gênero e Sexualidade em Debate, pela Construção da Paz” (PROEXT/MEC/2010).
As inscrições foram abertas para todos os alunos de graduação do CCA, para
mulheres envolvidas em movimentos sociais, associações e para educadoras no município de
Areia. Houve um total de 117 pessoas inscritas, sendo 26 do sexo masculino e 91 foram do
sexo feminino. Para este trabalho, foi feita uma delimitação, sendo analisados apenas os dados
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relativos aos estudantes de graduação de Ciências Biológicas e Agronomia do CCA, que se


inscreveram e participaram do referido Curso.
A amostra composta por 44 estudantes, com idades entre 18 e 46 anos, sendo 12 do
sexo masculino e 32 do sexo feminino, majoritariamente do curso de Licenciatura em
Ciências Biológicas da UFPB/CCA, existindo também alunos ou alunas de outros cursos de
graduação do mesmo Centro, como também discentes de outras instituições, como
Universidade Estadual da Paraíba-UEPB e da Universidade do Vale do Acaraú-UVA/PB.
Os conteúdos trabalhados pertinentes à temática de gênero e sexualidade versaram
sobre preconceito, discriminação, androcentrismo, heteronormatividade, sexismo, habitus,
equidade de gênero, dicotomia, estereótipos de gênero, homofobia, misoginia, entre outros, e
foram realizadas rodas de conversa, debates, exposições dialogadas, uma oficina de defesa
pessoal e um ato público para a mobilização de mulheres no Bairro da Jussara, em Areia –
PB. Esse ato consistiu em uma passeata pelo bairro com a distribuição de cadernos da Lei
Maria da Penha, discussão dos direitos da mulher e exibição do vídeo documentário Coragem
Mulher.
Para analisar as expressões dos alunos durante o Curso e a importância do mesmo
foram realizados registros através da observação participante, como aluno de graduação do
curso de Licenciatura em Ciências Biológicas do Centro de Ciências Agrárias da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB/CCA), e bolsista do Projeto “Gênero e Sexualidade
em Debate, pela Construção da Paz”, tornando possível obter os registros das aulas do
referido curso para o desenvolvimento deste trabalho.
Ao final do Curso, foi aplicado um questionário em sala de aula e para manter o
sigilo e permitir maior liberdade expressão para os alunos e alunas, a identificação presente no
questionário foi apenas idade, sexo e curso de graduação vinculado. Assim os registros das
aulas e as respostas dos questionários aplicados, juntos aos alunos e alunas de graduação
participantes do curso de Gênero e Sexualidade, foram analisados sob o aporte teórico dos
estudos de gênero e da teoria da dominação masculina (BOURDIEU, 2005), com conceitos
como habitus, androcentrismo, violência simbólica, homofobia, heteronormatividade.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
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O questionário junto aos alunos e alunas do Curso de extensão de Gênero e


Sexualidade propôs inicialmente a análise de algumas expressões do senso comum: “Você é
um homem! Homem não chora”, “Toma jeito de homem!”, “Seu filho da Mãe”. Foi
questionado aos alunos e alunas que efeitos e sensações essas expressões causavam antes e
depois de participarem do Curso.
Com a análise dos questionários foi constatado que 83% dos alunos e 87% das alunas
e dos alunos colaboradores desse estudo, antes do Curso, consideravam essas expressões
comuns e não sentiam necessidade de reflexão dada à normalização desses termos. Depois do
curso, esses alunos e alunas afirmaram que passaram a perceber essas expressões como
formas de preconceitos e como regulação dos estereótipos de gênero, socialmente
construídos:
Antes do curso eu não via agressividade nestes termos, mas o curso me fez enxergar
o mundo de uma forma diferente, desta forma passei a ver estes termos como sendo
extremamente preconceituosos (Aluna, C.B, 18 anos).
[...] Eu considerava como “verdade”, a fragilidade da mulher e a superioridade do
homem por mais que considerasse errado eu aceitava, porém já tenho razões e
conhecimentos para não permitir que seja sempre assim (Aluna, C.B, 20 anos).

Uma minoria, dos alunos 17% e das alunas 13%, manifestou que entendiam as
expressões do senso comum trabalhadas como uma forma de preconceito e discriminação
naturalizados, mesmo antes do curso de extensão de Gênero e Sexualidade e declararam que o
curso veio a fortalecer e tornar legítima suas concepções, já que não sabiam expor com
propriedade seu entendimento sobre o significado dessas expressões.
Comprova-se, pois, que esses preconceitos não são apenas fortes e influentes porque
coagem os indivíduos que vitimizam, mas também porque são eficazes pelo processo de
internalização de diferenças ditas como desqualificantes, como no caso do homem que chora,
por exemplo. (CAETANO, 2008).
Assim, percebe-se na cultura do senso comum a correspondência aos estereótipos
socialmente criados, como “o homem não pode ser fraco”, por ser este um atributo próprio da
mulher. Segundo Carvalho, Andrade e Junqueira (2009), o estereótipo funciona como um
dispositivo de visão e de classificação das pessoas, sendo uma representação simplificadora
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geralmente prejudicial a um grupo e resistente à correção por causa da argumentação lógica


parcial ou ainda exagerada, funcionando como instrumento de discriminação e de
masculinidade hegemônica.
Por outro lado, também não era perceptível ao grupo pesquisado que a situação de
supremacia masculina pode ser uma armadilha, pois caso o homem não corresponda ao
estereótipo masculino de força, agressividade e insensibilidade; esse mesmo homem, que
socialmente estaria em posição de poder, poderá sofrer preconceito e discriminação por não
corresponder à figura de masculinidade, sendo obrigado a corresponder ao estereótipo.
A partir de uma reflexão crítica da postura da sociedade e de nossas atitudes se pode
enxergar os elementos da dominação masculina e perceber a violência sutil empreendida pela
cultura socialmente instituída; manifesta, por exemplo, na “verdade” social da fragilidade e
submissão feminina. Para Carvalho (2000), a consciência de gênero facilita a mudança na
autoimagem, nos sentimentos de inferioridade e nas crenças sobre direitos e capacidades, o
que promove a autonomia individual e também a solidariedade.
Alunos e alunas identificaram entre as temáticas trabalhadas, ao longo da
programação do curso de Gênero e Sexualidade, a que eles ou elas consideravam ser mais
importante ou mais marcante. Entre as alunas em sequência decrescentes apontadas foram em
primeiro lugar a violência doméstica contra a mulher; em segundo lugar o assédio moral e
sexual contra a mulher no trabalho; em terceiro lugar a transexualidade e em quarto lugar a
homofobia. Para os alunos, as temáticas trabalhadas que eles consideraram ser mais
importantes ou mais marcantes na programação do curso, em ordem decrescente foram: a
violência doméstica contra a mulher, a homofobia, o assédio moral e sexual contra a mulher
no trabalho e a transexualidade.
Para todas as pesquisadas e os pesquisados, a violência contra a mulher assume a
dianteira de importância como tema debatido no Curso de Extensão, sendo uma problemática
de alta relevância. A violência doméstica contra a mulher foi configurada no curso, segundo a
Lei 11.340/06, como “[...] qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (BRASIL, 2006)
e necessita ser debatida também no aspecto educacional.
De acordo com depoimentos, muitos dos alunos e alunas do Curso presenciam ou já
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presenciaram essa violência no seu ambiente familiar ou na vizinhança. Ainda perceberam-se


como empreendedores dessa mesma violência por meio da omissão naturalizada do senso
comum como “Em briga de marido e mulher não se mete a colher”. De forma geral, as
predileções pelas temáticas trabalhadas no curso de gênero e sexualidade estão associadas às
questões vividas ou vivenciadas no cotidiano desses alunos e alunas e também na indignação
da violência e do preconceito ainda existente na sociedade contemporânea.
Entre os conceitos aprendidos ao longo do Curso de Extensão, os destacados pelos
alunos e alunas foram: homofobia (43%), androcentrismo (23%), heteronormatividade (15%),
transexualidade (14%), habitus (3%) e misoginia (2%).
Os participantes do Curso afirmaram que esses conceitos foram e são de grande
importância para o melhor entendimento da temática; para aprimorar os conhecimentos, para
respeitar a diversidade e elucidar questões encaradas diariamente e que são vistas como
normais pela maioria das pessoas.
A opinião dos alunos e alunas do Curso de Extensão Gênero e Sexualidade, quando
perguntado se houve alguma mudança na sua forma de agir e/ou compreender o meio ao seu
redor, sobre as relações de gênero, a partir das reflexões vivenciadas no Curso, pode-se
observar que um total de 87% das alunas e 83% dos alunos revelaram que o Curso “Gênero e
Sexualidade em Debate” provocou mudanças na sua forma de agir e de compreender o meio a
seu redor com base no aprendizado adquirido; e 13% das alunas e 17% dos alunos disseram
que essa mudança se deu apenas em parte, na sua forma de compreender as relações de
gênero. Considerando que a carga horária do curso foi de apenas 30 horas, a mudança
informada foi bastante significativa.
E ainda, com base nos dados do questionário pode-se perceber que a maioria dos
alunos e alunas do curso, em um total de 96% das alunas e 91% dos alunos, relatou que é
possível desenvolver o respeito e a equidade entre as pessoas, no que concerne as questões de
gênero e sexualidade, mas, que para isso é necessário um árduo trabalho de conscientização
que terá que contar com o apoio de todos os setores da sociedade.
Bourdieu (2005) confirma ser ilusório crer que a violência simbólica seja vencida
apenas com as armas da consciência e da vontade, pois seus efeitos e as suas condições de
eficácia estão duramente inscritas no mais íntimo dos corpos, sob a forma de aptidões e
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inclinações. Junqueira (2008) atesta que a consolidação de uma sociedade democrática e de


educação de boa qualidade depende também da problematização e do enfrentamento do
sexismo, da homofobia e de seus efeitos. E isso só será alcançado se nos dedicarmos a superar
nossas limitações, questionar radicalmente nossos preconceitos e promover mudanças
significativas na organização da vida social e de nossas atitudes. Hall (2005) corrobora essa
mudança ao dizer que à medida que os sistemas de significação e representação culturais são
produzidos e transformados, todos os sujeitos sociais também sofrem modificação,
evidenciada em relatos dos alunos e alunas a respeito de relações de gênero e sexualidade:
Passei a não ter vergonha e medo de falar com alguns homossexuais que participam
de algumas atividades e até na universidade (Aluno, C.B, 21 anos).
Tornou nosso conhecimento sobre a temática mais amplo, podendo transmiti-lo na
forma de conscientizar as pessoas contra a violência (Aluna, Agronomia, 19 anos).
O curso foi sensacional, quem fez ou participou com certeza não será mais mesmo,
pois há uma diferença entre participar de um curso e senti o curso a ponto de
interferir na sua vida (Aluna, C.B, 23 anos).
Entre as mudanças ocorridas, os alunos/as relataram que aprenderam a ter maior
compreensão e respeito da diversidade de gênero e sexualidade; a abolir preconceitos
repassados desde a infância; ter visão mais abrangente das pessoas e do meio em que vivem;
olhar criticamente atitudes e hábitos considerados como normais; a refletir sobre si mesmo
através das relações de gênero; e se policiar para não promover a discriminação e ainda
conscientizar as outras pessoas sobre as violências de gênero.
Na ocasião da oficina de defesa pessoal com a participação de instrutores da Polícia
Militar, cuja finalidade era de desmitificar a fragilidade feminina socialmente criada e aceita,
a expressão das alunas e também dos alunos foi de surpresa e contentamento ao perceber as
potencialidades de seu próprio corpo. “Melhora muito a autoestima, pois não me sinto mais
tão indefesa” (Aluna,C.B, 19 anos).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme foi declarado pelos estudantes, as reflexões sistemáticas foram, portanto,


válidas e úteis para a modificação de mentalidades e de sentimentos durante o Curso. Estas
alterações não podem ser simplesmente calculadas ou contabilizadas imediatamente, uma vez

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que as transformações serão evidenciadas ao longo do tempo. Porém, de acordo com os


estudantes, é impossível declarar que o Curso não provocou qualquer mudança em seus
participantes, pois afirmaram ter modificado a forma de perceber o mundo pela lente crítica
do gênero, fator que poderá interferir em suas atitudes.
A consciência de gênero em alerta permite a reflexão crítica da lei social convertida
em lei incorporada, tornando-se ferramenta importante e necessária para legitimar o respeito à
diversidade e combater os preconceitos do senso comum. Ocorreu a sensibilização dos alunos
e alunas participantes do Curso sobre as questões de gênero e sexualidade de forma didática e
interativa, bem como a relação de tais temáticas com a violência existentes no cotidiano, que
permitiu a possibilidade de que novos comportamentos, valores e sentimentos fossem
vislumbrados ao longo das discussões no sentido de promover a equidade e o respeito à
diversidade de gênero.
De acordo com a análise dos dados, as iniciativas pedagógicas para a construção da
equidade de gênero são de grande valia, uma vez que o Curso de Extensão “Gênero e
Sexualidade em Debate” trouxe contribuição acadêmica de relevância social para os alunos de
graduação ao favorecer que fossem discutidos os preconceitos oriundos do senso comum e a
estes contrapostos os conceitos teóricos sobre gênero e sexualidade.
A contraposição entre os preconceitos e os conceitos potencializou a reflexão e o
debate das ideias criadas histórica e socialmente e que tais “verdades” estão na “ordem das
coisas”, ordens heteronormativa e androcêntrica, a serem questionadas e desconstruídas
conforme Bourdieu (2005). Portanto, este estudo demonstra que estudos sobre as questões de
gênero e sexualidade podem trazer ganhos de grande relevância para a equidade de gênero e
respeito à diversidade e contribuir para a formação docente na contemporaneidade.

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GÊNERO NA ESCOLA

Maria Marilene Banhos Nogueira383 | mmbanhos@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

“Nos programas escolares – desde o ensino fundamental até o universitário – precisa


haver a inclusão da dimensão gênero mostrando como a hierarquia existente na
cultura brasileira de subordinação da mulher ao homem traz desequilíbrios de todas
as ordens – econômico, familiar, emocional e incrementa a violência. Mas a escola
não pode ficar isolada de um processo amplo de transformação para alcançar a
equidade de gênero. O que pode fazer uma professora, de qualquer nível da escala
educacional, se ela própria é violentada? O que pode ensinar um professor que é um
violador? O que pode fazer a escola se estiver desligada de um processo de
transformação cultural?” (Blay, 2003, p. 97).

O objetivo deste documento é registrar e refletir a experiência de implementar o projeto


de um Núcleo de Estudos de Gênero, na escola de ensino médio, rede pública estadual,
localizada no nordeste brasileiro, estado do Ceará, na cidade de Fortaleza.
Os trabalhos iniciais de debate na escola surgiram a partir da iniciativa de professoras
das matérias de sociologia e história. A discussão inicial, passo a passo, partiu da necessidade
de construir um organismo social na escola com condições de apresentar reflexões acerca da
vivência escolar no campo das relações sociais entre os estudantes; estudantes, professores e
professoras; e professores e professoras.
A tentativa consiste em desenvolver atividades voltadas à educação de gênero e
diversidade sexual na escola no intuito de fortalecer o debate, a pesquisa e o conhecimento na
grande linha temática: Educação para a Igualdade de Gênero.
O referido projeto se constitui em proposta de ação e intervenção pedagógica de
dimensão interdisciplinar/transdisciplinar, e sua identidade coletiva caminhará na perspectiva

383
EEM Governador Adauto Bezerra. Professora de Sociologia.

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de fortalecer as diversas áreas de conhecimentos que compõem a educação básica na escola


de ensino médio.

COMO ORGANIZAR UM NÚCLEO DE GÊNERO NA ESCOLA?

No decorrer do processo de um ano de conversas informais e ações pontuais os objetivos


foram sendo delineados no percurso. Assim, alguns objetivos formam pontuados e
formatados, tais como: fundamentar a prática de pesquisa na busca do conhecimento;
promover ações capazes de preparar os sujeitos para vivenciar a igualdade de gênero;
construir interações entre professores, professoras e estudantes e as formas de organização do
trabalho pedagógico frente às questões de gênero; estudar gênero a partir das teorias e práticas
feministas; buscar formas de entendimento da linguagem e os sentidos do corpo, do sexo, da
identidade; problematizar a respeito das questões de gênero presentes no espaço escolar;
contribuir na formação de identidades dos sujeitos, acerca das relações de gênero; discutir
como as práticas escolares atuam na produção e na reprodução das relações de gênero
socialmente construídas.
É importante destacar, no entanto, que alguns objetivos já estão sendo perseguidos e que
outros serão adaptados e reformulados a partir da dinâmica escolar e prioridades sinalizadas
pelos estudantes. O exercício permanente de um trabalho árduo e a médio e longo prazo pode
ser visibilizado diante dos cenários da instituição escola. Aqui se fala em trabalho de
formiguinha, um passo de cada vez, uma conversa individual com estudantes na tentativa de
sensibilizar para o processo da ação educativa.
Enfim, falar para estudantes do ensino médio de uma categoria da sociologia como
gênero é tarefa árdua e desafiadora, as palavras não são mágicas, elas precisam ter e fazer
sentido no momento da intervenção. Portanto, é preciso recordar Carlos Rodrigues Brandão
na apresentação do método de Paulo Freire (1988, p.32) ao afirmar que “(...) as palavras
devem conter sentidos explícitos, diretos e é bom que eles estejam carregados de carga afetiva
e de memória crítica.” Assim, a cada ação do Núcleo de Gênero o inusitado se apresenta, e faz
surgir uma reflexão na tentativa de gerar uma nova proposição.
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O desenvolvimento do projeto buscará contribuir para analisar as expressões, atitudes,


falas, crenças e concepções presentes na prática diária da sala de aula. Trata-se de um
processo a ser construído a várias mãos e mentes, no sentido de colaborar para o
fortalecimento, a inserção e a visibilidade dos estudos de gênero na escola.
No cenário escolar, o referido projeto se constitui em proposta de ação e intervenção
pedagógica de dimensão interdisciplinar/transdisciplinar. Nesse processo, a construção de
uma identidade coletiva, caminhará na perspectiva de fortalecer as diversas áreas de
conhecimentos que compõem a educação básica na escola de ensino médio.
A reflexão sobre gênero na escola segue a linha de investigação e pesquisa rumo ao
conhecimento para fortalecer ações pedagógicas curriculares e extracurriculares. Dessa forma,
significativo se faz consultar o Regimento Escolar como ferramenta e arcabouço teórico para
pensar e repensar a prática social em prol de gestar ações de fortalecimento rumo à educação
para a igualdade de gênero.

“Art 3° “A Escola de Ensino Médio Governador Adauto Bezerra, como instituição


educacional tem como finalidade ministrar a educação básica em nível de ensino
médio, conforme a legislação educacional vigente, proporcionando condições para o
desenvolvimento do educando e seu preparo para o exercício da cidadania.
Art.4° - O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios (Art. 35º
LDBEN)
a) liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a ciência, a cultura, o
pensamento, a arte e o saber;
b) pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, sociais e políticas;
c) garantia da qualidade da ação educativa, com vistas ao desenvolvimento integral
do aluno;
d) respeito à liberdade e apreço à tolerância, à disciplina e responsabilidade;
e) valorização do profissional da educação e dos educandos;
f) valorização da experiência extra-escolar;
g) vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
h) tolerância de todos os princípios de credo, religião, gênero, raça e cor.”
(Regimento Escolar da E.E.M Governador Adauto Bezerra, 2008).

O regimento escolar se constitui em uma referência básica para as ações desenvolvidas na


unidade escolar. Nessa perspectiva, o Núcleo de Gênero buscou mecanismos de legalidade
para seu surgimento e primeiros passos. A proposta escrita do projeto partiu do estudo do
regimento e buscou o diálogo com a gestão no sentido abrir canais de negociação para seu
surgimento.
O passo seguinte consistiu em apresentar a proposta em uma reunião da congregação
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escolar. Nesse percurso, o projeto foi indicando as trilhas a serem percorridas durante o ano
letivo de 2015. Eis aqui algumas das ações previstas; página do Facebook; campanha; seleção
junto aos estudantes para produção de logomarca; ampliação de membros; reuniões de
trabalho/formação e divulgação dos resultados; reuniões de trabalho/formação e divulgação
dos resultados; palestra, oficinas, roda de conversa; organização de uma coletânea de textos
sobre gênero; participação em atividades pedagógicas internas e externas; etc.
Introduzir uma reflexão sobre gênero na escola é relacioná-la diretamente com a ideia de
que as relações de gênero estão presentes no cotidiano escolar. Seguindo o raciocínio, eis as
ideias de Silvia Camurça e Taciana Gouveia: “(...) as relações de gênero são relações de poder
que se constroem, constantemente, ao longo da história e no nosso dia a dia, entre mulheres e
homens, mulheres e mulheres, homens e homens”. (2004, pg.35).
Uma perspectiva relevante apresentada e seguida na elaboração do projeto do Núcleo de
Gênero consiste em uma exposição teórica que orientou as dúvidas no processo. Grossi (s/d)
surge como uma orientadora e nos guia rumo ao entendimento necessário para a caminhada
do projeto pedagógico. Especificamente é preciso situar a tentativa de diferenciar sexo,
gênero, identidade de gênero e sexualidade.

“De uma forma simplificada, diria que sexo é uma categoria que ilustra a diferença
biológica entre homens e mulheres; que gênero é um conceito que remete à
construção cultural coletiva dos atributos de masculinidade e feminilidade (que
nomeamos de papéis sexuais); que identidade de gênero é uma categoria pertinente
para pensar o lugar do indivíduo no interior de uma cultura determinada e que
sexualidade é um conceito contemporâneo para se referir ao campo das práticas e
sentimentos ligados à atividade sexual dos indivíduos.” (Grossi, s/d).

Na continuidade do debate sobre a categoria gênero via Grossi (s/d) surgem interrogações
e questionamentos de como garantir que as diferenças e semelhanças entre as categorias
apresentadas possam ser compreendidas pelos estudantes e relacionadas com suas
experiências de vida na escola e fora dela.
O quadro referencial resultante da experiência relatada é que se torna indispensável no
âmbito escolar o debate sobre gênero. Urge desenvolver ações que contribuam para a
construção do conhecimento, espaços de diálogos entre estudantes, discussões capazes de
estimular e esclarecer dúvidas e curiosidades. E qual a responsabilidade da escola diante da
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diversidade de gênero e sexual:


“A escola, como um espaço social importante de formação dos sujeitos, tem um
papel primordial a cumprir, que vai além da mera transmissão de conteúdos. (...)
Para que a escola cumpra a contento seu papel é preciso que esteja atenta às
situações do cotidiano, ouvindo as demandas dos alunos e alunas, observando e
acolhendo seus desejos, inquietações e frustrações. Vivemos, na contemporaneidade,
um tempo de rápidas transformações de toda a ordem. A escola não pode se eximir
da responsabilidade que lhe cabe de discutir determinados temas, tais como as
desigualdades de gênero e a diversidade sexual, como apontam os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN).” (Felipe, 2008, p. 3)

Portanto, a reflexão de temáticas como gênero, sexualidade e violência assume cada vez
mais um caráter indispensável no campo educacional.

PISTAS METODOLÓGICAS

A metodologia precisa ser desmistificada enquanto patamar inacessível ao investigador


principiante e percebida como possibilidade de exercício fecundo de construção científica e
real. A percepção irrefutável da pesquisadora é a de não ser possível realizar um trabalho
científico sem conhecer os instrumentos. Porém, muitas vezes depare-se com um aglomerado
de modelagens inatingíveis, complexas de assimilação. Minayo retrata bem o processo
metodológico e sinaliza uma reflexão e apropriação: prática, realidade, criatividade.

“Entendemos por metodologia o caminho do pensamento e a prática exercida na


abordagem da realidade. Ou seja, a metodologia inclui simultaneamente a teoria da
abordagem (o método), os instrumentos de operacionalização do conhecimento (as
técnicas) e a criatividade do pesquisador (sua experiência, sua capacidade pessoal e
sua sensibilidade)”. (MINAYO, 2007, p.14).

A metodologia enquanto percurso a ser percorrido segue trilhas na busca de uma


intervenção pedagógica que oriente um conhecimento que permita a construção de ações,
sentidos e olhares emancipatórios.
O encontro de saberes no percurso metodológico é guiado por um arcabouço de teorias e
práticas que alimenta desejos e posturas em prol de uma igualdade de gênero que venha a
combater estereótipos, preconceitos, discriminações, estigmas sociais, etc.

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O projeto assegura em seu desenvolvimento formatos de pesquisa, oficinas, dramatização,


palestras, cine debate, aulas expositivas, aulas de campo. Parte-se do princípio de incrementar
o diálogo, a troca de ideias, a formação do senso crítico e a visibilidade da temática.
A execução do projeto ocorre através de reuniões pedagógicas, trabalhos em grupo,
pesquisas de campo, sistematização de informações, fóruns de discussão, palestras de
colaboradores e exposição de resultados.
As ferramentas de divulgação do projeto serão conduzidas da seguinte forma: afixadas na
escola para apreciação dos outros turnos; contatos com outras escolas; e publicação na página
do facebook, criada em 2014, com a intenção de colaborar com um grupo de estudantes na
elaboração de dissertação para seleção externa acerca da temática gênero.
Talvez seja óbvio dizer que só se aprende e apreende o processo de pesquisa, pesquisando.
Partiu-se de uma preocupação de como encontrar um caminho que somasse forças de
conhecimento acumulado: olhares, depoimentos, vivências, elaborações e provocações.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Discutir gênero e sexualidade na escola se insere no debate do campo político, cultural e


ideológico. Mas como garantir debate qualificado e ações permanentes diante de tantos apelos
de desempenho nos quais os estudantes são convocados a responder? Como planejar ações de
formação na linha temática gênero além do horário de planejamento? As interrogações
surgem na velocidade que a esperança de construção do novo se fortalece.
Mais um desafio está posto ao trabalho de formação do grupo que vai debater gênero na
escola, a compreensão que se tem de educação está situada em que campo de definições:
crítica ou ingênua? É preciso recorrer ao mestre dos mestres para encher a luz de esperança.
“A neutralidade da educação, de que resulta ser ela entendida como um quefazer
puro, a serviço da formação de um tipo ideal de ser humano, desencarnado do real,
virtuoso e bom, é uma das conotações fundamentais da visão ingênua da educação.”
(FREIRE, 1995, p. 28).

Algumas atividades pedagógicas já podem ser nomeadas como ações do Núcleo de

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Gênero. A identidade coletiva inicia sua jornada de militância ao adquirir sua logomarca
desenhada à mão por um jovem estudante em seu trabalho criador e voluntário. As formações
estão chegando através de caras conhecidas e desconhecidas, agentes internos e externos. As
perguntas surgem de todos os lados: o que é esse núcleo de gênero mesmo? A semente está
sendo germinada devagar e de forma delicada para não assustar aos desavisado que naquela
escola vive um pensamento reflexivo e foi batizado de Núcleo de Estudos de Gênero.
O Núcleo de Gênero busca uma aproximação com a base que vai garantir sua
sustentabilidade: os estudantes. A tarefa é árdua e permeada de obstáculos que surgem todos
os dias. A fórmula de garantir a existência e vida longa a um projeto de tal proposição na
escola não existe, o que se busca é a afirmação de possibilidades de ações que venham somar
junto a tudo que já existe na escola de experiências.
O relato até o presente momento é acompanhado por dúvidas e incertezas: até quando
vamos conseguir garantir a vida ao núcleo de gênero se constitui em pergunta sem resposta.
Os desafios se avolumam diante da proposta de debater gênero e de todos os outros
compromissos assumidos no cotidiano escolar
Vale ressaltar que a escola pública vive, vibra e pulsa envolvida em suas contradições e
diferenças. Muitos desafios estão por vir, mas diante do contexto social de transmissão de
conhecimentos versus elaboração de conhecimentos a escola se apresenta enquanto promotora
de diálogos diversos.
Ressalta-se, mais uma vez, a necessidade de inserir a escola no eixo temático Educação
para a Igualdade de Gênero, uma vez que o cotidiano escolar configura-se em espaço fecundo
de debate, construção, desconstrução, significação e ressignificação de conhecimento, dentro
de uma perspectiva dialética, em prol de uma Educação voltada para a formação do exercício
da cidadania, respeito aos direitos humanos e do protagonismo juvenil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLAY, Eva Alterman. Violência contra a mulher e políticas públicas. Estudos avançados,
17 (49), p. 87-98, 2003. Disponível em: <htpp://<www.scielo.br>. Acesso em: 06 maio 2014.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é método Paulo Freire. 14. ed. São Paulo:
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Brasiliense, 1988. (Coleção Primeiros Passos 38).

CAMURÇA, Silvia; GOUVEIA, Taciana. O que é gênero. 4. ed. Recife: SOS Corpo, 2004.

EEM GOVERNADOR ADAUTO BEZERRA. Regimento escolar. Fortaleza: 2008. Não


paginado.

FELIPE, Jane. Educação para a igualdade de gênero. Salto para o futuro. In: Ministério da
educação (Org.), ano XVIII, boletim 26, p. 03-14, nov. 2008.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 31. Ed. São
Paulo: Cortez, 1995, v. 13 (Coleção questões de nossa época).

GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. Não paginado. Disponível em:
<htpp://www1.londrina.pr.gov.br>. Acesso em: 06 fev. 2014.

MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira: GOMES, Romeu.


Pesquisa social teoria método e criatividade. 25. Ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

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GÊNERO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO E PRÁTICAS CULTURAIS

Walfrido Menezes | Walfrido.menezes@estacio.br

INTRODUÇÃO

O presente trabalho teve como objetivo apresentar algumas considerações em torno da


questão de gênero relacionada à vivência da cidadania, às políticas públicas na área de
educação e à ideologia, partir do estudo das representações sociais sobre cidadania de
mulheres no contexto escolar, a partir das diferenças impostas no contexto de gênero.
O desenvolvimento de políticas públicas de gênero na educação abre espaços para a
construção integrada de novas relações sociais no conjunto da sociedade. Portanto, coube
examinar se as políticas educacionais desenvolvidas no país têm contribuído para a redução
do processo de alienação e exclusão social, em especial das mulheres das classes populares,
inseridas num contexto de pobreza e discriminação; excluídas como classe e como gênero.
O processo de classe está ligado as classes populares, nas quais estão inseridas as
escolas públicas estaduais, desse pesquisa. Já a questão de gênero, torna-se importante
conhecer o processo de construção da identidade social de gênero, que tem como base
princípios históricos, ideológicos, políticos, sociais e culturais, nos quais ela foi se
estruturando.
O conceito de papéis de gênero refere-se ao conjunto de expectativas sociais sobre os
comportamentos “adequados” e “claramente” distintos que a pessoa deverá manifestar,
conforme o sexo a que pertence. Os gêneros ao longo da história da humanidade, sempre
foram pautados por relações que implicam uma constante desigualdade e segmentação entre o
feminino e o masculino.
Embora essas relações tenham passado por mudanças significativas a partir da
segunda metade do século XX, com o avanço dos movimentos feministas, estas ainda não

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contemplam a totalidade do universo feminino.


Para a realização deste estudo, buscamos a perspectiva sócio histórica, que permeou
todo o trabalho, tendo em vista a perspectiva dialética assumida. O presente trabalho foi
desenvolvido em seis escolas públicas estaduais de Caruaru, sorteadas dentre as 14 existentes,
por intermédio dos seguintes instrumentos de pesquisa: um questionário e a associação livre
com 114 mulheres; e uma entrevista com 12 mulheres, com idades entre 17 e 33 anos –
médias de 20,75 anos nas entrevistas –, regularmente matriculadas no 3º ano do Ensino
Médio.
Para os demais elementos subjetivos que apareceram no questionário e na entrevista,
recorremos à “análise do conteúdo temático”(BARDIN, 1997), que possibilitou extrair as
ideias subjacentes e latentes contidas no discurso das pesquisadas, compreendendo ou
tentando compreender o significado objetivo e subjetivo da fala, isto é, os temas subjacentes
que apareceram nas informações colhidas. Essas informações também serviram para
aprofundar a compreensão do núcleo central e dos elementos periféricos que estruturaram a
representação.
Por fim, podemos perceber que as mulheres, apesar de apresentarem hoje uma maior
escolarização e maior permanência na escola do que os homens, e de terem ampliado sua
presença no mercado de trabalho, ainda não concretizaram na prática ações igualitárias,
respeitosas e longe da dominação do masculino, na fala, na escrita e na literatura, que
implicam na construção de sua Subjetividade.

MÉTODOLOGIA

Para a realização desta pesquisa, buscou-se á a perspectiva sócia histórica, que


permeou todo o trabalho, tendo em vista a perspectiva dialética assumida. O processo
dialético “considera que o fenômeno ou processo social tem que ser entendido nas suas
determinações e transformações dadas pelos sujeitos. Compreende uma relação intrínseca

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de oposição e complementariedade entre o mundo natural e social, entre o pensamento e a


base material.” (MINAYO, 1998, p. 25).
Assim, foi possível verificar o contexto dos direitos humanos, gênero e exclusão no
processo educacional. Todas as participantes assinaram o TCLE, respeitando as diretrizes do
Conselho nacional de Saúde. No campo adotou-se a entrevista semiestruturada..
De acordo com Richardson, a entrevista tem como finalidade

obter do entrevistado o que ele considera os aspectos mais relevantes de


determinado problema: as descrições de uma situação em estudo [...] procura saber,
como e por que algo ocorre, em lugar de determinar a frequência de certas
ocorrências, nas quais o pesquisador acredita. (1999, p. 208).

Por fim, para os elementos subjetivos que apareceram na entrevista, recorreu-se se à


‘análise do conteúdo temático’, que possibilitou extrair as ideias subjacentes e latentes
contidas no discurso das pesquisadas, compreendendo ou tentando compreender o significado
objetivo e subjetivo da fala, isto é, os temas subjacentes.
De acordo com Bardin (1977, p. 34), a análise de conteúdo é, antes de tudo, “um
tratamento da informação contida nas mensagens”, e “pode ser uma análise dos
´significados`, a exemplo da análise temática”, utilizada nesta pesquisa de campo, que
trabalhou com quatro temas: a percepção de ser mulher, o ser mulher na escola, o processo de
liberdade e cidadania e, por último, as expectativas para o futuro. Assim, extraíram-se as
ideias latentes contidas na palavra expressa pelas entrevistadas, compreendendo ou tentando
compreender o significado objetivo e subjetivo da fala, nestas quatro categorias temáticas.

CONSTRUÇÕES IDIOLÓGICAS NA EDUCAÇÃO

Entendemos que a educação é o elo que promove a interação e integração dos seres
humanos, no alcance das necessidades básicas universais, tanto do ponto de vista material
como imaterial, tendo como princípio a ética de vida, para dessa maneira se alcançar a
autonomia (SPOSATI, 1999).
Dados apontados, pelos Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE (2003) também pontuam que o nível de escolaridade das mulheres é
determinante para prevenir a gravidez não planejada e não desejada, para efetuar um
planejamento familiar adequado e para assegurar as condições de controle das doenças, tais
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como verminoses e diarreia, que no país ainda são responsáveis pelo elevado número de
óbitos de crianças, principalmente nos primeiros anos de vida. É inegável essa importância,
em uma cultura na qual os homens, em sua grande maioria, se colocam à margem.
Vianna & Unbehaum (2004) chamam a atenção para o fato de que as políticas
educacionais não têm concorrido para modificar as desigualdades de gênero. O relatório da
UNICEF (2003) referenda essas constatações, apontando que: Apesar dos milhares de
projetos bem-sucedidos em países de todo o mundo, a igualdade de gênero na educação – no
acesso à escola, sucesso no aprendizado e conclusão dos cursos – é cada vez mais ilusória, e
as meninas continuam em desvantagem em relação aos benefícios que a educação
proporciona. (p. 01).
Por outro lado, para uma melhor caracterização das políticas públicas educacionais no
Brasil torna-se importante contextualizar o processo socioeconômico, político e ideológico em
que o país se inscreve, já que a educação faz parte das políticas sociais, nesse contexto
estrutura-se o neoliberalismo, estruturado com base na privatização acelerada e da ausência do
Estado de maneira ampla, apenas balizando políticas sócias compensatórias.
Assim, evidencia-se a fragmentação das políticas públicas voltadas para a população,
uma vez que são ações sociais destinadas a atenuar apenas o mínimo, diante do modelo
neoliberal de omissão do Estado.

DADOS E RESULTADOS

Diante das múltiplas exclusões observadas em torno da educação feminina, percebe-


se, na pesquisa, através do depoimento de uma das entrevistadas, Carla (18 anos, nome
fictícios) que algumas diferenças vêm em decorrência não de capacidade ou qualidade, mas
do fato dos homens terem mais disponibilidade para estudar, acontecendo de aprenderem
mais. Além da escola elas têm atividades domésticas, enquanto eles não se envolvem com
nada da casa, assim, “aprendem com mais facilidade que a mulher, porque fica sem
preocupação”.
Contudo, a própria Carla ainda vai mais longe, ao dizer que o ensino é muito
importante, e que quando posto em primeiro plano ainda é melhor: “É importante e se é

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valorizada por estudar, quando só se estuda não tem que ter preocupação, de ir para casa fazer
as coisas, pois o ensino vem em primeiro lugar”.
No contexto das entrevistas, pudemos perceber com base na análise de conteúdo
temático, foi possível identificar quatro grandes temas destacados das falas das mulheres no
que se refere à cidadania: percepção sobre ser mulher, ser mulher na escola, liberdade e
cidadania e expectativas para o futuro.
O tema percepção de ser mulher aparece quando elas são unânimes ao afirmar que ser
mulher é algo bom ou ótimo, entretanto, reconhecem a existência de fortes diferenças entre
elas e os homens, na medida em que eles seriam menos discriminados e teriam maior
participação social, maior participação no mercado de trabalho, do que elas na sociedade.
Embora, elas também pontuam avanços significativos. Reconhecem que a
discriminação e a exclusão são oriundas da sua condição de mulher, e acreditam que
mudanças estão ocorrendo no sentido da construção da cidadania. É importante ressaltar que
as mulheres apresentam concepções novas de cidadania, como vai ser possível constatar
através do núcleo central da representação, porém, admitem a necessidade de mudanças de
atitudes e comportamentos para que isso seja efetivado no cotidiano.
O tema ser mulher na escola surge quando as mulheres afirmam que no espaço escolar
são menos discriminadas e excluídas pelos colegas, principalmente pelo corpo docente, mas
apontam que os livros didáticos ainda reproduzem tais exclusões. Elas dizem que nos livros
ainda é frequente as mulheres serem apresentadas em condições inferiores, quando aparecem,
uma vez que a predominância é da figura do homem.
As mulheres dessa pesquisa, apontam que os livros didáticos ainda reproduzem
exclusões e discriminações. Elas dizem que nos livros ainda é frequente as mulheres
aparecerem em condições inferiores, quando aparecem, uma vez que a predominância é da
figura masculina.
Isso mostra, de acordo com Rosemberg (2001), que a educação escolar vai preparando
e reforçando as diferenças entre as mulheres e os homens, através dos processos de
discriminações, tais como estes apontados acima, reproduzindo desta maneira a exclusão, seja
no discurso, no currículo, nos livros didáticos etc.
No que se refere especificamente aos livros didáticos, 54% das participantes da
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pesquisa (61) apontam que não percebem a presença de mulheres nos livros utilizados na
escola, enquanto 34% (39 participantes) acham que elas estão presentes sim e 12% (14 delas)
não responderam à pergunta.
Já com relação à valorização da figura da mulher nos livros didáticos, 57 participantes
(50%) acham que os livros adotados na escola não valorizam as mulheres, ao passo que 47
(41%) consideram que os livros as valorizam e 10 (9%) não responderam à questão. A visão
discriminatória aparece no seguinte depoimento: “Não. Porque os livros ilustram os homens
trabalhando e as mulheres não”.
Assim, em função da educação que receberam e recebem no contexto familiar, social e
escolar desde criança, os valores internalizados inconscientemente, promovem que as próprias
mulheres se discriminam por si mesmas, quando apontam que “nem tudo a mulher pode
realizar”.
Em vários depoimentos as mulheres expressam claramente a existência, no ambiente
escolar, de comportamentos característicos da cultura androcêntrica e machista: “os homens
são melhores em matemática, e nós em português”; “alguns são machistas”; “quando a mulher
é bonita, o professor dá em cima” etc.
É importante ressaltar, entretanto, que as próprias mulheres reproduzem em suas falas
antigos estereótipos no que se refere a um suposto, ‘dom natural' das mulheres para as
matérias ligadas ao português, enquanto os rapazes seriam mais fortes em matemática. Tais
ideias reforçam o papel da mulher como dotada de características ligadas à comunicação com
o outro, doce e meiga, enquanto o racional científico e prático seria limitado ao masculino.
Assim, a matemática sempre esteve associada à construção, invenção, criatividade,
razão porque, em nossa sociedade, sempre esteve vinculada ao universo masculino, da dureza,
Eu gosto de português porque no dia-a-dia preciso falar bem, me comunicar bem. Já o
homem trabalha mais em conta, com números. (Nikita, 20 anos). São duas matérias difíceis,
mas os meninos gostam da matemática por mexer com números, mexe muito com raciocínio
(pode ser) e português também é mais difícil por conta das regras, mas as mulheres prestam
mais atenção do que os homens. (Fernanda B., 20 anos).
Na prática, percebeu Carvalho (2001) que o comportamento disperso, levado e agitado
dos meninos era sempre considerado como coisas da masculinidade, sem uma crítica mais
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contundente, e de certa maneira até enaltecido, pois ocorria uma adesão ambígua e não
submissa à instituição escolar e suas regras – desafio, bom humor e autonomia. E em nenhum
momento esse comportamento foi relacionado a problemas com a aprendizagem.
Segundo as mulheres pesquisadas, apesar de todas as mudanças verificadas no
universo feminino, ainda existe, em torno da mulher, a ideia de que ela é frágil, meiga e dócil.
Nas respostas do questionário, 73 mulheres (62%) afirmam que ainda existe a concepção de
fragilidade em relação à mulher.
No que se refere à questão de liberdade e cidadania, os resultados apontam para um
modelo patriarcal, que promove múltiplas exclusões, atuando na ordem da subjetividade e da
objetividade. Percebem-se dificuldades como, por exemplo, o fato de elas terem a chave da
casa, mas serem obrigadas a voltar no horário estabelecido, enquanto o irmão pode chegar à
hora que quiser, o que torna nítida a desigualdade no tratamento. As desigualdades de gênero
são reproduzidas tanto na família e na sociedade quanto, em parte, nas escolas, promovendo
situações de discriminação e de papéis estereotipados, que afastam as mulheres da plena
possibilidade de vivência da cidadania, como mostram as respostas das 114 entrevistadas,
revelando condições de exclusão de ordem material e também de ordem simbólica.
Com relação ao terceiro aspecto temático – liberdade e cidadania –, embora as
respostas ao questionário e os depoimentos apontem algumas conquistas, as mulheres
convivem ainda com várias restrições à sua liberdade, evidenciando que elas apresentam
condições precárias para se contrapor à ordem patriarcal no contexto da sociedade. Apesar das
mudanças de atitudes e comportamentos ocorridas no mundo moderno, os conceitos
conservadores do patriarcado ainda imperam no imaginário social, mantendo os homens
vários privilégios diante do universo feminino, notadamente nas camadas populares.
Por fim, aparecem as expectativas para o futuro. É importante observar que, embora
apontem mudanças e novos processos na escola, ao falar do futuro, as mulheres reconhecem
que mesmo estudando não terão melhores condições de trabalho. Em sua grande maioria,
assumem que o trabalho doméstico é o futuro que lhes é reservado, uma vez que se
consideram ainda discriminadas no mercado de trabalho e no contexto social em geral. Dessa
forma, observou-se que, mesmo com maior escolaridade, as mulheres entrevistadas não
percebem uma vinculação da educação com um aumento de sua participação na sociedade.
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Na categoria temática expectativas para o futuro, constatamos que, apesar dos limites e
das dificuldades com as quais as mulheres ainda se deparam em seu cotidiano, diante do
patriarcado e do machismo, algumas transformações significativas vêm ocorrendo. Entre as
coisas que elas desejam para o seu futuro, em primeiro lugar aparece independência
financeira, seguida por estudar e ter uma profissão, embora depois ainda surjam casar, ter
filhos e ser feliz, mas já não colocados como o objetivo maior de suas vidas.
Há, portanto, uma distância entre a representação social da cidadania dessas mulheres
e as expectativas que elas têm em relação a si mesmas. Elas conhecem os elementos que
constituem a cidadania e a necessidade de possuí-los para uma vida digna. Contudo, ao
destacar os estereótipos e discriminações sofridas, mesmo admitindo que não gostem de tal
situação, terminam por justificá-la como uma questão de cultura, sem vislumbrar mudanças.
Por outro lado, o ensino público reproduz a ideologia da classe dominante,
percebendo-se falta de qualidade e competência para promover o pleno desenvolvimento
humano, bem como para criar bases para o aprofundamento dos estudos, apresentando-se
apenas como reprodutor do conhecimento, sem perspectivas críticas, criativas e
transformadoras. Soma-se a isso a falta de uma maior habilidade diante de um mercado de
trabalho cada vez mais restrito, precário, tecnológico e contraditoriamente mais exigente em
relação à mão-de-obra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos ser a educação a base central para a promoção e a aquisição dos direitos
humanos e das transformações, possibilitando a ruptura com o patriarcado e o androcêntrismo
peculiar a nossa cultura, a partir da democratização do contexto político-social, econômico e
ideológico, criando possibilidades de integração dos seres humanos em ações mais
participativas. É também a educação que pode promover a conquista da autonomia pelas
mulheres, as mudanças que se fazem necessárias para o alcance da cidadania feminina ativa,
permitindo que cada uma exerça a capacidade de ser protagonista de sua própria história.
Percebemos, assim, diante do exposto como os valores androcêntricos e patriarcais
passados ou impostas às mulheres em geral, tendem ainda hoje a evidenciar concepções de
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submissão e dependência, de discriminações e exclusões, mesmo quando elas já reconhecem


seus direitos.
Tais aspectos evidenciam que as transformações e mudanças apontadas só ocorreram,
em grande parte, no nível do discurso e do desejo. Assim, ao mesmo tempo em que apontam
os direitos vinculados à cidadania, chamam a atenção para a falta de sua vivência no espaço
social, evidenciando em nosso entender processos já internalizados, isto é, “culturalmente
vivenciados no espaço de vida”.
Para transformar essa situação, não se pode pensar em ações oriundas de um plano
distante das mulheres como um todo, pois uma mudança histórico-social da humanidade – em
seus problemas, valores e preconceitos – tem que partir das próprias mulheres em seus
movimentos sociais, para que elas comecem a pensar e repensar como foram e são construídas
estas exclusões e discriminações, e ao mesmo tempo como são internalizadas e postas no
contexto social, face da ausência de políticas públicas educacionais voltadas para o feminino.
A escola, ainda hoje, com pequenas exceções, não reformulou seus papéis
discriminatórios no campo educacional, reproduzindo, como vimos, antigas mensagens, na
linguagem, nas imagens, nos discursos, nos livros, particularmente nos de história, pois, muito
embora a mulher tenha tido um papel social muito importante na história da humanidade, isto
não faz parte da história oficial, extremamente androcêntrica.
Nesse sentido, devemos estar alertas para detectar as barreiras e bloqueios gerados
pelas comunicações no cotidiano ou no nosso sistema de ensino. A comunicação pressupõe o
estabelecimento do processo dialético nas relações escolares. E só podemos considerar a
educação de qualidade quando o processo de construção do conhecimento torna-se real,
quando ocorrem a aquisição e a produção do conhecimento de maneira coletiva: corpo
docente junto com os discentes, mulheres e homens, pessoas de direito e de deveres.
Por fim, destacamos como proposta desenvolver uma ação através de oficinas
pedagógicas – vídeos, dinâmica de grupo e trabalhos coletivos -, trabalhando com a temática
de gênero no contexto feminino e o processo de discriminação e exclusão oriundas da
educação formal que promove a passagem de valores androcêntricos que geram atitudes de
submissão e dependência por parte das mulheres.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rio de Janeiro: IBGE, 2004. Disponível em:
<http://integração.fgvsp.br/ano6/07/pesquisa.htm>. Acesso em jun. 2004.
CARVALHO, Marília. P. Mau aluno, boa aluna? Como as professoras avaliam meninos e
meninas. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 554-574, dez. 2001. Disponível em:
<http://www.scielo.br/sciel.php?script=sci_arttex&pid=S0104-026X2001000200013/>.
Acesso em: 12 nov. 2004.
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Infância 2004: meninas, educação e desenvolvimento (2003). Disponível em:
<http://www.unicef.org.br/brazil/sow04/index.html/>. Acesso em: 13 jan. 2005.
MINAYO, Maria (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 8. Ed. Petrópolis:
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIDADANIA E A
CULTURA. Gênero e educação para todos: o salto rumo à igualdade. Relatório conciso.
Direção de Christopher Colclough: Paris: UNESCO, 2003. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001324/132480por.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2004.
RICHARDSON, Roberto. Pesquisa Social – Métodos e Técnicas. 3.ed. São Paulo: Atlas
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ROSEMBERG, F. Educação formal, mulher e gênero no Brasil contemporâneo. Estudos
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Acesso em: 12 nov. 2004.
SPOSATI, A. Cidadania e comunidade solidária. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, v.
16, n. 48, p. 124-147, ago. 1999.
VIANNA, C.; UNBEHAUM, S. O gênero nas políticas públicas de educação no Brasil (1988-
2002). Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 121, p. 77-104, 2004.

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HISTÓRIA DA ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES DO RIO GRANDE DO NORTE


(1920-1989)

Amanda Vitória Barbosa Alves384 | amandinha17_vi_@hotmail.com


Larissa Maria de Medeiros Dantas² | Larissa_dantas1@hotmail.com
Orientadora: Maria Arisnete Câmara de Morais³ | arisnete@terra.com

INTRODUÇÃO
O presente trabalho, vinculado ao Projeto de Pesquisa História da Leitura e da Escrita
no Rio Grande do Norte /Conselho Nacional de Desenvolvimento científico e Tecnológico
(CNPq), desenvolvido no Grupo de Pesquisa História da Educação, Literatura e Gênero,
objetiva analisar a história da Associação de Professores do Rio Grande do Norte e desta
maneira contribuir para a historiografia da educação no Brasil e, em especial, no Rio Grande
do Norte. Pretendemos concentrarmos nos anos de 1920-1989, que respectivamente, refere-se
à criação da APRN (Associação dos Professores do Rio Grande do Norte), e sua desativação
em 1989 (DUARTE, 1985).
Este trabalho contém uma investigação realizada nos acervos do Sindicato dos
Trabalhadores em Educação Pública do Rio Grande do Norte, no acervo da Biblioteca Central
Zila Mamede da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/BCZM-UFRN, na Biblioteca
Setorial do Centro de Ciências Sociais Aplicadas/CCSA-UFRN e no acervo do Grupo de
Pesquisa História da Educação, Literatura e Gênero. Nesses acervos encontramos livros que

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Graduanda do Curso de Pedagogia da UFRN; Bolsista de Iniciação Cientifica do Grupo de Pesquisa História
da Educação, Literatura e Gênero da UFRN.
² Graduanda do Curso de Pedagogia da UFRN; Bolsista de Iniciação Cientifica da Grupo de Pesquisa História da
Educação, Literatura e Gênero UFRN.
³ Professora Doutora do Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação- UFRN; Coordena o Grupo de
Pesquisa História da Educação, Literatura e Gênero da UFRN.

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falavam da história da APRN, jornais com manchetes a respeito dos professores que atuaram
na Associação dos professores, monografias e dissertações referentes ao objeto de pesquisa.
Analisadas a partir dos pressupostos da História Cultural, as fontes permitiram refletir
sobre os acontecimentos educacionais a partir de determinada realidade social construída
(CHARTIER, 1990), (MORAIS, 2002; 2003; 2006; 2011), (DUARTE, 1985).

ASSOCIAÇÃO DOS PROFESSORES DO RIO GRANDE DO NORTE

Sede da APRN- Acervo do Instituto Histórico Geográfico.


A Associação dos Professores do Rio Grande do Norte/APRN foi fundada no dia 4 de
dezembro de 1920, no salão nobre do Palácio do governo, em uma sessão solene. A entidade
tinha por fim desempenhar papel preponderante no ensino do estado do Rio Grande do Norte.
No período de sua fundação o Dr. Antônio de Souza, então governador do estado do
Rio Grande do Norte, assumiu a direção da reunião, convidando o Dr. Manuel Dantas, diretor
da Instrução Pública, e o Professor Nestor Lima, para tomarem parte da mesa diretora. Após a
declaração de instalação da Associação dos Professores do Rio Grande do Norte, uma
comissão de professores foi composta para confeccionar o projeto de estatutos, onde tiveram
os professores Anfilóquio Câmara, Luís Antônio, Luís Soares e Júlia Alves Barbosa como
responsáveis.
A instituição tinha por objeto a propaganda do ensino leigo, o combate ao
analfabetismo, e de modo particular, a defesa e a elevação da classe dos professores.

Para preencher seus objetivos e fins, a entidade se manterá: pela criação de um órgão
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de publicidade, de feição pedagógica; pela organização de uma biblioteca escolar;


pelo auxílio moral e material, quando necessário, prestado aos seus associados; pela
instituição de festas cívicas e conferências sobre o ensino; pelo auxílio e os
esclarecimentos que todos os sócios são obrigados a prestar uns aos outros; pela sua
interferência perante as autoridades e aos estabelecimentos de ensino no sentido de
melhorar as condições dos mesmos e a execução dos programas escolares; pela
fundação de escolas e cooperativas; pela convocação de congressos pedagógicos,
nos quais sejam apresentadas e discutidas teses e questões técnicas, relativas ao
ensino em geral; pela criação de uma caixa de auxílio mútuo e pela beneficência do
ensino e do professorado. (DUARTE, 1985, p. 23)

A sede dessa instituição foi instituída na Avenida Rio Branco no bairro da Cidade
Alta, em Natal, Rio Grande do Norte. Ate os dias presentes, continua no mesmo local, mas
com o nome de Sindicato dos Trabalhadores em Educação Publica do rio Grande do Norte,
pelo fato de ano de 1989, após a Constituição Federal de 1988, a Associação de Professores
tornar-se um sindicato.

DIRETORIAS DA APRN
Foi acordado que a Associação dos Professores do Rio Grande do Norte seria dirigida
por um Conselho Diretor, composto por um presidente, dois secretários, um orador, um
tesoureiro e um bibliotecário, todos eleitos em Assembleia Geral. Durante o período de 1920
a 1989, vinte diretorias estiveram à frente dessa instituição.
A primeira diretoria da APRN foi eleita em 1920, após a formulação do primeiro
estatuto, e estendeu-se até o ano de 1933.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Anfilíquio Câmara
Vide-Presidente Gonzaga Galvão
1º Secretário Júlia Alves Barbosa
2º Secretário Oscar Wanderley
Orador Luís Soares
Tesoureiro Francisco Ivo
Bibliotecário Braz Caldas

O primeiro Estatuto da Associação dos professores do Rio Grande do Norte foi criado
juntamente com a formação da primeira diretoria. Sob a direção do Professor Anfilóquilo
Câmara e a presença de vários outros sócios, em uma sessão específica para formulação do
primeiro Estatuto da APRN, foi posto em discussão cada capítulo, depois de prolongada
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observação, aprovando o Estatuto da Associação dos Professores do Rio Grande do norte. No


período da primeira diretoria, foram criadas algumas instituições, como: a revista Pedagogium
(1920), essa, era um instrumento de divulgação da cultura da APRN; Grupo Escolar Antônio
de Souza (1923); Escolas Rudimentares (1925); Escola Agrícola Juvenal Lamartine (1928);
Jardim de Infância Áurea Barros (1930); Orfeão Escolar, que tinha por intuito aperfeiçoar a
educação que era ministrada nos grupos escolares; Centro de Educação física (1932).
A segunda diretoria foi formada em dezembro de 1932, mas seu trabalho só se
efetivou a partir de 1933.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Anfilóquio Câmara
Vide-Presidente Luís Antônio Ferreira Souto dos Santos Lima
1º Secretário Luís Correia Soares de Araújo
2º Secretário Edilzêta Ataide e Melo
Orador Manoel Varela de Albuquerque
Tesoureiro Dorvalina Cortês Emerenciano
Bibliotecário Olga Barbosa

Em setembro de 1933, o então presidente dessa diretoria, Anfilóquio Câmara, foi


substituído por seu vice-presidente, o professor Luis Antônio Souto dos Santos Lima, isso se
deu porque Anfilóquio Câmara precisou assumir a direção do Departamento de Educação do
estado do Rio Grande do Norte. Em janeiro de 1933 a Associação dos Professores teve a
primeira Reforma Estatuária, porém tudo o que se foi feito pela primeira diretoria continuou.
No final de 1935 foi eleita à terceira diretoria, (assumida efetivamente em 1936).
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Antônio Gomes da Rocha Fagundes
Vide-Presidente Manoel Varela de Albuquerque
1º Secretário Luís Correia Soares de Araújo
2º Secretário Acrísio Freire
Orador Clementino Câmara
Tesoureiro Alba Brandão
Bibliotecário Beatriz Lima

Em 1936 cria-se uma comissão chamada de pró-Associação, liderada por Clementino


Câmara e Acrísio Freire, que tinha por finalidade motivar a participação de professores que
não eram associados à entidade ou aqueles que por algum motivo deixaram de participar. No
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inicio de 1937, a APRN também cria a Revista do Ensino, mas sua circulação só se deu a
partir de dezembro do mesmo ano. A referida revista destinava-se a tratar de assuntos
pedagógicos e do ensino em geral.
Ainda em 1937, a quarta diretoria da Associação dos Professores do Rio Grande do
Norte elegia seus novos membros, que permaneceriam entre os anos de 1938 e 1939.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Antônio Gomes da Rocha Fagundes
Vide-Presidente Manoel Varela de Albuquerque
1º Secretário Luís Correia Soares de Araújo
2º Secretário Lindalva Alves Taveira
Orador Clementino Câmara
Tesoureiro Honório Farias
Bibliotecário Clidenor de Farias

No inicio de 1939, o presidente da Associação dos Professores juntamente com seu


vice-presidente, assumiram a direção do departamento de educação do estado e por isso
deram lugar aos professores Joaquim de Farias Coutinho e José Saturnino, como presidente e
vice-presidente respectivamente, que continuaram até o ano de 1941, formando assim a quinta
diretoria.
O período de 1942 a 1945, anos nos quais acontecia a Segunda Guerra Mundial, de
acordo com DUARTE (1985) não são encontrados documentos que apresentassem os
professores que comporiam a diretoria desse período, sabe-se apenas que o professor Alfredo
Lyra era presidente da Associação dos Professores e o acontecimento que marcou esse dita
direção, foi à compra do prédio sede da instituição, que está situado no bairro de Cidade Alta
na Avenida Rio Branco, em 1942. Até os presentes dias a sede continua no mesmo local, mas
contendo não mais a APRN, e sim o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do
Rio Grande do Norte.
Após o período de guerra, foi eleita, pelo conselho, a sétima diretoria, que dirigiu a
entidade de 1946 a 1951.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Luís Correia Soares de Araújo
Vide-Presidente Dr. Francisco Ivo
1º Secretário Mário Tavares de Oliveira Cavalcante

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2º Secretário Raulina Ataíde de Oliveira


Orador Clementino Câmara
Tesoureiro Acrísio de Meneses Freire
Bibliotecário Raimundo Soares

Essa diretoria fez com que ressurgisse a revista Pedagogium, que há alguns anos
estava desativada. Em julho de 1949 é aprovada a lei municipal que permitia a construção de
um mausoléu, no Cemitério Público do Alecrim, zona leste de Natal, para o sepultamento de
associados, tudo isso graças pedidos de professores da APRN.
A oitava diretoria toma posse em janeiro de 1952 e permanece até 1953.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Joaquim de Farias Coutinho
1º Secretário Geraldo Magela Cruz
2º Secretário Margarida Saboia de Lima e Silva
Orador Francisco Rodrigues Alves
Tesoureiro Paulo Vieira Nobre

As principais obras dessa diretoria foram a criação de uma biblioteca nomeada


“Alfredo Simoneti”, em 1952; a reforma do Estatuto, no mesmo ano; a criação dos
departamentos da Associação dos Professores; a entrega do Grupo Escolar Antonio de Sousa,
que estava sendo ocupado, desde 1937, pela Escola Normal; e a criação da carteira de
identidade da Associação dos Professores, em 1953.
Em 1954 toma posse a nona diretoria.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Joaquim de Farias Coutinho
Vide-Presidente José Gurgel de Amaral Valente
1º Secretário Raimundo Soares de Andrade
2º Secretário Helena Silva
Orador Francisco Rodrigues Alves
Tesoureiro Paulo Vieira Nobre
Bibliotecário Ana Leite de Carvalho

As realizações dessa diretoria foram a construção de uma casa situada na Avenida


Rodrigues Alves que, posteriormente, se tornaria o Lar do Professor Aposentado; criação da
Cooperativa de Crédito dos Professores do Rio Grande do Norte, conforme o Decreto de Nº

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34.895, de 5 de janeiro de 1954; e a criação da Faculdade de Filosofia, nos termos da


resolução nº1, de 12 de março de 1955.

Faculdade de Filosofia. Acervo do Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Norte

Em janeiro de 1956, toma posse a décima diretoria da APRN.


GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Paulo Vieira Nobre
Vide-Presidente Acrísio de Meneses Freire
1º Secretário Álvaro Tavares
2º Secretário Maria Fernandes da Mota e Silva
Orador Luís Correia Soares de Araújo
Tesoureiro Raimundo Soares de Andrade
Bibliotecário Ana Leite de Carvalho

As principais realizações dessa diretoria foram à inauguração da Faculdade de


Filosofia e o Curso de Aperfeiçoamento sobre Problemas Psicológicos da Educação,
ministrado para professores, com duração de 21 a 28 de agosto de 1956, ministrado por um
professor do Distrito Federal.
A décima primeira diretoria (1958-1959), décima segunda diretoria (1960-1961) e a
décima terceira diretoria (1962-1963), infelizmente, não existem documentos com tantos
dados, sabe-se apenas quais professores compuseram os cargos de Presidente, 1º Secretário e
Orador de cada diretoria, acima citada. As atas e registros sobre tais diretorias são
desconhecidos nos acervos que podem ser encontrados arquivos referentes à Associação dos
Professores do Rio Grande do Norte.

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GARGOS PROFESSORES ELEITOS NA 11º DIRETORIA


Presidente Joaquim de Farias Coutinho
1º Secretário Raimundo Soares de Andrade
Orador Boanerges Januário Soares de Araújo

GARGOS PROFESSORES ELEITOS NA 12º DIRETORIA


Presidente Luiz Correia Soares de Araújo
1º Secretário Raimundo Soares de Andrade
Orador Boanerges Januário Soares de Araújo

GARGOS PROFESSORES ELEITOS NA 13º DIRETORIA


Presidente Geraldo Magela Cruz
1º Secretário Saly da Costa Mamede
Orador Boanerges Januário Soares de Araújo

A décima quarta diretoria da APRN ocorreu entre os anos de 1964 a 1965, com a
eleição dos dirigentes em outubro de 1963, e a posse em janeiro de 1964.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Geraldo Magela Cruz
Vide-Presidente Francisca Nolasto Fernandes
1º Secretário Saly da Costa Mamede
2º Secretário René Correia da Silva
Orador Hilton Gouveia
Tesoureiro Valdomiro Carvalho Dantas
Bibliotecário Maria das Neves Ferreira Pinto

O período de 1966 a 1967 foi dirigido pela décima quinta diretoria.


GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente João Batista Pinheiro Cabral
Vide-Presidente Acrísio de Meneses Freire
1º Secretário Maria Eulina
2º Secretário Álvaro Tavares
Orador Amadeu Araújo
Tesoureiro Eugênio Fernandes
Bibliotecário Homero de Oliveira Dantas

A décima sexta diretoria dirigiu a entidade de 1968 a 1971, e a mesma comemorou o


cinquentenário da APRN, em 4 de dezembro de 1970.

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GARGOS PROFESSORES ELEITOS


Presidente Acrísio de Meneses Freire
Vide-Presidente Maria Alexandrina Sampaio
1º Secretário Joaquim de Farias Coutinho
2º Secretário Maria Zélia da Cruz
Orador Geraldo Magela da Cruz
Tesoureiro Eugênio Fernandes
Bibliotecário Iolanda Freire Cortêz Gomes

A décima sétima diretoria esteve à frente da APRN no período de 1972 a 1973, e pela
primeira vez uma mulher esteve sob direção da Associação dos Professores.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Almira Melo do Amaral
Vide-Presidente Geraldo Magela da Cruz
1º Secretário Nancy Gomes dos Santos
2º Secretário Inês Gomes da Silva
Orador Acrísio de Meneses Freire
Tesoureiro Francisca Maciel
Bibliotecário Rosa da Silva

A décima oitava diretoria esteve à frente, entre os anos de 1974 a 1976.


GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Olindina Lima Gomes da Costa
Vide-Presidente João Batista Viana
1º Secretário Joaquim de Farias Coutinho
2º Secretário Maria Zélia De Souza
Orador João Faustino Ferreira Neto
Tesoureiro Maria das neves Pereira Pinto
Bibliotecário Teodolina Cavalcanti de Albuquerque

Essa diretoria foi responsável por construir a Casa do Professor, obra considerada o
marco da Associação dos Professores do Rio Grande do Norte.

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Casa do Professor. Av. Afonso Pena,650-Tirol, Natal-RN

No último ano da décima nona diretoria (1977-1979), surgiu no estado um movimento


reivindicatório por parte dos professores, mas a atual diretoria não aderiu a greve, todavia
apoiou aos docentes em seus estabelecimentos.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Iracema Brandão de Araújo
Vide-Presidente Gileno Bezerra Feirosa
1º Secretário Manoel Nely da Rocha Vieira
2º Secretário Maria Siléia Queiroz
Orador Francisca Nolasco
Tesoureiro Maria das neves Pereira Pinto
Bibliotecário Francisca Martins Nogueira

Nesse período foi criado o Lar do Professor Aposentado, que tinha por finalidade
acolher professores sócios aposentados.
A última diretoria, que de acordo com DUARTE (1985), dirigiu a Associação dos
Professores entre os anos de 1980 a 1982.
GARGOS PROFESSORES ELEITOS
Presidente Manoel Barsosa de Lucena
Vide-Presidente Geraldo Pereira Pinto
1º Secretário Sara Lordão Gurgel Pimenta
2º Secretário Antonio Balbino de Araújo
Orador Maria Gomes de Oliveira
Tesoureiro Vilma Francisca da Fonseca Tinôco
Bibliotecário Iêda Trigueiro

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Essa diretoria através de alguns projetos buscou a integração estadual das Associações
de Professores dos municípios que ainda não faziam parte constituinte da APRN, esse
acontecido marca o início da desativação da entidade e sua sindicalização.
Em 1989 encerra-se a dita história da Associação dos Professores do Rio Grande do
Norte. Nos anos posteriores, após Constituição de 1988 que permitia a sindicalização de
entidades associadas, cria-se o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Rio
Grande do Norte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Associação dos Professores do Rio Grande do Norte desempenhou papel
significativo para o professorado Norte rio-grandense. Infelizmente, algumas diretorias foram
impossibilitadas de fazer analise, já que os registros das mesmas foram perdidos. Mesmo
assim, podermos perceber que a defesa aos profissionais da educação marcou a história da
entidade, além de permitir a instrução de gerações no estado do Rio Grande do Norte. Na
atualidade essa instituição deu lugar ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do
Rio Grande do Norte que assim como no passado, é uma instituição que batalha pelas causas
dos educadores.

REFÊRENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, Jose Horaldo Teixeira. História da Associação dos Professores do Rio Grande do
Norte. Natal: Companhia Editora do Rio Grande do Norte, 1985.200p.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria
Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990.
MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. Leituras de mulheres no século XIX. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. Isabel Gondim, uma nobre figura de mulher. Natal:
Terceirize Editora e Gráfica, 2003. 154 p. (Série Educação e Educadores do Rio Grande do
Norte – Vol. I).
MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. Chicuta Nolasco Fernandes, intelectual de mérito.
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Natal: Editorial A República, 2006. 174 p. (Série Educação e Educadores do Rio Grande do
Norte – Vol. II).
MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. História da leitura e da escrita no Rio Grande do
Norte: presença de professoras (1910-1940). 2011-2013. Projeto PVE2127-2011 vinculado
ao CNPq, Departamento de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
2011.

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INICIAÇÃO DA ESCRITA: A FOLHA DE PALMEIRA E LUZIA SENNA EM A


ESTRADA POR ONDE PASSEI

385
Valnei Evangelista Santos | evaevangelista2014@hotmail.com
Profa. Maria José de Oliveira Santos

A FOLHA DE UMA PALMEIRA NA VIDA DE UMA MULHER

Falar de escrita feminina é o mesmo que se perguntar como o feminino, em tensão


com o masculino, ativa as marcas da diferença simbólico-sexual e as recombina na
materialidade escritural dos planos dos textos.
[...]
A ‘literatura de mulheres’ designa um conjunto de obras literárias cuja assinatura
tem valor sexuada, mesmo que estas obras não se encarreguem da pergunta de como
textualizar a diferença genérico-sexual. (RICHARD, 2002, p.129 apud SOARES,
2013, UNEB/CAMPUS II, 2013, p. 23-24).

O presente texto é resultado de uma pesquisa de Iniciação Científica, que tem um


projeto-base direcionado aos escritores alagoinhenses e/ou regionais com artigos publicados
em periódicos locais e entorno publicações de livros e revistas e, no caso desta pesquisa volta-
se a investigar, organizar, analisar e publicar artigos, notas e outros referentes às escritoras.
Dentre as várias escritoras selecionamos uma publicação da escritora Luzia das Virgens
Senna, uma dona de casa, mãe e avó, mas que encontra tempo para escrever e publicar livros.
Trata-se de um artigo que discute as implicações enfrentadas pelas escritoras na cidade

385
Graduanda em Letras com Língua e Literaturas Brasileiras, componente do Projeto de Iniciação Científica
financiado pela UNEB/FAPESB cujo projeto-base se denomina REPRESENTAÇÕES CITADINAS: TEXTOS
LITERÁRIOS PUBLICADOS EM PERIÓDICOS ALAGOINHENSES NOS SÉCULOS XIX E XX –
IMPRESSÕES DE ESCRITORAS E ESCRITORES e o sub-projeto é IMPACTOS CITADINOS DAS
ESCITORAS ATRAVÉS DE SUAS FICÇÕES PUBLICADAS EM PERIÓDICOS DOS SÉCULOS XIX E XX.

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de Alagoinhas-BA no fim do século XI ao início do século XX, usando a narrativa de Luzia


Senna como eixo de discussão, analisando os resquícios patriarcais e tomando como base para
discorrê-lo o livro composto por quarenta e um contos memorialísticos A estrada por onde
passei, publicado em 2011, dos quais, quatro foram selecionados como lócus: “Mamãe,
Mamãe”, “Um amiga, Regina”, “As travessuras” e “ Os dois irmãos.’’
Luzia das Virgens Senna é baiana nascida em Queimadas, poeta escritora e cordelista,
membro da Casa do Poeta de Alagoinhas (CASPAL) e da Academia de Letras e Artes de
Alagoinhas (ALADA) e nunca foi sua pretensão ser famosa, sempre gostou de escrever e
aprendeu a ler mesmo antes de frequentar a escola.
Em A estrada por onde andei conta suas andanças por lugarejos e cidades
transbordando de acontecimentos por meio de narrativas memorialísticas que sugerem fatos
sociais, culturais, educacionais e religiosos.
Procuramos deter a discussão estabelecendo uma leitura dialética entre o discurso dos
contos de Luzia Senna e o discurso divulgado pelo patriarcado. Na análise percebemos o forte
apelo linguístico dos significados no seu modo de produzir, sua busca por um espaço na
sociedade tornando perceptível a vinculação entre linguagem e poder que disseminou o
pensamento de inferioridade da mulher, ainda presente, não a deixando se desvencilhar das
amarras que a prendem a esse competente discurso. Logo, pensamos sob a ideia patriarcal que
naturaliza o pensamento desqualificador das mulheres, trazendo à cena a transposição das
dificuldades para se tornar escritora, implicando na modificação do paradigma cultural que a
inferioriza também na Literatura.
Em “Mamãe, Mamãe”, a escritora narra como aprendeu a escrever e ler sozinha, pois
era ainda uma menina e não podia frequentar aulas normalmente. Como era época de eleição
sua mãe conseguiu um cargo de professora na prefeitura de Queimadas-BA e todos os dias
Luzia a acompanhava ao trabalho e perambulava de um lado a outro da sala de aula.
Acompanhar sua mãe foi algo que lhe rendeu curiosidade de aprender, e a partir desse anseio
se alfabetizou sozinha, observando sua mãe e seu grupo de alunas e alunos. Começou a
escrever utilizando folhas de palmas para chamar a atenção da sua mãe e do seu pai, pois seu
maior desejo era ter livros e cadernos. Em seus relatos ressalta que concluiu o Ensino
Fundamental I, mas não realizou o sonho de se formar em professora.
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Mas, conseguiu escrever contos, poemas e cordéis. Luzia Senna afirma não saber se é
teoricamente escritora, só sabe que escreve. Não foi à toa que as mulheres assimilaram a não
possibilidade de serem escritoras, visto que não foi este o papel que lhe foi destinado. A
cultura patriarcal não as via como produtoras e sim como reprodutoras e isso se estendia com
toda força para a Literatura.
Observar a escrita de Luzia Senna é perceber que as diferenças baseadas no sexo e
vivenciadas pela sociedade estão culturalmente enraizadas e policiam o fazer, o prazer e o
saber lírico. Visto que a sociedade brasileira se constitui através de hierarquias e à mulher foi
negado o direito de estar em um papel de destaque, de fala, cabendo socialmente ao homem o
lugar do discurso do poder.
Na escrita de Luzia Senna, identificamos indícios do patriarcado como quando afirma
que o sonho de toda jovem é casar-se no conto “Uma amiga, Regina”:

Como toda jovem tem o sonho do casamento eu também sonhei...

[...] é do namoro que surge o noivado e é do noivado que acontece o casamento. .

Para se casar toda jovem deve pensar em felicidade e felicidade existe onde existe
amor, foi pensando em ser feliz que não fiz minha escolha apenas por ter conhecido
um rapaz da cidade. .

Podemos ler suas raízes a partir desse trecho. Daí a importância da Literatura por ser
também espelho de uma época e nos permitir entrar em contato com os processos históricos e
culturais que constituem as sociedades onde vivemos. Através da escrita de Luzia,
percebemos explicitamente a valorização da figura masculina por meio dos seus desejos, da
sua criação. Este estudo pode ser tomado como uma espécie de denúncia ao tratamento
desigual para com as mulheres, como representação de poder existente entre as relações de
gênero. O trabalho com as palavras elaborado pela escritora, mesmo tentando firmar seu lugar
sugere a superioridade dos homens que a rodeiam: avô, pai, irmão e maridos.
Na escrita de Luzia Senna percebemos como o pai, a figura patriarca, não podia ser
questionado tampouco desobedecido, e suas ordens eram relembradas através de castigos
físicos:

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Depois da ordem de meu pai aquele que, por atrevimento, ficasse na cama por mais
alguns minutos se dava mal, por que não demorava e ele voltava com uma corda
dobrada pronta para ensinar como deveria ser cumprida uma ordem. (2009, p. 45).

Como todos os homens daquele tempo eram rígidos não aceitavam opiniões em suas
decisões, seu João Theofilo não admitia voltar atrás suas palavras. (2009, p.65- 66).

No entanto, é difícil achar a raiz do problema, uma vez que a mulher e seus anseios,
indagações, lutas, conquistas e percas não foram produtos, nem produtos de produções
literárias que refletissem sua complexidade, pois eram os homens que escreviam sobre as
mulheres, sobre nós. Ainda atualmente, as relações de poder são centradas na figura do
homem, mas há um luta por parte das mulheres ativistas em prol da igualdade de direitos em
todas as áreas. Tais discursos patriarcais são tão repetidos até pelas mulheres, uma vez que se
tornaram comuns e naturais através de sua perpetuação. É através da escrita que podemos
colocar o pensamento do passado em contato com o presente, difundir ideologias, rever
normas, etc.
A escrita tem sempre uma intencionalidade, uma vez que os interesses a serem
ressaltados e defendidos giram em torno do patriarcado e é entendível que se negue o lugar de
fala às mulheres, reduzindo seus papeis. A escrita assume um lugar no discurso, sendo assim
um lugar de poder. E se quem fala é o homem, este não poderá desvelar e representar uma
mulher de forma diferente, pois ao longo dos anos a escrita vem sendo utilizada também para
promover e manter privilégios e exclusões. E é também através dela que a mulher foi
historicamente silenciada e busca incessantemente ocupar seu lugar ao lado do homem.
O temor e respeito à figura paterna são traços do patriarcado e seu lugar de poder nas
famílias. A exaltação do homem através da atribuição de características como inteligência,
força, sabedoria, como se fossem inerentes a esse sexo remete ao pensamento habilmente
disseminado. Seu esforço e trabalho sempre são reconhecidos e dignos de méritos e nos
contos “As travessuras”, Luzia Senna admira a figura do tio e mais adiante no conto “Os Dois
Irmãos” a qualidade do avô:

Tio Geraldino foi caipira inteligente, aplicava injeção. Fazia pequenas cirurgias
como drenagens de obsessos etc. meu tio não cursou faculdade, mas, para mim,
grande ortopedista e cirurgião que cursou doutorado em meio a caatinga,
exercitando o dom que Deus lhe confiou. (2011, p. 30).

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Meu avô, José Lucio, era um homem inteligente, homem sábio. (2011, p. 77).

Os textos memorialísticos de Luzia sugerem costumes, religiosidade, submissão,


enfim os discursos que se perpetuavam e faziam parte da criação das crianças da época. Sua
mãe, sua professora, não é citada como exemplo de “inteligência” e “sabedoria” ao lado do
seu avô e tio. Destacamos esta retirada de cenário para marcar a exclusão e não como
revanche, pois mulheres e homens são “inteligentes” e “sábios”.
A figura masculina como majoritária, também se dava no que tange ao casamento,
como escreve:

Meu noivado foi motivo de muita alegria, porque os meus sonhos começaram a
ganhar mais esperança de um dia poder morar na cidade. Por estas e outras razões eu
me sentia uma menina feliz. (2009, p. 54).

Eu pensava que quando ficasse noiva tudo ia melhorar, mas depois do noivado tudo
ficou pior. (2009, p. 55).

A ideia de realização da mulher está vinculada ao fato de ser mãe, formar uma família
e sua felicidade relaciona-se a este fato. Percebemos o conservadorismo da família em tais
passagens, pois o ideal de boa mulher defende que para sê-la deve ser prendada, casar-se e
cuidar do marido, submeter-se ao homem, o líder da família e sua maior referência de
inteligência, força e obediência. Cabe-lhe então, o lugar de mãe e esposa:

Agora a felicidade era algo dominante em meus pensamentos, porque só pensava em


ser mãe, ter filhos, meninos e meninas para formamos uma família cheia de amor e
felicidade. (2009, p. 59).

Como o lugar da mulher era o de doméstica, sua criação era voltada para o lar e seu
comportamento deveria ser adequado, pois se sua pretensão era o casamento nada poderia dar
margens para que questionassem sua conduta, sob a pena de ficar “mulher falada” e não poder
casar. A castidade e a pureza eram fatores imprescindíveis para o casamento. Luzia afirma o

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seguinte sobre o pós-noivado:


Daí para frente minha mãe só faltou me prender numa cela, não me deixava sair nem
na casa do meu tio Arlindo na Fazenda Cana Brava, porque tinha medo que pudesse
me encontrar com Osmar longe de sua vigilância. (2009, p. 56).
O que mais aumentou minha dor era quando mamãe dizia que meu noivado não
continuaria e Osmar não se casaria com uma moça que causou tumulto numa festa.
(2009, p. 58).

Por meio de as muitas estradas por onde passou a escritora não só sugere biográfica e
memorialísticamente sua história, como desvela discursos predominantes no Brasil nos
séculos XIX e XX, sendo assim possível compreender os discursos latentes na sociedade
contemporânea. Ainda hoje, embora com os avanços, o lugar de fala recai preponderante
sobre o homem, mas as lutas em busca da equidade são intensas. A mulher ainda é vista com
olhares conservadores e preconceituosos e o discurso da submissão é vivenciado a cada dia
por cada uma. Importantes passos foram e continuam sendo dados, por um grupo de
militantes que não admitem a estereotipia de um modelo de mulher e seu silêncio.
Se existem características que diferem a escrita de autoria das mulheres da dos homens
não há relevância, pois o que importa é a possibilidade de reconhecer a importância da escrita
das mulheres que foram impedidas durante muito tempo de serem publicadas. Escritoras dos
séculos XIX e XX costumavam usar pseudônimos ou se limitavam a escrever sobre economia
doméstica e religião, mas, já existiam as diferentes que transgrediram essa rota demarcada.386
Sobre a conquista da escrita da mulher afirma Rita Terezinha Schmidt (2000) que a
emergência do outro da cultura, as mulheres escritoras silenciadas pelas práticas narrativas da
cultura patriarca, sinaliza um novo conceito narrativo em que novos saberes, para além de
limites seculares impostos pela tradição, atualizam um novo sujeito engajado na
reconceptualização de si e do mundo, o mundo das mulheres.
Através da Literatura, Luzia Senna descentraliza esse poder com audácia, mesmo que
seus escritos sejam carregados de traços patriarcais e é por meio deles que podemos nos ler

386
Maria Feijó de Souza Neves, alagoinhense, utilizou-se, no início da vida de escritora de pseudônimo como
Gladys e Moreninha Bamba. Depois, passa a assinar seu nome de batismo. Ao lado de Maria Feijó citamos outra
escritora baiana Amélia Rodrigues. As duas transgrediram, porque escreveram livros de poemas em uma época
proibida, mas os respingos patriarcais permanecem, embora com a continuação dos tempos seus textos se
tornassem mais pessoais. Maria Feijó escreve sobre Alagoinhas, também sobre sentimentos pessoais, angústias,
ansiedades.
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enquanto mulheres em uma sociedade onde os discursos masculinos são ressaltados,


reduzindo-lhes a competência para assumir lugares, negando-lhes o direito de falar de si.
Logo, a visão patriarcal naturalizou a inferioridade das mulheres, deixando-as reclusas
no ambiente fechado, dentro de casa, reforçando a imagem de frágil, subordinada e incapaz de
agir sem a proteção do homem.
Segundo Maria de Fátima Berenice da Cruz (2012) “[...] é no exercício da leitura e da
escrita de textos literários que se desvela a arbitrariedade das regras impostas pelos discursos
padronizados da sociedade letrada e se constrói um modo próprio de se fazer dono da
linguagem.” Assim pensando, as estratégias de domínio e controle podem ser lidas nos
escritos de Luzia Senna através dos seus relatos de vivências com seu pai, seu avô, marido e
demais referências masculinas que lhes cercaram em seu crescimento e em sua constituição
como mulher pertencente a uma sociedade patriarcal. Luzia Senna torna-se, nesse brincar com
as palavras, dona da linguagem.
Apesar dos entraves e desafios, a mulher vem rompendo barreiras e conquistando
lugares, mas lhe foi negado o lugar da fala. Ninguém melhor que a mulher para falar de si,
posto que a visão do homem pode incorrer no risco de ser intencionalmente favorável ao que
se deseja que ela seja ou pareça ser.
Sabemos que a formação brasileira baseia-se no modelo patriarcal, onde os homens
assumem lugares de poder e às mulheres são destinados os afazeres domésticos, cabendo-lhes
lugares de mães, donas de casa e esposas dedicadas e submissas aos maridos. Partindo de uma
concepção teórica de desigualdade de gêneros, a pesquisa pauta-se nos entraves enfrentados
pelas escritoras no que tange às implicações de publicação e divulgação, sobretudo neste lugar
especial de voz que a produção literária assume.
Em meio aos avanços a construção do cânone na sociedade de maneira geral se deu
por critérios construídos pela classe dominante, formada em sua maioria por homens, branca e
pertencente à burguesia sob o ideário do patriarcado. Este fato é observável na maneira como
as produções escriturais da mulher foram encaradas e impostas, na maioria das vezes, em
condição de subalternidade mesmo em seios familiares apoiadores. (DUARTE, 1995).
E sobre as escritoras, restringidas aos papéis de filhas, mães e esposas cercadas pelo
ambiente do privado tiveram – e ainda têm – que em seus textos encontram uma válvula de
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escape revelando posicionamentos múltiplos, bem como desenovelam negociações e táticas


para imiscuir-se em outro espaço que não é seu, porém “O poder da sociedade de excluí-las é
muito forte e grande parte se propõe a negociar, construindo, para isso, uma linguagem que
lhe é concedida para falar/escrever. (ALVES, 2002, p. 237).
Escrever e falar em Literatura e mulher, bem como sobre o espaço de seus discursos
múltiplos constitui uma pratica politizada, pois envia aos arrolamentos de poder inscritos nas
práticas sociais discursivas de uma cultura que se concebeu e se ergueu a partir do olhar
masculino que arremessou a imagem da mulher no contexto contraproducente, pois o “[...]
masculino está para a norma, o transcendente, o universal, o feminino está para o desvio, o
imanente, o particular ou então o inessencial”. (SCHMIDT, 1995, p. 185).
Luzia Senna se insurge, atrevidamente, neste espaço não mais apenas privado, pois,
mesmo com todos os obstáculos conseguiu publicar livros de poemas, de crônicas e um
interessante e instigante livro de contos onde narra memórias de sua vida.
Em A estrada por onde passei a escritora não tem receio de revelar fatos onde as
marcas patriarcais são facilmente reconhecidas e, algumas vezes ainda preservadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa forma, Luzia Senna contribui para esta pesquisa de forma significante, pois por
meio de suas linhas escritas nos reportamos a discursos, realidades, conceitos, hierarquias e
principalmente como o ser mulher se dá através de contextos e conceitos históricos sobre ela.
Sua conquista configura-se em um ganho social, pois mostra o poder da mulher e do ser
humano de forma geral de vencer os obstáculos, transpor limites e atingir o antes considerado
impossível.
Quando as primeiras escritoras brasileiras começaram a publicar em meados do século
XVIII, enormes eram os obstáculos. A educação da elite feminina da época, por exemplo,
resumia-se mais em uma preparação mundana que em educação propriamente dita. Bastavam
aulas de catecismos, costurar, arte de agradar e como se compor bem e fazer reverências.
Mesmo ao longo do século XIX, apesar das mudanças ocorridas nos costumes e
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hábitos, do incentivo à abertura de escolas adequadas às meninas, da valorização da produção


literária e da escrita, no ensino que lhes era ministrado, perdurava ainda a noção de que eram
inferiores intelectualmente e, deste modo, incapazes de pensar como os meninos. Ou escrever,
podemos completar.
A mulher ao escrever estabelece uma forma diferente de ligação com o mundo ao falar
de si aos outros, propondo maneiras inovadoras de ser e estar e é isto que vemos na narrativa
lírica de Luzia Senna. Sua escrita é sinônima de possibilidade, quebra de paradigma,
subversão e exemplo para as mulheres que continuam silenciadas pelo discurso masculino. A
história de vida e luta de Luzia Senna deve ser conhecida, pois a riqueza de suas produções
engrandece a Literatura Brasileira, Baiana e Alagoinhense.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Ivia. Interfaces. Ensaios críticos sobre escritoras. Ilhéus: Editus, 200?.
CRUZ, Maria de Fátima Berenice. Leitura literária na escola. Desafios e perspectivas de um
leitor. Salavador: Eduneb, 2012,
SCHMITED, R. T. Em busca da história não contada: ou o que acontece quando o objeto
começa a falar? In: INDURSKY, Freda e CAMPOS, Maria do Carmo. (Orgs.). Discurso,
memória, identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzato, 2000.
SENNA, L. V. A estrada por onde passei. São Paulo: Scortecci, 2011.
SOARES, Mirian Kelly de Santana Santos. Vestígios patriarcais na escrita literária de Luzia
das Virgens Senna: a estrada por onde passei. Monografia de Trabalho de Conclusão de
Curso. UNEB/CAMPUS II, 2011.

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INTERESSANTE!: UMA PESQUISA SOBRE SEXUALIDADE

Ingrid Fraga387 | ingriidfraga@hotmail.com


Ms. Lisiane Gazola Santos388

INTRODUÇÃO
O presente trabalho foi elaborado a partir de um projeto de pesquisa, construído no
decorrer da disciplina Escola e Currículo, que integra a grade curricular do curso de
Pedagogia, da Universidade Luterana do Brasil, campus Guaíba/RS, no primeiro semestre, do
ano de 2015. A proposta inicial da referida disciplina foi elaborar um projeto de pesquisa que
tivesse como foco o currículo escolar. Após a construção do projeto de pesquisa iniciou-se a
etapa seguinte que consistia em ir a campo e coletar dados, ou seja, visitar uma escola pública,
conhecer sua realidade e sua organização. A problematização que conduziu este estudo foi:
“De que forma é tratada e discutida a Sexualidade nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
O mesmo foi escrito com base em referenciais teóricos sobre Currículo, Gênero e
Sexualidade, tendo como foco alunos de uma turma de 5° ano, com idades entre 10 e 12 anos,
de uma escola pública da rede Estadual de ensino, na cidade de Guaíba/RS.
O título, “Interessante!”, é um excerto da resposta de um aluno, do sexo masculino,
que retrata de forma explícita o momento de descobertas e dúvidas sobre a sexualidade, que
os pré-adolescentes, independente de sua classe social, vivem nesse momento de suas vidas.
Cumpre ressaltar que primeiramente foi feita uma análise do que os teóricos escrevem
sobre currículo, gênero e sexualidade, tendo como foco principal suas ideias de como esse
assunto é, e como deveria ser tratado dentro da instituição escolar. De acordo com Louro

387
Acadêmica do Curso de Pedagogia ULBRA Guaíba/RS.
388
Professora da disciplina Escola e Currículo, Curso de Pedagogia ULBRA Guaíba/RS.

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(2001, p.88):
Currículo, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos,
processos de avaliação constituem-se em espaços da construção das “diferenças” de
gênero, de sexualidade, de etnia, de classe. Por meio de mecanismos frequentemente
imperceptíveis e “naturalizados”, a linguagem institui e demarca lugares (não apenas
pelo ocultamento do gênero feminino ou da sexualidade homossexual, mas, também
pelas diferenciadas adjetivações que são atribuídas aos sujeitos, pelo uso ou rejeição
do diminutivo, pela escolha dos verbos, pelas associações e pelas analogias feitas em
relação a determinadas qualidades, atributos ou comportamentos). O currículo “fala”
de alguns sujeitos e ignora outros; conta histórias e saberes que, embora parciais, se
pretendem universais; as ciências, as artes e as teorias trazem a voz daqueles que se
auto atribuem a capacidade de eleger as perguntas e construir as respostas que,
supostamente, são de interesse de toda a sociedade.

Partindo da compreensão de que a escola, seus espaços e suas práticas produzem um


“currículo” explícito e um “currículo” oculto, organizou-se o material para a coleta de dados –
os roteiros de entrevistas. Após a obtenção da autorização da Direção da Escola, a pesquisa
foi feita com alunos, levando em conta alguns questionamentos sobre o assunto. As respostas
foram muito semelhantes entre alguns, mas também com pouco entendimento de outros. Com
a análise desse material, foram destacados dois tópicos, o primeiro reunindo as respostas de
alunos que demonstram uma certa repulsa pela homossexualidade – "Não gosto disso!" - O
Retrato de uma cultura arcaica” e o segundo, enfocando a aceitação e o respeito pelas
diferentes formas de viver a sexualidade - "Se eles gostam, têm que ficar juntos" - Um
olhar não tão frágil”.

"NÃO GOSTO DISSO!" - O RETRATO DE UMA CULTURA ARCAICA

Embora hoje já ser um assunto comum, para muitos a homossexualidade é um tabu. O


tema gera muita polêmica. Pessoas que se dizem "não preconceituosas" acabam assumindo,
mesmo sem querer, o seu repúdio ao homossexualismo, seja em frases ocultas, atitude e até
mesmo comentários maldosos; às vezes não próprios e sim de seus filhos.
Cada vez mais comum nas mídias, em geral, os debates sobre o tema, causam revolta,
tanto da parte defensora (homossexuais e simpatizantes) quanto do ataque (homofóbicos). A
parte que ataca semeia o ódio e o preconceito, gerando revolta na parte que defende. O
assunto é tão controverso que chega aos lares com informações equivocadas. Os pais passam

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suas opiniões para seus filhos, gerando uma ideia de "o certo e o errado". "o bonito e o feio",
"normal e anormal". Mas o que precisaria mesmo seria de esclarecimento sobre sexualidade,
pois muitas vezes esse padrão imposto de maneira arcaica e preconceituosa, oprime possíveis
vontades das crianças, seja em sua opção sexual ou até mesmo de identidade de gênero.
O dia-a-dia é muito cansativo e corrido, os pais trabalham muito, na maioria das vezes,
e não têm muito tempo para sentar e conversar com seus filhos sobre sexualidade, sobre essa
fase de descobertas. Mesmo quando sobra tempo não o fazem, pois acham seus filhos
"pequenos demais" para falar sobre sexualidade. Nas escolas o assunto é abordado de uma
forma básica, resumida e completamente teórica e às vezes o tema nem pode ser abordado,
por represália dos próprios pais somado a um currículo atrasado sobre o tema. Com essa falta
de informação, excesso de preconceitos e mal-estar sobre o tema, acabamos gerando jovens
imaturos, com pouco conhecimento e, na maioria das vezes, reproduzindo os pensamentos -
de seus pais, avós e outras gerações da família.
Durante as análises dos dados obtidos durante a pesquisa, constatamos que a grande
maioria dos alunos afirma não conversar com os pais sobre relacionamentos, sexualidade e
sexo. De uma turma de 18 alunos, apenas 4 disseram conversar sobre tudo com seus pais.
Quando esses alunos foram questionados sobre casais homossexuais, as respostas foram, em
maioria, com tom de preconceito, retratando, possivelmente a posição demonstrada pelas
famílias. Respostas como: "Eu não acho bonito, mas se eles se gostam tudo bem", "Eu acho
errado", "Eu não gosto disso", "Eu não gosto de homem com homem". Dentre as respostas, a
que mais se destacou foi a de um menino de 10 anos e que dá título ao artigo: “Interessante”.
Expressando certa surpresa por estar falando sobre o assunto e principalmente por estar
tratando sobre esta temática, no ambiente escolar. Sobre a abordagem de temas que envolvam
gênero, sexualidade na escola, Louro (2001) acrescenta:
Uma especial vigilância é dedicada, no espaço escolar, para os processos de
constituição do gênero e da sexualidade. O modo como socialmente vivemos nossa
masculinidade ou feminilidade, ou seja, nossa identidade de gênero, e “a forma
cultural pela qual vivemos nossos desejos e prazeres corporais” (Weeks, apud, 1996,
p. 76), ou seja, nossa identidade sexual, são alvos fundamentais na normalização
empreendida pela instituição escolar. O processo de ocultamento de determinados
sujeitos pode ser flagrantemente ilustrado pelo silenciamento da escola em relação
aos/às homossexuais. No entanto, a pretensa invisibilidade dos/as homossexuais no
espaço institucional pode se constituir, contraditoriamente, numa das mais terríveis
evidências da implicação da escola no processo de construção das diferenças. De

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certa forma, o silenciamento parece ter por fim “eliminar” esses sujeitos, ou pelo
menos, evitar que os alunos e as alunas “normais” os/as conheçam e possam deseja-
los/as. A negação e a ausência aparecem, nesse caso, como uma espécie de garantia
da norma”. (LOURO, 2001, p.89)

Através das perguntas também podemos perceber que os meninos se retraem mais do
que as meninas quando o assunto é relacionamento heterossexuais ou homossexuais e que
seus pensamentos são bem diferentes. As meninas tendem a encarar diferentes tipos de
relacionamentos com mais naturalidade.
A sexualidade está estampada diariamente na vida dos sujeitos, pois ela não se
constitui apenas na parte biológica, mas também aspectos históricos e culturais criam valores,
atitudes e normas. A escola agrega valores aos seus alunos e junto com os educadores e com o
apoio da família espera-se abordar que a sexualidade deve agir em prol deles e não contra
eles, a sexualidade deve ser abordada de maneira espontânea e natural. A escola não pode só
ditar o que é certo e errado, deve também ouvir esses jovens, saber o que eles pensam,
responder seus questionamentos de vida – que e normal nessa época “pre-adolescência”.
Conforme afirmou Louro:
Quem tem primazia nesse processo? Que instâncias e espaços sociais têm o poder de
decidir e inscrever em nossos corpos as marcas e as normas que devem ser seguidas?
Qualquer resposta cabal e definitiva a tal questão será ingênua e inadequada. A
construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens
e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito
ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais. É um
processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições
legais e médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo
constitutivo. Por muito tempo, suas orientações ensinamentos pareceram absolutos,
quase soberanos. Mas como esquecer, especialmente, na contemporaneidade a
sedução e o impacto da mídia, das novelas e da publicidade, das revistas e da
internet, dos sites de relacionamentos e dos blogs? (LOURO, 2008).

A diferença é sempre constituída a partir de um dado lugar que se torna como centro e
como referência para o indivíduo. Consideramos a escola como um dos principais lugares a
serem vistos como referência e suporte para o desenvolvimento do sujeito. Pois além do aluno
passar cinco horas, no mínimo, do seu dia dentro do ambiente escolar, é também o ambiente o
qual o mesmo está frequentando – ou deveria – desde os 6 anos de idade (ou menos). Nele o
jovem vive, muitas vezes, suas primeiras experiências, lembranças que se perpetuarão pelo
resto da sua vida, por exemplo, como aprender a trabalhar em grupo, a interagir com seus
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diferentes, relações de “afeto” com pessoas fora do contexto familiar, etc. abrangendo
processos sociais, políticos, econômicos e culturais. É importante observar como o meio
escolar tem lidado com estas questões, e se tem possibilitado a compreensão da identidade de
cada indivíduo, abordando com naturalidade as diferenças.
É essencial que a escola e o currículo escolar direcionem o foco para este processo,
pois na fase de descoberta da sexualidade e de se descobrir, surgem as dúvidas, as incertezas,
os medos e a vergonha. Desta forma se faz necessário o diálogo, o trabalho conjunto
envolvendo escola e famílias buscando principalmente o exercício da tolerância e do respeito.
Com essa pesquisa, podemos perceber a ausência de diálogo e compreensão, e os
efeitos que esse "vazio" causa na formação dos meninos e das meninas; restringindo os
espaços de discussão da sexualidade.

"SE ELES GOSTAM, TÊM QUE FICAR JUNTOS" - UM OLHAR NÃO TÃO
FRÁGIL

No decorrer das análises das entrevistas, ficou clara a diferença de posicionamento em


relação a questões sobre a homossexualidade, das meninas em comparação ao posicionamento
dos meninos e a naturalidade das meninas ao debater o assunto, mostrando-se interessadas e
abertas ao diálogo. Com convicção em suas opiniões e dispostas a receberem informações, as
meninas se mostraram desinibidas e confortáveis ao falar sobre sexualidade. Mostrando a
figura da menina do século XXI, que diferente de suas mães e avós, desfrutam da sua voz em
todos os campos do debate.
Em transição da infância para adolescência, boa parte das entrevistadas ainda vive o
universo "brincar", que está diretamente ligado ao conflito de descobertas. Trocam
informações em rodas de conversas com suas amigas mais próximas e da mesma idade (ou de
no máximo um ano de diferença). Destaca-se o fato que nem todas têm um relacionamento
aberto com seus pais em assuntos gerais, principalmente sobre sexualidade, relacionamento e
sexo. Sentem vergonha de expor suas dúvidas, curiosidades e sentimentos; nos levando a
refletir sobre as influências da cultura machista e conservadora que representa a menina como
a "recatada" desde criança. O diálogo entre pais e filhas é uma barreira firme e extensa, que
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em algumas famílias é praticamente intransponível. O desconforto dos pais com o assunto,


que não é visto como natural e simples, parte do processo de desenvolvimento do sujeito,
causa a ausência da família na formação como pessoa da menina, afetando a relação de
vínculo de diálogo com os pais, muitas vezes, para o resto da vida.
Sobre as diferenças das respostas apresentadas por meninos e meninas é produtivo
analisarmos o conceito de gênero apresentado por Silva (2011, p.105):

O conceito de gênero foi criado precisamente para enfatizar o fato de que as


identidades masculinas e feminina são histórica e socialmente produzidas. É
suficiente observar como sua definição varia ao longo da história e entre as
diferentes sociedades para compreender que elas não têm nada de fixo, de essencial
ou de natural. [...] a teoria queer estende a hipótese da construção social para o
domínio da sexualidade. Não são apenas as formas pelas quais aparecemos,
pensamos, agimos como homem ou como mulher – nossa identidade de gênero –
que são socialmente construídas, mas também as formas pelas quais vivemos nossa
sexualidade.

Sobre o assunto “homossexualidade”, a maioria dos alunos entrevistados não


demonstrou preconceito ou receio de expor o seu pensamento; cientes do que significava o
termo. Respostas como: "Acho que são casais normais", "Acho normal", dentre outras, foram
as respostas predominantes entre as entrevistadas do sexo feminino. Outro posicionamento foi
apresentado por uma menina de 10 anos que respondeu da seguinte forma - "Eu não acho
muito bonito, mas eu não tenho preconceito." - Mesmo não achando algo "bonito ou normal"
ela reafirmou que não havia preconceito de sua parte, mostrando que não é necessário gostar,
mas essencial respeitar.
O ‘achismo’ sobre o assunto “casais do mesmo sexo” é um inimigo que anda ao lado
do conservadorismo, muitas vezes naturalizado e ensinado as crianças de forma
preconceituosa. Discursos prontos do tipo: “Homossexual é nojento!”, “Tudo bem ser gay,
mas na rua não!”, “Não tenho problemas, até tenho amigos gays, mas..” , “Fulano joga
como bichinha.” , entre outros, que são citados com tom de ódio transmitindo para os jovens
aquela intolerância à forma “não-hetero” do amor e diretamente criando novos
preconceituosos, que irão semear os absurdos ouvidos em casa no ambiente escolar – no seu
meio social – e futuramente nas festas, ambientes de trabalho e etc. Muitas vezes, filhos de
criação homofóbica e conversadora, descontam o ódio dos pais em colegas que não se
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encaixam no “padrão” ensinado em casa e agridem os mesmo verbalmente – direta e


indiretamente – e até mesmo fisicamente, levando a vítima a sequelas físicas e psicológicas.

Conforme afirmou Louro:

Aproximamos, portanto, gênero e sexualidade à medida que assumimos que ambos


são construídos culturalmente e, assim sendo, carregam a historicidade e o caráter
provisório das culturas. Aprendemos a ser um sujeito de gênero feminino ou
masculino, aprendemos a ser heterossexuais ou bissexuais, a expressar nossos
desejos através de determinados comportamentos, gestos, etc., em muitas instâncias
- na família, na escola, através do cinema, da televisão, das revistas, da internet,
através das pregações religiosas ou da pregação da mídia ou ainda da medicina.
Enfim. uma porção de espaços e instâncias exercitam pedagogias culturais ou, para o
que nos interessa nesse momento, exercitam pedagogias de gênero e sexualidade
(LOURO, 2011)

As respostas das meninas participantes da pesquisa se mostraram diferentes opiniões


demonstrando que não têm vergonha de expor o jeito que se é, um futuro onde o diálogo será
possível, sem estereótipo, sem divisões, um futuro de mais respeito.
Através da pesquisa e observação em campo, baseada em estudos feitos por Guacira
Lopes Louro, podemos perceber que apesar de estarmos em pleno século XXI o tema
Sexualidade ainda gera conflitos e polêmicas. Para muitos o tema não deve ser abordado, pois
segundo os pais, o tema causa constrangimento. Em uma sociedade hegemonicamente
masculina, branca, heterossexual e cristã, têm sido nomeados como "diferentes" todos aqueles
que não estão dentro deste padrão. O reflexo disso se encontra nas salas de aula: crianças
oprimidas e intimidadas com o assunto, sem sequer saber o significado da palavra
homossexual.
Meninos com o pensamento machista - que pensam que a homossexualidade é apenas
entre homens - e algumas meninas com o pensamento não favorável, porém semeando o
respeito, mostram o quadro de diferente maturidade sexual. O olhar conservador da maioria
dos "contras" é fruto de uma criação onde o preconceito e a intolerância (seja ela de cor,
religião ou opção sexual) ainda predominam.
Porém estamos caminhando rumo às mudanças. Com base nas ideias de Louro:
Homens e mulheres não se constituem, apenas, por suas identidades de gênero, mas também
por suas identidades de classe, raça, de etnia, de sexualidade, nacionalidade, idade..." (Louro,
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1997).
A escola, como formadora principal de pessoas, deve desde os anos iniciais intervir
em atitudes, discursos e agressões, seja ela de qualquer punho preconceituoso e/ou opressor.
Deve ser o primeiro contato, formal, das crianças com “diferente” e mostrar que esse não é
menos ou mais que ela e sim igual que ela deve respeito, assim como deve ser respeitada. As
instituições de ensino, tem a obrigação de promover o discurso e as práticas diversidade. A
crucialidade do debate de gêneros e sexualidade no ensino fundamental, é uma questão de
sociedade como um todo, inclusão e corte de preconceito, não apenas sexual ou de gênero,
mas de etnia, crença, nacionalidade.
A sexualidade é bem mais que o exposto aos olhos da sociedade. Vai além das regras
impostas por uma classe dominante. Homens e mulheres são muitas outras coisas,
independente da sua opção sexual, raça, crença, e é primordial que haja respeito a todos. A
inclusão do referido tema no currículo dos anos iniciais do Ensino Fundamental é um grande
passo para uma reforma na sociedade com uma visão renovada e sem restrições, sem padrões
- seja de beleza, sexual, familiar -, uma sociedade sem preconceitos de nenhuma forma.
Para finalizar é importante destacar que que este trabalho retrata os estudos, as
reflexões e as discussões iniciais construídas por uma aluna do 1º semestre, do curso de
Pedagogia, as leituras sobre gênero, currículo e sexualidade possibilitaram um outro olhar
sobre as práticas escolares e as relações sociais. A pesquisa configurou-se como uma
ferramenta válida e produtiva para a construção de novas aprendizagens, constituindo um
espaço importante para a trocas de conhecimento e aprimoramento acadêmico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOURO, Guacira L. O currículo e as diferenças sexuais e de gênero. In: COSTA, Marisa V.


(org.). O currículo nos limiares do contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LOURO, Guacira L. Gênero e Sexualidade: Pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, V.
19, n. 2, (56), maio/ago, 2008.
LOURO, Guacira L. Educação e docência: diversidade, gênero e sexualidade. Revista
Brasileira de Pesquisa sobre Formação Docente. Belo Horizonte,v. 03, n. 04, p. 62-70,
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jan./jul. 2011. Disponível em: http://formacaodocente.autenticaeditora.com.br. Acesso em: 02


jun. 2015.
SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias de
currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

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JUVENTUDES E DIVERSIDADE DE GÊNERO NO COTIDIANO ESCOLAR

Francisca Mayane Benvindo dos Santos¹ | mayanebenvindo@yahoo.com.br


Francisca Genifer Andrade de Sousa² | geniferandrade@yahoo.com.br
Lia Machado Fiuza Fialho³ | lia_fialho@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

Esse trabalho apresenta e debate percepções de jovens alunos do Ensino Médio de


uma escola da rede estadual da cidade de Fortaleza- CE no tocante a temática diversidade de
gênero e orientação sexual. Temos por objetivo discutir a diversidade no ambiente
educacional, enfatizando as relações sociais dos jovens alunos. Através das narrativas dos
jovens envolvidos buscamos conhecer como a escola e principalmente os docentes da
instituição lócus trabalham com os assuntos relacionados à sexualidade. Temos ainda, o
intuito de compreender como e se são realizados no espaço formativo ações de enfrentamento
às manifestações de discriminações, machismos e homofobias no cotidiano escolar. Assim,
esta pesquisa apoia-se no estudo de caso de jovens estudantes e parte da seguinte indagação:
Quais as percepções dos jovens alunos acerca da temática diversidade de gênero e orientação
sexual no contexto escolar?

Consideramos relevante investigar e problematizar a diversidade de gênero no


cotidiano escolar por ser um local de convívio e socialização dos adolescentes sujeitos da
pesquisa o que nos possibilita a aproximação dos jovens alunos através de seus relatos sobre

¹ Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) –Bolsista de Iniciação Científica –
IC/FUNCAP
² Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) –Bolsista de Monitoria Acadêmica
PROMAC/UECE
³ Professora adjunta do Programa de Pós Graduação da Universidade Estadual do Ceará (UECE)

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os conhecimentos e experiências vivenciadas no cotidiano escolar referente à diversidade de


gênero. A escolha pela abordagem do segmento juvenil é por considerarmos esta fase, um
período da vida em que as identidades estão em constantes transformações e descobertas além
de ser nessa etapa que nos deparamos com uma considerável diversidade de estilos, crenças, e
identidades sexuais.
A consolidação da participação juvenil concomitantemente ao reconhecimento dessa
faixa etária é de grande valia para o desenvolvimento da atual e futura sociedade. Buscamos
assim, verificar como a diversidade de gênero encontra-se inserida no cotidiano escolar e se
essa é considerada e problematizada conforme se faz necessário para a formação dos
envolvidos. Fundamentamos este estudo, com artigos científicos e a utilização da legislação,
com o embasamento da Constituição Federal de 1988, Lei de Diretrizes e Bases da Educação
nº 9394/96, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990),
Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) apresentando a diversidade de gênero como um
tema transversal na Educação.

METODOLOGIA

Para a coleta dos dados e informações a serem estudados, utilizamos como


procedimento metodológico, a história oral temática, na qual por meio da evidência oral se
pode conhecer o objeto estudado mais penetrante para a história (THOMPSON, 1992). Essa
ferramenta de pesquisa nos possibilita assim, revelar de fato, quais as percepções de jovens
estudantes do Ensino Médio de idades entre 16 e 18 anos, acerca da temática diversidade de
gênero e orientação sexual no cotidiano da escola. Trata-se de um estudo de caráter
qualitativo que nos oportuniza conhecer relatos e vivências de jovens estudantes que, muitas
vezes, não são considerados nas decisões voltadas para eles próprios que são os principais
sujeitos da prática educativa. É por meio das percepções desses jovens que procuramos
identificar como o assunto é abordado e quais as ações realizadas, salientando que o assunto
muitas vezes é negligenciado e não debatido no âmbito da educação formal.
As entrevistas semiestruturadas englobaram os questionamentos seguintes: 1-Quais
as disciplinas que já foram abordadas as questões de orientação sexual e diversidade de

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gênero? 2-A seu ver, há necessidade de maiores investimentos para que sejam discutidas as
questões da diversidade de gênero e orientação sexual dentro da escola? 3- Você já presenciou
alguma situação de discriminação, homofobia ou machismo dentro da escola?
Realizamos um levantamento bibliográfico com fundamentação em artigos
científicos e documentos públicos concernentes aos direitos humanos e educação. O lócus da
pesquisa foi uma escola de Ensino Médio da Rede Estadual de ensino da cidade de Fortaleza-
CE localizada no Bairro Parangaba. Inicialmente consultamos a diretora da instituição, que
por questões éticas optamos por não identificá-la. Posteriormente, apresentamos o objetivo da
pesquisa, e mediante a autorização da diretora realizamos as entrevistas com três jovens
alunos, um do terceiro ano do Ensino Médio de 17 anos de idade que aqui o identificaremos
por jovem (A), outro do segundo ano do Ensino Médio de 16 anos de idade que
identificaremos como jovem (B) e uma jovem estudante do terceiro ano do Ensino Médio de
18 anos de idade que chamaremos Jovem (C).
Todas as entrevistas foram gravadas, transcritas, textualizadas e validadas, conforme
proposto pela metodologia de pesquisa em história oral temática. Ambas as narrativas, depois
de textualizadas fundamentam e apoiam esse estudo, na medida em que, realizando a análise
do material coletado, são esses discursos os responsáveis por encaminhar as discussões que
sucedem. O local selecionado para realizar as entrevistas foi a coordenação pedagógica,
gentilmente cedida pela instituição.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O termo “gênero” vem se modificando ao longo do tempo, tornando-se uma questão


de ordem social que ultrapassa a limitação genética da divisão de gêneros apenas nos aspectos
singulares; feminino e masculino. No Brasil essa terminologia só passou a ser utilizada e ter
evidência no contexto do movimento feminista no ano de 1970. As reivindicações de
diferentes movimentos, principalmente da população LGBT e das mulheres, foram pautadas
pela busca do respeito mútuo e igualdade de direitos. Em uma sociedade fortemente marcada
pelo machismo, em que o homem é tido como o “provedor” do lar e o detentor do poder, as
manifestações feministas surgiram em meio às influências internacionais, em prol de

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transformações na sociedade, então, posteriormente as questões concernentes ao gênero


passam a ser estudadas no campo das ciências sociais, configurando assim, em avanços
significativos no país.
Para melhor compreensão da temática desse estudo, consideramos ser necessário
primeiramente, o entendimento dos seguintes conceitos: identidade de gênero e orientação
sexual. Podemos compreender a identidade de gênero como o modo que os indivíduos se
percebem independente do seu sexo de origem, ou seja, independente dos fatores biológicos.
A construção da identidade acontece a partir de seu próprio reconhecimento. Desta maneira, a
diversidade de gênero é considerada uma construção social, conforme exposto:
Limitar o vasto campo da sexualidade humana a apenas dois universos (masculino e
feminino), é estigmatizar e arraigar preconceito, já que a dimensão da sexualidade
humana é vasta e complexa. Embora essa crença limítrofe seja dominante na
sociedade, não serve como modelo, haja vista que há tantas maneiras de ser homem
ou mulher, e isso não está ligado à genitália externa da pessoa. Há o aspecto
psicológico, em que a pessoa se sente pertencente a este ou aquele sexo, ao que é
chamado de sexo psicossocial (Orientação Curricular para a Diversidade sexual, p.
24).
A orientação sexual dos indivíduos é direcionada a atração e as relações, sejam
sexuais, afetivas, dentre outras. Os termos supracitados se configuram em sociais e plurais,
pelo fato de as escolhas individuais poderem ser modificadas a depender da identificação e
reconhecimento dos indivíduos. Desta forma, evidenciamos a relevância do estudo proposto
ser refletido e discutido a partir da visão social e não meramente genética. Pois sexualidade e
gênero estão imbricados na sociedade.
A sexualidade é algo natural e inerente ao ser, surge desde a fase intra-uterina,
perpassa o nascimento e nos acompanha até a morte. Sua manifestação é singular em
cada indivíduo e exerce grande importância no desenvolvimento biológico, social e
humano do ser, envolvendo de modo efetivo a psique das pessoas. Nesse sentido,
tolher as manifestações desta vai contra as Declaração Universal dos Direitos
Humanos, na qual se assegura que todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos e que devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade. (Orientações Curriculares para Educação em Direitos Humanos, Gênero
e Diversidade Sexual. p. 26).

No que tange às questões condizentes ao corpo e sexualidade no cotidiano da escola,


estes sempre estiveram presentes, embora durante muito tempo tenha sido considerados uma
posição de educação disciplinatória, em que os comportamentos eram padronizados,
inculcando nos alunos a separação do que é considerado feminino e masculino, formando
divisões por sexo decorrente das definições do que seria papel social do homem e o papel
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social da mulher. Os comportamentos femininos durante um longo período, em todos os


ambientes, principalmente no escolar, eram considerados exemplares apenas quando havia
passividade, o ideal seria o padrão em que as meninas pouco opinassem, eram reprimidas
tanto a voz como a consciência corporal.
A escola apenas configurava-se no retrato da sociedade, negando o surgimento de
questionamentos, transformações e mudanças de paradigmas. Nesta perspectiva, vale
ressaltar, que a preocupação em se discutir e estudar orientação sexual e diversidade de
gênero na Educação Básica é considerado recente. O espaço escolar, por se tratar de um local
de convívio e interação social, torna-se ambiente privilegiado para se discutir diversidade
sexual e de gênero, pois, em seu cotidiano pode-se construir os valores éticos de uma
população e o respeito à diversidade que permeia a vida social.
É relevante citarmos também a mídia, como uma das reprodutoras de concepções e
atitudes machistas entre os jovens, vem colocando a mulher em posição de objeto a ser
desejado e possuído pelo sexo oposto, fator que gera preocupações, pois, as mulheres ainda
são destacadas pelos seus atributos físicos em detrimento de suas potencialidades, como a
capacidade intelectual, por exemplo.
A menção à diversidade de gênero encontra-se em leis especificas, programas e
ações visando à garantia dos direitos humanos das mulheres e as pessoas LGBT. Focando a
proteção das mulheres temos a lei Maria da penha (Nº. 11.340/06) que visa estabelecer a
punição dos agressores e a proteção das mulheres vitimadas de violência, principalmente a
doméstica. Referente à educação, temos os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) que trás
em seus temas transversais as questões de sexualidade e gênero. Atualmente, gênero e
sexualidade devem passar a ser incluídos no currículo das escolas brasileiras, como segue em
exposto:
Não por acaso, é muito recente a inclusão das questões de gênero, identidade de
gênero e orientação sexual na educação brasileira a partir de uma perspectiva de
valorização da igualdade de gênero e de promoção de uma cultura de respeito e
reconhecimento da diversidade sexual. Uma perspectiva que coloca sob suspeita as
concepções curriculares hegemônicas e visa a transformar rotinas escolares, e a
problematizar lógicas reprodutoras de desigualdades e opressão (SECAD, MEC,
2007).

Os tabus sobre sexualidade e diversidade de gênero ainda são muitos. O assunto é

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pouco versado nas famílias dos jovens e adolescentes e no ambiente escolar muitas vezes, a
sexualidade é associada apenas ao ato sexual em si, passando a ser abordada na escola sem
maiores esclarecimentos, conforme explicitado pelos cadernos SECAD/MEC, 2007. As
políticas educacionais sobre sexualidade muito se restringem à reprodução humana e à saúde
sexual, embora estes sejam importantes, o estudo da sexualidade na escola deve ser ampliado
e levado a uma visão humanista através da diversidade e dos direitos humanos. A escola é um
lugar de socialização, onde as interações estabelecidas nestes espaços devem ser pautadas
pelo respeito às diversidades existentes, sendo uma Educação em Direitos Humanos.
A educação em direitos humanos, no currículo da educação básica, deve ser um dos
eixos norteadores de todo o currículo, não devendo ser tratado como uma disciplina,
pois é de responsabilidade de todas as áreas de conhecimento, por estar inserida na
parte diversificada do currículo. Trata-se muito mais de colocar os direitos humanos a
serviço da educação, como roteiro para ação educativa que produza conhecimento,
que conduza à emancipação das pessoas, a criticidade e que repudie todas as formas
de violência. (Orientações Curriculares para Educação em Direitos Humanos, Gênero
e Diversidade Sexual. p.5).

Para que as questões de gênero estejam presentes no cotidiano escolar a equipe


docente e a gestão tem o auxilio e a base dos Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos: apresentação dos temas transversais MEC (1998) que em seus cadernos aborda
temas transversais e propõe debates relacionados à orientação sexual e o enfrentamento de
discriminações, ensejando que independentemente das áreas do conhecimento, a temática seja
discutida. Em relação à escola lócus desta pesquisa, torna-se possível averiguar a partir do
relatado do jovem (A) como é trabalhada a questão da diversidade de gênero e orientação
sexual em sua sala de aula:
“O que eu vejo hoje em dia é que se trabalha muito a sexualidade em relação à
sociologia, muitos professores abordam o tema e também outros professores que não
são dá área. Eu posso citar a Geografia, ocorreu uma aula muito interessante que o
professor abordou muito o tema porque a diversidade da sala é muito grande, tinha
muitos gêneros. Então eu acho que a abordagem hoje no colégio está sendo feita por
várias matérias.”

Apesar dos temas relacionados à sexualidade e gênero estarem sendo discutidos em


sala de aula, os outros espaços de socialização da escola, a exemplo do pátio, são
desencadeadas ações de discriminação contra os alunos homossexuais e transexuais. Como
percebemos no relato proferido pela aluna (C):
“Já, aqui na escola tem muitos homossexuais (não sei se você percebeu isso), mas

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sempre tem aquela pessoa que não aceita e usa aqueles termos linguísticos populares
“veado e não sei o quê” já vi brigas já. Aqui na escola tem um travesti no começo
para aceitarem ele aqui foi muito complicado, depois no meio do ano que ele
começou a conversar com as pessoas e eu via que era muito difícil pra ele. Para as
pessoas aceitarem a opção dele.”

Há uma forte incidência dos jovens transexuais, homossexuais dentre outros que, por
não se enquadrarem nas orientações sexuais consideradas “normais” socialmente, desistem da
escolarização (ARANTES, 2015). Esse fato decorre principalmente da falta de aceitação e até
conhecimento dos outros alunos e da equipe escolar no geral, o que ocasiona o progressivo
afastamento desses jovens do direito à Educação.
A Lei n 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), em seu Artigo
26, inciso 9 nos apresenta a prevenção de violência e da preocupação com a elaboração de
materiais de ensino que sejam utilizados de modo a colaborar com a prevenção da violência.
Conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de
violência contra a criança e o adolescente serão incluídos, como temas transversais,
nos currículos escolares de que trata o caput deste artigo, tendo como diretriz a Lei n
8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do adolescente), observada a
produção e distribuição de material didático adequado. (Incluído pela Lei n 13.010, de
2014).

A equipe escolar precisa considerar as experiências e as diversidades presentes em


seu interior, bem como escutar as opiniões dos jovens no processo de ensino e aprendizagem.
O jovem (A) relata seu pensamento sobre a discriminação da seguinte maneira:
“Há vários casos, por que as pessoas não lidam com as formas de sexualidade tão
explicitas hoje em dia, às vezes tem aqueles grupinhos que insistem em ter
discriminação com outros gêneros é a aceitação que está sendo mais difícil. Eu acho
que talvez seja por causa da forma que isso é abordado, a meu ver as pessoas tem que
mudar muito o pensamento delas, a gente tem que abranger mais esse tema.”

É notória a partir do discurso anterior, a real necessidade de maiores investimentos


rumo à abordagem do assunto. É fato que a falta de informação está presente em muitas destas
atitudes, que pouco a pouco, foram enraizadas na sociedade e vem utilizando fortemente a
escola como produtora e reprodutora de discriminações. Com base na pesquisa realizada, é
sugerida a maior participação juvenil nessas questões, pois ao se falar em sexualidade as
pessoas ainda são receosas em dialogar com os adolescentes sobre o assunto.

“A gente poderia focar no público mais jovem, sendo que ainda existe o receio de que as

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pessoas mais jovens não despertam tanto ainda a sexualidade, mas acredito que o pensamento
deve começar a partir da nossa própria casa sendo que a escola estaria mostrando para as
pessoas aquilo que realmente é cotidiano, mas em relação aos investimentos ainda está em
falta.”

Outra questão a ser abordada é a ênfase no ensino de gênero apenas mencionando os


aspectos biológicos, caminhando rumo ao afastamento de discussões no campo social e de
orientações sexuais diversificadas. No discurso da jovem (C) sobre quais as disciplinas que
abordam a diversidade de gênero e orientação sexual, percebemos a falta de uma abordagem
mais ampla:
“Tem a disciplina de Biologia, nas aulas de genética a gente conversa muito sobre
isso, os tipos de doenças transmitidas sexualmente à diferença do sexo feminino e
masculino.”

A partir desse relato percebemos que um aspecto de grande relevância é trabalhado


na sala de aula, que é a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, e as diferenças dos
sexos masculino e feminino, porem é deixado de lado outros assuntos não menos importantes,
como a diversidade de gênero e de orientações sexuais. É importante que as escolas, ao
abordarem as questões de gênero e sexualidade não se limitem aos conceitos do campo
biológico, mas que se utilize das próprias interações sociais e das novas formações de
identidade, que vão se modificando. Mesmo que a disciplina seja da área das ciências
biológicas, o docente precisa guiar-se pelos direitos humanos, sem isto, a concepção dos
estudantes torna-se limitada, pois, quando existe falta de conhecimentos sobre o assunto, os
estereótipos e preconceitos são reforçados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desse trabalho foi conhecer as concepções dos jovens estudantes do


Ensino Médio acerca da temática diversidade de gênero e orientação sexual. Diante do que foi
abordado, discutido e problematizado, concluímos que os temas concernentes ao gênero são
amplos e relevantes, ensejando assim, uma maior atenção às identidades, diversidades e
orientações sexuais dentro do ambiente escolar. Na perspectiva científica, verificamos que a
diversidade de gênero estar a cada momento se modificando, o que nos conduz a uma
percepção social pautada nos direitos humanos e respeito mútuo às diversidades existentes na
sociedade. No que tange às práticas educativas do cotidiano escolar, este que se configura

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como espaço de socialização e não se limita ao ensino específico das disciplinas. É necessário
ultrapassar barreiras e tabus que permeiam as famílias, comunidade e sociedade, denotando o
valor da escola como um lócus de transformações e não somente reprodução de ideais e
concepções.
Através dos discursos proferidos pelos alunos do Ensino Médio, verificamos que a
instituição de ensino necessita de ações direcionadas ao combate às discriminações de gênero,
pois, evidenciamos que no cotidiano escolar foram presenciados momentos de desrespeito às
diferenças, principalmente entre jovens homossexuais e transexuais. Também percebemos que
os jovens possuem grande potencial reflexivo e uma visão de mundo crítica e reflexiva. A
equipe escolar, e principalmente os docentes necessitam se atentar ao trato e ações no que
concerne à diversidade de gênero, para que assim, possamos ver na prática, uma interação
social positiva de respeito e combate às práticas discriminativas de homofobia, machismo,
dentre outros males que assolam a sociedade brasileira.
Os resultados evidenciaram ainda, que apesar de a escola não possuir ações de
combate a todas as formas de discriminação, a diversidade de gêneros encontrada na
sociedade e de a temática ser pouco abordada nas aulas por conta da limitação em se deter aos
conteúdos curriculares, os alunos demonstraram conhecimento e preocupação em discutir a
temática, ensejando assim, que medidas sejam tomadas na escola, como sugerido por uma das
entrevistadas. A escola deve estar atenta para as diferentes manifestações dos seus discentes,
sejam estas coletivas ou individuais, pois, para que sejam elaboradas e efetivadas orientações
pautadas nos direitos humanos, é de grande valia se trabalhar com o contato direto com os
alunos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANTES, Fábio. Gênero e diversidade sexual nas escolas: Uma questão de direitos
humanos. Carta Capital. Jul. 2015. Disponível em: <https//:
cartacapital.com.br/sociedadegêneroediversidadesexual-nas-escolas-uma-questão-de-direitos-
humanos-6727html>. Acesso em: 15. Ago. 2015.
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Ministério de Educação/Câmara

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de Educação Básica CNE/CEB nº:5/2011.


LEI FEDERAL 9394/96 Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB. Diário Oficial da
União de 23 de dezembro de 1996.
LEI FEDERAL Nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e Adolescente) Diário Oficial da União.
de 16.7.1990.
LEI FEDERAL Nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha) Diário Oficial da União.de 08.08.2006.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos: apresentação dos temas transversais / Secretaria de Educação Fundamental. –
Brasília: MEC/SEF, 1998.
PARÂMETROS Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural: orientação sexual.
Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. 3ª ed. Brasília, 2001.
Secad/MEC. Gênero e diversidade sexual na escola: Reconhecer as diferenças e superar
preconceitos. Ministério da Educação. Brasília. 2007.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD. Inserido em:
http://portal.mec.gov.br/secad Acesso em 26 set 2015.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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LEITURA E MAPEAMENTO COGNITIVO NAS RELAÇÕES DE GÊNERO

Gustavo Mendes Oliveira389 | gusstavomendess@gmail.com


Francisca Cinthia Oliveira Nascimento390
Maria Iracema Pinho de Sousa391

INTRODUÇÃO
Ao observar a educação nos dias atuais notamos um crescimento gradativo com
relação às décadas passadas. Libâneo (1998, p.18) afirma que “as transformações
contemporâneas contribuíram para consolidar o entendimento da educação como um
fenômeno plurifacetado” alcançando diversas faces seja no trabalho, na rua, na família, na
mídia, na escola, pois em todos esses aspectos ocorre a transmissão de saberes.
Entende-se por educação a “capacidade de humanizar o homem e torná-lo emancipado
para exercer com cidadania seus direitos e deveres” (ORTEGA & SANTIAGO; 2009, p.1),
desse modo, é visto a necessidade de independência do ser humano diante da educação “O
homem deve ser o sujeito de sua própria educação” (FREIRE; 1979, p. 35).
De acordo com (FARIA, 2006, p.58) podemos perceber que “é importante criar um
ambiente de ensino e aprendizagem instigante, que proporcione oportunidades para que seus
alunos pesquisem e participem na comunidade, com autonomia.” Pensamos que esta ação
pode ser realizada na educação formal, mas também em qualquer projeto informal que se
destine a intervir na educação das pessoas.
Tendo em vista os dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos),
considerando que estes têm apontado pioras no desempenho dos estudantes brasileiros com

389
Graduando no Curso Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais e Matemática da Universidade
Federal do Cariri. Bolsista do Programa Institucional de Extensão. E-mail: gusstavomendess@gmail.com
390
Graduanda no Curso Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais da Universidade Federal do Cariri,
Bolsista no Programa PIBIC/CNPq. E-mail: cinthiaolive19@gmail.com
391
Professora da Universidade Federal do Cariri. E-mail: iracema.pinho@ufca.edu.br

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faixa etária entre 15 a 17 com relação à leitura. Visamos neste trabalho favorecer a utilização
das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) entre as relações humanas
nos processos educativos. Observamos que a leitura tem se constituído como uma importante
ação humana ao longo do tempo para a educação e exercício de cidadania, pois liberta e
possibilita o empoderamento das pessoas nos mais variados assuntos, sendo também uma
possibilidade de construção da identidade entre os gêneros.
A problemática deste trabalho gira em torno da utilização das TDIC para favorecer
uma proposta de ensino e a aprendizagem para fins de leitura. Ancoramos nosso projeto,
tendo como base a teoria cognitivista e construtivista sobre o processo de aquisição do
conhecimento, e mais especificamente, o conceito de aprendizagem significativa (AUSUBEL,
1963).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Reconhecemos que a inovação pedagógica fundamentada no construtivismo através


dos recursos da tecnologia tem favorecido ao educador a oportunidade de compreender os
processos mentais, os conceitos e as estratégias utilizadas pelos alunos, desse modo é possível
mediar e contribuir de maneira mais efetiva no processo de construção do conhecimento,
como sugere Valente, (1999, p.22).
Para (FARIA, 2006, p.57) se acredita “que nessa proposta pedagógica, torna-se cada
vez menor a utilização do quadro-negro, do livro-texto e do professor conteudista, enquanto
aumenta a aplicação de novas tecnologias.” A oportunidade é de construir conhecimento
tendo o amparo tecnológico e o protagonismo estudantil. O professor se coloca como um
colaborador e mediador do conhecimento junto aos estudantes.
Não que os professores possam ser substituídos pelas tecnologias, nem que a forma de
ensino tradicional vai acabar totalmente, mas sugerimos que os professores precisam saber
usar as tecnologias a seu favor no processo educacional, pois com ela a facilidade aumenta
tanto da parte do professor em orientar a aprendizagem como da parte do aluno para aprender
o conhecimento constituído socialmente.
Assim afirma (FARIA, 2006, p.57) “Não se pode esquecer que os mais poderosos e
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autênticos "recursos" da aprendizagem continuam sendo o professor e o aluno que, conjunta e


dialeticamente, poderão descobrir novos caminhos para a aquisição do saber”.
Com essa busca de novos métodos de ensino aprendizagem através das tecnologias,
vem logo em mente a seguinte reflexão: será que os professores irão saber lidar com essa
realidade, e também, se os alunos irão se adaptar. Desse modo, tanto aos professores, em suas
identidades, quanto aos estudantes nas relações de gênero e também no modo como se
relacionam com a tecnologia e o saber, “O domínio das técnicas acontece por necessidades e
exigências do pedagógico e as novas possibilidades técnicas criam novas aberturas para o
pedagógico, constituindo uma verdadeira espiral de aprendizagem ascendente na sua
complexidade técnica e pedagógica” (VALENTE apud VALENTE, 2002a, p.1).
Nas universidades as questões relacionadas à oferta do ensino superior fazendo uso de
recursos tecnológicos se atrelam à possibilidade de pesquisas direcionadas ao
desenvolvimento de sistemas que sejam capazes de formar indivíduos comprometidos com a
ação comunicativa e o respeito as questões de gênero que se interligam com o fazer
pedagógico cotidiano.
Com o surgimento do pensamento contemporâneo, e visto que a comunicação tem
sido um complexo desafio para a sociedade atual, é necessário o exercício de um pensamento
que dialogue, negocie, argumente com o real entre as pessoas e suas relações, porém sem
controle, dominação, ou fragmentação. Tal pensamento, por mais que seja antagônico, poderá
se complementar construtivamente nas ações dos gêneros envolvidos no processo educativo.
Para construir pensamento dialogante em meio a toda a complexidade da contemporaneidade
é importante considerar que o pensamento pode ser operar de forma diferente ou mesmo
divergente entre os gêneros.
A escolha na utilização de computadores como ferramentas tecnológicas, nos
apresenta um mundo de possibilidade e facilitações de absorção de conhecimentos entre os
gêneros. Assim percebemos que “As facilidades técnicas oferecidas pelos computadores
possibilitam a exploração de um leque ilimitado de ações pedagógicas, permitindo uma ampla
diversidade de atividades que professores e alunos podem realizar” (VALENTE, 2002, p.2).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
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Neste trabalho a abordagem utilizada foi a qualitativa, com característica de


observação participante por parte dos estudantes, professores e demais participantes. As
atividades se centraram no processo de ensino e aprendizagem da no processo de formação de
dois estudantes de licenciatura matriculados nas disciplinas pedagógicas que integram o
currículo da Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais e Matemática da Universidade
Federal do Cariri, tendo inspiração na disciplina de “Produção Textual”. Os estudantes
bolsistas participaram do projeto de extensão denominado “Mapeando leitura e interpretação:
estudantes e professores podem aprender juntos”, dedicaram 12 horas semanais para as
atividades de estudo, planejamento, observação e intervenção na ação de extensão juntamente
com estudantes de ensino médio da EEEP Balbina Viana Arrais, na qual foram desenvolvidas
as atividades.
A abordagem utilizada foi a qualitativa, por requerer dos investigadores bom
relacionamento com os envolvidos na investigação, concentrando esforços para o
entendimento dos muitos pontos de vista existentes entre o grupo. Segundo Bogdan e Biklen
(2010) [...] “Esta abordagem é útil em programas de formação de professores porque oferece
aos futuros professores a oportunidade de explorarem o ambiente complexo das escolas e
simultaneamente tornarem-se mais autoconfiantes dos seus próprios valores e da forma como
estes influenciam as suas atividades face aos estudantes, diretores e outras pessoas.”
(BOGDAN, BIKLEN: 2010, p. 287).
Entendemos que não é somente o ambiente da escola, que se coloca como local de
atuação futura dos estudantes de graduação, mas também a universidade é caracterizada como
o espaço de formação inicial, ambos se apresentam como complexos que favorecem a
abertura para utilização de métodos de ensino e aprendizagem que busquem interpretar a
complexidade das relações existentes entre teoria e prática na ação pedagógica entre as
relações de gênero.
Para atingirmos as etapas propostas no projeto criamos grupo de estudo que seguiu um
cronograma elaborado, sendo seguidas as atividades semanais, quinzenais, mensal e
semestral, foram utilizados recursos tecnológicos em computadores através do software Cmap

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Tools392 favorecendo a aprendizagem significativa dos participantes de modo colaborativo.


O intuito do projeto foi oferecer aos alunos novos métodos que se utilizam das
ferramentas tecnológicos para o favorecimento da aprendizagem significativa. Com foco
nesses critérios desenvolvemos conjuntamente entre os estudantes de graduação e os alunos
do 2° ano da E.E.E.P. Balbina Viana Arrais no decurso do primeiro semestre de 2015 através
da manipulação do software Cmap Tools, intervenções e construções de mapas conceituais
como produto do processo de aprendizagem envolvendo as temáticas abordadas entre os
estudantes.
A forma de apresentação dos conteúdos variou à medida que o semestre se desenrolou,
buscamos oferecer livros online, vídeos interdisciplinares, notícias e outros recursos que
pudessem favorecer a interdisciplinaridade a partir das temáticas selecionadas. A
interpretação de cada aluno pode ser registrada através da realização individual de mapas
conceituais. Mapas conceituais se apresentam como uma técnica de mapeamento para
estabelecer relações entre conceitos e sistematizar conhecimento significativo. Essa técnica
foi desenvolvida por Joseph D. Novak na Universidade de Cornell na década de 60.
A elaboração de mapas conceituais se deu não somente por parte dos estudantes do
ensino médio em seus gêneros, mas também pelos bolsistas com a orientação da professora
que acompanhou o projeto. Um aspecto importante a ser destacado é que a interpretação
coletiva do grupo nas produções se baseou no dialogo durante as aulas. Assim tantos os
alunos tiveram possibilidade de aprender, como também os bolsistas e a professora.
Tendo em vista que o diálogo se apresentou como uma metodologia presente em todo
o processo e não somente na sala de aula, mas também fora dela, compreendemos que os
recursos tecnológicos disponíveis em aparelhos de comunicação móveis seriam perfeitamente
úteis. Assim, visando tornar possível a comunicação fora da sala ou da escola, elegemos fazer
uso de comunicação entre o grupo através do aplicativo Whatsapp, este que nos forneceu um
rápido, moderno e fácil meio de comunicação, bem como, também através de e-mails, outra
ferramenta que nos ajudou tanto na comunicação como na socialização e troca de trabalhos.

392
É uma ferramenta educacional desenvolvida por Alberto J. Cañas, distribuída pela IHMC - Institute for
Human Machine Cognition da University of West Florida para organização de conhecimentos, objetivando
viabilizar colaboração entre estudantes e professores. Fonte: http://www.ihmc.us
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RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para (VALENTE, 2002) “O professor deve indagar se o uso do computador está ou


não contribuindo para a construção de novos conhecimentos” Pois é notável que existem
muitos professores que gostam bastante de usar computadores para a realização de
metodologias diversas em aulas, mas não sabem lidar com as ferramentas de modo a
favorecê-los, com isso muitas vezes os alunos não se sentem interessados na utilização, de
forma que podem vir a utilizar a internet negativamente.
Para realizarmos o projeto de forma coerente e respeitando as diferenças entre os
gêneros, procuramos planejar as ações, a partir de encontros na universidade, em que os
estudantes puderam estudar textos que serviram de base teórica para a realização prática da
ação, bem como, participação em reuniões semanais em que a discussão esteve amparada no
referencial teórico, na seleção de textos para leitura com o grupo e na elaboração de relatórios.
Um dos cuidados que tomamos como fator primordial nesta ação foi o planejamento.
Segundo Silva (1964, p.87), “o planejamento está placentariamente unido a todo esforço
humano que venha a se desenvolver na realização de quaisquer propósitos públicos ou
particulares”. Podendo ser considerado como o pontapé inicial de qualquer ação que possa ser
realizada na esfera educacional, sem o planejamento nunca teremos clareza na hora de avaliar
se alcançamos as metas planejadas.
Compreendemos que para que as coisas se realizem idealmente, ou pelo menos chegue
perto do esperado, precisamos sentar e dialogar sobre as dificuldades enfrentadas, as
diferenças entre os envolvidos na ação, de forma a realinhar o planejamento de determinadas
situações educativas, quando se faz uso de tecnologias. A (figura 1) a seguir ilustra os
momentos de planejamento, em que a relação de gênero esteve sempre em pauta entre
orientadora e bolsistas.

Figura 1 – diálogo no planejamento: orientadora e bolsistas

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Fonte: Própria

Para além do planejamento das ações, todo o processo foi baseando em estudos entre
os estudantes na universidade, antes de ir à escola. Passada a fase de estudos em grupo, dos
textos pré-selecionados, a interpretação, e posteriormente, a escrita acadêmica foi fomentada
junto aos bolsistas, respeitando a relação entre os gêneros.
Os momentos de realização da atividade na escola entre os estudantes de graduação e
ensino médio, fazendo uso dos computadores no laboratório de informática, sempre foram de
muitas discussões e construções individuais e colaborativas de mapas conceituais, conforme
podemos observar na figura 2.

Figura 2 – Momento de elaboração de mapas conceituais por parte dos envolvidos

Fonte: Própria

O método de estudar os textos e depois fazer a síntese através da utilização de mapas

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conceituais foi previamente apresentado aos estudantes de graduação através de um mapa


conceitual para conhecimento de uma determinada temática, a saber, um mapa conceitual
sobre a utilização de mapas conceituais, com o intuito de oferecer um modelo.
Após este procedimento os estudantes de graduação foram orientados a produzirem
seus próprios mapas conceituais, tendo como base os textos da fundamentação teórica por eles
estudados de acordo com as orientações, o resultado foi que os mesmos puderam desenvolver
com autonomia suas produções, conforme ilustrado no (figura 3 e 4).

Figura 3 – Mapa conceitual sobre Aprendizagem Significativa – 2015.1

Fonte: Própria: elaborado por estudante bolsista no Programa Cmap Tools

No mapa conceitual produzido pelo estudante na (figura 3) podemos perceber a partir


das caixas de diálogos coloridas a estrutura hierárquica existente entre os conceitos.
Destacamos como aspectos importantes para a produção de um mapa conceitual a autonomia
e criatividade, elementos peculiares e que devem ser respeitados em ambos os gêneros nas
atividades que favorecem as relações interpessoais no processo de formação de professores.
Mapas conceituais são atividades cognitivas realizadas pelos aprendizes, podendo
representar estruturas conceituais em suas diversas relações com o conteúdo estudado, por
oferecerem uma forma de registro mais flexível e dinâmica que o texto escrito, tendo em vista
que apresentam a característica não linear. (OKADA, 2008)

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Dentre os textos selecionados para leitura com os bolsistas e os estudantes do ensino


médio, podemos destacar clássicos da literatura universal, textos já divulgados e
disponibilizados na rede mundial de computadores através da internet, pois consideramos que
o acesso ao conhecimento e a informação deve se operar no respeito à cidadania entre os
gêneros, sendo assim, seguimos a lógica de uso dos recursos educacionais abertos.
Entre os textos lidos, destacamos “Assim Falava Zaratustra” de Friedrich Nietzsche e
“O Apanhador no Campo de Centeio” de Jerome David Salinger. No mapa conceitual (figura
4) podemos observar a representação conceitual que um dos bolsistas produziu de acordo com
sua interpretação da leitura filosófica realizada.

Figura 4 – Mapa conceitual baseado na leitura do livro “Assim Falou Zaratustra”

Fonte: Própria: elaborado por estudante bolsista no Programa Cmap Tools

Durante as discussões pudemos perceber o quanto cada fase do livro mexia com algum
tipo de valor interpessoal dos envolvidos na atividade de leitura para a realização dos mapas
conceituais. Nas apresentações dos mapas por parte de cada participante, podíamos observar
as competências que cada estudante desenvolveu para a cartografia cognitiva. Conceber
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mapas conceituais é uma atividade que nos possibilita denominar de cartógrafo ou cartógrafa
os criadores dos mapas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados que apresentamos neste artigo através dos mapas conceituais produzidos,
demonstram que é possível utilizar a tecnologia para favorecer a aprendizagem
colaborativamente entre os gêneros masculino e feminino, com o objetivo de contribuir com a
formação de professores.
Podemos afirmar que o uso de maneira criativa e autônoma das TDIC por parte dos
professores e estudantes, juntamente com um bom planejamento e acompanhamento por parte
do professor, tende a contribuir com a formação de professores mais críticos e conscientes dos
seus papeis na autoformação, e consequentemente, na formação da comunidade para questões
que envolvem a relação de gênero no século XXI. Esta temática não se encerra, está aberta
para muitas reflexões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em Educação em Educação.


Porto: Editora Porto, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE; Educação e Mudança. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1979.
FARIA, E. T. O professor e as novas tecnologias. In: Délcia Enricone (Org). (Org.). Ser
Professor (5 ed). 5ed.Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, v. , p. 57-72.
LIBÂNEO, J.C. Pedagogia e pedagogos, para quê?.-2.ed. – São Paulo: Cortez, 1998.
MOREIRA, M. A. O que é afinal aprendizagem significativa? Porto Alegre: UFRGS, 2002.
Disponível em <http://www.if.ufrgs.br/~moreira/oqueeafinal.pdf> Acesso em 16 out. 2015.
ORTEGA, LENISE MR; SANTIAGO, NILZA B. A atuação do pedagogo: que profissional é
esse. Pedagogia em Ação, v. 1, n. 2, p. 1-122, 2009.
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OKADA, A. Mapas conceituais em projetos e atividades pedagógicas. Disponível em


<http://people.kmi.open.ac.uk/ale/chapters/c11lpronto2008.pdf> Acesso em 11 out. 2015.
______. (org.). Cartografia cognitiva: mapas do conhecimento para pesquisa, aprendizagem
e formação docente. KCM. 2008.
VALENTE, J. A. Pesquisa, comunicação e aprendizagem com o computador. Disponível
em <www.eadconsultoria.com.br/matapoio/biblioteca/textos_pdf/texto17.pdf> Acesso em 10
out. 2015

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LEVANTAMENTO DA SITUAÇÃO HISTORIOGRÁFICA ATUAL SOBRE


ESTUDOS DE MULHERES E EDUCAÇÃO

Shirley Targino Silva393 | shirleyzinhatargino@hotmail.com


Bruna Gomes de Oliveira Dornelas394 | brunagoliveira2009@hotmail.com
Alanna Maria Santos Borges395 | alannam.borges@gmail.com

INTRODUÇÃO

Realizar um levantamento bibliográfico não é uma tarefa fácil e conta com um grau de
conhecimento teórico e metodológico dinâmico, além de um processo de sistematização
próprio. O que nos propomos fazer parte da nossa preocupação com o controle de trabalhos
relacionados às nossas pesquisas. A ideia central desse estudo tem a função de mapear
trabalhos com informações produzidas e publicadas acerca da temática Mulher e Educação;
Educação de Mulheres. A temática da pesquisa que estudamos e desenvolvemos atualmente
está inserida como campo de estudo na linha de História da Educação no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba.
Nesse sentido, foi feito um levantamento bibliográfico sobre as produções já existente
sobre a citada temática ao longo dos anos de estudos da ANPEd e da SBHE. O intuito desse

393
Mestranda em História da Educação, vinculada ao programa de pós-graduação em educação da UFPB;
graduada em pedagogia pela UFPB e membro do grupo de Estudos e Pesquisas História da Educação da Paraíba
– HISTEDBR – PB.
394
Graduada em História pela UEPB e aluna especial da linha de História da Educação no programa de pós-
graduação em educação da UFPB.
395
Graduanda em Pedagogia na Universidade Federal da Paraíba; aluna Bolsista do Programa de Iniciação
Científica (PIBIC) e membro do grupo de Estudos e Pesquisas História da Educação da Paraíba – HISTEDBR –
PB.
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trabalho é conhecer a demanda de pesquisas relacionadas a área de história da educação,


fazendo um balanço das produções que foram desenvolvidas em vários estados do Brasil.
O tema chave expõe as respectivas temáticas (mulher e educação/ educação de
mulheres), com fins de debater de forma mais intensa e articulada os artigos, dissertações e
teses feitos pelos pesquisadores de história da educação.
Nesse cenário, foram escolhidos dois bancos de dados para o levantamento desse
estudo, os textos aprovados e apresentados em eventos científicos de abrangência nacional e
considerados pela CAPES, como: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação (ANPEd) textos de todas as reuniões nacionais feitas pela própria instituição dos
anos 2000 a 2013 e os da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) todos os
anais e congressos nacionais dos anos 2000 a 2013. A localização dos trabalhos apresentados
na ANPEd deu-se através da página da entidade nos textos disponibilizados online no
Histórico da Reuniões Científicas Nacionais da ANPEd. Nessa pesquisa, foram consideradas
as reuniões nacionais e anuais da ANPEd no GTs de História da Educação de cada ano
respectivamente (23ª Reunião Anual- 2000- Caxambu, MG), (24ª Reunião Anual- 2001-
Caxambu, MG), (25ª Reunião Anual – 2002- Caxambu, MG), (26ª Reunião Anual – 2003-
Poços de Caldas, MG), (27ª Reunião Anual -2004- Caxambu, MG), (28ª Reunião Anual –
2005- Caxambu, MG), (29ª Reunião Anual – 2006- Caxambu, MG), (30ª Reunião Anual –
2007- Caxambu, MG), (31ª Reunião Anual – 2008- Caxambu, MG), (32ª. Reunião Anual -
2009 - Caxambu, MG), (33ª Reunião Anual -2010- Caxambu, MG), (34ª. Reunião Anual –
2011- Natal, RN), (35ª. Reunião Anual – 2012- Porto de Galinhas, PE), (36ª Reunião Anual
(Nacional) – 2013-Goiânia / GO); e os congressos anuais da (SBHE) I CBHE 2000 realizado
no Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, II CBHE 2002
ocorreu na cidade de Natal; III CBHE 2004 realizado em Curitiba, na PUCPR; IV CBHE
2006 foi realizado em Goiânia-GO, na UCG; V CBHE 2008 foi realizado em Aracaju –
Sergipe; VI CBHE 2011realizado em Vitória- ES na Universidade Federal do Espírito Santo;
VII CBHE 2013 foi realizado na cidade de Cuiabá –MT.
O recorte temporal do referente estudo compreende os quinze primeiros anos do
século XXI, e se justifica pela precisão de trazer à tona a contribuição dos pesquisadores da
história da educação no cenário educacional e social do Brasil. Este trabalho também se
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justifica pelo interesse em estudar a história das mulheres, que ultimamente vem recebendo
um destaque maior.
A realização desta pesquisa irá contribuir com a ampliação da compreensão existente
do estágio atual da pesquisa em educação no que diz respeito à expansão realizada por alunos
da pós-graduação de diversos setores educacionais, tanto acadêmicos quanto políticos e
sociais. É importante ressaltar que estas discussões além de impulsionarem novas ações para o
incentivo a pesquisa, indicam também os desafios e as possibilidades com as quais os
educand@s e professor@s precisam lidar cotidianamente nas salas de aula ao levar em conta
as dificuldades presentes na realidade de cada um dos sujeitos envolvidos no processo de
ensino-aprendizagem. Segundo Gondra (2005), “Mapear fontes é, portanto, preparar o terreno
para uma crítica empírica vigorosa que constitua novos problemas, novos objetos e novas
abordagens”.
Diante do que foi exposto, entende-se que, para o campo da Pesquisa em Educação,
bem como para os estudos acerca da temática, há definitiva relevância social e científica, ao
ampliar a visibilidade do papel do pesquisador, que justifica a realização da pesquisa referida
por esta proposta. Relevância esta que vem suscitando o interesse dos pesquisadores em tratar
de mapeamentos.

A compreensão crítica da trajetória da educação no nosso país fica muitas vezes


comprometida não só pelo desconhecimento dos acervos existentes nos arquivos,
mas também pela ausência do uso dos acervos organizados e disponíveis para a
pesquisa e pela compreensão estereotipada do material arquivístico, usado como se
fosse objeto acabado e probatório de determinadas posturas teóricas. Por essas
razões, trabalhos que priorizem a localização de acervos e a discussão em torno de
levantamentos já existentes são fundamentais para a renovação da prática da
pesquisa histórica no campo da educação (GONDRA, 2005, p. 35).

Este trabalho encontra-se dividido em três momentos. No primeiro, encontra-se a


introdução. O segundo representa as questões metodológicas e análise dos dados da pesquisa
delineando os aspectos relacionados com a origem da problemática imposta pelo mesmo. No
terceiro e último momento será apresentada a conclusão.

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METODOLOGIA
Neste estudo, os dados foram coletados a partir de dois acervos, os quais estão
disponíveis na internet. Para reconhecimento dos trabalhos, procurar nos anais do site da
ANPED e nos anais do site da SBHE. Nesta seção apresentaremos o mapeamento da situação
dos trabalhos, em termos da oferta existente, bem como apresentaremos os resultados das
análises. O intuito desse trabalho é conhecer a demanda de pesquisas relacionadas a área de
história da educação, fazendo um balanço das produções que foram desenvolvidas em vários
estados do Brasil. Escolher um método para ser usado neste trabalho, não foi uma das tarefas
mais difíceis, pois resolvi seguir as regras da pesquisa bibliográfica e o método qualitativo. É
fundamental a sistematização das fontes históricas e bibliográficas para explicitar as
contribuições dos artigos e pôsteres.

Gráfico 1 – Levantamento do número de trabalhos publicados em cada


meio.

Sobre o Gráfico 1 os objetos de estudo analisados foram artigos, pôsteres, dissertações


e teses. No que concerne ao recorte cronológico do estudo foi escolhido os primeiros quinze
anos do século XXI com intuito de observar e mapear as produções feitas e aprovadas no
início desse século. Para verificar estas produções foi avaliado o banco de dados da ANPEd e
da SBHE.

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Gráfico 2 - Levantamento anual dos


trabalhos.

No Error! Reference source not found. descrito acima está o número de todos os
trabalhos a cada ano encontrados para o mapeamento desta pesquisa. Para fins desse estado de
conhecimento nota-se um número maior de trabalhos no ano de 2008 talvez por maior
divulgação dos agentes responsáveis pela organização do CBHE, já que foi o maior número
de trabalhos encontrados na página da SBHE.

A produção de dissertações e teses de trabalhos científicos em geral acerca da


história da educação, é sobremaneira, resultado da seleção dos objetos
historiográfico investigados, da periodização contemplada e das fontes documentais
e bibliografias analisadas (GONDRA, 2005, p. 295).

Para o período analisado a produção acadêmica dos estudos em história da educação é


considerado crescente em comparação com os números do século XX. No total foram 89
trabalhos avaliados.
Os dados que os trabalhos analisados revelam são muito importantes para a área de
educação, os aspectos quantitativos são relevantes já que se trata de um estudo realizado em
apenas três meios de acervos. A produção da história da educação vem crescendo a cada dia,
dadas pelos sites dos programas PG: disciplinas e grupos de pesquisas; periódicos vinculados
ao PPGs, como: cadernos, revistas e periódicos; Eventos de grande porte: Congresso
Brasileiro de História da Educação, Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação,
ANPEd, Seminários e outros. Enquanto componente estrutural do programa de Pós-

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Graduação em Educação pela Universidade Federal da Paraíba na linha de pesquisa História


em Educação este trabalho procurou dar ênfase e valorização a busca pelos trabalhos apenas
nos GTs da HE.

Gráfico 3 - Levantamento anual do número de trabalhos por


evento.

Diante do Error! Reference source not found. pode-se observar que o trabalho
propõe uma investigação empírica nos sites da internet destes três acervos bibliográficos.

