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Berenice Reis Lessa

Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa


com Deficiência da OAB/Paraná
(Coordenadora)

conscie nt iza r
PARA INCLUIR
SEXUALIDADE, VIOLÊNCIA E FAMÍLIA
DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR
Sexualidade, Violência e Família da Pessoa
com Deficiência
Berenice Reis Lessa
Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da
OAB/Paraná
(Coordenadora)

CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR


Sexualidade, Violência e Família da Pessoa
com Deficiência

COLABORADORES
Integrantes da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da
OAB/Paraná
João Paulo Zuchi Fagundes
Luiz Cesar Alencar Ribeiro
Marcos Vinícius Moraes Kleinowski
Melize Oliveira Pontes
Pedro Batista Marques
Solange Teixeira Carrilho Filon
Valéria Mendes Siqueira

E d it o r a
Brasília - DF, 2021
© Ordem dos Advogados do Brasil
Conselho Federal, 2021
Setor de Autarquias Sul - Quadra 5, Lote 1, Bloco M
Brasília - DF CEP: 70070-939

Distribuição: Conselho Federal da OAB - GRE


E-mail: oabeditora@oab.org.br

Capa: Felipe Guillermo Costa Navea (Natural de São Paulo - Pessoa com
Síndrome de Down)
Revisão: Maria Christina dos Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - Biblioteca Arx Tourinho)

C755

Conscientizar para incluir: sexualidade, violência e família da pessoa com


deficiência / coordenador: Berenice Reis Lessa, revisão: Maria Christina dos
Santos ; capa: Felipe Guillermo Costa Navea - Brasília: OAB Editora, 2021.

xx, 215 p.

ISBN: 978-65-5819-014-1.

1. Pessoa com deficiência, Brasil. 2. Princípio da dignidade da pessoa


humana, Brasil. 3. Bem-estar, aspectos jurídicos, Brasil. 4. Inclusão social.
I. Lessa, Berenice Reis, coord. II. Brasil. Estatuto da pessoa com deficiência
(2015). II. Título.

CDD: 362.4
CDU: 36-056.26
Gestão 2019/2022

Diretoria
Felipe Santa Cruz Presidente
Luiz Viana Queiroz Vice-Presidente
José Alberto Simonetti Secretário-Geral
Ary Raghiant Neto Secretário-Geral Adjunto
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Araújo de Paiva e Roberto Tavares Mendes Filho; AP: Alessandro de Jesus Uchôa de Brito, Felipe Sarmento
Cordeiro e Helder José Freitas de Lima Ferreira; AM: Aniello Miranda Aufiero, Cláudia Alves Lopes
Bernardino e José Alberto Ribeiro Simonetti Cabral; BA: Carlos Alberto Medauar Reis, Daniela Lima de
Andrade Borges e Luiz Viana Queiroz; CE: André Luiz de Souza Costa; Hélio das Chagas Leitão Neto e
Marcelo Mota Gurgel do Amaral; DF: Daniela Rodrigues Teixeira, Francisco Queiroz CaputoNeto e Ticiano
Figueiredo de Oliveira; ES: Jedson Marchesi Maioli, Luciana Mattar Vilela Nemer e Luiz Cláudio Silva
Allemand; GO: Marcello Terto e Silva, Marisvaldo Cortez Amado e Valentina Jungmann Cintra; MA: Ana
Karolina Sousa de Carvalho Nunes, Charles HenriqueMiguez Dias eDaniel Blume Pereirade Almeida; MT:
Felipe Matheus de França Guerra, JoaquimFelipe Spadoni e Ulisses Rabaneda dos Santos; MS: AryRaghiant
Neto, Luís Cláudio Alves Pereira e Wander Medeiros Arena da Costa; MG: Antônio Fabrício de Matos
Gonçalves, BrunoReis de Figueiredo e LucianaDiniz Nepomuceno; PA: AfonsoMarcius Vaz Lobato, Bruno
Menezes Coelhode SouzaeJader Kahwage David; PB: HarrisonAlexandreTargino, OdonBezerraCavalcanti
SobrinhoeRogérioMagnus VarelaGonçalves; PR: AirtonMartins Molina, José AugustoAraújodeNoronhae
Juliano José Breda; PE: Leonardo Accioly da Silva, Ronnie Preuss Duarte e Silvia Márcia Nogueira; PI:
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Robertode SiqueiraCastro, Luiz Gustavo Antônio SilvaBicharaeMarceloFontes Cesar de Oliveira; RN: Ana
Beatriz Ferreira Rebello Presgrave, Artêmio Jorge de Araújo Azevedo e Francisco Canindé Maia; RS: Cléa
Anna Maria Carpi da Rocha, Rafael Braude Canterji e Renato da Costa Figueira; RO: Alex Souza de Moraes
Sarkis, AndreyCavalcante de Carvalho e FrancianyD’Alessandra Dias de Paula; RR: Emerson Luis Delgado
Gomes e Rodolpho César Maia de Morais; SC: Fábio Jeremias de Souza, Paulo Marcondes Brincas e Sandra
Krieger Gonçalves; SP: Alexandre Ogusuku, Guilherme Octávio Batochio e Gustavo Henrique Righi Ivahy
Badaró; SE: Adélia Moreira Pessoa, Maurício Gentil Monteiro e Paulo Raimundo Lima Ralin; TO: Antônio
Pimentel Neto, Denise Rosa SantanaFonsecaeKellenCrystianSoares Pedreirado Vale.
Conselheiros Federais Suplentes
AC: Luiz SaraivaCorreia, João TotaSoares deFigueiredoFilhoeOdilardoJosé BritoMarques; AL: AnaKilza
Santos Patriota, João Luís Lôbo Silva e Sergio Ludmer; AP: Emmanuel Dante Soares Pereira, Maurício Silva
Pereira e Paola JulienOliveira dos Santos; AM: Márcia Maria Cota doÁlamo e Sergio Rodrigo Russo Vieira;
BA: Antonio Adonias Aguiar Bastos, Ilana Kátia Vieira Campos e Ubirajara Gondimde Brito Ávila; CE:
Alcimor Aguiar Rocha Neto, André Rodrigues Parente e Leonardo Roberto Oliveira de Vasconcelos; DF:
Raquel Bezerra Cândido, Rodrigo Badaró Almeida de Castro e Vilson Marcelo MalchowVedana; ES: Carlos
Magno Gonzaga Cardoso, Luiz Henrique Antunes Alochio e Ricardo Álvares da Silva Campos Júnior; GO:
DalmoJacob doAmaral Júnior, Fernandode PaulaGomes FerreiraeRafael Lara Martins; MA: DeborahPorto
Cartágenes, João Batista Ericeira e Yuri Brito Corrêa; MT: Ana Carolina Naves Dias Barchet, Duilio Piato
JunioreJosé Carlos deOliveiraGuimarães Junior; MS: AfeifeMohamadHajj, LuízRenêGonçalves doAmaral
e Vinícius Carneiro Monteiro Paiva; MG: Felipe Martins Pinto, Joel Gomes Moreira Filho e Róbison Divino
Alves; PA: Luiz Sérgio Pinheiro Filho e Olavo Câmara de Oliveira Junior; PB: Marina Motta Benevides
Gadelha, RodrigoAzevedoToscanodeBritoeWilsonSales Belchior; PR: ArturHumbertoPiancastelli, Flavio
Pansieri e Graciela IurkMarins; PE: Ademar RigueiraNeto, Carlos AntônioHartenFilho e Graciele Pinheiro
Lins Lima; PI: Raimundo de Araújo Silva Júnior, Shaymmon Emanoel Rodrigues de Moura Sousa e Thiago
Anastácio Carcará; RJ: Eurico de Jesus Teles Neto; Flavio Diz Zveiter e Gabriel Francisco Leonardos; RN:
FernandoPintodeAraújoNetoeOlavoHamiltonAyres FreiredeAndrade; RS: BeatrizMariaLuchese Peruffo,
Greice Fonseca Stocker e Maria Cristina Carrion Vidal de Oliveira; RO: Jeverson Leandro Costa, Juacy dos
Santos Loura Júnior e Veralice Gonçalves de Souza Veris; RR: Bernardino Dias de Souza Cruz Neto, Dalva
MariaMachado e Stélio Dener de SouzaCruz; SC: José Sérgio da SilvaCristóvam, Sabine Mara Müller Souto
e Tullo Cavallazzi Filho; SP: Alice Bianchini, Daniela Campos Liborioe Fernando Calzade Salles Freire; SE:
Glícia Thaís Salmeron de Miranda, Tatiane Gonçalves Miranda Goldhar e Vitor Lisboa Oliveira; TO:
AlessandrodePaula Canedo, Cabral Santos Gonçalves e Luiz TadeuGuardieroAzevedo.
Ex-Presidentes
1. Levi Carneiro (1933/1938) 2. Fernando de Melo Viana (1938/1944) 3. Raul Fernandes (1944/1948) 4.
Augusto Pinto Lima (1948) 5. Odilon de Andrade (1948/1950) 6. Haroldo Valladão (1950/1952) 7. Attílio
Viváqua (1952/1954) 8. Miguel Seabra Fagundes (1954/1956) 9. Nehemias Gueiros (1956/1958) 10. Alcino
de Paula Salazar (1958/1960) 11. José Eduardo do P. Kelly (1960/1962) 12. Carlos Povina Cavalcanti
(1962/1965) 13. Themístocles M. Ferreira(1965) 14. AlbertoBarretodeMelo (1965/1967) 15. Samuel Vital
Duarte (1967/1969) 16. Laudo de Almeida Camargo (1969/1971) 17. Membro Honorário Vitalício José
Cavalcanti Neves (1971/1973) 18. José Ribeirode Castro Filho (1973/1975) 19. Caio Mário da Silva Pereira
(1975/1977) 20. Raymundo Faoro (1977/1979) 21. Eduardo Seabra Fagundes (1979/1981) 22. Membro
Honorário Vitalício J. Bernardo Cabral (1981/1983) 23. Membro Honorário Vitalício Mário Sérgio Duarte
Garcia(1983/1985) 24. HermannAssis Baeta (1985/1987) 25. MárcioThomazBastos (1987/1989) 26. Ophir
Filgueiras Cavalcante (1989/1991) 27. Membro Honorário Vitalício Marcello Lavenère Machado
(1991/1993) 28. Membro Honorário Vitalício José Roberto Batochio (1993/1995) 29. Membro Honorário
Vitalício Ernando Uchoa Lima (1995/1998) 30. Membro Honorário Vitalício Reginaldo Oscar de Castro
(1998/2001) 31. Rubens ApprobatoMachado(2001/2004) 32. MembroHonorárioVitalícioRobertoAntonio
Busato (2004/2007) 33. Membro Honorário Vitalício Raimundo Cezar Britto Aragão (2007/2010) 34.
MembroHonorário Vitalício Ophir Cavalcante Junior (2010/2013) 35. Membro HonorárioVitalícioMarcus
Vinicius Furtado Coêlho (2013/2016) 36. Membro Honorário Vitalício Claudio Pacheco Prates Lamachia
(2016/2019).
Presidentes Seccionais
AC: Erick Venancio Lima do Nascimento; AL: Nivaldo Barbosa da Silva Junior; AP: Auriney Uchôa de
Brito; AM: Marco Aurélio de Lima Choy (licenciado); Grace Anny Fonseca Benayon Zamperlini (em
exercício: 1°.01.2021 a 31.12.2021); BA: Fabrício de Castro Oliveira; CE: José Erinaldo Dantas Filho; Df :
Delio Fortes Lins e Silva Junior; ES: Jose Carlos Rizk Filho; GO: Lúcio Flávio Siqueira de Paiva; MA:
Thiago Roberto Morais Diaz; MT: Leonardo Pio da Silva Campos; MS: Mansour Elias Karmouche; MG:
RaimundoCandido Junior; PA: AlbertoAntoniode Albuquerque Campos; PB: Paulo Antonio Maiae Silva;
PR: Cassio Lisandro Telles; PE: Bruno de Albuquerque Baptista; PI: Celso Barros Coelho Neto; RJ:
Luciano Bandeira Arantes; RN: Aldode Medeiros Lima Filho; RS: Ricardo Ferreira Breier; RO: EltonJose
Assis; RR: EdnaldoGomes Vidal; SC: Rafael de Assis Horn; SP: Caio Augusto Silva dos Santos; SE: Inácio
José Krauss de Menezes; TO: GedeonBatista Pitaluga Júnior.
Coordenação Nacional das Caixas de Assistências dos Advogados - CONCAD
PedroZanete Alfonsin Coordenador Nacional
Aldenize Magalhães Aufiero Coordenadora CONCADNorte
Andreia de Araújo Silva Coordenadora CONCADNordeste
Itallo Gustavo de Almeida Leite Coordenadora CONCADCentro-Oeste
Luis Ricardo Vasques Davanzo Coordenador CONCADSudeste
Presidentes Caixas de Assistência dos Advogados
AC: Thiago Vinícius Gwozdz Poerch; AL: Ednaldo Maiorano de Lima; AP: Jorge José Anaice da Silva;
AM: Aldenize Magalhães Aufiero; BA: Luiz Augusto R. de Azevedo Coutinho; CE: Luiz Sávio Aguiar
Lima; DF: Eduardo Uchôa Athayde; ES: Aloisio Lira; GO: Rodolfo Otávio da Mota Oliveira; MA: Diego
Carlos Sá dos Santos; MT: Itallo Gustavo de Almeida Leite; MS: José Armando Cerqueira Amado; MG:
Luís Cláudioda Silva Chaves; PA: FranciscoRodrigues de Freitas; PB: Francisco deAssis Almeida e Silva;
PR: Fabiano Augusto Piazza Baracat; PE: Fernando JardimRibeiro Lins; PI: Andreia de Araújo Silva; RJ:
Ricardo OliveiradeMenezes; RN: Monalissa Dantas Alves da Silva; RS: PedroZanete Alfonsin; RO: Elton
Sadi Fulber; RR: Ronald Rossi Ferreira; SC: Claudia Prudencio; SP: Luis Ricardo Vasques Davanzo; SE:
Hermosa Maria Soares França; TO: Sergio Rodrigo do Vale.
Fundo de Integração e Desenvolvimento Assistencial dos Advogados - FIDA
Felipe Sarmento Cordeiro Presidente
GedeonBatista Pitaluga Júnior Vice-Presidente
Andreia Araújo Silva Secretária Geral
José AugustoAraújodeNoronha RepresentantedaDiretoria
Membros
Alberto Antonio Albuquerque Campos
Aldenize Magalhães Aufiero
Itallo Gustavo de Almeida Leite
Luciana Mattar VilelaNemer
Luis Ricardo Vasques Davanzo
PauloMarcondes Brincas
PedroZanette Alfonsin
Silvia MarciaNogueira
Thiago Roberto Morais Diaz
Afeife Mohamad Hajj
Lucio Flávio Siqueira de Paiva
Monalissa Dantas Alves da Silva
Nivaldo Barbosa da Silva Junior
Raquel Bezerra Cândido
ESA Nacional
Ronnie Preuss Duarte Diretor-Geral
Luis Cláudio Alves Pereira Vice-Diretor
Conselho Consultivo:
Alcimor Aguiar RochaNeto
AurineyUchôa de Brito
Carlos Enrique Arrais Caputo Bastos
Cristina Silvia Alves Lourenço
Delmiro Dantas Campos Neto
GracielaIurkMarins
Henrique de Almeida Ávila
Luciana Christina Guimarães Lóssio
Igor ClemSouza Soares
PauloRaimundo Lima Ralin
Thais Bandeira Oliveira Passos
Diretores (as) das Escolas Superiores de Advocacia da OAB
AC: Renato Augusto Fernandes Cabral Ferreira; AL: Henrique Correia Vasconcellos; AM: Ida Marcia
BenayondeCarvalho; AP: VerenaLúciaCorechadaCosta; BA: Thais BandeiraOliveiraPassos; CE: Andrei
Barbosa Aguiar; DF: Fabiano Jantalia Barbosa; ES: Alexandre Zamprogno; GO: Rafael Lara Martins; MA:
Antonio de Moraes Rêgo Gaspar; MT: Bruno Devesa Cintra; MS: Ricardo Souza Pereira; MG: Silvana
Lourenco Lobo; PA: Luciana Neves GluckPaul; PB: Diego Cabral Miranda; PR: Adriana D'Avila Oliveira;
PE: Mario Bandeira Guimarães Neto; PI: Aurelio Lobao Lopes; RJ: Sergio Coelho e Silva Pereira; RN:
Daniel Ramos Dantas; RS: Rosângela Maria Herzer dos Santos; RO: Jose Vitor Costa Junior; RR: Caroline
Coelho Cattaneo; SC: Marcus Vinícius Motter Borges; SP: Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho; SE: Kleidson
Nascimentodos Santos; TO: Guilherme Augusto Martins Santos.
Presidente Executivo da OAB Editora
José Robertode CastroNeves
AUTORES

PA R TE 1: Artigos Jurídicos

Roberto Wanderley Nogueira


Berenice Reis Lessa
Carliane de Oliveira Carvalho
Maria Christina dos Santos
Bruna Homem de Souza Osman
Jessica Aparecida Soares
Melize Oliveira Pontes
Vania Lucia Girardi
Erelisa de Souza Vieira Bazan
Cristhiane Kulibaba Ishi
Valéria Mendes Siqueira
Fatine Conceição Oliveira
Laureane Marília de Lima Costa
Mariana Rosa

P A R TE 2: Depoimentos

Enio Rodrigues da Rosa


Thiago Córdova
Rogério Luis Silva Rosa
Gabriel Otávio dos Santos
Rita de Cássia Fuentes Luz Suenaga
Josiane Maria Poleski

i
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Marinette Costa Navea


Valéria Mendes Siqueira
Izildinha Aparecida de Paula Gomiero
Samantha Tisserant Siqueira dos Santos
Sandra Mara Aparecida do Prado
Adriana Maria Kaiser Tamarozi
Wilson Roberto Gomiero

Os autores e coautores são responsáveis pelo inteiro teor de seus


respectivos artigos.
No conteúdo dos depoimentos, foi m antida a autenticidade de
expressão de cada colaborador.

ii
Dedicamos este livro às pessoas com deficiência,
mães, pais e demais familiares que se mantêm em
constante busca de seus direitos, alcançando vitórias
e sucessos, apesar das adversidades.

iii
AGRADECIMENTOS

Não poderíamos deixar de manifestar a nossa gratidão ao Dr.


José Augusto Araújo de Noronha, Diretor-Tesoureiro da OAB Nacional,
por seu apoio incondicional para que este projeto se tornasse realidade.
À senhora Francisca Miguel, gerente de Relações Externas, da
OAB Nacional, sempre disponível para sanar nossas dúvidas e nos
assessorar em todas as questões administrativas que surgiram no decorrer
deste trabalho.
Aos membros da Comissão dos Direitos da Pessoa com
Deficiência da OAB/PR pelas ricas propostas e ações para que a ideia,
inicialmente apresentada por sua presidente, se ampliasse, tomasse corpo
e, finalmente, chegasse ao formato ora apresentado aos leitores.
Aos autores dos artigos e depoimentos por sua pronta
disposição para compartilhar os seus saberes e as suas vivências, sem os
quais esse trabalho não existiria.
À equipe organizadora (colaboradores) desta publicação pelas
significativas contribuições, pelo esforço e pelas incontáveis horas de
trabalho.
Ao Dr. José Lúcio Glomb, ex-presidente da OAB/PR, que em
sua Gestão (2010 a 2012) teve a empatia para instituir a primeira
Comissão de Acessibilidade e Direitos da Pessoa com Deficiência, nessa
Seccional.

v
APRESENTAÇÃO

Felipe Santa Cruz*

Tenho a honra de apresentar esta brilhante obra, intitulada


“ Conscientizar para incluir: sexualidade, violência e família da pessoa
com deficiência”, composta por 10 artigos jurídicos de autores que
ocupam o andar de cima da produção intelectual paranaense e, em sua
segunda parte, os 14 depoimentos de familiares e de pessoas com
deficiência ressaltam a originalidade e a sensibilidade ética e
metodológica desta publicação.
A amplitude da discussão abordada aqui supera a dimensão
meramente formalista em torno de um assunto fundamental para o
avanço do Estado Democrático de Direito. Sua abordagem
interdisciplinar auxilia o aprofundamento teórico sobre as múltiplas
dimensões de violações que circundam a existência de uma pessoa com
deficiência em nosso País. A obra, porém, vai além: ela ressalta o
potencial a ser reconhecido e estimulado por meio de mais políticas
públicas inclusivas e propõe formas criativas e viáveis para o acesso à
justiça, ao emprego e ao esporte, por exemplo. Reivindica, também, a
discussão para assegurar a representatividade deste grupo social dentro
dos seus espaços de poder.
Diante disso, a presente iniciativa da Comissão dos Direitos da
Pessoa com Deficiência da OAB/PR, incansável na luta em defesa dos
direitos humanos das pessoas com deficiência, demonstra seu
afinamento com a linha nacional adotada pelo Conselho Federal da
OAB, que, nas últimas eleições municipais de 2020, por intermédio de
sua Comissão Nacional atuante nesta pauta, oficiou o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) para assegurar a plena acessibilidade eleitoral das
pessoas com deficiência no dia das eleições, incluindo a adoção das

* Advogado e Presidente da OAB Nacional.

vii
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

medidas sanitárias necessárias para evitar o contágio pela COVID-19.