Com Chartier (1988), tornou-se possível pesquisar algumas representações e práticas


culturais escritas, modeladas pelas autoridades públicas, sobre a instrução privada e
seu corpo docente e, assim, entender o modo como as complexas relações
estabelecidas entre agentes foram construídas, pensadas e, ganhando significado,
dadas a ler (PAIÃO, 2004 apud GONDRA, 2005, p. 333).

É diante desta citação e do presente mapeamento que podemos observar de perto as


contribuições da Nova História Cultural. Depois deste estudo ficaram ainda mais notórias tais
contribuições, já que os trabalhos são todos voltados a história de sujeitos que foram
excluídos da História. No campo da história da educação, esta pesquisa vem contribuir de
modo a não se interessar apenas pelos grandes movimentos educacionais ou grandes
pensadores, mas volta seu olhar para novos objetos de pesquisas e novas maneiras de abordá-
los. Desde o seu surgimento, a Nova História Cultural deslocou sua atenção para a história

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dos homens comuns, preocupando-se com suas práticas culturais, suas experiências da
mudança social.
A nova história cultural nasce da crítica ao historicismo e pela elevação da dimensão
cultural da História. Essa mudança decorre de novas forças sociais, que configuram diferentes
lutas e atingem vários campos do saber, reabrindo as discussões teórico-metodológicas sobre
a história. Esse processo tem como marco o alargamento do conceito de fontes, o qual
possibilita incorporação de novos objetos e sujeitos, no processo histórico, que durante muito
tempo ficaram ocultados ou desconsiderados da historiografia. Surge na década de 1980 uma
interna distinção sobre o campo da cultura, com fortes críticas à história tradicional ou história
cultural clássica, ampliando os estudos e as escritas sobre várias abordagens da história
cultural. “A história cultural tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1988. p. 16-17). Podemos dizer que esse movimento se
estabelece em uma configuração sobre pensar a historiografia acerca da cultura popular, sem
excluir as expressões de cultura das elites. No campo da história da educação, não importam
apenas os movimentos educacionais ou grandes pensadores, mas voltam-se os olhares para
novos objetos de pesquisas e novas maneiras de abordá-los. “A nova história cultural, desde o
seu surgimento, deslocou sua atenção para a história dos homens e mulheres comuns,
preocupando-se com suas práticas culturais, suas experiências na mudança social” (SANTOS,
2009, p. 25).
Ao analisar o dados e observar o processo do procedimento metodológico deste trabalho,
algumas observações devem ser feitas, como por exemplo o maior número de produções de trabalhos
encontrados nesta pesquisa. Portanto afirma-se que os Congressos Brasileiros de História da educação
apresentam mais trabalhos do que as outras fontes analisadas.

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Gráfico 4 - Levantamento do número de pesquisas publicadas no CBHE por eixo de


pesquisa.

Como podemos observar no Gráfico 4 os eixos são diversos. Provavelmente a diversidade de


eixos está ligada com a própria história das mulheres, já que as mesmas aturam em diversas
frentes, gerando assim um número de variadas fontes para os pesquisadores. Sabemos que
agir nos espaços públicos não era, e nem é, fácil para as mulheres, mas pode-se afirmar que
elas atuaram de muitas maneiras nesses espaços. Como cita Michelle Perrot em seu livro
minha história das mulheres: “ Tudo se complica quando ousam agir como homens”.
Quando se fala a respeito da presença das mulheres nas bibliotecas, tal fato se refere à história
das mulheres ao longo dos anos, que tiveram como vias de escrita a religião, através da
oração, e o imaginário, com os romances e as poesias. Dois fatores que influenciaram na
escrita das mulheres aristocratas foram os conventos e os salões, as religiosas copiavam os
manuscritos e os salões eram compostos por homens galantes o que exigia uma linguagem
mais elevada. Ao longo do tempo surgem outros fatores que levam as mulheres ao encontro
da escrita, por exemplo, a existência de um público leitor feminino, a predominância de
alguns gêneros, como gastronomia, pedagogia, imprensa de moda e os romances. Em todo o
caso, daí em diante pode-se ter alguns escritos e ouvir mais a “voz” das mulheres.

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Gráfico 5 - Quantidade de trabalhos publicados no CBHE por ano.

Ao todo foram encontrados 73 trabalhos no acervo da SBHE ao longo de todos os


congressos já realizados e que foram avaliados por este mapeamento. Sobre I CBHE 2000 não
foi encontrado nenhum trabalho. Talvez até por problemas técnicos do site, mas não foi
possível a visualização dos trabalhos. O congresso foi realizado no período de 06 a 09 de
novembro do ano 2000, visando promover o intercâmbio acadêmico. O tema central do I
CBHE foi Educação no Brasil: história e historiografia, desdobrado nos seguintes subtemas:
Estado e Políticas Educacionais; Fontes, Categorias e Métodos de pesquisa em História da
Educação; Gênero e Etnia; Imprensa Pedagógica; Instituições Educacionais e/ou Científicas;
Pensamento Educacional; Práticas Escolares e Processos Educativos; Profissão Docente.
Além do livro de Resumos e do CD-ROM contendo a íntegra dos trabalhos apresentados no I
CBHE, o livro Educação no Brasil: História e Historiografia reúne os textos apresentados nas
Mesas Redondas que fizeram parte da Programação do I CBHE.
Sobre o gráfico abaixo. No acervo da ANPEd foram encontrados 16 trabalhos ao todo,
incluindo 9 artigos e 7 pôsteres. A 23ª Reunião Anual da ANPEd foi realizada no ano 2000 e
cerca de três mil pessoas participaram do evento, com mais de 1500 pesquisadoras e
pesquisadores inscritos. Infelizmente nenhum trabalho sobre o tema escolhido foi encontrado
nessa reunião. Vale salientar que todos os trabalhos analisados neste evento específico da
ANPEd foram pesquisados somente no GT de História da Educação em virtude do tempo que
seria pouco para analisar tantos trabalhos até nos outros GTs. Os trabalhos apresentados nos
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Grupos de Trabalho foram selecionados pelo Comitê Científico, com parecer dos pareceristas
ad hoc de cada GT. Os pôsteres foram selecionados por pareceristas ad hoc indicados por
cada Grupo de Trabalho.

Gráfico 6 - Quantidade de trabalhos publicados no ANPEd/GT - HE por


ano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo tem como aporte a perspectiva teórico-metodológica da Nova


História Cultural, a qual abre um espaço para as considerações das contribuições históricas de
sujeitos outrora excluídos pela historiografia, como a mulher. Apesar de já haver um crescente
interesse no estudo de mulheres educadoras, demonstrado, como por exemplo, nos trabalhos
analisados, ainda é pequena a quantidade de pesquisas que demonstram o papel que as
mulheres, de maneira mais abrangente, exerceram no processo histórico educacional nacional.
Face ao exposto, pudemos observar que muitas fontes foram usadas nos trabalhos
como, jornais, periódicos, fontes orais, revistas, cartas, livros, fotografias, diários e outros. Foi
muito difícil localizar todas as fontes, mas as que estão descritas são as predominantes. Os
métodos utilizados variam de acordo com cada autor, porém constata-se a utilização das
pesquisas qualitativas em educação pelos moldes, biográfico, biobibliográficos entre outros.
Mas os citados foram predominantes.

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O presente trabalho construiu-se com o auxílio de livros, documentos, artigos,


pôsteres, dissertações e teses que evidenciam a sociedade na qual vivemos como partícipe da
história, escrevendo e consolidando contribuições à educação brasileira.
Diante das análises feitas aos referenciais metodológicos de todos os trabalhos pode-se
afirmar que estes trabalhos analisados por este mapeamento vêm contribuindo para o
conhecimento da história da educação do Brasil.
No decorrer deste trabalho, buscou-se apresentar os aspectos percorridos pelo pesquisador que
se dispõe a mapear trabalhos. O diagnóstico dessa investigação apresenta que embora seja um
trabalho de difícil realização é muito gratificante analisar dados que correspondem com seus
ideais de estudo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO:


Banco de Dados. Disponível em: http://www.anped.org.br/. Acesso em: Junho de 2015.
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel,
1988.
GONDRA, José Gonçalves (Org.). Pesquisa em história da educação no Brasil. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 2005.
PERROT, M. Minha história das mulheres. 2ª. ed. São Paulo: Contexto, 2013.
SANTOS, T. D. M. Magistério Em Declínio: histórias e memórias de ex-alunas do
magistério do colégio nossa senhora das neves (1970). João Pessoa: Universidade Federal da
Paraíba, 2009.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: Banco de Dados. Disponível
em: http://www.sbhe.org.br/. Acesso em: Junho de 2015.

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MANIFESTAÇÕES DE GÊNERO NA ESCOLA PÚBLICA : CONFLITOS E


POSIÇÃO DOCENTE

Lorena Brenda Santos Nascimento¹ | lohsantos02@gmail.com


Francisca Genifer Andrade de Sousa² | geniferandrade@yahoo.com.br
Lia Machado Fiuza Fialho³ | lia_fialho@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

A instituição escolar, espaço responsável pela formação interdisciplinar do sujeito e a


sua integração ativa na sociedade, é ambiente composto por diversidades, expressões culturais
e sociais singulares, que devem ser tratadas com respeito, tolerância e cuidado, principalmente
quando sustenta-se na finalidade educativa, mediada pelo corpo docente. Ao presenciar
situações conflituosas entre alunos de diferentes gêneros, o professor desempenha papel dual,
sujeito a desafios diários, pois ao tempo que precisa interferir nas relações estabelecidas em
sala de aula, também deve adquir conhecimentos específicos para lidar com as distinções e
saber posicionar-se diante delas.
As discussões envolvendo a “superioridade” dos gêneros, seja feminino ou masculino,
e questões relacionadas a orientação sexual dos alunos(as), são situações frequentes nos
sistemas de ensino, que vem gerando preocupação por parte dos educadores e núcleo gestor,
visto que estes nem sempre estão preparados para lidar com as desigualdades, e por
consequência, imprimir posturas de respeito às multiplicidades. Nesse sentido, a formação
_________________________
¹Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará – 7° semestre - Bolsista PROMAC, monitoriUECE
²Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará – 6°semestre - Bolsista de Iniciação Científica –UECE
³Professora do Programa de Pós Graduação em Educação na Universidade Estadual do Ceará –UECE

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continuada exerce função determinante, podendo direcionar a práxis educativa para a


abordagem de temáticas variadas, que também possuem relevância social dentro e fora dos
muros escolares.
Partindo da seguinte problemática: “como os professores da educação básica
posicionam-se diante das manifestações e conflitos de gêneros na escola pública?”, buscamos
compreender como esses profissionais atuam na realidade escolar ao deparar-se com tais
cirscunstâncias, admitindo que a sua função vai para além da mediação sistemática dos
conteúdos, alcaçando processos formativos macrossociais de complexidade subjetiva.
Ao observar, no período de um mês, a rotina de uma instituição pública do município,
inquietou-nos perceber a falta de articulação e aporte teórico das educadoras, sujeitos da
pesquisa, para tratar o assunto de gênero e sexualidade na sala de aula, embora presenciassem
constantemente comportamentos preconceituosos e intolerantes por parte dos alunos. Desse
modo, torna-se relevante problematizar discussões que questionem tal despreparo nas redes
públicas educativas, julgando esta incubida por oferecer e dar acesso à educação (BRASIL,
1996), garantindo o direito de aprender e ter contato com as diversidades e conhecimentos que
constituem o meio social.

METODOLOGIA
O trabalho foi desenvolvido mediante uma abordagem qualitativa, com o intuito de
identificar como os professores situam-se à respeito das exibições e conflitos de gêneros na
escola pública, bem como apresentar vivências em sala de aula que constatem as atitudes e
posicionamentos compartilhados no escopo da pesquisa. Realizamos ainda, um estudo de caso
afim de contextualizar a prática executada pelos docentes tomando como referência as ações
externas que também influenciam nas posturas identificadas em decorrência da temática de
gênero, sexualidade e educação.
Desenvolvemos entrevistas semiestruturadas com base em perguntas norteadoras,
conforme exposto a seguir: “Você presencia conflitos de gênero e sexualidade na sala de
aula? Se sim, exemplifique.”, “Que postura você defende diante dessas discussões?” “Você
tem, ou já teve alguma formação voltada para trabalhar esse assunto na escola?”.
A pesquisa foi realizada, conforme já explicitado, numa instituição pública em
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Fortaleza/CE, que integra comunidades pertencentes à periferias e favelas consideradas


violentas pelo alto índice de criminalidade ocorrente. A escola comporta aproximadamente 12
turmas do ensino fundamental nos turnos diurnos, e mais 6 do ensino infantil, também nos
dois períodos.
Dez professoras aleatórias foram abordadas e convidadas a participar do estudo, mas
somente 4 se dispuseram a cooperar de modo espontâneo e livre, enquanto o restante alegou
não ter tempo, ou mesmo interesse na temática, apesar de esclarecermos que não haveriam
benefícios ou malefícios, ainda que houvesse desistência no decorrer da entrevista. A
identificação das docentes ficaram ocultadas e preservadas, afim de fazer com que se
sentissem mais à vontade para falar e socializar suas experiências, sendo posto no lugar nome
de pedras preciosas.
Utilizamos ainda, o método da História Oral Temática (THOMPSON, 1978) que
objetiva apresentar reminiscências e histórias de vida dos sujeitos, valorizando a perspectiva e
interpretação que exprimem ao compartilhar suas memórias. Desse modo as entrevistas foram
feitas por intermédio de gravações, adiante transcritas, analisadas e textualizadas para
discussão e análise comentada. Tal procedimento efetuado com o propósito de alcançar o
objetivo da pesquisa, de reconhecer e identificar os eventos presentes na sala de aula
envolvendo conflitos gênero e sexualidade, sob a ótica dos professores envolvidos no sistema
de ensino observado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
A pesquisa emergiu resultados heterogênios, sujeitos a interpretações variadas,
principalmente no que concerne ao posicionamente que as docentes mostraram executar em
sala de aula a respeito das diversidades situadas no âmbito em que atuam. O seu entendimento
sobre as problemáticas cujo tema aborda gênero e sexualidade na escola revelaram
inconsistências e permanências, tanto referente ao questionamento sobre os conflitos
presenciados que envolvem os alunos(as), quanto na verificação da presença, ou falta, de
formações específicas que abordem tais temas.
Sabe-se, no entanto, que os processos formativos na escola envolvem princípios e
normas institucionalizadas, desenvolvidas com a finalidade de nortear a trajetória educativa
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do aluno, e ao mesmo tempo orientar o docente na consolidação de sua práxis. Os


encaminhamentos englobam desde o direito ao acesso e permanência nos sistemas de ensino,
à organização dos estudos e seguimentos construtivos no estabelecimento do aprendizado
indireto, que também se constitui através de manifestações culturais e sociais, sendo essas
portanto, fundamentais para compor os espaços escolares conforme expõe a Diretrizes
Curriculares Nacionais (2013, p. 17): “[...] II- liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e
divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III- pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas; IV- respeito à liberdade e aos direitos [...]”.
Ao compreender que o ambiente educativo faz parte de uma construção social
necessária para formar o sujeito crítico, reflexio e apto para conviver coletivamente, é
importante reconhecer que os indíviduos inseridos nessa esfera também são instituídos de
singularidades, pluralidade de ideias e pensamentos, concomitante ao comportamento e a
própria estruturação indentitária.
Segundo Joca (2009), a formação social e sexual, bem como a organização das
relações e os valores estabelecidos entre os sujeitos, são papéis não somente da escola, mas
também da família, estado e religião, sendo esses, muitas vezes, perpetuadores de um
pensamento unilatereal que não permite outras possibilidades para a vivência da sexualidade.
O próprio contexto histórico da humanidade confirma tal assertiva quando ao analisar o
passado da sociedade nos deparamos com posturas sexistas segregadoras, onde a função da
mulher, por exemplo, durante décadas limitou-se nas atividades caseiras e na subordinação.
A reprodução de posturas discriminatórias em relação as caracteristicas de gêneros
ainda resiste nos dias atuais, embora hoje já existam leis em defesa das diversidades, sejam
essas sexuais, étnicas, raciais etc. Mesmo com a execução e consolidação dos direitos
humanos, elaborado após a segunda guerra mundial, o conservadorismo e intolerância às
múltiplas identidades geram conflitos a longo prazo, impedindo que os âmbitos de formação
humana construam barreiras para impedir o engessamento social de concepções que
exprimem o desrespeito ao próximo por qualquer diferença. Sobre a estruturação das
identidades, Louro (1999) afirma:
É, então, no ãmbito da cultura e da história que se definem as identidades sociais
(todas elas e não apenas as identidades sexuais e de gênero, mas também as
identidades de raça, de nacionalidade, de classe, etc). Essas múltiplas e distintas
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identidades constituem os sujeitos na medida em que esses são enterpeladosa partir


de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais. Reconhecer-se numa
identidade suopõe, pois, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer
um sentido de pertencimento a um grupo social de referência. Nada há de simples ou
de estável nisso tudo, pois essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo
tempo, lealdades distintas, divergentes ou até contraditórias. (LOURO, 1999, p. 3)

Essa percepção esclarece, até certo ponto, um dos argumentos que explicitam porque
as diferentes identidades apresentam seus próprios paradigmas e dificuldades de aceitação,
visto que composta por grupos e indivíduos subjetivos, dotados de complexidade, encontra-se
sujeita a graus, maiores e menores, de cobranças, pressões ideológicas e até mesmo
contraditoriedades. Ao questionar as professoras sobre os conflitos existentes na escola
supracitada, relacionado às diferenças de gêneros e identidades sexuais dos alunos,
especificamente nas turmas que lecionam, foram obtidos os seguintes testemunhos:
Os conflitos já vem do que eles trazem de casa, os conceitos já estabelecidos, tipo
“tia, o meu pai não gosta que eu dance”, os meninos né, “o meu pai não gosta que
eu jogue futebol porque eu sou menina”. (Rubi)
O conflito quando eles não querem , por exemplo, fazer um trabalho só com as
meninas, ai eu digo que ambos tem que fazer juntos, mas alguns acham que se ficar
perto das meninas irão ficar afeminados. (Diamante)
Já presenciei conflitos na escola, e foi em relação a essa questão do
homesexualismo, a gente se depara com crianças com essa problemática, é
complicado na idade deles, fazerem eles entenderem que existem os gêneros
femininos e masculinos, mas que em algumas situações algumas pessoas tem
personalidades que acabam se desviando dessa questão do natural né, de ficar com
o homem ou a mulher. (Pérola)
Geralmente, quando os meninos estão jogando futsal, eles não gostam que entre
meninas. E aqui na escola tem meninas que jogam muito bem e gostam de jogar
futsal, então assim, isso pra mim já confltiou em algumas aulas. (Esmeralda)

Nota-se que nos dois primeiros e último depoimento os conflitos mais frequentes
percebidos pelas docentes, refere-se ao preconceito reproduzido pelos alunos do sexo
masculino em detrimento do feminino. Historicamente a figura feminina, durante décadas,
exerceu função secundária na sociedade, sendo limitada a cuidar da família e das atividades
domésticas, não podendo desempenhar os mesmos encargos sociais que os homens. No
Brasil, o modelo de família patriarcal era tido como referência nacional, caracterizando um
cânone tradicional de organização genealogica, onde a mulher foi constituida como ser dotado
de feminilidade, ou seja, estereotipada por ser emocional, subjetiva, pacífica, impotente,
frágil, doméstica e recatada. (ANDRADE, 2005).
Para Narvaz e Koller (2006, p. 2): “na medida em que a família e as relações entre os
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sexos mudaram, a idéia de patriarcado cristaliza a dominação masculina, pois impossibilita


pensar a mudança”. Percebemos, a partir dessas constatações, que mesmo com as
transformações na sociedade ainda existem permanências que resistem às novas concepções
de estilos de vida e gestão familiar. Essa incapacidade de acompanhar e aceitar tais
modificações imprime, por consequência, comportamentos reversos que se consolidam e
perpassem de geração à geração, produzindo situações como as que foram relatadas acima por
professoras da educação básica.
No penúltimo comentário, destacando um dos conflitos que envolveu a temática do
homesexualismo, percebemos mediante a postura da educadora compreensões equivocadas e
capiciosas, principalmente quando a mesma trata do assunto utilizando termos como:
“problemática” e “personalidades que acabam se desviando do natural”, como se a orientação
sexual fora dos padrões establecidos socialmente fosse um desvio de personalidade, sendo
portanto, um problema difícil e complicado de justificar em sala de aula. A expressão
“natural” remete ainda, a condição de que a sexulidade seria algo concedido pela natureza,
inerente ao indivíduo (LOURO, 1999):
[...] podemos entender que a sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias,
representações, símbolos, convenções... Processos profundamente culturais e
plurais. Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente “natural” nesse terreno, a
começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza. Através de
processos culturais, difinimos o que é ou não natural; produzimos e transformamos a
natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas. (LOURO, 1999,
p. 3).
Tal conduta, observada no discurso da professora, apenas evidência o despreparo para
lidar com situações dessa competência e, sobretudo, trabalhar com crianças incentivando o
respeito pelas diversidades. Costa e Joca (2009) comungam sobre a banalização contra a
população de gays, lésbicas e travestis, especialmente nos espaços de sociabilidade educativa,
e apontam para o perigo que a indiferença dos docentes referente as cenas de caráter
discriminatório pode refletir na perspectiva da proposta de ensino apresentada em sala de
aula. Segundo afirmam: “Os próprios educadores/as, comumente, consideram estes casos
como “brincadeiras”, coisa sem importância. Daí, por muitas vezes, os/as educadores/as não
só silenciam, mas colaboram ativamente na reprodução dessas violências” (2009, p. 21).
O segundo questionamento, relativo às posturas defendidas pelas educadoras sobre as
manifestações de gênero e sexualidade, emergiram, no entanto, alguns depoimentos
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norteadores, contendo elementos que podem ser aplicados na práxis educativa, como
estratégias de conscientização à multiplicidade de orientações presentes na vida
escolar/quotidiana do discente, conforme exposto a seguir:
“Futebol é um esporte pra meninos”, não, eu sempre procuro colocar pra eles que
a grande maioria são os meninos que jogam, mas que não há problema algum em
uma menina jogar também” sempre tem exemplos do sexo oposto que desempenha
alguma atividade tão bem como aquele que é dito pra aquilo, assim como existem
grandes profissionais, bons cozinheiros, costureiros, pessoas que entendem de
moda, que nem são mulheres. Não existe isso determinado, depende do talento de
cada um e do que ele gosta de fazer. “o meu pai não gosta que eu jogue futebol
porque eu sou menina”, então a gente vai trabalhando em cima das temáticas
trazidas por eles, pra que a gente tenha uma aplitude dessa visão de mundo, dos
conceitos, do que eu posso construir daqui pra frente e modificar, tanto na minha
vida, como na construção da minha própria família, que são os futuros pais, os
futuros educadores, então a gente vai trabalhando desde da pré adolescência que
existem outras possibilidades. Inclusive no caso da homosexualidade, que a gente
deve respeitar, compreender. A gente precisa trabalhar com as diferenças, como
esporte, religião, tudo que não pode não ser preferência minha, mas é do outro.
(Rubi)
Quando os meninos estão jogando futsal, eles não gostam que entre meninas. maa
eu coloco pra eles, que eles podem incluir, eles devem incluí-las, porque inclusive,
nós temos até pessoas, meninas, moças jogando futebol, até profissionalmente. Nós
temos a jogadora Martha, que é uma jogadora e joga até melhor do que muitos
homens. (Esmeralda)

Apesar da ausência de abundante conhecimento e maturidade para atuar


desenvolvendo uma aula puramente explicativa, em termos gerais, sobre a sexualidade,
orientações e manifestações de gênero (considerando esses, assuntos ainda abafados e pouco
valorizados pelos sistemas de ensino, e muitas vezes o próprio campo social) o esforço
apresentado acima, demonstra que simples ações, mesmo discursos indiretos realizados em
cirscunstâncias corriqueiras na escola, possuem um peso e valor significativos, principalmente
quando tratados de modo natural, usando exemplos característicos do dia a dia.
Não obstante, é percebível que conflitos relacionados às diferenças de gênero e o seu
papel social, especialmente reproduções de machismo, fomentam mais posturas de
desaprovação e criticidade do que incongruências abrangendo a sexualidade e orientação
sexual. A dificuldade de aceitação por parte das educadoras retrata a necessidade de cursos e
preparações que problematizem tal temática, impulsionando debates e reflexões sobre o
homesexualismo na escola e sociedade.
Quando questionadas sobre as formações voltadas para discutir as propostas
destacadas nesse escopo, todas responderam impreterivelmente que não tiveram, ou nunca
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participaram de grupos, palestras ou encontros formativos focalizando como ponto central


gênero e sexualidade nas intituições de ensino, mesmo que os Parâmetros Curriculares
Nacionais, embora tardio (1997), tenha incluído a “orientação sexual” num aspecto
transversal, que deveria contemplar as diferentes áreas do conhecimento, propondo ainda a
realização de questionamentos e discussões, afim de ampliar os saberes do educando,
construindo novos conceitos, e desconstruindo preconceitos já estabelecidos. (COSTA,
JOCA, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho objetivou analisar o posicionamento de algumas docentes atuantes em uma
instituição pública, especificamente na educação básica, frente as manifestações e conflitos de
gênero/sexualidade provocados por alunos presentes no âmbito observado, afim de
compreender como a postura e o comportamento adotado pelas mesmas, no que sucede o
assunto, interfere na prática pedagógica aplicada na sala de aula, e por consequência, no
aprendizado e significado que o aluno constitui sobre o fato nos espaços de interação social.
Tal propósito foi alcançado através das entrevistas constatando que as professoras se
deparam constantemente com discussões e demonstrações de intolerência e desrespeito por
parte dos alunos, em especial, reproduções machistas, que inferiorizam e excluem o sexo
feminino nas atividades e brincadeiras.
Percebeu-se ainda, que algumas educadoras limitam-se à explicações pouco
congruentes quanto as questões de cunho e orientação sexual, transmitindo falta de
sensibilidade e aporte teórico para ministrar uma aula conscientadora, que imprima condutas
de respeito e apoio aos diversos formatos de construção indentitária. Ao mesmo tempo,
também foram encontrados discursos racionais e cuidadosos de incentivo à participação e
valorização do feminino em tarefas que socialmente são ditas como exclusivas do sexo
masculino.
Nessa perspectiva, o estudo não se dá por encerrado, mas ao contrário, aponta para a
necessidade de ampliar argumentos, pesquisas e debates que trabalhem as temáticas
ressaltadas acima em formações de professores que atuam na escola pública, especialmente na
educação básica, com o intento de originar profissionais mais preparados para enfrentar o
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preconceito dentro e fora das paredes escolares, estimulando assim, ações democráticas e
efetivamente construtivas.

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MENINO OU MENINA: DESENHOS ANIMADOS E IDENTIDADES DE GÊNERO

Maria José Campos Faustino da Silva | maria_campos86@hotmail.com


Karyne Dias Coutinho

INTRODUÇÃO

O presente artigo consiste num recorte da pesquisa de mestrado que vimos


desenvolvendo junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, cujo objetivo é investigar as possíveis relações entre discursos de
gênero que atravessam certos desenhos animados e a construção das identidades infantis de
gênero em crianças de cinco e seis anos de idade, em uma instituição pública de Educação
Infantil.
Considerando que se trata de uma pesquisa recentemente iniciada, este texto se limita
a apresentar as lentes teórico-metodológicas utilizadas na investigação, em suas relações com
os resultados preliminares a que estamos chegando.
Dentre os autores que compõem a base teórica do estudo, destacam-se Marisa
Vorraber Costa (2003; 2007), Care Nelson; Paula Treicheer; Lawrence Grossberg (1995) e
Mariangela Momo (2007), que nos permitem problematizar as implicações da cultura para a
formação dos sujeitos, por meio das lentes dos estudos culturais.
O estudo se baseia também em Stuart Hall, no que se refere ao conceito de
identidade, e Dagmar Estermann Meyer (2007) e Guacira Lopes Louro (1997), no que se
refere ao conceito de gênero, entendendo-o como um processo construído socialmente,
produto das relações sociais e de poder.
As crianças contemporâneas, sujeitos de nossa pesquisa, nascem em um contexto
caracterizado por configurações econômicas, sociais, políticas e culturais que privilegiam a

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sua imersão em uma série de artefatos midiáticos e tecnológicos. Essas configurações


corroboram para que os modos de ser se construam a partir de práticas vividas e de relações
estabelecidas com outros sujeitos e também com artefatos que circundam nos inúmeros
espaços e tempos.
Percebemos também o quanto a criança consegue interagir e intervir no meio
circundante. O acesso à informação, aliado as novas concepções acerca do ser criança,
permitiu redimensionar o seu papel social, dando-lhes outras possibilidades de ser e estar
nesse espaço.
É pela produção de cultura que ela expressa o seu pensamento, suas aspirações, seus
medos. Sendo um sujeito e objeto cultural, as categorias “criança” e infância” são produzidas
e difundidas através de discursos institucionais, científicos e midiáticos, o que influencia as
condições culturais da pós-modernidade (BUJES, 2002).

Discutir as noções correntes de infância, é perguntar de saída, o quanto elas


correspondem às infâncias que conhecemos. É nos questionarmos sobre os efeitos de
tal modo de significar a infância nas práticas que historicamente organizamos para
ela e naquelas hoje vigentes na sociedade. É buscar identificar quais os efeitos de
tais significados e práticas na constituição das identidades infantis. (BUJES, 2002, p.
21)

Na tentativa de compreender o que é ser criança e os diversos entendimentos sobre


a(s) infância(s), notamos a existência de diferentes discursos anunciando uma “infância
moderna”, dotada de algumas características (dócil, obediente, ingênua, desprotegida), bem
como outros que tendenciam a evidenciar uma infância pós-moderna, com atributos
diferenciados – consumista, midiática, erotizada, tecnológica (MOMO, 2007).
A autora supracitada afirma ainda que considera a infância pós-moderna como a
infância contemporânea, produzida nos embates e desencaixes entre uma “face moderna” e
uma “face pós-moderna”. Entendemos que nos contrastes entre o moderno e o
contemporâneo, construímos uma teia de entendimentos sobre os sentidos e significados do
que é ser criança no presente momento, tornando a infância um campo repleto de identidades
infantis.

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Tomo a infância como um objeto cultural fabricado pelos discursos, pela mídia, pelo
consumo e pelas condições estruturais da pós-modernidade, configurando certas
identidades infantis e formas de ser criança. (MOMO, 2007, p. 117).

Nesse contexto, situam-se os objetos e os elementos que a mídia, a tecnologia e o


consumo oferecem às crianças. Entendidos como artefatos culturais, estes “objetos sob análise
[...], resultado de um processo de construção social” (Silva, 2005, p.134) se apresentam
personificados em desenhos animados, músicas, filmes, propagandas da TV, vestimentas,
dentre outros.
Considerando isso, lançamos os nossos olhares pelas lentes dos estudos culturais
entendendo que a cultura abarca os modos de vida, compreendendo ideias, atitudes,
linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder, toda gama de práticas culturais
produzidas em massa (NELSON; TREICHLER; GROSSBERG, 1995, p. 09).
Os estudos culturais em Educação ancoram o nosso olhar, para melhor pensarmos
acerca das relações entre cultura, poder e conhecimento. Segundo Costa, Silveira e Sommer
(2003, p. 19), os Estudos Culturais em Educação constituem uma ressignificação e/ou uma
forma de abordagem do campo pedagógico em que questões como cultura, identidade,
discurso e representação passam a ocupar, de forma articulada, o primeiro plano da cena
pedagógica.
Neste caminho, temos observado que os desenhos animados, enquanto artefato
cultural, se presentificam fortemente na vida das crianças, desde bem pequenas. Apresentados
pela TV, marcam a vida e parte da rotina das famílias, oferecendo imagens, personagens,
enredos, cores, formas e discursos particulares. E traduzem para o público infantil valores,
padrões e modos de ser justificados pelos heróis e heroínas, príncipes e princesas, estereótipos
de crianças “perfeitas”.
Um desenho animado, por exemplo, não é apenas uma manifestação cultural. Trata-
se de artefatos produtivos, “são práticas de representação, inventam sentidos que circulam e
operam nas arenas culturais onde o significado é negociado e as hierarquias estabelecidas”
(COSTA, SILVEIRA, SOMMER, 2013, p. 36). É preciso ver além do aparente, enxergar o
que está por traz das falas e das ações dos personagens.
Percebemos que os discursos proferidos pelos personagens nos desenhos animados
atravessam territórios preconceituosos e estereotipados. Segundo Costa, Silveira e Sommer
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(2003, p. 56), esses discursos frequentemente estabelecem o “normal” e, concomitantemente,


o “desviante”; o “progressista” e o “antiquado”; o “certo” e o “errado”, em um panorama que,
marcado pelas questões culturais, é naturalizado e mostrado como “moderno”, “atual”,
“biologicamente condicionado”, “estando na ordem das coisas”.
Os artefatos culturais, ainda, carregam consigo informações sociais que
ajudamamodelar as ações e os comportamentos dos indivíduos. Quando nos reportamos aos
desenhos animados, direcionados ao público infantil, notamos que seu conteúdo reafirma os
papéis destinados para meninos e meninas, polarizando formas de ser e estar na sociedade.
Giroux (2004, p. 89) afirma que o significado dos desenhos animados opera em vários
registros, mas um dos mais persuasivos é o papel que eles desempenham como as novas
‘máquinas de ensino’, como produtores de cultura.
Desta maneira, as crianças incorporam esses artefatos culturais, que se traduzem para
elas, conforme afirma Momo (2007) enquanto fruição, prazer e geração de lucro para as
corporações que as produzem. E, se constituem como meios de representar e de compor
identidades infantis.

Assim como os relógios digitais reconfiguraram nossa percepção do espaço e do


tempo, desconectando-nos da noção temporal do relógio solar, regulada pela
natureza, jogando-nos num eterno presente; e assim como as naves espaciais
incorporaram à nossa identidade humana uma noção de passado e de futuro nunca
antes imaginada, muitos artefatos contemporâneos vêm contribuindo para produzir
alterações radicais nas formas como somos situados no mundo. Não só os «shopping
centers», mas também as imagens da televisão, as fotografias, os vídeos e filmes, os
jogos eletrônicos, as revistas, os «outdoors», etc., são textos que, junto com as
teorias científicas, as narrativas filosóficas e os dogmas religiosos vão nos
subordinando, governando nossa vontade, fabricando nossas identidades e nos
aprisionando em significados e representações. (COSTA, 2003)

Na esteira disso, temos entendido que os desenhos animados acabam por constituir
identidades de gênero nas crianças, configurando modos de ser menina e menino, tendo em
vista que este artefato cultural se apresenta para a criança enquanto um modelo, um padrão a
ser seguido, explicitamente percebido pelas características dos personagens e suas ações.
É possível, assim, analisar quais as contribuições que o desenho animado pode
oferecer para a discussão em torno das identidades de gênero no cenário pedagógico, na
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escola de Educação Infantil. Segundo Fischer (2000), analisar os produtos da mídia nessa
perspectiva acaba implicando uma “descrição das formas de o poder se manifestar e se
exercer”.
Tendo como cenário a escola pública de ensino, entendida como lócus de produção
de conhecimento, estamos nesse momento da pesquisa junto às crianças, ouvindo-as, o que
tem nos levado a apontamentos preliminares que fortalecem nosso pressuposto inicial de que
os discursos veiculados em desenhos animados, ao anunciar modos considerados corretos de
ser menina e de ser menino, vão permitindo que as crianças se identifiquem com tais modos,
passando a agir também em função deles.

Através das narrativas, linguagem e textos, são apresentados discursos que capturam
o sujeito porque, eles não apenas descrevem ou falam sobre determinadas coisas,
mas, ao fazer isso, eles instituem coisas e inventam sua identidade (COSTA, 2000).

Apresentamos, também, dois conceitos considerados importantes para a estruturação


da pesquisa, a saber: gênero e identidade. O primeiro, entendemos como um processo
construído socialmente, produto das relações sociais e de poder. A esse respeito Meyer (2007,
p.16), afirma:

Gênero aponta para a noção de que, ao longo da vida, através das mais diversas
instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres, num
processo que não é linear, progressivo ou harmônico e que também nunca estará
finalizado ou completo.

Segundo Louro (1997, p. 24-25), o conceito de gênero precisa ser entendido como
constituinte da identidade dos sujeitos. Compreendendo assim que os sujeitos têm identidades
plurais, múltiplas, identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que
podem, até mesmo, ser contraditórias. Ao afirmar, portanto, que o gênero institui a identidade
do sujeito (assim como a etnia, a classe, ou a nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir
a algo que transcende o mero desempenho de papéis, a ideia de perceber o gênero fazendo
parte do sujeito, constituindo-o.

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No que concerne à identidade, nos referenciamos em Hall (2006, p.12). Segundo o


autor, a identidade tornou-se uma ‘celebração móvel’, formada e transformada continuamente
em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais
que nos rodeiam.

O que importa aqui considerar é que – tanto na dinâmica do gênero como na


dinâmina da sexualidade – as identidades são sempre construídas, elas não são dadas
ou acabadas num determinado momento. […]. As identidades estão sempre se
constituindo, elas são instáveis e, portanto, passíveis de transformação. (LOURO,
1997, p. 27).

A identidade é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume


identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor
de um ‘eu’ coerente.
Para auxiliar no entendimento dos conceitos supracitados e ampliar as discussões, no
intuito de compreender como as crianças atuam sobre os artefatos da cultura, acionamos os
Estudos Culturais como abordagem teórico-metodológica.
De acordo com os enunciados propostos por essa linha de pensamento, a cultura
carrega consigo relações de poder, propondo-se a analisar a ligação entre o conjunto da
produção cultural contemporânea e a sociedade. Em outras palavras, implica perceber como
as práticas sociais dos sujeitos influenciam no comportamento e nas relações entre os
mesmos. Por outro lado, o acesso a uma gama imensa de informações permitiu o surgimento
de novas demandas, sendo o consumo de bens e serviços um exemplo.
Como procedimentos metodológicos, a pesquisa está sendo feita por meio de
observações realizadas na instituição, entrevistas com crianças de cinco e seis anos de idade e
análises de seus discursos que ora reverberam entendimentos dos modos de ser menina e ser
menino, a partir dos discursos de personagens do desenho.
O desenvolvimento da investigação tem evidenciado, como um de seus resultados
preliminares, uma estreia proximidade entre os discursos de gênero que atravessam os
desenhos animados e os significados que as crianças desta pesquisa atribuem às relações de
gênero no cotidiano da Educação Infantil, inclusive incorporando em suas próprias formas de

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expressão as falas e os gestos dos personagens dos desenhos quanto aos modos de ser menino
e ser menina.
De modo geral, os meninos demonstram inclinação pelos super-heróis, personagens
dotados de força, virilidade, jovialidade e sabedoria. Para as meninas, são destinadas as
“mocinhas” das histórias, modelos de fragilidade, sutileza e amabilidade.
A desconstrução desses modelos, propondo uma visão ampla e critica sobre os papéis
sociais, são preocupações abarcadas pela educação na atualidade, na medida em que tais
discursos emergem nas falas e ações infantis em diferentes momentos da rotina escolar.
Aliadas a esses papéis, somam-se os objetos vinculados a tais personagens, que também
agregam valor simbólico, principalmente os brinquedos e vestimentas, incitando a aquisição
desses bens e conseqüentemente alimentando o consumismo.
Deste resultado preliminar, pôde-se concluir que, a despeito das conquistas sociais
granjeadas no campo das discussões sobre gênero e sexualidade, os desenhos animados
seguem atravessados por discursos preconceituosos de gênero, que conformam modos de ser
menina e ser menino.
Assim, nossos primeiros achados sinalizam para uma investigação que possibilita
uma leitura crítica da mídia com as crianças por meio dos desenhos animados, tendo como
foco as identidades de gênero presentes nos artefatos culturais mencionados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PEDAGOGIA SEXISTA: TERNURA DO NÃO E ASTÚCIAS DA CORREÇÃO

João Batista de Oliveira Filho | joaofilho15@yahoo.com.br


Karyne Dias Coutinho

A combinação entre sexualidade e educação vem se mostrando um tema bastante


espinhoso para a sociedade e o sistema educacional brasileiro. Seu encontro com a
perspectiva de gênero tem sido notadamente problemático de modo que o combo gênero,
sexualidade e educação tem causado um amplo alarde, especialmente nos últimos anos. Sua
abordagem não têm sido silenciosa. De fato, já podemos afirmar que o debate em torno desta
questão está instalado, o que é bastante positivo, destarte a pesquisa educacional tem se
preocupado cada vez mais com maior ânimo a esse assunto. A discussão tem sido posta em
evidência pela mídia, pela internet, pelo movimento feminista e LGBT, por movimentos
religiosos, mobilizando até mesmo a pauta do congresso nacional e provocando calorosos
discursos e polêmicos posicionamentos.
O que tem impressionado nesses debates é, em primeiro lugar, a influência de grupos
ultraconservadores esmerados em produzir um discurso obscurantista de embasamento
biologicista e essencialista em que tudo parece ter o dedo de Deus ou da Biologia. Sectários
de dogmatismos moralistoides, encerram os debates de gênero em um maniqueísmo obtuso,
utilizam a expressão pejorativa e infundada de “ideologia de gênero” na tentativa paranoica de
desqualificar e dar uma conotação política negativa ao movimento social, cultural e intelectual
que visa interpelar e desnaturalizar o binarismo de gênero como forma única de existência.
Esse recrudescimento do pensamento reacionário tem lamentavelmente alcançado a
educação, solapando iniciativas que alteram a posição da escola em relação às diferenças,
embora ela não possa mais se omitir de enfrentar o assunto, pois, é claro, lésbicas,
homossexuais, transexuais e transgêneros possuem infância e não sem conflitos estão nas
salas de aula. Os sexismos que encerram os gêneros em papeis específicos também produzem

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enquadramentos reducionistas e reforçam estereótipos de gênero articulados com a cultura


machista. Como se vê, o momento é de embate, corroborado por um segundo ponto que causa
perplexidade: o fato de que a escola faz pouca concessão ao assunto, assumindo uma feição
reacionária e alheia à própria diversidade que a constitui. Na contra mão disso, vem sendo
ampliados, no meio acadêmico, estudos que com frequência se debruçam sobre essa temática,
dando sinais de seu vigor e de que o assunto não se encerrará nas constrangedoras votações do
congresso nacional, nem nas vulneráveis medidas do Ministério da Educação.
Esse cenário atual de discussões em torno do tripé gênero, sexualidade e educação
vem ao encontro das preocupações da pesquisa que estamos desenvolvendo junto ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(PPGED/UFRN), que analisa a ternura do não e as astúcias da correção que constituem a
docilidade da pedagogia sexista em turmas de pré-escola da rede pública de ensino do
município de Patos, Paraíba/Brasil. Este texto, de autoria do pesquisador e sua orientadora,
consiste num breve recorte da referida investigação. Vale referir que o embrião desta pesquisa
gerou-se, justamente, através da experiência que o pesquisador teve como professor, durante
dois anos, em salas da educação infantil de uma instituição pública de ensino da cidade de
Patos, onde foi interpelado por intrigantes questões que passou a enxergar com as lentes dos
estudos pós-estruturalistas de inspiração foucaultiana e dos estudos de gênero. Dessa forma,
toma-se como pressuposto para realização das análises os discursos, os textos, os efeitos das
linguagens e as relações de poder-saber, que investem num sujeito centrado e coerente,
homogêneo, produzindo um tipo específico de subjetividade. Nessa perspectiva, “subjetivação
entendida como práticas e processos heterogêneos por meio dos quais os seres humanos vem
a se relacionar consigo mesmo e com os outros como sujeitos de um certo tipo” (ROSE, 2001,
p. 36).
Entre as reflexões feitas ainda no chão da sala de aula, percebeu-se a omissão em torno
da discussão de gênero. Uma série de “problemas” ocupava as pautas nas reuniões
pedagógicas e em nenhuma vez, em mais de dois anos, sequer se tocou no assunto de gênero
ou sexualidade como uma problemática. O assunto era comentado em particular, quase que
em segredo entre professores, que fugiam do debate aberto: havia ali uma estrutura velada,
especializada, sustentada no silêncio. Dessas experiências docentes, advieram tanto a ideia e o
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desejo da referida pesquisa de Mestrado, quanto a hipótese de que as práticas curriculares das
pré-escolas de Patos desenvolviam mecanismos de produção de gênero (masculino e
feminino) e de intervenção dispostos a corrigir e normalizar os corpos desviantes que
atravessam a lógica linear entre sexo e gênero, esmeradas na vigilância e na valoração de
papeis fixos de gênero específico, ancorado na ideia da suposta existência de um sexo
“verdadeiro”. O tabu sustentava o temor de que papeis sociais masculino e feminino fossem
perturbados.
As minúcias do funcionamento desse processo arrebataram a curiosidade do
pesquisador, intrigando-lhe inicialmente o constante interesse escolar em coibir inúmeras
situações em que as crianças pequenas praticavam subversão dos papeis dicotômicos de
gênero. Ao observa-las, passou-se a notar a gravidade daqueles “delitos”, cenas
desconcertantes para muitos colegas professores que se mostravam contrariados por aqueles
corpos. Havia um receio profundo e um incômodo gerado por uma estranheza sempre que a
barreira clichê performática dos gêneros era questionada. Isso pôde ser observado
especialmente através do cuidado na escolha dos brinquedos, como se estes representassem
“próteses identitárias” inquestionáveis, e sua desqualificação fosse sintomática de uma
“anormalidade” indesejada, a ser corrigida.
O que se delineava nas reações das professoras era o entendimento do que seja
normal e anormal. Que ao perscrutar a identidade de gênero e a sexualidade humana,
promoviam intervenções compulsórias coibindo as tais “transgressões” para que os
comportamentos e escolhas das crianças correspondessem às expectativas de masculinidades
e feminilidades “normais”. Havia um “cerco” em torno da performance de gênero das
crianças, intencionado em afastar a ameaça de uma indesejada distorção na orientação sexual.
O desejo e o afeto, não poderiam destoar da lógica reprodutiva pênis-vagina, dada pela
natureza com suposto uso exclusivo. Orientação sexual e identidade de gênero apareciam
como coisas idênticas com ligação casuística automática.
A partir do estranhamento com aquilo tudo, buscou-se pensar mais que aquelas
flagrantes dos comportamentos desviantes, e foi-se percebendo a silenciosa, mas não menos
poderosa, pulverização de aparatos pedagógicos, sutilezas gestuais e de atos que investiam,
ora explicitamente, ora dissimuladamente, naqueles corpos infantis. Perscrutando com maior
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perícia, cada vez mais intrigado com a meticulosidade daquelas ações, pôde-se ir
identificando o engendramento cada vez mais especializado de subjetivação: havia ali
“pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência
inocente, mas profundamente suspeitos” (FOUCAULT, 2014, p.136). Uma articulação entre
saberes pedagógicos, disciplina e vigilância, conectando uma coerência que uma vez explícita
pelo corpo, dado biologicamente, deveria se manter inquestionável. O corpo expressava uma
suposta “verdade natural” e o gênero, seu devoto, não poderia desautorizá-lo.
Estava presente naquele contexto uma docilidade típica da ação pedagógica na
Educação Infantil que, de forma idílica, muitas vezes prolixa, falava da sexualidade das
crianças, desfilava pela linguagem, pelos brinquedos, pelos contos infantis, pelo espaço da
creche com a melhor das intenções, mostrava-se meiga até pela maneira afável de dizer não,
conduzindo com ternura o lugar de cada gênero. Esses sistemas intercambiáveis me remetiam,
não de forma instantânea, mas lentamente, ao que Foucault (2014, p.133) descreve como
sendo “uma coação calculada que percorre cada parte do corpo, assenhoreia-se dele, dobra o
conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos
hábitos”.
Essa docilização do corpo intercambiada com a minúcia da vigilância em torno de
fazer cumprir a verdade do corpo possuía um vigor que articulava uma racionalidade
mantenedora de práticas que pareciam tanto necessárias quanto naturais. Eram bem vistas
tanto pelos professores, quanto pelos pais; possuíam legitimidade e um apelo reiterado ao
entendimento essencialista e monolítico de gênero. A partir do que estava delineado, foi-se
elaborando o entendimento de que havia uma porção da expressão hegemonicamente
heteronormativa e sexista que era retirada da cultura escolarizada. Essa estrutura aparecia
cada vez mais presente à medida que o pesquisador se dedicava a leituras das produções de
Louro (1999), Silva (2002), Foucault (2014), Scott (1995) e Butler (2015).
Aos poucos, foi-se elaborando o entendimento de que a vigilância permanente, as
prescrições, o controle e o disciplinamento pulverizado e especializado controlava e possuía
um caráter extremamente negativo. Impressionava toda uma articulação de artifícios
destinados a eliminar, fazer desaparecer a incoerência entre corpo-gênero-sexualidade, agindo
na montagem de um sujeito unificado, coerente, homogêneo. Acompanhando com mais
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afinco as teorizações foucaultianas a respeito da disciplina e o modo extremamente perspicaz


de análise daquele pensador, logo atentou-se pensar para além do que aparecia como
conotação destrutiva/negativa, para enxergar com as lentes foucaultianas o caráter produtivo
do poder e da disciplina.
Era observável nas crianças o constrangimento, a vergonha em serem flagradas
descaminhando do roteiro de gênero que são ensinadas a performar. Essa coerção produzia
efeitos que inicialmente o pesquisador suponha como negativos. Mas acabava por produzir
um comportamento, uma subjetividade, que incidia sobre as crianças, constituindo-as,
produziam-nas como sujeitos de um determinado tipo. Esse mecanismo denunciava o
engendramento de um poder oriundo da ação sobre elas; produzia corpos dóceis, na expressão
de Foucault (ano??) “maleáveis” – vale lembrar que a produção de sujeitos específicos não é
entendida nessa perspectiva como processo casual, de determinação automática.
Vejamos então como Veiga-Neto explica essa ideia foucaultiana:

Em primeiro lugar, dizer que a disciplina fabrica os corpos dóceis não significa dizer
que ela fabrica corpos obedientes. Falar em corpos dóceis é falar em corpos
maleáveis e moldáveis; mas não se trata, aí, de uma modelagem imposta, feita a
força. Ao contrário, o que é notável no poder disciplinar é aquele que “atua” no nível
do corpo e dos saberes, do que resultam formas particulares tanto de estar no mundo
– no eixo corporal – quanto de cada um conhecer o mundo – o eixo dos saberes.
(Veiga-Neto, 2007, p. 71)

Em “vigiar e Punir”, Foucault (2014) usa uma ilustração em que pretende provocar o
leitor a pensar a encenação do corpo submetido. A figura ilustra as amarras utilizadas para
impor uma regra, corrigir distorções. O nó em torno da árvore corrige as distorções e os
desvios não desejados, simulando a ação normativa do poder disciplinar.

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30. N. Andry. A ortopedia ou arte de prevenir e corrigir, nas crianças, as deformidades do corpo, p. 1749.

No processo analítico inicial da investigação a que vimos nos referindo, utilizamo-nos


da expressão operadores didáticos, inspirados na leitura do livro Foucault e a Educação de
autoria do professor e pesquisador Alfredo Veiga-Neto (ano??). Em nossas compreensões de
partida, esses operadores atuam como artifícios meticulosos, inclusive muito bem
racionalizados pelo cânone da Pedagogia Moderna. São saberes mobilizados pela prática
pedagógica que buscam assegurar a positividade de seus métodos, de sua ação no sucesso da
formação do sujeito homogêneo e coerente396; portanto, compreendendo-se o sujeito como um
efeito.
Tendo em consideração esse processo, denunciado amplamente pela literatura “pós”
no campo da educação (estudos pós-críticos, pós-estruturalistas, pós-feministas), elegeu-se
como problemática central da referida investigação as conexões entre determinadas práticas
pedagógicas e certos processos de subjetivação infantil no que se refere às questões de gênero
e sexualidade, através principalmente do que estamos chamando de operadores didáticos,
responsáveis por mobilizar condutas, posturas, ações, sentimentos, sem, no entanto, se
fazerem perceber enquanto tais.
Aqui é preciso abrir um espaço para lembrar que todo esse cenário não era

396
Remetemos-nos aqui ao modelo de homem hegemônico do humanismo europeu, branco, cristão, urbano e
heterossexual, sob o qual a pedagogia moderna teve amplos efeitos. Como sabemos, o homem moderno é o
homem escolarizado.
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inteiramente novo para o pesquisador, pois possuía recordações dos tempos que vivenciou a
escola como aluno e que, ao mesmo tempo, essa conjuntura não estava posta de forma tão
lógica. Ele desconfiava que estivesse diante de um corpo semântico de enorme complexidade
do qual apenas havia começado a puxar os fios. Foi quando começou a buscar leituras nos
estudos contemporâneos de gênero e passou a suspeitar que a cultura hegemônica
heteronormativa e genereficada atuava poderosamente na construção educacional de
operadores didáticos, de papeis, identidades, posturas e sentimentos, ensinados nas práticas
pedagógicas, sem, no entanto, se fazerem perceber enquanto construídas. Daí em diante,
passou a se movimentar tentando abrir caminho para realizar esse estudo que ora
apresentamos.
É preciso ressaltar que o estudo trata da análise de como se constrói um conjunto de
práticas reguladoras em um espaço restrito, mas sem a pretensão de apontar um caminho
salvacionista seguro, sob o qual se possa conduzir algum tipo de libertação. Não é intuito
compreender ou eleger um teórico paráclito, nem muito menos ministrar nenhuma panaceia.
Contudo, o estudo possui uma dimensão política que não abre mão de denunciar a montagem
de certas estruturas arbitrárias praticadas com valor de verdade, expondo-as a possibilidades
de contestação.
Ao longo desse processo, traçaremos nossas trajetórias inspirando-se em diferentes
textos, inventando modos de pesquisar a partir do nosso objeto de estudo e do problema de
pesquisa que formulamos. “Fazer as articulações de saberes e as bricolagens metodológicas é
fundamental nas pesquisas pós-críticas” (PARAÍSO, 2014, p.35). O que significa que o
estudo não se subsidia unilateralmente numa teoria mestra, nem num método no sentido
rígido do termo, mas que se recorrerá a diferentes arranjos intelectuais que oferecem
considerações profícuas a nosso objeto. Utilizando, dessa forma, a potência de diferentes
conceitos e ferramentas para oferecermos compreensões diferentes sobre ele. Porém, também
é importante que se diga que essas bricolagens estarão apoiadas nos deslocamentos realizados
no âmbito das teorias pós-críticas.
Procedimentalmente a fim de conduzirmos e multiplicarmos as possibilidade de
entendimentos a respeito do nosso tema, trabalharemos a revelia da fixidez metodológica que
persegue obstinadamente um único caminho confiável. A orientação com a qual nos
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aproximamos, inspirada nos pensamentos “pós”, exige a invenção de vários caminhos,


diferentes deslocamentos, rejeitando perspectivas maniqueístas. Construir interrogações nesse
sentido acompanha-se de um exercício de articulação e revisão crítica permanente, sempre
aberto a possibilidades de crítica e de novos trajetos.
Seguindo esse esboço, nossas primeiras incursões ao estudo analítico do objeto se dará
através de entrevistas semiestruturadas, onde nos dedicaremos a ouvir as narrativas dos
professores, conhecer o modo como pensam a questão de gênero, qual a lógica que elaboram
e a partir de que referências elas se sustentam. Também iremos fazer uso da observação
participante, observando o uso dos espaços, o uso da linguagem e as ações dos professores,
além de registros fotográficos. Também realizaremos análises dos documentos curriculares
da rede municipal de ensino e do material pedagógico produzido nas atividades pedagógicas.
Por fim, destacamos que este trabalho corresponde apenas às primeiras elucubrações
inacabadas da referida pesquisa, que suscita uma série de inquietações, dentre as quais: Como
se dá, na pré-escola, a montagem de interditos direcionadas para conservação da ordem linear
e casual sexo-gênero como verdadeira e única? Que compreensões podemos articular a
partir da relação conflituosa e imprecisa dos arranjos de gênero sexualidade entre poder e
subjetivação ? Que leituras podemos fazer das práticas pedagógicas normóticas na pré-escola
e os choques com as recentes sacudidas culturais da contemporaneidade, no que se refere a
problematização das identidades fixas, coerentes e estáveis?

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

BUTLER, Judiht. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. São Paulo:


Civilização Brasileira, 2015.
FOUCAUT, Michel. Vigiar e punir: O nascimento da prisão. Rio de janeiro: Vozes, 2014.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 1997.
LOURO, Guacira Lopes (org) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:
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Autêntica, 1999.
MEYER, Dagmar Estermann. PARAISO, Marlucy Alves (orgs). Metodologias de pesquisas
pós-críticas em educação. Belo Horizonte: Mazza, 2014.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. Belo
Horizonte: Mazza, 2014.
ROSE, Nikolas. Como se deve fazer a história do eu?. Educação e realidade , Porto Alegre,
v.26,n.1,p33-58,jun./jul.2001.
SCOTT, Joan . Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto
Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
currículo. Belo Horizonte-MG: Autêntica, 2002.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

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PERCEPÇÃO DO ESTUDO DE GÊNERO NA MÚSICA MULHERES:


UM CONVITE À IMAGINAÇÃO SOCIOLÓGICA

Josemar Medeiros da Silva

INTRODUÇÃO

As orientações curriculares para o Ensino Médio em sua apresentação esclarecem


acerca da importância atribuída a formação de cidadãos com compromisso ético citando a
escola como condição essencial a inclusão e democratização das oportunidades no Brasil
(BRASIL, 2008). Constituindo em um exímio convite a uma educação de qualidade e a uma
sociedade mais igualitária. No entanto, a realidade presente no cotidiano escolar nos adverte
que é preciso avançar para além dos registros no papel.
A relevância deste estudo torna-se imprescindível partindo do pressuposto de que a
escola é um espaço de aprendizado e de construção do indivíduo, e, se pretende pensar em
uma transformação histórico-social e/ou sócio-cultural, faz-se necessário pensar em uma
mudança de paradigma no que tange aos conceitos de papéis nas relações de gênero, tornando
necessário (des)construir397 para depois (re)construir o conceito de gênero, “a fim de que
possamos nos tornar pessoas melhores capazes de construir novos tempos, melhores do que
este, para isto urge ‘deixarmos de ser machos ou fêmeas, para sermos melhores seres
humanos’(MACHADO et al, 2010, p. 13)”.
Trazer à tona o estudo de gênero deve ser um dos objetivos da educação escolar,
acreditando que no futuro, o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 tenha mais sentido ao
promulgar a igualdade de todos, necessitando haver transformação social e cultural e a escola
pode contribuir para a mudança no que tange as relações de gênero. Conforme MACHADO et

397
(Des)contruir neste contexto está diretamente relacionado a ideia de desnaturalizar o que parece natural (um
dos objetos de estudo da disciplina de Sociologia), mas que na verdade faz parte da segunda natureza, que está
ligada a conjuntura das relações sociais.
1259
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al(2010) já declarou que


(...) para que a escola ocupe um lugar significativo para aqueles que a frequentam e
para que tenhamos uma educação que vise à mudança social, será preciso enfrentar
discussões, conversas desconfortáveis e, algumas vezes, assustar/desafiar com outras
visões de mundo (MACHADO et al, 2010, p. 45).

Ciente de que toda mudança exige esforço, mas se houver uma consciência na
comunidade da pluralidade que engloba as relações de gênero e o poder que esta exerce, a
possibilidade da contribuição na construção de cidadãos mais conscientes é mais provável.
Deste modo, este estudo embasa-se em uma experiência vivenciada com estudantes de uma
turma do terceiro ano do ensino médio de uma escola da rede pública estadual no ano de
2014, em específico, com o estudo de gênero nas aulas da disciplina de Sociologia utilizando
como recurso didático a música Mulheres (1995), de autoria de Toninho Geraes e interpretada
por Martinho da Vila e a opção de trabalhar com uma pequena amostragem deu-se pelo fato
da possibilidade de estudar o conteúdo em profundidade, explorando todos os
questionamentos levantados durante a tempestade de ideias que o estudo de gênero provoca.
Trabalhar com música no enfoque do estudo de gênero surgiu da perspectiva de
apresentar a temática de forma lúdica, afastando qualquer possibilidade de agressividade
diante da disparidade que existe diante das diferenças de gênero entrelaçadas na sociedade.
Para composição deste trabalho, metodologicamente, optou-se pelo campo da
abordagem qualitativa; tomando como base a pesquisa documental conforme Godoy398(1995)
declarou que a partir da pesquisa documental pode-se propor a exploração de novos enfoques
ou releitura do que já foi abordado. E ainda, optou-se em trabalhar também com a análise de
conteúdo, pois "ela parte do pressuposto de que, por trás do discurso aparente, simbólico e
polissêmico, esconde-se um sentido que convém desvendar (GODOY, 1995, p.23)" havendo a
necessidade de novas interpretações dos dados pesquisados.
A análise de conteúdo é composta por três fases: pré-análise, exploração do material e
tratamento dos resultados. A pré-analise é a fase organizacional em que a pesquisa
documental e fundamentação teórica fazem parte do processo; a exploração do material é o
momento da prática da análise em si, a vivência no campo de pesquisa, é o cumprimento do

398
Arilda Schmidt Godoy no período em que escreveu o artigo Pesquisa Qualitativa – tipos fundamentais para a
Revista de Administração de Empresas, em 1995, pertencia ao Departamento de Educação da UNESP, Rio
Claro.
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que foi previsto na pré-análise; e por fim, a última fase refere-se ao tratamento dos resultados,
momento em que se busca a interpretação do material pesquisado.
É nesse ínterim que este artigo toma corpus, dividindo-se em três partes embasadas nas
fases fundamentais da análise de conteúdos, acrescido das considerações finais.

PRÉ-ANÁLISE

A pré-análise é o momento de estabelecer um planejamento, que pode ser aprimorado,


durante o processo e organização do estudo a que se submeteu. Em específico a este artigo,
optou-se em fundamentar os estudos em uma tríade composta pelo conhecimento do campo
de pesquisa, pelo arcabouço teórico e, a música como recurso didático.

CONHECENDO O CAMPO DE PESQUISA

O campo de pesquisa foi uma escola pública estadual de um bairro metropolitano


atendendo a comunidades periféricas da capital, optou-se em preservar o anonimato da
instituição para preservar o corpo discente envolvido, haja vista que o ano da pesquisa já fora
revelado (2014), e a escola em questão possuía neste ano uma turma única do terceiro ano do
ensino médio.
A turma era composta por 28 discentes, dos quais 57,1% eram do sexo masculino e
42,9% do sexo feminino. A importância de apresentar a porcentagem separada por sexo dá-se
pelo fato da generalidade de pensamento está imbricado no comportamento de ambos os
sexos. Outro dado importante a apresentar trata-se da semelhança familiar no que tange a
escolaridade dos pais, do qual apenas 3,6% possuem o ensino superior incompleto. Neste
caso, se partir da hipótese que a escolaridade dos pais influencia na educação dos(as)
filhos(as), o quadro que foi identificado neste campo de pesquisa apresenta 95,4% de
homogeneidade.

ARCABOUÇO TEÓRICO

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O corpus teórico deste artigo embasa-se no estudo de gênero desenvolvido por Saffioti
(1987), que enfatiza que
A identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída através da
atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes
categorias de sexo. A sociedade delimita, com basta precisão, os campos em que
pode399 operar a mulher, da mesma forma como escolhe os terrenos em que pode
atuar o homem (SAFFIOTI, 1987, p. 08).

Assim, o estereótipo que se costuma apregoar como fenômeno natural às posturas


masculinas e/ou femininas tende a romper-se a partir da concepção de gênero não está
determinada no sexo adquirido no momento da fecundação – nascimento, haja vista que a
relação de gênero é um fenômeno social e não uma determinação biológica. E que os papéis
atribuídos aos indivíduos não está condicionado à natureza, mas ao meio social.
A motivação deste estudo partiu da pré-disposição de cumprir o que a Cúpula do
Milênio400 estabeleceu e que os documentos oficiais voltados à educação trataram em atender.
Como exemplo, cita-se as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) da qual se encontra o
pressuposto em que se fundamenta na capacidade do docente pauta-se no I Plano Nacional de
Educação (2001–2010), especificamente no que tange as habilidades e qualidades esperadas
dos docentes, na qual se encontra na VIII posição a inclusão das questões de gênero
(BRASIL, DCN, 2013). E ainda ressalta que:
(...) a valorização e a promoção dos Direitos humanos mediante temas relativos a
gênero, identidade de gênero, (...) bem como práticas que contribuam para a
igualdade e para o enfrentamento de todas as formas de preconceito, discriminação
(BRASIL, p. 179, 2013).

Para a inserção do estudo das relações de gênero buscou-se embasamento na concepção


de identidade, haja vista que as relações de gênero não se atem apenas na definição do papel
do homem e do papel da mulher, mas na sua pluralidade. Entretanto, ao falar em identidade,
defini-la com exatidão é complicada, concordando com Candau, ao declarar:
No caso da identidade, a tentativa de depuração conceitual é mais difícil. No que se
refere ao indivíduo, identidade pode ser um estado – resultante, por exemplo, de
uma instância administrativa: meu documento de identidade estabelece minha altura,
minha idade, meu endereço, etc. -, uma representação – eu tenho uma ideia de quem
sou – e um conceito, o de identidade individual, muito utilizado nas Ciências

399
Grifos da autora.
400
Em 2000, 189 países, dentre os quais o Brasil, firmaram compromisso a serem alcançados até 2015, tendo
como um dos objetivos à qualidade de vida. Com isto, a ONU instituiu os anos entre 2005 a 2014 como a
Década da Educação, citando entre outras metas, a equidade social e de gênero (BRASIL, 2013).
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Humanas e Sociais (CANDAU, 2011, p. 25)

A melhor definição de identidade encontra-se em JESUS(2012) que apresenta a


identidade de gênero como o “gênero com o qual uma pessoa se identifica, que pode ou não
concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento” (JESUS, 2012, p.
24). Entretanto, é primordial o exercício da imaginação sociológica na qual “capacita seu
possuidor a compreender o cenário histórico mais amplo (MILLS, 1959, p. 11)”. Deste modo,
talvez a distinção mais proveitosa usada pela imaginação sociológica seja entre “as
perturbações pessoais originadas no meio mais próximo” e “as questões públicas da
estrutura social”. Essa distinção é um instrumento essencial da imaginação
sociológica e uma característica de todo trabalho na ciência social (MILLS, 1959, p.
14)

É esta perturbação que se pretende provocar no corpo discente, despertar a imaginação


sociológica de modo a incomodar-se com o que parece natural, mas que na realidade faz parte
da conjuntura social; desenvolver a criticidade dos(das) estudantes com bases sólidas para
romper com a dicotomia existente nas relações de gênero.
Os discursos tem se ampliado em torno do debate das relações de gênero e uma história
de conquistas vem marcando a trajetória dos embates voltada às relações de gênero. Entre
estas conquistas pode ser citada a Lei 11.340/06, mas conhecida como a Lei Maria da Penha
que trata diretamente a respeito da violência doméstica.
O que precisa ser observado é o caráter coercivo que a política pública apresenta a
temática de gênero, não que seja irrelevante, mas precisa avançar mais. É preciso uma atuação
conjunta de conscientização, coerção e fiscalização; faz-se necessária uma atuação política
focada no trabalho educativo, de conscientização aos papéis atribuídos às relações de gênero.

A MÚSICA COMO RECURSO DIDÁTICO

Segundo Adorno, "contrariedade significa descontinuidade (ADORNO, p.57, 2011)",


com isso problematiza a discussão social da música a partir da autocorreção do fenômeno
social imbricada na letra, podendo ser passível de ser analisada e estudada com vistas a
atender determinados critérios empíricos para que assim, possam ser revistos e modificados o
sentido intrínseco registrado na música, sendo assim,
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partindo-se do princípio de que a problemática e a complexidade sociais também se


expressam por meio das contradições presentes na relação entre a produção e a
recepção musicais na estrutura da escuta inclusive, não se deve esperar nenhum
continuum ininterrupto desde uma escuta perfeitamente adequada a uma escuta
desconexa e sub-rogada [...], mas, ao contrário, que tais contradições e oposições
também sejam refletidas na própria natureza da escuta musical, bem como nos
hábitos de escuta (ADORNO, p.57, 2011).

É aproveitando-se deste hábito da escuta que se busca despertar a “imaginação


sociológica” dos/das estudantes. Aguçando-os/as a conectarem a letra/escrita da música ao
contexto atual, haja vista que toda obra carrega um tempo histórico e espaço geográfico e que
uma audição desconexa contradiz a realidade, revertendo a um contexto (propositalmente ou
não) adverso do que o artista quis transmitir. Esta reflexão serve como exercício para o/a
estudante descontruir a música e desnaturalizá-la.

EXPLORAÇÃO DO MATERIAL

Por se tratar de um estudo empírico tendo como base a letra de uma música, o apoio em
Weber (1995) serviu como pilar para estruturar o campus em que possibilitasse a imaginação
sociológica do corpo discente.
Segundo Weber,
o fenômeno da racionalização do material sonoro não se desenvolve de modo
unívoco. Ele comporta "infiltrações" não propriamente racionais, que no entanto, ao
inserirem-se em um "sistema" racional, acabam por ser absorvidos por sua lógica,
nem que seja como antídoto a ela (WEBER, 1995, p. 43).

É nas infiltrações da letra da música Mulheres em que este estudo pretende adentrar, de
modo a despertar o estranhamento dos(das) estudantes ao que lhe parece óbvio e
desnaturalizar a cultura enraizada das relações de gêneros antagônicas.
Neste ínterim, a proposta é de utilizar a música Mulheres como recurso para a quebra de
paradigma existente na sociedade, implícito ou explícito, do poderio masculino, tendo como
representação de poder o falo401, assim,
torna-se bem claro o processo de construção social da inferioridade. O processo
correlato é o da construção social da superioridade. Da mesma forma como não há
ricos sem pobres, não há superiores sem inferiores. Logo, a construção social da
supremacia masculina exige a construção social da subordinação feminina. Mulher

401
Falo é o poder do macho representado pelo pênis. Logo, falo = pênis.
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dócil é contrapartida de homem macho. Mulher frágil é a contraparte de macho


forte. Mulher emotiva é a outra face da moeda do macho superior (SAFFIOTI, 1987,
p. 29)

A música Mulheres (1995) traça bem esta visão deturpada que sobressai no papel do
homem na sociedade e o senso comum apropria-se sobremaneira da ideia do trono reservado
para o exercício do poder masculinizado “e o processo socializador se deu com tamanha
eficiência que a mulher promulgou-se complemento do homem (QUINTAS, 2005, p. 53)”.

TRATAMENTO DOS RESULTADOS


No inicio da aula todos/as estudantes foram convidados/as a ouvirem a música
Mulheres (1995), momento lúdico do qual o corpo discente participou cantando a melodia, já
que a música era conhecida pela turma. Em seguida, foi dado a cada aluno e aluna um
questionário semi-estruturado com quatro perguntas, das quais, a princípio iriam responder
apenas duas e em outro momento seriam solicitados a responderem as outras duas restantes.
A primeira indagação era a respeito do tipo ideal de pessoa a quem o músico se referia,
haja vista que a letra da música relata que ele já teve todos os tipos de mulheres, listando
características físicas e comportamentais, mas que, no entanto, nenhuma o fez feliz. 96%
atribuíram que esta pessoa se tratava de uma mulher que outrora viveu um grande amor e 4%
informou que a pessoa ideal seria uma pessoa de todos os jeitos, sem pudores.
A segunda pergunta questiona as características do músico, dos quais 39% descreveram
a virilidade do homem-macho e seu livre arbítrio para escolher suas parceiras; 18% o
consideraram um romântico, sonhador, em busca de um amor perfeito; 14% o destacaram
como exigente; 11% o apontaram como um homem indeciso; 7% apresentaram-no como um
homem eclético, que gosta de variedades; 7% não opinaram e 4% descreveram o homem
como uma pessoa sincera, que só fala a verdade, não escondendo seus deslizes.
O resultado transparece o papel que é atribuído ao homem, do qual sua virilidade expõe
o poder que este exerce sobre a sociedade.
A naturalização da liberdade sexual masculina percebida com as respostas dadas pelo
corpo discente evidencia uma sociedade em que o homem pode usufruir dos desejos da carne
sem que tal postura o atribua um epíteto pejorativo. Entretanto, a segunda parte dedicada ao

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tratamento dos resultados é proposto uma nova visão a respeito da música, que não mais seja
do homem-macho, provocando a imaginação sociológica dos(as) estudantes.
O segundo momento foi marcado pela quebra de paradigma presente na letra da música
Mulheres (1995), antes de prosseguir com as outras duas questões do questionário semi-
estruturado indagou-se a possibilidade da pessoa ideal que o músico procurava ser outro
homem – esta foi a terceira pergunta – em que a resposta era sim ou não: 78,6% disseram que
sim; 17,9% opinaram que não e 3,6% abstiveram a resposta. O resultado aponta a
possibilidade de uma sociedade mais igualitária no que tange as relações de gênero a partir de
uma perspectiva sociológica. A desnaturalização da segunda natureza, que é a social, permite
um novo olhar, de modo a romper o que parece inatingível.
A quarta e última pergunta tratou em questionar em que trecho da música o/a
aluno/aluna tomou como base para a resposta anterior. Entretanto, é importante ressaltar que
tal evidência não atribui a intenção do compositor ao escrever a letra da música. O que se
pretende neste artigo é esgotar as possibilidades de ressignificar o que parece natural a partir
da imaginação sociológica trazendo um novo sentido as relações sociais – qual seja, as
relações de gênero.
Dos que concordaram com a possibilidade de ser um homem o tipo ideal a quem o
músico se referia 86,4% relacionaram o trecho “mas nenhuma delas me fez tão feliz como
você me faz” enfatizando que “nenhuma delas” elimina a ideia de ser uma mulher quem ele
procura, já que subentende que não há mulher que faça ele feliz. Concordando com a análise
feita pelos(as) discentes ainda pode-se enfatizar o pronome de tratamento pessoal você, que
tanto pode ser uma mulher ou um homem, complementado pelo pronome indefinido
nenhuma, que pela sua classificação pronominal já esclarece a indefinição do sujeito.
Os 13,6% que também acreditaram na possibilidade que poderia ser um homem a quem
o músico procurava fizeram uma análise mais acurada, além de citar o trecho anterior,
mencionado pela maioria, atentou-se a outros detalhes: A estrofe “procurei em todas as
mulheres a felicidade, mas eu não encontrei e fiquei na saudade”, compreende-se que ele
buscou a felicidade em uma mulher, mas não encontrou, logo, sua felicidade está em outro
homem. E ainda diz que “você não é mentira, você é verdade. É tudo o que um dia eu sonhei
pra mim”, ou seja, as mulheres a quem ele procurou representaram uma mentira, pois a
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verdade estava representada no pronome você – que possivelmente era outro homem.
A satisfação na mudança de postura dos(as) estudantes que compuseram este campo de
pesquisa ficaram evidentes no olhar e na euforia que tomou conta na sala de aula, sobretudo,
nos que acreditaram na possibilidade de não ser uma mulher o tipo ideal procurado. Para
encerrar a discussão a respeito do estudo de gênero contextualizado na música Mulheres
(1995) considerou-se ainda destacar outro trecho que não fora citado por nenhum discente –
você é o sol da minha vida, a minha vontade – no qual o sol, que é a sua vida, é um
substantivo masculino e complementa ainda dizendo que é a sua vontade em que depois
encerra dizendo que “é tudo o que um dia eu sonhei pra mim”.
A ruptura na concepção de virilidade masculina presente na música fez com que os(as)
estudantes (re)construíssem as atribuições presentes nos papéis sociais, na questão da
identidade pessoal delineando para o estudo de gênero. A aceitabilidade para o novo olhar,
para a imaginação sociológica fez com que depoimentos espontâneos aflorassem na sala de
aula, como por exemplo, ouviu-se de um aluno: meu pai diz que essa música é dele, vou dizer
que ele não diga mais isso (rsrsrsrs).
A disseminação do estudo de gênero deve fazer parte do currículo escolar, pois é com
depoimento como este citado anteriormente que se percebe a concretização do ensino escolar
adentrando nos lares, levando uma nova perspectiva de visão de mundo – o que antes
apresentava a virilidade do homem na letra da música, agora traz a percepção da pluralidade
da identidade de gênero inserido nas relações de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa das considerações finais a respeito do estudo de gênero no ensino médio


tomando este estudo empírico considera-se primordial a inclusão do estudo de gênero nas
salas de aula, sobretudo, nas aulas do ensino médio na perspectiva de uma mudança cultural a
longo prazo, de modo a influenciar, também, o prisma das políticas públicas, na qual ao invés
de criar políticas repressivas, corretivas e coercitivas, tomem como pautas, medidas
preventivas de combate a qualquer forma discriminatória, e específico, as de gênero – centro
deste estudo, buscando uma sociedade mais igualitária.
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Há uma necessidade de dar mais ênfase aos trabalhos voltados ao estudo das relações de gênero
dentro do âmbito escolar e delineando pela matriz do material de estudo, o currículo que pode
apropriar o estudo de gênero está na disciplina de Sociologia, haja vista que as orientações curriculares
destacam seu caráter de desnaturalizar e estranhar os fenômenos sociais.

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da Música. Coleção Adorno. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
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PRÁTICAS CULTURAIS DIGITAIS: A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E A


RELAÇÃO DE GÊNERO NA ATUALIDADE

Bruna Germana Nunes Mota402 | brunagermana@yahoo.com.br


Meline Mesquita de Carvalho Barros403
José Rogério Santana404

INTRODUÇÃO

A pornografia de vingança vem a ser evidenciada neste trabalho, porque problematiza


a total submissão velada da mulher existente ainda em nossa sociedade, como também deixa a
mostra na atualidade, novas formas deste contexto, através da popularização da internet.
Diante da disseminação de casos através de redes sociais, pode-se perceber a
vulnerabilidade do sexo feminino no tocante a sua sexualidade. No cenário atual, é dada a
mulher, através de sua educação, uma falsa ideia de plenitude, podendo se ver em igualdade
com o homem em suas atividades diárias e no mercado de trabalho. No entanto, essa
igualdade entre os sexos é tolhida no momento em que se expõe, mesmo que de maneira
indesejável a sexualidade do sexo feminino.
Como indica Simone de Beauvoir in Gomes (2014), cobram da mulher, no que diz
respeito a sua sexualidade, uma postura pela qual ela deve permanecer, ao mesmo tempo,
intocada como um ídolo, mas deve também dispor-se a atender os desejos daquele a quem ela
é supostamente subordinada, o homem, como uma serva.
Ainda segundo Gomes (2014), Beauvoir aponta que para que uma coletividade possa
se definir como uma, é imprescindível que ela aponte aquela que irá assumir o papel de outra.
Historicamente, o masculino dominou o feminino, o que justifica a disseminação do ponto de

402
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.
Bolsista Capes.
403
Psicóloga pela Universidade de Fortaleza.
404
Professor adjunto da Universidade Federal do Ceará.
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vista do homem e sua prevalência. A autora ainda coloca que devido a isso, ainda hoje, muitas
mulheres têm opiniões machistas sobre pornografia de revanche, inclusive as próprias vítimas.
A relação de domínio entre homem e mulher foi justificada inicialmente por um dado
biológico e não por um momento histórico.
Neste trabalho, é ressaltado que a educação é vista como uma das principais formas de
preparar o indivíduo para conviver harmoniosamente em sociedade, ou seja, são
manifestações realizadas como processo de formação humana. É colocado também o conceito
de cibercultura e de como a internet vem regendo o comportamento de tais indivíduos ao se
comunicarem.
Explicitamos a relevância da pornografia de vingança neste meio e discutimos causas
e consequências do uso desenfreado da internet pelos jovens e suas implicações no contexto
social em que se inserem.

PRÁTICAS EDUCATIVAS CULTURAIS

A educação é uma forma de preparar indivíduos para conviver harmoniosamente


em sociedade. Para Libâneo (2005), discute a educação no seu sentido mais amplo,
conceituando as práticas educativas.

As práticas educativas não se restringem à escola ou à família. Elas ocorrem em


todos os contextos e âmbitos da existência individual e social humana, de modo
institucionalizado ou não, sob várias modalidades. Entre essas práticas, há as que
acontecem de forma difusa e dispersa, são as que ocorrem nos processos de
aquisição de saberes e modos de ação de moda não intencional e não
institucionalizado, configurando a educação informal. Há, também, as práticas
educativas realizadas em instituições não convencionais de educação, mas com certo
nível de intencionalidade e sistematização, tais como as que se verificam nas
organizações profissionais, nos meios de comunicação, nas agências formativas para
grupos sociais específicos, caracterizando a educação não formal. Existem, ainda, as
práticas educativas com elevados graus de intencionalidade, sistematização e
institucionalização, como as que se realizam nas escolas ou em outras instituições de
ensino, compreendendo o que o autor denomina e educação formal (LIBÂNEO,
2005. p. 78).

As práticas educativas tendoem vista explicitar finalidades, objetivos


sociopolíticos e formas de intervenção pedagógica para a educação. O pedagógico da ação
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educativa se expressa, justamente, na intencionalidade e no direcionamento dessa ação.


Esseposicionamento é necessário, defende o autor,porque as práticas educativas não se dão
deforma isolada das relações sociais, políticas,culturais e econômicas da sociedade.
Vivemosem uma sociedade desigual, baseada em relações sociais de antagonismo e de
exploração.Por isso a pedagogia não se pode eximir de seposicionar claramente sobre qual
direção a açãoeducativa deve tomar, sobre que tipo de homem pretende formar.
Caminhando por esse pensamento sobre a Educação, nos deparamos com a
concepção de Nélisse (1997), sobre a prática educativa, que é uma ação de “fazer ordenado”,
ou seja, deve ser uma ação planejada, em que cada momento contempla o seu ato feito com
reflexão e crítica de cada etapa a ser seguida. Já Libâneo (2005) defende que as práticas
educativas são manifestações que se realizam em sociedades como processo da formação
humana, não se limita a escola e a família, vão muito, além disso, uma prática educativa
acontece em diversos contextos e âmbitos humanos sobre várias modalidades. Paulo Freire
(2006) define práticas educativas mais do que uma mera lição de repetição, ele afirma que
aprender significa as ações de construir, reconstruir e constatar para mudar.
Kenski (2007), afirma que, a educação também é um mecanismo poderoso de
articulação das relações de poder, conhecimento e tecnologias. Desde pequena, a criança é
educada em um determinado meio cultural familiar, onde se adquire, conhecimentos, hábitos,
habilidades e valores que definem a sua identidade social. A forma como se expressa
oralmente, como se alimenta e se veste, como se comporta dentro e fora de casa são
resultados do poder educacional da família e do meio em que vive. Da mesma forma, a escola
também exerce o seu poder em relação aos conhecimentos e ao uso das tecnologias que farão
a mediação entre professores e alunos e os conteúdos a serem aprendidos.
A educação envolve todos os processos de ensino e aprendizagem, essa ação pode ser
exercida em diversos espaços. As práticas educativas podem ser Formais, Informais e Não Formais. A
primeira prática ocorre sempre em espaços escolarizados, desde a educação infantil a pós-graduação,
dá-se de forma intencional com objetivos claros e definidos. A educação informal é transmitida pelos
pais na família, convívio com os amigos, entre outros. A finalidade da educação informal é a intenção
de passar conhecimento sem precisar adentrar-se no ambiente escolar. A prática educativa não formal
existe intencionalidade de dados sujeitos, em criar ou buscar determinadas qualidades e

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objetivos. Usualmente se define a educação não-formal por uma ausência, em comparação ao que há
na escola, algo que seria não-intencional, não planejado, não estruturado.

Dentro do ciberespaço as práticas educativas têm um grande papel no desenvolvimento


da formação política e cidadã do indivíduo. Considerando que a Internet, e principalmente, as redes
sociais, tem disponibilizado ferramentas para a construção de valores.

As redes educativas trazem grandes contribuições, são meios poderosos para a socialização de
conhecimentos e eficientes na troca de informações e de estabelecimento de contato entre professor-
aluno e aluno-aluno, ainda que não sejam tão exploradas no âmbito educativo.

Este envolvimento do conhecimento com as tecnologias digitais de Comunicação e


Informação é chamado de cibercultura. Envolve as tecnologias de comunicação, informação e a
cultura emergentes a partir da convergência de informatização/telecomunicação a partir da década de
1970. Trata-se de uma nova relação entre tecnologias e a sociabilidade, configurando a cultura
contemporânea (LEMOS, 2002).

Esse termo cibercultura é utilizado no agenciamento social das comunidades no


espaço eletrônico virtual. Essas comunidades têm a intenção de popularizar a utilização da
internet e outras tecnologias voltadas para a comunicação, possibilitando uma maior
aproximação entre pessoas de todo mundo.
Os princípios fundamentais que regem a cibercultura provêm da relação entre a
sociedade, a cultura e as tecnologias. Trata-se de dominar no sentido de manipular para
conhecer e transformar a sociedade. Segundo Pierre Lévy (1999), novos estilos de raciocínio e
de conhecimentos vão se construindo e essas tecnologias intelectuais vão dinamizando as
novas formas de acesso à informação.
Estamos presenciando uma mutação social que está transformando a maneira de
trocarmos saberes, consecutivamente, o desenvolvimento do conhecimento. O ciberespaço é
muito mais que somente um lugar com muitos sites interessantes com figurinhas em 3D
girando, é a prática de um novo paradigma de pensamento coletivo e colaborativo que, se nós
quisermos, pode continuar ajudando muito a humanidade. A cada dia o número de céticos ou
pessimistas perante a esta nova realidade diminui.
O ciberespaço é mais que um conjunto de imagens anônimas, é responsável pela
interação e pelas trocas de informações. O ciberespaço é definido como “o espaço de
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comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos
computadores.” (LÉVY, 1999, p. 92). Ele possibilitou a criação de novas plataformas de
computadores cada vez menores e mais adaptadas às habilidades humanas, mas que requerem
novas redes para suportar uma infraestrutura capaz de armazenar dados, tornár-los presentes
em tempo real e capaz de elaborar mundos virtuais (IZZO, 2010).
Com as diversas formas de se comunicar tornou-se comum dentro do ciberespaço
atividades criminosas, o papel do educador nesse sentido é explorar no dia a dia as situações
que ocorreram e que ainda ocorrem na Internet, na tentativa alertar os adolescentes dos
perigos virtuais. As práticas educativas digitais podem e devem mostrar exemplos sobre o que
deve ou não se fazer na web.
A educação é uma forma de preparar os indivíduos e a sociedade para dominar
recursos científicos e tecnológicos que auxiliam no uso das possibilidades existentes para o
bem-estar do homem.
É importante garantir aos alunos-cidadãos a formação e a aquisição de novas
habilidades, atitudes e valores para que possam viver e conviver em uma sociedade em
permanente processo de transformação. Esse processo permitiu uma nova terminologia, a
sociedade da informação, cuja preocupação é com o amplo uso das tecnologias digitais
interativas em educação. O uso de tecnologias em educação exige uma nova postura com
relação a abordagens pedagógicas, significa que essa mudança necessita de desafios, planejar
e implantar propostas dinâmicas de aprendizagem em que possam exercer e desenvolver
concepções sócio-históricas da educação, compreendendo os aspectos cognitivos, ético,
político, científico, cultural, lúdico e estético em toda a sua plenitude e, assim, garantir a
formação de pessoas para o exercício da cidadania e do trabalho com liberdade e criatividade.
(KENSKY, 2007)

PORNOGRAFIA DE VINGANÇA

Ante a relevância e atualidade da temática, a pesquisa em questão discute a


Pornografia de Vingança (PV), o objetivo é compreender as causas e consequências da
exposição de adolescentes nas redes sociais, mais particularmente pelo WhatsApp, e seus

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desdobramentos no âmbito educacional e social. Conhecido popularmente como Zap ou


ZapZap, esse aplicativo consiste em uma plataforma de mensagens instantâneas. Além de
mensagens de texto, o usuário do aplicativo tem a opção de mandar e receber vídeos, imagens
e mensagens de áudio de mídia. Todos os usuários que fazem parte do contato do telefone,
podem se comunicar gratuitamente, bastando apenas estar interligados ao aplicativo e
adicionar os contatos via internet.Outro detalhe peculiar no WhatsApp é que o mesmo possui
uma ferramenta de localização que identifica a localização do usuário. Atualmente o
Whatsapp é o aplicativo mais utilizado em cento e quarenta países do mundo, somando-se um
quantitativo aproximado de trezentos e cinquenta milhões de usuários em todo mundo. De
acordo com os dados da revista Abril.
O WhatsApp possui diversas funcionalidades práticas para o dia a dia dos
usuários, facilita a comunicação, difusão de informação e materiais. No entanto, dentre
diversos tipos de conteúdos disseminados, e os mais frequentes têm sido os materiais de
pornografias. O site oficial do WhatsApp define o aplicativo como um receptor de mensagens
de uma multiplataforma que permite a troca de informações pelo celular. Ele não gera custo
para enviar as mensagens e proporcionaocontato em tempo real com amigos. Além das
mensagens básicas, os usuários podem criar grupos, enviar imagens, vídeos, localização,
contatos e áudio.
Adolescentes entre doze e dezesseis anos têm protagonizado vídeos íntimos com
conteúdo sexuais explícitos, essas exposições acontecem quando meninas se permitem filmar
nos momentos das relações sexuais com seus parceirosou em outras situações de intimidade.
Vídeos contendo esse tipo de conteúdo são divulgados por algum motivo pelos parceiros,
geralmente isso acontece por vingança, principalmente quando há uma quebra de
relacionamento, sob este contexto, chamamos o conteúdo das postagens de pornografia de
vingança. Outro termo que surgiu recentemente para caracterizar a exposição de menores na
Internet é o Sexting, este tem origem inglesa, da contração de sex,associado ao sexo e texting,
a torpedo. Refere-se à divulgação de conteúdos eróticos e sensuais através de celulares.
Iniciou-se através das mensagens de texto de natureza sexual e com o avanço tecnológico
tem-se aumentado o envio de fotografias e vídeo, aos quais aplicam-se o mesmo termo.
Mesmo que texting se refira, originalmente, mensagens enviadas como texto. Essa palavra é
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um anglicismo, ou seja, é um termo ou expressão da língua inglesa introduzidas a outra


língua, costumeiramente devido à necessidade de designar objetos ou fenômenos novos, para
os quais não existe designação adequada na língua alvo.
O intuito da pesquisa que se realizou foi compreender aspectos educativos e
culturais que permeiam o contexto social de adolescentes em fase escolar que foram vítimas
da pornografia de vingança. Propomos realizar um estudo sobre os aspectos que motivaram a
exposição das vítimas, quais as consequências dessa exposição e com a comunidade juvenil e
a escola se comportam diante dos acontecimentos ligados a pornografia. Tem-se por objetivo,
com efeito, compreender a pornografia de vingança na perspectiva de jovens vitimadas, bem
como as práticas educativas desenvolvidas acerca da temática.
A pornografia de vingança têm se tornado comum dentro do espaço escolar,
provocando um embaraço entre a escola e a família, ambas interpretam o fenômeno da
sexualidade com fragilidade e vivenciam diferentes maneiras de trabalhar questões
relacionadas a sexualidade, que na maioria das vezes propagam conflitos e incertezas ao invés
de clareá-los. Tal apreensão permite inferir que a temática em tela, ainda pouco estudada, é
relevante.

DISCUSSÃO DE GÊNEROS NA ATUALIDADE

A relação de gêneros é a manifestação de uma desigual distribuição de


responsabilidade na produção social da existência. A sociedade estabelece uma classificação
de responsabilidades que são alheias as vontades das pessoas, sendo que os discernimentos
desta distribuição são sexistas, classistas e racistas. Do lugar que é atribuído socialmente a
cada um, dependerá a forma como se terá acesso à própria sobrevivência como sexo, classe e
raça, sendo que esta relação com a realidade comporta uma visão particular da mesma.
A construção dos gêneros se dá através da dinâmica das relações sociais. Os seres
humanos só se constroem como tal em relação com os outros. Saffioti (1992, p. 210)
considera que não se trata de perceber apenas corpos que entram em relação com outro. É a
totalidade formada pelo corpo, pelo intelecto, pela emoção, pelo caráter do EU, que entra em

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relação com o outro. Cada ser humano é a história de suas relações sociais, perpassadas por
antagonismos e contradições de gênero, classe, raça/etnia.
No que se refere ao gênero, durante muito tempo essa discussão pesa sobre as
mulheres e houve um longo percurso de elaboração deste conceito. Segundo Charlot (2009)
tanto os homens quanto as mulheres são dotados/as de razão e inteligência. A diferença é
que, nos meios sociais, exalta-se a tal da “sensibilidade feminina” – a noção biologizante
de que as mulheres seriam dominadas por seus hormônios, o que explicaria o seu suposto
descontrole, impulsividade e emotividade. Nada mais dominador e masculinista do que
encerrar as mulheres na tal onipotência da TPM.
Diversos discursos tendem a abordar as mulheres como idênticas entre si e
opostas entre os homens, devendo-se superar essas diferenças para se alcançar a igualdade de
sexos. Dentro da visão iluminista para alcançar igualdade, entre homens e mulheres não pode
haver diferenças.
O termo “pornografia de vingança” é usado para definir exatamente a situação em
que essa exposição acontece. Vários casais filmam e fotografam momentos de intimidade
sexual, mas quando há algum desentendimento ou quebra de relacionamento uma das partes
usa esse material íntimo para uma vingança, que na maioria das vezes é feita compartilhando
o material na internet, onde ele se espalha rapidamente, principalmente com a ajuda do
WhatsApp.
É importante ressaltar que quando o responsável pela divulgação de fotos íntimas
for um adolescente ou menor de idade, os pais ou responsáveis legais poderão responder
judicialmente pelo ato do menor.
Uma vez que as fotos estão disponibilizadas na web milhares de pessoas tem
acesso ao material. Essa exposição traz diversas consequências, as vítimas muitas vezes
precisam se isolar para que não sejam apontadas e humilhadas, pois ainda temos o infeliz
conceito de que o sexo degrada a imagem feminina e glorifica a masculina. A sexualidade
feminina é ainda submissa em relação ao homem. Charlot (2009), tece a hipótese de que, em
um mundo onde os valores são masculinos, a forma pela qual as mulheres aprendem a lidar
com tais situações traz-lhe benefícios nas interações sociais. Para elas, que já aprenderam a
suportar tanta coisa, é mais fácil ser tolerante a condições que para os homens soariam
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extremamente incômodas.
A sociedade ainda convive com a cultura machista, a mulher que expressa seus
desejos e vontades ainda é vista como uma mulher que não merece respeito. É por esse
motivo que muitos homens utilizam desse ato para vingar-se de algumas mulheres, porque
sabem que elas serão humilhadas e rejeitas pela sociedade e aos poucos se darão conta de que
ela é vítima. Segundo Charlot (2009), as mulheres, sofrem mais opressões na sociedade em
função do sexo que os homens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi exposto no trabalho, é possível perceber um crescimento no número
de casos de pornografia de vingança nos dias de hoje devido principalmente à disseminação
da internet. No entanto, o mesmo não pode ser percebido em relação a bibliografias a respeito
do tema.
Segundo Gomes (2014) no Brasil, ainda são raros os estudos sobre o tema e a
problematização da pornografia de vingança como mecanismo opressor e violência de gênero.
A grande maioria dos estudos no país restringe-se à área de Direito e ao estudo da
criminalização do tema, o que não deve ser considerado negativo, mas pode ser considerado
insuficiente.
A autora coloca ainda que não basta apenas criminalizar aquele que publica o
material, é preciso mais informação acerca do assunto, principalmente, entre os jovens e as
crianças, a percepção de que a sexualidade – e de modo especial a feminina – não deve ser
combatida e regrada de modo diferenciado.
A liberdade sexual da mulher não merece ser vista como algo vergonhoso que leve ao
suicídio, como ainda acontece, infelizmente em alguns casos. Deve-se trabalhar de modo
geral, na cultura de cada país e na educação de nossas crianças e adolescentes a ideia de
igualdade de fato, através de atitudes e pensamentos, no cotidiano familiar, escolar e virtual,
de que o direito de liberdade entre os gêneros precisa ser praticado por todos, sem hipocrisias
por parte de nenhuma instituição educadora, a fim de fomentar discussões sobre o tema e
promover uma cultura de paz entre a sociedade de maneira geral.

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QUAIS AS PRÁTICAS EDUCATIVAS ADOTADAS PELO PROFESSOR ACERCA


DA TEMÁTICA GÊNERO

Michele Dantas Barbosa de Castro| michellydantas@bol.com.br


Rayane Maciel da Costa | rayane_mpe@hotmail.com
Lia Machado Fiuza Fialho| lia_fialho@yahoo.com.br

INTRODUÇÃO

As entrevistas foram realizadas em instituições, pública e privada de ensino


fundamental com professoras que lecionam do primeiro ao quinto ano. Numa escola
Municipal , localizada no Município de Maranguape, Ceará e numa escola particular
localizada no Município de Eusébio, Ceará. Realizar as entrevistas com as professoras foi um
pouco complicado, pois ao pedir que falassem sobre o que sabiam a respeito de gênero muitas
alegaram ser algo complexo demais e queriam saber de que gênero se tratava gerando uma
confusão em relação ao significado de gênero, pois algumas acreditavam que estava
relacionado ao ensino de Português, assim como também teve professoras que se sentiram
inseguras e que não quiseram participar e expressar sua opinião sobre o tema.
A palavra “gênero”, isolada e fora de um contexto bem definido, soa um tanto vaga e
imprecisa, o que a faz carregar consigo os mais variados significados, podendo pertencer
desde ao campo da ciência como ao da arte; da Biologia a Gramática; da Filosofia a Lógica, e
assim por diante. Claro que isso é próprio das palavras, que “trocam de roupa” de acordo com
a situação em que estão inseridas. Essa palavra, além de outras, como “identidade” e
“diversidade”, estão, na nossa atual sociedade, quase que dentro de um mesmo campo
semântico: o da sexualidade. Portanto, como afirma Eugênia Suely Belém de Sousa, em sua
obra “Perseguições que humilham: assédio moral e violência de gênero.

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Assim, compreende-se que falar de gênero não se limita a falar em diferenças entre
homens e mulheres, mas a uma discussão mais ampla, uma vez que o sexo é uma
distinção do aspecto físico. É necessário voltar o olhar para toda a diversidade e
subjetividade que envolve as relações entre humanos. Portanto, acredita-se que para
discutir gênero é necessário entender que não se trata de uma questão biológica,
determinada apenas por diferenças sexuais, mas entender que a questão entre
homens e mulheres. É preciso entender como esses papéis se manifestam e se fixam
em uma sociedade. “Gênero” é um conceito social novo, mas essas relações de
gênero são tão antigas quanto a existência da espécie humana. (2012,p.51)

Falar de gênero é, atualmente, discutir a sexualidade do indivíduo, na perspectiva de


compreender até que ponto ela corresponde à identidade que esse mesmo indivíduo adota para
si, de como ele se enxerga. Ou seja, tarefa nada fácil, e que não escapa de acaloradas e
intermináveis discussões, é tratar de gênero sexual - ou identidade de gênero. Ao falarmos de
gênero, inevitavelmente, associamos esse conceito à definição biológica de homem e mulher,
sob o seu aspecto sexual, baseado na sua fisiologia, naquilo que distingue um do outro.
Outra relação que podemos fazer com a palavra “gênero” diz respeito aos papéis
desempenhados pelo homem e pela mulher na sociedade. Tal abordagem sugere uma
discussão em torno da posição exercida pelo homem e pela mulher na sociedade, tentando
compreender possíveis discrepâncias – ou desigualdades - que separam esses dois gêneros um
do outro. Seguindo essa linha de investigação, acabamos por enveredar por caminhos que nos
levam ao campo da sociologia. Reforçando tal pensamento, podemos constatar na fala da
professora Alessandra (fictício) a seguinte citação:

“O que compreendo como gênero é o que define identidade de homem ou mulher,


seja homem gênero masculino ou seja mulher gênero feminino. Hoje temos outros
significados, pois temos a questão do homossexualismo dentre outras identidades,
pois compreendo que isso seja identidade e não opção, já é uma coisa que vem
definido no ser da pessoa humana.

Várias foram as respostas dadas pelos professores de uma escola particular ao serem
indagados sobre o que entendiam sobre “gênero” – assim mesmo, sem qualquer conexão com
a sexualidade ou com alguma área do saber ou da ciência. Percebemos, logo no primeiro
momento, o quanto esse tema causa um desconforto em quem tenta dar-lhe uma acepção,
quando desvinculado de um contexto definido.
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Exemplo do que acabamos de afirmar acima, é que, uma das entrevistadas perguntou
se ela deveria falar de gênero textual. Além disso, praticamente todas as entrevistadas – todas
eram professoras do sexo feminino – demonstraram claramente o seu receio de trabalhar,
dentro da sala de aula, o tema “gênero” sob a perspectiva da sexualidade ou identidade de
gênero. Exemplo disso, temos no trecho de uma das entrevistas. (...) Quando nós vamos falar
de família que tem alguma estrutura diferente, aí, a gente já aborda de um jeito mais delicado,
exatamente para não... não... não deixar nenhum traço de discriminação, né...
Percebemos, claramente, no trecho acima, o quanto o tema “gênero”, abordado sob um
enfoque sexual, causa um receio por parte do professor em dar uma explicação que não cause
uma certa “discriminação”. Mas esse receio em se falar de gênero sexual não advém de
apenas um motivo, mas de vários, como podemos observar na fala a seguir:“Bom, aqui, no
colégio, a gente é instruído a abordar esse tema se ele surgir dos alunos... certo.
Como ficou constatado no trecho acima, a professora em questão apenas segue a
orientação da escola, que é a de abordar gênero sexual apenas quando partir dos alunos. Ou
seja, a filosofia da escola impede que o professor aborde outro gênero que não seja o feminino
ou masculino, fato esse que foi observado na entrevista com outra professora, como podemos
observar no trecho abaixo.

(...)Mas em sala,... a gente... a gente... trabalha o homem e a mulher, né... o


relacionamento dos dois, até por causa da filosofia que a escola propõe, né?! Então,
a gente não pode abranger nem aprofundar muito porque... é... foge um pouco da
realidade do contexto da escola.”

Quer dizer, cabe ao professor apenas a tarefa de tirar alguma dúvida que, porventura,
possa surgir em relação ao tema, haja vista a escola orientá-lo a não levar o assunto para ser
debatido em sala com os alunos. E a mesma professora completa, afirmando que, se os alunos
se “derem por satisfeitos” ela não vai mais além nas sua explicações, como se observa no
trecho seguinte.

(...) Então, assim: se ele pergunta, eu preciso responder e esclarecer de alguma


forma; se não... a gente precisa... né... assim, como outros assuntos ligados a essa... a
essa proposta, né... da resolução, da sexualidade... Tem coisas que a gente explica o
básico; algumas... alguns questionamentos vêm deles, e a gente precisa esclarecer,
até porque essa é a nossa função de educador, né... mas tem coisas que... a gente vai
no básico, e, se, eles se dão por satisfeitos com o básico, a gente fica nele, até porque
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o amadurecimento de cada um vai querer saber mais ou não de acordo com... esse
amadurecimento, né?!”

Além desses motivos alegados pelas entrevistadas em não abordar profundamente o


tema de gênero sexual, está a preocupação que elas têm em relação ao pensamento da família
dos alunos, de como estes recebem os ensinamentos e valores morais de seus pais.
Praticamente todas afirmaram ser esse um dos motivos principais em não aprofundar o tema
dentro da sala de aula com os alunos. Esse fato aludido é visto em mais de uma das
entrevistas, como podemos observar no trecho abaixo.

“Eu acho que vem muito do pensamento da família, o que é que a família vai pensar,
né?! Porque, assim... a gente tem contato com o aluno, mas a gente não tem contato
com o pensamento da família. Então, um... um assunto desse abordado em sala de
aula mais profundamente, possa ser que algumas famílias... é... cheguem a... a... ter
receios... né... ou por indicação, né... que ... achando que a criança pode desenvolver
aquilo ali... né... e... mas... é... é mais... a... a insegurança é mais por isso: é como a
família vai reagir em receber um assunto desses em casa.”

Uma das entrevistadas ressaltou a falta de preparo por parte dos professores em
relação à abordagem do tema dentro da sala de aula, e também em função do pensamento que
norteia, em relação ao assunto, a nossa sociedade. “(...) Tanto há uma falta de preparo, né,
como a sociedade tem um peso maior, porque existem muitos tabus, ainda muitas questões
que a gente não sabe como lidar (...)”
E essa falta de preparo parece ser bem mais comum do que imaginamos, como bem
admitiu uma outra entrevistada, a qual revelou não saber bem como diferenciar as várias
terminações e distinções que formam o grupo da homossexualidade. Isso se constata em duas
entrevistas, que seguem abaixo.

(...) Acredito ser o que caracteriza as diferenças de identidade, por que a pessoa tem
o poder de escolher se quer ser do gênero masculino ou feminino e acredito que é
algo que tem que ser respeitado, tem que ser considerado digno, pois se há leis que
priorizam, que atendem e tornam essas pessoas cidadãos, não se deve julgar e sim
conviver bem, tratar com dignidade, sem preconceito, sem diferenças, pois não cabe
a nós julgarmos, mas acolhermos a todos . Por isso acredito que se tem que
trabalhar na escola com muito respeito, ensinando o aluno a não ser apenas
tolerante, mas sim respeitar, compartilhar sabendo viver com a diversidade por que
nós temos pluralidade de gêneros e buscar tentar fazer uma sociedade melhor pra
todos.

(...) Então, a gente trabalha... só que hoje existe tanta nomenclatura diferenciada pra
essas coisas, que a gente, às vezes, não sabe nem quais são. Eu, pra te ser sincera...
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tem diferenças de nomes que são usados para determinados gêneros, né... que eu
nem conheço. Achei até uma pesquisa que, às vezes, a gente tem que fazer pra
esclarecer melhor os alunos da gente. (...)

E essa mesma professora, ao tentar explicar as diferenças de gênero sexual, afirma


serem desvios psicológicos que algumas pessoas podem controlar, mas que outras não o
conseguem. O trecho da sua entrevista, que segue logo abaixo, pode comprovar o que ela diz.

(...) Não digo que nem buscadas pelo ser humano, não, porque tem coisas que a
gente não busca, né? – elas acontecem, mas são... são desvios psicológicos ou
desvios que... que... as pessoas podem controlar, ou às vezes não controlam; às
vezes, fazem daquela forma porque querem, realmente; e outras pessoas, não – as
coisas acontecem porque eles não têm controle daquela situação... né?! (...)

Na ocasião perguntamos como as professoras abordam o assunto “gênero” em seus


planejamentos e, em se tratando da escola particular. Todas as professoras responderam que
são orientadas ao não mencioná-lo. Assim, percebemos o quanto algumas escolas preferem
não levantar temas que venham proporcionar debates acerca de temas polêmicos. No que
concerne a escola pública, foi apresentado um desconforto no que se refere ao conhecimento
do tema, entretanto, afirmaram que abordam tal assunto, como podemos perceber na fala da
professora Anita (fictício).

“Trabalho muito através de textos reflexivos, através de imagens no data show que
contam e mostram casos de vivências, tentando trazer uma predição do que eles
sabem sobre esses assuntos como sexualidade e homossexualismo, para mostrar as
crianças que a gente tem que saber conviver, tratar bem, respeitar, saber ter
convivência digna para que a sociedade deixe de ser tão preconceituosa e violenta,
por que é escolha de cada um.

Com isso, percebemos que suas práticas em sala de aula para abordar a temática
“gênero”, são trabalhados através de projetos com atividades desenvolvidas ao longo do
semestre que trabalham os valores morais e éticos, dentre eles: o respeito a diversidade.
Também utilizam textos reflexivos, imagens, conversas sobre o assunto e também exemplos
reais que acontecem dentro da sala de aula o que acreditamos ser muito importante pois parte
de uma realidade próxima a eles levando a um questionamento mais próximo do real e
fazendo com que as crianças possam refletir sobre suas ações.
Enfim, “gênero”, quando discutido dentro de um contexto social, atrelado às possíveis
figuras do homem e da mulher na sociedade ou relacionado com a identidade sexual do
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indivíduo, tende a ser um tema polêmico, pois envolve aspectos morais, culturais e religiosos
etc., algo muito longe de um consenso.
Se, para a sociedade, o tema “gênero” é, ainda, meio obscuro, polêmico e controverso,
tratá-lo na sala de aula torna-se uma missão muito mais difícil, pois esbarra em várias
dificuldades, sejam elas de caráter didático – por parte do professor -, morais, culturais, ou
religiosas. Em virtude de uma maior compreensão do tema “gênero” no ambiente escolar, é
que nos propusemos a realizar uma série de entrevistas com professores, tanto do ensino
privado quanto do público.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

SOUSA, Eugênia Suely Belém de. Perseguições que humilham: assédio moral e violência
de gênero – Fortaleza: EdUECE;EDMETA,2012.

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REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E PROFESSORES HOMENS NA EDUCAÇÃO


INFANTIL

Aristides Ariel Bernardo | aryel_bernardo@hotmail.com


Rhayanne Viriato de Araújo

INTRODUÇÃO

Ao longo da história o ato de educar, principalmente no que se refere à educação de


crianças de 0 a 6 anos de idade, tornou-se uma função majoritariamente feminina, e diferentes
representações sociais acerca da atuação de homens como professores de educação infantil se
desenvolveram neste processo de feminização da profissão docente no magistério.
Consequentemente, além da constatação do baixo número de homens atuando nesta área da
educação, percebe-se, como demonstra Assis (2000), Sarat e Campos (2008), Gonçalves
(2009), e Vianna apud Mandelli (2010), um elevado grau de preconceito sofrido por estes
profissionais que atuam na educação infantil.
Partindo de tal problemática o presente trabalho tem por objetivo dar inicio a
investigações acerca das representações sociais de professoras de educação infantil do
município de Naviraí-MS em paralelo com professoras de educação infantil do município de
Mamanguape-PB, acerca da atuação de homens professores no nível infantil de ensino.
Entretanto, num primeiro momento, viu-se a necessidade de revisar a bibliografia existente
acerca do tema fazendo uma investigação com embasamento teórico de autores que abordam
questões de gênero na educação infantil com enfoque na discriminação do gênero masculino
na atuação profissional com crianças, e fazer uma sucinta revisão da literatura para uma das
categorias chave utilizada neste trabalho, que é o conceito de Representações Sociais. Assim,
como sequência de tais investigações pretende-se dar continuidade a pesquisa levantando a
opinião/visão destas profissionais sobre a (não) capacidade de homens, também como
profissionais formados, de trabalhar e lidar com crianças, identificando em seus discursos
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como vêm à atuação destes professores caso já tenham trabalhado com algum homem durante
sua carreira. Bem como saber se já presenciaram algum tipo de discriminação de gênero por
parte da própria escola, da comunidade em geral e/ou principalmente de pais de crianças que
teriam seus filhos sobre cuidados de profissionais do gênero masculino.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E REVISÃO DA LITERATURA

A abordagem teórica desta investigação está pautada em três momentos, a saber: a) a


primeira traz a revisão da literatura para uma das categorias chave utilizada neste trabalho,
que é o conceito de Representações sociais, b) segundo, faz-se um breve levantamento
histórico do processo de constituição do magistério como função majoritariamente feminina,
associada às representações do papel da mulher como mãe cuidadora, c) em seguida são
apresentados dados acerca do número da presença masculina no magistério.

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Segundo Gonçalves (2009, p. 21 apud Arruda, 2002), "a teoria das representações
sociais, segundo a perspectiva da Psicologia Social, surge na França com a publicação da obra
La Psychanalyse, son image, son public, obra de Serge Moscovici, em 1961[...]", que inicia
esse processo de elaboração teórica retomando o conceito de representação coletiva proposto
por Durkheim, e pode ser entendida como um conjunto de ideias que pairam no imaginário
dos indivíduos de determinado grupo como uma forma de interpretar e pensar a realidade
cotidiana. Ou seja, é um conhecimento prático, que dá sentido aos eventos de nossa vida
social e individual, e ajuda na construção da realidade a nossa volta.
Segundo Moscovici representação social seria:

[...] um sistema de valores, ideias e práticas com uma dupla função: primeiramente,
estabelecer uma ordem que habilitará os indivíduos a orientarem-se em seu mundo
material e social e dominarem-no; e, em segundo lugar, possibilitar a realização da
comunicação entre os membros de uma comunidade pelo fornecimento de um
código para o “intercâmbio” social e de um código para nomearem e classificarem,
sem ambiguidades, os diversos aspectos de seu mundo e de sua história individual e
em grupo. (1973, p. 17).

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Podemos levantar nessa discussão, segundo essa perspectiva, que as pessoas, de


acordo com Gonçalves (2009), agem segundo os sistemas de valores e as ideias
predominantes no meio em que vivem. Valores e ideias essas que são necessárias para haver
uma organização e um controle do mundo material e social. Controle que "acontece por parte
de pequenos grupos que se consideram mais desenvolvidos numa determinada cultura e que
estabelecem as regras que devem ser seguidas por toda a população." (Gonçalves, 2009, p.
22). Assim representação social pode ser entendida como tendo a função de elaborar padrões
de comportamento e formas de comunicação entre as pessoas, modelando e justificando
comportamentos e expressões.
Gonçalves defende que:

Os padrões de comportamento predominantes numa determinada cultura não são,


portanto, naturais, e sim construídos socialmente, seguindo modelos que atendem
aos interesses de determinados grupos da mesma sociedade. Como estes padrões são
aceitos como verdadeiros, as pessoas que agem de maneira contrária são vistas como
incorretas por infringirem as normas aceitas pela cultura na qual estão inseridas.
Muitas vezes essas pessoas sofrem consequências e, para evitá-las, voltam a agir
conforme as normas estabelecidas. (2009, p. 23)

Segundo os Estudos Culturais, pode-se afirmar também que as representações podem


indicar o modo pelo qual os sujeitos se vêm, se percebem e se interpretam, bem como a
maneira como eles são vistos e são tratados por outras pessoas no âmbito social, sendo que
tais interpretações exercem influência no processo de construção da identidade do sujeito.
Nesse sentido Louro (2007, p. 99) diz que “professores e professoras – como qualquer outro
grupo social – foram e são objeto de representações.” E por tais representações colaborarem
na formação da identidade desses(as) professores(as) ela completa dizendo que as
representações "[...] não são meras descrições que ‘refletem’ as práticas desses sujeitos; elas
são, de fato, descrições que os ‘constituem’, que os ‘produzem’”.

Professoras foram vistas, em diferentes momentos, como solteironas ou “tias”, como


gentis normalistas, habilidosas alfabetizadoras, modelos de virtudes, trabalhadoras
da educação; professores homens foram apresentados como bondosos orientadores
espirituais ou como severos educadores, sábios mestres, exemplos de cidadãos...
(LOURO 2007, p. 100).

Desse modo, paira a ideia de que a professora é a "tia" gentil, habilidosa e paciente
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com as crianças, um modelo de virtude e afetividade visto como facilitador para a


aprendizagem das crianças. Essa ideia se adéqua ao conceito de representações sociais por ser
um conjunto de regras normativas à "função" da mulher como professora que não só foram
extraídas do imaginário social de que tais características se atribuem às mulheres como
também ditam que tais mulheres devem se comportar desta maneira e possuir tais
características, o que segundo Gonçalves (2009, p. 25) "contribui para reforçar as
representações de que o magistério é mais adequado para as mulheres, em detrimento dos
homens." O que também acaba por justificar a recusa de vários seguimentos do conjunto
social em aceitar um homem cuidando de seus filhos(as).
Entretanto, isso nem sempre ocorreu dessa maneira já que até meados do século XIX
quase não haviam mulheres responsáveis pela educação formal. Gradativamente, durante o
século XX, as mulheres foram se ocupando dessa atividade por motivos sociais e econômicos
diversos. Porém, cabe salientar, portanto, que não há nenhuma “natureza” feminina nem tão
pouco masculina nesta profissão, e que as representações sociais acerca da profissão docente é
apenas um construto desenvolvido nas relações sociais visando um ou outro interesse.

PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO MAGISTÉRIO COMO "PROFISSÃO


DA MULHER"

Até os anos 1930, o quadro docente no Brasil era constituído em sua maioria por
homens e direcionado apenas para os filhos homens de uma classe econômica mais
favorecida, conforme relata Louro:

Em nosso país, como em vários outros, esse espaço foi, a princípio, marcadamente
masculino. De um lado e de outro das carteiras circulavam meninos e homens: a
escola foi, inicialmente, conduzida pelos mestres jesuítas e dirigida à formação dos
meninos brancos da elite. Aos poucos a instituição viu-se obrigada a acolher outros
grupos sociais: os meninos de outras origens e etnias e as meninas. (1997, p. 77).

Hypólito (1997, p.54) apresenta um gráfico mostrando o gradativo aumento da atuação


feminina no magistério a partir dos anos de 1930, se tornando maioria absoluta por volta de
1970. Já Reis (1991, p. 67 e 72) nos afirma que desde o séc. XIX "o magistério já vinha se

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delineando claramente como um campo de trabalho feminino”, e que as mulheres já


chegavam a “70% do total de funcionários encarregados do ensino” por volta de 1921.
São vários fatores que contribuíram para o aumento do número de mulheres na área da
educação, principalmente no que diz respeito ao ensino primário. Um desses fatores diz
respeito ao processo de industrialização do país. Nesse período as mulheres começaram a
possuir uma vida social externa à função apenas de dona do lar, tornando-se participantes do
mundo do trabalho, seja como forma de complementar a renda de sua família, devido o baixo
salário dos maridos ou mesmo aquelas solteiras que buscavam maneiras de subsistência,
buscando principalmente a profissão docente. Isso se dava principalmente devido a associação
de que o magistério era uma extensão da maternidade, como se fosse algo natural e próprio do
universo feminino, pois dentre as características femininas que se adequavam às da profissão
de ensinar, destacavam-se:

A proximidade das atividades do magistério com as exigidas para as funções de


mãe; as “habilidades” femininas que permitem um desempenho mais eficaz de uma
profissão que tem como função cuidar de crianças; a possibilidade de
compatibilização de horários entre o magistério e o trabalho doméstico, [...]; a
aceitação social para que as mulheres pudessem exercer essa profissão.
(HYPÓLITO, 1997, p. 55).

Outro fator que teria contribuído para o ingresso das mulheres no magistério seria,
como destaca Nóvoa (1991), a saída dos homens desse mercado de trabalho devido as
condições de trabalho e os baixos salários. Assim, o autor comenta que os homens passaram a
procurar por profissões com uma maior remuneração salarial.
Gonçalves (2009, p. 42 apud Bruschini e Amado, 1998) elenca como sendo outro fator
histórico, econômico e social que "influenciou na saída dos homens e na entrada das mulheres
na área da educação diz respeito às representações sociais relativas à manutenção financeira
do lar." Antes das mulheres atuarem no mercado de trabalho os homens eram vistos como os
provedores do lar, e a mulher ao ingressar numa profissão "aceitava com maior facilidade um
salário menor, por considerar que se tratava apenas de uma complementação com as despesas
domésticas".
É evidente que o magistério ser constituído hoje largamente por mulheres, a ponto de

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formar representações sociais de que tal profissão é melhor executada por mulheres em
detrimento dos homens, e o abandono, e/ou o não interesse dos homens pela profissão têm
motivos históricos e sociais muito mais profundos dos que os elencados acima, e de fato
merecem estudos minuciosos. Entretanto não é a intenção aqui fazer ou trazer tal investigação
em seus por menores, e sim ilustrar de modo geral alguns dos motivos levantados por autores
que já desenvolvem pesquisas na área, sobre a feminização do magistério, para uma previa
compreensão do que se tenta abordar neste trabalho.

ATUAÇÃO MASCULINA NO MAGISTÉRIO?

Como já levantado o magistério é um "território" predominantemente feminino. Hoje


por ser visto principalmente como uma função na qual se deve ter amor às crianças, paciência,
delicadeza e carinho, características atribuídas no imaginário social ao gênero feminino, leva
ao preconceito e a discriminação de gênero daqueles homens que buscam atuar
profissionalmente com a educação nos anos iniciais. Segundo Ploennes:

Na educação infantil, os relatos são de discriminação, questionamento à sexualidade


e desconfiança quanto à competência profissional. No ensino fundamental, o
processo de alfabetização gera apreensão nos próprios professores homens, ainda
inseguros em relação às suas habilidades. (2012, s.p.).

Dados do MEC com base nos resultados do Censo Escolar da Educação Básica de
2007 revelam números mais precisos sobre a presença masculina e feminina em todos os
níveis da Educação Básica segundo o sexo, comprovando a disparidade entre homens e
mulheres nas series iniciais, se compondo números mais equiparados a partir do ensino médio
como mostra gráfico abaixo:

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Segundo a investigação, "se consideradas todas as etapas e modalidades da educação


básica, 81,6% dos professores que estavam em regência de classe são mulheres e somam mais
de um milhão e meio de docentes (1.542.925)" (BRASIL, p. 22). Estes números podem ser
explicados também, como argumenta Ploennes (2012, s.p.) "segundo o professor de
Sociologia da Educação Frederico Assis Cardoso, da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais (Fae-UFMG)" porque "os homens têm certa preferência em assumir
espaços 'ainda demarcados para a vivência de suas masculinidades', como supervisão e chefia
ou aulas de educação física, laboratórios de informática ou de ciências", o que também revela
muito sobre as representações sociais acerca do papel e das funções profissionais que são
atribuídas ou esperadas para o gênero masculino. E segue:

'"Há professores que se sentem bastante contemplados em trabalhos de


musicalização, de jogos e brincadeiras com as crianças. Isso pressupõe o acesso aos
cargos disponíveis nas escolas com mais facilidade do que as mulheres, contando
inclusive com elas para que isso seja possível. É a reprodução das relações sociais
de gênero em que os homens continuam gozando de mais privilégios na hierarquia
de cargos com mais prestígio, em funções de atribuição de controle e poder', analisa,
com base em seus estudos para a dissertação de mestrado Homens fora de lugar?"'
(Ploennes 2012, s.p.).

De fato o homem é minoria na carreira docente, segundo dados levantados até aqui. E
como argumentado, aqueles que atuam nos níveis infantis da educação diretamente com as
crianças sofrem algum tipo de preconceito e discriminação de gênero como já demonstrado
por autores como Assis (2000), Sarat e Campos (2008), Gonçalves (2009), e Vianna apud
Mandelli (2010), devido às inúmeras representações desenvolvidas acerca dos papeis de
gênero de homens e mulheres na docência. Muitos dos pais podem ter medo em deixar seus
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filhos, principalmente meninas, nos cuidados de homens para banhá-los (as) e trocá-los (as),
por exemplo. A escola pode dificultar o acesso desses professores justamente por receberem
alegações dos pais para que seus filhos não tenham seus cuidados íntimos realizados por
homens, dentre inúmeras outras coisas possíveis para esta situação. Entretanto, o que pensam
as mulheres professoras que já tiveram, ou não, um convívio mais próximo com um
profissional do sexo masculino nas instituições de ensino em que atuam ou que já atuaram?

CONSIDERAÇÕES EM ANDAMENTO

Não pretendeu-se com este artigo fazer apologia de nenhum tipo acerca da
importância, ou necessidade de se ter a presença de homens dentro do magistério, nem tão
pouco gerar ou reproduzir discursos de preconceito sobre a presença majoritária de mulheres
principalmente no que tange a educação infantil. Esse trabalho teve por objetivo fazer um
breve levantamento de fatores históricos e sociais que permitiram o ingresso, em sua maioria,
de mulheres nessa área de atuação. Assim, tentou-se compreender em certa medida as
representações que se formaram ao longo da história da educação no Brasil sobre os homens
professores que optam por atuar com crianças, e também as representações do papel da
mulher como educadora vinculada ao discurso de se adequar melhor ao cargo por
"naturalmente" em seu papel maternal ser gentil, habilidosa, paciente e virtuosa com as
crianças.
Por se caracterizar como um trabalho de pesquisa em andamento, entende-se que as
discussões apontadas aqui não se esgotarão, permitindo sempre um aprofundamento da
temática e de estudos que melhor tentem compreender esta realidade, com o intuito em suma
de desmitificar essas representações nas quais propagam discursos normativos sobre o papel
que cada sujeito deve desempenhar socialmente, gerando ações preconceituosas sobre os que
parecem fugir a essas regras padronativas.
Deste modo como continuidade para o trabalho aqui apresentado, serão desenvolvidas
pesquisas e entrevistas com professoras de educação infantil dos municípios de Naviraí, no
interior do estado de Mato Grosso do Sul, e de Mamanguape, interior do estado da Paraíba.
Predente-se assim traçar um paralelo entre os discursos destas profissionais de regiões
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distintas do país, para que possam ser identificadas suas representações sobre a presença e
atuação de profissionais do gênero masculino nesta mesma área de atuação. Buscando
verificar se há difusão de representações preconceituosas por partes destas professoras, ou se
estas vêm que uma boa atuação em sala independe de questões de gênero, sendo necessários
assim o empenho e o comprometimento de cada um como profissional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, J. J. V. Educação e gênero: homens no magistério primário de Teresina (1960 a


2000). 2003. 201 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Fundação Universidade Federal
do Piauí, UFPI, Piauí, 2003.
ALVES, Rubem. Conversa com quem gosta de ensinar. São Paulo: Ars Poética, 1995.
ARAÚJO, H. C. G. As mulheres professoras e o ensino estatal. Educação e Realidade, n. 2.
Porto Alegre, vol. 15, p. 45- 57, jul./dez. 1990.
ARAUJO, Messias Pereira; HAMMES, Care Cristiane. Interfaces da Educação: a androfobia
na educação infantil. Paranaíba, v.3, n.7, p.5-20, 2012.
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Entrevista concedida a Denise Pellegrini.
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RUA DA SAUDADE: REFLEXÕES SOBRE A PROSTITUIÇÃO FEMININA NA


CIDADE DE CRATO – CE NAS DÉCADAS DE 1950 E 1970.

José Gerardo Vasconcelos405


Lourdes Rafaella Santos Florencio406 | rafaellaflorencio@gmail.com

Saudades, só portugueses
conseguem senti-las bem, porque
têm essa palavra para dizer que as
têm.
(Fernando Pessoa)

INTRODUÇÃO
No verso do poeta português a palavra Saudade ganha na língua mátria o caráter de
distinção. Existente apenas na língua portuguesa, “Saudade” é o termo utilizado para
expressar os sentimentos de distância, perda, ausência. Em geral, associada a relações que
envolvem sentimentos, como apego e afeto, a palavra Saudade adjunta ao Amor, têm o seu
lugar garantido nas mais variadas expressões culturais da Língua Portuguesa.
Como se uma dependesse da outra, “Saudade” e “Amor” ganharam na produção
literária o seu maior reduto. Em Opera do Malandro (1977), Chico Buarque de Holanda,
escreve uma das maiores expressões do que seria esse sentimento chamado Saudade.
Intitulada por “Pedaço de Mim” o poeta faz menção ao sentimento como uma parte
constituinte do corpo e, não necessariamente um sentimento bom. Nas palavras do poeta a
saudade seria: “o pior tormento. É pior do que o esquecimento. É pior do que se entrevar”.
Mais a frente Chico Buarque coloca a Saudade como expressão da dor de uma perda “[...] a
saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.407

405
Professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.
406
Doutoranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará, Bolsista CNPQ.
407
Chico Buarque de Holanda. Pedaço de mim. Álbum Ópera do malandro, Rio de Janeiro, 1977.
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Visto dessa forma, se trás a palavra Saudade tal como nas expressões literárias. Um
exercício da memória para manter vivas lembranças de momentos e pessoas queridas, a
Saudade se reveste de Memória e esta “[...] se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e as
relações das coisas,” memória como incondicional e a história como sua concernente, a
primeira “[...] é um absoluto, a história só conhece o relativo” (NORA, 1993, p.9).
Em meados da década de 1960, um trecho da Rua Nelson Alencar, localizada no
centro da cidade do Crato, passou a ser chamada por muitos homens e mulheres por “Rua da
Saudade”. Acontece que chegou uma juíza a cidade, a senhora Auri Moura Costa408, que
implacavelmente determinou a retirada das casas de tolerância do centro da cidade. Foi
preciso uma mulher com magistrado para por fim aquela corriola de prazeres e pecados bem
no coração da cidade, que o Jornal A Ação já vinha denunciando desde a década de 1950.
Entender a constituição histórica e espacial de uma cidade não é tarefa fácil, ainda
mais quando se busca fazê-lo atrelado a discussão de educação, prostituição e memória a
partir da construção de um estudo de gênero.
Como demonstra Mary Del Priori (1997, p. 260), se pode identificar no século XVIII
a distinção entre a vida pública e a vida privada nas sociedades ocidentais. “[...] Nesse século,
fundamental em tantos aspectos, assistiu-se a uma clivagem na vida social que, nos meios
burgueses da época, é representada pela autonomia de uma vida privada e familiar, distinta da
vida pública”. Ver-se a arquitetura da família como um núcleo social privado e importante
instrumento de controle dos instintos onde a honra e valores sociais deveriam ser cultivados.
Porém, fora desses núcleos tais valores tornavam-se muitas vezes relativos. Exemplo disso é a
forma como a prostituição foi encarada em vários momentos históricos.
Michael Foucault (1988), na apresentação de História da Sexualidade 1 – Vontade de
Saber, apresenta o trabalho dizendo:
A questão que gostaria de colocar não é por que somos reprimidos mas, por que
dizemos, com tanta paixão, tanto rancor contra nosso passado mais próximo, contra
nosso presente e contra nós mesmos, que somos reprimidos? Através de que
hipérbole conseguimos chegar a afirmar que o sexo é negado, a mostrar
ostensivamente que o escondemos, a dizer que o calamos [...] (FOUCAULT, 1988,

408
Elegidas por alguns como a primeira juíza do Brasil, nomeada em 1939 para a comarca de Várzea Alegre, no
cariri cearense. Havendo ela, na década de 1960, designada a trabalhar na comarca do Crato.
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p. 14).

No que concerne aos estudos sócio-histórico sobre sexualidade, Michel Foucault é,


por muitos, considerado referência entre os teóricos contemporâneos. Pode-se dizer que nessa
obra constrói-se uma espécie de arqueologia do discurso sobre a sexualidade lançando luz a
questões como os dispositivos saber e poder, destacando-se o questionamento da repressão
social sobre a sexualidade.
Debruçando-se sobre as formas constitutivas do saber sobre a sexualidade a partir do
dito, do não dito, leis e representações que se entrecruzam num emaranhado de relações, na
construção do dispositivo sexual, o qual está intimamente relacionado à esfera do
Poder/Saber.
A grande preocupação não é o ato repressivo em si, mais o estímulo social
permanente sobre a repressão, tendo como base o Poder visto como uma interdição/incitação,
como ele passa a gerir a vida dos sujeitos, a partir do controle das ações numa produção de
Saber que elenca o que é verdadeiro e falso no campo sexual e é por volta do século XVII que
o campo sexual passa a ser gerido por meios de especificações como a medicina, pedagogia,
psiquiatria, direito.
Foucault (1988, p.16) chama a atenção para a lógica da interdição, buscando articular
Poder, Saber e Sexualidade. O filósofo tem como objeto de seus estudos os atos discursivos.
Ele diz “[...] trata-se de determinar, em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime
de poder-saber-prazer que sustenta, entre nós, o discurso sobre a sexualidade humana”.

A CIDADE VISTA PELA ZONA

Como acrescenta Ítalo Calvino em As Cidades Invisíveis, “[...] de uma cidade, não
aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas
perguntas”. Dessa forma incide sobre a História um alargamento das possibilidades de
pesquisa, fazendo com que o campo, as fontes e sujeitos tenham seus lugares repensados na
produção historiográfica, possibilitando a caracterização de uma cidade que não se limita a
sua estrutura material.

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Sobre a cidade é constituída relações sociais, entre sujeitos e grupos, ganhando uma
dinamicidade e contínua renovação a partir de uma relação simbólica com o espaço. Vista
dessa forma a Cidade apresenta-se como ambiente de comunhão e disputa social, que carrega
em si significações e memórias.
Uma cidade é sempre um palco de representações, de vivências variadas. Um palco
de derrotas, de afirmações, de esperanças, de solidariedades, de violências, onde as tramas
humanas se entrelaçam e se desvelam numa continuidade relâmpago. Toda essa complexidade
é caráter paradoxal do urbano, no seu rápido processo de construção e desconstrução de
sonhos, projetos, planejamentos, execuções, imposições e insubordinações, tornando a cidade
um objeto privilegiado de pesquisas dos mais variados conhecimentos científicos. Objeto este
que impõe suas formas de leituras e interpretações por ser a cidade uma produtora de
linguagens, pronto para ser decodificado.
Dentro desse processo, a prostituição, ou melhor, as zonas de prostituição constituem
um cenário da cidade caracterizado por jogos de poder, processos de higienização e
moralização da cidade onde a mulher, prostituta ou não, se apresenta como o alvo desse
processo de disciplinamento genuinamente masculino.
No Crato nas décadas de 1950 a 1970 se percebia o entusiasmo em proporcionar espaços
modernos, apresentados como próprios das cidades progressistas, civilizadas.
A prostituição cratense vista a partir do processo de urbanização, ou constituição de
sub-mundos, possibilita identificar a distinção de condutas morais femininas desejáveis e
outras nem tanto, a partir do lugar que as mulheres ocupavam.
Muito mais que um fenômeno, pretendo analisar a prostituição alocada por um
espaço ocupado na cidade de Crato. Tem-se como referencia os trabalhos desenvolvidos pela
historiadora Margareth Rago409 que analisa as teias do poder moral sobre a sexualidade
feminina que distingue essas práticas entre licitas e ilícitas.
A colocação dos cabarés no centro da cidade causava uma linha imaginaria, criando
fronteiras entre as mulheres virtuosas e as mulheres pecadoras que não deviam de modo

409
As obras de maior destaque são: Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar 1890-1930, publicada em
1985 e Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo 1890-1930, publicado
em 1991.
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algum ter suas vidas cruzadas. Entrevistando senhoras casadas, percebi que elas se eximiam
de ter qualquer contato com o universo da prostituição, como se fugissem de uma praga
perniciosa, sem com isso terem desconhecimento do que havia lá, no outro lado da fronteira,
nas casas de prostituição.
A representação do perímetro entre a cidade apresentável e as alamedas do pecado
se materializava no limite da Rua Nelson Alencar, no trecho ainda hoje corriqueiramente
chamado por Rua Saudade410. A senhora Cecília411, casada desde 1954, define com
propriedade esse limiar:

O Cabaré de Glorinha ficava ali na Nelson Alencar e os homens ricos iam tudo pra
lá era sucesso, eu passava por ali perto, ia por perto pra encurtar o caminho. Naquela
Nelson Alencar ali tinha a Maria Augusta, mais na frente, um chamado Chico Roxo,
e no Manezinho que era assim esse povinho tudo baixo. Tinha o pequizeiro também
que tinha muitas mulheres, era onde tinha as mulheres pobres. Agora Glorinha, é
porque já morreu muita gente, mais era famosa ela, é uma pessoa que era famosa
mesmo.

Na mesma região são descritos quatro cabarés distintos, destinados a públicos


também distintos. Havia, assim como em todas as esferas sociais, um afastamento entre os
espaços de lazer populares e os elitizados. O cabaré de Glorinha412, conhecido por seu
esplendor, atrelou na memória da cidade do Crato, a memória saudosista das noites de
boemia.
Cabaré de Glorinha, Maria Augusta, Manezinho, Chico Roxo, entre tantos outros
lugares marcados pela luxúria e esbórnia de homens e mulheres que “manchavam” a imagem
da cidade em progresso sem, ainda assim, se deixarem ser esquecidos pelos labirintos da
memória. Essa preocupação da relação entre a imagem da cidade e os cabarés é percebida em
várias matérias jornalísticas do Jornal A Ação de 1966.
Intitulado por “Prostituição: Problema social complexo”, assinado pelo Vicente da
Frota Cavalcante, o texto faz uma reflexão sobre o abandono de menos de idade, visto como
um problema ocasionado por duas frentes: a pobreza da família e a omissão do Estado.

410
A atribuição do nome Saudade a um trecho da rua será objeto de analise no capítulo seguinte.
411
A descrição da depoente encontra-se nos anexos, página 61.
412
Glorinha foi à proprietária do cabaré mais famoso da região do Cariri. Sua existência merece destaque nesse
estudo. No último capítulo farei uma micro-biografia de sua trajetória.
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Vicente alerta inclusive a ausência de instituições de ensino para todos. Aponta, como uma
consequencia direta e alerta para o “[...] vulto assustador de casos, o da prostituição de
menores, quer através da permanência das mesmas em cabarés e boites ou em casa de
recurso”413.
O escrito é uma reflexão sobre a omissão do Estado e a desatualização do código
penal vigente. Demonstra o alinhamento local com as questões nacionais e interroga o Estado
dizendo: “Qual a solução atual que o Estado nos apresenta, aqui ou em qualquer parte do
Brasil para solucionar de tão alto interesse para a nação?”.
De forma geniosa o redator demonstra que o Estado criminaliza mais o mesmo
tempo se corrompe pela prostituição. Ele apresenta que no “Código de Menores, no Art. 130,
diz que não é permitida a freqüência de menores de 21 anos aos café-concertos, music-halls,
cabarés, bares noturnos ou Congêneres.” Continua expondo com o Art. 229 do Código Penal
brasileiro, o qual “estipula [...] que se constitui crime contra os costumes manter, por conta
própria ou de terceiros, casa de prostituição ou lugar destinado a encontro para fim libidinoso,
haja ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente.”414
Embora a Constituição considerasse crime e inclusive estabelecesse penas que ia
desde multas a reclusão, ele mesmo, o Estado, não apenas tolerava como fiscalizava e
arrecadava com as práticas de prostituição. Embora não fale de nomes, aliás, até o momento
não identifiquei nenhuma matéria de denuncia que fizesse menção aos nomes dos
proprietários, o escritor é categórico ao dizer:
A nossa cidade está repleta, em todos os seus bairros, de casas de prostituição,
cabarés, boites e casas de recurso e, até hoje, que se constate nos Cartórios da
Comarca, jamais houve qualquer processo contra os que as mantém, desrespeitando
dois Códigos e desafiando as autoridades a quem incube reprimir a prática de crimes
dessa natureza.415

Percebe-se que a prostituição vista como problema moral, assim como no discurso
católico416, encontra na pobreza e na maculação da carne feminina a determinação para a
prostituição feminina. Compartilhando dessa ideia Cavalcante fala:

413
Jornal A Ação, pág. 4. Crato, 01 de outubro de 1966.
414
Jornal A Ação, pág. 4. Crato, 01 de outubro de 1966.
415
op. cit.
416
Além da alegoria construída em torno da figura bíblica de Madalena, nos escritos de São Tomás de Aquino a
prostituição foi vista como um mal necessário da humanidade.
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Diáriamente, no Comissariado de Menores, surgem casos de sedução de menores ou


corrupção, e, a solução dada aos mesmos, diante da realidade e antecedência de
casos semelhantes, é, mais hoje, mais amanhã, resvalarem as menores para a mesma
lama sendo recebidas nos cabarés e casas de recursos, à vista das autoridades, que
fecham os olhos, calam e consentem na perpetração dos crimes.417

No dia 24 do mesmo mês, ou seja, duas semanas depois desta publicação, encontro
outro artigo redigido por Vicente da Frota Cavalcante, intitulado por “Menores Habitam no
Baixo Meretricio”, mais uma vez se faz uma reflexão sobre a Constituição Brasileira e a
omissão frente a presença de mulheres menores de idade nas zonas de prostituição.
A obra literária Hilda Furação, escrita por Roberto Drummond em 1991 e adaptada
para minissérie pela Rede Globo de Comunicação em 1999, demonstra a estranheza social
quando uma moça da classe alta mineira esbarra com o cabaré nos anos 1960.
A trama gira em torno de uma bela moça, Hilda Müller, de família abastarda e
desejada por muitos. No dia do seu casamento Hilda resolve fugir e vai parar na zona de
prostituição mineira, o Maravilhoso Hotel. O que gostaria de ilustrar aqui é o escândalo
ocasionado por este fato, fazendo com que a imprensa montasse guarita na frente do
Maravilhoso Hotel e as mais variadas camadas da sociedade mineira especulassem os motivos
que justificassem o destino de Hilda.
Por toda a trama, são várias as passagens que buscam desvelar as reais razões pela
qual Hilda ingressou no prostíbulo. Certamente, o reboliço acontece por não haver
aparentemente um motivo real para tal destino, em sintonia com o pensamento expresso pelo
cratense Vicente da Frota Cavalcante, exposto no J.A. de 1966, Hilda Müller não havia sido
copulada, rejeitada pelo seu pretendente ou ainda ficara desafortunada financeiramente.
A senhora Cecília418 em sua entrevista, ilustra esse destino dado as moças de
situações diferentes da protagonizada pelo personagem fictício de Hilda Furação. Cecília me
explica que quando uma moça era maculada, o fato era ufanado por toda cidade. Expõe uma
experiência bem próxima da família, com uma irmã de criação do seu pai.
Explica que a sua avó, após ter ficado viúva casou-se com um senhor de nome Lúcio
que por sua vez também era viúvo e tinha três filhos de nomes Cordeiro, Marines e Santa. A

417
op. cit.
418

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Senhora Cecília me narra que o seu pai, José Candeia, tinha outra irmã, esta de vinculo
sanguínea, chamada Ângela.
Já adultas, as moças se preparavam para o matrimônio, nessa época ela, a narradora,
era muito novinha mais recorda que Angela e Marines noivaram na mesma época: “[...] elas
noivaram, tia Ângela noivou com Chico Aniceto que é irmão do Antônio, dos Irmãos
Aniceto, e Marines noivou com Zé Bernardo, um bicho que era do meio do mundo que
ninguém sabia de onde era.” Descrevendo como foi à festa ela continua:

Teve o casamento. Dindinha minha avó era muito criadeira, fazia gosto as latadas
não tinham luz, as latadas era maior que isso, latada é um negócio de palha que
cobre e coloca os candeeiros no meio pra clarear e fazer festa. Chamavam os
sanfoneiros e tocava até amanhecer, não tinha uma briga, sei que dindinha fez e as
meninas noivaram e casaram tudo num dia só. Eu era meio pequena mais lembro
muito bem, minha mãe era testemunha. Quando chegou os noivos ai começou
aquela latada, isso era umas duas horas, o casamento era na igreja, iam de cavalo
emprestado, num sei com quem e as noivam iam de banda, mulher num andava
escanchada não.

Com riqueza de detalhes, a senhora Cecília narra memórias de sua Infância, quando
ainda residia na zona rural da cidade do Crato. Continuando ela coloca que logo após o
casamento Marines engravidou do seu marido Zé Bernardo, como ela não tinha mais mãe sua
irmã Santa, ainda solteira, foi morar com ela. Já residindo na casa de sua irmã Marines, Santa
comunicou à família que o esposo de sua irmã, Zé Bernardo, havia “mexido” com ela. “Ai
minha filha, vixe Maria, Dindinha minha avó era muito revoltada porque ele fez isso com a
mocinha, ele se aproveitou dela porque ela era uma pessoa ingênua, nova, atrofiada, criada
sem mãe.”
Apesar de, por toda a fala, a imagem da Santa ser narrada como a vítima, inclusive
ocasionando a revolta de parte dos familiares, a sua integração ao seio familiar não foi mais
permitido. Na sequência, a informante diz que o Zé Bernardo desapareceu e que Santa,
embora tenha voltado para casa, logo seguiu o caminho do meretrício: “depois ela voltou pra
casa da madrasta que era minha avó, mais ai já não se adaptava mais, o povo ficava com mal
olhado, é muito humilhante o povo chamava logo de rapariga, ela se desertou e de lá o chão se
abriu, desapareceu.”
A passagem exemplifica o quanto a vida sexual feminina era controlada pela
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sociedade onde a virgindade, ou a ausência, ganhava status determinante para ingressar na


prostituição ou contrair matrimônio.
Longe de retratar a zona do meretrício pelos seus atrativos noturnos, o Jornal A Ação
se empenhou em mostrar os lados ruins da prostituição, pois acreditava que “cada mundana
tem uma história para contar, mas as causas da prostituição são as mesmas: miséria, salário
insuficientes, desemprêgo, natureza do trabalho feminino e dificuldade no casamento”419.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Rua Nelson Alencar, situada no centro da cidade, é bastante extensa. Em umas das
suas extremidades, no trecho superior da imagem, localizavam-se os prostíbulos, no
cruzamento com as Ruas Almirante Alexandrino e a Mons. Esmeraldo. Na sua continuação
está a Praça Cristos Reis e mais a frente um prédio bastante oponente pertencente à Diocese
do Crato, o Colégio Diocesano420. A via encontra no seu término o Cemitério Municipal
Nossa Senhora da Piedade.
Ironicamente vida e morte marcam a Rua Nelson Alencar, constituindo
inevitavelmente este como um lugar de memória. Como coloca Nora “[...] a razão
fundamental de ser um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o tempo do
esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte materializar para prender o
máximo de sentidos num mínimo de sinais (1993, p. 22).
Na busca de não deixar morrer os áuricos dias da juventude, aquele trecho da via
batizado por “Rua da Saudade”, como se quisessem imprimir sobre a memória da cidade uma
saudosa e doce lembrança do reduto da boemia cratense.
É nesse entroncamento de vias que me vejo como um sujeito oculto dessa história, ou
ainda fruto da metamorfose de resignificação da memória aventada por Pierre Nora e
sinalizado por mim na introdução deste estudo através do poema de Cecília Meireles.
Talvez para se sentirem vivos, muitos desses senhores e senhoras se fazem presentes
na internet a partir nas redes sociais. Para expressar o sentimento de saudade que ecoa
visivelmente nas falas e nos textos tecidos pro estes sujeitos, apresento um trecho do poema

419
Jornal A Ação, pág. 7. Crato, 22 de maio de 1971.

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de José Flávio, médico de renome na cidade, Ele se lembra da Rua da Saudade da seguinte
forma:

Havia um certo estigma premonitório no nome da ruazinha, lê-se nos olhos baços de
“Marreco”. Templo de boêmios, de bêbados, de putas e poetas, conheceu mais que
ninguém a alma desta cidade. Conviveu com suas pulsões mais profundas, com
aquela argamassa de ambições, desejos, frustrações, desigualdades que cimenta
todas nossas relações humanas. Assistiu a toda uma geração de cratenses desnudos
de todos véus das convenções sociais. Fragilidades, fraquezas, perversões, defeitos
expostos como uma carniça fervilhante. (J Fávio de, 2012).

Com bastante nostalgia a Rua da Saudade é descrita pelo médico. Figurada pela
“alegoria do prazer”, os jovens senhores boêmios do Crato parecem não cansar-se de
rememorar os tempos áureos da mocidade. Talvez por isso ainda hoje resistam ao tempo,
como militantes da memória, firmemente sentados nos bancos da Praça Siqueira Campos,
referenciada hoje como a praça dos velhos, nas páginas da internet ou nas rádios locais.
Quem sabe seja essa também a razão para tantos eventos embalados pela nostalgia.
“Carnaval da Saudade”, “São João da Saudade”, “Amigos da Praça” e por ai vai. A proposta
desse último capítulo caminhará nessa linha, entender a gênese da memória nostálgica da
boemia cratense, em especial das zonas de prostituição, a partir dos homens.
Ou ainda tentar fazer uma aproximação entre a “Cartografia do Pecado” e a
“Alegoria do Prazer”, entre o discurso glorioso do Boêmio e o pesar moral da fala feminina
sobre as eras da mocidade.

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SALTO ALTO E BATOM TÊM ESPAÇO NAS CIÊNCIAS DURAS?

Lucimeiry Batista da Silva | meiry11@gmail.com


Cecília Telma Alves Pontes de Queiroz
Maria Eulina Pessoa de Carvalho

INTRODUÇÃO

Uma das primeiras perguntas que nos fazemos quando começamos a estudar a
atuação feminina nas profissões ou áreas consideradas de domínio masculinas é: por que esses
ambientes ainda são tão hostis para as mulheres? Apesar de terem conquistado lugar em
profissões ditas “masculinas”, ainda hoje, em pleno Século XXI, esses espaços não são
amigáveis para elas. E quando pensamos quais são esses ambientes, imaginamos oficinas
mecânicas, treinamento das forças armadas, direção de caminhões e inúmeras outras
profissões difíceis de encontrarmos mulheres atuando. E é possível constatar que isso ocorre
também na carreira docente, onde também existe um ambiente hostil para as mulheres,
principalmente considerando-se as docentes que atuam em cursos como Engenharia
Mecânica, Física, Ciência da Computação e Matemática, considerados mais masculinos.
De que forma o habitus421, predominantemente masculino do campus422, exige
adaptação da apresentação do corpo em grupos minoritários femininos? Quais são os
mecanismos da vida acadêmica que influenciam no modo como as docentes se comportam e
expressam a feminilidade?
Na perspectiva de responder à essa questão, este artigo apresenta reflexões sobre o
comportamento e a feminilidade na Academia. Para isso, tomou como referência as narrativas
biográficas de sete professoras universitárias que atuam/atuaram como docentes em cursos

421
O conceito será visto de forma mais detalhada nas páginas a seguir.
422
O conceito de campus para este estudo será utilizado a partir da obra Homo Academicus (BOURDIEU,
2013).
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das chamadas ciências “duras”: Engenharia Mecânica e Física, em uma Instituição Federal de
Ensino Superior (IFES), no nordeste brasileiro.
Os diálogos foram registrados por meio de gravação em áudio, transcritos na íntegra e,
posteriormente, categorizados. A partir das entrevistas narrativas, utilizadas como “uma
possibilidade de pesquisa ressignificada no campo de pesquisa pós-estruturalista”
(ANDRADE, 2012, p. 173), foram construídas as biografias docentes. “As narrativas não
constituem o passado em si, mas sim, aquilo que os/as informantes continuamente
(re)constroem desse passado, como sujeitos dos discursos que lhes permitem significar suas
trajetórias” (ANDRADE, 2012, p. 176). A partir das biografias, as falas das docentes foram
codificadas utilizando-se as letras do alfabeto (Professora A, B, C etc.), para que suas
identidades não fossem reveladas.
Os cursos pesquisados foram escolhidos por representarem de forma contundente a
ausência de mulheres em seus quadros docentes. Os cursos de Engenharia Mecânica e Física,
criados em 1966 e em 1972 respectivamente, em toda a sua história tiveram em seu corpo
docente apenas quatro mulheres cada um, destas uma pediu transferência para o Curso de
Matemática, três se aposentaram desde o início dos anos 2000, e as outras quatro ainda estão
em atividade, duas em cada um dos cursos.
Todas as docentes que atuam, ou já atuaram, nos Cursos de Engenharia Mecânica e de
Física compõem o número de entrevistadas. Em relação ao perfil dessas docentes, duas são
mestras, três são doutoras, e quatro, pós-doutoras. Têm entre 38 e 63 anos, a maioria é casada
(4), duas são divorciadas (2) e uma é solteira (1).
O artigo apresenta, ainda, um arcabouço teórico que envolve a temática, destacando
gênero, corpo e feminilidade, entre outros conceitos, e alguns achados de pesquisa a partir do
diálogo com os autores Bourdieu e Le Breton, entre outros. Os dados foram coletados no
intervalo entre outubro de 2014 e junho de 2015.

CLIMA FRIO E RELAÇÕES DE PODER NA ACADEMIA

A Organização das Nações Unidas (ONU), visando dar suporte à autonomia das
mulheres, buscou o apoio de 189 países, que se comprometeram em reconhecer a igualdade
como um componente essencial para o “empoderamento” das mulheres (PNUD, 2013). Essas
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mesmas nações firmaram o compromisso de incluir a dimensão de gênero em todas as suas


instituições políticas, atividades de planejamento e tomadas de decisão, a fim de reconhecer
que os direitos das mulheres são direitos humanos.
Depois do compromisso firmado na Conferência de Beijing/Pequim423, em 1995,
comprometeram-se, também, em avançar com o conceito de "empoderamento" das mulheres
nas discussões sobre gênero424 – construção social e histórica constitutiva de relações sociais
fundadas sobre as diferenças entre os sexos (SCOTT, 1990) – que têm sido paulatinamente
ampliadas. Nos últimos tempos, a questão das mulheres, em profissões consideradas
masculinas, tem se expandido na Academia, tanto na literatura do Brasil quanto na
internacional (CARVALHO; RABAY, 2015; CHOUDHURY, 2013; NARASIMHAN;
TAJIMA; YOON, 2013; CARVALHO; RABAY. 2013; THIBAULT, C. et. al. 2009;
CALDAS et. al., 2005; DAWSON, 2005). Entretanto, observamos que os resultados dos
estudos na Academia confirmam que o número de mulheres, nas chamadas “ciências duras”, é
escasso em todos os níveis de educação e carreira e que, quanto mais alto o nível de titulação,
menor é a proporção de mulheres (CALDAS et. al., 2005).
Pesquisa francesa, realizada em 2013, aponta que as mulheres constituem 21% dos
professores de Física em universidades francesas e 19% de pesquisadores de Física no Centro
Nacional Francês de Pesquisa Científica (CNRS), a principal instituição pública de pesquisa
na França e a maior da Europa (NARASIMHAN; TAJIMA; YOON, 2013). Esses resultados
se repetem em vários outros países, como Argentina (DAWSON, 2013), Bangladesh
(CHOUDHURY, 2013), Canadá (PREDOI-CROSS et. al., 2013), Alemanha (SANDOW;
KAUSCH, 2013), Estados Unidos (ZASTAVKER et. al., 2009), Espanha (CARRERAS et.
al., 2002), entre outros organizados e publicados pelo American Institute of Physics (AIP)425.
Enquanto as mulheres constituem metade da humanidade, mesmo em países onde
elas têm pronto acesso ao ensino superior, o número de mulheres que estudam
Matemática, Ciências, Físicas e Engenharia continua a ser drasticamente abaixo da
paridade com a dos homens. Mulheres talentosas e capazes são, essencialmente,
afastadas desses e de outros campos, e as poucas que persistem geralmente

423
Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, Beijing, 1995.
424
Ao longo da década de 1970, as feministas conheceram as contribuições de Money e Stoller, e o termo
“gênero” apareceu na literatura feminista de forma irregular, inconsistente, como objeto de debates, mas logo
se tornou o conceito organizativo central do feminismo, devido à utilidade para seu projeto teórico e político
de mudança cultural (CARVALHO; RABAY, 2015).
425
Disponível em: <https://www.aip.org/>
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encontram-se isoladas e marginalizadas. (CHOUDHURY, 2013).

A estrutura oferecida para homens e mulheres em Cursos de Engenharia é a mesma,


mas às mulheres são dirigidas mensagens sutis de não pertencimento àquele espaço.
Zastavker et. al. (2011) argumentam que isso cria um "clima frio", “uma frase popularizada
por Hall e Sandler em seu relatório de 1982. Em particular, como a persuasão social dirigida
às mulheres como fator-chave para a auto eficácia, e essas mensagens de não-pertencimento
- se acidental ou deliberada - minam a expectativa geral e motivação para ter sucesso”
(ZASTAVKER et. al, 2011) dessas mulheres em suas carreiras. Esse mesmo clima também
foi verificado entre os discursos das sete professoras universitárias entrevistadas para este
estudo, que atuam em uma universidade federal nordestina.
Para analisar a questão levantada aqui, foi necessário partir do arcabouço teórico
sobre os papéis masculino e feminino nos cursos abordados. Nesse sentido, Le Breton
(2014, p. 17) observa que “falar de masculino ou de feminino implica, de algum modo, em
um julgamento de valor, na referência a um contexto social e cultural”, considerando que os
papéis de gênero são adquiridos a partir da socialização, que ocorre desde a infância. Ao
construir as evidências de seus comportamentos, o homem ou a mulher nem sempre têm
consciência dos constructos das relações sociais. A confirmação dessa construção “depende
do jogo comum da existência. O sexo dito ‘biológico’ não exerce nenhuma coerção sobre a
identidade sexual, ou seja, sobre os comportamentos de gênero e a sexualidade” (LE
BRETON, 2014, p.20).
Para Bourdieu (2011, p.9), “as aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um
longo trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social produziu nos
corpos e nas mentes conjugam-se para inverter a relação entre as causas e os efeitos e fazem
ver uma construção social naturalizada” (os gêneros como habitus sexuados).
O habitus como sentido do jogo é jogo social incorporado, transformado em
natureza. [...] O habitus como social inscrito no corpo, no indivíduo biológico,
permite produzir a infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estado
de possibilidades e de exigências objetivas; as coações e as exigências do jogo,
ainda que não estejam reunidas num código de regras, impõem-se àqueles e somente
àqueles que, por terem o sentido do jogo, isto é o senso da necessidade imanente do
jogo, estão preparados para percebê-las e realizá-las (BOURDIEU, 2004, p. 82).

Seguimos o diálogo com a obra de Bourdieu, que define o conceito de campus, a partir

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da obra “Homo academicus”, em que o autor trata especificamente do campo (universidade)


no qual se insere esse estudo. O autor considera que “o capital universitário se obtém e se
mantém por meio da ocupação de posições que permitem dominar outras posições e seus
ocupantes, como todas as instituições encarregadas de controlar o acesso ao corpo, bancas de
concurso (...)” (BOURDIEU, 2013, p. 115).
O autor acrescenta que os detentores do poder sobre as instâncias de reprodução do
corpo universitário têm sua autoridade assegurada como uma espécie de propriedade, mais
ligada à posição hierárquica do que a características excepcionais da obra ou da pessoa. Esse
poder é exercido “não só sobre o público de renovação rápida dos estudantes, mas também
sobre a clientela dos candidatos a doutorado, no interior da qual se contratam habitualmente
os assistentes”, que, muitas vezes, são colocados/as em uma “relação de dependência difusa e
prolongada” de seus orientadores/as e/ou congêneres (BOURDIEU, 2013, p.115-116).
Além disso, o exercício do poder acadêmico supõe a aptidão e a propensão,
socialmente adquiridas, para interpretar possibilidades oferecidas pelo campo: a
capacidade de ‘ter alunos, de colocá-los, de fazer com que permaneçam em relação
de dependência e assegurar também o fundamento de um poder durável
(BOURDIEU, 2013, p.122).

As docentes entrevistadas neste estudo reconhecem que são subjugadas a esse poder e
pouco fazem ou buscam fazer para mudar essa situação, pois preferem ocupar as posições
“destinadas” a elas por esse poder e não concorrem com os homens. Essa situação pode ser
observada em vários depoimentos. Quando indagada sobre se ser mulher atuando na área de
Física atrapalha ou não, a professora respondeu:
Dizer que não atrapalha ser mulher é realmente não querer ver o que acontece. Não
têm obstáculos óbvios, é uma coisa mais sutil. [...] Eu queria que tivesse realmente
mais mulheres... Eu acho que é uma coisa muito saudável e é importante dar
exemplo para as meninas. Eu acho que as razões pelas quais tem mais homens do
que mulheres não são genéticas, são realmente culturais (Professora E, 50 anos,
Física).

Como eu sempre estive [em um ambiente] com mais homens e o número de


mulheres reduzido, eu sempre fui quieta, na minha, e muito calma. Eu sou muito
reservada, não sou muito de me entrosar [no ambiente de trabalho] (Professora D,
38 anos, Engenharia Mecânica). (grifos nossos)

Meu esposo era do mesmo departamento. Esse negócio de ter ficado esperando
para fazer os cursos [de pós-graduação] era por isso. O que acontecia é que eu
pedia uma verba para determinado projeto, aí não tinha verba, uma semana depois
ele pedia e saía. Mesmo ele pedindo depois a verba era liberada. (...) essas coisas
dificultaram. Mas eu não achava que era porque eu era mulher, era uma
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competição (Professora B, 61 anos, Engenharia Mecânica). (grifos nossos)

É uma área muito competitiva, eles brigam entre eles mesmos, eu fico observando,
porque como mulher a gente não entra nessas brigas. Eu pelo menos não tenho
vontade de entrar numa briga e de sair mostrando que eu sou melhor que os outros.
Eu procuro fazer meu trabalho com amor, com prazer, que é o que eu gosto de
fazer. [...] É um negócio muito machista, é muito acirrada a competição, e, no meu
caso, como eu também sou uma concorrente, o jeito mais fácil de acabar com essa
concorrência é por esse lado, depreciando porque eu sou mulher. Então eles usam
todas essas armas, para todos os lados. Eu sou vulnerável nesse aspecto.
(Professora G, 63 anos, Física). (grifos nossos)

A situação das mulheres, de forma geral, e especificamente das docentes ouvidas neste
estudo, está quase sempre atrelada a esse poder, e as entrevistadas relatam que estão perdendo
as forças e a esperança de lutar contra essa hegemonia no campus acadêmico. Esses
sentimentos corroboram a afirmativa de Bourdieu (2013) de que o poder universitário consiste
“na capacidade de agir sobre as esperanças [...] delimitando, sobretudo o universo dos
possíveis concorrentes" (BOURDIEU, 2013, p.123). No tópico seguinte, continuaremos
dialogando com os autores, focando na questão de gênero e dos papéis que homens e
mulheres exercem nos espaços públicos e do trabalho.

SER MINORIA É “NORMAL” NAS CIÊNCIAS DURAS?!


Segundo Bourdieu (2011, p.17), “a divisão entre os sexos parece estar na ‘ordem das
coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável”.
Essa divisão está presente em todo o mundo social e incorporada nos esquemas de percepção,
de pensamento e de ação tanto dos homens quanto das mulheres.
Neste estudo, uma das entrevistadas traz um exemplo que dialoga com o que preconiza
Bourdieu (2011) sobre essa naturalização das posições de gênero:
A gente não está acostumada a pensar sobre isso [gênero], a gente vem da
graduação com uma minoria de mulheres, continua essa minoria no mestrado e no
doutorado. E aí entra em um ambiente de trabalho que também é masculino... gera
uma normalidade (Professora D, 38 anos, Engenharia Mecânica).

Bourdieu (2011) complementa essa ideia, ao considerar que é “a concordância entre as


estruturas objetivas e as estruturas cognitivas que torna possível a ‘atitude natural’ ou de

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‘experiência dóxica426’. Essa experiência que apreende o mundo social e suas arbitrárias
divisões, a começar pela divisão socialmente construída entre os sexos, como naturais”
(BOURDIEU, 2011, p.17) e é isso que as torna evidentes e com reconhecida legitimação.
Inferimos que esse comportamento seja mais forte e aconteça com mais frequência
nos espaços onde a predominância masculina é hegemônica, e as mulheres são minorias,
como nos cursos das “ciências duras”, foco deste estudo. Nesse sentido, a visão androcêntrica
é imposta como se fosse neutra, uma vez que é legitimada como tal e exerce a força da ordem
masculina sem precisar de justificativa. “A ordem social funciona como uma imensa máquina
simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão
social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois
sexos” (BOURDIEU, 2011, p.18). E mesmo as mulheres que estão nesse ambiente já
consolidado e naturalizado como masculino parecem se adaptar a essa “normalidade”. Isso
pode ser observado na fala da Professora A, ao considerar que não existem mais mulheres no
Curso de Engenharia Mecânica, talvez, por ser um ambiente só de homens e eles darem
preferência aos homens também.
A Professora E tem uma visão mais crítica sobre esse assunto e, ao ser questionada
sobre o fato de nunca ter ocupado um cargo de gestão, responde:
Dizer que eu nunca ocupei um cargo de gestão porque eu não gosto... não é
exatamente isso também. Eu acho que nunca... fui considerada [...]
[...] Acontece que a minha situação é um pouquinho especial, porque meu marido
trabalha comigo, então somos um casal, e mesmo quando o assunto diz respeito a
mim tem gente que liga para ele. E como eu não sou uma pessoa muito agressiva, eu
não vou atrás, aí eu só faço observar (Professora E, 50 anos, Física).

Nessa narrativa, a Professora E se coloca na posição de observadora da própria


situação como mulher de um colega de departamento, que não se incomoda, inquieta ou
defende, mesmo tendo uma visão crítica de que é tratada pelos outros colegas homens do
departamento de forma excludente.
Bourdieu (2011, p 16) assevera que “a divisão das coisas e das atividades (sexuais e
outras), segundo a oposição entre o masculino e o feminino, recebe sua necessidade objetiva e

426
Adjetivo referente à crença. Dicionário da Língua Portuguesa, com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto:
Porto Editora, 2003-2015. [consult. 2015-07-17 01:21:08]. Disponível em:
<http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/dóxica>. Acesso em: 05 jul.2015.
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subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições homólogas”. Seguimos em nosso


diálogo com a literatura sobre a participação das mulheres nas ciências “duras” abordando, no
próximo tópico, as “roupas masculinas”, aceitas e recomentadas pelo habitus do campus, e as
“roupas femininas”, rejeitadas nesse ambiente.

“HOJE MINHAS ROUPAS SE RESUMEM A ROUPAS BEM MASCULINAS”


Como visto na literatura, no ambiente acadêmico, o habitus masculino e, portanto,
todo o sistema de signos e símbolos que lhe representam se conformou com a regra (calça
comprida, camisa de manga, sapato etc.), e a qualquer um/a que entre nesse espaço se
impõem, através de regras explícitas e implícitas, as normas do campo, e quem não se adapta
é percebido/a como estrangeiro/a e, ao mesmo tempo, tratado/a de forma diferenciada. Não há
uma norma explícita, ninguém diz como deve ser, mas quem não se comporta conforme o
habitus estabelecido é tratado/a como um ser estranho/a ao ambiente (BOURDIEU, 2004b, p.
191). No caso das mulheres, essa percepção/tratamento vai desde vê-las como frágeis, fúteis,
vulgares, até sempre observá-las de forma sensualizada, fazendo com que sua sexualidade
esteja à frente do lado profissional.
Na banca do concurso onde só tinha homens, no dia da prova, um professor veio me
elogiar por causa da minha roupa “que era apropriada” (calça, camisa de botão de
manga comprida, sandália alta e somente um batom de leve). Fiquei me
questionando em silêncio se ele também teria observado a roupa do outro
concorrente que era homem (Professora D, 38 anos, Engenharia Mecânica).

A Professora D “confessou” que só rememorou esse episódio, que ficara esquecido,


em função da entrevista. Ao abordarmos o tema de gênero a lembrança veio à tona. A questão
da feminilidade está atrelada ao tema corpo e, de certa forma, à sexualidade, pois, em um
ambiente majoritariamente masculino e hostil, o corpo e a feminilidade das mulheres não são
vistos com naturalidade.
Como observa Bourdieu (2011, p. 18), “o mundo social constrói o corpo como
realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizante”. Neste
estudo, verificamos que as mulheres não assumem sua feminilidade para não “chamar à
atenção”, como pode ser constatado na narrativa da docente D.
Na outra universidade em que eu dava aula, [no mesmo curso] em um lugar que é
muito quente, como eu dava aula as 13 h, eu ia de blusas mostrando o ombro no

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início. Mas tinha sempre um professor que chamava outros alunos para me ver
dando aula, e isso me deixava sem jeito, até trancar a porta e ficar em uma sala
super quente. Hoje minhas roupas se resumem a roupas bem masculinas.
(Professora D, 38 anos, Engenharia Mecânica). (grifos nossos)

O ambiente, que deveria ser um local confortável para a mulher exercer sua
profissão, é desconfortável, porquanto a presença da mulher não passa despercebida, e isso
faz com que seu comportamento, seus gestos e suas palavras sejam medidos e vigiados. Como
observa Rabay (2008, p. 202), “conquistar um espaço e tornar-se um membro respeitado no
interior do grupo demanda do/a novato/a ou estranho/a, no caso a mulher, a exibição de
grande acúmulo”. Assim como as mulheres políticas observadas por Rabay (2008), as
acadêmicas também têm que ter suas qualidades valorizadas pelo grupo a que pertence, pois
“o capital político, enquanto capital simbólico”, assim como o capital acadêmico, “depende
do reconhecimento dos próprios pares” (BOURDIEU, 2004b, p. 191).
Esse depoimento pode ser analisado à luz do que diz Bourdieu (2011) acerca da
diferença biológica entre os sexos, “isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, [...] e
pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os
gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho” (BOURDIEU, 2011, p.20). Neste
ensaio, observamos também que as próprias mulheres se rendem à “naturalização” do
ambiente e adotam valores masculinos para facilitar sua aceitação. Assim, reforçam o campus
como um lugar masculino.
A Professora C também trabalhou em outra universidade onde havia uma engenheira
agrícola, que era vista com outro tipo de preconceito até mesmo pelas outras mulheres, por se
assemelhar aos homens em seu comportamento. A Professora C considera que ela não era
mulher.
Quando questionada sobre o porquê dessa visão, ela respondeu:
Ela parecia um trabalhador rural. O estilo, do tipo que vai para o boteco com
aluno, tudo muito rock in rol, caveira e tal. É claro que tinha a idade, ela tinha 29
anos e estava terminando o doutorado. É outra geração...”. E C se defende dessa
postura completando “Eu fiquei um pouco assustada com aquilo porque eu sempre
fui muito feminina, sempre gostei muito da feminilidade (Professora C, 48 anos,
Engenharia Mecânica).

Bourdieu (2011, p.34) entende que as regularidades da ordem física e social impõem
e inculcam as medidas que excluem as mulheres das áreas mais nobres [...] em geral, tirando
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partido, no sentido dos pressupostos fundamentais e das diferenças biológicas que parecem
estar na base das diferenças sociais.
Ao perguntarmos à Professora C se o fato de se considerar muito feminina dava-lhe
outro referencial em relação à Engenharia Mecânica, ela respondeu com uma análise do
comportamento feminino nessa área:
Na verdade, eu nunca deixei de entrar de salto em sala, de batom, maquiada, eu me
importo com isso. E não é muito comum [nessa área], as mulheres são muito
masculinizadas, eu não sei o que acontece com as mulheres ali [na universidade]
(Professora C, 48 anos, Engenharia Mecânica).

A Professora C, apesar de discordar das mulheres que se masculinizam para atuar na


Engenharia Mecânica, mostra, em sua narrativa, que ela deixa a feminilidade de lado, ao se
preocupar com sua proteção:
Dentro de sala de aula, eu procuro me vestir de uma forma que eu não me
incomode. Por exemplo, eu procuro não ter pele à mostra, são muitos homens e
querendo ou não você pode mexer com um aluno, você tem que se proteger”
(Professora C, 48 anos, Engenharia Mecânica).

Bourdieu nos ensina que “a lógica paradoxal da dominação masculina e da


submissão feminina”, ao mesmo tempo espontânea e extorquida, “só pode ser compreendida
se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as
mulheres (e os homens), ou seja, às disposições espontaneamente harmonizadas com essa
ordem que se impõe” (BOURDIEU, 2011, p. 50). Os atos de conhecimento e de
reconhecimento práticos dos limites entre os dominantes e os dominados, “que a mágica do
poder simbólico desencadeia, [...] assumem, muitas vezes, a forma de emoções corporais –
vergonha, humilhação, timidez, ansiedade, culpa...” (BOURDIEU, 2011, p. 51). Todos esses
elementos/sentimentos citados por Bourdieu podem ser encontrados nas narrativas das
entrevistadas.
O que eu sinto é pessoalmente, não me sentir a vontade... os homens se sentem
pouco a vontade, eu me sinto a vontade, mas quando eu percebo, já mudo de
atitude. Por exemplo, eu não costumo me arrumar muito, para vir trabalhar,
venho bem confortável, não sou muito feminina no cotidiano de trabalho, sou
mais prática e objetiva. (Professora G, 63 anos, Física). (grifos nossos)

Eu acho muito difícil lidar lá fora [fora da Academia], mais do que aqui dentro.
Aqui eu uso as minhas proteções, a roupa para mim é uma proteção, é uma
armadura, no resto eu exagero, saltão, cabelo e tal, mas a roupa meio que se
encapsula, para a gente não ter problema, porque o aluno chega muito perto da
gente (Professora C, 48 anos, Engenharia Mecânica).
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Então, o fato de ser mulher, para mim, em especial, não me trouxe nenhum
problema em sala de aula. Agora, tem uma coisa, eu também sempre me vesti
adequadamente (...) geralmente era jeans, uma blusinha básica, um sapatinho...
mais próximo dos meus alunos. Na verdade eu parecia mais uma aluna,
resguardados os traços da idade. (Professora A, 60 anos, Engenharia Mecânica).
(grifos nossos)

A Professora C considera que as mulheres, na Engenharia Mecânica, não se cuidam e


que, quanto maior o tempo de convivência na área, menos cuidados elas têm com a aparência:
Quando perguntada sobre por que há essa preocupação diferenciada entre as mulheres
que atuam em sua área, a Professora C responde que, não sabe, pois no seu caso, o fato de sua
mãe ter sido estilista talvez tenha exercido uma forte influência em sua feminilidade, “apesar
de ser engenheira mecânica”. Ela relata que a mãe sempre interferia em seu modo de se vestir:
“minha mãe dizia ‘vai sair? Coloca um lacinho para ficar mais bonitinha; ou “está toda de
preto, quebra isso com uma cor’”. Ela observa que, quando faz esse tipo de comentário na
área de Engenharia Mecânica, causa estranheza entre as mulheres: elas dizem: ‘isso é
desnecessário, o importante aqui é a cabeça’. A mulher tem esse preconceito. Se deixar, ela
vai andar de botina, de calça jeans.
Ainda dialogando com Bourdieu (2007), os “dominantes” que atuam nos cursos das
áreas das Ciências Exatas, das Engenharias, entre outras, também se afirmam e distinguem
por meio das relações de consumo. Sobre isso, o autor destaca: “alimentação, cultura e
despesas com apresentação de si e com representação, tais como: vestuário, cuidados de
beleza, artigos de higiene e pessoal de serviço” (p. 174). Nesse sentido, os relatos das
professoras investigadas denotam uma dimensão simbólica importante na formação de suas
identidades na Academia. Comprovamos que, em geral, elas têm formação de alto nível, são
mestras e doutoras, mas não conseguem garantir, ainda, equidade de gênero na vida e no
trabalho. Elas são compelidas a permitir ou aceitar “botas e macacões” ao invés de “salto alto
e batom”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas das professoras de Engenharia Mecânica e de Física apontam que a


relação de poder e de dominação exercida pelos homens está longe de ser abolida da
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Academia. Como conclui Lima (2013, p. 813), “ser mulher em uma área da ciência cujo
território é de grande maioria de homens gera formas acumulativas de discriminação que
provocam a segregação delas [...] e conferem maior reconhecimento ao trabalho do sexo
masculino”.
O estudo evidenciou que essas docentes procuram não expressar sua feminilidade no
ambiente de trabalho utilizando vestimentas que não chamem à atenção ou que podem
escondê-las no ambiente. Esse tipo de comportamento não colabora para o enfrentamento
dessa situação, pois, como observa Fernandez (1994), a vestimenta faz com que nos tornemos
autores da nossa corporeidade e nos permite sentir o prazer do domínio que isso implica.
Quando se esconderem ou tentam passar despercebidas, elas agem como coadjuvantes da
própria representatividade como participantes desse ambiente ou, como diz Bourdieu (2004),
reforçam o habitus masculino do campo dizendo, através da vestimenta e de outros signos,
que ali não é lugar de mulher. As professoras se travestem para ser aceitas no campo, mas o
ato lhes nega, reforçando o espaço como masculino.
Quase todas as docentes se apresentam com poucos atrativos femininos, o que
demostra uma falta de preocupação com a vaidade, e até as que não se masculinizam nas
vestimentas deixam de lado a feminilidade. Os resultados apontaram que, para atuar nessas
áreas que são consideradas mais masculinas, essas mulheres docentes são consideradas mais
masculinas, abandonam ou camuflam sua feminilidade, e esse fato acontece, muitas vezes,
contra sua vontade, mas atrelado à necessidade de se sentirem “aceitas”.

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A EXPERIÊNCIA DO USO DE DROGAS POR MULHERES USUÁRIAS DO CAPS


AD

Josilene Barbosa do Nascimento | ninjosibn@gmail.com

APRESENTAÇÃO

Historicamente, comprova-se que o uso, abuso e dependência de substâncias


psicoativas não são fenômenos contemporâneos. Assim, o consumo de substâncias
psicoativas, comumente referidas como “drogas”, é fenômeno recorrente e disseminado em
diversas culturas e em diferentes momentos de sua história. É nesse sentido que a busca e o
consumo pelo homem por substâncias que possam alterar seu psiquismo e estado emocional,
além de serem fenômenos universais, são tão antigos quando a própria humanidade.
(BRASILIANO, 2005; SIMÕES, 2008)
Brasiliano (2005) informa que há registros do uso de álcool desde o período neolítico
(8000 a 10000 aC); derivados de opióides são utilizados desde 3000 aC; o uso de “cânhamo
remonta à Antiguidade e há pelo menos 5000 anos folhas de coca têm sido usadas”.
(FORTES, 1991; LEITE, 1999, apud BRASILIANO, 2005, p. 01)

Do ponto de vista do campo de estudos da cultura e da política, no seu sentido mais


amplo, a existência e o uso de substâncias que promovem alterações na percepção,
no humor e no sentimento são uma constante na humanidade, remontando a lugares
longínquos e a tempos imemoriais. Ao mesmo tempo, porém – e isso é crucial –, os
múltiplos modos pelos quais essa existência e esses usos são concebidos e
vivenciados variam histórica e culturalmente. (ALMEIDA, 2010, p. 17)

Nesse contexto, as “drogas” não são apenas compostos de propriedades


farmacológicas determinadas, que poderiam ser naturalmente e definitivamente classificadas
como boas ou más. Obviamente, sua existência, seus significados e usos envolvem questões

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bastante complexas e, muitas vezes, ambíguas, “de liberdade e disciplina, sofrimento e prazer,
devoção e aventura, transcendência e conhecimento, sociabilidade e crime, moralidade e
violência, comércio e guerra” (SIMÕES, 2008, p. 13). As concepções e práticas relacionadas
a “drogas” são produtos históricos e culturais, “que remetem a modos particulares de
compreensão, experimentação e engajamento no mundo, sujeitos a regularidades e padrões,
mas também a variações e mudanças”. (Idem)
Brasiliano (2005) enfatiza, ainda, que desde a metade do século XVIII muitos
autores já consideravam o alcoolismo como doença. De acordo com Toscano Jr (2001, apud
BRASILIANO, 2005) e Bento (2003, apud BRASILIANO, 2005) a toxicomania apenas foi
definida pelo campo médico no final do século XIX. É imprescindível apontar que se, por um
lado, as drogas não são uma invenção da nossa sociedade, por outro lado, o aumento do
consumo inadequado e consequente instalação da dependência química são, certamente,
característicos de nossa época. (LARANJEIRA & SURJAN, 2001, apud BRASILIANO,
2005)
Uma infinidade de dados aponta para a gravidade do problema. Nos Estados Unidos,
por exemplo, estima-se que 18% da população desenvolverão transtornos psíquicos e
comportamentais devido ao uso de substâncias psicoativas em algum momento da vida. No
caso do Brasil, indicadores epidemiológicos fornecem dados sobre o comportamento da
população ao uso de drogas psicotrópicas. Assim, um trabalho recente realizado no Brasil
indica que o consumo de álcool per capita aumentou 74.5% entre 1970 e 1996, sendo que
tendência semelhante tem sido observada em relação às drogas em geral. (BRASILIANO,
2005)
Um dado interessante, possível a partir do Levantamento Nacional sobre o Uso de
Álcool, Tabaco e outras Drogas entre universitários pertencentes a Universidades de 27
capitais brasileiras, constatou que 86,2% (12.673) dos entrevistados afirmaram já terem feito
uso de bebidas alcoólicas em algum momento da vida. (BRASIL, 2013)

Dentre eles, a proporção entre homem e mulher foi igual de 1 para 1. Nota-se,
contudo, quanto à frequência e à quantidade, que os homens beberam mais vezes e
em maior quantidade que as mulheres. Os dados também apontaram um consumo
mais frequente de álcool entre os universitários que na população em geral.
(BRASIL, 2013, p. 68-69)
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Portanto, se refletirmos que, em muitas sociedades e/ou épocas, o consumo de


bebidas alcoólicas e outras drogas não esteve restrito aos homens e que há quase dois (02)
séculos seu uso e abuso já eram diagnosticados, chama bastante atenção a quase inexistência
de relatos de casos de dependência entre mulheres. (BRASILIANO, 2005)

Como é improvável que esses quadros não ocorressem, é possível inferir que a
noção ou mesmo a crença de que o uso problemático de substâncias fosse um padrão
de comportamento quase exclusivamente masculino, tenha tido efeitos negativos no
estudo das relações entre as influências do gênero e a questão das substâncias
psicoativas. (BRASILIANO, 2005, p. 02)

Blume (1986) aponta que, nesse contexto, não é incoerente, entretanto, que o estudo
sistemático da dependência química feminina tenha menos de um século e a busca por
abordagens que atendam às especificidades e/ou necessidades das mulheres, uma história de
somente 40 e poucos anos. Mesmo nestes anos, então, o preconceito histórico que sempre
acompanhou o uso de bebidas alcoólicas e outras drogas em mulheres, juntamente à menor
prevalência dessa problemática entre elas, dificultou o reconhecimento da dependência como
um problema significativo para as mulheres. (BRASILIANO, 2005)

Esses fatores somados à escassez de pesquisas com as mulheres dependentes


tiveram como principal consequência a generalização, às vezes indevida, de
resultados de pesquisa obtidos com homens para elas (...). O mesmo ocorreu com os
programas de tratamento, que desenhados a partir das necessidades masculinas,
foram aplicados às mulheres, com pouca consideração por quaisquer diferenças de
sexo, sejam elas fisiológicas, psicológicas ou sociais (...). (BRASILIANO, 2005, p.
02)

Nos últimos anos tal situação tem se modificado consideravelmente e se ainda


persistem lacunas e dúvidas na compreensão dos inúmeros aspectos do uso e dependência de
drogas em mulheres, tais dúvidas não existem quando ao fato delas apresentarem
características e necessidades de tratamento diferentes das dos homens.

Nesse sentido é que se vem propondo e desenvolvendo programas específicos para


mulheres. Embora sejam inúmeros os significados atribuídos à expressão serviço
exclusivo para mulheres, todos os autores tendem a concordar que esses não são
simplesmente “transformar em só para mulheres” um serviço implantado para
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homens. Assim, é consensual que para desenvolver e implementar programas só


para mulheres o princípio fundamental, além de atender a essa população específica,
é que ele seja sensível ao gênero, ou seja, utilize-se de estratégias particularmente
responsivas às necessidades únicas das mulheres dependentes (...). (Ibidem, p. 03)

Considerando serem imprescindíveis estudos sobre a dependência por mulheres de


substâncias psicoativas para que seja possível a construção de projetos terapêuticos que deem
conta da especificidade feminina, a pesquisa realizada, cujos resultados são apresentados aqui
sucintamente, teve como principal objetivo detectar e analisar as peculiaridades da
dependência química feminina a partir dos discursos coletados através de entrevistas
semiestruturadas e histórias de vida junto às mulheres dependentes químicas em tratamento
no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS ad),427 localizado na cidade
de Campina Grande – PB, e como tais peculiaridades influem na formação das identidades
dessas mulheres numa perspectiva de gênero.
Ora, foi apenas na metade do século XX que as mulheres usuárias de drogas
passaram a receber atenção de modo mais intenso nas pesquisas, mediante sua maior procura
por atendimentos especializados da área da saúde. Tais pesquisas apontaram alta prevalência
de problemas com drogas entre as mulheres. Diante desse fato, a identificação das
peculiaridades dessas mulheres, além de bem recente, por elas não serem incluídas em
trabalhos de pesquisa, sendo, na realidade, menos estudadas que os homens, é bastante
limitada.
Neste artigo, então, discute-se a possibilidade de pensar uma especificidade da
relação da mulher com a droga, tal como apontam alguns estudos que colocam as mulheres
dependentes químicas como um subgrupo específico. Aqui, então, o termo mulher refere-se
ao sexo e gênero feminino, considerando que não encontramos mulheres trans realizando
tratamento no CAPS ad no momento da coleta de dados.
A relevância científica e social desse estudo refere-se ao aprofundamento de estudos
que indiquem e/ou problematizem aspectos sobre a relação que as mulheres estão
estabelecendo com as substâncias psicoativas na contemporaneidade, gerando padrões

427
Das 28 mulheres cadastradas no CAPS ad e que estão frequentando a instituição para tratamento de
dependência química, entrevistamos 12 delas, considerando que foi esse número de mulheres usuárias que
aceitou participar da pesquisa.
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abusivos ou dependentes dessas substâncias. Para isso, os dados coletados possibilitaram


responder às diversas indagações relacionadas à experiência do uso de drogas por esses
sujeitos mulheres, com padrão de consumo abusivo e/ou dependente de substâncias
psicoativas, e a interferência desse consumo em seus corpos, sua saúde, e suas vidas. O
estudo, então, caracteriza-se como sendo qualitativo, tendo seus dados organizados em
categorias temáticas e analisados via análise de conteúdo.

PERFIL DAS USUÁRIAS ENTREVISTADAS


Das 12 mulheres entrevistadas, quanto à faixa etária, 01 está entre 21-25 anos; 02 entre
26-30; 03 na faixa etária entre 31-35; 01 entre 36-40; 02 entre 41-45; 02 entre 46-50; e 01
entre 51-55 anos.
Em relação ao grau de instrução, 05 são analfabetas; 01 é alfabetizada, mas não soube
informar seu grau de instrução; 05 possuem o ensino fundamental incompleto; e 01 o ensino
médio completo.
Quanto a atual ocupação de trabalho, 05 delas estão desempregadas; 02 são
autônomas, sendo que 01 trabalha vendendo verduras na feira e a outra vende “o que
aparece”; 01, por ser viúva, é pensionista e, por isso, diz não precisar trabalhar; 01 trabalha
como cozinheira e serviços gerais; 01 como secretária, exatamente a única que possui o
ensino médio completo; e 01 se prostitui. Verificamos que as 05 mulheres desempregadas
possuem como ocupação o trabalho de empregada doméstica e/ou diarista.
Em relação ao estado civil, 05 são solteiras, 05 são casadas ou têm companheiro, 01 é
viúva; e outra não desejou informar. Ocorreram 02 casos de marido/companheiro estarem
presos por tráfico de drogas.
Finalmente, quanto aos tipos de drogas usados por essas mulheres e que ocasionaram
dependência química devido ao uso e abuso frequente, 08 são usuárias de múltiplas drogas; 03
são dependentes de bebidas alcoólicas; e 01 de crack. Em relação ao uso e dependência de
múltiplas drogas, verificamos que elas usam, no mínimo, três tipos de drogas. O crack, a
cannabis sativa e o tabaco foram indicados, no contexto das múltiplas drogas, cada um, 06
vezes; o álcool 05 vezes; a cocaína 02 vezes; a cola de sapateiro, o LSD (Dietilamida do
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Ácido Lisérgico) e o ecstasy, uma vez, cada um.


Foi percebido, então, que as mulheres entrevistadas pertencem à classe social de baixa
renda, 05 delas estão desempregadas, e as que trabalham desenvolvem atividades, em sua
maioria, que não necessitam de qualificação profissional e, por isso, recebem baixos salários.
As que estão desempregadas têm como ocupação profissional atividades de empregada
doméstica/diarista/faxineira.

O USO DE DROGAS ENTRE MULHERES: BREVE ANÁLISE DOS DADOS


COLETADOS

É sabido que, apesar do consumo de drogas por mulheres vir aumentando nos
últimos anos, dados levantados por diferentes instituições de pesquisa sobre drogas
demonstram o predomínio do sexo masculino no uso e dependência da maioria das
substâncias psicoativas, com exceção para os benzodiazepínicos, estimulantes e orexígenos
(medicamentos utilizados para estimular o apetite), onde as mulheres superam o consumo dos
homens. É nesse sentido que no CAPS ad a maioria dos usuários que procuram e frequentam
a instituição para tratamento são homens. Nas oficinas terapêuticas, por exemplo, é comum a
participação de 15 usuários homens sem frequência de nenhuma mulher, ou, no máximo,
ocorre participação de uma, duas, três mulheres nas oficinas.
Apesar dos tranquilizantes e sedativos terem sido destaques nas décadas de 70 e 80,
atualmente drogas ilícitas, como cannabis sativa, cocaína e alucinógenos, estão se tornando
mais comuns entre as mulheres com menos de 30 anos de idade. Essa realidade é possível
pelo amplo acesso que as mulheres têm hoje em conseguir tais drogas, diferentemente de
décadas atrás (EDWARDS; MARSHALL; COOK, 1997). No CAPS ad, entre as mulheres
entrevistadas, verificamos a grande incidência do uso de crack, cannabis sativa e bebidas
alcoólicas. Porém, o crack e o álcool foram apontados como as drogas mais prejudiciais às
mulheres, com destaque para o crack, que afeta, significadamente, a situação financeira delas
e da família.
Roig (1999) lembra que existem diferenças inegáveis entre as mulheres e os homens,
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como tamanho corporal, as diferenças endocrinológicas, ciclo menstrual etc., que são fatores
condicionantes no uso e efeito das substâncias psicoativas. Para Hochgraf (2001), os motivos
que levam as mulheres a iniciarem o uso de drogas diferem das dos homens. Como por
exemplo, elas começam a beber a partir da ocorrência de eventos significativos, enquanto que
os homens não apontam um fator desencadeante que poderia ser especial. No caso do uso da
cocaína, as mulheres se referem à depressão, sentimentos de isolamento social, pressões
profissionais e familiares etc., como motivos para o início do uso. Os homens justificam o uso
pelos efeitos da intoxicação propriamente dita, ou seja: o prazer sentido pelo uso da droga.
Mulheres apontam mais problemas emocionais e/ou intrapsíquicos, como depressão, baixa
autoestima, irritabilidade e dificuldade em prever os próprios sentimentos e os homens
referem-se, frequentemente, a problemas externos, como dificuldades profissionais,
financeiras, criminais e direção perigosa no trânsito. (HOCHGRAF, 2001)
No caso das usuárias entrevistadas, a maioria delas iniciou o uso de drogas para
“acompanhar” seus namorados/companheiros/maridos, visto que muitas delas foram
apresentadas às drogas ilícitas pelos mesmos, por desilusões amorosas, depressão e baixa
autoestima. Para Aquino (1997), por exemplo, pesquisas indicam que as mulheres são
apresentadas às drogas ilícitas, geralmente, pelos seus parceiros sexuais e que estes também
são os fornecedores da substância psicoativa, assim como o padrão de consumo delas e os
problemas decorrentes do uso são fortemente influenciados por eles. Verificamos, então, que
companheiros/maridos de duas entrevistadas estão presos por tráfico de drogas.
Há indicações de que pessoas de ambos os sexos manifestam intolerância em relação
à dependência química feminina. Nesse sentido, mulheres que apresentam problemas com
dependência química é objeto de julgamento por parte da sociedade. Assim, o estigma social
sofrido é bastante expressivo, sendo corriqueiramente julgadas como promíscuas, amorais,
incapazes de cuidar da família e dos filhos. São “mal vistas”, percebidas como renunciantes
dos papéis de esposa e mãe, e como entregues à promiscuidade sexual. (EDWARDS et al.,
2005; GITLOW & PEYSER, 1991, apud SILVA, 2012)
Essas percepções errôneas transparecem nas atitudes, inclusive, de alguns
profissionais de saúde, que veem tais mulheres como pessoas com desvio de personalidade.
Um relatório sobre atitudes dos médicos em relação a mulheres dependentes de bebidas
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alcoólicas observa que o médico acredita que a mulher com alcoolismo é mais doente do que
o homem com o mesmo diagnóstico. (EDWARDS et al., 2005; GITLOW & PEYSER, 1991,
apud SILVA, 2012)
Para Hochgraf e Brasiliano (2004), apenas no século XIX a toxicomania foi definida
e os estudos realizados desde então enfatizavam o uso de drogas apenas pelos homens. Para
esses autores, uma explicação aceitável para esse fenômeno é o preconceito. Como falado
anteriormente, estereótipos de maior agressividade, tendência ao isolamento, falhas no
cumprimento do papel familiar são mais “normalmente” associados às mulheres do que aos
homens dependentes químicos.
Na fala das mulheres entrevistadas, por causa do preconceito e do estigma sofridos,
percebemos que a maioria delas faz uso das drogas às escondidas, inclusive as que são
dependentes de bebidas alcóolicas, e por isso o sentimento de culpa foi bastante presente.
Diante dessa realidade, apontaram muitos conflitos com a família, assim como o abandono
por parte do namorado/companheiro/marido acontece em muitos casos. É nesse sentido que,
no CAPS ad, nas reuniões de família, esposas e/ou companheiras dos homens, assim como
seus familiares, estavam presentes, mas no caso da família ou companheiro/marido da mulher
usuária do serviço a presença dos mesmos era rara.
Também foi percebido uma taxa altíssima de desistência do tratamento por parte das
mulheres em relação aos homens usuários do serviço. Questionando essa realidade junto às
mulheres entrevistadas, foi colocado que se sentem inibidas em falar nas oficinas devido à
maioria dos participantes serem do sexo masculino. Elas acreditam que a formação de grupos
apenas com a presença de mulheres poderia diminuir as taxas de desistência do tratamento,
assim como as recaídas. Indicaram que assuntos considerados “femininos” seriam mais bem
aceitos nas oficinas terapêuticas, como baixa autoestima, violência doméstica e abuso sexual,
relações interpessoais, vida amorosa, preocupação com a família etc. Elas acreditam que a
exclusão dos usuários homens nessas discussões seria algo positivo no tratamento delas, pois
se sentiriam mais à vontade para falar e refletir sobre suas questões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Em relação aos estudos sobre a dependência química feminina consideramos que é


difícil descobrir na ampla literatura discussões sobre tal problemática. Qualquer estudo feito
sobre a mulher usuária de drogas e/ou dependente química, inclusive muitas literaturas,
geralmente deixam de esclarecer que as conclusões são baseadas em amostragens apenas
masculinas, não se preocupando com diferenças de consumo entre os sexos. Felizmente,
percebemos que a literatura atual avançou em relação a investigar as desigualdades de gênero
e suas particularidades.
Vejamos que construir uma conexão entre a perspectiva de gênero e as
representações e/ou significados, no caso específico, do consumo de substâncias psicoativas,
implica em refletir na percepção da natureza humana, que são acontece, obviamente, apenas
por uma determinação biológica, mas, sobretudo, por uma construção social, histórica e
cultural. É nesse sentido que tal concepção constitui a base da perspectiva de gênero,
entendida como um sistema de signos e símbolos que reflete relações de poder e hierarquia
entre os sexos. As relações de gênero, entretanto, relações de natureza hierárquica,
assimétrica, realiza-se culturalmente, por ideologias que tomam formas específicas em cada
momento histórico.
Assim, verificamos, ao analisarmos a relação entre gênero, drogas e cultura, algumas
especificidades das representações e/ou significados para explicar os diferentes padrões de
consumo de drogas entre os sexos, que podem ser apresentadas como: relações de poder;
sexualidade; exibição e exposição a situações de risco e responsabilidades sociais. É a partir
do conceito de gênero e da problematização da hierarquia entre os gêneros, que destacamos o
estudo do próprio discurso das mulheres sobre a sua experiência enquanto dependente
química no contexto sociocultural em que as mesmas estão inseridas como fonte de
informação das representações que podem integrar o processo saúde-doença.
Brevemente, os resultados indicam que as mulheres apresentam maior
vulnerabilidade em relação aos homens às consequências médicas e sociais do consumo de
álcool e de outras drogas. Porém, não podemos generalizar resultados a partir da
pressuposição de que mulheres dependentes de álcool ou outras drogas representariam um
grupo uniforme pelo simples fato de serem mulheres.

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EDUCAÇÃO EM SAÚDE PARA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SEXUAIS E


REPRODUTIVOS

Josilene Maria de Oliveira428| josissmaria@yahoo.com.br


Ednaldo Costa Braz429
Idalina Maria Freitas Lima Santiago430

INTRODUÇÂO

O presente artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa “Mulheres paraibanas:


saúde sexual e reprodutiva”, financiada pelo MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA, edital nº 32/2012,
realizada em quatro municípios da Paraíba. Teve como objetivo saber em que medida as
mulheres atendidas nas estratégias de saúde da família nas cidades de Cajazeiras, Campina
Grande, João Pessoa e Patos431 tiveram o acesso aos serviços previstos na Política Nacional
de Atenção Integral a Saúde da Mulher – PNAISM. Para tanto, foi necessário traçar um perfil
básico destas mulheres, identificar os serviços no município voltados a saúde da mulher,
verificar o grau de informação obtido pelas usuárias das Unidades de Saúde da Família no que
concerne a temas voltados para a saúde sexual e reprodutiva (menarca, início da vida sexual,
contracepção, parto, prevenção do câncer de mama e do colo do útero, DSTs-HIV/AIDs,
climatério/menopausa)
A pesquisa possuiu abordagem descritivo-analítica, com o intuito de identificar e
428
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba
429
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba
430
Vice coordenação do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba -
UEPB, e professora orientadora da pesquisa: Mulheres Paraibanas: Direitos Sexuais e Reprodutivos.
430
Os quatro municípios pesquisados não foram escolhas aleatórias, mas sim porque correspondem às cidades de
referência para os pólos regionais de saúde do estado da Paraíba, divisão esta feita Secretaria Estadual de Saúde.
.
1334
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descrever os serviços de saúde prestados nas unidades de saúde da família. Para alcançarmos
tais objetivos aplicamos questionários junto a 150 usuárias nas quatro cidades e entrevistamos
as gestores/as públicos/as responsáveis pelas áreas técnicas de saúde da mulher e de atenção
básica, além de cinco coordenadores das equipes da saúde da família em cada cidade
pesquisada.
Diante das informações coletadas na pesquisa, para a construção deste artigo, vamos
considerar os aspectos relacionados à educação em saúde desenvolvidos nas Unidades de
Saúde da Família do município de Cajazeiras, pois percebemos, durante a análise dos dados,
que muitas das problemáticas detectadas poderiam ter resultados diferenciados no que
concerne à saúde das mulheres usuárias, caso as mesmas tivessem informações e orientações
como preconiza a PNAISM.

O MUNICÍPIO DE CAJAZEIRAS – PB E A ESTRUTURA DE ATENÇÃO À SAÚDE

O município de Cajazeiras, localizado no sertão da Paraíba, está a 468 quilômetros da


capital do Estado, João Pessoa, tendo 565,899km² de extensão territorial, e segundo o IBGE,
possui uma população de cerca de 61.030 habitantes.
No que se refere aos serviços de saúde, de um modo geral, o Sistema Único de Saúde
no município dispõe de: 01 Hospital Regional, 01 Unidade de Pronto Atendimento – UPA, 01
Hemocentro, 01 Hospital Universitário pela Universidade Federal de Campina Grande –
UFCG, 01 maternidade, 01 policlínica, 01 Unidade do Sistema de Atendimento Móvel de
Urgência – SAMU, 17 unidades de saúde da família, além de convênios com laboratórios
privados da cidade, realizados por meio de processos licitatórios.
Quanto aos aspectos da Atenção Básica de Saúde, e tendo a nossa pesquisa como foco
as Unidades de Saúde da Família, é imprescindível indicar que o município de Cajazeiras
possui 17 Unidades de Saúde da Família (USF) em funcionamento, e possuem, ao menos, a
estrutura física mínima para funcionar, ou seja: sala de puericultura, vacinação, consultório
odontológico, médico e ambulatório.
Porém, para coleta de dados, foram selecionadas, aleatoriamente, 05 unidades, que
correspondem a 29,4% das unidades de saúde da família do município, que são: Amélio
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Estrela de Cartaxo, João Bosco Braga Barreto, José Leite Rolim, Maria José de Jesus, e São
José. Uma peculiaridade que podemos trazer sobre o município de Cajazeiras é que ele não
possui distrito sanitário, como acontece com as outras três cidades pesquisadas, sendo
dividido apenas em zona urbana (norte e sul) e rural para pensar e executar as ações de saúde
da cidade.
Quanto à equipe que presta os serviços nas Unidades de Saúde da Família,
encontramos: enfermeiro/a, médico/a, técnico em enfermagem, dentista, auxiliar de dentista,
vigilante, auxiliar de serviços gerais, técnico administrativo, que exerce, também, a função de
recepcionista, e agentes comunitários de saúde. Assim, afirmamos que as unidades de saúde
do município de Cajazeiras seguem a orientação do Ministério da Saúde, por meio da Política
Nacional de Atenção Básica.
Também dispõe de programas destinados à atenção básica no município, ofertados nas
unidades de saúde, como o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da
Atenção Básica – PMAq; Núcleo de Apoio a Saúde da Família – NASF; Programa Mais
Médicos, entre outros, que, segundo a Política Nacional de Atenção Básica, “desempenham
um papel central na garantia à população de acesso a uma atenção à saúde de qualidade”
(BRASIL, 2012, p. 09).
Dentre os municípios pesquisados, Cajazeiras foi a cidade que demonstrou menos
recursos técnicos e humanos para efetivar as prerrogativas previstas em lei para a efetivação
da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Nesta cidade encontramos
ausência ou insuficiência de equipamentos e de profissionais para as demandas vinculadas à
média e alta complexidade, especialmente no que diz respeito à oferta de exames de imagem
(ultrasonografia e mamografia), considerados os mais confiáveis para detecção do câncer de
mama. Inexistiam aparelhos de mamografia e ultrassonografia próprios da secretaria de saúde,
havendo apenas um serviço conveniado para realização desses exames.
O processo de referência e contra-referência de solicitação de exames e marcação de
consultas especializadas não estava informatizado, sendo efetivado através de
encaminhamentos manuais realizados por funcionários das Unidades de Saúde da Família ou
pelas próprias usuárias. O Programa Mais Médicos possibilitou a ampliação do
funcionamento de maior número de USFs, posto que conseguiu fixar profissionais de
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medicina no município. As instalações físicas das USFs, de maneira geral, careciam de


melhores condições para atendimento dos serviços, sendo em grande maioria situadas em
prédios alugados pela prefeitura, sem o acesso à telefonia. O contato com outros órgãos da
secretaria de saúde era feito mediante aparelhos celulares dos/as coordenadores/as das equipes
de saúde da família, normalmente, os/as profissionais de enfermagem.
A prática de ações vinculadas à educação em saúde, que fortalecem a promoção e
prevenção, foi incipiente nas USFs pesquisadas, conforme demonstraremos posteriormente.
Vale salientar que as ações voltadas à promoção e prevenção são requisitos da Política
Nacional de Atenção Básica, mediante a educação em saúde.
Nesse sentido, a educação permanente, além da sua evidente dimensão pedagógica,
deve ser encarada também como uma importante “estratégia de gestão”, com grande
potencial provocador de mudanças no cotidiano dos serviços, em sua micropolítica,
bastante próximo dos efeitos concretos das práticas de saúde na vida dos usuários, e
como um processo que se dá “no trabalho, pelo trabalho e para o trabalho.
(BRASIL, 2012,p. 38 e 39)

É a partir da perspectiva da educação em saúde elencada acima que vamos analisar as


ações desenvolvidas nas USFs do município de Cajazeiras-PB a partir da ótica das usuárias
das unidades de saúde da família.

EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA CIDADE DE CAJAZEIRAS – PB

Nos nossos dias, a saúde está pautada em vários aspectos da vida, seja no trabalho, no
espaço doméstico, nos momentos de lazer, e, especial nos meios de comunicação, nas redes
sociais, que nos trazem um modelo de saúde pautado em um corpo sarado, e que vivamos
mais e melhor.
Mas, mesmo diante destas informações e o acesso a elas, é imprescindível que
discutamos a relação estabelecida entre as políticas e programas de saúde, com uma
abordagem mais pedagógica e norteadora das ações, como por exemplo, nas unidades de
saúde da atenção básica. Esse é o principal objetivo deste artigo, ao trazer os dados levantados
na pesquisa na cidade de Cajazeiras-PB.
Para tanto, antes que problematizemos estes dados é relevante registrar quem são as

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150 usuárias das unidades de saúde que participaram de nossa pesquisa, a partir de
informações sobre idade, cor da pele, escolaridade e trabalho, trazendo um perfil mínimo
destas mulheres.
No que diz respeito à idade, as usuárias estão distribuídas em grupos etários, a saber:
de 18 a 29 anos, de 30 a 40 anos, de 41 a 50 anos, de 51 a 60 anos, de 61 a 70 anos e de 70
anos ou mais. Mesmo não sendo nossa finalidade fazer o recorte geracional, o grupo de 18 a
29 anos,432 ou seja, o grupo das jovens mulheres, consta de 34,7% do total de pesquisadas,
seguidas do grupo etário de 30 a 40 anos, com 23,3% das usuárias. Vale salientar que apenas
estes dois grupos correspondem a 58% das mulheres pesquisadas. Isto nos revela que as
usuárias das unidades de saúde da cidade de Cajazeiras – PB são eminentemente jovens ou
estão no início da vida adulta.
Ao analisar os dados referentes à cor da pele, percebemos que 32% das mulheres se
identificaram enquanto brancas, sendo este o maior grupo, seguido de morena com 29,3%,
pardas 27,3%, e 6% se disseram negras. Nenhuma mulher se declarou indígena. Mas, o que
nos chama a atenção é que se juntarmos os dados referentes a morenas, pardas e negras,
teríamos um total de 62,6% de pessoas não brancas, sem contar com as 5,3% que se definiram
na categoria outras. É importante registrar que durante a aplicação do questionário junto às
usuárias era comum que elas nos solicitassem dizer qual a cor da pele das mesmas. Não
vamos problematizar aqui as questões referentes à auto definição das usuárias, porém, vale
salientar que a PNAISM aponta que o recorte racial/étnico é relevante à análise dos
indicadores de saúde, bem como para o planejamento e execução de ações.
Quanto aos aspectos da escolaridade, 86,7% das usuárias declararam saber ler,
seguidas de 11,3% que apenas sabem assinar seus nomes, e 2% que não sabem ler. Das que
disseram saber ler, o maior índice está nas que concluíram o ensino médio ou nível técnico,
com 22,3%, e, logo após, com 17,7% as que não concluíram esta modalidade de ensino. O
segundo nível, que também pontua significativamente, diz respeito ao Fundamental II, em que
16,2% das usuárias concluíram esta fase, seguidas de 15,4% que não terminaram.
Um fator que nos chama a atenção é que, no universo de mulheres pesquisadas, o

432
Segundo o Estatuto da Juventude, são considerados jovens, pessoas de 15 a 29 anos de idade. (2013, Art. 1°,
parágrafo 2°)
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percentual de usuárias que concluíram o ensino superior é igual ao número de mulheres que
possuem pós-graduação concluída, ou seja: 3,1%. Outra informação importante para ressaltar
é sobre o número de mulheres que continuam seus estudos, que são 16,9% das pesquisadas. O
nível de escolaridade que mais figura neste caso é o superior, e os cursos com maior
ocorrência são: Pedagogia, História, Direito e Enfermagem.
No que se refere aos aspectos do trabalho e renda, constatamos que 52,7% das usuárias
dizem não trabalhar, enquanto 47,3% trabalham. Das mulheres que trabalham, 35,2% não
possuem vínculo empregatício formal, ou seja, sem carteira assinada e sem seus devidos
direitos trabalhistas resguardados. Sobre as mulheres que não trabalham, verificamos que
72,2% estão desempregadas ou não trabalham por desejo próprio; 16,5% nunca trabalharam
ou se dedicam apenas ao trabalho em sua própria residência. Temos ainda as que são
aposentadas, que correspondem a 8,9%, e as que são pensionistas, 2,5%.
Foi a partir da ótica destas mulheres que analisamos as ações de educação em saúde
desenvolvidas nas USFs do município de Cajazeiras-PB voltadas para temáticas concernentes
à saúde sexual e reprodutiva.
Assim temos que apenas 2,9% das pesquisadas afirmaram ter recebido alguma
orientação da/na unidade de saúde da família sobre menarca, bem como 3,0% das usuárias
declararam ter recebido alguma orientação sobre o início da vida sexual nas USFs. Das
usuárias pesquisadas, 67,3% disseram não ter recebido informações sobre métodos
contraceptivos, 46% informaram não ter tido orientações sobre prevenção do câncer de mama,
44% afirmaram que não receberam informações sobre a prevenção do câncer do colo do
útero.
No que se refere a prevenção de DSTs-HIV/AIDS, 50,8% afirmaram ter recebido
alguma orientação por meio de palestras e panfletos, mas nos cabe considerar que as outras
49,2% não receberam qualquer informação, e são quase metade destas mulheres. Este dado
pode ter uma relação direta para que 54,7% das usuárias não se previnam em suas relações
sexuais e 44% nunca tenham feito testes para HIV/AIDS.
Um outro aspecto que nos surpreende é que quando indagamos sobre a escolha do tipo
de parto, 36,8% das mulheres disseram que optaram pelo tipo de parto ao qual se submeteram,
contra 63,2% que responderam não escolher, ficando na responsabilidade dos/as profissionais
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de saúde a definição do tipo do parto das usuárias.


Ainda temos que 67,9% não foram informadas sobre climatério/menopausa, nos
trazem a reflexão que a problemática da falta de informação e orientação as usuárias
perpassam todas as fases da vida da mulher.
Podemos registrar que, a forma mais usual de repasse de informações para as usuárias
de deu através da realização de palestras sobre temas relacionados à saúde da mulher, como
parte do processo de educação.
É preciso que os/as gestores/as das ações de saúde de Cajazeiras-PB tenham outros
olhares, outros tipos de orientação para além das palestras, pois estas já se mostraram
incipientes junto às usuárias. Seria primordial que tivessem outras abordagens pedagógicas
para garantir, com maior efetividade, uma política de prevenção.

Retomando a perspectiva da informação como uma das estratégias de prevenção,


temos que a Lei 12.527, de 18 de Novembro de 2011, que regulamenta o direito
constitucional de toda população ao acesso as informações públicas. É uma lei bem genérica,
mas que vem a corroborar com ações de informações e orientações de outras políticas, a
exemplo das que tratam de prevenção do câncer de mama, do colo do útero, do direito a
escolha do tipo de parto, entre outras.
Temos ciência da generalidade das legislações, mas a medida que comparamos as
propostas da PNAISM, quando analisadas caso a caso, dos dados apontados em nossa
pesquisa, verificamos as lacunas existentes nas ações e serviços destinados aos atendimentos
para as usuárias, como por exemplo, no que se refere ao aspecto educativo ou formativo que
as políticas propõem, com ênfase na promoção da saúde e prevenção, que deveriam ser
prioridade nas USFs.
Compreendemos, como aponta Andrade (2013), que a educação não é apenas o
processo de ensino / aprendizagem que consta nos marcos jurídicos do país, mas aporta várias
abordagens, inclusive articulado as políticas públicas, tais como saúde e educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Visualizamos, na cidades de Cajazeiras-PB, o grande déficit que há junto às mulheres

1340
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em práticas educativas e/ou de informação, orientação e formação nas mais variadas


problemáticas que a PNAISM. Não percebemos um trabalho permanente e educativo para
com as usuárias das unidades de saúde da família.
Isto implica dizer que uma das orientações da PNAISM e PNAB não está sendo
seguida nas unidades de saúde da família pesquisadas, posto que o processo de educação em
saúde não está sendo efetivada da forma como está proposto nas citadas políticas.
O desafio está em compreender a educação e a saúde como direitos, considerar a
dignidade da pessoa humana, a valorização e respeito às diferenças, e a igualdade de direitos,
inclusive, no acesso a informação e orientação. Neste sentido,
Os processos educativos, ao tempo em que tornam possível às pessoas e aos grupos
que deles participam se afirmarem desde o lugar onde atuam, e a partir do qual
constroem sua visão de mundo, tornam possível, também, sua inserção na sociedade
como agentes de transformação (Brasil, SDH, 2007 p. 34).

Assim, um processo de educação em saúde, ou melhor, a atenção básica em saúde,


precisa abranger além da promoção da saúde, prevenção de doenças, assistência aos sintomas
clínicos e incorporar as possíveis dificuldades de cada fase da vida da mulher.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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para se justificar o direito de formar-se como humano. Porto Alegre, impresso, v. 36, n. 1,
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http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf, acessado em
10/10/2015;
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm, acessado em 15/10/2015;

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OS CUIDADOS COM O CORPO: SAÚDE SEXUAL DE MULHERES NAS USFs NO


MUNICÍPIO DE CAMPINA GRANDE - PB

Ednaldo da Costa Braz433 | ed-braz@bol.com.br


Josilene Maria de Oliveira434
Idalina Maria Freitas Lima Santiago435

INTRODUÇÃO

O artigo proposto tem como objetivo analisar se as mulheres atendidas nas Unidades
de Saúde da Família (USF) tiveram efetivados os direitos referentes à saúde sexual previstos
na Política Nacional de Atenção Integral a Saúde da Mulher (PNAISM).
Trata-se de artigo que apresenta parte dos resultados obtidos na pesquisa financiada
pelo MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA, edital nº 32/2012, intitulada “Mulheres Paraibanas Saúde
Sexual e Reprodutiva”, realizada em quatro cidades do Estado da Paraíba: Cajazeiras, Patos,
Campina Grande e João Pessoa. Para este artigo, foram evidenciadas as análises referentes à
cidade de Campina Grande/PB, com recorte específico para as reflexões voltadas ao campo da
saúde sexual. Apesar de sabermos das articulações entre a sexualidade e a reprodução
humana, a perspectiva que adotamos considera que a vivência da sexualidade não
necessariamente está implicada com a reprodução humana. Daí, tomamos como recorte para
este artigo tão somente os aspectos concernentes à saúde sexual sem articulá-la com as
questões inerentes à reprodução.
A PNAISM foi lançada no ano de 2004, incorporando o enfoque de gênero, a

433
Mestrando em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.
434
Mestranda em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.
435
Professora da Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.
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integralidade e a promoção da saúde como princípios norteadores, bem como a consolidação


de avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL, 2004, p. 5).
O documento em questão apresenta consonância com os princípios do SUS, com o
objetivo de intervir em questões relativas à atenção obstétrica e neonatal, ao planejamento
familiar, à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e da infecção pelo HIV/AIDS,
redução da morbimortalidade por câncer na população feminina, entre outras especificidades.
A construção da PNAISM se deu a partir de vários anos de reivindicações do
movimento feminista ao colocar em pauta as necessidades do cuidado com as mulheres para
além das demandas relativas à gravidez e o parto, rechaçando a perspectiva materno-infantil
que predominava na saúde pública. Retomando um pouco a história da constituição da
PNAISM, cabe demarcar que as feministas, a partir da década de 1960, incorporaram nas suas
lutas as ideais de que “nosso corpo nos pertence” ou “o pessoal é político” de forma a
reclamarem direitos na esfera da sexualidade e da reprodução. Assim, as mulheres passaram a
reivindicar que deveriam ser as donas de seus próprios corpos, de maneira que pudessem
decidir sobre sua vida sexual e reprodutiva.
Nesse contexto de reivindicações, em 1983 foi criado o Programa de Assistência
Integral à Saúde da Mulher (PAISM) que trazia a saúde sexual e reprodutiva como um dever
do Estado. O PAISM incorporou como princípios e diretrizes as propostas de
descentralização, hierarquização e regionalização dos serviços, bem como a integralidade e a
equidade da atenção, num período em que, paralelamente, no âmbito do Movimento Sanitário,
se concebia o arcabouço conceitual que embasaria a formulação do Sistema Único de Saúde
(SUS).
A partir de diálogos do governo com o movimento feminista, 20 anos após a
promulgação do PAISM, o Ministério da Saúde lançou em 2004 a PNAISM, passando a
assistência à saúde sexual e reprodutiva das mulheres ter um caráter de política pública em
nível nacional, não mais considerada como um programa específico de governo.
Partindo dessas discussões acerca da PNAISM e de seus direcionamentos, passaremos,
agora, a refletir sobre a saúde sexual das mulheres no município de Campina Grande.
Campina Grande, segunda maior cidade do Estado, encontra-se localizada na região
do Agreste a qual representa a transição entre a zona da Mata e a tradicional região do Sertão,
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com clima semi-árido, tendo predominância de cultivo de cana-de-açúcar, algodão, sisal. Esta
cidade destaca-se por ser um polo de produção tecnológica no país.
A pesquisa foi desenvolvida em 18 Unidades de Saúde da Família (USF) e se pautou em
um estudo descritivo-analítico com amostra de 150 mulheres, as quais responderam a um
questionário estruturado. Para a escolha das unidades de saúde da família pesquisadas,
utilizamos como base de dados à lista de Unidades de Saúde da Família disponível no
Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (http://cnes.datasus.gov.br//, acessado em
19/05/2014). Assim, fixamos 25% do total da quantidade de USFs, tomando como critério a
escolha aleatória, obedecendo à inclusão de unidades em todos os distritos sanitários
existentes no município, e a conveniência operacional da pesquisa. O critério para seleção das
usuárias foi idade superior ou igual a 18 anos e o interesse em participar da pesquisa. A
análise dos dados foi processada através do programa para análise estatística Excel.
Para garantir a legitimidade das informações coletadas, apresentamos às usuárias o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido para referendar suas participações na pesquisa, após
aprovação da mesma pelo Comitê de Ética da UEPB com o protocolo 33787114.0.0000.5187.

SAÚDE SEXUAL E AS VIVÊNCIAS DAS MULHERES

É comum encontrarmos a saúde sexual ligada diretamente à saúde reprodutiva, mas a


mesma é apresentada como uma forma de melhorar a qualidade de vida e as relações pessoais,
independentemente das questões relativas à reprodução.
HERA (1999 apud CORRÊA, JANNUZZI, ALVES, 2006, p. 9) afirma que,

A saúde sexual é a habilidade de mulheres e homens para desfrutar e expressar sua


sexualidade, sem risco de doenças sexualmente transmissíveis, gestações não
desejadas, coerção, violência e discriminação. A saúde sexual possibilita
experimentar uma vida sexual informada, agradável e segura, baseada na auto-
estima, que implica numa abordagem positiva da sexualidade humana e no respeito
mútuo nas relações sexuais. A saúde sexual valoriza a vida, as relações pessoais e a
expressão da identidade própria da pessoa. Ela é enriquecedora, inclui o prazer, e
estimula a determinação pessoal, a comunicação e as relações.

A saúde sexual está atrelada aos cuidados com os corpos de homens e mulheres

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referentes às suas sexualidades, de maneira que ambos possam ter uma vida sexual segura e
satisfatória, valorizando a vida pessoal de cada um/a.
No contexto dos resultados da pesquisa em foco neste relatório, das 150 mulheres
pesquisadas, 97,3% afirmaram ter iniciado sua vida sexual enquanto 2,7% disseram não ter
iniciado.
Ao indagarmos se elas haviam tido informações sobre a menstruação antes de
entrarem na menarca, 56,7% disseram que não tinham a mínima noção do que seria, já que
não havia diálogo entre elas e suas mães e/ou outro familiar, menos ainda nas USFs. Porém,
43,3% mulheres afirmaram que tiveram informação e destas, 61,5% tiveram informação em
conversas com suas mães, outras 20,0% disseram que só souberam o que seria a menstruação
em conversas com amigas, e 18,8% tiveram informação na escola.
Tabela 01: Informações sobre menstruação antes da menarca
Quando você menstruou, tinha informações sobre a
Frequência Percentual
menstruação?
Sim 65 43,3%
Não 85 56,7%
Total 150 100,0%

Se sim, com quem? Frequência Percentual


Mãe 40 61,5%
Pai 1 1,5%
Avô(s) 0 0,0%
Avó(s) 1 1,5%
Irmã(s) 9 13,8%
Irmão(s) 0 0,0%
Amiga(s) 13 20,0%
Amigo(s) 1 1,5%
Tia(s) 1 1,5%
Tio(s) 0 0,0%
Escola 12 18,8%
Unidade de Saúde 0 0,0%
Outro(s)/a(s) 4 6,2%

Fonte: pesquisa direta realizada entre 16 de outubro a 18 de novembro de 2014.

Mais da metade das mulheres não obtiveram informações sobre menstruação, ficando
nítido o silenciamento em relação à sexualidade da mulher. Desde criança a menina é
controlada a não abrir as pernas, não colocar a mão em sua vagina, não sentir desejos, não
conhecer seu corpo a partir do toque. Diferentemente do homem que é permitido e
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incentivado a conhecer seu corpo através da masturbação.


Nesse contexto, as mulheres são sujeitos controlados como se não pudessem despertar
desejos, sendo vistas apenas como mero objeto de desejo do homem. Sem mencionar que em
pleno século XXI, ainda existem muitas mulheres que sentem vergonha ao falar sobre sua
sexualidade, resultado de um histórico de negação sobre sexo/sexualidade da mulher.
Ao mesmo tempo em que há uma negação dos desejos das mulheres, é notória a
ausência de um trabalho a ser realizada nas USFs com o intuito de informar as adolescentes
sobre o processo de mudanças acarretado em seus corpos e explicação sobre a menstruação,
cabendo aos/as profissionais um diálogo com as usuárias dos serviços como forma de estarem
realizando promoção de saúde.
Nesse contexto, os cadernos de atenção básica do Ministério da Saúde exige uma nova
qualificação dos profissionais, de modo que,

As equipes de atenção básica/saúde da família tem um papel fundamental na


promoção da saúde sexual e da saúde reprodutiva e na identificação das dificuldades
e disfunções sexuais, tendo em vista a sua atuação mais próxima das pessoas em seu
contexto familiar e social (BRASIL, 2010, p. 49).

Cabe ainda demarcar o que está previsto na Política Nacional de Atenção Básica, no
Art. VII, que prevê o desenvolvimento de ações educativas que possam interferir no processo
de saúde-doença da população, no desenvolvimento da autonomia, individual e coletiva, e na
busca por qualidade de vida dos usuários (BRASIL, 2012).
No que se refere ao recebimento de informações sobre sexo antes da primeira relação
sexual, o percentual de mulheres que não receberam estas orientações apresentou quase a
mesma quantidade dos números citados em relação às informações sobre menstruação: 53,3%
não obtiveram informação e 46,7% afirmaram que tiveram informação antes do primeiro ato
sexual. Das que tiveram informações acerca de como ocorre a relação sexual, 22 mulheres
mantiveram diálogos com a mãe, 31 com amigas, 25 nas escolas e apenas 4 afirmaram terem
recebido alguma informação nas USFs.
Mais uma vez ressaltamos a ausência de um trabalho das equipes de saúde das USFs
pesquisadas direcionado às mulheres como forma de promoção e prevenção de saúde, para
que possam ter qualidade de vida, portanto, maiores cuidados com seus corpos.
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Em relação ao número de parceiros que as usuárias tiveram no último ano, 85,6%


informaram ter tido um único parceiro e 10,3% afirmaram não terem tido relação sexual no
período referido. Esses dados se mostram dentro de uma lógica em que a mulher tinha/tem
que se preservar para um único companheiro. Assim, as respostas das mulheres reforçaram a
perspectiva de relações afetivas perpassadas pela cultura hegemônica que estabelece a
monogamia, especialmente para as mulheres, como o marco regulatório para os
relacionamentos sexuais.

PREVENÇÃO DAS DST/AIDS PELAS MULHERES

Os dados epidemiológicos elaborados pelo Ministério da Saúde (2005), através das


notificações das DSTs/AIDS em nosso país, mostram a extensão da epidemia como forma de
evidenciar a preocupação em ampliar ações direcionadas para o combate de tais doenças, de
forma a dar assistência às pessoas que vivem e convivem com HIV/AIDS e de forma a
garantir um tratamento adequado as DSTs.
O Estado passa a reconhecer as DSTs/AIDS como um problema de saúde pública ao
assumir a estratégia de construção de um Programa Nacional de Controle das DSTs/AIDS
como forma de acompanhar as pessoas infectadas com o vírus do HIV e ou DSTs. Ao mesmo
tempo em que constrói estratégias de prevenção destas doenças, estabelece ações para os
profissionais da área da saúde com vista ao repasse de informações para os/as usuários/as do
Serviço Único de Saúde.
Nesse contexto, questionamos as mulheres pesquisadas acerca do acesso a
informações sobre HIV/AIDS e DSTs e verificamos que 90,7 % afirmaram já terem recebido
estas informações e 9,3% disseram nunca terem sido informadas sobre tais doenças. Quanto
às formas que elas acessaram as citadas informações, 54,4% disseram ter sido nas USFs,
27,9% na escola, 12,5% entre amigas, 47,8% apontaram outras maneiras, tendo sido mais
indicada à mídia. Os dados mostram certa incidência de ações educativas desenvolvidas nas
USFs pesquisadas relacionadas ao HIV/AIDS e DSTs.
Especificamente sobre as informações adquiridas nas USFs, 44,6% disseram que
aconteceram através de palestras, 17,6% durante a consulta médica, 12,2% em conversa
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individual com a enfermeira, 4,1% através de panfletos entregues nas unidades.


Considerando que metade das mulheres afirmou ter informações sobre HIV/AIDS e
DST, perguntamos quais as DSTs que elas conheciam. Assim, tivemos como respostas: sífilis
ou cancro duro apareceram nas respostas de 38,0% das mulheres; HPV ou verrugas genitais
foram respondidas por 26,7%; gonorreia, 22,7%; herpes, 17,3%; cancro mole, 2,7%; e 71,3%
citaram outras doenças. A tabela abaixo especifica estes dados.
Tabela 02: conhecimento acerca das DSTs e HIV/AIDs

Qual(is) DSTs você conhece? Frequência Percentual


Sífilis (cancro duro) 57 38,0%
Gonorreia 34 22,7%
Clamídia 0 0,0%
HPV (verrugas genitais) 40 26,7%
Candidíase 9 6,0%
Herpes 26 17,3%
Cancro mole 4 2,7%
Outra(s) 107 71,3%

79.Outras Qual Frequência Percentual


HIV/AIDS 94 87,9%
HIV/AIDS/HEPATITE 4 3,7%
HIV/AIDS/CHATO 2 1,9%
INFLAMAÇÃO 2 1,9%
CÂNCER/HIV/AIDS 1 0,9%
CAROÇOS 1 0,9%
HEPATITE 1 0,9%
HIV/AIDS/GARDNERELLA VAGINALIS 1 0,9%
HIV/AIDS/TUBERCULOSE 1 0,9%
Total 107 100,0%
Fonte:
pesquisa direta realizada entre 16 de outubro a 18 de novembro de 2014

Quando perguntamos sobre as formas de transmissão dessas DSTs e HIV/AIDS,


encontramos as seguintes respostas: 87,3% afirmaram ser através de relação sexual; 3,3%
através do sangue de mulher grávida para o filho/a; 0,7% através do leite materno; 21,3%
citaram seringas contaminadas; 15,3% transfusão de sangue; e 24,7% outras formas de
contagio.
Dentre essas outras formas de contágio, destacamos: 18,9% disseram ser através do
beijo; 13,5% afirmaram através do assento; 8,1% citaram alicate de unha; 5,4% contato com
sangue, cortes, saliva/beijo; outras 2,7% citaram roupas compartilhadas, ferimentos, secreção;

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e somente uma afirmou ser através do sexo oral.


Estas respostas nos levam a problematizar a qualidade das atividades educativas
desenvolvidas nas USFs pesquisadas voltadas para as DSTs e HIV/AIDS. Percebemos, ainda,
a reprodução de informações de formas de contágio das DSTs e HIV/AIDS remanescentes
dos resquícios do período de surgimento da doença, em que se afirmava que poderia ser
transmitida através do beijo, no assento, etc.
Conhecidas as informações que as usuárias tinham sobre DSTs e HIV/AIDS,
solicitamos que nos informassem quais formas de prevenção elas utilizavam. Como a questão
era de múltipla escolha, algumas mulheres citaram mais de uma forma. As respostas mais
assinaladas foram: 46,9% utilizam camisinha masculina; 17,3% indicaram a confiança no
parceiro; 14,8% só transam com um único parceiro; 4,9% não estavam mantendo vida sexual
ativa; 1,2% através da pílula anticoncepcional; 1,2% evitando aperto de mãos; 1,2% não
usando roupas de outras pessoas; 1,2% fazendo exames.
Percebemos que questões subjetivas relativas ao envolvimento sexual (17,3%
afirmaram terem confiança no marido e 14,8% só se relacionavam com o mesmo parceiro)
tiveram uma incidência significativa nas respostas das formas de prevenção do contágio. Mais
uma vez problematizamos: onde está o processo de educação e saúde previsto nas
prerrogativas da Estratégia Saúde da Família voltado para as reflexões em torno das doenças
sexualmente transmissíveis e do HIV/AIDs? Como, ainda hoje, as usuárias das USFs tomam a
confiança nos parceiros como baliza para evitar o contágio das DSTs e HIV/AIDs?
Em relação à efetuação do teste de HIV/AIDS, 62,7% disserem terem feito e 37,3%
afirmaram nunca o ter realizado. Perguntamos se elas já tiveram ou tem alguma DSTs ou
HIV/AIDs: 91,3% disseram que nunca tiveram/tem e 8,7% afirmaram que já tiveram/tem
alguma DST. No total das 13 mulheres que informaram terem sido acometidas com DSTs, 2
tiveram sífilis, 1 gonorreia, 6 candidíase, 1 herpes, 1 HPV, 1 tricomoníase e outra pediculose
pubiana ou chato.
A indicação das mulheres de terem sido acometidas pelas DSTs foi muito pequena,
conforme explícito anteriormente, o que nos coloca uma interrogação quanto à veracidade das
informações prestadas pelas informantes. O que será que houve? Conjecturamos duas
possibilidades para os baixos índices das respostas: i) o real desconhecimento das mulheres
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pesquisadas acerca do que sejam DSTs; ii) receio em informar a estranhos particularidades a
respeito de sua saúde sexual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos dados obtidos na pesquisa em questão, fica nítido que inexiste, ou é
insuficiente, o trabalho de educação em saúde nas USFs, com as usuárias, relacionado a temas
vinculados à saúde sexual. Reflexões em torno da menstruação, da primeira relação sexual e
da prevenção de DSTs e HIV/AIDS foram pouco relevantes.
Mesmo tendo sido indicado pela metade da amostra à obtenção de informações sobre
DSTs e HIV/AIDS nas atividades educativas desenvolvidas pelas USFs, percebemos que o
nível de informações das usuárias ainda é muito tênue, tendo em vista que algumas mulheres
estão reproduzindo discursos de formas de contágio de doenças sexualmente transmissíveis
cientificamente já descartados. Portanto, a PNAISM vem sendo descumprida no que se refere
a não haver processos educativos efetivos nas USFs.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Princípios e


Diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
______. Plano Estratégico Programa Nacional de DST e Aids. Brasília: Ministério da
Saúde, 2005. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/plano_estrategico.pdf.
Acessado em 06 de maio de 2015.
______. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Básica: saúde sexual e saúde
reprodutiva. Série A. Normas e Manuais Técnicos, n. 26. Brasília – DF, 2010.
______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Ministério da
Saúde, 2012. (Série E. Legislação em Saúde).
CORRÊA, Sônia; JANNUZZI, Paulo de Martino; ALVES, José Eustáquio Diniz. Direitos e
Saúde Sexual e Reprodutiva: marco teórico-conceitual e sistema de indicadores. In:
CAVENAGHI, Susana (Organizadora). Indicadores Municipais de Saúde Sexual e
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Reprodutiva. Rio de Janeiro: ABEP, Brasília: UNFPA, 2006, p. 27-62.


TEIXEIRA, Simone Andrade; FERREIRA, Silvia Lúcia. Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos Teorias e Práxis de Feministas Acadêmicas. In: BONNETI, Alinne; SOUZA,
Ângela Maria Freire de Lima. Gênero, Mulheres e Feminismos. Salvador: EDUFBA:
NEIM, 2011. p. 261-290.
VIEIRA, Elizabeth Meloni. A Medicalização do Corpo Feminino. Rio de Janeiro Editora
FIOCRUZ, 2002.

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TORNAR-SE INFÉRTIL: DA LAQUEADURA TUBÁRIA À REPRODUÇÃO


ASSISTIDA E DIREITOS REPRODUTIVOS

Cristiane de Cássia Nogueira Batista de Abreu | cristianedecassia_@hotmail.com

INTRODUÇÃO
No último século crescentes e significativas mudanças sociais ocorreram sobretudo no
que tange ao papel da mulher – sua inserção no mercado de trabalho, as relações sociais e de
gênero, o exercício da sexualidade e a própria questão da reprodução. Muitas mulheres
passaram a reduzir o número de sua prole ou mesmo a adiar a experiência da maternidade,
pois que outros interesses não circunscritos ao âmbito doméstico emergiram, tais como a
formação acadêmica prolongada e uma maior dedicação à carreira em busca de uma melhor
inserção profissional e consequente equilíbrio financeiro. Neste contexto, a escolha da
maternidade – a efetivação dessa proposta, o momento para sua realização ou mesmo o seu
adiamento, é marcada pelas relações raciais/étnicas, de classe e de gênero e, como tal varia
amplamente do ponto de vista do contexto histórico, dos diversos países e culturas. Contudo,
a maternidade permanece ancorada à identidade feminina, embora haja toda uma gama de
possibilidades de escolha propiciadas pelos métodos contraceptivos e mais recentemente, os
conceptivos.
Sob este aspecto, muitas mulheres, homens e casais que por diversas razões não
conseguem gerar um filho, acabam por procurar tratamento contra a infertilidade, uma vez
que o projeto de constituição de uma família passa a pertencer ao casal, numa clara evidência
da permanência de valores referentes ao gênero. Nesse cenário, destaca-se a grande oferta de
tecnologias médicas de reprodução oferecidas às mulheres, homens e casais, possibilitando
(mesmo que a duras penas) que estas pessoas vivenciem e concretizem o sonho do filho
biológico.
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Segundo a definição da Organização Mundial de Saude (OMS), a esterilidade é a


incapacidade de um casal conceber, após o período de um ano de relações sexuais regulares
sem o uso de métodos contraceptivos, porém em alguns casos tal limite de tempo pode ser
extremamente longo para caracterizar uma situação de esterilidade, como diante de mulheres
com mais de 35 anos de idade em que o limite de tempo de tentativas é de seis meses. Embora
intimamente relacionados, os termos infertilidade e infecundidade embutem significações
imprecisas. Assim é que a infecundidade apresenta-se como a ausência de filhos, que pode ser
voluntária ou involuntária. No caso da infecundidade voluntária, esta faz parte de um projeto
pessoal e/ou conjugal e não suscita investigações e/ou procedimentos biomédicos. Em
contrapartida, a infecundidade involuntária torna-se sinônimo do ponto de vista médico, de
infertilidade e demanda uma investigação especializada.
Com relação à prevalência da infertilidade, dados da Organização Mundial de Saúde
(OMS) e de sociedades científicas apontam que entre 8 a 15% dos casais têm algum problema
de infertilidade e estima-se que no Brasil, mais de 278 mil casais em idade fértil tenham
dificuldades para conceber um filho.436 Pode-se dizer que o fator masculino e o fator feminino
são responsáveis, cada um, por 40% dos casos de infertilidade, sendo os 20% restantes de
origem combinada. Contudo, pode-se dizer que, entre os fatores femininos, a inflamação
pélvica é um dos principais responsáveis pela infertilidade, causando bloqueios e infecções
tubárias. Ressalte-se também o uso abusivo e indiscriminado de tecnologias reprodutivas
(contracepção mal orientada, excesso de partos cesáreos, esterilização cirúrgica) concorrendo
para este panorama437.
Historicamente, algumas práticas sociais, tais como o aborto provocado, o infanticídio
e o abandono de crianças, sempre existiram como formas de evitar os nascimentos. O
chamado modelo de transição demográfica, representativo do declínio das taxas de
mortalidade e de fecundidade, teve início nos países europeus a partir da 2ª metade do século

436
Planejamento familiar – Portal Brasil. Disponível em www.brasil.gov.br/saude/2011/09/planejamento-
familiar. Acesso em 10/08/2015.
437
BARBOSA, Rosana Machin. Relações de gênero, infertilidade e novas tecnologias reprodutivas. Revista de
Estudos Feministas, Florianópolis, v.1, p.212-228, 2000.
437
A esterilização feminina é um procedimento médico que por meio de alterações anatômicas ou funcionais em
qualquer parte do sistema reprodutivo feminino impossibilita a fertilização. A laqueadura tubária, que envolve o
bloqueio (pela oclusão com ligaduras) das trompas de Falópio é a técnica mais comumente usada de
esterilização.
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XIX e tornou-se significativo nos países do sul, sobretudo o Brasil, no século subsequente,
especialmente a partir da década de 1950. Neste contexto houve grande disseminação de
medidas contraceptivas, utilizadas largamente de forma indiscriminada, como a utilização de
anticoncepcionais orais e a esterilização feminina através da laqueadura tubária438. Nos
últimos 30 anos, no Brasil, houve um aumento ainda maior da laqueadura tubária, a ponto de
torná-la hoje, a prática contraceptiva mais utilizada. Atualmente, a Pesquisa Nacional de
Demografia e Saude (PNDS) evidenciou a continuidade da alta prevalência dessa prática,
embora tenha apresentado uma queda no decorrer de 10 anos (em 1996, 40,0 % das mulheres
com vida sexual ativa haviam realizado a cirurgia contra 29,0% das mulheres em 2006),
dados que ainda mantém o Brasil como um dos países com as maiores taxas de esterilização
do mundo439.
Molina enfatiza que, no contexto brasileiro, a ausência de claras políticas
populacionais e a falta de uma política de planejamento familiar deram espaço para que
Organizações não governamentais (ONGs), associando-se muitas vezes, a governos estaduais
e municipais não só realizassem, mas, principalmente, treinassem e oferecessem material
cirúrgico inclusive laparoscópios – para laqueaduras em todo o país, em uma clara uma
postura controlista, pois acreditavam estar ajudando a resolver, com tal prática, problemas
socioeconômicos. Para o autor, a alta incidência de laqueadura tubária no Brasil pode ser
explicada por alguns fatores relativos ao próprio sistema de saúde, como a baixa qualidade
dos serviços oferecidos nas unidades de saúde; a alta incidência de cesarianas; a dificuldade
de acesso aos serviços de planejamento familiar; a falta de opções contraceptivas, incluindo a
masculina; as políticas de saúde equivocadas – como a não implantação de programas de
planejamento familiar, a falta de investimento na aquisição ou produção de métodos não
permanentes; e a não legalização do aborto.440 Acresce-se a estes, a falta de informação e o
desconhecimento por significativa parcela da população dos efeitos colaterais oriundos da

439
Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher – PNDS/2006. Disponível em: bvsms.
saúde. gov.br/bvs/pnds/atividade _ sexual.php. Acesso em 29/07/2015.
440
MOLINA, Aurelio. Laqueadura Tubária: situação nacional, internacional e efeitos colaterais. In: GIFFIN,
Karen; COSTA, Sarah Hawker (Org.). Questões da Saúde Reprodutiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.
P.134.
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laqueadura e mesmo o desconhecimento sobre a aplicabilidade de outros métodos


anticoncepcionais, o que leva a uma baixa aderência à maior parte deles. Ressalta-se também
a ideologia vigente quanto às questões de gênero, que reafirmam a noção do senso comum de
que a contracepção é assunto e responsabilidade apenas de mulheres, o que contribui para a
pequena adesão às opções contraceptivas masculinas.
Nos últimos anos, o aumento marcante da prevalência da laqueadura tubária no Brasil,
nos suscita a reflexão sobre como essa escolha tem sido realizada – trata-se de um método
cirúrgico que vem sendo utilizado como recurso de controle da fecundidade, porém, muitas
vezes, no momento da decisão e opção por esse método, são desconsideradas as mudanças
que podem ocasionar na vida das mulheres e dos casais no futuro, não obstante a
regulamentação da esterilização cirúrgica voluntária nos serviços públicos pela Secretaria de
Assistência a Saúde do Ministério da Saúde.441
Adverte-nos Molina que, devido à alta prevalência da esterilidade feminina na
população brasileira, já se percebem consideráveis impactos dessas práticas na saúde das
mulheres, cuja maior consequência é a esterilidade definitiva.442 O panorama atual revela a
busca, por parte de mulheres e casais que recorreram a esse método como contracepção, da
tentativa de reverter a técnica, com o intuito de formar nova prole, o que só é possível pela
cirurgia de reversão da laqueadura tubária ou pelas técnicas de reprodução assistida, como a
fertilização in vitro (FIV).443
Para Scavone, no âmbito da família e das relações de gênero, a prática da reprodução
assistida é o avesso da esterilização e do aborto, visto que leva à realização da maternidade
mediante uma fecundação programada. Um dos paradoxos da prática das tecnologias

441
A Portaria nº 144, de novembro de 1997, do Ministério da Saúde, dentro da legislação sobre planejamento
familiar regulamentou a realização da esterilização cirúrgica voluntária nos serviços públicos para mulheres ou
homens com plena capacidade civil e que tenham mais de 25 anos de idade, ou que tenham, pelo menos, dois
filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico.
BRASIL. Ministério da Saude. Portaria nº 144, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre Planejamento
Familiar. Brasília, 1997. Disponível em: http://sna.saude.gov.br/legisla/legisla/planf/sasp14497plantf.doc.
Acesso em 27/07/2015.
442
Molina, Aurelio. Op.cit. P.135.
443
A expressão “Reprodução assistida” descreve um variado conjunto de técnicas biomédicas destinadas ao
tratamento para situações de esterilidade, entre as pessoas que não podem ter filhos pela via natural, seja por
impossibilidade clínica ou mesmo por opção sexual. A Fertilização in vitro é um processo utilizado em que a
fecundação ocorre fora do corpo feminino, pois os gametas são colocados em placa de laboratório para formar
embriões, que serão posteriormente introduzidos no corpo da mulher.
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reprodutivas conceptivas no Brasil é sua coexistência com uma política de controle


demográfico, cujos rumos levaram a esterilização feminina ao patamar de método
contraceptivo mais utilizado no país. Se de um lado, as mulheres esterilizam-se baixando a
fecundidade, de outro elas buscam as tecnologias reprodutivas conceptivas para reparar a
esterilização, indicando que o desejo de procriar reaparece em fases distintas do ciclo
reprodutivo. Os programas de esterilização em massa aplicados outrora em mulheres
brasileiras podem gerar uma demanda potencial destas mulheres pela reprodução assistida e,
também, das mulheres que ficaram estéreis em consequência do uso de contraceptivos com
alta carga hormonal. No caso do Brasil, a lógica de adesão à modernidade indica a entrada das
mulheres brasileiras no que Scavone denomina de ciclo das tecnologias reprodutivas:
contracepção medicalizada, parto cirúrgico, esterilização e reprodução assistida. Não
querendo filhos (as), as mulheres – e seus companheiros - recorrem às tecnologias
contraceptivas, ao tê-los, recorrem ao parto cirúrgico; ao querê-los, recorrem às tecnologias
conceptivas.444
Assim, estamos no século XXI diante de novos modelos de organização familiar – de
um lado a negação da maternidade por meio da esterilização e do aborto e de outro à sua
afirmação, como pode ser atestado pelo caso de mulheres que procuraram um serviço de
reprodução assistida em uma cidade da região norte fluminense do país em busca do filho
biológico.
A FACE OCULTA DA INFERTILIDADE
Este trabalho faz parte de uma pesquisa de Doutorado no Programa de Pós Graduação
em Sociologia Politica da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Foram
realizadas entrevistas semiestruturadas com casais inférteis que procuraram um serviço de
Reprodução Assistida em Campos dos Goytacazes, RJ, e submeteram-se às técnicas de
fertilização via Sistema Único de Saúde (SUS), em 2015. Para este estudo foram
selecionados, em um universo de 12 casais com variadas causas de infertilidade, aqueles (em
número de três), que tinham exclusivamente como causa de infertilidade a laqueadura tubária
(fator obstrutivo feminino). Foram pesquisadas as seguintes variáveis: idade, raça/etnia, grau

444
SCAVONE, Lucila. Dar a vida e cuidar da vida: Feminismo e Ciências Sociais. São Paulo: UNESP, 2004. P.
65, 84-85.
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de instrução, profissão/ocupação, situação conjugal, número de filhos das mulheres e de seus


parceiros, idade em que realizou a laqueadura, tempo decorrido da realização do
procedimento, número de tentativas de fertilização in vitro e resultados da fertilização in vitro.
Os dados mencionados foram coletados dentro de uma pesquisa mais ampla envolvendo as
tecnologias reprodutivas conceptivas e construções de maternidade e família, e as entrevistas
foram realizadas no período de março a agosto de 2015.
Marília, branca, 35 anos, casada com Marcelo, branco, 43 anos, há dois anos. Marília,
que possui a 4ª série do Ensino Fundamental, é vendedora autônoma e está em seu segundo
relacionamento conjugal, pois enviuvou há cerca de quatro anos, sendo que possui um filho
de 17 anos do relacionamento anterior. O outro filho faleceu aos nove meses de idade por
problemas de saude. Conheceu Marcelo, repositor de estoque de supermercado, que também
está no seu segundo relacionamento conjugal, porém não possui filhos. Marília foi submetida
à laqueadura tubária aos 20 anos de idade, por decisão própria, uma vez que não tinha um
bom relacionamento marital e desejava limitar sua fecundidade. Esta é a primeira tentativa do
casal de realização da fertilização in vitro (FIV) e aguardaram 14 meses para a realização do
procedimento. Sobre a decisão de procurar a reprodução assistida, ela fala:
A gente não tinha pensado em ter filhos, nós casamos sem pensar em ter filhos
porque ele sabia que eu era operada. Mas aí eu fiquei sabendo por uma
ginecologista minha que tinha o tratamento aqui na clínica e eu vim. Agora que
casei de novo e esse meu marido não tem filhos, juntou a vontade dele com a minha.
O médico falou que eu tenho várias chances porque eu já fui mãe. Então foi só o
motivo por eu ter operado. Me precipitei e operei no 2º filho.

Rosiméri, 33 anos, branca, possuidora de ensino fundamental completo, operadora de


caixa, no momento desempregada, é casada com Getúlio, 34 anos, branco, técnico em
produção, há quatro anos. Este é o segundo casamento de ambos e possuem filhos das uniões
anteriores. Rosiméri tem dois filhos, de 13 e 16 anos, que residem com o casal e Getúlio tem
uma filha de sete anos que reside com a mãe. Rosiméri fez laqueadura aos 21 anos de idade e
esta é a segunda vez que tentam a fertilização in vitro (FIV), sendo que a primeira tentativa
foi realizada em 2013. A decisão de procurar a reprodução assistida partiu de Rosiméri e
Getúlio assentiu.
Eu fui fazer um preventivo e aí eu conversei com a médica pra ver se tinha alguma
coisa pra ajudar eu a engravidar e aí a médica indicou aqui a clínica. Mesmo nós
dois já tendo filhos, a gente queria ter um filho nosso, porque eu sou operada e por
1358
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ter casado novamente.

Joana e Alonso, ambos brancos, de 38 e 28 anos, respectivamente; ela, com ensino


fundamental completo, e ele, com ensino médio completo, comerciante, convivem em união
estável há três anos. Este é o terceiro relacionamento conjugal de Joana, dona de casa, que
possui dois filhos, de 17 e 20 anos, do primeiro relacionamento e fez laqueadura tubária aos
21 anos de idade. Alonso não tem filhos e esta é a sua primeira relação conjugal. Estão há um
ano aguardando para a realização da FIV e é a primeira vez que recorrem à técnica. Sobre as
razões que os levaram a buscar a reprodução assistida (RA), Joana aduz:
Porque eu fui mãe muito nova, com 18 anos, e eu não tinha experiência nenhuma.
Engravidei sem planejar e fui conviver. Eu gostava dele e pensei que ia ser pra vida
toda (o casamento), por isso depois de dois filhos eu operei. Agora, nesse
casamento, nós dois queremos um filho nosso porque ele não tem nenhum.

Observamos, nos casos elencados, que todas as mulheres haviam sido laqueadas muito
jovens, com cerca de 20-25 anos, no período de maior fertilidade da vida reprodutiva e a
busca pela reversão do procedimento ou mesmo, para a fertilização in vitro ocorreu na fase do
declínio do potencial reprodutivo. Vários estudos evidenciam que a idade é a variável mais
correlacionada com a prevalência da laqueadura tubária e o consequente arrependimento, pois
quanto menor a idade em que a mulher se submete à laqueadura, maiores são as
possibilidades de arrependimento445.
Também chama a atenção a questão da conjugalidade, pois todas as mulheres desse
estudo afirmaram que a principal motivação para a procura da reprodução assistida foi um
novo relacionamento, e o desejo de terem filhos dos dois (seu e do atual cônjuge). Todas as
mulheres possuem a sua prole, de dois filhos, enquanto o seu atual companheiro não possui
filhos (exceto Getúlio). Isso nos faz levantar a questão da motivação da maternidade estar
encoberta por um desejo da mulher de agradar ao seu companheiro, remetendo-nos aos
tradicionais valores de gênero presentes na nossa sociedade, em que a construção de uma
família legitimaria o relacionamento conjugal, cabendo à mulher a função de dar filhos ao
companheiro.
A maior parte dos casais está há cerca de um ano aguardando os procedimentos de
445
CUNHA, Antônio Carlos Rodrigues da; WANDERLEY, Miriam da Silva; GARRAFA, Volney. Fatores
associados ao futuro reprodutivo de mulheres desejosas de gestação após ligadura tubária. Rev. Bras. de
Ginecologia e Obstetrícia, Rio de Janeiro, v.29, nº5, jan./mai. 2007, p.230-234.
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fertilização in vitro e apenas um casal se submete ao procedimento pela segunda vez.


Ressalte-se que os casais sem recursos pecuniários para arcar com as despesas do tratamento
enfrentam longas filas de espera nos poucos serviços públicos que oferecem as técnicas de
reprodução assistida no Brasil, o que contribui ainda mais para incertezas quanto ao sucesso
das técnicas reprodutivas conceptivas, devido ao declínio da fertilidade correlacionado com a
idade da mulher.
A prática da esterilização feminina como método anticoncepcional de controle
definitivo da fecundidade, já consagrada em nosso país, coloca em questão o debate sobre os
direitos reprodutivos. A discussão se pauta entre dois pólos opostos: de um lado, a
reivindicação feminina pelo direito à utilização dos métodos contraceptivos e conceptivos
disponíveis e de outro, a legalização do direito à interrupção voluntária da gestação. O
Movimento Feminista, historicamente, lançou as bases e as ideias que vão construir o
conceito de direitos reprodutivos. Esses direitos, sob a ótica feminista, dizem respeito à
igualdade e à liberdade na vida reprodutiva: o direito a não maternidade e a maternidade, bem
como a liberdade de escolha das mulheres no que tange ao seu próprio corpo, que se traduzem
pela difusão da contracepção, pelo acesso às tecnologias reprodutivas conceptivas, pelo
acesso ao pré-natal e ao parto em condições adequadas, bem como pela prevenção das
neoplasias de colo de útero e de mama. Para tal mister, além de reivindicarem do Estado
ações efetivas sobre a saúde reprodutiva, a prática feminista atual luta para trazer à arena
política esses temas ligados à saúde feminina. Neste diapasão, desde 1989, o planejamento
familiar tornou-se parte integrante do direito à saúde, com ações voltadas à regulação da
fertilidade (contracepção e concepção) de forma igualitária para o homem, a mulher e o casal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não obstante a Política sobre o Planejamento Familiar no país constata-se na prática
alguns entraves à acessibilidade e às informações acerca dos métodos contraceptivos e
conceptivos, impactando na escolha das mulheres e casais quanto ao aspecto reprodutivo.
Além disso, é importante ressaltar que a laqueadura tubária é um método de contraconcepção
definitivo, uma vez que o sucesso da cirurgia de reversão da laqueadura é variável e quando
as trompas reconstituídas cirurgicamente não recuperam a sua função, a alternativa para se
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obter uma gestação é a reprodução assistida (fertilização in vitro), como vimos nos casos
trazidos por este trabalho. Entretanto, o alto custo desse procedimento acaba por torná-lo
inviável e limita essa opção de “tratamento” para a maioria das mulheres em nosso meio e
traz à tona novamente a discussão sobre os direitos reprodutivos. Embora a técnica de
fertilização in vitro tenha sido inicialmente indicada para os casos de infertilidade por fatores
obstrutivos femininos, vê-se, na prática, o baixo êxito obtido por essas técnicas no sentido de
obtenção de um recém-nascido nestas situações. Nos casos elencados, nenhum deles foi
coroado de êxito no sentido de uma gestação e seu produto.
As questões reprodutivas, apesar do aumento das ofertas contraceptivas e conceptivas,
e a sexualidade são permeadas pelas relações de gênero marcadas pela desigualdade, uma vez
que a reprodução permanece como “coisa de mulher” no tocante a responsabilização feminina
por esta esfera. É primordial a ação dos profissionais de saúde no sentido de orientar as
mulheres, homens e casais sobre o caráter irreversível da laqueadura tubária ao ser utilizada
como método contraceptivo. Acreditamos, indubitavelmente, que a ampliação do debate sobre
as tecnologias reprodutivas contraceptivas e conceptivas – sua utilização consciente e suas
implicações – podem contribuir efetivamente para a construção de um novo marco na vida e
na cidadania femininas.

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A LUTA FEMINISTA PELA PRESENÇA DE MULHERES AMAZONENSES NO


PARLAMENTO446
Michelle Rabelo de Souza | luzvida_1977@hotmail.com
Mirella Cristina Xavier Gomes da Silva Lauschner
Mara Tereza Oliveira de Assis

INTRODUÇÃO
Para que possamos compreender a relevância da participação política feminina no
amazonas se faz necessário realizarmos um resgate histórico sobre o surgimento do
movimento feminista e sua contribuição na luta pela inserção de mulheres no parlamento
brasileiro. Essa luta que se inicia no âmbito desses movimentos ao longo das décadas passou a
ser uma das principais bandeiras de luta das feministas do nosso Estado. É através do
histórico de luta desses movimentos que propomos através do presente estudo uma reflexão
acerca da participação feminina na política partidária. Nele, buscaremos abordar as principais
bandeiras de lutas do movimento, suas conquistas e obstáculos até então enfrentados por nós
mulheres que lutamos arduamente pela igualdade de gênero junto ao parlamento brasileiro.
Pois entendemos que só se teremos um país justo se houver representatividade igualitária
entre homem e mulher nas instâncias de poder político.

O SURGIMENTO DO MOVIMENTO FEMINISTA EM MANAUS


Final da década de 1970 surgiu nas dependências da Universidade Federal do Amazonas
o Comitê da Mulher Universitária, sendo este a primeira entidade feminista criada no estado
no período de Ditadura Militar. Seu objetivo era discutir a questão das creches na
Universidade, principalmente no Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) e Faculdade

446
O trabalho faz parte da dissertação de mestrado da referida autora, tendo como orientadora a Profa. Dra.
Iraildes Caldas Torres, Doutora em Ciências Sociais/ Antropologia Social- Professora associada na Universidade
Federal do Amazonas.
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de Educação (FACED) por ter a maior parte de mulheres casadas e com filhos. Um problema
antigo que até então não se tem visto solução em nosso município e aí é aquele velho
problema: “Onde deixar os nossos filhos?” Então o comitê surgiu através dessa inquietação
sofrida pela maioria das mulheres estudantes da época. Infelizmente suas atividades não
ganharam forças já que a maioria das participantes não tinha um conhecimento sobre o tema.
Sobre a luta por creches na Universidade Selda Vale docente e uma das participantes do
Comitê da Mulher Universitária nos relatou que “ As pessoas perceberam que não tinham
conhecimento pelo assunto. Manaus naquela época era uma cidade isolada e nós tinhamos
uma falta de informação muito grande. Viu-se que era necessário primeiro nos informarmos”
. Conforme relatos da docente esses e outros temas discutidos pelo movimento ficaram apenas
em termos de reflexão.
O Comitê era formado por docentes e estudantes principalmente dos cursos de humanas
e teve como membros as professoras Dra. Jucelem Ramos, Marlene Pardo, Selda Vale e a ex
vereadora Lúcia Antony. O comitê participou pouco de atividades externas a Universidade,
mas em 1980, através de um encontro realizado com as mulheres operárias do distrito
industrial de Manaus, que suas atividades ganharam grandes proporções. Nessa época, não só
a cidade de Manaus, mas todos os estados brasileiros, principalmente os que possuíam polos
industriais, passaram por mobilizações vindas de diferentes movimentos inclusive dos
feministas que se uniram contra o projeto de esterilização de mulheres através de vacinas
contraceptivas447.
O comitê da mulher universitária se posicionou contra ao projeto que se utilizava de
mulheres amazonenses como cobaias, principalmente as operárias do distrito industrial já que
eram as mais vulneráveis ao sistema de exploração capitalista instalado no estado. Em 1981
no II Encontro da Mulher Trabalhadora o evento também contou com a participação das
trabalhadoras domésticas. Esse encontro foi organizado pelo Comitê, pela Pastoral Operária e
por outras associações de Manaus. Logo mais tarde o grupo se desestruturou, finalizando
assim, suas atividades.

447
Elaborado em 1974 por Henry Kissinger o “memorando 200” tinha como objetivo a esterilização de
mulheres em idade fértil como medidas de redução significativa da população excessiva no mundo. No
Amazonas essa campanha contava com o financiamento de empresas Norte Americanas. O objetivo era evitar
que as mulheres operárias em idade fértil engravidassem.
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Conforme relato da profa. Selda Vale o grupo se desestruturou por ser um grupo
formado por pessoas ainda muito conservadoras e preconceituosas. Manaus naquela época
ainda era uma cidade “ultra moralista”, tendo as discussões entorno da mulher como tema
proibido.
Em 1982 Lúcia Antony que também participou do Comitê da Mulher Universitária
fundou a União de Mulheres de Manaus que foi uma entidade criada para organizar as
mulheres em seus locais de moradia. Nessa época o país vivenciava o fim de uma ditadura
militar e os bairros principalmente os localizados na periferia da cidade de Manaus não
possuíam associações de moradores. Conforme relatos de Lúcia Antony a UMM fomentou
uma luta de forma geral entre as mulheres em seus locais de moradia, pois as décadas de
1970/80 a cidade ficou marcada pelos constantes problemas com as invasões.448
Linhares (1990) nos diz que o movimento feminista na década de 1980 se diversificou,
passou a atuar em diferentes espaços como grupo de reflexão, grupos e núcleos de estudos
dentro e fora das Universidades, nos departamentos femininos, em sindicatos, partidos
políticos, grupos de autoajuda contra à violência nas organizações não-governamentais e nos
movimentos de mulheres nos bairros.
O trabalho realizado com as mulheres em seus locais de moradia também serviu para
emponderá-las politicamente, pois algumas a partir de então, começaram a refletir a
importância de se ter uma representante nos espaços de poder político. A força do movimento
feminista foi crescendo e a luta pela presença de mulheres em cargos de representatividade
política foi se tornando uma necessidade. A partir de então, os candidatos passam a “criar
departamentos femininos dentro das estruturas partidárias”. A eleição de partidos políticos de
esquerda em algumas cidades fez com que as feministas repensassem na sua posição ante o
Estado já que naquele momento via-se a possibilidade do avanço das políticas feministas.
(COSTA,2009).
A UMM atuou até 1985 com uma comissão provisória, sendo oficializada a partir de
então. Em 1995 a União de Mulheres de Manaus se transformou em União Brasileira de

448
As invasões hoje conhecida como ocupações de terra , eram constantes na cidade de Manaus. Famílias do
interior do estado do Amazonas e de algumas cidades do nordeste vinham em busca de melhores condições de
vida tão divulgada pela mídia como forma de favorecer o capital com a chegada da indústria no Amazonas.
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Mulheres (UBM). 449


Vanja Santos vice-presidente da UBM em Manaus nos relata que desde
seu surgimento a instituição vem trabalhando no desenvolvimento de projetos sobre a
igualdade de gênero, na luta pelos direitos das mulheres, estar presente no Conselho Nacional
de Mulheres e no Conselho Nacional de Saúde.
De acordo com Lobo (1987) os conselhos vêm se tornar em um novo mecanismo de
interlocução na relação com os movimentos. Porém, esse avanço não foi um processo muito
fácil, pois a ideia da atuação do feminismo a nível institucional provocou polêmicas,
ocasionando posições polarizadas entre as feministas. O que para muitas atuar no âmbito do
estado significava avanços, para outras seria o enfraquecimento dos espaços feministas.
Foi a partir da luta do movimento feminista que a mulher começa a se perceber como
sujeito de sua história, passa a reivindicar direitos que até então lhes eram negados, buscam
participar mais das decisões políticas e paulatinamente começam a conquistar o seu espaço
nas mais diversas áreas de atuação profissional como é o caso da própria política partidária.
A década de 1980 também foi marcada por grandes lutas feministas, pois foi nessa
época que as mulheres operárias começaram a reivindicar direitos junto as fábricas do distrito
industrial de Manaus. Apesar de algumas conquistas, muitas mulheres se tornaram vítimas da
política sexista existente no Polo Industrial. Para Torres (2005) “A fábrica, por tanto não é
considerada como um espaço onde as operárias possam vivenciar uma condição de
emancipação, como sugeriu o pensamento dominante nos primórdios da industrialização”.
Na história do movimento feminista Amazonense a luta pela ocupação dos espaços de
poder políticos por mulheres só ocorre a partir de meados da década de 1980 com o término
da Ditadura Militar e com as eleições para a criação da nova Constituição Federal que contou
com a participação direta da sociedade civil do Brasil inteiro. Esse momento foi o mais
importante para a construção de um novo país que por mais de duas décadas viveu sob uma
terrível ditadura militar.

PROTAGONISMO POLÍTICO E A PRESENÇA DE MULHERES AMAZONENSES

449
A União Brasileira de Mulheres foi criada em 1988 na Bahia após um congresso organizado por mulheres de
todo o País. É uma entidade sem fins lucrativos, apartidária e luta pelos direitos da mulher e estar presente em
21 estados brasileiros.
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NO PARLAMENTO

Nas sociedades contemporâneas há diferentes formas de participação, para alguns a


participação está reduzida apenas ao processo político-eleitoral, mas quando falamos de
protagonismo político das mulheres, essa definição se torna bem mais abrangente.
Norberto Bobbio aponta que:

Na terminologia da ciência política, a expressão participação política é geralmente


usada para designar uma variada série de atividades: o ato do voto, a militância num
partido político, a participação em manifestações, a contribuição para uma certa
agremiação política, a discussão de acontecimentos políticos, a participação num
comício ou numa reunião de seção, o apoio a um determinado candidato no decorrer
da campanha eleitoral, a pressão exercida sobre um regime político, a difusão de
informações políticas e por aí além.

A participação pode ser na condição de um simples espectador até a de protagonista. De


acordo com Bobbio (2004) existem, pelo menos, três níveis de participação política: 1)
presença: é a forma menos intensa e mais marginal de participação política. Nesse tipo de
participação o indivíduo se comporta de maneira receptiva, ou passiva. 2) ativação: o sujeito
desenvolve, dentro ou fora de uma organização política uma série de atividades que lhes
foram confiadas por delegação permanente, de que ele é incumbido de vez em quando, ou ele
mesmo pode promover.3) participação: quando o indivíduo contribui diretamente para a
decisão política.
No Amazonas, algumas mulheres se tornaram ícones da história política do estado.
Desde a década de 1970 com a chegada da primeira mulher ao senado brasileiro, que o
Amazonas vem sendo palco de debates e lutas por mais participação feminina na política. No
final dos anos 70 e já com o enfraquecimento da ditadura miliar, o Brasil passou a conhecer
sua primeira senadora: Eunice Michiles.
Após a morte do senador João Bosco Ramos de Lima, chega ao Senado Federal Eunice
Michiles a primeira mulher a se tornar senadora do Brasil. Esposa de político, a professora
Eunice Michiles desenvolvia no município de Maués atividades assistencialistas como forma
de ajudar a eleger o seu esposo. Foi deputada estadual, secretária de assistência social do
município de Manaus até 1979 quando teve que assumir a vaga como suplente de João Bosco

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no senado brasileiro. Eunice entrou para a política por intermédio de seu esposo Darci
Michiles que também vinha de uma família de políticos da região de Maués. Eunice também
se tornou uma das deputadas constituintes a representar o Amazonas na elaboração da nova
Carta magna que entraria em vigor em 1988.
Para Avelar (1987) O ingresso da mulher na política via familiar apesar de se
apresentar como um fato novo, ainda é muito comum por se tornar um meio mais viável as
mulheres que tem sua aceitação dentro do partido e por herdar as bases eleitorais da família.
Nas eleições de 1986 muitas mulheres elegeram-se em função do prestígio de seus
maridos ou pais (TABAK,1989). Muitas inclusive sem nenhuma experiência política, outras
através de prestígio conquistado pelo trabalho social desenvolvido em suas cidades quando
seus respectivos maridos eram gestores, outras através de sua experiência junto aos
movimentos sociais e aquelas que já tinham experiência parlamentar. Mas essa pluralidade
entre as parlamentares não apagou o brilho e a significância das 26 mulheres eleitas.
Nas eleições para a Assembleia Constituinte o Amazonas também esteve bem
representado já que três mulheres foram eleitas. Foram elas: Beth Azize, Eunice Michiles e
Sadier HAuache.
Beth Azize uma das figuras emblemática da política amazonense foi Juíza de Direito
por quase 10 anos no interior do Estado do Amazonas. Como Jornalista e militante chegou a
ter uma coluna diária em um dos jornais de maior circulação da cidade de Manaus. Com o
tempo sua militância foi lhe dando popularidade e então resolveu ingressar na vida pública.
Em plena Ditadura Militar sua militância inicia-se na Faculdade de Direito, tornando-se a
primeira mulher presidente do diretório acadêmico.
Em 1976 Beth Azize candidata-se a vereadora pelo MDB e em 1978 inicia sua
campanha para se eleger a deputada estadual do qual foi eleita. Cumpriu seu mandato por 08
anos de 1979 a 1987, pelo já então Partido Movimento Democrático Brasileiro o PMDB, mas
por divergências políticas internas ao partido, Beth Azize já em 1986 filia-se ao Movimento
Democrático Brasileiro (PDB). Em 1983 foi eleita Presidente da Assembleia Legislativa se
tornando a primeira mulher a presidir uma Assembleia Legislativa no Brasil. Foi também a
primeira mulher a assumir o Governo do Estado do Amazonas como presidente da
Assembleia quando o Governador se ausentava.
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Em sua passagem pelo Parlamento brasileiro Beth Azize participou de várias comissões.
Porém, por ter sido uma Juíza de Direito, sempre teve prioridade pra ser da comissão de
Constituição e Justiça. Também participou da subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e
Servidores Públicos, da Comissão da Ordem Social e Comissão de Sistematização.
Após sua participação na ANC Beth Azize foi reeleita a deputada federal pelo PDT no
ano de 1991 à 1995. Sua atuação junto a ANC teve o reconhecimento da população
amazonense que lhe confiou mais um mandato parlamentar.
A segunda deputada constituinte representante do Estado do Amazonas e participante
desse estudo foi a ex–senadora Eunice Michiles (PFL) , pertencente a base de apoio ao
governo. Eunice Michiles ficou conhecida nacionalmente em 1979 quando assumiu uma vaga
no Senado Brasileiro após a morte do Senador João Bosco Ramos de Lima, já mencionado
anteriormente. No Senado participou de várias comissões, seminários, conferências e
congressos, foi Presidente do Movimento da Mulher Democrática Social – MMDS e Líder do
Movimento das Mulheres Pró-Paulo Maluf. Como Senadora recebeu várias condecorações e
homenagens. Eunice foi Senadora até 1987 quando resolveu se candidatar a Deputada
Federal.
Enquanto Deputada Constituinte uma de suas bandeiras de luta foi em defesa do
planejamento familiar, exigindo do governo que disponibilizasse os mecanismos necessários
as mulheres para que as mesmas pudessem ter o direito de escolha sobre ser ou não mãe.
Também participou de comissões e subcomissões da família, do menor, do idoso, comissão de
saúde, previdência e assistência social. Eunice pertencia a bancada de apoio ao governo e da
bancada evangélica. Também participou da comissão de Defesa do Consumidor e do Meio
Ambiente (COLETÂNIA MULHERES CONSTITUINTES, 2011).
A terceira mulher a se eleger deputada constituinte pelo Amazonas foi a Jornalista e
empresária Sadier Hauache que entrou para a política em 1982 e apesar da grande votação não
conseguiu a tão sonhada cadeira no Senado. Durante a sua campanha, sofreu acusações de
estar se elegendo às custas do poder do dinheiro. Em entrevista à um Jornal local Sadier
Hauache revida as acusações e afirma : “não gastei muito, apenas o necessário pra se fazer
uma boa campanha” (A Crítica em 19/11/1986 ,p.06).
Sadier Hauache enquanto parlamentar fez parte da Subcomissão de Defesa do Estado,
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da Sociedade e de sua Segurança, Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia


das Instituições, Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, Comissão da
Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação.
Para Fany Tabak (1989) muitas mulheres elegeram-se em função do prestígio de seus
maridos ou pais. As candidaturas para o pleito de 1986 em todo o Brasil foram candidaturas
que exigiram muitos investimentos por parte dos candidatos. No Amazonas a maioria desses
candidatos passou boa parte de suas campanhas em busca de votos pelos interiores e pequenos
municípios. Nessa época não existiam leis que coibissem ou punissem candidatos que
“presenteassem” seus eleitores em troca de votos. Ou seja, aqueles que possuíam maior poder
aquisitivo foram os que encontraram maiores possibilidades de serem eleitos. Vale ressaltar
que essa prática muito conhecida como “compra de votos” ainda é um dos mecanismos muito
usados pelos políticos principalmente pelos interiores e pequenos municípios dos estados
brasileiros.
Essas parlamentares ao longo das décadas se tornaram ícones da política manauara, até
hoje seus nomes são lembrados por aquelas que entraram para a política partidária
posteriormente. Apesar de todas as divergências, essas parlamentares foram o grande exemplo
para muitas outras mulheres que desafiaram todo o conservadorismo que envolve a política no
nosso estado para se inserir nesse espaço de poder notoriamente masculino.
Atualmente nós temos mulheres nos representando tanto na Câmara Municipal, na
Assembleia legislativa, Câmara dos Deputados e Senado Federal, mas em comparação aos
homens nós estamos em completa dissonância. Na Câmara Federal, por exemplo, contamos
apenas com a Deputada Conceição Sampaio. No Senado, atualmente o Amazonas vem sendo
representado por Vanessa Grazziotin e Sandra Braga esposa do ex-governador do estado. Esta
última, pouco se tem ouvido falar de sua atuação política, chegou ao senado como suplente de
seu esposo que se afastou para concorrer às eleições novamente para governador do estado do
Amazonas, mas não conseguiu se eleger.
A participação política da mulher é fundamental para que possamos entender que a
sociedade é construída por dois gêneros que são homens e mulheres como seres
complementares. Nunca o homem será mulher e a mulher será homem, mas que a luta deve
ser por igualdade de direitos e para que possamos alcançar tal igualdade precisamos fazer
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valer nossos direitos dentro da casa parlamentar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A busca pela emancipação e do empoderamento feminino através do direito de votar e
ser votada veio transformar radicalmente a realidade vivida pelas mulheres brasileiras que
durante muito tempo ficaram excluídas dos centros de decisão. Algumas desbravadoras
através de seu protagonismo foram capazes de mostrar que o lugar da mulher não mais se
resumia entre os afazeres domésticos, ser boa esposa e boa mãe, mas também está presente
nas diferentes instâncias de poder político.
Atualmente a mulher vem obtendo um maior reconhecimento em alguns campos de
atuação profissional, seu acesso a educação, por exemplo, aumentou consideravelmente,
entretanto pouco vem se avançando quanto a participação política das mulheres no
parlamento. Essa batalha ainda com o avanço das leis de ações afirmativas que favorecem a
mulher e sua participação política, ainda está longe do fim. Mas a luta do movimento
feminista brasileiro por maior participação de mulheres nas instâncias de poder político vem
fortalecendo as poucas mulheres que dividem espaços ainda que em desvantagem com os
homens.
Em Manaus, os movimentos de mulheres vêm buscando combater a prática da
discriminação contra a participação feminina no parlamento brasileiro, mas infelizmente a
realidade nos mostra que o percentual de mulheres nessas instâncias de poder político ainda é
bem baixo. O movimento feminista no Amazonas ao longo dessas ultimas três décadas vem
contribuindo com discussões entorno do aumento da participação feminina no parlamento,
mas infelizmente não tem conseguido eleger de forma satisfatória um número de mulheres
que possam representar e lutar pelas causas feministas no Amazonas. Algumas mulheres que
fazem parte do movimento até já se candidataram, mas as barreiras encontradas nos partidos
políticos demonstram que ainda é latente a aceitação de mulheres apenas para preenchimento
de vagas e que não há interesse por parte dos partidos em investir nas campanhas das
mulheres com pequenas exceções as que entram por intermédio de seus maridos e familiares.

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É com base nessa assimetria de gênero na política que entendemos o quanto é relevante
a luta feminista pelo aumento da participação feminina no parlamento. No Amazonas, apesar
dos avanços, ainda presenciamos um número de mulheres bem inferior em comparação aos
homens nessas instâncias de poder. Para o feminismo só é possível vislumbrar uma igualdade
social quando a mulher obtiver os mesmos direitos que os homens, inclusive nos cargos de
representação de poder.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Eleonora Menicucci de Oliveira ( Org.). Mulheres da domesticidade à cidadania. Brasil:
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
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Norberto Bobbio, organizado por Michelangelo Bovero, tradução Daniela Beccaccia Versiani.
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TABAK, Fanny. A nova ordem legal- mulheres na Constituição. Rio de Janeiro – Pontífica
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A MULHER CEARENSE: SEU PAPEL NA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Maria Aniele da Silva450 | anielepc@gmail.com

INTRODUÇÃO

Este artigo nos possibilitará uma reflexão sobre a atuação política das mulheres,
sobretudo as cearenses em contextos partidários, analisando quais os motivos que faz com que
a mulher não tenha a mesma igualdade que os homens. Será mostrado um retrato da presença
das mulheres na câmara dos Deputados Estaduais, Federais e Senado do Estado do Ceará,
bem como uma visão geral do Brasil.
A Submissão das mulheres em relação aos homens tem vestígios históricos, culturais e
sociais, desde as civilizações mais antigas. Iremos fazer um breve relato sobre esse aspecto,
mostrando qual a posição que as mulheres ocupavam em diferentes épocas e tradições
diversas, com foco principal na política.
A conquista ao voto é o marco de uma grande conquista para o movimento feminista
que a partir de então se consolida. No entanto, como aprofundaremos adiante foi através de
muita luta que isso ocorreu. Além de que isso não garantiu as mulheres que as mesmas
ocupassem cargos políticos, pois existem outros fatores que precisam ainda serem superados.
Ainda iremos discorrer sobre as dificuldades e empecilhos que faz com que haja uma
participação tão reduzida no que tange a diferenciação entre homens e mulheres em espaços
de tomadas de decisão, principalmente na política. Mostrando algumas medidas que o
governo poderia adotar para que esse cenário mudasse.
Analisaremos a política de cotas a partir de sua implantação e os motivos que faz com
que a mesma se torne tão ineficaz no Brasil, sendo que em outros países ela é aplicada de
forma razoável, mesmo que não tenha mudado de imediato a situação já fez uma notável
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Graduanda do 6º período do curso de Letras – Português da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do
Sertão Central - FECLESC. Email: anielepc@gmail.com
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diferença.
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES
Para uma maior compreensão da participação das mulheres na política, iremos fazer
uma breve contextualização histórica de como a diferença de gênero deste de tempos mais
remotos procura determinar um papel para a mulher, em que esta sempre deve ser submissa,
inferior e responsável pelos trabalhos domésticos, devendo servir, cuidar e zelar do marido,
dos filhos e da casa, não cabendo a mulher o “fora de casa”.
A bíblia é a primeira a conter traços de machismo. Na Grécia a mulher ocupa a mesma
posição dos escravos, esta situação não é diferente na cidade Romana em que ela era excluída
de diversos direitos, havia uma intensa dominação do sexo masculino em relação ao feminino.
A idade Média é marcada por uma leve mudança, pois as mulheres começaram a ter alguns
direitos, na política podiam participar das assembléias com direito a voto, mas é válido
ressaltar algo importante, apenas as mulheres burguesas tinham acesso a esses direitos. No
período renascentista, houve retrocesso na posição da mulher, no feudalismo foi um pouco
maior seu espaço de atuação política, diferente de quando se cria os Estados Novos em que a
mulher é totalmente afastada das decisões públicas.
As revoluções não trouxeram a igualdade feminina, apesar das mulheres terem
participado de forma ativa ao lado do homem, neste processo em que se “busca igualdade,
liberdade e fraternidade”, tema da revolução francesa. Porém ao conquistar os direitos o
homem torna a mulher novamente sua submissa. Diante desse contexto de opressão contra o
sexo feminino, surgem diversas mobilização e lutas organizadas, através do movimento
feminista que busca a conquista de igualdade entre homens e mulheres.
O movimento de feministas atuou em diversificadas áreas, como direitos trabalhistas,
exclusão da participação em decisões públicas, direito ao voto, etc. Segundo Alves e
Pintanguy:
Através de uma luta constante por seus direitos, as mulheres trabalhadoras
romperam o silêncio e projetaram suas reivindicações na esfera pública. O avanço
das lutas operárias congrega homens e mulheres nas organizações sindicais. Com
eles as mulheres participaram das greves e, como eles, foram vítimas da repressão.
(2007. p.41)

O século XIX foi marcado por duas grandes lutas: por melhores condições de trabalho

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e direito ao voto. Iremos nos aprofundar a segunda luta, o direito a cidadania. Esse
movimento foi chamado de Sufrágio Universal, que buscava a garantia de que todos
pudessem votar e ser votado, no entanto, todos faz referência apenas aos homens já que não
incluía a participação do voto paras as mulheres.
A luta sufragista feminina, pode ser considera o primeiro grande marco da onda do
movimento feminista, as mulheres buscam através de uma mobilização mundial alcançar um
direito já dado aos homens, mas que foi negado a mulher, por ainda predominar uma visão
com diversos comentários machistas e patriarcais, em que visa a exclusão e subordinação,
impedindo que as mesmas ocupem lugares denominados como sendo pertencentes ao sexo
masculinos. Como a política, cargos de destaque, em que se tomam importantes decisões e
poder, entre outros.
O Brasil foi o quinquagéssimo país a conceder o direito de votos às mulheres, mesmo
com que diversas restrições, pois apenas mulheres casadas com autorização podiam votar ou
mulheres viúvas com renda própria. Em 1934, a Assembleia Nacional das constituintes
reafirma o direito ao voto feminino, sendo garantido o direito ao voto para todas as mulheres,
mais vale outra ressalva todas que tivesse algum tipo de função remunerada em cargos
públicos. Finalmente em 1946, foi instaurada a obrigatoriedade plena do voto feminino.
Porém, mesmo com a consolidação do direito ao voto a igualdade na política é ainda
muito desigual quando se compara homens e mulheres. A conquista de votar e ser votado,
ainda não garantiu a sua concretização de fato, tendo em vista a ausência das mulheres no
poder tanto legislativo quanto executivo. A citação a seguir caracteriza bem isso:
Embora a luta pela igualdade de direitos, fosse materializadas no ato de votar e ser
votada, não criou práticas de participação com direito à representação política,
no mesmo nível da participação masculina. As razões para explicar essa
desigualdade são encontradas nos argumentos que denunciam a domesticidade
feminina e a presença massiva das mulheres nas tarefas domésticas, nos espaços
privados do lar (ÁLVARES, p.4)

A escassa participação feminina nos espaços públicos, principalmente no que diz


respeito à política mostra o quanto ainda é preciso a luta feminista em diversos contextos. É
necessário muito empenho para que as demandas possam garantir o pleno empoderamento das
mulheres e sua atuação nos mais variados ambientes venham a ser concretizadas plenamente.
E precisa ser de forma intensa naqueles em que se tomam importantes decisões em relação ao
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papel da mulher na sociedade como as várias formas em que ela direta ou indiretamente esteja
envolvida.
Apesar dos grandes avanços e das inúmeras conquistas feministas ao longo da história
da sociedade precisamos ter a consciência de que o processo de autonomia ainda não se
concretizou por completo. Como bem cita Simone Beauvoir (1970): “A mulher sempre foi,
senão escrava do homem ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em
igualdade de condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado handical.” (p. 15)

A MULHER CEARENSE E SEU ESPAÇO NA POLÍTICA


No ano de 2012, foi comemorado 80 anos do voto feminino no Brasil, essa importante
conquista, deixa ainda a desejar, o espaço dos congressos, plenários, ainda são esvaziados, em
relação às mulheres. O feminismo continua a lutar por políticas que visem a igualdade das
mulheres para com os homens, no que diz respeito ao governo da sociedade. Apesar de o
Brasil ter na presidência uma mulher não significou uma mudança tão radical, pois
percebemos que a presença de forma geral é relativamente reduzida.
Essa redução das mulheres na política tem alguns motivos, o machismo grande vilão,
falta de políticas públicas concretas para que elas possam ter mais chance de ingressar na
carreira política. Além de os partidos políticos liderados na sua grande maioria das vezes por
homens também contribui para dificultar a candidatura de mulheres, para concorrer a eleições,
sem contar é claro com a dificuldade que as mesmas têm de serem eleitas.
Analisaremos antes de adentramos na participação política das mulheres cearenses, um
pouco da situação do Brasil no contexto geral, sabemos da dificuldade que a mulher tem em
romper com o preconceito e com a imagem que foi criada em relação ao seu papel na
sociedade, desta forma é perceptível isso quando percebemos que só depois de séculos,
finalmente pela primeira vez, já no século XXI, é que uma mulher consegue enfim conquistar
a Presidência da República foi anos de uma “democracia” que excluiu a mulher de governar o
país.
No ano de 2010, o povo elege a primeira Presidenta do país, a Ministra de Minas e
Energia e Chefe da Casa, Dilma Rousseff. É claro que houve um pouco da influência do ex-
presidente Lula, mas é notável a mudança ocorrida. No ano de 2014, Dilma é reeleita
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mostrando um avanço significativo, por dois anos eleitorais consecutivos uma mulher está à
frente de um governo. É importante ter essa representação de mulheres uma vez que “Chegam
à política com um corpo marcado de histórias. Nessa medida tendem a levar para a vida
pública olhares e vivências de gestão discriminada e desigualdade” (SOARES, 2013, p.345)
As mulheres compõem 52% da população e 51% do eleitorado, no entanto ainda é
pouca a presença feminina nas Assembleias Legislativas dos estados e na Câmara Federal. É
importante ressaltar é claro que houve algumas mudanças, mas mesmo assim a diferença
ainda é muito grande. Em pesquisa realizada em agosto de 2010, pela Fundação Perseu
Abramo e Sesc, foi mostrado o resultado de eleições recentes na Assembleia Legislativa e
Câmara Federal. Na primeira, no ano de 2002 a porcentagem de candidatas foi de 14,76 e de
eleitas foram 12,5; No ano de 2006, foi 14,09 para 11,06 e no ano de 2010 foram candidatas
21,28 e eleitas 12,9. Já na Câmara Federal, no ano de 2002 a porcentagem de candidatas foi
de 11,41 e de eleitas foram 8,2; no ano de 2006, foi 12,71 para 8,8 e no ano de 2010 foram
candidatas 21,17 e eleitas 8,8.
De acordo, com os dados da pesquisa acima inferimos que a candidatura de mulheres a
cargos políticos vem crescendo, mas ao mesmo tempo podemos constatar que as eleições não
aumentaram o numero de mulheres eleitas, pois se manteve quase o mesmo nos três anos
analisados. Em relação a presença feminina há também uma diferença entre a Assembleia
Legislativa e Câmara Federal, uma vez que na ultima tem menos representação que a
primeira.
Para termos uma visão mais geral de como é a distribuição política no Brasil, cito as
palavras de LOPES:
A atual bancada feminina na Câmara Federal representa apenas 8,77% do total da
Casa. São somente 45 deputadas. Já no Senado elas ocupam doze das 81 cadeiras.
Nesse ranking, o Brasil ocupa o 142º lugar, ficando atrás de países como
Afeganistão, Iraque, Timor Leste, Moçambique e Angola. (2013. P.397)

No Ceará, a tradição patriarcal na política também é predominante. O primeiro fato,


que podemos levar em consideração para melhor elucidar a grande ausência de mulheres
participantes da política cearense, é o fato de ao longo de toda a existência do estado nenhuma
mulher ter ocupado o cargo de governadora, e apenas no ano de 2014 é que foi eleita pela
primeira vez uma vice-governadora, a professora Maria Izolda Cela de Arruda Coelho
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(PROS), diante da ausência do atual governador Camilo Santana, que passou algumas
semanas fora, o Ceará foi então governado mesmo por uma mulher, mesmo que de maneira
breve e provisória.
A primeira mulher eleita para o cargo de Deputada Estadual foi a Tabeliã Maria Zélia
Mota, nos anos de 1975 a 1978, durante esse período algumas vezes ela esteve à frente da
mesa diretora da casa de legislação. No período do ano de 1975 a 2010, foram eleitas apenas
26 mulheres na Assembleia Legislativa. Um estudo mais detalhado compreenderá o ano de
1990 a 2014. A primeira Deputada eleita no ano de 1990, Maria Dias participava do conselho
Cearense de direito da mulher, foi deputada por dois mandatos consecutivos e ainda
desempenhou a função de vice-líder do governo. Do ano 2000-2010, foram eleitas um total de
19 deputadas, um numero bem maior em relação à década de 90.
Um fato que é importante destacar é que 13 dessas mulheres que foram eleitas no
período de 1990- 2014 têm algum membro da família, seja pai, irmão, marido, envolvido na
política, esse dado é preocupante no sentido de que por trás das eleições estejam envolvidos
outros interesses e que as mulheres sejam usadas mais uma vez para servir aos homens,
mantendo o poder patriarcal, mesmo que de forma indireta, fazendo com que os interesses
deles venham a reger o governo dessas mulheres.
A presença das mulheres na assembleia legislativa é relativamente baixo em todo o
país. No Ceará nas ultimas eleições de 46 Deputados Estaduais eleitos apenas 7 são mulheres.
No âmbito Federal e no Senado percebemos o quanto esse número é ainda mais
reduzido, em julho de 2010, segundo pesquisa da IPU apenas 8,8% são de deputadas e 14%
de Senadoras. No Ceará isso é ainda mais alarmante apenas 3 mulheres foram eleitas para
exercer o cargo de Deputada Federal e 2 para o posto de Senadora.
Os motivos para a ausência das mulheres na política são diversos, seja pela divulgação
do discurso que política não é coisa de mulher, que elas não entendem. Como também por
elas serem responsáveis por 91% do trabalho doméstico, pelo cuidado com o idoso e com os
filhos. Além de terem uma educação voltada para o ensino de que existem coisas específicas
para elas, até mesmo algumas profissões são ditas como mais adequadas para mulheres.

POLÍTICA DE COTAS E REFORMA POLÍTICA


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Os movimentos feministas lutam para que a realidade atual em relação as mulheres


não permaneçam as mesmas, o feminismo responsabiliza o Estado, uma vez que o mesmo não
desenvolve políticas públicas que proporcione um aumento das mulheres na política, algumas
medidas precisa ser adotada para que assim elas possam ter as mesmas chances que os
homens de candidatar-se a algum cargo. É necessário haver mais creches, restaurantes
comunitários, além de medidas diretamente relacionadas à política partidária.
O Brasil é um dos 109 países em que foi aprovada a divisão de cotas por sexo, o país
adotou o sistema de cota em 1995, sendo 20% das vagas dos cargos para as mulheres, já em
vigor nas eleições de 1996. Essa medida foi insuficiente, então no ano de 1997 houve um
aumento para 25%, sendo obrigatória nas eleições de 1998, e no ano seguinte para 30%, este
percentual está em vigor até os dias atuais.
Depois de 17 anos, da implantação de políticas de cotas por sexo nas eleições ainda é
perceptível a pouca presença das mulheres, isso se dá por uma política ineficiente que não tem
regras claras de funcionamento. A lista de candidatos é aberta então as mulheres podem ser
colocadas em qualquer posição e além do mais não há punição para quem não cumprir a lei.
Laisy Moriére afirma:
A mulher é sujeito político ativo. E como tal, a partir do momento em que se vir
“estimulada” a ingressar na atividade político-partidária, mesmo que, a princípio,
seja uma presença pró-forma para garantir ao partido o cumprimento das normas, ela
acabará se reconhecendo como tal e não medirá esforços para defender nesse campo
de atuação os seus ideais. (2013, p.260)

É urgente uma reforma política que torne o Brasil um país verdadeiramente


democrático, possibilitando a igualdade para todos. Na discussão da reforma política
apresentada no congresso quase nada se alterou e alguns pontos ficarão em aberto, como o
tempo de horário eleitoral destinado ao incentivo a participação de mulheres na política etc.
Como já foi relatado anteriormente a adoção de 30% da cota por sexo não significou o
aumento da representatividade feminina no congresso, desta forma Iriny Lopes, luta pela
equidade de gênero na câmara dos deputados Estaduais, tentando que a representação seja
proporcionalmente igual.
Temos países como a Argentina, Costa Rica, Paraguai e outros em que a política de
cota por sexo teve êxito, não atingiu ainda o seu auge, mas comparando com o caso do Brasil

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é desempenhado com sucesso. Sabemos que apenas a política de cotas não vai resolver o
problema mais é um passo. E vamos aos poucos também tentando mudar os vestígios
históricos, culturais e sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois de analisarmos a situação atual da mulher na política, bem como a trajetória da
sua luta em busca de direitos iguais. Percebemos o quanto esse percurso que visa uma maior
atuação das mulheres como sujeitos políticos em ação, ainda necessita de que seja
reivindicada a criação de políticas públicas que possam ser capazes de transformar
verdadeiramente a política do nosso país.
Concluímos desta forma que o movimento feminino necessita eleger mulheres que
carreguem essa bandeira, e venha a ser dentro do espaço político agente de transformação. É
de fundamental importância que se criem leis que garantam às mulheres aquilo que a
conquista do sufrágio não possibilitou que as mesmas votem e sejam votadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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públicos e privado: uma década de mudanças na opinião pública. in: SOARES, Vera.
Percepções e atitudes: ser mulher e participação política. Edições Sesc SP. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2013.
__________ .Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privado: uma década de
mudanças na opinião pública. in: LOPES, Iriny. O caminho da invisibilidade ao
empoderamento feminino. . Edições Sesc SP. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2013.
__________ .Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privado: uma década de
mudanças na opinião pública. in: MORIÉRE, Laisy. A desconstrução de papéis como fator
propulsor da participação política das mulheres. Edições Sesc SP. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2013.

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GÊNERO E FEMINISMO: RESISTÊNCIAS À DITADURA MILITAR NO CEARÁ

Sarah Pinho da Silva451 | sarah_05_pinho@hotmail.com

INTRODUÇÃO
No Brasil, o golpe militar em 1964 não foi um fato isolado, pois em vários países da
América Latina, ditaduras militares foram instauradas nas décadas de 1960 e 1970. Países
como Chile, Argentina, Uruguai e o Brasil fizeram parte de uma generalização de regimes
opressores, em um contexto pós Segunda Guerra Mundial e de Guerra Fria, que dividia dois
grandes blocos econômicos: Estados Unidos e União Soviética.
As ditaduras militares, na América Latina, faziam parte do plano de segurança
nacional norte-americano para contenção do comunismo, objetivando impedir que países sul-
americanos fossem governados por presidentes de esquerda, alguns apoiados pelo bloco
socialista da União Soviética. De acordo com Merlino (2010), os golpes militares receberam
apoio e financiamento dos Estados Unidos, o que ajudou a consolidar a instauração desses
regimes.
Nesse contexto de repressão, várias organizações de esquerda mobilizaram-se,
algumas já existiam e estavam organizadas antes do golpe militar no Brasil, outras se
formaram nesse período, para tentar combater o regime repressor. Esses movimentos eram
clandestinos, porque o governo ditatorial começou a cassação de direitos individuais e
coletivos com o decreto do primeiro Ato Institucional (AI-1), em 09 de abril de 1964. Foi
nesse momento de luta contra repressão, da defesa dos direitos sociais e luta de classes que
muitas mulheres passaram a integrar as organizações de esquerda.
Este artigo pretende desmistificar a ideia de que a participação feminina na luta contra
a ditadura militar foi secundária e aconteceu por influência de seus companheiros, várias

451
Graduanda em História na Universidade Estadual do Ceará – UECE.
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mulheres fizeram parte desses movimentos, porque similar aos homens, acreditavam em um
país mais justo e lutaram para que isso pudesse acontecer. De acordo com Bastos (2007), as
mulheres, da geração de 1968, iniciaram a militância política por opção, isso aconteceu tanto
na Universidade como na Igreja. Ainda, de acordo com a autora: “O elemento novo trazido
pela militância feminina era o fato de as mulheres romperem também com o padrão da moça
bem-comportada, virgem, futura mãe de família” (2007, p.21). Esse rompimento com o
padrão imposto à conduta feminina foi perceptível na própria atuação das mulheres dentro das
organizações, já que, a partir de 1968, a repressão se tornou mais forte, com o decreto do AI-
5452, e muitas mulheres militantes foram presas, torturadas e mortas pelo regime. A ruptura
desse padrão que condicionava e, ainda hoje, condiciona as ações femininas, significou a
ocupação de um espaço que antes era colocado como pertencente ao homem.
Segundo Kotchergenko: “podemos dizer que algumas mulheres, ao atuarem como
militantes, saíram dos seus espaços privados, relegados a elas pela sociedade, e ingressaram
no espaço público, marcando presença significativa” [...] (2011, p.284). Esse rompimento
incomodou não apenas militares, que subestimavam a participação das mulheres, mas
também, alguns militantes. Isso aconteceu, porque as organizações de esquerda, durante a
ditadura militar, eram, ainda, espaços fundamentalmente masculinos. De acordo com Helena
Frota, [...] “se a gente analisar hoje, os quadros do DCE grande parte era os homens, eram
homens, as funções eram, secretárias eram mulheres, as funções mais femininas, que na
divisão sexual do trabalho se coloca para as mulheres” [...].453
A partir da fala de Helena Frota, pode-se perceber que a participação feminina era
encarada por muitos militantes como algo secundário, e que os valores construídos sócio
históricos e culturais, que dividem os papéis sociais do homem e da mulher, estavam
presentes dentro das próprias organizações de esquerda:

452
Em dezembro de 1968, foi editado o Ato Institucional nº 05 [...] O AI-5 fechou o Congresso Nacional por
tempo indeterminado; cassou mandatos de deputados, senadores, prefeitos e governadores; decretou o estado de
sítio; suspendeu o habeas corpus para crimes políticos; cassou direitos políticos dos opositores do regime;
proibiu a realização de qualquer tipo de reunião [...] O AI-5 significou, para muitos, um “golpe dentro do golpe”,
um endurecimento do regime que estabeleceu leis especiais para o exercício do poder fora dos marcos do Estado
de direito. (ARAUJO; SILVA; SANTOS, 2013, p.19-20).

453
FROTA, Helena. (Militante da Ação Popular no Ceará). Entrevista concedida em 02 de julho de 2015.
Entrevistadora: Sarah Pinho da Silva.
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[...] Analisando as ações políticas e as lutas das mulheres no período da ditadura


militar, podemos perceber que elas, além do combate a repressão, tiveram que
enfrentar também a discriminação e a desigualdade por parte da sociedade e dos seus
companheiros de organização. (KOTCHERGENKO, 2011, p.284)

Diante disso, percebe-se que a militância feminina tentava combater, não apenas o
regime repressor, mas, muitas vezes, o embate era travado dentro das próprias organizações as
quais pertenciam. As divisões de tarefas e os cargos de chefia são alguns exemplos das
diferenças que havia entre homens e mulheres militantes dentro das organizações de esquerda.
Helena Frota reforça essa distinção que existia, no qual cargos específicos, tidos como
femininos, eram desempenhados pelas militantes, enquanto, os homens exerciam cargos de
chefia e eram maioria tanto no movimento estudantil, quanto nas organizações clandestinas.
O artigo ora apresentado comunica a pesquisa, em andamento, sobre a participação
feminina nas organizações de esquerda no Ceará durante o período de Ditadura Militar (1964-
85). Tem por base a análise das entrevistas com ex-militantes, buscando compreender as
relações de gênero dentro das organizações de esquerda, os papéis sociais e a conjuntura da
época. A análise que está sendo feita consiste nas experiências individuais dessas mulheres
para buscar perceber como era a atuação feminina dentro dessas organizações.

“NÓS PODEMOS TUDO, NÓS PODEMOS MAIS, VAMOS LÁ FAZER O QUE


SERÁ”: A LUTA DE MULHERES NAS ORGANIZAÇÕES DE ESQUERDA DO
CEARÁ

A análise das entrevistas concedidas até o momento, revelam que a divisão dos papéis
sociais, dentro das próprias organizações, ajudava a ratificar o papel submisso, no qual a
mulher era colocada. Nos quais valores e condutas ditavam e, ainda, ditam o comportamento
feminino, assim como o masculino, contudo, a mulher era e é colocada, muitas vezes, em uma
posição de inferioridade em relação ao homem.
No período da ditadura, a questão de gênero, ainda, não era pauta das discussões da
esquerda, essa categoria começava a ganhar força com os movimentos feministas francês e
estadunidense, mas era visto de forma muito superficial no Brasil. A partir de meados de

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1970, começou a ser colocado em discussão e chegou a várias organizações, através de


periódicos e folhetos – Brasil Mulher e Nós Mulheres454 – a partir desse momento, várias
mulheres começaram a se organizar, em grupos, para discutir pautas específicas sobre a
questão de gênero455. Mas, as discussões sobre essa categoria não aconteceram de forma
branda e suave, ela enfrentou resistências, que partiam de diversas vertentes, até mesmo, da
esquerda.
Segundo Jessie Jane: “essa coisa de gênero nem se falava, nem se falava disso. As
contradições eram as contradições do capitalismo, que se resolveriam na revolução socialista.
O resto era tudo um discurso pequeno-burguês”. (JANE apud JUNIOR. 2011, p.401).
Compreende-se que as discussões sobre gênero, naquele momento, foram superficiais e, além
disso, eram vistas como secundárias, afinal, a prioridade era a luta de classes, e as outras
questões – pautas femininas – seriam sanadas com a implantação do socialismo. Essa forma
de enxergar os feminismos456 desagradou a muitas mulheres e por outro lado influenciou
tantas outras.
De acordo com Ruth Cavalcante: “eu não tenho experiência de vida no movimento
feminista, não tenho, acho que foi uma certa influência do partido, também, nesse sentido de
que a causa era maior, era a classe e não o gênero”. 457
As lutas feministas eram vistas como uma possibilidade de enfraquecer a causa maior,
que era a luta de classes e o combate à ditadura militar, então, muitas vezes, as questões
específicas eram desconsideradas pelas organizações de esquerda. Muitas mulheres que
faziam parte dessas organizações – no caso de Ruth Cavalcante – acabavam por deixar de

454
Brasil Mulher circulou entre 1975-1980, era organizado pela Sociedade Brasil Mulher (teve 16 edições
regulares e quatro edições extras). Nós Mulheres circulou entre 1976-1978, era organizado pela Associação de
Mulheres (teve oito edições).
455
A categoria gênero é empregada de acordo com PEDRO e WOLFF: [...] “ É com pressuposto de que gênero é
um primeiro modo de dar significado às relações de poder e um elemento constitutivo de relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” [...] (2011, p.22).

456
“Usamos o plural admitindo que o feminismo ocidental dos anos 1960-80, que seria entendido como
feminismo de Segunda Onda, não foi um movimento homogêneo ou centralizado, mas sim um fenômeno
heterogêneo e plural, melhor representado pelo termo ‘feminismos’”. (MELLO, 2011, p.73).

457
CAVALCANTE, Ruth. (Militante da Ação Popular no Ceará). Entrevista concedida em 30 de abril de 2015.
Entrevistadora: Sarah Pinho da Silva.

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lado pautas que envolviam a questão da mulher e o debate de gênero. Porém, as discussões de
gênero, no Brasil particularmente no Ceará, só se aprofundaram com o movimento conhecido
como: Segunda Onda do Feminismo458.
Os feminismos confrontaram as posturas adotas por muitas organizações de esquerda,
posturas que condicionavam a atuação feminina dentro desses movimentos. De acordo com
Daciane Barreto: [...] “A expectativa da mulher na luta é aquela que realmente vai servir ao
partido, vai servir as diretrizes do partido, mas também aquela, que também, tem aquela a
particularidade da subserviência, que é a conformada, aquela que é a paciente, que sabe
perdoar” [...]459.
Daciane ressalta os estereótipos que havia em relação à postura feminina, o que era
esperado da conduta das mulheres militantes, que mesmo participando de organizações
clandestinas, perseguidas pela ditadura, deveriam ser compreensivas, pacientes e capazes de
perdoar. Era esperado dessas mulheres um posicionamento de fragilidade, que ela fosse
delicada e sensível. Características próprias da mulher, de acordo com a divisão dos papéis
sociais, que reforçavam condutas de submissão e subserviência. Portanto, quando o
movimento feminista, de Segunda Onda, começou a ser debatido e colocado por muitas
mulheres, diversas organizações de esquerda sentiram que esse debate poderia afetar a
continuidade da luta:

Apesar dos discursos que reforçavam a importância das lutas específicas e gerais
seguirem juntas, e das várias iniciativas de aproximação com as camadas populares
e trabalhadoras, o feminismo continuou sendo entendido como um movimento
exclusivo da classe média e intelectualizada, que dividiria a luta principal [...]
(SILVA, 2011, p.178).

Conforme a autora, uma das principais críticas ao feminismo era a divisão que ele
causaria a luta mais geral, a dispersão que isso poderia causar dentro das organizações, pois, à
primeira vista, o movimento poderia contribuir na luta contra a ditadura, mas depois poderia

458
De acordo com a professora Joana Pedro: [...] “o feminismo chamado de ‘Segunda Onda’ surgiu depois da
Segunda Guerra Mundial e deu prioridade às lutas pelo direito ao corpo, ao prazer e contra o patriarcado. Nesse
momento uma das palavras de ordem era: ‘o privado é político’”. (2006, p. 269).

BARRETO, Daciane (Militante do PC do B no Ceará). Entrevista concedida em 14 de abril de 2015.


459

Entrevistadora: Sarah Pinho da Silva.


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prejudicar o objetivo central, que era a luta de classes e contra a repressão. As especificidades
da luta feminista poderiam ameaçar o projeto político que havia nessas organizações.
Contudo, de acordo com Gonçalves [...] “a luta de classes não conduzirá à emancipação
humana sem destruir, concomitantemente, a opressão feminina” [...] (GONÇALVES apud
SAFFIOTI, 2013, p.24). De acordo com a autora só a instauração do socialismo não resolveria
os problemas que envolviam questões específicas da mulher. Assim, as discussões e a luta
pela emancipação feminina deveriam andar ao lado da luta de classes, pois, dessa forma, se
conseguiria alcançar o objetivo da construção de uma sociedade mais justa.
Com a ditadura militar e suas perseguições, torturas e assassinatos, as várias
organizações preferiram adotar posturas mais rígidas para tentar suportar a repressão, com
isso, as pautas de gênero não foram inclusas como questões relevantes nesse período:

[...] pelo fato de ser ditadura, os partidos, eles eram muito autoritários, é, por
exemplo, como aquele período era um período perigoso, então, você não tinha muito
como questionar, ou você aceitava, ou você saia do partido, então, depois é que a
gente começou a ver que a estrutura ela é muito autoritária, a estrutura de todos os
partidos, e aí a gente vai ver, que o homem tem o papel político [...] (FROTA,
Helena. Entrevista, 02 de jul. 2015).

Compreende-se que esses movimentos, em alguns casos, adotavam posturas tão


autoritárias, que condicionavam determinadas ações femininas. Segundo Helena Frota, não
havia o questionamento sobre determinada tarefa ou se esta era ordenada por um homem, era
preciso cumpri-la, caso contrário, teria que deixar o partido. O autoritarismo dessas
organizações, muitas vezes, colocados como possibilidade de resistência à ditadura acabava,
em determinado momento, legitimando a opressão feminina. Esse autoritarismo condicionou
diferentes atitudes e interferiu de certa forma na singularidade dessas sujeitas, conforme
destaca-se:
A partir do momento que um/uma militante ingressasse em determinada
organização, deveria agir performaticamente, tomando certas atitudes e deixando de
tomar outras, vestindo um tipo de roupa e deixando de vestir outro, se alimentando
de uma forma que talvez não se alimentasse isoladamente. Não estamos afirmando,
contudo, que esses e essas militantes fizessem isso de forma inconsciente ou que as
organizações e partidos fossem prejudiciais, mas podemos observar, como Santos,
que interferiam de forma direta na subjetividade dos indivíduos. (JUNIOR, 2011,
p.398).

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A militância, em alguns casos, significou a adoção de uma postura mais rígida, ao


mesmo tempo, que condicionou indivíduos a condutas que não necessariamente fizessem
parte de sua constituição enquanto sujeito. Por vezes, houve a anulação dessa percepção
individual/singular dos/das militantes:

Só saía de casa arrumada e pintada, com as coisas menores que eu tinha, as roupinha
mais simples possível (sic), mas eu me cuidava, porque isso era um valor pra mim. E
eu não ia deixar de ser uma coisa, que eu sempre fui, pra poder entrar numa rigidez
dessa, mas existia esse desconhecimento da necessidade do sujeito individual, era
basicamente só o sujeito coletivo, que era bom, que deu essa noção a gente do
coletivo, mas foi causa de muito sofrimento [...] (CAVALCANTE, Ruth. Entrevista.
30 de abr, 2015).

Essa anulação da individualidade do sujeito causou sofrimento, segundo Ruth


Cavalcante, porque questões mais específicas eram deixadas de lado. A causa era maior, o
todo/coletivo deveria estar acima de tudo, e apesar da coletividade ter contribuído na
formação desses indivíduos, a percepção do sujeito singular, também, era importante e fez
falta a muito militantes, ainda, de acordo com Ruth Cavalcante: [...] “porque uma pessoa que
tinha uma identidade muito fragilizada ela se deixava totalmente anular como pessoa” [...].
(Entrevista, 30 de abr, 2015).
Esse direcionamento colocado por algumas organizações, que determinou condutas,
valores, regras e papéis influenciaram na formação dessas sujeitas. As mulheres, que
militaram, realizaram um processo de ruptura, que as colocaram no espaço público e político,
mas ao mesmo tempo, esse espaço exigiu uma postura que, por diversas vezes, determinou a
essas mulheres suprimir sua identidade. Segundo Back:

O sacrifício, portanto, no caso das mulheres, envolvia também abrir mão de


atributos e práticas que socialmente as caracterizavam como mulheres e a
correspondente adoção de traços considerados masculinos. Essa troca, ou
substituição por vezes vivida, significada ou ressignificada como dolorosa e/ou
como uma perda ou supressão da identidade, colocava empecilhos, como já afirmou
Wolff, as trajetórias políticas das militantes [...]. (BACK, 2011, p.389).

Por mais que algumas características femininas tenham sido construídas socialmente,
esses valores passaram a fazer parte do processo de identidade e do se reconhecer, enquanto,
sujeita. Na fala de Ruth Cavalcante, fica claro sua vaidade e que gostava de se arrumar. Ter
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que abrir mão disso, por causa do partido, era como abrir mão de ser quem ela era. Esse
enrijecimento das organizações acabava por interferir nas identidades individuais, a partir do
momento em que era cobrada mudança na postura dos militantes, especificamente, na postura
feminina. Colling (2004) comenta que algumas mulheres para serem aceitas e não ser
discriminadas pelos militantes assumiam a militância dentro das organizações de esquerda
negando a sua condição de mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos afirmar que os embates travados pelas mulheres militantes, portanto,


começaram dentro das próprias organizações de esquerda. O combate era contra a ditadura
militar, mas era também, o de subverter valores e condutas impostas às mulheres durante
anos, que condicionou determinados papéis sociais divididos a partir do gênero, direcionando
atitudes e comportamentos característicos de cada sexo. Segundo Pedro: [...] “‘O inimigo
principal’, o regime político, estava declarado. Mas as feministas resistiam também a outro
tipo de opressão, sustentada na desigualdade entre homens e mulheres” [...] (2011, p.326).
Percebe-se que a luta feminina foi travada em mais de uma esfera, ela começou com a
entrada no espaço político, nas décadas de 1960 e 1970, que já era um reflexo do espaço
garantido dentro das Universidades, que cresceu a partir de 1950. As mulheres começaram a
sair de suas casas, do âmbito privado e passaram a ocupar o espaço público, renegado a nós,
durante tanto tempo, mas esse processo de ruptura significou desafios imensos, que foram
travados por inúmeras mulheres, que lutaram para combater o regime repressor, que
combateram os estereótipos em torno da figura feminina, que travaram conflitos com seus
próprios companheiros, que, por vezes, reproduziram a divisão dos papéis sexuais.
As mulheres lutaram pela desconstrução, tanto do sistema político opressor, como da
sociedade que oprimia e, ainda, oprime mulheres, negros, homossexuais e pobres. Perfis
estereotipados que não se enquadram em um determinado perfil de sociedade, e, por isso,
sofre discriminação. De acordo com Ruth Cavalcante: [...] “Eu representava um segmento de
gênero, eu tinha muito essa consciência, então, sempre todas as atitudes que eu tomava eu
tinha consciência disso, de que eu estava ali abrindo espaço, contribuindo para que as
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mulheres tivessem seu real espaço” [...].