Ademais, defendemos uma política educacional cada vez mais inclusiva,
impedindo toda e qualquer forma de retrocesso neste tema.
Estou certo que, neste livro, há lições fundamentais para
seguirmos adiante com a firmeza histórica tão necessária para garantir
avanços e impedir retrocessos. Apresento, portanto, uma publicação que
já nasce referência em seu campo temático, composta por mentes e
corações comprometidos não apenas com a análise técnica do direito,
mas, também, com a crítica, sem dispor da sensibilidade como fio
condutor que alinha e une essas valorosas contribuições em torno de um
bem comum: a igualdade!
Boa leitura!

viii
PREFÁCIO

Cássio Lisandro Telles*

O trabalho realizado pelas 70 comissões temáticas da OAB-PR


é notável, envolvendo o debate de relevantes questões de cidadania.
Comissões que vão desde as principais áreas do direito, civil, penal,
trabalhista, tributário, previdenciário, consumidor, dentre outras, até as
comissões que envolvem direitos específicos, como os direitos das
pessoas idosas, das crianças e adolescentes, da diversidade sexual e a
comissão dos direitos das pessoas com deficiência.
Todas procuram realizar um trabalho não apenas de estudo do
direito, mas, sobretudo, de busca efetiva pela concretização da cidadania,
surgindo de forma destacada as lutas pela igualdade, pela não
discriminação e pela inclusão.
A Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB-
PR tem se notabilizado pelas iniciativas inovadoras, que servem de
modelo inspirador para ações em âmbito nacional. Foi no seio da
comissão paranaense que surgiu a ideia da criação de um plano estadual
de valorização da advocacia exercida por pessoas com deficiência. A
tenacidade dos membros dessa Comissão permitiu elaborar um projeto
que serviu de base para a aprovação dessa proposta como modelo
nacional, pelo Conselho Federal: o Projeto Empregabilidade: Inclusão
da Advogada e do Advogado Pessoa com Deficiência na Advocacia, o
qual tivemos a honra de apresentar quando éramos conselheiro federal,
a pedido da colega Dra. Berenice Reis Lessa, presidente da Comissão.
Com esta iniciativa da Comissão, o Paraná inovou com o
Projeto Empregabilidade que procura conscientizar escritórios sobre a
necessidade e importância de darem oportunidade aos nossos colegas e
que também funciona como uma central de vagas. O projeto é dirigido

* Presidente da OAB/Paraná.

ix
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

pela colega Valéria Mendes Siqueira, que tem deficiência visual e que se
mostra incansável, persistente e invencível nessa luta.
De fato, há uma distância muito grande ainda entre o que diz a
lei 13.146/2015, a lei básica dos direitos das pessoas com deficiência, e
aquilo que ocorre no cotidiano da nossa sociedade. Pouco do que a lei
preconiza foi concretizado, e no âmbito jurídico, para se ter uma ideia,
ainda lutamos contra as deficiências elementares das plataformas de
processo eletrônico, que são pouco amigáveis para grande parte das
pessoas com deficiência visual.
A acessibilidade, que deve ser entendida num conjunto muito
maior do que a simplista visão de acessibilidade física a determinados
locais, é um desafio que deve ser enfrentado cotidianamente pela
sociedade brasileira, com vistas a incrementar aquilo que é preconizado
pela lei 13.146/2015, isto é, a possibilidade e condição de alcance para
utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários,
equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e
comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros
serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de
uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com
deficiência ou com mobilidade reduzida. Acessibilidade também é o
direito universal ao trabalho digno, à educação, aos desfrutes das
mesmas oportunidades que todas as pessoas têm. Algo que está bem
sintetizado no artigo 53, da Lei, ou seja: o direito que garante à pessoa
com deficiência ou com mobilidade reduzida viver de forma
independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação
social.
A presente obra é mais uma das iniciativas pioneiras da nossa
valorosa Comissão dos Direitos das Dessoas com Deficiência, que
procurou organizar, com a contribuição de juristas de várias partes do
País, um livro diferente e atual. Um livro que, novamente, vem com a
missão de conscientizar, uma obra que precisa ser lida especialmente por
aqueles que não têm deficiência alguma, porque observamos nos textos

x
jurídicos e, notadamente, nos relatos das situações pessoais de pessoas
com deficiência, de mães, pais e familiares que com elas convivem,
como, por vezes, simples questões, se revelam grandes percalços na
concretização da dignidade humana.
A obra procura debater temas não comumente analisados na
questão da inclusão das pessoas com deficiência, como sexualidade,
violência e a vida familiar, o que traz também um ineditismo capaz de
instigar reflexões e apontar caminhos, nesses temas.
É de se cumprimentar essa forma de esquematização da obra,
reunindo textos com abordagem técnico jurídico, com relatos de
experiências reais. Ao ler o conjunto dos artigos, somos capazes de
entender porque há necessidade de uma lei de inclusão das pessoas com
deficiência e mais do que isso, porque precisamos, cada um de nós, fazer
também a nossa parte, na busca da igualdade, da quebra das barreiras e
obstáculos, sem esperar apenas dos órgãos governamentais as soluções,
porque, como sempre temos dito, a medida da felicidade de uma nação é
relacionada ao grau de igualdade que ela pratica no seu convívio social
e essa é uma tarefa da sociedade.
Parabéns à Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência
da OAB-PR pela organização dessa fantástica obra. O agradecimento
também a todos o(a)s juristas que forneceram seus artigos, fruto de
laboriosos e qualificados estudos e àqueles que deram seus depoimentos
pessoais. B oa leitura.

xi
INTRODUÇÃO

Berenice Reis Lessa*

De modo geral, os projetos elaborados pela Comissão dos Direitos


da Pessoa com Deficiência da OAB/PR surgem de ideias simples, abstraídas
de um contexto social, notadamente de situações do cotidiano das pessoas
carentes de um olhar diferenciado sobre questões que lhes são afetas. Assim
foi concebido o livro CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade,
Violência e Família da Pessoa com Deficiência.
A ideia inicial nos levaria a produzir conhecimento apenas,
sobre a Sexualidade da pessoa com deficiência. Queríamos desmistificar
certos tabus, mitos, através de perguntas que iriam encorajar respostas,
inclusive, sobre nossos próprios questionamentos.
A escolha do tema nos levou a dar voz aos protagonistas os
quais trouxeram valiosas informações, inicialmente, com o depoimento
de um homem cego, que viveu um relacionamento amoroso com uma
mulher tetraplégica. Seu relato desenvolve com reverência, a
cumplicidade de uma vivência com direito à sedução, carícias, fantasias,
contadas com detalhes surpreendentes. Disse ele que as pessoas com
deficiência têm seus desejos sexuais, seus afetos, amores e que a
sexualidade independe de qualquer tipo de deficiência. A partir daí,
decidimos ampliar o alcance de nossa proposta.
Entendemos que o tema Violência contra as pessoas mais
vulneráveis, sem proteção, não poderia passar ao largo dessa discussão,
vez que ela não se manifesta apenas, por agressões físicas, pela

* Coordenadora do livro. Advogada, escritora, pós-graduada em Direito Administrativo,


especialista em Direito Previdenciário, presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com
Deficiência da OAB/PR, membro da Comissão Nacional congênere, no Conselho Federal
da OAB, representou o Conselho Federal da OAB, na 3a Conferência Nacional dos Direitos
da Pessoa com Deficiência- CONADE, em 2012. Em 1986, idealizou e coordenou o
Movimento Pela Participação do Deficiente, na Constituinte.

xiii
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

discriminação, pelo abandono, mas também, por atitudes, palavras e até


mesmo por omissão, como por exemplo, a falta de acessibilidade nas
universidades, apontada em alguns depoimentos. Era preciso levar em
conta, a violência dentro dos lares dessas pessoas; o bullying sofrido nas
escolas, nos ambientes sociais e a rejeição de familiares, simplesmente
pelo fato de um deles ser uma pessoa diferente... Estas questões, muito
bem colocadas, estão contextualizadas nos relatos dos autores com
surdez, hemiplegia, tetraplegia, paralisia cerebral, cegueira, esclerose
múltipla... Eles expressam sentimentos de parceiros, pais adotivos e pais
de pessoas com Síndrome de Down, com Transtorno do Espectro Autista
- TEA, entre outros. Todavia, fomos além. Trouxemos à baila, o
indispensável tema Família. É na célula familiar onde a maioria das
vezes, se concentram todas essas questões aqui destacadas. Receber um
diagnóstico de um filho com deficiência intelectual, no mínimo, é
desafiador! A responsabilidade dos pais passa por referências que se
misturam, em razão da incerteza de como educar o filho e administrar o
seu processo de crescimento até a vida adulta; como o orientar quanto a
sexualidade; o quê fazer diante das consequências do bullying ... Como
contornar todas essas questões que se concentram no convívio familiar?
Com certeza o leitor vai obter as respostas, conhecer e identificar, nas
páginas a seguir, os aspectos da sexualidade, violência e família, nas
formas vivenciadas. Também irá descobrir, em outras situações
apresentadas, a recuperação de um pai, pelo amor incondicional, pela
resiliência, pela entrega, através da adoção de uma criança com autismo,
nos levando a compreender que um casal também pode se doar e, em
contrapartida, receber o amor do filho que não gerou.
Além disso, é imperioso ressaltar que, antecedem a esses
depoimentos, questões práticas e orientadoras do Direito, que nos são
apresentadas por autores altamente qualificados, através de artigos de leitura
fácil e acessível, os quais não poderiam faltar. Precisamos “Conscientizar
para Incluif’ na sociedade, pessoas com deficiência e familiares que,
certamente carecem de esclarecimentos e de conhecimento dos direitos que

xiv
lhes são garantidos. Neste sentido, este livro foi idealizado, especialmente,
para ajudar ao leitor. Os exemplos de vida trazidos nos depoimentos, levam
a acreditar que, apesar das adversidades, existem meios e soluções para se
buscar a qualidade de vida, a igualdade de oportunidades e, à medida do
possível, enfrentar os desafios que lhe são propostos, podendo até alcançar
o sucesso. Por que não?
Finalmente, tivemos a intenção de proporcionar ao leitor,
uma interessante leitura, além de atingi-lo sentimentalmente, com
lições de vida, de amor maternal, de determinação, de garra para
vencer os obstáculos, através de uma abordagem verdadeira, simples
e impactante que nos emociona e envolve nos relatos daqueles que
tiveram a coragem de se mostrar, através de suas histórias de vida,
aqui registradas. Boa leitura.

xv
SUMÁRIO

PARTE 1 Artigos Jurídicos.......................................................................... 1

1 IMPORTÂNCIA DE UM MINISTRO PESSOA COM DEFICIÊNCIA


NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.................................................. 3
Roberto Wanderley Nogueira

2 DESIGN ACESSÍVEL E O EMPREGO DA TECNOLOGIA


ASSISTIVA ............................................................................................13
Berenice Reis Lessa

3 A IMPLEMENTAÇÃO DA IGUALDADE SOCIAL PARA A PESSOA


COM DEFICIÊNCIA...............................................................................27
Carliane de Oliveira Carvalho

4 MULHERES SUBMETIDAS À MASTECTOMIA E A LEI N°


1 3 .1 4 6 /2 0 1 5 .......................................................................................41
Maria Christina dos Santos

5 TRATADO DE MARRAQUECHE: promoção da acessibilidade


às obras literárias pelas Pessoas com Deficiência no Brasil.....55
Bruna Homem de Souza Osman
Jessica Aparecida Soares

6 PLANOS DE SAÚDE E INTERNAÇÃO DOMICILIAR PARA


PESSOAS COM DEFICIÊNCIA............................................................. 69
Melize Oliveira Pontes

xvii
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

7 A EXCEPCIONALIDADE DE AULAS ON-LINE PARA CRIANÇAS E


ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA DURANTE O
ISOLAMENTO SOCIAL........................................................................ 83
Maria Christina dos Santos
Vania Lucia Girardi

8 O ACESSO À JUSTIÇA PELAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA...........95


Erelisa de Souza Vieira Bazan

9 COMO FICOU O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA: BPC


após a Reforma Previdenciária e a Lei n° 13.982/2020..............105
Cristhiane Kulibaba Ishi
Valéria Mendes Siqueira

10 “PROCURO UMA MULHER”: reflexões sobre violência contra


m ulheres com deficiência a partir do filme “Maudie” ..............117
Fatine Conceição Oliveira
Laureane Marília de Lima Costa
Mariana Rosa

PARTE 2 Depoimentos ............................................................................ 131

1 Sexualidade............................................................................................133

1.1 EXPERIÊNCIAS DE UMA PESSOA CEGA......................................... 135


Enio Rodrigues da Rosa

1.2 VIVÊNCIAS DE UMA PESSOA COM TETRAPLEGIA....................... 141


Thiago Córdova

xviii
2 Violência.................................................................................................147

2.1 O BULLYING E O TRAUMA PSICOLÓGICO..................................... 149


Rogério Luis Silva Rosa

2.2 O BULLYING E SUAS FACETAS....................................................... 155


Gabriel Otávio dos Santos

2.3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E PATRIMONIAL................................... 157


Rita de Cássia Fuentes Luz Suenaga

2.4 DISCRIMINAÇÃO E CONQUISTAS NO ESPORTE........................... 163


Josiane Maria Poleski

3 Fam ília.................................................................................................... 169

3.1 ADOÇÃO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL............ 171


Anônimo

3.2 CUIDANDO DO FILHO COM SÍNDROME DE DOWN..................... 177


Marinette Costa Navea

3.3 PERDA DE VISÃO POR NEGLIGÊNCIA............................................185


Valéria Mendes Siqueira

3.4 VIVER COMO ESPOSA, MULHER E CUIDADORA.......................... 191


Izildinha Aparecida de Paula Gomiero

xix
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

3.5 ENCARANDO A MATERNIDADE E O AUTISMO.............................195


Samantha Tisserant Siqueira dos Santos

3.6 DE REPENTE... AUTISTA................................................................. 199


Sandra Mara Aparecida do Prado

3.7 CONHECENDO A DEFICIÊNCIA VISUAL - BAIXA VISÃO..............203


Adriana Maria Kaiser Tamarozi

3.8 OS DESAFIOS DA DEFICIÊNCIA NA VIDA DO CASAL....................209


Wilson Roberto Gomiero

xx
PARTE 1
Artigos Jurídicos
1 IMPORTÂNCIA DE UM MINISTRO PESSOA COM
DEFICIÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL*

Roberto Wanderley Nogueira**

Os acontecimentos que decorrem das escolhas políticas para


funções vitalícias da República, a exemplo dos cargos de ministro do
Supremo Tribunal Federal, geram dúvidas, algumas razoáveis, outras
nem tanto, mas que justificam, umas e outras, a exigência social pelo
escrutínio dos candidatos a esses postos avançados do Poder Público no
Brasil. Essa exigência compõe o espectro político de uma democracia
participativa e é importante que esse exercício se torne uma prática
costumeira nas sociedades politicamente esclarecidas.
O sistema constitucional brasileiro toma emprestado o norte-
americano para delegar à Presidência da República a responsabilidade dessa
escolha, efetivável após sabatina organizada e empreendida pelo Senado
Federal. Depois de aprovado pela maioria absoluta dos Membros da
Câmara Alta, o nome do(a) candidato(a) indicado(a) segue à nomeação por
ato do(a) Presidente(a) da República, desaguando na posse de um novo
ministro do STF, de acordo com um protocolo bem conhecido.
A própria Constituição Federal, em termos abertos, estabelece
os pressupostos para que um(a) brasileiro(a) nato(a) possa ser
indicado(a) à composição da Suprema Corte: deve contar entre 35 e 65
anos de idade, ter notável saber jurídico e ser notabilizado por uma
reputação ilibada. Compete à Presidência da República, mediante o
adminículo do Senado Federal, portanto, a aferição desses predicados

* Artigo postado no Blog do Silvinho - o Foco da Política Pernambucana. Disponível


em: <https://blogdosilvinhosilva.blogspot.com/2020/09/importancia-de-um-ministro-
pessoa-com.html>.
** Pós-doutor. Doutor em Direito Público. Professor-adjunto da Faculdade de Direito
do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco. Juiz Federal.

3
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

constitucionais sem cuja presença um nome não é elegível à Suprema


Corte do país (artigo 101 e seu parágrafo único).
Pode-se dizer, em primeiro lugar, que a resposta inicial para o
supramencionado escrutínio social diz respeito ao atendimento fiel dos
pressupostos da Constituição Federal. Cumpri-los, desse modo, importa
em exame de dados biográficos, curriculares, pretéritos de vida social,
política, profissional e intelectual, enfim. Aquele que se dispõe ao múnus
público, sobretudo de carga suprema, não tem o direito de se negar ao
conhecimento público, exatamente porque vai servi-lo e será pelo povo
sustentado no encargo que lhe terá sido confiado em caráter vitalício.
É grande a responsabilidade dessa empresa. A uma, porque
importa em um exercício de representação política com metodologia
técnica para a qual o candidato deve, sim, estar muitíssimo bem
preparado. Esse preparo, revelado nos títulos acumulados e na
experiência, deve reunir na contemporaneidade aspectos multifacetados
do conhecimento humano, à luz do notável saber jurídico que se lhe
atribui, de sua ilibada reputação e da sensibilidade especial ao fenômeno
jurídico para que se torne uma cidadela real de sustentação dos direitos
individuais e coletivos preconizados no Ordenamento Jurídico da Nação.
A duas, porque, mediante as próprias faculdades humanas, lhe é confiada
a exponencial atribuição de dar corporeidade ao Estado-Jurisdição (no
caso, em máxima instância no espaço interno), que é precisamente o
papel a desempenhar no cotidiano da vida judiciária, o qual se densifica
e se materializa constantemente na medida em que se mantenha fiel ao
Direito posto, à Constituição e às Leis. Na Suprema Corte, suas decisões
vão se integrar a um Colegiado formado por 11 (onze) ministros, mas
nem por isso devem ser adotadas sem a consciência de tudo isso. O
Supremo Tribunal Federal é a instância máxima do Poder Judiciário da
República Federativa do Brasil. Assim sendo, trata-se de uma Instituição
e não de uma corporação de ofício.
Desse modo todo ativismo judicial deve ser entendido como
excepcional e, sobretudo, obtemperado em face dos permissivos legais.

4
Fora da Lei não há solução pacífica para nada nesta vida, ainda que
nobres sejam os consideranda com os quais se empenhe o intérprete para
fazer valer os seus valores, e não os valores constitucionalizados. Para
uma reflexão generalista dos postulados primevos da sociedade a que o
magistrado está a serviço, cumpre ter a sobranceira humildade científica
de compreender que cabe ao poder constituinte - originário e derivado -
e também ao Poder Legislativo proceder, consoante a dinâmica de seus
funcionamentos político-jurídicos (clássicos). De fato, o juiz não é um
legislador e a consciência técnica que o forja como operador do sistema
jurídico é que se lhe aperfeiçoa a dignidade da própria função e o
conserva, sobranceiro, na própria atividade jurisdicional como elemento
integrante da engrenagem do Estado de Direito. Esse perfil confere ao
Magistrado plena legitimidade de ação, motivo pelo qual, dentro dessas
balizas lógicas, priva de faculdades formidáveis para produzir decisões
livres, calcadas na racionalidade do próprio sistema jurídico
(independência funcional).
Adicionalmente, mas não menos importante, cumpre destacar
uma singularidade que compõe a agenda política da Nação brasileira desde
o advento da mencionada Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, sob os auspícios da ONU, assinada pelo Brasil em Nova
Iorque e mais tarde internalizada com status de Emenda Constitucional,
de acordo com a fórmula do art. 5°, § 3°, da Constituição Federal.
Sobre isto, parece claro que a deficiência, embora presente em
H da população brasileira (IBGE 2010), não marca critério algum
aferidor de atributos, competências e habilidades, sobretudo para fins de
inserção ou reabilitação em algum posto mais ou menos importante,
social e politicamente falando, caso de uma até agora inédita investidura
em cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Por que não?
A propósito, com ou sem deficiência, a pessoa dispõe de
múltiplos talentos, virtudes, habilidades e competências não
necessariamente associados às limitações humanas, sejam elas físicas,
psicossociais, sensoriais, intelectuais, mesmo múltiplas ou de qualquer

5
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

outra natureza ou grau de severidade, as quais comumente não são


superadas em razão de barreiras que a sociedade precisa trabalhar para
eliminá-las e saber como fazê-lo com máximo grau de eficiência e
operacionalidade. Para isso, carece de massa crítica e aparelhamento
funcional e atitudinal indispensáveis em todos os setores públicos e
privados da sociedade. Essa pauta compõe o espectro de um status pós-
moderno e contemporâneo que marca as relações sociais doravante no
Estado de Direito democrático, que não prescinde da participação de
todos na construção da felicidade geral e que abandona a tutela e a
opressão como mecanismos de conservação de privilégios que não se
podem validamente tolerar.
Desse modo, contar com um magistrado que conheça pela razão
da própria experiência da discriminação sofrida ao longo da vida e dos
conhecimentos associados que hauriu e os pratica e também os leciona
na atividade judicial e acadêmica, ao par de suas competências e
habilidades clássicas, reveladas em sua biografia curricular e calcadas
numa experiência considerável, sobretudo na própria magistratura e sem
nódoas, além de produtiva, engajada e racional, especialmente eficiente
e notabilizada no próprio meio social dessa atuação e na atividade
acadêmica, pedagógica, de pesquisa, na produção científica aplicada
bem assim noutros campos da atividade humana, tudo devidamente
comprovado, faz toda a diferença para se dispor de ministro à Suprema
Corte de fato dotado de real sensibilidade para compreender o alcance, o
significado e as perspectivas normativas que hão de resultar de uma
adequada incidência da Convenção de Nova Iorque entre nós e de todas
as disposições por ela influenciadas.
Tem-se observado, outrossim, que a Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, embora se trate de uma Constituição dentro
da Constituição Federal, é pouquissimamente conhecida entre os
denominados operadores jurídicos e, se conhecida, malferida, ante a
crônica falta de sensibilidade ao desate das questões que envolvem os
direitos desse grupamento social que se eleva, conforme esclarecido

6
acima, ao patamar de V da população nacional, algo em torno de 47
milhões de brasileiros. Some-se a eles o enorme contingente de seus
parentes, cônjuges, simpatizantes e militantes do campo dos direitos
humanos que se terá uma noção dessa massa de interessados em soluções
juridicamente adequadas, e em última instância, para esse segmento nada
desprezível do povo. Na Suprema Corte, um magistrado com essa
envergadura faria um contraponto formidável à densificação de todo esse
universo normativo, sem prejuízo das demais rotinas que o estariam a
aguardar no desate de suas funções de competência jurisdicional próprias.
Parecem fartas as vantagens sociais, políticas, filosóficas e institucionais
pelas quais um ministro pessoa com deficiência viesse a ser alçado aos
quadros da Suprema Corte do Brasil.
Realmente, vencidas as barreiras de gênero e étnicas, cumpre à
Nação brasileira, agora, vencer, também e principalmente, a barreira de
atitude que envolve o pressuposto de que todo aquele que tiver algum tipo
de limitação física, psicossocial, intelectual, sensorial ou múltipla deve ser
tratado como "peso social" e não se admite que exercite qualquer
protagonismo digno de nota e de transformação da própria sociedade. Ao
par do descalabro que essa cultura silenciosa de exclusão suscita, convém
esclarecer que os talentos adormecidos de tão farta parcela da população
brasileira precisam despertar, também em face da especial simbologia que
será o advento de um ministro pessoa com deficiência ao Supremo
Tribunal Federal que, naturalmente, reúna todos os predicados
constitucionais para assumir tão elevado posto da República.
Seria como que um primeiro passo concreto à inserção proativa
desse contingente social nos negócios de Estado para estimular novas
conquistas até à completa igualdade social. Ora, em toda a história da
Suprema Corte brasileira, jam ais foi incorporado em seus quadros
alguém com algum tipo de limitação tecnicamente definida como tal.
Aliás, em nenhum momento da história do Poder Judiciário nacional,
Tribunal algum até muito pouco tempo atrás incluiu a reserva de vagas
para ingresso nas carreiras da Magistratura, a despeito do comando

7
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

constitucional preconizado no art. 37, inc. VIII, da Carta Política, das


disposições da Lei n° 7.853, de 24 de outubro de 1989 e do art. 37, § 1°,
do Decreto Federal 3.298, de 20 de dezembro de 1999, bem assim do art.
5°, § 2°, da Lei n° 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
Enfim, do mesmo modo que foi a luta pelo advento da redentora
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, um movimento
nacional se eleva, vertiginoso, crescentemente, e que nada tem de ingênuo,
muito menos de maldoso, no intuito de desfraldar mais uma bandeira,
firmada no protagonismo de seus enredos funcionais e categóricos a
suscitarem proatividade, visibilidade e efetivação dos direitos das pessoas
com deficiência no Brasil. A presença firme e resoluta de um ministro com
deficiência na Suprema Corte vai acalentar os sonhos e os desafios dessa
parcela não desprezível da população, ante a certeza de que, doravante, as
pessoas com deficiência estarão sendo, finalmente, tratadas de igual para
igual, e não como se fossem desqualificadas para a vida social produtiva.
O exemplo arrasta. Praticar sem contingenciamentos os parâmetros
acervados na norma convencional é resgatar a própria cidadania
adormecida ou crudelizada dessas pessoas. É o que se espera do Brasil em
relação aos seus filhos da invisibilidade. Guarnecer essa prática de uma
visão compatível com o modelo normativo preconizado é fundamental,
haja vista um lema que ressalta justamente dos fundamentos e valores que
cristalizaram essa norma universal de direitos fundamentais: NADA
SOBRE NÓS, SEM A N O SSA PARTICIPAÇÃO!
Pode-se, ainda, facilmente descrever o efeito simbólico de uma
tal indicação ao Supremo Tribunal Federal, espaço no qual todo debate
jurídico se aterma e em que toda solução legal encontra o seu epílogo no
âmbito interno da Federação. Uma tal indicação, além do mais, anunciaria
ao país e ao mundo que as pessoas com deficiência somos de fato capazes
para realizar o desafio da liberdade e de uma vida realmente
autodeterminada, o mesmo que sucede às demais pessoas sem traços de
limitação permanente de qualquer natureza ou intensidade.
Redescobrindo-se a si mesmas, ainda que no aspecto por enquanto

8
simbólico e dando mostras de que somos capazes, o bloqueio cultural que
deriva das diversas formas de atitudes preconcebidas tende a reciclar-se
na direção de sua eliminação. Um país grandioso não pode conviver com
o preconceito por muito tempo, pois esse quadro é autofágico.
A construção jurídica adequada sobre os novos paradigmas que
já estão constitucionalizados no Brasil contribuirá para a emancipação
social de muita gente que aspira, com ansiedade tardinheira, por ser
reconhecida como protagonista do seu tempo, e não como mero
contingente humano, subjugado e pesaroso.
Querendo viver sem tutelas externas e internas, quer sejam
corporativas, sociais, afetivas ou institucionais - e disso têm todo o direito -
as pessoas com deficiência no Brasil pedem passagem, enquanto cidadãs,
em direção ao futuro. Para isso, reclamam espaço, respeito e liberdade real
para que possam, juntamente com todas as demais pessoas, realizar-se
plenamente em seus direitos e em sua cidadania. Sobretudo, pretende-se
vencer, talvez, a mais perversa de todas as barreiras: o preconceito!
É chegada a hora de quebrá-lo de um modo particularmente
emblemático e eloquente.
Devemos todos estar prontos e preferencialmente unidos para
enfrentar mais esse desafio: a indicação, afinal, de um ministro com
deficiência para o Supremo Tribunal Federal, dado que a solução não
encontra conjuntura que seja desfavorável e que, pela postergação de
décadas, realmente, não tem mais e porque aguardar. Trata-se de uma
questão de Justiça e de vida intergrupal e plenamente participativa. Outra
inferência pressupõe a conservação de privilégios que já vêm compondo
a pauta da crítica social hodierna, sempre baseada em recorrente
desconhecimento de causa ou na obtusidade dos agentes públicos e
daqueles que atuam na iniciativa privada.
Outrossim, ganhamos todos os de boa vontade com a ascensão
de um representante das pessoas com deficiência conquanto jamais
presentes na Suprema Corte, um órgão essencial para os seus destinos e
aspirações legais para todos.

9
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Importa realçar que não é a deficiência que qualifica o agente


público ou privado, mas, detendo qualidades e sendo pessoa com
deficiência, pode reunir melhores condições de trabalho e de aptidão
funcional para o exercício de múltiplas funções, exatamente por ser
uma pessoa mais sensível aos problemas humanos. A experiência
forja. A dor humana faz crescer. Isso tudo parece muito claro até
mesmo ao senso comum. Só é preciso vencer o preconceito ainda
arraigado na sociedade brasileira.
Para concluir.
De tudo o que aqui se expõe, constata-se não só a pertinência
contemporânea do tema, mas sua importância institucional na construção
permanente de uma sociedade mais justa, qualificada e condizente com
o seu potencial de liberdade, emancipação e vida plena para todos,
efetivamente participada.
Do mesmo modo, considera-se que toda análise qualitativa de
meios e resultados, quanto à empregabilidade e ocupação funcional das
pessoas com deficiência física, intelectual, sensorial ou múltipla
depende, sobretudo, do exercício pleno da inclusão, enquanto
pressuposto social de resgate das desigualdades e das injustiças
cronificadas no socius. Essa atitude de incluir - ultima ratio - consiste
em assegurar o acesso, a permanência e os recursos assistivos às pessoas
com deficiência no respectivo espaço de trabalho.
Cumpre, pois, sem obsessão identitária, eliminar as
deficiências, elidir as limitações, prevenindo-as, compensando-as ou
reabilitando-as, em geral e, muito especialmente, no âmbito do trabalho
e das funções públicas mais elevadas, nunca, porém, com diminuição das
pessoas com deficiência, as quais devem ter sua dignidade humana
inteiramente respeitada, chamadas a participar em igualdade de
condições com as demais pessoas em todos os espaços no socius.
A inclusão emancipatória, vale a ênfase retórica, das pessoas
com deficiência, inclusive quanto à questão da empregabilidade nos mais
amplos segmentos, é dever da sociedade, das empresas e do Estado e

10
direito delas, enquanto persistirem as condições de desigualdade que
marcam o perfil de países periféricos como o Brasil.

R E F E R Ê N C IA S

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada


em 5 de outubro de 1988. In: Vade Mecum. 17. ed. rev. ampl. atual. São
Paulo: RT, 2020.

________ . Lei n° 7.853, de 24 de outubro de 1989. Dispõe sobre o


apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre
a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de
Deficiência - Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos
ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público,
define crimes, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7853.htm.

________ . Lei n° 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o


regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e
das fundações públicas federais. In: Vade Mecum. 17. ed. rev. ampl.
atual. São Paulo: RT, 2020.

________ . Decreto Federal 3.298, de 20 de dezembro de 1999.


Regulamenta a lei n° 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a
política nacional para integração da pessoa portadora de deficiência,
consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Disponível
em: <https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=DEC&numero=3
298&ano=1999&ato=a55k3Zq5keNpWTe7a>.

________ . Decreto n° 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a


Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e

11
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

seu Protocolo Facultativo. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci


vil_03/_ato20072010/2009/decreto/d6949.htm>.

________ . IBGE. Censo Demográfico 2010 - Características gerais


da população, religião e pessoas com deficiência. Disponível em:
< https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_reli
giao_deficiencia.pdf>.

________ . Lei n° 13.143, de 6 de julho de 2015 - Lei Brasileira de Inclusão


da Pessoa com Deficiência. Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: Vade
Mecum. 17. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.

12
2 DESIGN ACESSÍVEL E O EMPREGO DA TECNOLOGIA
ASSISTIVA

Berenice Reis Lessa*

1 INTRODUÇÃO

A lei brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência -


Estatuto da Pessoa com Deficiência, sob n. 13.146, de 6 de julho de 2015,
atribui ao Poder Público, fomentar a capacitação tecnológica de
instituições públicas e privadas, além de estimular pesquisas e
desenvolvimento científico, a fim de orientar as políticas públicas para o
acesso a tecnologias assistivas e sociais, direcionadas a promover a
democratização da tecnologia para as pessoas com deficiência.
Volta-se à melhoria da qualidade de vida e à possibilidade de
redução de desigualdades de oportunidades no trabalho, na educação, na
saúde, inclusive, na comunicação, entre outros.
Para viabilizar as ações de sustentação de um programa
socioeconômico no empenho de promover a inclusão dessas pessoas,
fez-se necessário elaborar uma normatização específica, a partir de um
marco legal para o desenvolvimento da tecnologia assistiva. Busca-se,
assim, facilitar a vida dos que necessitam desses recursos ou ajuda
técnica, através do estímulo para a adoção de soluções que atendam às
pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida.
Sem pretensão de esgotar o tema, essas questões e outras
correlatas são apresentadas neste trabalho, demonstra-se inclusive, a

* Coordenadora do livro. Advogada, escritora, pós-graduada em Direito Administrativo,


especialista em Direito Previdenciário, presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com
Deficiência da OAB/PR, membro da Comissão Nacional congênere, no Conselho Federal
da OAB, representou o Conselho Federal da OAB, na 3a Conferência Nacional dos Direitos
da Pessoa com Deficiência- CONADE, em 2012. Em 1986, idealizou e coordenou o
Movimento Pela Participação do Deficiente, na Constituinte.

13
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

quem a tecnologia assistiva se destina e a sua aplicação na prática, à luz


da legislação pertinente.

2 OS AVANÇOS CONSTITUCIONAIS PARA A INCLUSÃO SOCIAL

A despeito da Emenda Constitucional n. 12, de 1978, assegurar a


melhoria da condição social e econômica da pessoa com deficiência,
destaca-se a partir daí a necessidade de instrumento legal para a promoção
da acessibilidade. Na forma do disposto no inciso IV de seu artigo único
que institui a garantia da possibilidade deacesso a edifícios e logradouros
públicos, esses direitos ficaram segregados, constando apenas como
apêndice ao texto da Constituição Brasileira de 1967 e, mesmo assim, como
letra morta, sem surtir os efeitos jurídicos esperados.
Contudo, a partir da Constituição Federal de 1988, pode-se
finalmente obter algumas conquistas e avanços, como se constata no
parágrafo 2° do seu artigo 227, que estabelece o início do marco legal
desses direitos e a matriz das leis posteriores direcionadas
especificamente, às pessoas com deficiência, de todas as áreas.

Diz o parágrafo 2°- A lei disporá sobre normas e construções


de logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação
de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso
adequado às pessoas portadoras de deficiência.

Apesar da importância desse dispositivo, a imposição


constitucional não foi suficiente para alavancar o processo de efetivação
das transformações que clamavam por acessibilidade.
Todavia, na esteira desses direitos, seguiram-se outros.
Atualmente, existem no ordenamento jurídico brasileiro, três principais
instrumentos de proteção aos direitos das pessoas com deficiência que
constituem o arcabouço legal para o embasamento de quaisquer medidas
legislativas ou administrativas. Em todo o sistema legal, há o propósito de
assegurar o exercício pleno dos direitos humanos, notadamente, dos direitos

14
concernentes às pessoas com deficiência. São eles: a Constituição da
República Federativa do Brasil; a Convenção sobre os Direitos da Pessoa
com Deficiência - Convenção da ONU e seu Protocolo Facultativo; a Lei
Brasileira de Inclusão - Estatuto da Pessoa com Deficiência.

2.1 Constituição da República Federativa do Brasil

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em


5 de outubro de 1988 que, no seu artigo 24 e inciso XIV, trata de
“ estabelecer à União, aos Estados e ao Distrito Federal a competência
para proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência ”,
bem como a prevalência dos direitos fundamentais e sociais.
Importa observar que, nesse modelo de proteção social de
integração, a sociedade é levada aceitar as pessoas com deficiência, com
as suas diferentes limitações, no entanto, sem que a ela fosse delegada a
responsabilidade de lhes proporcionar oportunidades, tampouco os
meios de acesso aos espaços para a sua inserção social. Nessa concepção,
apesar da Constituição garantir direitos específicos à pessoa com
deficiência, como diz Amélia HAMZE (2020):

[...] o integrar constituía localizar no sujeito, o foco da


mudança e as reais dificuldades encontradas no processo
de busca de “normalização” da pessoa com deficiência...
[isto é] ...as diferenças, na realidade, não se aniquilam, mas
devem ser administradas no convívio social.

2.2 Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência:


Convenção da ONU e seu Protocolo Facultativo

A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência -


Convenção da ONU - e seu Protocolo Facultativo, aprovados pelo
Congresso Nacional, com status de Emenda Constitucional, por meio do
Decreto Legislativo n. 186, em 9 de julho de 2008, diz no seu artigo 9°, que:

15
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

a fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de


forma independente e participar plenamente de todos os
aspectos da vida, os Estados Partes tomarão as medidas
apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o
acesso em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e
comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da
informação e comunicação, bem como a outros serviços e
instalações abertos ao público e ao uso público, tanto na
zona urbana, como na rural.

A partir dessa premissa, a Convenção da ONU incorpora no


ordenamento jurídico pátrio, o princípio da “plena e efetiva participação
e inclusão na sociedade” e impulsiona a consequente transformação
social no Brasil, conforme veremos a seguir.

2.3 Lei Brasileira de Inclusão: Estatuto da Pessoa com Deficiência

Em razão deste imperativo constitucional, a Lei Brasileira de


Inclusão da Pessoa com Deficiência-LBI promoveu a sua adequação à
Convenção da ONU e, também cuidou de determinar nos seus
acréscimos finais, as mudanças em dispositivos legais, mediante
alteração e revogação de artigos e de leis vigentes, que não estejam
alinhadas àquelas diretrizes, em relação à necessidade da proteção e do
respeito à dignidade das pessoas com deficiência.
Sendo assim, no seu artigo 5°, convoca a sociedade a rever os seus
conceitos, as atitudes, as interações no cotidiano, em relação à pessoa com
deficiência, a quem foi assegurada a proteção contra “toda e qualquerforma
de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade,
opressão e tratamento desumano ou degradante”, em obediência ao
princípio da inclusão consagrado na Convenção da ONU.
Observe-se que, neste enfoque da inclusão, a Lei em comento
ressalta questões relativas à pessoa com deficiência, posicionando-a
ao centro das preocupações, de forma a responsabilizar tanto o

16
Governo, como as instituições públicas e privadas e a sociedade em
geral, como partes integrantes das estratégias para a efetivação do
desenvolvimento sustentável.
Isto faz refletir que, diferentemente do modelo de integração,
como assegurado na Constituição, a responsabilidade para viabilizar a
inclusão, passou a ser compartilhada. De acordo com afirmação de
Amélia HAMZE (2020):

a ideia de inclusão antevê influências decisivas e


assertivas, em ambos os lados da situação: no processo
de desenvolvimento do sujeito e no processo de reajuste
da realidade social. Com isso, atua no sentido de nelas
causar as adequações e legitimações (físicas, materiais,
humanas, sociais etc.) indispensáveis ao cotidiano das
pessoas com deficiência.

3 D ESIG N A C E S S ÍV E L E A IN C LU SÃ O SO C IA L

Parece oportuno alinhavar alguns comentários referentes à


reação que teve a autora, ao receber convite para falar sobre “ Os
Aspectos Jurídicos do Design” . A exposição seria para jovens
universitários, alunos da disciplina que se encontra na matriz curricular
do Curso de Bacharelado em Design. No enfoque, o curso está
estruturado para formar um profissional capacitado para desenvolver
projetos e sistemas que associem, de forma harmoniosa, informações
visuais, artísticas, culturais e tecnológicas de modo contextualizado.
Entre outros princípios, o designer deve respeitar e valorizar a
diversidade e o potencial de todas as pessoas, em relação ao meio
socioeconômico em que irá atuar.
Em estudos realizados pela autora até aquele momento, não se
havia deparado com a necessidade de fazer uma reflexão sobre o trabalho
desse profissional, em especial, daquele com ideias criativas, inspiração
e com uma percepção sensível, o qual, com a colaboração do arquiteto é
capaz de conceber o modelo de um protótipo com objetivo de

17
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

proporcionar uma vida com autonomia às pessoas com perda dos


movimentos dos braços, tronco e pernas, ou com amputação de algum
membro do corpo. Também nesse contexto, estão as pessoas com
problemas neurológicos consequentes de paralisia cerebral, de acidente
vascular cerebral - AVC, as acometidas de cegueira, as com surdez e
ainda, as com deficiências intelectuais, múltiplas deficiências e outras.
Todas essas pessoas usuárias de produtos aos quais são
agregadas ajudas técnicas e/ou recursos de tecnologia assistiva,
personalizados ou não e adequados às suas necessidades, desenvolvem
as atividades diárias e pontuais, de forma o mais normal possível.
Passam, então, a se beneficiar em razão da igualdade de condições com
as demais pessoas, em autonomia e independência, devido ao resultado
de um projeto que tem origem no desenho criado pelo designer, embora
seja desenvolvido e testado por outros profissionais. Aos engenheiros,
fisioterapeutas e ergonomistas e outros, cabe estudar a relação do objeto
com o ser humano, no sentido de adequá-lo às respectivas
especificidades da deficiência e às características individuais do usuário,
levando em conta as funções que ele desempenha no seu cotidiano. Pode-
se inferir daí que se está diante de um processo para viabilizar a inclusão
social de um indivíduo, ao considerar que esse conjunto de ações auxilia
na participação igualitária de todos na sociedade, independente da classe
social, da condição física, da educação, do gênero, da orientação sexual,
da etnia, bem como de outros fatores.
Como ilustração ao texto, veja-se exemplos de peças
inicialmente desenhadas por um designer e projetadas e testadas pelos
demais profissionais, conforme a necessidade do usuário e a
especificidade da deficiência, onde são detalhadamente estudadas as
dificuldades, a finalidade de uso, medidas, peso, altura do usuário, etc.
Como exemplifica BERSCH (2020), as próteses para escalada no gelo,
pernas mecânicas para atletas... elas substituem partes ausentes do corpo.
Por sua vez, as órteses vêm atender àquelas pessoas que perderam
a função de partes do corpo, são peças colocadas junto a um segmento

18
corpo, ou seja, braços, mãos, dedos, botas ortopédicas, etc., muitas vezes
fixadas por talas, garantindo-lhe um melhor posicionamento, estabilização
e/ou função. São normalmente confeccionadas sob medida e servem no
auxílio de mobilidade, de funções manuais (escrita, digitação, utilização de
talheres, manejo de objetos para higiene pessoal), correção postural, entre
outros (BERSCH, 2020).

4 T EC N O LO G IA A SSIST IV A : Conceito e objetivos

Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-


IBGE, realizou o censo demográfico e incluiu, em sua pesquisa,
questionário para se conhecer o quantitativo de pessoas com deficiência
das áreas física, visual, auditiva, mental e motora, e seus graus de
severidade, o que permitiu subsidiar políticas públicas específicas,
tendo-se declarado nestas condições, 23.9% da população brasileira, ou
45.6 milhões de pessoas. Tornou-se urgente, maior atenção do Governo
Federal que assume o protagonismo de referendar as políticas específicas
tracejadas nos textos constitucionais e inicia o processo de resgate de
cidadania dessa parcela da população, com a colaboração dos Estados,
Municípios e da população.
Entende-se que é preciso criar meios e condições para a
participação social, através das oportunidades de:

• Poder escolher a profissão que vai exercer, em


instituições de ensino que favoreçam a aprendizagem,
com o suporte de materiais didáticos, equipamentos e
recursos de tecnologia assistiva;
• Competir em igualdade de condições, a uma vaga de
emprego com provisão dos recursos de tecnologia assistiva,
de agente facilitador e de apoio no ambiente de trabalho;
• Poder utilizar transporte coletivo terrestre e aéreo com

19
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

acessibilidade, e veículo adaptado, que tenha, no mínimo,


câmbio automático, direção hidráulica, vidros elétricos e
comando manuais de freio e de embreagem;
• Ter acesso aos serviços de saúde tanto públicos como
privados e às informações prestadas e recebidas, por meio de
recursos de tecnologia assistiva e de todas as formas de
comunicação, que atendam às especificidades das pessoas
cegas e surdas, como o auxílio do Braille e da LIBRAS,
dentre outros.
• Ter moradia com acessibilidade, submetido o projeto
arquitetônico às normas da Associação Brasileira das
Normas Técnicas -A BN T NRB 9050.

Tudo isto e mais é objeto de estudo permanente, pela estrutura


governamental, através de fomento às pesquisas científicas, com apoio
das universidades e da capacitação técnica de recursos humanos, com a
finalidade de levar a efeito as políticas afirmativas delineadas nos artigos
74 e 77 da LBI:

Art. 74. É garantido à pessoa com deficiência acesso a


produtos, recursos, estratégias, práticas, processos,
métodos e serviços de tecnologia assistiva que maximizem
sua autonomia, mobilidade pessoal e qualidade de vida.

Art. 77. O Poder Público deve fomentar o desenvolvimento


científico, a pesquisa e a inovação e a capacitação
tecnológicas, voltadas à melhoria da qualidade de vida e ao
trabalho da pessoa com deficiência e sua inclusão social.

Conforme aqui demonstrado, a tecnologia assistiva viabiliza a


aplicação de vários direitos já reconhecidos à pessoa com deficiência, e
se faz necessária ao seu cotidiano, tal qual as ajudas técnicas que fazem
parte das estratégias de acessibilidade, equiparação de oportunidades e

20
inclusão das pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida, na
forma do que se entende no inciso II do artigo 2° da LBI:

II - tecnologia dispositivos assistivos ou ajuda técnica:


produtos, equipamentos, recursos, metodologias,
estratégia, práticas e serviços que objetivem promover a
funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da
pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida,
visando à sua autonomia, independência, qualidade de
vida e inclusão social;

5 TECNOLOGIA ASSISTIVA, VOCÊ CONHECE A DISTINÇÃO?

Na esteira destes apontamentos, entende-se importante trazer à


colação, algumas considerações sobre tecnologia assistiva, lembrando
que, são também, recursos criados pelo designer, para facilitar e ajudar
o cotidiano das pessoas que tenham redução ou perda da sua
funcionalidade ou mobilidade.
Demonstrados os meios legais para se alcançar e
instrumentalizar a pretendida inclusão, é importante voltar no tempo para
situar o início das discussões sobre o emprego da Tecnologia Assistiva.
Estudiosos do tema trouxeram diferentes visões quanto ao uso das
inovações tecnológicas e o benefício trazido ao usuário final. Sem
dúvida, estas discussões apontam caminhos para conhecimento da
aplicação desses recursos classificados como TA. Como interessada no
assunto, a autora atreve-se a contribuir com as seguintes indagações:
pode-se afirmar que um produto com recurso tecnológico, sendo
utilizado por uma pessoa com deficiência, é identificado como um
produto de tecnologia assistiva? Ou ainda, se uma pessoa tetraplégica faz
uso de um relógio inteligente, para medição do nível de oxigênio no
sangue, este instrumento se classifica como sendo tecnologia assistiva?
A autora se permite apropriar dos ensinamentos de GALVÃO
FILHO - T.A (2020), para compreensão, por analogia, das perguntas
acima formuladas.

21
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Estes exemplos relativos aos recursos tecnológicos de


gravação ou síntese de voz para o acesso ao texto são
bastante úteis, a meu ver, para que se perceba a diferença
entre a utilização de recursos tecnológicos como
tecnologia educacional e estratégia pedagógica, para o
estudante com dificuldade de leitura por questões
referentes à cognição e o aprendizado, diferente do seu uso
como Tecnologia Assistiva, para o estudante cego.
Ou seja, o mesmo recurso tecnológico sendo utilizado para
finalidades bem diferentes. Perceba-se, portanto, que, o
que define e caracteriza um recurso como sendo ou não um
recurso de TA, não são apenas as características
particulares do recurso (“o que”). Nem, tampouco, apenas
as características do usuário (“para quem”).
Porém, também, a finalidade para a qual se está utilizando
o referido recurso (“para que”). No caso do estudante cego,
a finalidade, o “para que”, refere-se ao uso da tecnologia
como recurso de acessibilidade ao texto impresso,
inacessível devido ao problema relativo à função visual.
Penso, portanto, ser importante ter presentes todas essas
três perguntas, na identificação e classificação de um
recurso como sendo ou não um recurso de TA: O
quê? Para quem? E também, Para quê? (grifos nossos).

Com efeito, focada na visão do texto contido na transcrição


acima, Rita BERSCH (2020) responde a estas perguntas, todavia,
apresenta outros aspectos sobre a mesma questão. Diz ela:

No campo educacional, por vezes, pode haver uma distinção


sutil entre TA e tecnologia educacional e para tirar dúvidas a
respeito disso, sugiro que se façam três perguntas:
O recurso está sendo utilizado por um aluno que enfrenta
alguma barreira em função de sua deficiência (sensorial,
motora ou intelectual) e este recurso/estratégia o auxilia na
superação desta barreira?

Pergunte-se aí, PARA QUEM? Ou, o recurso atendeu a


finalidade de auxiliar na funcionalidade desse usuário? “ O recurso está
apoiando o aluno na realização de uma tarefa e proporcionando a ele a

22
participação autônoma no desafio educacional, visando sempre chegar
ao objetivo educacional proposto?” (BERSCH, 2020).
Pergunte-se aí, PARA QUE? Ou, o recurso se presta a atender
a sua necessidade pessoal específica? “ Sem este recurso o aluno estaria
em desvantagem ou excluído de participação?” (BERSCH, 2020).
Pergunte-se, O QUE? Ou, no quê o recurso pode servir de
auxílio ao usuário?

Tendo respostas afirmativas para as três questões, eu ouso


chamar a ferramenta utilizada pelo aluno de Tecnologia
Assistiva, mesmo quando ela também se refere à
tecnologia educacional comum.
Podemos afirmar então que a tecnologia educacional
comum nem sempre será assistiva, mas também poderá
exercer a função assistiva, quando favorecer de forma
significativa a participação do aluno com deficiência no
desempenho de uma tarefa escolar proposta a ele. Dizemos
que é tecnologia assistiva quando percebemos que
retirando o apoio dado pelo recurso, o aluno fica com
dificuldades de realizar a tarefa e está excluído da
participação. (BERSCH, 2020).