As mulheres que militaram, no período da ditadura, feministas ou não, contribuíram
para o acesso de outras mulheres ao espaço público e político, ajudaram a abrir portas, ao
mesmo tempo em que deram visibilidade às questões mais específicas de gênero, colaboraram
com as discussões sobre essa categoria. Foram e são mulheres que lutaram por seus ideais,
muitas foram presas, torturadas e mortas, todavia, lutaram pelo fim de um sistema opressor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS PARA A HISTÓRIA DO MOVIMENTO FEMINISTA NA PARAÍBA (1979-


1990)

Dayane Nascimento Sobreira460 | dayanesobreira26@gmail.com


Jadson Pereira Vieira461
Tatianne Ellen Cavalcante Silva462

Pensar a história do feminismo no Brasil nos leva a adentrar os porões da ditadura


civil-militar brasileira em busca de suas raízes mais libertárias. Como diz Craveiro (1992), o
feminismo brasileiro adveio de um espaço de exílio da cidadania. Via de regra, o feminismo
paraibano se consolidou a partir das tramas e traumas desse contexto. Nesse sentido, visamos
problematizar a emergência dos primeiros grupos feministas da Paraíba em um percurso que
se deflagra na constituição de duas organizações fundadas no ano de 1990 na cidade de João
Pessoa: o Cunhã Coletivo Feminista e o Centro da Mulher Oito de Março. Campo também de
disputas (PEDRO, 2006), veremos a criação de redes de diálogos e solidariedade envoltas a
tal saber-fazer feminista que foram capazes de criar modos de existência integrados e
humanizados (RAGO, 2013), marcando o histórico de lutas de mulheres no Estado.

UM HISTÓRICO

Paralelo aos movimentos de oposição à ditadura militar iniciou-se a denúncia do


sexismo dentro de grupos organizados como sindicatos e partidos. No cerne dessas
organizações estava a emanação de forças para a Revolução, deixando a mulher e “suas
questões” às margens. Como sinaliza Susel Oliveira da Rosa (2013, p. 39) “mulheres como
Maria Amélia Teles, Danda Prado e muitas outras feministas brasileiras se voltaram para essa

460
Mestranda em História pela UFPB. E-mail: dayanesobreira26@gmail.com.
461
Mestrando em História pela UFPB. E-mail: jadsonpv@gmail.com
462
Mestranda em História pela UFPB. E-mail: tatianneecs@gmail.com

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discussão, descortinando essa postura misógina da esquerda brasileira”. Foi a partir das
críticas à estrutura da esquerda, portanto, que se abriram possibilidades de atuação política
feminista.
Ocupar lugares outros que não o da esfera privada representava uma ameaça ao poder
de dominação masculina. Nesse sentido, a participação feminina na militância alterava lógicas
e causava temores. Ao mesmo tempo, possibilitava às mulheres a fuga da instância biopolítica
promovendo projeções e instaurando conflitos nos âmbitos do público e do privado. “Ah,
aprendemos a fazer política”, diz Albertina Costa (apud ROSA, 2013).
Nessa lógica, o pessoal parecia não ser político, como nos diz Soares (1983), os afetos,
os sentimentos e os desejos eram camuflados em prol de uma teleologia, da revolução
socialista: “revolucionário não ama e não tem sexualidade”. Na clandestinidade, a militância
“obrigou a chorar baixinho, de saudade e de dor” (p. 11). Despontando em contraponto a isso,
o feminismo foi trabalhado conexo à subjetividade das mulheres.
Falando da experiência da prisão e da tortura, que antecedeu seu exílio, Eleonora
Menicucci, idealizadora do Grupo Feminista Maria Mulher fundado na cidade de João Pessoa
no ano de 1979, anteviu a ligação de sentimentos comuns através do feminismo:

O encontro, dentro da cadeia, com outras mulheres, companheiras ontem, e amigas


hoje, todas com as mesmas histórias, mesmas angústias e mesmas perguntas sem
respostas. Só havia uma certeza. Repetir o ontem não cabia mais em nossas vidas.
Do fundo do poço, tentaríamos tirar a água limpa para uma vida nova de
solidariedade, amizade e amor (Idem, p. 18).

O exílio, iniciador dos ventos feministas e não podendo ser tomado como homogêneo,
foi palco das mais diferentes articulações políticas e desestabilizações cotidianas advindas de
uma experiência nova longe da pátria e dos seus. Segundo Rosa (2013, p. 137), “representou
um espaço de liberdade que desestabilizou a fixidez das identidades, oferecendo
possibilidades de alteração de rotas”. Foi portanto, um espaço de reflexão a partir da cultura
do outro, de novos afetos e encontros. Reflexões que reverberavam em uma postura com
relação a si e ao mundo. A garantia da própria sobrevivência nesses espaços e o contato com
reflexões e diálogos feministas já em desenvolvimento na França desde antes do maio de

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1968, imprimiu marcas profundas nas subjetividades dessas mulheres e na construção de sua
condição feminina.
Para o exílio migraram ex-presas políticas, ex-guerrilheiras, mulheres que seguiram
seus companheiros e que puderam questionar o sentido de suas vidas, de suas práticas,
alterando a partir disso, relações tradicionais entre os sexos. Novas rotas foram criadas,
muitas seguiram nos estudos, mudaram o telos de suas existências, elaboraram histórias
outras. Contudo, como nos diz Rachel Soihet (2010), não foi fácil para essas mulheres –
formadas numa perspectiva marxista – atentar para o reconhecimento de suas especificidades.
Foram necessárias reflexões mais sistemáticas materializadas por grupos como o Grupo
Latinoamericano de Mulheres e o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris. Essas reflexões
propiciaram “encontros que aumentavam a potência de agir de muitas mulheres que passaram
ou participaram ativamente das reuniões” (ROSA, 2013, p. 138), permitindo assim, aberturas
políticas, intelectuais e existenciais profundas (ABREU, 2010).
Esses grupos formados na década de 1970 e compostos majoritariamente por mulheres
exiladas, trabalhavam com oficinas de autoconsciência que permitiram discussões e reflexões
sobre questões femininas. Essas oficinas eram baseadas na horizontalidade, o que foi
responsável por criar laços de integração bastante profícuos. Realizadas nas casas das
mulheres, suscitaram modos livres de existência (ROSA, 2013) na medida em que se
pautavam na discussão de experiências pessoais e coletivas. Pela especificidade da
experiência do exílio, promoveram também vários encontros que integravam essas
subjetividades nômades na Europa.
O Grupo Latinoamericano de Mulheres em Paris foi fundado por Yolanda Cerquinho
da Silva Prado, em 1972. Escrevendo sobre sua trajetória, a historiadora Susel Oliveira da
Rosa nos diz que Danda Prado como é mais conhecida, arriscou-se em meio a capturas
biopolíticas, forjando uma identidade-devir, processo, corpo, coragem. Mantendo contato com
Simone de Beavouir, que já havia sido hospedada em sua casa no Brasil por meio de seu pai
Caio Prado Júnior, teve contato na França com o conhecimento humanista produzido e
também com o feminismo. O grupo manteve uma constância e publicou o boletim Nosotras,
sendo responsável por criar novos espaços-tempo. Publicado entre os anos de 1974 e 1976,
teve circulação inclusive no Brasil. De circulação incerta, dependia de contribuições das
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leitoras para sua manutenção e funcionamento. Da vida doméstica à sexualidade, eram muitos
os temas postos em pauta, promovendo deslocamentos de si e das capturas patriarcais e
misóginas.
De um feminismo preocupado com a luta de classes, o Círculo de Mulheres Brasileiras
em Paris se ligou a grupos e partidos políticos como o MR-8 e o PCB. Organizando-se em
assembleias e subgrupos, de acordo com Pedro e Wolff (2007, p. 66) “uma das maiores
empreitadas do Círculo era a denúncia à tortura e ao desrespeito aos direitos humanos dos
presos políticos do Brasil. Essa era a estratégia adotada pelos militantes de esquerda exilados
para sensibilizar os europeus com relação a seus países e à sua própria situação de
estrangeiros”.
Denunciando, portanto, a ditadura, abriu espaços dentro da própria esquerda a se
pensar suas práticas, seus princípios. Também editou um jornal, o Agora é que são elas.
Tendo a leitura da opressão social como latente, esse grupo afirmava que “não haveria
socialismo sem libertação da mulher e não haveria libertação da mulher sem socialismo”.
Assim, essa dupla militância possibilitou um olhar para si e a reverberação dessas ideias no
Brasil.
No movimento de volta, essas mulheres aguçaram a percepção de que careciam de
lócus diferenciado dentro dos espaços de luta antiditadura. Questionando a divisão entre os
sexos, somaram forças para a conscientização de trabalhadoras, abrindo reflexões que
suscitaram a observação da dimensão feminina nesse limiar. Surgiram os jornais feministas, a
saber: Nós Mulheres, Brasil Mulher e Mulherio, que também fizeram uso dessa chave de
análise teórica das relações sociais. A apropriação de conceitos como o de classe foi segundo
Rago (2003, p. 05):

Uma estratégia de reconhecimento político e social fundamental num momento em


que as barreiras para a entrada das mulheres no mundo da política eram pesadas
demais, seja as impostas pela ditadura militar, seja as criadas pela própria
dominação masculina, de esquerda ou de direita.

Entre as décadas de 1970 e 1980, as mulheres se articularam a outras “minorias”,


fazendo emergir várias associações feministas no país como o Centro Brasileiro da Mulher no
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Rio de Janeiro, a Associação de Mulheres de São Paulo, o Coletivo Feminista de Campinas, o


SOS Violência de São Paulo, o SOS Campinas, o SOS Corpo no Recife, o Maria Mulher, em
João Pessoa, o Brasília Mulher, o Brasil Mulher, o Grupo Sexo Finalmente Explícito, o
Centro de Informação da Mulher de São Paulo, dentre outros. Como diz Rago (Idem), esses
grupos mesclavam a participação de ex-militantes e as novas gerações que despertaram
questões do corpo e da sexualidade. Questões próprias da instância privada vieram à público,
implicando na emergência de uma cultura de valorização do feminino e de seus atributos.
Dessas reverberações, o feminismo encontrou-se com o movimento de mulheres,
adentrando diferentes instituições e setores da sociedade civil. Vale ressaltar que o movimento
de mulheres não tinha as questões feministas como bandeira de luta. Lutava-se por melhorias
das condições materiais das mulheres: por creches, por transporte, por habitação. Ainda como
sinaliza Margareth Rago, esse encontro foi certamente lucrativo para todas: “Para as
feministas, porque passavam a atingir uma rede muito mais ampla de mulheres; para as
mulheres pobres da periferia, porque lhes traziam questões que dificilmente seriam
enunciadas espontaneamente, como as referentes à moral sexual, ao corpo e à saúde” (Idem,
p. 09). Na Paraíba, esse encontro extrapolou os limites da Universidade Federal da Paraíba,
lócus do Grupo Feminista Maria Mulher, adentrando os bairros do Novais e Beira Rio, em
João Pessoa. Também, prestando assessoria a mulheres agricultoras rurais, revelando-se aí
traços de singularidade das lutas de mulheres no Estado.
Como fala-nos Mary Ferreira (2011), boa parte dos estudos sobre a história dos
feminismos concentra-se sob a região Sudeste. “Mas e os outros feminismos? Por que
permaneceram por tanto tempo invisíveis? Por que no presente ainda não conseguem ser
protagonizadores de uma nova história?” (Idem, p. 05). Com suas especificidades, os
feminismos no Nordeste apresentaram ampla ressonância nos Estados da Paraíba,
Pernambuco, Bahia e Maranhão.
Segundo Glória Rabay (2000) o Centro da Mulher de João Pessoa surgiu em 1979
após a realização do I Encontro Nacional Feminista ocorrido em Fortaleza – CE em paralelo
às atividades da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Passando a se chamar
Grupo Feminista Maria Mulher, assumiu, portanto, a partir de 1980 sua identidade feminista.
Formado no âmbito da Universidade Federal da Paraíba – campus João Pessoa, contava com
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um número inicial e rotatório de aproximadamente dez mulheres, de classe média, algumas


ex-presas políticas, advindas do exílio como é o caso de Eleonora Menicucci, já citada.
O grupo, primeiro a realizar uma manifestação pública contra o assassinato de uma
mulher – a poeta Violeta Formiga que foi brutalmente assassinada por seu marido em 1982 –
trabalhava com educação feminista, voltada à valorização dos corpos, à libertação e à
igualdade. Desenvolveu ações nos bairros do Novais e Beira Rio por meio da realização de
oficinas de autoconsciência e intervenções. Reuniões eram realizadas com mulheres das
comunidades citadas e giravam em torno do autoconhecimento de si, da valorização da
condição feminina bem como do conhecimento do próprio corpo.
Congregando mulheres de várias áreas, algumas professoras da UFPB, durante o
reitorado de Lynaldo Cavalcanti, o feminismo foi aos poucos se mesclando à produção
acadêmica, tendo sido criado em 1983 um grupo de trabalho voltado às questões de gênero no
Núcleo de Documentação Histórica e Regional (NDHIR) da instituição. Isso foi responsável
por abrir caminhos para a inserção de discussões que se consolidaram na década de 1990.
Maria de Lourdes Bandeira, conta-nos em depoimento a Rozeli Porto e Analba Brazão
Teixeira (2006), que eram grandes as resistências dentro da UFPB direcionadas à elas, as
feministas. Como uma espécie de xenofobia, haviam xingamentos e o relato de incêndio
criminoso na casa de uma das integrantes do grupo. Tal ação – fruto de retaliação pela
presença de investimentos contrários à lógica dominante, biopolítica que se personificava nas
relações de compadrio dentro dos departarmentos e no machismo predominante – demonstra
tamanho incômodo causado pelo discurso que destoou do consensual.
Como disse Magalhães e Oliveira (2006, p. 61), “a influência da proposta feminista de
promoção da igualdade entre mulheres e homens começa a ser sentida também na zona rural
paraibana, já na década de 1980”. Mulheres encabeçaram sindicatos e lutaram por direitos
trabalhistas introduzindo temas caros à promoção da igualdade entre os gêneros. Grupos como
o Maria Mulher e o Grupo de Mulheres de Campina Grande, surgido em 1982, prestavam
assessorias a essas mulheres rurais. Tal encontro foi profícuo incrementando elementos
ousados ao feminismo paraibano ao mesmo tempo que promovia uma troca conjunta e eficaz.
Tais relações se processaram a partir da conexão feminismo/Movimento de Mulheres

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Trabalhadoras Rurais, com atuação no Brejo do Estado463.

II Encontro Feminista do Nordeste realizado na UFPB entre os dias de 03 e 04 de outubro de 1981.


Arquivo do Cunhã Coletivo Feminista.

O Grupo Feminista Maria Mulher também realizou o II Encontro Feminista do


Nordeste, sendo responsável por promover discussões frutíferas, conectando pessoas de outras
partes do país. Eis a dimensão do encontro, promotora de deslocamentos, espaço de reflexão e
mudança. Despidas de formalismos, percebe-se um portar-se que vocifera liberdades e
ousadias, subjetividades que estão pulverizadas e que são assumidas, vividas e singularizadas
(GUATTARI; ROLNIK, 1996).
Como citado, Campina Grande também contou com grupos feministas na década de
1980: o Grupo de Mulheres de Campina Grande e o Grupo Raízes. Nascidos dentro da
Universidade Federal da Paraíba – campus II e do campus I da Universidade Regional do
Nordeste464, também atuavam com assessoria a grupos de mulheres do meio popular,
sindicalistas do Brejo, associações de empregadas domésticas e clubes de mães.
463
Principalmente no município de Alagoa Grande, localizado a aproxidamente 140 km da capital, João Pessoa.
464
Hoje Universidade Federal de Campina Grande e Universidade Estadual da Paraíba, respectivamente.

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Composto por professoras universitárias das duas universidades, algumas advindas do


exílio como Ângela Maria Arruda e Paola Giulliani Cappelin, o Grupo de Mulheres de
Campina Grande atuou agregando forças para a criação do Programa de Assistência Integral à
Saúde da Mulher (PAISM) trabalhando, portanto, com ações dentro do campo da saúde
pública. Do Grupo de Mulheres criado em 1982, emergiu o Grupo Raízes, com alunas do
curso de Psicologia da URNE. Gilberta Soares, Soraia Jordão e Vilma Vaz eram algumas de
suas integrantes cujas afetações feministas vinham desde a disciplina de Psicologia Social
ministrada pela professora Ângela.
Em 1986, o Grupo Raízes e o Grupo de Mulheres de Campina Grande já se
organizavam para ida ao VII Encontro Nacional Feminista realizado em Petrópolis/RJ. Como
nos disse Soraia Jordão Almeida (2014)465: “Do primeiro encontro feminista não tem volta!”.
Estava lançada a consolidação dos grupos, o feminismo ficara “no sangue”. Logo,
percebemos o espírito de euforia que marcou o movimento feminista naquele momento. Os
encontros foram responsáveis por imprimir subjetividades que foram por sua vez,
reapropriadas pelos diferentes grupos a partir de seus diferentes enfoques. Vemos, então que
não se criaram subjetividades homogêneas. Essa participação elucida a projeção nacional dos
grupos feministas de Campina Grande nesse período, que além de ter sido encabeçado por
feministas de várias partes do país e fora dele, também se articulavam com outros grupos, a
exemplo do SOS Corpo. Esse grupo mantinha constante diálogo com o Raízes e foi
responsável por realizar capacitações e divulgar materiais com suas integrantes.
Além dessas lutas, o grupo Raízes em articulação com o Grupo de Mulheres de
Campina Grande, organizou seminários educativos visando conscientizar as mulheres para
temas como planejamento familiar e fitoterapia. Dentro das abordagens sobre planejamento
familiar, eram enfocados temas como direitos sexuais e reprodutivos. Este que segundo
Ângela Arruda (2012), voltou-se contra políticas demográficas destinadas a controlar a
natalidade entre os mais pobres, que significou investir contra a condição reprodutora e a
possibilidade de escolha das mulheres, o direito de serem donas de seus próprios corpos.

465
Uma das sócio-fundadoras e atual coordenadora do Cunhã Coletivo Feminista. Foi integrante do Grupo
Raízes e também do Coletivo Lilás. Entrevista realizada no dia 15 de agosto de 2014.

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Assim, mesmo com um pequeno fundo financeiro, o Raízes realizava seminários em


articulação com os postos de saúde, conscientizando as mulheres da existência de métodos
contraceptivos e da possibilidade de tratamento de doenças pela via das ervas medicinais466.
Eis que o Grupo Raízes se dispersou no fim da década de 1980 com a ida de suas
integrantes para a capital, João Pessoa, seguindo nos estudos dentro da Universidade Federal
da Paraíba. Tão logo se integravam às discussões do Grupo Maria Mulher então em
fragmentação, atuavam em projetos de extensão como o Mulher e Favela organizado pela
professora Rosa Nader. Esse somatório de forças fez surgir o Coletivo Lilás que tão logo
reverberou na criação do Cunhã Coletivo Feminista.
Nesse sentido, vemos a constituição dos primeiros grupos da dita segunda onda do
feminismo na Paraíba, passando pelo Grupo Maria Mulher, Grupo de Mulheres de Campina
Grande, Grupo Raízes, Cunhã Coletivo Feminista, Centro da Mulher Oito de Março. Destes,
dois ainda continuam na ativa, os outros se dispersaram. O Cunhã e o Oito de Março
contribuíram e contribuem com amplas discussões de gênero no Estado, obtendo projeção,
reconhecimento e promovendo autonomia e cidadania entre as mulheres.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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em Paris e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris. 2010. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas.
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Revista de Estudos Feministas, Brasília/Montreal/Paris, n. 20, 2012. Disponível em:
<http://www.tanianavarroswain.com.br/labrys/labrys20/brasil/angelaok.htm>. Acesso: 16 jul.
2014.
ALBUQUERQUE, Sandra M. Craveiro. Feminismo: o fim do exílio da cidadania feminina.

466
Sobre a história e memória do feminismo em Campina Grande ver o trabalho de conclusão de curso: “Mulher
bonita é a que luta”: Nas tessituras do feminismo em Campina Grande-PB (1982-1992), referenciado no fim
deste trabalho.
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João Pessoa: Cunhã Coletivo Feminista, 1992. (Mimeo.).


FERREIRA, Mary. Feminismos no Nordeste brasileiro: histórias, memórias e práticas
políticas. Polis – Revista de la Universidad Bolivariana, Santiago, n. 28, vol. 10, 2011.
Disponível em: <http://polis.revues.org/1352>. Acesso em: 22 mai. 2014.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petropólis: Vozes,


1996.
MAGALHÃES, Cândida Moreira; OLIVEIRA, Maria Lúcia Lopes de. Paraíba: para onde o
feminismo leva as mulheres? Cadernos Feministas de Economia e Política. Recife, n. 3,
2006.
OLIVEIRA, Eleonora Menicucci de. O movimento feminista: o reinventar da educação.
1983. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.
PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978).
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, n. 52, 2006. Disponível em:
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Labrys – Revista de Estudos Feministas, Brasília/Montreal/Paris, n. 03, 2003. Disponível em:
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Departamento de História, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande.

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O GÊNERO DO DESASSOSSEGO: GÊNERO COMO PALCO DE CONFLITOS NAS


RELAÇÕES INTERPESSOAIS DOS PESQUISADORES DESSE CAMPO DE
ESTUDOS

Antonio Cristian Saraiva Paiva467


Francis Emmanuelle Alves Vasconcelos468 | francis.emmanuelle.v@gmail.com

INTRODUÇÃO
Buscamos refletir sobre os entrelaçamentos das trajetórias biográficas, acadêmicas e
profissionais com a categoria gênero nos pesquisadores desse campo de estudos. Em outras
palavras, buscamos entender como esses três âmbitos da vida se entrecruzam e como a
categoria gênero reflete na vida dos sujeitos que pesquisam temáticas no campo de estudos de
gênero.
Em que momento os questionamentos acerca das relações de gênero surgem na vida
desses sujeitos? A partir de que experiências acadêmicas a categoria analítica gênero emerge
para eles? Como as leituras sobre gênero promovem, por sua vez, (re)descobertas de si
mesmo? Estudar gênero tem reflexos na vida desses sujeitos? De que forma? Como as
relações interpessoais são (re)significadas? Que conflitos emergem nessas relações a partir
das leituras de gênero e feministas? Essas são as perguntas de partida que norteiam o trabalho
bibliográfico e de campo. Para buscar respondê-las, nos utilizamos de entrevistas

467
Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (1994). Doutor em Sociologia pela
Universidade Federal do Ceará (2004). É professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia daUFC.
Realizou estágio pós-doutoral na Université de Strasbourg, France.
E-mail: cristianspaiva@gmail.com
468
Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará –UFC. Mestra em Sociologia pelo mesmo
Programa. Assistente social pela Universidade Estadual do Ceará –UECE. Professora do curso de serviço social
da Faculdade Cearense – FaC.
E-mail: Francis.emmanuelle.v@gmail.com
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semiestruturadas, mas também de conversas informais com pesquisadores pós graduados


(com mestrado e/ou doutorado) cearenses, que deram continuidade com as pesquisas na área
de gênero, da graduação à pós graduação.
A atividade de pesquisa científica produz um processo auto-reflexivo contínuo, ou
seja, a reflexão sobre o outro que se pesquisa também é uma reflexão sobre si mesmo. Ao
passo que estudamos sobre qualquer temática, (re)significamos as coisas ao nosso redor, lhes
damos um outro sentido, especialmente aquelas as quais são o foco dos nossos estudos.
Contudo, pesquisadores da área de gênero passam por situações especificas e intensas nesse
processo auto-reflexivo, posto que, primeiro, antes de pesquisadores, tem um gênero e, por
sua vez, é isso o que estuda em suas pesquisas. Além disso, ao estudar gênero a partir das
representações ou práticas de gênero em homens ou mulheres de determinado grupo social,
refletimos sobre o que aprendemos na Academia e sobre a nossa própria vivência de gênero.
Nossos gêneros também são mobilizados nas pesquisas quando, por exemplo, temos
pesquisadoras mulheres que estudam campos eminentemente masculinos ou mulheres
heterossexuais que estudam lésbicas (BONETTI; FLEISCHER, 2007). Gênero é uma marca
no corpo que é acionada de “n” formas no campo de pesquisa, mas também nas vidas
pessoais.
O campo de estudos de gênero tem se consolidado desde a década de 1980,
inicialmente com os estudos sobre a condição da mulher. Por isso também era conhecido
como “Estudos sobre a mulher” ou “Woman’s studies”. Ao adentrar a Universidade, sofreu
certa resistência, pois era considerado uma espécie de militância disfarçada. Nesse sentido, o
termo gênero adentrou a Academia com maior aceitabilidade que o termo mulheres (Scott, ).
No Brasil, a responsável por dar o impulso inicial nesse campo foi Heleieth Saffioti, com a
tese “Mulher na sociedade de classes”, na década de 70. Atualmente constitui-se num campo
de estudos consolidado no Brasil, tendo eventos científicos de referência, como o Fazendo
Gênero e seu contraponto, o Desfazendo Gênero; programas de pós-graduação (na UFBA) e
revistas acadêmicas de renome internacional, como o Cadernos Pagu e a Revista Estudos
Feministas. Entendemos não só como uma área/setor de estudos específico, mas também
como um campo com um verdadeiro habitus, ou seja, com tendências de ser/fazer próprias ao
campo. O próprio campo de estudos de gênero emerge e se consolida no campo de estudos
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feministas, não podendo ser entendido de forma separada.


A segunda onda do feminismo, com o slogan “O pessoal é político”, promoveu uma
onda de questionamentos em torno do que viria a ser o público e o privado e nesse sentido,
que o que é tido como historicamente privado, como o espaço doméstico e os conflitos
inerentes aí na família, são considerados públicos, políticos, passíveis de discussão e de
intervenção estatal (como no caso da violência contra a mulher) ou não, como no caso do
aborto (no qual não caberia ao Estado criminalizar a prática, sendo uma escolha da mulher).
Contudo, será que a onda de discussões sobre o pessoal que é político, que adentra os aspectos
mais minuciosos do cotidiano, que tensiona o cotidiano do outro, foi capaz, por sua vez, de
promover um tensionamento do cotidiano dos próprios pesquisadores que se aventuram em
pensar essas questões? Percebemos que o pesquisador é cobrado a adquirir posições
ideológicas próprias ao campo que, por sua vez, podem entrar em conflito com seus valores
morais. Portanto, gênero é mais que uma categoria analítica, pois se exige do pesquisador um
ativismo político. Portanto, gênero é categoria de análise e de prática política.
O pesquisador pode passar pelas mais diversas contradições: vivenciar e até praticar a
dominação masculina, sofrer violências de gênero ou reproduzir ideologias machistas.
Portanto, os estudos de gênero não produzem a blindagem que se espera deles. As
pesquisadoras de gênero, por exemplo, muitas vezes exercem em suas relações afetivo-
conjugais relações de poder, posto que tendem a ter alto grau de escolaridade,
costumeiramente ganham mais que seus parceiros e exercem funções que historicamente se
atribuíram ao masculino. Também vivenciam relações de poder em suas relações conjugais
que são comumente questionadas e tensionadas por elas mesmas.

Qual o homem que, ao estudar gênero, nunca foi inquirido: você é gay? Seria possível
uma pesquisadora de gênero ser blindada de situações de violência de gênero? Seria possível
que um pesquisador de gênero praticasse a dominação masculina? Como ser praticante/adepto
de religião x e pesquisador de gênero ao mesmo tempo? Como ser casada(o) e estudioso das
relações de gênero? É difícil pensar em pesquisadores de gênero que possam ter atitudes
racistas, homofóbicas, etnocêntricas, que possam ser religiosos. Contudo, será que temos essa
blindagem? Aquele que está imerso no campo arrisca costumeiramente ser incoerente. E que
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coerência é essa cobrada dos pesquisadores de gênero? São questões que permeiam o
cotidiano dos pesquisadores de gênero. Ademais, é partindo dessas questões cotidianas que
nos propomos a entender como se dão esses reflexos das leituras de gênero em quem pesquisa
temáticas na área.

GÊNERO COMO DESASSOSSEGO: TRAGETÓRIAS BIOGRÁFICAS


Partimos do pressuposto de que as questões de gênero que vão se dar na biografia dos
sujeitos são profundamente marcantes para a descoberta dos estudos de gênero: suas histórias
de vida, histórico familiar e escolar. Esses sujeitos se tornam mais sensíveis a essas temáticas
quando adentram a Academia. As trajetórias biográficas explicarão as trajetórias acadêmicas e
profissionais que se desenrolarão posteriormente.
Percebemos que os questionamentos sobre as relações de gênero emergiram desde a
infância em suas trajetórias biográficas. Nesse sentido, buscamos entender como se deu o
processo de generificação desses sujeitos, ou seja, como formaram sua identidade de gênero e
sexual e a influencia de diversas instituições nesse sentido, tais como a família, a igreja, a
escola. Também buscamos entender como performatizam seu gênero no cotidiano.
E1 tinha 39 anos de idade, assistente social, professor universitário e trabalhava numa
instituição de representação da sua categoria profissional. Sua orientação sexual era
homossexual. Por sua vez, nascido numa família profundamente religiosa, adeptos da religião
evangélica Adventista do Sétimo Dia. Seu pai era filósofo e a mãe servidora pública (auxiliar
de enfermagem). Sua monografia de graduação em Serviço Social versou sobre o movimento
LGBT e a pesquisa de mestrado sobre prostituição masculina.
Sempre muito curioso, pegava os livros do meu pai para ler. O meu primeiro contato
com o conceito de gênero se deu antes mesmo da Academia e foi na biblioteca do
meu pai, com o livro Mulher, objeto de cama e mesa. Fiz Serviço Social e meu
mestrado foi sobre o tema da prostituição masculina. As leituras de sexualidade,
com interfaces com gênero, me fizeram entender melhor minha sexualidade. Apesar
de minha família não saber abertamente que sou homossexual, nunca ter havido um
momento no qual eu me revelei ou que chegaram a perguntar, eles sabem. Ora ou
outra escuto algumas falas preconceituosas, mas até devido à minha idade, eles me
cobram menos.

A segunda interlocutora, E2, 41 anos de idade, parda, orientação heterossexual,


socióloga, professora universitária, pós-graduanda, ocupa cargo de liderança num partido

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político de esquerda e é atuante/militante no movimento feminista. Tem uma filha e é solteira.


E3, 25 anos de idade, graduado em Publicidade e pós-graduando em Comunicação. Assume
uma identidade de gênero queer.469 Nascido numa família com 4 filhos, sendo 3 homens e
uma mulher. Os pais nunca foram casados. O pai tem três mulheres e a mãe dele é a segunda.
Sua mãe é dona de casa e o pai um pequeno empresário. E3 considera-se drag queer e realiza
performances queer na universidade e pesquisa a si mesmo no mestrado:
Venho de uma educação extremamente patriarcal. Meu pai agredia minha mãe
quando era criança, tanto física quanto verbalmente. Ela vinha do interior, criada
nessa cultura do patriarcado, em que a melhor coisa que ela ia conseguir é um
homem para sustentá-la.

Todos nós somos perpassados em nossas trajetórias de vida por um processo de


generificação, ou seja, o processo pelo qual somos definidos a partir de um referencial de
gênero que é heterossexual: ou você é homem ou você é mulher (Butler, 2001). É o processo
pelo qual nos definimos como “homem” ou como “mulher”, através de diversas instituições
que trabalham nesse sentido, tais como a Medicina, a família, a igreja, a escola e o Estado.
A identidade social de uma pessoa na cultura ocidental é formada a partir dos recortes
de gênero, trabalho, cor e classe social. Você só se torna um sujeito dentro da cultura a partir
do momento em que você pode responder às questões: “Você é homem ou mulher?”
(dimensão do sexo), “O que você faz?” (o que remete à dimensão do trabalho), “De onde você
é?” (qual a sua origem de classe) e “Qual a sua cor?” (em referência às questões étnico-
raciais). Contudo, o primeiro marcador social do indivíduo na sociedade ocidental tende a ser
o gênero. Desde a ecografia, através da interpelação médica “é uma menina!” ou “é um
menino!”, é traçado todo um destino social para a criança. São criadas diversas expectativas
sociais sobre um feto que antes era “neutro”, de modo que ele não permaneça nessa situação.
Permanecer nessa situação seria afetar a própria dimensão de humano/humanidade que é
perpassada pelas categorias que sinalizamos acima.
O corpo é cobrado a tornar-se inteligível dentro da cultura em que ele irá nascer e o
“sexo” contribui nessa inteligibilidade cultural. Para tornar-se inteligível, ele precisa, além de
um sexo definido, incorporar os parâmetros de gênero atribuídos àquele sexo. Se menina, em

469
Queer é um termo inglês comumente utilizado para referir-se a gays e lésbicas de forma pejorativa. O
movimento homossexual passou a utilizar essa nomenclatura para ressignificá-la. (Butler, 2001)
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nossa cultura deveria adquirir uma série de características morais, tais como querer ser mãe,
desejar casar, realizar o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos. Sendo homem, são
demarcadas também roupas e características morais que remetam ao masculino, tais como a
virilidade, a racionalidade, o provimento do lar, comportar-se como caçador na procura das
mulheres. E3 relatou: “Meu pai controlava as minhas roupas. Haviam roupas permitidas e não
permitidas.”.
Em nossa cultura o corpo sexuado determinaria o gênero da pessoa: tendo pênis,
naturalmente o homem “é homem”. Tendo vagina, naturalmente a mulher “é mulher”. Parece
auto-evidente. Seria uma lógica consequente: sexo pressupõe gênero que, por sua vez,
pressupõe o desejo que seria sempre heterossexual. Seria, então, natural que pessoas com
pênis fossem homens e que tivessem atração sexual por mulheres. De outro modo, seria
natural que pessoas com vagina fossem mulheres e que, consequentemente, tivessem desejo
por homens.
Os três interlocutores deste trabalho subvertem essa ordem. E1 não se enquadra nos
padrões de masculino vigentes e tem desejo por outros homens. E2, apesar de ter desejo
heterossexual por homens, subverte a lógica “da mulher” por não desejar casar ou mesmo
morar junto com o companheiro com o qual tem um relacionamento de aproximadamente 10
anos. E3 subverte a lógica heteronormativa também, pois além de performatizar uma drag
queer, em seu cotidiano usa brincos, pinta as unhas, mistura elementos que remetem ao
masculino e ao feminino.
Os processos de generificação se expressam na vida desses sujeitos. “Quando eu era
criança e adolescente, a cobrança era maior: “não segura a pasta assim, porque é coisa de
menina! Você gosta de gatos? Mas é coisa de menina! Ainda não tem uma namoradinha?
Você pega as meninas da faculdade, né?”, afirmou o primeiro entrevistado. Portanto, além da
interpelação médica, temos interpelações familiares, escolares e no âmbito do Estado.
Ser gay é ser popular. Todos na escola te conhecem. Eu subia as escadas e os
meninos pegavam na minha bunda. Quando eu virava para trás ninguém se acusava
e eu só ouvia risinhos. E3

O problema é que a homossexualidade não é entendida como uma diferença na ordem


dos desejos. Ela é tida como algo que foge à norma que é tida como a heterossexual. Quem
não se encaixa nessa norma, é abjeto, é negado, é lembrado de seu suposto papel:
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Eu via os meninos e eu não sabia ter aquele comportamento. Eu não falava como os
meninos, também não falava como as meninas. Se eu tentasse falar como as
meninas, tanto as meninas me recriminavam, quanto os meninos. Eu não me sentia
em lugar nenhum, afirmou o terceiro entrevistado.

As interpelações acontecem também na escola, como vimos, através das próprias


crianças que incorporam desde muito cedo a heteronorma. Também está presente nas
universidades. Elas se darão no decorrer da vida dos indivíduos sempre lembrando-os de seu
lugar social.
Quando frequentava a faculdade, usava uns brincos enormes. Isso chocava os
alunos. Era isso mesmo que eu queria, afirmou o terceiro entrevistado.

Os homens são formados a partir de uma tripla negação: não são um bebê (ou a
própria mãe), não são uma menina (ou mulher) e não são um homossexual (Badinter, 1993).
No caso de E3, a relação conflituosa com o pai faz com que ele negue a própria versão do
masculino que simboliza o pai, é sua anti-referência.

TRAJETÓRIAS ACADÊMICAS E PROFISSIONAIS


É geralmente na Academia que esses sujeitos terão acesso a leituras de gênero e
feministas e isso potencializa os conflitos no cotidiano, sejam eles no âmbito profissional ou
biográfico (nas relações com a família, conjugais, sexuais e amorosas). As pesquisas na área
de gênero funcionam como uma forma de transferir para o papel (a pesquisa) toda uma
vivência de gênero nas biografias pessoais e as inquietações a ela pertinentes. Contudo, o
primeiro contato com gênero parece promover uma defesa mais enérgica, militante, ao que
chamamos de “gênero à flor da pele”. Os interlocutores, ao entrarem em contato com o
conceito, queixaram-se de enxergar em toda relação situações de dominação e violência ou de
selecionar parceiros a partir de suas concepções de gênero: evitar parceiros possessivos e
machistas, por exemplo. Por sua vez, com o passar do tempo, tais leituras se tornam menos
aguerridas. Os pesquisadores tendem a não se chocar mais com a família frontalmente, nos
relacionamentos afetivo-conjugais, ao que chamaremos de “gênero endodérmico”, posto que
se cola a você.
O gênero, mais que uma representação social acerca dos sexos470 (em sua acepção

470
Entendido aqui como as diferenças anatômicas entre os corpos do homem e da mulher. (Weeks, 2001)
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mais clássica), é também uma performance de gênero. Performance da a ideia de teatralidade,


de papéis que são encenados no palco que é a cultura. Imitamos os papéis sociais que foram
historicamente construídos acerca do masculino e do feminino. Alguns atos performativos
podem subverter esses papéis ou mesmo um sujeito pode sair da sua performance que seria
“original”, para assumir a performance do outro “masculino” para poder ter um lugar dentro
de campos historicamente masculinos. A segunda entrevistada, E2, afirmou que para exercer
posições historicamente consideradas masculinas, como posições de poder em partidos
políticos, a própria docência e o próprio movimento feminista, precisou se masculinizar, ou
seja, adotar posturas que remetem ao que é considerado historicamente masculino: tom de voz
alto e firme, ser por vezes autoritária. Segundo ela, a sobrevivência social de uma
“mulherzinha” nesses espaços é difícil, por vezes, impossível. Apesar de se masculinizar para
tornar-se presença aceitável nesses meios, ela tinha orientação heterossexual.

Eu entrei na universidade uma mulherzinha: virgem, recatada. É na universidade que


eu transei, fumei meu primeiro cigarro de maconha, me engajei no movimento
feminista, em partidos políticos, fiz meu primeiro aborto. E2

Ser “a mulherzinha” é incorporar as diversas “normas regulatórias”: é manter-se


virgem e a partir daí há toda uma representação social do que vem a ser a virgindade, como
sinônimo de pureza, castidade. Além disso, ser “a mulherzinha” é ter a voz mansa; é ser a
caça; é ser feminina; é não alterar a voz, é incorporar tudo que se atribui à mulher e,
essencialmente: ser submissa à vontade de outrem. A sobrevivência social de uma
“mulherzinha”, mesmo em movimentos sociais tidos como progressistas, é difícil. Nesses
espaços nos é permitido ser “masculino”: demarcar territórios, falar mais alto; dominar;
concorrer; ter a autoridade que por vezes pode beirar o autoritarismo; é sobrepor a sua
vontade sobre a da maioria; é ter respostas agressivas e rápidas; é saber se defender (e não
procurar que um outro lhe defenda, como se espera da mulher). A sobrevivência social de
uma “mulherzinha” em movimentos sociais, partidos políticos, na Academia e na docência é
totalmente prejudicada porque espaços de evidência ainda são atribuídos apenas ao masculino
e a tudo que ele representa, do contrário, você é engolida por esses campos. Os sujeitos
inseridos nesses campos não avançaram conforme as mulheres avançaram, não avançaram em
conjunto com a situação da “mulher”.
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O mundo acadêmico ainda é profundamente masculinista. Rege-se pela lógica da


produtividade, da racionalidade. As vidas pessoais devem perder seu caráter de prioridade
nesse mundo. Mulheres estarem nesse mundo já é uma forma de perverter essa lógica. Muitas
mulheres são inquiridas ou precisam esconder o fato de estarem grávidas durante as seleções
para pós graduação ou para professor, o que precisou acontecer com a segunda entrevistada
durante a seleção do mestrado. É uma preocupação da qual homens não precisam se importar.
Conceber um filho durante um mestrado ou doutorado é subverter a ordem das coisas. A vida
pessoal precisaria parar/estagnar durante esse tempo.
A universidade se torna, além de um espaço de descoberta profissional, um espaço de
descoberta pessoal. E1, por sua vez, engajou-se no movimento estudantil, teve algumas
experiências homoafetivas ali, a partir deste movimento também encontra o movimento
feminista e se apropria das discussões e lutas travadas ali. Aprofunda suas leituras sobre
gênero, tem contato com outros pesquisadores e pensa em fundar um laboratório de estudos
de gênero à época, inexistente até então no curso de Serviço Social. Decide-se também pela
monografia na área de gênero e sexualidade e pela carreira acadêmica. Também pelo
movimento estudantil é que E3 se apropria das leituras de gênero e das pautas de luta do
movimento feminista e homossexual.
O campo de estudos de gênero e sexualidade fez com que os pesquisadores
entendessem mais seu eu mais íntimo. Estamos frequentemente retornando e desvendando
nossa infância e juventude em termos de gênero e sexualidade. Os estudos de gênero são uma
forma sublimada de entendermos a nós mesmos como seres humanos. A personagem que E3
performatiza faz frequentemente referencia a sua história de vida. Além disso, os estudos de
gênero também promovem diversas mudanças estéticas nesses indivíduos: nos modos de se
vestir, nos modos de se comportar, nos posicionamentos políticos (inclusive na família e nas
relações afetivas). “Graças aos estudos de gênero e feministas eu entendo melhor minha
sexualidade.”, afirma E2.
Percebemos que os estudos de gênero já constituem um campo de estudos delimitado
e, como tal, exigem algumas posturas do pesquisador. Este, por sua vez, possui diversos
conflitos em suas relações conjugais e familiares. Tanto relações homoafetivas quanto
heterossexuais são palco para jogos de gênero que tendem a colocar um dos sujeitos em
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espaços subalternos em relação ao outro: as mulheres, por exemplo, são cobradas a ter
determinadas posturas quanto ao cuidado com filhos, maridos e o trabalho doméstico. Uma
tensão se instaura: entre o campo do privado (das relações pessoais) e do campo de estudos de
gênero que, por sua vez, também cobra determinadas posturas dos agentes incluídos nesses
campos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O campo dos estudos de gênero, como natural de todos os campos, tem seu habitus, ou
seja, modos ou tendências de fazer algo em virtude do campo (BOURDIEU, 2007) expresso a
partir de posições ideológicas que são defendidas nesse meio, tais como: descriminalização do
aborto, vida sexualmente livre, corpo como uso político, tendência à defesa dos direitos
homoafetivos, autodeterminação nos relacionamentos amorosos, combate a formas de
discriminação de gênero por parte das igrejas, entre outros. De forma que parece não ser
possível que pesquisadores da área possam ter posicionamentos ideológicos diferentes, de
modo que, quando se expressam contrariamente a eles, são malquistos pela comunidade de
gênero.
Algumas questões ficam em aberto: seria possível um relacionamento que não se
baseasse na lógica heteronormativa? O conhecimento seria tão libertador a ponto de nos
libertar de uma educação normatizadora que vem desde a mais tenra infância? A libertação se
dá mesmo até mesmo no plano do inconsciente?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONETTI, Alinne; FLEISCHER, Soraya (orgs.). Entre saias justas e jogos de cintura.
Florianópolis: Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 10ª ed. Tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2007.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. Ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.

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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Disponível em:
<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/6393/mod_resource/content/1/G%C3%AAnero-
Joan%20Scott.pdf>. Acesso em: 22/06/2012.

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O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE: DISCURSOS FEMININOS


ATRAVESSANDO SÉCULOS

Maria Lúcia da Silva Nunes | mlsnunesml@gmail.com


Stelyane de Oliveira Melo | stelyanemelo@hotmail.com

DE ONDE SE FALA

No desenvolver do projeto de pesquisa Quando as mulheres escrevem textos sobre


educação na imprensa paraibana (1920 a 1939), vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas
“História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR/PB), do Programa de Pós-
Graduação em Educação – PPGE, da Universidade Federal da Paraíba, foram localizados e
lidos jornais e revistas em circulação no período compreendido, entre 1920 e 1939, para
identificar nestes impressos textos escritos por mulheres acerca da educação, formal, informal
ou não formal, que de alguma maneira expressavam ou apontavam modos de educar. Todavia
uma pesquisa vai sempre além do que é planejado inicialmente, uma vez que as leituras
orientadoras dialogam com outros textos. Enveredar pela história das mulheres, assim como
em outras histórias, requer uma disponibilidade em ir e voltar no tempo, procurando entender
as trajetórias de mulheres que mesmo vivendo em contextos diferentes e distantes apresentam
afinidades de ideias, de atitudes ante as condições objetivas que sempre lhes foram postas em
seus cotidianos. Assim, nesta comunicação, sob o viés da Nova História Cultural, inserida no
campo da História da Educação, tendo como foco a história das mulheres e a transversalidade
das questões de gênero, numa abordagem histórico-documental, objetiva-se promover um
diálogo inicial entre textos que tiveram como temática a condição da mulher na sociedade,
com ênfase na desconstrução da inferioridade feminina, na conquista de direitos políticos e no
acesso à educação. Toma-se como fonte para uma leitura de conteúdo explícito as seguintes
publicações: Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832), de Nísia Floresta e Os
direitos da mulher (1913), conferência pronunciada por Catharina Moura sob a organização
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da Universidade Popular, e publicada em seguida pelo jornal A União (Pb).


Pela própria exiguidade do espaço, não será possível uma análise profunda das fontes,
mas apenas indicar por meio do destaque trechos das duas produções, observando o conteúdo
explícito dos mesmos, visando identificar semelhanças e aproximações nesses discursos.
Apresentam-se algumas informações sobre as autoras e suas respectivas fontes, situando-as
minimamente em seus contextos, destacando alguns fragmentos das obras selecionadas, no
intuito de realçar suas proximidades, os pontos em que se pode perceber os diálogos quanto às
intenções que dizem respeito ao momento em que cada autora estava situada. Por fim, tenta-se
fechar temporariamente a discussão apontando algumas considerações finais pós leitura.

CADA MULHER EM SEU TEMPO

Quando as mulheres começam a expressar suas ideias publicamente, a


problematizarem sua posição subalterna em todos os âmbitos da sociedade, a questionarem as
relações homem-mulher, a discordarem de uma inferioridade biologicamente atribuída,
surgem reações adversas nos mais variados setores da sociedade. Uma leitura acurada nos
contextos em que essas mulheres insatisfeitas se movimentaram vai mostrar uma série de
artifícios mobilizados por diversos setores e sujeitos, estrategicamente elaborados visando
conter os desejos femininos por direitos que aos homens facultavam-se.
Essa luta não foi fácil nem pacífica, as diversas instituições sociais estiveram/estão o
tempo todo “trabalhando” para retardar a conquista de outros espaços pelas mulheres, ou
apontar o caminho de volta à submissão e à invisibilidade. Embora se saiba que a mulher há
muito tempo tem estado presente na luta por melhores condições de vida, sua participação foi
geralmente obscurecida ou apagada, o que tem dificultado escrever essa história, ou a história
de mulheres que, muitas vezes, sozinhas, enfrentaram a sociedade em que viviam, erguendo
sua voz, alçando atitudes ou lançando mão da caneta para manifestar a sua insatisfação com a
condição subalterna que lhe era imposta.
No Brasil, em meados do século XIX – e diferentemente do que ocorreu nos Estados
Unidos, na Inglaterra, na França e na Alemanha, por exemplo – não há notícia de grupos
organizados de mulheres lutando pela igualdade entre os sexos. Apenas algumas mulheres,
isoladamente, dentre as quais inclui-se Nísia Floresta, empenharam-se na divulgação de ideias
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que visavam a modificar a condição feminina. (DUARTE, 2008, p.11).


Nas primeiras décadas do século XX, na Paraíba, a exemplo do que vinha acontecendo
em outros estados, nos jornais, percebe-se um movimentar-se das mulheres no sentido de
adentrar os espaços da imprensa buscando dar visibilidade as suas ideias e à luta por direitos
até então destinados apenas aos homens: como educação, voto, ocupação de determinadas
profissões etc. Nessa perspectiva, é que se localiza nas páginas do Jornal A União, em 1913,
o texto de Catharina Moura, explicitamente apontando para a discussão sobre os direitos da
mulher e se destacando no meio de um debate geral sobre educação e outras questões
relacionadas, a partir do ideário de uma Universidade Popular, empreendida pelo governo
Castro Pinto que planejara uma série de conferências a serem proferidas pela elite intelectual
da Paraíba, sendo Catharina Moura a única mulher a fazer uma das conferências, na qual põe
em xeque a condição de inferioridade feminina legitimada pela ciência, inclusive. As
pesquisas realizadas até o momento não localizaram antes do texto de Catharina Moura, na
imprensa paraibana e com autoria feminina, outro semelhante, que trate com profundidade e
retórica fluente a questão dos direitos da mulher.
Órgão da imprensa oficial do estado da Paraíba, o jornal A União foi fundado no dia 2
de fevereiro de 1893 pelo presidente da então província, Álvaro Machado. Com circulação
diária, é o único fundado no século XIX que permanece em funcionamento até os dias atuais.
O jornal A União tem exercido um papel importante na formação da sociedade paraibana. O
seu caráter oficial não o impediu de ser o condutor de temáticas relevantes em cada
configuração, embora a tônica das notícias e matérias aí divulgadas assuma uma feição
própria de acordo com o governo de cada época. Assim, as guerras, as modas, a cultura, a
educação, os novos costumes, os movimentos sociais, os embates políticos, as alterações nos
modelos de comportamento têm sido divulgados em suas páginas e se tornado objeto de
discussão. Também, é possível identificar a entrada gradativa das mulheres em várias esferas
da sociedade, bem como a luta pela participação política, pela garantia de direitos e por um
espaço de escrita, como ser pensante e de capacidade intelectual propícia à construção e
divulgação do conhecimento. É nesse órgão de prestígio reconhecido na sociedade paraibana,
que o texto de Catharina Moura, proferido em conferência no Teatro Santa Rosa, aparece
transcrito em data posterior, assim como também aconteceu com os textos dos demais
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conferencistas, todos homens, que foram convidados para o debate da Universidade Popular.
Catharina Moura nasceu na Parahyba do Norte, em 20 de dezembro de 1882, filha de
Misael do Rego Moura e Francisca Rodrigues Chaves Moura. Fez os estudos primários e
secundários na Escola Normal Oficial, compondo a 11ª turma concluinte diplomada em 26 de
abril de 1902. Cursou o preparatório no Liceu Paraibano e em 1908 matriculou-se na
Faculdade de Direito de Recife, onde formou-se com láurea em 1912, ganhando também um
prêmio de viagem à Europa. No ano em que concluiu o curso, mais 13 paraibanos também o
fizeram, sendo Catharina Moura a única mulher da turma e a primeira paraibana a cursar a
Faculdade de Direito em Recife. Além da referida conferência, escreveu crônicas também
publicadas no jornal A União, sob o pseudônimo Paraguaçu. Foi professora da Escola
Normal, lecionando as cadeiras de Português, Desenho, Francês e História da Civilização,
sendo nomeada efetivamente para a cadeira de Português em 1917.
O debate sobre temas diversos encampado pela Universidade Popular ocorreu sob a
gestão do presidente João Pereira de Castro Pinto, político selecionado pelas oligarquias
locais como um nome de conciliação. Afora os embates políticos, Castro Pinto é tido pelos
estudiosos como um homem empático aos ideais modernos de educação alçados no cenário da
Primeira República no Brasil, representando o discurso liberal que propunha a transição das
tradições do Império para o projeto republicano. As conferências da Universidade Popular
reuniram políticos, intelectuais e educadores que deveriam apresentar o debate sobre os mais
diversos temas que compunham a preocupação daquele contexto, pondo em pauta questões
como cidade moderna, cultura da borracha, sindicatos agrícolas, higiene pública, instrução
pública, comércio, exército brasileiro, entre outros, numa diversidade temática tão grande que
parecia pretender dar conta de todos os assuntos que pudessem preparar a província para
entrar na modernidade. No meio desse ecletismo de interesses, apenas uma mulher, para falar
sobre os direitos políticos da mulher, Catharina Moura.
Catharina Moura inicia sua conferência dizendo que não é feminista e que, portanto,
não se deve esperar muito dela nesse debate para o qual foi convidada. Porém ao negar-se
feminista, faz questão de realçar a admiração pelas mulheres que assim se assumem na
sociedade, denominando-as de sublimes, impávidas e admiráveis, por ousarem lutar pela
emancipação feminina. De uma negativa de envolvimento com a temática, parte em seguida
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para o questionamento sobre os motivos da restrição de direitos políticos às mulheres,


ironizando a aceitação dessa situação por homens e mulheres. A ênfase do discurso recai
principalmente sobre o direito ao voto feminino, fazendo para isto uso da ambiguidade da
Constituição em vigor que não deixa claro se a mulher pode ou não votar. A falta de clareza,
segundo a conferencista, dá margem a interpretações equivocadas que pretendem deixar a
mulher restrita ao âmbito doméstico, apostando numa incompatibilidade entre ser do lar ou
ser política; é uma interpretação que revela “uma exuberante prova de egoísmo masculino,
quando não o for da ignorância que induz à crença absurda de que a mulher do lar doméstica
desaparecerá no dia em que surgir a mulher política” (A União, 1 de abril de 1913, p.1.).
Para a conferencista, os direitos políticos constituem assunto a que se tem dado pouca
importância, destacando que ao homem, pelo simples fato de ser homem, esse direito é
concedido, embora muitas vezes ele seja “mesmo ignorante, quase analfabeto, incapaz de
avaliar o valor moral e intelectual de um candidato”, em contraposição a que uma mulher por
mais inteligente, culta e prudente que seja não é reconhecida como capaz de votar.
A conferencista ironiza tal situação apontando a incoerência que ela representa:

Não desejo, não quero absolutamente eleger ou ser eleita, sinto, fugiria das urnas se
delas se pudesse o nosso sexo aproximar, mas julgo tão incoerente, tão em
desacordo com os progressos do século o modo por que entre nós é dado o direito de
voto político, que dificilmente contenho o riso quando em dia de eleição observo de
minha janela o movimento desusado das ruas, atulhadas de pobres matutos em cujas
mãos introduziram os chefes locais a patente de eleitor, fazendo-os repetirem, como
as crianças o padre nosso, o nome do candidato a quem vão dar seu voto consciente
e ponderado. (A União, 1 de abril de 1913, p.1).471

Além de chamar a atenção para o que considera incoerência – um analfabeto votar e


uma mulher culta e letrada não – a conferencista destaca uma outra prática comum no período
eleitoral que é o voto de cabresto, atentando para o uso do poder pelos chefes locais.
Outro ponto alto da conferência é a discussão sobre a tão propalada inferioridade,
aceita naturalmente pelos diversos setores da sociedade, com o aval do discurso médico. Na
contramão dessa tese, Catharina alega que se é possível se falar em inferioridade, isso decorre
da condição social de submissão histórica a que a mulher tem sido condicionada. Ou seja, se a
mulher não possui condições intelectuais para determinadas atividades deve-se atribuir tal fato

471
Optou-se por fazer a atualização ortográfica do texto.
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a sua condição social de falta de acesso à educação, e não como decorrência do seu sexo. 472
Embora acompanhe as demonstrações que a ciência tem feito em termos do tamanho
do cérebro feminino ter sido sempre inferior ao masculino, Catharina Moura levanta
argumentos que fragilizam tal teoria.
Suponhamos que, ainda mesmo de modo relativo, é certa essa inferioridade
fisiológica, como porém afirmar que psicologicamente suceda o mesmo? Por que
aceitar como certa a afirmativa sem base e hoje já tão combatida da fisiologia?
Quanto mais bem desenvolvido é o órgão maior a função?
Se há realmente uma inferioridade psíquica esta será a consequência da inferioridade
fisiológica ou será o reflexo da inferioridade social a que tem sido a mulher
condenada, isto é, a consequência da atrofia resultante da opressão hereditária
Ora impossível seria não sofrer atrofia um cérebro somente influenciado por fatores
todos negativos ao seu desenvolvimento, não aniquilar-se uma vontade sujeita,
desde as suas primeiras manifestações, à imposição de uma vontade oposta. (A
União, 2 de abril de 1913, p.2).

Ao longo da conferência, Catharina Moura lança mão não apenas do seu


conhecimento jurídico para questionar a posição da mulher brasileira quanto ao direito ao
voto, mas também desenvolve argumentos com base na história e no conhecimento de outras
sociedades consideradas mais evoluídas por já terem as mulheres se elevado, intelectual,
social e politicamente. É o caso do Estados Unidos, que a conferencista traz para
exemplificar.
Na argumentação, Catharina Moura destaca três aspectos importantes: primeiro que a
mulher educada pode exercer qualquer profissão; segundo que ser instruída e exercer
determinadas profissões não faz com que a mulher decline em sua moral, e por fim ao realçar
os postos que a mulher norteamericana vem ocupando, implicitamente aponta que a saída da
mulher do obscurantismo está na educação.
[...] Somente educando, instruindo a mulher poder-se-á evitar que ela continue a
propagar um tipo psíquico social inferior, fútil, quase infantil [...] sua elevação
intelectual e moral pela instrução e pela educação, num futuro, talvez não muito
remoto, há de trazer-nos a prova de que essa inferioridade do cérebro feminino, se é
que existe, não é uma qualidade inerente ao sexo, mas uma consequência necessária
das condições do meio [...]. (A União, 2 de abril de 1913, p.2).

Permitir o acesso à educação seria algo benéfico não apenas a própria mulher, mas
estender-se-ia à família e à sociedade. E ao contrário do que se temia, a mulher instruída

472
Discussão baseada em Machado, Nunes e Mendes, 2013.
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saberia valorizar muito mais o aconchego do lar, caso o tivesse. E para aquelas que não
dispusessem dessa condição, poderiam adentrar o mercado de trabalho, de forma honesta.
Conveniente educada para o lar como para a vida pública, para o sagrado aconchego
da família como para a luta social ou política pela existência, poder-se-á sem temor
alargar o círculo de seus direitos, igualá-los aos do homem, ampliar a sua atividade;
fazer ao sexo fraco as concessões feitas ao outro sexo, sem que isto traga à
sociedade ou à família mais que incalculáveis benefícios.
Uma prudente educação desenvolverá em seu espírito o apego ao lar doméstico,
cujos encantos saberá partilhar, argumentando-os; gozar, fazendo-os mais
apreciáveis e numerosos. Uma instrução variada permite-lhe a procurar no exercício
de qualquer profissão honesta os meios de subsistência, quando não lhe houver sido
possível construir um lar amigo ou quando tendo este faltarem-lhe no entanto
aqueles. (A União, 2 de abril de 1913, p.2).

A discussão sobre os direitos políticos da mulher e a necessidade de sua educação


passa a ser uma pauta bastante divulgada, no Brasil, nas décadas de 20 e 30 do século XX
com a criação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e suas filiais por diversos
estados brasileiros, com a presença emblemática de Bertha Lutz que assume a luta pelo direito
ao voto feminino, conquista política que seria legitimada na Constituição de 1934 e teria
como fulcro a necessidade de acesso à educação.
Pode soar estranho no meio de uma série de conferências com temas aparentemente
distantes dessa discussão, encontrar o texto de Catharina Moura problematizando uma questão
polêmica e incômoda para a sociedade da época, uma vez que tocaria em aspectos que
poderiam pelo menos arranhar o que se concebia como família e como atribuições
“naturalizadas” de seus membros. Por outro lado, é possível compreender essa inserção,
quando a elite política e cultural paraibana de então divulgava na imprensa um desejo de
colocar a Província na pauta da modernidade, cuja entrada não se faria sem a disseminação da
instrução, e no caso específico como em outras sociedades já vinha se falando, sobre a
necessidade de tirar a mulher do seu lugar de ignorância, alçando-a à condição de sujeito
desse processo educativo.
Todavia essa preocupação com a educação da mulher como fator que a aboliria sua
condição de inferioridade, embora localizada e limitada, não era algo tão recente, e foi o norte
da vida de uma outra brasileira que ainda na primeira metade do século XIX, estreia como
escritora, aos 22 anos de idade, com o livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens
(1832). Trata-se de Dionísia Gonçalves Pinto que assumirá o nome Nísia Floresta Brasileira
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Augusta e passará a ser conhecida por Nísia Floresta.


Nascida a 12 de outubro de 1810, do casal Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa, advogado
português, e Antônia Clara Freire, no sítio Floresta, município de Papari, no Rio Grande do
Norte, aos 13 anos Nísia casa-se com Manuel Alexandre Seabra, fazendeiro, com quem vive
menos de um ano. Em 1924, a família muda-se para Pernambuco, morando em Goiana,
Olinda e Recife, sucessivamente. Como consequência do ganho de uma causa na justiça, o pai
de Nísia é assassinado, em 1828, certamente sob a responsabilidade de quem se sentiu
prejudicado com tal causa. Em 1828, Nísia passa a morar com o estudante de Direito Manuel
Augusto de Faria Rocha, sendo seus filhos Lívia Augusta de Faria Rocha e Augusto Américo
de Faria Rocha, além de um filho morto prematuramente. Manuel Augusto morre aos 25
anos, em 1833, em Porto Alegre, onde a família passara a morar desde o ano anterior. Após a
morte do companheiro, Nísia decide permanecer nessa cidade. Neste mesmo ano, sai a
segunda edição da obra citada acima. Com uma produção significativa que enfoca
principalmente questões ligadas à educação da mulher, como Conselhos à minha filha, por
exemplo, interessa aqui destacar a obra já anunciada acima Direitos das mulheres e injustiça
dos homens. 473
Segundo Duarte (2008), esse livro, que traz junto ao título a informação de tratar-se de
uma “tradução livre” do livro Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft,
além de ser a obra de estreia de Nísia Floresta, marca o pioneirismo da autora, mas é muito
mais do que uma tradução, já que a autora adapta-o à realidade brasileira
Todavia, existe uma outra opinião a este respeito. Segundo Campoi (2011), a
pesquisadora em literatura Maria Lúcia Garcia Pallares Burke (1996) aponta que:
[...] o texto de Nísia Floresta é uma tradução do livro de Sophie, pseudônimo de
Mary Wortley Montagu (1689-1762), que escreveu Woman not inferior to man, em
1739. Montagu, por sua vez, inspirou-se (chegando até a plagiar certos trechos) no
livro De l´egalité des deux sexes, de François Poulan de La Barre, publicado em
1673. Polemizando a respeito, Pallares-Burke chama a atenção para a prática comum
do plágio no contexto literário do século XVIII. (CAMPOI, 2011, p. 198).474

473
Para saber mais sobre Nísia Floresta, consultar Duarte (2008)
474
Embora se apresente essas duas opiniões distintas, não há interesse neste texto em discutir a questão. Também
o Dicionário de mulheres do Brasil apresenta a informação da tradução livre, possivelmente endossando a
posição inicial de Constância Duarte, uma das referências para o verbete. O livro de Constância Duarte a que
tivemos acesso é a segunda edição de 2008; a 1ª edição é de 1995. Mas em um texto de 2003, a autora faz uma
apresentação diferente da que está no livro: “[...] Este livro, inspirado principalmente em Mary Wollstonecraft
(Nísia declarou ter feito uma “tradução livre” de Vindication of the rights of Woman), mas também nos escritos
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Segundo Duarte (2008, p. 148), Nísia Floresta, ao dirigir seu livro às brasileiras e aos
jovens acadêmicos visa alertar a sociedade sobre a situação injusta a que estava confinada a
mulher brasileira e interferir nessa configuração da inferioridade feminina que era imbricada
“no costume, no interesse e no preconceito [...]”(grifos da autora)
Em um tom polêmico e filosófico, Nísia Floresta vai questionando a propalada
inferioridade feminina versus a superioridade masculina, procurando inverter essas posições,
colocando a mulher numa posição mais elevada que o homem, provocando ironicamente os
homens ao referir-se aos mesmos como inimigos, invejosos ou pouco generosos:
Se este sexo altivo quer fazer-nos acreditar que tem sobre nós um direito natural de
superioridade, por que não nos prova o privilégio, que para isto recebeu da Natureza,
servindo-se de sua razão para se convencerem? [...] (FLORESTA, 1989, p. 24)

Embora no contexto em que Nísia se situa não houvesse a discussão ou a utilização da


categoria gênero, é importante observar que o tom provocativo, irônico e até de zombaria que
o seu texto assume, certamente incomodaria a muita gente, porque apontaria para uma
mudança ou uma fratura nas relações de poder em diversas esferas da sociedade. Tal ideia nos
remete a Scott quando discute que a categoria gênero é uma referência recorrente para
conceber, legitimar e criticar o poder político. A visão binária do gênero que coloca em
oposição o homem e a mulher, naturalizando essa situação tem servido a grandes questões na
política, nos temas referentes à guerra e à diplomacia. Gênero, nesse caso precisa ser uma
referência fixa e naturalizada. Assim, por em xeque um aspecto desse sistema pode
representar uma ameaça ao sistema como um todo. (SCOTT, 1989)475. É possível imaginar a
celeuma que o texto de Nísia Floresta deve ter provocado!
O conceito de gênero que Scott aponta vai no sentido contrário dessa rigidez, do que
está dado como definitivo. Para a estudiosa, as significações de gênero e poder estão atreladas
e se constroem reciprocamente, e para que esse processo se altere são necessárias rupturas,

de Poulain de la Barre, de Sophie, e nos famosos artigos da “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”,
de Olympe de Gouges, deve, ainda assim, ser considerado o texto fundante do feminismo brasileiro, pois se trata
de uma nova escritura ainda que inspirado na leitura de outros”( DUARTE, 2003, p.153 – negritos nossos e
demais destaques da autora)
475
Disponível em:
http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf.
Acesso em 19/10/2015.
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crises, mudanças estruturais, renovações simbólicas, novas interpretações, construção de


outras subjetividades e principalmente lutas políticas.
Em relação às mulheres, principalmente as que têm se destacado, por algum motivo,
da maioria, costuma-se dizer que é “uma mulher à frente de seu tempo”. Equívoco que tem a
pretensão de enaltecer a destinatária de tal afirmativa. Mas, as mulheres que se sobressaíram
na discussão sobre os direitos femininos ou se envolveram em lutas e movimentos visando à
alteração da situação feminina, são sujeitos completamente vinculados às problemáticas, às
ideias, à cultura e aos valores de seu tempo.
Nessa perspectiva, Nísia Floresta, a partir da identificação dos pontos fulcrais que no
Brasil constituem a inferioridade feminina, elabora um discurso em que estes elementos são
trabalhados argumentativamente. Para isto, inspirada no ideário iluminista, mune-se de
conceitos filosóficos em voga, como o ideal de dignidade e o valor do ser humano, a moral, a
razão e a virtude, bem como da Doutrina Utilitarista, segundo a qual “[...] as ideias,
instituições e atos humanos adquiriam valor segundo sua utilidade e por utilidade
compreendia a capacidade de produzir felicidade ao maior número de pessoas. (DUARTE,
2008, p. 150). Para Duarte, Nísia Floresta elabora sua argumentação estabelecendo a relação
entre valoração da pessoa e sua utilidade, para definir o merecimento:
Tal afirmação reflete uma realidade permanente na maior parte das sociedades em que
as mulheres sempre foram consideradas seres inferiores, de menor importância, localizadas no
âmbito doméstico, a quem tem sido destinadas tarefas de pouco prestígio, porque associadas
ao privado em oposição ao público, o lugar do homem. Em decorrência desse estado de
coisas, a insatisfação feminina ia aparecendo, no começo por meio de vozes isoladas e
audaciosas, e posteriormente foram surgindo as organizações, os movimentos em prol dos
direitos femininos. No Brasil, Nísia Floresta, em seu tempo, pode ser considerada uma dessas
vozes, corajosa, em tratar de assuntos escamoteados das discussões, tinha consciência de que
nada era favorável às mulheres em termos de alteração naquilo que se esperava dela, sabia da
situação de opressão e de isolamento a que grande parte das mulheres estava submetida, mas
ao mesmo tempo compreendia que a mulher tinha um papel importante a desempenhar dentro
daquele contexto. Assim desenvolve uma retórica na qual a ironia e o sarcasmo também dão a
tônica, chegando muitas vezes a polemizar, embora faça questão de assinalar que não
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pretende provocar ou fazer parte de nenhuma revolução.


Nísia Floresta quer provocar a reflexão dos homens a respeito da igualdade com que a
natureza apresenta os dois sexos. Em suas palavras, a opressão da mulher pelo homem só
cessará quando este tiver essa percepção:
Em uma palavra, se os homens fossem Filósofos (tomando esta palavra em seu
rigor) descobririam facilmente que a Natureza constitui uma perfeita igualdade entre
os dois sexos. Mas como há poucos que sejam capazes de um pensar tão abstrato,
nenhum direito têm mais que nós, de serem juízes nesta matéria, e por consequência,
necessitamos de recorrer a um Juiz menos parcial, incapaz de deixar-se prevenir por
alguma das partes e, por conseguinte irrecusável. [...] Enquanto eles não chegarem a
esse ponto de equidade, as pechas imaginárias com que eles têm oprimido o nosso
sexo e que se alguma aplicação têm, não podem recair mais que sobre um pequeno
número dentre nós, que não me proponho justificar, não passarão senão como
pequenas sutilezas a cuja sombra querem fazer passar as suas (FLORESTA, 1989, p.
31).

O acesso à educação e ao conhecimento, segundo Nísia Floresta, daria à mulher as


condições de ocupar quaisquer cargos, em pé de igualdade com os homens, ou até de modo
mais competente que estes. Se esta condição até então não havia sido proporcionada às
mulheres, era decorrente muito mais da própria insegurança dos homens, do medo de
competir, do que pela tão propalada incapacidade do cérebro.
Nada seria tão admirável para eles, que imaginar uma mulher combatendo à frente
de um exército, dando leis sobre o trono, advogando causas, administrando justiça
em um Tribunal de magistratura, marchando pelas ruas precedida de espadas, lança
e outros sinais de autoridade como os Magistrados; ou ensinando Retórica,
Medicina, Filosofia, ou Teologia, na qualidade de professora de uma Universidade
[...] por um pouco que se considere as mulheres como criaturas racionais e se afaste
por um momento as desvantagens, que a sua usurpação injusta e tirânica tem
lançado sobre elas, ver-se-á que são pelo menos tão capazes como eles, de
preencher aquelas funções (FLORESTA, 1989, p. 64-65- grifos nossos).

No texto de Nísia Floresta, assim como no de Catharina Moura, os homens aparecem


sempre, como aqueles que determinam as regras de comportamento, como aqueles que
oprimem, como aqueles que estão satisfeitos com a situação vigente, como aqueles que não
querem de sair de sua zona de conforto. Raros eram os que se aliavam para lutar com as
mulheres a fim de que estas pudessem ocupar os mesmos espaços que eles. Se essas autoras
em suas obras tiveram como preocupação básica a condição feminina, ao trazer à tona a
mulher, junto vem o homem. Por seus escritos ficamos sabendo a posição dos homens de
então a respeito do que se esperava da mulher e deles mesmos. Pelos seus escritos é possível

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compreender as relações de gênero e entrelaçadas às relações de poder.


Para Nísia Floresta, toda a diferença vivenciada pelos dois sexos é decorrente da
educação.
Todos sabem que a diferença dos sexos só é relativa ao corpo e não existe mais que
nas partes propagadoras da espécie humana; porém, a alma que não concorre senão
por sua união com o corpo, obra em tudo da mesma maneira sem atenção ao sexo.
Nenhuma diferença existe entre a alma de um tolo e de um homem de espírito, ou de
um ignorante e de um sábio, ou a de um menino de quatro anos e um homem de
quarenta. [...]. Toda sua diferença, pois, vem da educação, do exercício e da
impressão dos objetos externos, que nos cercam nas diversas circunstâncias da
vida.”. (FLORESTA, 1989a, p.47).

Pensamento semelhante apresenta Catharina Moura ao final de sua conferência:

Eduque-se o ser humano sem distinção de sexo, faça-se com que a mulher adquira
aptidão legal e intelectual para o exercício de toda e qualquer profissão, de modo a
pô-lo em prática, sendo esse exercício necessário ou não havendo um impedimento
material ou moral que a prive dele. Esse impedimento pode muito bem ser o
cumprimento dos deveres de esposa e mãe, dos deveres domésticos enfim, mais
doces e agradáveis sem dúvida que quaisquer outros deveres profissionais. (A
União, 2 de abril de 1913, p.2)

Como se pode perceber, as duas escritoras, após um debate que tem em vista
desconstruir a disseminada inferioridade feminina e mostrar quão importante seria que a
mulher tivesse acesso à educação e outros direitos, optam, ao final, por destacarem a
importância do papel que a mulher vinha exercendo em consonância com os desejos e
determinações da sociedade de seu tempo. Contradições? Táticas? Recuos? Outras leituras
poderão contribuir para o esclarecimento dessas questões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura dos textos de Catharina Moura, publicado em 1913, e de Nísia Floresta,
publicado em 1832, apontam para a permanência da subalternidade da vida feminina entre os
séculos XIX e XX no Brasil: a restrição de direitos políticos, a vida circunscrita ao espaço
privado da casa, a falta de acesso à educação e a justificativa para a permanência nessa
situação decorrente de uma naturalizada inferioridade física “consequentemente” psíquica. As
duas mulheres ora destacadas que podem ser colocadas como porta-vozes dos anseios e
insatisfações de suas irmãs de sexo, são exceções que tiveram as condições de acesso ao
conhecimento negadas à maioria das mulheres de seu tempo. Elas mesmas poderiam se
colocar como exemplo de como a educação, a instrução pode fazer a diferença. Seus escritos
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revelam uma aguçada capacidade de articulação de ideias e de construção de argumentos só


possível por fazerem parte de um grupo reduzido de pessoas que tinham acesso à instrução,
sabiam ler e escrever, eram possuidoras de um acervo cultural que lhes possibilitou destacar-
se não apenas entre as mulheres, mas também em meio aos homens cultos de seu tempo.
Embora a publicação dos textos aconteça no decorrer de dois séculos, prevalecem as
semelhanças das questões apresentadas como necessárias à emancipação feminina, o que
significa uma luta persistente e árdua no tempo da história moderna, em que a mulher oscilou
entre a invisibilidade e a subvalorização histórica, e a luta individual ou coletiva em busca do
espaço político e social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Floresta: literatura, mulheres e o Brasil do século XIX. História (São Paulo) v.30, n.2, p. 196-
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ilustrado. Coordenação geral Schuma Schumaher. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2000.
DUARTE, Constância. Feminismo e literatura no Brasil. Estudos Avançados, 17 (49), 2003,
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DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta – vida e obra. 2 ed. Revista.Natal/RN: EDUFRN
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FLORESTA, Nísia. Direitos das mulheres e injustiça dos homens. 4.ª ed. São Paulo:
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MACHADO, Charliton José dos Santos; NUNES, Maria Lúcia da Silva; MENDES, Márcia
Cristiane Ferreira. Catharina Moura e o feminismo na Parahyba do Norte. Fortaleza:
Edições UFC, 2013.
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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica.(19890 Tradução Christine
Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. Disponível em:
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Joan%20Scott.pdf. Acesso em 19/10/2015.
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PARTIDO FEMINISTA NO BRASIL – A POLÍTICA FORMAL SOB A


PERSPECTIVA FEMINISTA E A EFETIVIDADE DE DIREITO À PARTICIPAÇÃO
POLÍTICA

Francineide Marques* | francineidemarques@gmail.com

INTRODUÇÃO

A participação política de mulheres como representante do povo na esfera do Poder


Legislativo no exercício do direito à organização partidária em cargos de presidência ou como
fundadoras de partidos políticos é historicamente muito pouco expressiva.
Facilmente pode-se verificar que dos 34 (trinta e quatro) Partidos Políticos inscritos no
TSE – Tribunal Superior Eleitoral apenas 04 (quatro) são presididos por mulheres (BRASIL,
2015).
Ao investigarmos as propostas de criação dos Partidos Políticos existentes no Brasil,
cujas propostas de criação tenham sido presididas por mulheres, encontramos apenas o
Partido Socialismo e Liberdade - PSOL, com proposta encaminhada pela então senadora
Heloisa Helena; a Rede Sustentabilidade cuja presidência era da ex-senadora, Marina Silva e
o Partido da Mulher Brasileira – PMB que foi criado em 29.9.2015 sob a presidência de Suêd
Haidar Nogueira. (TSE, 2015).
De logo se pode ver que o espaço político de criação e discussão em Partidos Políticos
não tem sido, efetivamente, ocupado pelas mulheres. Essas estatísticas nos mostram a tímida
participação política formal das mulheres brasileiras nas instâncias de poder político e
revelam a amplitude do alijamento da presença das discussões das temáticas que afetam às
mulheres.

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Mas, aqui, de logo se indaga: uma vez que o quantitativo de mulheres é tão ínfimo
nessas instâncias de discussão e poder, quem levanta os debates em torno dos direitos das
mulheres?

DESENVOLVIMENTO

A experiência brasileira tem mostrado que o movimento feminista vem exercendo


continuadamente uma das suas premissas que é encampar a luta pela defesa “[...] dos
interesses de gênero das mulheres, por questionar os sistemas políticos e culturais construídos
a partir dos papéis de gênero direitos a partir dos papéis de gênero historicamente atribuídos
às mulheres pela definição de autonomia em relação a outros movimentos, organizações e ao
Estado, e pelo princípio organizativo da horizontalidade, isto é, da não-existência de esferas
de decisões hierarquizadas” ( ÁLVAREZ, 1990, p. 23 apud Ana Alice Costa, 2005, p. 11).
Problematizar as formas de enfrentamento encontradas pelas mulheres feministas para
inserir na agenda política nacional as temáticas relativas aos interesses de gênero e à proteção
dos direitos humanos das mulheres têm demandado reflexões que se inserem no campo da
participação política partidária, vez que as políticas públicas são imprescindíveis para que o
feminismo enquanto um movimento social veja a efetivação das suas demandas.
Sabe-se que as políticas públicas necessitam da atuação de parlamentares e
governantes para que sejam criadas e implementadas, pois são efetivadas mediante a edição
de leis e toda a tramitação burocrática que possibilite a implementação da ação política
destinada à modificação das situações de desvantagem nas relações de gênero.
Então se pensarmos na imprescindibilidade das políticas públicas e da atuação política
partidária para que essas leis que garantem a criação dessas políticas são apresentadas,
discutidas e votadas pelo poder legislativo e executivo (poder onde se concentram os cargos
políticos), fica fácil perceber que esse espaço de decisão precisa de representantes dos mais
distintos segmentos sociais para que as políticas possam atender à diversidade das agendas
para que sejam contempladas as diferenças no sentido de permitir a igualdade de
oportunidades sociais, econômicas, culturais e das mais diferentes ordens, considerando-se
que o estado brasileiro é democrático.
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Portanto, visualizar a participação política formal por mulheres que aceitem o desafio
de fazer política partidária como ocupação de uma das instâncias do poder pode nos levar a
pensar que esse espaço político partidário pode ser ocupado por mulheres feministas.
Mas, analisando-se o nosso histórico de política partidária como exposto
anteriormente, percebemos que essa prática cultural – exercer cargos políticos – não tem sido
um meio da participação política das mulheres que sempre enveredaram por outras formas de
fazer política, e quando amadureceram a sua atuação política desafiando esses espaços de
poder hegemonicamente masculino questionaram e essa forma de fazer política e se
mantiveram como movimento social que expõe as suas demandas, pressiona pelo atendimento
da sua agenda, mas não se propõe a fazer parte de um partido político por considerarem,
muitas vezes, que essa estrutura partidária de fazer política não atende à forma desejada pelo
feminismo.
Conquanto sejam feministas brasileiras jamais propuseram a formação de um partido
político que viesse a ser uma reunião de feministas dispostas a enfrentar nas plenárias, como
parlamentares, a defesa das suas bandeiras compondo as Casas legislativas e os cargos do
Executivo como representantes do povo brasileiro e das demandas específicas dos direitos das
mulheres.
Mas, o que tem impedido movimento feminista fundar um partido político e
demandar, de per si, as suas demandas específicas, uma vez que já se faz isso quando se
angaria o apoio de parlamentares deste ou daquele partido?
O que significa a formação de um partido político na luta pelas demandas políticas em
âmbito nacional?
Essas questões nos mobilizam para refletir sobre a questão da autonomia dos
movimentos sociais, mas também para a questão da autonomia de uma política a partir de
uma visão e estrutura feminista.
Criar um partido, gerenciá-lo, administrá-lo e colocá-lo em disputa direta com os
partidos que são criados desde uma outra perspectiva não feminista é mostra-se um
enfrentamento que não estamos acostumadas a ver.
Conquanto o movimento feminista tenha se preparado para enfrentamentos de diversos
setores da sociedade, a falta de iniciativa da criação de um partido político que possa
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congregar e facilitar a luta política que poderia se dar de forma mais direta e ostensiva com a
participação no processo eleitoral formal e com a possível eleição de uma bancada feminista
não parece empolgar.
Problematizamos esse não estar presente na política partidária de forma autônoma,
pois ao tempo em que parece ser uma opção de atuar politicamente mediante a sensibilização
de parlamentares de bancadas diversas, também podemos pensar que a falta de criação de um
partido feminista pode representar a falta de autonomia imposta pela milenar ausência das
mulheres nesses espaços de poder.
Se pensarmos, ainda, que há partidos que também surgiram de movimentos sociais
(Partido dos Trabalhadores, Partido Comunista, Partido da Sociedade Liberdade e outros)
podemos – ultrapassada a estranheza da criação de um Partido Feminista - seguirmos
pensando que nada há de tão estranho assim, pois os movimentos sociais uma vez crescidos e
amadurecidos leva à participação política cada vez mais crescente.
Que os movimentos sociais são berços de aprendizagem do quefazer político e que a
prática militante fortalece o empoderamento político não se faz novidade.
Recentemente a história brasileira pôde assistir não só a eleição, mas a reeleição de um
trabalhador militante na Presidência da República, assim como também pudemos ver a
reeleição de uma mulher militante política no mais alto posto político da Presidência do país.
É dizer que os movimentos sociais podem se configurar como espaços de formação e
educação política suficientes ao rompimento de barreiras sociais e econômicas que
possibilitam a conquista de espaços onde se pode exercitar a ação política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da necessidade de um projeto político feminista não se tem dúvidas, pois não como
negar que o estado moderno pode influenciar a sociedade de uma forma difusa, não só com a
utilização do seu poder coercitivo, mas também com as estruturas políticas e sociais (COSTA,
2005, p.17).
Assim, a criação de um partido político feminista pode ser uma alternativa para que as
bandeiras de luta e as pautas do movimento feminista possam ser encaminhadas diretamente
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no Congresso Nacional, nas instâncias estaduais e municipais, pois conquanto estruturado em


outras premissas de autuação, o movimento feminista tem buscado as transformações sociais
mediante pressão para que políticas públicas sejam criadas no intuito de viabilizar a cidadania
plena.
Como alternativa apresentada nos últimos meses pudemos ver o empenho na criação
do #partida que se autointitula feminista e se declara querer fazer parte da estrutura partidária
brasileira no intuito de possibilitar uma outra forma de fazer política utilizando-se como
substrato outras premissas, quais sejam as premissas do feminismo para radicalizar a
democracia, conforme se pronunciou a filósofa Marcia Tiburi, uma das idealizadoras do
#partida : “os partidos ainda acreditam que as mulheres possam estar ali na forma de cotas,
que elas possam fazer o feminismo da mesma forma subalterna, secundária e inessencial em
relação ao que significa a proposta socialista, por exemplo, no caso da esquerda.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIFCAS

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rev. Téc. Adriano Correia.
11a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
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Senado Federal, 1988.
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Edições, 2011. Consciência em debate/Coordenadora Vera Lúcia Benedito.)
COSTA, Ana Alice. O movimento feminista no Brasil: dinâmicas de uma intervenção
política. 2005.
CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 9ª ed. São
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CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. In: Crítica y emancipación: Revista latinoamericana
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junho de 2014 às 15:51.


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Estado patriarcal. In SASSOON, Anne (org) Las mujeres y el Estado. Madrid: Vindicación
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FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. 8. ed. São Paulo: Ática, 2005.
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TRAJETÓRIAS FEMININAS: EXPERIÊNCIAS E RESISTÊNCIASÀ DITADURA


CIVIL-MILITAR BRASILEIRA

Tatianne Ellen Cavalcante Silva | tatianneecs@gmail.com


Maria do Socorro da Silva Medeiros | msr_medeiros@hotmail.com
Dayane Nascimento Sobreira | dayanesobreira26@gmail.com

INTRODUÇÃO

No ano de 1964, o governo do presidente em exercício, João Goulart, sofre um golpe


de Estado. Os militares com apoio de parte da classe média, da ala conservadora da Igreja
Católica e de algumas outras instituições instauram uma ditadura civil-militar no país esta que
por sua vez, vinha sendo gestada, e após sua instauração, vinte e um (21) anos se passaram até
que tal sistema fosse derrubado.
O ano de 1968 é um marco no Brasil e no mundo, em decorrência das grandes
manifestações e contestações que acontecem nos países da Europa e da América Latina. As
grandes movimentações eram organizadas por estudantes secundaristas e universitários, por
professores e políticos contrários ao sistema ditatorial e repressivo que o país vivenciava.
Ainda no ano de 1968, outro fator, de extrema importância se constitui, é deflagrado o Ato
Institucional de Número-5 (AI-5), conhecido como o “golpe dentro do golpe”, pois este
concede plenos poderes ao Presidente da República e retira o poder do Congresso Nacional.
Estudantes, professores, políticos e simpatizantes de grupos de esquerda que lutassem
contra o sistema ditatorial, passaram a ser perseguidos e chamados de subversivos. É nesse
contexto que várias militantes políticas são perseguidas em seus estados e cidades à exemplo
de Nancy Mangabeira Unger e Vera Rocha Dauster, foco desta pesquisa. Mulheres estas que

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migraram para o estado de Pernambuco, centro de efervescência política no Nordeste e


acabaram sendo presas pelo DOPS (Departamento de Ordem Político e Social) sendo
posteriormente levadas à Colônia Penal do Bom Pastor.
A Colônia Penal do Bom Pastor localiza-se na cidade do Recife/PE, é assim nomeada
no ano de 1943 quando a Ordem Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor, assume a
responsabilidade pela educação e disciplinarização de presas que fossem levadas à Colônia. É
no ano de 1969 que temos o primeiro registro de presas políticas na instituição. A Colônia se
difere das demais utilizadas para repressão e tortura, por funcionar em caráter de “recuperação
social” dos sujeitos a fim de reinseri-los na sociedade.
Para pensarmos as trajetórias militantes destas mulheres lançamos mão de um corpus
documental composto de depoimentos dados por elas e contidos nos extras do documentário
“Vou Contar para Meus Filhos” da cineasta Tuca Siqueira, produzido no ano de 2011, com
apoio do projeto “Marcas da Memória”. E os prontuários individuais do DOPS-PE sobre o
período em que estas foram presas.

NANCY E VERA: A MILITÂNCIA E O TECER DE UMA VIDA CLANDESTINA

Nancy Mangabeira Unger, carioca, filosofa, hoje professora universitária e ex-


militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Começou a ter contato
com as reivindicações sociais ainda na escola e indo às passeatas. No ano em que entra para a
Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro, um fato marcante choca o país, a morte de Edson
Luís.476 O ano de 1968 foi de muitas manifestações e passeatas, a luta contra o regime militar
ganhava corpo, com as multidões nas ruas. Para frear esse momento de efervescência o
aparato repressivo tornava-se cada vez presente nas ruas e a repressão tomava níveis
institucionais. Com a criação dos vários Atos Institucionais e decretos, a exemplo, do
Decreto-Lei Nº 477 de 26 de Janeiro de 1969, que em suma consistia em punir com dispensa,

476
Edson Luís era um estudante secundarista. Foi assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, no dia 28
de março de 1968, este jantava no Restaurante Calabouço no momento quem a polícia invadiu o local, que era
conhecido por ser o reduto de estudantes.
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demissão ou proibição os professores, funcionários ou alunos que tivessem vínculo com


instituições federais e que praticassem atividades consideradas subversivas.477
Com o maior cerceamento dos direitos civis e o aumento de prisões, muitos dos
estudantes como Nancy passaram a entrar para organizações que propunham atos
revolucionários e acreditavam que a derrocada da ditadura civil-militar só se daria a partir da
luta armada. É neste cenário político-social que Nancy entra no PCBR. No fim de 1969,
grande parte de seus/as companheiros/as de partido haviam sido presos/as. A clandestinidade
era então a forma de tentar manter-se minimamente segura. Mudar de nome, de naturalidade,
idade, profissão e na maioria dos casos de cidade, estado. Como escreveu o poeta
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta (GULLAR, 2004, p. 234)

Ferreira Gullar, em “Poema Sujo”, escrito em 1975. Expressa em palavras as


dificuldades do ser/estar clandestino/a. O que nos leva a perceber também a força criativa que
este movimento de tornar-se outra, múltipla de “cara e cabelos” traz a estas mulheres e
homens que entraram na clandestinidade. Mesmo que com outra carteira de identidade,
mesmo que com outros nomes, abandonando características identitárias com as quais amigos

477
Ver: Decreto-Lei Nº 477, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0477.htm. Acesso
em 10 de outubro de 2015.

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e familiares lhes reconhecem, sobreviver só foi possível para muitas/os em decorrência de tal
prática.
(Re)configurar a vida, para que essa não se esvaísse nos porões da ditadura, não foi
uma atividade enveredada apenas por Nancy. Vera Rocha Dauster, cearense, formada em
sociologia, hoje trabalha na área de publicidade e ex-militante do PCBR. Vera inicia sua
militância na Juventude Estudantil Católica (JEC), movimento ligado a Ala Progressista da
Igreja Católica, com forte representação no Ceará, Paraíba e Pernambuco (LEITÃO 2013).478
Com os ânimos cada vez mais acirrados, as formas de militância, também passaram
por modificações. Cada vez mais organizações surgiam e traziam como seus lideres os
revolucionários de esquerda que conseguiram implantar em outros países o sistema socialista,
Lênin, Stalin, Trotsky, Mao Tse-tung, Fidel Castro, Che Guevara e os teóricos Marx e Engels
são considerados “heróis” a ser seguidos.
É nessa vertente ideológica e de leitura teórica que Vera Rocha Dauster vai enveredar.
Quando se afasta do movimento estudantil secundarista, onde era muito atuante e chegou a ser
presidente do Centro dos Estudantes Secundaristas do Ceará (CESC), e passa a integrar o
Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT).
Por ser uma líder conhecida no Ceará, por seu engajamento na luta junto ao
movimento estudantil, no pós - AI-5, quando a repressão e a censura tomam conta do Brasil,
Vera entra na clandestinidade. Ao entrar na clandestinidade e com todas as modificações de
vida que esta traz na maioria dos casos o caminho a ser seguido é o de ingressar na luta
armada. Assim, Vera entra para o PCBR. Passando a ter uma vida muito movimentada e com
novos aprendizados, o partido tinha como linha de luta a guerrilha urbana, para tanto se fazia
necessário o treinamento militar, como nos lembra Vera:
Fazíamos treinamento que nós chamávamos de militar, que não passava de um
treinamento de aprender a atirar, pegar numa armar, se arrastar no campo, saber
como é que a gente fugia numa situação de maior dificuldade e fazer ações de
guerrilha urbana que permitisse que a gente angariasse fundos pra continuar a nossa
luta. (Depoimento de Vera Rocha Dauster para documentário “Vou Contar Para
Meus Filhos”)

478
No Ceará Dom Antônio Fragoso era forte representante da Ala Progressista da Igreja Católica, bem como
Dom José Maria Pires e Dom Helder Câmara na Paraíba e em Pernambuco, respectivamente.
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No final dos anos de 1969, com o clima de insegurança ainda maior Nancy
Mangabeira Unger e Vera Rocha Dauster mudam-se para o Estado de Pernambuco, passando
a morar na cidade do Recife. Este é mais um artifício dos que estão na clandestinidade, traçar
de novos percursos cartográficos, que tem como principal objetivo sair do espaço onde se é
conhecido, visado enquanto militante e passar a viver em outro espaço, de rostos
desconhecidos, rotinas diferentes. A clandestinidade então se configura enquanto burla aos
órgãos de repressão. É a prática do resistir, pois resistir é criar como nos aponta Deleuze
(2004), criar formas de viver, de existir.
Passando a morar no Recife para ajudar na militância da organização em Pernambuco.
As trajetórias de Nancy e Vera se cruzam. Saindo do Rio de Janeiro e do Ceará, são
destinadas a continuar a militância, dividem o aparelho com Francisco de Assis Barreto da
Rocha Filho, conhecido como Chico de Assis. 479 No aparelho cerca de 30 homens fizeram o
cerco policial, e Nancy, Vera e Chico (já conhecido no Recife e procurado pela policia) são
presos.
Resistindo a prisão, travam embate com das armas de fogo e queimam documentos do
partido para que as informações contidas nestes virem cinzas e não cheguem às mãos dos
repressores. Como já previa a lógica estatística, no confronto entre 30 homens fortemente
armados e 03 pessoas munidos de apenas 2 armas, o cerco foi bem sucedido e as duas
militantes e o militante que se encontrava na casa foram presos. Na ação, Nancy foi baleada,
resultando na perca do polegar direito, perfuração no fígado, pulmão e diafragma.
Enquanto Vera Rocha Dauster e Chico de Assis eram levados ao DOPS-PE, Nancy
Mangabeir Unger foi levada ao Pronto Socorro de Recife. Vera e Chico encontraram a
brutalidade e violência. “Chico começa a apanhar ainda no camburão” 480
foi torturado e
interrogado. Vera em depoimento ao documentário já citado, diz ter sido levada para o DOPS-
PE onde começou a tortura e o interrogatório, porém não fala das torturas sofridas por ela,
preferindo assim citar três companheiros de partido que foram torturados e assassinados pelo
sistema repressivo da ditadura. 481

479
Casa ou apartamento alugado que servia de moradia e/ou esconderijo para os militantes que se encontravam
na clandestinidade.
480
Depoimento de Vera Rocha Dauster para documentário “Vou contar para meus filhos.”
481
Nomes citados: Mário Alves, Odijas Carvalho, Ramires Maranhão do Valle.
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Nancy, em contrapartida, encontrou a solidariedade daqueles que não eram militantes,


em participavam de organizações de esquerda, mas que não concordavam com os modos de
agir dos militares. Ao dar entrada no Pronto Socorro - PE, tendo grande perda de sangue e
encontrando-se no estado de anemia aguda, foi atendida por médicos e enfermeiros que se
utilizaram da ciência e da solidariedade para salvar sua vida. Sem parentes no estado, com
amigos presos e não podendo dizer o nome dos companheiros que se encontravam em
liberdade, ao ser indagada, pelo médico sobre quem deveria avisar sobre seu estado de saúde,
Nancy diz o nome de sua mãe.
A notícia chega ao Rio de Janeiro a Edila Mangabeira Unger (mãe) levada por Dom
Helder Câmara. Vindo para Recife, Edila consegue fazer com que noticia sobre a prisão dos
três sai nos jornais. O que é vital para quem era preso e levado para o DOPS. O
desconhecimento dos civis das prisões possibilitava que muitos fossem assassinados e não
fosse produzido nenhum registro sobre a prisão, o que tornava o estado isento de
culpabilidade. Com a publicização das prisões esta era imediatamente legalizada, compondo
todo o aparato judicial, para a abertura do inquérito.482
Sem conseguir visitar sua filha no hospital, Nancy e Edila contaram novamente onde
a solidariedade daqueles que ali trabalhavam. No dia 27 de agosto de 1970, aniversário de
Nancy, sua mãe lhe faz um poema narrando o amor de uma mãe pelos filhos. Sem que a carta
pudesse chegar à endereçada, um enfermeiro, que fazia os curativos de Nancy, decora o
poema e declama para ela enquanto troca os curativos, de modo a não ser percebido pelos
policiais que faziam a guarda do quarto da internada e presa política.
Esses são encontros que potencializam a vida, a existência. São “potências positivas”
como nomeia Deleuze (1997) ao contrário do que passou Vera no DOPS-PE onde encontrou
as “servidões diminutivas” que diminuem as alegrias. Neste caso gerando o medo, a dor, as
torturas físicas e psicológicas.

COLÔNIA PENAL DO BOM PASTOR: AS EXPERIÊNCIAS NA PRISÃO

482
Sobre o aparato judicial e o sistema de montado pelo DOPS, ver: SILVA, Marcília Gama. Informação,
repressão e memória: a construção do estado de exceção no Brasil na perspectiva do DOPS-PE (1964/1985).
Recife: Editora UFPE, 2014.
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Entre os anos de 1969 e 1979, vinte e quatro (24) presas políticas passaram pela
Colônia Penal do Bom Pastor. E destas vinte e uma (21), narram suas histórias, dão seus
testemunhos para o documentário que nos serve de fonte neste trabalho483. Entre essas presas
estão Nancy e Vera, que ao saírem do hospital e do DOPS-PE, respectivamente, foram
levadas à Colônia.484
Mesmo na clausura da prisão no Bom Pastor, encontraram entre ela a solidariedade,
companheirismo e amizade. A amizade analisada por Rosa (2013) a partir do diálogo com
Derrida e Foucault coloca esta foi vista por muitos, como sendo, uma prática ligada ao
masculino, haja vista que no patriarcado o espaço destinado à mulher era a casa. Os escritos
de Derrida (2003) nos trazem esclarecimentos quanto a esta tentativa de exclusão das
mulheres desse campo das relações de amizade. Que se dão para que se perpetuem no âmbito
privado. Já no dialogo com Foucault (2006), passamos a analisar a amizade enquanto uma das
“formas do cuidar de si”.485
A amizade entre Nancy, Vera e as outras presas políticas que estavam
concomitantemente no Bom Pastor. Desenvolveram modos de viver, experienciar, criar,
dentro dos muros da prisão. Não se fechando para a vida, desenvolvendo novas possibilidades
de luta contra o sistema opressor. Experienciando cada momento, pois como escreve Larrosa
(2002) a experiência requer:
[...] parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião,
suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da
ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos,
falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço. (LARROSA, 2002, p.24)

E onde procuravam tirar-lhes a humanidade, a autonomia do corpo, a liberdade do

483
Nome das militantes políticas que constam do documentário: Ana Mª Fonseca; Cleusa Mª Aguiar; Dulce
Chaves Pandolfi; Eridan Magalhães; Erlia Rodrigues; Gilseone Consenza; Helena Serrazul; Lilia Gondim; Lylia
da Silva Guedes; Mª Aparecida dos Santos; Mª do Socorro Diógenes; Mª do Carmo Tomaz; Mª Quintela de
Almeida; Mª Teresa Vilaça; Mª Yvone Ribeira; Nancy Mangabeira Unger; Rosa Mª dos Santos; Sonia Beltrão;
Vera Stringuini; Vera Rocha Dauster; Yara Falcon. Três não dão seus depoimentos para o documentário, porque
na época já haviam falecido. Estas são: Áurea Bezerra dos Santos, Helena Mota Quintana e Selma Bandeira.
484
Nos prontuários individuais, documentos produzidos pelo aparato jurídico-militar. A Colônia aparece com o
nome de Colônia Penal de Mulheres Delinquentes.
485
Michel Foucault. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 239.
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pensamento, estas ensinavam umas as outras a prática de atividades físicas para manter o
corpo saudável, ensinavam francês expandindo a possibilidade da leitura em outros idiomas,
cantavam, tocavam, experienciavam o momento vivido, com suas dores e amarguras, mas
também aprendizados e encontros.
As diferenças e divergências políticas e de modos de ver e viver no mundo, são
deixadas de lado. O que as une é a crença da luta por um mundo melhor. É ter (sobre)vivido
as torturas. É também o conjunto de características que as identificam dentro de um dado
grupo. É ser militante contra um sistema opressor. Ser de esquerda, considerada subversiva
pelo governo. É ter se arriscado, dado a vida por um ideal. É ter calado para evitar a morte de
muitos. E ter sentido a dor na carne tremula torturada.

EXÍLIO: UM NOVO TRAÇAR CARTOGRÁFICO


Nancy e Vera saíram da Colônia Penal para o exílio no Chile, no prontuário individual
de Vera consta:
13.01.1971- foi banida do território brasileiro juntamente com outros em troca do
Embaixador da Suíça, por Decreto do Presidente da República, de acôrdo (sic) com
o Art. 1º do Ato Institucional n.13, de 05.09.69 (05.09.69), publicado no Jornal do
Comercio 14.01.1971, arquivado no prontuário n. 1837-D. (Prontuário Individual de
Vera Rocha Dauster)

O sequestro do Embaixador Suíço Giovanni Enrico Bucher em dezembro de 1970, foi


realizado no Rio de Janeiro, na negociação para a liberação de presos/as políticos/as que
estavam em vários estados do país, estavam o nome de Nancy e Vera. Que se despedem do
Recife olhando a cidade por outro ângulo, a bordo de um avião da Força Aérea Brasileira com
destino ao Galeão – RJ.
Vera diz lembrar quando sobrevoou Recife e passando por cima do Rio Capibaribe
pensou “[...] meu Deus do céu, Recife é a cidade mais linda do mundo.” A frase nos leva a
pensar o quanto os seres humanos são complexos, plurais, impossíveis de enquadramentos, de
decifrações permanentes. Pois mesmo em momentos de tensão, medo, insegurança. A poesia,
a beleza das coisas, dos lugares não lhes foge dos sentidos. E são essas pequenas coisas que
possibilitaram a estas mulheres a superação. E superar não significa esquecer, mas sim
reconciliar-se com o passado de modo a seguir “em frente”, em muitos dos casos essa

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reconciliação é elaborada nos momentos de testemunho, na narrativa, no contato com o outro


que escuta, onde também se trava uma luta, contra o esquecimento (WEIRINCH, 2001).
Na troca pelo Embaixador, 70 brasileiros saem do Brasil em direção ao Chile, o país
de Salvador Allende, onde o dia amanhecia como a liberdade para esses brasileiros. Pessoas
com faixas davam boas- vindas aos estrangeiros. Os percursos destas mulheres não param por
ai, da América do Sul para a Europa (Suíça e França) retornando ao Chile, Nancy volta a ser
perseguida, desta vez em terras estrangeiras, pela ditadura de Pinochet. Novamente na
clandestinidade, escondendo-se de casa em casa. Mas como escreve Resende (s/d) “[...] a
solidariedade passa ser o fio para desenharmos as trilhas das nossas saídas [...]” a
solidariedade se configura então como linhas de fuga, é a forma de lutar contra a opressão.
Nancy narra ter se escondido na casa de um casal que nunca havia visto antes. Mesmo
com filho pequeno, ainda de colo, as portas da casa foram abertas a ela e outros companheiros
que precisavam se esconder. E graças a isto, Nancy não foi fuzilada.486 A casa onde esta se
escondia foi vasculhada, mas escondida dentro do armário não foi encontrada. O exílio, assim
como a clandestinidade, é uma (re)configuração de vida. E em alguns casos como este de
Nancy, muito mais complicado, já que a mesma foi exilada e um tempo depois o país, onde se
encontrava entrou em um regime ditatorial.
Na América Latina o processo de instalação de Regimes ditatoriais se deu em cadeia.
E na Argentina este Regime é instalado em 1976, nesse período Vera Rocha Dauster, que
havia saído do Chile, onde estava exilada, encontrava-se na Argentina, pois havia sido
indicada pelo partido para continuar militância em outros países, na África, na Europa e
América Latina. Ao perceber que no país onde se encontrava seria instalada uma ditadura e
por instrução do partido Vera seguiu para a França, onde desenvolveu outra forma de luta
política “[...] lutas pelas liberdades democráticas e pela anistia.” 487
Nancy e Vera, não foram apenas exiladas, pela Lei de Segurança Nacional, todos/as
que saiam do Brasil em troca de autoridades internacionais seqüestradas, eram banidos/as.
Sobre a figura do banido nos conta Nancy

486
Em depoimento ao documentário “Vou contar para meus filhos”. Nancy Mangabeira Unger narra que o
governo brasileiro havia acordado com Pinochet que ao encontrar os exilados no Chile, graças à troca do
Embaixador seqüestrado, a ordem era o fuzilamento.
487
Depoimento de Vera Rocha Dauster para documentário “Vou Contar Para Meus Filhos”
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A situação de ser banido, nos fomos banidos, perdemos nosso passaporte, eu no caso
perdi dois passaportes, porque eu tinha também a cidadania americana, que o
governo americano retirou. E ficamos assim... de alguma forma sendo vigiados ou
sobre a égide da Interpol, da polícia internacional, uma vez que não tínhamos mais
nenhuma cidadania e também com o documento do Auto- Comissariado das Nações
Unidas, para refugiados políticos. (Depoimento de Nancy Mangabeira Unger para
documentário “Vou Contar Para Meus Filhos”)

O exílio que se pretendia curto, assolou anos e anos. Vera refez sua vida na França,
casou-se pela segunda vez e teve um filho ainda no exílio, como banida seu filho não tinha
direito a cidadania brasileira. Nancy assim como Vera, só retornou ao Brasil com a
implantação da Lei da Anistia. Traçar percursos geográficos que não foram escolhidos pelas
mesmas, e sim dados pelas circunstancias, não impediu que Nancy e Vera experienciassem
esses trajetos.
Voltar ao Brasil era o objetivo, mas nem por isso em terras além-mar, deixaram lutar
por melhorias de vida, pela democracia de seu país. E principalmente continuaram tecendo as
artes de criar, de pintar a vida. Fazendo da militância, um devir com o mundo. O que
percebemos quando estas enveredam pelas “aventuras do contar-se” como nomeia Rago
(2013) e narram sem medo, suas vivências, se (re)encontram depois de pouco mais de 40
anos, dando vazão a histórias pouco conhecidas pelo povo brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na composição de cada melodia, na tessitura dos modos de vida em cada traçado
geográfico essas mulheres se (re)configuram diariamente, enquanto seres humanos, enquanto
mulheres, mães, filhas, companheiras. São múltiplas e se colocam longe da figura das
heroínas. Permitiram-se viver, encontraram nas fendas as possibilidades de não passar pelo
tempo sem se deixarem ser tocadas.
Foram duplamente transgressoras, conseguiram ocupar espaços destinados ao
masculino, lutando assim, mesmo sem se perceber, contra o machismo. E lutaram contra a
ditadura civil-militar, contra um sistema político opressor. Tiveram seus corpos mutiladas,
torturados, violados e violentados. Mas encontraram também a generosidade, solidariedade e
estabeleceram afetos positivos.
Conheceram outras formas de viver, entraram em contato com realidades distintas.

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Amadureceram suas práticas políticas e se tornaram mais solidárias, menos rígidas consigo
mesma, como expressam em suas narrativas. Não se arrependeram e exprimem a felicidade
pelas conquistas sociais que o Brasil teve no período de redemocratização. Continuam
militando por um país que conquiste cada vez mais a justiça social e igualdade de direito. E
reforçam a necessidade de criar formas para bem viver no mundo. Nas pequenas coisas do
cotidiano, nas possibilidades de tornar o mundo melhor para todos e para cada um.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de


Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
DELEUZE, Gilles et al. L’abêcêdaire (O abecedário). PARIS: ÊditionsMontparnasse, 2004.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
GULLAR, Ferreira. Poema Sujo. In: Toda Poesia. Rio de Janeiro. Ed. José Olympio, 2004.
LARROSA, Jorge. Nota sobre a experiência e o saber da experiência. In: Revista
Brasileira de Educação. São Paulo, nº 19, 2002.
LEITÃO, Ruy. 1968 o grito de uma geração. Campina Grande. EDUEPB, 2013.
RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da
subjetividade. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.
RESENDE, Antônio Paulo. Solidariedade: os limites e as resistências. In: Estudes de
Sociologia. Rev. do Programa de Pós- Graduação em Sociologia da UFPE. v. 10. n. 1,2, p,45-
63.
ROSA, Susel Oliveira da. Mulheres, ditaduras e memórias: “Não imagine que precise ser
triste para ser militante”. São Paulo, Intermeios, Fapesp, 2013.
SILVA, Marcília Gama. Informação, repressão e memória: a construção do estado de
exceção no Brasil na perspectiva do DOPS-PE (1964/1985). Recife: Editora UFPE, 2014.
VOU CONTAR PARA MEUS FILHOS. (Brasil, 2011) Direção: Tuca Siqueira. Produção:
Hamilton Filho, Luisa Malu. Roteiro: Tuca Siqueira. Distribuidora: Cabra Quente filmes.
Gênero: Documentário. Duração: 24 min.
WEIRINCH, Harald. Lete: Arte e Crítica do Esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização
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Brasileira, 2001.
WOLFF, Cristina Scheibe. Feminismo e configurações de gênero na guerrilha: perspectivas
comparativas no Cone Sul, 1968-1985. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27,
nº 54, p. 19-38, 2007.

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VOTO FEMININO NO BRASIL: 83 ANOS, HÁ COMEMORAÇÃO?

Jéssica Luana Fernandes | ges.sicaluana@hotmail.com

Luís Augusto de Mendonça Ribeiro

INTRODUÇÃO
Ao pensar na trajetória das mulheres, logo, remetemo-nos à luta pela igualdade de
gênero, uma luta marcada por conquistas, mas também por muitas dificuldades encontradas
ao longo deste percurso. Vale salientar que esta luta não é algo acabado, houve muitos
avanços significativos, no entanto ainda estamos muito aquém das expectativas,
especialmente no que se refere à participação feminina na política do país.
No Brasil, assim como em diversos outros países, a luta das mulheres pela
emancipação feminina perpassou por variados âmbitos, almejando uma serie de direitos,
como o direito à educação, ao trabalho, ao voto, entre outros.
Por muito tempo, a mulher foi vista como uma figura inferior aos homens, com um
papel limitado em nossa sociedade, ser filha, esposa e mãe, e para tanto, tornava-se
desnecessário o seu desenvolvimento intelectual. Noutros termos, lhes foi negado o direito
básico de saber ler e escrever, segundo Ribeiro (2011, p. 79)
Durante 322 anos – de 1500 a 1822 -, período em que o Brasil foi colônia de
Portugal, a educação feminina ficou geralmente restrita aos cuidados com a casa, o
marido e os filhos. A instrução era reservada aos filhos/homens dos indígenas e
colonos. Esses últimos cuidavam dos negócios do pai, seguiam para a universidade
de Coimbra ou tornavam-se padres jesuítas. Tanto as mulheres brancas, ricas ou
empobrecidas, como as negras escravas e as indígenas não tinham acesso à arte de
ler e escrever.

E mesmo, quando a mulher teve acesso à educação (ler e escrever), era uma educação
diferenciada daquela recebida pelos homens, argumentava-se que, não havia necessidade de
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oferecer à mulher uma educação nos mesmos parâmetros e níveis daquela à disposição dos
homens, pois ambos exerciam papéis sociais distintos, ou seja, o papel social da mulher,
restringia-se a esposas e mães “perfeitas”.
Ressalta-se que, as primeiras mulheres que foram inclusas neste sistema de educação,
eram aquelas pertencentes à elite, já as que faziam parte das classes populares tiveram acesso
bem mais tarde. “As mulheres negras e indígenas então, só tiveram a educação com um atraso
maior ainda, atraso esse acarretado pelo duplo preconceito: de etnia e gênero”, (ROSA, 2013,
p. 03).
Neste sentido, a nossa sociedade está historicamente marcada pela resistência do
ingresso das mulheres, nos mais variados espaços.
No que se refere ao voto feminino, no Brasil, a conquista se deu por meio do
Decreto21.076, de 24/02/1932, assinado pelo então presidente do país, Getúlio Vargas, depois
de uma intensa luta e campanha nacional.
Partindo desta perspectiva, objetivamos neste trabalho, explanar de maneira breve um
pequeno histórico desta luta pelo sufrágio feminino, e também apresentar um balanço da
situação atual, no que diz respeito à categoria de votantes de votadas, onde questionamos,
depois de 83 anos, há o que comemorar? Portanto, este artigo consta-se divido em duas partes,
a saber: 1) “Um breve histórico: primeiras sufragistas”; 2) “Um balanço atual”.

UM BREVE HISTÓRICO: PRIMEIRAS SUFRAGISTAS

83 anos, não faz muito tempo, porém o Decreto 21.076, de 24/02/1932, é um marco
bastante significativo para história do Brasil, embora não se possa afirmar que esta data foi o
começo - pois a luta pelo voto feminino iniciou-se antes da Proclamação da República - mas
“trouxe grandes inovações ao sistema político-eleitoral brasileiro, tais como a criação da
Justiça Eleitoral e a consagração expressa do voto à mulher”, (TSE488).
Em uma perspectiva mais ampla, no século XIX começam a surgir de forma mais
explícita a luta feminista, para as historiadoras Michelle Perrot e Geneviève Fraisse, o século

In: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-sp-o-voto-feminino-pdf.
488

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XIX

“[...] assinala o nascimento do feminismo, palavra emblemática que tanto designa


importantes mudanças estruturais (trabalho assalariado, autonomia do indivíduo
civil, direito à instrução) como o aparecimento coletivo das mulheres na cena
política” (1991, p. 9).

O cenário favorável encontrado pelas mulheres se deu em razão da mudança de regime


no país, tendo em vista que a

“...proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, ofereceu inicialmente a


possibilidade de uma estrutura política mais fluida e aberta. Com a extensão do voto,
em teoria, a todos os homens alfabetizados, a questão do sufrágio pôde tornar-se um
tópico mais vital para as feministas cultas que experimentavam um sentimento de
frustração e privação política” (HAHNER, 1981, p. 87).

Nesse contexto, destacaram-se algumas mulheres que se engajaram na luta pela


igualdade de gênero, pertencentes a um pequeno grupo letrado, na sociedade do Brasil, no
século XIX, pode-se citar como exemplo a feminista Nísia Floresta, considerada por muitos a
pioneira do feminismo no Brasil, Nísia deixou registrado em suas importantes obras literárias,
a sua tese acerca da emancipação e educação feminina, (DUARTE, 2010), a jornalista
Violante Bivar e Velasco489, que fundou “O Jornal das Senhoras” em 1852, o primeiro jornal
dirigido por mulheres, bem como, fundadora do jornal “O Domingo”, a escritora, professora e
jornalista, Francisca Senhorinha da Motta Diniz490, idealizadora do semanário “O sexo
feminino” que após a proclamação da República passou a se chamar “O quinze de novembro
do sexo feminino”, a professora Leolinda de Figueiredo Daltro491, que em 1910 fundou o
Partido Republicano Feminino.
Por fim, aquela que é considerada a mola mestra no processo de conquista do voto
feminino, por sua atuação nas décadas iniciais do Séc. XX, a administradora, política e
cientista, Bertha Lutz(BESSE, 1999, p. 184), que também se notabilizou, em conjunto com a
professora Maria Lacerda de Moura, pela fundação, em 1918, da Liga para a Emancipação

489
In: DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. RJ: Jorge Zahar
Ed., 2000. p. 521.
490
In: DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e ilustrado. RJ: Jorge
Zahar Ed., 2000. p. 246
491
In: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/15391.
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Intelectual Feminina492, que em 1922 transformou-se em Federação Brasileira pelo Progresso


Feminino (FBPF), que tinha como objetivos:

“promover a educação da mulher e elevar o nível de instrução feminina; proteger as


mães e a infância; obter garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino;
auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-la na escolha de uma profissão;
estimular o espírito de sociabilidade e cooperação entre as mulheres e interessá-las
pelas questões sociais e de alcance público; assegurar à mulher direitos políticos e
preparação para o exercício inteligente desses direitos; estreitar os laços de
amizade com os demais países americanos.”493(Sem grifos no original)

Apesar de termos elencado acima algumas mulheres que despontaram no cenário


nacional, na luta pelo voto feminino, não nos interessa aqui um aprofundamento maior sobre
as figuras feministas do século XIX e XX, que foram de fundamental importância para a
implementação do voto feminino, no entanto, queremos deixar registrado que, para chegar ao
Decreto de 1932, foi necessária, por parte dessas e de muitas outras mulheres, bem como de
alguns homens, uma luta árdua, por muitas vezes tumultuada e permeada de conquistas e
rechaços, conforme veremos um pouco a seguir.
Não obstante o fato de que a luta pelo voto feminino tenha se iniciado em meados do
século XIX, é na década de 90 do referido século que as reivindicações das mulheres entram
na pautado Congresso Nacional, quando da discussão da primeira Constituição da República.
No bojo das discussões acerca do voto da mulher, um dos principais argumentos
contrários, defendido pelo deputado Moniz Freire, entre outros, era de que a proposta
afrontaria a moralidade, bem como seria a decretação da “concorrência dos sexos nas relações
da vida ativa”, senão vejamos:

“Ora, querer desviar o espírito feminil desse dever, dessa função, que é a base de
toda a organização social, cujo primeiro grão é a família, para levá-lo ao atrito das
emulações práticas, no exercício de funções públicas, é decretar a concorrência dos

492
“Venho propor-me fazer um ensaio de fundação de uma liga de mulheres brasileiras. Não proponho uma
associação de “sufragetes‟ para quebrarem as vidraças da Avenida, mas uma sociedade de brasileiras que
compreendessem que a mulher não deve viver parasitamente [das prerrogativas] do seu sexo, aproveitando dos
instintos animais do homem, mas que deve ser útil, instruir-se e a seus filhos, e tornar-se capaz de cumprir os
deveres políticos que o futuro não pode deixar de repartir com ela”. (LUTZ, Bertha apud BESSE, Susan, 1999,
p. 184)
493
TELES, Mª Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. SP: Brasiliense, 1993, Col. Tudo é
História, p. 44.
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sexos nas relações da vida ativa, modificar esses laços sagrados da família, que se
formam em torno da vida puramente doméstica da mulher, e corromper a fonte
preciosa de moralidade e de sociabilidade, que ela mais diretamente representa,
demandando como condição de pureza a sua abstenção completa da vida prática”
(Fala do Dep. Moniz Freire, Anais do congresso constituinte, 1891, p. 456).

Contrário a esse pensamento destaca-se o Dep. César Zama, que assim se posicionou
na época:

“Nenhuma objeção séria tenho, até agora, ouvido contra a opinião, que sustentamos:
os nossos adversários limitam-se a asseverar que a concessão de direitos políticos às
mulheres trará, infalivelmente, a desorganização do lar e da família; nenhum deles,
porém, deu-se ao trabalho de explicar-nos o modo e os motivos dessa
desorganização. Em assuntos desta ordem não basta afirmar, é preciso provar.
Ninguém contesta a mulher a igualdade de aptidões que tem o homem: quanto à
diferença de organização psíquica, pouco ou nenhum valor tem a objeção: é mais
uma questão de educação.
Nervosas e fracas! Porém elas são, também, enérgicas e fortes, conforme as ocasiões
e meio social em que vivem: elas se aplicam a medicina e a jurisprudência tão bem
como nós; no magistério, nos excedem; no exercício dos empregos públicos não nos
são inferiores; na administração de sua casa e bens, em regra geral, andam melhor
do que nós, a exceção do imposto de sangue, concorrem também com o imposto
para encher as arcas do tesouro: finalmente, podem desempenhar todos os deveres
do homem. Por que se lhes há de privar do exercício do direito político? A família
não se desorganiza quando ela exerce a medicina, a advocacia, o magistério e
funções públicas, que exigem muito mais tempo, trabalho e critério: desorganizar-
se-á, porém,
pelo fato de ir ela, em dia de eleição, dar o seu voto! Não, isso não é verdade (Anais
do Congresso Constituinte, 1891, p. 356, 357).

Aliados a esse pensamento 31 (trinta e um) deputados assinaram a emenda do Dep.


Saldanha Marinho, que dava direito às mulheres de votarem, contudo, em razão da pressão
machista que sofreram, alguns deputados, entre eles, Epitácio Pessoa, retiraram suas
assinaturas da emenda, o que acarretou a não inclusão do voto feminino na Constituição de
1891, deixando o Brasil de ser o primeiro país a outorgar o direito ao voto para as mulheres, o
que só veio a ocorrer em 1932.
Outras notáveis na política nacional da época, como Ruy Barbosa e o Barão do Rio
Branco também defenderam o voto feminino.
Necessário destacar, por oportuno, que:

“O direito de voto às mulheres no Brasil pode ter dependido dos homens, como
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ocorreu em maior ou menor escala em todos os países, mas as brasileiras, ao


contrário de suas irmãs de alguns países da América espanhola, não tiveram o voto
simplesmente entregue pelas mãos dos líderes masculinos conservadores que as
vissem como uma força para a manutenção do status quo” (HAHNER, 1981, p.
120).

Na esteira dessa constatação, vale salientar ainda, que o decreto de 1932 trazia consigo
algumas restrições, são elas: apenas poderiam votar mulheres casadas, com autorização dos
respectivos maridos e mulheres viúvas ou solteiras que tivessem renda própria.
Em 1934, estas restrições foram retiradas do Código Eleitoral, porém o caráter de
obrigatoriedade do voto continuava destinado aos homens, somente em 1946, determinou-se a
que o voto feminino seria obrigatório.
No entanto, anterior ao decreto assinado pelo presidente Getúlio Vargas, há um caso
que merece destaque, foi no Rio Grande do Norte que ocorreu o primeiro voto feminino e
também a primeira mulher eleita. Em 1926, o Estado sob autonomia legislativa, no que diz
respeito a matéria eleitoral, por meio da intervenção de Juvenal Lamartine, concede
autorização ao voto feminino, incluindo o artigo 17 ao sistema eleitoral, definindo o sufrágio
“sem distinção de sexo”. Portanto, a primeira mulher a votar em nosso país foi a educadora
Celina Guimarães Viana, ela votou na cidade Mossoró, cidade onde nasceu e viveu.
Através do artigo 17, mulheres de algumas cidades potiguares, como Natal, Apodi,
Mossoró e Açari, se alistaram como eleitoras no ano de 1928494. No ano seguinte, a fazendeira
Alzira Soriano de Souza, se elegeu como prefeita da cidade Lajes495.
Ainda falando de pioneirismo, no âmbito do legislativo Federal, a primeira Deputada
Federal do País, foi a médica paulista Carlota Pereira de Queiroz, já na esfera estadual, Maria
do Céu Fernandes de Araújo, foi eleita Deputada Estadual no Rio Grande do Norte.
No Poder Executivo estadual, Iolanda Fleming foi a primeira mulher a governar um
estado, o Acre, em 1983, tendo sido eleita como vice-governadora na chapa de Nabor Junior,
que deixou o cargo para tentar uma vaga no Senado, ficando para Iolanda a tarefa de assumir
o cargo.

494
In: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2013/Abril/serie-inclusao-a-conquista-do-voto-feminino-no-
brasil.
495
Município localizado à cerca de 130 km de distância da capital do Estado, Natal. Fica na Microrregião de
Angicos.
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Porém, é Roseana Sarney, no estado do Maranhão, a primeira mulher a vencer uma


eleição para o executivo estadual.
Por fim, a então Presidente Dilma Rousseff, eleita em 2010 e reeleita em 2014, é a
primeira presidente mulher do Brasil.

UM BALANÇO ATUAL

No Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, realizada


pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2013, vivem 103,5 milhões de
mulheres, ou seja, 51,4% da população do país é feminina496. Assim, entre o nosso eleitorado,
as mulheres novamente são maioria. Conforme o Tribunal Superior Eleitoral497, nas eleições
de 2014, 74.459.424 milhões de eleitores são mulheres, o que equivale à 52,134%. No tocante
às candidaturas, ainda nas eleições de 2014, foram registradas 8.131 candidatas femininas,
diante de 18.041 candidatos masculinos, em todos os cargos.
Vale lembrar, que segundo o art. 10, §3º, da Lei 9.504/97, o mínimo de candidaturas
femininas deverá ser de 30%. Através de um levantamento efetuado pelo site Congresso em
Foco498, desde de 1932, ano em que foi outorgado às mulheres o direito de votarem e serem
votadas, apenas 212 (duzentas e doze) mulheres foram eleitas deputadas federais no país.
Hoje, no Congresso Nacional, temos o seguinte cenário: a) Câmara do Deputados –
513 membros – 468 homens e 45 mulheres; b) Senado Federal – 81 membros – 68 homens e
13 mulheres.
Portanto, no Senado, apenas 16,04% são mulheres e na Câmara dos Deputados o
cenário é ainda mais desalentador, apenas 8,77% das vagas são ocupadas por representantes
do sexo feminino, exatamente na casa que representa o povo, já que o Senado representa os
estados da federação.
Por outro lado, verificando os dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Estudos e

496
In:http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2013/brasil_defaultxls_brasil.
shtm.
497
In: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2014.
498
In: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/deputadas-eleitas-desde-1932-nao-enchem-um-plenario/.
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Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP499, com relação aos anos de 2003 a 2013,
percebemos que as mulheres estão em número superior aos homens em todas as categorias
para mensurar o número de alunos ingressos, matriculados e concluintes no ensino superior
do Brasil, vejamos:

Pela análise dos dados acima, com relação ao ano de 2013, por exemplo, da totalidade
de alunos que ingressaram nas instituições de ensino superior, 56% eram mulheres e 44%
homens, no que se refere às matrículas, 57% são mulheres e 43% homens.
A superioridade das mulheres é ainda maior quando observamos os dados referentes
aos alunos que concluíram o ensino superior no ano de 2013, dos concluintes 60% eram
mulheres e 40% homens.
No que se refere ao mercado de trabalho, a cada ano que passa as mulheres também
vem ocupando mais espaço.
Tal estado de coisas nos aponta para uma distorção bastante significativa quanto à
presença feminina na política, pois, conforme visto, as mulheres, diferentemente de outros
setores da sociedade, não vêm conseguindo ocupar o papel que lhe é devido, apesar de serem
maioria da população e as mais preparadas intelectualmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

499
In:http://portal.inep.gov.br/todas-
noticias?p_p_auth=NO1tbUWw&p_p_id=56_INSTANCE_d9Q0&p_p_lifecycle=0&p_p_state=normal&p_p_m
ode=view&p_p_col_id=column-
2&p_p_col_pos=2&p_p_col_count=3&_56_INSTANCE_d9Q0_groupId=10157&p_r_p_564233524_articleId=
139200&p_r_p_564233524_id=139627
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Conforme vimos no presente trabalho, grandes foram as lutas das mulheres para
poderem alcançar, em 1932, o direito de votarem e serem votadas, apesar de desde 1824 não
haver impedimento expresso na Constituição que obstaculizasse a participação feminina na
política, foi uma longa batalha até os dias atuais.
Percebe-se, uma série de avanços e conquistas significativas, decorrentes dessa
abertura, apesar de tantos entraves.
No Brasil, hoje, as mulheres são maioria, conquistam cada vez mais espaços no
mercado de trabalho, nas ciências, nas artes, ainda que não se possa afirmar que exista
igualdade, no que diz respeito a remuneração. Evidenciamos no balanço, que as mulheres
também são maioria no ensino superior, no entanto em relação à participação política, porém,
como visto, não há uma presença significativa, enquanto representantes no legislativo e
executivo.
Portanto, há o que comemorar após 83 anos de sufrágio?
Em termos gerais, diante dos diversos avanços, alguns deles apresentados aqui,
diríamos que sim, contudo, em relação à participação feminina nos destinos políticos da
nação, há muito pouco o que se comemorar, tendo em vista e quase inexpressiva participação
das mulheres nos Poderes Legislativo e Executivo.
Hoje é inquestionável o papel das mulheres na sociedade, graças à uma luta contínua e
heroica, mas temos algumas ressalvas e questões: Sendo maioria no país e também mais
preparadas intelectualmente, porque as mulheres não registram uma presença significativa no
âmbito legislativo e do executivo? Há interesse em ocupar estes cargos? Sobretudo, há
incentivo e preparação para tal tarefa?
Tais questões precisam ser respondidas e as suas respostas precisam apontar para uma
saída que represente uma modificação do cenário político brasileiro, mais especificamente no
que diz respeito à contribuição das mulheres, sob pena de não avançarmos o necessário para
que seja devolvida, na integridade, a dignidade social que lhe foi negada por todos esses anos.

REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS

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BRASIL. Anais do Congresso Constituinte de 1890/1891. Disponível


em:<http://imagem.camara.gov.br/constituinte>. Acesso em: 19 de outubro de 2015.
BESSE, Susan K. Modernizando a Desigualdade. Reestruturação da Ideologia de Gênero no
Brasil. 1914-1940. São Paulo: Edusp, 1999.
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta. Recife: Editora Massangana, 2010. (Coleção
Educadores).
FRAISSE, Geneviève; PERROT, Michelle. Ordens e Liberdades. In: DUBY, G; PERROT,
M. (org). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1991.
HAHNER, June. A Mulher Brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São
Paulo: Brasiliense, 1981.
RIBEIRO, Arilda Ines Miranda. Mulheres educadas na colônia. In: LOPES, Eliane Marta
Teixeira. FILHO, Luciano Mendes de Faria. VEIGA, Cynthia Greive (Orgs.). 500 anos de
educação no Brasil. Belo Horizonte, Autêntica, 2011. p. 79-94.
ROSA, Renata Vidica Marques. Feminização do magistério: Representações e espaço
docente. Revista Pandora Brasil, São Paulo: Univ. Mackenzie, Edição especial, n. 4, 2011,
Cultura e materialidade escolar. Disponível
em:<http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/materialidade/renata.pdf>. Acesso em:
20 out. 2014.
TELES, Mª Amélia de Almeida. Breve História do Feminismo no Brasil. SP: Brasiliense,
1993, Col. Tudo é História.
DICIONÁRIO MULHERES DO BRASIL: de 1500 até a atualidade biográfico e
ilustrado. Organizado por Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, RJ: Jorge Zahar Ed.,
2000.

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A MULHER NEGRA ESCRAVA NA SOCIEDADE BRASILEIRA


RESISTÊNCIA, BELEZA E ASCENSÃO SOCIAL

Bruna Gomes de Oliveira Dornelas500 | brunagoliveira2009@hotmail.com


Shirley Targino Silva/UFPB501 | shirleyzinhatargino@hotmail.com

INTRODUÇÃO
Mesmo sendo um período visivelmente amplo, as informações sobre a temática aqui
proposta se encontram dispersas no tempo e no espaço. Além do mais, por se tratar de um
grupo social marginalizado duplamente (por ser escravo e por ser mulher), seus feitos não
foram consideravelmente registrados pela historiografia brasileira. A maior parte desses
registros foram produzidos por sujeitos e instituições que reprimiam as atividades das
escravas negras.
Com a ascendência da História Cultural na década de 80 do século XX, o fazer
histórico vai receber novas abordagens e possibilidades de acesso ao passado, com a
agregação de novas fontes históricas (PESAVENTO, 2005). A História Cultural vai
proporcionar trazer ao conhecimento a história de sujeitos antes deixados de lado pela história
tradicional. Portanto, tendo como dimensão teórica a História Cultural, este artigo pretende
abordar a história das mulheres negras escravas a partir da perspectiva de uma “história vista
de baixo”, como propôs Thompson, que redimensiona o “olhar histórico” para as os sujeitos
subalternos (SHARPE, 1992).
É possível dizer que esse movimento se estabelece em uma configuração sobre pensar

500
Graduanda em História pela UEPB e aluna especial em História da Educação pelo programa de pós-
graduação em educação da UFPB.
501
Mestranda em História da Educação, vinculada ao programa de pós-graduação em educação da UFPB;
graduada em pedagogia pela UFPB e membro do grupo de Estudos e Pesquisas História da Educação da Paraíba –
HISTEDBR – PB.

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a historiografia acerca da cultura popular, sem excluir as expressões de cultura das elites. No
campo da história da educação, não importam apenas os movimentos educacionais ou grandes
pensadores, mas voltam-se os olhares para novos objetos de pesquisas e novas maneiras de
abordá-los. A nova história cultural, desde o seu surgimento, deslocou sua atenção para a
história dos homens e mulheres comuns, preocupando-se com suas práticas culturais, suas
experiências na mudança social (SANTOS, 2009, p. 25). A Nova História Cultural propõe
novos métodos a serem trabalhados pela historiografia social e não trabalha apenas com os
grandes feitos dos heróis, mas com pessoas comuns que fizeram e fazem parte do processo de
conquistas, que como um processo de construção histórica amparou o uso da memória para
essa construção.
Nesse período a aproximação com a psicanálise também ajudou com a investigação de
vários questionamentos relacionados ao uso da memória no processo histórico. Entre esses
questionamentos estão: o trabalho da memória contra a perda e o esquecimento; a pluralidade
de memória entre a repetição e a reconstrução; as tensões em seu âmbito; os processos de sua
transmissão; os seus usos sociais; e o enraizamento da memória na consciência coletiva.
A História das Mulheres surge parte a partir de década de 60, “[...] quando ativista
feministas reivindicavam uma história que estabelecesse heroínas, prova da atuação das
mulheres, e também explicações sobre a opressão e inspiração para a ação” (SCOTT, 1992,
p.64). A partir de então, estudos vão começar a surgir não só no campo das relações de poder,
mas em vários outros aspectos socioculturais. Os estudos feministas vêm para ressignificar
alguns conceitos como o de corpo e gênero, que serão abordados como objetos que
comportam uma historicidade (Cf. SCOTT, 1995).
O objetivo deste artigo foi traçar um percurso analítico pelo período escravista
brasileiro, para trazer ao conhecimento às estratégias de resistência que as escravas negras se
utilizaram, através do corpo e da sensualidade que ele transmite, para seduzirem seus senhores
e conseguirem ascender socialmente. Percebendo, porém, que os corpos das mulheres negras
escravas se constituíram numa “arma” de combate e reivindicação consciente da melhoria de
suas condições de vida.
Visando tais objetivos, o presente artigo se constituiu utilizando de uma pesquisa
bibliográfica e documental, a fim de reunir matérias apropriadas que nos servisse de análise.
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Fica em destaque, dentre as bibliografias utilizadas, as obras de Gilberto Freyre: Casa-grande


e Senzala e Sobrados e Mucambos. Dos documentos, o uso do romance Menino de Engenho,
de José Lins do Rego e das fotografias que retratam as amas-de-leite.

FORMAS DE RESISTÊNCIA ESCRAVA


Resistir tem sido palavra-chave quando se tratando dos escravos e escravas negros
(as), e não só durante o período escravista, como também em toda a história da população
negra no brasil. As formas de resistência empreendidas pela população negra escrava não
foram poucas. Mesmo terem sido muitas vezes encobertas por uma elite branca dominante,
elas estão aparecendo devido ao grande empreendimento de vários pesquisadores que fizeram
da temática escrava seu objeto de estudo.
Como resultado desses estudos, fez brotar novas versões sobre o convívio entre
escravos e seus senhores, que vão muito além da passividade negra à escravidão, como muito
foi posto nos livros didáticos. Hoje já é sabido que a relação entre senhor e escravo ou escravo
e escravos não foi tão pacífica assim. “O escravo não era um ser passivo cuja obediência
podia ser mantida exclusivamente através do chicote. Em suas lutas cotidianas, os escravos
impuseram limites à dominação escravista e jamais se acomodaram” (ALBUQUERQUE;
FRAGA FILHO, 2006, p.69).
Aqui ficam citadas algumas das formas de resistência escrava que vão muito além da
não obediência a seus senhores, mas resistência e luta que traduz o repúdio a todo um sistema
dominação. Os estudos do professor Luciano Mendonça de Lima, que traz um novo olhar para
o evento do Quebra-quilos na Paraíba. Luciano Mendonça nos mostra a forma que os escravos
se apropriaram da revolta do Quebra-quilos, não se posicionando-os a favor dos ideários dos
revoltosos, ou seja, de contestação ao sistema internacional de pesos e medidas, instituído na
segunda metade do século XX, mas eles se aproveitaram da fragilidade na vigilância para
fazerem seu próprio movimento de reivindicações. Nesse intuito,
Os escravos lutaram contra os efeitos perversos advindos do rearranjo das atividades
econômicas locais, em particular o cultivo do algodão. Também protestaram contra
o tráfico interprovincial, danoso para suas vidas, as de familiares e parceiros. Acima
de tudo, lutavam para preservar, alargar e conquistar a liberdade, em particular
através das possibilidades abertas pela chamada Lei do Ventre Livre, de 1871.
(LIMA, 2004, p.196)

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É interessante perceber a forma como os escravos e escravas se utilizavam do que eles


tinham a sua disposição para impor resistência – diga-se de passagem, não era muita coisa
(MOURA, 1992, 35). A capoeira é um exemplo de que, não possuindo armas para enfrentar o
inimigo, os escravos fizeram do corpo uma verdadeira arma de combate contra o sistema
opressor.
Nas várias formas de resistência e luta contra a escravidão também se destacam as
investidas das mulheres, que não se comportaram como meras coadjuvantes nesse processo.
Dandara, por exemplo, comandava um grupo de mulheres capoeiras na luta contra as forças
militares nos quilombos dos Palmares (Cf. SANTOS, 2011).
É interessante perceber as formas que os negros e negras se apropriavam das situações
degradantes e as ressignificavam a seu favor, o que vai contra a interpretação que se tinha de
que a população negra não tinha inteligência. Como por exemplo o Candomblé, que para
continuar existindo seus praticantes se apropriaram do imaginário disseminando pela igreja
católica como sendo uma prática diabólica para provocar medo em quem quisesse destrui-la.
“Quem era do candomblé precisava ser temido e respeitado. A relação com o Satanás servia
para manter o policial longe” (OLIVEIRA, 2003, p.24).
Outras práticas podem ser citadas como exemplos de força, coragem e resistência
envolvendo a população negra brasileira. Resistência esta que se traduziu, na maioria das
vezes, não como força física, mas por estratégias inteligentes, como fizeram muitas mulheres
negras para ascenderem socialmente. Estratégias envolvendo o corpo e a beleza como
mecanismo de resistência, tema que é discutido no tópico seguinte.

CORPO, BELEZA E ASCENÇÃO SOCIAL DA MULHER NEGRA ESCRAVA

O sociólogo pernambucano, Gilberto Freyre, dedicou muitas páginas de suas


principais obras – Casa-grande e Senzala e Sobrados e Mucambos – a tratar da beleza da
mulher negra e mulatas no Brasil escravista. Mulheres estas que “corrompiam” a moral
patriarcal da época, aflorando o “apetite sexual” dos portugueses, senhores de engenho e seus
filhos homens. Portanto, as referências que Freyre faz sobre a beleza corporal da mulher negra
escrava sempre estiveram relacionadas à predisposição sexual destas.
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Em várias partes do livro Casa-grande e Senzela, Freyre destaca o clima como sendo
um agravante para o “apetite sexual” das negras escravas. O Brasil, por ter um clima mais
quente que os dos países europeus, aumentava o “fogo libidinoso” das escravas, incidindo os
seus senhores ao pecado. Por outro lado, a falta de mulheres brancas na colônia acentuava as
relações de portugueses com negras escravas. Sob seus domínios, as escravas ficavam à
disposição de seus senhores assim como Freyre (1992) salienta:
O que houve no Brasil – cumpre mais uma vez acentuar com relação às negras e
mulatas, ainda com maior ênfase do que com relação às índias e mamelucas – foi a
degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada [...]. Entre brancos e
mulheres de cor estabeleceram-se relações de vencedores com vencidos – sempre
perigosas para a moralidade sexual. (p.426)
Essa sensação de domínio levava os portugueses a se apropriarem das escravas
indiscriminadamente nos domínios dos engenhos enquanto durou a escravidão. Essa
disponibilidade de prazer também pode ser observada na obra Menino de Engenho, do
romancista paraibano José Lins do Rego:
As negras faziam-me de homem [...]. Agora o engenho oferecia-me o amor por toda
a parte: na senzala, na beira do rio, nas casas de palha. Os moleques levavam-me
para as visitas por debaixo dos matos, esperando a vez de cada um. Na casa-grande
os homens achavam graça de tanta libertinagem. (REGO, 2001, p.31-2)
É farta a documentação, principalmente os inquisitoriais, que mostram o quanto era
comum a prática do concubinato envolvendo amas e escravas, e como os domínios sobre o
escravo se estendiam, também, à esfera sexual.
Assim, um dos maiores problemas da Igreja era com a chamada “moralidade sexual”,
que sempre fugia de seus controles na sociedade colonial. Os esforços eram muitos para que
os senhores não caíssem em “depravações sexuais”. Além de muitas rezas, a Igreja chamava a
atenção para que os senhores não permitissem suas escravas a andarem “desnudadas” pelas
ruas. Em Pernambuco, o bispo Frei José Fialho chegou a proibir a entrada das chamadas
“negras perigosas”, que não estivessem vestidas adequadamente (FREYRE, 1992, p.440).
Na tentativa de conter a “depravação sexual” nas terras do Brasil, as autoridades
eclesiásticas aconselhavam os senhores de engenho a não possuírem, nos domínios das casas-
grandes, escravas de “idade perigosa”, ou seja, que tivessem menos de quarenta anos.
Segundo Freyre, o bispo Frei José Fialho havia se surpreendido com o tardio
“amadurecimento” das escravas negras:

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Parece que as negras não ficam velhas tão depressa, nos trópicos, como as brancas;
aos quarenta anos dão a impressão de corresponder às famosas mulheres de trinta
anos dos países frios e temperados. Uma preta quarentona é ainda uma mulher
apenas querendo ficar madura; ainda capaz de tentações envolventes. (FREYRE,
1992, p.442)
Mesmo com todas as repressões da Igreja, que era a instituição que “disciplinava” a
vida amorosa dos habitantes no período colonial – e porque não também no período imperial
–, não frearam as práticas sexuais dos senhores com suas escravas fora do casamento. A
grande incidência de filhos bastardos é exemplo de quanto o domínio da Igreja não era
suficiente para conter efetivamente esta prática (ALMEIDA, 1992, p.120).
A prostituição também foi uma constante no Brasil escravista. Muitos foram os casos
em que o senhor lucrava com a prostituição de suas escravas negras, ou casos de sinhazinhas,
desgostosas com suas escravas, as colocavam nas ruas para vingar-se e, ao mesmo tempo,
arrecadar alguma renda, assim como: nos informa Chiavenato (1999): “Às vezes eram as
sinhazinhas respeitáveis que enviavam essas meninas às ruas para se prostituírem cobrindo-as
de joias para melhor impressionar (p.49) ”.
A prostituição era proibida no Brasil escravista, entretanto esta proibição não se
aplicava à prostituição de escravas. Muito pelo contrário, esta, inclusive, era permitida por lei,
através do artigo 179 da constituição do Império. Por isso, a prostituição escrava foi praticada
de forma indiscriminada nas ruas, nos bordeis, nos cortiços e em diversos espaços enquanto
perdurou a escravidão.
As escravas que eram postas na prostituição eram designadas de “escravas
ganhadeiras”, pois era esta sua função: conseguir lucros para seus senhores e/ou sinhás com a
venda do corpo. Muitas vezes estas escravas eram ainda crianças ou adolescentes de 12, 13
anos, que eram postas a praticarem sexo com homens “maduros”, entre 40 e 50 anos ou mais
(FREYRE, 1990). Só que havia uma diferenciação dos valores entre os serviços oferecidos
pelas escravas negras e os oferecidos pelas prostitutas brancas. O valor dos serviços desta
última era muito mais caro (CHIAVENATO, 1999, p.49).
Algumas mulheres negras, que já não eram escravas, quando não trabalhavam de
empregadas se entregavam à prostituição, na maioria das vezes para pagar o aluguel de sua
morada. Mas esses casos são muitos difíceis de serem analisados, pois não se sabem os reais
motivos para tal escolha. Para Florestan Fernandes (2008), “As indicações coligidas não
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permitem estabelecer como as frustrações associadas à situação socioeconômica ou à de cor


conduziam à aceitação dessa condição” (p.219). Florestan sugere que depois de certo tempo,
as prostitutas negras “‘se cansavam’ de viver como empregadas, mantendo várias aventuras
sexuais sucessivas ou simultâneas e tendo de suportar as exigências do amante” (2008, p.219).
É certo que as mulheres negras escravas se aproveitavam da relação com seu senhor
para conseguir algumas vantagens e benefícios, que melhorassem sua condição de escravas,
ou até mesmo que lhe garantisse a liberdade. Por mais que Gilberto Freyre focalizasse sua
explanação acerca da “superexcitação” que as negras e mulatas provocavam nos brancos
portugueses, ele deixa claro que, em muitos casos, as escravas tiravam proveito de sua relação
com os brancos. Para Freyre, mesmo a mulata tendo desempenhado o papel de “objeto
sexual”, a ascensão desta na relação com o branco também deve ser destacada, “De modo que
também esse aspecto psicológico nas relações entre homens de raça pura e as mulheres de
meio-sangue, deve ser destacado como elemento, em alguns casos, de ascensão social da
mulata” (FREYRE, 1992, p.602).
Ao passo que Freyre destaca a ascensão da negra ou mulata na relação com homens
brancos, ele sempre reafirma que nunca estas se equiparariam às mulheres brancas, visto que
a “ardência sexual” das mulheres de cor:
Talvez tenha sido o fator de alguns casamentos de brancos já idosos, cinquentões
[sic] de família ilustre – filhos de barões e bem situados na vida – com mulatas,
quadraronas [sic] e octorunas bonitas vestindo-se com jeito de brancas, mas com a
aparência ou a aura de ardência sexual fora do comum que lhes dá a circunstância de
serem mestiças. (FREYRE, 1992, p.602)
Mas na história brasileira há alguns vestígios de mulheres negras que conseguiram
superar sua condição de escravas, invertendo a ordem das coisas na sociedade escravocrata.
Como no exemplo de Chica da Silva, personagem bastante conhecida pela história nacional,
figura a qual circunda vários mitos a seu respeito. Francisca da Silva teve sua liberdade
concedida por seu amante, o contratador de diamantes, João Fernandes de Oliveira. A imagem
de Chica da Silva que fora construída historicamente pela literatura e pelo cinema foi a de
uma mulher de grande voracidade sexual, talvez devido à grande quantidade filhos que teve.
Poucos estudos, porém, fazem referências aos possíveis motivos pelos quais levaram o
João Fernandes a escolher uma escrava como companheira e para construir família. Chica da
Silva só foi mais um exemplo de muitas libertas que “[...] alcançou sua alforria, amou, teve
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filhos, educou-os, buscou ascender socialmente, com vistas a diminuir a marca que a condição
de parda e forra impunha para ela e para seus descendentes” (FURTADO, 2003, p.284).
Outro caso de destaque é o da escrava Liberata, no início do século XIX, que entrou
com um processo na justiça contra seu senhor que lhe havia prometido a liberdade de favores
sexuais. Após muita luta, Liberata consegue “negociar” sua liberdade e também a de seus
filhos (GRINBERG, 2010, p.26-27). Muitas outras escravas conseguiram a tão sonhada
liberdade ascendendo socialmente, porém não muito conhecidas da população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um ponto que merece ser colocado sugere que as relações entre escravas negras e
mulatas com brancos portugueses não se traduziu unicamente numa relação sexual, mas
também houve vários casos em que a afetividade prevaleceu, revertendo a lógica social
instituída. Isso significa dizer que as mulheres escravas não viveram unicamente para o
trabalho escravo, como uma imposição intangível, elas também se apaixonaram, vivenciaram
relações afetuosas com os homens brancos, tiveram filhos, constituíram família, tiveram suas
próprias moradias, enfim, desfrutaram da liberdade.
A história das mulheres escravas no Brasil, no entanto, não se procedeu de maneira tão
simplista como geralmente é tratada. Vários trabalhos – boa parte deles por pesquisadores e
pesquisadoras feministas – vêm sendo produzidos trazendo novas facetas da presença e
atuação feminina em diversas instâncias da sociedade, da economia, da política e da cultura.
O fato de a imagem da escrava negra ter sido constituída como mulher voraz, de puro
desejo sexual incontrolável, como expôs o Gilberto Freyre e outros autores, contribuiu para
que, na nossa atualidade, a mulher negra ainda sofra com alguns estereótipos desse tipo. Na
mídia, por exemplo, essa imagem ainda é bastante difundida. Na televisão ainda se propaga a
imagem da negra “da cor do pecado”, entre outras designações depreciativas. Tendo em vista
os aspectos observados pode-se concluir que as formas de resistência se deram de vários
formatos tanto através do trabalho árduo e dos encantos quanto através de fugas, suicídios e
até mesmo o assassinato dos seus senhores.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.
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confessores dos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
CHIAVENATO, Júlio José. O negro no Brasil: da senzala à abolição. São Paulo: Moderna,
1999.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe: (o legado da “raça
branca”). 5 ed. São Paulo: Globo, 2008.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 28 ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.
FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do
mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GRINBERG, Keila. Contra enganadores. In: Revista de História da Biblioteca Nacional,
ano. 5, n. 54, p.26-27, março de 2010.
LIMA, Luciano Mendonça de. Sombras em movimento: os escravos e o Quebra-quilos em
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história cultural. ed. 2. Belo Horizonte: Autêntica,
2005.
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SANTOS, T. D. M. Magistério Em Declínio: histórias e memórias de ex-alunas do magistério do
colégio nossa senhora da neves (1970). João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2009.
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social e participação na diversidade. In: Grupo Conviver (Org.), et. al. Diversidade e
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Realidade. Porto Alegre, vol. 20, n. 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história:
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MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992.

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A PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA NO ESTUDO DA HISTÓRIA DE VIDA E


TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE PROFESSORAS NEGRAS

Dominique Ferreira Alves502 | nyckurca@gmail.com


Dra. Cicera Nunes503

INTRODUÇÃO

Apesar de a realização de pesquisas científicas no campo brasileiro educacional,


caracterizar-se como um acontecimento recente504, concordamos com Silva e Mendes (2009),
quando afirmam que “os trabalhos científicos em educação, apresentam-se envolvidos por
transformações significativas em relação aos métodos de estudo dos fenômenos
educacionais”.
Ferreira (2009) aponta duas tendências com enfoques em pesquisa educacional: a
pesquisa positivista, que defende a ideia de que a única fonte de conhecimento válida “é a
experiência, os fatos positivos, os dados sensíveis”, os quais devem ser descritos e analisados
objetivamente e a pesquisa com base nas teorias críticas, onde encontram-se inseridas as
narrativas(auto)biográficas. Esta segunda tendência surge em oposição ao Positivismo,
considerando “a realidade como um processo em movimento, em transformação,” onde
sujeito e objeto estão em constante diálogo, “comunicando-se, em um processo de cooperação
e de contradições, através do método dialético.” (FERREIRA, 2009, p. 52)
502
Discente do curso de Pedagogia da Universidade Regional do Cariri – URCA; Bolsista de iniciação
científica/FUNCAP
503
Docente do Departamento de Educação da Universidade Regional do Cariri – URCA
503
De acordo com Ferreira (2009, p.49), a partir da década de 1970, o Brasil começa a apresentar um maior
desenvolvimento na pesquisa educacional, passando a ser mais organizada, subsidiada e estimulada. No entanto,
somente “nas décadas de 1980 a 1990 o exame de situações "reais" do cotidiano da escola e da sala de aula é que
constituiu uma das principais preocupações dos pesquisadores, a partir da inversão também do lugar de onde
olha o fenômeno, antes fora e agora dentro do próprio fenômeno.”

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Frente a isso, Bueno (2002, p. 16) ressalta que um movimento de rupturas e mudanças
ocorreu no interior das ciências humanas (à exemplo da Educação, História, Sociologia e
Antropologia), nas primeiras décadas do século passado, perdurando até os dias de hoje, o
qual buscava não apenas novos métodos de investigação, mas, sobretudo, um modo novo de
conceber a própria ciência, ou seja, não se tratava simplesmente da não utilização dos
“métodos experimentais, da ciência racional e objetiva, capaz de dar conta da tarefa de
descobrir as regularidades que ocorrem na natureza e as leis que regem tais fenômenos”,
tratava-se principalmente do direito de abdicar um conceito de ciência em favor de outro. Em
outras palavras Souza (2007, p. 62) afirma que, as discussões a respeito da utilização de novos
métodos de investigação tiveram início no momento em que “problematizou-se, a noção de
cientificidade a partir da contestação do positivismo que, até então, constituía-se como idéia
reguladora hegemônica na produção do conhecimento válido.”
Foi seguindo essa linha de pensamento que surgiram tanto na História, quanto na
Antropologia, pesquisas realizadas a partir de métodos que valorizam a oralidade e a
memória, o que pode ser evidenciado na fala de Souza (2007, p. 62):
No campo da produção historiográfica, a Nova História surgida na França, disposta
a defender uma mudança metodológica na pesquisa e tendo por base três bandeiras –
“novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos” – , amplia a noção de
documento histórico reconhecendo a importância das fontes orais.

Assim como a Historiografia rompeu com os paradigmas positivistas dando


visibilidade ao uso das fontes orais, a Antropologia, segundo Bueno (2002) também promove
uma grande revolução no campo científico ao exigir que a cultura seja estudada e conhecida
“a partir do ponto de vista dos nativos”, dano origem a partir daí a pesquisa etnográfica.
Em meio a esse contexto de oposição as correntes de pensamento voltadas para o
estudo dos fenômenos naturais, surge também a abordagem (auto)narrativa, a qual de acordo
com Tinoco (2004) nasce na Universidade de Chicago no início do século XX, quando
pesquisadores adotam o uso do método no estudo de comunidades imigrantes, vítimas de
exclusão social. Bueno (2002) ressalta que a referida abordagem metodológica foi largamente
empregada nos anos 1920 e 1930, no entanto, “após esse sucesso o método sofreu um colapso
súbito e radical, caindo em quase completo desuso nas décadas seguintes, em razão da
preponderância da pesquisa empírica entre os sociólogos americanos,” (BUENO, 2002 p. 61)
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voltando somente nos anos de 1980 a ser utilizada novamente no campo da Sociologia.
Estudos realizados por Bueno et. al (2006), os levam a considerar que no Brasil, foi
somente a partir da década de 1990 que a história de vida e a pesquisa (auto)biográfica na área
da Educação ganhou um visível impulso, trazendo grandes mudanças e apresentando um
elevado crescimento na produção de trabalhos concernentes a essa temática. Por outro lado,
no trabalho intitulado “As histórias de vida em formação: gênese de uma corrente de
pesquisa-ação-formação existência” Pineau (2006) destaca que no Brasil, a partir dos anos
1980 já eclodia uma grande quantidade de produções científicas baseadas na investigação de
histórias de vidas. A partir dessa constatação, o autor divide o período de 1980 à 2000 em
três momentos distintos que marcaram o movimento da história de vida no país: anos de 1980
- período de eclosão; anos de 1990 - período de fundação e anos 2000 - período de
desenvolvimento diferenciador.505
Nos dias atuais, percebe-se que as pesquisas na área da Educação tem buscado dar
cada vez mais visibilidade ao estudo de histórias de vidas, em especial as pesquisas
(auto)biográficas, reconhecendo que este caminho também é capaz de nos levar a grandes
descobertas acerca da história da educação, uma vez que nos possibilita a aquisição de
conhecimentos que ainda não foram registradas em livros, teses, dissertações, nem em artigos
científicos.
Levando em consideração o gradativo engajamento político que a mulher negra vem
apresentando nas últimas décadas, deparamo-nos com a necessidade de buscar conhecer como
esse envolvimento de militância, por parte das mulheres negras, tem se dado na região do
Cariri Cearense. Para isso, estamos iniciando uma pesquisa que visa conhecer a história de
vida e a trajetória de militância de professoras negras, com o intuito de compreender também
como a sua atuação no movimento social tem refletido nas suas concepções pedagógicas.
Neste estudo, adotamos como metodologia de trabalho, o uso de narrativas
autobiográficas, por acreditarmos que os saberes e as experiências que encontram-se
guardadas nas memórias das professoras e militantes negras do Cariri Cearense, com as quais

505
Tanto Bueno et. al (2006), quanto Pineau (2006) apresentam dados concretos da significativa quantidade de
trabalhos desenvolvidos no Brasil nas décadas de 1980 e 1990 tendo como metodologia de investigação
científica o uso de histórias de vida e pesquisas (auto)biográfico.