Assertivamente, acredita-se que optar ao final, pelas palavras de


GALVÃO FILHO (2020), torna-se substancial. Diz ele, ainda:

Essa concepção ampla certamente favorece, fundamenta e


incentiva as pesquisas, o desenvolvimento e a inovação em
TA nas diferentes áreas, e o aperfeiçoamento de políticas
públicas de fomento, produção, disponibilização e
concessão de TA.
Dessa forma, a Tecnologia Assistiva, como um tipo
de mediação instrumental, está relacionada com os processos
que favorecem, compensam, potencializam ou auxiliam,
também na escola, as habilidades ou funções pessoais
comprometidas pela deficiência, geralmente relacionadas às:
Funções Motoras, Funções Visuais, Funções Auditivas, e/ou
Funções de Comunicação.
A partir dessa percepção, portanto, entende-se que a
superação, por um estudante na escola, das dificuldades

23
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

referentes às Funções Cognitivas, mesmo quando


comprometidas por uma deficiência, está relacionada
às estratégias pedagógicas e à tecnologia educacional para
o acesso aos conhecimentos e ao aprendizado, e não à
Tecnologia Assistiva.

6 CO N CLU SÃ O

Finalmente, a partir destes apontamentos, pode-se também


entender que tecnologia assistiva é um suporte ou instrumento de apoio
concreto e sustentável com a finalidade de promover, às pessoas com
deficiência, a redução de suas desigualdades sociais, compensar as suas
limitações funcionais motoras, físicas e sensoriais, dar-lhes qualidade de
vida e autonomia no seu cotidiano.
Com tantos desafios, percebe-se que ainda estamos num
processo de desenvolvimento onde diversas deficiências e profissionais
precisam de estudos e de pesquisas científicas permanentes, para se
alcançar os benefícios para uma vida de iguais oportunidades.
Perceba-se que, ainda que a pessoa se utilize de elementos
tecnológicos construídos exclusivamente para seu uso pessoal, quer
sejam considerados como de tecnologia assistiva ou não, de qualquer
sorte, são produtos disponibilizados para atender a um segmento
específico desses usuários os quais estão na dependência da eficácia
desses recursos, para a efetividade de sua inclusão social. Daí a
importância desse trabalho transdisciplinar e, portanto,
multiprofissional, notadamente do designer e do arquiteto que, embora
“invisíveis” nas suas funções, são os responsáveis por idealizar e
modelar a forma desses produtos de inovação tecnológica. Neste sentido,
a autora convida aos que até aqui chegaram, à uma reflexão consciente
sobre o design acessível.

24
R E F E R Ê N C IA S

ASSISTIVA TECNOLOGIA E EDUCAÇÃO. Disponível em:


https://www.assistiva.com.br/tassistiva.html. Acesso em: 17/08/2020.

BERSCH, Rita. Introdução à tecnologia assistiva. Disponível em:


https://www.assistiva.com.br/Introducao_Tecnologia_Assistiva.pdf.
Acesso em: 24/08/2020.

BRASIL. Em enda Constitucional n. 12 de 1978. Disponível em:


https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1970-
1979/emendaconstitucional-12-17-outubro-1978-366956-
publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 28/08/2020.

BRASIL. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com deficiência-


Estatuto da Pessoa com Deficiência. Disponível em: http://www.planalt
o.gov.br/ccivil_03/_ato2015 -2018/2015/lei/l 13146.htm. Acesso em:
14/09/2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/const
ituicao.htm. Acesso em: 12/09/2020.

BRASIL. Convenção da ONU Direitos das Pessoas com Deficiência.


Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/49
6487/Direito_das_pessoas_com_deficiencia.pdf?sequence=1. Acesso
em: 10/09/2020.

GALVÃO FILHO, T. A. A construção do conceito de Tecnologia


Assistiva: alguns novos interrogantes e desafios. Entre ideias:
Educação, Cultura e Sociedade, Salvador, v. 2, n. 1, p. 25-42, jan./jun.

25
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

2013. Disponível em: www.galvaofilho.net/TA_desafios.pdf. Acesso


em: 28-08-2020.

HAMZE, Amélia. Educação especial no Brasil: síntese


histórica. Disponível em: https://educador.brasilescola.uol.com.br/traba
lho-docente/integracao.htm. Acesso em: 29-08-2020.

QUAL a diferença entre produto e projeto? Disponível em:


https://conectt.com.br/blog/diferencas-projeto-e-produto-criar-um-site-
novo. Acesso em: 20/9/2020.

TECNOLOGIA assistiva e inovação como ferramentas de propulsão da


inclusão social e cidadania. Revista Espacios. ISSN 0798 1015 Vol. 38
(N° 17) Ano 2017. Disponível em: https://www.revistaespacios.com/a1
7v38n17/a17v38n17p29.pdf. Acesso em: 20/09/2020.

UFPR/PR. Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Disponível em:


http://portal.utfpr.edu.br/cursos/graduacao/bacharelado/design. Acesso
em: 16/08/2020.

26
3 A IMPLEMENTAÇÃO DA IGUALDADE SOCIAL PARA A
PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Carliane de Oliveira Carvalho*

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por fim fazer uma breve análise do


processo de mobilização social da pessoa com deficiência, iniciando com
relatos do século XIX, até os dias atuais, a fim de se reconhecer a
necessária atuação estatal institucional na proteção dessa minoria.
A verificação proposta requer uma preliminar identificação da
formação da autoidentidade e de como a conceito social de uma pessoa
ou um grupo de pessoas pode intervir de forma negativa na formação da
identidade individual e, por reflexo, na formação da identidade e da
autopercepção de toda uma comunidade.
Após essa breve verificação, passa-se a demonstrar como a
união e mobilização política em prol da igualdade social tem o potencial
de alterar a status inicial de todo um grupo de pessoas. E, a despeito das
adiante demonstradas vitórias, muito ainda tem que se fazer a fim de se
garantir a implementação de uma efetiva igualdade social.
A partir de uma construção histórica do processo de proteção
legal conferido à pessoa com deficiência no Brasil, o presente trabalho
busca analisar as possíveis contribuições da incorporação da teoria das
identidades e do empoderamento em oposição ao cenário estigmatizante
atual. Assim, busca-se analisar em que medida seria possível a construção

* Procuradora Federal. Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia-


UFBA. Mestre em Direito Público pela universidade Federal da Bahia-UFBA.
Especialista em Processo Civil. Graduada em Direito pela Universidade Federal da
Bahia-UFBA. Autora de livros jurídicos. Professora de Direito do Estado, com ênfase
em Direito Administrativo e Direito Constitucional em pós-graduações e cursos para
concurso. Integrante da Comissão de Advocacia Pública, OAB-PARANÁ.

27
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

de um contexto que pudesse, democraticamente, promover a expressão


mais profunda de isonomia aos grupos minoritários vulneráveis. Assim,
por meio de um raciocínio dedutivo e de uma análise bibliográfica que
inclui referências multidisciplinares, desde uma construção identitária da
pessoa com deficiência, é apresentada a evolução histórica do Direito no
sentido de promover uma releitura da inclusão, e ainda, possíveis medidas
no sentido de aprimorar o panorama atual.

2 DA FO RM A ÇÃ O DA IDEN TIDADE INDIVIDUAL

A fim de tratar da questão da inclusão do indivíduo com


deficiência à sociedade em todos os âmbitos de expressões humanas, é
importante abordar, ainda que brevemente, questões atinentes à
formação da identidade do indivíduo e como a percepção e projeções da
sociedade a que se sente pertencente atuam nesse movimento.
Stuart Hall descreve o processo de formação da identidade do
indivíduo como um “ sujeito fragmentado” , que apresenta um complexo
de identidades, algumas, inclusive, contraditórias entre si. Tal fato se
coaduna com a concepção que o autor tem da identidade pós moderna,
que, para ele, se realiza por uma "'celebração móvel': formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam".
(HALL, 2005, p. 12-13).
Entende-se que a composição da identidade individual ocorre,
portanto, por meio de um duplo itinerário de formação, um interno e
outro externo, os quais se realizam concomitantemente e preservam,
cada um, suas peculiaridades especiais. “ Trata-se de processo conjunto
e complexo. Há paulatino desenvolvimento do entendimento e aceitação
individual quanto ao mundo externo ao mesmo tempo em que se
reconhece valores internos individuais em movimentos sociais.”
(CARVALHO, 2017, p. 298-299).

28
O que tal circunstância revela que a percepção do indivíduo a
partir do grupo a que se sente pertencente corrobora para a formação de
identidade própria dele. Ao passo em que, tal percepção deve se
apresentar de forma verdadeira, sob pena de interferir negativamente ou
erroneamente na composição da identidade do indivíduo.
Na lição de Nobert Elias (1994), não é possível pensar sujeito e
sociedade como entidades ontologicamente diferentes. O ser humano
singular não deriva da condição de isolamento, bem como a sociedade não
se estabelece como mera acumulação desestruturada de pessoas. Existe uma
relação entre as pessoas que formam a sociedade, a qual possibilita
transformações específicas na coletividade e, ao mesmo tempo, influência
nos padrões de autorregulação que o sujeito estabelece dentro de si.
Esses aspectos são importantes na medida em que o indivíduo,
especificamente a pessoa com deficiência física ou intelectual, forma sua
identidade numa parte desde si mesmo e noutra, desde a sociedade a que
pertence. Portanto, o que importa verificar é se a sociedade identifica o
indivíduo como capaz e competente, agindo de modo a integrá-lo ao seu
âmbito, ou se o identifica como inferiorizado, afastando-o da vida social
plena e interferindo negativamente para a formação de sua identidade.
Isso é relevante pois as interferências externas derivadas do
grupo a que o indivíduo se projeta, buscando e revelando o desejo de
pertencimento, contribuem para a formação da autoidentidade desse
indivíduo, o qual passa a ser ver desde o olhar da sociedade, como
resultado reflexo da dupla formação identitária.
Ressalte-se que, a concreção de um conceito inferiorizado e
reduzido de si mesmo pelo indivíduo pode incapacitá-lo para desafios e
medidas de melhoria em sua vida particular e social. Pois, ao se
identificar como incapaz, a partir de opiniões externas limitantes de suas
habilidades, o conceito individual sobre si mesmo sofre máculas
reiteradas, gerando danos à autoestima, podendo se tornar indivíduo
apático e autodestrutivo. (TAYLOR, 1994, p. 45).

29
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Charles Taylor (1994, p. 45) identifica essa situação por meio do


episódio vivenciado pelos negros norte-americanos, no século passado,
originada da imagem de inferioridade projetada pela sociedade branca por
várias gerações. Por essa razão, alguns indivíduos negros passaram a
conceber-se a si mesmos como reduzidos e inábeis, o que os tornaram
instrumentos fortes de manutenção da própria opressão, revivendo e
perpetuando sentimentos de incapacidade e de ódio sobre si mesmos.
Considerando a essencialidade do conceito social que a
comunidade de projeção de pertencimento do indivíduo projeta sobre ele
para a formação de sua identidade própria, importa saber como a
sociedade brasileira vê, percebe e conceitua os indivíduos com
deficiência, a partir, especialmente da análise da legislação para inclusão
da pessoa com deficiência.

3 DO P R O C E SSO L E G A L DE FO RM A ÇÃ O DA IDENTIDADE

O dano à formação da identidade pode ser gerado do não


reconhecimento ou do reconhecimento equivocado, errôneo ou
inferiorizado.
Outro aspecto que deve ser considerado no âmbito das relações
humanas é a noção de estigma, a qual pode provocar uma forte
desaprovação de características ou crenças pessoais, que vão contra as
condições hegemônicas, determinando, muitas vezes, a marginalização
de um sujeito ou grupo a partir de uma valorização que inviabiliza a
aceitação social plena (COSTA, 2018), tal como ocorreu com a pessoa
com deficiência ao longo da História.
Quanto ao não reconhecimento, o Estado brasileiro, sociedade
e instituições, tem um longo percurso de ausência e de postura de
isolamento das pessoas com deficiência. A exemplo disso, tem-se que
somente no final do século XIX, o estado se dedicou à educação especial
de cegos e surdos, como reflexo das medidas legais adotadas na Europa,
incluindo aqui o sistema Braile de comunicação.

30
Assim, o Imperial Instituto dos Meninos1 Cegos2 foi a primeira
instituição voltada à educação dos meninos com deficiência visual, na
segunda metade do século XIX. (LEÃO. 2019)
Apesar da aparente evolução, esse processo repercutiu na
proibição de que os surdos utilizassem a língua de sinais para se
comunicarem entre si, o que denota a hegemonia excludente dos falantes
e a não aceitação por eles de uma minoria de pessoas com deficiência

1 Destaque-se que as meninas cegas continuaram excluídas do método educacional pelo


Sistema Braile, o que expressa mais uma luta de minorias. Embora seja importante o
destaque, o assunto requer atenção especial, razão pela qual reserva-se tal debate para
outra oportunidade. Neste sentido: DHANDA (2008, p. 51), afirma que: “Outra questão
que tem perseguido constantemente a jurisprudência sobre direitos humanos gira em
torno da dupla discriminação. Como tratar da vulnerabilidade daqueles que estão em
desvantagem em mais de um parâmetro? Seja gênero combinado com raça, ou
deficiência combinada com etnia, idade ou gênero” .
2 Lanna Júnior destaca que “O Instituto atendeu apenas três pessoas surdas em 1856.
Com o tempo, esse atendimento se expandiu. A princípio, eram alunos provenientes do
Rio de Janeiro, sobretudo da capital do Império, onde o Instituto estava instalado;
posteriormente, vieram alunos de outras províncias: Alagoas, Bahia, Ceará, Rio Grande
do Sul, Rio Grande do Norte, São Paulo, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco
e Santa Catarina. A crise na instituição foi exposta em 1868, quando o chefe da Seção
da Secretaria de Estado, Tobias Rabello Leite, realizou inspeção nas atividades e
condições do Instituto. Em seu relatório, apontou que o desvio seus propósitos
originais, transformando-se em um verdadeiro asilo de surdos. Tobias Leite tornou-se
diretor da Instituição até 1896 e deu-lhe o impulso definitivo como referência na
educação de surdos no Brasil. [...] Com o advento da República, o Hospício Dom Pedro
II foi desanexado da Santa Casa de Misericórdia e passou a ser chamado de Hospício
Nacional de Alienados. Somente em 1904, foi instalado o primeiro espaço destinado
apenas a crianças com deficiência - o Pavilhão-Escola Bourneville. [...] Apesar do
pioneirismo, ambos os institutos ofertaram um número restrito de vagas durante todo o
Período Imperial. O conceito dessas instituições se baseou na experiência europeia, mas
diferentemente de seus pares estrangeiros, normalmente considerados entidades de
caridade ou assistência, tanto o Imperial Instituto dos Meninos Cegos quanto o Imperial
Instituto dos Surdos-Mudos encontravam-se, na estrutura administrativa do Império,
alocados na área de instrução pública. Eram, portanto, classificados como instituições
de ensino. A cegueira e a surdez foram, no Brasil do século XIX, as únicas deficiências
reconhecidas pelo Estado como passíveis de uma abordagem que visava superar as
dificuldades que ambas as deficiências traziam, sobretudo na educação e no trabalho.”
In.: LANNA JÚNIOR, 2020, p. 19-20.

31
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

auditiva, que dificultava ou impossibilitava o conhecimento dos sons e a


consequente repetição. (LANNA JÚNIOR, 2020, p. 19-20).
Tal episódio da cultura legal e social brasileira interferiu de
forma extremamente negativa no desenvolvimento de meios de
comunicação para os surdos, consolidando a exclusão da convivência
social e a vulnerabilidade de uma minoria já fragilizada pelo histórico
negativista de direitos.
No início do século XIX, por meio de ações voltadas à
educação, foram instituídas escolas paralelas para alunos com
deficiência intelectual. Além de serem escolas específicas para pessoas
com deficiência, por isso chamadas de educação paralela, não
representando um ato de inclusão social em si, essa atuação era originada
da sociedade, sendo postura alheia à estrutura do Estado brasileiro,
especificamente por meio da Associações de Pais e Amigos dos
Excepcionais (APAE) e das associações Pestalozzi. (MAIOR, 2020)3
Acerca desse período, Izabel Maior destaca o uso de expressões
inadequadas e reducionistas, a exemplo dos termos “ excepcionais” e
“portadores de necessidades especiais” para identificar as pessoas com
deficiência, terminologias que persistem na atualidade, expondo as
dificuldades do modelo integrador da deficiência no Brasil.4
Também como ato voltado à percepção de pessoas com
deficiência, após a epidemia da poliomielite, nas décadas de 50 e 60, bem
como após os resultados decorrentes da II Guerra Mundial, as pessoas
com deficiência física (à época denominados de “ deficientes físicos” )
passaram a ter atendimento assistencialista, conquanto, ainda afastada da
inserção social. (FIOCRUZ, 2020)5.

3 “Até a metade do século XIX, a deficiência Intelectual era considerada uma forma de
loucura e era tratada em hospícios. Durante a República, iniciaram-se as investigações
sobre a etiologia da deficiência intelectual, sendo que os primeiros estudos realizados
no Brasil datam do começo do século XX .” (LANNA JÚNIOR, 2020, p. 23).
4 MAIOR, Izabel, p. 01.
5 “A monografia sobre educação e tratamento médico pedagógico dos idiotas, do
médico Carlos Eiras de 1900, é o primeiro trabalho científico sobre a deficiência

32
Só em meados finais do século XX, como reflexo dos movimentos
de minorias em outros países ocidentais, o Brasil apresentou políticas
assistencialistas, contudo, ainda sem cotejo da inclusão social, tema que só
recentemente veio à baila no contexto jurídico-político do país.
A situação de “ segregação” silenciosa bem como a evidente
ausência do Estado no trato das questões de educação e de inclusão social,
somada ao estopim em países ocidentais de lutas de minorias, fizeram com
que, no Brasil, culminasse o movimento político das pessoas com
deficiência, na década de 70 do século passado. (2020, p. 33-34).
Lanna Júnior (2020, p. 33-34) descreve esse momento nos
seguintes termos:

Nessa época, surgiram as primeiras organizações


compostas e dirigidas por pessoas com deficiência
contrapondo-se às associações que prestavam serviços a
este público. Esta dicotomia, que mais adiante será
abordada neste capítulo, permanece como modelo até os
dias atuais. As primeiras organizações associativistas de
pessoas com deficiência não tinham sede própria, estatuto
ou qualquer outro elemento formal. Eram iniciativas que
visavam o auxílio mútuo e não possuíam objetivo político
definido, mas criaram espaços de convivência entre os
pares, onde as dificuldades comuns poderiam ser
reconhecidas e debatidas. Essa aproximação desencadeou
um processo da ação política em prol de seus direitos
humanos. No final dos anos 1970, o movimento ganhou
visibilidade, e, a partir daí, as pessoas com deficiência
tornaram-se ativos agentes políticos na busca por
transformação da sociedade. O desejo de serem
protagonistas políticos motivou uma mobilização
nacional. Essa história alimentou-se da conjuntura da
época: o regime militar, o processo de redemocratização

intelectual no Brasil. Após a metade do século XX, dois trabalhos científicos


produzidos por psiquiatras tornaram-se referências: a tese Introdução ao estudo da
deficiência mental (oligofrenias), de Clóvis de Faria Alvim, publicada em 1958, e o
livro Deficiência mental, de Stanislau Krynski, publicado em 1969.” In.: LANNA
JÚNIOR, 2020, p. 24.

33
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

brasileira e a promulgação, pela ONU, em 1981, do Ano


Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD). (sic.)

A redemocratização, nas décadas de 70 do século passado, foi


período fértil para a reorganização social e emergência das demandas
populares. Lanna Júnior (2020, p. 34) relata que a retomada de voz pelos
movimentos populares “ antes silenciados pelo autoritarismo, ressurgiram
como forças políticas. Vários setores da sociedade gritaram com sede e com
fome de participação: negros, mulheres, índios, trabalhadores, sem-teto,
sem-terra e, também, as pessoas com deficiência.”
Somou-se a esse momento histórico de identificação,
reorganização e fortalecimento das demandas sociais, especialmente
para as pessoas com deficiência, o fato de a O NU proclamar o ano de
1981 como Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD), com o
tema Participação Plena e Igualdade.
Como exemplo desse novo momento, demanda de inclusão básica
eram trazidas a debate, como se pode observar o ato público convocado pela
Associação Brasileira de Deficientes Físicos (Abradef), realizado em 21 de
julho de 1980, na Praça da Sé, em São Paulo, para protestar contra a
discriminação das pessoas com deficiência. N essa oportunidade, foram
explicitadas necessidades básicas das pessoas com deficiência, como por
exemplo a impossibilidade de votar para pessoas com deficiência física em
razão da falta de rampa de acesso nas sessões eleitorais.
Todo esse movimento marcado por encontros e debates a fim
de tratar das questões atinentes aos direitos da pessoa com deficiência
teve um ponto forte no contexto jurídico-político brasileiro com a
participação do movimento das pessoas com deficiência na Assem bleia
Nacional Constituinte.
D esse momento, Lanna Júnior (2020, p. 66) relata que:

A Emenda Popular n° PE00086-5 foi submetida à ANC


sob a responsabilidade de três organizações do movimento
das pessoas com deficiência, a Onedef, o Movimento de

34
Defesa das Pessoas Portadoras de Deficiência (MDPD) e
a Associação Nacional dos Ostomizados, e contou com
32.899 assinaturas. A proposta continha 14 artigos
sugerindo alterações no projeto da Constituição, onde
coubessem temas como igualdade de direitos,
discriminação, acessibilidade, trabalho, prevenção de
deficiências, habilitação e reabilitação, direito à
informação, educação básica e profissionalizante.

Todo esse breve histórico demonstra a quebra da invisibilidade


em que se inseriam as pessoas com deficiência. Oficialmente, antes da
Constituição Federal de 1988, as questões das pessoas com deficiência
foram tratadas pela Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência (CORDE), 1986, e da Política Nacional para
Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 1989.
A institucionalização do movimento político em órgãos
institucionais destinados a dar voz e concretude às demandas dessas
pessoas fortaleceu a mobilização, refletindo em vitórias, ainda que
insuficientes para gerar igualdade, essenciais como passos em uma
trajetória de lutas.
M ais adiante, em 04 de agosto de 2010, o Decreto 7.256 criou
a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, revogado, em 2013, pelo Decreto 8.162, depois, pelo
Decreto n° 9.122/2017. Atualmente a secretaria da pessoa com
deficiência está atrelada ao Ministério da Mulher, da Fam ília e dos
Direitos Humanos.
N o âmbito legislativo, destaca-se a Lei n° 13.146, de 6 de julho
de 2015, denominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, e tem por
fim assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos
direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência,
visando à sua inclusão social e cidadania.
Referida Lei resulta da inserção da Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em 30

35
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

de março de 2007, em Nova Iorque, ratificadas pelo Congresso Nacional,


por meio do Decreto Legislativo n° 186, de 9 de julho de 20 086.
Tais normativas representam um marco no movimento de
inserção social e luta por igualdade da pessoa com deficiência.
A s medidas legislativas implementadas pelo Estado instituição
representam uma proteção dos direitos da pessoa com deficiência e deve
ser feito de forma institucionalizada, de modo a iniciar o processo de
reversão da exclusão social a eles imposta. N esse sentido, Amartya Sem
destaca que “ a relação entre a regra da maioria e a proteção dos direitos
das minorias, que são elementos constitutivos da prática democrática,
depende especialmente da formação de valores e prioridades que sejam
tolerantes” . (SEN , 2009, p. 276).
Assim, a despeito da previsão legal de atos que viabilizem um
tratamento mais igualitário, tal medida não representa a inserção da
pessoa com deficiência no cotidiano da sociedade. Isso porque uma
normativa não tem o condão de alterar instantaneamente anos de
invisibilidade e descaso. N ão há um ato de mágica.