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estamos trabalhando, são histórias que merecem ser contadas, ouvidas e valorizadas, pois
tratam-se de mulheres que contribuíram e ainda contribuem para a construção de uma luta
antirracista e um mundo mais justo e humano, e que devem, portanto, sentir-se parte da
história, como sujeito que sabe e que constrói.
O presente trabalho surge exatamente dos estudos realizados acerca da metodologia
adotada para o desenvolvimento da pesquisa mencionada, uma vez que, trata-se de um
método de investigação científica que surgiu recentemente, quando comparado aos métodos
positivistas, mas vem ganhando, dentro do território brasileiro, uma crescente visibilidade nos
últimos quinze anos. Frente a isso, o referente trabalho visa discutir, a partir de estudos
bibliográficos, a importância do uso de narrativas autobiográficas no conhecimento da história
de vida de mulheres/professoras negras e militantes do movimento negro.

HISTÓRIAS DE VIDA: UMA METODOLOGIA OU UMA PRÁTICA DE


FORMAÇÃO?

Após as mudanças metodológicas ocorridas no campo da Nova História, as quais


passam a reconhecer tanto a memória quanto a oralidade como métodos válidos de se chegar
ao conhecimento, percebe-se um processo de ampliação das possibilidades de estudos sociais,
em especial na área da educação.

No processo de valorização das fontes orais estava a crença de que a maior


homenagem que os historiadores e, em especial, os historiadores da educação,
poderiam prestar aos excluídos era o de transformar suas memórias em história,
buscando memórias sociais que recuperassem os sentidos das vozes ausentes.
(SOUZA, 2007 p. 62).

As pesquisas educacionais voltadas para o conhecimento de histórias de vidas de


professores(as) surgem desse marco, caracterizando-se por meio da escuta da subjetividade,
como um método de investigação e ao mesmo tempo como um processo de formação.
De acordo com Ferrarotti (2014) as histórias de vida vistas sob uma perspectiva
metodológica valorizam principalmente a pessoa e não o seu saber, e considera que o
pesquisador e o(s) participante(s) da pesquisa são parceiros, uma vez que não existe nenhuma

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relação de poder e saber hierarquizado, pois “cada um deles é portador de um saber, saber
autóctone, num caso; saber sociológico, no outro. E cada um desses saberes é legitimado pela
experiência, pela primazia do campo.” (FERRAROTTI, 2014, p. 35). O autor ainda
acrescenta que a técnica da escuta “permite a instauração de uma relação de confiança, a
criação de uma situação dialógica aberta, na qual são possíveis as inversões de posição e as
mudanças nos contratos de fala.”
Ao reafirmar a utilização da pesquisa histórica e da narrativa (auto)biográfica, como
opção de pesquisa, Souza (2007) corrobora com a ideia defendida por Ferrarotti (2014) acerca
da posição que o pesquisador deve ocupar ao trabalhar com a referida metodologia. No
trabalho intitulado “(Auto)biografia, histórias de vida e práticas de formação”, Souza (2007)
afirma,

Não concordamos com as posições que reduzem o papel do pesquisador à mera


descrição, argumentando que toda interpretação implica traição à essência do
discurso do outro. O papel do pesquisador não pode limitar-se a tomar notas, pois
sua tarefa é a escuta sensível na qual perceba os componentes e dimensões
relevantes na vida dos sujeitos que lancem luz sobre as problemáticas construídas.
(Souza, 2007, p. 68).

Um outro aspecto que caracteriza o trabalho com histórias de vida, diz respeito ao seu
caráter formativo. De acordo com Souza (2007) quando nos dedicamos a realização de
pesquisas acerca da trajetória de vida de professores, estamos buscamos conhecer a
constituição do trabalho docente a partir de diferentes aspectos de sua história: pessoal,
profissional e organizacional. Dessa forma, temos a oportunidade de acesso aos saberes
construídos pelos profissionais da educação por meio da sua prática pedagógica diária. A
relevância de tal estudo, no âmbito da abordagem educacional e biográfica, encontra-se no
reconhecimento do professor como “sujeito, que produz um conhecimento sobre si, sobre os
outros e o cotidiano, revelando-se através da subjetividade, da singularidade, das experiências
e dos saberes (SOUZA, 2007 p.69).”
Tal processo resulta em uma formação que enriquece tanto o professor, quanto o
pesquisador, visto que, ao falar sobre sua experiência, o professor também “questiona os
sentidos de suas vivências e aprendizagens” (idem, 2007 p.69), ao mesmo tempo em que
compreende e se apropria das experiências, saberes e conhecimentos do professor que é
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sujeito e ator da sua história.

PELA PRIMEIRA VEZ SOU AUTORA DA MINHA PRÓPRIA HISTÓRIA: A


HISTÓRIA DE VIDA DE UMA PROFESSORA NEGRA CONTADA DE UMA
FORMA DIFERENTE

A pesquisa que estamos desenvolvendo no Cariri Cearense, com vistas ao


conhecimento da história de vida de mulheres/professoras negras e militantes do movimento
social negro, está nos aproximando de pessoas que são verdadeiras protagonistas de uma
trajetória de luta, marcada por momentos de dificuldades, mas acima de tudo, marcadas por
uma forte identidade e desejo que as motiva a caminhar acreditando na possibilidade de um
futuro onde o racismo seja superado, o multiculturalismo respeitado e a democracia racial
deixe ser um mito, passando a fazer parte da nossa realidade concreta.
Entendemos que não existe uma forma mais justa de estabelecer o diálogo desejado
com essas mulheres, se não, dando-lhes a oportunidade de nos contar a sua própria história.
Para isso, adotamos como metodologia de trabalho as narrativas (auto)biográficas, as quais
encontram-se inseridas na pesquisa de histórias de vidas, valorizando o uso da oralidade.
A partir de agora apresentaremos um pequeno recorte dos resultados obtidos até o
presente momento, visto que a pesquisa encontra-se em fase de desenvolvimento. Nesse
sentido, faremos referência apenas a narrativa (auto)biográfica de uma professora chamada
Valéria Gecina das Neves Carvalho506, uma mulher negra, nordestina, que atualmente
encontra-se com 57 anos e reside no município de Crato507. Sua formação inicial se deu na
área de Pedagogia, o que a possibilitou trabalhar no campo da educação durante 30 anos em
sala de aula e 5 no espaço da gestão escolar. Há quase um ano aposentou-se, mas quando
esteve em pleno exercício da profissão, trabalhou durante toda a trajetória profissional no
Estado de São Paulo, nas séries iniciais do ensino fundamental. Ela explica que,

506
GRUNEC (Grupo de Valorização Negra do Cariri) foi criado no ano de 2001 e desde então vem realizando
ações de educação tanto dentro, quanto fora da escola. “Se a gente é chamada pra uma palestra La num sítio, é
educação. É um trabalho de educação, não é educação formal, mas é educação.” (Valéria, 28/07/2015)
507
Cidade localizada no interior do Ceará e que configura-se como um dos municípios que compõe a região do
Cariri.
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Eu tive que sair da minha terra, de perto dos meus pais, dos meus irmãos, dos meus
amigos, por conta de trabalho, porque aqui em Crato o que tava destinado pra nós,
era a cozinha dos doutores do Crato, da burguesia de Crato ou o tanque de roupa e
eu não queria, nem meus pais queriam isso. (Valéria, 28/07/2015)

É importante ressaltar que o fato de Valéria ter conseguido em São Paulo a formação e
o progresso profissional que muito provavelmente ela não conseguiria no Cariri Cearense, não
a isentou de situações marcadas, segundo ela, por “preconceito de todo o tipo que pudermos
adjetivar”.
Com base nisso, serão abordados na ocasião deste trabalho, aspectos da relação
existente entre a trajetória de construção de identidade da professora apresentada e as suas
concepções pedagógicas, enquanto docente da educação básica.
Tomando como referência a idéia defendida por Gomes (2003) acerca da construção
da identidade negra, entendemos que este processo envolve dimensões pessoais e sociais, isto
é, durante a nossa trajetória de construção identitária, além de considerarmos as nossas
singularidades e especificidades, somos também acometidos por fortes influências presentes
no meio social em que encontramo-nos inseridos(as), podendo estas contribuir positivo ou
negativamente para tal processo. A autora ainda destaca que:

A identidade negra se constrói gradativamente, num processo que envolve inúmeras


variáveis, causas e efeitos, desde as primeiras relações estabelecidas no grupo social
mais íntimo, em que os contatos pessoais se estabelecem permeados de sanções e
afetividade e no qual se elaboram os primeiros ensaios de uma futura visão de
mundo. Geralmente tal processo se inicia na família e vai criando ramificações e
desdobramentos a partir das outras relações que o sujeito estabelece. (GOMES, 2003
p. 171)

Tais ideias são corroboradas pelas narrativas de Valéria, quando esta afirma que o seu
processo de construção da identidade negra começou em casa, por intermédio de seus pais,
avós, tios e bisavó, com quem ela costumava sentar-se em rodas de conversas no terreiro de
casa para ouvir histórias, segundo ela, “as histórias bonitas do seu povo”. A professora
ressalta que “não precisava ir para a história da África não, era a nossa própria história. A
nossa construção se deu a partir da nossa história. Meu pai e meu avô, costumavam dizer

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‘Minhas filhas, vocês não são nem melhores, nem piores do que ninguém, vocês são pessoas
com direitos e deveres iguais.”
É possível perceber, a partir das narrativas referentes a história de vida de Valéria que,
seus familiares tinham bastante consciência da sua negritude, o que não significa afirmar que
eles não passaram por situações de discriminação, preconceito e racismo, mas sim que havia
em sua família a preocupação de prepará-la, juntamente com os seus nove irmãos (ãs) para
que nenhum deles precisasse sentir-se diminuído diante de ninguém.
Ainda no tocante à questão do processo de construção identitário da professora,
procuramos saber se a sua passagem pela educação básica influenciou de alguma forma o
seu modo de ver e entender as questões étnicorraciais. No que diz respeito a essa
questionamento, Valéria diz que não, pois o negro era visto da mesma forma como ainda
é visto hoje. “Negro é como hoje [...], é sujo, tem cabelo ruim. No meu tempo era assim,
e hoje também.” Apesar disso, ela considera de fundamental importância o papel da
escola na construção da identidade negra, desde que ela cumpra o seu dever de educar
para o respeito e para a diversidade, pois o que se tem observado é um distanciamento
muito grande entre ser fundamental a realização de um trabalho que contemple esta
discussão etnorracial e o ato concreto de fazer. Uma prova disso, diz ela, é a não
implementação da Lei Nº 10.639/03508 em todo o país.

Partindo do entendimento de que a professora reconhece a instituição escolar


como uma possibilidade de combate ao racismo, buscamos compreender, por meio das
suas narrativas, de que forma o seu trabalho pedagógico contribuiu para a construção
positiva de identidades negras e de relações pautadas no respeito a diversidade.

Ao deparar-se com esse questionamento, Valéria revela que durante o exercício


de sua profissão sempre desejou contribuir com o processo de construção identitária de
seus alunos, no entanto, isso se deu da forma mais natural possível, visto que, havia entre
ela e as crianças uma forte relação de igualdade; ambos compartilhavam de trajetórias

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Lei federal que obriga o ensino da história e cultura africana e afrobrasileira nas escolas de educação básica
de todo o Brasil.
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semelhantes.

Eu tava em São Paulo trabalhando com filhos de nordestinos, que se quer tinha
o direito de dizer: “Eu sou do Ceará”, “Eu sou do Pernambuco”, “Eu sou de
Alagoas”, “Eu sou da Bahia”. Nordestinos em São Paulo são todos baianos,
baianos, retirantes, pobres, todas as mazelas estão ali. Então assim, foi fácil
porque eu, mulher negra, com aquele “sotacão” de nordestino. Quando eu
cheguei os pais dos alunos, se identificaram comigo, de primeira pelo sotaque.
Então essa foi a primeira empatia. E aí eu pautei nas minhas aulas, durante os
meus trinta anos de magistério, a minha vida, foi a minha vida, foi o jeito que
eu gostaria de ter sido trabalhada, de uma maneira muito natural: “Quem são
seus avós? Quem são vocês? Tu tens certidão de nascimento?” Eu sempre
comecei pela certidão de nascimento. “Vamos lá, o que é que tá escrito aqui?
De onde tu veio? O que é avô paterno? O que é essa história de paterno, de
materno?”

De acordo com a professora, conhecer toda a história e cultura do continente


africano, não é a única condição necessária para trabalhar as questões étnicorraciais. Ela
destaca que sua formação acadêmica não lhe habilitou para a abordagem dessa temática,
mas ela sabia que não precisava ir muito longe para encontrar elementos dessa história e
dessa cultura: bastava olhar para os seus alunos, bastava escutá-los, e era assim que fazia.
Muitas vezes eu escuto os professores falando assim: “Nós não temos
formação. Nós não fomos formados pra trabalhar as questões étnicas. Como é
que faz?” Eu também não fui formada [...]. Quando os professores dizem: “A
gente não tem material, a gente não tem isso, a gente não tem aquilo.” A gente
tem material! Sabe qual o primeiro material que a gente tem? Os alunos. [...]
Então a gente pode trabalhar a partir do olhar e da escuta do seu próprio aluno.
Não estou dizendo que a formação não é importante. Não é isso. Mas nas
escolas de ensino básico, né? De ensino fundamental, de primeira à quarta série
e de educação infantil, o que a gente precisa é olhar e escutar os alunos e as
famílias dos alunos, é claro.

Por fim, Valéria ressalta que o trabalho realizado com vistas a construção da
identidade dos nossos alunos, é um processo de aprendizado e de crescimento mútuo,
pois “a gente pensa que tá ajudando na construção da identidade dos outros, quando na
verdade estamos construindo é a nossa própria identidade.”

Desse modo, é possível entendermos que nessa relação de ensino-aprendizagem o


professor também se transforma por meio do contato com as histórias de vida e na troca
de experiências vivenciada com os alunos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos resultados apresentados é possível considerarmos que o trabalho com


histórias de vida - narrativas (auto)biográficas, apesar de configurar-se como uma
metodologia de trabalho utilizada há pouco mais de duas décadas no Brasil, tem se
mostrado um método válido e eficaz no estudo e no conhecimento de diversas questões
concernentes ao campo educacional, visto que ao adotá-las como ferramenta de trabalho,
além de termos a oportunidade de explorar novos objetos de estudo e encontrarmos
respostas para novos questionamentos, estamos ao mesmo tempo envolvidos em um
processo de formação que beneficia tanto o narrador (por meio das reflexões que
realizam acerca de sua prática e experiência), quanto o pesquisador que passará a
conhecer a realidade da escola, sob uma perspectiva que difere daquela que é apresentada
por teóricos que nunca pisaram no chão de uma sala de aula.
Outro ponto que merece ser considerado como elemento conclusivo do trabalho
refere-se aos importantes resultados que estamos obtendo por meio das narrativas
(auto)biográficas das professoras negras do Cariri Cearense, as quais estão tendo a
oportunidade de serem autoras de suas histórias e protagonistas de uma trajetória de luta
que lhes caracteriza enquanto mulher negra e profissional da educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUENO, Belmira Oliveira. O método autobiográfico e os estudos com histórias de vida de


professores: a questão da subjetividade. Educação e Pesquisa, vol. 28, núm. 1, janeiro-
junho, 2002, pp. 11-30 Universidade de São Paulo São Paulo, Brasil. ISSN: 1517-9702.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/v28n1/11653.pdf> Acesso em: 23 ago. 2015
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professores e profissão docente (Brasil, 1985-2003). Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32,
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GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar
sobre o corpo negro e o cabelo crespo. In: Revista Educação e Pesquisa (ISSN 1517-9702) –
versão on-line - São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003. Disponível em:
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Acesso em: 08 set. 2015

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AQUI MULHER FAZ A LUTA: O FEMININO E LUGARES DE LIDERANÇA NA


COMUNIDADE QUILOMBOLA DO GRILO-PB

Alcione Ferreira da Silva | alcionefs@hotmail.com


Patrícia Cristina de Aragão Araújo

INTRODUÇÃO

Esse texto retoma os resultados da pesquisa Práticas culturais, memória e a arte de


inventar o cotidiano: (re) escrevendo as brincadeiras infantis, cantigas, festas e práticas de
cura em três comunidades afro-descendentes paraibanas, vinculada ao Programa de
Incentivo à Pós-graduação e Pesquisa (PROPESQ) da Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB), apontando para um protagonismo feminino na Comunidade, elemento que não fora
contemplado na referida pesquisa, por não ser objetivo da mesmo e, em face disto, lançando
tal elemento como proposta de pesquisa a ser aprofundada através do Programa de Pós
Graduação em Serviço Social-UEPB.

QUILOMBO: BREVE DISCUSSÃO TEÓRICA

Ao falarmos em uma comunidade quilombola, faz-se necessário, tecer algumas


considerações acerca do referido conceito. De acordo com Munanga (1996), o termo
aportuguesado quilombo tem origem da palavra Kilombo, cuja gênese remete aos povos
africanos pertencentes ao tronco linguístico bantu, localizados ao sul da floresta equatorial
especialmente da região onde se localiza Angola, que foram trazidos para o Brasil por ocasião
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do processo de escravização das/os africanas/os.


Munanga (1996) afirma que a compreensão da palavra kilombo, em sua dimensão
sociopolítica e militar, passa pela história de conflitos pelo poder que envolve povos bantu,
entre os séculos XV e XVII. Nesse contexto de conflito, o quilombo era formado por alianças
que agregavam homens “submetidos a dramáticos rituais de iniciação que os retiravam do
âmbito protetor de suas linhagens e os integravam como co-guerreiros num regimento de
super-homens invulneráveis às armas de inimigos” (MUNANGA, 1996, p. 60).
O quilombo, em sua gênese, cumpria uma importante função ao ser capaz de
solidificar “uma estrutura firme capaz de reunir grande número de estranhos desvinculados de
suas linhagens vencidas e uma disciplina militar capaz de derrotar os grandes reinos que
bloqueavam sua progressão” (MUNANGA, 1996, p. 60).
É a partir dessa constituição histórica que pensa do quilombo estrutura sócio-política
de resistência, que podemos apontar que no Brasil houve, em grande medida, recriações do
modelo africano, pois

Pelo conteúdo, o quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo


africano reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata,
pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontraram todos os
oprimidos. Escravizados, revoltados, organizaram-se para fugir das senzalas e das
plantações e ocuparam partes de territórios brasileiros não-povoados, geralmente de
acesso difícil. Imitando o modelo africano, eles transformaram esses territórios em
espécie de campos de iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os
oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando um modelo de
democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar (MUNANGA, 1996, p. 60).

O quilombo, contudo, não é um conceito que emerge isento de debates. De acordo


com LEITE (2000, p. 238), a partir de um levantamento de abordagens presentes na
historiografia brasileira alguns autores chamam atenção para os dois extremos nos quais o
quilombo é abordado, “a partir do ideário liberal, proveniente dos princípios de igualdade e
liberdade da Revolução Francesa, em que é romanticamente idealizado; ou, sob o viés
marxista-leninista, no qual é associado à luta armada.” É importante que se ressalte para além
desses dois extremos, quilombo é um termo que vem sendo utilizada desde o Brasil colônia,
indicando uma multiplicidade de conceitos, adquirindo muitas variações tanto na tradição
popular quanto acadêmica brasileiras, entretanto consideramos que:
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A característica que torna singular o quilombo do período colonial e do atual para


este autor –MOURA- decorre do fato de que todas as experiências já conhecidas
revela uma certa capacidade organizativa dos grupos [...] Destruídos dezenas de
vezes reaparecem em novos lugares como verdadeiros focos de defesa contra um
inimigo sempre ao lado [...] esse caráter defensivo começa a mudar, em parte com a
abolição, quando mudam-se os nomes e as táticas de expropriação, e a partir de
então a situação dos grupos corresponde a outra dinâmica, a da territorialização
étnica como modelo de convivência com os grupos da sociedade nacional. Mas por
outro lado, inicia-se a longa etapa de construção de identidade desses grupos seja
pela formalização da formação étinico-cultural no âmbito local, regional ou
nacional, seja pela consolidação de um tipo específico de segregação social e
residencial dos negros, chegando até os dias atuais. (LEITE, 2000, p. 338)

O autor, Moura (1987), nos mostra uma visão de quilombo destacando para esse, um
caráter essencialmente de resistência, de contraposição a uma sociedade excludente, as
organizações quilombolas seriam assim, fruto de rebeliões organizadas de negação ao sistema.
ARUTI (2006) ao discutir a formação histórica e antropológica dos quilombos traz
uma gama de forma de pensá-lo, algumas delas suscitadas com o advento do artigo 68 da
Constituição Federal de 1988 que se refere às comunidades remanescentes de quilombo,
dentre elas destacamos aqui as produções dos pesquisadores do início dos anos 90 da
Fundação Cultural Palmares (FCP), segundo os quais, de maneira geral, os “quilombos
contemporâneos” são apresentados como comunidades cuja identidade definiu-se como étnica
e não racial, não sendo a cor da pele o elemento definidor central, mas os elementos culturais
gestados e fortalecidos no interior das mesmas, entre eles o uso comum da terra.
A autora, LEITE (2000), enfoca a discussão dos quilombos na atualidade sobre o
prisma da luta dos afro-descendentes como atores políticos, especialmente após a
promulgação da Constituição Federal de 1988, com enfoque nos impasses nela presente no
tocante a questão da terra e os quadros atuais de exclusão social no Brasil.
Conforme exposto, muitos são os enfoques conceituais a partir dos quais as
comunidades quilombolas podem ser analisadas, estando permanentemente abertas à
discussões. Nesse sentido, Marques (2008), ao discutir a resignificação conceitual sobre as
comunidades quilombolas, aponta que se abrem perspectivas para se pensar tais comunidades
desvinculando-as de concepções que as confundem com o Quilombo de forma “frigorificada”,
ou seja, estagnada, que anteriormente buscava encontrar nas atuais comunidades

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características “imutáveis” atribuídas aos quilombos de outrora.


Nesse sentido, identificar comunidades quilombolas com “restos” de quilombos
revelou-se uma concepção limitada, conforme Marques (2008), que chama atenção para o fato
dos legisladores da Constituição Federal terem utilizado o termo “remanescente”, que julga
mais adequado que “descendente” de quilombos. Arruti (2006), também ressalta a
importância desse deslocamento conceitual, haja vista que “remanescente”, reconhece a
pluralidade presente nas comunidades em questão, pois deixa-se assim para trás a ideia de um
grupo homogêneo e estático formado unicamente sobre as mazelas provocadas pela
escravização negra.
Isto não equivale a dizer que, a ressemantização aponta para uma comunidade
quilombola descaracterizada, segundo Marques (2008), antes, ela constitui um novo
fenômeno sociológico que se constitui basicamente a partir da

(1) indissociabilidade entre identidade e território; (2) processos sociais e políticos


específicos, que permitiram aos grupos uma autonomia; (3) territorialidade
específica, cortada pelo vetor étnico no qual grupos sociais específicos buscam uma
afirmação étnica e política em face de sua trajetória (ALMEIDA,2002 Apud
MARQUES, 2008, P. 346).

HISTÓRIA ORAL: PERCURSOS METODOLÓICOS

Fazemos uso do método da História Oral por reconhecermos nela, uma técnica que
nos permite, por meio de entrevistas, não apenas entrar em contato com o individuo que nos
fala, mas com o contexto no qual ele está inserido, uma vez que,

A história oral recupera aspectos individuais de cada sujeito, mas ao mesmo tempo
ativa uma memória coletiva, pois, à medida que cada indivíduo conta a sua história,
esta se mostra envolta em um contexto sócio-histórico que deve ser considerado.
Portanto, apesar de a escolha do método se justificar pelo enfoque no sujeito, a
análise dos relatos leva em consideração, como já foi abordado anteriormente, as
questões sociais neles presentes. (OLIVEIRA, 2005, p. 94 APUD ARAÚJO &
SANTOS 2007, p. 192).

A história Oral é, ainda, um significativo método de pesquisa para os que se voltam


para as chamadas “minorias”, entretanto não se deve por isso recair em erros como o de

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tomar um depoimento como a própria historia, pois do contrário “a entrevista, em vez de fonte
para o estudo do passado e do presente, torna-se a revelação do real” (PINSKY, 2005, p. 158).
Outro erro que se deve evitar consiste em polarizar a história oral, necessariamente, como
democrática e reveladora da história vista de baixo,

Polarizações do tipo História “de baixo” versus História “de cima” contribuem para
diluir a própria especificidade da História oral, ou seja, a de permitir o registro e o
estudo da experiência de um número cada vez maior de grupos, e não apenas dos
que se situam em uma posição ou outra da escala social. (PINSKY, 2005, p. 158-
159).

No que tange às concepções teóricas que norteiam nosso trabalho, ajudaram a


costurar nossas análises na pesquisa: CERTEAU (2002) e CHARTIER (1990). O debate
estabelecido entre os teóricos anteriormente citados nos permite pensar a leitura (visão de
mundo) e o consumo não como momentos de passividade, mas como atos criadores. No
presente trabalho adotamos uma perspectiva na qual

Concebidos como um espaço aberto a múltipla leitura, os textos e também todas as


categorias de imagens, não podem então, ser aprendidos nem como objetos nem
como objetos cuja distribuição bastaria identificar, nem como entidades cujo
significado se colocaria em termos universais, mas presos na rede contraditórias das
utilizações que os constituíram historicamente (CHARTIER, 1990, p. 61).

Isto significa dizer que entre o texto (entendendo este como quaisquer informações
escritas visuais, ou de outra natureza podem ser consideradas textos, são passiveis de leitura)
e o leitor há um espaço, um momento criador e não um vazio absoluto, “os textos (...) não se
inscrevem no leitor como o fariam em cera mole” (CHARTIER, 1990, p. 25).
A inventividade do mais fraco é o que esta em relevo, sendo ela permanente no
cotidiano dos quilombolas, que fazem do seu dia-a-dia um teatro de operações onde se utiliza
de táticas para escapar às estratégias do forte. Aqui se faz pertinente distinguir estratégias e
táticas:

Chamo de estratégia o calculo (ou a manipulação) das relações de força que se torna
possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa,
um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia
postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio de ser a base de
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onde se podem gerir as relações como uma exterioridade de alvos ou ameaças. (...)
chamo de tática a ação calculada que é determinada pela a ausência de um próprio
(...). A tática não tem por lugar senão o do outro (...). Em suma, a tática é a arte do
fraco (CERTEAU, 2002, p. 99-101).

Nessa perspectiva é que buscamos nas imagens do cotidiano, presentes na


comunidade do quilombo do Grilo, as artes de fazer presentes na referida comunidade, não de
forma isolada, mas atentando para as conexões históricas das mesmas, a partir de um estudo
de caso que pode ser conceituado como: “Uma família de métodos de pesquisa cuja decisão
comum é o enfoque numa instância [...] pode ser um evento, uma pessoa, um grupo, uma
escola, uma instituição, um programa” (ANDRÉ, 1984, p. 51). Para tal nos assentamos sob a
perspectiva da abordagem qualitativa que, de acordo com Minayo (1994), objetiva pensar um
nível de realidade que não pode ser quantificado, reduzido a amostras numéricas. Esta
abordagem trabalha com o universo de significados, dos valores o que corresponde a um
ambiente mais denso das relações, dos processos e dos fenômenos sociais.
Cabe destacar que tomaremos, em nosso trabalho, o estudo de caso em sua
característica que se volta para a interligação do problema estudado com o contexto social que
lhe torna possível, haja vista que nossa ênfase recairá sobre

[...] “a interpretação em contexto”. É um pressuposto básico desse tipo de estudo


que uma apreensão mais complexa do objeto só é possível se for levado em conta o
contexto no qual se insere [...] Os estudos de caso procuram retratar a realidade de
forma completa e profunda, esse tipo de estudo pretende revelara multiplicidade de
dimensões presentes numa dada situação, focalizando-a como um todo, mas sem
deixar de enfatizar os detalhes, as circunstâncias específicas que favorecem uma
maior compreensão desse todo (ANDRÉ, 1984, p. 53).

A partir dessa metodologia, tomamos como base para pensar o contexto no qual se
insere a história da comunidade, o paradigma da afrocentricidade que conforme (ASANTE,
2009), nos coloca a necessidade de promover uma analise da experiência dos(as)
afrodescentes centrada em algumas características, entre as quais destacamos a centralidade
da comunidade; respeito à tradição; harmonia com a natureza; natureza social da identidade
individual e unidade do ser.

A COMUNIDADE REMANSCENTE DE QUILOMBO DO GRILO-PB: INDÍCIOS


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ACERCA DO PROTAGONISMO FEMININO

A comunidade remanescente de quilombo do Grilo, pertence à zona rural do


município de Riachão do Bacamarte, localizado no Agreste do estado da Paraíba. Impõe-se do
alto de um lajedo, havendo algumas dificuldades relativas à acessibilidade, aos que lá
pretendem chegar. A referida dificuldade de acesso é uma característica que foi comum aos
quilombos do período colonial, que permanece presente em muitas comunidades quilombolas
rurais da atualidade.
O vínculo com o passado escravocrata está expresso na memória dos habitantes do
Grilo, conforme vemos no depoimento de uma das mulheres da comunidade quando
questionada sobre histórias da escravidão que lhes foram/são contadas:

[...] ela (a mãe da depoente) contava, assim, o que acontecia [...]. Disse que
existia... As pessoas pegavam as pessoas... Levavam pra escravidão. E, até eu era
jovem, eu perguntava pra ela o que era escravidão, aí ela dizia que era no outro
tempo. As pessoas pegavam os negros, só gostavam mais dos negros pra ser
escravo. Batia... apanhava muito, pra trabalhar pra ele. Pra os senhores [...].
Ela contava muito essa historia, ela dizia que esse negócio vinha de muito tempo
atrás [...] Só gostava dos negros. Pra que era pra ser escravo deles... Pra trabalhar de
graça pra eles e até apanhava que o coro dos pinhaço largava (D. Maria de Lourdes
Tenório cândido, 2009)
Memórias da escravização negra não são as únicas que as mulheres narram, é
interessante destacar que, por ocasião da realização da pesquisa PROPESQ a cada entrevista,
quando questionadas sobre outras pessoas que poderiam contar a história da comunidade as
mulheres apontavam apenas outras mulheres e, nas histórias narradas, a figura feminina
comumente protoganizava.
Esse protagonismo apareceu inclusive em situações nas quais os homens
frequentemente aparecem como figura central, a exemplo do lugar de permissão/autoridade
para namoro das filhas conforme observamos na fala a seguir:

Aí eu em pé, assim tremendo de medo, quando eu pensei que não, ele


chegou... Isso era a boquinha da noite. O que foi que ela fez... Ela botou
o candeeiro... botou gás no candeeiro, que nesse tempo num tinha luz. Ela botou o
gás no candeeiro... Puxou o pavio bem grande e veio. Ele tava sentado num banco
[...] Chegou bem pertinho dele e lumiou ele... Mas era braba... Luniou assim pro
lado dele aí disse seu pai é fulano de tal né? Ele disse: é... Seu Mané. Seu Mané
Avelino é seu tio né? É... Sua mãe eu conheço muito sua mãe. [...] Tenha uma coisa

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seria. Você vai namorar com ela. Mas você ta vendo a cor dela... Num ta?. Sua mãe
é branca. Sua família é branca e ela é pretinha. Agora num venha praqui criticar dela
não que eu num tenho ela pra criticar não. Eu tenho ela pra casar.... E respeitar, viu?
E, aqui é assim... Assim... Assim... Assim... Assim... (Maria Pereira dos Santos,
2009).

Acerca da preponderância das mulheres como integrantes da comunidade que


resguardam sua história, é pertinente notar que D. Maria Pereira, afirma não “ser do Grilo”,
haja vista que foi morar lá, apenas após casar-se com um membro da Comunidade, todavia ao
questionar o casal sobre quem poderia nos falar do Grilo, a mulher foi apontada e contou que
o que sabe lhe fora repassado pela sua mãe e de seu esposo:

Alguma algo que eu sei foi da minha mãe. Então minha sogra quando eu cheguei
praqui era pessoa já muito velhinha [...] ela foi nascida aqui. Ela nasceu aqui e
contava muita historia assim das coisas que se passava.Que já se passou dos tempos
dos pais dela [...] Era muita, muita coisa ela me contava (Maria Pereira dos Santos,
2009).

Nas histórias narradas, em posições de destaque da comunidade as mulheres


comumente estão presentes, como no caso das benzedeiras e parteiras, todavia em espaços
“silenciosos” do cotidiano, elas também estavam. Nesse sentido é emblemático o caso de D.
Maria Tenório, merendeira, que em época na qual a comunidade atravessou sérios problemas
com fome, ela utilizava-se de sua profissão, para alimentar muitas pessoas do Grilo.

E aqui era todo mundo carente. Muita gente chegava perto deu “Ohw! Maria me dá
uma coisinha ai” Oxe! Num tinha demora [...] Eu já fazia de sobra [...] Muita gente
chegava com a baciinha e sentava no pé da parede comia e enchia a barriga... Muitos
deles que era carente mesmo [...] E eu conversava com ele e ele era um
prefeito que vinha muito na minha casa. Aí eu disse “João Cabral... Tá acontecendo
um negócio aqui... e eu preciso falar com você [...] e ele disse dá de beber a quem
tem sede” (D. Maria de Lourdes Tenório cândido, 2009)

Dona Maria de Lourdes, conta como a partir desse episódio a “merenda da escola”
passou a vir em grande quantidade sendo suficiente para alimentar um número maior de
pessoas do que os estudantes.
A partir dessas falas captadas entre temas diversos tratados por ocasião da pesquisa
PROPEQ, observamos indícios de que na comunidade remanescente quilombola do Grilo, as
mulheres ocupam lugares de protagonismo que merecem ser compreendidos e que podem
lançar luz para nossa sociedade ainda marcada pelo machismo e sexismo.
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Nossa hipótese é que esta peculiaridade da comunidade do Grilo seja advinda de


elementos constitutivos da matrilinearidade. Chagas (2011) afirma que no modelo de
organização social e política da África pré-colonial a matrilinearidade delegava à mulher
poder de comando e decisão, em igualdade com o poder exercido pelo masculino, dessa forma

[...] a mulher não se limitava a participação no poder ao lado do homem, mais


também era quem decidia sobre as questões políticas, administrativas e econômicas
[...] era a responsável direta pelos destinos e manutenção das comunidades
tradicionais (CHAGAS, 2011, p. 02).

Conforme Chagas (2011), na tradicional percepção de cultura africana, os diferentes


são percebidos como complementares formadores de uma unidade. Nesse sentido, “homem e
mulher partilhavam o poder e quando isso ocorria um equilíbrio era assegurado nos negócios
de Estado” (CHAGAS, 2011, p 06).
As concepções sobre esse modelo de organização, conhecido por muitos africanos que
foram escravizados no Brasil, relacionam-se com a formação de comunidades tradicionais
negras no Brasil, na medida em que nessas comunidades traços da “África Tradicional” foram
recriados e reatualizados.
Para compreendermos essa relação, é preciso que percebamos que a gênese das
comunidades quilombolas está intrinsecamente vinculada ao momento histórico da
escravização, no qual a fuga se configurou como uma forma de resistência ao regime de
intensa exploração que atingia a população negra, da qual alguns elementos podem ser
sentidos ainda na atualidade.
Nesse sentido, é emblemático ainda que a liderança comunitária do Grilo seja marcada
pelo feminino, na pessoa de Leonilda Tenório, assim como é interessante destacar a única
tentativa da comunidade em lançar-se na política partidária adveio desta liderança e este
episódio foi visto com naturalidade pela comunidade, o que contraria um cenário social mais
amplo no qual a política é constituída massivamente por homens.
É a partir desses indícios que nos propomos a retornar ao Grilo com o intuído de
analisar a relação entre elementos da matrilinearidade e o protagonismo feminino, buscando
compreender a historicidade da questão posta e avançar buscando perceber se e como esses
indícios se fazem presentes na história de lutas por conquistas sociais da comunidade, tais
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como, escola, cisternas e associação, haja vista que as mesmas foram narradas por mulheres
que rememoravam outras, fazendo emergir outros indícios de uma história de luta
protagonizada por mulheres negras do espaço rural.

APROXIMAÇÕES CONCLUSIVAS

A partir de depoimentos de mulheres da Comunidade remanescente quilombola do


Grilo, é possível apontar para a compreensão de que o cotidiano e as experiências de luta da
comunidade permitem às mulheres um lugar de destaque, cujas origens podem vincular-se a
elementos da matrilinearidade advindos da organização sócio-política da África Tradicional,
da qual as comunidades quilombolas são herdeiras. Este estudo, ainda em fase inicial
(levantamento bibliográfico) possibilita uma postura de questionamento a sociedade ainda
atravessada pelo machismo e múltiplas formas de exclusão das mulheres, fazendo perceber a
historicidade destas e, portanto, a possibilidade concreta de subvertê-las.

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Entrevistadora: Alcione Ferreira da Silva. Entrevista concedida ao projeto: (re)escrevendo as
brincadeiras infantis, cantigas, festas e práticas de cura em três comunidades afro-
descendentes paraibanas.
SANTOS, M. P. Maria Pereira dos Santos. 1° depoimento [out... 2009]. Entrevistadora:
Alcione Ferreira da Silva. Entrevista concedida ao projeto: (re)escrevendo as brincadeiras
infantis, cantigas, festas e práticas de cura em três comunidades afro-descendentes paraibanas.

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DE CASA PARA A RUA: A EMANCIPAÇÃO DA MULHER CAXIENSE

Maria Ivani Pereira dos Santos | mivani5@hotmail.com


Salânia Maria Barbosa Melo

INTRODUÇÃO

Tem-se observado ao longo dos anos na sociedade caxiense que o modelo da mulher
ideal é a mulher esposa, mãe e dona de casa. Esta na maioria das vezes era envolvida em um
discurso que a taxava como sexo frágil. Desta forma, não poderia frequentar o mesmo
ambiente que o homem, uma vez que corria o risco de se envolver com o mesmo caindo em
perdição. A mulher deveria se dedicar única e exclusivamente a família, até mesmo as
aspirações desta deveriam ser direcionadas a família já que tinham de estar relacionadas ao
matrimônio e aos filhos.
Entretanto, chegou-se a um momento em que ela sente a necessidade de sair do espaço
privado para o público. Ela passa a lutar para ter os mesmos direitos que o homem chegando a
obter algumas vantagens. Embora a mulher tenha conseguido assegurar alguns direitos ao
longo dessa luta percebe-se que ainda existem muitos tabus a serem quebrados em relação à
mulher e a sua participação na sociedade.
Inicialmente analisam-se algumas fontes bibliográficas que abordam a temática,
atentando para os discursos envolvidos nas mesmas sobre o papel da mulher na sociedade. Em
seguida busca-se compreender o espaço privado e público, mostrando que o privado ao longo
dos anos foi reservado a mulher, a qual estava sob a dominação masculina tendo que se
submeter ao homem sem contestar ou manifestar sua insatisfação.
Já o espaço público estava reservado ao homem, este ao contrário da mulher poderia
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adentrar a esta esfera e resolver tudo aquilo que era de natureza pública, além de ser o único
provedor da família e responsável pelas decisões desta, até mesmo no âmbito doméstico. E,
finalmente enfatiza os espaços conquistados pela mulher, mostrando que a luta da mesma
durante vários anos valeu a pena já que ela conseguiu conquistar e assegurar vários direitos.

O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE

A história é construída tanto por homens quanto por mulheres, entretanto, isto nem
sempre foi percebido pela sociedade, a qual relegava a mulher a um segundo plano
considerando-a como ser inferior.
Desde o emergir da humanidade a mulher vem sendo considerada como sexo frágil,
incapaz de desenvolver certas habilidades tidas até então como pertinentes ao homem. Esta ao
longo dos anos vem lutando em busca da sua inserção no espaço público, tendo em vista que a
sociedade via a mulher como um ser que não tinha uma função social, a sua participação
social se fazia apenas através da família.
Sua função na sociedade era única e exclusivamente cuidar da casa, do marido e dos
filhos. Ela não devia opinar nos assuntos do esposo, tinha que se dedicar aos afazeres
domésticos e a educação dos filhos, principalmente das meninas para que futuramente se
tornassem boas mães e boas donas de casa.

O código civil brasileiro de 1916, baseado no Direito Romano caracterizava a


mulher como civilmente incapaz, dessa forma sacralizava a inferioridade feminina.
Embora a manutenção da família tenha passado a ser de responsabilidade dos
cônjuges, apenas o homem era representante legal da família, cabendo a ele a função
de administrar os bens comuns e dos particulares (SILVA, 2010, p. 36).

A mulher no decorrer dos anos se viu envolvida em um discurso que a marginalizava


excluindo-a de uma participação efetiva na sociedade e em Caxias não é diferente do resto do
país, em 1950 percebe-se que “[...] a sociedade caxiense empenha-se em representar a mulher
ideal em uma única palavra composta: esposa-mãe-dona-de-casa, delegando-a três funções
que a esmaecia como um ser singular, dotado de aspirações” (PEREIRA, 2010, p. 27), ela
tinha que aceitar essa imposição da sociedade.

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Essa construção em torno da figura feminina - porque considerar a mulher como um


ser inferior e incapaz é uma construção da sociedade - é um limite determinado pelo homem a
fim de separar o poder impondo assim uma delimitação entre o público e o privado. Neste
sentido, reforçam-se as representações que relacionam a mulher ao privado e o homem ao
espaço público.
Desta forma, percebe-se que há uma necessidade de desconstruir aquilo que ao longo
dos anos vem sendo transmitido por meio de uma visão preconcebida da elite intelectual que
se propõe a escrever a história da humanidade; desconstruir não no sentido de anular ou negar
o que foi escrito, mas de tornar visível aquilo que foi escondido ou relegado a um segundo
plano, e é o que vem acontecendo nos últimos anos.
A maneira como as mulheres se comportaram nos diferentes contextos sociais passou
a ser compreendida como algo intenso no processo de aprendizagem sociocultural de gênero.
Isto porque as desigualdades de gênero foram produzidas através das relações sociais,
políticas e econômicas vigentes em diferentes contextos.
Pode-se dizer que “a trajetória da mulher no Brasil vem sendo construída pela
demarcação sexual do espaço público e privado509” (CASTILHO; MARIUCCI, 2011, p.1), já
que ela é considerada pela sociedade machista como uma propriedade do homem.

Esse modelo é importado pela colonização e adaptado às condições sociais do


Brasil. Apesar da desintegração do patriarcado rural do Brasil, o poder e autoridade
masculinos vem se mantendo em diferentes formas de organização política
(coronelismo, clientelismo e patriarcalismo). (CASTILHO; MAURICCI, 2011, p.2-
3).

Por muito tempo as diferenças de gênero permearam por toda a sociedade, princípios
morais culminaram fortes discriminações em torno da figura feminina. Assim, esta visão
preconcebida da sociedade que perdura a muitos anos tem servido para excluir a mulher da
vida pública.

A visão patriarcal da diferença sexual ainda perpetua a dicotomia entre as esferas


pública e privada. A participação da mulher na esfera pública, principalmente no
mundo da política ainda é incipiente e gradual. E apresenta o dilema dessa inserção

509
“O público restringe-se ao político, inclua-se nele, ou não, a esfera civil ou apenas o estado; o privado, por
outro lado, é conotado com o mercado, com o interesse individual, com o não coletivo” (ABOIM, 2012, p.2).
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pelos limites que o cuidado com a família implica, seja pelo tempo, seja pela
qualidade disponibilizada desse cuidado e também pela divisão sexual de trabalho
(CASTILHO; MARIUCCI, 2011, p. 10).

À mulher estava reservado cuidar da família e do lar, até mesmo nos escritos
historiográficos a figura feminina até pouco tempo não tinha espaço. Isso porque a história
estava voltada para os feitos masculinos considerando o feminino como subalterno e
analisando-o fora da mesma. A mulher passava despercebida na história, é como se esta não
desempenhasse nenhum papel relevante na sociedade, desta forma, pode-se analisar que esta
ficava sempre no não dito.

A MULHER ADENTRANDO AO ESPAÇO PÚBLICO

Para entender como ocorreu a passagem da mulher do espaço privado para o público é
necessário compreender como se deu a construção da relação de domínio do homem sobre a
mulher na sociedade, tendo em vista que “é no seio social que são construídas as relações de
poder e hierarquia [...]” (SILVA, 2010, p. 16). Sabe-se que a subordinação da mulher ao
homem é resultado de um processo cultural de longa data.
A representação da mulher na sociedade está associada à fragilidade, sexualidade,
maternidade e aos trabalhos domésticos, mas essas concepções estão sendo desconstruídas
pelos movimentos feministas. Ressalta-se que no século XIX, embora o mundo moderno
tenha atribuído à mulher funções próprias do domínio privado através dos cuidados dos filhos
e ao mesmo tempo concedendo ao homem assuntos políticos e econômicos próprios do
domínio público a mulher neste momento passa a frequentar alguns ambientes proibidos,
mesmo que de forma limitada.

A partir da década de 1870, foram fundados [...] jornais feministas. Ressaltavam a


relevância da educação das mulheres, não apenas em seu benefício, mas
principalmente voltado para o bem comum [...] defendiam educação para mulheres
equivalente à dos homens, para que se tornassem boas esposas e mães [...]
defendiam que a atividade de professora primária fosse atribuída às mulheres, como
extensão das ‘funções maternais e de nutrição’ (BAPTISTA; COELHO, 2009, p. 4)

Percebe-se que os primeiros passos da mulher em direção ao espaço público estão


relacionados com profissões atreladas as funções do lar, onde a educação da mulher como
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professora estão vinculadas as funções maternais e de nutrição, sendo esta profissional


considerada uma segunda mãe.
Na esfera educacional a mulher foi por muito tempo inferior ao homem, sendo
excluída do processo de educação formal. Esta recebia uma instrução inferior à do homem,
estudava em escolas separadas a fim de garantir a estabilidade moral e social; sua educação
estava mais voltada para as tarefas do lar e as lições de boas maneiras. Em Caxias havia esse
preconceito de que a mulher devia receber uma instrução primária superficial e outra mais
apurada nos trabalhos domésticos.
Mas os processos de industrialização, urbanização e modernização repercutiram na
estrutura familiar, porque com o acesso feminino aos recursos econômicos a família
tradicional passa a ser vista como família nuclear, onde “nestes núcleos segundo algumas
interpretações, a participação da mulher no processo produtivo resultaria num maior
igualitarismo entre o casal” (SOIHET, 1997, p. 419). Assim a mulher ganharia um espaço na
tomada de decisões dentro do lar.
Em Caxias a indústria têxtil representava o desenvolvimento da cidade e nesta na
década de 1950 trabalhavam várias mulheres. “[...] Caxias começava a deixar-se envolver pela
transformação nas expectativas do que viria a ser o próprio papel da mulher [...]” (PEREIRA,
2010, p. 34). Ou seja, apesar da sociedade da época ainda alimentar a ideologia de que o lugar
desta é em casa, ela conseguiu adentrar a este espaço público considerado masculino. Mas
dentro e fora das fábricas as mulheres tiveram que enfrentar visões preconcebidas, opiniões
contrárias a manutenção desta conquista, porque:

Esse pensamento norteava a sociedade caxiense de 1950 e adentrava as fábricas,


pois a mulher pobre que ousasse enfrentar sua condição social através do seu próprio
trabalho estava condicionada a sofrer o peso do termo de ‘mulher pública’,
sujeitando-se a termos depreciativos como o de ‘pipiras de fábrica’, denominação
dada às operárias caxienses em 1950 (PEREIRA, 2010, p. 36).

Mas mesmo com todas as dificuldades elas resistiram e continuaram em busca de seus
direitos, o que não foi fácil conseguir. Neste sentido, é possível observar que elas foram muito
persistentes, chegaram até a se envolverem em manifestações de cunho trabalhista.

[...] início do século XX, foi marcado no Brasil por um crescimento da


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industrialização e, consequentemente, o surgimento do movimento operário [...] esse


movimento mantinha as mulheres numa condição de submissão, uma vez que elas se
incluíam no movimento como trabalhadoras, mas não como líderes. O movimento
operário via, ainda, as mulheres como frágeis para esse contexto e necessitadas da
proteção dos companheiros homens. Talvez aqui se iniciasse uma das primeiras
“perdas” significativas de espaço de trabalho dos homens para as mulheres, o que
era em parte uma novidade e, em parte uma ameaça ao papel masculino, enquanto
provedor da família (BAPTISTA; COELHO, 2009, p. 6).

Pode-se observar que a mulher, embora com a proteção de seus companheiros, está
inserida em movimentos de reivindicações sociais, onde é possível perceber que a mesma está
mais preocupada com o bem estar de todos sem distinção de sexos do que com suas
aspirações.
Historicamente as mulheres foram subjugadas ao homem. Mas na sociedade ocidental
ocorreram significativas mudanças no modo de ver essas mulheres, que aos poucos
conseguiram conquistar seu espaço, principalmente após a industrialização, onde ocorreram
várias transformações, não só na economia como também na estrutura social. Começa a se
formar os grandes centros urbanos e as necessidades que emergem com o êxodo rural, pois
como sabemos no Brasil predominava a vida rural, assim os aspectos da modernidade só se
tornaram significativos no século XIX quando aconteceram transformações sociais
importantes, tanto na organização familiar quanto nas novas atribuições da mulher.
No início do século XX é possível observar os primeiros passos da mulher do espaço
privado para o público, com a constituição de 1934, que concede o direito de votar e ser
votada, mas de forma tímida e com algumas limitações.
As mulheres lutaram constantemente para conquistar seus direitos, isto pode ser
percebido no movimento feminista, o qual aconteceu em três fases. Na primeira fase as
mulheres reivindicavam o direito de participar da vida pública, tendo em vista que elas assim
como os homens reúnem todas as habilidades necessárias para se inserirem no mercado de
trabalho. Na segunda fase defendiam a ideia de que não são inferiores aos homens muito
menos iguais a eles, ou seja, elas possuem sua própria capacidade podendo desenvolver com
competência as atividades que lhes forem incumbidas. Na terceira fase as mulheres exaltaram
as diferenças como um direito de diferirem dos homens, uma vez que possuem habilidades
próprias.

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A visão preconcebida em relação à mulher ultrapassou séculos e permanece até hoje,


embora com menos rigor. Em Caxias no século XX as mulheres continuam sendo subjugadas
ou exercendo profissões semelhantes ao trabalho do lar.

As professoras formavam a classe trabalhista bem vista pela sociedade caxiense. A


participação da mulher no meio educacional refere-se, sobretudo à semelhança do
trabalho executado por elas e com o amor com que as mães cuidavam de seus filhos.
(SILVA, 2010, p.47)

Esta era a atividade desenvolvida por mulheres mais aceita pela sociedade caxiense.
Desta forma, é relevante frisar que a mulher sempre esteve envolvida em um processo
histórico cheio de representações, onde:

[...] desde criança percebemos o simbolismo imposto no processo de formação da


personalidade de criança, uma vez que os próprios brinquedos dados a elas revelam
uma simbologia camuflada. À menina a boneca que representa os mesmos cuidados
da mãe para com seus filhos. Aos meninos, o carrinho, brinquedo que reflete
rapidez, agilidade, liberdade. Conforme visto somos desde pequenos modelados a
seguir certos padrões, imbuídos de uma relação de dominação (SILVA, 2010, p. 40).

Assim é possível perceber que “o papel da mulher cuidadora na esfera privada


continua se transferindo à esfera pública. Há a questão econômica e as características sexuais
e atribuições de papéis entre homem e mulher” (CASTILHO; MARIUCCI, 2011, p. 10).
Neste sentido, a história da mulher é uma história de conquistas, de superação de grandes
obstáculos.
Como já foi mencionado anteriormente a educação desta girava em torno dos três
pilares mãe, esposa e dona de casa, sendo educada de forma a se tornar submissa ao esposo,
inserindo na mentalidade da mesma a ideia de que obedecer e não contrariar o marido era o
correto, muitas vezes tendo que sufocar sentimentos de insatisfação em nome da união da
família, como por exemplo: maus-tratos, traição e humilhação.
Esta muitas vezes era submetida a todos os tipos de maus-tratos e tinha que suportar
tudo calada e continuar morando com o agressor para não ser mal vista pela sociedade, até
mesmo pela própria família porque, na maioria das vezes, esta obrigava a mulher a suportar
humilhações para não manchar sua honra.
Hoje a mulher depois de várias décadas de luta, resistência e imposição masculina vêm
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alcançando seu espaço deixando de ser uma mera sombra do homem para adquirir direitos
sociais, políticos e econômicos. “Cuidar da casa deixou de ser o único afazer de quem, hoje,
precisa dividir o tempo o ser mãe e ser profissional.” (CANTANHEDE 2003, p. 1). Elas
conquistaram vários direitos como, por exemplo, o de decidir sobre seu próprio corpo,
assumindo diferentes papéis e funções dentro da sociedade.
Não estão mais caladas aceitando as imposições masculinas, já adentraram aos espaços
públicos, estão denunciando os maus-tratos com mais frequência, até mesmo no espaço
privado elas conseguiram adquirir poder, tendo em vista que as mesmas já podem decidir
dentro do âmbito familiar questões antes inaceitáveis pela sociedade.
Desta forma, percebe-se que as mulheres ao longo dos anos não desistiram de lutar por
seus direitos, resistiram à dominação dos homens e a visão preconcebida da sociedade sempre
lutando para assegurar seus direitos, principalmente o de participar da esfera pública assim
como eles.

Pesquisas mostram que o período entre 2000 e 2010 foi decisivo para a
transformação do mercado de trabalho em favor do sexo feminino. O crescimento da
participação das mulheres na população ocupada – ou seja, que trabalha e produz
renda – é quase sete vezes maior que o dos homens (CANTANHEDE 2003, p. 1).

A mulher tem se mostrado de uma competência extraordinária considerando-se que ela


tem a capacidade de desempenhar várias funções ao mesmo tempo, já que consegue trabalhar
fora e desenvolver perfeitamente as funções domésticas. Desta forma, percebe-se que está
mais do que na hora do homem e de toda a sociedade reconhecer que a mulher tem
habilidades igual ou superior ao homem portanto, tem direito de participar da vida pública
Após o movimento feminista as mulheres conseguiram assumir diferentes papéis.
Entretanto, “ainda hoje, a inserção das mulheres na atividade política em cargos eletivos ou
não, continua sendo bastante restrita” (BAPTISTA; COELHO, 2009, p. 6). Apesar de termos
como presidente do Brasil uma mulher, Dilma Rousseff, o acesso à esfera política ainda é
muito limitado.
Embora ainda sejam vistas com indiferença as mulheres conseguiram dá um grande
passo em direção à sua liberdade de escolha e de pensamento adentrando à esfera pública, o
que pode ser constatado com a eleição e reeleição de Dilma Rousseff para presidente do
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Brasil. Entretanto, o número de mulheres para preenchimento destas vagas é insuficiente, o


que demonstra que apesar de todas essas conquistas elas ainda estão em um processo de
adaptação desse espaço onde predomina a ação masculina, o que provavelmente dificulta o
acesso das mesmas, tendo em vista que por mais que se tenha avançado, na realidade este
espaço continua permeado de ideias contrárias à inserção das mesmas.
As mulheres, apesar de muitas conquistas, exercem profissões caracterizadas como
mal pagas. Mas pode-se afirmar que elas conseguiram vencer barreiras, superar obstáculos, ou
seja, conseguiram provar que são competentes e adentraram aos espaços públicos. Hoje, vem
conquistando seu espaço em todos os setores da sociedade, assegurando direitos que antes
eram negados a elas como o direito de estudar, trabalhar e participar das decisões do governo.
Desta forma, é possível perceber que a ordem de gênero tradicional encontra-se
profundamente alterada nesta primeira década do século XXI. “Progressivamente, foram
legitimados os direitos sociais das mulheres na esfera pública, decaindo também a imagem
social do homem como provedor e figura de autoridade” (ABOIM, 2012, p.5). O homem
deixa de ser o único provedor da família e passa a dividir esse posto com a mulher, também
divide o poder dentro da família, o que incomoda aqueles que têm a mente fechada e não
querem reconhecer os direitos das mulheres.

Um exemplo de dinamismo feminino é a Gerente de Produtos Francinilde Moraes


Cantanhede, ou simplesmente Nilde. Ela é a primeira mulher a ocupar o cargo de
Gerente de Ferramentas pesadas em 32 anos de existência da empresa onde trabalha,
e como tal, ministra treinamentos para um público 100% masculino e composto por
operários, mestres de obras e engenheiros. Com muita segurança e preparo técnico, é
Nilde quem ensina os homens a manejarem com desenvoltura essas ferramentas “tão
masculinas”, e com apenas 1,52 metros de altura, mas sempre maquilada e bem
penteada (CANTANHEDE 2003, p. 1).

Esse é apenas um exemplo de uma das muitas mulheres que desempenham funções
que são consideradas masculinas. Assim pode-se afirmar que a mulher nas últimas décadas
tem se destacado de forma significativa no espaço público, embora a sociedade ainda não
esteja totalmente a favor desta participação ela vem conseguindo assegurar seus direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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As relações masculino/feminino são históricas, cultural e socialmente construídas,


onde a mulher desde o emergir da humanidade se viu submetida ao poder e dominação do
homem, sendo posta de lado por meio de regras impostas pela sociedade para acentuar a
distinção entre ambos que eram reforçados pelos paradigmas patriarcais que ditavam as
práticas cotidianas na qual a mulher estava inserida.
Por muito tempo o papel da mulher na sociedade caxiense girou em torna do triângulo
mãe, esposa e dona de casa. Ela não tinha voz nem vez no espaço público, o espaço ao qual
ela tinha acesso se restringia única e exclusivamente ao privado, ao âmbito doméstico. Desta
forma, percebe-se que a figura feminina estava excluída da vida social, sua vida se resumia a
cuidar do lar; assim a mulher era considerada um agente passivo na história da sociedade.
As representações de inferioridade feminina não intimidaram as mulheres que se
organizaram no movimento feminista para lutarem em busca de seus direitos. Este movimento
foi de grande relevância para a inserção das mulheres no espaço público porque serviu de
suporte para a conquista e concretização dos direitos das mesmas.
A mulher caxiense de certa forma conseguiu conquistar muitos direitos ao logo dos
anos com bastante luta e resistência à imposição masculina, ela já adentrou ao espaço público
e não está mais presa a dominação do homem, podendo decidir sobre seu próprio corpo e
sobre seu ingresso no mercado de trabalho. Embora várias das profissões exercidas por elas
sejam vistas como mal pagas.
Apesar das mulheres conseguirem adentrar a esfera pública ainda tem muito a ser feito
no tocante a sua participação na sociedade e, principalmente em relação à visão preconcebida
dos homens sobre elas, os quais em grande parte continuam vendo-as como seres inferiores a
eles.

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GÊNERO E GERAÇÃO EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO ALTO SERTÃO


PARAIBANO

Ane Cristine Hermínio Cunha510 | acristinehc@uol.com.br


Stella Márcia de Morais Santiago511
Simone Joaquim Cavalcante512

INTRODUÇÃO

Até quase o final do século XX a imagem do idoso(a) em nossa sociedade foi


fortemente associada a imagens negativas, “na base da rejeição ou da exaltação acrítica da
velhice, existe uma forte associação entre esse evento do ciclo vital com a morte, a doença, o
afastamento e a dependência” (Neri e Freire, 2000, p. 8). O aumento da população idosa em
várias partes do mundo contribuiu para que esta parcela da população recebesse atenção
especial e muitos programas foram desenvolvidos buscando melhorar a qualidade de vida
destas pessoas.

A velhice aos poucos passou a ser vista também como um momento da vida no qual
pode se viver com prazer, satisfação, satisfação pessoal, de maneira mais madura e
também produtiva. Em face desta nova visão, passaram a ser buscadas novas postura
de atendimento e de oferta de serviços e de atividades, compatíveis com a novas

510
Professora da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG do Centro de Formação de Professores/CFP,
Cajazeiras e membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígena e de Gênero/NEABIG.
511
Professora da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG do Centro de Formação de Professores/CFP,
Cajazeiras e membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígena e de Gênero/NEABIG.
512
Doutoranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da
Paraíba/UFPB e membro colaboradora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígena e de Gênero/NEABIG
da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG.
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imagens de envelhecimento. (CACHIONI, 2003, p.15).

Atualmente, muito se fala em envelhecimento saudável, em programas e grupos de


terceira idade, que tem por objetivo a interação e a melhoria da qualidade de vida do idoso(a),
geralmente envolvendo atividades físicas e recreativas. Os(as) idosos(as) saudáveis estão
presentes em propagandas para vender produtos e serviços, e a imgem do(a) idoso(as) em
nossa sociedade melhorou muito nos últmos anos. É inegável que viver com mais de 60 anos
hoje é muito mais fácil do que era há 20 anos, mas é preciso ainda avançar muito mais em
termos de empoderamento dos(as) mesmos(as).

Para Britto da Motta (2010, p. 02) o termo geração “designa um coletivo de


indivíduos que vivem em determinada época ou tempo social, têm aproximadamente a mesma
idade e compartilham alguma forma de experiência ou vivência, ou têm a potencialidade para
tal.” O que significa que pessoas de uma mesma idade vivenciam experiências que as
distinguem de outras da mesma idade, pois as mesmas fazem parte de contextos sociais e
culturais diferentes.

As pessoas socialmente consideradas mais velhas, atualmente ditas idosas513,


assumem uma função social que em certa medida foi culturalmente constituída, sobremaneira,
aquela que versa em tono da memória coletiva, “a de ser a memória da família, do grupo, da
instituição, da sociedade” (BOSI, 1994, p. 63), as quais trazem lembranças e memórias, as
vezes fissuradas pelo tempo (cronológico do processo de envelhecimento), mas outras vezes
fortemente relembradas e vívidas em suas memórias remanescentes, que são em alguns
momentos capazes de fornecer representações sobre um passado vivenciado, às vezes nem tão
distante assim. Mas, nesses emaranhados de representações é importante ainda considerar que
tais categorias como as de gênero, raça/etnia e geração/idade são fortemente atravessadas por
análises complexas que não dão conta de responder todas as suas nuances, nem tão pouco é a
nossa pretensão. Por outro lado é preciso, todavia, considerar que:

513
Essa categoria foi ganhando outras denominações, tais como, terceira idade, melhor idade e até feliz idade,
conforme a dinâmica socioeconômico no tempo e no espaço. (BRITTO DA MOTTA, 2012).

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A vida social é estruturada em conjuntos de relações que, em interface, ou


articuladas dinamicamente, lhe dão sentido (ou ensejam ao analista entrever um
sentido...). Os mais determinantes desses sistemas de relações são as classes sociais,
os gêneros, as idades/gerações e as raças/etnias. Cada conjunto desses constitui-se,
então, numa dimensão básica da vida social, mas nenhum deles, analisado
isoladamente, dá conta da sua complexidade. Inclusive porque são aspectos co-
extensivos, isto é, ‘recobrem-se parcialmente uma à outra’. (BRITTO DA MOTTA,
1999, p. 193).

Nos quilombos, há uma dinâmica que perpassa pelas vivências das pessoas mais
idosas, suas experiências/vivências pessoais e lembranças são elementos de valor para todos
os membros da comunidade, através dos quais é possível se espelhar positivamente, gerando
conhecimentos e práticas políticas, artísticas, culturais, educacionais, entre outros. Em
determinados grupos, neste caso quilombolas, as mulheres por sua vez tem sido o grande e
forte elo de memórias. Elas acabam assumindo essa função de ser a memória do grupo e,
também, tornando-se responsáveis por tecerem redes de sociabilidades entre si e outros que
vem de fora. Assim, são protagonistas de seus feitos e práticas sociais e culturais ao longo do
tempo e continuam sendo parte representativa nos grupos em que estão inseridas e guerreiras
da luta diária. Isto as registram na história como grande referencias de resistência e
preservadoras da vida do grupo.

Em alguns grandes quilombos aparecem indícios de lideranças femininas, assim


como de estratégias utilizadas pelos habitantes de manterem suas famílias
protegidas. Há indicações de que Acotirene e Aqualtune foram mulheres que
exerceram influência no cenário quilombola de Palmares, em Alagoas. [...] nas
inúmeras comunidades quilombolas a participação das mulheres foi determinante e
fundamental, tanto na manutenção prática, com o abastecimento de provisões,
confecções de roupas e utensílios, quanto na preservação de valores culturais e
religiosos. Em alguns mocambos elas representavam o elo com as divindades e
fortaleciam o espírito combativo de seus habitantes. (SCHUMAHER e VITAL
BRAZIL, 2007, p. 82)514

Em contexto contemporâneo a pauta política de modo geral não passa despercebida


de seus olhares e necessidades mais preeminentes, suas ações visam sempre manter a

514
Neste caso tomamos como referência Aqualtune Ezgondidu Mahamud da Silva Santos, princesa africana que
capturada e vendida como escrava no Brasil no século XVII, importante referencial de participação e
protagonismo feminino na luta pela vida e resistência ao cativeiro e ao sistema de escravidão no Brasil, ela foi
uma grande líder feminina quilombola que conseguiu marcar presença na história do seu povo (SCHUMAHER e
BRAZIL, 2000; 2007).

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memória viva do grupo e da cultural material e imaterial, mas trazem consigo também a
discussão para o campo político do ponto de vista da melhoria da qualidade de vida e de
existência, principalmente da urgência de políticas públicas mais efetivas para as mulheres
quilombolas em particular (considerando estas como um grupo mais vulnerável de condições
materiais) que garanta uma vida mais descente (saneamento básico, saúde, educação, trabalho,
e outras necessidades), quanto para toda a comunidade em geral, pois suas lutas ora
individuais e/ou coletivas visam um único objetivo melhorar as condições de vida de toda a
comunidade quilombola.

Neste sentido, este artigo tem como objetivo suscitar reflexões sobre esta vida
particular que se dá no centro das comunidades quilombolas, tendo por base a história de vida
de indivíduos idosos destas. A metodologia por nós adotada aporta-se na análise dos registros
a partir das falas registradas – em gravador de áudio – e das observações proferidas no interior
das Comunidades Quilombolas do sertão paraibano.

GERAÇÃO E GÊNERO NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

Temos aqui, o vislumbre da perspectiva de toda uma vida de idosas quilombolas


mediante o seu contar. Essa particularidade de dizer o que se vive está alicerçada em termos
científicos e acadêmicos na história oral. E essa visita ao passado pelo olhar vivo de quem o
vivenciou é capaz de nos possibilitar enxergar como aqueles/as que lá estiveram e que o
viveram. Dessa forma, compreendemos que muito além de nostalgia ou poesia sobre o que
foi, a história oral nos permite estender as concepções sobre o que acreditávamos saber,
correlacionada com a realidade do viver de indivíduos. E para esta, segundo Joutard (2000, p.
33)

[...] é preciso saber respeitar três Fidelidades à inspiração original: ouvir a


voz dos excluídos e dos esquecidos; trazer à luz as realidades
“indescritíveis”, quer dizer, aquelas que a escrita não consegue transmitir;
testemunhar as situações de extremo abandono.

E quem melhor para falar do abandono, da sensação de se sentir/estar à margem e


das invisibilidades sociais sofridas do que idosas quilombolas? Precisamos lembrar que
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Quilombos são lugares de memórias e reminiscências da escravidão, é o lugar dos/as que


fugiam em busca de melhores condições de vida, da necessidade de se juntar a outros/as
iguais a si e, de serem vistos e tratados com igualdade. No entanto, as idosas não gostam de se
reportar a isto. Entretanto, para

[...] estou, de fato, convencido de que tais omissões, voluntárias ou não, suas
deformações, suas lendas e os mitos que elas veiculam, são tão úteis para o
historiador quanto as informações que se verificaram exatas. Elas nos
introduzem no cerne das representações da realidade que cada um de nós se
faz e são evidência de que agimos muito mais em função dessas
representações do real que do próprio real (mesmo em um nível intelectual
bem elevado). (JOUTARD, 2009, p. 34-35)

Dessa forma, acreditamos que esta dificuldade de mencionar aspectos de suas


origens enquanto grupo, está alicerçada em como estes registros foram passados
historicamente como representação do real, ou seja, os quilombos eram e ainda são vistos –
por alguns/mas – como lugares de negros/as fujões/fujonas, insurretos/as, merecedores de
todo castigo possível, caso fossem encontrados/as. Quando na realidade, deveriam ser
percebidos como uma prova de força e resistência, de vontade de manter-se uma história e
cultura rica, que seus opositores tentaram destruir.
[...] vale dizer que a história oral tem, mais que nunca, o imperativo de
testemunhar, tendo a coragem de permanecer história diante da memória de
testemunhos fragmentados que têm o sentimento de uma experiência única e
intransmissível: é preciso combinar respeito e escuta atenta, de um lado, com
procedimentos históricos, não importa quanto isto nos seja penoso.
(JOUTARD, 2000, p. 35).

Joutard (2009, p.38) menciona ainda que “a ligação de parentesco sequer é


necessária, bastando a distância de duas gerações e que a pessoa idosa sinta a necessidade de
transmitir uma experiência de vida ou uma tradição”. Nesse sentido, é possível
compreendermos que “a tradição oral é discurso dinâmico, constantemente em contato com a
atualidade mais contemporânea e, assim, integralmente originária da história” (idem, p. 40).
História de vida que também se apoiam no ato de lembrar de feitos, práticas e saberes
diversos, que trazem a tônica as experiências de vida “abordar o fenômeno da oralidade é ver-
se defronte e aproximar-se bastante de um aspecto central da vida dos seres humanos: o

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processo de comunicação, o desenvolvimento da linguagem, a criação de uma parte muito


importante da cultura e da esfera simbólica humana” (LOZANO, 2006, p. 15).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os resultados se dão em análises e reflexões dos dados coletados sobre as questões


que dizem respeito as vivências, as experiências e os ensinamentos de membros idosos, que
apresentam-se nesse contexto como referencial de luta pela sobrevivência, empoderamento e
continuidade da memória coletiva do grupo para assegurar a cultura imaterial dos/as
mesmos/as. Desse modo, levamos também em consideração as perspectivas da promoção da
igualdade entre os gêneros, as nuances nas abordagens sobre raça/etnia e as gradações
geracionais que se desenvolvem entre os sujeitos em diferentes realidades sociais,
econômicas, políticas e culturais.

Um fato que despertou atenção nas reuniões é a ausência dos jovens nas tomadas de
decisões das comunidades, a hierarquia das idades é bastante visível, sendo os(as) idosos(as) o
que possuem papel de destaque, pricipalmente as mulheres como referencial desse elo da
comunidade na luta por visibilidade e na busca por políticas públicas que atendam melhor as
necessidades da comunidade.

Nas comunidades quilombolas dos Quarenta em Triunfo-PB e nas comunidades dos


Rufino e dos Daniel em Pombal-PB, há uma dinâmica que perpassa pelas vivências das
pessoas mais idosas, suas experiências pessoais e lembranças são elementos de valor para
todos os membros da comunidade, através dos quais é possível se espelhar positivamente,
gerando conhecimentos e práticas políticas, artísticas, culturais, entre outros.

Na comunidade quilombola dos Quarenta a foto da matriarca fica na sala principal da


sede e todos sempre se reportam aos idosos da comunidade, como figuras de destaque. As
mulheres mais velhas são as mais ativas nas reuniões, as mais jovens ficam mais caladas e
quase não falam. A diretoria é formada por duas mulheres idosas e uma senhora mais jovem.
Juntas já conquistaram muitas coisas. São idosas que lutam pelos direitos de seu povo, que

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conquistaram a urbanização do bairro em que moram, lutam pela oportunidade de emprego


nas esferas municipal e estadual, e que buscam o reconhecimento da cultura negra na cidade.
Assim registramos a fala da entrevistada que é presidente da comunidade quilombola, 64
anos, com referência ao trabalho que vem realizando.

Eles acham muito bonito, né, daqui, da cidade de Triunfo, acham muito bonito. E a
gente é muito esforçada pra ir pra qualquer lugar, sempre eu e ela, sempre eu e ela, e
a secretária, as três que põe o pé no chão, temos coragem, não vamos desanimar...
(...) [Quilombola de 64 anos]

Na comunidade dos Daniel a atividade cultural predominante é a dança dos Pontões,


que é liderado por um senhor com quase Oitenta anos, (como ele mesmo sempre fala), que
ainda dança 3 horas seguidas. Quando uma pessoa mais velha fala os mais jovens ficam
calados ouvindo. Os idosos(as) são alegres, contam histórias e sorriem muito. Esta
comunidade é dirigida por um homem, no entanto, são as mulheres que viabilizam todas as
atividades, é uma mulher que dirige os ensaios dos Pontões Mirins e é ela que agenda as
reuniões e serve de elo entre os membros da comunidade.

A comunidade rural dos Rufinos é liderada por uma idosa, que com muita luta tem
conseguido manter viva a cultura negra em diversas atividades culturais na cidade de Pombal,
o artesanato é passado de mãe para filha e elas participam de várias feiras de artesanato locais
e regionais. A religiosidade é um marco nesta comunidade e eles/elas são muito envolvidos
com a igreja católica local.

Eu me relaciono com a sociedade daqui, eu sou muito bem, maravilhosamente bem.


[Fala da entrevistada da comunidade quilombola com 60 anos]

No próximo mês eu vou para a Marcha da Mulher Negra, em Brasília. Daqui de


Pombal só vão três mulheres e eu sou uma delas. [Líder da comunidade com 61
anos].

Estas são apenas algumas demonstrações de como as mulheres idosas estão


engajadas na luta pela cidadania em suas respectivas comunidades. A busca por cidadania é
uma questão que está sempre em pauta e as mulheres têm sido protagonistas para não somente
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manter a cultura material e imaterial como é o caso da dança, das memórias, mas também a
própria existência enquanto comunidade quilombola no/do alto sertão paraibano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O empoderamento destas comunidades possibilitou a aquisição de uma consciência


de grupo étnico (de pertencimento), que se constrói no dia-a-dia de suas ações coletivas,
enquanto grupo, conseguem o reconhecimento de suas origens e de sua cultura, que se reflete
em ações de lutas por maior reconhecimento social e consciência de seus direitos sociais e
políticos.

A hierarquia de poder dentro da comunidade beneficia principalmente as pessoas


idosas, que são imbuídas com o papel de passar para as gerações mais novas o conhecimento
acumulado com a experiência. Dentro deste contexto, os(as) idosos(as) são muito
respeitado(as) e permanecem ativos(as) nas atividades desenvolvidas coletivamente. O que
influência muito positivamente na imagem que os(as) idosos(as) possuem de si mesmo.

No passado os quilombos eram espaços de luta e resistência à sociedade escravocrata


da época, atualmente as comunidades quilombolas se apresentam como espaços que
legitimam a participação dos idosos em geral e das mulheres principalmente. É uma
experiência que constrói imagens mais positivas, tanto de raça/etnia, quanto de gênero e
favorecendo uma vivência de envelhecer de forma mais digna e participativa.

Os idosos e as idosas não perdem a sua função social, como acontece em outros
grupos de nossa sociedade, ao contrário, são cada vez mais valorizados e respeitados. O
empoderamente destes se expressa na participação ativa em todas as atividades do grupo, no
vigor do desempenho das atividades culturais e na alegria de viver destas pessoas.

Ao mesmo tempo em que criam possiblidades para um envelhecimento mais


saudável, se contrapõe ao poder da produtividade laboral em nossa sociedade, que muitas
vezes desenvolvem trabalhos assistencialistas com seus idosos(as), com trabalhos pontuais
que objetivam melhorar apenas a capacidade física destes.
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Algumas vezes os(as) idosos(as) são, sutilmente, apontados como responsáveis pelo
“rombo” na previdência e no alto custo nas despesas de saúde do país. Mas, a Sociedade
Brasileira de Geriatria e Gerontologia publicou uma carta aberta à população brasileira, onde
afirma que:

Infelizmente, nosso país ainda não está preparado para atender às demandas dessa
população. A Política Nacional do Idoso assegura, em seu art. 2º, direitos que
garantem oportunidades para a preservação de sua saúde física e mental, bem como
seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social em condições de liberdade
e dignidade. Apesar de avanços, como a aprovação do Estatuto do Idoso, a realidade
é que os direitos e necessidades dos idosos ainda não são plenamente atendidos. No
que diz respeito à saúde do idoso, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não está
preparado para amparar adequadamente esta população. (FREIRE NETO, 2014)

Nossa população está envelhecendo a muitas décadas, seremos um país de idosos(as)


em poucos anos, será que conseguiremos envelhecer com liberdade e dignidade? Será que
conseguiremos ter o respeito que os(as) idosos(as) possuem nas comunidades quilombolas?
Esta é uma questão aberta para refletirmos sobre práticas, posturas e políticas públicas no
âmbito do individual e/ou do coletivo, do privando e/ou do institucional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 5ª edição, São Paulo, Companhia
das Letras, 1994.
BRITTO DA MOTTA, Alda. As dimensões de gênero e classe social na análise do
envelhecimento. In: Cadernos Pagu, n° 13, 1999, p. 191-221.
BRITTO DA MOTTA, Alda. A atualidade do conceito de gerações na pesquisa sobre o
envelhecimento. Revista Sociedade e Estado - Volume 25 Número 2 Maio / Agosto 2010.
BRITTO DA MOTTA, Alda. Mulheres Velhas. Elas começam a aparecer... In: PINSKY,
Carla Bassanezi e PEDRO Joana (orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2012. p. 84-104.
FREIRE NETO, João Bastos, (2014) CARTA ABERTA À POPULAÇÃO BRASILEIRA.

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Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. Disponível em:


http://sbgg.org.br/envelhecimento-no-brasil-e-saude-do-idoso-sbgg-divulga-carta-aberta-a-
populacao-2/ Acesso: 10 de setembro de 2015.
JOUTARD, Philippe. Desafios à história oral do século XXI. In: História oral: desafios para
o século XXI. Organizado por Marieta de Moraes Ferreira, Tania Maria Fernandes e Verena
Alberti. — Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz / CPDOC - Fundação
Getúlio Vargas, 2000. 204p.
LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Práticas e estilos de pesquisa na história oral
contemporânea. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Morais. Usos e abusos da
história oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2006. p. 15-25
NERI, A. L., & FREIRE, S. A. (Orgs.). E por falar em boa velhice. Campinas: Papirus, 2000.
SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital (orgs.). Mulheres Negras do Brasil. Rio de
Janeiro: SENAC Nacional, 2007.
SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital (orgs.) Dicionário
Mulheres do Brasil de 1500 até a atualidade bibliográfico e ilustrado. Rio de Janeiro:
Editora Jorge Zahar, 2000.

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MULHERES NEGRAS, INTELECTUALIDADE E TRANSMISSÃO DE SABERES NA


AMAZÔNIA

Luiz Augusto Pinheiro Leal | sou.amazonia@gmail.com

A presença de mulheres negras nos estudos de história da Amazônia ainda é


desproporcional em relação a outras abordagens. Se considerarmos o período pós-abolição, a
lacuna será ainda maior. Parte da desatenção ao tema diz respeito ao próprio enfoque de
invisibilidade feminina que ainda predomina na prática da escrita histórica. Por outro lado, a
tese na inexpressividade da presença negra na região Norte, plenamente contestada por
autores como Flávio Gomes e Vicente Salles, também contribuiu para o desinteresse a
respeito do tema.515 Contudo, qualquer pesquisador ou pesquisadora que trate com seriedade o
seu ofício, não tem como deixar de lado a presença de mulheres que atuaram intensivamente
na história do Brasil a partir de diferentes formas de experiências.
Para pensar o específico da presença negra feminina no Pará, a criatividade
metodológica deve ser encarada como um importante instrumento de investigação. Se
coletâneas exclusivas de documentação não podem ser encontradas no que diz respeito ao
tema, as informações podem ser captadas associadas a outras fontes. O uso da produção
literária pode ser um recurso excepcional nesse sentido, especialmente se for possível associá-
la a outros tipos de documentos.
Nesse artigo, trataremos de fragmentos da história de mulheres negras a partir da
perspectiva de seus filhos ou agregado. Tais fragmentos, longe de serem migalhas de histórias
perdidas, se aglutinam como elementos reveladores da ação feminina negra em situações
cotidianas. Ações excepcionais para a definição da identidade dos sujeitos envolvidos com

515
GOMES, Flávio; QUEIROZ, Jonas Marçal. “Em outras margens: escravidão africana, fronteiras e etnicidade
na Amazônia”. In PRIORE, Mary del; GOMES, Flávio. In Os senhores dos rios: Amazônia, margens e história.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
SALLES, Vicente. “A escravidão africana e a Amazônia”. In O negro na formação da sociedade paraense.
Belém: Paka-Tatu, 2004.
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elas, em formação, identidade e cultura. O contexto histórico para a abordagem inicial está
centrado na instituição do Estado Novo e na luta pela liberdade de culto afro-religioso.516
Contudo, a repercussão das ações femininas alcança uma dimensão bem maior. A dimensão
das relações familiares entre gerações diferentes.
Bruno de Menezes, Nunes Pereira e Dalcídio Jurandir fazem referências, em suas obras,
a suas respectivas mães. Todas como pessoas de grande importância frente a inserção deles no
mundo da cultura negra paraense. Bruno de Menezes faz isso através de uma dedicatória a sua
mãe Balbina; Nunes Pereira, citando sua mãe biológica (Felicidade) e sua mãe espiritual
(Andresa) em seus livros e entrevistas; e Dalcídio Jurandir traduzindo sua mãe Margarida na
personagem Amélia, presente em parte de suas obras literárias. Em cada uma destas,
diferentes elementos de identidade cultural aparecem e associam os autores a um mundo
lúdico ou religioso de origem negra.
Nascida ainda no tempo da escravidão, em 4 de dezembro de 1876, em Belém do Pará,
a mãe de Bruno de Menezes se chamava “Dona Maria Balbina da Conceição Menezes, (na
intimidade Mãe Balbina)”.517 Passou os últimos dias de sua vida no bairro do Jurunas,
subúrbio famoso pela forte presença negra. Faleceu em 24 de agosto de 1948, no mesmo ano
da liberação dos batuques na gestão de Paulo Eleutério Filho como chefe de polícia do Pará.
A primeira edição do livro Boi-bumbá, de Bruno de Menezes, foi lançado dez anos após a
morte de sua mãe, em 1958. No livro, o autor homenageia sua falecida mãe Balbina através de
uma dedicatória que soa como um reconhecimento sincero de um aprendiz diante de sua
mestra. Escreve:

À memória de minha Mãe, MARIA BALBINA, que encheu a infância e a


adolescência de seu filho, com pastorinhas e Bumbás, cordões de pretinhos, de
“pássaros” juninos, de carimbós, de mastros votivos, de batuques, de ladainhas, de
sambas de terreiros.
Reverentemente – BRUNO DE MENEZES518

Todos os assuntos listados por Bruno, em sua dedicatória, estiveram relacionados com

516
LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. “Gladiadores de escassa musculatura”: sociabilidade, literatura e
responsabilidade intelectual na Amazônia". Belém: IAP, 2014.
517
Bruno de Menezes. “Boi-bumbá – Auto popular”, in Obras completas de Bruno de Menezes, Belém, Secult,
1993, volume 2, Folclore, p. 39.
518
Idem, p. 38.
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sua vida e produção intelectual antes e após o movimento de 1938, pela liberdade de culto no
Pará519. Em Boi-bumbá, na página seguinte à dedicatória, o autor colocou uma fotografia da
mãe Maria Balbina com uma pose que faz lembrar a postura de uma sacerdotisa de terreiro.
Era uma pose de nobreza. O braço direito sobre a mesa; a mão esquerda sobre a perna
esquerda; e um olhar, que deveria ser para a máquina, ligeiramente desviado para outra
referência. O vestido, de mangas longas, não parece ser de utilização cotidiana. Com um
medalhão no peito, a vestimenta sugere um clima formal de preparação para o retrato. No
ambiente da fotografia aparece uma mesa coberta por uma toalha estampada. Sobre ela um
vaso aparentemente metálico contendo uma pequena palmeira, semelhante à folha de açaí. No
chão, no seu lado direito, também aparece outra palma de açaizeiro. Ao fundo, a parede de
madeira situa a condição social de Mãe Balbina. Moradora do subúrbio, ela habitava uma casa
simples como outras famílias negras da capital do Pará.520
Alonso Rocha, biógrafo de Bruno de Menezes, confirma a importância da mãe na vida
cultural do autor. Comentando sua educação livre, no bairro do Jurunas, Rocha descreve a
intensa presença de elementos da cultura negra em sua criação, da infância até a adolescência.
O pai, o pedreiro cearense Dionízio Cavalcante de Menezes, parece fazer parte apenas da fase
inicial de sua formação. Depois outros homens assumiriam o papel paterno, sempre sob o
olhar de mãe Balbina. Conforme Alonso Rocha:

A infância passou-a na estância coletiva “A Jaqueira”, no bairro do Jurunas, livre e


solto, admirando os seus valentes desordeiros, os capoeiras, os manejadores de
navalha, os embarcadiços, as mulatas carnudas e trescalantes; acompanhando nos
ombros largos do seu pai o Círio de Nazaré, gola azul, gorro de marinheiro de fitas
pretas e letras douradas; pisoteando, adolescente, nas saídas festivas do boi-bumbá
de seu padrinho Miguel Arcanjo, sob os olhares carinhosos de sua mãe Balbina e a
proteção de João Golemada, maranhense valente na defesa de seu bando, quando a
polícia ainda não havia proibido os bois saírem de seus currais para os tradicionais
encontros.521

O folguedo do boi-bumbá, tema do livro então publicado, evidencia-se em sua vida

519
LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. “Gladiadores de escassa musculatura”. Op. cit.
520
O livro de Bruno consistia no amadurecimento do mesmo estudo apresentado no I Congresso Brasileiro de
Folclore, em 1951, no Rio de Janeiro. In: Anais do 1º Congresso Brasileiro de Folclore, (Rio de Janeiro, de 22 a
31 de agosto de 1951), Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1953, Vol. III, p. 33 e 34.
521
Alonso Rocha, “Bruno de Menezes: traços biográficos”, in Alonso Rocha et AL, Bruno de Menezes ou a
sutileza da transição: ensaios, Belém, CEJUP/UFPA, 1994, p. 9.
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desde os primeiros momentos que passou a conhecer o mundo fora de casa. O maranhense
João Golemada é o mesmo amo de boi que, em 1905, morreu em um dos inúmeros combates
entre grupos de boi-bumbás. Sua morte acabou sendo utilizada como justificativa para a
proibição definitiva da saída dos bois à rua. A partir desse momento os membros do folguedo
somente poderiam brincar nos seus respectivos currais.522 De qualquer modo, era a sua mãe
que Bruno de Menezes reconhecia, naquele ano de publicação do seu estudo sobre o boi-
bumbá, como a maior influência para a escrita daquele trabalho.
Tal como Bruno, Nunes Pereira também ressalta, em uma de suas mais conhecidas
obras, a importância da presença feminina em sua formação. Ao escrever A Casa das Minas,
faz referência à vantagem de sua aproximação familiar com o referido centro religioso devido
ser filho de uma de suas integrantes. Sua mãe, Feliciana Nunes Pereira, facilitaria seu acesso e
convivência no espaço sagrado do terreiro e, devido à sua condição de religiosa, influenciaria
profundamente sua formação.

Minha ligação com a Casa das Minas, vem do fato de minha mãe ter sido iniciada no
culto vudu, ela era uma noviche, uma sacerdotisa ou, como se diz na umbanda, uma
filha de santo. Na minha obra lá está o nome dela - Felicidade Nunes Pereira - e isto
também consta no filme. O santo de minha mãe, seu vudu, é Poli Bogi, que
juntamente com Zanadone são as figuras mais representativas do panteon minajêgê.
Zanadone, no entanto, já não baixa mais no terreiro, senão episodicamente, e quando
o faz é uma divindade violenta.523

Apesar de ter a mãe biológica diretamente vinculada à Casa das Minas, Nunes Pereira
também possuía referência materna em outra pessoa. Tratava-se da identificação espiritual
que passou a ter com a liderança do terreiro que melhor conheceu: mãe Andresa Maria, a
nochê (sacerdotisa) do Tambor de Mina do Maranhão. Andresa Maria de Sousa Ramos
nasceu em Caxias, no Maranhão, em 1855, e faleceu na mesma cidade em 20 de abril de
1954, com 99 anos de idade. Dirigiu a Casa das Minas por cerca de 40 anos.524 Nunes Pereira
informa que mãe Andresa teve “dois nomes africanos: o de Rotopameraçulème, que lhe coube

522
Luiz Augusto Pinheiro Leal, “Capoeira e boi-bumbá: territórios e lutas da cultura afro-amazônica em Belém
(1889-1906)”, in Lígia T. L. Simonian (org.), Belém do Pará: História, cultura e sociedade, Belém, Editora do
NAEA, 2010, p. 242-3.
523
“O culto vudu no Brasil: a visão de um documentário (Entrevista do Professor Nunes Pereira a Sérvulo
Siqueira)”, O Globo, 25 de agosto de 1977, p. n/localizada.
524
Sérgio Figueiredo Ferretti, Querebentan de Zomadonu, 3ª Ed., Rio de Janeiro, Pallas, 2009, p. 65.

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depois de ser feita, e o de Roionçama, que os Voduns lhe davam anteriormente a essa
iniciação”.525 A admiração que ele tinha por mãe Andresa, além de aparecer nos depoimentos
que constam em seu livro, também se revela pelo lugar em que ele inseriu a foto daquela
senhora por ocasião da publicação da segunda edição de A Casa das Minas, em 1979. Na capa
aparece mãe Andresa em uma pose bastante significativa de sua personalidade. Sentada em
uma cadeira de balanço de palha, fumando um longo cachimbo, mãe Andresa parece ter sido
surpreendida em uma situação cotidiana e informal. Nunes Pereira identifica a fotografia
como “o último retrato da ‘Dona da Casa’ (Andresa Maria)”.526 Somente sua intimidade do
autor com a aquela nochê e com a casa permitiria tal intimidade.
Comentando a experiência com a Casa das Minas em sua infância, Nunes Pereira parece
expressar o pensamento que poderia ter experimentado ao contemplar o retrato de mãe
Andresa:

Entre quatro e seis anos, na minha meninice, passei vários meses nessa casa. Hoje
em dia passo lá apenas algumas horas, toda vez que vou a São Luís, rodeado de
velhinhas ou diante de mãe Andresa Maria, que não é uma africana pura, mas como
descendente de Negros puros ainda conserva nas suas linhas físicas o vigor e a graça
das mulheres do Continente Negro e a envolvente doçura dos velhos que nunca
foram maus.
A Casa tem uma alma, naturalmente; nem todos a vêem, decerto, mas todos a
pressentem. Essa alma deve ser semelhante à de Andresa Maria, porque toda casa se
assemelha, em geral, aos seus donos. De uns reflete a harmonia, a serenidade, o
asseio, a paz interior; de outros a desordem, a agitação, o desleixo, a luta. A Casa
das Minas, a Casa de Andresa Maria ou a Casa de Mãe Andresa reflete a alma
africana que a alma daquela velhinha, posta diante dos meus olhos, herdou e
conservou, sem deformações, até a geração que aí está.527

Nunes demonstra uma reverência muito grande a mãe Andresa. Tanto que depois que
ela faleceu, sua atenção continuou voltada para a Casa das Minas. Tal como Bruno de
Menezes, Nunes Pereira não parecia estar refletindo apenas a respeito da mulher negra
escravizada. Havia algo pessoal que tornava bem próximo da experiência dele, homem negro,
com a experiência negra feminina.
Com Dalcídio Jurandir a situação não foi tão diferente.

525
Nunes Pereira, “Caderno iconográfico”, in A Casa das Minas: o culto dos voduns jeje no Maranhão, 2ª ed.,
Petrópolis, Vozes, 1979, fig. 42.
526
Idem.
527
Pereira, A Casa das Minas, op. cit., p. 21.
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Filho de mãe negra e pai branco, Dalcídio Jurandir não deixou de abordar a questão
racial em suas obras. Como a maioria dos seus romances é citada como parcialmente
autobiográficos, o autor rememora sua infância e juventude através do personagem Alfredo,
cuja mãe é negra e o pai branco, tal como em sua vida real.528 Outras semelhanças entre sua
vida e a dos personagens se encontram ao longo de seus romances. Por isso, torna-se possível
desenvolver uma interpretação voltada para sua identidade racial, mas partindo de elementos
presentes em boa parte de seus romances.
É em Chove nos campos de Cachoeira que Dalcídio lança dois personagens que se
farão presentes ao longo da maioria dos seus livros.529 Amélia e Alfredo, mãe e filho, terão
suas ações construídas, em grande parte, em torno de suas identidades raciais. O eixo da
questão é a angústia de Alfredo por ter nascido mulato e rejeitar, a princípio, a cor da mãe. A
rejeição era motivada especialmente pelos limites à mobilidade social na vila de Cachoeira
devido ao racismo herdado das relações escravocratas e patriarcais. O pai havia sido
funcionário de prestígio em um órgão público local. A mãe, contudo, foi morar com ele, a seu
convite, com a finalidade de ser sua cozinheira. Era uma forma de iniciar um casamento entre
grupos raciais distintos. Na vida real, o pai de Dalcídio, Alfredo Nascimento Pereira, era
paraense, filho do português Raimundo do Nascimento Pereira, um militar condecorado por
D. Pedro II como Cavaleiro da Ordem da Rosa, honraria amplamente distribuida na época.
Sua mãe, Margarida Ramos, também paraense, era filha de Florentino Ramos, ex-escravo.530
A mãe do personagem Alfredo, na descrição de Dalcídio, é bastante caracterizada por
sua negritude física e cultural. “D. Amélia era uma pretinha de Muaná, neta de escrava,
dançadeira de coco, de isguetes nas Ilhas, cortando seringa, andando pelo Bagre, perna tuíra,
apanhando açaí, gapuiando, atirada ao trabalho como um homem.”531 Quando o major
Alberto, já viúvo, se interessa por ela, apresenta-lhe o convite para que fosse morar com ele
em seu chalé em Cachoeira. O convite era para que ela fosse cozinhar para ele. Suas filhas,
quando souberam, ficaram escandalizadas com a escolha do pai. Tentaram convencer Amélia
a não aceitar o convite. Afinal, ela não passava de: “uma pretinha. Se ainda fosse pessoa de

528
Furtado, Universo derruído, p. 40-1.
529
Dalcídio Jurandir, Chove nos Campos de Cachoeira, 3. ed., Belém, Cejup, 1991.
530
Nunes et all. Dalcídio Jurandir; p. 22.
531
Jurandir. Chove, p. 78.
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qualidade... Mas uma pretinha de pé no chão! Quem logo! Seu pai estava de cabeça virada
para uma negra. Uma cortadeira de seringa! Com filhas moças e amigado com uma preta que
virava mundo pelas Ilhas!”532
A reação indignada expressava toda a violência do racismo presente naquela pequena
vila marajoara contra a escolha de uma mulher negra para companheira de um homem branco
de razoável prestígio. Além das filhas do major, outras mulheres de famílias decadentes, mas
que haviam experimentado riqueza no passado, também se indignavam com o que lhes
parecia um grave paradoxo. Enquanto elas passavam grandes dificuldades financeiras, até
mesmo em relação à alimentação, imaginavam que Amélia desfrutava uma situação
privilegiada em um lugar que não lhe pertencia. A acolhida de Amélia por parte do major
Alberto era uma afronta para a sociedade cachoeirense, em particular pelo motivo de sua cor.
Em uma conversa entre dois personagens, Dejanira, uma senhora que vivia a fase da
decadência de seus prestígios, lamenta os supostos privilégios de Amélia: “Aquela preta passa
bem na casa dela. Afrontando a sociedade com aquela preta. Uma preta. Rapariga”.533
Os diferentes insultos raciais expressos pela indignada representante da família
decadente revelam que estavam ocorrendo mudanças sensíveis nos costumes sociais no
Marajó, mas não na mentalidade das antigas famílias escravocratas. É nesse clima de duro
preconceito racial que nascem os filhos do inusitado casal. Alfredo, que logo se tornaria um
personagem destacado nos romances de Dalcídio e seria sua autorepresentação, não escapa da
perseguição racial praticado na comunidade. Mesmo tendo nascido com a pele mais clara que
a mãe, a descendência de uma descendente de negros se reflete nos conflitos de identidade
racial que o pequeno mulato sofre no cotidiano.

Alfredo achava esquisito que seu pai fosse branco e sua mãe preta. Envergonhava-se
por ter de achar esquisito. Mas podia a vila toda caçoar deles dois se saíssem juntos.
Causava-lhe vergonha, vexames, não sabia que mistura de sentimentos e faz-de-
conta. Por que sua mãe não nascera mais clara? E logo sentia remorso de ter feito a
si mesmo tal pergunta. Eram pretas as mãos que sararam as feridas, pretos os seios, e
aquele sinal pretinho que sua mãe tinha no pescoço lhe dava vagaroso desejo de o
acariciar, beijando-lhe também os cabelos, se esquecer do caroço, do colégio, das
feridas, da febre, dos campos queimados avançando para a vila dentro da noite no
galope do vento. Ficar assim como se pela primeira vez, de repente, compreendesse
que tinha mãe, a primeira e real sensação que era filho, de que brotara, de súbito,

532
Idem, pp. 78-9.
533
Idem, pp. 136-7.
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daquela carne escura.534

A gratidão pelos cuidados e afetos da mãe já era um indício da direção que Alfredo
tomaria em relação à valorização de Amélia. Mas, se a convivência na intimidade do lar o
fazia reconhecer a importância e o valor materno, no espaço público a tensão racial se
inflamava. Amélia nunca saía à rua com o pai de Alfredo e nem frequentava as festas da
sociedade local. De qualquer modo, o despertar de Alfredo para a valorização da cor da mãe
só vai aparecer com maior definição no terceiro romance de Dalcídio, Três casas e um rio.535
Em certo momento, Alfredo acompanha sua mãe, à rua, na festa de São Marçal, durante a
quadra junina, e se depara com experiências inusitadas, que apresentam uma face até então
desconhecida de sua genitora. Ele não entendia muito bem porque apenas os dois haviam
saído. Notou, contudo, que a mãe estava diferente naquele dia. Decidida, ela levava o menino
para a festa de São Marçal. Lá haveria fogueira, boi-bumbá e muita alegria. E assim foi. No
terreiro, Alfredo conheceu alguns de seus parentes negros e passou a meditar sobre um mundo
novo que ele não conhecia. Para seu desespero, quando ocorreu um dos intervalos da
apresentação do boi-bumbá, a mãe entrou em ação. Estava completamente atuada e exigiu os
paramentos necessários para o prosseguimento do seu trabalho. “D. Amélia subitamente
apanhou o maracá de um índio, arrancou dos ombros de uma cabocla um pano azul, enfaixou
a cintura e surgiu no meio do salão, cantando e dançando, em passo lento.”536 Inicialmente
houve um assombro entre os presentes, mas logo a orquestra passou a acompanhar seus
cantos. Até que ela interrompeu e ordenou que apenas o violinista fizesse isso. Obedeceram.
A essa altura Alfredo morria de vergonha encostado a um canto. Contudo, quando ela
começou a cantar modinhas e lundus que ele conhecia, pois cantava as mesmas canções para
niná-lo, a situação mudou. Alfredo percebeu que ela estava no centro das atenções e conduzia
a festa como uma liderança respeitada. Isso mudou sua visão sobre a mãe. A noite acabaria
sendo inesquecível para Alfredo, pois além de encontrar outros parentes negros, sua mãe se
revelaria como verdadeira autoridade, por seus conhecimentos lúdicos e mágicos, entre os

534
Idem, p. 20.
535
Dalcídio Jurandir, Três casas e um rio, 3. ed., Belém, CEJUP, Belém, 1994, p. 92.
536
Idem, p. 131.
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brincantes de um boi-bumbá.537 A visão sobre sua mãe mudaria, assim como a que tinha sobre
si mesmo.
A experiência do menino Alfredo, bem mais detalhada, nos permite perceber elementos
comuns não apenas com a trajetória de Dalcídio, mas também com a de Bruno de Menezes e a
de Nunes Pereira. Infância, cultura, brincadeiras e religiosidade integram as experiências
desses meninos e os aproxima, entre si, a partir da influência materna negra.
Balbina, Andresa e Amélia foram mulheres negras que teriam suas trajetórias limitadas
às memórias familiares se não fosse a grande influencia que elas deixaram em seus filhos e
agregado. Quem teria sido Bruno, Dalcídio ou Nunes sem suas matriarcas inspiradoras? Cabe
observar que nenhum deles dedicou a mesma atenção para a figura paterna ou masculina.
Seriam herdeiros de mulheres independentes de relações convencionais? Talvez a memória
familiar de cada uma delas pudesse nos trazer outras respostas. Contudo, na inviabilidade de
tal ação, resta-nos deduzir que a influência sobre seus filhos foi fundamental pra a construção
de uma história cultural da Amazônia, com traços femininos. Uma história que coincide com
a trajetória, muitas vezes invisibilizada, de mulheres negras que foram a base de resistência e
formação da identidade de tantos outros sujeitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

“O culto vudu no Brasil: a visão de um documentário (Entrevista do Professor Nunes Pereira


a Sérvulo Siqueira)”, O Globo, 25 de agosto de 1977, pág. n/localizada.
Anais do 1º Congresso Brasileiro de Folclore, (Rio de Janeiro, de 22 a 31 de agosto de 1951),
Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1953, Vol. III, p. 33 e 34.
FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Querebentan de Zomadonu, 3ª Ed., Rio de Janeiro, Pallas,
2009, p. 65.

537
Outras interpretações sobre o episódio foram apresentadas por Marcilene Pinheiro Leal, Identidade e
Hibridismo em Dalcídio Jurandir: a formação identitária de Alfredo, em Três Casas e um Rio, Dissertação de
Mestrado em Literatura, Belém, UFPA, 2008; Jose Fares, “Canto elegíaco do rio: a serpente em Três casas e um
rio, de Dalcídio Jurandir”, in Marcus Leite (org.), Leituras dalcidianas, Belém, UNAMA, 2006, p. 77.
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NEGRAS, AFRICANAS E IMIGRANTES: VIDA DE MULHERES AFRICANAS EM


FORTALEZA-CE

Ercílio Neves Brandão Langa538 | ercilio.langa@gmail.com

INTRODUÇÃO
Este artigo analisa o lugar social e os modos de vida de jovens africanas na diáspora na
cidade Fortaleza-CE. A partir de sua quadrupla condição – de mulheres, negras, africanas e
imigrantes, pretendo compreender as experiências e os dramas sociais dessas personagens,
interseccionado com as categorias de raça, sexo, etnia, escolaridade e trabalho. Por outro lado,
pretendo apresentá-las como exemplo de superação de adversidades em contextos
desfavoráveis – “resiliência” – numa metrópole brasileira racialmente hierarquizada, com suas
distinções de classe, sexo, gênero, religião, num cenário de dificuldades no acesso à
escolaridade e emprego. Em outras palavras, trata-se de compreender o sentido das
experiências de deslocamento dessas jovens imigrantes africanas. Neste cenário, impõem-se
várias questões: que mudanças a experiência de migração produz na vida e nas identidades
destas jovens mulheres? Como pensar suas inserções em uma sociedade hierarquicamente
racializada e sexista? Quais os seus lugares na estrutura social e como se dá a inserção social
dessas mulheres na sociedade de acolhida? Como ficam seus direitos humanos? Como esse
contexto social de discriminação racial e de gênero causa prejuízos à sua saúde psíquica e
psicossocial, afetando a sua autonomia cidadão? Faz-se necessário esclarecer que me ocupo
de mulheres africanas sob ponto de vista positivo, não como vítimas, mas como protagonistas
com capacidade de ação nas tramas da vida na diáspora, de superação de adversidades e de

538
Doutorando e Mestre em Sociologia, Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza-CE. E-mail:
ercilio.langa@gmail.com.

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encontrar soluções próprias para o seu dia-a-dia. A condição estudante e pesquisador africano,
integrante desta diáspora entrevistando mulheres africanas de culturas próximas, certamente
que interfere na pesquisa. Assim, opto pela imparcialidade na análise e não mais pela
propalada “neutralidade científica”, conforme as ilações de Meihy e Holanda (2010) apud
Prestes (2013).
À rigor, muitos estudos sobre populações diaspóricas apresentam-nas como vítimas,
oprimidas, sem capacidade de “agência”. No cenário migratório estudantil em Fortaleza,
mulheres de distintos países africanos têm revelado capacidade de adaptação, levando consigo
a cultura, identidade e estruturas de seus países de origem, mesclando-as com os valores da
sociedade de acolhida. Relativamente à estrutura do texto, na primeira parte, analiso o lugar
social destas jovens mulheres africanas na diáspora na cidade de Fortaleza-CE, à luz das
contribuições teóricas de autoras feministas e diaspóricas. Depois, abordo sobre as
interpelações e ressignificações identitárias de raça, gênero e religião, bem como os processos
de resiliência educacional e laboral acontecidos. Por último, compreendo as experiências,
dramas vivenciados na diáspora, focalizando, em particular, suas sociabilidades e
afetividades, interseccionando com a quadrupla condição de mulheres, negras, africanas e
imigrantes.

O LUGAR DAS MULHERES AFRICANAS NA DIÀSPORA: DA SUBALTERNIDADE


AO EMPODERAMENTO
Historicamente, a participação das mulheres nos movimentos diaspóricos tem sido
pouco estudada. A rigor, a maioria dos estudos sobre populações diaspóricas negras,
comunidades de imigrantes de origem africana e, afrodescendentes tem como foco os
indivíduos do sexo masculino, negligenciando a condição das mulheres sejam elas imigrantes,
trabalhadoras, refugiadas, estudantes, assim como suas questões de direitos humanos, gênero,
educação, sexualidade, dentre outras. Na abordagem sobre a diáspora africana no Ceará e suas
ressignificações identitárias, entendo ser fundamental compreender e discutir as experiências
de deslocamentos das mulheres africanas e suas vivências. A noção de “diáspora” constitui
uma categoria central na minha análise acerca da presença de estudantes africanos(as) em
território cearense no contexto da migração estudantil. Nesse sentido, à luz das ideias
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fundantes de pensadores dos Estudos Culturais e de Estudos Pós-coloniais, venho delineando


o campo analítico que designo “diáspora africana no Ceará”, enfatizando os processos de
ressignificação identitária de seus integrantes (LANGA, 2014, 2015).
A diáspora africana em Fortaleza, apesar de ser composta por uma população
eminentemente masculina, tem uma crescente presença de mulheres, ainda que constituam um
contingente invisibilizado pela sociedade fortalezense e, às vezes, pela própria comunidade
africana. Nesse cenário, tem-se a coexistência de diversos movimentos sociais e agremiações
estudantis africanas comandadas por indivíduos do sexo masculino, contando com pouca ou
nenhuma participação das mulheres africanas. Tal situação revela desigualdade de gênero e
invisibilização da participação das jovens africanas. É esse, um fenômeno interpelador na
diáspora africana nesta metrópole do nordeste brasileiro. Por essas razões, trago ao debate, os
modos de vida e as experiências de deslocamento dessas jovens estudantes.
Para fazer essa discussão trago, as contribuições teóricas de autoras negras, feministas
e militantes de diversos movimentos pelos direitos das mulheres. Tal participação das
mulheres nas diásporas negras e afrodescendentes foi pouco estudada pelos três teóricos
fundadores dos estudos diaspóricos William Du Bois, Paul Gilroy e Stuart Hall. Ainda que
alguns autores dessas correntes tenham reconhecido que os discursos raciais incidiram,
particularmente, sobre os corpos das mulheres afrodiaspóricas, pouco se abordou acerca do
lugar social, político e econômico. Gilroy (2001) bem circunscreve esse lugar:

Os racismos que codificaram a biologia em termos culturais têm sido facilmente


introduzidos com novas variantes que circunscrevem o corpo numa ordem
disciplinar e codificam a particularidade cultural em práticas corporais. As
diferenças de gênero se tornam extremamente importantes nesta operação anti-
política, porque elas são o signo mais proeminente da irresistível hierarquia natural
que deve ser restabelecida no centro da vida diária. As forças nada sagradas da
biopolítica nacionalista interferem nos corpos das mulheres, encarregados da
reprodução da diferença étnica absoluta e da continuação de linhagens de sangue
específico. A integridade da raça ou da nação, portanto emerge como a integridade
da masculinidade. Na verdade, ela só pode ser uma nação coesa se a versão correta
da hierarquia de gênero foi instituída e reproduzida. (GILROY, 2001, p. 19).

Na ótica de Gilroy (2001), emergiram novas formas de colonialismos e racismos nas


sociedades contemporâneas, que inscreveram os corpos negros e suas práticas corporais numa
nova ordem disciplinar. Assim, no contexto de luta pelos direitos humanos e contra as

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diversas formas de racismos, discriminação e opressão, as discussões sobre gênero têm


ajudado nas lutas por igualdade e, colocaram à nu as interferências dos Estados-nação nos
corpos das mulheres afrodiaspóricas que, são o lócus da reprodução biológica e das diferenças
étnicas. Nesse contexto de racialização e invisibilidade, coube às próprias mulheres
diaspóricas e “de cor”, falar e narrar sobre suas experiências. É desta forma que, nas linhas
seguintes trago as contribuições de autoras pós-coloniais, que vivencia(ra)m as experiências
de diásporas, de racialização e distintas formas de opressão por sua condição de mulheres,
pertencentes a grupos considerados marginais.
Spivak (2010), teórica dos estudos subalternos, discute as experiências de mulheres a
partir de categorias como gênero, discurso hegemônico, violência epistêmica e subalternidade.
Questionando a posição do intelectual pós-colonial, Spivak (2010) explicita que nenhum ato
de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato esteja imbricado no
discurso hegemônico. Desta forma, a autora oferece uma análise alternativa às relações entre
os discursos ocidentais e a possibilidade de falar da/ou pela mulher subalterna, sem reproduzir
as estruturas de poder e opressão. Tais estruturas mantêm o subalterno silenciado, e não
possibilitam qualquer posição ou espaço onde este possa falar ou ser ouvido. Neste processo
de "representação" do outro, Spivak ressalta a ausência desse caráter dialógico na fala do
subalterno, isto é, o subalterno é capaz de falar, mas sua fala não tem um caráter dialógico.
Spivak (2010) considera como subalternos, particularmente, as mulheres pobres e negras do
Terceiro Mundo, que na sua ótica, não podem falar, e quando o fazem, não encontram meios
para se fazerem ouvir:

Pode o subalterno falar? O que deve a elite fazer para estar atenta à construção
contínua do subalterno? A questão da “mulher” parece ser a mais problemática nesse
contexto. Evidentemente, se você é pobre, negra e mulher, está envolvida de três
maneias. Se, no entanto, essa formulação é deslocada do contexto do Primeiro
Mundo para o contexto pós-colonial (que não é idêntico ao do Terceiro Mundo), a
condição de ser “negra” ou “de cor” perde o significado persuasivo. A estratificação
necessária da constituição do sujeito colonial na primeira fase do imperialismo
capitalista torna a categoria “cor” inútil como um significante emancipatório. [...]
Não é apenas uma questão de um duplo deslocamento, já que não é simplesmente o
problema de encontrar uma alegoria psicanalítica que possa conciliar a mulher do
Terceiro Mundo com a do Primeiro. (SPIVAK, 2010, p. 85).

É desse modo que na sua reflexão, Spivak (2010) enfatiza esta tripla condição de
opressão vivenciada por esses sujeitos subalternos silenciados – por serem “mulheres, pobres
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e negras, oriundas do Terceiro Mundo” – diante do mundo capitalista. Segundo esta acepção
da autora, ao ignorarem a condição das mulheres do Terceiro Mundo, os(as) intelectuais
contribuem para o radicalismo masculino. Assim, devemos aprender a falar sobre essas
mulheres historicamente silenciadas, bem como criticar o próprio discurso pós-colonial com
as melhores ferramentas que esse discurso produz.
Por sua vez, Brah (2011), outra mulher diaspórica, feminista, pós-colonial e “de cor”,
que destaco, aborda a questão das identidades das mulheres diaspóricas explorando as
categorias e interseccionalidades de raça, gênero, classe, sexualidade, etnia, geração, entre
outros. Sua experiência de vida é marcada pelo deslocamento, dispersão e vivência na
diáspora, nos “lares” em quatro dos cinco continentes: primeiro na Ásia, depois em África, em
terceiro na Europa e por último, nos EUA. Tais experiências de diferença, solidariedade e
identidade, tornaram-se significativas na sua vida e obra e, também tornaram complexo seu
sentimento de pertença nacional:
«Soy uma ugandesa de ascendência índia», conteste. Pareció satisfecho com mi
respuesta. Pero, por supuesto, él no podia ver que yo fuera ambas cosas. El cuerpo que
se encontraba ante él ya estaba classificado dentro das relaciones sociales,
atravessadas por el género, del sandwich colonial. Yo no podia sencillamente «ser».
Tenia que nombrar uma identidade, sin importar que el hecho de nombrarla ignorara
todas las otras identidades (de género, casta, religón, grupo linguístico, generación....).
Éstas nom tenían importância ne la entrevista. [...] Aunque sé, y sabia entonces, que el
«aspecto» tiene uma gran importancia em los regímenes coloniales de poder. El
aspecto importaba debido a la historia de la racialización de los «aspectos»; importaba
porque los discursos sobre el cuerpo habían sido cruciales para la constitución de los
racismos. Y el poder racializado operaba em y a través de los cuerpos. Además, dicho
poder se configuraba em jerarquias, no solamente entre las categorias de personas
dominantes y personas subordinadas, sino también internamente a dichas categorias;
esto es, entre los «indios» y los «africanos» en este caso. (BRAH, 2011, p.25).

Brah (2011) aponta a existência da questão da aparência física e da nomeação/auto


identificação com apenas uma identidade no “sanduíche colonial” criado pela colonização
europeia em África. Demonstra que na realidade, ela sempre foi “muitas coisas” ao mesmo
tempo e que, ao se autodeclarar e se identificar com uma e única identidade, ignoraria todas as
outras categorias identitárias como a de gênero, casta, religião, grupo etnolinguístico, geração,
etc. Na sua ótica, a racialização dos corpos dos indivíduos configura um aspecto importante
para os regimes de poder coloniais e pós-coloniais e para a constituição dos diferentes tipos de
racismos. Tal poder opera a partir dos corpos, não apenas entre as classes dominantes, mas

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também entre os dominados.


Por outro lado, a ativista afroamericana Hill Collins (2000) argumenta que as mulheres
não são iguais, prevalecendo entre elas diferenças e conflitos de etnia, classe social e de raça.
Para reagir à tentativa de homogeneização idealizada pelas “feministas tradicionais”, as
mulheres negras passaram a organizar aquilo que hoje é denominado “Feminismo Negro”. Na
sua ótica, ainda que defendesse a solidariedade, o feminismo tradicional não conseguiu
encarar as diferenças entre as mulheres brancas e negras. Assim, o Feminismo Negro pretende
ser porta-voz de todas as mulheres negras e surgiu para fomentar o empoderamento destas,
bem como documentar a existência de tal conhecimento e traçar seus contornos. Hill Collins
(2000) argumenta que a opressão está intimamente ligada às histórias familiares das mulheres
negras e, que poucos teóricos sociais, estão dispostos a pensar a realidade além das suas
experiências pessoais. Na sua ótica, as mulheres negras trabalham em situações de opressão,
conforme a raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade, idade e etnia, durante longos
períodos de tempo e sem acesso a recursos nas sociedades onde estão inseridas. Ao ampliar a
sua abordagem para questões ligadas à classe, etnia, cultura e raça entre as mulheres negras,
esta corrente apresenta-se como uma abordagem interseccional profícua para problematizar
tais questões.
AS INTERPELAÇÕES E RESSIGNIFICAÇÕES IDENTITÁRIAS DE RAÇA,
GÊNERO E RELIGIÃO
Na diáspora africana no Ceará, além das diferenças de nacionalidade, sexo e
tonalidade da cor da pele, existem outros fatores de distinção, tais como o nível de renda, a
origem étnica, cultural e religiosa. Entre as mulheres na diáspora, além das questões
apontadas, emergem outras diferenciações: conforme o país de origem e seu nível de riqueza
– rico ou pobre –, o grau de estabilidade financeira individual, assim como também se
distinguem segundo o grau acadêmico e o tipo de instituição de ensino que frequentam –
pública ou particular.
Nesse contexto de distinções e diferenciações, trago as experiências de três jovens
mulheres, africanas, negras e imigrantes, oriundas de distintos grupos etnolinguísticos que, à
data das entrevistas, entre os meses de janeiro e junho de 2013, tinham 24, 27 e 31 anos de
idade. Duas eram de nacionalidade bissau-guineenses e outra cabo-verdiana, residentes na
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cidade de Fortaleza há mais de 4 anos, cursando Relações Internacionais, Enfermagem e


Administração, em faculdades particulares.539 Em suas narrativas, merece destaque as formas
como estas mulheres se identificam e se autodefinem no tocante a raça, etnia e religião, mas
também em relação a orientação sexual, classe social, profissão ou trabalho, cujos
depoimentos, trago ao longo do texto:
Meu nome é Xiluva, mais conhecida por Xi, tenho 31 anos, sou solteira. Sou de
Cabo-Verde. Em Cabo-Verde, nós não temos etnia, mas nós somos divididos em
duas etapas: Barlavento e Sotavento. Eu sou de Sotavento. Eu sou pura mulher
mesmo, eu sou pura feminina. Eu estudo e trabalho aqui no Brasil, estudo
Administração e também trabalho na área de Administração. Eu sou da religião
católica. (Xiluva).

Em seus relatos, percebo que identificações como “pura feminina”, “negra”, “hetero” e
“católica” demonstram a existência de marcadores sociais de diferença entre as próprias
mulheres e, entre estas e a sociedade fortalezense, permeada por hierarquias de raça, sexo,
gênero e crenças religiosas. De fato, após certo tempo de vivência na diáspora em Fortaleza,
diante da alteridade racial e diversidade sexual e de gênero que permeiam a vida social
brasileira – bem como das distintas formas de discriminação, mas também de inclusão,
normalmente, por via da religião – ocorrem processos de “interpelações” raciais e
“ressignificações” identitárias entre as imigrantes. Nesses processos, as estudantes africanas
aderem a novas formas de identificação e de identidade: passam a assumir-se negras,
heterossexuais, estudantes e trabalhadoras e pertencentes às diferentes igrejas cristãs. Na
realidade, tais identificações e ressignificações identitárias são fruto do encontro com a
diversidade racial, sexual, religiosa e de gênero, revelando os “novos” modos de vida na
diáspora, a partir dos quais, essas mulheres passam a identificar-se ante a diversidade e
diferenças existentes. Dessa forma, as africanas são “interpeladas” com essas novas
modalidades de identidade.
OS PROCESSOS DE RESILIÊNCIA EDUCACIONAL E LABORAL
As mulheres africanas constituem minoria nessa diáspora estudantil internacional,

539
Como recurso heurístico, escolhi três mulheres emblemáticas que vivenciam a realidade comum à maioria das
estudantes africanas nesta diáspora. E, para não as identificar, protegendo suas identidades, optei por utilizar
nomes fictícios africanos, mais especificamente, moçambicanos. Assim, passo a designar as três interlocutoras
deste item pelos nomes de Xiluva – cabo-verdiana de 31 anos, Nyeleti – 27 anos, de Guiné-Bissau e, Nanana –
24 anos, também bissau-guineense.
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maioritariamente, constituída por indivíduos do sexo masculino. Tal situação pode refletir a
existência de patriarcalismo e desigualdades de gênero em suas sociedades africanas, nas
quais, parte das famílias prefere investir na educação dos filhos do sexo masculino, em
detrimento das mulheres, por questões de herança e continuidade da linhagem familiar. As
sociedades africanas são caracterizadas pela desigualdade sexual e de gênero, onde as
mulheres circulam entre as famílias patriarcais. Assim, muitas mulheres são impedidas de
estudar e de trabalhar fora do lar, não têm direito à terra, à herança familiar, bem como ao
divórcio e, não podem recusar uma proposta de casamento. Em diversas sociedades africanas
há grandes pressões para que as mulheres se casem cedo, em contextos onde as mulheres sem
filhos têm ainda menos direitos do que aquelas com filhos. Os casamentos prematuros,
casamentos arranjados, uniões forçadas com homens mais velhos, assim como uniões após
estupro, ainda são práticas socialmente aceitas. Como também, as práticas de excisão ou
mutilação genital feminina parcial ou total, deixando apenas um orifício para a saída da urina
e do fluido menstrual, que retiram à mulher o direito ao prazer e satisfação sexual.
Para além do trauma, esta prática pode também provocar infecções, hemorragias,
complicações durante o parto e, em alguns casos a morte. À rigor, em muitas sociedades
africanas rurais e, particularmente aquelas com populações islamizadas, o acesso de mulheres
à educação, saúde e emprego ainda é deveras restrito. Mesmo diante desse contexto
desfavorável de violação de seus direitos humanos, as jovens africanas têm demonstrado
interesse pela educação e trabalho, procurando informações e se candidatando às vagas da
forma como podem, em percursos de persistência e luta. Vejamos, então, um dos relatos
acerca da experiência escolar e dos processos que as conduziu a migrar para estudos no
Brasil, movidas pelo desejo de cursar ensino superior:
Bom, eu vim aqui como estudante. Eu soube da oportunidade de estudos aqui no
Ceará através dos meus amigos. Aí fiz a matrícula, o menino fez a matrícula e
enviou o documento pra mim, aí eu pedi o visto e vim aqui estudar. Eu estou aqui no
Brasil, vou completar quatro anos no mês de Junho. Lá em Guiné eu estudei até a
11ª classe. Eu trabalhava com vendas numa loja. Atualmente, aqui, agora não estou a
estudar porque eu já terminei de fazer o curso técnico e estou sem dinheiro pra fazer
a faculdade, que é muito cara. A mensalidade é de 800 reais, 750 reais, depende da
faculdade. Tem de 600 reais. Eu quero entrar no curso superior, fazer faculdade, que
agora eu fiz o curso técnico. (Nyelete).

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Os fatos acima descritos apontam para a existência de processos de “resiliência” entre


estas jovens mulheres africanas pois, conseguiram superar contextos desfavoráveis de
discriminação sexual e de gênero nas suas culturas de origem e, atualmente, na condição de
mulheres, negras, africanas e imigrantes, conciliam adversidades frequentes no cotidiano na
diáspora em Fortaleza.
Sobre esse assunto, Prestes (2013) considera que a população negra brasileira está
exposta a vulnerabilidades relacionadas a não garantia de direitos humanos, ineficiência
programática do governo em atender seus direitos de educação e saúde, e práticas regulares de
racismo. Tais vulnerabilidades atingem ainda mais incisivamente mulheres negras. Frente a
esse panorama de opressões, discriminações e desigualdades, o que se observa são prejuízos à
saúde, interferindo no desenvolvimento, tratamento e desfecho das doenças. Este quadro
torna-se ainda agravante, tratando-se de mulheres, negras, africanas e imigrantes.
A maioria das estudantes africanas está inserida em cursos de graduação em distintas
faculdades privadas fortalezenses, poucas conseguem se inserir nas universidades públicas
federais e estaduais e, um número ainda menor destas tem a possibilidade cursar pós-
graduação. Este segmento maior de africanas que estuda em faculdades particulares, recebe
dinheiro das famílias para pagar mensalidades e manter-se na faculdade, complementando a
sua renda por meio de trabalhos precários – em lojas e mercadinhos, cabelereiros,
restaurantes, ou ainda, em “casas de família” como babás – para assim pagar as contas,
garantir a sobrevivência e a própria locomoção na cidade.
Cabe recordar que, para além do desejo de estudar como principal motivo para
migrarem para o território brasileiro, o trabalho aparece como uma dimensão, igualmente,
importante, nas vidas das mulheres africanas. A profissão e/ou trabalho em que estão inseridas
se encontra bastante presente nas suas falas, ocupando uma dimensão central de suas vidas.
Assim, após chegarem ao Brasil, muitas destas jovens envolvem-se no mercado de trabalho,
muitas vezes, precários e/ou precarizados, como veremos mais adiante. Tais empregos são
considerados forma de “trabalho irregular” pelas autoridades brasileiras, pois, elas entram no
país com o visto de estudantes.
Dentro deste grupo de estudantes inseridas nas faculdades particulares, existe um
segmento de jovens africanas que, durante as férias letivas e nos tempos livres, dedica-se ao
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comércio de roupas e calçados entre o Brasil e seus países de origem. Assim como, um
número significativo das estudantes africanas encontra-se matriculadas em cursos “técnico-
profissionais” que oferecem “estágios remunerados”, o que representam uma forma de
inserção no mercado de trabalho. Desse modo, parte significativa das mulheres africanas é
atraída para os cursos de enfermagem e administração porque, ainda a meio do curso,
conseguem empregos como técnica de enfermagem, enfermeiras, auxiliares, atendentes e
garçonetes.
Entretanto, verifica-se grande rotatividade nesses trabalhos, devido aos contratos
precários, salários baixos ou, até mesmo, ausência de pagamento de salários. A condição de
estrangeiras é algo que impede muitas estudantes de reclamarem melhores salários e seus
direitos trabalhistas às autoridades competentes, optando assim, pela clandestinidade, pois
seus vistos estudantis impedem-nas de trabalhar. Outro fator que inibe esses sujeitos de
recorrer à justiça, em caso de litígio, é a existência de racismo institucional que, quase
sempre, atua em desfavor dos estudantes na sua condição de negros e africanos. As mulheres
africanas na diáspora são invisíveis ou invisibilizadas, entrando em cena, apenas quando
aparecem em reportagens televisivas ou de jornais.

AS EXPERIÊNCIAS E OS DRAMAS SOCIAIS


As dificuldades e distintas formas de discriminação enfrentadas pelas imigrantes
africanas, bem como suas interpelações raciais e ressignificações identitárias assemelham-se
aos processos que Turner (2008) define como “drama social”, ou seja, algo que se manifesta
através da irrupção de momentos de tensão, incidentes, casos e eventos tão significativos que
podem afetar e mudar as relações sociais. Para Turner (2005) apud Dawsey (2005) os dramas
sociais, ou seja, as dificuldades dos indivíduos de se recriar universos sociais e simbólicos no
mundo contemporâneo, no qual, os indivíduos se veem sozinhos e abandonados diante da
responsabilidade de darem sentido à sua vida.
O drama social seria uma experiência vivida que remete à noção de perigo,
propiciando aos indivíduos acesso ao universo social e simbólico, opondo o cotidiano ao
extraordinário. Nesta perspectiva, o drama social seria essencialmente como um conflito
individual ou coletivo, podendo ser isolados e estudados, podem ser eventos menores que,
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preparam o terreno para eventos maiores (TURNER, 2008). De fato, além da desigualdade
econômica e de gênero no acesso à educação, presentes nas suas sociedades de origem, já na
diáspora, as mulheres africanas sofrem também com o preconceito e racismo nas ruas,
instituições de ensino e nos locais de trabalho, ainda que nem sempre sejam explicitamente
reconhecidos por elas, como forma de opressão. Vejamos um relato:

Aí também tem umas coisas que o povo fala na rua. Eles veem a gente, não sabem
como é que a gente está aqui. Aí, fala assim: - ah meu Deus, é coisa do Lula mesmo
trazendo esse povo pra cá e a gente morrendo de fome. Eles falam isso esquecendo
que a gente tá ajudando, a gente tá pagando imposto aqui. [...] Como às vezes, a
gente ficou na esquina ali onde eu moro conversando aí, parou um bocado de carros
achando que a gente era prostituta. Aí é meio difícil porque, acho que a classe negra
é bem desqualificada, aí a gente já foi confundido um bocado de vezes. Muitas
vezes. Eles ficam pensando que eu sou puta porque eu moro no Centro, e é onde
ocorrem essas putarias. Às vezes a gente tá no Centro sentado em frente da casa
conversando de noite assim, aí um carro para, buzinando. Ninguém responde, por
que se fossemos garotas de programa, íamos dirigir. Aí eles passam, pedem
desculpas não sei o quê, aí... a gente diz: - beleza. (Nanana).

Diante das dificuldades, constrangimentos e situações de opressão no cotidiano, o


processo de migração para o Brasil apresenta-se como uma experiência única e significativa
sentida de forma intensa que, forma e transforma os modos de vida e as trajetórias dessas
jovens mulheres. Seus depoimentos revelam a ocorrência de mudanças significativas nas suas
identidades e modos de vida, decorrentes do deslocamento, algumas vezes tido como
vantajoso por conta da possibilidade de um ensino superior e formação de melhor qualidade e,
outras vezes, visto como algo negativo por conta do afastamento da família e dificuldades.
Esta é uma realidade próxima daquela definida por Turner (2005) como “experiência
vivida”.540 Quase sempre, a experiência migratória é ressignificada de forma positiva, vista
como oportunidade de formação; por outro lado, também é vista com uma mudança no modo
de ser e estar na vida por conta das dificuldades econômicas, para conseguir trabalho e pagar
contas pessoais. Nas linhas seguintes, abordo acerca das sociabilidades, interações afetivas e
interseccionalidades, em uma tentativa de circunscrever a dimensão afetiva das estudantes
africanas na diáspora.

540
Turner (2005) define “experiência vivida” como um acontecimento único que acontece a nível da percepção,
como a dor ou o prazer que podem ser sentidos de forma mais intensa.
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SOCIABILIDADES, AFETIVIDADE E INTERSECCIONALIDADES


Nas interações afetivas das mulheres africanas verificam-se diversas formas de
arranjos, desde namoros com indivíduos africanos, seja do mesmo país e etnia e, algumas
vezes, com homens brasileiros. Seus relacionamentos com africanos e brasileiros, muitas
vezes, encarnam nítidas relações de submissão a envolver dependência econômico-financeira.
As moças africanas costumam relacionar-se, particularmente, com homens que contribuam
para seu equilíbrio financeiro. No cenário da diáspora, as mulheres negras, africanas em
particular, ocupam o último lugar em termos de preferências afetivas. Tal situação pode ser
reflexo da representação histórica, existente sobre a mulher negra na estrutura patriarcal,
racista e sexista da sociedade brasileira, na qual, os homens africanos parecem se adaptar mais
facilmente, transitar em seus distintos espaços e, em alguns casos, passando a adotar seus
códigos. O controle social – cultura, tradição, religião, fofoca – parecem pesar mais sobre os
corpos das mulheres do que dos homens. Cabe aqui lembrar, a existência de estereótipos,
fantasias sexuais e raciais no imaginário social da sociedade brasileira, acerca da mulher
negra.
Tais imaginários e estereótipos afetivos, fundadas em determinados atributos tidos
como desejáveis e atraentes, ora rejeitados e indesejados – grupo étnico, raça, corpo, cabelo,
classe, renda, nacionalidade, – encarnam múltiplas expressões discriminatórias, configurando
aquilo que Crenshaw (2002) designa de “discriminação interseccional” ou
“interseccionalidades”. Crenshaw (2002) argumenta que tais discriminações não são
mutuamente excludentes, e assim, muitas vezes se sobrepõem e se intersectam, criando
complexas conexões onde se juntam duas ou mais categorias. As interseccionalidades são
categorias de distinção acionadas e articuladas pelos indivíduos para promover interação,
diferença ou diferenciação.
Por outro lado, as pesquisas Berquó (1987) acerca dos padrões de nupcialidade da
população brasileira – chances de casamento e recasamento, tipos de união, idade média ao
casar, uniões exogâmicas e endogâmicas –, focalizando, em particular, a população negra, há
muito que chamam atenção para a existência de um maior quantitativo de mulheres negras
morando sozinhas no Brasil, na condição de viúvas, solteiras e separadas. A este fenômeno
afetivo e nupcial na sociedade brasileira, Silva Souza (2008) designa, metaforicamente, de
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“solidão da mulher negra”. Na ótica desta autora, tal “solidão” deve-se principalmente por
conta do preterimento afetivo de mulheres negras, por parte de homens negros e brancos,
numa sociedade brasileira racialmente hierarquizada.
Sim, eu namoro com meu namorado. É namorado. Nós nos conhecemos em África,
na Guiné-Bissau, há cerca de cinco anos. A família dele me conhece mais ou menos.
O carinho é ótimo. Ele é ótimo. A gente se ama. A gente não se vê porque ele está
longe há cerca de cinco meses, ele está na Holanda. Ele mora lá, trabalha lá. As
pessoas sabem que nós somos namorados. Ele me assume e eu assumo ele. [...] Eu
recebo apoio dele, só dele, dinheiro, presentes, ele me ajuda a pagar aluguel.
Costumo sair com ele para festas, passear, praia, curtir. Nunca namorei nenhum
brasileiro, guineense também nunca namorei. Somente meu namorado, o cabo-
verdiano. Ele é o único namorado que eu tive. Estamos juntos há seis meses, ele
voltou ficou dois meses, aí voltou pra Holanda. (Nyeleti).

A existência de casais interaciais constituídos por mulher africana e homem brasileiro


é um raro evento na diáspora. Já o mesmo não acontece com os relacionamentos interaciais e
interétnicos constituídos por mulher brasileira e homem africano, ou mulher africana e
homem africano. Nesse contexto interseccional, as moças africanas apresentam escolhas
distintas das dos homens africanos, não tendo preferência por parceiros conforme a raça.
Nesses relacionamentos percebe-se a sua preferência por homens que sejam sensíveis à sua
condição financeira, que ajudem nas despesas cotidianas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto representa uma análise do cotidiano de mulheres da diáspora africana em
uma cidade do nordeste brasileiro, sob ótica dos direitos humanos, tendo como recorte gênero,
raça, origem e nacionalidade. Para a compreensão deste cenário, movimento diversos aportes
teóricos: teorias sobre a diáspora, autores dos estudos culturais e pós-coloniais, feminismo
negro, entre outros. As mulheres ocupam uma condição peculiar nesse deslocamento,
apresentando experiências, dramas sociais e interseccionalidades diferentes das dos homens
africanos. Na diáspora, diante da alteridade, das distintas formas de discriminação e de
inclusão, ocorrem processos de interpelação raciais e de ressignificação identitárias, nos
quais, as africanas passam a assumir-se negras, heterossexuais, estudantes e trabalhadoras e
pertencentes às diferentes igrejas cristãs. Tais ressignificações identitárias são fruto do
encontro com a diversidade racial, sexual, de gênero e religiosa no Brasil. Sua condição de
mulheres, negras, africanas e imigrantes – numa sociedade hierarquizada por sexo e raça – as
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coloca numa posição de subalternidade distinta dos homens diante da educação, trabalho,
relações de gênero, mercado afetivo, apresentando menores oportunidades de negociação e
inserção no mercado da educação e do trabalho. As africanas se inserem no mercado de
trabalho por meio de empregos precários, para assim poderem complementar suas rendas,
pagar despesas cotidianas, mensalidades nas faculdades, alimentar-se e deslocar-se na cidade.
Além desse fato, existe uma dependência econômica destas em relação às famílias de origem
e aos companheiros. Assim, muitas escolhem como parceiros, homens que sejam sensíveis à
sua condição socioeconômica, que as ajudem no cotidiano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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estudantil internacional. In: Malomalo et al. (orgs.). Diáspora Africana e migração na era
da globalização: experiências de refúgio, estudo, trabalho. Curitiba: Editora CRV, p. 161-

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186, 2015.
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(Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.
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preterimento pelo homem negro em São Paulo. 2008, 185 f. Dissertação (Mestrado em
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DAWSEY. In: Revista Cadernos de Campo, n. 13, 2005, p. 177-185.

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POR UMA EDUCAÇÃO EM E PARA OS DIREITOS HUMANOS¹

Iolanda de Sousa Barreto² | iolandasbarreto@gmail.com

INTRODUÇÃO

Como professora com formação em pedagogia, atuando há dezessete anos no trabalho


com a Educação Básica, sete destes como docente das séries iniciais do Ensino Fundamental
em escola pública da Rede Municipal de Ensino de João Pessoa-PB, tenho observado e
vivenciado inúmeras situações de conflitos e de violência no ambiente escolar. Muitas vezes
durante um dia letivo, me deparo com insultos e agressões verbais entre alunos e isso exige
sempre uma parada nas atividades das aulas, para que se estabeleça uma reconciliação e, mais
ainda, uma reflexão sobre a importância do respeito e da paz.
Nestes momentos, costumo dizer que não se bate só com as mãos, se bate também com
as palavras e que isso pode causar muito sofrimento. Para Charles Taylor (1994: 58), “um
indivíduo ou um grupo de pessoas podem sofrer um verdadeiro dano, uma autêntica
deformação se a gente ou a sociedade que os rodeiam lhes mostram como reflexo, uma
imagem limitada, degradante, depreciada sobre ele.”
É evidente, no espaço escolar, não somente a reprodução de preconceitos
historicamente arraigados em nossa sociedade, mas também o crescimento de uma cultura de
violência. A sociedade, em todas as suas instâncias, tem sido bombardeada por manifestações
violentas e atingindo-se níveis dramáticos.

___________________
¹ Este artigo é um recorte do trabalho de Especialização em Educação em e para os Direitos Humanos, intitulado
“Declaração Universal dos Direitos Humanos como referência para a promoção da cultura de paz e de direitos:
do ambiente escolar à vida em sociedade".
² Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba -UFPB. Especialista em Educação em e para os
Direitos Humanos pela UFPB e Mestra em Linguística e Ensino pela UFPB. Aluna especial do Doutorado em
Educação da UFPB.

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Os meios de comunicação de massa que deveriam contribuir para a formação de uma cultura
de paz, não assumem essa postura. Para Farias (2014, p.266): “Os filmes, as novelas
televisivas e os noticiários, em sua maioria, potencializam os conflitos, as brigas e as
transgressões morais. Tudo isso, descrito e apresentado em tempo real”.
A violência presente no meio social adentra o ambiente escolar e situações de abusos e
desrespeito são cada vez mais frequentes. Os profissionais da educação, que convivem
diariamente com essa realidade, assim como a sociedade que acompanha as notícias pelos
meios de comunicação percebem a instauração de um caos. A falta de tolerância, a
depredação dos bens públicos, a indisciplina, o exibicionismo violento, as diversas formas de
discriminação, o preconceito, o bullyng e o uso de drogas são algumas das questões
dramáticas que a escola não tem conseguido enfrentar de forma eficaz. Nesse sentido, Farias
(2014, p. 266) questiona se a violência segue um caminho massificante, virou moda ou um
estilo de vida. A referida autora ainda pondera:

As brigas de estudantes transmitidas ao vivo pela internet, a exibição de símbolos de


significados violentos oriundos de grupos societários (skinnhead, torcidas de
futebol, bullyng cibernético), nos fazem refletir e perguntar: por que tanta violência?
(FARIAS, 2014, p.266)

Como a escola, enfrentando todos esses problemas, poderá oferecer condições para
que seus alunos exerçam a cidadania, sejam indivíduos conhecedores dos direitos humanos e
capazes de praticá-los e promovê-los? Talvez essa não seja uma questão fácil de responder.
No entanto, é certo que a escola precisa de ajuda, precisa contar como respaldo de políticas
públicas eficazes, da sociedade e da família. Sozinha, não poderá fazer muita coisa. Quem
está dentro dela e vê de perto essa realidade sabe o quanto é complexa e, muitas vezes, se
sente impotente.
Como professora da primeira fase da Educação Básica, especificamente do 4º ano do
Ensino Fundamental, em uma escola que apresenta inúmeros conflitos, não sei o quanto é
possível fazer. Mas entendo que aliada à atuação e comprometimento efetivo do Estado, que
não pode se omitir de sua responsabilidade, deve haver um engajamento coletivo de todos os
agentes educacionais contra todas as formas de violência e que, todas as ações, por menores
que sejam, devem ser valorizadas e consideradas. Segundo Farias (2014, pg. 267): “Todos
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envolvidos nesse mister devem garantir um ambiente saudável e seguro que promova a
educação e transmita valores de não violência, da igualdade de gênero, da não discriminação e
do respeito mútuo.”
Associada ao conhecimento, a voz é um potente instrumento de luta e os professores
têm essa prerrogativa. É preciso, no entanto, que essa voz esteja sintonizada com os clamores
advindos da discriminação, do racismo, das desigualdades e de tantas outras formas de
violência presentes na sociedade brasileira da contemporaneidade. Para Paulo Freire (2000, p.
67):
Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade
muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da
equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o
diferente e não de sua negação, não temos outro caminho a não ser viver plenamente
esta opção.

Como operários na construção de uma sociedade menos desigual e mais fraterna


devemos ter uma atuação alicerçada na concepção crítica da educação, assim como no
conhecimento e conscientização quanto à luta por direitos humanos, sua defesa e promoção.
Segundo Wilson (1997, p.15):
A luta pelos direitos humanos (a luta por vida digna) constitui-se em uma longa e
difícil estrada da história humana. Longa porque o homem e a mulher existem há
milhares de anos na terra. Difícil, porque a luta por liberdade, igualdade e
fraternidade entre as pessoas, grupos, etnias, culturas e sociedades enfrentou e
continua a enfrentar graves obstáculos políticos, sociais, econômicos e culturais.
Assim, a busca dos direitos da pessoa humana é contínua, densa, dura, penosa,
contraditória, plural, diferente, realizadora e problematizadora. É uma história de
sucessos e fracassos. De descobertas, invenções, adaptações, experimentações em
face das aventuras da razão e das emoções humanas. É uma longa história de
caminhadas estabelecidas em espaços e tempos em que nos foram dados viver,
aprender, educar e transformar o mundo através da vontade, dos desejos, dos
conhecimentos, das ciências, das tecnologias, das culturas e saberes dotados e
situados diante dos nossos sentimentos e compreensões.

Os direitos humanos, em suas várias dimensões, são fundamentalmente históricos. São


frutos da própria evolução humana, assim como das lutas e clamores sociais, em tempos e
espaços diferenciados e demonstram o incessante desejo dos homens e das mulheres de terem
uma vida digna e de pertencerem a uma sociedade mais justa e igualitária. A partir dessa
premissa tem a escola importante papel na difusão desse conhecimento que é a base para o
exercício consciente da cidadania.
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A EDUCAÇÃO EM E PARA OS DIREITOS HUMANOS

Educar em e para os direitos humanos é desenvolver a capacidade de reflexão e


autorreflexão crítica, é capacitar-se e capacitar outros indivíduos para pensarem de forma
mais consistente a sua própria realidade, a realidade circundante, assim como a global. É
promover a busca por um espírito crítico e fraterno, a tomada de consciência sobre os diversos
papéis sociais, a reflexão sobre as verdades impostas pela sociedade dominante, o
questionamento de dogmas, tradições e comportamentos difundidos por esta sociedade, a luta
contínua por direitos individuais e da coletividade.
Na atualidade, muitas ações e medidas vêm sendo tomadas no campo da educação, no
sentido de respaldar, orientar e estimular as atividades educacionais para que fomentem e
difundam o conhecimento quanto aos direitos humanos, sua propagação e promoção, tanto em
nível internacional, como em âmbito nacional. A Proclamação da Década da Educação em
Direitos Humanos pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, em
1994; o Plano de Ação Integrado sobre a Educação para a Paz, os Direitos Humanos e a
Democracia, em 1995; o Pacto Interamericano pela Educação em Direitos Humanos, em 2010
e, no Brasil, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH/2006), assim
como as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (DNEDH/2012) são
alguns exemplos das importantes e diversas manifestações atuais que se destinam à
construção de uma cultura de direitos humanos.
Considerando a importância da escola pública enquanto espaço democrático de
socialização do conhecimento e de todo o patrimônio cultural produzido e em constante
produção pela espécie humana, é preciso salientar que tal instituição deve proporcionar a
todos, sem distinção, não somente a apropriação, produção e reprodução desses saberes, como
a construção desse processo pelas camadas populares a partir de suas próprias experiências, a
fim de aprimorá-las e transformá-las. Outrossim, deve levantar a bandeira de uma educação
em e para os direitos humanos.
Essa característica insere-se na efetiva contribuição da escola para o exercício da
cidadania, a qual garante aos sujeitos sociais uma inserção digna nas relações estabelecidas
em sociedade, uma participação ativa e crítica nas diferentes práticas sociais e, também, no
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mundo do trabalho. De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH,
1948, não paginado) a Educação em Direitos Humanos norteia-se pelo princípio que: “Todas
as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência
e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.”
No Brasil, O Conselho Nacional de Educação, reconhecendo a demanda pela
construção de uma cultura em e para os direitos humanos e a importância da educação nesse
processo, tornou público a Resolução nº 01/2012 que estabelece as Diretrizes Nacionais para a
Educação em Direitos Humanos (DNEDH/2012). Em seu Artigo 5º, as Diretrizes apontam o
objetivo central da Educação em Diretos Humanos:

A Educação em Direitos Humanos tem como objetivo central a formação para a vida
e para a convivência, no exercício cotidiano dos Direitos Humanos como forma de
vida e de organização social, política, econômica e cultural nos níveis regionais,
nacionais e planetário. (DNEDH/2012, Art. 5º)

Com relação à organização curricular as DNEDH/2012 sugerem a transversalidade do


conhecimento, considerando, entre outras abordagens, a interdisciplinaridade no tratamento
dos temas relacionados aos Direitos Humanos. Enfatiza, também, a importância da formação
permanente dos profissionais de educação para que possam, efetivamente, mediar esse
processo. Quanto à questão curricular, o parecer do CNE/CEB nº 7/2010 já recomendava que
a abordagem dos Direitos Humanos devesse ser assim realizada:

[...] ao longo do desenvolvimento de componentes curriculares com os quais


guardam intensa ou relativa relação temática, em função de prescrição definida pelos
órgãos do sistema educativo ou pela comunidade educacional, respeitadas as
características próprias da etapa da Educação Básica que a justifica. (BRASIL, 2010,
p. 24)

A instituição das DNEDH/2012 é um marco de grande significado para a Educação em


e para os Direitos Humanos, no Brasil. É certo que a escola sozinha não poderá promover uma
transformação coletiva com relação às questões concernentes aos direitos humanos, contudo,
exerce importante função nesse sentido, uma vez que é, de acordo com o Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos (PNEDH):

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Um espaço social privilegiado onde se definem a ação institucional pedagógica e a


prática e vivência dos direitos humanos. [...] local de estruturação de concepções de
mundo e de consciência social, de circulação e de consolidação de valores, de
promoção da diversidade cultural, da formação para a cidadania, de constituição de
sujeitos sociais e de desenvolvimento de práticas pedagógicas. (BRASIL, 2006, p.
23)

Nos tempos hodiernos, em que fatores sociais, econômicos, políticos e religiosos,


dentre outros, têm gerado intolerância, discriminação e violência, é preciso promover a
cultura de paz e de direitos de forma ampla. Assim, apesar de não ser o único ambiente social
onde as relações e aprendizagens em e para os direitos humanos são construídas, toda prática,
neste sentido, desenvolvida na escola, é repleta de significado e importância.

POR UMA CULTURA DE PAZ, DE DIREITOS E DE IGUALDADES

A escola enquanto instituição formal de promoção da educação deve estar atenta à sua
responsabilidade social, no sentido de não somente difundir conteúdos, mas também atitudes,
valores e o conhecimento dos direitos e deveres inerentes à plena cidadania. Para tanto, é
necessário que desenvolva processos educativos respaldados em princípios de igualdade,
liberdade e fraternidade, de modo a garantir a dignidade, a igualdade entre gênero, raça e
etnias, o respeito à diversidade e o exercício do diálogo, da participação e da autonomia entre
os sujeitos educativos.
É preciso que nossas crianças e jovens compreendam, na perspectiva do
empoderamento, a abrangência dos seus direitos e os princípios que devem nortear a vida em
sociedade, inclusive, a necessidade de tomar parte, na prática e na defesa, da cultura de paz
mundial, como condição sine qua non para o estabelecimento de uma sociedade justa, fraterna
e igualitária.
O movimento em torno de uma cultura de paz mundial pressupõe uma formação
cidadã cosmopolita, onde todos os sujeitos da sociedade planetária se percebam como
colaboradores e como corresponsáveis pela construção de um mundo novo. De acordo com a
Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz da Organização das Nações Unidas

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para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 1999) a cultura da paz compreende um


conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida, que por sua vez,
baseiam-se, entre outros princípios: no respeito à vida; na promoção e na prática da não-
violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação; no respeito e promoção de todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais; no respeito e busca da igualdade de
oportunidades entre homens e mulheres; no compromisso com os princípios de liberdade,
justiça, democracia, tolerância, solidariedade, cooperação, pluralismo, diversidade cultural,
diálogo e entendimento em todos os níveis da sociedade e entre as nações. (ONU,1999,
A/RES/53/243)
A escola pode contribuir com a disseminação dos princípios fundamentais à
instauração da cultura de paz e não-violência. Para tanto, deve incluir em seu currículo ações
voltadas ao seu conhecimento e prática, considerando, entre outras abordagens, a
interdisciplinaridade no tratamento dos temas relacionados aos direitos humanos, à
diversidade, à igualdade entre gênero, raça e etnias, assim como à cidadania ativa e
consciente.
Combater as desigualdades é função do Estado, da sociedade e das várias instituições
do país. A escola como lucus de diversidade deve estar preparada para lidar com esta,
refutando os preconceitos sociais arraigados historicamente e contribuindo com a formação de
novas mentalidades, mais conscientes e menos conservadoras. Para Sacristán (2002, p. 15):

A diversidade poderá aparecer mais ou menos acentuada, mas é tão normal quanto a
própria vida, e devemos acostumar-nos a viver com ela e a trabalhar a partir dela. A
heterogeneidade existe nas escolas, dentro delas e também nas salas de aula porque
existe na vida social externa. A educação também é causa de diferenças ou da
acentuação de algumas delas.

Dessa forma, o debate sobre essas questões deve estar presente no currículo
escolar, conforme preceitua as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação em Direitos
Humanos (2012), atendendo às questões concernentes à diversidade da sala de aula e às suas
especificidades.

UM CAMINHO A SER PERCORRIDO


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Um trabalho pedagógico direcionado para a promoção da cidadania e da cultura de paz


e de direitos a partir do ambiente escolar deve partir da compreensão do(a) aluno(a) enquanto
sujeito de seu meio social, que não vem vazio para a escola, mas traz consigo toda uma
bagagem de experiências, vividas ou sofridas nesse meio e que precisa tomar consciência de
sua realidade, para que possa transformá-la.
Ao pensar em projetos e outros procedimentos metodológicos para se trabalhar na
escola faz-se necessário considerar o desenvolvimento de atividades que possibilitem a
colaboração entre educando e educador nos processos de construção e reconstrução do
conhecimento, contemplando uma metodologia problematizadora das questões que permeiam
a realidade sociocultural em que se vive e integrando-as às diversas disciplinas do currículo
escolar.
A escola deve envolver educadores, estudantes e toda a comunidade escolar num
efetivo e reflexivo trabalho voltado para a apropriação de conhecimentos que conduzam à
prática consciente da cidadania, corroborando para que, na perspectiva do empoderamento,
todos possam, paulatinamente, construir uma percepção mais crítica sobre as concepções que
historicamente têm contribuído para o acirramento das desigualdades e preconceitos que
assolam a sociedade e afrontam a dignidade humana, assim como sobre a importância da
difusão da cultura de paz e de direitos mundial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O reconhecimento e a ampliação dos direitos humanos fazem parte de um processo


que vem sendo continuamente construído e afirmado ao longo da história. Resulta de
inúmeras inquietações e resistência dos que não aceitam apenas a condição humana por não a
conceberem dissociada de uma humanidade digna.
Face aos avanços e conquistas obtidas no campo dos direitos humanos, a população
mundial ainda sofre com as várias formas de violações de seus direitos, as quais se
materializam nas desigualdades, exclusões, desvalorizações, preconceitos, discriminações e
violências diversas praticadas em todas as camadas sociais, sobretudo, as economicamente
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desfavorecidas.
No contexto histórico atual, cada vez mais cresce o entendimento mundial de que a
educação, além de ser um direito inerente ao homem, desponta como o caminho para que
efetivamente se estabeleçam os pilares do conhecimento quanto aos direitos humanos e os
princípios de uma vida cidadã, assim como para a difusão e apropriação destes entre os
sujeitos sociais.
É pela educação em e para os direitos humanos que os estudantes, desde a infância,
poderão ter acesso ao conhecimento dos seus direitos enquanto sujeitos sociais e cidadãos que
podem e devem participar das relações sociais de forma democrática, respeitosa e digna. Na
escola, enquanto sujeitos em formação, poderão construir valores e atitudes pautadas no
respeito às diferenças, na corresponsabilidade social e no combate à intolerância, que é fator
responsável pelas diversas formas de violência.
No Brasil, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 muitos outros
documentos têm reforçado a promoção da educação em direitos humanos no ambiente
escolar. A recente instituição das Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos
(DNEDH/2012) é, sem dúvida, um marco de grande significado para a Educação em e para os
Direitos Humanos em nosso país, corroborando para que nossas crianças e jovens,
paulatinamente, possam compreender que a vida em sociedade e o exercício consciente da
cidadania pressupõem o conhecimento e a aceitação das diferenças próprias aos seres
humanos, a diversidade que se manifesta na cultura, na religião, na raça, na etnia, no gênero,
na orientação sexual e em tantas outras características da espécie humana. Possam, também,
construir percepções mais críticas sobre desigualdades e preconceitos e, por fim, reconhecer a
necessidade premente de tomar parte da cultura de direitos e de paz mundial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de


Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos;
Ministério da Educação, 2006. http://portal.mec.gov.br/index.php?option
=com_docman&task=doc_download&gid=2191 Acesso em: 15/09/2015.
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________ Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação


Básica. Resolução CNE/CEB nº 8/2012 - Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação em Direitos Humanos. Disponível em: http://www.seppir. gov.br/arquivos-
pdf/diretrizes-curriculares. Acesso em 15/09/ 2015.
________Lei de Diretrizes e Bases. http://www.cp2.g12.b r/alunos/leis/ lei_diretrizes
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ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela resolução
217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível
em: http://unicrio.org.br/img/ DeclU _D Humanos VersoI nternet. pdf Acesso em 10/09/2015
ONU. Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz. A/RES/53/243.
Disponível em: http://www.comitepaz.org.br/dec_prog_1.htm Acesso em 10/09/2015.

FARIAS, Maria Lígia Malta de. Escola e Relações Interpessoais: Mediação de Conflitos e
Sujeitos de Dignidade. In: Educação em Direitos Humanos & Educação para os Direitos
Humanos / Elio Chaves Flores, Lúcia de Fátima Guerra Ferreira, Vilma de Lurdes Barbosa e
Melo, organizadores. – João Pessoa: Editora da UFPB, 2014.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São
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SACRISTÁN, J. G. A construção do discurso sobre a diversidade e suas práticas. In:
ALCUDIA, R. et al. Atenção à Diversidade. Porto Alegre: Artmed, 2002.
TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la politica del reconocimiento. México, Fundo de
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WILSON, Pedro. Um breve olhar sobre a trajetória dos direitos humanos no Brasil no
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PRÁTICAS EDUCATIVAS DE PROFESSORAS NEGRAS E A CONSTRUÇÃO DA


IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL

Waldeci Ferreira Chagas | waldecifc@gmail.com

INTRODUÇÃO

Por ser uma nação multicultural a identidade do/a brasileiro/a sempre foi passível de
discussão, sobretudo, porque o modelo de nação instituído em 1822 negou os referenciais
culturais dos povos negros e indígenas. Desde então passou a ser discutida e se propagou a
partir dos anos 1970 com a emersão dos movimentos sociais negros que passaram a
reivindicar direitos antes negados, mais, sobretudo, a reinvenção da identidade dos vários
sujeitos, como por exemplo, as mulheres.
Nesse contexto eivado pela desconstrução e construção, o nosso propósito neste texto
é discutir a identidade étnico-racial entre professoras negras a partir de suas práticas
educativas como estudantes e professoras em diferentes realidades educacionais. Trata-se,
portanto, de uma pesquisa desenvolvida junto às professoras negras e paraibanas que nas suas
vivências em sala de aula, ora como estudantes e nas suas práticas cotidianas como
professoras construíram ou não suas identidades étnicas e de gênero.
A problemática que norteou a pesquisa foi entender como mulheres negras superaram
as barreiras sociais, sobretudo, o preconceito racial e de gênero e ascenderam socialmente,
saindo da condição de marginalizadas a inserir-se no mercado de trabalho. A
profissionalização foi fruto individual ou elas contaram com algum apoio, visto que na época
não havia política pública que garantisse as pessoas negras o direito de frequentar a
universidade?
Para a realização da pesquisa recorremos à história oral, sobretudo, a metodologia da
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história de vida e propusemos-lhes que revisitassem suas memórias e assim evidenciassem ou


não o processo de desconstrução e construção de suas identidades étnico-raciais.

HISTÓRIAS DE MULHERES NEGRAS


A partir da segunda metade do século XX a produção historiográfica começou a
ganhar novos rumos, e estes estiveram relacionados à ascensão de novos agentes sociais, cujas
demandas possibilitaram transformações nas sociedades. No campo do saber histórico
pesquisadores (as) passaram a discutir temáticas ate então concebidas como de pouca
importância na história, a exemplo da cidadania, e da construção da identidade das mulheres,
entre elas as mulheres negras.
Logo, as pesquisas sobre essa temática estão diretamente relacionadas às demandas
sociais e políticas pautadas pelos movimentos de mulheres, movimentos negros e movimentos
gays. Foi nesse contexto marcado pela construção e reconstrução das identidades que as
pesquisas sobre mulheres negras realizaram-se e várias discussões emergiram nos espaços de
saber.
No contexto da produção historiográfica sobre mulheres negras são pertinentes às
discussões formuladas por Gomes (1995), visto analisar a pratica social de mulheres negras e
professoras, na perspectiva de captar a sua trajetória escolar e o processo de construção da sua
identidade racial. Essa pesquisadora ainda discute sobre como ocorreu à construção da
identidade racial entre professoras negras, e a afirmação e negação de ser mulher negra.
Na trama tecida discute a complexidade desse processo e mostra que o fato de ser
mulher negra e professora não é suficiente para que se reconheçam e trabalhem com as
temáticas étnico-raciais na sala de aula. Uma vez que identificou na pratica pedagógica de
professoras negras assim como nos discursos formulados por elas a negação do ser negra e a
pouca importância dada aos conteúdos relacionados à história e cultura afro-brasileira e
africana.
Para Gomes (1995) esse tipo de comportamento é parte do projeto de branqueamento,
invisibilidade e negação a que as pessoas negras foram submetidas no Brasil. Ação que
começou desde o século XVI quando africanos (as) foram inseridos nesse país na condição de
escravizados (as) e forçados (as) a exercerem as funções indispensáveis ao desenvolvimento e
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manutenção da economia brasileira. Com a abolição da escravidão, as pessoas negras


passaram a condição de excluídas da sociedade e sem acesso a qualquer tipo de direitos, o que
representou o não reconhecimento delas como cidadãos. Por isso, Gomes (1995) pensa a
construção da identidade racial imersa num processo complexo e longo, que passa pela
afirmação e negação dos valores culturais das pessoas negras. Nesse sentido ressalta que as
experiências de vida de cada indivíduo, sobretudo, as experiências durante a infância na
escola, na família e nos grupos de amigos; marcadas pelo preconceito racial, aproximação e
distanciamento da cultura afro-brasileira são importantes na afirmação e negação da
identidade racial de mulheres negras.
As considerações de Gomes (1995) reforçam a tese de que a identidade é socialmente
construída na relação que os sujeitos estabelecem uns com os outros e com as diversas
instituições sociais, a exemplo da escola, família e meios de comunicações. Os discursos e
referenciais propagados por estas instituições com relação às pessoas negras influenciam na
construção da identidade racial. O que faz com que algumas mulheres se reconheçam ou não
negras, tenham reagido ou não diante das situações de preconceito racial ocorridas na escola.
Logo, a construção da identidade racial também passa pelas sutilezas da realidade de
cada sujeito. Não é algo pronto e acabado, mas um processo complexo, que inclui afirmação e
negação. Esse tipo de comportamento também incide sobre as ações de preconceito a que as
mulheres passaram.
Mesmo tendo sido discriminadas por serem negras, algumas mulheres minimizaram a
ação e levaram a vida adiante. Por medo ou falta de coragem em enfrentar o problema e ter
que sofrer novamente. Na compreensão de Gomes (1995) esse tipo de atitude reforça no outro
o direito de discriminar e não lhe possibilita a oportunidade de aprender a respeitar o
diferente. Para essa pesquisadora a negação do preconceito racial no discurso das mulheres
negras, sobretudo, professoras só será compreendido:

Se entendermos a educação como um processo de desenvolvimento pleno do


indivíduo, que se desenvolve dentro e fora da escola, não há como negar a
necessidade de uma competência política e profissional dos/as educadores/as para
entender as múltiplas dimensões da formação humana (GOMES, 1999, p.5).

O preconceito racial é parte do cotidiano das mulheres/professoras entrevistadas. Em


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virtude dessa realidade, compreende a identidade como parte de um processo complexo e


longo, construída na relação que os sujeitos desenvolvem uns com os outros e nas diversas
instituições e grupos sociais, a exemplo da família, escola e grupos de amigos. Nestes espaços
são construídos e propagados discursos e imagens sobre as pessoas negras que interferem
diretamente na identidade que eles construirão ou não de si. Na compreensão dessa
pesquisadora:

A identidade racial é um processo complexo que, assim como outros processos


identitários, se constrói gradativamente, envolvendo desde as primeiras relações
estabelecidas no grupo social mais íntimo, até a socialização nos outros
tempos/espaços sociais. Dentro do vasto campo da construção das identidades,
pensar a peculiaridade da identidade racial é refletir sobre um processo que não é
inato e se constrói em determinado contexto histórico, social e cultural (GOMES,
1999, p.5).

Assim como a identidade racial é complexa a inserção das mulheres negras no


magistério também se fez permeada por uma relação nem sempre democrática, mas
determinada por algum membro da família que via no magistério uma possibilidade de
ascensão.
Nesse sentido Gomes (1999) questiona se de fato as mulheres negras optaram pela
carreira do magistério ou essa era a única opção a que tinham direito, visto tratar-se de
mulheres cuja origem familiar é marcada pela pobreza social e econômica. Acerca dessa
questão assevera o seguinte:

Não posso afirmar que as professoras entrevistadas expressaram, de uma maneira


explícita, uma reflexão histórico-política sobre o significado do ser professora na
história da mulher negra. Entretanto, ao analisar os motivos da escolha do magistério
que os depoimentos trazem, infiro que essa escolha representa um processo de
rompimento com uma história de exclusão impostamente estabelecida. Exclusão de
classe, de raça e de gênero. A chegada ao magistério para a jovem negra é a
culminação de múltiplas rupturas e afirmações: a luta pela continuidade dos estudos
– um fato que até hoje se coloca como um complicador na história das mulheres-; a
busca de uma profissão que lhe garanta um espaço no mercado de trabalho; a
mudança de status no meio social em que vive a maioria das mulheres negras
(GOMES, 1999, p.6).

Todavia a inserção das mulheres negras no magistério não significou ascensão social
para elas, visto que não culminou com a democratização da escola para as classes populares,

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mas se fez em meio à desvalorização do magistério. Por outro lado também não garantiu a
inclusão das discussões etnicorraciais no currículo escolar. Uma vez que a professora negra
não recebeu formação que lhe garantisse isso. Na compreensão dessa pesquisadora:

Enquanto professora, a mulher negra se vê reproduzindo discursos que ouviu quando


criança na própria escola, no curso de magistério e também no de pedagogia. Em
todos estes espaços a discussão sobre a diversidade étnico-cultural e as diferenças de
gênero é ainda incipiente (GOMES, 1999, p.6).

Isso faz com que a construção da identidade racial seja complexa, sobretudo, porque
na sua prática na escola a professora negra passa a lidar com uma serie de relações de
preconceito. Nesse sentido como ela reagirá se durante sua formação o ser negro não foi
valorizado, mas anulado e a pessoa negra para ser aceita teria que travestir-se do outro. Na
concepção de Gomes (1999) esse tipo de comportamento faz com que a discussão da questão
racial na escola não avance. Na sua acepção essa questão só avançará se:

{...} negros/as e brancos/as aceitarem o desafio de romper com a ideologia racista,


passem em revista a história do Brasil e redescubram os valores da cultura negra.
Este não é um processo fácil. Nem todos conseguem vivê-lo e superá-lo, porém é
imperativo que se realize um trabalho efetivo com a questão racial na escola. Os
efeitos do racismo e do sexismo recaem sobre todos nós, homens e mulheres, negros
e brancos (GOMES, 1999, p.8).

Desde a transição do século XIX/XX as mulheres vem buscando diferentes formas,


meios e mecanismos de inserção social, cultural, política, e econômica. Ou seja, elas vêm se
afirmando sujeitos da história e por extensão cidadãs. Ao longo desse percurso se
profissionalizaram se intelectualizaram em diferentes espaços de produção do conhecimento,
mesmo que tais espaços, a exemplo das universidades nem sempre tenham as considerados
capazes de lá estarem, elas estiveram e estão.
Nas relações sociais, o fato de ser mulher negra ainda é um peso, sobretudo, quando a
questão é o acesso ao mercado de trabalho qualificado e competitivo. Do ponto de vista
profissional e salarial, as mulheres negras ainda estão em desvantagens nas disputas com os
homens brancos, homens negros e mulheres brancas.
As mulheres negras com quem dialogamos na pesquisa ascenderam intelectualmente e
profissionalmente, ou seja, se se constituíram cidadãs e professoras. Ao se afirmarem como

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tais e, assim ocuparem lugares de poder na sociedade estão livres do preconceito? São
reconhecidas capazes de? Como elas se enxergam na sociedade e como procedem à frente do
preconceito racial?
Assim como o ato de narrar a sua história é seletivo, acreditamos a mulheres negras
tenham ocultado fatos; não enunciados, embora tenham sido lembrados; uma vez que pensamos a
memória como processo seletivo e não o revelador da história tal qual aconteceu. Por sua vez não
podemos prescindir do ato de que falar de si é antes de tudo subjetivo. Nesse sentido, o dia, a
hora, o momento, assim como o ambiente onde a entrevista fora realizada, e o/a entrevistador/a;
tudo interferem no que o interlocutor revelará ou não.
Nesse sentido, corroboramos com a perspectiva de compreensão da memória como
elemento de sobrevivência de determinados momentos do passado, experiências, saberes,
práticas culturais, entre outros que influenciam constantemente a vida contemporânea dos
interlocutores.
Todavia, olhamos as representações construídas, reconstruídas e diariamente
enunciadas como práticas culturais, as quais são carregadas de valores e emoções comumente
invisibilizados.
O espaço que a mulher negra ocupa na sociedade ainda a torna desigual em relação
aos demais segmentos sociais, pois desde o fim da escravidão elas foram deixadas a margem e
sobreviveram às próprias expensas. Por isso, atentar para a trajetória de vida de mulheres
negras na Paraíba do século XX é relevante, visto desvendarmos suas perspectivas de vida,
medos, anseios, assim como estratégias de inserção social ao longo do século XX. Mesmo
com os mecanismos de exclusão as vistas, algumas se sobressaíram, o que decorreu de suas
capacidades de reinventarem-se, e atualizassem-se. Todavia, não se livraram do racismo ainda
evidente na sociedade brasileira e o responsável pela exclusão de muitas delas.
Na narrativa de sua história de vida Maria do Socorro Gomes Silva, nos mostrou as
formas de preconceitos vivenciadas pela mulher negra na sociedade brasileira,
especificamente na cidade de Alagoa Grande-PB. Assim quando se referiu à discriminação
racial, colocou que o preconceito é uma forma de inferiorizar as pessoas negras, pois nos
disse. “Quando alguém olha pra você do pé a cabeça ele ta dizendo que você é inferior a ele.
Isso agente vê constantemente”.
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Apesar das situações de discriminação que passou Socorro sobressaiu-se quando


comparada as outras crianças da sua família, e da cidade de Alagoa Grande, visto que na
escola ajudava as outras crianças, sobretudo, as “meninas ricas” nas atividades escolares. O
preconceito racial não a fez desistir de estudar, pelo contrário fez desse um caminho para
inserir-se e ser aceita, visto que era recomendada pelas professoras a ensinar as outras
crianças em casa, tarefa que deixou de fazer quando começou a tirar notas baixas. A partir de
então a sua mãe interveio, pois queria o bem da filha e o fato de ir à casa das amigas de escola
ensinar-lhes as tarefas a deixava sem tempo para os estudos, o que a levou tirar notas baixas.
Essa interlocutora ainda revelou que sofria bastante quando queria participar dos eventos na
escola e ninguém a chamava para tal, apenas pelo fato de ela ser negra.

E eu lembro que num sete de setembro, ninguém me escolhia. Aquela história que
ninguém te escolhia pra ir. Você tem a maior vontade de ir. Você vê todo mundo ir,
e você fica triste porque você não vai. E não vai. Toda vida eu fui metida. Eu
chegava ia pedir. E eu fui pedir, porque as minhas colegas tudinho ia e eu tinha que
ir também. Mas eu não pude ir assim de Princesa Isabel, essas coisas (Risos). Mas
eu fui levando a placa dela. Na frente, vesti outra roupa e a minha vontade era de
vestir uma roupa que não fosse à farda. Não é? Isso ai aconteceu, mas era porque eu
andava atrás. Eu não ficava assim... Eu não sabia por que o pessoal não queria e eu
pedia.

Maria do Socorro Gomes Silva ainda disse que sofreu bastante com os
comportamentos preconceituosos da sociedade em virtude de suas atitudes e práticas sociais
estar à frente do seu tempo. Na sua concepção fazia o que tinha vontade.

Eu fui da época que uma mulher não fumava eu já tava na praça fumando. Eu
sempre fui de dizer que eu fazia as coisas que queria. Assim. Não era. Não tinha um
período da história que a mulher era independente, que... Mas menina eu achava que
eu tinha que ser dessa. E eu ia mesmo. Na época que a mulher não ia pro bar, eu já ia
ao bar e tomava uma cerveja e eu ia sozinha. Se não tivesse quem fosse. Eu ia só e
chegava lá. Eu tinha o dinheiro da cerveja. Quem quisesse passar e olhar? Agora
você fica a mercê dos homens também, que acha que você porque tá sentado ali,
você vai com qualquer que aparecer. Que também não é. Aí quer dizer: aí eu acho
que a sociedade também faz isso com a gente. Você não é o que você é.

Nas suas inquietações quanto à educação Maria do Socorro Gomes Silva disse
relacionar os conteúdos das aulas com o cotidiano dos alunos, ela ver diferentes situações de
preconceitos vividas pelos (as) alunos (as) e colegas professores (as).`

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Na condição de mulher negra ainda são pertinentes as questões reveladas pela


Professora Lúcia, mais uma mulher negra paraibana que luta por seus direitos numa sociedade
cheia de preconceitos e que a todo custo tenta invisibilizá-las, visto que assim como a
Professora Socorro ela também carrega traços da discriminação e do preconceito racial.
As formas preconceituosas de tratamento dedicadas às pessoas negras vêm desde a
escravidão, elas só foram ampliadas e construídas constantemente nas relações sociais
estabelecidas entre as pessoas, ela está no trabalho, na política, na vida social, na vida econômica.
Para a Professora Lúcia a sua realidade na cidade de Alagoa Grande não é diferente.
Eu me vejo na sociedade de hoje ainda muito invisibilizada. Tanto nas questões do
trabalho, como é na sociedade de maneira geral, a política, a social, a econômica. E
porque é que eu sinto essa invisibilidade? Porque as pessoas ainda não estão
acostumadas a vê um profissional negro ou negra que tenham algum destaque. E
infelizmente ela passa a procurar a desqualificar e a não valorizar o seu trabalho
profissional, e até também a sua vida social. E a sociedade de Alagoa Grande como
toda sociedade brasileira ela é preconceituosa, ela é racista ela é discriminatória.
Porque ela é um recorte da sociedade do país. E é essa sociedade que hoje nós
temos, é enquanto Brasil.

No enfrentamento do preconceito a presença da família na vida da Professora Lúcia


foi fundamental, principalmente a figura do pai; personagem que a Professora Socorro se
ressentiu não ter tido quando criança. Apesar de o pai da Professora Lúcia ter sido muito
discriminado pelos colegas de trabalho, ou seja, da Polícia Militar da Paraíba, não se deixou
abater, seguiu adiante, visto que chegou a patente de coronel. Nesse sentido foi um aliado
importante da filha no enfrentamento ao preconceito. Para tanto, incentivou a Professora
Lúcia e suas irmãs a estudar. Segundo essa professora: “Ele ensinou pra gente sobreviver
nessa sociedade e ter condições de vida melhores nós teríamos que estudar”.
Essa nossa interlocutora falou que a partir dessa afirmativa do seu pai construiu muros
que de certa forma a fez não confiar nas pessoas, e por isso teve problemas na construção das
suas relações de amizades. Disse que seu pai era cuidadoso com ela e suas irmãs, e dessa
forma ensinou-lhe a não confiar nas pessoas.
A Professora Lucia revelou que seu grande problema na construção dos muros que
construiu em torno de si foi no sentido de infância. Não é um problema familiar, é no sentido
de convivência e começou na escola. Porque é na escola que tudo se constrói. A escola onde
estudava era particular, era um colégio de freiras, onde estavam pessoas que tinham condições
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econômicas melhores. E de negra só tinha ela e suas irmãs. Não tinham na escola outras
crianças negras com quem elas pudessem brincar e conversar. Quando perguntamos-lhes
sobre as lembranças da escola primária, rememorou o dia que chegou a escola pela primeira
vez. Disse que estava muito feliz porque estava de farda, aquela farda com saia prensada.
Quando chegou no grupo de meninas da sua sala, uma disse: ela é da cor da farda. No
enfrentamento do preconceito a Professora Lúcia passou a se fechar, e se isolar das outras
pessoas.

{...} é como se eu fosse totalmente invisível no sistema escolar. Mas em tudo


mesmo. Eu não brincava e ninguém me chamava para brincar, mal falavam comigo.
Isso das professoras, as freiras e as colegas da sala. E é isso que eu me lembro do
meu ensino primário. Eu não me lembro de outra coisa. Parece que é um bloqueio. A
única coisa que me lembro de são esses fatos.

No ginásio e no ensino médio essa interlocutora colocou o fato de ser deixada de fora
das ações e eventos que ocorriam na escola, o que a incomodava. {...} Quantas vezes
gostariam muito de ter guardado aquela bandeira e nunca fui. (Risos). Porque era um orgulho
pra gente, coisa que hoje o aluno hoje não tem. De a gente fazer aquela guarda de bandeira do
colégio feito um soldado. Né? Era o maior orgulho, mas eu nunca fui colocada não. De
maneira nenhuma fui.
Mesmo qualificada a mulher negra é descriminada, e com as Professoras Lúcia e Socorro
não foi diferente, uma vez que a sociedade brasileira em diferentes momentos históricos atualiza
os mecanismos de não aceitação das pessoas negras, e a aponta como sendo o outro. Por isso, ao
longo da história são as que mais lutam para construir os seus espaços na sociedade.
Em meio a discriminação que passaram ambas as interlocutoras construíram suas
identidades de mulheres negras. No percurso que trilharam ficou explicito o racismo, o
preconceito nos ambientes sociais que frequentaram, até mesmo na vida familiar. Refazer a
trajetória de vida dessas professoras nos possibilitou interligar aos dias atuais, sobretudo, porque
ainda hoje as pessoas negras vivenciam o preconceito constantemente. Frente às situações de
preconceito existente a exclusão está relacionada à sua condição de ser negra. No entanto, o
preconceito não se limita ao racismo, ele abrange também as relações de gênero enfrentadas pelas
Professoras Lúcia e Socorro.

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Todavia, o preconceito e o sexismo também acompanharam a vida das interlocutoras pelo


fato de ser mulher e negra, o que entoa a existência do duplo preconceito de forma explicita, mas
também implícita.
Na trajetória de vida das Professoras Lúcia e Socorro, elas se afirmaram como mulher
negra e cidadã brasileira atuantes na educação. Sobretudo, porque entenderam a formação
superior como importante em suas vidas, pois as ajudou a se aceitar e se reconhecerem no meio
social, visto que elas passaram a se valorizar pelo que tem e são. Através de suas vivências,
traçamos as barreiras superadas, ademais identificamos suas conquistas, afirmações ou
“negações” de sua identidade enquanto mulher negra, participantes da História do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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políticas públicas que não vieram... In: Intermeio: Revista do Programa de Pós-Graduação
em Educação. Campo Grande, MS, v.15, n.30, p.219-232, jul./dez. 2009.
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto: o processo de construção da
identidade racial de professoras negras. Belo Horizonte: Mazza, 1995.
__________________. A mulher negra que vi de perto: mulheres negras e educação:
trajetórias de vida, histórias de luta. In: Anais do V Encontro de História Oral, Belo
Horizonte, FAFICH, 1999.
PACHECO, Ana Cláudia Lemos. A Trajetória de uma intelectual negra: uma voz
subalternizada? In: Anais do XI Congresso Luso Afro-brasileiro de Ciências Sociais:
diversidades e (des) igualdades. Salvador: UFBA, Campus de Ondina, 2011.
________________. Trajetórias, feminismo negro e narrativas sobre solidão afetiva entre
mulheres negras ativistas e não ativistas em Salvador, Bahia. In: Anais do GT – Raça e
Etnia (NEIN – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher FECH – UFBA) s/d.
PALMEIRA, Francineide Santos. Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro: intelectuais
negras, poesia e memória. In: Terra roxa e outras terras: Revista de Estudos Literários.
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SILVA, Irailda Leandro da. Identidade e educação de mulheres negras de Buíque-PE. In:
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igualdades. Salvador: UFBA, Campus de Ondina, 2011.

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PROTAGONISMO FEMININO E ESCRITA DE SI: UMA REFLEXÃO SOBRE A


ESCRITA DE LALU LOPES

Simone Joaquim Cavalcante/541 | simonecavalcantejp@hotmail.com

PRIMEIRAS PALAVRAS: UMA ESCRITA DE SI

Uma escrita de si é uma compreensibilidade que opera no primado da consciência do


sujeito (nesse caso, o sujeito feminino), do seu ‘estar no mundo’ cujas experiências, vivências
e percepções erigem de aprendizagens ao longo da vida, refletidas em uma dimensão
existencial envolta em/por (re)contornos diversos para manutenção da própria lucidez. Além
disso, “a escrita de si assume a subjetividade de seu autor [autora] como dimensão integrante
de sua linguagem, construindo sobre ela a ‘sua verdade”” (GOMES, 2004, p. 14) de tal modo
que deixa por vezes desnuda uma determinada imagem542 de si, para si e para outrem,
trazendo consigo reflexos do seu ‘eu existencial’, (im)explícitas em sua ‘voz-escrita’ ou
‘escrita-voz’ que pode ser ampliada conforme sua força criadora (NERI, 2005). A escrita de si
é permeada por práticas sociais e culturais, através das práticas de leitura e escrita,
desenvolvidas no transcurso da vida de forma (ir)regular543.
A metodologia adotada está pautada na revisão conceitual assente na epistemologia
feminista e nas categorias de gênero, raça/etnia e geração, articulando possíveis
interseccionalidades, considerando as abordagens teóricas já produzidas no campo das
ciências humanas e sociais. Nessa direção, dialogando e refletindo a partir da escrita de Lalu
541
Doutoranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da
Paraíba/UFPB.
542
O termo imagem, aqui exposto, é entendido como a manifestação sensível do abstrato – do ser subjetivo em si
mesmo, o ser para si.
543
Característica presente na escrita de Lalu Lopes desde a década de 1960, quando começou a escrever versos e
registrar os ditos e não ditos das suas experiências cotidiana, conforme se constata em vários versos
(im)explícitos em sua obra literária (LOPES, 2014).
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Lopes, como uma escrita de si, através da análise de seu livro de poesia brasileira e paraibana,
intitulado “Livre como o vento” (2014), atenho-me às análises e às reflexões de duas poesias
específicas: uma sobre seu ‘estar no mundo’, como sujeito feminino circunscrito pelo seu ‘eu
existencial’; outra sobre questões (inter)geracionais, presentes e marcantes em sua produção
literária.
Partindo de um ponto de vista mais amplo sobre a epistemologia feminista, essa tem
se apresentado como um território fecundo no debate sobre o conhecimento como uma esfera
do saber, apontando em direção à compreensão de que o sujeito feminino é igualmente
produtor de conhecimento, visto que o “sujeito do conhecimento deve ser considerado como
efeito das determinações culturais, inseridos em um grupo complexo de relações sociais,
sexuais e étnicas” (CALVELLI e LOPES, 2011, p. 347), portanto, “decretando-o” como
sujeito de produção do conhecimento. O asserto remodula o discurso dominante de fazer
ciência de uma concepção puramente racionalista, ideológica, racista e sexista que, por muito,
amparou a maioria das práticas sobre a ciência moderna (CALVELLI e LOPES 2011;
KUHNEN, 2014; RAGO, 1998; NERI, 2005; LÖWY, 2009).
A ousadia de “decretar” que o sujeito feminino é também sujeito de produção do
conhecimento, no âmbito das discussões sobre as formulações da teoria do conhecimento (via
epistemologia feminista), certamente provoca incômodo nos círculos hegemônicos de veio
sexista, assim como assumir uma posição politicamente crítica544.
A prerrogativa nesse entendimento de caráter epistemológico é de que se possa de
algum modo superar a “pressuposição de diferenças cognitivas definitivas entre homens e
mulheres, mas sim como a abordagem que estuda as várias influências de normas e
concepções de gênero” (KUHNEN, 2014, p. 203) no território da produção do conhecimento,
que assenta o cognitivo em esferas antagonicamente opostas, definindo, classificando,
categorizando e hierarquizando como seres supostamente superiores (homens) e inferiores
(mulheres) incidindo no social (SCOTT, 1995; PEDRO, 2008). Portanto, a escrita de Lalu
Lopes, nesse contexto mais amplo, apresenta-se como uma contraesfera na produção de um

544
Na contemporaneidade, assumir tal posição, para muitas mulheres em contextos de militância social e
acadêmica, representa uma atitude política e/ou postura de afirmação da própria existência – como ser social
culturalmente inserida.
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saber que já sinalizara “para um afastamento da visão elitista da literatura em direção a uma
visão mais democrática de cultura” (THOMPSON, 2011, p. 20), que em certa medida vem
tensionando enfrentamentos à dominação cultural elitista-classista de vertente sexista e
racista, empreendendo operações de poder, amparando-se no discurso universal de uma falsa
“boa cultura” e da verdade inquestionável na produção de saberes e conhecimento(s)
(SANTOS, 2009; 2006).
A desconstrução desse tipo de discurso no âmbito das ciências é prerrogativa
indispensável para avançamos em termos de consciência humana e democratização do
conhecimento, ampliando e aprofundando as “discussões que giram em torno da incorporação
da categoria do gênero e que apontam para a sexualização da experiência humana no
discurso” (RAGO, 1998) que, por seu turno, não tem dado conta dos incomensuráveis feitos
produzidos por mulheres e homens ao longo da história da humanidade em diferentes lugares
e espaços, buscando desnaturalizar as diferenças sexuais socialmente e culturalmente
construídas sobre os gêneros.
O conceito de gênero, como uma categoria de análise histórica tomou dimensão nos
circuitos sociais e acadêmicos, através da apropriação dos movimentos feministas, a partir da
década de 1970. Segundo Scott (1995, p. 72), conceitualmente, o termo “indicava uma
rejeição ao determinismo biológico, implícito no uso de termos como ‘sexo’ ou diferença
sexual” que enquadrou mulheres e homens em lugares distintos na sociedade, hierarquizando-
os, sendo os homens considerados potencialmente como “superiores” às mulheres – no
mínimo estas denominadas como um ‘segundo sexo’” (BEAUVOIR, 2009; NERI, 2005;
PEDRO, 2008; CAVALCANTE, 2012).
De modo oposto, as questões que norteiam o debate sobre o conhecimento, de forma
geral, irrompem com a concepção universal e totalizante pautado nos paradigmas dominantes
de ciência, que apreciava (e, crivelmente continua apreciando) a produção de um
conhecimento desatrelado do ser social (crítico, histórico-dialético) (LUKÁCS, 2010). Para
além disso, “a produção de conhecimento é um trabalho dialógico, portanto, educacional”
(CARVALHO, 2010, p. 246), resultado e reflexo de intensos embates em torno de opções
teórico-metodológicas, que em suas análises e interesses (des)afinam em seus propósitos. Para
tanto,
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É um modo de pensar-conhecer-agir que sugere novos contextos de aprendizagem,


prospectando um olhar mais aberto e flexível nas interações com os fenômenos, os
objetos e os sujeitos. As concepções unificadas de mundo e da vida são
questionadas, as territorializações do que já sabemos, a noção de representação, o
saber individualizado e a objetividade das coisas já não têm mais um lugar
inquestionável (AQUINO, 2012, p. 26-27).

Tal perspectiva reflete no sentido de que o conhecimento, já não cabe mais em


concepções unilaterais, lineares, verticalizadas e centralizadas em sujeitos individualizados
“homens de ciência”, como aqueles considerados guardiões “natos” de um determinado saber.
Doutro modo, o conhecimento tem sido dilatado cada vez mais, contrapondo com um saber
produzido, excepcionalmente, por determinado gênero, grupo, e/ou classe social.
Os debates teóricos aventados por uma gama de pesquisadoras em torno das
interseccionalidades de gênero e de raça/etnia545 na sociedade brasileira têm refletido no
sentido de que as mulheres negras546, por exemplo, ainda encontram-se na escala
socioeconômica e educacional em lugares bastante desfavoráveis, seja em termos de
distribuição de renda desequalizada e mobilidade social drasticamente prejudicada, além dos
resquícios de um passado que vetou o acesso da maioria da população negra aos processos
básicos de escolarização. Essas questões sociais, equacionadas às assimetrias de gênero e
raça, são responsáveis por colocar não somente seus protagonismos em cenários ignorados,
mas também sua própria condição de existência (NEPOMUCENO, 2012; RIBEIRO, 2004;
ROLAND, 2000; SAFFIOTI, 2013; CAVALCANTE, 2012; MARCONDES, 2013). Mas, em
contrapartida e mesmo diante de tanta adversidade elas/nós continuamos protagonizando na
vida social, política, econômica, cultural e educacional e em outros vários campos de atuação.

UMA REFLEXÃO SOBRE A ESCRITA DE LALU LOPES

A escrita de Lalu Lopes é marcada por um eu em si latente, cujas reflexões partem,

545
Concepção que coloca negros e não negros em lugares oposto, hierarquizando os sujeitos como supostamente
“superiores” e “inferiores”. Tal prática e discurso foram embasadas nas teoria racistas do século XIX, que
tomaram dimensões inimagináveis no campo das ciências com profundo impacto nas sociedades. Em
contrapartida, as novas abordagens teórico-metodológicas têm ressignificado seu sentido em termos positivo e
afirmativo, com intuito de aprofudar e ampliar as análises e as reflexões em torno da temática, inclusive, no
âmbito da produção do conhecimento.
546
Utilizo a categoria “negra(o)” a partir da concepção político-ideológica, historicamente ressignificada pelos
movimentos negros organizados em âmbito nacional e internacional, empreendidos, desde a década de 1960.
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substancialmente, das suas experiências, vivências, percepções e aprendizagens ao longo da


vida, expressas em uma linguagem versífica – traçada em uma cartografia de sua
longevidade547. Escrevendo um livro não desintencionalmente intitulado “Livre como o
vento” (2014), traz aspectos críticos de uma realidade, cuja escrita é adensada por realidades
múltiplas vivenciadas, versificadas em poesia.
A poetisa paraibana Luiza Lopes da Silva (reconhecida na sua comunidade pelo
nome social de Lalu Lopes), nasceu em 1934 na cidade de Areia/Paraíba, filha de uma extensa
família, sendo sua mãe e seu pai pequenos agricultores de subsistência. Lalu Lopes estudou
apenas os primeiros anos iniciais de escolarização formal, mas esse aspecto limiar na sua
formação educacional não representou, todavia, a desistência por anunciar sua visão de
mundo, inclusive sendo o foco principal a escrita da sua própria existência, enquanto sujeito
feminino inserida em um contexto de adversidades de caráter histórico, social, cultural,
político, econômico e educacional.

O processo de escolarização e de acesso à educação da população, de forma geral,


em vários momentos da história do país, foi por vezes uma luta silenciosa, que
envolveu diversos aspectos – a questão econômica (desfavorecimento de recursos
financeiros), a categoria social (traduzida no status, lugar que cada indivíduo
ocupava na sociedade), o gênero (restrições à educação das mulheres), a condição
étnica (negros e negras à margem da sociedade, que não eram considerados cidadãos
e cidadãs) [...]. Muitos foram os obstáculos contra a mobilidade social da população
negra, que perpassou, sobremaneira, pelo acesso à educação. Entretanto, também
foram diversos os caminhos e atalhos trilhados por eles/elas para conseguirem
acessar as formas de aquisição de saberes, nesse caso, entendido como um conjunto
de práticas didático-pedagógicas que se dá através da relação ensino-aprendizagem.
As (i)mobilidades, ao longo do processo histórico, não foram suficientes para barrar
a ascensão de negros(as) às formas de apropriação do saber escolar, tão pouco para
alargar o acesso à escolarização. (CAVALCANTE, 2012, p. 81-82).

Por isso, entre caminhos e atalhos a (i)mobilidade da população negra no acesso à


escolarização no Brasil não representou por um lado uma total, generalizada e vertical inércia
no sentido de acesso ao conhecimento escolar (formal) – resultado das formas de sublevações
e resistência empreendida pelos afrodescendentes negros ao longo da história nacional; mas,
por outro prisma, significou a marginalização socioeconômica, estrategicamente articulada
pelos poderes institucionais (o governo) para barrar o acesso ao saber escolar da maioria da

547
Atualmente Lalu Lopes encontra-se na categoria das octogenárias.
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população, principalmente, as mulheres negras, que na realidade brasileira, hodiernamente,


ainda encontram-se na alargada base socioeconômica e educacional desfavorável
(GONÇALVES, 2011; RIBEIRO, 2004; CAVALCANTE, 2012; MARCONDES, 2013).
Em sua escrita, Lalu Lopes (2014) reconhece a importância imensurável da educação
como instrumento de saber-poder (transformação), metaforicamente faz comparações sobre a
dimensão de um saber qualificado – “Recebas a espada das mãos dos teus metres. Cabe a ti
agora saber usá-la. Se a lâmina for forte, belos frutos trará”548 (LOPES, 2014, p. 18) –,
momento em que expressa a lucidez da sua consciência e visão de mundo frente ao contexto
sociocultural no qual está inserida. As principais questões (im)explícitas no livro de Lalu
Lopes (2014) perpassam por temas tais como: educação, processo de envelhecimento,
natureza, religião, maternidade, entre outros trazendo recorrentes aspectos subjetivos,
subjacentes, como as angústias e os desenganos ao longo da vida por ela
experienciados/vivenciados.
Para Lalu Lopes escrever representa o desafio de expressar sentidos, sobretudo,
vislumbrar a própria existência permeada por conflitos, significados e representações de si e
de outrem, por vezes evidenciando (ou não) aspectos (in)compreensíveis de uma escrita
marcada por experiências e vivências múltiplas, adensadas por realidades complexas. Nesse
sentido, inicia nas primeiras páginas uma indagação sobre sua existência enquanto sujeito no
mundo. Assim, a poesia, cujo título nominado de “Consciência em gritos”, expressa sua
condição de sujeito (feminino), sem desfazer-se da lucidez do seu ‘estar no mundo’ e, das
gradações sofridas pela longevidade dessa existência, da condição de tornar-se mulher.

Quem sou eu? A morta que não viveu, a criança que não cresceu, a menina, feito
mulher? Quem sou eu? Não sei. Nunca pude me encontrar. Quem sou, não sei.
Se sonho não me lembro, quando penso, não entendo. Serei Deus? Não, é
impossível. O diabo? Não, não, também não. Alma penada, talvez. Mas certo é
pobre mortal? Sem sonho, sem vida, sem lar. Uma viva morta, uma árvore sem
folhas, ou o mar sem ondas, uma árvore sem sombra, ou um rio sem água. Quem
sou, eu não sei. Não sei. Talvez ilusão. (LOPES, 2014, p. 7). [Grifos meus].

548
Poesia escrita em alusão a formatura de um de seus filhos, cujo título indica extamente “Poesia ao filho
formado” (LOPES, 2014, p. 18). Lalu Lopes casou-se aos 14 anos de idade. Ao 15 anos teve o primeiro filho no
total de quinze (dos quais desses fihos e filhas, morreram dois recém nascidos).
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A autora escreve sobre um ‘eu existencial’, amparada em conflitos presente em suas


memórias, mas também ancorada em uma determinada realidade na qual um dia vivenciou
(e/ou ainda vivencia). De acordo com essa escrita, podemos inferir que tornar-se mulher para
Lalu Lopes, transparece um processo doloroso, quiçá, (in)compreensíveis as suas lembranças.
Sua escrita é repleta de (re)contornos. Segundo Neri (2005, p. 231), sobre “o processo de
feminização da cultura” evidenciada por uma ‘cultura escrita feminina’, “ o feminino, ao
aceitar o desafio do desconhecido, emerge na literatura como travessia de si mesmo, paixão,
morte e ressurreição” (idem, p. 231). Mas, no caso de Lalu Lopes, não no sentido de receio
em demostrar sua sensibilidade, conforme descreve Neri, mas na travessia de si para si
mesma, talvez, um “ir ao encontro do real do ser” (NERI, 2005, p. 233), que transborda sua
incompletude, circunscrita no ‘eu existencial’.
Na poesia “Vida e realidade” Lalu Lopes (2014) apresenta uma escrita amparada em
conflitos (inter)geracionais, que marcam profundamente determinada fase da sua vida, – o
processo de envelhecimento – envolto em/por controvérsias em um território movediço nessas
“cartografias do envelhecimento na contemporaneidade” (CORREIA, 2009) também
concebidas e percebidas através das relações sociais de reprodução e transmissões simbólicas
ao longo da vida, assim como da diferenciação cultural dos sexos, de geração em contexto
social diverso (TERRAIL, 2009; BRITTO DA MOTTA, 1999).

Quando jovem a gente é útil, prá tudo e todos enfim/ Mas quando velho somos
refugo/trapo velho ou coisa ruim/ Jovem diz: não serve mais/ Vou embora não dá
prá mim. Aqui eu peço desculpas/ Aos jovens a quem dou trabalho/ Já fui útil, hoje
empalho. Ser jovem é agradável/ Ser velho é puro calvário/ Mas ser velho às
vezes é bom/ Tem lições de vida prá dar/ Às vezes quem já viveu tem lições prá
ensinar. Às vezes um carro sai/ É alguém a viajar/ Ou uma mão nos acena/ Talvez
um lenço no ar/ E além das formalidades/ Não se sabe se quem vai/ ainda possa
voltar. Pergunta o velho a si mesmo/ Será que estarei aqui, quando um dia retornar?
E reza uma oração, pede a Deus em silêncio/ Prá seus filhos abençoar. (LOPES,
2014, p. 83). [Grifos meus].

A autora, a partir de um ponto de vista, descreve o processo de envelhecimento ora


como algo pormenorizado pelos mais jovens, cujo sentido revestido de uma desimportância
dada ao sujeito que encontra-se em um estágio diferenciado daquele outrora repleto de
memórias, lembranças e imaginários juvenis; ora doloroso para os mais velhos, que no vai e

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vem de despedidas abruptas (talvez) o receio da morte “(in)esperada” (in)desejada, destaca o


desinteresse social em relação à condição do estar velha549, não como sempre foi, mas como
mais uma fase da vida como as outras, outrora vivenciada; ora como os predicados das
experiências ontologicamente reais – pois as pessoas mais velhas em certa medida assumem
uma função social própria, “a de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da
sociedade” (BOSI, 1994, p. 63), experiências armazenadas nas fronteiras da memória, entre as
lembranças remanescentes e as fendas dos abruptos esquecimentos.
Destarte, não podemos esquecer que o processo de envelhecer é um estágio da vida
do ser humano, deveras complexo, principalmente quando se trata das transformações nas
estruturas bio-fisio-psico-afetiva-sexual-sociais dos sujeitos (mulheres e homens), embora
saibamos que no contexto sociocultural desse processo em curso “os fatores biológicos ou
cronológicos não são critérios para a compreensão da velhice, mas sim o seu significado, a
sua simbologia, ou o que ela representa em diferentes épocas” (BLESSMANN, 2004, p.
21)550 e com impactos mais severo sob às mulheres (BEAUVOIR, 2009; 1970).
Para as mulheres no transcurso do processo de envelhecer, suas lembranças são,
também, aquilo que desejou ser, sem ter sido, almejou fazer, sem ter concretizado, vislumbrou
realizar sem ter alcançado, subjetivações complexas inerentes a esta etapa da vida
(BEAUVOIR, 2009, 1970; CORREIA, 2009), que “afrontam” mulheres e homens ao longo
do tempo, com implicações mais incisivas sobre às mulheres em termos de aspectos sociais,
históricos, culturais e bio-fisio-psico-afetivo-sexuais as quais não podemos desconsiderar551.
Portanto, é com esse intento que a escrita de Lalu Lopes se apresenta ora como pujante sobre
as bonanças da velhice, ora como degradante em contextos (inter)geracionais mutáveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

549
A denominação velha(o) foi “resignificada”, para outras, tais como: idosa(o) e atualmente terceira idade (ou
até mesmo melhor idade) como antítese à ideia de velha(o) (BRITTO DA MOTTA, 1999; 2012; CORREIA,
2009). Mas, para este estudo utilizo as nomenclaturas velha e idosa.
550
Este trabalho não dará conta de apresentar um panorâma histórico sobre a questão dos modos de tratar a
velhice – seus sujeitos em diferentes épocas, as condições das mulheres velhas em contextos sócio-histórico
diversos.
551
As discussões sobre corpo e envelhecimento não foram explicitamente expostas nesse estudo, mas estão
implícitas nas análises e reflexões.

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Os versos escritos por Lalu Lopes em “Livre como o vento” (2014) são interpelativos
no desafio de buscar compreender sentidos nessa escrita de si, refletir com mais acuidade
sobre as categorias de gênero, raça/etnia e geração em suas possíveis interseccionalidades (via
epistemologia feminista), no âmbito das pesquisas acadêmicas em várias áreas do
conhecimento, assim como compreender que o saber no sentido lato não tem “dono(s)”, não
está restrito a um pequeno e seleto grupo, gênero e/ou classe social.
Doutro modo, ao explorar a leitura de uma obra literária como essa, especialmente
quando se trata de uma escrita de si, pode-se inferir que a autora empreendeu de forma
visceral sua ‘voz-escrita’ ou ‘escrita-voz’ vividamente marcada pela singularidade da sua
existência como sujeito feminino. Mas também, auxilia no sentido de reconstruir um olhar
sobre as mulheres de um modo geral, sem deixar de observar as especificidades subjacentes a
cada uma delas, particularmente as mulheres negras idosas, assim como anunciar um discurso
contra hegemônico na produção de saberes e conhecimentos.
Por último, certamente, a escrita de Lalu Lopes já faz parte de uma cultura escrita
nacional, local, que embora não esteja no rol das notáveis intelectuais negras e não negras,
encontra-se no território do protagonismo feminino, desafiando as calamidades do cotidiano, a
pobreza (fase dramática da sua infância), e a luta diária pela sobrevivência, para
ontologicamente existir enquanto ser humano e social. Sua produção literária (apresentada em
versos) contribui com a cultura escrita exercendo uma dupla função: social e cultural no
contexto em que está inserida. Analisar e refletir sobre a escrita de Lalu Lopes em contexto
contemporâneo, demonstra a importância de revisitarmos conceitos e categorias em torno da
produção do conhecimento em vários campos do saber.

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A IDENTIDADE DA MULHER MÃE: REFLEXÕES NA PERSPECTIVA DE


MULHERES QUE NEGLIGENCIAM OS FILHOS ATENDIDAS NA PROMOTORIA
DE JUSTIÇA DO CEARÁ

Fárida Maressa Loureiro e Souza | faridaloureiro@hotmail.com

INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea vem sendo marcada por amplas transformações


societárias, no mundo do trabalho com a reestruturação produtiva552, as formas precarizadas
de trabalho, o desemprego e a desigualdade estrutural como expressão da questão social553
denotando concentração de riqueza e renda nas mãos de poucos enquanto vastos contingentes
populacionais sofrem com as desigualdades sociais, econômicas e políticas.
Estas expressões em consonância com o individualismo, o consumismo, a
competitividade, o desejo de preencher o vazio psicológico e de inserir-se em grupos sociais e
a atuação midiática, propiciam situações que enveredam para o campo da violência.
A violência tem chegado as grandes, médias e pequenas cidades, causando
momentaneamente indignação e instantânea banalização. A sociedade tem se comportado de

552
Está pautada na expulsão de amplas massas de trabalhadores do mercado de trabalho, embora não prescinda
do trabalho como fundamento da produção da riqueza social e da acumulação capitalista. Mas, como estratégia
de maior extração de mais-valia, privilegia, por um lado, a obtenção de trabalho morto, consolidado na mais
avançada tecnologia disponível em detrimento do trabalho vivo assalariado; por outro, para livrar-se dos custos
de produção, o capital estimula e proliferam formas de subcontratação do trabalho que externalizam os
trabalhadores das empresas e retroagem nos avanços e conquistas em torno da composição do Estado protetor.
Surgem os fenômenos do desemprego estrutural, da precarização do emprego e da renda e da desproteção social.
553
A questão social é o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma
raiz em comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social,
enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade.”
(IAMAMOTO 1997, p. 27) e ainda “expressa a subversão do humano, própria da sociedade capitalista
contemporânea, que se materializa na naturalização das desigualdades sociais e na submissão das necessidades
humanas ao poder das coisas sociais- do capital dinheiro e do seu fetiche.” ( IAMAMOTO 2008, p.125.)

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forma apática diante dos episódios de violência que constantemente tem se tornando
cotidianos.
A violência, portanto, incorpora a vida dos indivíduos, na esfera pública provocando
grandes guerras militares e civis percorrendo todos os âmbitos alcançando o ambiente
privado, no espaço família, exercendo grande influência.
Analisando a nível microsocietal, na esfera familiar, detalhadamente é possível
detectar a violência de forma multifacetada e nas modalidades sexual, patrimonial,
psicológica, física, abandono e negligência, esta última vista por nós com olhar mais aguçado,
perpassando as mais diversas faixas etárias, relações de gênero, grupos étnicos e classes
sociais.
Em peculiar, a negligência familiar, é percebida como uma forma grave de descuido,
que abaliza para um drástico rompimento de vínculos dos genitores para com os seus filhos,
submetendo às vítimas a situações de parcial/total privações de seus direitos primordiais.
Tendo em vista esta problemática, este artigo busca compreender sobre a identidade
de mulheres mães que negligenciam os filho(a)s atendidas na Promotoria de Justiça do Ceará,
especificamente em um município de pequeno porte I554. Este artigo parte do pressuposto de
observações realizadas a partir de três casos estudados pelo profissional de serviço social, em
solicitação da Promotoria de Justiça do Ceará.
O motivo de lançarmos mão a esmiuçar esta problemática e fundamentá-lo, advém
da nossa atuação profissional outrora consubstanciada através de atendimentos e visitas
domiciliares, diálogos impetrados e observação dos comportamentos destas mulheres,
considerando que a negligência familiar constitui se como uma das múltiplas e refratárias
expressões da questão social, portanto, objeto legítimo de intervenção do serviço social. Este
profissional munido das leituras acerca do tema consegue suspender a sua visão para além do
cotidiano555 e assim obter uma prática mais apurada, livre de preconceitos, estigmas,
julgamentos e estereótipos ao qual o senso comum está imerso, e sobre qual este profissional

554
Segundo a Política Nacional de Assistência Social- 2004 que adotara definições pelo IBGE são configurados
como município de pequeno porte I os que possuem até 20.000 habitantes.
555
A cotidianidade é o campo privilegiado de reprodução da alienação, tendo em vista sua repetição acrítica dos
valores, sua assimilação rígida dos preceitos e dos modos de comportamento, seu campo repetitivo e
ultrageneralizador. (BARROCO: 2007).
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a todo instante trava embates.

MULHER E/OU MÃE E IDENTIDADE DE GÊNERO: A DUALIDADE


ENFRENTADA.

Para compreender um pouco acerca da identidade relacionada à identidade de


gênero, é necessário realizarmos algumas explanações acerca da temática adentrando pelo
viés gênero e suas imbricações com a identidade social.
No que concerne à categoria gênero podemos dizer que é relacional,sócio-histórica,
pois não nascemos homens ou mulheres, mas aprendemos ao longo da nossa existência, o que
é ser homem e o que é ser mulher, assim nos tornamos a partir de nossas experiências. Scott
(1990) argumenta que o conceito de gênero foi criado para opor-se a um determinismo
biológico nas relações entre os sexos, dando-lhes um caráter fundamentalmente social.
O gênero é “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às
relações de poder” relata (SCOTT, 1990; p. 5). Expõe, ainda, o dilema da diferença, a
construção de desigualdades binárias, de diferenças pretensamente naturais, que significa lutar
contra padrões consolidados por comparações nunca estabelecidas, por pontos de vista jamais
expressos como tais.
Carlotto (apud SAFFIOTI, 1992) considera que:

(...) não se trata de perceber apenas corpos que entram em relação com outro. É a
totalidade formada pelo corpo, pelo intelecto, pela emoção, pelo caráter do EU, que
entra em relação com o outro. Cada ser humano é a história de suas relações sociais,
perpassadas por antagonismos e contradições de gênero, classe, raça/etnia.
(CARLLOTO, 2001; p. 202)

A diferenciação entre os sexos pressupõe a definição do que são as características


que formam a identidade do masculino e do feminino. Não apenas as mulheres aprendem a
ser femininas e submissas, e são adestradas nisto, mas também os homens são vigiados na
manutenção de sua masculinidade.
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Em cada período ou contexto histórico da sociedade podemos observar a construção


da identidade do homem e consequentemente a delineação do ser mulher, visto que segundo
Safiotti (2001), ser mulher é tudo que se distancia do que é ser homem.
A identidade está intrinsecamente ligada à constituição de gênero. Sobre isto
descreve Hall (1999):

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada


continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em
diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu”
coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas (Hall, 1999, p.13).

Compreendemos que a identidade não é nato do indivíduo e que também não está
relacionado às condições sexistas. A identidade está em constante dinâmica e em consonância
com as épocas de desenvolvimento das sociedades, fato construtivo do desenvolvimento do
EU.
É perceptível que a identidade não é conferida como essencial ou permanente, mas
que vivenciamos pluralidades devido a constante mudança da sociedade tardia, conferida
através do fenômeno da globalização que produz assim grande impacto na mudança da
identidade.
Rebuscar o passado histórico acerca das significações de gênero e de maternidade
nos permite a compreensão dos comportamentos e entendimentos que delineiam a figura da
mulher, fato que nos faz entender os resquícios deste passado imbricados na identidade das
mulheres.
A priori a Igreja Católica (século XVIII) se constituiu como grande disseminador
ideologias que rodeiam a mulher como eixo principal das ideias de maternidade, sentimentos,
e fragilidade.
Sobre este fato relata a autora:

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Características como fragilidade e sensibilidade, atribuídas à natureza feminina,


foram valorizadas como positivas e desejáveis. A ideia de sensibilidade passou a ser
associada à de sentimentalidade, ou seja, à suposta predisposição natural da mulher
em ser mais volúvel no que se referia às questões de ordem emocional e moral.
Difundiu-se a crença deque a mulher teria maior capacidade para apreender e
transmitir as virtudes morais da religião. (HORIZONTE, 2000; p. 7)

Percebemos então que as ideias de sentimentalismo, docilidade, emoção estão


circunscritas na construção social da mulher como sendo inatas.
É necessário pontuar também o direcionamento que a Igreja que se utilizava de
alocuções no que remete a mulher solteira, a amancebada e a adúltera recorrendo à tradição
misógina556 no qual confundia estas com o pecado.
Del Priore (1993) pontua que em meados dos séculos XVIII e XIX, a adesão ao
discurso normativo médico revigora o condicionamento e adestramento do corpo feminino,
relacionando as funções anatômicas da mulher em suas funções de exercício maternal. O
adestramento dos corpos está fortemente relacionado a dominação biológica557 de caráter
fortemente simbólico.
No final do século XX, inovações tecnológicas (pílula anticoncepcional, reprodução
in vitro, técnicas científicas de aborto, dentre outras) proporcionaram novos
dimensionamentos na vida da mulher e da família. Agora, segmentada a obrigação outrora
natural da reprodução, pode escolher entre a maternidade e a independência individual, as
possibilidades de ingressar no mundo do trabalho e a luta por seus direitos em vista da
igualdade sexual e social.
Com base nos estudos realizados por Badinter (1985) nos mostra que a chegada de
um filho a família é vivenciada diferentemente por cada mulher: para algumas pode ser um
problema ou necessidade, imposição ou opção para outras. Ainda trabalha com uma
multiplicidade de imagens da maternidade citando as negligentes, as cruéis, as malvadas

556
A misoginia era caracterizada por um forte sentimento de aversão a mulher, principalmente quando se fala de
mulheres que não aderiam a forma da santa mãezinha. “A cultura misógena, item da bagagem cultural e da
herança ibérica para os trópicos, nutria um ponto de desdém pelas mulheres que aparecem, por exemplo, na
literatura moralista do século XVI e XVII como “manhosas, inconstantes, tolas, gastadeiras, maliciosas e
hipócritas” NASCIMENTO (apud Vainfas, 2005;p. 42).
557
A diferença biológica entre os sexos,(...) e, especificamente a diferença anatômica entre os órgãos sexuais,
pode ser vista como justificativa natural de diferença socialmente construída entre os gêneros(...). Dado o fato de
que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que esta diferença socialmente construída
que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social(...). (BOURDIEU, 2012).
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dentre tantas presentes de acordo com cada momento da sociedade influenciado pelo fator
cultura.
Aos desejos da gravidez Serrurier (1993) fala sobre os desejos maléficos de gestar
um filho:

(...) das que têm um filho como se tem uma boneca ou um cachorro; aquelas que
fazem um filho para se ligar a um homem ou para aprisioná-lo se ele ameaça fugir;
as que fazem filhos para poder dominá - los ou martirizá-los, porque é a única coisa
que conseguem controlar (SERRURIER, 1993; p.19).

Para muitas mulheres, ser mãe é deixar de ser mulher, de viver, de ser independente,
de desfrutar de sua juventude para viver em função dos filhos, se sentindo sufocadas.
Badinter (2010) faz questionamentos a respeito do desejo ou não de ser mãe:

Finalmente, escolher entre ser mãe ou não deve ser analisado em termos de
normalidade ou desvio? Nunca perguntamos sobre a legitimidade dos filhos.
Contudo, ninguém ignora os estragos da irresponsabilidade materna. Quantas
crianças são postas no mundo para fazer papel de compensação, de joguete ou de
acessórios de suas mães? Quantas crianças maltratadas ou abandonadas que são
consideradas perdas e ganhos da natureza? Estranhamente, a sociedade parece mais
interpelada por aquelas que avaliam suas responsabilidades do que pelas que as
ignoram... (BADINTER, 2010; p. 178).

Em uma sociedade que se cultuam valores sentimentais atribuídos a família,


maternidade e filhos, portanto, discriminadas ou rejeitadas, as mulheres que não possuem ou
optam por não gerar filhos, sofrem com estigmas. Aquelas que não suportam a carga da
maternidade, dos afazeres domésticos e das tarefas maritais deságuam as margens da
violência. Contudo, é imprescindível observar o contexto histórico e cultural para
compreendê-las.
Adentrando pelo viés da violência, em sua especificidade negligência, é assim
constituída por três dimensões: física, educacional e falta de supervisão. A primeira é definida
pela ausência em relação às necessidades primordiais da criança, relacionado pelo
acompanhamento do bem-estar destes. Assim, é composto pela falta de acompanhamento
médico, higiene corporal, vestuário, alimentação, bem como a habitação. Por conseguinte, a
negligência educacional é constituída pela omissão dos pais na área educacional e supervisão
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do desenvolvimento cognitivo. Por último, a falta de supervisão condiz com omissões


parentais em relação aos cuidados de socialização e segurança física da criança.

METODOLOGIA

O ambiente escolhido para este relato de experiência é a Promotoria de Justiça do


Estado do Ceará que está vinculada ao Ministério Público-MP558 o qual teve suas atribuições
redimensionadas, a partir da Constituição Federal de 1988, visto que fora designada como
uma instituição do sistema de justiça sendo esta a guardiã do Estado Democrático de Direito.
Este surge como instituição desvinculada de quaisquer dos poderes republicanos (Executivo,
Legislativo e Judiciário), com o claro objetivo de manter os seus membros livres de qualquer
interferência de autoridades ou grupos econômicos, fortalecendo-os na concretização das
promessas veiculadas na Constituição e nas leis.
O MP é ainda caracterizado como instituição voltada para a defesa dos interesses da
sociedade, no que diz respeito aos direitos difusos, individuais indisponíveis e sociais559. Com
vista a garantir o direito dos cidadãos, a promotoria recebe denúncias sobre violações de
direitos, e no que remete aos especificamente aos direitos individuais, urge por parte do
Ministério Público a necessidade de obter subsídios que serão utilizados como fundamentos
para efetivar e restaurar direitos. Para obtenção destes fatos, o Ministério Público lança mão
de profissionais especialistas médicos, psicólogos e no caso deste relato de experiência, o
assistente social que irá embasar o promotor de justiça na tomada de decisões, através de
laudos, pareceres e relatórios sociais.
No estudo em questão, foram analisados três casos de mulheres que

558
O Ministério Público é Instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art.
127).

559
Direitos difusos: envolve grupo de pessoas indetermináveis com danos indivisíveis e reunidas pelas mesmas
circunstâncias do fato; direitos coletivos: envolve grupo de pessoas determináveis que partilham de prejuízos
indivisíveis decorrentes de uma mesma relação jurídica; direitos individuais indisponíveis: são aqueles que não
podem ser retirados do indivíduo e do qual este não pode dispor, exemplos: direito à vida e à saúde. (CRESS-
RS/2013).

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comprovadamente negligenciaram seus filhos. Utilizamos como método de embasamento a


observação e instrumentais desenvolvidos para o trabalho deste profissional. Realizamos
assim, visitas domiciliares, atendimentos sociais e estudos sociais as respectivas famílias,
entre os meses de Abril a Novembro de 2014. As famílias analisadas possuem renda per
capita de um a dois salários mínimos. É coerente publicizar que uma das três mulheres está
respondendo criminalmente no Ministério Público por negligência, e neste caso já houve
suspensão do poder familiar. Pontuamos o envolvimento do Conselho Tutelar e outros
profissionais (enfermeiro, nutricionista e médico generalista e psiquiatria) de modo a prestar a
devida evolução dos casos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ACHADOS PARA NOVAS PESQUISAS

Os achados deste artigo trouxeram grandes esclarecimentos e também por que não
dizer indagações?
Percebemos que o universo destas mulheres é permeado de dúvidas e incertezas ao
ponto de não conseguirem definir o limite entre o ser mulher e o ser mãe, pois ao entender
destas, ambos são imbricados, ao passo que predomina a ideia da maternidade sobrepujando a
ideia de gênero, no caso, a identidade social do ser mulher.
O discurso da Igreja Católica e da medicina social aparece com novas roupagens,
trazendo a tona um novo instrumento de disseminação das ideias de adestramento dos corpos:
os meios midiáticos que enaltecem os valores conservadores da maternidade e da família,
disseminando ideias de que “ser mãe é padecer no paraíso”, a plenitude da maternidade e sua
naturalidade como intrínseca. Esse discurso simbólico é utilizado como justificativa natural de
diferença socialmente erigida entre os gêneros.
Outro ponto considerável diz respeito à ausência dos homens (figura paterna) para
com os filhos, sendo a mulher então encarregada de cuidar e repassar valores as crianças.
Percebemos que os pais se eximem da responsabilidade de cuidar e prestar à assistência
psicológica e social aos filhos, compreendendo que a parte que os dirige permanece ainda no
âmbito financeiro, ficando a mulher com atribuições cumulativas sentindo-se assim

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sobrecarregada.
Percebemos assim que a mulher está envolta em um verdadeiro mar de conflitos que
ora percorrem a plenitude e o sacrilégio de ser mãe e ora enveredam pela sensação da perda
de não estarem vivenciando a sua feminilidade, outrora questionado pelas mulheres. São
passíveis de análise as dificuldades socioeconômicas vivenciadas por estas, que não as deixam
optarem por exercer o “ser mulher”, estando a desempenhar sozinhas as responsabilidades
sobre os filhos. Em consequência da exaustiva prática da maternidade e do modelo perfeito de
mãe exigido pela sociedade, muitas mulheres terminam por enveredar para o consumo de
drogas licitas e ilícitas.
O papel do Ministério Público tem sido a princípio orientar pais e mães no que
concernem as responsabilidades para com os filhos, contudo, pelos argumentos citados acima,
a negligência familiar por parte dos pais (no nosso caso mulheres- mães) insita o MP a tomar
medidas mais exigentes dentre as quais a instauração de inquérito civil público resultando em
processo criminal contra mães e pais. No caso específico deste relato, ao analisarmos a fala da
mulher-mãe (que está sofrendo processo criminal e suspensão do poder familiar) percebe-se
que o foco desta não está nas consequências que possam afetá-la futuramente, mas sim na
possibilidade de não reaver seus filhos, o que demonstrou a priori mudança de
comportamento, confirmando assim as menções relativas à maternidade.

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A POLÍTICA DO SILÊNCIO E A DOMINAÇÃO MASCULINA

Glauber Lucas Ceara Silva | gllucesi@gmail.com

INTRODUÇÃO

Recentemente, no cenário brasileiro, urge com grande notoriedade o debate sobre


gênero e sexualidade. Visa-se romper com binarismos e opressões. Contudo, o próprio
masculino, muitas vezes deixa de ser alvo de investigação, em suas vivências e vicissitudes.
Se estudamos os homens e as masculinidades, dentro dos Ciências Sociais recentemente,
como apontado por Welzer-lang (2001, p.461), e Medrado & Lyra (2008) vão reforçar essa
ideia a partir de seus estudos, e FabriceVirgili (2013, p.83) vai mostrar que antes dos anos
1980 é muito difícil encontrar estudos que problematizem a masculinidade-violência.
O outro lado – aquela que está muitas vezes ligada à agressão - também faz parte da
transformação. E para mudar, é necessário compreender, não para aceitar, mas para resistir
(ARENDT, 2015, p.12). O presente artigo é fruto das reflexões que se apresentaram na
realização do trabalho de conclusão de curso para obtenção de grau em Bacharel em Serviço
Social, onde se procurou investigar a partir dos relatos de homens apenados por crimes de
estupro a relação entre machismo, patriarcado e a violência sexual.
O motivo dessa investigação se deu por entre outras razões a necessidade de retirar o
caráter estritamente patológico da questão. Muitas vezes, diante dos debates que envolvem a
violência cometida, escapa o argumento de algum transtorno mental como preponderante para
a consumação desse crime. Tal perspectiva produz uma invisibilidade para o vetor produtivo
desse crime, que se encontra no modos de relação patriarcal que subordinam a figura feminina
ao desejo masculino.
Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015, tal crime,

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alcançou a taxa, no ano de 2012, em números absolutos no Estado do Rio de Janeiro o


registro de 5.971. A taxa foi mantida acima dos cinco mil casos no ano subsequente,
mantendo o registro de 5.613. O mesmo relatório traz o dado alarmante de que, segundo
estimativas internacionais, apenas 35% dos casos são notificados, desta maneira, o Brasil
pode ter tido, estimativamente, mais de 100 mil casos de violência sexual.
Esses dados, contudo, não revelam os estupros que não chegaram a ser denunciados,
dentro dos relacionamentos, as violências insidiosas que rolam nas festas e dentro das
instituições, os que fogem as possíveis projeções dentro das relações legitimadas , como o
casamento por exemplo. Os dados também não revelam em si a estrutura que possibilita que
isso aconteça. O pior de tudo, existe uma série de ações governamentais que revelam que não
há em si a busca pela mudança ou questionamento de tal paradigma; e o são, porque revela
que as estruturas de percepção são sexuadas, as esferas de punição também o são. Revela que
o modo de gestão política dessa questão é engolfado dentro do regime da dominação
masculina.
Uma série de questões são levantadas, e zonas silenciosas são descobertas ao olhar
para o estupro e o estuprador.

POLÍTICA DE PUNIÇÃO COMO POLÍTICA DE REFORÇO

Uma política não se constrói fora de seu contexto. Por mais que as soluções sejam
apresentadas muitas vezes antes do problema, sua construção é imanente. Sua construção
nunca é fechada, mas um amplo espaço de disputa. Não é exterior as desigualdades, é também
afetada, alterada e flexionada por elas (BALL, 1993).
Considerando isso, podemos nos distanciar das concepções modernas de política, no qual
se concebe somente como ações político-governamental e de seus representantes como a
verdadeira política, ou seja
Quando as pessoas se referem à política, quase invariavelmente, a reduzem às ações
promovidas pelas instituições de governo no âmbito de um território, como as ações
do poder executivo, legislativo ou judiciário. Ou seja, referem-se ao aparato político-
governamental (aparelho estatal) e a seus representantes, assumindo uma concepção
de política que se define a partir da percepção da atuação de um conjunto restrito de
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instituições e grupos da sociedade [...]BAPTISTA & MATOS, 2011,p.52)

O avançar de todo aquele que se propõe a examinar/analisar uma política “vai,


portanto, muito além da compreensão dos resultados de decisões do Estado”(MULLER &
SUREL,2010,p.14). Assim analisar uma política é ver o dito e o não dito em determinado
espaço. Julgar, condenar, prender e constituí todo o processo político?
É claro que o processo de julgamento e condenação e processo de privação de
liberdade, revela que a política vai – como já dito – além. Por acaso, pode-se conjecturar uma
mudança dentro do sistema se as visões ainda são sexuadas e patriarcalizadas? Se debruçar
sobre essa questão é de certa maneira começar a questionar o papel do masculino dentro das
relações interpessoais. O que acarretaria uma necessidade de mudança substancial, no qual a
própria figura do Estado teria que ser remodelada, por isso, o “agir” do Estado somente revela
um outro “não agir”, muito maior e complexo. Deve-se abandonar a concepção totalmente
fatalista que o Estado não age por motivos de falta de estrutura ou por despreparo dos
profissionais. Muller & Surel (2010) vai nos apontar para que analisar uma política – aqui
apontada como além dos processos de formulação e aplicação governamentais -, deve se levar
em conta, entre outras coisas a NÃO DECISÃO INTENCIONAL(p.25), ou seja, os atores
políticos-administrativos não agem propositalmente.
Mas, seria uma ação totalmente reflexiva diante dessa problemática? A perspectiva
dohabitus de Bourdieu (1996,p.42) se apresenta como um modo perspectivo de análise para
com a noção de ação dos sujeitos. Para isso, o modelo de campo simbólico que compõe a
estrutura é muito útil para compreender como se dão as ações dentro desses espaços.

A INCORPORAÇÃO DAS INSTIUIÇÕES PELO MASCULINO


A dominação masculina não se manteria sem um subsídio dentro das instituições,
produções discursivas de verdade e produções simbólicas de valorização. Dentre os autores
que nos apontam para essa afirmativa, Castells (1999) nos mostra que a família é um espaço
de reprodução ainda profícuo da dominação masculina e no final de seu estudo direciona
concluindo que mesmo com todas as mudanças dentro das esferas teóricas, sexuais,
reprodutivas e sexuais, o regime patriarcal ainda goza de força e poder de gestão de
comportamentos. Isso desembocará nas análises de Welzer-lang (2004) que afirma que nossas
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visões de percepção ainda são sexuadas e androcêntricas, e que é necessário romper, dentro da
própria produção acadêmica, com uma epistemologia que reforce as categorias dentro de uma
visão sexista e que tende a reforçar a cultura patriarcal de certa maneira. Bourdieu (2014) vai
discorrer sobre a produção do habitus, em sua obra emblemática, mas clássica – A dominação
masculina -como a produção simbólica, é importante para a constituição dos campos de ação.
Antes, o simbólico revela as condições objetivas de vivências dos sujeitos de determinadas
disposições de ação.
Ou seja, é dentro desse escopo que as ações são tomadas, dentro de uma racionalidade
pré-condicionada que os sujeitos agem, e suas subjetividades são constituídas e construídas. E
que mesmo sem saber, acabam por contribuir para a manutenção dessas disposições (
BOURDIEU, 2014,p.17-79).
Dentro dessa racionalidade é possível compreender como se dá a dinâmica que valora,
organiza e distribui o modo de percepção dos sujeitos dentro de um determinada campo de
ação e saber. A prisão, e os apenados estão dentro dessa percepção. Juntamente com o modo
de punição. Concomitantemente a execução da penalidade.
E se os sistema de punição se encontram inscritos dentro de um regime de dominação
opressor, antes, tenderá a promover o disciplinamento dentro dos esquemas de dominação. O
que fará com que seja apenas reforçado papéis; ao invés de serem transformadores e
desconstrutores de paradigmas de dominação, serão mais produtores de novas formas de ação
dominadoras, severamente mais violentas.
Se o modus operandi for mantido dentro dessas matrizes cognitvas patriarcais, a
dominação masculina se manterá, e caminhará para ressignificações. Por isso que o estupro
dentro da esfera punitiva revela muito mais a continuidade da opressão que a ruptura.

O QUE OS OLHOS NÃO VEEM NAS ZONAS INVISÍVEIS


Existem muitas zonas silenciadas dentro de nossa sociedade. O sistema penitenciário é
um deles: longos muros, a retirada ou limitação do contato dificultando chegar as minúcias
das vivências dos apenados, acaba por esconder muitas causas potencializadoras de
determinados atos. Esconde também, as áreas de “não-ação” proposital do Estado - educação,
saúde e assistência.
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O não-procedimento do Estado, se dá pela escolha de outros procedimentos – não


existem campos vazios. Ele resolve a questão mantendo. O Estado no procedimento de
resolução-manutenção da questão atua na invisibilização da questão do machismo tão
presente nas esferas jurídicas. Os processos se dão quando se permite que as questões se
resolvam por si mesmas, no qual o Estado privatiza/terceiriza o seu papel punitivo. Ou
quando, ele trata a questão moralmente, com pouco caráter crítico, assumindo o desejo da
comunidade de propagar práticas punitivas com reflexos em suplícios velados ao mesmo
tempo que efetiva os protocolos inerentes a ele560.
O maior problema é pensar a ordem normativa que se encontra nesse “ecossistema”,
que “cria leis internas”, “bárbaras”, que são “mais leis deles do que nossa”. E, de
modo mais específico, a regra interna do cárcere – quem entra com estupro deve ser
estuprado- que não está presente no ordenamento jurídico brasileiro.( MARQUES
JUNIOR, 2009,p.112)

Contudo, existe um limiar que une os elos dessa movimentação de sevícias. Na


verdade, quando se efetiva as práticas punitivas paralelas a quem sofre, faz e vê, se está
ensinando, na verdade, a ser homem.
Pedagogicamente, diretamente no corpo, está se recuperando a honra masculina que se
perdeu, quando, pelo crime se extrapolou os protocolos de maquiagem do patriarcado.
Obedecem a procedimentos básicos da “Casa dos Homens”( WELZER-LANG,2001), no
qual a violência é imposta como processo de transmissão de saberes, em códigos que não
retiram a masculinidade de quem faz561 – seja o praticante do crime ou da correção - e
mantém em parte de quem sofreu - sabe-se que aconteceu, mas ninguém sabe quem fez e
quando foi feito, se foi imposto ou não.
O saber ser homem [...]se faz no sofrimento[...]com a dor[...]gestos, movimentos,
reações masculinas, todo o capital de atitudes que contribuirão para se tornar um

560
Podemos exemplificar tal proposição a seguinte notícia: Um homem, lutador profissional, acusado de estupro
de sua sobrinha de menos de 5 anos , foi condenado e preso. Na cadeia, fora colocado com os demais presos,
sendo abusado por todos os que estavam na cela. Tal agressão resultou em lesões graves em seu anus, e ainda
mais, tal cena fora noticiada, relembrando os suplícios da idade média. Nesse fato, vemos a dubiedade do
Estado, condenar e deixar com que práticas punitivas para-estatais fossem perpetradas ao sujeito em questão. A
comunidade vê nele o dupla castigo que lhe deveria ser imposto. Dando o sentimento de justiça plena. Contudo,
somente reforça o ciclo de violência, e ainda mais, não expurga a real questão. Apenas reitera o patriarcalismo.
561
Um guarda penitenciário é menos culpado de bater em um apenado. Sua ação nesse momento é “pedagógica”,
e muito mais aceita pela própria comunidade. O apenado se aceitar a correção, assume sua masculinidade, como
um homem que sabe sofrer. Um apenado que obriga a outros apenados por crimes de estupro não terá sua
masculinidade violada caso seja o ativo e caso mostre, também a ação pedagógica que exerce.
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homem[...]ora, o mimetismo dos homens é um mimetismo de violências[...]


inicialmente contra si mesmo[...]numa segunda etapa, é uma guerra com os
outros.(WELZER-LANG,2001,p.463)

Ensina-se ao homem a lei dos mais velhos e do respeito. Ou seja, não devemos apenas
olhar unilateralmente a intenção de uma medida, mas atentar para as questões menos
implícitas que constituem os procedimentos subjetivos que não se manifestarão sem um longo
estudo.
Um processo mais complexo do Estado em relação ao tratamento dos homens que são
agressores é o que se assemelhaa umamortificação da questão pelo processo de imputação
totalizante do crime ao sujeito. Tal análise não é um modo de justificação do sujeito
produzindo uma vitimização do mesmo. Deve-se ter leis mais duras sim, porém, não somente
punições severas, mas todo um trabalho complexo, que envolva o acompanhamento dos
mesmos, através de trabalhos reflexivos, que sirvam de feedback à sociedade562.
Esse processo de mortificação, ainda que não leve à morte física, é um processo que
leva à morte social, tentando não somente levar ao “túmulo” o sujeito, mas todo o processo
que revela o patriarcado - e as questões mais subjetivas, como a pobreza produzida, as falhas
do sistema educacional, a falta de assistência, etc.- em seu procedimento.
Na leitura dos prontuários de homens agressores, não se percebeu nenhuma
ponderação quanto ao modo de socialização, levando em conta as relações de gênero no qual
ele foi participante. Antes, perfis são traçados em preposições funcionalistas no qual se aponta
desajustes com a “normalidade”.
Sobre como a justiça enxerga homens agressores, especificamente, estupradores,
temos a contribuição de Marques Júnior (2009). Em seu estudo, ele entrevistou promotores e
juízes, revelando o modo como eles enxergavam os homens agressores que cometeram o
crime de violência sexual. Segundo o autor, magistrados já produzem uma pré-noção do perfil
desses homens, atribuindo-lhes uma doença, distinguindo-os dos demais criminosos; “o
estuprador tem desvio”(p.62) é a frase do “Promotor C”, que traz em sua fala o espanto de não
entender como sujeitos aparentemente “normais”, possam ser “desviantes” da norma. Para ele
o ritual de usar a camisinha e não matar as vítimas revela o quanto esses sujeitos são

562
Sobre a existência de algum projeto junto a homens que comentam crimes sexuais, ou acompanhamento dos
mesmos por equipes técnicas, inexistem dados e/ou programas.
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diferentes e não deveriam estar nos moldes carcerários. O autor traz ainda que os juízes “K” e
“A”, concordam de que tal crime é da esfera psicológica, contudo o discurso desses
profissionais não questiona os postulados anteriores do que é ser homem. Mas fica pairando
uma questão no ar, se é considerado simplesmente um “transtorno mental”, por que os
apenados são julgados pela justiça “comum”?
Encarcerando, não se discute, e a questão continua surgindo. Isso é que muitas vezes
não é falado, nem discutido. Revela não uma exceção, mas um padrão. Temos em nossas
mentes apenas o estupro como algo relacionado bizarro, mas e as nossas amigas que são
forçadas a fazerem sexo com seus companheiros? E os colegas numa roda de bar que se
gabam por terem iludido alguma garota mais jovem para transar com ela, com seu
“consentimento”? Analisar o estupro e como a sociedade lida com isso, escava, remói, expõe,
traz à tona não somente os estupradores, mas todo um modo de relacionamento que envolve a
sexualidade masculina. O Estado e seus agentes, capilarmente, tendem a ratificar os papéis
masculinos, ação disciplinadora de como fazer-se homem; de como ser homem
(des)respeitando os códigos de limites de propriedade da circulação de corpos femininos e
seus acessos, deve-se repensar essa produção.

REPENSAR A PRODUÇÃO DO MASCULINO


Um dos desafios mais urgentes é: como repensar o masculino? É claro que as novas
teorias que despontam nos espaços de produção de saber, buscam romper com o binarismo, a
visão heterossexual e sua injunção etc., mas devemos lembrar que mesmo com tudo isso não
se quer dizer o masculino deixará de existir. Os sujeitos serão e devem ser livres para se
compor como bem intenderem. Mas até que isso aconteça , como o masculino será encarado?
Uma das propostas mais contundentes, e mais audaciosas, é a mudança dos regimes de
produção patriarcal; e isso quer dizer que as esferas de ação do Estado devem ser alvo e
nossas ações também. Não se deve esperar do Estado uma ação, já que suas ações mostram
que ele é/está patriarcalizado. Nossos caminhos tendem a propor esferas de transformação. É
preciso reafirmar o caráter socialmente construído dessa masculinidade e requerer que suas
esferas de punição, sejam também despatriarcalizadas. A proposta feminista, busca uma
mudança substancial não somente nos aspectos relacionais, mas se firma num compromisso
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no modo de produção em diversas esferas. Deve olhar para os espaços “naturalizados”, onde
as produções discursivas criminológicas, médicas, psicológicas produziram certo tipo de
respostas e ver como elas se articulam e não se contentar com em não ver as ações não-
visíveis.
A violência masculina, antes de se despontar materialmente, se constituiu
simbolicamente. É aonde o patriarcalismo se movimenta silenciosamente que devemos,
também, mirar nossos holofotes. Nas zonas sombrias, ele brilha. Nas áreas silenciosas, ele
grita.
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A VIOLÊNCIA SOFRIDA PELAS BENEFICIÁRIAS DO AUXILIO ALUGUEL EM


MANAUS.

Mirella Cristina Xavier Gomes da Silva Lauschner | mirellalauschner@yahoo.com.br


Ana Cristina Rodrigues Pinheiro
Irvana Góes dos Santos

INTRODUÇÃO

A participação popular na garantia de direitos sociais é uma conquista da sociedade


civil que, historicamente, vem se colocando no cenário das lutas para reivindicar seu espaço e
reconhecimento político junto ao Estado brasileiro. A cidade é um direito de todos, diz
Lefebvre (2001), mas esse direito não é dado gratuitamente, tem que ser buscado,
reivindicado. A cidade é um espaço contraditório de interesses antagônicos, sendo, pois, nesse
palco de luta de classes que o conflito se instala e que os direitos são reivindicados.
É com o advento da Zona Franca que a estrutura da cidade se modifica
consideravelmente e o espaço urbano adquire outra forma com o crescimento populacional,
decorrente do processo migratório que se intensificou nesse período com a formação de
inúmeros bairros originados de ocupações irregulares, já que o poder público local não
garantiu moradia à essa população migrante. Ocorre, então, um novo e dramático processo: as
cidades passaram a reproduzir as injustiças e desigualdades não só no âmbito da precariedade
da moradia, mas também em relação a outros serviços sociais. Torres (2011, p. 223), afirma
que “o processo de abertura do capital industrial, sob os imperativos da Zona Franca de
Manaus, desencadeou um período de crescimento populacional desordenado”.
Com o deslocamento cada vez mais crescente em Manaus as zonas Norte e Leste
da cidade passaram a absorver, principalmente com as ocupações nas margens de igarapés na
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década de 70, a parcela da população que não conseguia morar de forma digna na cidade. As
mulheres são os sujeitos mais impactados pela falta de moradia, especialmente as chefes de
família, e aquelas que não foram absorvidas pelas fábricas.
Silva (2004) destaca que as mulheres possuem uma presença marcante no processo
de migração na medida em que elas sonham com melhores condições de vida para suas
famílias, mas ao chegar nas grandes cidades elas se deparam com a exclusão social. A luta do
movimento de mulheres pela garantia dos direitos sociais, dentre eles a moradia, tem
ampliado o debate e visibilidade da problemática da violência doméstica, pois a maioria das
mulheres que se inscreve para a aquisição da casa própria no Programa Minha Casa Minha
Vida563 sofre violência doméstica.
Com a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade o direito à moradia foi
constituindo-se, como forma de garantir o acesso à moradia digna como fator social
fundamental para dignidade humana, levando em 2005 a regulamentação da Política Nacional
de Habitação. As mulheres são as que mais sofrem com a falta de moradia no Brasil e em
Manaus está realidade não é diferente, inúmeras são as expressões da questão social
vivenciadas por elas, assim como a violência. De acordo com a Pesquisa Nacional por
Domicílio (2009) apresenta que 48% das mulheres agredidas declaram que a violência
aconteceu em sua própria residência564. De acordo com Secretaria de Segurança Pública do
Amazonas - AM entre os meses de janeiro a junho de 2013, uma média de 157 denúncias de
crimes contra a mulher foi registrada diariamente nas delegacias de Manaus565.
Desta forma o presente artigo se propõe a analisar os tipos de violência sofrida pelas
mulheres beneficiárias do Auxílio Aluguel em Manaus e a Política Pública de Habitação
como mecanismo de enfrentamento da violência. O referido estudo tem como base a pesquisa
de campo relacionada com as interpretações bibliográficas através da perspectiva qualitativa
sem excluir os aspectos quantitativos, tendo como amostra 30 mulheres assistidas pelo
benefício social do Auxílio Aluguel da Prefeitura Municipal de Manaus, oriundas de área de

563
Programa habitacional do Governo Federal para a população de R$ 0 a 1.600,00 de renda familiar mensal,
famílias chefiadas por mulheres, idosos, PNE.
564
Acessado em 10 de julho de 2015 http://www.compromissoeatitude.org.br/dados-e-estatisticas-sobre-
violencia-contra-as-mulheres/.
565
Acessado em 10 de julho de 2015 http://new.d24am.com/noticias/amazonas/manaus-registra-157-casos-
violencia-contra-mulher/92216.
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risco e que sofreram algum tipo de violência.

OS TIPOS DE VIOLÊNCIA SOFRIDA PELAS BENEFICIÁRIAS DO AUXÍLIO


ALUGUEL EM MANAUS: HABITAÇÃO COMO RESGATE DE CIDADANIA

Embora as mulheres tenham conquistado importantes espaços na esfera pública em


mais de um século de luta, as barreiras da intolerância são ainda enormes a ponto de esbarrar
no limite de barbárie.
Há um contingente incontrolável de mulheres vítimas de violência doméstica no
Brasil, no final da década de 80 do século passado o IBGE (1989) constatou que 63% das
vítimas de agressões físicas no ambiente familiar eram mulheres. Outra pesquisa realizada no
país pela Fundação Perseu Abramo, em 2001, constatou que 2,1 milhões de mulheres são
agredidas fisicamente por ano; 175 mil são agredidas fisicamente por mês; 5,8 mil por dia;
243 por hora; 04 por minuto e uma a cada 15 segundos (GIORDANI, 2006).
Para Teles e Melo (2003, p. 19) a violência doméstica “é aquela que ocorre dentro de
casa, nas relações entre as pessoas da família [...] que independentemente da faixa etária das
pessoas que sofrem espancamentos, humilhações e ofensas nas relações descritas, as mulheres
são alvo principal”, para muitas mulheres sua casa e família é o local em que poderiam se
sentir mais seguras e com proteção. M.C.F., 25 anos beneficiária do auxílio aluguel da
Prefeitura Municipal de Manaus / Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e
Direitos Humanos relata que

Meu companheiro era meu porto seguro, quando nos conhecemos tudo parecia um
sonho, mas logo ele passou a me agredir com palavras, gritos, até que passou a me
bater isso doía muito, pois quando fui morar com ele acreditava que estaria segura e
isso não aconteceu, muito pelo contrário minha vida virou um inferno (Entrevista,
2015).

Ao longo dos anos as mulheres ainda lutam para que seus direitos não sejam violados,
contudo ainda percebemos o quanto elas sofrem violência em seu dia a dia e estas em sua
maioria são praticadas por seus companheiros ou alguém que esteja diretamente ligada ao seu
convívio diário. Na pesquisa identificamos que 75% das mulheres entrevistadas sofreram

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algum tipo de violência, algumas pesquisas como as de Silva (2003) mostram que o
desemprego ou a dificuldade financeira, o uso excessivo de bebida alcoólica, drogas ilícitas e
o ciúme são fatores geradores desse tipo de violência. R.S.F., 35 anos, beneficiária do Auxílio
Aluguel da Prefeitura Municipal de Manaus / Secretaria Municipal da Mulher, Assistência
Social e Direitos Humanos relata que “ele sentia muito ciúmes e sempre que bebia me
agredia, era doloroso e durou muitos anos. No dia seguinte sempre dizia que havia bebido e
prometia não fazer mais, eu o amava e tinha meus filhos que me fez acreditar que ele
mudaria” (Entrevista, 2015). Azevedo (1985, p.31) sinaliza que

(...) a violência é uma forma de relação social; está inexoravelmente atada ao modo
pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições sociais de existência.
Sob esta óptica a violência expressa padrões de sociabilidade, modos de vida
modelos atualizados de comportamento vigentes em uma sociedade em um
momento determinado de seu processo histórico. (...) ao mesmo tempo em que ela se
expressa relações entre classes sociais, expressa também relações interpessoais (...)
está presente nas relações intersubjetivas que se verificam entre homens e mulheres
entre adultos e crianças entre profissionais de categorias distintas. Seu resultado
mais visível é a conversão de sujeitos em objeto sua coisificação. A violência é
simultaneamente a negação de valores considerados universais: a liberdade, a
igualdade, a vida (...) a violência enquanto manifestação de sujeição e de
coisificação só pode atentar contra a possibilidade de construção de uma sociedade
de homens livres (...) a violência não é necessariamente condenação à morte ou, ao
menos está não preenche seu exclusivo significado. Ela tem por preferência a vida,
porém a vida reduzida esquadrinhada, alienada, não a vida em toda a sua plenitude
em sua manifestação prenhe de liberdade. A violência é uma permanente ameaça a
vida pela constante alusão à morte, ao fim à supressão à anulação.

Este processo de violação pelo qual as mulheres passam em suas vidas tem
consequências drásticas para muitas dela, algumas perdem suas vidas, outras sua auto estima
dentre outros, a violência física que muitas sofrem deixam marcas visíveis para todos e onde
muitas acabam criando “histórias” para a sociedade e sua família. Quando esta dar-se-ia por
meio da psicológica em que elas perdem sua auto estima totalmente, segundo Carvalho (2010)
é aquela que inclui toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à autoestima ou até
mesmo à integridade. A frequência de ações violentas no cotidiano feminino é indicativa da
complexa problemática que envolve a organização da vida social atual, especialmente nas
grandes cidades, dentre elas não podemos esquecer Manaus. Por isso tudo entende-se ser
demasiadamente frequente as dificuldades da vítima se expor e até mesmo denunciar a
violência ocasionada no lar pelo medo e também preconceito dos próprios familiares. A. S.V.,
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28 anos, beneficiária do Auxílio Aluguel da Prefeitura Municipal de Manaus / Secretaria


Municipal da Mulher, Assistência Social e Direitos Humanos nos conta que

Ele primeiro começou me agredindo com palavras, era terrível eu chorava muito e
vivia com o rosto inchado, não queria sair de casa, meus filhos percebiam e
presenciavam muitas dessas brigas, com o tempo eu não tinha mais forças para
revidar. Depois ele começou a me bater e eu ficava com marcas por todo o corpo, eu
sempre inventava uma desculpa / história quando alguém me perguntava o que era,
mas eu percebia que as minhas amigas e parentes não acreditavam, eu tentava
esconder porque tinha vergonha, mas demorou muito até que consegui deixa-lo
(Entrevista, 2015).

Sob a perspectiva de poder pode-se constatar que as relações sociais e de gênero


serão estabelecidas em graus distintos dependendo da classe, raça/etnia e gênero. Essas
relações estão presentes na sociedade capitalista em que a distribuição desigual de poder de
decisões mantém uma relação de subalternidade, exclusão social e pobreza. Portanto, tais
desigualdades são construídas e situadas historicamente, sendo reproduzidas em cenários
políticos e econômicos, mas essas relações desiguais também estão sujeitas às mudanças. É
através da luta dos movimentos de mulheres que as políticas públicas foram conquistadas. E
essa organização e mobilização contou com a presença maciça das mulheres que se tornaram
as principais protagonistas da luta pelos direitos sociais no Brasil. C. V. A., 40 anos,
beneficiária do Auxílio Aluguel da Prefeitura Municipal de Manaus / Secretaria Municipal da
Mulher, Assistência Social e Direitos Humanos trás em sua fala que

Por muitos anos não tivemos direitos garantidos, sofríamos com todo tipo de
violência e esta atingia diretamente nossa família e filhos. Vivi anos com um
companheiro que me batia e humilhava, mas a casa era dele e eu não tinha para onde
ir com meus filhos, não trabalhava, fazia apenas faxina e isso não era suficiente para
eu ir embora com as crianças, tinha que ficar ali com ele. Consegui um emprego,
mas não era carteira assinada, ganhava pouco mas consegui fazer minha casa, só que
a casa começou a ficar em risco quando chovia o barranco cedia então liguei para a
defesa civil e eles disseram que eu não poderia mais morar lá e mandaram a gente ir
na Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Direitos Humanos –
SEMMASDH. Começamos a receber o Auxílio Aluguel de R$ 300, reais, mas não
garantem casa para nós, temos que ir na Secretaria de Habitação do Estado e do
Município, só que isso é difícil porque eles não estão cadastrando nesses locais e
fico preocupada o que será da minha família quando este auxílio parar, não vou ter
como pagar meu aluguel e ainda sustentar meus filhos, o pai deles não ajuda sou eu
para tudo. Se a gente tivesse uma casa eu poderia dar a meus filhos uma vida melhor
e ficaria mais segura e meus direitos seriam garantidos (Entrevista, 2015).

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As reivindicações do direito à terra já estavam postas ao movimento feminista na


medida em que a luta pelo solo urbano entrelaçava-se com outras lutas dos movimento
sociais de modo geral (PINTO, 2003). Ao longo de sua trajetória de luta as mulheres
imprimiram ao movimento de moradia características de cunho familiar o que revela a sua
preocupação com o bem-estar dos filhos e de seu núcleo familiar, aspecto tipicamente
feminino. Foi, com efeito, só a partir da Constituição Federal – CF de 1988 é que as mulheres
passaram a ter direito ao título da terra.
Mesmo com a garantia do direito a cidade previsto na CF de 1988 o déficit
habitacional do país tem alarmado nossos governantes, assim como os movimentos de
mulheres que lutam pela moradia no Brasil, uma vez que estas são as que mais sofrem com a
falta de moradia. Conforme dados do IBGE (2010) Manaus possui atualmente 1.802.014
habitantes na área urbana e deste total, 922.272 de mulheres residentes na cidade, vivendo em
sua maioria em situação subumana. Do número total de habitantes da cidade 17.326
sobrevivem com renda de até ¼ de salário mínimo mensal566 e 2.668 pessoas com mais de 30
salários mínimos mensais, o que revela a disparidade social e econômica existente entre as
classes sociais em nossa cidade. A pesquisa revela que 90% das mulheres beneficiárias do
auxílio aluguel, viviam em áreas de risco e em condições subumanas, assim 75% das
entrevistadas trabalham no mercado informal e sobrevivem com menos de ¼ de salário
mínimo mensal, sendo também beneficiárias do Programa Bolsa Família. C.X.V, 48 anos,
beneficiária do Auxílio Aluguel da Prefeitura Municipal de Manaus / Secretaria Municipal da
Mulher, Assistência Social e Direitos Humanos relata “o que ganho é pouco, não tenho
carteira assinada e tem mês que não tenho quase faxina para fazer isso prejudica minha
família, o que nos ajuda é o Bolsa Família. Não conseguia emprego e agora esta ainda mais
difícil” (Entrevista, 2015).
De acordo com Gomes (2011), o déficit habitacional do Amazonas é o maior do
país, chegando a um total de 25,4%. Dados do Ministério das Cidades dão conta de que

566
No Brasil conforme dados do IBGE (2010) 279.967 pessoas vivem com renda maior que 1/2 ou até 1 salário
mínimo, 276.130 com mais de 1 ou até 2 salários mínimos, 88.255 com mais de 2 ou até 3 salários mínimos,
70.009 com mais de 3 ou até 5 salários mínimos, 51.459 na faixa de 5 a 10 salários mínimos, 9.134 na faixa de
10 a 15 salários mínimos, 8.070 na faixa de 15 a 20 salários mínimos, 4.076 na faixa de 20 a 30 salários
mínimos.
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Manaus tinha um déficit de 68.483 em 2009. Se há um déficit de habitação no Amazonas


reconhecido oficialmente, como mostram esses dados do Ministério das Cidades deve-se ao
fato de que o próprio poder público não garantiu moradia aos migrantes que se deslocaram
para Manaus no afã da Zona Franca. Os deslocamentos trouxeram consigo o aprofundamento
da problemática social da cidade, fato que levou famílias inteiras a ocupar espaços impróprios
para a moradia nas calhas dos igarapés, nos terrenos baldios e nas encostas de barrancos,
submetidas ao alto risco de vida e às precárias condições de habitabilidade.
Diante do cenário constante da população ocupando áreas irregulares e impróprias
para habitação, e o déficit habitacional no país crescendo criou-se O Programa Minha Casa
Minha Vida - PMCMV, originado do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, está
conquista foi comemorada sobretudo pelas mulheres porque elas são os sujeitos centrais deste
Programa, de acordo com dados do Ministério das Cidades são prioridades de acesso ao
PMCMV as mulheres chefes de família, famílias que residam em área de risco, idoso, pessoa
com deficiência, famílias com renda mensal de R$ 0 a R$ 1.600,00 reais, o IBGE (2010) que
divulgou o aumento de 14% de famílias chefiadas por mulheres em todo território nacional.
M. F. G., 56 anos, beneficiária do Auxílio Aluguel da Prefeitura Municipal de Manaus /
Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Direitos Humanos “eu morava perto do
igarapé, vieram e me tiraram de lá, deram o auxílio aluguel de R$ 300,00 reais. Sei que
podemos entrar no Programa Minha Casa Minha Vida, sonho com uma casa própria para
poder dar aos meus filhos um teto. Ganho R$ 788,00 reais por mês e sou eu que sustento
minha casa, é difícil, tinha minha casa e agora não tenho mais tem mês que é complicado a
gente se aperta de todos os lados (Entrevista, 2015). De acordo com a Lei 1.666 de 25 de
Abril de 2012 art. 4º destaca que
O "Auxilio Aluguel" de que trata a presente Lei consiste no pagamento mensal do
valor de R$ 300,00 (trezentos reais) ao representante da família beneficiária,
destinado exclusivamente para auxiliar no pagamento do aluguel mensal de moradia,
no caso de locação, ou na obtenção de outro meio de moradia.

Em Manaus a Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Direitos Humanos


– SEMMASDH dispõe da Lei 1.666 de 25 de Abril de 2012, que institui o “Auxílio Aluguel”,
benefício de caráter eventual a ser concedido a famílias vítimas de enchentes,
desmoronamentos, remoção de situação de risco ou por força de obra públicas, que estejam
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desabrigadas, desalojadas ou em situação de vulnerabilidade temporária567 (Art. 1º), este


benefício é concedido as famílias que passaram por algum sinistro de acordo com
encaminhamento da Defesa Civil, visando a garantia dos direitos sociais da população
atingida, assim como a retirada das mesmas de áreas impróprias para habitação. No art. 5 da
Lei 1.666, 2012 constituem requisitos cumulativos para a concessão do "Auxilio Aluguel" que

I - o imóvel de residência da família tenha sido total ou parcialmente destruído,


apresente problemas estruturais graves, ou esteja situado em área sob risco iminente
de alagamento, desabamento ou desmoronamento, ensejando a sua interdição,
desocupação ou demolição, comprovado por laudo da Defesa Civil Municipal de
Manaus ou do Estado do Amazonas;

II - a família beneficiária resida no Município e se encontre em situação de


vulnerabilidade temporária, conforme laudo social da Secretaria Municipal da
Mulher, Assistência Social e Direitos Humanos- SEMMASDH.

E.S.F.S., 38 anos, beneficiária do Auxílio Aluguel da Prefeitura Municipal de Manaus


/ Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Direitos Humanos

“perdi tudo, recebo o auxílio aluguel, mas ele não é suficiente para pagar totalmente
o aluguel, dependendo de onde a gente aluga nem aceitam com muitas crianças,
imagina conseguir comprar uma casa. (...) precisamos conseguir mesmo é inscrição
na SUHAB, o auxílio poderia ser ligado com o PMCMV” (Entrevista, 2015).

A questão habitacional se entrelaça no enfrentamento à violência contra as mulheres, o


auxílio aluguel busca garantir os direitos sociais das mulheres atendidas, assim como
oportunizar as mesmas condições dignas de moradia, 75% das mulheres entrevistadas
sofreram algum tipo de violência, 45% relatam ter sofrido violência doméstica, e que a falta
de moradia levam-nas se sujeitarem a seus agressores. Ainda como resultado obtivemos que
60% são oriundas de área de risco na zona leste de Manaus. Percebe-se a necessidade do
entrelaçamento do Serviço de Proteção a Calamidade Pública e Emergência com a política de
habitação, tendo em vista o constante atendimento por este setor de famílias oriundas das
áreas de risco de Manaus e que por meio da habitação será oportunizado às mulheres melhor

567
Disponível em https://leismunicipais.com.br/a/am/m/manaus/lei-ordinaria/2012/167/1666/lei-ordinaria-n-
1666-2012-institui-o-auxilio-aluguel-beneficio-de-carater-eventual-a-ser-concedido-a-familias-vitimas-de-
enchentes-desmoronamentos-remocao-de-situacao-de-risco-ou-ainda-por-forca-de-obras-publicas. Acesso em 01
de setembro de 2015.
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qualidade de vida e a segurança da casa própria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim o referido estudo visa analisar os tipos de violência sofrida pelas mulheres
beneficiárias do Auxílio Aluguel em Manaus e a Política Pública de Habitação como
mecanismo de enfrentamento da violência, posto que 75% das mulheres entrevistadas
sofreram algum tipo de violência, 45% relatam ter sofrido violência doméstica, e que a falta
de moradia levam-nas se sujeitarem a seus agressores. Ainda como resultado obtivemos que
60% são oriundas de área de risco na zona leste de Manaus e 90% das entrevistadas relatam
que o valor pago pelo auxílio aluguel não é suficiente para custear o pagamento do aluguel e
que encontram dificuldades para realizarem inscrição junto a Superintendência de Habitação
do Amazonas – SUHAB.
A pesquisa identificou ainda que a política pública de habitação no munícipio de
Manaus atinge de maneira insuficiente a população que reside ou foi retirada da área de risco
o que as deixa em situação de vulnerabilidade e aumenta as expressões da questão social a
que são sujeitas. As mulheres entrevistadas apontaram a moradia como sendo o sonho para
oportunizar uma vida digna a sua família. Percebemos que a violência sofrida pelas
entrevistadas também relaciona-se a dependência emocional e financeira a que elas estão de
seus companheiros e que em seus relatos a casa própria as deixariam livres e com coragem
para enfrentar e lutar contra a violência que sofrem.
A questão habitacional se entrelaça no enfrentamento à violência contra as mulheres, o
auxílio aluguel busca garantir os direitos sociais das mulheres atendidas, assim como
oportunizar as mesmas condições dignas de moradia. Percebe-se a necessidade do
entrelaçamento do Serviço de Proteção a Calamidade Pública e Emergência com a política de
habitação, tendo em vista o constante atendimento por este setor de famílias oriundas das
áreas de risco de Manaus e que por meio da habitação será oportunizado às mulheres melhor
qualidade de vida e a segurança da casa própria.

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CASOS DE VIOLÊNCIAS PRATICADAS POR FILHOS/AS CONTRA SUAS MÃES


EM SALVADOR/BA (2006-2016)

Luciana Cristina Teixeira de Souza 568 | lunasouza83@gmail.com

INTRODUÇÃO
O tema violência de gênero tem sido objeto de interesse crescente entre os estudos
feministas no mundo e no Brasil. (PIMENTEL, PANDJIARJIAN, 1998; AQUINO, 2001;
IZUMINO PASINATO, 2004-2005; 2007; PRÁ, 2010; TAVARES, SARDENBERG,
GOMES, 2011; dentre outras). Heleieth Saffioti (2001) afirma que muitas pesquisas
trouxeram contribuições teóricas importantes nas últimas décadas, embora ressalte a
necessidade de se estabelecer distinções entre as modalidades de tal tipologia de violência.
Legalmente, com o advento da lei 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006 no
Brasil, intitulada Lei Maria da Penha (LPM), a violência de gênero, de conceituação bastante
ampla, foi caracterizada como violência doméstica e familiar contra a mulher e prevista no
seu Art. 7º em cinco formas distintas, quais sejam: a violência física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral. Ainda antes da promulgação da LPM, Heleieth Saffioti (2004, p. 75) já
alertava que as diversas formas descritas não se dão de maneira isolada e incorrem,
inevitavelmente, acompanhadas da violência emocional a cada tipo de agressão sofrida.

Das temáticas derivadas de análises já existentes sobre violência de gênero, uma


chama a atenção em especial e é eleita como interesse central desta pesquisa: aquela relativa à
condição das mulheres-mães diante da violência intrafamiliar. Esse tema tem ocupado
algumas manchetes da imprensa local, conforme pode ser observado nos anexos A e B.

Outra evidência da pertinência do tema pode ser encontrada no trabalho de Eulália

568
Professora Assistente do Colegiado de Geografia – UNEB DCH Campus V (Santo Antonio de Jesus/BA).
Graduada e Mestre em Geografia; atua nas áreas de ensino de Geografia e Educação e Gênero. Doutoranda do
Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres Gênero e Feminismo da UFBA.
Email: lunasouza83@gmail.com.
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Azevedo (2010). A autora realiza importante pesquisa sobre a condição social de idosos/as e
sua organização em busca de cidadania. No capítulo 06 do seu trabalho, apresenta e analisa os
dados coletados do disque-denúncia, entrevistas com os/as sujeitos envolvidos e pesquisa
documental de processos no acervo da Delegacia Especial de Atendimento ao Idoso,
doravante referenciada pela sigla DEATI, e afirma que:
Realizado o cruzamento do número de filhos/as agressores/as com o número de pais
agredidos, desdobrado, ambos, por sexo, é reforçada a tendência revelada em outros
estudos, do maior numero de mulheres entre os agredidos. Mães vitimadas (65%),
para um total significativamente menor de pais na condição de vitimas (35%).
Reafirma também a tendência de que os homens compõem o maior contingente de
agressores, agora na figura dos filhos (65%) que têm suas mães como alvo principal.
(AZEVEDO, 2010 p. 214)569
Como observado, é considerável e preocupante que 65% do total de vítimas sejam
mulheres agredidas por seus filhos que, em sua maioria, é composta por homens.

Tratando-se de violência contra a mulher, Britto da Motta (2009) enfatiza que é


preciso considerar a questão geracional para compreender o fenômeno: “Fica esquecido que
as mulheres participam [...] de vários grupos de idade, e mais, de que em todas essas etapas de
vida, elas são [...] objetos de violências [...]” (BRITTO DA MOTTA, 2009 p.4).570 Para essa
autora, ainda que a categoria de análise geração seja bastante delicada, dada a transitoriedade
e o dinamismo da identidade dos sujeitos, esta não pode ser negligenciada nas análises de
gênero.

Por tal razão, busca-se extrapolar um recorte geracional único identificando


mulheres-mães de diferentes grupos de idade, alvos de violência advinda de seus/suas
filhos/as, conforme denunciado em algumas matérias de jornais.

Para investigar o alcance das ocorrências dos casos de violência de qualquer


modalidade perpetrada por filhos/as contra suas mães, de modo a contemplar os distintos
recortes geracionais, estão sendo consultados os Boletins de Registros na DEATI e nas
Delegacias Especiais de Atendimento a Mulher (DEAMs) em Salvador entre o período de
2006 a 2016. Desse modo, essa pesquisa busca responder a algumas questões colocadas em
569
Tese de doutoramento defendida em 2010 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal da Bahia, e que constitui principal indicador do problema para o projeto de pesquisa aqui
proposto, embora tendo compreendido um recorte geracional específico para a mulher idosa.
570
Trabalho apresentado no Congresso da LASA (Associação de Estudos Latino-Americanos), no Rio de
Janeiro, Brasil, de 11 a 14 de junho de 2009.
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princípio: qual o perfil571 dos casos de violência intrafamiliar em que mães são agredidas por
seus/suas filhos/filhas? Qual a incidência e a dimensão espacial e temporal desse tipo de
violência registrada em Salvador na última década? Como essas mulheres-mães são atendidas
nas Delegacias especiais de atendimento à mulher e ao idoso?

SOBRE AS RAZÕES

Ao realizar levantamento ainda preliminar dos trabalhos sobre a temática da


violência contra mães, verificou-se o quão escassos são os estudos com o recorte, aqui
apontado, no campo das Ciências Sociais. Portanto, em princípio essa pesquisa busca atender
a uma demanda bibliográfica importante para os estudos sobre a violência de gênero. Em
geral, percebeu-se que os trabalhos que discutem a violência doméstica têm como universo
prioritário formas de violência entre sujeitos envolvidos em relações conjugais, bem como
agressões de pais e mães contra os filhos/as.

Ainda que não exaustiva, a busca por estudos que dialoguem diretamente com o que
se pretende pesquisar no doutorado não apontou estudos que tratam especificamente sobre a
violência praticada por filhos e filhas contra suas mães, idosas ou não. Portanto, a pesquisa
proposta se justifica pela sua originalidade no recorte definido.

Ademais, outros trabalhos encontrados se situam predominantemente no campo da


psicologia, psiquiatria e psicanálise (CECCONELO, A. M., DE ANTONI, C., KOLLER, S.
H., 2003; DAY et alii, 2003; dentre outros). Com recortes metodológicos de análise variados,
esses estudos versam sobre os aspectos da violência doméstica e/ou familiar que vão desde os
transtornos de conduta de crianças e jovens violentos (KELLERMAN, 2002) à questão da
violência doméstica, da violência de mães e pais contra os filhos/as e os impactos nos
indivíduos e nas relações familiares. (SANTOS & MORÉ, 2011). São pesquisas de grande

571
O perfil será caracterizado segundo a tipificação dos casos de violência, a origem geográfica das
denunciantes, a origem de classe e o grupo de idade ao qual pertencem.

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relevância, entretanto, não tratam do recorte aqui pretendido.

Para além destes, existe certo número de estudos acerca da condição de alijamento de
direitos da população idosa masculina e feminina na linha de interesse da Sociologia do
envelhecimento (PONTES, 2006; GOMES, 2008; MACEDO, 2008; AZEVEDO, 2010) que
apontam as questões que este projeto de pesquisa sugere. Em nível local, tais trabalhos,
capitaneados pelas pesquisas da professora Alda Britto da Motta, constituem uma evidência
acerca da relevância do objeto de pesquisa aqui delineado.

Questões relativas aos conflitos familiares, violência, exclusão e abandono de


idosos, apontadas pela maioria dessas pesquisadoras, aliadas aos casos notadamente
divulgados pela imprensa em relação às agressões sofridas por mães e perpetradas por seus
filhos, conduzem o interesse em investigar mais detidamente tal fato e as suas principais
decorrências. E, assim, contribuir para dar maior visibilidade às ocorrências com vistas ao
manejo do problema por parte da sociedade e do Estado.

Em que pese os avanços dos estudos sobre a violência de gênero e suas diversas
modalidades no âmbito das conjugalidades (SAFFIOTI, 2001; 2004; PIMENTEL,
PANDJIARJIAN, 1998; AQUINO, 2001; PASINATO, 2005; 2007; PRÁ, 2010; TAVARES,
SARDENBERG, GOMES, 2011, dentre outras) observa-se uma lacuna existente entre o
recorte referente à violência contra mulheres jovens (cujas pesquisas têm priorizado a
investigação da agressão conjugal), e o outro grupo ou vítima – a mulher idosa, que sofre
violências comumente advindas dos seus entes próximos. (BRITTO DA MOTTA, 2009).
Nesta pesquisa pretende-se justamente investigar a lacuna bibliográfica sobre a violência
perpetrada por filhos/as contra suas mães de diferentes grupos de idade.

Ampara-se nessa observação para justificar a necessidade do recorte multigeracional


e de gênero que se pretende adotar neste estudo, e, desse modo, identificar e acolher na
pesquisa mães de diferentes gerações, cujo critério central será a sua condição de maternidade
em situação de violência sofrida e advinda de seus/suas filhos/as.

Além da relevância acadêmica observada, o advento da LPM, a aprovação do


Estatuto do Idoso em 2003 e o funcionamento de Delegacias Especiais de Atendimento à

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Mulher - DEAM (1985) e ao Idoso - DEATI (2006) em Salvador/BA, contribuíram para o


interesse no debate e o acompanhamento da conjuntura após a construção de tais aparelhos do
sistema de justiça e segurança pública que atuam na prevenção e combate à violência destes
grupos. (OBSERVATÓRIO DA LEI MARIA DA PENHA, 2007).

Por essas razões, tornam-se importantes as iniciativas das investigações e análises


com vistas a contribuir para dar maior visibilidade à violência de gênero, e, com isso,
colaborar para que as ciências sociais possam superar o quase silêncio que cerca o tema.

O recorte temporal adotado compreenderá parte de 2006 por ser o ano em que se
encontram dois acontecimentos relevantes para a pesquisa proposta: a instalação da DEATI e
a promulgação da LMP. Ou seja, é quando ocorrem dois acontecimentos que ‘se cruzam’ e
que são importantes para o problema de pesquisa, pois aqui pretende-se investigar os casos de
violência de filhos/as praticada contra suas mães, que, se tratando de violência doméstica
intrafamiliar podem ser atendidos no âmbito da LMP e das DEAMs (NORMA TÉCNICA DE
PADRONIZAÇÃO DAS DEAMs, 2010) e, sendo a mãe uma mulher idosa, no âmbito da
DEATI. Assim, a investigação em apenas uma das duas Delegacias, isoladamente, não
alcançaria o fator multigeracional dos sujeitos da pesquisa que se quer abarcar. A delimitação
temporal abrange o período 10 anos, para cumprir o propósito de acompanhar as ocorrências
através de observação sistemática nas Delegacias e, desse modo, aferir, descrever e analisar
denúncias e atendimentos aos casos em tempo presente.

Esses dados deverão ser cartografados a fim de fornecer a análise da evolução


temporal dos casos de violências contra mulheres-mães praticadas por seus filhos/as
identificando a localização e a concentração espacial do fenômeno no município de
Salvador/Ba entre o período de 2006 e 2016. Para tanto, dispõe-se dos recursos fornecidos
pelas geotecnologias aplicadas à análise espacial.

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, A VIOLÊNCIA DE GÊNERO, A VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR

Em princípio, buscando compreender os conceitos de violências contra a mulher, de


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gênero, doméstica e intrafamiliar, muitas autoras elucidaram tais noções ao apresentar


relevantes elementos conceituais (SAFFIOTI, 2001; AQUINO, 2001; PASINATO, 2005;
2007; SANTOS e IZUMINO, 2004-2005; TAVARES, SARDENBERG, GOMES, 2011).
Cecília Santos e Wânia Izumino (2004-2005) compartilham importante referência
acerca da evolução dos conceitos de violência contra a mulher e violência de gênero.
Segundo as autoras, foi a partir dos anos de 1990 com os estudos empíricos e a observação
dos baixos índices de criminalização e das retiradas das queixas por parte das vítimas de
violência, que foi introduzido o conceito de gênero ao crime de violência contra a mulher. O
objetivo seria o de compreender a complexidade que envolve o fenômeno. Contudo, salientam
que a noção de patriarcado não é abandonada gerando, segundo as mesmas, uma “imprecisão
conceitual”. (SANTOS e IZUMINO, 2004-2005 p. 03).
Nesse artigo, as autoras revelam a prevalência de três correntes teóricas importantes
acerca da questão: a) dominação masculina: quando a violência é fruto da dominação da
mulher pelo homem, sem autonomia, essa seria tanto vítima como cúmplice da violência; b)
dominação patriarcal: de influência do feminismo marxista, concebia a violência como
expressão do patriarcado, sendo a mulher sujeito social autônomo, mas vitimada
historicamente pelo controle social masculino; e c) relacional: que relativiza a noção de
dominação e vitimização, cuja concepção de violência seria uma forma de comunicação entre
os gêneros. (SANTOS e IZUMINO, 2004-2005 p. 02).
Para Heleieth Saffioti (2004) as análises sobre a violência contra as mulheres devem
ser feitas, antes de tudo, sob a ordem patriarcal de gênero. A violência é um tema que
perpassa a maioria das reflexões da autora e, desse modo, procura diferenciar e revelar as
características e os contextos em que ocorrem os diversos tipos de violência contra a mulher,
alertando que a violência intrafamiliar é um dos tipos mais comuns e não existe apenas
necessariamente em decorrência da relação conjugal.
A violência doméstica pode ter origem em qualquer relação com qualquer membro
da família. Como acúmulo destas discussões, a LMP define e prevê no seu artigo Art. 5º: [...]
“configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral
ou patrimonial”, bem como caracteriza, ainda, no seu Art. 7º, suas cinco formas distintas,
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quais sejam: a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.


Para Ana Claudia Santos & Carmen Moré, (2011) a violência intrafamiliar ocorre
com inúmeras reverberações negativas e provocam um ciclo transgeracional, sendo que os
membros das famílias vitimadas pela violência apresentam um padrão de origem em
ambientes violentos similares que atravessam gerações. Neste estudo, apontam:

Uma consequência igualmente trágica de todo esse quadro foi o filho tornar-se
também sujeito da violência exercida dentro da família. Duas entrevistadas, além de
terem sido agredidas verbal e fisicamente pelos companheiros, sofreram agressões
perpetradas pelos próprios filhos. (SANTOS & MORÉ, 2011 p. 231).

Dito isto, interessa neste estudo, debater também as noções e o uso dos conceitos de
geração e de conflitos geracionais, mais detidamente as relações entre as gerações para uma
tentativa inicial de alcançar a complexidade que envolve os sujeitos da pesquisa no tocante ao
contexto familiar e motivações das agressões.

SOBRE GERAÇÕES E CONFLITOS

A noção sociológica de geração tem como fundamento a localização social


diferencial de grupos de idade. Para Mannheim (1928), uma geração se caracteriza por certo
número de indivíduos na sociedade com uma modalidade de localização social e histórica
comum, o autor considera geração como uma categoria de análise quando observada tal
uniformidade de locação social.
À luz de tais reflexões, deverão ser investigadas nesta pesquisa, mulheres
pertencentes a diferentes grupos de idade, observado o seu reconhecimento existencial e
psicossocial como pertencentes a uma dada geração e se a relevância social da idade é,
também, dimensionada por esta.
Ao abordar o conflito de gerações, Marialice Foracchi amplia a noção afirmando que
geração é uma “modalidade especial de similaridade de locação que abrange grupos de idade
afins [...] e sobrepõe-se às diferenças de posição social”. (FORACCHI, 1972 p.20).
Por conta das tensões inerentes aos conflitos de diferentes gerações, supostamente o
princípio da alocação social deveria assegurar compensações estáveis no relacionamento do
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indivíduo com outros membros da sociedade e adequar as mesmas aos objetivos coletivos
para além do interesse dos indivíduos e das gerações, mas da sociedade, exercendo, por fim,
um papel integrador. (FORACCHI, 1972, p. 26).
Entretanto, ao realizar pesquisa em abrigos para idosos quanto aos conflitos
familiares, Paula Pontes (2009) aponta uma questão que vale observar:

Quando a conduta dos membros da família, concernente ao sentimento de afeto ou


reciprocidade, incide em transgressão ou desvio da expectativa, mantida pelo
contrato implícito entre as gerações, acarreta perdas afetivas e materiais. (PONTES,
2009, p.79).

Sobre isso, Marialice Foracchi (1972, p.24) salienta que o conflito de gerações é
dialético e se dá no questionamento e na reprodução de valores, na institucionalização e na
normatização para além da família, mas também em torno de formulações sociais, exigências
e expectativas de fidelidade entre as gerações.
Desse modo, Paula Pontes (2009) verificou que as escolhas pela moradia em abrigos
muitas vezes foi consequência de conflitos geracionais intrafamiliares:

A experiência da coabitação, assim, não se traduz, necessariamente, em maior


suporte ao idoso, nem tampouco reflete a sua preferência, podendo, ao contrário,
resultar de injunções econômicas, sociais e/ou de saúde, seja de sua parte, seja da
parte de seus filhos, convertendo-se num elemento desencadeador de insatisfação e
violência domésticas. (PONTES, 2009, p.79).

Tem-se a segurança de que as categorias analíticas delineadas são pertinentes para a


problemática da pesquisa que será investigada, buscando dar conta de fundamentar e clarificar
a complexidade que envolve o objeto em estudo.

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CULPADAS SIM, VISÍVEIS NEM TANTO: REFLETINDO SOBRE AS POLÍTICAS


PÚBLICAS PARA MULHERES ENCARCERADAS NO BRASIL

Marina Torres Costa Lima | marinatorres.uepb@gmail.com

INTRODUÇÃO

A criminalidade feminina é uma realidade hoje vista “a olho nu”. Ainda que em
número bastante pequeno, se comparadas à quantidade de crimes cometidos por homem, as
infrações praticadas por mulheres têm experimentado expressivo crescimento nos últimos
anos, notadamente no que se refere ao delito de tráfico de drogas.
Apesar disso, a visibilidade dada às mulheres criminosas ainda é diminuta no âmbito
da produção de conhecimento, bem como da formulação de políticas públicas para tratamento
adequado desse fênomeno. No Brasil, ainda são incipientes as políticas voltadas às
especificidades que circundam a criminalidade feminina, principalmente porque ainda não
utilizam a perspectiva de gênero como eixo central para dicussão do problema.
O crime cometido pela mulher não significa apenas uma transgressão à lei penal,
senão também uma ruptura com as normatizações de gênero que constituem as relações em
sociedade, considerando que desse sujeito se espera um comportamento condizente com a
docilidade normalmente atribuída ao universo feminino.
Não parece possível pensar sobre causas, efeitos e medidas a serem adotadas acerca
da criminalidade feminina sem a compreensão sobre as implicações produzidas pelo gênero e
nele mesmo com esse deslocamento da mulher para o ambiente da ilegalidade.
Assim, este trabalho se propõe a discutir alguns desafios que se apresentam às
mulheres encarceradas, a partir da categoria de gênero, no intuito de contribuir com a
urgência de se pensar em políticas capazes de enxergar esses sujeitos duplamente invisíveis –

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pelo gênero e pelo crime – e, dessa maneira, garantir-lhes a dignidade erigida à condição de
fundamento constitucional brasileiro.

A MULHER NA CRIMINOLOGIA
Tradicionalmente o crime tem sido estudado e explicado a partir de abordagens
androcêntricas, que o situam como fenômeno diretamente ligado à natureza masculina. Desde
os estudos de Cesare Lombroso (1876), diz-se que a Criminologia tem se mostrado um campo
em que homens estudam homens e, por sua vez, invisibilizam a mulher presente nessa
realidade.
Poucos os autores que dedicaram espaço em suas pesquisas para conhecer a mulher
criminosa em suas especificidades. Em realidade, quando não completamente ignorados, esses
sujeitos eram estudados a partir dos parâmetros construídos para análise da criminalidade
masculina e sobre os estereótipos de gênero culturalmente construídos. A mulher é pensada
como mãe e dona de casa e, por isso, não é vista enquanto criminosa, apesar de ser
incontestável realidade.
Com efeito, argumento preponderante sobre o assunto, dentro das ciências e do senso
comum, é de que a mulher comete menos crimes que os homens, que comete delitos de menor
gravidade ou, ainda, que pratica infrações penais normalmente influenciadas por outrem,
devido aos caracteres – em tese – biológicos que a constituem.
Nesse sentido, Soares e Ilgenfritz (2002, p. 64) explicam que, acerca do cometimento
de crimes por mulheres, “as justificativas se fundamentavam, igualmente, em supostos
atributos da natureza feminina: a ideia da mulher essencialmente dócil, meiga, frágil,
indefesa, submissa e dependente”.
A própria criação de penitenciárias para mulheres no Brasil, no início do século XX,
esteve fundamentada na perspectiva de que mulheres eram “naturalmente” menos criminosas,
com a possibilidade de serem reeducadas em instituições diferentes das criadas para os
homens, como reformatórios, colônias agrícolas etc., como explicam Soares e Ilgenfritz
(2002).
Nos últimos anos, porém, têm surgido importantes contribuições para a compreensão
da realidade da mulher criminosa a partir da Criminologia de perspectiva feminista, que
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contesta o reducionismo biológico e psicológico existente sobre o assunto até então.


Conforme salientam Matos e Machado (2012, p. 34),
As perspectivas feministas na criminologia emergem da contestação face à ausência
da mulher nos estudos da linha tradicional e face ao claro reducionismo biológico e
psicológico patente nas primeiras tentativas de estudar a mulher que comete crimes.
Ainda numa fase em que o termo ‘feminismo’ está ausente dos textos da
criminologia, diversas autoras tocam já os pontos-chave da crítica feminista à
disciplina, tecendo duras críticas aos erros fundamentais cometidos em relação à
mulher. Por um lado, a sua quase ausência dos estudos criminológicos, onde é
praticamente invisível como agressora, como vítima ou em qualquer outro tipo de
relação com o sistema de justiça criminal. Por outro lado, a sua presença desajustada
nos estudos da criminologia, através da distorção das suas experiências
transgressivas de modo a enquadrá-la nos estereótipos dominantes. (Grifo das
autoras)

A Criminologia de viés feminista se propõe a corrigir a ausência da mulher nesse


campo do conhecimento, analisando-a enquanto sujeito imerso num contexto marcado por
construções de gênero que ditam regras para a sua vida, dentro e fora do crime.
Apesar de ainda incipiente, a emergência desses novos olhares criminológicos tende
à superação da invisibilidade dessa mulher, cada dia mais presente nos números penais e
penitenciários do Estado, através de uma análise que considere as experiências desse sujeito.
Trata-se de verdadeiro deslocamento uma vez que na perspectiva feminista da
Criminonologia se busca conhecer a realidade da mulher do crime a partir da ótica dela
mesma, desestabilizando os discursos pretensamente neutros sobre o crime, os quais, como já
demonstrado, traduzem valores masculinos e hegemônicos.
É possível afirmar que essa nova forma de compreender a realidade de mulheres
criminosas revela-se um importante passo à formulação de legislação e políticas públicas
capazes de responder às demandas desse segmento que, mesmo crescendo assustadoramente,
parece não existir.

CULPADAS, PORÉM INVISÍVEIS

Como dito acima, mulheres criminosas padecem de uma invisibilidade em dobro.


Além de todas as dificudades enfrentadas pelas regras postas para o gênero, são ainda
deixadas à margem da margem no sistema penitenciário brasileiro.
Apesar dos tantos avanços já garantidos, em direitos legislados e políticas públicas,

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as mulheres ainda lidam com gritante desigualdade causada pelas normatizações de gênero. A
realidade permanece marcada por discursos machistas, preconceituosos, que as inferiorizam e
lhes impõem um fardo bastante pesado nas relações sociais.
Joan Scott (1990) explica o gênero como categoria de análise fundamental à
compreensão de como se constituem os modelos sobre os quais se organizam e se percebem
as diferenças entre os corpos sexuados. O gênero seria uma construção discursiva que
constitui o sujeito e seu lugar social a partir do que é determinado culturalmente. Ainda
segundo a autora, “o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder”
(SCOTT, 1990, p. 14).
A mulher ainda é responsabilizada pelo doméstico, pela família, pelo cuidado. À
mulher ainda são destinadas as características ligadas à fragilidade e à submissão. Esse sujeito
ainda é tratado desigualmente no mercado de trabalho, não tem voz suficiente nos espaços de
poder e ainda enfrenta as maiores dificuldades para o alcance de direitos mínimos.
Não há como negar, portanto, que, mesmo toda a força acadêmica, política e ativista
dos movimentos feministas, ainda são necessários muitos passos para chegar a uma situação
de emancipação plena das mulheres no seio social.
Por outro lado, há que se destacar o fato de que pertencer ao mundo do crime, por si
só, gera inúmeras situações de discriminação. De modo geral, o sistema penitenciário
brasileiro é caótico e não garante dignidade no cumprimento da pena, tampouco a
ressocialização das pessoas condenadas, apesar de ser essa uma das finalidades da pena
adotadas no país, o que colabora para desestabilizar ainda mais a vida do infrator.
É uma realidade que não se resume à criminalidade feminina e que não se mostra um
entrave meramente penal. Conforme leciona Greco (2011), trata-se de um problema político-
social do Estado, que exige soluções envoltas pela vontade política de fazer com que essas
pessoas apareçam e se reintegrem de forma adequada ao convívio social.
No que se refere à situação das mulheres presas, os obstáculos parecem ainda
maiores. Até pouco tempo atrás, o próprio Estado não se preocupava sequer em levantar
dados e tecer relatórios que servissem de norte à formulação de políticas públicas para o
segmento. Atualmente, todavia, ainda se verificam poucos avanços sobre o assunto. No
Relatório sobre Mulheres Encarceradas no Brasil, elaborado pelo Ministério da Justiça em
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2007, afirma-se que


há uma histórica omissão dos poderes públicos, manifesta na completa ausência de
quaisquer políticas públicas que considerem a mulher encarcerada como sujeito de
direitos inerentes à sua condição de pessoa humana e, muito particularmente, às suas
especificidades advindas das questões de gênero. (2007, p. 03)

Com efeito, para além de tratar-se genericamente de pessoas encarceradas, as


mulheres exigem um olhar orientado à especificidade de suas experiências, utilizando uma
perspectiva que problematize o gênero nesse contexto. Afinal, qual o perfil da mulher presa
no Brasil? Por que ingressou no mundo do crime? O que acontece com sua família aqui fora?
Essas e outras inquietações sempre existirão caso o verdadeiro interesse seja compreender a
realidade dessas mulheres, principalmente porque as respostas trazem implicações distintas
das relacionadas à criminalidade masculina.

O GÊNERO E O CRIME

Das pesquisas já realizadas sobre o assunto, observa-se que a maior parte das
mulheres envolvidas com o crime é composta por jovens, mães, de baixa renda e com pouco
acesso a empregos formais, de pouca escolaridade e não-brancas572. Ademais, mais da metade
da população carcerária feminina tem condenação pelo delito de tráfico de drogas573.
São mulheres que, afetadas por marcadores da diferença, pagam um preço muito
mais alto do que a pena pelo crime cometido, uma vez que a prisão traz consequências
normalmente distintas para a vida que mulheres e homens deixam extra muros. Para as
mulheres, o dano mais grave certamente é a desestabilização das relações afetivas e
familiares.
Com efeito, vê-se mães afastadas dos filhos, os quais, em boa parte dos casos, ficam
em lares de terceiros, sofrendo abusos e violência. São esposas ou companheiras que se veem
sozinhas, após o abandono do marido ou companheiro que não foi criado para cuidar e
esperar. São as que não recebem visitas. São mulheres pobres sem condições materiais de

MOREIRA, 2012; MOURA, 2005; SOARES; ILGENFRITZ, 2002; CESAR, 1995.


572
573
Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, divulgados através do InfoPen em dezembro de
2012. Disponível em http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={D574E9CE-3C7D-437A-A5B6-
22166AD2E896}&BrowserType=NN&LangID=pt-br&params=itemID%3D{C37B2AE9-4C68-4006-8B16-
24D28407509C}%3B&UIPartUID={2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26}&fb_locale=pt_BR.
Acesso em 20 de Agosto de 2014.
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prover sua defesa perante o Sistema de Justiça Criminal. São mulheres condenadas pelo
gênero e pelo crime.
Segundo Moreira (2012, p. 99), “os dados mostram que a prisão ao isolar as
mulheres do mundo externo põe os laços familiares sob pressão, favorecendo a perda do
contato e a ruptura de relacionamentos”, o que não ocorre exatamente com homens presos.
Afinal, raramentes estes são abandonados por esposas, filhas e filhos, mães, e, portanto, nesse
quesito sentem muito menor o peso do que aquelas quando encarecadas.
A mulher presa comumente sente a dor de ter falhado como mãe, como filha, como
companheira, antes mesmo do desvio quanto à norma penal. Ela representa uma fratura à
norma de gênero que lhe imputa o dever do cuidado e, por isso, é punida de maneira
duríssima.
Por outro lado, as diversas hipóteses levantadas para justificar o ingresso da mulher
no mundo do crime também sugerem estreita relação com a questão do gênero. Seja devido às
dificuldades financeiras, causadas em regra pela maior dificuldade de ingresso no mercado
formal, seja pela influência de maridos/companheiros/filhos, resta notória a implicação do
gênero nisso tudo.
Ora, mulheres comumente enfrentam maiores obstáculos para entrar no mercado de
trabalho formal e para nele se manter, inclusive pela sobrecarga do trabalho doméstico a ela
atribuído e pelas obrigações advindas com a maternidade. Ademais, ainda recebem menores
salários e ocupam os postos inferiores de emprego. Em suma, a pobreza ainda tem cara de
mulher. Segundo Lagarde (LAGARDE, 1996, apud LISBOA; MANFRINI, 2005, p. 72),
[...] o gênero feminino é aquele que mais trabalha, recebe menor retribuição pessoal
por seu trbalho, enfrenta mais impedimentos e limitações para alcançar riqueza
social, possui mais carências, enfrenta mais privações e satisfaz em menor medida
suas necessidades vitais.

Assim, a necessidade de obtenção de renda, para o próprio sustento e de sua família,


aparece como uma das principais motivações para o cometimento de crimes por mulheres,
demonstrando como a exclusão gerada pelo gênero induz à tomada de outros caminhos que
não os esperados.
De outra banda, o envolvimento de mulheres no crime pela parceria com

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companheiros, maridos e filhos já foi objeto de diversos estudos e, apesar de não aparecer
como principal motivação, é comprovado que há um número significativo delas que
ingressam realmente por essa razão. O delito de tráfico de droga é um dos exemplos
corriqueiros sobre o assunto, ja que boa parte das mulheres é condenada após envolver-se
afetivamente com traficantes ou entrando em presídios masculinos portando drogas.
Além disso, “a maior parte delas [das mulheres] chega às prisões trazendo uma
história prévia de maus-tratos e/ou abuso de drogas (próprio ou de familiares próximos)”
(SOARES; ILGENFRITZ, 2002, p. 126). Apesar dessa informação não significar
determinante para ingresso no crime, afinal, conforme bem lembram as citadas autoras, a
maior parte das mulheres vítimas de agressão e dependentes de drogas se encontra fora das
penitenciárias,
o que os dados mostram é que a prisão, tanto pela privação da liberdade, quanto
pelos abusos que ocorrem em seu interior, parece ser apenas mais um elo na cadeia
de múltiplas violências que conformam a trajetória de uma parte da população
feminina. (SOARES; ILGENFRITZ, 2002, p. 126)

POLÍTICAS DE GÊNERO

Presidiárias e presidiários vivem à margem da sociedade em vários aspectos. É


sabido que a lacuna em termos de políticas públicas para esse grupo é uma realidade, tanto na
prevenção de infrações penais, quanto na ressocialização dessas pessoas.
Das hipóteses já levantadas e confirmadas em pesquisas com esse objeto, verifica-se
que as desigualdades advindas com as normatizações de gênero também permeiam o universo
do crime e tornam as experiências de mulheres condenadas ainda mais difíceis porque lidam
com as consequências da ruptura daquelas regras.
Sendo assim, para tratar da questão, se faz fundamental a formulação de políticas
públicas que utilizem a categoria do gênero como eixo central, considerando que a
compreensão da realidade da mulher exige pensar em como esse sujeito é produzido e quais
caminhos para refletir sobre as desigualdades existentes a partir disso.
Conceituando políticas de gênero, Guzman (2000) explica que:
[...] as políticas de governo incluem uma perspectiva de gênero quando existe uma
vontade explícita, de parte das autoridades, de promover uma redistribuição entre os
gêneros em termos de destinação de recursos, direitos civis e de participação,
posições de poder e autoridade de valorização de homens e mulheres. (GUZMAN,
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2000, apud LISBOA; MANFRINI, 2005, p. 75)

Ainda sobre o assunto, Lisboa e Manfrini (2005, p. 75) explicam que


a incorporação da dimensão de gênero nas políticas públicas, através de programas e
projetos, supõe a implementação de projetos específicos voltados às mulheres, que
respondam à singularidade da sua situação e a necessidade de implementar medidas
de discriminção positiva para neutralizar as desvantagens iniciais que alguns grupos
de mulheres compartilham.

Por todo o exposto, resta claro que o segmento de mulheres presidiárias exige um
olhar voltado às peculiaridades que cercam seu universo, que é distinto da criminalidade
masculina. Seu ingresso no crime não se dá da mesma forma, elas vivenciam a pena de
maneira diferente e as consequências extra muros também são singulares.
De fato, não bastarão políticas norteadas por parâmetros pensados para a realidade
masculina, como tem sido feito costumeiramente até então. As políticas públicas para
mulheres encarceradas no Brasil precisam considerar o papel que elas representam em suas
famílias, como estas ficam durante sua saída e na sua volta. Necessitam pensar no porquê
dessa mulher ter entrado no mundo do crime e especificamente nos crimes que mais cometem
– como o tráfico de drogas, que representa mais da metade da população carcerária feminina
do país. As políticas devem ser orientadas a diminuir os danos causados à quebra das normas
de gênero e, mais imporante ainda, à própria transformação dessas normatizações, que são
fonte de tanta violência diariamente.
É possível falar que o Brasil avançou recentemente com a publicação da Política
Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do
Sistema Prisional (PNAMPE), do Ministério da Justiça em conjunto com a Secretaria de
Políticas Públicas para Mulheres da Presidência da República, através da Portaria
Interministerial n.º 210, de 16 de Janeiro de 2014. Referida portaria instituiu algumas
diretrizes importantes para a formulação de políticas públicas para esse segmento, a saber:

Art. 2º São diretrizes da PNAMPE:


I - prevenção de todos os tipos de violência contra mulheres em situação de
privação de liberdade, em cumprimento aos instrumentos nacionais e internacionais
ratificados pelo Estado Brasileiro relativos ao tema;
(...)
V - fomento à adoção de normas e procedimentos adequados às especificidades das
mulheres no que tange a gênero, idade, etnia, cor ou raça, sexualidade, orientação

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sexual, nacionalidade, escolaridade, maternidade, religiosidade, deficiências física


e mental e outros aspectos relevantes;
VI - fomento à elaboração de estudos, organização e divulgação de dados, visando
à consolidação de informações penitenciárias sob a perspectiva de gênero;
VII - incentivo à formação e capacitação de profissionais vinculados à justiça
criminal e ao sistema prisional, por meio da inclusão da temática de gênero e
encarceramento feminino na matriz curricular e cursos periódicos;
VIII - incentivo à construção e adaptação de unidades prisionais para o público
feminino, exclusivas, regionalizadas e que observem o disposto na Resolução no 9,
de 18 de novembro de 2011, do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária - CNPCP;
(...)
X - fomento ao desenvolvimento de ações que visem à assistência às pré-egressas e
egressas do sistema prisional, por meio da divulgação, orientação ao acesso às
políticas públicas de proteção social, trabalho e renda;
Parágrafo único. Nos termos do inciso VIII, entende-se por regionalização a
distribuição de unidades prisionais no interior dos estados, visando o
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. (Grifo nosso)

Conforme se vê, a PNAMPE significa um importante passo para a formulação de


políticas públicas sob a perspectiva de gênero, respondendo a uma demanda que, apesar de
datar de muito tempo atrás, é sentida com maior vigor atualmente, principalmente com o
crescimento da criminalidade feminina dos últimos anos.
A preocupação da PNAMPE em garantir que a questão de gênero esteja presente
quando da formulação de políticas públicas fica evidente em várias das diretrizes
estabelecidas, as quais buscam compreender a singularidade de ser mulher – inclusive no
mundo do crime. No instrumento, é dada importância à formação profissional dos agentes que
lidam diariamente com o segmento; é vista a necessidade de se construir dados que
considerem as determinações de gênero; é pensada na importância de fortalecer os laços
familiares, diminuindo distâncias e fornecendo condições mínimas de acesso a trabalho e
renda, entre outras.
Sem dúvidas, todas as diretrizes, bem como os objetivos e metas traçados na
PNAMPE sugerem uma mudança paradigmática importante. Porém, é de se lembrar que o
Brasil é reconhecidamente rico em garantias e direitos que por vezes não passam de previsões
legislativas. Torna-se, portanto, imprescindível acompanhar a execução da Política trazida
pela Portaria Interministerial n.º 210/2014, esperando que haja um cumprimento efetivo do
que esta dispõe.
CONSIDERÇÕES FINAIS

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Como sabido, lidar com o crime, suas causas e consequências, ainda é tabu no Brasil.
No que tange à criminalidade feminina, então, resta claro a lacuna de políticas eficazes ao
tratamento do problema.
Conforme demonstrado ao longo do texto, a experiência feminina no crime é cercada
por fatores diretamente ligados às desigualdades de gênero e não há como se pensar em
políticas públicas para o fenômeno sem priorizar o gênero enquanto categoria central de
análise.
Tratar do crime cometido por mulher enquanto mais uma questão de gênero obriga
os gestores e órgãos a enfatizar que a realidade feminina é marcada por limitações produzidas
desde muito cedo, que modelam sua forma de agir no doméstico e também no mundo do
crime.
Apesar de ainda não existirem políticas concretas que estejam voltadas à questão no
país, cumpre ressaltar um importante avanço ocorrido recentemente, com a publicação da
PNAMPE, que estabeleceu diretrizes sérias e preocupadas com a formulação de políticas
públicas de gênero para mulheres encarceradas no Brasil.
Sendo assim, resta torcer para que esses direcionamentos saiam do papel, com a
instituição de caminhos para tratar adequadamente da criminalidade feminina e de suas
implicações na realidade de tantas mulheres que hoje se veem no mundo do crime.
Importa dizer, ainda, que a produção de conhecimento sobre o assunto se mostra um
importante instrumento para pessionar quem de direito a dar visibilidade e a tratar da
criminalidade feminina não apenas como uma questão de gênero, mas também e
primordialmente como um campo em que a dignidade da pessoa humana precisa estar
presente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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invisibilidade social feminina. Contextos Clínicos, São Leopoldo: v. 5, n. 1, pp. 52-61, 2012.
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil. Brasília:
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______. Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de
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Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE). Portaria Interministerial n.º 210.


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LOURO, G. L. A emergência do gênero. In:______. Gênero, sexualidade e educação: uma
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MOREIRA, V. S. Impactos do envolvimento de mulheres presidiárias com o fenômeno
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MOURA, J. Porta fechada, vida dilacerada – mulher, tráfico de drogas e prisão: estudo
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SOARES, B. M.; ILGENFRITZ, I. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades. Rio de
Janeiro: Garamond, 2002.

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DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS? DISCENTES DE SERVIÇO SOCIAL E


HOMOAFETIVIDADE

Alana Menezes de Lima574 | alana.limay@gmail.com


Márcia Irene Pereira Andrade575

INTRODUÇÃO
Devemos lutar “por um mundo onde sejamos
socialmente iguais, humanamente diferentes e
totalmente livres”.
Rosa de Luxemburgo.

O afeto possui diversas cores e expressões. A partir dessa afirmação este artigo irá
discutir acerca da união homoafetiva sob a perspectiva do direito, relacionando a visão dos
discentes de Serviço Social do curso noturno da Universidade Federal do Amazonas – UFAM
com a temática em tela.
Enfatiza-se a questão dos Direitos Humanos como fonte da primazia de dignidade
humana. Sendo assim, sabe-se que as uniões homoafetivas adquirem evidência a cada dia em
nossa sociedade. Trata-se de uma realidade presente no cotidiano das relações sociais, o que
requer debate e análise acerca dessa temática com vistas a assegurar as pessoas que vivenciam
essa união seus direitos sob o prisma do princípio da dignidade humana.
Ressalta-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil, portanto, deve ser garantido a todos os cidadãos independente
de cor, sexo, religião e orientação sexual.

574
Graduanda em Serviço Social na Universidade Federal do Amazonas - UFAM
575
Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (PPGSCA - 2006),
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas (PPGE) -
(2013/2017), Professora Asssitente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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Entretanto as pessoas que possuem união com sujeitos do mesmo são alvos de
violência em suas diversas formas há muito tempo, um grande exemplo foi, “na Alemanha
Nazista”, no ano de 1928, um partido nacional-socialista que declarava em discurso – através
de um indivíduo que o representava – que o interesse geral deve estar sobre o interesse
individual e disse, ainda: “aqueles que preservarem considerações ao amor entre homens e
entre mulheres são nossos inimigos”. (HAEBERLE apud BORRILLO, 2001, p. 88). Por
conseguinte:
Borrillo utiliza a criação da Oficina Central do Reich como marco da efetivação da
política do Holocausto Gay em 1936, quando os homossexuais foram enviados em
massa aos campos de concentração, calcula-se que o número tenha alcançado 15.000
corpos categorizados e marcados como homossexuais. (BORRILLO apud MAFRA,
2015, p.96)
Como resultado material de um balanço das atrocidades cometidas durante a Segunda
Guerra Mundial é promulgada a Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948, em seu
artigo 1.° afirma que: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito e
fraternidade”. (Disponível em: <https://www.onu-brasil.org.br>, Acesso em 11 de Outubro de
2015)
Com base nos preceitos desta Declaração diversos países discutiram e formularam
suas declarações, importante frisar o condicionamento dos Direitos Humanos, que “tem cunho
de recomendação, de proteção, de fomento, não de exigência.” (CANFIELD, 2015, p.33)
O Brasil, por exemplo, só passa a ser signatário dos Direitos Humanos em sua
Constituição Federal de 1988, onde de fato há um aprofundamento no que tange a defesa da
dignidade humana, pois a Carta Magna amplia direitos e garantias individuais e coletivos
ratificando que:

os direitos do homem são direitos históricos que emergem gradualmente das lutas
que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições
de vida que estas lutas produzem. (BOBBIO, 1992, apud CANFIELD, 2015, p.42)

Posto isto, é necessário explicitar que o Brasil teve uma construção de direitos gradual,
denominada pela maior parte dos autores, de forma didática, como Primeira, Segunda e

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Terceira geração576 de direitos. Frisa-se que é na Terceira Geração de direitos ou Direitos de


fraternidade/solidariedade, que o gênero humano é levando em consideração, não mais um
determinado indivíduo, grupo, Estado. Ademais,

esse conjunto evidencia-se no fim do século XX e refere-se ao direito ao


desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz, ao combate à formas de violência, aos
direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, entre outros. (CANFIELD,
2015, p.47)

É fato que a existência jurídica do direito não assegura sua efetivação. Ainda mais,
quando se fala acerca de uniões que enfrentam uma carga de conservadorismo e preconceitos,
visto que levando em consideração que a base da sociedade é a família577, uniões com
composição diferenciada da “família tradicional” são focos de desmonte. Assim, é necessário
ratificar a afetividade como laço formador de famílias, para então não excluir os diversos
tipos de famílias existentes na atualidade.
Para Souza & Dias (2010, p.21) “as famílias modernas ou contemporâneas
constituem-se em um núcleo evoluído a partir do desgastado modelo clássico,
matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, patrimonializado e heterossexual[...]”. Isto é
reforçado no âmbito jurídico brasileiro, quando na Lei Maria da Penha de N.° 11.340/2006,
em sei Artigo 5.° Inciso II: “âmbito da família, compreendida como a comunidade formada
por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade
ou por vontade expressa”. (BRASIL, 2006)
Ainda que existam avanços inegáveis no mundo e no Brasil, a efetividade da justiça
ainda não alcança a todos, especialmente pela dificuldade de compreender a Diversidade
Sexual578. Um relatório elaborado pela Secretária de Direitos Humanos em 2012 sobre a

576
Direitos da primeira geração ou direitos de liberdade: Surgiram nos séculos XVII e XVIII e foram os
primeiros reconhecidos pelos textos constitucionais. Compreendem direitos civis e políticos inerentes ao ser
humano e oponíveis ao Estado [...] Direitos da segunda geração ou direitos de igualdade: Surgiram após a 2ª
Guerra Mundial com o advento do Estado - Social. [...]Direitos da terceira geração ou direitos de fraternidade
/solidariedade: São considerados direitos coletivos por excelência pois estão voltados à humanidade como um
todo. Disponível em: < http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3033/As-geracoes-de-direitos-fundamentais>
Acesso em: 11 de Outubro de 2015.
577
Artigo 226. “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” – Constituição Federal
Brasileira (1988)
578
Sobre a diversidade sexual, afirma-se que se deve reconhecê-la em nossa sociedade, para assim, respeitar a
diversidade humana, contribuindo com a edificação de uma sociedade justa, diversa, igualitária e livre.
(KOTLINSKI, www.coturnodevenus.org, acesso outubro de 2015).
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violência homofóbica no Brasil revela:

em 2012, foram registradas pelo poder público 3.084 denúncias de 9.982 violações
relacionadas à população LGBT, envolvendo 4.851 vítimas e 4.784 suspeitos. Em
setembro ocorreu o maior número de registros, 342 denúncias. Em relação a 2011
houve um aumento de 166,09% de denúncias e 46,6% de violações, quando foram
notificadas 1.159 denúncias de 6.809 violações de direitos humanos contra LGBTs,
envolvendo 1.713 vítimas e 2.275 suspeitos.

A magnitude dos dados acerca da violência homofóbica requer seu enfrentamento.


Assim, em 2004 é lançado o “Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra
GLBT e Promoção da Cidadania Homossexual”. Além dessa medida protetiva, elege-se o Dia
Nacional de Combate à homofobia579, dia 17 de Maio, como forma de dar visibilidade e trazer
esse debate mais acessível junto à sociedade brasileira.
Observa-se que mesmo sendo trazida para a agenda pública a violência contra os
homossexuais existe e persiste, no entanto, sendo foco de inúmeras discussões580 nas esferas
política que necessita de avanços, pois a homofobia não é criminalizada, dando mais espaço e
legitimando a sua continuidade.
Sobre a homofobia, este artigo irá analisar acerca dessa questão junto aos discentes do
curso de Serviço Social na Ufam. A necessidade de se investigar essa questão junto aos
discentes reside no entendimento que o Assistente Social é um profissional que norteia sua
formação, seu agir num Projeto ético-político que vem sendo construído pelo coletivo
profissional ao longo de 30 anos. Dentre os elementos que compõe o referido projeto, destaca-
se o Código de Ética Profissional (1993) que possui entre seus princípios fundamentais:
“defesa intransigente dos direitos humanos; ampliação e consolidação da cidadania;
eliminação de todas as formas de preconceito e o exercício do serviço social sem ser
discriminado e sem discriminar”. (CRESS – AM/RO, 2013, p. 31-32)
Sendo o assistente social um profissional que trabalha com as múltiplas expressões da

579
Utiliza-se aqui o que Borrillo (2010), define como: Homofobia Cognitiva (social) que “pretende
simplesmente perpetuar a diferença homo/hetero, neste aspecto, ela preconiza a tolerância, forma civilizada da
clemência dos ortodoxos em relação com os heréticos. (p.24)
580
A discussão se dá por meio da PL 122 de 2006, apresentado pela então Deputada Iara Bernardi, com o
objetivo de criminalizar a homofobia, o texto original está Disponível em: <
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=45607&tp=1>
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questão social581 é mister que temáticas transversais582 como, por exemplo, a diversidade
sexual, sejam apreendidas durante a formação, pois a homofobia nada mais é do que uma das
múltiplas expressões da questão social presente no seio da sociedade.
A importância de se pesquisar essa temática junto a esses sujeitos, reside no
entendimento de que pesquisar em um ambiente universitário, entendido como um espaço
plural, de diferentes culturas e religiões que expressa não só a diversidade, mas também a
reprodução dos preconceitos apreendidos ao longo da vida constitui-se num desafio a ser
enfrentado com rigor e criatividade.
E ainda, sendo o assistente social um dos profissionais que clamam por igualdade e
defesa intransigente dos direitos humanos e de cidadania justifica- se a presente reflexão.

DANDO VOZ AOS DISCENTES DE SERVIÇO SOCIAL


Inicia-se a partir da seguinte assertiva: a pessoas que vivem uma relação homoafetiva
tem direito a ter direitos, pois são pessoas dignas e que merecem respeito. A orientação sexual
não justifica desrespeito, intolerância e desigualdade. Assim, do exposto afirma-se que os
dados apresentados são oriundos da pesquisa de campo realizada junto a 44 (quarenta e
quatro) discentes do curso de Serviço Social – Noturno da Universidade Federal do
Amazonas.
Constatou-se que a faixa etária desses pesquisados variou de 18 (dezoito) a 59
(cinquenta e nove) anos, sendo que 27 (vinte e sete) dos 44 (quarenta e quatro) têm entre 18
(dezoito) e 25 (vinte e cinco) anos Quanto a renda familiar, 37 (trinta e sete) dos 44 (quarenta
e quatro) sujeitos pertencem a Classe Média583. Majoritariamente os pesquisados são católicos

581
Segundo Iamamoto (1999, p. 27), a Questão Social pode ser definida como: O conjunto das expressões das
desigualdades da sociedade capitalista madura, que têm uma raiz comum: a produção social é cada vez mais
coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos se mantém privada,
monopolizada por uma parte da sociedade.
582
Os Parâmetros Curriculares Nacionais incorporam essa tendência e a incluem no currículo de forma a compor
um conjunto articulado e aberto a novos temas, buscando um tratamento didático que contemple sua
complexidade e sua dinâmica, dando-lhes a mesma importância das áreas convencionais.. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf> Acesso em: 29 de junho de 2015, às 17:09.
583
Neste estudo a definição de classe média ancora-se: “a classe média, medida em termos da renda familiar per
capita, esteja em torno de R$ 440 familiar per capita, o que resta fazer é determinar onde começa e onde
termina”. (SAE/PR, 2014).
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(52%), seguidos por 20% de evangélicos.


Para denominar os pesquisados, foram utilizadas as seis cores da Bandeira584
LGBT585. A ideia de empregar cores popularmente mais femininas para os homens e vice-
versa, foi proposital com vistas a quebrar estereótipos, pois o preconceito esta enraizado em
pequenos gestos ou costumes.
Ao inquirir os pesquisados: qual a sua opinião acerca da união civil homoafetiva?
Obteve-se: dos 44 (quarenta e quatro) discentes, 21 (vinte e um) concordam totalmente, 16
(dezesseis) discordam em partes ou totalmente e 7 (sete) não tem opinião ou são indiferentes.
Uma análise acerca dessas respostas leva-nos a refletir que desde o Código de Ética
Profissional do Assistente Social de 1986, a profissão busca romper com a base filosófica
tradicional, nitidamente conservadora, que norteava a “ética da neutralidade” (CRESS –
AM/RO, 2013). Posto isto, ao somar aqueles que não têm opinião ou são indiferentes
(neutros) aos que discordam em parte ou totalmente, temos mais de 50% da amostra, ou seja,
23 (vinte e três) discentes que de alguma forma teriam dificuldades com a questão da
diversidade sexual, fator que causa preocupação, pois a muito a profissão buscou se
reconceituar, no sentido de dar um giro ético radical no seu processo de formação acadêmico-
profissional.
Entretanto, o estudo revela a influencia do pensamento social da igreja presente no
discurso dos pesquisados, pois quando o discente Amarelo 1, respondeu ao ser questionado
sobre o conceito de família e união homoafetiva obteve-se a seguinte fala: “Família, criação
divina, Deus quem criou, ele instituiu homem e mulher para se amarem e reproduzirem, o
casamento homoafetivo parte do pecado, e Deus abomina essas práticas”.
Causa espanto a fala do discente pesquisado, pois sua formação deveria oferecer
subsídios para que pré-noções e pré-conceitos não obliterem sua reflexão. Além disso, a
dificuldade em respeitar que as famílias possuem diversas tipologias, advém da dificuldade de
respeitar o “novo” tipo de união, de famílias existentes na atualidade.