4 C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS

A efetividade dos direitos da pessoa com deficiência deve ser


analisada a partir da perspectiva da igualdade, isso no sentido de que se
deve resguardar “ a garantia do norte decisório reflexivo igualitário direto
e fiscalizável, único meio capaz de viabilizar a estruturação de uma
sociedade justa e, por conseqüência, igual” . (CARVALHO, 2020, p. 155).
A busca pelos movimentos das pessoas com deficiência é por
igualdade, aquela representada por meio da metodologia da igualdade

6 Ressalte-se, inclusive, que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com


Deficiência e seu Protocolo Facultativo detêm do status de Emenda Constitucional, por
terem sido aprovadas pelo Congresso Nacional brasileiro com o quórum previsto no §
3° do art. 5° da Constituição Federal de 1988, tendo sido o primeiro diploma de direitos
humanos a cumprir o referido rito no Brasil.

36
reflexiva direta, segundo a qual, “ o homem se identifica reflexivamente
em seu semelhante, ao passo em que se submeteria à m esm a decisão de
forma direta e imediata” . (CARVALH O , 2020, p. 156).
A decisão, normativa ou em concreto, deve ser ju sta segunda a
lógica do decisor e do destinatário da norma, de modo a viabilizar a paz
social em maior âmbito e garantir maior eficácia à decisão.
Destarte, importa ressaltar que decisões que buscam igualdade
social para minorias devem ser fiscalizadas e implementadas pelo Estado
em maior grau enquanto tais medidas ainda não integram a cultura da
sociedade a que aquele grupo minoritário se destina. “ Isso porque as
matérias de proteção de direitos fundamentais de minorias, exigem, por
sua própria natureza, uma atuação contramajoritária em nome da
preservação da igualdade reflexiva direta” . (CARVALHO, 2020, p. 176).
Parte da doutrina, inclusive, compreende que no âmbito do
Direito Administrativo, a luta por uma repartição isonômica, e não
igualitária, dos interesses e recursos constituiria o que vem se
convencionando denominar “ direito administrativo inclusivo” . Trata-se
de ramo que atua em favor de uma discriminação positiva (M ACERA,
2016), a qual promove direitos àqueles que se apresentam como mais
vulneráveis como, por exemplo, as pessoas com deficiência e a sua
recente inclusão nas políticas de cotas no Brasil.
Por todo o exposto, resta demonstrado o movimento político
social por igualdade implementado pelas pessoas com deficiência, desde
o total esquecimento pelo Estado até o reconhecimento da om issão e a
tentativa de reinclusão social por meio de legislação específica.
O processo aqui rapidamente evidenciado é longo e ainda
perdurará visto que a eficácia da decisão político legislativa ainda não é
uma realidade inclusiva por toda a sociedade brasileira. Por fim, o texto
milita no sentido de que, o debate e a luta ainda são imperiosos para fins
da necessária alteração da realidade social.

37
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

R E F E R Ê N C IA S

CARVALHO. Carliane de Oliveira. O P oder nas M ãos do Povo. A


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STF. Curitiba: Editora Juruá, 2020, p. 155.

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M AIOR, Izabel. Breve T rajetó ria h istórica do m ovimento d as pessoas


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http://violenciaedeficiencia.sedpcd.sp.gov.br/pdf/textosApoio/Texto2.p
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SEN. Amartya. A ideia de ju stiça. Trad. Denise Bottmann e Ricardo


Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

TA YLO R, Charles. M ulticulturalism o: exam inando a política de


reconhecimento. Trad. Marta Machado. Lisboa: Instituto Pieget, 1994.

39
4 MULHERES SUBMETIDAS À MASTECTOMIA E A LEI
N° 1 3 .1 4 6 /2 0 1 5

M aria Christina dos Santos*

1 IN T R O D U Ç Ã O

Este ensaio tem o propósito de contribuir na reflexão acerca da


possibilidade de as mulheres submetidas à mastectomia serem tuteladas
pela Lei Brasileira de Inclusão (LB I) - Lei n° 13.146/2015, por se tratar
de tema caro, delicado e atual.
Inicia-se com observações sobre a previsão legal da criação de
instrumento de avaliação biopsicossocial da deficiência - seja ela de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial. Destaca as dificuldades
decorrentes da falta desse referencial ainda não elaborado, e faz alusão
às iniciativas mais recentemente adotadas para a sua criação. N a
sequência traz ponderações sobre a mastectomia e suas sequelas, bem
como discorre sobre a possibilidade de a mulher mastectomizada ser
reconhecida como pessoa com deficiência. Ao final, apresenta
jurisprudência sobre casos de pedidos de tutela jurisdicional diante do
indeferimento de direitos/benefícios solicitados administrativamente.

* Mestre em Planejamento e Governança Pública. Especialista em Direito Educacional.


Especialista em Proteção Integral a Crianças e Adolescente. Especialista em Direito
Aplicado. Graduada em Direito e Serviço Social. Advogada. Na Comissão da Criança
e do Adolescente da OAB/PR: Membro Consultor - gestão 2019/2021 e 2016/2018;
Presidente - gestão 2013/2015. No Instituto de Tecnologia & Dignidade Humana:
Advogada - 2015/2017; Conselheira Fiscal - 2018/2022.

41
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

2 A PESSO A COM D E F IC IÊ N C IA E A A V A L IA Ç Ã O
B IO P S IC O S S O C IA L

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com


Deficiência - C D PD 1 incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro
com status de emenda constitucional, tem o propósito de “ promover,
proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência
e promover o respeito pela sua dignidade inerente.”
Segundo o artigo 1°, da CDPD, pessoas com deficiência “ [...]
são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas
barreiras2, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdades de condições com as demais pessoas” .
A LB I, por sua vez, amplia a definição acima, referindo-se não
somente à interação com várias, mas com uma ou mais barreiras. Ainda,
prevê, quando necessário, a realização de avaliação da deficiência por
equipe multiprofissional e interdisciplinar, utilizando-se para tal, de
modelo único a ser criado pelo Poder Executivo. N a hipótese de sua
realização, devem ser analisados: a) os impedimentos nas funções e nas
estruturas do corpo; b) os fatores socioambientais, psicológicos e
pessoais; c) a limitação no desempenho de atividades; e d) a restrição de

1 A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD),


assinada em Nova York, em 30 de março de 2007, foi ratificada, no Brasil, pelo Decreto
Legislativo n° 186, de 9 de julho de 2008, promulgada pelo Decreto n° 6.949, de 25 de
agosto de 2009.
2 Art. 3, IV - Barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que
limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o
exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à
comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança,
entre outros [...].
São classificadas em: a) barreiras urbanísticas; b) barreiras arquitetônicas; c) barreiras
nos transportes; d) barreiras nas comunicações e na informação; e) barreiras atitudinais;
f) barreiras tecnológicas.

42
participação. Em outros termos, essa avaliação há de levar em conta o
contexto social, além das condições físicas, psicológicas e os fatores
ambientais em que a pessoa está inserida.
Apesar disso, esse modelo referencial específico ainda não existe,
uma vez que o art. 2°, da LBI, que prevê a sua criação, não foi
regulamentado. Diante dessa lacuna, órgãos ou equipamentos públicos
responsáveis pelas políticas afirmativas vinham utilizando processos,
parâmetros e instrumentos diferenciados, muitas vezes resultando na
impossibilidade de acesso de pessoa com deficiência a políticas afirmativas.
Ao tomar como exemplo o Benefício de Prestação Continuada
(BPC )3, inserido no contexto constitucional da Seguridade Social como
parte da Assistência Social, observa-se que “ (...) sua administração e
operacionalização foram delegadas ao Instituto Nacional do Seguro
Social (IN SS), entidade que tem como principal finalidade administrar
os direitos previdenciários e não os assistenciais” (SIL V A e DINIZ,
2012, p. 262). A Portaria Conjunta M D S/IN SS n° 2, de 30 de março de
2015, baseando-se - inclusive - na CDPD, dispõe sobre critérios,
procedimentos e instrumentos para a avaliação social4 e médica5 da
pessoa com deficiência, realizada por integrantes do quadro do Instituto
Nacional da Seguridade Social (IN SS). Contudo, ainda não há a previsão
de psicólogo e de outros profissionais na composição dessa equipe.

3 Trata-se de política de transferência de renda garantida à pessoa com deficiência que


não possua meios de prover sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
4Art. 5° - Compete ao Assistente Social avaliar e qualificar [...]: I - Fatores Ambientais, por
meio dos domínios: [...] b) Condições de Habitabilidade e Mudanças Ambientais; c) Apoio
e Relacionamentos; d) Atitudes; e e) Serviços, Sistemas e Políticas; II - Atividades e
Participação, por meio dos domínios: a) Vida Doméstica; b) Relações e Interações
Interpessoais; c) Áreas Principais da Vida; e d) Vida Comunitária, Social e Cívica [...].
5Art. 6° - Compete ao Perito Médico Previdenciário avaliar e qualificar [...]: I - Funções
do Corpo, por meio dos domínios: a) Funções Mentais; [...]; d) Funções Sensoriais
Adicionais e Dor; [...] n) Funções Neuromusculoesqueléticas e Relacionadas ao
Movimento; [...]; II - Atividades e Participação, por meio dos domínios: [...]; b) Tarefas
e Demandas Gerais; [...]; d) Mobilidade; e e) Cuidado Pessoal [...].

43
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Em breve pesquisa sobre medidas mais recentemente adotadas


para suprir a falta do referencial anteriormente citado, foi possível
constatar que a Câmara de Deputados, por meio do Decreto n°. 8.954, de
10 de janeiro de 2017, criou o “ Comitê do Cadastro Nacional da Inclusão
da Pessoa com Deficiência e da Avaliação Unificada da Deficiência” 6.
E sse Comitê realizou amplos debates envolvendo universidades e
especialistas sobre o tema. Suas atividades culminaram com a aprovação
do Índice de Funcionalidade Brasileiro M odificado - IFBr-M 7, como
instrumento adequado de avaliação da deficiência a ser utilizado pelo
Governo Brasileiro, segundo consta da Resolução n° 01, de 05 de março
de 2020, emitida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência - CONADE.
Posteriormente, o Presidente da República, por meio do Decreto
n° 10.415, de 6 de julho de 2020 - instituiu o “ Grupo de Trabalho
Interinstitucional sobre o Modelo Único de A valiação Biopsicossocial
da Deficiência” . E sse Grupo tem por atribuição formular propostas de
regulamentação do art. 2° da LB I, que conterá os instrumentos e o
modelo único de avaliação biopsicossocial da deficiência. Tem por
incumbência, também, criar e alterar atos normativos necessários à
implementação unificada da avaliação biopsicossocial da deficiência em
âmbito federal. Destaca-se que o IFBr-M será o instrumento balizador
para a elaboração do mencionado modelo único de avaliação.
É nesse contexto que se encontram as pessoas que carecem de
avaliação para o reconhecimento de sua deficiência, entre elas, as
mulheres submetidas à mastectomia.

6 Esse Comitê foi composto por integrantes do Poder Público Federal e do Conselho
Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - CONADE.
7 O IFBr-M avalia o domínio da aprendizagem e aplicação de conhecimento;
comunicação; mobilidade; cuidados pessoais; vida doméstica; educação, trabalho e
vida econômica; e relações e interações interpessoais, vida comunitária, social, cultural
e política. (BRASIL, 2019).

44
3 A M U L H E R S U B M E T ID A À M A S T E C T O M IA P O D E S E R
C O N SID E R A D A P E S S O A C O M D E F IC IÊ N C IA ?

A resposta, em tese, é positiva. Todavia, deve ser submetida à


avaliação para que se possa aferir o grau da limitação - grave, moderado ou
leve - e se o impedimento de longo prazo, em interação com uma ou mais
barreiras - quer urbanísticas, arquitetônicas, atitudinais, tecnológicas, nos
transportes, nas comunicações e na informação - é capaz obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com
as demais pessoas. Em suma, não basta a existência da limitação, há de se
observar se o fato concreto se subsume à norma jurídica.
Há vários procedimentos cirúrgicos mais ou menos invasivos
para a retirada da(s) mama(s), a saber: a) mastectomia radical; b)
mastectomia radical modificada; c) mastectomia total com radioterapia;
d) mastectomia total sem radioterapia mas com esvaziamento axilar e; e)
cirurgia conservadora (excisão do tumor e de algum tecido saudável
circundante). Atualmente, os procedimentos cirúrgicos mais comuns
consistem na mastectomia total e na cirurgia conservadora seguida de
radioterapia. (M O REIRA e CA NAVARRO , 2012, p. 172).
Segundo relato de Gandini (2010), esses os procedimentos
cirúrgicos podem causar incapacidades e limitação na funcionalidade -
de maior ou menor proporção - de membro(s) superior(es), com
tendência de se manter ao longo do tempo. Seguindo esse entendimento,
Santos e Vieira (2011) e Haddad et. al. (2013) mencionam que uma das
consequências temporárias ou permanentes do adoecimento por esse tipo
de câncer e seu tratamento é a funcionalidade do membro superior. A
morbidade é elevada em consequência da dissecção dos linfonodos
axilares, aumentando as chances de linfedema8 de braço.

8 “O linfedema é uma doença crônica, progressiva, de difícil manejo e geralmente


incurável, comum em pós-operatório de cirurgias e radioterapia para tratamentos
oncológicos. Para o câncer de mama, o linfedema é a complicação pós-operatória de

45
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Faz-se oportuno transcrever sinais ou sintomas desse linfedema


pós-operatório:

aumento do peso do membro; parestesia da mão; rigidez


dos dedos; redução da amplitude de movimento de ombro,
cotovelo e punho; aumento da incidência de processos
infecciosos; deformidades posturais; limitação da função;
e problemas psicológicos e emocionais. Na pós-
mastectomia, esses sintomas são agravados por dor na
incisão, na cervical posterior, na cintura escapular, e em
aderências cicatriciais; fraqueza da musculatura do
membro superior e cintura escapular; defeitos posturais,
como cifose e escoliose por maus hábitos, gerando uma
assimetria de tronco e restrição da mobilidade do ombro.
(HADDAD et al., p. 427).

Resta evidente que a mastectomia, além de alterações físicas,


gera alterações emocionais e sociais que causam impacto na qualidade
de vida das mulheres, mesmo porque os seios representam
simbolicamente a identidade feminina, a sensualidade e a maternidade.
Há mulheres que passam a se sentir “ ( ...) desvalorizadas, envergonhadas
e repulsivas, evitando contatos sociais e sexuais” em função de sua perda
(ALM EIDA, 2006, 101). Contudo, outras compreendem a retirada da
mama “ ( ...) como parte do tratamento, quando o que mais importava não
era a aparência física, m as sim a recuperação da saúde” (M ANO ROV et
al., 2019, p. 327). Todos esses aspectos devem ser ponderados na
avaliação inter ou multiprofissional da deficiência, uma vez que à luz da
CDPD e da L B I somente um laudo médico não é suficiente para o seu
reconhecimento, apesar da sua capital importância.
A L B I visa:

(...) garantir que as pessoas com deficiência gozem de


todos os direitos fundamentais (...), com determinadas

maior morbidade, e afeta diretamente a qualidade de vida das mulheres.”


(PANOBIANCO, 2014, p. 407).

46
especificidades nas áreas de educação, assistência social,
comunicação, cultura e lazer, trabalho e previdência social,
habitação, além de estabelecer isenções e incentivos
fiscais, direitos civis e ações de combate ao preconceito, e
mecanismos de políticas públicas e defesa de direitos (...).
(SANTOS e REZENDE, 2017, p. 30).

Por essa razão, mulheres mastectomizadas que entendem fazer


ju s a direitos assegurados a pessoas com deficiência, resolvem litigar em
juízo a fim de terem acesso a políticas afirmativas, que lhes foram
negadas administrativamente - sejam pedidos de isenção fiscal,
benefício previdenciário ou assistencial, como se demonstrará a seguir.

4 JU R IS P R U D Ê N C IA P E R T IN E N T E

Segue jurisprudência relativa a demandas apresentadas por


mulheres que pleiteiam para ter acesso a políticas afirmativas.

RECURSO INOMINADO. ESTADO DO RIO GRANDE


DO SUL. ISENÇÃO IPVA E ICMS. AUTORA
PORTADORA DE NEOPLASIA. AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO DE LIMITAÇÃO PERMANENTE.
SENTENÇA MANTIDA. Na espécie, entendo que a
sentença outorgou a correta tutela jurisdicional que a causa
reclamava. A seu teor, não obstante a situação de saúde da
requerente, os laudos médicos acostados demonstram que
a autora é portadora de câncer de mama (CID C50), tendo
sido submetida a mastectomia/linfadenectomia axilar à
direita. Ambos os laudos referem que a autora possui
limitação no braço esquerdo, mas nada atestam sobre a
impossibilidade de direção de veículo em condições
normais, ou mesmo sobre qualquer dificuldade na direção,
apenas recomendando o uso de veículo com direção
hidráulica. Portanto, embora não se questione a existência
da moléstia que acomete o autor, fato é que não restou
comprovado que a deficiência física da qual é portador
exige adaptação do veículo às suas necessidades, ou,
ainda, que o automóvel tenha de ser dirigido por terceira
pessoa, requisitos indispensáveis à concessão da isenção

47
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

pretendida. RECURSO INOMINADO DESPROVIDO.


(TJRS - Recurso Cível N° 71007158439, Segunda Turma
Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator:
Rosane Ramos de Oliveira Michels, Julgado em 29/11/2017).

Apesar de a requerente ter sido submetida, inclusive, à


linfadenectomia e apresentar limitação física, esta não foi considerada de
longo prazo e apta a justificar a necessidade de adaptação do veículo e a
isenção de tributos, segundo o entendimento do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul.

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. IPI.


ISENÇÃO. PORTADOR DE DEFICIÊNCIA FÍSICA.
AQUISIÇÃO DE VEÍCULO ADAPTADO. LAUDO
MÉDICO. LESÃO IRREVERSÍVEL. Comprovada a
deficiência física do contribuinte, com lesão irreversível
no membro superior esquerdo que a impede de dirigir
veículo não adaptado, impõe-se a concessão da isenção de
IPI para aquisição de automóvel, nos termos da Lei n
8.989, de 1995. (TRF4 5023464-72.2017.4.04.7000,
SEGUNDA TURMA, Relator RÔMULO PIZZOLATTI,
juntado aos autos em 02/10/2018).

A decisão do Tribunal Regional Federal da Quarta Região tem


por objeto o indeferimento da Fazenda Nacional do pedido de
reconhecimento do benefício fiscal da isenção de IPI e IOF na aquisição
de automóvel a uma motorista que possuía laudos, um dos quais emitido
pela Junta M édica Especial do Detran/PR, comprovando sua deficiência
física. N a decisão o relator menciona que “ a isenção de IPI constitui
benefício que visa a criar condições adequadas para inserção do
deficiente na vida social, atenuando as dificuldades inerentes à sua
condição, o que está de acordo com o princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana.”

EMENTA: TRIBUTÁRIO. IPI. ISENÇÃO. AQUISIÇÃO


DE VEÍCULO. DEFICIENTE FÍSICO. LEI N° 8.989/95.

48
REQUISITOS. PREENCHIMENTO. 1. Demonstrado, por
laudo pericial judicial, que a parte autora apresenta
comprometimento da função física (redução acentuada da força
motora do membro superior direito, em razão de mastectomia
radial D), que a impede de dirigir veículo comum, faz jus ao
benefício pretendido, uma vez que se encontram preenchidos
os requisitos previstos na Lei n° 8.989/95. 2. Sentença mantida.
(TRF4, APELREEX 5002923-66.2014.4.04.7115,
SEGUNDA TURMA, Relatora CLÁUDIA MARIA
DADICO, juntado aos autos em 10/07/2015).

No caso acima, houve comprovação efetiva da deficiência física,


o que justificou o acolhimento do pedido de isenção de tributos na compra
de veículo automotor pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região.

PJe - PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL.


BENEFÍCIO DE AMPARO SOCIAL À PESSOA
PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. ART. 203, V, CF/88. LEI
8.742/93. NULIDADE POR CERCEAMENTO DE
DEFESA. INOCORRÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE
DEFERIMENTO. AUSÊNCIA DE INCAPACIDADE. (...) 3.
No caso concreto: o perito informa que a requerente sofre de
sequelas de câncer de mama com mastectomia radical à direita,
ocorrido em outubro de 2008, onde realizou procedimentos de
fisioterapia, radioterapia e quimioterapia, necessitando de
repouso para reabilitações e tratamentos por um período de 24
meses, o que a deixou debilitada para atividades laborativas.
Verifica-se que a moléstia da parte autora a incapacitou por
aproximadamente 2 anos, conforme quesito da pericia médica.
4. Na espécie, levando em consideração que a incapacidade
total foi constatada em 2008, observando o lapso temporal,
verifico não haver mais incapacidade, tampouco deficiência de
longo prazo, a fim de configurar a concessão do benefício
pretendido. 5. A perícia produzida no feito por especialista
habilitado trouxe como conclusão a inexistência de
impedimentos de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, que, em interação com diversas
barreiras, pudessem obstruir a participação plena e efetiva da
parte autora na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas, de modo que a demandante não se enquadra
no conceito previsto no §2° do art 20 da Lei n 8.742/1993. 6.
Impossível, nas circunstâncias dos autos, o deferimento do

49
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

benefício assistencial em testilha. 7. A coisa julgada na espécie


deve produzir efeitos secundum eventum litis, de forma que,
demonstrando a parte autora, em momento posterior, o
atendimento dos requisitos, poderá postular o benefício
almejado. 8. Apelação da parte autora desprovida. (AC
1004965-82.2018.4.01.9999, DESEMBARGADOR
FEDERAL FRANCISCO NEVES DA CUNHA, TRF1 -
SEGUNDA TURMA, PJe 25/10/2019).

N a decisão pelo indeferimento do pedido de BPC consta que a


demandante não apresenta impedimentos de longo prazo, fazendo
menção, inclusive, ao § 2°, do art. 20 da Lei Orgânica da Assistência
Social - Lei n ° 8.742/1993, cuja redação foi dada pela LBI. Todavia, a
decisão tomou por base unicamente a avaliação de médico perito.

5 C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS

A avaliação multi ou interprofissional a que a mulher


mastectomizada deve ser submetida é de capital importância para a
comprovação de que a sua limitação se amolda aos critérios objetivos de
classificação de pessoa com deficiência estabelecidos no ordenamento jurídico.
Espera-se ansiosamente que a regulamentação do art. 2° da L B I
e implementação de um modelo referencial de avaliação biopsicossocial
da deficiência em âmbito federal, viabilize e agilize o acesso das pessoas
com deficiência a políticas afirmativas. Ainda, espera-se que as equipes
multi ou interprofissional, além de médicos e assistentes sociais contem
também com psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.

R E F E R Ê N C IA S

ALM EIDA, Raquel Ayres de. Impacto da mastectomia na vida da


mulher. Rev. SB P H , R io de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 99-113, dez. 2006.
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext
& pid=S1516-08582006000200007. A cesso em: 23 ago. 2020.

50
B R A SIL . Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada
em 5 de outubro de 1988. In: V ade M ecum . 17. ed. rev. ampl. atual. São
Paulo: RT, 2020.

________ . Decreto n° 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a


Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e seu Protocolo Facultativo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cc
ivil_03/_ato20072010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em: 02 fev. 2018.

________ . Lei n° 13.143 de 6 de julho de 2015 - Lei Brasileira de


Inclusão da Pessoa com Deficiência Estatuto da P essoa com Deficiência.
In: V ade M ecum . 17. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.

________ . P o rtaria C o n ju n ta M D S/IN SS n° 2, de 30 de m arço de


2015. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/legislacao/a
ssistencia_social/portarias/2015/portaria_conjunta_INSS_2_2015_BPC
.pdf>. A cesso em: 02 fev. 2018.

________ . CÂM ARA D E DEPUTADOS. Decreto n° 8954, de 10 de


jan eiro de 2017. Institui o Comitê do Cadastro Nacional de Inclusão da
Pessoa com Deficiência e da Avaliação Unificada da Deficiência e dá
outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_
03/_Ato2015-2018/2017/Decreto/D8954.htm. Acesso em: 10 ago. 2020.

________ . M IN ISTÉRIO DA M ULH ER, DA FA M ÍLIA E DO S


D IREITO S HUM ANOS. A valiação Biopsicossocial d a Deficiência.
2019. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cpd/audiencias-
publicas/audiencias-publicas-2019/apresentacao-liliane-cristina-
bernardes-mdh. A cesso em 02 ago. 2020.

51
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

_________. PRESID ÊN CIA D A REPÚBLICA. Decreto n° 10.107, de 5


m arço de 2020. Declara a revogação, para os fins do disposto no art. 16
da Lei Complementar n° 95, de 26 de fevereiro de 1998, de decretos
normativos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_At
o2019-2022/2019/Decreto/D10087.htm#art1. Acesso em: 10 ago. 2020.

________ . PR ESID ÊN C IA D A R EPÚ BLIC A . D ecreto n° 10.415, de 6


de ju lh o de 2020. Institui o Grupo de Trabalho Interinstitucional Sobre
o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência.
Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.415-
de-6-de-julho-de-2020-265386885. A cesso em: 16 jul. 2020.

________ . CO N SELH O N A CIO N A L D O S D IREITO S D A P E SSO A


COM DEFICIÊNCIA. M INISTÉRIO D A M U LH ER, D A FA M ÍLIA E
D O S D IREITO S H UM ANOS. R esolução n° 01, de 05 de m arço de
2020. Dispõe sobre a aprovação do Índice de Funcionalidade Brasileiro
M odificado IFBrM como Instrumento de Avaliação da Deficiência.
Disponível em: http://www.ampid.org.br/v1/wp-
content/uploads/2020/03/SEI_MDH- 1100672-CONADE_-
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81232011000500021. A cesso em: 23 ago. 2020.

53
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

SILVA, Janaína Lim a Penalva da; DINIZ, Debora. Mínimo social e


igualdade: deficiência, perícia e benefício assistencial na LO AS. Rev.
K atálysis, Florianópolis, v. 15, n.2, pág. 262-269, dezembro de 2012.
Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S
1414-49802012000200012&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 24 ago. 2020.

54
5 TRATADO DE MARRAQUECHE: p ro m o ção da
ac e ssib ilid a d e à s o b ra s lite rá ria s p e la s P e sso a s com
D eficiência no B rasil

Bruna Homem de Souza Osman*


Jessica Aparecida Soares*

1 IN T R O D U Ç Ã O

A s pessoas com deficiência (PDC) apresentam ainda nos dias


atuais dificuldades para usufruírem dos seus direitos e do ambiente social
como um todo, todavia, progressivamente, estas condições evoluem de
maneira que o acesso aos direitos seja garantido.
O Tratado de Marraqueche (TM) promove limitações e isenções ao
direito do autor e amplia os direitos às pessoas cegas, com deficiência visual
ou com outras dificuldades para ter acesso facilitado às obras publicadas, de
forma a permitir que estes beneficiários desfrutem da sociedade.
Nesta perspectiva, surge a presente pesquisa com intenção de
responder à seguinte questão norteadora: em que medida o Tratado de
Marraqueche promove a acessibilidade às obras literárias pelas pessoas
com deficiência no Brasil?
Sugere-se que este acordo internacional amplia a acessibilidade
aos bens culturais pelas PDC, justamente por complementar previsões
legais brasileiras.

* Mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie


(2017), Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência e Idoso da
Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Foz do Iguaçu/PR, Advogada.
* Mestra em Sociedade, Cultura e Fronteiras pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná - UNIOESTE (2017). Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com
Deficiência e Idoso da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Foz do
Iguaçu/PR, Servidora Pública Federal.

55
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Desta maneira, o objetivo geral desta pesquisa é investigar, a


partir da legislação vigente no Brasil, de que forma o TM contribui para
proporcionar a igualdade e acessibilidade às obras literárias pelas
pessoas com deficiência.
Por conseguinte, tem como objetivos específicos identificar as
origens e a instrumentalização do TM, como também, resgatar as suas
previsões legais e analisar suas relações como sistema de proteção da
propriedade intelectual brasileiro.
O estudo foi realizado mediante pesquisa teórica, documental e
bibliográfica, através do método de abordagem hipotético-dedutivo.

2 O R IG E N S E IN S T R U M E N T A L IZ A Ç Ã O DO T R A T A D O D E
M A R R A Q U E C H E NO B R A S IL

Ao longo da história as pessoas com deficiência tiveram


inúmeras e complexas dificuldades para terem acesso aos seus direitos,
mas por outro lado alcançaram “ [...] conquistas no campo da legislação
que intencionam e minimizam a força do estigma que recai sobre estes
indivíduos” (FRA N ÇA ; PA G LIU CA , 2009).
Entretanto, nos dias de hoje ainda existem diversos fatores
que impedem as PCD de ocuparem um lugar social, dentre eles a falta
de adaptações e o preconceito. E stas privações incluem até m esmo o
acesso a direitos.
O direito à cultura, previsto no artigo 27 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948), garante que “todo ser
humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e
de seus benefícios” (SA R R A F, 2018). Este dispositivo reforça que todos
os indivíduos, independentemente de sua origem, classe social,
experiência prévia, condição congênita, aquisição de deficiência ou
quaisquer outros fatores socioeconômicos que os identifiquem como
minorias, têm o direito de usufruir das manifestações e bens culturais.

56
São bens culturais as obras literárias, artísticas e científicas, mas
o acesso a eles pelas pessoas com deficiência sempre foi precário, basta
realizar uma breve análise comparativa para identificar que a quantidade
de obras literárias acessíveis é muito menor em comparação a todo o
conjunto disponibilizado sem acessibilidade.
Apesar de nas últimas décadas ter se dispensado, tanto no
âmbito nacional quanto internacional, atendimento mais humanizado em
prol das pessoas com deficiência, é importante ressaltar que somente
entre as décadas de 1960 e de 1970 é que foi sendo contraposto “ [....] o
estado de segregação que lhes era imposto e reclamado o direito à
convivência social” (FRA N ÇA ; PAG LIUCA , 2009).
N o concernente a legislação internacional, em 28 de junho de
2013 ocorreu a celebração do Tratado de Marraqueche no contexto da
Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), decorrente da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e do seu
Protocolo Facultativo1, os quais objetivaram “tornar efetivos os direitos
das pessoas com deficiência” (FERR EIRA ; O LIVEIRA, 2007), vez que
estes enfrentam “ [...] obstáculos físicos e sociais que os impede de:
receber educação total; exercer empregos com dignidade, mesmo
ostentando qualificações; ter acesso à informação e à saúde; de usufruir
a liberdade de ir e vir; interagir com o meio social e por ele ser aceitos”
(FERREIRA ; O LIVEIRA, 2007).
Em 30 de agosto de 2020, a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência alcançava 177 membros (ONU, 2020) e o
Tratado de Marraqueche havia 71 Partes Contratantes (WIPO, 2020).
Todos os países que ratificaram os documentos mencionados
anteriormente, inclusive o Brasil, assumiram o “ [...] compromisso de
respeitar as pessoas com deficiência não mais em razão da legislação

1 A promulgação no Brasil da Convenção Internacional sobre direitos das Pessoas com


Deficiência e seu Protocolo facultativo, assinados em Nova York em 30 de março de
2007 evidenciou-se com o Decreto n. 6.949 de 25 de agosto de 2009.

57
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

interna, m as de uma exigência universal de solidariedade, independente


da condição social de cada um” (FERR EIRA ; O LIVEIRA, 2007).
Observa-se que o TM não foi o primeiro documento internacional
à estabelecer limites e exceções ao direito autoral2, mas foi o primeiro
documento internacional a estabelecer limitações ao direito do autor com
finalidade de facilitar o acesso às pessoas cegas, com deficiência visual ou
com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso.
N o Brasil, o texto deste acordo internacional foi aprovado pelo
decreto legislativo n° 261 de 2015 com status de emenda constitucional,
pois versa sobre direitos humanos e atende ao procedimento estabelecido
pelo artigo 5°, § 3° da Constituição Federal de 19883.
Importante observar que a vigência do TM passou a se evidenciar
somente através de sua promulgação pelo Decreto Presidencial n° 9522 de
outubro de 2018 e, desde então, esforços são reunidos para a sua
regulamentação e sua implementação no território brasileiro.

3 T R A T A D O D E M A R R A Q U E C H E E SU A S R E L A Ç Õ E S C O M
O S IS T E M A DE PROTEÇÃO DA P R O P R IE D A D E
IN T E L E C T U A L B R A S IL E IR O

A Convenção de Paris (1883) e a Convenção de Berna (1886)


são tratados coletivos que passaram a tutelar a propriedade intelectual no
âmbito internacional, sendo que esta última estabelece o que é obra
literária, os critérios para sua proteção, os direitos patrimoniais e morais
do autor, dentre outros temas (WACHOWICZ; M ED EIRO S, 2014).
Sem negar a importância da proteção aos direitos autorais,
vislumbra-se no contexto atual mundial que esta proteção não pode ser

2 Cita-se entre os tratados internacionais a Convenção de Berna e o Acordo TRIPS.


3 O Artigo 5.o. § 3° da Constituição Federal de 1988 dispõe que os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa
do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

58
uma “barreira excessiva ou discriminatória ao acesso de pessoas com
deficiência a bens culturais” (WACHOWICZ; M ED EIRO S, 2014).
Portanto, existe a perspectiva da solidariedade, justamente
porque tutela direitos humanos.
A solidariedade também é destacada na esfera internacional
pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com
reconhecimento da “ [...] dificuldade que há na efetivação dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais às pessoas com deficiência, e,
assim, estabelece meios de promover, proteger e assegurar o exercício
pleno e equitativo destes direitos” (WACHOW ICZ; M ED EIRO S, 2014).
Dados da Organização Mundial de Saúde (OM S) apontam que
em 2019 “ globalmente, pelo menos 2,2 bilhões de pessoas têm
deficiência visual” sendo que destes, “ 1 bilhão de pessoas inclui aqueles
com deficiência da visão à distância moderada ou severa ou cegueira[...]”
(WHO, 2019), mas constata-se a existência de muitos outros tipos de
deficiências que podem dificultar ou impossibilitar o acesso à leitura.
Sobre direito autoral e tutela das obras literárias, Ascenção
(1997) realça que não é um direito ilimitado ou absoluto, pois
circundado por normas positivas ou negativas limitadoras, que são
fundamentadas em outros direitos, tais como, direito ao acesso à
cultura, à educação, à informação.
Observam M arcos Wachowicz e Heloísa M edeiros (2014) que
é por não existir um direito absoluto que é comum encontrarmos “ [...]
nas legislações internacional e nacionais dispositivos legais que visam
não apenas garantir direitos aos titulares de direitos de propriedade
intelectual, m as também a previsão de direitos à sociedade, que deve
suportar o ônus de tornar um bem público em bem privado”
(WACHOWICZ; M ED EIRO S, 2014).
O Tratado de M arraqueche é um a destas legislações que
enaltecem a sociedade e promove lim itação e isenções ao direito do
autor, como também, propicia trocas fronteiriças de cópias em
formato acessível.

59
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Quanto às limitações e isenções ao direito autoral o artigo 4 ° do


Tratado objeto da análise concebe a possibilidade da legislação interna
dos países relativa aos direitos do autor permitirem o direito de
reprodução, distribuição, bem como de disposição ao público, facilitando
a disponibilidade de obras em formato acessíveis.
N o caso específico do Brasil, a Lei n° 9.610, de 19 de fevereiro
de 1998 prevê no artigo 29 a necessidade de autorização para adaptação
da obra do autor para outros formatos, para reprodução parcial ou
integral, ou até mesmo a tradução da obra em outro idioma.
Porém, o artigo 46, inciso I alínea “ d” da mesma lei determina
que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução “ [...] de obras
literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes
visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita
mediante o sistema de Braile ou outro procedimento em qualquer suporte
para estes destinatários” , como por exemplo, áudiobook, formato
ampliado, livros em formato digital denominados Daisy (Digital
Accessible Information System) ou outros formatos acessíveis.
Imprescindível atentar que o mencionado artigo se refere
somente a reprodução de livros sem finalidade lucrativa para pessoas
com deficiência visual.
Contudo a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também conhecida
como Estatuto da Pessoa com Deficiência, promulgada em 06 de julho
de 2015 pela Lei Federal n° 13.146/2015, veda em seu artigo art. 42, §
1° a recusa de oferta de livros em formato acessível sob qualquer
alegação, inclusive sob a argumentação de violação de direitos do autor.
Consigna-se que o não atendimento à acessibilidade, a recusa
de adaptações, como também toda forma de distinção, restrição ou
exclusão, por ação ou omissão, que tenham o propósito ou o efeito de
prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos
direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, são
considerados atos discriminatórios em razão da deficiência
criminalizado no artigo 88 da Lei n° 13.146/2015.

60
Desta forma, nota-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência
é uma legislação que avança, pois estabelece limitações aos direitos do
autor para a produção de livros acessíveis não somente para cegos, mas
para todas as pessoas com deficiência, ou seja, para toda pessoa que
tenha “ [...] impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras,
pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade
de condições com as demais pessoas.” 4
No entanto, a Lei n° 13.146/2015 alcança somente a
territorialidade brasileira, diferentemente do TM que passa a solucionar
questões entre os países com partes contratantes do tratado.
A respeito dos beneficiários, a norma internacional sob análise
indica no artigo 3° que compreenderá a toda pessoa:

a) cega;
b) que tenha deficiência visual ou outra deficiência de
percepção ou de leitura que não possa ser corrigida para se
obter uma acuidade visual substancialmente equivalente à de
uma pessoa que não tenha esse tipo de deficiência ou
dificuldade, e para quem é impossível ler material impresso
de uma forma substancialmente equivalente à de uma pessoa
sem deficiência ou dificuldade; e ainda,
c) que esteja impossibilitada, de qualquer outra maneira,
devido a uma deficiência física, de sustentar ou manipular
um livro, focar ou mover os olhos da forma que normalmente
seria apropriado para a leitura, independente de quaisquer
outras deficiências.

4Disposição do Artigo 2° da Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015, a qual institui a Lei


Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

61
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Denota-se assim, que o TM o rol de beneficiários em


comparação à Lei Brasileira de Inclusão.
Outra significativa ponderação é a de que o Tratado faz alusão
a distribuição de obras literárias acessíveis e sem fins lucrativos e a Lei
Brasileira de Inclusão menciona oferta de obras literárias acessíveis,
onde se pressupõe comercialização.
Quanto à criação e disseminação de obras em formatos
acessíveis para os beneficiários, o artigo 5° do TM aponta a possibilidade
de um intercâmbio transfronteiriço de cópias acessíveis, ou seja, “ [...] a
possibilidade das legislações nacionais permitirem uma entidade
autorizada a exportar uma cópia em formato acessível a uma pessoa
beneficiária ou a uma entidade autorizada em outra Parte Contratante
[...]” (WACHOW ICZ; M ED EIRO S, 2014).
A troca de cópias adaptadas para PCD entre países, sem a
solicitação de autorização do proprietário dos direitos autorais, não é
prevista pela Lei de Direitos do Autor nem pela Lei Brasileira de Inclusão.
Mesmo que ainda existam impasses no Brasil para se legitimar a
entidade autorizada, dificuldades para estabelecer mecanismos para
reconhecer os beneficiários e entender efetivamente como se evidenciarão
as trocas e difusão das obras acessíveis entre as partes contratantes, aponta-
se que existem disponibilizados atualmente, através do projeto denominado
ABC Global Book Service sob coordenação da WIPO, mais de 635.0000
títulos em 80 línguas em variados formatos acessíveis.
O projeto sem fins lucrativos amplia a disponibilidade de livros
em formatos acessíveis que podem ser trocados através das fronteiras
entre as entidades autorizadas participantes.
Desta forma, seja pela ampliação do rol dos beneficiários, pela
possibilidade de intercâmbio fronteiriço de obras intelectuais sem a
necessidade de solicitar autorização do proprietário de direitos autorais
e, por já existir disponibilizado um grande acervo de obras acessíveis
pelo projeto ABC Global Book Service, urge a necessidade de
regulamentação do Tratado de Marraqueche no território brasileiro.

62
4 C O N S ID E R A Ç Õ E S F IN A IS

É com frequência que as PCD precisam ultrapassar barreiras para


conquistar ou ter acesso a direitos, especialmente no que tange aos bens
culturais, os quais compreendem as obras literárias, artísticas e científicas.
N a tentativa de garantir os direitos às pessoas com deficiência e
promover a inclusão e acessibilidade, diversos dispositivos legais
internacionais e nacionais foram promulgados. Destaca-se
internacionalmente o Tratado de Marraqueche, que tem como origem a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu
Protocolo Facultativo, todos na perspectiva da solidariedade.
O TM aprovado no Brasil pelo decreto legislativo n° 261 de
2015 e promulgado no território brasileiro pelo Decreto Presidencial n°
9.522 de outubro de 2018, estabelece limitações ao direito do autor com
finalidade de facilitar o acesso às pessoas cegas, com deficiência visual
ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso.
T ais lim itações indicam que o direito autoral não é ilim itado
ou absoluto, sobretudo quando se deve em benefício da sociedade
enaltecer outros direitos, tais como, o direito ao acesso à cultura, à
educação e à informação.
Verifica-se na pesquisa, que no Brasil já existia legislação
avançada com isenções e limitações ao direito autoral quando da
promulgação do Tratado de Marraqueche, é o caso do artigo 46, inciso I
alínea “ d” da Lei n° 9.610/98 que favorece os deficientes visuais, como
também a Lei Brasileira de Inclusão (L B I) que veda a recusa de oferta
de livros em formatos acessíveis sob qualquer alegação, inclusive sob a
argumentação de violação de direitos do autor não somente para cegos,
mas para todas as pessoas com deficiência.
O Tratado de Marraqueche amplia o rol dos beneficiários, pois
além das pessoas com deficiência visual, alcança amplamente as PCD e,
ainda, pessoas sem deficiência que estejam impossibilitadas de alguma

63
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

forma de sustentar, manipular ou mover os olhos da forma que


normalmente seria apropriado para leitura.
Diante deste fato, consequentemente novos form atos de
acessibilidade serão percebidos para prom oção da inclusão universal,
justam ente para que as p essoas estejam em grau de igualdade umas
com as outras.
Ademais, o TM passa a solucionar questões internacionais
deixando clara a possibilidade de intercâmbio fronteiriço, com a
distribuição de obras literárias acessíveis, sem fins lucrativos e sem a
solicitação de autorização do proprietário dos direitos autorais.
Ainda que para a sua efetiva implementação no Brasil seja
necessária uma regulamentação específica, é possível vislumbrar do
estudo proposto que o TM é complementar a legislação brasileira pois
eleva os direitos ali previstos a um nível constitucional, amplia o rol dos
beneficiários, possibilita o intercâmbio fronteiriço de obras intelectuais
sem a necessidade de solicitar autorização do proprietário de direitos
autorais e disponibiliza através do projeto ABC Global Book Service
grande acervo de obras acessíveis.
Além desta complementariedade vislumbra-se a possibilidade
de por intermédio do Tratado despontar conscientização sobre os
desafios enfrentados pelas pessoas com dificuldades para acessar o texto
impresso, impulsionar políticas públicas favoráveis às pessoas com
deficiência, ampliar o acesso à educação através de materiais educativos
em formatos acessíveis variados com maior social e participação
cultural, dentre tantos outros direitos essenciais à vida humana.

R E F E R Ê N C IA S

A SC EN SÃ O , José de Oliveira. Direito autoral. 2. ed. Rio de Janeiro:


Renovar, 1997. p. 256.

64
A SSO C IA Ç Ã O B R A SIL E IR A D E PRO PRIED A D E IN TE LEC T U A L -
APBI, 2020. T ratad o de M arraquech e: webinar discute acessibilidade
às obras intelectuais. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=FCRqEaKflW s. A cesso em: 20 ago. 2020.

B R A SIL . Decreto n ° 9.522, de 8 de outubro de 2018. Promulga o


Tratado de Marraqueche para facilitar o acesso a obras publicadas às
pessoas cegs, com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter
acesso ao texto impresso, firmado em Marraqueche, em 27 de junho de
2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2018/Decreto/D9522.htm. A cesso em: 20 ago. 2020.

_________. Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015 - Institui a Lei Brasileira


de Inclusão da Pessoa com Deficiência (E statu to d a P essoa com
Deficiência). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato
2015-2018/2015/lei/l13146.htm. A cesso em: 02 set. 2020.

_________. Decreto n° 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a


Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e seu Protocolo Facultativo, assinados em N ova York, em 30 de março
de 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato200
7-2010/2009/decreto/d6949.htm. A cesso em: 25 ago. 2020.

_________. Lei n° 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e


consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm.
A cesso em: 02 set. 2020.

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Inclusão social da pessoa com deficiência: conquistas, desafios e
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65
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

185, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n1/23.


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66
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______ . A bc G lobal B ook Service. Disponível em:


https://www.accessiblebooksconsortium.org/globalbooks/en/. A cesso
em: 03 set. 2020.

67
6 PLANOS DE SAÚDE E INTERNAÇÃO DOMICILIAR
PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Melize Oliveira Pontes*

1 IN T R O D U Ç Ã O

A dificuldade de garantir que os Planos de Saúde promovam


atendimento/internação domiciliar para pessoas com deficiência ou
doenças graves, denominado Home Care, justifica o presente artigo.
Apesar de aparentemente estar pacificada a obrigatoriedade de
os Planos de Saúde fornecerem todo o necessário para a internação
domiciliar, ainda há constantes negativas por parte da maioria destas
operadoras no Brasil, o que muitas vezes dificulta o acesso a este direito.
Os principais objetos deste texto são: a) os Planos de Saúde e a
internação domiciliar; b) as justificativas/razões dos Planos de Saúde
para indeferir pedidos de internação domiciliar de pessoas com
deficiência; c) medidas judiciais cabíveis para a garantia da internação
domiciliar a pessoas com deficiência, de modo a permitir que usufruam
de tratamento médico digno no âmbito de sua própria residência.

2 P L A N O S D E SA Ú D E E IN T E R N A Ç Ã O D O M IC IL IA R

2.1 Conceito e regulam entação dos planos de saúde

O Plano de Saúde é um serviço de assistência médica, prestado


por empresas privadas e regulamentado pela Agência Nacional de Saúde
- A N S, conforme a Lei n° 9.656, de 3 de junho de 1998.

* Advogada. Especialista em Direito Previdenciário. Membro Consultor da Comissão


dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/PR.

69
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

A relação do Plano de Saúde com o seu contratante é


regulamentada pelo Código de D efesa do Consumidor, devendo,
portanto, as regras deste Código ser integralmente aplicadas para a
solução de quaisquer conflitos existentes.

2.2 O que é a internação dom iciliar nos planos de saú d e?

O Parecer Técnico da A N S n° 05/G EA S/GG RA S/DIPRO /2019


define internação domiciliar como o “conjunto de atividades prestadas
no domicílio, caracterizadas pela atenção em tempo integral ao paciente
com quadro clínico mais complexo e com necessidade de tecnologia
especializada”’.
Este mesmo Parecer Técnico, define que, caso não seja possível
a internação domiciliar, o Plano de Saúde deverá fornecer
alternativamente o atendimento na própria unidade hospitalar, não
podendo dar alta médica, quando é atestada a necessidade de um
atendimento complexo.
O atendimento domiciliar se mostra fortemente adequado para
pacientes que precisam de internação de longo prazo, bem como para
aqueles que passarão o tempo completo de suas vidas precisando deste
atendimento para se desenvolver com segurança, conforto e respeitando
o seu direito à saúde e à vida de forma digna.

2.3 P or que os plano de saúde negam a internação dom iciliar?

A s razões para o indeferimento são diversas, como: a) a falta de


previsão contratual; b) possibilidade de contratação, por parte dos
familiares, de um “ cuidador informal” para atender todas as necessidades
daquele(a) paciente; c) falta de previsão orçamentária do Plano de Saúde;
d) dificuldades no deslocamento de profissionais; d) falta de carência; e)
ausência de registro nos órgãos que fiscalizam o atendimento domiciliar
(ex. AN V ISA ), dentre outras.