584
Cada cor representa um conceito: vermelho para o fogo/vida; laranja para a cura/poder; amarelo para o
sol/luz; verde para a natureza; azul para as artes; roxo para o espírito. As excluídas: rosa choque para o sexo;
turquesa para harmonia. Disponível em: < https://stophomofobia.wordpress.com/2011/03/27/significado-das-
cores-na-bandeira-gay/> Acesso em 11 de Outubro de 2015.
585
Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais.
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Além disso, reside na visão conservadora sobre a família presente em muitas


religiões. Contudo, hoje

as famílias possuem novas configurações e não se admite o conservadorismo do


passado, em que enaltecia o patrimônio, a figura do homem era centralizadora e,
portanto, baseava-se num modelo de hierarquias e indissolúvel. O afeto passa a ser
o principal vínculo entre as pessoas. O matrimônio civil homoafetivo é uma grande
conquista da sociedade. (LATO, 2015, p.34)

Quando os discentes foram questionados quanto sua concepção sobre a


homossexualidade tanto feminina quanto masculina e o direito de cidadania desses
sujeitos, as respostas revelam-nos:
Cada um faz o que quiser desde que não desrespeite o próximo, todos têm os
mesmos direitos, não concordo com tais privilégios que os homossexuais querem
afinal todos somos iguais. (Amarelo 1).
Vai de contra aos meus princípios, porém não discrimino. (Amarelo 39)
Independente da orientação sexual todos tem direitos. Ser ou não homossexual é
indiferente quando se fala em cidadania. (Verde 30)
Direito adquirido por tanto, tem que ser respeitado. (Verde 41)

Os discursos revelam-se cuidadosos, porém nota-se que os discentes pesquisados ora


tendem a reconhecer que a igualdade, os direitos independe da orientação sexual, ora tende a
falar de privilégios para esses sujeitos. Além disso, quando se perguntou aos pesquisados a
questão acerca da homossexualidade e o direito de cidadania, o pesquisado argumentou
“Todos somos humanos, cidadãos. Todos tem o direito de fazer o que quiser sobre suas vidas,
porém, não concordo com a orientação que o mesmo quer seguir”. (Roxo 22)
É desafiador refletir como um discente que é formado com base num Projeto Ético-
Político que prima pela liberdade possa argumentar com base no senso-comum que se
fundamenta na moral judaico cristã, além do que o desconhecimento sobre as noções de
cidadania, dos direitos humanos, da diversidade sexual e do próprio projeto ético-político do
serviço social são preocupantes, pois sua fala denota que desconhecimento acerca dos
princípios valorativos e éticos que fundamenta esses conceitos que devem ser discutidos e
aprofundados no decorrer de sua formação acadêmica.
Neste ponto Borrillo (2010) contribui:

A heterossexualidade aparece, assim, como o padrão para avaliar todas as outras


sexualidades. Essa qualidade normativa – e o ideal que ela encarna – é constitutiva

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de uma forma específica de dominação, chamada heterossexismo, que se define


como a crença na existência de uma hierarquia das sexualidades, em que a
heterossexualidade ocupa posição superior. (p. 31)

Ademais, é a naturalização de uma ordem de dominação/inferiorização que pode fazer


com que um mesmo sujeito tenha posicionamentos controversos sobre uma mesma temática.
Sobre a relação entre a defesa dos direitos do seguimento LGBT e os Direitos
Humanos:

Ambos têm o mesmo objetivo à promoção dos direitos. (Azul 13)

Não sei exatamente. Mas eles lutam pelo que acham que é certo. (Amarelo 7)

Não tenho base teórica para falar sobre. (Verde 5)

Os discursos revelam fragilidade por partes desses sujeitos em sustentar seu


posicionamento. Além disso, quando se fala sobre direitos, sobre cidadania está se falando
que as lutas por direitos acontecem mediante as violações presentes na realidade, para tanto
deve-se ratificar o significado de cidadania, cuja raiz reside o entendimento que todas as
pessoas são sujeitos de direito, e que é inconstitucional discriminar por quaisquer motivos que
seja. Assim, chama atenção que 3 (três) discentes pesquisados (7%) afirmarem que a
homossexualidade constitui-se em “pecado”, isso se constitui em uma preocupação, pois
esses pesquisados ainda associam a religião com essa questão, levando em consideração o
Estado laico, temos mais um desafio a estes futuros assistentes sociais, para que se dispam
não só do preconceito, mas possam compreender melhor a questão da diversidade em prol de
não ocultá-la e inferiorizá-la, pois um dos discentes pesquisados quando perguntado sobre a
união homoafetiva respondeu: “Nada contra, mas não sou a favor.” (AZUL 24)
Além desta resposta extremamente rasa e contraditória, este sujeito informou não ter
“nada a declarar” sobre a entidade família e cidadania diante da questão homoafetiva.
Convém explicitar, ou melhor, elucidar para esse pesquisado que seu posicionamento não
deve conter margem para interpretações irônicas ou preconceituosas, pois fere preceitos
explicitados no Projeto Ético-Político do Serviço Social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Do esforço teórico/prático empreendido a partir da análise acerca da visão dos


discentes do Serviço Social sobre direitos humanos e união homoafetiva, nota-se que muito
ainda deve ser feito para quebrar estigmas e preconceitos acerca dessa temática.
Sendo o Serviço Social uma profissão que assumiu a liberdade e a igualdade
substantivas como princípios éticos fundamentais é deveras desafiador debruçar-se sob esses
dados para adensar a formação acadêmica-profissional e assim dar materialidade ao Projeto
Ético-Político por meio de uma formação pública e de qualidade atenta a essas questões que
irão permear o cotidiano profissional desses futuros assistentes sociais.
Ressalta-se que sob o prisma da dignidade humana a Declaração Universal dos
Direitos Humanos foi construída, embasou a Constituição Federal de 1988 e fundamenta o
Projeto Ético-político profissional do assistente social, que deve balizar o exercício
profissional em prol da equidade, da liberdade, da universalidade de direitos.
Por fim, o combate à discriminação de qualquer forma e a prevalência da dignidade
humana só serão efetivadas de fato quando for ultrapassado o medo de falar sobre temas
pouco abordados em detrimento de concepções conservadoras e embebidas em preconceitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Tradução de


Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
BRASIL, Secretaria dos Direitos Humanos. Relatório sobre a violência homofóbica no Brasil:
no ano de 2012. Brasília, 2012.
CANFIELD, Fernanda Ferreira. Direito Humano a (homo)afetividade e os movimentos
sociais LGBT. Curitiba: Appris, 2015.
CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SOCIAL 15° Região Amazonas. Coletânea de Leis.
Manaus: Editora Valer, 2013.
IAMAMOTO, Marilda V. O Serviço Social na contemporaneidade; trabalho e formação
profissional. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
PRADO, Marco Aurélio Maximiano; MACHADO, Frederico Viana. Preconceitos contra
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homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008.


MAFRA, Paulo. O silêncio e o segredo do cabeça de cuia: violência contra gays, homofobia e
militância LGBT no Vale do Rio Guaribas. Curitiba: Appris, 2015.
MELLO, Luiz. Novas Famílias. Conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Garamond, 2005.

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IGUALDADE DE GÊNERO: DESAFIO IMPOSTO À SOCIEDADE DO SÉCULO XXI

Ricardo Wagner Amorim Tavares Filho586 | rwatf@hotmail.com


Josabete Bezerra Cacau587
Lia Machado Fiuza Fialho588

INTRODUÇÃO

O debate em torno de gênero na sociedade, ainda influenciada por dogmas patriarcais,


se concentra nas questões relacionadas com os papéis distintos e hierárquicos que são
reproduzidos nas relações sociais, os perpassam nas dimensões do mercado de trabalho, nas
estruturas sociais e no âmbito familiar. Não se admite mais a delimitação dos espaços sociais,
baseado exclusivamente no gênero, ou seja, não pode persistir atividades tidas como mais
“femininas” e que devem ser realizadas por mulheres e nem as consideradas “masculinas” de
apropriação dos homens.
Essa dicotomia feminino e masculino e a rígida divisão sexual do trabalho entre
mulheres e homens, tanto na esfera doméstica quanto na profissional tem sido, nos últimos
anos, objeto de grandes debates e o que resultou na maior inserção de mulheres em espaços
tradicionalmente masculinos e maior envolvimento de homens em tarefas domésticas.
Comparar homem e mulher no que se refere a relação de gênero não produz o sentimento de
desigualdade tão somente reafirma a necessidade de partilhar os ““dividendos patriarcais” que
os homens acumularam durante séculos de dominação.

586
Mestrando em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará.
Email:rwatf@hotmail.com
587
Mestrando em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará.
Email:josabetecacau@yahoo.com.br
588
Pós doutora em Educação pela Universidade Estadual da Paraíba. Email: lia_fialho@yahoo.com.br
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Entre os séculos XX e XXI a vida de milhões de mulheres no mundo mudou


significamente. Quando se compara dados estatísticos passados com os contemporâneos
percebe-se que as mulheres se escolarizam, no mercado de trabalho representam mais de 40%
da força de trabalho mundial, na política já ocupam cargos de envergadura. Em linhas gerais,
houve avanços positivos nas conquistas de direitos antes negados em virtude do determinismo
biológico baseado no sexo. Porém, esse progresso não tem acontecido facilmente, nem de
modo uniforme para todas as mulheres e nem tão pouco atingiu todas as dimensões de
igualdade de gênero.
Neste artigo, será abordada a igualdade de gênero frente ao desafio de sua efetividade
numa sociedade permeada de contradições, considerando a construção histórica de gênero
baseado da doutrina patriarcalista em relação aos papéis tradicionalmente desempenhados por
homens e mulheres na sociedade. E assim, também evidenciar as mudanças e os passos
necessários tendo em vista a superação da desigualdade de gênero nos diversos espaços
sociais.

A QUESTÃO DE GÊNERO: OS DILEMAS E IMPASSES DA DICOTOMIA HOMEM


E MULHER

Historicamente a sociedade estabeleceu papéis adversos ao homem e a mulher. O


homem como dominador e a mulher submissa a vontade deste. Desse modo, a relação homem
e mulher se desenvolveu sedimentada no domínio arbitrário dos espaços de poder com a
exclusão da mulher dos processos decisórios. Assim, se institui a dominação masculina e por
consequência a resistência feminina a fim de romper o modelo de sociedade pré-estabelecido.
O debate em torno da questão de gênero é o plano de fundo sobre o qual decorre as relações
sociais dos homens e das mulheres.
Os paradoxos existentes na construção do masculino e do feminino são assimilados
através de estereótipos de gênero consagrados pela cultura, valores e crenças os quais
constroem e reforçam uma relação desigual entre homens e mulheres. Para Santos (2003) os

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modelos de masculinidade e feminidade são modelados a partir de um conjunto de normas,


atitudes, crenças, estereótipos e comportamentos previamente estabelecidos e aceitos na
sociedade. Logo, tais modelos orientam o modo de vida das pessoas ao determinar direitos,
deveres, proibições e privilégios de acordo com o sexo a que pertence.
Esse foi o pensamento difundido por séculos entre filósofos, médicos e psicólogos os
quais defendiam que os aspectos físicos relacionados a cor da pele ou aos dos órgãos genitais
determinavam a influência os indivíduos. Nesse sentido, Scott (2005, p. 16 – 17) faz a
seguinte abordagem,

O anatomista Jacques-Louis Moreau ofereceu como seu o comentário de Rousseau


de que a localização dos órgãos genitais, “para dentro” nas mulheres e “para fora”
nos homens, determinava o alcance de sua influência: “a influência interna
continuamente reposiciona as mulheres no seu sexo” [...] o macho é macho somente
em certos momentos, mas a fêmea é fêmea por toda a sua vida. Os homens eram
indivíduos porque eram capazes de transcender o sexo; as mulheres não poderiam
deixar de ser mulheres e, assim, nunca poderiam alcançar o status de indivíduo.

Nesse contexto, Scott (1995) argumenta que o conceito de gênero opõe-se ao


determinismo biológico das relações entre os sexos, o qual repercute na relação desigual entre
homens e mulheres enquanto sujeitos sociais. Assim, Scott (1995, p. 5) afirma que “o gênero
enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminidade”. É
recorrente associar ao gênero as características biológicas aparentes de diferenciação sexual.
Em busca do rompimento desse paradigma surgiu os movimentos feministas. O termo
feminismo segundo Bender (2003, p.9) se refere a “um movimento social, político e filosófico
que objetiva igualdade de direito e uma vivência social humana liberta de padrões opressores
baseados em normas de gênero”. No Brasil, este movimento iniciou-se nas décadas de 1960 e
1970, cuja reivindicação concentrava-se na busca de igualdades jurídicas e sociais, o que
resultou na criação de diversos normativos de proteção à mulher.
Até então, atribuía-se ao conceito de gênero os papéis socais do homem e da mulher
baseado no determinismo biológico do sexo. O intento do feminismo era justamente rejeitar o
determinismo biológico trazendo novas abordagens e conceitos, com vistas a evidenciar as
diversas construções sociais da feminidade, mas também da masculinidade (FARIA et tal,
1997).
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O feminismo serve para questionar os papéis e os lugares hierarquizados para homens


e mulheres, onde um possui e o outro é expropriado de poder. O feminismo é para não aceitar
o poder que está distribuído de forma desigual entre os sexos. É para desnaturalizar as
injustiças tidas como normais (GEBARA, 2011).
Não se pode deixar de ressaltar que o feminismo obteve resultados significativos,
principalmente, ao conseguir modificar o conceito de gênero para negar a anatomia como
fator determinante da posição hierárquica e distinta de homens e mulheres na sociedade. Nas
palavras de Lamas (1996, p.13),

O feminismo desenvolveu o conceito de gênero como o conjunto de ideias em uma


cultura sobre o que é “próprio” dos homens e “próprio” das mulheres e, com isto, se
propôs a revisar como a determinação de gênero assegura a dicotomia na qual se
fundamenta a tradição intelectual ocidental. Esta tradição é, ademais, androcêntrica,
o que enviesa a produção de conhecimento e gera certos postulados que legitimam
mecanismos de dominação e exclusão.

Scott (1995) busca compreender a dimensão entre os polos homem/mulher focada nas
atribuições de comportamentos psicológicos e papéis sociais impostos a esses sujeitos, em
virtude de ideias dicotômicas implantadas pela própria cultura e linguagem social. Na visão
de Silva (2002, p. 105), “o conceito de gênero foi criado precisamente para enfatizar o fato
de que as identidades, a masculina e feminina, são historicamente e socialmente produzidas”.
Essa reprodução social que confronta homens e mulheres pode ser vista em diversos
setores da sociedade. Segundo dados do IBGE (2010) mesmo com maior escolaridade, as
mulheres têm rendimento médio inferior ao dos homens. As mulheres com 12 anos ou mais
de estudo recebiam, em média, 58% do rendimento dos homens com esse mesmo nível de
escolaridade. Certamente a explicação desses números apontam algumas das dificuldades
enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho, apesar de exercerem os mesmos
cargos/ocupações dos homens, as mulheres ainda não garantiam na sua totalidade o direito à
equiparação salarial.
Ainda em conformidade com os dados do IBGE (2010) as disparidades salariais
ocorrem em virtude das mulheres com escolaridade mais elevada ocuparem atividades,
pertencentes aos nichos tradicionais femininos, relacionadas ao serviço social, à saúde e à

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educação, que ainda são pouco valorizados no mercado de trabalho.


Para Fraser (2007) no âmbito do universo do trabalho verifica-se que o gênero é
avocado para fazer a divisão entre os melhores salários para os homens e os menores salários
para as mulheres, por consequência gera formas específicas de injustiça distributiva baseada
em gênero.
Estamos no século XXI, no entanto, resquícios da sociedade patriarcal permanece em
nossa sociedade, as mulheres além de se dedicarem a alguma atividade econômica extra-lar,
continuam como responsáveis pelas atividades domésticas e pelo cuidado com os filhos e
demais familiares, colocando-as numa situação de dupla jornada de trabalho. Enquanto, os
homens passam, em média, 9,5 horas semanais dedicados aos afazeres domésticos, as
mulheres ficam, em média, 22,0 horas semanais nesse tipo de atividade (IBGE, 2010).
De fato, é oneroso para a mulher conciliar vida profissional e vida familiar. É uma
fronteira invisível que delimita esses espaços, visto que a realidade contemporânea em que a
questão profissional se articula com a doméstica. No entanto, se faz necessário criar
oportunidades de igualdade nessas esferas - profissional e doméstica.
Nesse contexto, a questão de gênero versa sobre a compreensão das relações naturais
entre homens e mulheres, sobrepondo, à condição biológica do indivíduo que até meados do
século XX era elemento de referência para justificar a dominação masculina. Não se admite
mais na sociedade do século XXI ações de caráter discriminatórias baseado no gênero,
portanto, é permanente a necessidade de se criar políticas públicas capazes de estabelecer, no
mínimo, as mesmas condições de usufruto de direitos garantidos aos homens, para tanto há se
buscar a igualdade de gênero no Brasil.

DESAFIOS À IGUALDADE DE GÊNERO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O estabelecimento da igualdade de gênero está intrinsecamente relacionado com a


trajetória de lutas das mulheres para se fazerem valorizadas na sociedade. O marco desse
processo se deu com a organização das mulheres em movimentos sociais, objetivando
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mudanças em vários âmbitos da vida social como as hierarquias e representações simbólicas


centradas na visão subalterna sobre a condição da mulher na sociedade. Segundo Santos
(2001, p.21) “existe uma relação direta entre os movimentos sociais e as conjunturas
históricas nas quais eles emergem. A questão da equidade de gênero adquire cada vez maior
centralidade na sociedade atual”.
A condição da mulher do século XXI é diferente daquela do século passado. Aos
poucos elas se inseriram no mercado de trabalho, avançaram com as conquistas de direitos
civis e trabalhistas. No Brasil, por exemplo, durante séculos de dominação masculina, o mais
alto cargo de governança - Presidência da República - pela primeira vez na história é ocupada
por uma mulher. Será que efetivamente estabelecemos a igualdade de gênero no Brasil?. Não
é o que parece. Apesar de todas essas conquistas, a efetivação da igualdade de gênero na
realidade confronta-se com o processo histórico da dominação masculina e a luta feminina
para romper os paradigmas sexistas.
A violência contra as mulheres é resultado dos comportamentos arraigados pela
dominação masculina. Conforme (Saffioti, 2005 p. 79) “dada sua formação de macho, o homem
julga-se no direito de espancar sua mulher. Esta, educada que foi para submeter-se aos desejos
masculinos, toma este “destino” como natural”.
Embora se tenha criado a Lei Maria da Penha em 2006, importante instrumento jurídico de
combate à violência contra a mulher o quadro ainda é bastante preocupante. Ao analisar dados
estatísticos da Central de Atendimento à Mulher relevam que dos 100% dos atendimentos, 81,8%
dos registros trazem relatos de mulheres que sofreram violência doméstica e familiar no País
(IBGE, 2010). Esses números traduzem as dificuldades do Brasil em combater à violência de
gênero.
O cotidiano da mulher contemporânea é envolto por diversas formas de discriminação, no
mercado de trabalho tem dificuldade de inserção em setores com remuneração maior e quando
conseguem recebem menos que os homens. Além disso, O assédio sexual ainda é presente no
mundo do trabalho da mulher, resultado de uma cultura que coloca o homem em posição superior
à da mulher. Ainda, conforme dados estatísticos da Central de Atendimento à Mulher, 33,2% do
Registro de Atendimento da Central de Atendimento à Mulher reportam a situações de assédio
sexual no ambiente de trabalho (IBGE, 2010).

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Nesse contexto, a igualdade de gênero somente será possível a partir da superação das
desigualdades construídas ao longo dos tempos enraizadas na relação entre homens e mulheres,
portanto, o afastamento das desigualdades não é algo fácil. Nessa linha de raciocínio, expõe Scott
(1995, p.44),

Todas as palavras têm uma história, são distintos os símbolos, significados e


interpretações que se tem a respeito de determinados conceitos e relações.
Ignorar este caráter social e historicamente construído pode ser um grande
equívoco quando trabalhamos com conceito de gênero, cujo cerne é sair de
explicações das desigualdades fundamentadas sobre as físicas e biológicas,
afinando seu caráter, social, histórico e político.

No cerne dessas questões os desafios impostas a igualdade de gênero perpassa pela


própria superação de um sistema repleto de contradições em que reforça a existente das
desigualdades sociais e de gênero.
Assim, é um desafio de toda sociedade estruturar a igualdade entre homens e mulheres,
para alcançá-la é preciso identificar quais desafios devem ser superados, em todos os domínios da
sociedade, político, econômico, laboral, pessoal e familiar, de modo que, os papéis sociais desses
sujeitos estejam incondicionadas a subalternidade de nenhum dos gêneros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dicotomia homem e mulher privilegia o discurso das verdades hegemônicas em que


consolida a rigidez das relações masculino/feminino determinando seus papéis sociais. A
mulher responsável pelos afazeres domésticos, educação dos filhos, apta ao casamento e
dedicada ao marido. O homem “dono” do poder de escolha, da decisão sobre sua vida afetivo-
sexual e da visibilidade social no exercício das atividades profissionais. A construção desses
papéis baseados na valorização conforme o sexo dos indivíduos imperou durante séculos
como prescrições sociais através das quais se tentava regular a convivência.
Nesse contexto, os movimentos feministas travaram árduas lutas na intenção de alterar
essa realidade. Com isso, conseguiram maior liberdade de escolhas, novos espaços antes
jamais, se quer, imaginados que poderiam ser ocupados por mulheres. É notório os avanços
feministas em diversas áreas sociais, contudo, afirmar que a igualdade de gênero foi
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alcançada, é uma afirmação ilusória.


A agenda política feminista ainda é extensa e desafiante frente a complexa realidade
de desigualdade social que sediam as ralações entre homens e mulheres. É nesse cenário que
se evidencia a violação de direitos das mulheres com a desvalorização da força de trabalho,
pela condição de ser mulher recebem menos que o homem. Desdobram-se na dupla jornada de
trabalho, visto que além do exercício de atividade econômica fora do lar, dentre dele, é
responsável pelos afazeres domésticos e cuidados com a família e ainda é “objeto” de
diversos tipos de violência tais como a física, psicológica, sexual, patrimonial e moral no
próprio seio familiar.
Na conjuntura contemporânea, é patente que para se alcançar a igualdade de gênero na
sociedade do século XXI se faz necessário transpor vários obstáculos no âmbito político,
econômico e social. A exemplo, no Brasil percebe-se a atuação governamental na perspectiva
de gênero, ainda que traga a pontualidade paliativa em programas e projeto e políticas
públicas, as quais não conseguem se articular para implantar de fato ações com vistas à
transversalidade de gênero, ou seja, oportunizar que homens e mulheres exercem seus papéis
sociais, independente do sexo.

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trabalho. X Jornadas de Sociología. Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos
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MULHERES, TRABALHO E ASSIMETRIA DE PODER: O ASSÉDIO


MORAL E SEXUAL NO ESPAÇO PRODUTIVO

Fernanda Marques de Queiroz589 | fernandamarquesdequeiroz@gmail.com


Maria Ilidiana Diniz590
INTRODUÇÃO

O assédio sexual e moral contra mulheres na esfera do trabalho é uma das grandes
problemáticas que atingem mulheres de diferentes gerações, orientações afetivo-sexuais,
classes e raças/etnias, restringindo sua liberdade e autonomia se constituindo como violência
sexista. O presente artigo apresenta os resultados parciais da pesquisa - Mulheres, trabalho e
assimetria de poder: o assédio moral e sexual no espaço produtivo591, que objetiva analisar a
compreensão das comerciárias norte-rio-grandenses sobre o assédio sexual e moral na esfera
do trabalho e se tais violências se constituem como uma das expressões da precarização do
trabalho feminino na contemporaneidade.
O tema das violências contra as mulheres no âmbito do trabalho, em especial o assédio
sexual e moral, mesmo sendo uma questão tão presente e relevante no cotidiano das
trabalhadoras brasileiras, raramente é foco de discussão, seja na teoria e/ou em pesquisas
acadêmicas, nos processos de negociações coletivas ou mesmo na elaboração de leis e
regulamentos. Ao explorar esta questão nos deparamos com uma realidade na qual prevalece
uma espécie de invólucro que escamoteia uma realidade cada vez mais presente nas relações
de trabalho.
Nesse sentido, a indagação sobre porque é importante trazermos para o debate o
assédio sexual e moral praticados na esfera do trabalho ganha mais sentido. Em primeiro

589
Doutora em Serviço Social. Professora Adjunta IV da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas das Relações Sociais de Gênero e
Feminismo - GEF/UERN. Pós-doutora em Sociologia no Centre d´Enseignement, de Documentation et de
Recherches pour les Études Féministes – CEDREF - Université Paris VII. E-mail:
fernandamarquesdequeiroz@gmail.com
590
Doutora em Serviço Social (UERJ), bolsista PNPD no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas das Relações
Sociais de Gênero e Feminismo (GEF). E-mail: ilidianadiniz@gmail.com
591
Aprovada no Edital Universal nº14/2013 do CNPq.
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lugar, trata-se de uma forma de violência sexista que expõe as vítimas a vários tipos de
sofrimentos, sejam de ordem física, psicológica ou moral, se constituindo, portanto, num
grave problema de saúde pública, além de se configurar como uma expressão contemporânea
da questão social592.
Reafirmamos, portanto, a necessidade dessa problemática ser mais debatida tanto no
âmbito público, quanto no universo acadêmico, para que os sujeitos que cotidianamente
sofrem esse tipo de violência tenham subsídios para identificá-lo e para de algum modo
desenvolver estratégias de resistência, mesmo entendendo as dificuldades advindas do
estabelecimento de padrões de produção, marcados pela flexibilização e eliminação dos
direitos trabalhistas que tem sistematicamente ampliado e complexificado as relações de
trabalho, especialmente a feminina.
Até o presente momento, realizamos pesquisa bibliográfica e de campo por intermédio
de entrevistas semiestruturadas593 com 17 mulheres594 que trabalhavam no comércio nas
cidades de Natal595, Mossoró596 e Pau dos Ferros.597

592
Questão social apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura,
que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente
social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade
(IAMAMOTO, 1999, p.27).
593
Consideramos que este instrumento tornou-se mais viável para o desenvolvimento de nossa pesquisa na
medida em que permitiu um maior grau de liberdade e criatividade para as informantes, essencial, portanto, para
os estudos de cunho qualitativo.
594
Para resguardar a identidade das entrevistadas optamos por nomeá-las como ervas e plantas da flora
nordestina.

595
Capital do estado do Rio Grande do Norte. Vigésima cidade mais populosa do país, detendo em 2010 uma
população de 803.311 habitantes, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE).

596
Segunda cidade mais populosa do estado do Rio Grande do Norte, distando 285 quilômetros da capital Natal.
Localiza-se às margens do rio Apodi-Mossoró, na região oeste do estado e na microrregião homônima. Principal
município da Costa Branca Potiguar. Segundo Censo do IBGE-2010, possui uma população de 259.886 mil
habitantes.

597
Principal cidade alto oeste potiguar. Possui 30 mil habitantes, segundo o último Censo do IBGE, é
responsável pelo principal comércio da região, bem como pelo setor bancário que abarca as demandas de
inúmeras cidades circunvizinhas.

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O TRABALHO FEMININO NO CONTEXTO DA MUNDIALIZAÇÃO NEOLIBERAL

A revolução tecnológica, a mundialização da economia e a reestruturação produtiva


provocaram profundas mudanças nas formas de trabalho, trazendo como consequência a
desestruturação, o aumento do desemprego e acentuando a desigualdade entre ricos e pobres.
Neste contexto, crescem a precarização do trabalho, por intermédio das terceirizações da mão
de obra, de empregos mal pagos, instáveis e de baixa qualificação, além do forte aumento do
trabalho informal. Tais tendências do mercado de trabalho contribuem significativamente para
o empobrecimento da população urbana na América Latina e no Brasil (NEVES e COSTA,
2008).
Estas condições se agravam quando se trata das mulheres que se inserem no mundo do
trabalho598. Segundo pesquisas de Bandeira e Melo (2005), a pobreza não é assexuada. O
conceito de feminização da pobreza tem como objetivo demonstrar o estado de privação
causado por questões relacionadas às desigualdades de gênero. As diversas abordagens
partilham do argumento de que as mulheres estão em maior número entre os pobres. Essa
constatação demonstra a importância de criar mecanismos capazes de dar visibilidade a essa
problemática.
Compreendemos que assédio sexual e moral contra mulheres na esfera do trabalho se
constituem em mais uma expressão da precarização do trabalho considerado feminino ou
como nomeia (FALQUET, 2012) do “trabalho desvalorizado”599, resultado da conjunção do
aumento do trabalho em tempo parcial, com o aumento de postos de trabalho desvalorizados,
principalmente para as mulheres, pobres, negras e imigrantes. De acordo com esta autora o
travail dévalorisé é traduzido como o “trabalho considerado como feminino” sendo uma das
tendências que se desenvolve com a globalização neoliberal, desempenhado majoritariamente
por mulheres, inclusive brancas, bem como, por pessoas “racializadas” e proletarizadas,
incluindo os homens.
Neste sentido, partimos do pressuposto de que os estudos que centram suas análises

598
No Brasil, as mulheres recebem, em média, apenas 30% do salário pago aos homens e, no mundo,
representam 70% dos pobres e 2/3 dos analfabetos. Não é à toa que a pobreza é substantivo feminino (Censo do
IBGE 2010).
599
Tradução do original em francês: “Travail dévalorisé”
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nas relações patriarcais de gênero e na divisão sexual do trabalho nos auxiliam na


compreensão das regras institucionais ou socialmente estabelecidas, as quais proporcionam
acessos desiguais ao poder e aos recursos por parte das mulheres na esfera do trabalho.
A história das mulheres no mundo do trabalho remete às relações de opressão e
discriminação que as coloca na condição de desigualdade em todas as esferas da vida social,
sendo que nos deteremos à esfera do trabalho. Essa realidade tem sido constatada mediante
investigações que desvendam como homens e mulheres se inserem no mercado formal de
trabalho. Acrescente-se a isso a segmentação deste mercado por gênero, que muito interessa
ao capital no sentido da preservação do seu sistema de dominação se apropriando das relações
desiguais de gênero para intensificar a exploração das mulheres no espaço produtivo e
reprodutivo.
É importante ressaltar que apesar dos avanços alcançados pelas mulheres, ainda
permanecem algumas disparidades, principalmente no que se refere à dialética produção-
reprodução como elementos definidores do lugar que as mulheres ocupam na sociedade.
Dentre as intensificações dessas desigualdades, encontra-se a política neoliberal600 que
repercute de modo diferenciado entre os indivíduos do gênero masculino e feminino no
mercado de trabalho. Tal repercussão não se esgota na composição de conteúdos
diferenciados das atividades de trabalho, mas, manifesta-se, sobretudo, na constituição de
relações assimétricas, na condição de hierarquia, da qualificação, da carreira e do salário, e
acrescentamos, da violência (HUMPHREY, 1984, apud LOBO, 2011).
Tais aspectos caracterizaram-se mais efetivamente a partir das formas de
reorganização da produção introduzidos nas empresas desde os anos de 1980, na passagem do
modelo taylorista/fordista para os novos modelos produtivos.

[...] com preeminência de critérios de qualidade dos processos e dos produtos;

600
O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-
estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais
no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livre mercados
e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada essas práticas; o
Estado tem que garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as
estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedades
individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados (HARVEY,
2008, p.12).
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introdução de novas tecnologias de base microeletrônica; uma organização produtiva


com a preocupação de aperfeiçoar a gestão dos fluxos, com divisão menos acentuada
do trabalho, integração mais pronunciada de funções, maior impulso para a
formação e reprofissionalização da mão-de-obra direta (formação continuada que
continua envolvendo mais os trabalhadores do sexo masculino que os do sexo
feminino)[...] (HIRATA, 2002, p. 342).

As desigualdades entre mulheres e homens manifestam-se de diversas formas,


potencializando um complexo sistema de interações que provocam o acúmulo de
desvantagens femininas direcionando-as às mais objetivas condições de pobreza, privação,
violências, dentre outras e mantendo-as em círculos de precariedade601, muitas vezes de difícil
ruptura.
Nesse sentido, ao analisar o emprego feminino, nos remetemos imediatamente à
divisão sexual do trabalho como uma nova divisão internacional do trabalho. A divisão sexual
do trabalho possui dois princípios norteadores, a saber: o da separação, ao estabelecer
trabalhos de homens e outros de mulheres e o da hierarquização, visto ser o trabalho
masculino mais valorizado do que o trabalho feminino.
Embora a natureza da divisão sexual do trabalho tenha variado ao longo da história, as
atividades “ditas femininas” estão quase sempre ligadas à esfera reprodutiva, sendo atividades
associadas ao espaço privado, à produção de valores de uso para o consumo da própria
família. Já o que é reservado ao público, ou seja, as tarefas destinadas à produção social ainda
são tidas como atribuições masculinas.
Segundo Faria (2005) as mulheres concentram-se nos setores da produção
internacionalizados, a exemplo do setor agrícola nos países produtores de fruticultura e outros
produtos, como por exemplo, na Bolívia a castanha, na Colômbia, as flores e, em outros
países, o pescado. Esse tipo de emprego vem reforçar o estatuto já precário e subvalorizado
dessas ocupações, geralmente associadas à força de trabalho feminino. Tais condições trazem
consequências negativas para as condições de trabalho, de saúde, de salários, caracterizada

601
Entende-se por “precarização social” um processo de institucionalização da instabilidade, caracterizada pelo
crescimento de diferentes formas de precariedade e exclusão. Este processo multidimensional corresponde, se
apoia na flexibilidade. Esta é considerada, muito frequentemente, uma tendência inevitável das reestruturações
contemporâneas para fazer face às novas regras da concorrência internacional (APPAY e THÉBAUD-MONY,
2009).
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pela nova reconfiguração do mundo do trabalho602.


Ademais, a divisão sexual do trabalho se apresenta tanto no espaço produtivo como
no reprodutivo com implicações diretas de opressão/exploração no interior das relações
patriarcais. Como afirma Kergoat: “[...] a exploração, tradução bem conhecida da relação
antagônica capital/trabalho se exerceria mais fortemente (e não diferentemente) sobre as
mulheres” (apud HIRATA, 2002, p. 89).
Desse modo, apreender analiticamente a divisão sexual do trabalho é fundamental para
desvelar o processo de acumulação capitalista e, ao mesmo tempo, compreender a exploração
das mulheres nesta sociedade. Ou como defende Lobo (2011) é preciso “desomogeineizar” a
classe trabalhadora, identificando que ela tem “dois sexos”.
Acrescente a essas problemáticas as situações vexatórias que podem ocorrer contra as
mulheres no âmbito do processo produtivo, especialmente o assédio sexual e o assédio moral.
Há um aspecto extremamente relevante para a manutenção da assimetria que persiste
entre o trabalho feminino e o masculino e que, a nosso ver, tem refreado as mobilizações
contra o capital e, mais especificamente ao modo como o mesmo explora o trabalho feminino
no mundo. Kergoat (2010) muito bem observou que: é o “sentir-se igual” que tem permeado a
compreensão de muitas mulheres trabalhadoras, especialmente das mais jovens.
Tal movimento produz, a nosso ver, por um lado, uma naturalização das desigualdades
incessantemente alimentada pela ideologia neoliberal nas suas macro e microestruturas,
fazendo com que se distancie cada vez mais da articulação de um projeto societário
alternativo ao do capital, cada vez mais complexo, levando em consideração as
especificidades contemporâneas, “onde existe uma internacionalização ainda mais
aprofundada da reprodução social e da re-privatização do patriarcado603” (FALQUET, 2010,
p.172) [Tradução nossa].
Por outro lado, esse paradoxo que supõe uma igualdade real entre os sexos defendido

602
De acordo com a segunda parte de um relatório conjunto apresentado pela FAO, OIT e CEPAL, atualmente,
as mulheres representam 20% da força laboral agrícola na América Latina e no Caribe e desempenham uma
função chave na segurança alimentar, mas não têm igualdade de acesso aos recursos e sofrem discriminação no
mercado de trabalho, tanto em termos de seus salários como em condições de trabalho”, assinalou o
representante regional da FAO, Raúl Benitez. O referido estudo foi iniciado em 2010, abarcou 12 países, dentre
eles: Argentina, Bolívia, Guatemala, Honduras, México, Paraguai e Uruguai (OIT, 2012).
603
Où il est encore un autre internationalisation de la reproduction sociale et re-privatisation du patriarcat
[tradução nossa].
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por muitos (as), para nós, é uma barreira cada vez mais espinhosa cravada na agenda de luta
dos movimentos feministas que se veem paulatinamente tendo que enfrentar os desmandos do
capital em todas as suas especificidades e particularmente para a luta das mulheres, por
igualdade e superação da exploração, opressão e violência. Por outro lado, trata-se também de
uma luta de convencimento dos próprios sujeitos mulheres de que ainda temos um longo e
tortuoso caminho a enfrentar em busca de direitos igualitários entre homens e mulheres.
Não nos enganemos que esse paradoxo é fruto de uma política orquestrada pelo Estado
burguês que tenta institucionalizar as lutas políticas vestindo-se, apenas quando lhe convêm,
como (no caso das lutas LGBT), de arco-íris respeitando a diversidade, e para as mulheres, de
uma capa lilás denotando preocupação com a igualdade, e a dos (as) negros (as), de uma
túnica “miscigenada” antirracista. Todavia, isso não representa avanços, do ponto de vista da
luta concreta contra a homofobia, a desigualdade de gênero e o racismo. Os sujeitos
discriminados estão cotidianamente expostos na esfera pública, onde muitos (as) são
insultados (as), agredidos (as) e até assassinados (as). Nesse sentido, observa-se o lado
sombrio da privatização das vidas, ou seja, de sua despolitização.
Portanto, em relação ao trabalho feminino, tais desigualdades se apresentam e negam a
possibilidade do mesmo se configurar como forma de “emancipação”604, visto que as mesmas
estão em espaços precarizados e com baixos rendimentos.
No que se refere ao trabalho no comércio, lócus de nossa pesquisa, estudo divulgado
pelo Dieese (2010) sobre o perfil da trabalhadora brasileira no comércio em seis regiões
metropolitanas do país feito a partir do resultado das pesquisas mensais de emprego realizadas
ao longo do ano de 2009, revelou que a maior parte das mulheres assalariadas tinham idade
entre 25 e 39 anos e correspondiam a 45,1% das trabalhadoras em São Paulo (SP) e a 52,6%
em Salvador (BA). As comerciárias exerciam jornadas de trabalho inferiores à dos homens,
embora ambos trabalhem excessivamente, ultrapassando a jornada legal de 44 horas.
Quando comparado o rendimento/hora de homens e mulheres no comércio, a mulher,
em 4 (quatro) das 6 (seis) regiões pesquisadas, ganhava menos do que os homens. A

604
Utilizamos aspas em emancipação porque não acreditamos que seja somente a partir do trabalho assalariado
que as mulheres conseguirão sua independência econômica e, a partir dela, sua liberdade. Há outros
determinantes que incidem para que isso ocorra. O sentido de emancipação aqui empreendido é unicamente
como demarcador de poder de compra do dinheiro, inalcançável para a maioria das mulheres trabalhadoras.
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equiparação dos salários ocorreu apenas em regiões onde os rendimentos em geral eram muito
baixos, como Recife (PE) e Fortaleza (CE).
A maior empregabilidade das mulheres no comércio pode ser atribuída aos
estereótipos culturalmente atribuídos às mesmas como: sensibilidade, resignação e cuidado no
trato com os/as clientes, principalmente no comércio varejista, onde ocorre um contato mais
direto entre cliente e funcionário (a).
Esse conjunto de habilidades culturalmente associadas à feminilidade é explorado pelo
mercado e pode ser percebido na forma de vestir, de arrumar os cabelos, de usar a
maquiagem, dentre outros marcadores estéticos femininos que compõe uma espécie de
círculos de “sedução”.
Especificamente no estado do Rio Grande do Norte, nos últimos anos, as mulheres têm
ocupado maciçamente o mercado de trabalho, no árduo desbravar da travessia no qual aqui a
analogia é quase literal com o poema “o lar do passarinho é o ar não é o ninho”605. Entretanto,
não nos encontramos numa ilha e lá, como em inúmeros outros lugares, a condição das
mulheres trabalhadoras foi atravessada pelas diversas etapas do capitalismo e chegou à era da
“globalização” e da produção flexível ainda mediada pela tríplice imputação de cuidar da
família, da reprodução da força de trabalho e da continuidade da produção social (como
assalariada ou não).
Em 2010 o DIEESE e o Estado do Rio Grande do Norte, através da Secretaria de
Estado do Trabalho, da Habitação e da Assistência Social- SETHAS realizaram uma pesquisa
onde expuseram um panorama anual sobre as características gerais da população no âmbito da
educação, do trabalho, do rendimento e da habitação. As fontes de dados utilizadas para a
realização da referida pesquisa foram a Relação Anual de Informações Sociais
(RAIS/MTE)606 e a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD/IBGE-2010).
Os anos utilizados em ambas as bases foram os de 2001, 2005 e 2009, buscando-se

605
Poema travessia de Bráulio Tavares, do livro “As baladas de Trupizupe” 1980.
606
A RAIS/MTE é um registro administrativo, de periodicidade também anual e declaração obrigatória para
todos os estabelecimentos (inclusive aqueles sem ocorrência de vínculos empregatícios no exercício), criado com
a finalidade de suprir as necessidades de controle, de estatísticas e de informações das entidades governamentais
da área social. Constitui um instrumento imprescindível para o cumprimento das normas legais, como também é
de fundamental importância para o acompanhamento e a caracterização do mercado de trabalho formal (Notas
Técnicas da RAIS, MTE).
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retratar a evolução da inserção das mulheres no mercado de trabalho ao longo dos anos 2000.
Em algumas análises, não foi possível utilizar os três anos, dadas as diferenças metodológicas
existentes. Tal estudo objetivou caracterizar a situação da mulher no mercado de trabalho no
Rio Grande do Norte. O intuito foi explicitar os principais indicadores da inserção feminina
no mercado de trabalho, a taxa de participação, a taxa de ocupação, a taxa de desocupação, a
posição da ocupação, os rendimentos, a escolaridade e sua posição na família, entre outros
aspectos (SETHAS/DIEESE, 2010)607.
Os primeiros dados desenvolvidos pelo estudo mostraram o comportamento da taxa de
participação (População Economicamente Ativa/População em Idade Ativa -PEA/PIA) que é
um indicador que reflete a parcela da população com 10 anos608 ou mais de idade que está
trabalhando ou procurando emprego mostrando o potencial da força de trabalho no mercado
local. Analisando a taxa de participação por sexo no Rio Grande do Norte (PEA/PIA), nos
anos de 2001, 2005 e 2009, verificou-se uma expansão tanto do contingente masculino quanto
do feminino no período.
No que se refere ao rendimento médio mensal do trabalho das pessoas ocupadas do
Rio Grande do Norte, nos anos de 2001, 2005 e 2009, os dados apontaram uma sutil elevação
comum a ambos os sexos. O que permaneceu inalterada, entretanto, é a diferença média do
rendimento pago às mulheres comparado ao dos homens que, nos anos entre 2001 e 2009,
corresponderam a 72,3% e 72,2%, respectivamente.
A diferença salarial entre homens e mulheres ainda é um fator preponderante no
mercado de trabalho, mesmo tendo estas maior nível educacional, e ou desempenho
semelhante. Atualmente, no estado do RN, 93,5% das mulheres ganham até um salário
mínimo, segundo os dados da PNAD de 2009. Em 2001, esse percentual era de 81,2% e as
que produziam para o consumo próprio representavam 9,8%. Entre 2001 e 2009, houve um
607
As fontes de dados utilizadas para a realização da pesquisa foram o documento da Relação Anual de
Informações Sociais (RAIS/MTE) e a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD/IBGE).
608
Ao nos deparar com esses gráficos um dado nos chamou bastante atenção, os cálculos dos institutos de
pesquisa ainda têm como base de idade da população ocupada ou que procura trabalho 10 anos. Confesso que
demoramos um pouco para compreender esse conceito, uma vez que, segundo o Estatuto da Criança e do
Adolescente em seu artigo 244-A o trabalho infantil é crime. E pelo que sabemos tais pessoas corresponde à
População em Idade Economicamente Não-Ativa (PINA). Entretanto, apesar de controversa a justificativa
adotada pelo IBGE para o cálculo da PEA, a partir de 10 anos de idade é que apesar da proibição legal, o
trabalho infantil é uma prática ainda explorada.

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ligeiro acréscimo ficando em torno de 10,0%.


Todas as estatísticas registraram o crescimento e a consolidação da escolaridade
feminina nos últimos anos e como ela tem se manifestado nos diversos setores da atividade
econômica. Segundo dados do IBGE (2012).
No ano de 2003, as mulheres no comércio com 11 anos ou mais de estudos ocupadas
nessa atividade totalizavam 51,5%, enquanto os homens com características semelhantes
alcançavam 38,4%. Na construção, esses percentuais apresentaram-se ainda mais expressivos:
55,4% de mulheres e 15,8% de homens. Em 2011, os percentuais de participação alcançados
pelas mulheres foram superiores aos dos homens em praticamente todos os grupamentos de
atividades.
O setor de comércio se manteve em segundo lugar no quadro de ocupações femininas
no Estado, o que teve uma leve variação foi a diferença salarial em relação aos homens
(caindo de 15,9% para 13,6%). Entretanto, esse percentual aparece isolado da realidade
concreta estampada nos dados da PNAD que apontam no mapa brasileiro o longo caminho a
ser trilhado na busca da superação da desproporcionalidade salarial entre os gêneros.
Aqui se materializa a perspectiva de Kergoat (2010), do paradoxo, a participação da
mulher no mercado de trabalho aumenta, mas permanece de forma segmentada, horizontal e
vertical, cindida entre emprego masculinos e femininos, assim como a persistência das
desigualdades de salário e a responsabilização das mulheres pelo trabalho doméstico. No
entanto, acrescenta Kergoat, isso não representa nenhuma sobreposição ou contradição interna
nas relações sociais de sexo: apenas evidencia as necessidades capitalistas de uma força de
trabalho flexível, que compila cada vez mais sua subjetividade, “o trabalho doméstico
assumido pelas mulheres libera os homens e, para as mulheres de alta renda, há a
possibilidade de externalização do trabalho doméstico para outras mulheres” (KERGOAT,
2010, p.94).

O ASSÉDIO MORAL E SEXUAL CONTRA MULHERES COMO VIOLÊNCIA


SEXISTA

As análises que tratam das relações de gênero presentes no debate, comumente


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apresentam divergências teóricas, principalmente no que se refere ao assédio moral. Por um


lado, alguns (as) autores (as) trazem estatísticas dos países de origem anglo-saxônica e
apontam variantes insignificantes em relação ao sexo. Contudo, para Hirigoyen (2010), é
necessário pensar tais percentuais a partir do contexto sociocultural em que se inserem.
Ademais, tais países têm mecanismos mais eficientes para assegurar a igualdade entre os
gêneros no mercado de trabalho. No caso de países como Itália, Espanha e também
na América Latina a autora considera que prevalece o machismo, e nesse caso, o gênero
aparece como um dos determinantes do assédio moral no trabalho. “[...] muitos homens
consideram que cada mulher que trabalha é culpada por um desempregado entre os homens”
(HIRIGOYEN, 2010, p.99). Lembra-nos a referida autora que:

As mulheres não somente são mais frequentemente vítimas, como também são
assediadas de forma diferente dos homens: as conotações machistas e sexistas estão
muitas vezes presentes. O assédio sexual não é mais do que a evolução do assédio
moral. Nos dois casos, trata-se de humilhar o outro e considera-lo um objeto à
disposição. Para humilhar, visa-se o íntimo. O que há de mais íntimo que o sexo?
[...] (p.99-100).

Mesmo compreendendo que o assédio sexual e o assédio moral estão


interrelacionados, haja vista, que o primeiro, todavia pode ser compreendido como uma
“modalidade do segundo”, na medida em que se dá nos espaços de trabalho, pretende induzir
os indivíduos na submissão a outros indivíduos hierarquicamente superiores, neste caso
especifico uma submissão que viola os limites socialmente estabelecidos da
intimidade/sexualidade.
Entretanto, nossa compreensão diverge das perspectivas que classificam o assédio
sexual como extensão ou um subtipo do assédio moral, como defendem alguns (as) autores
(as) a exemplo de Hirigoyen (2010) e Figueiredo (2012). Primeiro, porque acreditamos que
essa interpretação reforça a invisibilidade do assédio sexual, somado ao fato de que existem
poucos estudos que versam sobre esta problemática, colocando-a num invólucro de relações
que reforçam estereótipos historicamente atribuídos às mulheres, já que predominantemente o
mesmo ocorre contra o gênero feminino, se imiscuindo no campo da sexualidade permeada
por tabus e preconceitos, tendo em vista a alta incidência do assédio moral entre os homens,
diferenciando-se substantivamente do assédio sexual, o qual têm as mulheres como vítimas
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preferenciais.

Segundo, porque é preciso guardar as especificidades, que a nosso ver, são dimensões
que os tornam distintos e com especificidades bastante peculiares.
No assédio sexual, geralmente ocorre uma relação de troca, “isso por aquilo”, visto que o (a)
assediador (a) comumente oferece algo que tanto pode ser a manutenção do emprego, uma
promoção ou mesmo a manifestação de superioridade do “caçador” sobre sua “caça”.
Portanto, as diferenças são significativas, já que no assédio moral as vítimas são “escolhidas”
com o intuito de afastamento, disputa, desestabilização, dentre outros objetivos que fazem
com que os (as) mesmos (as) convivam num ambiente de hostilidade e acabem por pedir
demissão. Ou seja, este trabalho, de certa forma diverge dos estudos sobre assédio moral e o
assédio sexual. Neste sentido, compreendemos que as características de ambos os afastam
mais do que os aproximam, principalmente se levarmos em conta a intencionalidade de cada
um deles.
Concordamos com as perspectivas que assinalam que o assédio sexual pode se
transformar em assédio moral. Todavia, o inverso seria incoerente, visto que, as
características presentes nos atos de assédio moral já criariam uma resistência por si só entre
assediado (a) e assediador (a).
Os pontos de convergência entre assédio moral e sexual se dão pela incidência da
violência psicológica e pela dimensão de poder que perpassam ambos. Acrescenta-se a isto o
fato de que as próprias mulheres têm dificuldade de identificar de que forma se manifesta o
assédio sexual e como este se caracteriza.
É salutar ressaltar que mesmo que a tônica da discussão do assédio seja a hierarquia
não se pode esquecer/negligenciar a dimensão de gênero dada a incidência dos assédios serem
muito maior entre as mulheres trabalhadoras, o que vem justificar o aprofundamento das
análises acerca da violência sexista no mundo do trabalho levando em consideração as
assimetrias entre os gêneros aprofundadas pela desigualdade e precarização do trabalho
feminino na sociedade capitalista.
É fundamental compreendermos o assédio moral como o assédio sexual a partir das
relações patriarcais de gênero, pois a partir disso alguns equívocos poderão ser revistos, a

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exemplo da legislação brasileira que caracteriza o assédio sexual, como tendo natureza
vertical descendente, ou seja, que sempre ocorrerá de um (a) superior (a) em relação a um (a)
subordinado (a). Essa minimização invisibiliza a dimensão das desigualdades de gênero
presentes nas relações de trabalho entre funcionários/as de mesmo nível hierárquico, pois essa
é uma relação de poder bastante acionada nesses espaços, se fazendo presente também nas
relações horizontais, sendo que a hierarquia presente que respalda, mormente o assediador é
sua condição de “macho”.
Quando se trata de assédio sexual as justificativas dessa visibilidade não se
estabelecem somente pela questão de identidade de gênero que nos impõe a vivência de
relações de poder e hierarquia dos homens sobre nós mulheres, mas também pela maior
incidência de ocorrências desta violência, já que alguns dados não oficiais apontam que em
mais de 90% dos casos são os homens que assediam as mulheres (CALIL, 1999).
O assédio sexual e o assédio moral no âmbito do trabalho caracterizam-se pela
exposição dos(as) trabalhadores(as) a situações humilhantes e constrangedoras e prolongadas
durante a jornada de trabalho relativa ao exercício de suas funções, tendo, por sua vez, as
mulheres como as mais vitimizadas609, de modo que, tais aspectos intensificam a divisão
sexual do trabalho e trazem sérios comprometimentos para a liberdade desses sujeitos.
Variando a intensidade, a época, os países, as formas de organização do trabalho e os
tipos de profissão, essas práticas há muito acompanham os (as) trabalhadores (as). Entretanto,
as novas configurações no mundo do trabalho, que repercutem na forma de administrar, são a
nosso ver, mediações capazes de explicar a intensificação da violência no mundo do trabalho,
se apresentando, por vezes, de forma sutil com nova roupagem e novas conformações no
contexto neoliberal das sociedades contemporâneas.
No Brasil esta problemática é muito comum, embora, a maioria das vítimas não
denuncie o fato às autoridades. As causas das não denúncias são as mais diversas. Na maioria

609
Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) referente ao ano de 2006 estimam que, no Brasil,
52% das mulheres economicamente ativas já foram assediadas sexualmente. Em pesquisa realizada em 2001 pela
Fundação Perseu Abramo que abrangeu 2.502 entrevistas estratificadas em cotas de idade e em áreas urbana e
rural, distribuídas geograficamente em 187 municípios de 24 estados das cinco regiões do país, abordou as
situações de violência vivenciadas pelas mulheres, constatou que cerca de 11% das mulheres afirmaram que já
tinham sofrido assédio sexual, sendo 10% dos quais envolvendo abuso de poder tipificado como assédio sexual
em ambientes de trabalho.

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das vezes, as vítimas não denunciam por temor de perder o emprego já que dependem dele
para sobreviver; medo de sofrerem retaliação por parte do empregador acusado; medo de
serem rebaixadas; de serem transferidas; não querem se expor ao ridículo frente aos (as)
colegas, familiares e amigos (as); medo de perderem a carta de referência; por simples
dificuldade de falar; e por acreditar que não há recursos para tratar de maneira eficaz o
problema.
Compreendemos que o termo assédio, seja moral ou sexual ainda demanda uma maior
difusão na sociedade em geral e entre os (as) trabalhadores (as) em particular, e por entender
que ambas são expressões latentes da violência sexista, indagamos às interlocutoras o que elas
identificavam como violência no âmbito do trabalho.
Esse nos pareceu um elemento indispensável para entender os limites da compreensão
das mesmas em termos terminológicos e de acepção da violência mais generalizada e o
assédio moral e o assédio sexual mais especificamente.
Indagada sobre o que ela caracterizaria como violência no trabalho, uma das
interlocutoras apontou:
O abuso do patrão, essa semana, ficamos bem chateadas. Teve um garçom que tem
mais experiência na pizzaria. Ele pegou, entrou uma novata lá que não tinha
experiência com o trabalho. Aí ficou puxando a novata e gritando ela na frente dos
clientes. Não era melhor ele chamar ela num canto e conversar? Eu acho que é tanto
abuso da parte dos patrões como da parte dos funcionários homens também. Gritar
os funcionários na frente dos clientes é um abuso e isso lá tem direto, errou alguma
coisa, os gritos são na frente de quem tiver (CATINGUEIRA).

Para a mesma interlocutora foi indagada a questão de sua compreensão sobre assédio
moral e assédio sexual.
Assédio moral é tipo dar em cima, não? Usar o poder que a pessoa tem, pra ficar
com outras pessoas, no caso do meu patrão é o que ele usa.

E o assédio sexual? É dar em cima, conseguir e depois ficar se pabulando610, na


maioria das vezes acontece isso.

A gente sempre escuta, principalmente em televisão, mas, a partir do momento que


eu trabalhava eu percebia que tinha ali muita violência. É uma violação. Me corrija
se eu estiver errada, mas é uma violação aos direitos do ser humano, é uma violação
que vem desde o preconceito. Eu entendo mais como essa questão que traz a
humilhação, o constrangimento, que traz essa violência que nem é entendida por

7 Pabular é o mesmo que contar vantagem, se vangloriar de um determinado feito.

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muitos, mesmo que a pessoa perceba que está sendo humilhada, ela naturaliza e vai
levando, e isso reforça muito a eles, aos donos, por que uma das frases que era
comum lá era, “ah, se você não quiser, tem várias na fila” (FAVELA).

Há pelo menos dois aspectos importantes nessa fala. O primeiro vem reiterar o que
defendemos como limites a serem transpostos: a definição de violência feita pela mesma nada
mais é do que expressões de assédio moral. Entretanto, a violência toma uma conotação de
“um mal necessário”, mesmo que detestável. Enquanto os assédios, mesmo sem uma
compreensão que os distinga, aparecem como algo mais alheio ao trabalho.
Compreendemos que a não incorporação do termo se dá por tratar-se de uma
terminologia ainda recente do ponto de vista histórico, contudo, isto não significa que as
mesmas não identifiquem expressões de violência muitas vezes por elas vivenciadas. Porém, a
naturalização dessas violências é algo preocupante.
Acreditamos que a partir da realização de campanhas educativas que incorporem uma
definição mais objetiva e didática, tanto sobre assédio moral quanto do assédio sexual,
possibilite uma maior apropriação destes conceitos pelas mulheres e, a partir daí, seja possível
uma resistência mais incisiva, no sentido da prevenção e combate a esse tipo de violação de
direitos.
Sabemos que tal tarefa demanda uma articulação política dos sindicatos que nesse
momento histórico passam por refluxos tão complexos quanto ao próprio reconhecimento de
representatividade, especialmente pelas interlocutoras dessa pesquisa. Assim como pelo
próprio movimento feminista, que tem se posicionado ainda de modo tímido frente à questão
do assédio sexual e assédio moral contra as mulheres no espaço de trabalho. O que se observa
de mais concreto é a uma busca pela visibilidade, voltada de fora para dentro, ou seja, com
debates centrados no assédio sexual e moral nos espaços público como uma violação dos
direitos da mulher, norteados por uma discussão jurídico-legal acerca da isonomia no
trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A dificuldade de acesso à informação, a priori, se configura como um dos limites para


que as trabalhadoras reconheçam a problemática do assedio sexual e do assédio moral. Isto a
nosso ver se constitui num empecilho para com a terminologia relativamente nova, ainda
difícil de ser compreendida. Soma-se a isto a falta uma política de conscientização promovida
pelo poder e público e pelas empresas, para que esses atos, aparentemente inofensivos,
possam ser identificados e, consequentemente, punidos.
É imprescindível e urgente que os (as) trabalhadores (as) se utilizem dessa importante
ferramenta que é a informação, para todos os aspectos que perpassam o trabalho. No caso
específico do assédio sexual e do assédio moral, identificá-lo significa a primeira forma de
resistência, pois é a partir daí que o (a) trabalhador (a) poderá recolher provas capazes de se
contrapor ao (a) assediador (a) ou acionar a justiça do trabalho a fim de ajuizar uma ação em
busca de reparação do dano material e/ou moral.
Entretanto, o comum nesses casos e também para nossas interlocutoras é minimizá-
los, colocá-los no caldo das relações ditas “normais” do trabalho, e quando é extrapolado o
limite do “tolerável”, a maioria se cala, sofre por muito tempo, até não aguentar e pedir
demissão. Isso não significa que elas irão denunciar como apontaram no decorrer da pesquisa,
pois se o fizerem serão perseguidas e, provavelmente não encontrarão mais oportunidades de
trabalho na cidade. Ou seja, serão duplamente vitimizadas.
Em relação às formas mais comuns de assédio vivenciadas/presenciadas pelas
interlocutoras no caso do assédio moral, estão: as violências verbais; as críticas em público;
ser ignorada na frente dos outros e as trocas de turno de trabalho sem aviso prévio.
No que diz respeito ao assédio sexual as cantadas e insinuações, que algumas
vivenciaram de forma mais sutil, outras, no entanto, ouviram de forma mais explícita com
gestos e por intermédio de envio de bilhetes com conotações sexuais.
Mesmo com todas as dificuldades em caracterizar as violências sexistas vivenciadas
no âmbito do trabalho como assédio sexual ou assédio moral, as interlocutoras foram
unânimes em apontar que um espaço de trabalho permeado por esse tipo de violência interfere
de modo negativo em suas vidas. As que vivenciaram o assédio narram, do ponto de vista
psicológico, transtornos diversos tais como: ansiedade, taquicardia, insônia, estresse e no
âmbito físico, dores de cabeça, dores de estômago, insônia, etc.
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O assédio sexual e moral contra mulheres na esfera do trabalho se constitui em mais


uma expressão da precarização do trabalho considerado feminino ou como nomeia
(FALQUET, 2012) do “trabalho desvalorizado”, fenômeno que resulta da conjunção do
aumento do trabalho em tempo parcial, com o aumento de postos de trabalho desvalorizados,
principalmente para as mulheres, pobres, negras e imigrantes.
A forma com qual nos deparamos com os trabalhos desenvolvidos pelas interlocutoras
mostra que tanto o assédio moral, quanto o assédio sexual é uma realidade bastante presente e
intensifica a precarização do trabalho das mesmas principalmente na sua dimensão subjetiva,
afetado pela violência expressa, na maioria das vezes, de forma verbal, mas que deixam
marcas profundas, principalmente quando praticada na frente dos clientes, ou dos (as) demais
funcionários (as) trazendo consequências em suas vidas a exemplo dos adoecimentos físicos e
psicológicos.
Como essa realidade acompanha inúmeras mulheres ao redor do mundo, não é preciso
que o assédio moral e o assédio sexual se efetivem concretamente para gerar o sentimento de
terror, ou como nomeia (HIRIGOYEN, 2010) “psicoterror”, expresso no medo de perder o
emprego, de sofrer violência sexual, de sofrerem constrangimentos no trabalho, bem como de
todos os elementos que essa violência sexista produz entre as trabalhadoras.
O enfrentamento ao fenômeno do assédio sexual e moral exercido contra as mulheres
pressupõe movimento ampliado de contestação das condições de degradação humana
impostas pelo capitalismo, ao mesmo tempo em que precisamos nos contrapor às nefastas
consequências do patriarcado, do racismo e da opressão sofridos pelas mulheres, construídos
e legitimados historicamente, mas que são passíveis de serem desconstruídos e transformados.
Todavia, são necessárias ações que deem visibilidade a essas práticas perversas e
discriminatórias, bem com, medidas mais concretas dos poderes públicos e das empresas que
tenham como perspectiva proteger a igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Principalmente no Brasil, e mais especificamente em regiões como o nordeste ainda
atravessado fortemente por preceitos machistas de opressão e dominação de gênero tanto nos
espaço públicos como privados.
Qualquer esforço de prevenção/intervenção não pode deixar de levar em conta a
natureza gendrada do assédio sexual e moral, os quais se constituem numa das formas mais
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perniciosas de violência contra as mulheres.

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O COTIDIANO DA VIDA PRIVADA NOS ESPAÇOS PÚBLICOS: A VIOLÊNCIA


CONTRA A MULHER MORADORA DA CENA DE USO/CRACOLÂNDIAS – R.J.

611Luanda Bomfim Guerra | luandaguerra@ig.com.br

INTRODUÇÃO

“A rua, concreta, discreta. Nos mostra a frieza da sociedade. E a tristeza de um povo


esquecido”. ”Trecho do poema” A tristeza de um povo esquecido. Mariana Zayat
Chamas.

O Brasil ainda é principiante em uma abordagem específica das peculiaridades das


mulheres que sobrevivem nas ruas, inclusive na área acadêmica, na qual encontramos poucos
estudos e publicações em torno do tema.
O interesse pelo tema surgiu da minha vivência como assistente social do Programa
612
Proximidade. Esse percurso, como profissional foi repleto de experimentações, sabores,
angústias, descobertas, frustrações, superações, mudanças de paradigmas e olhares. O texto
traz uma reflexão sobre como essas mulheres sobrevivem nesses espaços públicos, que para
elas tornam-se privados, ou seja, sua casa, sua moradia.
Para a abordagem do tema o estudo não apresentará nenhum indicador social, seja
nacional ou regional sobre a violência contra a mulher que se encontra em situação de rua. As
reflexões descritas ao longo do texto serão observações do cotidiano dessas mulheres que por
algum motivo trocaram a “segurança” do seu lar para sobreviver nas cracolândias do
Município do Rio de Janeiro/RJ.

611
Especialista em Atendimento a Criança e Adolescente Vítima de Violência Doméstica - PUC/Rio.
Especialista em Serviço Social e Políticas Sociais - Faculdade Governador Ozanam Coelho / FAGOC. Trabalhou
como Assistente Social no Projeto Proximidade - Programa Desenvolvido pela Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, através da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Subsecretária de Proteção Social Especial
– SEPSE. – luandaguerra@ig.com.br
612
Programa Proximidade – desenvolvido pela PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, através da
SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL E SUBSECRETÁRIA DE PROTEÇÃO
SOCIAL ESPECIAL, tem como principal objetivo a redução de danos, construção de vínculos, visando à busca
do tratamento e a retomada das trajetórias produtiva e social à população adulta, criança e adolescente em
situação de rua no uso abusivo por substância psicoativa. O processo de acompanhamento e avaliação é realizado
por uma equipe multidisciplinar composta por psicólogos, assistentes sociais, saúde e educadores sociais.

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A observação do dia a dia dessas mulheres foi realizada pelos meses dedicados ao
Projeto Proximidade e ao trabalho em campo, em conjunto com os profissionais das políticas
setoriais.
Nesse sentido, o estudo/observação/reflexão busca apreender a situação que as
mulheres na condição de moradora de rua, “experimentam” todos os dias às desigualdades
sociais, culturais, econômicas e de gênero.
A complexidade do tema envolve muitos aspectos da sociedade como as conexões
perversas entre violência contra as mulheres, violência estrutural e violência urbana. A
violência estrutural neste contexto é abordada como as distorções, doenças da sociedade de
um sistema econômico capaz de acumular riquezas, mas, que não a distribui com justiça entre
os cidadãos. Ela é capaz de privar grande parte da população de bens fundamentais a que tem
direito para viver com dignidade, criando um estado de violência. Sendo assim, a violência
contra a mulher é inerente ao padrão das organizações, desiguais de gênero que, por sua vez,
são tão estruturais quanto à divisão da sociedade em classes sociais, ou seja, o gênero, a classe
e a raça/etnia são igualmente estruturantes das relações sociais (SAFIOTTI, 2004).

REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER.

Ouvimos, lemos e testemunhamos histórias de violência contra a mulher e nos


revoltamos. Ao abrimos os jornais e revistas do país, não é difícil encontrar relatos de casos
de violência contra a mulher praticada em relações de conjugalidade. Cotidianamente,
encontramos manchetes que alardeiam. Namorados, maridos e amantes que espancam e
assassinam suas parceiras.
A violência manifesta-se de diferentes formas, em distintas circunstâncias e com
diversos tipos de atos violentos dirigidos a crianças, mulheres, idosos e outros indefesos.
Violência doméstica, violência de gênero e violência contra a mulher são termos utilizados
para denominar este grave problema que degrada a integridade da mulher. A violência de
gênero pode manifestar-se através de violência física, violência psicológica, violência sexual,
violência econômica e violência no trabalho. A violência sofrida pela mulher por parte de seu
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companheiro íntimo pode ser analisada através do Modelo Ecológico, que explica a estreita
relação entre o indivíduo e seu entorno. Simone de Beauvoir – pioneira na elaboração de
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teorias feministas - nos mostra que os papéis gênero são uma maneira de indicar as
construções sociais estabelecidas em determinado contexto, e não uma característica “inata”,
desmontando o pensamento tradicional que vê como naturais às desigualdades entre homens e
mulheres. Segundo a autora,
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,
econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o
castrado que qualificam o feminino. (BEAUVOIR, 1990:13).

Desta forma, refletindo com as palavras de Simone de Beauvoir, a violência contra a


mulher pode ser entendida como parte de um sistema simbólico que desqualifica o feminino e
abre espaço para um processo de exclusão e dominação/exploração da mulher baseado nas
diferenças de sexo.
A prática da violência é uma violação aos direitos fundamentais da pessoa humana.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2002 no “Relatório Mundial sobre Violência e

613
Feminismo é um movimento político, filosófico e social que defende a igualdade de
direitos entre mulheres e homens.
O "embrião" do movimento feminista surgiu na Europa em meados do século XIX, como uma consequência dos
ideais propostos pela Revolução Francesa, que tinha como lema a "Igualdade, Liberdade e Fraternidade". As
mulheres queriam estar inseridas no turbilhão de mudanças sociais que estas revoluções traziam, principalmente
para se sentirem mais cidadãs em uma sociedade historicamente regida pelo patriarquismo.
No entanto, o feminismo só começou a se popularizar no mundo ocidental nas primeiras décadas do século XX,
questionando o poder social, político e econômico monopolizado pelos homens. O feminismo, como muitos
pensam erroneamente, não é um movimento de sexista, ou seja, que defende a figura feminino sobre o
masculino, mas sim uma luta pela igualdade entre ambos os gêneros. Atualmente, não são apenas as mulheres
que se intitulam ou compartilham de pensamentos feministas - assim como existem muitas que também apoiam
o esquema de uma sociedade machista - alguns homens, que se sentem "pressionados" ou incomodados com as
"regras de comportamento social do machismo", partilham da mesma visão de liberdade e direitos igualitários
entre os sexos.
Um dos símbolos que impulsionou o feminismo em meados da década de 1960 foi a publicação do livro "O
Segundo Sexo", da escritora feminista francesa Simone de Beauvoir, que desconstruiu a imagem de que a
"hierarquização dos sexos" seria uma questão biológica, mas sim unicamente o fruto de uma construção social
pautada em séculos de regimes patriarcais. A partir deste período, começa a se disseminar o
chamado Feminismo Radical, uma ramificação do pensamento feminista que acredita só ser possível
"exterminar" o machismo com uma revolução profunda e geral, eliminando os regimes patriarcais. As feministas
radicais ainda acreditam ser necessárias mudanças na legislação dos países, criando privilégios e leis de proteção
ao gênero feminino, por exemplo. http://www.significados.com.br/feminismo/

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Saúde” definiu a violência como:


Uso da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra
pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer
possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de
desenvolvimento ou privação.

A violência contra a mulher é estrutural, é uma propriedade inerente dos sistemas


patriarcal e capitalista, é usada como uma ferramenta de controle da vida, corpo e sexualidade
das mulheres por homens, grupos de homens, instituições patriarcais e Estados. Apesar de
atingir as mulheres como grupo social, cada violência tem um contexto específico e temos que
compreender como, quando e por que acontece a violência contra as mulheres.
É necessário considerar uma breve discussão sobre a violência estrutural, violência
esta que muito se faz presente no cotidiano da população em situação de rua, portanto, na vida
das mulheres em situação/moradora de rua.
Dentre os autores que discutem violência estrutural, consideremos os estudos de Peres
(2002). A autora aponta que a violência possui múltiplos níveis de determinações:
macroestrutural, conjuntural, cultural e individual.
A estrutura política e os sistemas econômico e social aumentam a vulnerabilidade dos
países à violência. Desigualdade e exclusão social, desemprego, regime político e a ineficácia
das instituições governamentais e de segurança pública são alguns dos fatores que, do ponto
de vista macroestrutural, favorecem o desenvolvimento da violência. O modo como esses
determinantes são atualizados e expressos no cotidiano, exemplificam os fatores conjunturais:
aumento da criminalidade urbana, da delinquência juvenil, do crime organizado e da
prostituição infantil, entre outros, são favorecidos por contextos marcados pela desigualdade
social e impunidade e, por sua vez, favorecem a escala da violência em contextos específicos.
Recentemente vem sendo dada importância aos fatores culturais e individuais que atuam
como determinantes do comportamento violento, tais como atitudes, comportamentos e
normas, padrões de relação familiar e de gênero, uso de drogas e álcool, entre outros.
(PERES, 2002, p. 54).
A autora aborda os níveis de violência desde sua condição macro, até a realidade dos
indivíduos, estabelecendo uma interessante relação entre ambos.
Esta forma de violência (estrutural) consiste na imposição de regras, valores e normas,
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de forma que estas pareçam naturais e necessárias ao desenvolvimento da sociedade


capitalista e ao progresso. Esta violência envolve tanto a caráter econômico – da estrutura,
quando o ideológico – superestrutura, uma vez que a ação violenta se dá no plano material,
mas que se utiliza da ideologia para legitimá-la socialmente e torná-la imperceptível. (SILVA,
2009)
Destarte, a violência contra a mulher pode ser entendida como parte de um sistema
simbólico que desqualifica o feminino e abre espaço para um processo de exclusão e
dominação/exploração da mulher baseado nas diferenças de sexo.

A VIOLÊNCIA EDÊMICA CONTRA A MULHER MORADORA DA CENA DE


USO/CRACROLÂNDIAS – RJ.

Fundamentado no ser da rua é que despertamos o interesse de estudar a situação das


mulheres que estão nesse contexto. Portanto, pesquisar este segmento populacional é uma
tarefa colossal, em especial as mulheres, pois, os motivos à ida para as ruas são extensos
principalmente os que as colocam nessa condição de extrema vulnerabilidade. Não podemos
encontrar apenas uma explicação para forma diferente que essas mulheres estão inseridas para
viverem nas ruas, ou seja, sobreviver, pois além de estar relacionado a fatores estruturais,
existem grandes variações, entre aqueles que podem ser caracterizados como população em
situação de rua, isto porque o próprio fato de morar na rua não os torna sujeitos iguais. Para
entendermos como essas mulheres acabam por vir viver nas ruas é preciso compreender suas
relações familiares, sociais e econômicas.
As mulheres que estão inseridas nessa situação de rua se apresentam de forma
complexa, abrangendo diversas formas de exclusão. Além de complexa, essa população
também é heterogênea, ou seja, com histórias de vidas singulares e específicas, mas que
podem perpassar por problemas comuns referentes à migração, desemprego, baixa
escolaridade e falta de qualificação profissional, problemas de saúde mental, uso abusivo e
frequente de álcool e outras drogas, práticas delituosas, quebra ou comprometimento nos
vínculos familiares e afetivos. Além do agravante de ter que enfrentar o estigma e preconceito

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da sociedade que as veem como “cracudas” prostitutas, “gosta dessa vida que levam” “de
apanhar”, e se vivem na rua ”porque querem”, são atitudes e palavras frequentemente
registradas nas falas das pessoas, e em muitas vezes de profissionais da Rede da Assistência
Social, Saúde e em geral da sociedade.
É impossível determinar um, dois ou tantos outros motivos que levam essas mulheres
a escolherem a rua como moradia. É uma conjunção de motivos, que apenas podemos sondar
apontar um ou outro motivo, o que não explica a realidade experimentada por elas que irão
viver/sobreviver nas ruas. Os motivos são de ordem econômica, afetiva e comunitária. Em sua
maioria, essas mulheres que passam a morar nas ruas têm um histórico transgeracional de
falta de direitos básicos: saúde, educação, moradia, trabalho e renda.
Por sua vez, as dificuldades de sobrevivência nas ruas perpetuam o sofrimento como o
primeiro tipo de violência, que é morar em um espaço público sem as mínimas condições de
habitabilidade, com falta de privacidade, sujeitas à fome, ao frio, às doenças, agressões e
descasos do poder público pela ausência de políticas sociais, em uma palavra, são condições
de viver que expressam um limite máximo da pobreza e precariedade.
Ao viver em situação de rua, esse segmento social (as mulheres) sofrem várias
expressões da violência, incluindo as relacionadas com a droga. De fato, a violência, em suas
várias formas de expressão, tem feito parte da realidade urbana atual, ou seja, todos nós
estamos sujeitos a algum tipo de violência. Entretanto, no caso daqueles que fazem da rua seu
lugar de convivência e moradia, as diversas formas de violência surgem de todas as partes,
trazendo medo, agravando a luta pela sobrevivência e ocasionado à extrema violação de
direitos. As mulheres são mais suscetíveis à violência, simplesmente porque é mulher. Entre
as mulheres em situação de rua existe o medo característico aos policiais, pois eles exercem
um tipo de violência que significa o abuso da força que lhe é delegada.
Nas cenas de uso (cracolândias) Favela da Nova Holanda e Parque União, a violência
é ainda mais expressiva, corriqueira e constante, a violência faz parte do dia a dia dessas
mulheres. Machucadas fisicamente e psicologicamente por seus companheiros, agredidas,
maltratadas, feridas e muitas vezes doentes, elas se veem em um “beco” sem saída, sem
família, sem amigos, sem o apoio até mesmo dos companheiros de drogas e espaço. Elas
conseguem encontrar socorro e algum conforto nos profissionais que fazem visitas diárias.
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Muitas aceitam serem encaminhadas as Clinicas da Família ou emergências das UPA`s,
outras “preferem” ficar em seu tormento em suas angústias, sozinhas sem falar e ver ninguém,
sem ser cuidada e orientada. E todas elas que são agredidas aceitam as desculpas e “carinho”
do companheiro agressor, e assim, a violência de gênero vai se tornando um ciclo vicioso de
submissão, poder e violência.
A sociedade nutre um forte preconceito contra esse segmento, e os moradores de rua
são sujeitos propensos a se deparar com ele cotidianamente. Com as mulheres em situação de
rua, o preconceito torna-se mais agravante, não somente por viver/sobreviver nas ruas, mas
também por existir um histórico em nossa sociedade de desvalorização da mulher. Assim, o
confronto entre gênero apresenta-se bastante presente. De modo geral, a mulher em situação
de rua vive mais adversidades e, principalmente, mais formas de violências. Por sua vez, se
são as mulheres que mais sofrem preconceitos e discriminações no espaço privado da casa,
imaginem-se quando se consideram as relações na rua, construída historicamente como o
“espaço masculino”.
A violência contra a mulher é inerente ao padrão das organizações desiguais de gênero
que, por sua vez, são tão estruturais quanto à divisão da sociedade em classes sociais, ou seja,
o gênero, a classe e a raça/etnia são igualmente estruturantes das relações sociais (SAFIOTTI,
2004). Na realidade as diferenças entre homens e mulheres têm sido sistematicamente
convertidas em desigualdades em detrimento do gênero feminino, sendo a violência contra
mulher a sua face mais cruel. No caso das moradoras de rua não se diferenciam totalmente da
realidade de muitas outras mulheres porque as relações de gênero, como relações de poder,
são marcadas por hierarquias, obediências e desigualdades.
A expressão violência de gênero é quase um sinônimo de violência contra a mulher,

614
Médico do bairro. No fundo, essa é a ideia da Clínica da Família. É a saúde regionalizada. As Clínicas da
Família atende só aos moradores da região em que fica. Inicialmente, agentes de saúde percorrem a área
abrangida pela Clínica, cadastrando moradores. Cada agente é responsável por um determinado grupo de
famílias, para ter mesmo essa proximidade. Em cada visita, ele já agenda consultas e exames. Agente e equipe
médica vão atender sempre essa família. O paciente não vai precisar explicar o problema para alguém diferente a
cada dia: é atendimento personalizado, até para os profissionais conhecerem o histórico dos pacientes e pensar a
melhor solução. Clínica da Família também é lugar para orientações sobre prevenção de doenças: lá é possível
fazer exames laboratoriais, ultrassonografia, eletro, consultas médicas e dentárias, exame pré-natal, farmácia e
vacinação, entre outros procedimentos.

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pois são as mulheres as maiores vítimas da violência. No caso das moradoras de rua a
situação dificulta ainda mais, pois elas vivem em total abandono no aspecto das políticas
sociais, além da própria falta de documentação se torna ainda mais difícil à acessibilidade a
essas políticas. Por todas estas questões, o morar na rua adota uma dinâmica própria e
paralela, onde o imediatismo, as relações efêmeras e fragmentadas (de trabalho, de amizade,
afetivas), a violência, a drogadição e a internalização dos valores negativos designados pela
sociedade, determinam certas regras de convivência e sociabilidade. Nesse contexto, a
violência na rua é de todas as ordens e não devemos continuar culpando somente as
moradoras de rua, os criminosos de rua, prostitutas, crianças, “pretos”, “ou quase pretos”, “ou
quase brancos” de serem responsáveis pela violência nas grandes cidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando falamos em violência contra a mulher, nos deparamos com a falta de dados e
impasses jurídicos que dificultam traçar um retrato completo da violência. Até bem pouco
tempo atrás, homens cumpriam penas alternativas por crimes de violência contra a mulher por
meio do pagamento de cestas básicas. De outro lado, mulheres eram presas e agredidas por
reagirem à violência contra elas. Indagações como: quem são os agressores, qual a razão das
agressões, quantas mulheres sofrem com a violência doméstica não são contabilizadas
oficialmente nos boletins de ocorrência das Delegacias Especializadas no Atendimento à
Mulher – DEAMs. No caso das mulheres em situação de rua esses boletins de ocorrência
parecem não existir.
Faz-se urgente a atenção das Políticas Públicas em sua totalidade a essa população que
vivem/sobrevivem nas ruas, principalmente as mulheres. Ainda não existe uma rede de
atendimento muito eficaz, mas muito tem se pensado sobre o assunto e através de várias
reivindicações da própria população existem hoje alguns avanços na Política de Assistência
Social que traz melhor qualidade de vida pra esse segmento da sociedade.
A mulher em situação de rua vive mais adversidades e essas exigem políticas sociais
direcionadas a elas, sejam pelas condições de ser mulher, sejam pelas condições de classe.
Pois sobrevivem em meio a preconceitos por morar nas ruas e também devido ao machismo

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pelo fato de ser mulher. Elas representam uma minoria nas ruas, podem ou não ser submissas
por este motivo, são competitivas para garantir sua proteção, sua vida. Seus cuidados são
diferenciados. Pensar em uma política social para elas não é somente construir
abrigos/albergues, mas sim locais que produzam a oportunidade de “ser mulher”. Esse
trabalho pode refletir em novas iniciativas, apreender como e quais os sentidos que estas
constroem sobre si e suas vidas, dada sua condição de mulher, pobre e vivendo a situação de
rua.
Diante deste contexto se faz necessário a intervenção do Estado por meio das políticas
sociais, pois estas devem contribuir para diminuir as desigualdades sociais buscando a
igualdade de condições. Este alcance está atrelado a uma luta da classe trabalhadora.
É necessário superar um desafio: conhecer essa população. E isto significa apreender
quem são quais seus sonhos, seus desejos, expectativas, de onde vem e para onde vão. Ao
compreender quais são as necessidades sociais desses grupos é que podemos avaliar as
estratégias de enfrentamento e satisfação dessas necessidades. Abranger o modo de vida
dessas mulheres permite-nos olhar também suas potencialidades, como um sujeito capaz de
transformações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEAUVOIR, S. O segundo sexo. (Trad.) Sérgio Milliet. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.
LOLIS, D. A violência cotidiana em diferentes espaços institucionais da periferia da cidade de
Londrina. In: serviço social em revista. Volume 7 – nº1. Jul/Dez 2004. Disponível em:
http://www.ssrevista.uel.br/c-v7n1.htm. Acesso em: 04 Agosto de 2015.
MAKEBA, Miriam. CAPS ad III Miriam Makeba. Publicado em: 11 Abril. 2014.
Disponível em: https://www.facebook.com/pages/Caps-ad-III-Miriam-
akeba/748601121826839?fref=ts.
Ministério do Desenvolvimento Social – MDS (2010). Serviço de proteção e atendimento
integral à família (Paif). Retirado em 18/08/2015, de
http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaobasica/servicos/protecao-e-atendimento-
integral-a-familiapaif.

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Organização Mundial de Saúde (Oms). Relatório mundial violência e saúde. Genebra:


OMS; 2002.
PERES, M. F. T. Prevenção e Controle: Oposição ou Complementaridade para a Redução da
Violência? In: Revista Ciência e Cultura. Sociedade brasileira para o progresso da ciência.
Ano 54 nº1. Jul/ago/set 2002. P. 54-55.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.
SCOTT, Joan W. "Gênero: uma categoria útil para análise histórica”. Educação &
Realidade, v. 20, n. 02, 1995
SILVA, Maria Lucia L. Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno
população em situação de Rua no Brasil 1995-2005. Brasília, Dissertação (mestrado) -
UnB. 2006.

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POLITICAS SOCIAIS DE COMBATE À POBREZA: UM OLHAR DE GÊNERO

Luana Ricarto da Costa615 | luanavilar594@gmail.com

INTRODUÇÃO

A família tem ocupado lugar de destaque, no contexto brasileiro, no tocante às


políticas sociais, e o Programa Bolsa Família é um exemplo emblemático. A questão suscita
reflexões sobre as relações de poder construídas no espaço familiar, especialmente as relações
de gênero.
O Programa Bolsa Família é uma das políticas sociais brasileiras de transferência de
renda que mais vem gerando polêmica e opiniões divergentes sobre sua eficácia no combate à
pobreza e construção de uma cultura cidadã entre as populações mais pobres. Leituras e
apropriações diversas marcam os dez anos de experiência, contados por antropólogos,
sociólogos, economistas, assistentes sociais e tantos outros profissionais. Os estudos e
análises cobrem, desde os territórios dos sertões nordestinos, regiões metropolitanas de
grandes cidades do sul e sudeste, áreas amazônicas, comunidades quilombolas situadas nos
mais distintos lugares. Apesar da focalização dessa política as heterogeneidades são pulsantes,
gerando impactos e recepções locais bastante diferenciados, tendo em vista os aspectos
culturais e territoriais da população atendida, além de outros marcadores sociais tais como,
rural e urbano, gênero, geração, raça e etnia, não obstante a situação de pobreza, embora esta
também seja variável entre os atendidos. Heterogeneidades, nem sempre evidenciadas pelas
pesquisas iniciais que tratavam dos “beneficiados do Bolsa Família” como um grupo de forma
generalizada (Morton, 2013).
615
Graduanda e bolsista no curso de Pedagogia pela Universidade Regional do Cariri – URCA, Crato/ Brasil.
luanavilar594@gmail.com.
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Embora dados recentes já apresentem resultados positivos quanto a redução de


pobreza e desigualdade (IPEA 2010, Lavinas e Barbosa 2000) e elevação do padrão de
consumo, o alcance das metas do programa que envolve o rompimento da pobreza
intergeracional e criação de uma cultura cidadã, são realidades ainda a serem construídas. Os
indicadores de renda monetária, de forma convencional, sempre serviu para medir a pobreza,
não desconsiderando a importância da renda, a pobreza não se restringe ao que se pode
adquirir com o dinheiro, mas envolve outras tantas dimensões que permitem definir a
condição de pobreza, e desta como face fundamental da exclusão de pessoas e grupos
(Araújo, 2009).
A exclusão social deve ser pensada de forma multidimensional, incluindo a falta de
acesso não só de bens e serviços, mas também de segurança, justiça e cidadania, aspectos
relacionados às desigualdades econômicas, políticas, culturais e étnicas entre outras (Dupas,
2000). A exclusão social é, portanto, de acordo com esta leitura, uma situação de não
realização de algumas ou de todas estas dimensões.
As discussões e analises sobre o programa e suas recepções, instigaram posições
muitas vezes dicotomizadas entre positividade enegatividade, público, privado,
assistencialismo, direito, além das questões de gênero tendo em vista a família ser tomada
como foco e a mulher como prioridade na titularidade do programa e no cumprimento das
condicionalidades. Eis um grande desafio aos pesquisadores que se debruçam sobre essa
temática. Como interpretar as dinâmicas subjacentes que envolvem as distintas recepções do
programa sem apelar para o discurso polarizado?
Além desses aspectos, uma série de indagações vêm à tona quando se pensa
nos beneficiários do BF e nos impactos causados pelo programa em suas vidas. Qual o uso e
apropriação que estes fazem desse benefício? Quais as mudanças nas dinâmicas familiares
considerando as questões de gênero e geração, padrões de consumo, autonomia, educação,
saúde, elementos de subjetividade, valores culturais e morais?
Apresentaremos algumas reflexões sobre o PBF tomando como referência dados de
pesquisas que, a partir de estudos de realidades bastante diferenciadas, nos dão pistas para
compreender as mudanças engendradas pelo programa em contextos territoriais, culturais e
arranjos familiares também diversos.
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O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E GESTÃO DA POBREZA

Criado em 2003 o Bolsa Família é um programa de transferências condicionadas de renda


com abrangência nacional e atende mais de 13 milhões de famílias em situação de pobreza e
extrema pobreza, de acordo com indicadores de renda determinados pelo MDS (MDS, 2013).
O programa integra a política de desenvolvimento social brasileira e às ações do Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à fome, que atua na gestão dos principais programas de
combate à pobreza no Brasil. Possui uma gestão descentralizada, cabendo aos municípios a
responsabilidade de identificar e cadastrar as famílias através da ação do Cadastro Único,
(CadÚnico) criado a partir do decreto 6.135/07 passando a atuar junto aos programas
sociais do governo federal possibilitando o acesso a um leque de benefícios sociais.
Em 2011 o PBF passou a integrar o Plano Brasil sem miséria (BSM) que tem por
objetivo eliminar a extrema pobreza no país. As famílias devem estar cadastradas no
(CadÚnico) e os benefícios podem ser básico e variável de acordo com a renda, idade e
número de filhos.
As famílias atendidas são compostas em média por 3,6 pessoas, já os arranjos
familiares, 42,2 % representam famílias monoparentais femininos e 37,6% de casais com
filhos. Em relação à titularidade, 93,1 são representadas por mulheres, seguindo um dos
propósitos do programa que é dar prioridade às mulheres (Camargo, et al, 2013).
O programa possui três eixos principais que são: a transferência direta de renda, com o
objetivo de promover o alívio imediato da pobreza; as condicionalidades que reforçam o
acesso a direitos sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social; e programas
complementares que tem por função o desenvolvimento das famílias, de modo que os
beneficiários consigam superar a situação de vulnerabilidade.
Em 2006, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) criou o
Índice de Gestão Descentralizada Municipal (IGD-M). Concebido como uma estratégia de
apoio à gestão municipal do Programa Bolsa Família, o IGD-M é um indicador que mede o
desempenho dos municípios na gestão do Programa, considerando a qualidade do Cadastro
Único (validade e atualização dos cadastros) e do acompanhamento das condicionalidades de

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saúde e de educação. Com base nos resultados apurados por intermédio do IGD-M, os
municípios que apresentam bom desempenho recebem mensalmente recursos para investir em
atividades voltadas para a gestão do PBF nos termos da Portaria MDS/GM nº 246, de 20 de
maio de 2005.
Os recursos são repassados aos municípios diretamente do Fundo Nacional de
Assistência Social (FNAS) para o Fundo Municipal de Assistência Social (FMAS). Os
municípios possuem autonomia para escolher entre as ações voltadas para o PBF onde os
recursos devem ser aplicados. Estas ações estão diretamente relacionadas às atividades ligadas
à gestão de condicionalidades; à gestão de benefícios; ao acompanhamento das famílias
beneficiárias; ao cadastramento e atualização dos dados do Cadastro Único; à implementação
de programas complementares; à fiscalização do PBF e do Cadastro Único e Controle Social
do PBF no município, conforme estabelece a Portaria MDS/GM nº 754, de 20 de outubro de
2010 (MDS, 2013).
O Programa exige o cumprimento de certas condicionalidades por parte das famílias
beneficiadas, envolvendo a educação, saúde e assistência social. Em relação a educação
exige-se a manutenção e frequência escolar das crianças de 85% para a faixa de 06 a 15 anos
e 75% para adolescentes de 16 a 17 anos. Na saúde o cumprimento recai sobre o
acompanhamento do calendário de vacinação, crescimento e desenvolvimento das crianças de
até 07 anos, bem como o pré-natal para gestantes e acompanhamento das nutrizes. Na
assistência social, deverá ser cumprida frequência mínima de 85% nos serviços
socioeducativos nos casos em que crianças e adolescentes estejam em situação de risco ou
retirados do trabalho infantil.

CONSUMO E GESTÃO DOS RECURSOS NA FAMÍLIA

Um dos aspectos mais ressaltados nos estudos que se debruçaram sobre os impactos
do PBF é o aumento do consumo do grupo, e a alimentação é um dos itens
priorizado(Cedeplar 2007). No entanto as especificidades sobre esses consumos, envolvendo
as prioridades estabelecidas a nível dos produtos, gastos ou indivíduos envolvidos, além dos
julgamentos morais que envolvem esse tipo de consumo, é uma realidade ainda a ser
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desbravada, embora alguns estudos já lancem algumas luzes como é o caso de Pires( 2003)
que aborda a prioridade da alimentação infantil no uso dos recursos recebidos por famílias no
semiárido paraibano e Morton (2013) que destaca as diferenças econômicas como
indicadoras das práticas de gênero que envolvem o consumo e relações estabelecidas entre
este.
O estudo de Pires (2003) realizado no semiárido nordestino, em um pequeno
município paraibano, parte de um olhar, ainda pouco usual, que é o infantil. A autora buscou
compreender a ampliação do consumo alimentar, especialmente alimentos destinados às
crianças como consequência do recebimento do benefício. Entrevistou mães e realizou
oficinas com crianças para buscar os princípios da priorização das crianças no consumo de
determinados gêneros alimentícios. Embora haja estimativas de que 87% dos recursos do PBF
são utilizados na compra de alimentos (Resende e Oliveira (2008), aspectos até justificados pelo contexto
de insegurança alimentar da região, o fato da explicação para as crianças serem privilegiadas se situar apenas na
condição de pobreza das famílias é questionado por Pires que recorre às dinâmicas familiares para
compreender os privilégios das crianças. Neste caso apresenta duas razões principais. O primeiro é que o
benefício é recebido como fruto do esforço das crianças, questão que diz respeito às condicionalidades do
programa envolvendo a frequência escolar de crianças e adolescentes e ida ao posto de saúde por parte de
crianças, gestantes e nutrizes. A condicionalidade ligada à frequência escolar é vista como uma das mais
importantes, pois acorre bimestralmente, ao passo que a ida ao posto ocorre semestralmente, além da divulgação
de casos de perda ou suspensão do benefício na localidade em decorrência do não cumprimento dessa
condicionalidade. A recompensa pelo esforço das crianças se efetiva por meio da compra de determinados
objetos como roupas calçados e alimentação básica ou os itens considerados de luxo como bolachas recheadas,
iogurte, pipoca e chocolates. Um dos aspectos observados nesse estudo é a reconfiguração do
poder de negociação das crianças. (Pires 2013).
A segunda razão destacada refere-se à função moral materna de nutrir e satisfazer os
desejos dos filhos, aspectos ligados a uma maternidade bem sucedida. Ademais o consumo de
determinados alimentos considerados “de luxo” é percebido como marcador de status, uma
espécie de porta para a incorporação de estilos de vida tidos como mais elevados. Entre as
mães entrevistadas por Pires (2013) no sertão paraibano, depois das necessidades básicas
atendidas, o dinheiro excedente geralmente é reservado aos pedidos dos filhos, aspecto
percebido como forma de garantir o estatuto moral da mãe, ou como diz a autora, “o

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sentimento de dever materno cumprido”.


Enquanto Pires Identifica as relações e as estruturas familiares da “casa sertaneja”
buscando compreender como o PBF interfere na reconfiguração de valores referentes à
socialização infantil e à estrutura familiar, Morton (2013) toma como referência “a estrutura
moral da casa sertaneja”, e busca compreender as suas formas de assimilar e transformar os
recursos do mundo de fora, focando nos significados que sustentam a recepção do Bolsa
família na esfera privada. O autor estuda duas comunidades rurais do sertão da Bahia, e
destaca diferenças em relação à recepção do benefício pelas mulheres mais pobres e mais
prósperas. Enquanto as mais pobres destinam os recursos para suprir as necessidades básicas
de alimentação, as mais prósperas conseguem se organizar para adquirir bens duráveis. A
autonomia feminina, no caso das mais pobres, é questionada, pois a margem de poder de
decidir o que, e como consumir é pífia. Para Morton a autonomia pode ser percebida quando o
consumo com a alimentação advém de outras fontes. Nos dois casos o autor percebe formas
de conversões do recurso em objetos de circulação rápida e de longa duração, no primeiro
caso encontra-se os alimentos e no segundo os objetos duráveis como móveis e
eletrodomésticos. Transformar o dinheiro do Bolsa Família em objetos que circule em longo
prazo acaba sendo um grande desafio para as mulheres sertanejas, vistos como elementos de
autonomia feminina, mesmo que algumas apelem para o segredo na compra e pagamento de
prestações como forma de adquirir um bem durável. Como diz Morton, “o homem entende a
independência da mulher por meio do objeto, ou seja, por meio da forma concreta pela qual o
valor foi fixado dentro da casa. Para poder fazer uma afirmação dessas, a mulher precisa ter
em casa um objeto culturalmente reconhecido para o qual ela pode apontar” (Morton, 2013,
p.61).
O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: IMPLICAÇÕES DE GÊNERO
O recorte de gênero talvez seja uma das preocupações mais recorrentes nos estudos e
análises que tomam o PBF como objeto de estudo, considerando que as mulheres são o
público alvo do programa e o rendimento propiciado por este é percebido como uma
contribuição feminina dentro da família. Autonomia e empoderamento das mulheres, são dois
conceitos que se tornaram presentes nas análises envolvendo as beneficiárias do bolsa família
que apontam para a sua positividade. Muitas pesquisas já destacam um crescente poder de
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decisões, por parte das mulheres, na esfera doméstica (Rego, 2008, 2013, Pires (2009, 2013),
(Suárez; Libardoni, 2007), (Ahlert, 2013) (Morton, 2013).
O programa também tornou-se alvo de questionamentos e críticas envolvendo as
questões de gênero. O debate recai sobre a vinculação do ser mulher à condição de mãe e
dona de casa, reforçando assim posições e papeis tradicionais de gênero, tais como a
vinculação da mulher ao espaço privado e as tarefas reprodutivas. Nesse aspecto destaca-se a
falta de políticas de ação integrada na promoção de infraestrutura tais como creches e escolas
de tempo integral, o que permitiria as condições para entrada no mercado de trabalho, além da
falta de acesso a informações e qualificação profissional. Suárez e Libardoni, 2007 falam que
as beneficiárias ao desenvolver o seu trabalho diário de forma solitária em bairros ou
comunidades isoladas torna-se alvo para o isolamento social, impedindo uma visibilidade na
esfera pública.
Ao questionar aos mecanismos que reforçam a vinculação da mulher com a
maternidade e as funções ligadas à esfera reprodutiva, desenvolvida pelo PBF, Mariano e
Carloto (2009) destacam as atividades extras as quais as mulheres benefiadas são chamadas a
participar tais como os grupos de geração de trabalho e renda e grupos de ações educativas. A
crítica das autoras recai sobre a “duvidosa potencialidade para a melhoria do bem estar” no
caso dos primeiros e “associação às tarefas reprodutivas” no caso dos segundos. Neste caso,
responsabilidades ou sobrecarga de obrigações são lançadas à essas mulheres, considerando
que a responsabilidades das condicionalidades ligadas à saúde, educação e assistência social
também recai sobre as mulheres.
Ao ser incluída no PBF, a mulher é tomada como representante do grupo familiar,
vale dizer, o grupo familiar é materializado simbolicamente pela presença da
mulher. Esta, por sua vez, é percebida tão somente por meio de seus ‘papéis
femininos’, que vinculam, sobretudo, o ser mulher ao ser mãe, com uma identidade
centrada na figura de cuidadora, especialmente das crianças e dos adolescentes,
dadas as preocupações do PBF com esses grupos de idade. O papel social de
cuidadora pode até, em algumas situações, ser desempenhado por outra mulher,
como, por exemplo, a avó ou tia da criança ou do adolescente. Contudo, seguirá
sendo um ‘papel feminino’. Logo, o cuidado preserva, no âmbito do PBF, seu
caráter vinculado aos papéis de gênero. Assim, tanto a maternidade (relacionada à
procriação e/ou ao papel social de mãe) quanto a maternagem (o cuidado da criança
e do adolescente desempenhado por outra mulher, geralmente com vínculo de
parentesco, porém sem se designar como sua mãe) são funções focalizadas pelo
PBF.(MARIANO E CARLOTO, 2009,P. 904)

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Ao estudar os sentidos e significados do Bolsa Família entre as quebradeiras de coco


no município de Codó- MA, Ahlert (2013) também questiona as dicotomias produzidas
nesses discursos. Mostra que as relações estabelecidas entre as mulheres e o programa
envolvem complexidades que não permitem ser apreendidas pelo viés da bipolaridade. O
cotidiano das quebradeiras de coco apresenta elementos que faz a autora falar sobre a
indissociabilidade entre as experiências com a política e ou as políticas públicas sociais e
outros elementos constituintes da vida dos sujeitos.

As mulheres, na constatação das quebradeiras entrevistadas, estão mais


familiarizadas com o ambiente doméstico, sendo que conhecer e cuidar bem da casa
são elementos que ajudam a definir sua identidade. Contudo, não sabem disso
porque estão restritas ao espaço doméstico – as quebradeiras, ao valorizarem o
doméstico e também trabalharem ‘fora’ de casa, borram as fronteiras da dicotomia
que toma o mundo do doméstico como separado do mundo do público. O que as
diferencia dos homens não é elas não circularem amplamente fora do doméstico,
mas, diferentemente deles, é elas saberem quais são as prioridades da casa.

No entendimento das mulheres, receber o bolsa família envolve uma luta firmada com
o Estado, considerando as suas carências diversas – a busca pela inscrição no cadastro único é
um exemplo - e o sentido dessa luta é buscada no valor atribuídos a casa e à família, aspectos
que permitem a autora pensar além da dicotomia entre o doméstico e o mundo da rua. Quando
se referem ao benefício como “ajuda” do governo, esta não é percebida como oposto da
efetivação de direitos, não são excludentes, pois nas suas experiências, este faz parte de suas
lutas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar sobre uma política social de transferência de renda que toma a mulher como
público prioritário, é fundamental atentar para os elementos dessa política que poderá intervir
no protagonismo feminino. Uma política social que possa tocar nas desigualdades de gênero
necessariamente deverá envolver a aquisição de meios materiais, o que permite a promoção
de bem estar, além de desenvolver formas de distribuição de poder no âmbito privado e
ampliar ou permitir a participação no espaço público. Como nos alerta Costa (2013), apesar
das mudanças atuais que envolvem a condição feminina “muitas mulheres não podem decidir
sobre suas vidas, não se constituem enquanto sujeitos, não exercem o poder e principalmente,

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não acumulam este poder, mas o reproduzem, não para elas mesmas, mas para aqueles que de
fato controlam o poder”( p.).
Diante dessa realidade é que o movimento feminista e outros movimentos sociais
organizados começam a se utilizar do termo empoderamento “que é o mecanismo pelo qual as
pessoas, as organizações as comunidades tomam controle de seus próprios assuntos, de sua
própria vida,de seu destino, tomam consciência da sua habilidade e competência para
produzir, criar e gerir.” A ideia de empoderamento envolve mudanças nas relações sociais a
qual o indivíduo está inserido, portanto tocar nessa questão é pensar em formas de
mobilizações e ações que permitam promover a afirmação de direitos e redução de
desigualdades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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emancipação social. Rede Mec, UFC virtual, Núcleo Humanas. Fortaleza, 2009.
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TRANS-FORMAÇÃO DE CONSCIÊNCIA: POR UMA VISÃO HUMANISTA


DA TRANSEXUALIDADE

Rhayanne Viriato de Araújo | araujorhayanne@gmail.com


Aristides Ariel Bernardo

INTRODUÇÃO

Como a transexualidade e as questões acerca da identidade de gênero são vistas e


discutidas nos dias atuais? Em face do projeto de lei João W. Nery ou Lei de Identidade de
Gênero (PL 5002/2013), de autoria dos deputados federais Jean Wylys e Érika Kokay, faz-se
necessário uma análise do debate acerca das questões de gênero no Brasil. O principal
objetivo deste trabalho é promover uma conscientização que leve a uma visão mais humanista
da identidade transexual, combatendo o preconceito e a violência que ainda cerceiam essa
questão, ocasionados muitas vezes pela falta de informação e desconhecimento.
Para tanto, fizemos uma revisão bibliográfica de autores influentes no assunto e uma
análise de leis, decretos e portarias que tratam do tema, bem como entrevistas com indivíduos
da própria população transexual. Participamos, ainda, de reuniões, debates e oficinas no
Centro Estadual de Referência dos Direitos dos LGBT e Enfrentamento a Homofobia da
Paraíba (Espaço LGBT), juntamente com a Associação de Transfeministas da Paraíba
(ASTRAPA), de onde tiramos proveitosos ensinamentos e apontamentos.
Esse trabalho tem como objetivos principais: esclarecer a diferença – muitas vezes
negligenciada - entre identidade de gênero e orientação sexual, bem como a diferença entre as
terminologias “travesti” e “transexual”; analisar os principais problemas enfrentados pela
população transexual no campo jurídico, como o desrespeito ao nome social, a dificuldade de

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mudança do prenome civil, a invisibilidade legal, questões relacionadas ao casamento e


filiação, entre outros; e por fim, mas não menos importante, faremos uma análise da
transfobia tão presente na vida dessa população.
Os resultados da pesquisa demonstram que ainda há muita desinformação sobre o
tema, assim o presente trabalho busca elucidar pontos e conceitos importantes relacionados à
temática da identidade de gênero, pois acreditamos que a informação é a chave para a
liberdade e um mundo livre de preconceitos, dentre eles a transfobia.

IDENTIDADE DE GÊNERO X ORIENTAÇÃO SEXUAL

Os termos orientação sexual e identidade de gênero costumam ser corriqueiramente


confundidos, mas existe entre eles uma diferença colossal. A orientação sexual refere-se à
afetividade e a sexualidade do indivíduo, ou seja, refere-se ao sentimento de desejo pelo outro
com o qual nos relacionamos. Como não abrange somente o desejo sexual, podem ser usadas
as expressões orientação afetivo-sexual ou romântica-sexual. Assim, podemos citar quatro
tipos de orientações afetivo-sexuais: os bissexuais, que são atraídos pelos dois gêneros; os
heterossexuais, atraídos pelo gênero oposto; os homossexuais, atraídos pelo mesmo gênero e
os assexuados, que não sentem atração afetiva e/ou sexual por nenhum gênero.
Já a identidade de gênero refere-se à auto-percepção do indivíduo dentro dos padrões
de gênero (feminino e masculino) impostos pela sociedade, por isso pode-se afirmar que a
identidade de gênero é resultado de uma construção psicossocial. Segundo Ana Paula Ariston
Barion Peres (2001, p. 4), a identidade de gênero refere-se ao “comportamento psíquico do
indivíduo quanto ao seu próprio sexo”. Assim, tem-se pessoas cisgêneros, cuja condição de
gênero atual coincide com o sexo biológico designado no nascimento; e pessoas transgêneros,
travestis ou transexuais cujo sexo biológico discorda do seu gênero psicossocial.
Uma de nossas entrevistadas, Fernanda Bevenutty, coordenadora da Associação de
Transfeministas da Paraíba (ASTRAPA) critica inclusive essa distinção entre cis e trans,
afirmando que esse é um discurso produzido e propagado pela academia: “Para afirmar minha
identidade de pessoa trans, eu não preciso nomear as outras pessoas de nenhuma outra forma.
[...] Tem muita coisa no movimento que se reproduz porque é bonitinho, porque é
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higienizador, porque tira rótulos das pessoas. Quem são as pessoas cis? Onde elas estão? Tem
pessoas falando que elas existem, tem pessoas dizendo que isso é real, mas e elas?”
(informação verbal)616.
Os princípios de Yogyakarta, que inspiram expressamente o art. 2º do projeto de lei
João W. Nery definem a identidade de gênero como:

A vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode
corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência
pessoal do corpo. O exercício do direito à identidade de gênero pode envolver a
modificação da aparência ou da função corporal através de meios farmacológicos,
cirúrgicos ou de outra índole, desde que isso seja livremente escolhido. Também
inclui outras expressões de gênero, como a vestimenta, os modos e a fala. (2007)

Peres (2001, p. 91) ainda faz uma crítica ao modelo de sexo binário existente na
atualidade: “Há uma tendência de se classificar tudo e todos como sendo masculino ou
feminino, não havendo espaço para o que não se adapta a uma dessas categorias”. Na
realidade, segundo Cruz e Sousa (2014), o modelo de sexo binário e a diferenciação entre os
sexos surgiram como um discurso para legitimar o domínio masculino nos espaços públicos,
ou seja, são resultado mais de uma construção histórica e social do que de uma determinação
biológica.
Conforme afirmam Cruz e Sousa (2014, s.p.): “Não existe natureza que determine o
que seja uma mulher ou um homem. Todas essas categorias são discursivamente construídas e
podem, da mesma forma, através de uma política queer, ser desestabilizadas e
ressignificadas”.

TRAVESTI X TRANSEXUAL

Segundo o art. 5º da Constituição Federal, todos são iguais perante a lei sem distinção
de qualquer natureza. O campo biológico também nos diz que somos todos humanos,
pertencentes a espécie Homo sapiens sapiens. Portanto, não há uma necessidade de rótulos
diferenciadores. Entretanto, uma dúvida comum na cabeça das pessoas em geral é quanto a

616
Relato colhido em entrevista gravada em vídeo realizada em maio de 2015 no Espaço LGBT da Paraíba.
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diferença entre travestis e transexuais. Na realidade, não há uma diferença clara e estabelecida
entre a terminologia travesti e transexual. Acontece que a denominação travesti é usada pelas
pessoas transgênero mais como uma questão política e de militância, pois o estigma e o peso
social sobre o nome “travesti” são muito maiores.
Segundo Cruz e Sousa, a transexualidade pode ser entendida como:

A possibilidade de reinterpretar os sentidos da feminilidade e da masculinidade


contrariando o impositivo de que o sexo deve ser coerente com o gênero e, nesse
caso, também ultrapassar a ideia de que a fêmea biológica é a única legitimada a
carregar o status de mulher, enquanto o macho é o único legitimado a carregar o
status de homem, em uma clara menção de que a biologia não é o destino. (2014,
s.p.)

De acordo com Bento (2008, apud CRUZ e SOUSA, 2014) não existe uma diferença
substancial entre as duas experiências identitárias. Ambas mostram que o corpo é um
instrumento que pode ser modificado e ressignificado conforme as diferentes pretensões.
Atualmente, o termo transgênero é o mais utilizado, pois abrange qualquer pessoa com
divergência de gênero.
A esse respeito, Fernanda Bevenutty sinaliza que: “As pessoas no Brasil têm uma
concepção equivocada de achar que transexual é toda pessoa que quer fazer a cirurgia [de
transgenitalização], e não é – todas nós somos transexuais, independente de quem quer fazer a
cirurgia e quem não quer” (informação verbal)617.
Segundo João W. Nery, considerado o primeiro trans homem a realizar a cirurgia de
transgenitalização do Brasil e cujo nome serve de inspiração para o projeto de lei de autoria
dos deputados Jean Wylys e Erika Kokay, o movimento dos homens trans ainda é muito
recente, mas nesse sentido destaca-se o Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat).
Segundo o site do Ibrat:

O transhomem, é uma pessoa que nasceu no sexo feminino, mas tem sentimento de
pertencimento total ou parcial pelo gênero masculino, a ponto de sentir necessidade
de ser reconhecido socialmente como homem, porém, sua identidade de gênero
não implica na sua orientação sexual, ou na relação com o seu corpo, sendo estas,
questões de caráter íntimo e individual, e que não comprometem a sua

617
Relato colhido em entrevista gravada em vídeo realizada em maio de 2015 no Espaço LGBT da Paraíba.
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masculinidade618.

DA INVISIBILIDADE LEGAL

Se, no campo físico e social, a invisibilidade trans não é passível de ser alcançada, no
campo jurídico eles enfrentam uma situação paradoxalmente contrária: a invisibilidade, que
os coloca em uma situação de vulnerabilidade. Apesar de ser formada por indivíduos
esclarecidos, empoderados, lúcidos e conscientes de suas reivindicações e necessidades, a
população transexual ainda enfrenta uma situação de vulnerabilidade no campo jurídico no
que diz respeito aos seus direitos. Conforme afirmado em entrevista por Beatriz Duarte,
mulher trans subcoordenadora da ASTRAPA: “Se existe uma portaria para que a gente possa
usar um banheiro feminino ou mudar o prenome civil é uma portaria e não uma lei. Falta tudo,
não existem leis ainda que nos deem direitos e nos guardem” (informação verbal)619.
A legislação brasileira é uma das mais atrasadas na questão do reconhecimento de
identidades, fazendo com que um indivíduo trans viva socialmente com um nome e
legalmente com outro, causando sofrimento e situações vexatórias desnecessárias. O nome
social encontra-se definido no Projeto de Lei de Identidade de Gênero como o “nome pela
qual a pessoa é conhecida e se sente chamada, aquele que é usado na interação social”. A
história do próprio João W. Nery, considerado o primeiro homem trans operado do Brasil,
ilustra perfeitamente a necessidade não só do respeito ao nome social como de mudança do
prenome civil. Para ser fiel a sua identidade de gênero, ele teve que driblar a lei e mudar todos
os seus documentos ilicitamente, abrindo mão de sua história e seus diplomas. Em
decorrência disso, tornou-se legalmente analfabeto, tendo que trabalhar como pedreiro, pintor,
entre outros, mesmo tendo formação acadêmica e já tendo sido professor universitário.
O art. 10 da Lei João W Nery estabelece expressamente que “deverá ser respeitada a
identidade de gênero adotada pelas pessoas que usem um prenome distinto daquele que figura
na sua carteira de identidade e ainda não tenham realizado a retificação registral”. Assim, o

618
Instituto Brasileiro de Transmasculinidade. Quem são os transhomens. Disponível em:
http://institutoibrat.blogspot.com.br/p/saiba-mais-sobre-transhomens.html

619
Relato colhido em entrevista gravada em vídeo realizada em maio de 2015 no Espaço LGBT da Paraíba.
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respeito pelo uso do nome social independe do reconhecimento jurídico de retificação dos
documentos.
Ainda o parágrafo único de tal artigo acrescenta que “o nome social requerido deverá
ser usado para a citação, chamadas e demais interações verbais ou registros em âmbitos
públicos ou privados”. Isso evitaria inúmeros constrangimentos pelo qual passam atualmente
as pessoas trans nos mais diversos espaços públicos e privados, como escolas, universidades,
hospitais etc.
Já o art. 3º estabelece expressamente que toda pessoa poderá solicitar a retificação do
sexo, prenome e imagem registrados na documentação pessoal, sempre que não coincidam
com a sua identidade de gênero auto-percebida.
Portanto, para além do respeito ao nome social, faz-se necessário também a mudança
do prenome civil, pois é através dele que o indivíduo transita em todas as esferas da vida civil
e realiza atividades indispensáveis, como votar, por exemplo.

QUESTÕES LEGAIS
Uma vez que a medicina e os avanços científicos tornam possível demonstrar as
peculiaridades envolvidas na determinação do gênero e a transformação do corpo do
indivíduo para se adequar ao seu gênero psicossocial, o Direito é chamado a dar respostas a
essa nova realidade. Torna-se necessário, então, fazer uma análise acerca das questões legais
diretamente ligadas à transexualidade, pois não basta somente a mudança anatômica ou
fisiológica do indivíduo, é preciso que essa mudança tenha reconhecimento jurídico para
produzir efeitos no mundo social.
A questão da transexualidade atinge diretamente o ramo dos direitos da personalidade,
que são direitos relativos à tutela da pessoa humana e visam a proteção da dignidade e
integridade das pessoas. Além disso, outras questões legais são levantadas, principalmente no
âmbito do Direito de Família, com relação ao casamento e a filiação.
A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil (art. 1º, III), e pode-se afirmar que no caso dos/das transexuais, o reconhecimento da
sua identidade de gênero é uma questão que atinge diretamente sua dignidade e o pleno
desenvolvimento de sua personalidade. Assim, o princípio constitucional da dignidade da
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pessoa humana tem de ser respeitado, garantindo à população transexual seu direito à
mudança do status civil e corporal. Além disso, devem ser observados também o direito à
intimidade e a vida privada, dispostos no art. 5º, inciso X.
É nesse sentido que se desenvolve o Projeto de Lei João W Nery ao afirmar que “toda
pessoa tem direito ao livre desenvolvimento de sua pessoa conforme sua identidade de
gênero” (art. 1º, II) e ao estabelecer que “toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de
sexo e a mudança do prenome e imagem registrada na documentação pessoal, sempre que não
coincidam com a sua identidade de gênero auto-percebida” (art. 3º).
Não se deve considerar a cirurgia de redesignação sexual ou de transgenitalização
como uma mutilação ou um risco à integridade física do indivíduo transexual, muito pelo
contrário: deve-se considerá-la como uma garantia de seu direito à vida e de sua integridade
não somente física como também psíquica, visto que muitos transexuais impossibilitados de
realizarem a cirurgia acabam recorrendo a atitudes extremas como a autocastração ou o
suicídio.
Além disso, se esses indivíduos possuem capacidade absoluta para todos os demais
atos da vida civil (como votar e escolher o presidente do seu país, por exemplo), eles também
têm o direito de dispor do próprio corpo. É nesse sentido que se baseia o projeto de lei João W
Nery ao afirmar que “toda pessoa maior de dezoito anos poderá realizar intervenções
cirúrgicas totais ou parciais de transexualização, inclusive as de modificação genital, e/ou
tratamentos hormonais integrais, a fim de adequar o seu corpo à sua identidade de gênero
auto-percebida”. Cabe destacar que nesses casos será necessário apenas o consentimento
informado da pessoa adulta e capaz.
Ainda dentre as questões legais suscitadas pela transexualidade, encontram-se o
casamento e a filiação. A questão do casamento de pessoas transexuais hoje em dia encontra-
se bem menos problematizada, pois a união civil entre pessoas do mesmo sexo já é
reconhecida juridicamente em muitos países. Assim, o argumento de que o casamento só
poderia ser realizado entre pessoas de sexos diferentes não é mais cabível e o casamento entre
transexuais não fica condicionado ao reconhecimento civil de sua identidade de gênero. O
argumento que destaca a finalidade procriadora do casamento também não é mais cabível,
visto que existem inúmeros casais sem filhos, por escolha ou em virtude de problemas de
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saúde de um dos cônjuges, e que nem por isso tiveram seu direito ao matrimônio cerceado.
Isso nos leva a uma outra questão: a filiação. O entendimento dominante da doutrina
sustenta a imutabilidade das relações de filiação, assim a redesignação do indivíduo
transexual não deveria constar nos documentos de filiação. A lei Joao W Nery manifesta-se
quanto a essa questão ao estabelecer no seu artigo 7º que a alteração do prenome não alterará
a titularidade dos direitos e obrigações jurídicas, nem daquelas que provenham das relações
próprias do direito de família em todas as suas ordens e graus, as quais se manterão
inalteráveis, incluída a adoção.
Ainda o parágrafo 1º do referido artigo estabelece que da alteração do prenome em
cartório prosseguirá, necessariamente, a mudança de prenome e gênero em qualquer outro
documento, preservando-se a maternidade ou paternidade da pessoa trans no registro civil de
seus/suas filhos/as (§ 2º), bem como seu matrimônio (§ 3º) retificando-se também tais
registros civis se assim for solicitado, independe da vontade do outro pai/mãe ou cônjuge.
Essas disposições mostram um respeito não somente ao princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana como também aos direitos fundamentais à liberdade e igualdade
sem distinção de qualquer natureza previstos no caput do artigo 5º da nossa Carta Magna,
demonstrando o comprometimento do nosso Direito com a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária (§ 3º, inciso I).

TRANSFOBIA

Aqueles que desafiam as “normas de gênero” e performatizam um gênero diferente


daquele esperado para o seu sexo biológico, como travestis e transexuais, são socialmente
marginalizados e ficam expostos a violências diversas. Conforme fala de Daniela Andrade:
“quando se fala em travestis e transexuais, a gente está falando de uma população que tem
escrito no seu próprio corpo a sua identidade”620. Por isso, o preconceito e a violência que a
população transgênero enfrenta é muito maior.

620
Entrevista concedida ao canal Ponte Jornalismo referente ao projeto Visibilidade Trans. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Dt9LeyyJtKc
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Nas palavras presentes na justificativa do Projeto de Lei de Identidade de Gênero:

Se para lésbicas e gays, serem visíveis implica em se assumirem publicamente, para


as pessoas transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, a visibilidade é
compulsória a certa altura de sua vida; isso porque, ao contrário da orientação
sexual, que pode ser ocultada pela mentira, pela omissão ou pelo armário, a
identidade de gênero é experimentada, pelas pessoas trans, como um estigma que
não se pode ocultar, como a cor da pele para os negros e negras. [...] Travestis,
transexuais, transgêneros e intersexuais não têm como se esconder em armários a
partir de certa idade. Por isso, na maioria dos casos, mulheres e homens trans são
expulsos de casa, da escola, da família, do bairro, até da cidade.

Assim, entende-se por transfobia a violência e o preconceito perpetrados contra


travestis e transexuais que pode se manifestar através de agressões verbais, psicológicas e/ou
físicas, podendo ser inclusive letais, causando uma perda do direito à vida e a liberdade desses
indivíduos. Ela gera não somente preconceito, como também graves violações de direitos
humanos e fundamentais, expondo os indivíduos pertencentes a essa experiência identitária à
violência social e institucional. Segundo Kulick (apud CRUZ e SOUSA, 2014), os/as
transexuais constituem um dos grupos mais marginalizados e desprezados da sociedade
brasileira.
As violências perpetradas contra transexuais geralmente ocorrem em espaços públicos
e mediante o uso de armas de fogo. Têm como características básicas o uso exacerbado da
crueldade: corpos esmagados ou mutilados, número exagerado de tiros e geralmente em locais
geográficos do corpo ligados à sexualidade. Aliás, pode-se dizer que a violência proveniente
do ódio transfóbico se constitui entre o excesso e o inexplicável (EFREM FILHO, 2013)
O Brasil é o líder mundial em mortes de travestis e transexuais, sendo responsável por
39,8% dos assassinatos decorrentes de transfobia do mundo621. Segundo relatório produzido
pela ONG Transgender Europe, entre janeiro de 2008 e abril de 2013, 486 pessoas trans
morreram no país, um número quatro vezes maior do que no México, que é o segundo país
com mais casos registrados622.
E muitas vezes esses casos de violência são ignorados pela grande mídia, pois não

621
Dados da pesquisa Transrespect versus transphobia worldwild, da ONG Transgender Europe. Disponível
em: <http://www.transrespect-transphobia.org/>
622
Disponível em: http://www.geledes.org.br/a-policia-que-e-para-proteger-acabou-de-matar-diz-pai-de-
transexual-assassinada-em-sp
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geram audiência ou comoção nacional. Na verdade, as violências perpetradas contra essa


população são legitimadas pela sociedade em geral que não reconhece aos travestis e
transexuais o status de “humanidade”, de seres merecedores de dignidade e respeito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sendo assim, é necessária e benéfica não somente a aprovação do Projeto de Lei de


Identidade de Gênero (PL 5002/2013), mas também a sua publicidade, para que ela se torne
conhecida pela maior parte da população e possa ser assim respeitada. Afinal, conforme
afirmado por Oscar Vieira Viana (2008), uma das razões que levam as pessoas a obedecerem
a lei é de natureza cognitiva, ou seja, as pessoas precisam conhecer a lei e seus conceitos
jurídicos básicos para respeitá-la. Nesse sentido, o presente trabalho visa ser um meio de
esclarecimento e informação sobre um assunto tão importante e infelizmente, ainda pouco
discutido.
A identidade trans é mais uma das diversas possibilidades que a vida humana
apresenta e como todas as outras, precisa de liberdade para ser e se desenvolver. Esse
entendimento também é compartilhado por Amaral (2011), ao afirmar que são as normas de
gênero que afetam a vida dessas pessoas, por isso a intervenção deve estar focalizada nos
aspectos que tornam o indivíduo vulnerável à transfobia e comprometem o livre
desenvolvimento do sujeito. Assim, o presente trabalho não é um fim em si mesmo, mas
apenas o ponto de partida de uma longa jornada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Daniela Murta. Os desafios da despatologização da transexualidade: reflexões


sobre a assistência a transexuais no Brasil. UERJ. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em:
<http://www.academia.edu/2530081/Os_desafios_da_despatologiza%C3%A7%C3%A3o_da_
transexualidade_reflex%C3%B5es_sobre_a_assist%C3%AAncia_a_transexuais_no_Brasil>.
Acesso em: 30 de junho de 2015.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
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DF: Senado Federal, 1988.


CRUZ, Mônica da Silva; SOUSA, Tuanny Soeiro. Transfobia Mata! Homicídio e Violência
na Experiência Trans. In: CONPEDI/ UFSC, 2014. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4e00844f94e3625d>. Acesso em: 30 de
junho de 2015.
EFREM FILHO, Roberto. Corpos brutalizados: conflitos e materializações nas mortes de
LGBT. 37º encontro anual da ANPOCS. São Paulo, 2013. Disponível em:
<www.portal.anpocs.org>. Acesso em: 17 de agosto de 2015.
PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo: o direito a uma nova identidade
sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
PINHEIRO, Livia R. Entenda Identidade de Gênero e Orientação Sexual. Disponível em:
< http://www.plc122.com.br/orientacao-e-identidade-de-genero/entenda-diferenca-entre-
identidade-orientacao/#axzz3bIVaYksV > Acesso em: 30 de junho de 2015.
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direitos humanos em relação a orientação sexual e identidade de gênero. Genebra, 2007.
VIANA, Oscar Vieira. A Desigualdade e a Subversão do Estado de Direito. Oxford:
Oxford University Press, 2008.
WYLYS, Jean; KOKAY, Érika. Projeto de lei João W Nery ou Lei de Identidade de
Gênero. PL 5002/2013. Dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o art. 58 da Lei
nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973. BRASÍLIA. Câmara dos Deputados. Disponível em:
<www.camara.gov.br>. Acesso em: 17 de agosto de 2015.

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VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: ESTUDO DE CASO NA DELEGACIA


ESPECIALIZADA DE ATENDIMENTO À MULHER, BELÉM, PARÁ.

Ana Daniele Mendes Carrera623 | lanacmacedos@gmail.com


Iuli Liliana Tomaz Chaves624
Lana Claudia Macedo da Silva625

INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher em todas as suas formas (psicológica, física, moral,
patrimonial, sexual, e outras) é um fenômeno que atinge mulheres de diferentes classes
sociais, origens, regiões, estados civis e escolaridade. Nesse sentido, o interesse por
desenvolver esta pesquisa parte dos índices de violência contra a mulher na sociedade
brasileira, especificamente no Estado do Pará.
Segundo pesquisa divulgada recentemente pelo Mapa da Violência do Instituto
Sangari (2012), em dez anos de estudo, o Pará quase duplicou o número de homicídios
praticados contra as mulheres. Desse modo, partindo de uma necessidade social, política e
educativa em minimizar a violência contra a mulher que se reproduz principalmente em
ambientes familiares e são silenciados pela sociedade por ainda aceitarem como um problema
privado, considerados por vezes “isolados” dos demais problemas presentes no cotidiano. Do
ponto de vista acadêmico a reflexão da violência contra a mulher traz a baila um tema
excluído do currículo das universidades, apesar de atingir número significativo de mulheres
violentadas. Procurando analisar alguns dados, buscou-se adentrar na Delegacia Especializada

623
Acadêmica de Pedagogia da Universidade do Estado do Pará; Bolsista pelo PROEXT/UEPA.
624
Acadêmica de Pedagogia da Universidade do Estado do Pará; Bolsista Voluntária pelo PROEXT/UEPA.
625
Professora Adjunta II da Universidade do Estado do Pará, Doutora em Sociologia e Coordenadora
PROEXT/UEPA.

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de Atendimento a Mulher no município de Belém, Pará, a fim de mapear a violência exercida


contra a mulher nos anos de 2006 a 2014, assim como, discorrer sobre o histórico da
delegacia e a atuação dos profissionais da DEAM.

METODOLOGIA
Adotou-se como proposição metodológica a pesquisa qualitativa, pois considera a
existência de uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito. A pesquisa qualitativa
pode ser caracterizada como sendo um estudo detalhado de determinado fato, objeto, grupo de
pessoas e fenômenos da realidade, portanto, uma conexão entre a realidade e o homem, entre
a objetividade e a subjetividade. Ou, mais precisamente, na abordagem qualitativa, o
pesquisador deve ser alguém que interpreta a realidade dentro de uma visão complexa,
holística e sistêmica.
Trata-se de um estudo de caso, pois este nos mostra “o delineamento mais adequado
para a investigação de um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto real, onde os
limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente percebidos”. Num primeiro
momento foi realizado estudo bibliográfico sobre as teorias de gênero (SCOTT, 1978;
BEAUVOIR, 1985; SAFFIOTI, 1978 e outros) para fins de subsidiar a pesquisa de campo.
Posteriormente, se realizou o conhecimento ao lócus da pesquisa, em seguida o acesso
documental sobre o histórico de criação da DEAM, os números de ocorrências e os tipos de
crimes relatados nos Livros de Registros e Boletins de Ocorrências existentes na DEAM no
período de 2006 a 2014. Em seguida, foram realizadas as entrevistas semiestruturadas com a
delegada, o escrivão e duas assistentes sociais visando observar as percepções que os mesmos
possuem sobre os episódios de violência, encaminhados a essa instituição, bem como, analisar
a partir do discurso dos mesmos, os encaminhamentos que a delegacia proporciona tanto às
vítimas como aos agressores; os principais desafios encontrados pela equipe técnica no trato
da violência física e sexual; e, por fim, as sugestões que eles consideram importantes em
termos de políticas públicas para a diminuição desses índices que chegam a ser cruéis.
Os serviços de atendimento à violência doméstica contra a mulher, especificamente no
estado do Pará, são concentrados na capital, Belém, que conta com a primeira delegacia
especializada de atendimento à mulher do Estado, propondo junto ao PROPAZ-Mulher uma
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rede de enfrentamento, sendo necessário um trabalho interdisciplinar com outros órgãos,


como o Núcleo de Atendimento à Mulher626, o Centro de Referência Especializado de
Assistência Social e o Centro de Referência Maria do Pará627.

RESULTADOS

De setembro de 2006 a 2014 a delegacia apresentou um total de 53.195 boletins de


ocorrências policiais, dos mais diversos crimes cometidos contra mulher, tais como: ameaça,
vias de fato, estupro, pertubação a tranquilidade, constrangimento ilegal, maus tratos, danos,
violação domiciliar, ijnuria, difamação, calunia, atos obscenos, assédio sexual, extorção,
apropriação indebta, roubo, assedio moral, trafcio internacional de pessoas, subtração de
documentos, aliciamento, estelionato, cantagio venereo, carcere privado, lesão corporal,
tentativa de homicidio e homicidio dentre outros.
Para fins deste estudo, as analises estão voltadas para os crimes de violencia fisica e
sexual, tais como: estupro, tentativa de estupro, lesão corporal, carcere privado, maus tratos,
tentativa de homicidio e homicidio. Crimes estes que são encontrados no Codigo Penal, que
os legitimam, com aplicação de penalidades que podem chegar até vinte anos de reclusão.
Tais crimes somam 505 boletins de ocorrências Políciais nos oito anos de estudo,
representando aproximadamente 0,94% do total de BOs. A pesquisa se detém a esta analise
por constatar os números mais expressivos, dos boletins de ocorrências registrados na Divisão
Especializada no Atendimento a Mulher. Entre os casos denunciados à DEAM/Belém nos
anos de 2006 a 2014, os crimes de violência sexual aparecem em primeiro lugar representado
pelo Estupro com 56,63% de denúncias, seguido por crimes de violência física, representado
pela Lesão Corporal com 17,22% e Tentativa de Homicídio representando 10,29% dos
boletins de ocorrências policiais.
Pesquisa divulgada pelo IBGE no ano de 2009 constatou que existiam no país 1.043

626
O NAEM possui um convênio com o Ministério da Justiça e recebe solicitações da DEAM de medidas
protetivas para as mulheres vítimas de violência e conta com o apoio de uma equipe interdisciplinar. Suas
atribuições fundamentam-se na Lei 11.340/2006.
627
O CRMP oferece um serviço de atendimento multidisciplinar as mulheres que são encaminhadas pela DEAM
ou que procuram a rede espontaneamente, através de ações de promoção, oficinas e atendimento pedagógico e
psicossocial.
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municípios, com algum tipo de estrutura direcionada para a temática de gênero, sendo que o
Brasil possuía naquele ano 5.565 municípios, isto é, somente 19% dos municípios brasileiros
apresentavam alguma estrutura para atender as mulheres que sofriam de violência. (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, 2009).
No ano de 2006, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República (SPM), em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP do
Ministério da Justiça, as Secretarias de Segurança Pública ou Defesa Social, através da Polícia
Civil de diversos estados da Federação e especialistas na temática da violência de gênero e de
diferentes organizações não-governamentais, apresentou a proposta de “Norma Técnica de
Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs”. O
documento, ratifica a concentração de DEAMs na Região Sudeste do país, com 40%.
Ainda hoje se tem a ideia que a mulher é um ser inferior, de segunda classe ou
‘segundo sexo’ conforme denunciou Beauvoir nos idos do século XX (1989), fruto de uma
sociedade patriarcal que tem o falo como símbolo do poder e masculinidade:
No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta
das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância
da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja
nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do
prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da
categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela
violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência
das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este, necessidade de fazer uso
da violência. (SAFFIOTI, 2001, p. 115).

A virilidade é uma noção claramente relacional construída de e para os homens e


contrária a feminilidade, por uma espécie de receio diante do misterioso universo feminino,
considerado mais próximo à cultura do que à sociedade. Não obstante, a virilidade de
(re)afirma pela violência:
Por conseguinte o que chamamos de coragem, muitas vezes tem suas raízes em uma
forma de covardia: para comprova-los basta lembrar todas as situações que para
pratica de atos como: matar, torturar, violentar, a vontade de dominação, opressão,
ou exploração, baseou-se no medo viril de ser excluído do mundo dos homens, o
mundo dos sem fraqueza, dos “duros”, porque são duros para com o próprio
sentimento e, sobretudo para com o sentimento dos outros (BORDIEU, 1998, p. 66).

Nos gráficos pode-se analisar as três categorias mais denunciadas nos anos estudados,
assim como, as que se mantiveram estáveis e ainda aquelas com maior número de registros.

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Segundo a Lei Maria da Penha (LMP), o crime de violência sexual, representado pelo estupro,
é caracterizado pela relação sexual forçada ou mesmo qualquer ato libidinoso ou qualquer ato
íntimo- imposto pela força sem que a mulher possa se defender.

Dados: DEAM/PROPAZ- Belém, 2015.

O estupro é um dos crimes de violência sexual mais praticado contra a mulher e mais
expressivo, segundo a Lei Maria da Penha. Observa-se que mesmo no ano de 2006, foram
registrados 14 boletins de ocorrências policiais na DEAM/Belém. Os anos seguintes trazem
sempre números maiores do que os passados, com maior denúncia nos anos de 2012 e 2013,
revelando que o crime deixou de ser invisibilizado. No ano de 2011, foram notificados
no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da
Saúde, 12.087 casos de estupro no Brasil, o que equivale a cerca de 20% do total registrado na
polícia em 2012, conforme dados do Anuário 2013 do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública.
Apesar de todas as campanhas e recomendações das Organizações Mundiais de não
violência contra a mulher, o que se vê, não só na cidade de Belém, mas no Brasil como um
todo, são números que crescem e preocupam a cada dia. O número de estupros no estado de
São Paulo, por exemplo, ganhou proporções enormes e em Belém não é diferente, visto que
os números apresentados são apenas das ocorrências da DEAM, ou seja, casos registrados em
outras delegacias ditas “comuns” não são computados nesta Delegacia Especializada.
Segundo dados da Secretaria de Segurança de São Paulo, o crime de estupro foi o delito que
mais apresentou denúncias nos últimos oito anos. (Instituto Avante Brasil, 2013).
Nesse sentido, não basta apenas apresentarmos soluções ou agravarmos esse tipo de
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crime, mais que isso, é preciso que os cidadãos sejam educados, começando pela valorização
da vida e do ser humano de um modo geral. Especialmente em relação às mulheres, que por
fazerem parte de uma sociedade patriarcal, encontram dificuldades em denunciar seus
opressores, muitas vezes parceiros e membros da família.
Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE, no
final da década de 80, constatou que 63% das vítimas de agressões físicas ocorridas no espaço
doméstico eram mulheres. Dessas agressões, a mais comum é a lesão corporal que continua
sendo a mais denunciada até os dias atuais.
A Lesão Corporal está no topo da lista de crime mais denunciado de natureza física,
caracterizado por agressões tais como: soco, bofetão, tapa, pontapés, queimaduras ou qualquer
outra forma que prejudique a saúde da mulher.

Dados: DEAM/PROPAZ- Belém, 2015.


De acordo com a DEAM/Belém, ainda se tem um número expressivo com relação a
esse crime. Contudo, percebe-se que nos primeiros anos após a efetivação da LMP os índices
de ocorrências na Divisão Especializada diminuirão, com um aumento relevante aos três
últimos anos. Enquanto a lei condena a lesão corporal, por outro lado, o costume, a cultura e a
sociedade a naturalizam. Essa prática é tão difundida em todas as classes sociais que a justiça
e as próprias mulheres durante muitos anos se colocaram diante dela numa atitude costumeira
e simplificadora. Seja porque se trata de briga de marido e mulher e “ninguém mete a colher”
seja porque “mulher gosta de apanhar”, ou “ela merecia”, o fato é que um silêncio
irresponsável é cúmplice para que ocorra uma segunda, terceira ou tantas outras vezes:
O conflito, ele é gerado por diversas situações, mas assim cada caso é um caso, mas
o que a gente observa, é mais por questões de alcoolismo, o agressor ele tá doente,
por essas questões, pela questão do machismo também, pela questão de uma
sociedade que também é machista que o homem pode e a mulher não pode, e
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também pela falta de orientação da mulher dos direitos delas, do fortalecimento dela,
da autonomia dela, então, é basicamente é isso (A.S 1628. DEAM- PROPAZ/
MULHER, 2015).

A Tentativa de Homicídio é o segundo maior crime de violência física praticado


contra a mulher de acordo com a LMP. No Estado do Rio de Janeiro, segundo os dados da
polícia, por dia, pelo menos cinco mulheres são vítimas desse tipo de violência. Em Belém não é
diferente.

16

Dados: DEAM/PROPAZ- Belém


Além das denúncias, as mulheres recebem orientação na DEAM, há um protocolo a ser
seguido pelo órgão, sendo encaminhadas aos abrigos recebendo acolhimento junto com os filhos
ou não:
A gente identifica cada caso, nós encaminhamos “pras” políticas: políticas
assistêmicas, políticas de saúde, então, no caso a rede de atendimento que atende a
mulher. O CAPES no caso da gente identificar um problema que precisa de um
atendimento fitoterápico ou no caso de uma prisão psiquiátrica. Nós temos também
aqui o apoio psicológico, nós temos as psicólogas, mas o atendimento pra mulher a
gente encaminha pra psicologia e eles avaliam o tratamento fitoterápico,
atendimento clínico mesmo (A.S 1. DEAM- PROPAZ/ MULHER, 2015).

A visibilidade pública dos crimes e as campanhas educativas têm estimulado as


pessoas a procurar o “Ligue 180” e as delegacias de polícia. A sociedade está sendo
conscientizada que a violência contra a mulher não é um problema do casal, mas sim de toda
a sociedade. Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada revelou que pelo
menos 5% de mulheres são mortas em brigas domésticas. Proporção média que tem se mantido
desde 2001(IPEA, 2011).
Apesar dos avanços dos últimos anos, em relação à violência contra a mulher, o Brasil

628
Assistente Social entrevistada que faz parte do corpo técnico da Delegacia Especializada de Atendimento à
Mulher.
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está em sétimo lugar no Ranking do país onde mais se mata mulheres no mundo, segundo o
Instituto Sangari (2014). Outro levantamento realizado pelo Instituto Avante Brasil apontou
que 40.000 mil mulheres foram vítimas de homicídios no Brasil, entre os anos de 2001 e
2010. Só no ano de 2010, 4,5 entre 100.000 mulheres perderam suas vidas no país. A partir do
gráfico com os dados da DEAM-Belém, percebemos que os números de tentativas de
homicídios são bem expressivos.
Dentre as ações de combate à violência contra a mulher, a equipe da DEAM/Belém
conta com um programa educativo de informação e divulgação dos direitos das mulheres, por
meio da realização de palestras ministradas que, acontecem somente quando a comunidade
protocola a necessidade junto a DEAM.
Nesse momento a equipe técnica se prepara, dependendo da disponibilidade dos
mesmos para se deslocarem para a comunidade, com o objetivo de atender a necessidade, com
informações e fortalecimento da mesma, para que denunciem e compreendam em primeiro
lugar a violência de gênero como o pano de fundo de todos os crimes cometidos
principalmente contra as mulheres.

Dados: DEAM/PROPAZ- Belém

Salienta-se que desde 2006 a atividade acontece, tendo apresentado crescimento


vertiginoso nos anos de 2010, com 122 palestras, e 2011, com 145, e uma queda intensa no
ano de 2014 com apenas 15 palestras comunitárias, conforme gráfico acima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
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É possível perceber a irregularidade das palestras apresentadas anualmente, não existe


um compromisso do Estado em garantir recursos: humanos, pedagógicos e didáticos para
desta forma discutir com a sociedade assuntos que são do interesse comum, para a
conscientização e enfrentamento de uma realidade que somente dentro do espaço privado é
exposto.
Deve-se ter em mente que não basta trabalhar apenas com as vitimas, mas sim, com
todas as partes envolvidas na relação, em todas as suas possibilidades de formação, desde a
marital, filial ou aquelas que envolvem outros personagens. Algo que se deve pensar, pois
muitas vezes essa rede de enfrentamento pode ser falha, visto que, muitas mulheres desistem
de dar continuidade ao processo pela dificuldade de se articular para procurar profissionais
que por direito deveriam estar na Delegacia, e por falta de um acompanhamento detalhado do
caso, não se esquecendo de mencionar os profissionais que muitas vezes chegam para somar o
quadro de atendimento e acabam por diminuir, não tendo formação ou orientação adequada
para trabalhar com essas mulheres, as quais, as vezes, só querem ser ouvidas de fato e
precisam de estímulos para que sigam em frente. Contudo, apenas a lei por lei não garante o
rompimento com o ciclo de violência, é preciso se apropriar das políticas públicas e
educacionais a fim de garantir a conscientizar e diminuir tais índices.

REFERÊNCIAIS BIBLIOGRÁFICOS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina; 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres: Secretaria Nacional
de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Secretaria de Políticas para as Mulheres –
Presidência da República. Brasília, 2011.
SAFFIOTI, Heleieth I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero.
Cad. Pagu , no.16 p. 115-136. Campinas, 2001.
______. Gênero, patriarcado, violência. Fundação Perseu Abramo. São Paulo, 1ª ed. 2014.

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SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
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<http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/mulheres/guiadefesamulher.html#11> Acesso em:
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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Pacto Nacional pelo Enfrentamento a Violência
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INSTITUTO AVON/IPSOS, Percepções sobre a Violência Doméstica contra a Mulher no
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ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 7ª ed. 2013. Disponível em:
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edicao> Acesso em: 17/04/2015

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VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UMA ABORDAGEM SOBRE A VIOLÊNCIA


CONTRA A MULHER NO MUNICÍPIO DE MANAUS

Viviane de Oliveira Rocha | vivianerochass@hotmail.com

Michelle Rabelo de Souza

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher no Brasil e no mundo vem sendo tratada como um grave
problema de saúde pública. A Organização das Nações Unidas – ONU reconhece a
violência contra a mulher como um grande problema de saúde pública a ser enfrentado
pelos Estados do mundo inteiro.
A violência contra a mulher pode ser compreendida como qualquer ação que cause
danos, sofrimento físico, sexual ou psicológico, e em casos extremos, a própria morte,
sendo que observa-se que esse tipo de violência ocorre por meio de relações assimétricas
entre homens e mulheres, no qual envolve discriminação e preconceito.
Nesse sentido, utilizamos a pesquisa bibliográfica para elaboração deste trabalho,
fez-se necessário discutir a violência contra a mulher sob a ótica dos papéis de gênero,
analisando se eles têm ou não impacto na manifestação da violência sofrida pelas
mulheres. Dessa maneira, o presente artigo busca revelar um melhor entendimento da
condição geradora desse agravo que afeta as mulheres pelo simples fato de sofrerem
violência perpetrada pelos homens, de maneira que assim são mantidas as relações de
controle e domínio sobre as mulheres.
Com o intuito de coibir práticas de violência contra a mulher, alguns
dispositivos legais foram criados no Brasil, como forma de atuar especificamente nessa
questão. A Lei nº 10.778/03 é um desses instrumentos, cujo teor fundamental é estabelecer
notificação compulsória em todo o território nacional de casos de violência contra a mulher
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que forem atendidas em serviços de saúde público ou mesmo privado.


A Lei acima exposta é complementada pela Lei nº 11.340/06, conhecida como
Lei Maria da Penha, sendo esta a de maior alcance e abrangência no tocante a violência
contra a mulher, pois além de perfazer-se de mais um mecanismo para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, ela também traz medidas mais efetivas, como as
penais para o controle e dimensionamento desse fenômeno. Sendo assim, apoiado em
autores que pesquisam a problemática das violências de gênero, o presente artigo
fundamenta-se na possibilidade de tornar mais acessíveis informações acerca da violência
de gênero, bem como educar e informar a sociedade sobre instrumentos legais que
resguardam os direitos da parte agredida, a fim de que avancemos no sentido de
construir uma sociedade com efetiva equidade de gêneros.

A EMERGÊNCIA DA VIOLÊNCIA NO BRASILNAS ÚLTIMAS DÉCADAS

Para uma melhor compreensão do aspecto conceitual, o termo violência pode ser
entendido como sendo qualquer ação ou o conjunto de comportamentos que redundem,
intencionalmente ou não, em dano a um ser vivo ou a um ser inanimado. Etimologicamente,
deriva do latim violentia, que vem do prefixo vis, cujo significado é vigor, potência, força ou
impulso. As próprias raízes do termo ajudam no clareamento do que vem a ser tal fenômeno e
assim com o passar dos tempos, outras ações foram introduzidas ao referido conceito. Dentre
vários autores que pesquisam e produzem sobre violência, Cavalcanti representa a seguinte
contribuição:

(...) um ato de brutalidade, abuso, constrangimento, desrespeito, discriminação,


impedimento, imposição, invasão, ofensa, proibição, sevícia, agressão física,
psíquica, moral ou patrimonial contra alguém, caracteriza relações intersubjetivas e
sociais definidas pela ofensa e intimidação pelo medo e terror (CAVALCANTI,
2012, p. 29).

A autora refere-se à violência como todo e qualquer ato que viabilize formas de
oprimir outrem bem como sua capacidade de defender-se de manifestações desenvolvidas
através de agressão ou qualquer outra forma de violência implícita no trato que o agressor terá
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com a vítima.
A conceituação de violência pode também trazer outra reflexão, na qual não fornece
somente o elencamento das ações cometidas, e sim o papel do ser humano nesse sentido, que
passa a ter seus atos reduzidos a uma simples coisa ou algo que tem somente um valor
material, ou seja, atitudes que coisificam uma pessoa e suprime sua condição de sujeito.
Acerca dessa conceituação, Marilena Chauí contribui sobre violência como sendo um:
exercício da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo
contrário à sua natureza e contra sua vontade. Por meio da força e da coação obriga-se a
alguém a fazer algo contrário a si, aos seus interesses, desejos, causando-lhe danos
profundos e irreparáveis (CHAUÍ, 2010, p.308).
A partir das ponderações feitas pela autora conclui-se que o ato da violência se
demonstra mediante o uso da força física ou psíquica de um indivíduo para com outro com o
intuito de alcançar determinado objetivo, seja ele num aspecto cotidiano ou não. Esses atos se
dão para obrigar a vítima a proceder da forma na qual convém a esse agressor e assim, se
desenvolve um cenário de submissão e autoritarismo em um paradoxo onde ambos os atores
desse cenário sofrem prejuízos para seu desenvolvimento social.
As evidencias da violência como fenômeno complexo e socialmente construído e
colaboram para a melhor compreensão em torno da violência e suas causalidades. Sendo
assim, é pertinente colocar que a culpabilidade não deve ser atribuída a um ou outro, mas sim
em outras manifestações que carecem de estudo profundo, tais quais seus cernes devem ser
profundamente estudados e apresentados de maneira imparciais para que sejam explicitadas
nas suas mais intrínsecas manifestações.
É importante considerar que a prática da violência tende a se perpetuar. Partindo de
uma afirmativa, alguns autores indicam que os agressores agem reproduzindo atos violentos
que sofreram na infância, tendo na maioria dos casos a reprodução fiel da violência na qual
foram acometidos, e a seguir há informações relevantes em torno dessa visão que a vítima de
abusos físicos, psicológicos, morais e/ou sexuais é vista por cientistas como indivíduo com
mais probabilidades de maltratar, sodomizar outros, enfim, de reproduzir, contra outros, as
violências sofridas, do mesmo modo como se mostrar mais vulnerável às investidas sexuais
ou violência física ou psíquica de outrem. (SAFFIOTI, 2004, p. 18).
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A violência praticada por uma pessoa decorre justamente de todo o processo cotidiano
que esse indivíduo presenciou no decorrer de sua vida. Se ele passou por situações de
violência em seu convívio, ele terá grandes chances de reproduzir a violência. Pode se
classificar a Violencia Domestica por vários tipos, dentre eles serão ressaltados alguns tipos
com mais incidência.
Saffioti (2004, p.17) explana que a violência pode ser vista como um processo de
separação de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade
psíquica, integridade sexual, integridade moral. Desta feita, observa-se que existem dois
tipos que não são palpáveis, são elas a psíquica e a moral. Conforme destacado a violência
psíquica pode ser reconhecida como uma violência palpável a partir do momento em que se
tem cárcere privado, isolamento de qualquer forma de comunicação com qualquer ser
humano.

GÊNERO E VIOLÊNCIA

As discussões sobre gênero vêm sendo desenvolvidas desde a década de 1970 pela
antropóloga americana Gayle Rubin com suas contribuições Rubin conceituar gênero em
(1975) explana que em torno das discussões de gênero existe uma dicotomia denominada por
ela como sistema sexo/gênero. Essa definição, declara que o sistema sexo/gênero é o conjunto
de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto
da atividade humana, e nas quais estas sociedades sociais transformadas são satisfeitas
(RUBIN apud PISCITELLI, 2002, p. 7 -42).
O estudo de Rubin abriu precedentes para outras estudiosas como a historiadora Joan
Scoth, procura desconstruir essa dicotomia, na qual aponta o sexo como a parte biológica e o
gênero como a cultural. Segundo ela, gênero é uma organização social, construída sobre a
percepção das diferenças sexuais imbricadas a relações desiguais de poder (Scott, 1995,
p.71).
Concomitantemente a ideia de Scott, está o pensamento da filósofa americana Judith
Butler, considerada uma das mais importantes teóricas da questão contemporânea do
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feminismo. Butler (2003) traz contribuições indispensáveis para o melhor entendimento sobre
gênero. Tanto Scott, quanto Butler falam a partir de uma perspectiva construcionista social, na
qual se baseiam no pensamento de Foucalt e, ambas apontam que tanto sexo, quanto gênero
são, em primeiro lugar, formas de saber. Baseado nesse pensamento, podemos concluir que
gênero está diretamente relacionado com o estudo a respeito dos corpos, das diferenças
sexuais e dos indivíduos sexuados.
Baseada nessa perspectiva, Saffioti (2004) demonstra que o conceito de gênero é bem
mais vasto que o conceito de patriarcado. Segundo ela, gênero acompanha a humanidade
desde sua existência, já o patriarcado é um fenômeno recente baseado na industrialização do
capitalismo. Atualmente o conceito de gênero vem sendo discutido no universo feminista com
mais centralidade, desviando a atenção para as discussões sobre patriarcado. Essa
exclusividade em discutir a categoria gênero abre precedentes para um questionamento deles
sobre o real interesse por trás da desconstrução do sentido do patriarcado em benefício dos
ricos usos de gênero e que, no decorrer da história, as mulheres vêm sendo hierarquicamente
inferiores em relação aos homens. Para Saffioti, tratar esta realidade exclusivamente em
termos de gênero distrai a atenção do poder do patriarca, em especial como homem/marido,
neutralizando a exploração-dominação masculina (SAFFIOTI, 2004, p. 136).
Santos e Izumino (2005) relatam que os primeiros estudos sobre o tema têm por objeto
as denúncias de violência contra as mulheres nos distritos policiais e as práticas feministas,
não governamentais de atendimento às mulheres em situação de violência (SANTOS,
IZUMINO, 2005, p.2). Segundo as autoras, para adentrarmos nesse universo é necessário nos
apropriarmos de referências teóricas que busquem definir o fenômeno social da violência
contra as mulheres e a posição das mulheres em relação à violência.
É possível perceber que alguns autores que contribuem para a evolução dos estudos
sobre violência contra a mulher, nem sempre têm posicionamentos semelhantes, porém
carregados de contribuição para o aprimoramento e melhor compreensão acerca do tema.
Ainda nessa perspectiva explicitaremos outros estudos que expõem discussões pertinentes
para o enriquecimento da reflexão proposta por esse trabalho.

MAPEANDO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL E NO ESTADO DO


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AMAZONAS

Segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública o Brasil é um dos países do


mundo com a maior taxa de feminicídios, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, o mesmo ocupa o sétimo lugar com a maior taxa de violência contra a mulher,
estamos atrás apenas de El Salvador, Trinidad e Tobago, Guatemala, Rússia, Colômbia e
Belize e com base nos dados relativos a violência contra os indivíduos mostra, que no ano de
2012, há um quadro preocupante, se observarmos, inicialmente a questão dos crimes violentos
de maior grau, ou seja os que culminam com a morte do indivíduo, como por exemplo,
homicídios, latrocínio e feminicídios.
Internamente, os estados com as taxas mais elevadas de violência contra as mulheres
são o Espírito Santo, Alagoas e o Paraná, respectivamente com taxas de 9,4, 8,3 e 6,3
homicídios para cada 100 mil mulheres. Dentre as capitais, as maiores taxas estão na Região
Norte: Porto Velho, Rio Branco e Manaus.
Segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de forma sintética, quatro em cada
dez mulheres brasileiras já foram vítimas de violência doméstica, e partindo deste ponto, onde
se origina a violência contra a mulher no âmbito familiar.
Instituto de Pesquisa econômica aplicada – (IPEA), realizou uma pesquisa sobre a
violência contra a mulher. A pesquisa trouxe perguntas sobre a relação da visão da sociedade
sobre a mulher. Entre os órgãos que fornece informações ao Instituto destaca-se o SIPS
(Sistema de Indicadores de Percepção Social), com a Pesquisa Tolerância Social a Violência
Contra a Mulher (Strey, 2014).
A pesquisa levantou muitos questionamentos sobre a mulher perante a sociedade e
família, onde percebe-se a permanência da família patriarcal como modelo, positivamente
valorizado e desejável, nos dias atuais.