70
Importante ressaltar que o serviço de internação domiciliar vem
inclusive regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, por meio
da Resolução n° 1.668/2003, a qual, “ dispõe sobre normas técnicas
necessárias à assistência domiciliar de paciente, definindo as
responsabilidades do médico, hospital, empresas públicas e privadas; e
a interface multiprofissionalneste tipo de assistência” . Assim, a negativa
com fundamento de que o atendimento poderia ser feito pelos próprios
familiares não é motivo para o indeferimento do pedido.
Embora sejam vários os motivos apontados pelos Planos de
Saúde para negar a internação domiciliar, nenhuma delas prospera diante
da possibilidade de ser este o tratamento mais adequado ao(à) paciente.

3 IN T E R N A Ç Ã O D O M IC IL IA R DA P ESSO A COM
D E F IC IÊ N C IA

3.1 A g aran tia do direito à saúde d a pessoa com deficiência na


legislação vigente

A internação médica domiciliar da pessoa com deficiência que


dela necessitar, deve ser analisada à luz do direito à vida e à saúde,
previstos em nossa Constituição Federal, sendo inclusive competência
comum de todos os entes federativos garanti-los.
No decorrer dos anos, diversas leis e decretos foram sendo
aprovados, até que a denominada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência, Lei n° 13.146/2015, trouxe o mais recente conceito de pessoa
com deficiência. Inclusive, a referida lei, em seu artigo 20, menciona que
no âmbito privado, todos os produtos e serviços devem ser garantidos às
pessoas com deficiência em igualdade com os demais usuários.
Assim, havendo prescrição de internação domiciliar para uma
pessoa com deficiência, todo o sistema da saúde, público ou privado,
deve se movimentar no sentido de garantir que este seja efetivado, com
vistas à proteção do direito à saúde e consequentemente o direito à vida.

71
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

3.2 P rescrição M édica

A prescrição médica de internação domiciliar não pode ser


realizada de forma massificada, deve ser direcionada de acordo com a
especificidade da situação, evitando-se prescrições comedidas, bem
como com exageros de procedimentos e profissionais.
O tratamento indicado para o(a) paciente é feito pelo médico
que o(a) acompanha ou o que toma conhecimento de seu estado clínico,
logo, não é a operadora do Plano de Saúde que definirá qual o melhor
procedimento a ser adotado. Neste sentido:

Seguro saúde. Cobertura. Câncer de pulmão. Tratamento


com quimioterapia. Cláusula abusiva. 1. O plano de saúde
pode estabelecer quais doenças estão sendo cobertas, mas
não que tipo de tratamento está alcançado para a respectiva
cura. Se a patologia está coberta, no caso, o câncer, é
inviável vedar a quimioterapia pelo simples fato de ser esta
uma das alternativas possíveis para a cura da doença. A
abusividade da cláusula reside exatamente nesse preciso
aspecto, qual seja, não pode o paciente, em razão de
cláusula limitativa, ser impedido de receber tratamento
com o método mais moderno disponível no momento em
que instalada a doença coberta. 2. Recurso especial
conhecido e provido.1

A Agência Nacional de Saúde Suplementar - A N S, por meio da


Lei n° 9.656/1998 pormenorizou os deveres das operadoras de Planos De
Saúde quando do oferecimento de internação domiciliar:

Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência


dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1°. do art. 1°.
desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV

1 STJ - REsp: 668216 SP 2004/0099909-0, Relator: Ministro CARLOS ALBERTO


MENEZES DIREITO, Data de Julgamento: 15/03/2007, T3 - TERCEIRA TURMA,
Data de Publicação: D J 02.04.2007 p. 265. RNDJ v. 91 p. 85. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22800/recurso-especial-resp-668216-sp-
2004-0099909-0/inteiro-teor-100032114?ref=juris-tabs. Acesso em: 28 ago. 2020.

72
deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de
cobertura definidas no plano-referência de que trata o art.
10, segundo as seguintes exigências mínimas: (...) II -
quando incluir internação hospitalar: (...) c) cobertura de
despesas referentes a honorários médicos, serviços gerais
de enfermagem e alimentação; (...) d) cobertura de exames
complementares indispensáveis para o controle da
evolução da doença e elucidação diagnostica,
fornecimento de medicamentos, anestésicos, gases
medicinais, transfusões e sessões de quimioterapia e
radioterapia, conforme prescrição do médico assistente,
realizados ou ministrados durante o período de internação
hospitalar; e) cobertura de toda e qualquer taxa, incluindo
materiais utilizados, assim como da remoção do paciente,
comprovadamente necessária, para outro estabelecimento
hospitalar, dentro dos limites de abrangência geográfica
previstos no contrato, em território brasileiro; e (...) g)
cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e
domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos
para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de
procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à
continuidade da assistência prestada em âmbito de
internação hospitalar.2

A Resolução Normativa n° 349/2014 da A N S, reiterou o


entendimento da Lei acima mencionada, incluindo a internação
domiciliar em seu rol de procedimentos.3
Assim, o(a) paciente ou seu representante deve solicitar que o
médico prescreva a deficiência e todas as necessidades para o

2BRASIL. Lei n° 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de
assistência à saúde. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9656compila
do.htm. Acesso em: 28 ago. 2020.
3 BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Resolução
Normativa n° 349, de 9 de maio de 2014. Disponível em:
http://www.lex.com.br/legis_25508487_RESOLUCAO_NORMATIVA_N_349_DE_
9_DE_MAIO_DE_2014.aspx#:~:text=Altera%20a%20Resolu%C3%A7%C3%A3o%
20Normativa%20%2D%20RN,a%20Lei%20n%C2%BA%2012.880%2C%20de.
Acesso em: 28 ago. 2020.

73
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

atendimento domiciliar minuciosamente, as quais deverão ser


integralmente fornecidas pelo plano de saúde contratado.

3.3 Doenças Preexistentes

N ão há qualquer impedimento para que pessoas com deficiência


e com necessidade de atendimento domiciliar contratem um Plano de
Saúde já tendo conhecimento deste fato, pois, no momento da
contratação, o(a) consumidor(a) responde a um questionário
especificando as doenças ou deficiências que possui. Entretanto,
ressaltamos que é dever da operadora do Plano de Saúde realizar o
denominado “ check-up” no(a) interessado(a) e assim tomar
conhecimento de todas as doenças que possua e que supostamente não
estarão cobertas pelo plano contratado.
É plenamente possível, em caso de negativa na cobertura de
tratamento para determinada deficiência ou doença sob alegação de ser
preexistente, pleitear a “ inversão do ônus da prova” , conforme previsão
expressa do Código de D efesa do Consumidor, em seu artigo 6°, inciso
VIII, de modo que o Plano de Saúde comprove o prévio conhecimento
do(a) consumidor(a) de que estava acometido de doença ou incapacidade
preexistente.
Insta consignar que um Plano de Saúde jam ais pode se negar a
receber como consumidor(a) uma pessoa com doença ou deficiência
preexistente. Para estes casos, a A N S menciona a possibilidade de uma
cobertura parcial e temporária de doenças que efetivamente já existiam
antes da contratação do plano de saúde, e após cumprido o prazo de
carência, a cobertura passará a ser total na forma contratada.
Caso o(a) consumidor(a) opte pelo atendimento de doenças
preexistentes com cobertura total, poderá efetuar o pagamento do
denominado “ agravo” . Caracteriza-se por um valor adicional suportado

74
pelo(a) consumidor(a) e que lhe garante determinado tratamento, porque
na contratação já tinha conhecimento da deficiência4.
Assim, ao ser surpreendido com uma doença ou deficiência, o
consumidor que tiver interesse em contratar um plano de saúde não estará
descoberto, bem como não poderá ser impedido de realizar este contrato.

3.4 Direito do nascituro, do recém -nascido e d a crian ça com


deficiência

Em se tratando de nascituro é passível o entendimento que este


poderá utilizar da cobertura do Plano de Saúde de seus genitores, na
condição de dependente.
Já em relação ao recém-nascido(a), filho natural ou adotivo, os
genitores poderão optar pela contratação de um plano de saúde para a criança,
assim como solicitar a sua inclusão à cobertura assistencial de um plano
familiar já existente, conforme dispõe o artigo 12, inciso III, alíneas “ a” e “b”
da Lei n° 9.656/1998, estendendo este direito igualmente ao filho adotivo,
menor de doze anos de idade, conforme o inciso VII do artigo anteriormente
citado, que, conforme dito, não poderá sofrer nenhum gravame ou qualquer
outro diferencial, em razão da sua condição ou necessidade especial,
conforme preceitua a Lei n° 13.146/2015: “Art. 23. São vedadas todas as
formas de discriminação contra a pessoa com deficiência, inclusive por meio
de cobrança de valores diferenciados por planos e seguros privados de
saúde, em razão de sua condição.”
Inclusive, a jurisprudência é favorável não somente à internação
domiciliar, mas também ao fornecimento de medicação para crianças que
foram diagnosticadas até mesmo com doença rara:

4BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Carência: Quanto tempo é preciso


aguardar até poder ser atendido ao contratar um plano de saúde? Disponível em:
< https://www.ans.gov.br/index.php/component/content/article/48-perguntas-
frequentes/755-quanto-tempo-e-preciso-aguardar-ate-poder-ser-atendido-ao-contratar-
um-plano-de-saude>. Acesso em: 28 ago. 2020.

75
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Agravo de instrumento. Ação cominatória. Plano de saúde.


Tutela antecipada para impelir a operadora a custear tratamento
da espécie home care. Pleito indeferido à origem. Recurso da
parte autora. Home Care. Internação domiciliar. Medida não
excluída expressamente. Rol exemplificativo da ANS.
Possibilidade de a operadora delimitar doenças, mas não
tratamentos. Beneficiário. Criança acometida por distrofia
neuroaxonal infantil. Rara doença degenerativa com intenso
grau de comprometimento do desenvolvimento neurológico.
Perigo de dano demonstrado. Conclusão análoga pela
procuradoria-geral de justiça. Tutela concedida. "O rol de
procedimentos previstos nas Resoluções Normativas da ANS
não indica, de forma taxativa e exaustiva, os tratamentos que
devem ser cobertos pelos planos de saúde, mas, ao revés,
dispõe as coberturas mínimas que nele devem constar"5.

Ação de obrigação de fazer. Plano de saúde. Beneficiário de


1 (um) ano e 4 (quatro) meses de idade portador de atrofia
muscular espinhal, doença neurológica progressiva de
ocorrência rara e que causa fraqueza muscular. Negativa de
fornecimento de medicamento e de atendimento domiciliar.
Decisão interlocutória deferitória de tutela de urgência para
obrigar a operadora ré a fornecer a aludida medicação e os
referidos serviços em benefício do autor. Irresignação da
operadora. Tese de que o medicamento teria caráter
experimental ou que seu uso se daria "off label". Argumento
insustentável. Prescrição médica que indica o medicamento
como único específico para o autor. Bula com mesmo
indicativo, sem distinção quanto ao tipo, subtipo ou
características sintomáticas da doença. Ingerência da
operadora de saúde na atividade médica que tampouco se
mostra viável. Precedentes. Atendimento domiciliar. Frágil
estado de saúde do autor. Home care que se constitui em
desdobramento do tratamento hospitalar e autoriza a
relativização da cláusula excludente do contrato de prestação
de serviço. (...) - trechos suprimidos6.

5 TJ-SC - AI: 40016267920198240000 Itapoá 4001626-79.2019.8.24.0000, Relator:


Ricardo Fontes, Data de Julgamento: 14/05/2019, Quinta Câmara de Direito Civil.
Disponível em: <https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/709345135/agravo-de-
instrumento-ai-40016267920198240000-itapoa-4001626-7920198240000?ref=serp>.
Acesso em: 28 ago. 2020.
6 TJ-SC - AI: 40234297120188240900 Capital 4023429-71.2018.8.24.0900, Relator:
Maria do Rocio Luz Santa Ritta, Data de Julgamento: 21/05/2019, Terceira Câmara de

76
Amparado o direito pela Lei n° 9.656/1998, não prospera a
negativa do plano de saúde no atendimento da criança com deficiência que
necessite de internação domiciliar, mesmo em caso de recém-nascido.

3.5 M edidas ju d iciais p a ra g aran tia d a internação dom iciliar da


P essoa com Deficiência

Diante de prescrição médica, preliminarmente, a operadora do


Plano de Saúde deveria realizar visita técnica domiciliar para avaliação
dos equipamentos de suporte e/ou monitoramento a serem instalados na
residência e composição da equipe multiprofissional necessária para o
atendimento do(a) paciente. E ssa equipe, em regra, deve ser composta
por médicos especialistas, enfermeiros, técnicos de enfermagem,
auxiliares de enfermagem, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos ou
psiquiatras.
M as, é fato que, na prática, as operadoras apenas se manifestam
por meio de um ofício ou documento equivalente informando a negativa
do atendimento domiciliar, de modo a transferir aos familiares do(a)
paciente a responsabilidade do tratamento domiciliar.
A ação de obrigação de fazer, cumulada com pedido de tutela
de urgência em face da negativa de atendimento por parte da operadora
do Plano de Saúde, é o meio mais eficaz para garantia deste direito, sendo
que nesta ação se deve requerer a internação domiciliar e especificar
todas as outras necessidades do(a) paciente, permitindo ao juízo ir “ além
do papel” e enxergar a realidade daquela pessoa privada de seu direito a
ser melhor cuidado em sua casa.
Caso a pessoa com deficiência ou seu familiar entenda que a
internação médica domiciliar é a melhor opção, mas não consigamprescrição

Direito Civil. Disponível em: < https://tjsc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/711878378/


agravo-de-instrumento-ai-40234297120188240900-capital-4023429-
7120188240900?ref=serp>. Acesso em: 28 de ago. 2020.

77
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

médica neste sentido, é possível o ingresso de ação para produção antecipada


de provas, na qual se realizará perícia médica e avaliação psicossocial e então
se confirmará se a internação domiciliar é indicada.
Havendo decisão judicial favorável com indicação da
internação domiciliar, pode ser requerido ao Plano de Saúde o
cumprimento da obrigação de promover o cumprimento da obrigação.

3.5.1 C oncessão de T utela de U rgência

O pedido de tutela de urgência se justifica porque em geral são


necessidades que não podem aguardar o moroso andamento processual.
A jurisprudência se manifesta neste sentido:

Agravo interno no agravo de instrumento - decisão


monocrática do relator que desproveu o agravo de
instrumento - ação de obrigação de fazer - plano de saúde
- decisão que determinou o custeio de atendimento médico
domiciliar (home care), sob pena de multa - incidência do
código de defesa do consumidor - demonstração da
imprescindibilidade e urgência do tratamento - requisitos
do art. 300, do CPC, preenchidos - decisão monocrática
mantida - agravo interno desprovido. (...). 2. O dano
irreparável ou de difícil reparação é evidente, pois se trata
de possibilidade de prejuízo à saúde ou mesmo à vida do
autor, cuja moléstia que o assola impõe sérias dificuldades
a sua qualidade de vida, bem como a emergência restou
demonstrada, na medida em que se comprovou, por meio
dos relatórios médicos apresentados que o agravado é
portador de fibrose pulmonar idiopática, doença rara e sem
cura que demanda cuidados especiais e permanentes. 3.
Nas razões do agravo interno há simples repetição das
razões do recurso de agravo de instrumento, não havendo
fatos ou fundamentos novos suficientes para alterar a
decisão monocrática agravada7.

7 TJ-MT - AI: 10007151820188110000 MT, Relator: SEBASTIAO DE MORAES


FILHO, Data de Julgamento: 17/10/2018, Segunda Câmara de Direito Privado, Data
de Publicação: 26/10/2018. Disponível em: < https://tjmt.jusbrasil.com.br/jurisprudenc

78
Ipe-saúde. Atendimento de enfermagem domiciliar 24 horas.
Home care. Antecipação de tutela. A tutela antecipada pode
ser revogada ou modificada a qualquer tempo. Art. 273, § 4°,
do cpc. Não provada a alteração das circunstâncias de fato que
levaram ao deferimento, em parte, da tutela antecipada, é de
ser mantida a decisão que deixou de reapreciar o pedido.
Negado seguimento ao recurso8.

3.5.2 Perícia m édica ju d icial

Os documentos médicos apresentados pelas partes com a petição


inicial são suficientes para comprovar a necessidade de internação
domiciliar. Entretanto, o feito tramitará regularmente e poderá ser requerido
pelas partes ou, até mesmo, determinado pelo juízo a realização de perícia
médica para avaliar se a internação domiciliar é indicada.
Considerando a dificuldade de locomoção da maioria dos(as)
pacientes, é possível a realização da perícia “ in loco” , na qual o(a)
perito(a) judicial se desloca até a residência do(a) paciente ou ao local
em que ele(a) se encontre, promova a avaliação clínica e apresente, nos
autos, laudo completo a respeito do estado de saúde e todas as reais
necessidades para um atendimento médico domiciliar.

4 C O N C L U SÃ O

Todo o ordenamento jurídico se posiciona no sentido de


fornecer sempre o melhor tratamento médico às pessoas com deficiência.
Entretanto, ainda são necessárias medidas judiciais para a garantia desses
direitos, já que os Planos de Saúde ignoram as determinações e negam

ia/843218407/agravo-de-instrumento-ai-10007151820188110000-mt?ref=serp>.
Acesso em: 28 ago. 2020.
8TJ-RS - AI: 70064255441 RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Data de Julgamento:
08/04/2015, Vigésima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: Diário
da Justiça do dia 13/04/2015. Disponível em: <https://tjrs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18
0692359/agravo-de-instrumento-ai-70064255441-rs?ref=serp>. Acesso em 28 ago. 2020.

79
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

as providências para internação domiciliar, “ segurando” o(a) paciente


em internação hospitalar, ou, ainda pior, dando-lhe alta e entregando-o(a)
à própria sorte.
É fato que as necessidades decorrentes de uma internação
domiciliar são muito peculiares e dependem de análise de caso a caso,
não havendo possibilidade de uma regra geral para todos os
consumidores de Planos de Saúde.
Conforme vimos, a equipe multidisciplinar, deve ser composta
por auxiliares de enfermagem, técnicos de enfermagem, enfermeiros,
nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos ou psiquiatras e médicos
especialistas na patologia do(a) paciente.
Não menos importante, deve ser mantida a cobertura de todos
os exames, procedimentos médicos, transporte do(a) paciente,
medicamentos, insumos para curativos, nutrição parenteral, sondas,
oxigênio, fraldas, cadeiras de banho e cadeiras de rodas, cama hospitalar,
colchão hospitalar, colchão ortopédico e de incontáveis outras
necessidades que, conforme mencionamos, será prescrita quando da
análise médica e psicossocial.
Muitas famílias desistem após a primeira negativa dos Planos
de Saúde e, em situação de desespero, passam a arcar com todos os
custos financeiros e abalos psicológicos pela necessidade de
promoverem por si o atendimento multidisciplinar de seus familiares
com deficiência; ou acometidos de doenças raras, em situação de total
dependência do ponto de vista clínico.
Importante considerar que a internação domiciliar objetiva um
atendimento humanizado pois, uma pessoa com deficiência, que precisa
de assistência médica integral, não pode ser privada totalmente de
convívio social e ser obrigada a viver “ isolada” em uma unidade
hospitalar, simplesmente porque o Plano de Saúde opta em não fornecer
a internação domiciliar.
Havendo indicação de internação domiciliar, este tratamento
deve ser fornecido integralmente, sempre com vistas a cumprir não

80
somente a letra de lei, mas, principalmente, assegurar a concretização
dos direitos das pessoas com deficiência que necessitam de saúde e vida
digna, a serem garantidas pelo Plano de Saúde contratado.

R E F E R Ê N C IA S

B R A SIL . Agência Nacional de Saúde Suplementar. P arecer técnico n°


0 5 /G E A S/G G R A S /D IP R 0 /2 0 1 9 . Disponível em: < http://www.ans.go
v.br/images/stories/parecer_tecnico/uploads/parecer_tecnico/_parecer_
2019_05.pdf>. A cesso em: 28 ago. 2020.

B R A SIL . Agência Nacional de Saúde Suplementar. C arên cia: Q uanto


tem po é preciso a g u a rd a r até poder ser atendido ao con tratar um
plano de saú d e? Disponível em: <https://www.ans.gov.br/mdex.phpZc
omponent/content/article/48-perguntas-frequentes/755-quanto-tempo-e-
preciso-aguardar-ate-poder-ser-atendido-ao-contratar-um-plano-de-
saude>. A cesso em: 28 ago. 2020.

B R A SIL . Conselho Federal de Medicina. R esolução CFM n°


1.668/2003. Disponível em: < https://sistemas.cfm.org.br/normas/visuali
zar/resolucoes/BR/2003/1668>. A cesso em: 28 ago. 2020.

B R A SIL . C onstituição d a R epú blica F ed erativa do B rasil. Disponível


em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.ht
m>. A cesso em: 28 ago. 2020.

B R A SIL . Decreto n° 3.327, de 5 de jan eiro de 2000. Aprova o


Regulamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar - A N S, e dá
outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil
_03/decreto/D3327.htm>. A cesso em: 28 ago. 2020.

81
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

B R A SIL . L ei n° 9.656, de 3 de jun ho de 1998. Dispõe sobre os planos


e seguros privados de assistência à saúde. Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9656compilado.htm>.
A cesso em: 28 ago. 2020.

B R A SIL. L ei n° 13.146, de 6 de ju lh o de 2015. Institui a L ei Brasileira


de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at
o2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. A cesso em: 28 ago. 2020.

B R A SIL . Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar.


R esolução N orm ativa n° 349, de 9 de m aio de 2014. Disponível em:
< http://www.lex.com.br/legis_25508487_RESOLUCAO_NORM ATIV
A_N_349_DE_9_D E_M AIO _D E_2014.aspx#:~:text=A ltera% 20a% 20
Resolu% C3% A7% C3% A 3o% 20Norm ativa% 20% 2D% 20RN,a% 20Lei
% 20n% C2% BA% 2012.880% 2C% 20de> A cesso em: 28 ago. 2020.

GIVIGI, Rosana Carla do Nascimento. P esq u isa em saúde e educação:


atendim ento à pessoa com deficiência. Curitiba: Appris, 2019.

V A R ELLA , Drauzio; CESCH IN, Mauricio. A saú d e dos planos de


saú d e: os desafios d a assistên cia p riv ad a no B rasil. São Paulo:
Paralela, 2014.

82
7 A EXCEPCIONALIDADE DE AULAS ON-LINE PARA
CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊNCIA
DURANTE O ISOLAMENTO SOCIAL

M aria Christina dos Santos*


Vania Lucia Girardi*

1 IN T R O D U Ç Ã O

A pandemia causada pelo novo Coronavírus - COVID-19


levou muitos países, entre eles o Brasil, a aplicar, a partir do primeiro
trimestre de 2020, o isolamento social horizontal. O período que -
supunha-se - duraria uma quarentena, estendeu-se por meses. E sse
cenário, além de repercussões na área da saúde, tem gerado impactos de
ordem social, econômica, política e cultural. O confinamento físico
tornou essencial o uso de tecnologias digitais de informação e
comunicação (TIC) para as atividades laborativas, de lazer e
pedagógicas, inclusive de alunos do ensino fundamental, ou seja, do 1°
ao 9° ano, diante da decretação do fechamento das escolas.
A excepcionalidade do ensino remoto exigiu o planejamento e
implementação de aulas e atividades pedagógicas mediadas por
tecnologias - com peculiaridades de Educação a Distância (EaD ) - e a
educação especial está inserida nesse cenário.

* Mestre em Planejamento e Governança Pública. Especialista em Direito Educacional.


Especialista em Proteção Integral a Crianças e Adolescentes. Graduada em Serviço
Social e Direito. Advogada. Na Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR:
Membro Consultor - gestão 2019/2021 e 2016/2018; Presidente - gestão 2013/2015.
No Instituto de T ecnologia & Dignidade Humana: Advogada - 2015/2017; Conselheira
Fiscal - 2018/2022.
* Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Educação
Física. Especialista em Educação Especial. Especialista em Educação inclusiva.
Professora na Modalidade Educação Especial.