Quase 64% dos entrevistados e das entrevistadas afirmaram concordar total ou


parcialmente com a ideia de que “os homens devem ser a cabeça do lar”. Presente na
legislação brasileira até a Constituição de 1988, a supremacia do homem dentro da
família ainda é um valor que ganha muitos adeptos, apesar de o número de famílias
chefiadas por mulheres seguir aumentando ano após ano e a importância da renda do
trabalho do homem vir caindo, e assim a exclusividade masculina no papel de
provedor. (IPEA, 2014, p. 4).
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Acerca do tema exposto deixa claro que o papel social fica muito sanado em relação
ao comodismo social e o machismo, não atinge só homens, se visualizar bem a mulher ainda
deve ultrapassar sua barreira do preconceito, pois muitas ainda concordam com imposições
sociais machistas concordando com tais posicionamentos,
Outro dado alarmante que a pesquisa trouxe foi sobre a violência no lar. Em briga de
marido e mulher, não se mete a colher e A roupa suja deve ser lavada em casa. Na pesquisa
63% das pessoas pesquisadas concordam com as questões levantadas a cima. A pesquisa
levantou dois ditos populares que foi explicado pelos pesquisados como casos de violência
dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família (STREY, 2014, p.
15). Os entrevistados com nível superior de ensino foram os que menos concordaram.
A amostra deixa claro que apesar das leis a sociedade ainda não se posiciona diante
das circunstâncias adversas e prefere não se meter nas questões de familiar, mesmo que tais
circunstâncias venham a infringir a lei. A sociedade individualista de hoje não nos deixa
pensar na perspectiva da coletividade das relações sociais ficando cada vez mais frágeis
fragmentadas desta feita precisa-se urgentemente de uma mudança no campo educacional,
pois a própria pesquisa mostrou que os entrevistados com o maior grau de instrução
discordaram e fariam a diferença em seu posicionamento diante das circunstâncias de
violência.
Outra pergunta realizada pela pesquisa foi a seguinte: “Homem que bate na esposa tem
que ir para a cadeia?”. De acordo com dados indicadores do SIPS, concordaram com essa
afirmação, total ou parcialmente, 91% dos entrevistados em maio e junho de 2013. A
tendência a concordar com punição severa para a violência doméstica transcendeu as
fronteiras sociais, com pouca variação segundo região, sexo, raça, idade, religião, renda, ou
educação. Cerca de 78% dos 3.810 entrevistados concordaram totalmente com a prisão para
maridos que batem em suas esposas, e cerca de 89% tenderam a discordar da afirmação que
“um homem pode xingar e gritar com sua própria mulher”.
A pesquisa apresentada teve por objetivo apurar percepções da população brasileira
acerca de temas afetos à violência contra as mulheres. O pressuposto é de que a adesão a
alguns valores e ideias traduz posturas mais ou menos tolerantes a este tipo de violência.
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Na tentativa de apresentar a situação das mulheres vítimas de violência no estado do


Amazonas, o mesmo ocupa a décima terceira posição no quesito mortes por agressão. Esta
estatística se torna preocupante por conta de vários fatores, um deles, conforme aborda o
Anuário em questão, de onde se extraiu dados para esta pesquisa, mostra que a figuração do
amazonas entre os 13 estados com maior índice de mortes por agressão do sujeito do sexo
feminino no Brasil. Este dado acende o sinal de alerta para os governantes, pois nenhum
Estado se sente à vontade em figurar nesta lista. O Amazonas sendo um Estado com grande
potencial na área do Turismo, pode ter seus planos frustrados no sentido do desenvolvimento
do estado pela exploração do turismo, sendo que o turista, ao se deparar com esta estatística,
pode ter seu destino alterado em virtude dos altos índices de violência que apresenta o Estado
do Amazonas.
O baixo nível de incidência de violência para o sexo feminino no Amazonas, podem
gerar uma falsa estagnação, mas estes índices retratam um cenário em que a mulher está
também figurando, ou seja, não está livre de um contato com a violência ou sendo oprimidas e
contribuindo para o não oferecimento das denúncias.
Conforme a secretaria executiva Adjunta do Programa Ronda no Bairro, no ano de
2013 e no primeiro semestre de 2014 a grande incidência perpassam as zonas leste e norte no
que tange a violência doméstica contra a mulher, tendo como destaque nas estatísticas a zona
leste. Essas estatísticas retratam uma realidade conceitualmente originarias diárias em que as
situações socioeconômicas são desfavoráveis, sendo que essas duas zonas com a maior
incidência de violência doméstica são exemplos com a realidade contextualizada. Essas
questões socioeconômicas notadamente são; baixa escolaridade, baixa renda, condições
habitacionais com pouca urbanização e saneamento básico e alta densidade demográfica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do estudo foi possível apresentar uma análise e um panorama de violência de


gênero nos dias atuais e as principais medidas elaboradas pelo Estado no enfrentamento da
problemática. Por meio do estudo observamos que o tema é complexo e necessita de
aprofundamento e um estudo minucioso a respeito da problemática, dessa forma, os estudos
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de gênero se configuram em itens de importância relevantes para a compreensão do fenômeno


da violência contra a mulher no Brasil, ressaltando que este problema se tornou um problema
de saúde pública, devendo ser confrontado através de políticas públicas efetivas no intuito de
diminuir esta mazela. De fato, há que se ressaltar também que houveram avanços, como a Lei
Maria da Penha, por exemplo, mas ainda, existe um limite tênue dessas políticas, uma vez que
ainda não podem ser consideradas eficazes no combate à problemática de violência de gênero.
Outro caminho a ser trilhado é a mudança cultural em relação ao papel da mulher na
sociedade de classes, uma vez que a violência contra a mulher tem se justificado pelo o
patriarcado muito presente nas relações de gênero. Desta feita, observamos que apesar das
mulheres terem avançado no aspecto dos seus direitos, ainda há muito a progredir nesse
campo, principalmente na emancipação da mulher nas relações desiguais presenciadas no seu
cotidiano.
Atualmente, a partir da ótica do Serviço Social, podemos constatar que essas questões já
compõem o universo de atuação do assistente social. Isso se dá a partir de novas expressões
que vieram à tona em consequência do recorrente processo de modernização da sociedade
contemporânea. O Serviço Social engloba em seu campo de intervenção social todas as
questões que possam comprometer a equidade social do ser humano, não se privando de
nenhum seguimento que venha a reproduzir a desigualdade social. Podemos perceber que a
questão social está diretamente ligada às discussões de gênero, sendo que essas situações
decorrem de uma série de mazelas desdobradas a partir das novas expressões da questão
social que nos são apresentadas no cotidiano do assistente social que se preocupa com essas
questões e que almejam a explicação e resolução dos problemas que acometem determinadas
classes da nossa sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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e Ciência, 2004.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

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O IDEAL FEMININO NA OBRA CASA DE BONECAS DE HENRIK IBSEN

José Albio Moreira de Sales


Hugo de Melo Rodrigues
Cicera Sineide Dantas Rodrigues

INTRODUÇÃO

As discussões acerca do papel feminino têm encontrado na arte uma forte aliada, pois
“[...] A boa arte deve contribuir para o progresso da alma humana [...]” (CARLSON, 1997, p.
240). Ao longo do tempo, essa área específica de conhecimentos tem contribuído para as
diversas análises e interpretações que surgem em torno do debate acerca da questão de gênero.
Mas o que enfatizar em um campo tão vasto de limites e possibilidades? O que
podemos definir como gênero? Como a arte pode contribuir para aprofundar as questões de
gênero? Buscando uma definição para o significado de gênero, vamos compreender que

(...) gênero é a organização social da diferença sexual. O que não significa que
gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e
mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as
diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos
sociais e no tempo, já que nada no corpo, incluídos aí os órgãos reprodutivos
femininos, determina univocamente como a divisão social será definida. (SCOTT,
1994, p.13).

Então, gênero pode ser definido como uma classificação social do feminino e do
masculino, porém, atualmente, a expressão encontra maior ressonância nos estudos que tratam
sobre questões ligadas as mulheres. Nesse caso, quando se trata do papel feminino, são
utilizados alguns canais comunicativos que servem como fontes para ampliar as reflexões
neste campo singular.
No presente estudo abordamos o teatro como um destes importantes canais
comunicativos. Deste modo, destacamos o teatro como um meio artístico que contribui
significativamente para o processo de circulação de ideias e o fortalecimento das discussões
sobre gênero. No decorrer deste estudo, damos visibilidade ao papel educativo que o teatro

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assume nestes debates, considerando que “[...] grande parte do teatro se debruça sobre a nossa
realidade e se coloca na vanguarda das [...] aspirações populares, sem abdicar dos
pressupostos estéticos [...]”. (MAGALDI, 201, p. 15).
O teatro pode ser definido como um lugar, [...] edifício, uma construção especial
projetada para fins de representações e encenações teatrais. O teatro pode ser pensado [...]
como o lugar onde se passam certos acontecimentos que acompanhamos como espectadores,
assim como o teatro do crime, da guerra, das paixões humanas. Podemos chamar igualmente
de teatro aos grandes acontecimentos sociais, assim como a representação das ações
repetitivas da vida cotidiana. (BOAL, 2006).
Para Heliodora (2008, p. 7) “o teatro é, de um lado, uma atividade, uma forma de arte,
na qual as pessoas representam um acontecimento vivido por personagens, e, de outro, o lugar
onde essa atividade acontece”.
Recorrendo ao saber-fazer teatral, no estudo que desenvolvemos, nos remetemos ao
texto teatral Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, para abordar questões de gênero, vinculadas
ao feminino, por meio da personagem principal chamada Nora, que cansada de ser tratada
como uma boneca pelo pai e posteriormente pelo marido, abandona a família, rompendo com
os padrões de comportamento femininos da época.
Nesta perspectiva, o presente estudo tem a finalidade de contribuir com reflexões
sobre condutas e rupturas do ideal feminino no papel desempenhado pela mulher na obra
citada. Na construção da personagem Nora, Ibsen traz para o debate a condição feminina,
enfatizando os aspectos sociais e morais, fato que insere o texto em debates que envolvem a
arte e a condição da mulher na sociedade contemporânea.
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa orientou-se pela abordagem qualitativa. A
coleta de dados foi realizada por meio de consulta bibliográfica e entrevista com alunos da
graduação do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Regional do Cariri - URCA
que encenaram o texto Casa de Bonecas. Os principais teóricos utilizados nesta pesquisa
foram: Carlson (1997), Magaldi (2001) e Heliodora (2008).

HENRIK IBSEN E A DRAMATURGIA DE CASA DE BONECAS

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Imagem de Ibsen:

Fonte: http://www.blahcultural.com/biografia-de-autor-henrik-ibsen/

Em 20 de março de 1828, nasceu Henrik Ibsen, em Skien, na Noruega e foi


reconhecido por suas inúmeras obras, configurando-se um dos maiores dramaturgos da sua
época.
A Noruega, fica localizada ao norte da Europa, tendo sido habitada por populações
germânicas desde a pré-história. No início do século XX, em 1913, a Noruega destacou-se
pela conquista do direito ao voto pelas mulheres norueguesas.
No ano de 1857, Ibsen assumiu o cargo de “Instrutor Dramático” do Teatro Norueguês
de Kristiania, período que favoreceu a escrita dos textos teatrais.
Carlson (1997), afirma que

dramaturgos realistas do final do século XIX - mais notoriamente Ibsen - usaram


de sua técnica de cuidadosa construção e preparação de efeitos, e mediante seu
exemplo a peça bem-feita tornou-se e continua sendo o modelo tradicional da
construção da peça. (CARLSON, 1997, p. 207).

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Entre as peças bem-feitas, podemos citar a obra Casa de Bonecas que foi escrita por
Ibsen em 1879, sendo esta a primeira peça de sucesso internacional e uma das mais
revolucionárias, cuja personagem principal chamada Nora, mulher da elite, cansada de ser
tratada como uma “boneca” pelo pai e posteriormente pelo marido, abandona o lar, marido e
filhos.
Em relação as peças teatrais de Ibsen, Heliodora (2008), acrescenta que

Sua primeira peça realista foi Casa de boneca, na qual ele denuncia o tratamento
burguês da mulher, que, para ser apenas um adorno ‘pertencente’ ao marido, se
dedica apenas às suas funções domésticas de esposa e mãe, fica sem instrução, presa
ao comportamento determinado pelas regras e preconceitos da sociedade em que
vive (HELIODORA, 2008, p. 94).

Assim, a obra de Ibsen, se enquadraria no “[...] tipo favorito do teatro oitocentista, o


drama ‘chocante’ da vida contemporânea” (CARLSON, 1997, p. 204). Sendo considerado
que, “o drama deve tocar todas as coisas sem se deixar manchar por nenhuma delas”
(CARLSON, 1997, p. 204).
Sempre que a obra é encenada, causa uma certa apreensão e surpresa na plateia,
devido o comportamento da personagem Nora, que ao abandonar a família, a sua atitude
provoca diversos questionamentos deixando o público dividido entre os que apoiam e os que
são contra a atitude tomada pela personagem.
Em Casa de Bonecas, Ibsen, por um lado, por meio da personagem Nora, retrata o
ideal de mulher, filha, esposa e mãe almejado pela sociedade burguesa do século XIX e do
outro lado, a atitude da personagem, possibilita um novo olhar sobre a mulher, que a cada
momento vai se reconstituindo.
Em uma das cenas, Nora falsificou a assinatura de seu pai para conseguir dinheiro para
viajar junto com o marido, que estava gravemente enfermo e a viagem poderia salvar-lhe a
vida. Porém, Torvald Helmer condenou a atitude da sua mulher e a proibiu até de encontrar-se
com os filhos, mas depois, arrependido, tenta se reconciliar com a esposa, o que foi em vão.
Nas falas da personagem Nora, percebe-se o desejo e a necessidade de liberdade: “Eu
preciso tentar educar a mim mesma. E você não é o homem que pode me ajudar nisso. Eu
tenho que fazer isso sozinha. Meu dever, meu sagrado dever é em relação a mim mesma”.

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(IBSEN, 2007, p. 97).


Suas reflexões a conduzem a tomar a decisão de abandonar a casa, os filhos e o
marido, recusando-se a continuar a ser tratada apenas como uma boneca. A atitude de Nora é
considerada revolucionária por contrariar o papel feminino desenhado em toda uma geração.
Através da obra ficcional, é possível estabelecer um trabalho comparativo entre ficção
e realidade, tendo como referência a época em que o texto foi escrito (1879). É importante
também destacar que a ficção estabelece uma relação com a sociedade, mas é preciso
compreender que não devemos

[...] tratar as ficções como simples documentos, reflexos realistas de uma realidade
histórica, mas atender a sua especificidade enquanto texto situado relativamente a
outros textos, e cujas regras de organização, como a elaboração formal, têm em vista
produzir mais do que mera produção. (CHARTIER, 1990, p. 63).

Norteados pela abordagem qualitativa, coletamos os dados por meio de consulta


bibliográfica, tendo como base a obra “Casa de Bonecas”, de Henrik Ibsen. Também foram
realizadas entrevistas semi-estruturadas em setembro de 2015, com dois alunos da graduação
do Curso de Licenciatura em Teatro, da Universidade Regional do Cariri – URCA.
Dos quatro alunos do curso de teatro que dramatizaram a obra, fizemos entrevista com
dois deles, sendo uma aluna egressa do referido curso que encenou a peça e representou a
personagem Nora; e um aluno que representou dois personagens e está cursando o último
semestre do curso de teatro, na época da entrevista.
Na entrevista realizada com eles, foram abordadas as seguintes questões:
1. Como ocorreu o seu contato com a obra Casa de Bonecas de Henrik Ibsen?

2. Qual o personagem que você desempenhava e descreva como se deu o processo de


construção do seu personagem em Casa de Bonecas?

3. Para você, quais as condutas e rupturas do ideal feminino no papel desempenhado pela
mulher em Casa de Bonecas?

O dramaturgo norueguês Henri Ibsen se constitui em uma das principais referências na


disciplina de Dramaturgia II, no curso de Teatro da Universidade Regional do Cariri - URCA.

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A ementa da disciplina destaca como um dos seus objetivos “ o estudo de obras


representativas da dramaturgia ocidental dos períodos e/ou estilos: neoclassicismo francês,
ciclo de ouro espanhol, drama burguês, romantismo e melodrama”. (URCA, 2011, p.76).
A proposta de estudar determinadas obras no curso de licenciatura é possibilitar aos
alunos o contato com a biografia de autores e obras significativas para a história do teatro,
estimulando assim, para que essas obras ganhem novas interpretações no teatro, pois
compreendemos que “[...] ir ao teatro, principalmente ao bom teatro, é uma experiência
satisfatória do ponto de vista estético, e enriquecedora para quem quer saber um pouco mais
sobre seus semelhantes”. (HELIODORA, 2008, p. 181)
Magaldi (2001, p. 314) esclarece que “[...] o florescimento da literatura dramática
brasileira tornou-se signo da nossa maturidade artística[...]”.
Após lida e analisada, a obra “Casa de Bonecas” foi encenada no I Semestre de 2014
por Amanda Oliveira, que na época era aluna do curso investigado. A apresentação da peça
teatral ocorreu no Centro de Artes Reitora Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau da
Universidade Regional do Cariri - URCA, na região do Cariri cearense.
Na entrevista, Amanda de Oliveira Lima, nos informou como ocorreu o contato dela
com a Obra citada:

O meu contato com a obra de Henri Ibsen ocorreu na disciplina Dramaturgia II, na
qual, nossa professora mestra, Cecília Raiffer, nos orientou a ler a obra e estudá-la.
Desde então, a obra perpetuou no meu imaginário, me conduzindo a futuramente
transformá-la em uma montagem cênica.

Nosso segundo entrevistado foi Fernando dos Santos Pereira, estudante do curso
pesquisado. Sobre o primeiro contato com a obra, o estudante falou:

Meu contato com a obra de Ibsen ocorreu durante uma disciplina da Universidade; a
de Dramaturgia III em que fiz a leitura encenada da obra e o estudo sobre o seu
autor, logo em seguida recebi o convite da Amanda Oliveira para participar de sua
encenação Casa de Bonecas. Topei na hora devido gostar muito do texto e achar a
temática envolvente.

Sobre o processo de construção da personagem Nora, Amanda Lima esclareceu como


foi desenvolvendo a adaptação da obra de Ibsen:

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Além de diretora da obra, também atuei como atriz. Na minha concepção adaptei a
obra para que tivessem duas Noras e dois Torvald. Interpretei uma das Nora,
juntamente com a atriz Erlândia Benevides. Acredito que a construção do
personagem se deu já nas primeiras leituras quando comecei a adaptar o texto para a
cena. Já tinha em mente que tipo de mulher é a Nora, seus trejeitos e sua forma de
falar. A corporificação da personagem foi desenvolvida através da sala de ensaio, no
qual comecei juntamente com Erlândia a criar partituras, o que ajudou também na
marcação. Pensando bem, o processo de construção de personagem se deu através da
imaginação. Eu partir da imaginação para então, entrar na sala de ensaio e
transmutar o imaginário para o real, o concreto.

Por sua vez, Fernando Pereira representou dois personagens, Torvald Helmer (marido
de Nora) e Sr. Krogstad (o advogado). Sobre a dinâmica de construção de seus personagens, o
ator enfatizou:

Na construção tinha como personagens os dois homens da obra, Torvald Helmer e


Sr Krogstard em maior parte do espetáculo. Para a construção de ambos resolvi
trazer características presentes neles, as quais identifiquei ao ler a obra de Ibsen, tais
como: Torvald, um homem totalmente rígido em suas atitudes, de caráter forte e
impositor perante sua mulher. Ele era machista e tradicional [...] Para o Krogstard
eu trouxe a cobiça, a sede por poder exacerbante e caráter duvidoso em todas as suas
atitudes. Assim, acabei por construir meus personagens seguindo essas
características e aperfeiçoando-as cada vez mais com o pegar do texto e passar do
tempo.

Sobre a questão do ideal feminino presente no papel desempenhado pela mulher no


texto Casa de Bonecas, os estudantes destacaram a presença, no início da obra de Ibsen, do
ideal de mulher perante à sociedade, preparada para exercer atividades domésticas e servir à
família e ao marido, sendo percebida como a rainha do lar. Observaram ainda a presença da
ideia de ruptura com essa condição feminina, promovida pela mudança de comportamento de
Nora, que, insatisfeita com a dominação a que vinha sendo submetida, abandonou o marido, o
lar e os filhos.
A atitude da personagem Nora marca a transição entre a fase de submissão e ruptura,
em que a emancipação feminina passou a ter espaço de relevo na conduta da mulher,
refletindo as mudanças que vinham ocorrendo nas condições de gênero predominantes na
sociedade da época. Para os estudantes entrevistados, a obra de Ibsen provoca essa ideia. Essa
percepção é apresentada por eles nas falas que se seguem:
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Casa de Bonecas é um texto forte que marca a transição da mulher dita “boazinha”
pela sociedade, a que obedece, anula suas vontades, seus ideais, a mulher submissa
para uma mulher de atitude que se permite pensar no que é melhor para ela em
primeiro lugar. Eu como diretora, atriz e mulher, vejo em mim, muito de Nora,
talvez por isso minha vontade de montar esse texto. A identificação [...] Acredito
que essa “rebeldia” da Nora no final do texto, despertou em mim a reflexão de que:
Até que ponto eu deixo de ser quem sou para favorecer a sociedade, minha família
ou outro? (Amanda Lima).

Acredito que a mulher na obra de Ibsen sai do seu caráter de passividade quando se
coloca a frente da situação que se encontra, ela dar seu jeito de resolver as coisas;
digo sai da passividade pelo fato de não aceitar a canalha masculina que por vezes
tenta impor seus conceitos tortos e machista perante a figura feminina colocando-a
em submissão. Pensando na época que a peça foi escrita, vejo essa postura da Norma
em a Casa de Bonecas como forte ruptura de um sistema em que a esposa (mulher)
devia apenas acatar as normas impostas não só pelo seu marido, mas também pelo
pai ou qualquer outro homem de sua família (Fernando Pereira).

Em uma breve análise das falas dos alunos entrevistados, é possível perceber a
potencialidade da arte para promover reflexões sobre temas importantes da realidade. Neste
caso, o teatro foi utilizado como principal linguagem. Por meio desta expressão artística, a
ficção foi tomada como fio condutor para fortalecer o debate sobre a condição feminina e as
questões de gênero que emanam no contexto da sociedade ontem e hoje.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da leitura do texto Casa de Bonecas, da análise do papel desempenhado pela


personagem Nora e das discussões realizadas com uma aluna egressa do curso de teatro e
encenadora da referida obra, e com um dos alunos que interpretou dois personagens desse
texto, percebemos que os aspectos abordados por Ibsen acerca da condição feminina, ainda
estão presentes nas discussões de gênero na atualidade e ganham, cada vez mais, novas
interpretações e configurações, mudando o cenário da participação feminina na sociedade
atual.
Podemos perceber ainda que, depois de mais de um século, as peças de Henrik Ibsen
continuam sendo encenadas, fazendo parte do teatro mundial e das companhias teatrais,
integrando-se também nas discussões do cenário acadêmico.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2006.
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CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Difel, 1990.
HELLIODORA, Bárbara. O teatro explicado aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
IBSEN, Henrik. Casa de Bonecas. Tradução: Maria Cristina Guimarães Cupenino. São
Paulo. Editora Veredas. 2007.
MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. 5 ed. São Paulo, Global: 2001.
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desamores e diferenças. Campinas: PAGU/UNICAMP, 1994, v. 3.
URCA. Projeto Político Pedagógico do Curso de Licenciatura em Teatro. Universidade
Regional do Cariri. Juazeiro do Norte: URCA, 2011.

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LUZ, CÂMERA E SUCESSO: MENINAS EM CENA NA EDUCAÇÃO


INFANTIL

Rafaela de Farias Gomes

Neste artigo será apresentado os resultados de uma pesquisa que foi realizada com
meninas na faixa etária dos cinco anos e fazem parte de uma turma de nível VI da Educação
Infantil no município de Parnamirim/RN. Esse estudo justifica-se pela importância de se
compreender a Cultura midiática e em especial como os desenhos animados se estabelecem
no universo infantil, não apenas no campo da Educação, mas, de modo geral, no contexto
social, político e econômico das sociedades contemporâneas.
Na contemporaneidade nos espaços escolares observamos diferentes modos de ser,
viver e agir. O cotidiano dos nossos alunos e em especial das meninas participantes da
pesquisa nos revelam uma variedade de fatores culturais que perpassam a vida delas e dos
demais alunos e que se fazem presente em sua vivência diária na escola e em outros
ambientes que oferecem o uso de um aparelho de televisão.
Sendo a escola um espaço propicio para o compartilhamento de ideias e trocas de
informações, nós que estamos diariamente em sala de aula com as crianças da educação
infantil observamos que os itens do material escolar, as roupas e calçados e as formas de agir
de muitos dos nossos alunos estão entrelaçadas com os personagens dos desenhos de
animação que eles têm assistido. Para esse trabalho optamos por analisar os desenhos
animados que compõe o universo infantil feminino.
Ao lançar um olhar sobre o contexto social contemporâneo e utilizando-se de lentes
oferecidas pelos estudos culturais em educação e a abordagem Pós-Estruturalista de análise é
preciso entender que todas essas transformações que acontecem fora e dentro da escola, fazem
parte da vida desses alunos, e diante dessas novas demandas sociais observadas no contexto
escolar torna-se preciso que os professores estejam atentos e problematizem questões que
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surgem e criam novas situações nas relações escolares, e para isso podemos observar que

Ora, se as possibilidades do imprevisível da experiência nos parecem ser quase


sempre negadas no espaço da mídia, então, trata-se de falar disso, de investigar as
relações desse fato com os modos de a escola, também ela, negar certas visibilidades
e diferenças, ao mesmo tempo em que se procurará descrever os modos pelos quais
vão se construindo tais estilos midiáticos (e pedagógicos escolares), por meio, por
exemplo, de uma equivalência de temas, valores, afetos e saberes, distantes e
esquecidos das multiplicidades, das tonalidades várias, das incontáveis
singularidades (FISCHER, 2008, p. 31).

Ao perceber e dar visibilidade as relações que as alunas estabelecem com os


desenhos animados e identificar quais desenhos animados estão fazendo parte da Cultura
Midiática das alunas participantes da pesquisa e consequentemente produzindo identidades e
formas de ser e agir socialmente nas crianças que consomem as grandes produções de
desenhos e filmes animados que movimentam a economia global com a exibição do desenho e
com os objetos que são produzidos e comercializados.

TROCANDO AS LENTES E LANÇANDO UM OLHAR PARA OS DESENHOS


ANIMADOS E SUAS RELAÇÕES COM A INFÂNCIA CONTEMPORÂNEA

Com base no que já foi exposto buscaremos apresentar os dados obtidos durante a
pesquisa. As observações específicas para esse trabalho foram realizadas entre os meses de
setembro, outubro e novembro do ano de 2014. Tendo em vista a produção deste trabalho
começamos a direcionar e a motivar ainda mais o início de conversas sobre as mídias
televisivas e, em especial, sobre os desenhos animados.
Para isso, contamos com a roda inicial de conversa em sala de aula e que faz parte da
rotina da instituição e se faz presente em meu planejamento, e, nesse momento, temos a
oportunidade de conversar sobre diversos assuntos, contar histórias, cantar e brincar, sempre
surgem conversas que se relacionam a algum desenho animado assistido por eles e que
sempre movimenta todo o grupo pois todos querem o seu tempo para falar sobre os
personagens e as coisas que aconteceram em algum dos episódios.
Ao realizar algumas conversas sobre os desenhos animados com todos os alunos, fui
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percebendo que realmente esse assunto era do interesse deles, pois muitas vezes, ficava até
difícil organizar o momento de cada um falar. Observei também que até crianças que não
gostavam de se expressar no momento da roda de conversa já estavam pedindo a sua vez para
apresentar sua opinião ou comentar algum episódio do desenho animado.
Após a roda coletiva, decidi realizar a primeira parte da pesquisa apenas com as
alunas da turma, que neste caso foram oito meninas. Desenvolvendo assim uma, dinâmica de
conversa e coleta dos primeiros dados. As alunas foram organizadas em dois grupos,
composto por quatro alunas, no intuito de obter informações sobre cada uma e seus
respectivos desenhos animados preferidos.
Ao conversar com as alunas observei que estavam surgindo uma grande quantidade
de indicações de desenhos assistidos, e foi solicitado que entre os preferidos elas escolhessem
o desenho e o personagem que elas mais se identificam. E assim conseguimos as primeiras
produções artísticas e os relatos das alunas. Ao falarmos identificação ficamos bem próximos
do conceito de identidade, e sobre essas discussões sobre formação de identidade temos como
premissa os conceitos abordados por Stuart Hall, que nos leva a perceber que
o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se
tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não- resolvidas. Correspondentemente, as
identidades, que compunham as paisagens sociais "lá fora" e que asseguravam nossa
conformidade subjetiva com as "necessidades" objetivas da cultura, estão entrando
em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio
processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades
culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático (HALL, 2006, p. 2).

Com base no autor a nossa identidade se torna provisória e variável conforme as


relações que vivenciamos, com esse entendimento sobre a formação das identidades vamos
analisar as duas tabelas que ajudam a compreender e a apresentar os dados que compõe a
pesquisa.
Em um primeiro momento foi solicitado que as alunas desenhassem os personagens
principais de seus desenhos animados preferidos, e, ao concluir os desenhos, perguntei a cada
uma o motivo da escolha do personagem em busca de compreender quais aspectos os
tornavam os favoritos delas. Por critérios de preservação e ética da pesquisa optei por chamar
as oito meninas participantes de A1 até A8.

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TABELA nº 1

A1
A4
A2
A3

A5
A7
A6
A8

Na segunda tabela encontramos a representação feita pelas alunas no que se refere


a uma possível profissão a ser desenvolvida na vida adulta.
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TABELA nº 2

A2
A3
A1 A4

A7
A A8

5 A6

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A análise dos dados apresentados na tabela nº1 e nº 2, e a justificativa das alunas que
foram registradas por mim logo após a produção do desenho serão apresentados no decorrer
do texto que deve seguir a ordem apresentada nas tabelas já mencionadas.
O desenho preferido de A1 é a Barbie Pop Star, e sua personagem em destaque é a
Barbie do castelo de diamante, pois ela é bonita, tem o cabelo longo e veste roupa que tem
estrelas. A aluna quer ser médica para usar roupas bonitas e cuidar de crianças.
A aluna A2, gosta de assistir Clube das winx e Bob esponja, com ela eu não consegui
delimitar um ou outro desenho pois ela disse que adora os dois desenhos. Diante disso ela
desenhou a personagem Estrela do Clube das Winx, e disse que ela tem um quarto bonito,
brinca com as amigas e quando se transforma usa roupas bonitas. Sobre o Bob esponja ela
gosta pois ele é muito engraçado. No futuro sonha em ser modelo para poder usar todas
roupas bonitas.
A aluna A3, assiste as Monster high e sua personagem preferida é a Spectra pois ela
usa roupas bonitas, coloridas, rasgadas e tem um sapato que se transforma em foguete e faz
voar. Disse que quer ser modelo pra ficar bonita e usar roupas legais e coloridas, bolsas e
brincos.
A participante A4, prefere assistir My Little Pony, por gostar muito da princesa
Twilight Sparkle que se diverte brincando e cantando. No futuro quer ser cantora, pois as
cantoras ganham muito dinheiro para comprar carro e casa.
A aluna A5, gosta de assistir o desenho Monster high, e a personagem preferida é a
Draculaura pois ela tem muitas amigas e usa roupas bonitas. Disse que no futuro quer ser
Roqueira pois usa roupas legais e os irmãos escutam Rock em casa.
A participante A6, prefere assistir o desenho É hora de aventura, e adora a princesa
Jujuba pois ela tem o cabelo loiro e longo. Na vida adulta quer ser médica para não deixar as
pessoas ficarem doentes e também porque as médicas são muito bonitas.
A aluna A7, gosta do desenho das Meninas super poderosas, por serem divertidas,
mas a personagem preferida e a Florzinha. No que se refere a profissão para a vida adulta a
aluna disse que quer ser empregada doméstica, pois gosta muito de arrumar a casa, limpar as
coisas, cozinhar, lavar a louça, e lavar o banheiro, e todas essas coisas a mãe dela ainda não
deixa ela fazer.
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A última participante A8, assiste o desenho Monster high e a personagem preferida é


a Cleo, pois ela é muito bonita e usa vestidos bonitos. No futuro a aluna quer ser cantora pois
gosta de cantar para Jesus, quer usar vestidos e botas e também as luzes do palco são muito
bonitas.
Diante do exposto foi possível identificar e estabelecer algumas relações entre as
alunas e os personagens do seu desenho animado preferido, evidenciamos que as formas de
ser, agir, se relacionar e de se vestir dos personagens foram utilizados e enfatizados pelas
alunas em suas justificativas tanto na oralidade, quanto no registro através de desenhos que
elas fizeram.
As meninas quando questionadas sobre o seu personagem preferido sempre se
expressaram com admiração aos acessórios, calçados ou roupas que a personagens usam,
assim como também deram relatos sobre os personagens que brincam, se divertem e tem
vários amigos, deixando claro que ter amigos é sinônimo de diversão.
Foi interessante observar a ligação que elas estabeleceram entre os personagens
preferidos e as possíveis atuações profissionais na fase adulta. As meninas mostraram maior
motivação em carreiras que proporcionam sucesso com o público e também com as que
supostamente geram um rápido retorno financeiro, mas o que também ficou explicito a
relação entre o perfil das personagens citadas com as alunas que desejam ser cantoras e
modelo.
Nessa perspectiva de dar visibilidade as relações que perpassam a vida dos nossos
alunos e que apresentam novas configurações ao cotidiano escolar e diante das discussões
realizadas nessa pesquisa, buscamos evidenciar situações que formam e (con)formam nossos
alunos e que estão fortemente ligadas as transformações sociais da sociedade pós-moderna
constantemente passa por transformações políticas, sociais e culturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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COSTA, Marisa Vorraber; SILVEIRA, Rosa Hessel; SOMMER, Luis H. Estudos Culturais,
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vai à escola. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Tese (Doutorado em Educação).
RICHARDSON, Roberto Jarry. (et al) Pesquisa social: métodos e técnicas. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2008.

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IMAGENS FEMININAS EM ESPAÇOS ECLESIÁSTICOS DO BRASIL


COLONIAL: ORIENTAÇÕES E RECOMENDAÇÕES TRIDENTINAS

Michael Douglas dos Santos Nóbrega629 | michaeldsn@gmail.com


Kátia Adriano Matias da Silva630| katia.adriano1492@gmail.com

O ato de representar as coisas de Deus fez parte do imaginário do fiel desde os


primórdios. Pinturas, esculturas, talhas, azulejos e outras experimentações artísticas se
multiplicavam cotidianamente no período moderno. Tais representações tinham como
conteúdo imagens de santos, cenas bíblicas, milagres e história de mártires, entre outras
eventualidades vivenciadas pela igreja e/ou pelos fieis.
Este uso foi uma questão bastante polêmica em diversos momentos para a Igreja,
que o discutiu diversas vezes em documentos oficiais, como as bulas papais, ou em
reuniões específicas para o estabelecimento de consensos doutrinários, como os
concílios e os sínodos631.
O ato de representar Deus por meio de experimentações artísticas foi, em
diferentes ocasiões, considerado por muitos como heresia ou idolatria, práticas

629
Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás. Mestre em História pela Universidade Federal
da Paraíba. Vinculado aos grupos de Pesquisa: Intertartes: processsos e sistemas interartisticos e estudos de
performance; Arte, Cultura e Sociedade no Mundo ibérico (Séculos XVI a XIX). Contato:
michaeldsn@gmail.com .
630
Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba. Técnica da secretaria de educação do município de
Horizonte, eixo fundamenta II – ciências humanas. Contato: katia.adriano1492@gmail.com.
631
O termo “bula pontifícia” refere-se à apresentação, à forma externa do documento lacrado com
pequena bola de cera ou metal. Já umsínodopode ser realizado por qualquer denominação religiosa,
sendo muito comum entre os cristãos. Trata-se de uma reunião convocada pela autoridade eclesiástica.
Um concílio é uma reunião de autoridades eclesiásticas com o objetivo de discutir e deliberar sobre
questões pastorais, de doutrina, fé e costumes (moral). Os concílios podem ser ecuménicos plenários,
nacionais, provinciais ou diocesanos, consoante o âmbito que abarquem.
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condenadas desde o Velho Testamento. Porém, é fato também que a imagem tem uma
inegável capacidade didática, pois é capaz de transmitir ao indivíduo que a observa
cenas que remetem à memória, e também possibilitam introduzir novos conhecimentos a
este observador, pois como lembra Alberto Manguel, “[...] As imagens, assim como as
histórias, nos informam” (MANGUEL, 2001, p. 21).
Segundo Peter Burke, as imagens têm importância, pois são informações mudas
que caracterizam e podem, muitas vezes, ser autoexplicativas e possuir informações em
suas entrelinhas e em seu contexto, “pinturas que foram realizadas para despertar
emoções podem seguramente ser utilizadas como documentos para a história dessas
emoções” (BURKE, 2001, p.60).
Na história da Igreja, o uso de imagens gerou muita controvérsia por parte dos seus
líderes. O Quadro 1 mostra um histórico dos principais acontecimentos relativos ao uso
de imagens pelo Cristianismo durante seu primeiro milênio.

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QUADRO1: O USO DAS IMAGENS PELA IGREJA (VIII-XIX)

ANO EVENTOS AÇÕES


Ressalta que as imagens foram colocadas nas
O Papa S. Gregório escreve a Severo, Bispo
604 Igrejas não para serem adoradas e sim para
de Marselha, sobre a função das imagens.
instruir os ignorantes.
Constantino V Coprônimo, convoca um
Concílio para decidir a questão de ordem
Declarou o culto das imagens como obra de
741 iconoclasta. Contou com a presença de 338
Satã e nova idolatria.
bispos, sem o Papa e sem os Patriarcas
orientais.
O Concílio foi considerado ilegítimo e Constantino V emplaca uma perseguição
769
excomungado pelo Papa Estevão III. ferrenha aos fieis ortodoxos.
Constantino morre e seu filho Leão IV, Foi mais tolerante, porém, não revoga os
775
assume seu posto. decretos anteriores do pai.
O falso Concílio de Nicéia de 754 foi
A Imperatriz Irene sucede Leão IV, rejeitado, os conciliares declararam que a
permitindo o uso de imagens. Ela convoca imagem de Cristo, Maria e dos Santos convém
780
um Concílio ecumênico, o segundo de uma veneração honorífica, pois a adoração
Nicéia. recaí sobre o protótipo, ou a pessoa
representada.
Convoca em Concílio 300 bispos para
No Ocidente, Carlos Magno não aceita
Francoforte. Nesse Concílio, devido a uma má
794 reconhecer um Concílio do qual não
tradução, as decisões do Nicéia II foram
tivessem participado bispos franco.
condenadas.
No Oriente, o Imperador Leão V, renova o Os decretos de 754 voltaram a vigorar,
iconoclasmo e atribui, ao culto das imagens consequentemente as perseguições aos monges
815 e opositores retornaram.
as desgraças do império, na guerra contra
os sarracenos.
No Ocidente, o Imperador Miguel II,
manda uma legação ao rei Luís, o Piedoso
824 -x-
dos Francos, convidando a uma ação
iconoclasta.
Resolveu-se que as imagens não devem ser
nem adoradas, nem veneradas, nem destruídas,
mas hão de ser conservadas em memória
Com a licença do Papa Eugênio II, reúnem- daqueles ou daquilo que representam. Nesse
825 se bispos e teólogos, em Paris, a fim de período o bibliotecário Anastásio refez a
estudarem o assunto das imagens. tradução das atas do Concílio de Nicéia II, sob
o Papa João VIII, isso permitiu que as
determinações conciliares fossem finalmente
aceitas no Ocidente.
Consegue que uma assembleia de eclesiásticos
A Imperatriz Teodora assume como regente
843 em Constantinopla, reabilitasse o culto das
de seu filho menor Miguel III.
imagens.

Fonte: quadro elaborado por Michael Douglas dos Santos Nóbrega (2013), com base em DENZINGER,
Enrique. El Magisterio de la Iglesia: manual de los símbolos, definiciones y declaraciones de la Iglesia

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en materia de fe y costumbres. Barcelona: Editorial Herder, 1963.

O quadro acima expõe o percurso das querelas sobre o uso da imagem na Igreja
cristã e nos mostra como essa questão foi polêmica já na Baixa Idade Média. O começo
do 2º milênio da Era Cristã só viu este uso ser reforçado, pois a imagem era vista “[...]
como estratégia pedagógica para a evangelização de povos de diferentes tradições
lingüísticas e religiosas” (SANT’ANNA, 2006, p. 21). Os concílios realizados pela
Igreja incentivavam essa utilização e ditavam leis e normas para tal uso. Por volta de
1260, São Boaventura, então ministro-geral dos franciscanos, discorre sobre o uso das
imagens, ressaltando as determinações do II Concílio Ecumênico de Niceia:

As imagens não foram introduzidas na Igreja sem causa razoável. Elas derivam
de três causas: a incultura dos simples, a frouxidão dos afetos e a
impermanência da memória. Elas foram inventadas em razão da incultura dos
simples, que não podendo ler o texto escrito utilizam as esculturas e pinturas
como se fossem livros para se instruir nos mistérios de nossa fé. Da mesma
forma, elas foram introduzidas em função da frouxidão dos afetos para que
aqueles cuja devoção não é estimuladas pelos gestos do Cristo recebidos por
intermédio dos ouvidos sejam provocados pela contemplação dos olhos do
corpo em sua presença nas esculturas e pinturas, já que na realidade o que se
vê estimula mais os afetos do que o que se ouve... Finalmente por causa da
impermanência da memória, já que o que se ouve é mais facilmente esquecido
do que o que se vê... Assim, por um dom divino, as imagens foram executadas
nas Igrejas para que vendo-as nos lembremos das graças que recebemos e das
obras virtuosas dos santos.[sic] (AGUILAR apud OLIVEIRA, 2000, p.
38).[grifos meus]

Cerca de três séculos depois, diante de vários progressos na conjuntura europeia, e


devido à Reforma Protestante, a Igreja Romana sentiu a necessidade de modificar alguns
aspectos de suas instituições e práticas religiosas:

Com efeito, até o Concílio de Trento, a Igreja fizera vista grossa para temas
pictóricos pouco compatíveis com o conteúdo doutrinal do catolicismo. Basta
lembrar as imagens de deuses pagãos coexistindo com personagens do
Evangelho. A presença de Ulisses ou de Apolo poderia certamente ter um
significado tipológico, isto é, prefigurando o advento do Cristo, mas não
deixava de suscitar ambiguidades, e até mesmo de dispersar o sentido da
mensagem evangélica. (CONCÍLIO, 2004, p. 65)

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Em 1563, o Concílio de Trento reformula as resoluções sobre os usos da imagem,


realizadas no Concílio de Niceia, esclarecendo a função das mesmas e posicionando-se
contra as críticas iconoclastas (SANT’ANNA, 2006). A ameaça exige que se inspire
mais decência e decoro nas manifestações artísticas. O Concílio de Trento foi uma
resposta direta à Reforma protestante e gerou duas linhas de transformação: a primeira
foi a definição clara da ortodoxia, o reforço de formalidades e a relevância dada ao
conceito de heresia; a segunda foi a busca por uma maior eficácia nas relações entre a
Igreja e os fiéis.

Eles estavam conscientes do seu valor e sabiam como a Reforma tinha


utilizado a imagem para, por exemplo, ridicularizar o Papa ou a venda das
indulgências. Eles sabiam que a maioria da população era iletrada e que o
recurso à imagem poderia desempenhar um papel determinante no ensino
religioso. (EUSÉBIO, 2009, p. 69)

O Concílio estabeleceu de forma clara e objetiva a instrução aos fiéis, quanto ao


uso das imagens e seus objetivos, além de definir o papel dos santos como intercessores
e responsáveis por levarem orações, e outras demandas, dos fiéis a Deus. Desse modo,
se torna extremamente útil invocá-los humildemente e recorrer às orações e, demais
táticas de aproximação para alcançar benefícios de Deus (TRENTO, 1781, p.349).
A veneração dos corpos dos santos mártires também recebe uma orientação
especifica em Trento, incluindo as imagens de Cristo, da Virgem Maria e de todos os
santos, com as quais se deveria ter cuidados específicos quanto à conservação, além de
lhes tributar a devida honra e veneração. A documentação resultante do Concílio expõe,
em mais de um de seus decretos, justificativas para o uso de imagens:

Mas por que a honra, que se lhes dá, se refere aos originais, que ellas
representão: em forma que mediante as Imagens que beijamos, e em cuja
presença descubrimos a cabeça, e nos prostramos, adoremos a Cristo e
veneramos os Santos, cuja semelhança representão: o que está decretado pelos
Decretos dos Concílios, principalmente do Niceno segundo, contra os
impugnadores das Imagens. (TRENTO, 1781p. 351)

Uma das principais críticas da Reforma protestante à Igreja Romana consistia na


idolatria e veneração de imagens por parte de seus fiéis. Com as deliberações de Trento,

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Roma se defende das críticas e estabelece parâmetros seguros para utilização dessas
imagens nos rituais litúrgicos e na catequese:

Não só por que se manifestão ao povo os benefícios, e mercês, que Cristo lhe
concede, mas também por que se expõem aos olhos dos Fieis os milagres, que
Deus obra pelos Santos, e seus saudáveis exemplos: para que por eles dêm
graças a Deus, ordenem a sua vida, e costumes à imitação dos Santos, e se
excitem a adorar, e amar a Deus, e exercitar a piedade. (CONCÍLIO, 1781,p.
353)[grifos nossos]

Com base em elementos específicos, como os testemunhos, os exemplos


edificantes e as referências à vida pia dos santos e beatos é que a veneração das imagens
passa a ser fundamentada, pois as determinações tridentinas condenam de forma
explícita as imagens de falso dogma e o seu mau uso, já que advertem e admoestam no
que se refere ao uso errôneo destes elementos em festividades, especialmente no que se
refere a determinadas luxúrias e obtenção de lucros, “[...] De modo que as Imagens não
sejam pintadas com formosura dissoluta, e os homens não abusem da celebração dos
Santos, e visita das Reliquias para glutonerias, e embriaguezes” (TRENTO, 1781, p.
355);
Em Trento, foi reforçada a importância da intercessão dos santos, que passam a ser
definitivamente considerados como mediadores privilegiados entre os homens e os céus,
ao passo que a veneração dos corpos de mártires e das relíquias passa a ser cada vez
mais estimulada como estratégia para aproximar a instituição dos fiéis, incutindo-lhes
uma conduta pia e respeitos aos dogmas da Fé. Por isso mesmo a negação e oposição a
tais práticas passa a ser veemente condenada por Roma:

Além disso, devem-se ter e conservar, especialmente nos templos, imagens de


Cristo, da Virgem mãe de Deus e dos outros santos e a elas se deve conferir a
devida honra e veneração, não por se acreditar que haja nelas alguma
divindade ou virtude em razão da qual deveriam ser cultuadas, ou para se obter
algo delas, ou porque se deva depositar confiança nas imagens, como outrora
ocorria com o gentios, que colocavam suas esperanças nos ídolos, mas porque
a honra que é a elas dirigida volta-se para os modelos que representam, de tal
forma que, através das imagens que beijamos e diante das quais descobrimos a
cabeça e nos prosternamos, adoramos a Cristo e veneramos os santos cuja
aparência elas reproduzem. (CONCÍLIO, 2004, p. 67).

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Desse modo, o que ocorre é, na verdade, um retorno ao pensamento do Segundo


Concílio de Nicéia632, onde a imagem era percebida como uma representação. Após
Trento, esta representação tem agregado a ela o papel de elemento de persuasão
doutrinária junto aos fiéis, extremamente central nas estratégias de ação catequética,
especialmente em se considerando as novas demandas surgidas com o advento do Novo
Mundo no cenário de expansão da Fé cristã.
Sucedendo o Concílio de Trento, surgiram tratados teóricos e estéticos acerca das
questões discutidas em suas diversas sessões: sobre o uso das imagens temos os tratados
de Gabrielle Paleotti (1552-1597) e Federico Borromeo (1564-1631), sobre a correta
forma de construir e dispor os elementos internos dos templos católicos, temos o de
Carlos Borromeo (1538-1584). Todos esses tratadistas reformáticos eram homens da
Igreja, ocuparam altos cargos eclesiásticos, chegaram a cardeais e tiveram interesse pela
arte sacra, aprimorando as discussões sobre as imagens dando diretrizes de interpretação
aos decretos tridentino e exemplificando situações práticas por meio de sua erudição no
que se refere às especificidades da iconografia clássica, medieval, renascentista e
barroca.
Antes do Concílio de Trento a questão iconográfica já vinha sendo tratada. As
imagens foram discutidas por pré-conciliares como Ambrosio Catarino, autor de De
certa gloria invocalloneae veneratione sanctorum (Lyon, 1542) e Conrado Bruno, que
escreveu De imaginibus (Augsburgo, 1548). Eles reiteraram a posição gregoriana de que
a arte sacra é a bíblia do iletrado, da mesma forma como foi decretado no Segundo
Concílio de Niceia.
Foi o decreto tridentino específico sobre o uso das imagens que destacou o
interesse da Igreja Romana em exercer um firme controle sobre a produção artística
destinada a decorar e dar dignidade ao culto católico, através de uma constante
supervisão dos programas interpretados pelos artistas por meio do controle exercido por
bispos e arcebispos em suas dioceses:

632
Outros concílios também discutiram e se dedicaram às questões relativas ao uso das imagens, tais
como o Concílio de Trulan, convocado pelo papa Sérgio I; o Concílio de Sinigaglia, convocado pelo
Papa Clemente VII; o Concílio de Augsburg, convocado pelo Papa Paulo III; e o Concílio de Mainz,
também convocado por Paulo III ( apud BORROMEO, 2010, p. 57).
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Se subrayóla importância delempleo de lasimágenes como coadyuvante em


laenseñanza y el culto religiosos, com ele objeto, no solamente de refutar a los
iconoclastas protestastes, sino também de prevenir cualquier posicióna
nicónica dentro del clero habría de radicar, entre otras cosas, en advertir a
lafeligresia acerca del verdadeiro sentido de lasimágenes, em sucalidad de
fidedignas representaciones, tansólo, de sus protótipos.(GERLERO, 1983, p.
19)

A arte pós-tridentina se baseou eu duas questões teorias artísticas que foram


fundamentais para esse desenvolvimento: elas abrangiam as questões referentes
principalmente à decoração e à decência das experimentações artísticas. Quanto à
decoração, o Concílio indica um retorno à iconografia tradicional focando na
identificação das imagens e nas cenas historiadas, sem a intromissão de elementos
supérfluos, nem de caráter mundano, a fim de guardar a santidade do templo. Já a
segunda teoria diz respeito à exclusão de todo vestígio profano e que pudesse suscitar
uma interpretação errônea por parte do espectador.
O Concílio se restringe a estabelecer essas medidas de caráter geral no tocante à
imagem:

[...] laresponsabilidad de amputar del repertorio iconográfico aquellos temas


considerados como peligrosos, a más de la de establecerlos preceptos y guías
claros para lar e afirmación de los temas de importancia para el arte de la
reforma católica habría de recaer em varios tratadistas especialistas em arte
sacro. (GERLERO, 1983, p. 20)

Com a necessidade de por em prática os decretos tridentinos e tratar corretamente


a imagem religiosa, surgiu uma considerável quantidade de tratados, entre os quais se
destacam o Dialogi sex (1566) de Nicholas Hartsfiel; o De typica et honoraria sacrarum
imaginum adoratione(Louvain, 1569), de Nicholas Sanders; o Instructiones fabricae et
supellectilis ecclesiasticae, de Carlo Borromeo(Milão, 1577); o Discorso intornoalle
imagine sacre et profane, de GabrielePaleotti (Bolonha, 1582); oDe picturis et
imaginibus sacris liberunus, de Juan Molano(Lovain, 1570); e, por fim, o De pictura
sacra, de Federico Borromeo(Milão, 1624). Todos esses tratados tiveram uma grande

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difusão e serviram como agentes estéticos, influenciando diretamente os artífices e


artistas europeus no período Barroco
Dentre esses tratadistas três contribuíram piamente para a reforma imagética que
os contrarreformistas iniciaram. Segundo Gerlero (1983), o tratado de Carlo Borromeo
foi o único que aplicou ao decreto de Trento o problema da arquitetura sacra. Seu
interesse era local, já que o arcebispo se preocupava com Milão e suas cercanias, cujas
paróquias estavam sob sua responsabilidade, mas seu uso estendeu às mais longínquas
paragens do mundo católico.
Para entender as obras pós-tridentinas é preciso ter consciência do fundo teórico
que está envolvido diretamente na criação de tais obras. Carlo Borromeo (1538-1584) e
seu sobrinho, Federico (1564-1631), foram bispos e cardeais que tiveram interesse pela
arte sacra durante o período pós-tridentino, o primeiro por ter tido forte atuação nas
sessões do Concílio, o segundo pela erudição e gosto estético, além da formação
dogmática católica que o tio lhe transmitiu.

Convencidos de la inaplazable necesidad de aplicar e interpretar los decretos


conciliares a través de cuerpos orgánicos de preceptos y guías para el clero y
los artistas, se afán era el de reinstaurar, dentro del sentido medievalista de los
cânones eclesiásticos vigente em lá época, la autoridade de laIglesia sobre
temas formales e iconográficos. (GERLERO, 1983, p. 11)

Carlo Borromeo administrou várias ramos do governo espiritual católico, na


qualidade de protetor de Portugal, dos Países Baixos e das ordens dos franciscanos, dos
carmelitas e dos cavaleiros de Malta. Como arcebispo de Milão realizou uma rigorosa
reforma na catedral da cidade, retirando tumbas, armas e outros elementos condenados
pelas determinações tridentinas, se empenhando pessoalmente em decorar corretamente
a sede de seu arcebispado.
Devido a seu caráter rigoroso e performático, Carlo Borromeo foi alvo de várias
dificuldades durante o período em que esteve à frente da Arquidiocese de Milão,
chegando a sofrer um atentado em 1569, por parte de um membro do Umiliati, além de
ter sido denunciado várias vezes nas cortes de Milão e Roma, por parte de alguns
senadores e do governo espanhol, que temiam que as reformas eclesiásticas implantadas

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por Carlo pudessem interferir nos assuntos de ordem civil em seus territórios
(GERLERO, 1983, p. 13).
Em seu Instructiones fabricae et supellectilis ecclesiasticae, Carlo Borromeo se
refere às imagens eclesiásticas e alerta o leitor para uma atenção rigorosa quanto a sua
produção. Em determinado trecho de seu tratado, cujo foco principal era a arquitetura,
aparecem oito pontos que se referem à iconografia e a seu uso nos templos católicos.
Inicialmente, Borromeo se refere aos cuidados e à conservação que se deve
dedicar às imagens sacras, e retoma a discussão tridentina, condenando imagens que
traziam dogmas falsos ou que podiam ofender os fiéis por conter algo profano ou
indecente. E condena a aparição de jumentos, cachorros, porcos e outros animais, tidos
como brutos, sendo esses usados apenas quando a história sacra assim o permitisse, por
exemplo.

Los accesorios, como los que por causa de ornato Suelen añadirlos pintores o
escultores a lasimágenes, que no sean profanos, no voluptuosos, no deliciosos
y finalmente no incompatibles com la sacra pintura, como cabeza humanas
representadas deformemente, que de manera comúnson denominadas
mascarones por el vulgo, no avecillas, no el mar, no prados verdes, no otras
cosas de este género que se representam para recreacíón y perspectiva
deliciosa y ornato. (BORROMEO, 1983, p. 41)

As imagens deveriam ser decoradas com dignidade e santidade, carregando


consigo as características essenciais e atributos de cada personagem sagrado, segundo a
tradição católica, como as marcas das chagas nas mãos de Cristo, por exemplo.
Borromeo alerta para os lugares convenientes para se fixar as pinturas sacras excluindo,
por exemplo, os locais abaixo das janelas e sobreavisa sobre a sagração de tais imagens,
explicando que deveriam ter a devida tradição, conforme o lugar das mesmas e
realização do rito antigo e eclesiástico para benzê-las.
Borromeo adverte ainda contra a vulgarização da representação da cruz, de
figuras hagiográficas e cenas sacras historiadas sobre pavimentos sepulcrais e muros
expostos à umidade. Sugeria que se rotulasse as bases das imagens de santos pouco
conhecidos, cujas advocações não foram do conhecimento da generalidade dos fiéis,
além de recomendar o uso do dourado em abundância.

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Borromeo reitara, sin abundar endetalle, que ciertos temas en pintura o


escultura sacra corresponden litúrgicamente a sítios preestablecido en el
recinto religioso: los marianos e hagiográficos tutelares, el fronstispicio; la
cruz - el tema pasionario por excelencia – entre otros lugares, corresponde
dominar en el centro del cementerio; otros temas pasionarios habrán de
localizarse en tabernáculos, confessionários, etc.; san Juan Baptista ha de ser
el tema primordial associado a los bautisterios. El tratadista reafirma el
decreto tridentino de no representar nada falso, ni supersticioso, ni insólito;
nada profano torpe o obsceno, desonesto o procaz. (GERLERO, 1983, p. 27)

Essas indicações dadas por Carlo Borromeo foram complementadas por outros
tratadistas, como Gabriele Paleotti(1522-1597), outro cardeal italiano seu
contemporâneo e que chegou a arcebispo de Bolonha. Paleotti era uma figura
significativa, e serviu de fonte para busca de conhecimentos sobre as últimas sessões do
Concílio de Trento, tendo sido, em 1590, um dos principais candidatosao papado,
embora hoje seja mais lembrado por seu De sacris et profanis imaginibus (1582), que
estabelece a visão da Igreja Romana sobre o papel e conteúdo da arte adequada à
Contrarreforma.
Paleotti foi designado pelo Papa Pio IV para ser conciliador entre os reformistas e
conservadores. Sua postura moderada e seu zelo com a reforma foram características de
sua vida eclesiástica. Segundo Silva (2014), Paleotti era um exímio escritor e não tinha
interesse por arte até a década de 1570, quando começou a trabalhar em seu De sacris et
profanis imaginibus, obra projetada para cinco livros mas que nunca chegou a ser
concluída de fato (SILVA, 2014, p. 89).
Em seu trabalho Paleotti faz uma consideração sobre as funções da arte religiosa
e da arte secular, com base em textos clássicos, bíblicos e patrísticos. Ele atribui um
lugar sublime à arte e à posição do artista, sempre guiado pela Igreja. Diversas questões
discutidas por Carlo Borromeo foram tratadas também por Paleotti. Ele se refere a
questões específicas da iconografia inserida na arte religiosa, condenando as obras
indecorosas, e incentivando a utilização de representações tradicionais, sendo contrário
às obras criadas sem fundamento bíblico. Diferentemente de outros tratadistas, Paleotti
também escreve sobre a arte profana, secular, exigindo normas condizentes com a
moralidade e decência cristãs.

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Outro tratadista de grande influência foi Federico Borromeo. Para ele as imagens
podiam ensinar a fé, desde que fossem feitas de modo correto633 (BORROMEO, 2010, p.
54). Federico Borromeo estimulava a fé por parte dos artistas e afirmava que não havia
arte religiosa sem a fé por parte de seus criadores. Seu texto aborda diversas questões
iconográficas, entre as quais a de que excomungados não poderiam aparecer junto aos
santos, e também o estímulo aos artistas para que atentassem quanto às fontes literárias.
Suas descrições quanto às imagens são feitas de forma bem minuciosa, servindo de
manual para os artífices.
Certamente os gravuristas, como Michel Demarne foram influenciadas por esses
tratadistas, levando em conta que os principais pontos condenados por eles não fazem
parte da obra do francês. Um exemplo disso é a decência em que a mulher de Putifar
(Figura 1 e 2) se encontra quando assedia José do Egito: se trata de uma cena que
remonta à nudez da mulher sobre a cama, mas nas gravuras de Demarne e nos azulejos
de Teotónio é possível observar que a nudez é encontrada de forma simples, sem
exageros.

Figura 1 –José fugindo da mulher de Putifar. Teotónio dos Santos (atrib.), c. 1730-1740.
Silhar da nave da igreja Conventual, Convento de Santo Antonio, João Pessoa, Paraíba.
Foto: Carla Mary S. Oliveira, 2011.

633
Segundo Federico Borromeo: “At recentiores Pictores ne que imagines repraesentant quales fuere, ne
quequales esse deberent” (BORROMEO, 2010, p. 54)

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Figura 2– José fugindo da mulher de Putifar. Michel Demarne. Histoire sacrée de la Providence et de la
conduite de Dieu sur les hommes...2 vols. Paris, 1728-1730.

Esses tratadistas perpetuaram e fizeram circular no mundo católico as indicações


e regras para criação de imagens e decorações religiosas. Sua influência certamente
alcançou toda a Europa e o ultramar fazendo uma reforma quanto ao uso da arte pela
igreja.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes Impressas
BÍBLIA Sagrada. São Paulo: s. r., 1997.
BORROMEO, Carlo. Intrucciones de la fábrica y del ajuar eclesiásticos. Introdução,
Tradução e notas de Bulmaro Reves Coria. Cidade do México: Imprenta Universitária,
1985.
BORROMEO, Federico. Sacred painting/ Museum.Edição Bilíngue. Organização e
Tradução de Kenneth S. Rothwell Jr. Cambridge, EUA &Londres: Harvard University
Press, 2010.
DEMARNE, Michel. Histoire sacrée de la Providence et de la conduite de Dieu sur les
hommes...2 vols. Paris: Chez Guillaume Desprez & Jean Desessartz, 1728-1730.

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SANT’ANNA, Sabrina Mara. A boa morte e o bem morrer: culto, doutrina, iconografia e
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Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006.

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AS NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS EDUCACIONAIS DE ODETE MOURA:


PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

Robson Carlos da Silva634


Keylla Layse de Sousa Araújo635
Cândida Angélica Pereira Moura636

INTRODUÇÃO

O artigo é uma produção PIBIC/Voluntário 2015/2016, vinculada ao Núcleo de


Pesquisa em História Cultural, Sociedade e História da Educação
Brasileira/NUPHEB/UESPI, a partir de um Projeto de Pesquisa Educação, Instituições
Escolares e Educadores Piauienses, o qual tem o escopo de desvelar e analisar o legado
educacional da educadora Maria Odete Moura, de Sigefredo Pacheco/PI, a partir de aspectos
de sua trajetória de vida.
O interesse pela temática se consolidou a partir do interesse sobre a construção da
memória da Educação Piauiense, assentado em questionamentos tais como: Como se
consolidou o processo de constituição das instituições escolares piauienses? Como aconteceu
o processo de formação dos educadores e educadoras piauienses? Quem foram estes
sujeitos/as e quais suas contribuições para o desenvolvimento da educação escolar no Piauí?
Quais os reflexos e os impactos de suas trajetórias de vida, em especial, sua trajetória

634
Pedagogo (UFPI), Mestre Em Educação (UFPI), Doutor em Educação (UFC), com Pós-Doutoramento pelo
PPGE/História da Educação da Universidade Federal da Paraíba/UFPB sob orientação do Professor Doutor
Charliton José dos Santos Machado; Professor Adjunto II da UESPI; Coordenador do Núcleo de Pesquisa em
História Cultural, Sociedades e História da Educação Brasileira (NUPHEB)/CCECA/UESPI.
635
Aluna do Curso de Pedagogia/UESPI. Pesquisadora-Voluntária do PIBIC/CNPQ 2015-2016.
636
Pedagoga, Professora Substituta da UESPI/Torquato Neto, Especialista em Recursos Humanos (UVA),
Membro do NUPHEB/UESPI.
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educacional para a sociedade piauiense?


Estes e outros questionamentos se constituíram na base fundamental e de fomento que
conduziram as buscas de respostas para estas questões e o preenchimento das lacunas
persistentes quando se trata de educação em nossa sociedade.
Nas idas e vindas frente a um vasto e complexo universo que se descortinava,
assentados nos estudos sobre história e memória da educação e pesquisa biográfica, centramos
nosso olhar sobre a história de vida de uma educadora piauiense, destacando aspectos dessa
trajetória, sua formação e atuação, seus desafios e satisfações, as dificuldades pessoais,
institucionais, sociais e outros aspectos que pudessem contribuir para o desvelamento de
aspectos da história da educação piauiense.
Situamos nosso estudo na abordagem da Nova História Cultural, pela certeza de que se
trata de uma corrente teórico-metodológica que descortina questões outras relacionadas a
novas inquietações, novos objetos de estudo e novos métodos na condução do tratamento e
análises históricas e historiográficas, em especial em história da educação. Vale destacar que,
em outras pesquisas desenvolvidas637, notadamente em acervos de bibliotecas públicas,
levantamos significativo corpo de documentos que contribuiram para um maior
aprofundamento sobre a memória da educação no Piauí, porém ainda escassos acerca da
memória dos sujeitos dessa história.
Foi o que nos motivou a nos dedicamos, a partir de nossa aventura na abordagem da
Nova História Cultural, ao método da História Oral, método sobre o qual já vínhamos
desenvolvendo outras pesquisas, principalmente assentados nas ideias de Alberti (2006), que
acredita na História Oral enquanto abordagem que proporciona uma melhor aproximação do
passado com o presente ao possibilitar a emersão de múltiplos olhares sobre um mesmo
acontecimento, pelo "[...] acesso da história dentro da história" (p. 154), a partir do registro
dos testemunhos dos próprios sujeitos dessa história, o que, dessa forma, contribui
sobremaneira para a ampliação de interpretação do passado sobre o qual se detém.

637
De agosto de 2013 a julho de 2014, desenvolvemos o projeto de pesquisa aprovado no PIBIC/CNPQ,
intitulado "Fontes documentais, narrativas orais e história das instituições escolares: um estudo das trajetórias,
dos percursos de formação e das representações do Ginásio Leão XIII em Teresina/PI", contando com a aluna-
pesquisadora Charlene de Sousa Lima Araújo, do curso de Pedagogia/UESPI, tendo como fontes, além das
fontes orais, uma imersão no acervo documental e de hemeroteca do Arquivo Público do Estado do Piauí, Casa
Anísio Brito, em Teresina/PI.
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Para a efetivação da pesquisa, elaboramos um projeto de pesquisa, o qual foi submetido


e aprovado no PIBIC/CNPq 2015/2016, versando sobre a história de vida de uma professora
piauiense Maria Odete Moura, que exerceu suas práticas pedagógicas como professora e
como gestora no ensino público de sua cidade, idealizando e executando vários projetos
educacionais, dentre os quais a fundação de uma biblioteca pública em sua cidade de origem.
O projeto se encontra em andamento, sendo que o artigo se deteve no desvelamento das
análise sobre os primeiros achados produzidos na pesquisa, acreditando que estes achados, as
leituras que seguimos efetivando sobre suas memórias, pleiteiam, além da reconstrução dos
sentidos de suas concepções educativas, o desvelamento de aspectos significativos da
educação no Piauí.

OS ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DO ESTUDO

Nossa investigação, se ancora numa abordagem qualitativa, por entendermos ser a mais
apropriada no suprimento de nossos interesses e na condução dos processos de formulação de
questionamentos, assim como, na escolha, condução, produção e no tratamento dispensados
aos dados da investigação, visto que, a pesquisa qualitativa se desenha, conforme Chizzotti
(2005), de modo a possibilitar a relação dinâmica entre o real e o sujeito, pela
interdependência entre o objeto e o sujeito, entre o mundo objetivo e a subjetividade do
sujeito.
A pesquisa se assenta na abordagem teórico-metodológica da Nova História Cultural
(NHC), analisando, de forma específica, a contribuição educacional da educadora piauiense
Maria Odete Moura. A NHC faz emergir uma multiplicidade de objetos, novos métodos e
abordagens diversas, além de uma variabilidade de fontes, em especial a partir da História
oral (ALBERTI, 2006) e da Micro-História, abordagem que permite o estudo, a interpretação
e a reflexão sobre uma pluralidade de realidades e uma amplitude de personagens, incluídos
sujeitos pertencentes as mais diversas classes sociais, descortinando a possibilidade de
pesquisas históricas centradas em temáticas dos mais diversos matizes e focadas nas pessoas
comuns, nos sujeitos protagonistas de suas próprias histórias, contextualizando-as
temporalmente, em especial, por meio da biografia e dos métodos biográficos. (BURKE,
2008, 2011).

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Na escolha do trabalho com métodos biográficos e autobiográficos, seguimos as


reflexões de Boas (2008, p. 35), especificamente quando afirma que, nas pesquisas
biográficas, "A escolha do personagem envolve razões concretas, insights, associações livres,
oportunidades, sincronicidades, sutilezas. Nada disso pode estar dissociado do self do
pesquisador biográfico".
Trabalhar com fontes autobiográficas, com histórias de vida e narrativas, favorece ricas
em possibilidades analíticas e metodológicas, notadamente pela diversidade de objetos que se
descortinam enquanto passíveis de incursões e compreensões por meio destas fontes, sendo
que o produto dessas incursões agrupam elementos fundamentais na análise de processos de
formação e práticas, das invenções da vida. (VICENTINI, ABRAHÃO, 2010).
A ação de rememorar, atrelada ao conhecimento adquirido pode levar à transformação
das próprias práticas, a partir da possibilidade de sensibilização que vai ocorrendo à medida
que a pessoa retoma e seleciona as práticas que vivenciou e as reelabora, visto que, segundo
Gagnebin (2009), a memória é uma faculdade paradoxal, por ser ligada a uma atividade que
se escolhe lembrar e, ao mesmo tempo, a algo inativo, esquecido, mas que surgem, retornam
em imagens que nem mesmo gostaríamos de nos lembrar, pois memória, lembrança e
esquecimento fazem parte da mesma faculdade, são ligados entre si, existindo coisas que são
melhor lembradas do que outras, de um processo de escolha consciente em que se quer
lembrar de umas coisas e de outras não, das quais chega-se mesmo a fugir.
O conceito de narrativa ficou mais claro a partir da leitura de Gibbs (2009, p. 80), o que
nos levou à compreensão que as narrativas, ou "narração de histórias", se constituem em uma
das formas basilares por meio das quais as pessoas organizam e dão sentido a sua
compreensão de mundo, compartilhando e significando suas experiências com os demais,
singularizando os dispositivos retóricos e as formas particulares utilizadas pelas pessoas na
contextualização de suas experiências, situando temporalmente e coerentemente essas
experiências, funcionando como comprovação da biografia, além de conceder voz e reforçar a
identidade da pessoa entrevistada/biografada.
Na busca das respostas ao problema levantado, uma pesquisa de natureza qualitativa se
faz indispensável, para o qual a história oral servirá de sustentáculo teorico-metodológico
(MEYHY, 2007), tendo a narrativa oral como ponto nuclear, mas utilizando outras fontes
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como suporte.
A educadora piauiense Maria Odete Moura, se constitui na personagem central da
pesquisa, que se encontra em desenvolvimento, na cidade de Teresina/PI, tendo, por outro
lado, como principal instrumento de produção dos dados a entrevista de relatos
autobiográficos, realizada a partir de um roteiro de questões abertas e concretizada por meio
de diversos encontros com a personagem.
As entrevistas, ancoradas em roteiro de perguntas abertas, estão sendo realizadas com o
uso de gravador digital, câmara filmadora e registro em diário de campo. Os relatos
autobiográficos da entrevistada, buscam responder ao seguinte problema: Como se configurou
a contribuição e o legado de Maria Odete para o desenvolvimento social e educacional da
cidade de Sigefredo Pacheco, situada no estado do Piauí?
No uso das fontes orais, evitamos que estas sejam consideradas como verdades
acabadas e definitivas sobre os fenômenos estudados, tampouco que se privilegie o seu uso
somente para cobrir os vazios deixados pela falta de possibilidade do emprego de outras
fontes, tendo consciência de que este tipo de fonte fornece um produto fruto de narrativas
cercadas de significados subjetivos e singulares, de versões, representações e interpretações
elaboradas pelas lembranças e que estas, por sua vez, são carregadas de esquecimentos, de
imaginações, ocultações, de silenciamentos propositais ou não; são testemunhos orais
impregnados de memórias, identidades, pertencimentos e tempos dinamicamente diversos,
diferentes e multidimensionais, expostos que estão às disputas pela construção das memórias
de determinado acontecimento. (GAGNEBIN, 2009).
Optamos, também, pelo uso e cruzamento de outras fontes pertinentes para contar a
história de vida de Maria Odete Moura, ressaltando suas contribuições educacionais, sociais e
políticas na cidade de Sigefredo Pacheco/PI, tais como, fotografias, diários, cartas,
informativos e outros que possibilitem e contribuam de forma relevante para o trabalho com
memórias e narrativas, desvelando acontecimentos importantes da história de vida de nossa
personagem, permitindo novos olhares sobre fatos narrados por meio da historiografia oficial
(FERREIRA; AMADO, 2006) sendo obtidas durante o desenvolvimento do estudo.
Após os registros das oralidades, são feitas as transcrições das narrativas autobiográficas
da Professora Maria Odete Moura, realizadas por meio da escuta atenta e pormenorizada do
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conteúdo das gravações, com registro textual concomitante, digitado no processador de textos
word 2007/Microsoft office, em Notebook do acervo do NUPHEB, com amparo de fone de
ouvido e transformadas em documento textual, a partir de muitas repetições dessa escuta, no
intuito de que nenhuma informação seja perdida ou passe despercebida, evitando confusão na
interpretação, desvio de sentido e, acima de tudo, buscando fidelidade às falas da entrevistada.
O registro dos encontros são efetivados por meio de anotações em diário de campo,
tanto nos encontros das entrevistas, quanto nos momentos de observações, utilizados para
transcrevermos narrativas outras e acontecimentos peculiares, anotando cuidadosamente todas
as informações que se demonstrarem significantes ao estudo.
A análise dos dados passa pela análise de conteúdo, em relação aos textos e documentos
investigados e seu cruzamento com os testemunhos orais coletados nas entrevistas,
identificadas as categorias privilegiadas e se detendo a respeito da produção da história da
educação no Piauí.
Após este trabalho de escrita, mesmo iniciais, os textos foram devolvidos à Professora
Maria Odete Moura para que fizesse a leitura aprofundada, efetivando as devidas correções,
supressões possíveis, acertos e ajustes necessários e possíveis alterações que entenda como
necessárias, sendo que somente são publicados como dados produzidos nesta pesquisa, frutos
das entrevistas de história oral, aqueles que passarem pelo crivo e aprovação da personagem
do estudo.
Após a autorização de publicação concedida pela personagem, seguimos efetivado um
minucioso trabalho de escrita do texto final, com apuro e muita atenção, para a produção da
escrita fidedigna das narrativas da personagem do estudo, sendo que, quando não fomos
capazes de "decifrar" algum termo, alguma palavra, retornamos os contatos com a professora
e nos certificamos do sentido disposto na passagem destacada.
Podemos apontar como principal justificativa para o desenvolvimento do estudo, o
cuidado com a preservação e difusão cultural das heranças educacionais por meio das
lembranças de outras histórias de vidas, concebidas além do corpus teórico histórico estatuído
como oficial, ampliando as possibilidades de novas interpretações dos acontecimentos
próximos dessa área do conhecimento.

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O LEGADO EDUCACIONAL DE MARIA ODETE MOURA: ACHADOS


PROVISÓRIOS

Na perspectiva de contribuir para a construção do histórico educacional, assim como o


desvelamento das memórias da citada educadora, o estudo apoia-se na compreensão de
Gonçalves (2006, p. 17) para quem "[ ] explicar as maneiras diferenciadas de produção da
escola é [ ] conhecer as práticas dos atores que participaram dessa produção, o que não é,
sem dúvida, uma atividade das mais fáceis", sendo que, mais especificamente, a pesquisa se
propõe, conforme ressaltado acima, a tornar visível a história de uma educadora que tem seu
nome atrelado ao cenário educacional piauiense, seja por sua contribuição na formação de
gerações de pessoas, seja por sua efetiva atuação social, política e cultural, sua produção
intelectual, assim como outros papéis sociais e familiares assumidos e por ela desempenhados
e que, assim como muitas outras, tem essa trajetória de vida pouco difundida, esquecida ou
mesmo silenciada na história oficial.
A escolha da referida professora se justifica pela sua relevante presença no cenário
educacional da cidade de Sigefredo Pacheco, seja pelo significativo envolvimento com que
implementava as suas práticas pedagógicas, seja pelo histórico compromisso de formação
escolar de diversas gerações, ou ainda, por se tratar da primeira educadora com formação
pedagógica da referida cidade, abrindo caminhos e ampliando as possibilidades das futuras
educadoras.
Iniciamos a pesquisa por meio de encontros previamente agendados, via telefone
celular, com a personagem do estudo, e que sempre ocorrem em sua residência, situada à Rua
Lucídio Freitas, 2721, bairro Porenquanto, em Teresina, nos deslocando, orientador,
orientanda e colaboradora, em carro próprio.
Inicialmente, foram feitas as apresentações, a leitura explicativa do projeto, sua
natureza, objetivos e propósitos, assim como os métodos que serão utilizados, no sentido de
se obter a aprovação da personagem, além de suas impressões, preocupações e possíveis
contribuições. Em seguida, a personagem foi convidada a se apresentar, fazendo suas
primeiras narrativas, consistindo no esforço inicial de memória, para o início do processo de
tecedura de sua história de vida, servindo de palco para o desvelamento de seu legado

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educacional. Todos estes momentos foram registrados no diário de campo, evitando, por se
tratar de contatos iniciais, qualquer outro tipo de registro.
Na década 1960, Maria Odete se tornou a primeira professora da cidade de Sigefredo
Pacheco com o curso pedagógico, nível médio, obtido em Teresina, capital do Piauí, no
Colégio das Irmãs, uma das escolas mais tradicionais do estado, o que lhe permite a ministrar
aulas, durante todo o ano de 1965, na referida cidade. Logo depois, se casa e vai morar em
Teresina, constituindo família e conseguindo formação acadêmica no Curso de Licenciatura
em Letras Português.
Já na década de 1990, forma uma primeira turma de preparatório para o vestibular,
composta por pessoas da cidade, ministrando aulas gratuitas de Português, Literatura e
Redação, com a parceria de um professor de Matemática que cedia uma sala de sua
propriedade, em que ministrava aulas particulares, alternando horários com a professora.
Dessa primeira turma, significativa parcela dos alunos foram aprovados no vestibular, sendo
formados pelo campus da UESPI de Campo Maior.
Neste período, Maria Odete, já professora da UESPI em Teresina, era designada pela
Secretaria de Educação para promover a capacitação dos professores de Sigefredo Pacheco,
além de, na função de Coordenadora Generalista, coordenar e planejar com professores do
estado lotados em escolas da cidade.
No ano de 1995, idealiza e funda a primeira Biblioteca Municipal de Sigefredo Pacheco,
sediada em sua própria casa, pois a gestão da Prefeitura local, a considerava adversária
política, não sendo capaz de vislumbrar os ideais e os benefícios educacionais e sociais dessa
empreitada. A Biblioteca foi formada com acervo de doações de pessoas do Piauí, de outros
estados do Brasil, bem como por meio da sensibilidade e cooperação de pessoas com as quais
mantinha contatos, inclusive muitas destas residindo ou realizando estudos em outros países
da Europa, tais como, Inglaterra e França, e dos Estados Unidos.
É importante ressaltar que, nessa década de 1990, inicia sua militância política na
cidade, se candidatando a vereadora, porém sem lograr êxito, mesmo tendo assumido a
função, na condição de suplente, por algumas oportunidades.
Nos anos de 2000, passa a ministrar aulas na primeira Faculdade privada com um polo
em Sigefredo Pacheco, que formou e ofertou turmas de especialização, tendo a oportunidade
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de receber, agora com formação superior, muito dos alunos que faziam parte da primeira
turma de preparatório para o vestibular, por ela conduzida na década de 1990.
Em 2008, é homenageada com o nome da primeira Biblioteca Pública Municipal oficial,
além de, em 2013 ser nomeada e exercer a função de Secretária Municipal de Educação e
Cultura de sua cidade natal, cargo que exerceu por sete meses, se afastando novamente por
diferenças político-ideológicas.
Os contatos iniciais, consubstanciados nestes primeiros achados, se encerraram com os
acertos para os encontros de entrevistas mais longos e aprofundados, ficando combinado com
a personagem da pesquisa que serão aprofundadas abordagens em torno de sua infância, sua
trajetória de formação escolar e sua atuação no magistério, aspectos de sua atuação política e
enquanto gestora educacional, que servirão da base para desvelar esse legado educacional e
seus reflexos políticos e sociais na referida cidade, o que, de forma direta, contribuirá na
construção do corpus teórico da história da educação piauiense, em especial ao contar a
história de vida das pessoas, educadoras e educadores, que se constituíram em sujeitos dessa
história, participando ativamente desse processo, com suas angústias e alegrias, seus anseios,
desejos, avanços, recuos, tensões, dificuldades, reivindicações, ideais, concepções, lutas,
dentre outras questões, rompendo silêncios e superando dificuldades, conseguindo falar de si
e de suas experiências vivenciais.
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

Os primeiros achados da pesquisa demonstraram, dado a ênfase com que destaca sua
vida e sua atuação educacional, que a trajetória de vida e o legado educacional da educadora
Maria Odete Moura deixaram profundas e significativas marcas na história e memória da
educação da cidade de Sigefredo Pacheco/PI.
Inicialmente, ao tornar-se a primeira professora da cidade de Sigefredo Pacheco com o
curso pedagógico nível médio, obtido em Teresina, o que lhe garante a condição legal de
professora, exercendo o magistério durante todo o ano de 1965, na referida cidade, para em
seguida, já casada e morando na capital obter a formação acadêmica no Curso de Licenciatura
em Letras Português.
Mas à frente, retorna a sua cidade e forma uma primeira turma de preparatório para o
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vestibular, composta por pessoas da cidade, ministrando aulas gratuitas de Português,


Literatura e Redação, com vários alunos dessa turma sendo aprovados no vestibular, cursando
e se graduando pela UESPI.
Podemos destacar, ainda, como contribuições efetivas de sua trajetória educacional, a
designação pela Secretaria de Educação do Piauí para promover a capacitação dos professores
de Sigefredo Pacheco e o exercício de gestora educacional, na função de Coordenadora
Generalista da cidade; a idealização e fundação da primeira Biblioteca Municipal, a qual
futuramente passa a ser identificada com seu nome; bem como, o exercício, por sete meses,
do cargo de Secretária Municipal de Educação e Cultura de sua cidade natal, do qual é
afastada por diferenças político-ideológicas.
As lembranças da memória de Maria Odete desvelam aspectos relevantes da
escolarização e das práticas educativas piauiense, revivendo as singularidades que marcam a
condição do ser aluno e do ser professor, as relações das famílias com as escolas, assim como
as condições de trabalho e de valorização dos profissionais do magistério, contribuindo
sobremaneira para uma leitura crítica dos aspectos sociais, culturais e políticos de nossa
realidade próxima, a partir de um movimento que entrelaça o singular e o coletivo.
Acreditamos que a continuidade da pesquisa possibilitará, enquanto principal impacto
educacional, o rompimento do silenciamento que, insistentemente, se justapõe às memórias e
às histórias de pessoas que desenvolveram e seguem desenvolvendo projetos, ações e práticas
relevantes no cenário socioeducacional, preenchendo lacunas existentes na memória da
educação piauiense, notadamente, pelo desvelamento das práticas educativas desenvolvidas
por estas educadoras e educadores tornados "anônimos" pela historiográfica educacional
oficial.
Por outro lado, confiamos, trará contribuições relevantes para o levantamento de novas
fontes de pesquisa educacional, tais como, fontes biográficas e autobiográficas orais e
escritas, documentos imagéticos, textos e escritos não oficiais (cartas, diários, informativos e
outros), e o fomento de pesquisas e estudos sobre a identidade e a atuação de educadoras e
educadores que, de forma geral, são desenvolvidas no país e, particularmente, no Piauí.
Finalmente, podemos destacar os relevantes impactos da pesquisa no fortalecimento dos
estudos e das investigações acadêmico-científicas desenvolvidas na UESPI, em especial do
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NUPHEB/CCECA, ampliando as possibilidades de inserção de alunos e professores na


concretização de pesquisas no campo de conhecimento da Educação e na linha de pesquisa da
História da Educação e Sociedades, o que, de forma direta, contribuirá na ampliação do
volume de produções e publicações científicas, concedendo, dessa forma, maior visibilidade
científica à UESPI.

REREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Verena. Histórias dentro da história. IN: PINSKY, Carla Bessanezi. (org.). Fontes
Históricas. São Paulo: Contesto, 2006.
BOAS, Sergio Vilas. Biografismo: reflexões sobre as escritas da vida. São Paulo: Editora
UNESP, 2008.
BURKE, Peter. O que é história cultural?. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BURKE, Petar. (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 2011.
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 2005.
FEREIRA, M. M; AMADO, J. Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV,
2006.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009.
GIBBS, Graham. Análise de dados qualitativos. Porto Alegre: Artmed, 2009.
GONÇALVES, Irlen Antônio. Cultura Escolar: práticas e produção dos grupos escolares de
Minas Gerais (1891-1918). Belo Horizonte: Autêntica/FCH_FUMEC, 2006.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como
pensar. São Paulo: Contexto, 2007.
VINCENTINI, Paula Perin; ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (orgs.). Sentidos,
potencialidades e usos da (Auto)Biografia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.

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COMPÊNDIOS, MANUAIS E LIÇÕES DE PEDAGOGIA NA ESCOLA NORMAL


PRIMÁRIA

Francinaide de Lima Silva638


Maria Arisnete Câmara de Morais639

Este trabalho analisa a história da formação de professores em Natal, Rio Grande do


Norte, com o intuito de compreender as práticas e representações da Escola Normal Primária.
Insere-se na temática da História das Instituições Escolares e investiga o percurso da Escola
Normal de Natal na preparação de professores primários.
Pedagogia era a disciplina em torno da qual se deviam articular os diferentes saberes
na Escola Normal Primária, e passou a ser considerada representante da formação de
professores. Os discursos pedagógicos diluídos em saberes especializados, vieram construir o
campo dos saberes pedagógicos considerados necessários à prática docente, passaram a ser
organizados sob a forma de compêndios ou manuais de pedagogia, servindo como suporte
material a ser lido na formação docente no Curso Normal e nos concursos, assumindo um
papel fundamental na preparação para o exercício do magistério primário.
Fundamenta-se nos pressupostos de Chartier (1990), Chervel (1990), Elias (1994),
Nóvoa (1987), Schriewer (2000), dentre outros, como também em documentos localizados,
principalmente, no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte/IHGRN, a saber:
Atas, Ofícios, Relatórios dos Diretores da Instrução Pública, Leis, Decretos, Mensagens dos

638
Doutora em Educação/PPGED-UFRN. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Norte/IFRN. E-mail: francinaide.silva@ifrn.edu.br.
639
Pós-Doutora/École des Hautes Études en Sciences Sociales. Professora do Centro de Educação e do
PPGED/UFRN. Pesquisadora CNPq. E-mail: arisnete@terra.com.br.

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Governadores. Além disso, utilizou-se artigos dos jornais A Capital, A Ordem e A República,
bem como da revista Pedagogium (1921-1940).
No Arquivo Público do Estado/APE encontramos o Livro de Honra (1914-1919),
Diários de Classe e o Livro de Inscrição dos Grupos Escolares. Do Memorial do Atheneu
analisamos a Ata da Congregação do Atheneu e da Escola Normal (1897) e do Instituto de
Educação Superior Presidente Kennedy o Livro de Registro Nominal dos Professores
Diplomados pela Escola Normal.
Propõe, também, o estudo comparado da gênese da Escola Normal Primária de Lisboa
e de Natal, ancorados no problema da análise dos sentidos atribuídos ao modelo de
instituição. Pesquisamos nos acervos da Biblioteca Nacional de Portugal/BNP e da Escola
Superior de Educação de Lisboa/ESELX, antigo prédio da Escola Normal Primária, nos quais
encontramos Atas, Livros, Manuais de Pedagogia e Regimentos Internos.
Instituída no segundo reinado, especificamente em 1873, a Escola Normal de Natal,
assim como em diversas matrizes experimentadas na formação docente no Brasil teve
influências francesa, alemã e norte-americana. Embora as conjunturas sejam diversas, no
aspecto histórico, posto que existiram três tentativas de instalação deste estabelecimento de
ensino até sua institucionalização, a partir de 1908, o que permeia sua história é a necessidade
de instrumentalizar o magistério norte-rio-grandense.
As tentativas de estabelecer uma instituição para a formação docente em Natal fazem-
nos voltar às leis que gestaram a eclosão do movimento de implantação da Escola Normal.
Sabemos que as questões pedagógicas começam a articular-se às transformações da sociedade
brasileira após a Independência da República, em 1822. Neste momento o preparo dos
professores se articulava aos projetos de educação popular. Os dispositivos da Lei das Escolas
de Primeiras Letras (1827) criaram instituições nas vilas, cidades e lugares populosos e
sugeriam que os professores deveriam se instruir no método do ensino mútuo, às próprias
expensas. “Os professores que não tiverem a necessária instrução deste ensino (o ensino
mútuo), irão instruir-se em curto prazo e à custa dos seus ordenados” (BRASIL, 1827: 71-72).
O Ato Adicional de 1834, por seu turno, determinava que a educação primária era
responsabilidade das províncias. Este dispositivo dava autonomia às províncias no fomentar a
educação e legislar sobre ela. Estas tenderam a adotar, para formação dos professores, a via
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que vinha sendo seguida nos países europeus: a criação de Escolas Normais.
Entretanto, quais eram os embates entre as normas emanadas do poder central e os
ditames locais? A Lei n. 37, de 11 de novembro de 1839, assinalava para os esforços em
implantar uma instituição de formação docente sob o argumento de que não havia no Rio
Grande do Norte formas de ensino condizentes com as necessidades das crianças. Mas
somente em 1862 foi estabelecida uma Escola Prático Modelo, Lei n. 529 de 28 de abril, no
Atheneu Norte-Rio-Grandense.
A efetiva implantação de um estabelecimento de ensino específico para o
aprimoramento docente, somente se deu em 1873, também instalado no Atheneu. Neste
momento foi criada a primeira Escola Normal de Natal. Segundo Kulesza (1998) o Ensino
Normal tinha sua referência, no início de sua instalação nas províncias, nos Liceus e Atheneu,
logo, estavam ligadas à formação secundária. Além das instalações, havia o empréstimo de
professores e dos regulamentos para as escolas.
No século XIX um dos principais argumentos para a instalação das Escolas Normais
era o de que estas instituições se constituíam como fontes de estudos teóricos e práticos, uma
vez que “ao mesmo tempo em que ministra o ensino experimenta o gosto do aluno,
desenvolve-lhe a vocação e forma-lhe o caráter nos predicados, que devem coroar o exercício
da Pedagogia” (OLIVEIRA, 2003: 213). Além disso, em países civilizados como França,
Suíça, Prússia, Itália, Áustria, Inglaterra, Suécia, Espanha, Estados Unidos, a Confederação
Argentina e o Chile tinham muitas escolas e as aperfeiçoavam.
As Escolas Normais foram criadas para atender aos meninos e aos poucos passou a
receber as meninas que buscavam instrução. As instituições formadoras de docentes primários
foram recebendo mais moças em suas salas. A Escola Normal de Natal, por exemplo, desde a
reabertura em 1908, revelou-se uma escola para a formação de mulheres professoras.
A institucionalização da profissão docente estava relacionada ao momento em que os
professores passaram a ser um corpo de funcionários responsáveis por desenvolver a tarefa de
transmissão de conhecimentos. O Curso Normal legitimava um corpo de conhecimentos
adquirido pelo aluno que após a diplomação adquiria o status de profissional.
No Brasil, após a Proclamação da República, o projeto elaborado por Rangel Pestana,
consubstanciado no Decreto n. 27, de 12 de março de 1890, reformou a Escola Normal de São
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Paulo, sob a direção de Antonio Caetano de Campos, e criou as Escolas Modelo. Essas eram
classes primárias anexas à Escola Normal, com o objetivo de aprimorar a formação de
professores desenvolvendo, desse modo, um padrão de ensino para nortear as escolas
primárias. Era o local apropriado para a prática dos alunos-mestres. Esta reforma iniciou um
período de implantação e expansão do padrão das Escolas Normais tendo como anexo a
Escola Modelo.
Em meados do século XIX foram criadas as primeiras Escolas Normais do país para a
formação de docentes. Na Província do Rio de Janeiro foi instituída em Niterói, em 1835, a
primeira Escola Normal do Brasil. Essa tendência foi seguida por diversas províncias na
seguinte ordem: Bahia, 1836; Mato Grosso, 1842; São Paulo, 1846; Piauí, 1864; Rio Grande
do Sul, 1869; Paraná e Sergipe, 1870; Espírito Santo e Rio Grande do Norte, 1873; Paraíba,
1879; Rio de Janeiro (DF) e Santa Catarina, 1880; Goiás, 1884; Ceará, 1885; Maranhão,
1890. Essas escolas, no entanto, tiveram existência intermitente. Foram fechadas e reabertas
periodicamente.
Análises sobre as realidades educacionais entre Portugal e Brasil permitem considerar
o que ocorreu na área da educação entre ambos. Com o objetivo de estabelecer uma análise
comparativa entre duas instituições de formação de professores, aproximações e
distanciamentos, constituímos uma interlocução com a Escola Normal de Natal e com a
Escola Normal Primária de Lisboa. O intuito é compreender a gênese, implantação e
consolidação destas instituições educativas criadas no âmbito do movimento mundial de
produção de uma forma escolar própria para a formação do magistério e de um complexo
sistema de ensino estatal. Todavia, evidenciamos a gênese como o eixo da comparação.
No que concerne à Escola Normal Primária de Lisboa, o Decreto de 1º de agosto de
1835, propunha a reorganização da Instrução Primária em Portugal e evidenciou o desejo de
instituir duas Escolas Normais: em Lisboa e na cidade do Porto. De modo semelhante, o
Decreto de 7 de setembro do mesmo ano, instituiu uma Escola Normal em cada distrito
administrativo. Todavia, estes não se efetivaram.
Em 1844, o Decreto de 20 de setembro, operacionalizou a Reforma da Instrução
“Costa Cabral” que autorizou a criação das Escolas Normais para a habilitação de professores
primários. Os Cursos tinham duração de um ano (1º grau) e de dois anos (2º grau). Esta
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mesma reforma autorizou a abertura imediata das Escolas Normais de Lisboa e do Porto.
Um Decreto de 24 de dezembro do mesmo ano aprovou o Regulamento para a Escola
Normal Primária para o Sexo Masculino no Distrito de Lisboa, na qual entre outras deveria
ser ministrada a matéria que veiculasse os elementos de Pedagogia. Para cumprir esta
finalidade o referido documento apresenta a matéria que se intitulava Notícia dos métodos de
ensino e de legislação respectiva à instrução primária (REGULAMENTO, 1845: 4).
Foi construído um edifício para abrigar esta instituição, em Belém, como também
nomeados diretor e professores, mas a escola não funcionou. Apesar disso, foi a primeira vez
em Portugal em que se faz menção ao ensino de Pedagogia (GOMES, 1998: 199). Em 1860, o
Decreto de 4 de dezembro, considerando a necessidade do funcionamento da Escola Normal,
aprovou o Regulamento no qual constava que o plano de estudos compreendia, além de
diversas outras, a matéria Pedagogia Prática e Legislação e Administração do Ensino.
Em Lisboa, porém, somente em 21 de abril de 1862 foi inaugurada a Escola Normal
Primária. Instalada no Palácio dos Marqueses de Abrantes, em Marvila, funcionava em
regime de internato e era exclusivamente masculina. Esteve sob a direção do professor Luiz
Filipe Leite desde sua fundação até 1872, quando o referido professor foi demitido.
No que concerne ao programa de formação dos professores primários portugueses,
pela proposta de Regulamento da Escola Normal Feminina do Distrito de Lisboa, em 1863,
aprovada no Governo Anselmo Braamcamp, o programa do Curso Normal Primário
evidenciava princípios de especialização com a inclusão de disciplinas pedagógicas.
Compreendia o plano de ensino matérias como Pedagogia Prática, Deveres da Mestra
Primária e suas relações com o Estado, Educação Física, Preceitos Higiênicos, Preceitos e
Exercícios de Economia Doméstica. (REGULAMENTO, 1863: 5-6).
Eram elementos centrais da formação oferecida pela instituição o ensino da agricultura
e a implementação de atividades culturais – como, por exemplo, uma Biblioteca Dominical
para os operários. O preparo conferido pela escola visava um ensino predominantemente
profissional baseado em preceitos pedagógicos e aliava a dimensão teórica a uma
aprendizagem prática. Funcionou no referido Palácio até 1881.
A Relação dos Indivíduos Matriculados na Escola Normal desde 1862 a 1866 e seus
destinos (1866) registra a situação dos mestres egressos da instituição de formação de
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professores em Lisboa. Após a diplomação, poucos foram os professores que tiveram o


magistério enquanto carreira profissional. Ocuparam-se em atividades diversas, em diferentes
repartições, a exemplo do Correio Geral, Caminho de Ferro, bem como na telegrafia e no
comércio.
Atuavam como professores públicos municipais nas cadeiras de Instrução Primária,
Escola Infantil, Gramática e Língua Francesa, como também em instituições como o Colégio
Europeu, Escola Academia, Escola Anexa ou Casa Pia. O documento registra que até então
somente o mestre Felipe Antônio Jorge exerceu a função de Diretor na Escola Real de Mafra,
em Mafra.
Em 1866 a iniciativa de institucionalização da formação docente em Portugal foi
seguida do estabelecimento de uma escola congênere, incumbida de preparar o magistério
feminino. O Recolhimento do Santíssimo Sacramento e Assumpção, situado no Calvário, em
Lisboa, foi considerado adequado para o funcionamento da Escola Normal Primária para o
sexo feminino por suas boas condições prediais. O estabelecimento de ensino destinado à
formação de professores passou a funcionar no ano letivo 1866-1867.
No que concerne ao programa de ensino, o processo de inclusão de matérias de
domínio pedagógico em detrimento das de aspecto científico e literário foi lento também em
Portugal. De acordo com Gomes (1998: 198), João de Andrade Corvo, na Câmara dos
Deputados, em 1866, afirmava a necessidade de educar os normalistas em uma escola
organizada com todos os elementos indispensáveis para ensinar e ensinar bem. “É preciso que
nos convençamos que, para educar mestres, não basta expor princípios de ciência, é preciso
ensinar, ensinar Pedagogia”.
Em 1869, a Escola Normal Primária de Lisboa foi fechada em Marvila para fins de
remodelação e instalada a Escola Normal Masculina no Palácio de Condes de Murça, em
Santos (Decreto de 14 de dezembro), no qual permaneceu até 1914. Em 18 de março de 1870
foram publicados os programas para os exames de ingresso no magistério primário, nos quais
constavam, dentre outras matérias: Leitura; Gramática; Aritmética; História Sagrada;
Doutrina Cristã; Geografia; História; e Pedagogia.
Neste mesmo momento tem início a produção de Manuais de Pedagogia, dos quais são
exemplo o de João Maria Graça Afreixo e Henrique Freire (1870) e o de Antônio Francisco
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Moreira de Sá (1873). Registramos que o primeiro professor de Pedagogia foi Luís Filipe
Leite, também primeiro Diretor da Escola Normal em Marvila.
A Reforma do Ensino de 1878-1881 orientou as ações educativas em fins dos
oitocentos em Portugal marcadas pela expansão do Ensino Normal e, por conseguinte, pelo
aumento do número de mestres primários. Neste período, as duas escolas de Lisboa sentem a
‘crise de crescimento’. (NÓVOA, 1987b: 462). São marcas também desta época a falta de
recursos, escândalos de natureza moral, conflitos entre docentes e comportamentos
considerados inadequados por parte dos alunos. De acordo com Mogarro e Zaia (2009: 44),
simultaneamente realça-se o caráter profissional do ensino ministrado e o reforço da
pedagogia, defendendo-se a aliança entre a teoria e a prática.
Quanto ao ensino, o Decreto de 28 de julho de 1881 aprovou o Regulamento, para a
execução das Leis de 2 de maio de 1878 e de 11 de junho de 1880, com as matérias ensinadas
nas Escolas Normais das quais faziam parte Pedagogia, Metodologia e Legislação relativas às
Escolas Primárias.
No que se refere à instituição brasileira, também foram apresentadas sucessivas
propostas de criação de uma Escola Normal em Natal destinada à formação de candidatos ao
magistério a qual seria instalada no Atheneu Norte-Rio-Grandense (Lei n. 37, de 11 de
novembro de 1839; 1849; Lei n. 529, de 28 de abril de 1862). Entretanto, estas não lograram
o êxito que se esperava.
A Lei n. 671, de 5 de agosto de 1873, marcou a primeira tentativa de funcionamento
da Escola Normal de Natal. Instalada no prédio do Atheneu Norte-Rio-Grandense com o
mesmo quadro docente da citada instituição, passou a funcionar em 1º de março de 1874, com
matrícula inicial de vinte alunos. Funcionava em regime de externato e era exclusivamente
masculina. Diplomou três docentes. Foi extinta pelo Decreto n. 809, de 19 de novembro de
1877, por não corresponder aos fins que levaram a sua abertura.
A segunda tentativa de funcionamento de uma Escola Normal ocorreu a partir da
expedição do Decreto n. 13, de 8 de fevereiro de 1890, na administração de Adolfo Afonso da
Silva Gordo. Todavia, ela foi “nati-morta”, uma vez que este não permaneceu no cargo de
presidente da província.
No período republicano, durante o Governo de Pedro Velho de Albuquerque
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Maranhão, foi expedido o Decreto n. 18, de 30 de setembro de 1892, que autorizou o terceiro
funcionamento da Escola Normal em Natal. Entretanto, esta somente funcionou em 1897.
Diplomou até 1901 cinco professores.
A Reforma do Ensino Primário, Lei n. 249, de 22 de novembro de 1907, reorganizou a
instrução pública. O Decreto n. 178, de 29 de abril de 1908, reabriu a instituição em estudo
para o preparo de professores de ambos os sexos, restabeleceu a Diretoria Geral de Instrução
Pública – extinta em 1900 –, e criou uma rede de Grupos Escolares.
O Decreto 174, de 05 de março de 1908, autorizou a construção do prédio no qual foi
instalado o Grupo Escolar Augusto Severo, primeiro do gênero no Estado, nos moldes dos de
São Paulo. Desde sua criação esta escola primária servia à prática dos mestres normalistas.
Este caráter foi reconhecido pelo Decreto n. 198, de 10 de maio de 1909, que o elevou a
instituição modelar para as demais escolas primárias640.
A Escola Normal de Natal funcionou nas dependências do Atheneu até o último
semestre de 1910. No primeiro semestre letivo do ano seguinte foi instalada no moderno
prédio do Grupo Escolar Modelo, projetado pelo arquiteto Herculano Ramos, conforme as
prescrições da Diretoria Geral da Instrução Pública e os princípios da Pedagogia Moderna.
A instalação do curso de formação para o magistério primário em Lisboa e em Natal
ocorreu em um lento processo, marcado por intermitências no funcionamento em ambas
instituições. As Reformas de Ensino evidenciam as propostas educativas para a
institucionalização da profissão docente nos dois países. No início do século XX, as
instituições continuaram a passar por modificações, conquanto mais significativas. Em Lisboa
e em Natal as Escolas Normais sofreram os influxos das organizações operadas no Ensino
Primário e Normal.
Em Portugal, a Reforma do Ensino Primário, aprovada pelo Decreto n. 8 de 24 de
dezembro de 1901 – também denominada Reforma Hintze Ribeiro –, reorganizou a instrução
primária e concedeu legitimidade ao Ensino Normal. O Regulamento de 19 de setembro de
1902 asseverava que o provimento das cadeiras do magistério primário seria feito por
concurso documental, a que só poderiam concorrer professores que tivessem obtido diploma

640
A Escola Modelo tinha a acepção advinda do aporte teórico-metodológico, nos moldes do “aprender a fazer,
fazendo”, proposto por Comenius e Pestalozzi.
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de aprovação no Curso das Escolas Normais ou de habilitação para o magistério primário.


(REGULAMENTO, 1902: 136).
A Reforma de Antônio José de Almeida, Decreto de 29 de março de 1911, remodelou
o Ensino Primário e Normal e implantou o regime de coeducação dos sexos, nas Escolas
Normais, com externato somente, enquanto não houvesse a possibilidade de organizar o
internato. Como decorrência deste dispositivo, no ano letivo de 1914-1915 a Escola Normal
Primária Masculina de Lisboa foi transferida para as instalações do edifício do Calvário,
ocorrendo a fusão das duas Escolas Normais Primárias. Deu-se a efetiva implementação do
regime de coeducação dos sexos, proposto pela reforma e uma das aspirações republicanas.
Os programas das matérias de natureza pedagógica, científica e literária foram aprovados pelo
Decreto n. 2.213, de 10 de fevereiro de 1916. Neste plano verificamos a presença de matérias
pedagógicas, como: História da Instrução Popular em Portugal; Pedologia; Pedagogia Geral e
História da Educação; Metodologia; e Legislação do Ensino Primário.
A Reforma de Leonardo José Coimbra, instituída pelo Decreto n. 5/787-B Sup. 18, de
10 de maio de 1919, propôs um programa de ensino distinto para o Curso Normal Primário e
recomendou que junto às instituições de formação de professores funcionassem as escolas de
ensino primário, necessárias à prática dos alunos mestres diplomados na Escola Normal
Primária.
Neste mesmo período, a formação para o magistério era reconhecida e a educação
concebida enquanto o motor do desenvolvimento e progresso do país, com vistas a educar o
novo cidadão. O símbolo do investimento na educação na ocasião foi a construção do
majestoso prédio da Escola Normal Primária de Lisboa, em Benfica, que passou a funcionar
com regulamento específico. Em Portugal, o Decreto n. 18. 646, de 19 de julho de 1930,
extinguiu as Escolas Normais Primárias e instituiu, em sua substituição, as Escolas do
Magistério Primário.
No Rio Grande do Norte, a Lei n. 284, de 30 de novembro de 1909, ratificou as
modificações na instrução pública e estabeleceu o Código de Ensino em sucessivos decretos
(Decreto n. 239, de 15 de dezembro de 1910; Decreto n. 261, de 28 de dezembro de 1911;
Decreto n. 359, de 22 de dezembro de 1913). Este dispositivo regulava o funcionamento do
Ensino Primário e Normal e por suas disposições o Curso Normal, que era oferecido em três
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anos, passou a ser ministrado em quatro anos.


O Regulamento da Escola Normal, Decreto n. 69, de 24 de novembro de 1917,
conferiu à instituição a tarefa de habilitar o normalista a desempenhar, com o máximo
comprometimento, vigor e profissionalismo, a missão de educar o povo para a vida em
sociedade no contexto urbano e rural. A instituição em análise era portadora de um corpus de
conhecimento geral, científico e especializado. Compunham uma formação propedêutica para
o magistério, conhecimentos científicos, técnicos e fundamentos pedagógicos e morais. A
formação profissional do educador era referenciada por um conjunto uniforme de saberes,
repertórios, métodos e técnicas da pedagogia escolanovista em interação com a dinâmica
organizacional dos Grupos Escolares. O preparo do mestre primário subentendia, sobretudo,
uma correlação entre Ensino Normal e a educação escolar infantil.

COMPÊNDIOS, MANUAIS E LIÇÕES DE PEDAGOGIA

Em fins da década de 1920, as Escolas Normais Primária de Lisboa e de Natal estavam


em pleno funcionamento. O Curso Normal exibia um caráter de formação profissional – ao
pautar-se em elementos peculiares das Ciências da Educação. A formação oferecida aos
professores tornou-se cada vez mais especializada o que legitimou a profissionalização do
magistério primário.
As Escolas Normais Primárias de Lisboa e Natal, em suas respectivas configurações,
produziram por meio de seus agentes educativos práticas imbuídas do modelo pedagógico
vigente que preconizava a introdução dos princípios da Pedagogia Moderna. Embora
instaladas em continentes distintos as instituições partilhavam projetos e discursos que se
entrelaçavam, evidenciando uma completa sintonia e circulação do pensamento pedagógico.
Esta reciprocidade de ideias e práticas podem ser observadas nos discursos de
intelectuais, professores, dirigentes de instrução pública, mas, sobretudo, em livros escolares,
regulamentos e periódicos, a exemplo da Revista Escolar641 (1925-1926) e Revista

641
A Revista Escolar era uma publicação mensal sobre a educação e o ensino a qual tinha como Diretores
Albano Ramalho, Heitor Passos e Joaquim Tomás, Inspetores da Escola Primária, em Portugal.
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Pedagogium642 (1921-1925). Seus elementos compuseram o cotidiano da configuração


escolar e contribuíram para a constituição de sua identidade. Souza (1998: 19) lembra que:

Se é fato que a educação cumpre finalidades determinadas pela sociedade, não é


menos verdade que os projetos, os discursos, as teorias pedagógicas materializam-se
no cotidiano da escola; é nesse âmbito que a intercessão de subjetividades e práticas
cadencia ritmos, ritualiza comportamentos, intercambia experiências, configura
formas de agir, pensar e sentir e possibilita a identidade/diferenciação da escola no
conjunto das instituições.

De acordo com Escolano (2001), a cultura escolar em suas dimensões empírica,


prática ou material é produzida cotidianamente pelos docentes. Seja nos aspectos políticos ou
normativos, os quais correspondem as regras que governam o funcionamento das escolas, seja
no caráter científico ou pedagógico, elaborado para explicar ou propor modos de trabalho
tipicamente escolares, a exemplo dos saberes veiculados pelos manuais.
O entendimento acerca das especificidades do modo de funcionamento das Escolas
Normais em Lisboa e Natal, como também de seus professores ganham relevância. São
objetos de interesse, as normas e ações das quais são concebidos os conteúdos e
comportamentos ensinados aos alunos.
Desse modo, constituem-se enquanto objetos de análises os componentes do modelo
escolar – professores, alunos, instituição, método de ensino –, as concepções pedagógicas que
produziram e fizeram circular saberes sobre o ofício de ensinar, tomando-os como temas a
serem explicados durante as aulas nas Escolas Normais. É tema central desta reflexão a tríade
escola, saberes pedagógicos e livros implicada na construção histórica e social da cultura
escolar (JULIA, 1990).
Os princípios educativos para as escolas primárias estavam em sintonia,
particularmente, com considerações sobre os fundamentos da psicologia e do
desenvolvimento infantil. A utilização de métodos modernos pelas professoras na instrução
pública elementar buscava atingir o desenvolvimento integral do educando.
Além das concepções e ideias sobre a educação e a pedagogia, um aspecto a ser
considerado na análise da formação dos professores na Escola Normal, seja em Lisboa ou em

642
A Revista Pedagogium, publicação da Associação de Professores do Rio Grande do Norte/APRN, tratava de
assuntos diversos sobre o ensino e professoras primárias ocupavam cargos de bibliotecária, secretárias e
redatoras.
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Natal, é a forma como o conhecimento pedagógico chegava aos mestres primários.


Ressaltamos que o núcleo pedagógico da formação do normalista era composto por
conhecimentos provenientes das matérias Pedagogia, Didática, Metodologia e Prática de
Ensino. Áreas que responderam as interrogações postas pelo magistério, cujo
desenvolvimento esteve profundamente relacionado com a construção da docência como
profissão (NÓVOA, 1987a).
Os manuais de ensino eram utilizados por alunos da Escola Normal Primária no estudo
das questões concernentes ao ofício de ensinar, especialmente, das matérias específicas.
Conforme Silva, V., (2007: 268) “enquanto um dos resultados das iniciativas que
corporificam a escola e um lugar de elaboração de conhecimentos sobre essa instituição e suas
práticas, os manuais pedagógicos permitem examinar aspectos importantes da constituição da
cultura escolar”. Eram vias de circulação de conhecimentos pedagógicos, que apresentavam
ideias aos normalistas. Colaboraram para a construção e difusão das instituições de ensino e
das formas pelas quais elas foram concebidas, em um momento no qual ocorreu a expansão
mundial da escola, processo relativamente homogêneo que simultaneamente assumiu
contornos específicos em espaços determinados (SILVA, V., 2007: 271).
Os manuais que difundiam os saberes escolares, utilizados em fins dos oitocentos e
nas duas primeiras décadas do século XX, evidenciam peculiaridades quanto às descrições,
prescrições e aos modos de fazer. Para Roullet (2001) os manuais são muito reveladores do
que constitui o duplo movimento contraditório da disseminação dos conhecimentos
elaborados no seio de uma disciplina. Os conceitos difundidos eram noções simples e
utilizáveis.
Em Portugal encontra-se um número significativo de obras destinadas ao preparo do
magistério, particularmente, no que concerne aos elementos de pedagogia. Publicadas nos
oitocentos, pela ordem de edições, são elas: Elementos de Pedagogia (AFREIXO; FREIRE,
1870), Compêndio de Pedagogia (SÁ, 1873), Notas de Pedagogia Filosófica (SOUSA, 1890),
Princípios de Pedagogia (COELHO, J., 1891-1893). Em Natal, por sua vez, nos arquivos e
acervos disponíveis não encontra-se materiais, a exemplo de livros de conteúdo pedagógico,
destinados ao estudo dos alunos-mestres.

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Os livros dos normalistas constituíram-se como a gramática do magistério, cujo objeto


era o objeto de ensino. Eles tinham como tema geral a educação e seus aspectos pedagógicos,
psicológico, didáticos e metodológicos. Estes são materiais que se constituíram enquanto
instâncias de produção e circulação dos saberes que fundamentaram o modelo de Ensino
Normal e contribuíram para a difusão mundial da instituição escolar e dos conhecimentos
pedagógicos.
Se na Escola Normal Primária portuguesa os alunos utilizavam manuais de ensino para
sua preparação didático-pedagógica, inclusive produzidos por seus professores, na Escola
Normal do Rio Grande do Norte os alunos-mestres recebiam estes mesmos conhecimentos
provenientes de reflexões veiculadas no jornal, produzidas pelo professor de Pedagogia.
Nestor dos Santos Lima, professor e diretor da Escola Normal de Natal, era um dos
estudiosos desta área. Ele investigava os preceitos da matéria e escreveu onze artigos com
suas reflexões e impressões, os quais foram publicados na Coluna Pedagogia do jornal A
República, durante os meses de julho a setembro de 1911. Nos ensaios, destinados a alunos-
mestres e professores diplomados, o autor tratava sobre os princípios, processos e métodos de
aplicação das disciplinas ministradas na escola primária e evidenciava sua prática no contexto
da cultura escolar da instituição profissional.
De acordo com Lima (1911b, p. 1), os escritos não tinham por objetivo “uma exibição
do saber pedagógico”, eram apenas apanhados de autores, muitas vezes neles citados, e se
destinavam “a orientar os alunos de Pedagogia da Escola Normal, que lutam com grandes
dificuldades nesse particular”. Para ele a disciplina consistia na apresentação das teorias de
educação, na indicação dos fins e descrição dos métodos e processos. Ou seja: os temas em
reflexão estavam relacionados com a metodologia do ensino.
Dispostos pela ordem de edição, seus escritos versavam acerca dos conteúdos da
escola primária concernentes: A escrita, seus princípios e processos. A caligrafia (1911a); A
leitura, suas espécies, métodos e processos (1911b); Ensino do desenho, sua importância e
métodos (1911c); Trabalho manual. Canto. Exercícios físicos, sua importância, métodos e
processos (1911d); Trabalho Manual. Canto. Exercícios Físicos, sua importância, métodos e
processos (conclusão) (1911e); Língua materna, importância, exercícios e processo (1911f);
Aritmética, sua importância e processo. Morfologia. Geometria (1911g); Lições de coisas,
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sua importância, princípio e método (1911h); Geografia, importância, métodos e processos


(1911i); História, sua importância, métodos e processos (1911j); Instrução moral e cívica e
economia doméstica. Métodos e processos (1911l); O grupo modelo (1911m).
Os manuais, e de modo específico os onze artigos sobre Pedagogia disponíveis,
evidenciam de modo recorrente citações de pedagogos, filósofos, sociólogos, psicólogos,
biólogos e outros cientistas que definiram as funções docentes, os papeis dos alunos e os
métodos de ensino. Ao mesmo tempo, a análise dos manuais e impressos evidencia a própria
história das ciências que fundamentaram a formação do magistério no período em estudo.
Se a pedagogia era o elemento definidor desta formação, ao longo do século XIX, nas
primeiras décadas do novecentos a Psicologia e a Pedologia se constituíram enquanto
elementos aglutinadores das principais reflexões dos docentes. Em Portugal, destaca-se a
publicação dos livros Algumas lições de Psicologia e Pedologia (FERREIRA, 1920), Lições
de Pedologia e Pedagogia Experimental (VASCONCELOS, 19--) os quais eram utilizados
pelos normalistas.
No que concerne às lições de Pedologia, podemos traçar um diálogo entre as
prescrições do Regulamento da Escola Normal de Natal e as ideias do professor português
Farias de Vasconcelos (1880-1939). A obra Lições de Pedologia e Pedagogia Experimental
(s.d.), do referido autor, apresenta as principais experiências e livros publicados no bojo da
emergência do pensamento psicopedagógico, particularmente, em países como Alemanha,
Argentina, Áustria, Bélgica, Estados Unidos, França, Hungria, Itália, Rússia e Suíça.
Em Natal, os princípios aprendidos na Escola Normal e aplicados nas escolas
primárias estavam em conformidade com o Regimento Interno dos Grupos Escolares (1909)
nos quais encontramos prescrições de princípios da Pedagogia Moderna para a escola
elementar. As determinações da Diretoria Geral de Instrução Pública previam os princípios
para o ensino intelectual, a educação moral e cívica, como também física. Asseverava que “a
instrução moral regula as ações do homem e refere-se aos costumes em geral. As faculdades
que presidem e determinam essas ações são a vontade e a sensibilidade, que o mestre
cultivará pelos meios mais simples e racionais.” (REGIMENTO INTERNO, 1909: 7).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Diante disso, assevera-se que os livros, a legislação e os regulamentos compõem e


construíram uma cultura escolar, como também colaboraram para a consolidação da Escola
Normal, instituição conhecida em diferentes partes do mundo. São materiais criados no
interior de projetos de formação de um número significativo de professores que destinavam-se
à instrução pública mantida pelo Estado e propostos a uma parcela expressiva de forma
gratuita e, por vezes, obrigatória.
O estudo evidenciou que as Escolas Normais surgiram do mesmo substrato histórico,
como também a consonância entre os dois países no que concerne a um modo de saber que
associava políticos, professores, médicos, higienistas e os demais especialistas da sociedade
envolvidos com a educação. Constatamos, ainda, a presença de um discurso pedagógico
próprio à escola primária e ao preparo do magistério.
De modo particular, a Escola Normal de Natal funcionou em diferentes espaços e
consolidou-se como a instituição responsável pelo preparo dos mestres primários. Enquanto
locus da formação de professores constituiu uma forma escolar própria, a partir da produção e
veiculação de saberes específicos e de modos de fazer peculiares. Saberes os quais deram
suporte ao preparo profissional para o magistério e que estavam em conformidade com o
movimento pedagógico mundial, as ideias, discussões e reflexões dos pedagogos e dirigentes
educacionais. A Escola Normal de Natal era um espaço de atividades pedagógicas, de
afirmação profissional, um lugar de reflexão sobre as ações que conferiram aos professores a
representação de profissionais produtores de saberes os quais legitimaram a instrução e a
profissão docente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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servirem de guia aos candidatos ao magistério primário]. Lisboa: Tipografia do Futuro, 1870.
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MULHER EM MEIO A UMA SOCIEDADE MACHISTA NO SÉCULO XXI: EU


LAVO, MAS NÃO ENXUGO, ISTO É COISA DE MACHO

Cristine Brandenburg643 | crisfisio13@gmail.com


Tânia Gorayeb Sucupira 644 | thaniasucupira@yahoo.com.br
Miriam Viviane Baron645 | miriamvbaron@yahoo.com.br

A abordagem do papel do homem e da mulher nas questões dos afazeres do cotidiano


da família tem gerado polêmicas em vários segmentos da sociedade, principalmente em uma
cultura ainda machista com padrões impostos pela sociedade machista e preconceituosa em
que vivemos. Onde as mulheres devem realizar três jornadas de trabalho, além de atribuir
conquistas importantes perante o trabalho remunerado, em contrapartida, não possuem os
mesmos direitos nos seus lares, em que não existe divisão de trabalho e as tarefas do lar são
destinadas apenas as mulheres.

Este trabalho tem como objetivo apontar alguns elementos das relações familiares e
dos conflitos que envolvem mulheres escravizadas em seus lares.

Para o desenvolvimento do estudo utilizou-se o percurso metodológico da história oral


biográfica (LOZANO, 2006), com ênfase no campo do relacionamento, complementada com
outras fontes documentais - jornais, livros, etc.

643
Doutoranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará – UFC, Bolsista CNPq; Mestra em
Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará – UFC, Bolsista CNPq e Graduada em Fisioterapia pela
Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC, Bolsista PROUNI.
644
Mestra em Educação pela Universidade Federal do Ceará – UFC; Pedagoga pela UFC, Especialista em
Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica pela Faculdade Kurios e professora na SME – Fortaleza - CE.
645
Mestra em Promoção da Saúde pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Especialista em Saúde
Pública com Ênfase em Saúde da Família - UNINTER, Pós-graduanda em Fisioterapia em UTI Faculdade
Inspirar. Possui graduação em Fisioterapia pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC.

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Para Meihy e Holanda (2007) a história oral é definida como um conjunto de


procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto que prevê: planejamento das
gravações; transcrição e estabelecimento de textos; conferência do produto escrito;
autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, a publicação dos resultados que
devem, em primeiro lugar, voltar-se ao grupo que o gerou.

A história oral trabalha com lembranças, esquecimentos e subjetividades, abordando


um universo de significados, significações, ressignificações, representações psíquicas e
sociais, simbolizações, simbolismos, percepções, pontos de vista, perspectivas, experiências
de vida e analogias (TURATO, 2003) que possibilitam lançar luz nas interpretações que os
homens constroem sobre si e sobre seus artefatos, clareando o que sentem e pensam acerca
das vivências pessoais e grupais.

No entanto, é importa esclarecer que no grupal, cultural, social ou coletivo, em história


oral, definem-se pelo resultado de experiências que vinculam umas pessoas às outras, sendo
assim, segundo pressupostos articuladores de construções de identidades decorrentes de
memórias expressadas em termos comunitários (MEIHY, HOLANDA, 2007).

Minayo (2006) define que a história oral é considerada, no âmbito da pesquisa


qualitativa, poderoso instrumento para a descoberta, a exploração e a avaliação de como as
pessoas compreendem seu passado, vinculam sua experiência individual a seu contexto social,
interpretam-na e dão-lhe significado, a partir do momento presente. Por isso, ela oferece
material para descrição de época e possibilita levantar questões novas e de diversos níveis de
abrangência, assim como corrigir teses consagradas ou inconsistências teóricas (LE GOFF,
2003).

Como diz Schultz (1964) cada ator social experimenta e conhece o fato social de
maneira particular, mas as experiências vivenciadas e internalizadas ganham significados que
perpassam pelo convívio grupal, de modo que as interpretações dos acontecimentos não se
reduzem à soma dos elementos, mas sim à compreensão dos modelos culturais e das
particularidades do entorno. Nesse sentido, a história oral é social, sobretudo porque o
indivíduo só se explica na vida comunitária (MEIHY, HOLANDA, 2007).

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Para analisar o material empírico, oriundo das entrevistas abertas, foi utilizada a
Análise de Conteúdo (BARDIN, 2004) numa perspectiva crítica e reflexiva. Nesse sentido,
fez-se uma leitura flutuante do material para identificação de núcleos de sentido. Em seguida,
esses grupos foram subdivididos em categorias no intuito de buscar convergências e
divergências extraídas das falas dos participantes, ampliando assim a compreensão do
fenômeno, cuja discussão está articulada com as informações contidas na autobiografia e na
história oficial.

As fontes orais utilizadas foram diversas, principalmente coletadas através do


cotidiano da pesquisa em que se procurou incluir várias narrações de casais diferentes em
diversos grupos sociais. Essas histórias de vida foram transcritas, coletando assim fragmentos
de narrativas dessas mulheres e homens, das suas relações afetivas e domésticas no seu lar.

NO DESENROLAR DA PESQUISA
A discussão proveniente da análise de dados levou em consideração as fontes
coletadas sendo eles casais de diferentes grupos sociais e seu cotidiano pertinente ao tema
com a seguinte indagação: Sobre os afazeres do lar, o que você pensa sobre sua conduta e
como acontece na sua casa?
Respostas masculina do casal 1:“[...] Eu lavo, mas não enxugo a louça, isto é coisa de
macho [...]”. Resposta feminina do casal 1: “[...] Mas lava, e coopera daqui a pouco ele
enxuga, ele não sabe o que diz. Com o jeitinho ele faz mais coisas... antes não fazia nada,
hoje já recolhe o lixo, arruma a geladeira, põem a mesa do café... [...]”
Respostas masculina do casal 2: “[...] Aqui em casa dividimos todas as tarefas... não
temos distinção de serviço. Tanto os meninos como as meninas fazem a mesmas coisas.
Criamos nossos filhos para o mundo, não sabemos o dia de amanhã [...]”.Respostas
femininas casal 2: “[...]Um ajuda o outro assim que uma família deve ser. Ensinamos nossos
filhos a serem companheiros a cima de tudo. Existe amor em ajudar. [...]”
Respostas masculina do casal 3: “[...] Não sei fazer nada, não fui criado para
trabalhar em casa. Sou homem isso é serviço de mulher, casei com uma mulher para ela
cuidar dos filhos, de mim e da casa [...]”. Respostas femininas casal 3: “[...]Estou cansada,
quando casamos era normal a mulher ser responsável por tudo na casa. Mas hoje vejo pelas

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minhas colegas que os maridos ajudam em casa. Fico triste... Tenho vontade de largar tudo...
Meu casamento esta desgastado pelo cotidiano, somente cobranças... Não quero que minhas
filhas tenham este tipo de relacionamento no futuro. [...]”
Respostas masculina do casal 4: “[...]Eu trabalho a mesma carga horária da minha
esposa, dividimos bem as tarefas do lar. Sempre foi assim... tem algumas coisas que não faço
muito bem...Porém minha esposa me explica na próxima eu faço melhor. Acho justíssimo
colaborar [...]”.Respostas femininas casal 4: “[...]Sempre nos relacionamos bem com
diálogo e um ajudando o outro, chegamos em casa dividimos o que temos para fazer. Assim
não fica cansativo para nenhum dos dois. [...]”
Respostas masculina do casal 5:“[...]Não dividimos as tarefas... serviço de casa é da
mulher. O homem é somente o provedor. Não deixo faltar nada em casa. Para isso não quero
que minha mulher trabalhe fora. Essas coisas de direitos iguais somente contribui para
separação. [...]”. Resposta feminina do casal 5: “[...]A igualdade da mulher somente
prejudicou vejo pelas minhas amigas. Elas agora além de trabalhar fora, ainda cuidam da
casa e dos filhos. Os filhos perderam o respeito pela constituição família [...]”
Respostas masculina do casal 6:“[...]Fiquei desempregado... Foi difícil me adaptar a
esta condição. Agora ajudo em casa a prendi um novo oficio. Faço tudo... Antes ajudava
muito pouco. Agora vejo como é puxado o serviço doméstico e pior não é valorizado. Me
sinto mal pois, um homem tem que trabalhar, agora dependo da minha esposa. [...]”.
Resposta feminina do casal 6: “[...] Graças que eu trabalho, pois agora neste momento difícil
eu sustento a família e ele me ajuda muito em casa. Nos apertamos, mas vamos superar, neste
momento não temos mais discussões sobre a fazeres pelo contrário estamos mais unidos.
[...]”
Respostas masculina do casal 7:“[...]Eu não gosto de fazer os serviços de casa, já
trabalho fora. Não sou acostumado com o trabalho de casa, nem sei fazer e não me interesso
em aprender. Se não ficava solteiro e contratava uma empregada [...]”. Resposta feminina do
casal 7: “[...]Eu também trabalho fora de casa e ainda quando chego tenho todas as
cobranças de casa... Estou muito cansada disto tudo.[...]”
Respostas masculina do casal 8:“[...]Ajudo sim nos trabalhos de casa e com muito
prazer. É muita coisa. Hoje em dia não temos mais como ter uma empregada e temos apenas
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uma diarista, é uma boa economia no nosso orçamento. [...]”. Resposta feminina do casal 8:
“[...]Dividimos as tarefas, procuramos não acumular afazeres e deixamos sempre as coisas
em ordem. Aprendemos a curtir cada momento em família. Até mesmo os que estamos
limpando a cozinha. Com o dinheiro que deixamos de pagar a empregada viajamos curtimos
nossos filhos e nós como casal.[...]”
Respostas masculina do casal 9:“[...] Sou bagunceiro, mas sempre ajudo quando
minha esposa chama. Confesso que tenho pouca iniciativa em arrumar a casa, ou mesmo
deixar em ordem as coisa. Mas é que fui criado sempre com alguém fazendo as coisas por
mim. Agora tenho preguiça. Mas já melhorei bastante depois de casado[...]”. Resposta
feminina do casal 9: “[...]Ele era muito bagunceiro. Hoje é um pouco melhor, mas ainda é
muito. Sou muito organizada e isso me irrita sem querer. Mas tem outras coisas importantes,
o carinho o amor... eu entendo ele pelo fato de não ter convivido com certos hábitos. Mas
acredito que nunca é tarde para mudar, pois cada dia é uma construção.[...]”
Respostas masculina do casal 10:“[...] Serviço de casa não tem fim. Sempre existe
uma demanda. Hoje temos que ajudar, as necessidades são maiores do que a preguiça.
Quando adolescente nem a cama eu arrumava. Hoje já arrumo a cama, lavo a louça, guardo,
tiro o lixo, arrumo a mesa para a refeição. Eu sei que são pequenas minhas contribuições.
[...]”. Resposta feminina do casal 10: “[...] Temos um bom relacionamento, não
sobrecarregamos um ao outro. Esta pequena ajuda pode ser insignificante. Porém no dia a
dia faz a diferença. Ainda bem que ele tem consciência que é pequena. Tenho amiga que
passam o maior trabalho, são casadas com homens machistas [...]”.

UMA BREVE REFLEXÃO


Nesta breve ponderação vamos trabalhar para discutir alguns recortes dos principais
pensamentos lançadas pelos casais entrevistas e contrapostos com a filosofia de “JEAN-
JACQUES ROUSSEAU” (1712-1778) a mercê do famoso tratado de educação escrito pelo
autor o livro Emílio ou Da Educação.
Os casais entrevistados ainda reclamam da educação que tiveram e do magismo
existente entre homens e mulheres onde o homem é mais forte e a mulher mais submissa.
Rousseau (2004) fundamenta que as duas espécies, quando para uma união, concorrem
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igualmente para um objetivo comum, mas, ao advertir que suas diferenças estão no sexo, cada
uma das partes já nasce com suas características que os identificam como tal: a mulher será
passiva e fraca, o homem será um ser ativo e forte. A confluência destas características supõe
que “um queira e possa” bastando que o outro “resista pouco” (ROUSSEAU, 2004).
Uma temática também encontrada em discussão é o fato da educação ser diferentes
impostas pelas mulheres e homens. As mulheres por sua vez desde crianças são estimuladas a
realizar os afazeres do lar enquanto os homens são livres destas obrigações. As mães tem uma
tarefa de educar os filhos, porém elas mesmas superprotegem a prole masculina, fato este que
reflete na vida conjugal como podemos ver nas entrevistas dos casais. Em que o homem não
coopera em casa com a rotina doméstica porque não foi criado para isto e não sabe fazer. O
autor Rousseau (1992) salienta que para formação do homem e da mulher, o autor chama a
atenção sobre os gostos particulares que foram ‘inclinados’ em fases anteriores para assim
concretizar as diferenças dos sexos. Com isto, os jovens buscam movimento e ruídos;
tambores, tamancos, pequenas carruagens, e as jovens preferem o que dá na vista e serve de
adorno: espelho, joias, trapos, bonecas (principal divertimento deste sexo). Tal observação irá
de encontro a sua postura na fase adulta: tudo tratamento que é expresso sobre a boneca será
transportado para si mesma. Por tanto, a repugnância do ler e escrever é justificado por seu
gosto pelos trabalhos manuais de confeccionar adornos e roupas as bonecas que será
entendido na vida adulta como sua ocupação de confeccionar suas próprias roupas e enfeites.
Eis os seus ‘livros’ de estudos.“[...] quase todas as meninas aprendem com repugnância a ler
e escrever; mas manejar a agulha elas o aprendem sempre de bom grado” (ROUSSEAU,
2004, p. 427).
Por outro lado, agradar um homem de mérito, a mulher adota meios com conforme sua
intenção. Rousseau em (1992) enfatiza o papel da mulher que seria “naturalmente um
coquete, mas seu coquetismo muda de forma e de objeto seus desígnios; regremos esses
desígnios em obediência aos da natureza e a mulher terá a educação que lhe convém”. O
homem casa-se com as mulheres para que elas cuidem deles assim como suas mães fizera,
sele pela sua alimentação, bem estar, saúde, coisas rotineiras desde uma roupa passada a uma
casa organizada. E pelos depoimentos verificamos a ocorrência da posição machista em impor
que me casei para a mulher cuidar da rotina doméstica. Mesmo a mesma tendo uma rotina
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igual a do esposo no que compete ao trabalho.


Com esta introdução, inicia-se o entendimento de qual seria o projeto de educação
feminina que se justifica pelo de que educamos o homem natural faz-se necessário que ele
tenha ao seu lado, também, uma mulher que o complete nesta ‘natureza’. Isto significa dizer,
que a mulher não deve ter uma educação igual ao homem para não correr o risco dela parecer
menos como mulher e mais como homem. Dentre as características intrínsecas, a mulher é
reconhecida como aquela que “em tudo faz valer seus direitos, ela leva vantagem; em tudo em
que quer usurpar os nossos fica abaixo de nós [...] Cultivar nas mulheres as qualidades do
homem, e negligenciar as que lhes são peculiares, é, pois visivelmente trabalhar contra elas
[...] elas devem aprender muitos coisas, mas as que lhes convém saber [...]” (ROUSSEAU,
1992). Hoje em dia vemos pelos depoimentos dos casais que isto não é mais viável,
porquanto as mulheres conquistarão direitos importantes, principalmente o que refere à
educação igual, onde sem preconceito e discriminação disputam de igual para igual no campo
de trabalho. Faz se então uma nova geração aonde as tarefas são divididas de igual para igual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mulher sempre foi considerada o sexo frágil com limitações imposta pela sociedade
machista, com a obrigação de se compor as tarefas do lar sempre selando pela família e o
marido. E ainda tendo que acumular as jornadas de trabalho (cuidados dos filhos, marido,
afazeres do lar). Enfim a sobrecarga imposta acaba por saturar os casais.
Através de estudos, pode-se perceber que, essas mulheres eram centrais em suas
relações familiares, contribuem financeiramente e lutavam para preservar as condições de
igualdade de gênero em seus lares. Em ênfase, estudar a história desses casais é perceber a
importância de cada um deles nas suas relações, suas lutas e conflitos internos em meio ao
amor.
Os relatos contribuem para demonstrar que as pesquisadas e os pesquisados
compreendem a influência cultural tanto no comportamento de ambos os sexos como na
disseminação da violência, e defendem a igualdade entre homens e mulheres. Além disso,
entendem que o homem também seja vítima dessa cultura perversa, sem que, com isso,
justifiquem seus atos de violência e preconceito. Enfim, detectam que para se coibir a
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discriminação na hora de fazer as atividades do lar é indispensável a desconstrução dos


estereótipos de gênero, e a importância de, nesse processo, ser incluído no intuito de se
provocar as pertinentes rachaduras no sistema patriarcal, onde a mulher e o homem possuem
tarefas e deveres comuns em um lar, para otimizar e garantir o bem estar de todos da família
Os preconceitos em dizer que o lugar da mulher é na cozinha, e assim como, a mulher
foi feita para pia e fogão, ainda tem bastante conotação em pleno século XXI. Onde as
mulheres embora conquistassem muitos direitos e igualdades profissionais ainda possuem
uma sobrecarga de trabalho e cobranças não é amenizada pelo companheiro.
Portanto, pensar na transformação social envolve transgredir as normas de
comportamento, dominação e de poder impostas pela sociedade aos gêneros. Isso não
significa a exclusão do masculino, mas o pensar em homens e mulheres a partir do caráter
relacional de poder, considerando que não existe apenas uma mulher ou um homem, mas sim,
diferentes construções simbólicas de papeis que são flexíveis e mutáveis ao longo do tempo.

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DIGA X!!! MASCULINIDADE E PERFOMANCE NA FOTOGRAFIA PUBLICADOS


PELA IMPRENSA EM CAXIAS-MA

Jakson dos Santos Ribeiro646 | jakson.77@hotmail.com

INTRODUÇÃO: A FOTOGRAFIA COMO DOCUMENTO

Nas primeiras páginas apresentaremos reflexões do valor documental que a


fotografia possui para o historiador na construção das suas análises. Pois como apontamos a
fotografia é um registro que denota multiplas possibilidades para se traçar vias de
compreensão do vivido. Assim seguindo essa máxima nos tornamos tributários do uso da
imagem fotográfica para nos apoiarmos nas reflexões sobre a questão de gênero e com um
olhar mais direcionado para estudo da masculinidade através da fotografia.
Nesse momento do nosso trabalho faremos uso de imagens que foram publicadas em
jornais caxienses, principalmente a partir da decada de 1960, visto que a fotografia se torna
mais presente na imprensa da cidade. Nesse sentido, as fotografias mencionadas no texto,
serão pensadas apenas como aspectos que denotam os sentidos que buscamos analisar ou seja,
a chamada performance que os sujeitos presentes nelas assumem.

Como apontamos anteriormente a ideia é usar as fotografias como fontes para


compreender as performances que estão presentes nas poses desses homens, como também o
conceito de masculinidade.647

646
Doutorando pelo Programa de História Social da Amazônia –UFPA e Professor Assistente - I na
Universidade Estadual do Maranhão – CESC- UEMA
647
[...] considerar a masculinidade e os homens objetos específicos dos estudos da masculinidade acarreta
consequências teóricas e políticas sérias. Politicamente, reforça o binarismo que tem sido fortemente criticado
atualmente pelas teorias feministas e, mais recentemente, pelas teorias queer. Teoricamente, ao trabalhar a
partir de uma divisão ingênua entre masculinidade e feminilidade, não incorpora as severas críticas das políticas
de identidade, a complexificação do estudo da subjetividade e a centralidade das reflexões sobre as relações de
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Assim, lançamos o nosso olhar incialmente para as considerações de Jutide Butler,


quando autora pensa a questão do gênero enquanto uma perfomance problematizando
categorias como identidade e a famosa divisão binária dos sujeitos, como por exemplo,
masculino/feminino. Nesse sentido pensando a performance ela considera que :
[...] originou-se no âmbito do teatro, sendo considerada uma evolução dos
happenings, manifestações que ganharam destaque nos a 1960, como
desdobramento das vanguardas de fins do século XIX e começo do XX. Seus
antecedentes mais antigos podem ser vários, dependendo do autor que traça a linha
evolutiva. Os limites da performance enquanto conceito forma e continuam sendo
ampliados consideravelmente, sendo o termo utilizado para uma enorme variedade
de aplicações nos mais diversos campos de análise na atualidade648

Nas considerações de Judith Butler performance de gênero é uma teoria que parte do
pressuposto que as práticas cotidianas dos sujeitos são alicerçadas, por modos performáticos,
ou seja, que o gênero é moldado socialmente, por elementos como ritos sociais repetidos
intensamente. Nessa via de compreensão a repetição é um mecanismo de naturalização,
enquadrando os sujeitos em modelos, padrões, nas quais os sujeitos acabam sendo instituídos
a viveram como dita o padrão.
Por isso, que buscamos analisar as fotografias como evidências, porque nos ajuda a
pensar como algumas formas de apresentar-se em uma imagem estão indiretamente ligadas ao
mundo em que as pessoas estão inseridas, junto, claro com suas formas de pensar e agir, o que
nesse caso acabam assumindo algumas performances, papeis que os modelos, padrões,
determinam como ideal.
Nesse ínterim, podemos arrolar aqui a própria condição do homem em seus mais
diversos contextos, como a forma de andar, de falar, de viver na esfera publica, são elementos
que se apontam como deve “ser homem” marcando assim aspectos hierárquicos, nas quais o
comportamento desviante gera um olhar torto por parte da sociedade.
Por isso que ao olharmos, por exemplo, a fotografia nos jornais caxienses notamos

poder que configuram os objetos que se relacionam diretamente a sexo, a gênero ou a ambos (PARRINI, apud
MEDRADO E LYRA, 2008: 825). MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge. Por uma matriz feminista de gênero
para os estudos sobre homens e masculinidades. Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 424, setembro-
dezembro de 2008, pp. 809-840.
648
BENTO, Carlos Henrique. O gênero atuante: a performance de gênero em The Passion of New Eve e
Goodnight Desdemona (Good Morning Juliet). (Tese) PPL/Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte, 2007,
p. 07.
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que a representação que pode assumir é configurada de uma performance que possa reforçar
ainda mais padrão de masculinidade. Por exemplo, na imagem abaixo temos a imagem de um
caxiense que foi médico e bastante conhecido pela cidade, nos anos em que atuava.649

Retrato: Marcelo Tadeu de Assunção

Foto: Publicada em 28 de janeiro de 1978, Jornal Pioneiro.


Fotografo desconhecido

No caso da fotografia acima é uma homenagem ao aniversário de Marcelo Thadeu de


Assunção, médico e conhecido na cidade como um cidadão que além das atividades com a
medicina, também foi docente. Mas a questão interessante, quando apontamos a imagem
desse médico é que possamos perceber aqui o valor da foto, a pose com que o médico
encontra-se e as possibilidades do discurso interpretativo que à fotografia nos habilita a
extrair.
Antes de direcionar o nosso olhar mais centrado para os sentidos da fotografia é
necessário mencionar que a imagem acima apresenta ao seu lado um texto ressaltado traços

649
Fotografia é memória e com ela se confunde. Fonte inesgotável de informação e emoção. Memória visual do
mundo físico e natural, da vida individual e social. Registro que cristaliza, enquanto dura, a imagem – escolhida
e refletida – de uma ínfima porção de espaço do mundo exterior. É também a paralisação súbita do incontestável
avanço dos ponteiros do relógio: é pois o documento que retém a imagem fugidia de um instante da vida que flui
ininterruptamente. KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo, SP: Ateliê Editorial, 2001, p. 156.
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biográficos de Marcelo Thadeu Assunção. Na ocasião, além citar a data do aniversário do


médico, aponta elementos da sua trajetória. Assim o jornal aponta:
O aniversário do dia 19 do corrente foi o dr. Marcello Thadeu de Assumpção uma
das pessoas mais estimadas em nossa cidade, líder autentico da massa, médico dos
mais humanitários da terra, grande em sua modéstia, simples em sua grandeza.
Formado há 35 anos pela antiga Escola de Medicina da Bahia, hoje pertecente à
Universidade Federal, o dr. Marcello lencionou na cidade de Salvador a língua
lattina, inclusive ao ex-governador e atual atual governador baiano eleito. Antonio
Carlos Magalhaes, como quem se encontrou recentemente ali na << Festa da
Saudade>> ( onde se juntaram os formandos da turma de 1948 na cidade de
Salvador[...]650
Assim, como a fotografia o texto ressalta e exalta os princípios do bom homem, o
representante do povo, o bom cidadão. Elementos que se direcionados para os estudos do
gênero e da performance de gênero percebemos que são formas de qualificar um padrão de
masculinidade em que se enquadra pessoa da imagem.651
Nas considerações de Ana Luiza T. Soares, a autora considera que a construção do
discurso jornalístico é um campo que abrange e caminha para alem do elemento “[...]
informativo ou construtor da realidade: ele estrutura a percepção dos leitores, orienta suas
apreensões, conduz pragmaticamente a localização de sua recepção no complexo de sentidos
presente em cada pauta.”652
Se olharmos para posição em que Marcelo Tadeu Assunção se encontra, nota-se que
a intenção era mostrar um sujeito de olhar direcionado, com foco, que possuem objetivos, e
sabedor das decisões que “certamente” iria tomar, seja qual for à situação em que ele se
encontraria. Mais uma vez não podemos de deixar de salientar como a imagem é instituída de
um texto, de uma mensagem, códigos de valores, nos quais se quer transmitir e afirmar.
Na visão de Juthid Butler a autora nos ajudar a pensar que os sujeitos não são pré-
discursivos, mas que este se fazem enquanto tal, nos meandros em que estão envolvidos e

650
JORNAL, Folha de Caxias, 28 de janeiro de 1978, p. 02.
651
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos
quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos
significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo
que somos. Compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e
coletivas. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA,
Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 3ª ed.,
2004, p. 17.
652
SOARES, Ana Luiza T. Inventando Gênero: feminismo, imprensa e performatividades sociais na Rio
Grande dos “Anos Loucos” (1919 a 1932). (Dissertação) UFPR, Curitiba, 2010, p. 69.
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vivem. A sua aceitabilidade estar assim condicionada sobre viés do que seja percebido como
padrão e formal. Assim, o homem e o seu comportamento são vigiados socialmente na
perspectiva de “orientar” na postura que devem assumir nos espaços em que circula,
principalmente nos espaços públicos. E de antemão, afirmo não estou fazendo uma defesa dos
homens, mas apenas apresentando que as cobranças são realizadas devido, ao próprio
histórico de afirmação do que por muito tempo entendeu o que seja homem.
Nesse jogo de analise, mesmo a imagem sendo usada apenas para fazer referencia ao
aniversário do médico, os elementos que notificasse o perfil de homem que ele era não foram
deixados de lado. Sobre esse prisma podemos mencionar que a masculinidade enquanto uma
performance praticada no espaço público torna-se um ponto visível pelo campo social. “A
identidade masculina não é linear, sofre modificações com a idade, a classe social, as relações
de trabalho, as mudanças de status, a acumulação ou perda de prestigio.”653
A ideia do homem publico, seria uma máxima das imagens de homens na imprensa
caxiense, as fotografias destes homens sempre buscavam denotar o que eles eram
publicamente, e quais os princípios defendiam em prol da sociedade caxiense. Uma ação
nesse caso, atribuidora das características da masculinidade enquanto se movimento no
espaço publico. Pois o que se percebe é sempre reafirmar o que é o homem na esfera publica e
como “naturalmente” ele foi destinado para estar lá transitado “livremente”.
Aspamos a palavra livremente, por que o que os homens pensam como natural, nada
mais é que uma condição imposta na qualidade do que seja homem, por que caso seu
comportamento, sua performance não esteja enquadrada dentro das características
socialmente aceita essa é vista como reflexo de um sujeito que é possuidor dos elementos da
masculinidade, como atípico, fora dos padrões, desqualificados, pelos outros, por que não
cumpre o que é “regra”.
Nesse caso, os fatores culturais654 são elementos que encaixam em um quadro

653
PEREIRA, Erik Giuseppe Barbosa. Discutindo gênero, corpo e masculinidade. In: PEREIRA, Erik Giuseppe
Barbosa; ROMERO, Elaine (0rgs.). O universo do corpo: masculinidades e feminilidades. Rio de Janeiro:
Shape, 2008, p. 93.
654
Os fatores culturais são responsáveis pela permanência do atual regime de gênero, mesmo em sociedades
avançadas do ponto de vista industrial e econômico. Os exemplos não são apenas os enclaves nas sociedades
urbanas, constituídas por massas de imigrantes que procuram manter suas tradições nas quais esse regime é um
elemento-chave, e sim as sociedades reconhecidamente machistas e que continuam a reproduzir práticas sexistas,
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formativo da identidade masculina, ou mesmo da própria masculinidade desse homem. De


modo geral, essa qualificação positivada da masculinidade no conjunto das relações de gênero
serviu e serve para manter em segurança o lugar ocupado pelo homem.
Assim voltando ao conceito de homem público e do homem público através da
imprensa, as imagens como essas que apresentamos do médico era bem presentes nos jornais
caxienses não apenas dele, mas de muitos, como é caso do próprio dono do Jornal Folha de
Caxias, que sempre se faziam presentes nas edições publicadas. É possível apontar uma
autovalorização do seu ego, enquanto homem de sucesso, de provedor, de sujeito modelo. Isso
nos direciona a afirmar a relação desses discursos e dessas fotografias publicadas, com o
conceito performático de masculinidade hegemônico.
[...] para alguns homens, o poder social que é outorgado à masculinidade é fonte de
sofrimento e alienação. Trata-se de homens que suprimem suas emoções,
necessidades e possibilidades, tais como o prazer de cuidar dos outros,
receptividade, a empatia e compaixão, que são experimentados como inconsistentes
com o poder masculino.655

Desse modo, para explicitarmos essas considerações trazemos uma fotografia


publicada no jornal Folha de Caxias na edição de 13 de fevereiro de 1964, em que é feita uma
homenagem ao trabalho desempenhado por Alderico Silva, enquanto empresário na cidade de
Caxias.
Nota-se que a imagem é sempre ancorada na perspectiva da seriedade e do olhar
centrado ao horizonte. Uma representação imagética e performática que autoriza uma fala de
representação social do individuo para sociedade. Esses elementos são dentro da ótica de
análise da masculinidade, como pontos em que se busca ressaltar característica do modelo de
homem para os demais.

apesar de apresentarem índices de modernização e eficiência capitalista invejáveis [...]OLIVEIRA, Pedro Paulo.
A construção social da masculinidade. – Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004, p.
194.
655
PEREIRA, Erik Giuseppe Barbosa. Discutindo gênero, corpo e masculinidade. In: PEREIRA, Erik Giuseppe
Barbosa; ROMERO, Elaine (0rgs.). O universo do corpo: masculinidades e feminilidades. Rio de Janeiro:
Shape, 2008, p. 93.
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Fotografia: Alderic Silva


Foto: Publicada em 13 fevereiro de 1964 (capa)
Autor da Fotografia Desconhecido

Seguindo essa perspectiva de observar o que a imagem que Alderico Silva repassa ao
ter sua foto publicada no jornal, podemos arrolar aqui que uma característica é própria
discursividade da fotografia ao ser vista pelo leitor do jornal, pois será um receptor de uma
mensagem, ou seja, da altivez, sobreidade, homem de visão, elementos aqui que reedificam
um conceito de masculinidade de homem para sociedade caxiense. Nesse processo, a
fotografia pode ser lida pelas pessoas a partir dos códigos culturais do fotografado, ou seja,
elementos de positividade e uma “performance social ideal”.
Segundo Philippe Dubois, a imagem se destaca em uma dimensão social e por sua
lógica principalmente por ser possuidora de concepções lógicas ao que diz respeito da
mensagem que se propõe a repassar, sobretudo em se tratando da figura masculina, pois existe
um desejo de se apresentar socialmente como um sujeito de confiança, de respaldo, que é
sabedor dos seus deveres como homem, ou pelo menos, nas concepções que ele acredita que
sejam como ações que compete ao homem.656
Por exemplo, podemos perceber na fotografia abaixo do filho de Alderico Silva, o
deputado na época Aldenir Silva, a fotografia foi publicada, como referendamos logo abaixo

656
Por essas qualidades de imagem inicial, o que se destaca é finalmente a dimensão essencialmente pragmática
da fotografia (por oposição à semântica): está na lógica dessas concepções considerar que as fotografias
propriamente ditas quase não tem significado nelas mesmas: seu sentido lhes é exterior, é essencialmente
determinado por sua relação efetiva com o seu objeto e com a sua situação de enunciação. DUBOIS, Philippe. O
ato fotográfico. Trad. de Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1993, p. 52.
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em 19 de abril de 1964, logo após Aldenir Silva, segundo as informações apresentadas no


jornal de uma reunião que aconteceu na assembleia legislativa.
Nota-se que o jornal quer apresentar informativos sobre os feitos dos membros da
família Silva, mesmo que sejam eles de proporções pequenas, pois o que informa o jornal
Folha de Caxias, o que fizera o deputado Aldenir Silva, foi apenas endossar junto com os
demais representantes da Assembleia Legislativa do Estado, um projeto que se propõe realizar
a cassação de mandatos.
Neste sentido, a imagem fotográfica seria tomada como índice de uma época,
revelando, com riqueza de detalhes, aspectos da arquitetura, indumentária, formas de
trabalho, locais de produção, elementos de infraestrutura urbana tais como tipo de
iluminação, fornecimento de água, obras publicas, redes viárias etc.; ou ainda, se a
imagem for rural, tipo de mao de obra, meios de produção, instalações diversas...
Uma leitura que ultrapasse a avaliação da fotografia como mera ilustração, contudo,
ainda se restringe a avaliação iconográfica da foto.657

Por isso que ao olharmos para a fotografia do deputado Aldernir Silva, que
apresentamos logo abaixo notificamos não apenas os traços de uma mensagem de um homem
ordeiro, um modelo de masculinidade instituído pela forma como este se apresenta na
imagem, mas podemos capturar o próprio estilo da forma como um homem se apresentava
socialmente.
Nessa perspectiva, a fotografia mostra que o homem publico está de braços cruzados
e olhar direcionado. Os traços do bom homem, do cidadão que cumpriu os deveres e que são
ressaltados não só na fotografia, mas também é ratificado na pagina em que foi publicada a
própria imagem. Para Cardoso e Maud, a fotografia é uma fonte que atua como um importante
aspecto que se move para representar e reestruturar códigos sociais e comportamentos de
diversos grupos em contextos e temporalidades diversas.

Fotografia: Aldenir Silva

657
CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. História e Imagem: os exemplos da fotografia e do
cinema. In. CARDOSO, Ciro Flamarion; Ronaldo Vainfas. (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro. Campus, 1997, p 575.
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Fonte: Jornal Folha de 19 de abril de 1964


Autor da Fotografia: Desconhecido

Outro aspecto que podemos acrescentar sobre a fotografia que apresentamos são
alguns traços acerca da pessoa que performativa a imagem. No caso, Aldenir Silva possui
elementos que podemos destacar como uma marca de muitos homens, que é caso do bigode,
um elemento que se configura como uma marca da imagem masculina. Nessa linha de
raciocínio podemos dizer que é elemento onde até a primeira metade do século XX situava a
identidade do homem enquanto homem, como outros elementos.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O estudo da masculinidade é hoje um terreno fértil dentro das pesquisas de gênero,


pois nos possibilita rever que a história do homem e o próprio conceito de homem nos mais
diversos contextos são reflexos de representações constituídas de idealizações e desejos de
ser.
Nesse ínterim, o uso das diversas fontes torna-se um recurso para o estudo da
masculinidade e suas concepções, que apesar de lançarmos o olhar para contextos diferentes,
algumas características se fazem presentes, como a marca de exaltação do homem e suas

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qualidades, como uma forma de fazer contraposição a inferioridade da mulher, mesmo


sabendo que ocorrem mudanças, sabemos que os ranços dessa hierarquia ainda marcam as
relações dos sujeitos.
Desse modo, ao lançarmos o nosso olhar para imagens de homens nos exemplares
dos jornais caxienses, onde aproveito para abrir um parêntese, e afirmo que este estudo é
apenas um ensaio, pois existe um leque de jornais que apresentam características que foram
apontadas aqui e que ainda merece um estudo aprofundado sobre a questão discutida aqui.
Notamos também que as imagens onde se encontram homens elas respondem as
percepções que demarcam as performances dos homens no baricentro das relações de gênero,
visto que o perfil e as características deste perfil são aspectos que exaltam um tipo de homem
e a sua aceitabilidade no espaço social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE Marli Brito M.; KLEIN Lisabel Espellet. Pensando a fotografia como
fonte histórica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 03(3); 297-305, jul/set, 1987.
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New Eve e Goodnight Desdemona (Good Morning Juliet). (Tese) PPL/Faculdade de Letras,
UFMG, Belo Horizonte, 2007.

CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. História e Imagem: os exemplos da


fotografia e do cinema. In. CARDOSO, Ciro Flamarion; Ronaldo Vainfas. (Orgs.). Domínios
da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro. Campus, 1997.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Trad. de Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus,
1993.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2ª Edição Revista. São Paulo: Ateliê Editorial,
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Janeiro, vol. 1, n °. 2, 1996.

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MEDRADO, Benedito; LYRA, Jorge. Por uma matriz feminista de gênero para os
estudos sobre homens e masculinidades. Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 424,
setembro-dezembro de 2008.
OLIVEIRA, Pedro Paulo. A construção social da masculinidade. – Belo Horizonte: Editora
UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004.
SOARES, Ana Luiza T. Inventando Gênero: feminismo, imprensa e performatividades
sociais na Rio Grande dos “Anos Loucos” (1919 a 1932). (Dissertação) UFPR, Curitiba,
2010.

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