83
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Considerando-se que o sistema normativo brasileiro preceitua


que a escola regular deve dispor, quando necessário, de serviço de apoio
especializado adequado às peculiaridades do aluno de inclusão,
questiona-se como esse atendimento vem sendo previsto àqueles com
deficiência durante o período de suspensão das aulas e das atividades
pedagógicas presenciais.
Este ensaio tece breves considerações jurídicas a respeito da
criança e do adolescente com deficiência e o direito à educação, inclusive
no período de ministração de videoaulas. Discorre sucintamente acerca
de políticas emergenciais adotadas, tendo como foco os alunos com
deficiência matriculados no ensino fundamental, na modalidade de
educação especial, com o intuito de elucidar a dúvida suscitada acima.
Ao final, traz dados quantitativos no tocante ao segmento de alunos que
motivou a presente reflexão.

2 A C R IA N Ç A E O A D O L E S C E N T E C O M D E F IC IÊ N C IA E O
D IR E IT O À E D U C A Ç Ã O

N o ordenamento jurídico brasileiro crianças e adolescentes são


reconhecidos como sujeitos de direitos humanos fundamentais, pessoas
em peculiar estágio de desenvolvimento biopsicossocial e destinatários
de proteção especial. N essa parcela da população encontram-se aqueles
com deficiência, considerados especialmente vulneráveis, motivo pelo
qual devem ser protegidos de todas as formas de tratamento negligente,
discriminatório, violento, cruel, opressor, desumano, degradante,
segundo a Lei Brasileira de Inclusão (LB I) - Lei n° 13.146/2015.
Compete ao Estado o dever constitucional de garantir a todos o
direito à educação, inclusive mediante o atendimento educacional
especializado as pessoas com deficiência, de preferência na rede regular
de ensino. O Estatuto da Criança e do Adolescente (EC A ) - Lei n°
8.069/1990 - , por sua vez, traz disposições expressas relativas a
atendimento especializado à criança e ao adolescente com deficiência,

84
ao instituir normas sobre o direito à educação. A Lei de Diretrizes e
B ases da Educação (L D B ) - Lei n° 9.394/1996 - prevê que o direito à
educação seja efetivado aos alunos com deficiência, bem como aos que
apresentam transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação, inseridos na educação especial, incluídos em
classes comuns. Todavia, o aluno que, em função de suas condições
específicas, não possa ser integrado em classes comuns, deve receber
atendimento educacional em classes, escolas ou serviços especializados.
N o que tange à regulamentação do uso da rede mundial de
computadores, o Marco Civil da Internet - Lei n° 12.965/2014 - prevê o
reconhecimento do acesso ao ciberespaço como essencial ao exercício
da cidadania. Ainda, entre os direitos assegurados ressalta-se, aqui, a
acessibilidade, devendo-se considerar as características físico-motoras,
perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário.
Até recentemente, seria inimaginável ministrar aulas remotas
para alunos do 1° ao 9° ano. Todavia as circunstâncias obrigaram a sua
utilização para esse fim, como se verá na sequência.

3 A U LAS ON-LINE PARA O E N SIN O FU N D A M E N T A L


DURANTE A SIT U A Ç Ã O E M E R G E N C IA L DE SA Ú D E
P Ú B L IC A

N o ensino fundamental as aulas são presenciais, admitindo-se a


educação a distância somente nas hipóteses de complementação da
aprendizagem ou em situações emergenciais, como a vivenciada em
2020. Diante da necessidade de se adotar medidas urgentes de
enfrentamento à proliferação da COVID-19, em fevereiro foi
promulgada a Lei n° 13.979/20201 e dois meses depois, a Medida

1 Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de


importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

85
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

Provisória n° 934/20202. Esta, em agosto, foi convertida na Lei n°


14.040/2020 que estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo
durante o estado de calamidade pública. Foram, também, emitidos
decretos, pareceres e resoluções com o propósito de estipular diretrizes
e estatuir regime especial para as atividades escolares na forma de aulas
não presenciais enquanto durar a pandemia.
Cumpre observar que no dia 28 de abril de 2020, o Conselho
Nacional de Educação (CN E) aprovou diretrizes para orientar estados,
municípios e escolas quanto às práticas a serem adotadas, desde a etapa
de educação infantil até a superior. A s recomendações para a educação
especial são no sentido de que: a) as atividades pedagógicas não
presenciais incluam os alunos com deficiência, transtorno de espectro
autista e altas habilidades/superdotação; b) sejam empregadas medidas
de acessibilidade, organizadas e reguladas pelos estados e municípios; e
c) se tome cuidado com a mediação. Assim, deve ser assegurado o
atendimento educacional especializado com a parceria entre professores
e profissionais especialistas na adequação de materiais, orientações e
apoios a pais e responsáveis. E ainda:

Como a atenção é redobrada para cada aluno, os


profissionais do atendimento educacional especializado
devem dar suporte às escolas na elaboração de planos de
estudo individualizados, que levem em conta a situação de
cada estudante. As famílias são, sempre, parte importante
do processo. (MEC, 2020).

Tais atividades pedagógicas não presenciais poderão demandar


apoio, “ ajuda técnica” ou “tecnologia assistiva” . O termo Tecnologia
A ssistiva (TA), consignado na LB I, refere-se a “todo e qualquer recurso
que facilita ou amplia habilidades, podendo ser usadas tanto para

2 Estabelecia normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino


superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de
saúde pública, objeto da Lei n° 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

86
mobilidade quanto para acessar a informação” . Anteriormente o Comitê
de Ajudas técnicas (CAT) - instituído pela Portaria n. 142/2006,
estabelecido pelo Decreto n° 5.296/2004, no âmbito da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República -
conceituou TA como segue:

Área do conhecimento, de característica interdisciplinar,


que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias,
práticas e serviços que objetivam promover a
funcionalidade, relacionada à atividade e participação de
pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade
reduzida, visando sua autonomia, independência,
qualidade de vida e inclusão social (BRASIL, 2009, p. 13
apud CAT, 2007).

A TA é um direito dos estudantes com deficiência e o acesso


para aqueles que dela necessitam precisa ser garantido durante o
isolamento social. Somente desta forma suas necessidades e
especificidades poderão ser atendidas dentro da diversidade e
complexidade que engloba a educação especial.
Apresenta-se a seguir dados de âmbito nacional e estadual para
que se tenha uma visão panorâmica do universo de alunos em questão.

4 A L U N O S M A T R IC U L A D O S NA E D U C A Ç Ã O E S P E C IA L NO
B R A S IL E NO PA R A N Á

Os dados relativos à educação especial no território brasileiro e


paranaense, destacando-se os do ensino fundamental, têm como fontes
de pesquisa o Censo Escolar da Educação B ásica e o Resumo Técnico
do Censo Escolar de Educação B ásica do Estado do Paraná, ambos de
2019 - emitidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP) - , e o Plano Estadual dos Direitos
da Pessoa com Deficiência do Estado do Paraná: 2018 - 2021 (SA N TO S;
REZEN D E, 2017).

87
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

4.1 D ados relativos ao B rasil

F ig u ra 1: Tabela de matrículas da educação especial por etapa de ensino


- 2015-2019

ETAPA DE ENSINO

Total Educ. inf. Ens. fund. Ens. mcd. Prof. ( on /sut). EJA

2015 930.683 64.04 S 682.667 65.7S7 3.306 114.905


2016 971.372 69.784 709.805 75.059 2.899 113.825
2017 1.066.446 79.749 768.360 94.274 3.548 120.515

2018 1.181.276 91.394 837.993 116.287 5.313 130.289


2019 1.250.967 107.955 885.761 126.029 4.7S4 126.438

Fonte: Notas Estatísticas - Censo Escolar 2019 (INEP, p. 21).

Ao se traçar um paralelo entre matrículas na educação especial na


etapa de educação fundamental em 2015 e 2019, constata-se um aumento
de 23%, perfazendo o total de quase 886 mil matriculados. O Censo não
especifica, desse universo, quantos são os alunos com deficiência,
transtorno global do desenvolvimento, superdotação/altas habilidades ou
transtornos funcionais específicos, tais como dislexia, disortografia,
disgrafia, discalculia, transtorno de atenção e hiperatividade.

F ig u ra 2: Quadro do percentual de alunos de 4 a 17 anos da educação


especial em classes comuns por dependência administrativa-201 5 -2 0 1 9

2015 88.4% 95.8% 73.4% 96.1% 95,8% 41.0%

2016 89,5% 96.3% 79,6% 96.6% 95,2% 44.2%


2017 90,9% 96.8% 82,1% 97,4% 96,6% 47.6%
2018 92,1% 97,3% 86,7% 93.0% 97,1% 51.8%
2019 92,8% 97.6% 90,1% 98.3% 97,4% 56.7%

Fonte: Notas Estatísticas - Censo Escolar 2019 (INEP, p. 22).

88
Observa-se que especificamente no tocante aos alunos com
idades compreendidas entre quatro e dezessete anos, incluídos em
classes comuns, ocorreu o aumento de 88,4% em 2015 para 90,9% em
2017 e 92,8% em 2019.

4.2 D ados relativos ao P a ra n á

O Plano Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do


Estado do Paraná: 2018 - 2021 traz dados relativos à distribuição de
alunos da educação especial, matriculados no ensino regular,
especificando, inclusive, alguns tipos de deficiência.

F ig u ra 3: Distribuição dos alunos matriculados no ensino regular, por


tipo de necessidade especial3 - Paraná - 2016

Fonte: SA N TO S; REZEN D E, 2017, p. 66.

3 Manteve-se, aqui, a terminologia utilizada no documento original.

89
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

N o que concerne às deficiências, resta claro que a mental se


sobressai em relação às demais.
Segundo consta do Resumo Técnico do Estado do Paraná (INEP,
2020 a, p. 16; 38), em 2019 houve 2,6 milhões de matrículas na educação
básica, 100.262 das quais na educação especial, salientando-se que o maior
número está nas séries iniciais do ensino fundamental (37,7%).

F ig u ra 4: Percentual de alunos matriculados da educação especial em


classes comuns segundo a etapa de ensino - Paraná - 2015 - 2019
SâT8 \ » .0 * 99,3 * 9CL5H 99,3* 9 U * 99,1% 99,O *

2015 2016 2017 2018 2019

■ E d u c a ç io infantil I Ensino Fu n d a m e n ta l H Ensino M é d io E duc. p ro f c o n c o m ita n te /s ub s e qu e n te EJA

Fonte: Resum o Técnico do Estado do Paraná - Censo da Educação


B ásica 2019, p. 39.

O gráfico evidencia aumento no percentual de alunos que


compõem o público-alvo da educação especial, matriculados em classes
comuns no ensino fundamental, de 65,3% em 2015 para 70,4% em 2019,
no estado do Paraná.

5 C O N S ID E R A Ç Õ E S FIN A IS

O cenário de isolamento social trouxe inúmeros desafios às


escolas e, para a implementação das aulas on-line para a educação
especial, fez-se necessário a definição de diretrizes específicas, de modo

90
a garantir o direito a educação para essa população mais vulnerável.
N esse contexto, o ensino para estudantes com deficiência demandou uma
estrutura com adaptações, possibilidades de acesso e adequações
metodológicas, além da anteriormente oferecida no ambiente escolar.
A s aulas remotas, em que a tela está como interface do ensino e
aprendizagem, sem a interação presencial do professor, exigiram
empenho alteroso das equipes pedagógicas e a interação humana
mediada exclusivamente pelas fam ílias ou responsáveis. Estes, por sua
vez, desempenham papel de alta relevância tanto para que processo de
aprendizagem fosse eficaz - na medida do possível - quanto para
minimizar os riscos decorrentes da complexidade desta modalidade de
ensino, especialmente para alunos com deficiência física, motora,
sensorial e intelectual.
N ão obstante o fato de o ensino a distância ter sido a alternativa
possível para minimizar os efeitos do isolamento social na trajetória
escolar, não resta dúvida de que geraram prejuízos, que - sugere-se -
sejam objeto de estudos futuros.

R E F E R Ê N C IA S

B R A SIL . Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada


em 5 de outubro de 1988. In: V ade M ecum . 17. ed. rev. ampl. atual. São
Paulo: RT, 2020.

_________. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto


da Criança e do Adolescente e dá outras providências. In: V ade M ecum.
17. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: RT, 2020.

_________. SU B SE C R E T A R IA N A CIO N A L D E PROM OÇÃO DO S


D IREITO S DA P E SSO A COM D EFICIÊN CIA. COM ITÊ DE
A JU D A S TÉCN ICA S. Tecnologia A ssistiva. Brasília: CORDE, 2009.

91
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Fam ília d a P essoa com Deficiência

138 p. Disponível em: <http://www.galvaofilho.net/livro-tecnologia-


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superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de
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92
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93
8 O ACESSO À JUSTIÇA PELAS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA

Erelisa de Souza Vieira Bazan*

1 IN T R O D U Ç Ã O

O presente ensaio parte da importância dos princípios


fundamentais da cidadania e da dignidade da pessoa humana para tratar
do acesso à justiça pelas pessoas com deficiência, não restringindo este
acesso apenas ao direito de promover e contestar ações judiciais ao
provocar o Poder Judiciário, mas trazendo um conceito mais amplo de
justiça, o qual engloba o exercício dos direitos e deveres de todos os
indivíduos na sociedade, em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas. Assim, os conceitos de direito e justiça são brevemente
abordados a fim de demonstrar a importância da acessibilidade em todos
os aspectos da vida da pessoa com deficiência para que ela possa exercer
mais plenamente a sua cidadania.

2 CID A D A N IA E DIG NID AD E D A PESSOA H U M AN A

A Constituição Federal de 1988 dispõe que a cidadania e a


dignidade da pessoa humana são princípios fundamentais da República
Federativa do Brasil que, segundo estabelecido em seu artigo 4°, II, rege-se
em suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos
humanos. Logo, ambas são normas e, portanto, devem ser cumpridas.
Nesse sentido, a Convenção da Organização das Nações
Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007 e

* Advogada. Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da


OAB/OPR. Intérprete de Libras.

95
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

incorporados ao direito brasileiro em 25 de agosto de 2009, com status


de emenda constitucional por força do artigo 5°, § 3°, da Constituição
Federal, dispõe expressamente que a discriminação contra qualquer
pessoa, por motivo de deficiência, configura violação da dignidade e do
valor inerentes ao ser humano.
A pessoa com deficiência deve ser respeitadas e ter o direito de
exercer a sua cidadania em igualdade de condições com as demais. Logo,
o acesso à justiça por essas pessoas deve ser livre de qualquer barreira,
seja ela física, tecnológica, de comunicação, entre outras.

3 O D IR E IT O E A JUSTIÇA

Antes de adentrar no tema do presente artigo, faz-se necessário


diferenciar o conceito de direito e justiça.
É muito comum, quando se fala sobre o acesso à justiça, ocorrer
a associação ao ajuizamento ou contestação de uma ação, através do
sistema judicial, na busca por um direito. Porém o conceito de direito e
justiça são distintos.
O Direito é um conjunto de normas e regras a ser seguido, o
qual é imposto com a finalidade de regular as relações sociais.
A Justiça, por sua vez, é basicamente aquilo que é correto, o que
é justo. O conceito de justiça é amplo e está intimamente ligado à
igualdade entre os indivíduos, à segurança e à moral destes. A
Constituição Federal, em seu preâmbulo, anuncia que o Estado
Democrático de Direito é destinado a assegurar a justiça, que é um valor
supremo da sociedade.
Para Theodoro Júnior (2019), “a justiça é inerente à dignidade
humana e é condição indissociável da convivência civilizada [...] um sistema
aberto de valores em constante mutação [...] vincula-se com a verdade.”
Dessa forma, o acesso à justiça ultrapassa as fronteiras de atuação
do Poder Judiciário, pois embora o Direito busque a realização dajustiça, nem
tudo o que é legal é justo, bem como nem tudo que é justo é legal.

96
4 AS DIFICULDADES E A ACESSIBILID ADE NO ACESSO À
JUSTIÇA

De acordo com o artigo 5° da Constituição Federal, todos são


iguais perante a lei, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no Brasil, direitos individuais e coletivos, com o por exemplo,
o direito à vida, à saúde, à educação, ao trabalho, à segurança, ao
transporte, à assistência, ao voto, entre outros, que deverão ser
assegurados pelo Estado.
Nessa esteira, a Lei n° 13.146, de 06 de julho de 2015, a Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - LBI, diz que:

Art. 8° É dever do Estado, da sociedade e da família


assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação,
à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho,
à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao
transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao
turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos
avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao
respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária,
entre outros decorrentes da Constituição Federal, da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas
que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

Todavia, para esses direitos serem usufruídos por pessoas com


deficiência - , especialmente de natureza física e sensorial - , faz-se
necessária a adoção de medidas que promovam o efetivo acesso à justiça,
entre elas o fornecimento de informações, sejam em Braile ou em Libras,
com emprego de tecnologia assistiva ou em formatos de fácil leitura e
compreensão, que impliquem - inclusive - na redução dos seus custos,
de modo a facilitar o acesso.

97
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Todavia, infelizmente há pessoas com deficiência que não têm


facilidade no acesso à justiça, seja: a) por falta de capacidade econômica
decorrente da dificuldade de inserção no mercado de trabalho; b) por
falta de informação; c) pela falta de acessibilidade na comunicação; d)
por omissão de apoio familiar; e) por ignorância da família no que se
refere às necessidades e os direitos a que fazem jus. Estes e outros tantos
fatores dificultam que exerçam a cidadania.
Destaca-se que em 2008, o parágrafo 8 das Regras de Brasília
sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade1, que
incluiu em seu rol as pessoas com deficiência, já recomendava a existência
de acessibilidade, além de medidas conducentes à utilização dos serviços
judiciais e disposição de todos os recursos aptos a garantir a sua segurança,
mobilidade, comodidade, compreensão, privacidade e comunicação.
Espera-se que os órgãos que compõem o sistema de justiça
ofereçam acessibilidade nos seus respectivos espaços físicos - p. ex.,
prédios dos fóruns, dos núcleos da Defensoria Pública ou do Ministério
Público - facilitando não apenas a entrada com o a permanência nas suas
dependências, pois muitos não possuem estruturas adaptadas para
atender as pessoas com deficiência físico-motoras.
Mas não é só isso. Vencida a barreira física, é preciso transpor
a barreira atitudinal. A pessoa com deficiência deve ter a sua capacidade
legal reconhecida em igualdade de condições, pois o seu exercício é um
direito conferido pelo ordenamento jurídico brasileiro, destacando-se,
aqui, o artigo 12 da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre

1 As Regras de Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade foram


aprovadas pela X IV Conferência Judicial Ibero-americana, que teve lugar em Brasília
durante os dias 4 a 6 de Março de 2008. O seu texto foi elaborado, com o apoio do
Projecto Eurosocial Justiça, por um Grupo de Trabalho constituído no seio da
Conferência Judicial Ibero-americana, na qual também participaram a Associação
Ibero-americana de Ministérios Públicos (AIAMP), a Associação Inter americana de
Defensores Públicos (AIDEF), a Federação Ibero-americana de Ombudsman (FIO) e a
União Ibero-americana de Colégios e Agrupamentos de Advogados (UIBA).

98
os Direitos das Pessoas com Deficiência e os artigos 84 e 85 da LBI.
Mesmo na hipótese de necessitar de curatela, é oportuno destacar que
esta afeta unicamente os atos relacionados aos direitos de natureza
patrimonial e negocial, mas não o direito ao próprio corpo, à sexualidade,
ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
Devem receber todo o apoio necessário a fim de terem respeitados os
seus direitos, vontades e preferências.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências,
no seu artigo 13, determina que:

1.Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das


pessoas com deficiência à justiça, em igualdade de
condições com as demais pessoas, inclusive mediante a
provisão de adaptações processuais adequadas à idade, a
fim de facilitar o efetivo papel das pessoas com deficiência
como participantes diretos ou indiretos, inclusive como
testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais
como investigações e outras etapas preliminares. 2.A fim
de assegurar às pessoas com deficiência o efetivo acesso à
justiça, os Estados Partes promoverão a capacitação
apropriada daqueles que trabalham na área de
administração da justiça, inclusive a polícia e os
funcionários do sistema penitenciário.

Nesse diapasão, a LBI, em seu artigo 79, atribui ao Poder


Público o dever de assegurar o acesso da pessoa com deficiência à
justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas, garantindo,
sempre que requeridos, adaptações e recursos de tecnologia assistiva.
Pouco mais adiante, ainda em seu artigo 79, §1°, conferiu ao Poder
Público o dever capacitar os servidores do Poder Judiciário, do
Ministério Público, da Defensoria Pública, dos órgãos de segurança
pública e do sistema penitenciário sobre os direitos das pessoas com
deficiência para que elas tenham atuação em todo o processo e assim,
um efetivo acesso à justiça.

99
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Seguindo esse entendimento, Farias, Cunha e Pinto (2016, p.


216) apud Cruzes e Souza (2018, p. 46):

[...] o acesso à justiça garantido às pessoas com deficiência


deve estar associado ao princípio da dignidade da pessoa
humana, da qual se desdobra a garantia de inclusão social,
jurídica e judicial. Não se trata, portanto, apenas, de evitar
a discriminação [...] mas, por igual, criar mecanismos para
que tais seres humanos possam acessar, sem embaraços o
Poder Judiciário.

Ou seja, além da acessibilidade nos espaços físicos e do


reconhecimento da capacidade legal da pessoa com deficiência, esta deve
ter acesso a todas as etapas do processo, sem qualquer tipo de empecilho.
Para que essa plena participação ocorra, é necessário haver uma
adequada formação dos servidores e operadores do sistema judicial que
em seu trabalho cotidiano colaboram para o seu funcionamento e têm
contato com o cidadão com deficiência, o que pode exigir, por exemplo,
a comunicação em Línguas de Sinais.
Segundo o disposto no art. 3°, da Constituição Federal, o Brasil
tem com o objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalidade, a redução
das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos sem
preconceitos ou discriminações.
Promover e garantir que as pessoas com deficiência sejam
tratadas em igualdades de condições, tendo acesso à informação, ao
trabalho com um salário digno, à educação, à justiça, no seu conceito
completo, é um dos caminhos a seguir a fim de atingir os objetivos
fundamentais do nosso país.

100
5 CO N SID ER AÇ Õ E S FINAIS

Embora a legislação pátria discorra sobre a acessibilidade para


pessoas com deficiência, infelizmente, no Brasil esse assunto é mais
teórico do que prático, principalmente quando relacionado ao efetivo
acesso à justiça.
Como já exposto, quando se fala em justiça, esta não se limita à
esfera de atuação do Poder Judiciário, mas refere-se ao valor supremo de
uma sociedade, ao que é correto, verdadeiro, ao que está diretamente
ligado à dignidade da pessoa humana.
O efetivo acesso à justiça pelas pessoas com deficiência vai
desde a informação transmitida de forma simples e clara, de maneira que
elas consigam entender, independente da sua deficiência, até
modificações arquitetônicas em prédios públicos, por exemplo.
Atualmente não se pode afirmar que o Poder Público ofereça
acesso pleno à justiça a essas pessoas, pois inúmeros órgãos públicos que
integram o sistema de justiça, além não disporem de espaços preparados
para recebê-las, não contam com sistemas de tecnologia assistiva e de
profissionais capacitados aptos a atendê-las. Dessa forma, é significativo
o número das que ficam à margem da sociedade, com dificuldade de
acesso à informação e prejudicadas no que se refere à sua autonomia,
mantendo-se na dependência de terceiros.
Para mudar essa realidade, o primeiro passo implica em
preparar os servidores públicos do Poder Judiciário, Ministério Público,
Defensoria Pública, órgãos de segurança pública e do sistema
penitenciário, para estejam aptos a receber a pessoa com deficiência de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, prestando-lhe as
informações solicitadas ou orientações necessárias da melhor forma.
Embora à primeira vista pareça difícil, não é algo impossível de
se fazer. Além disso, este é um dos direitos das pessoas com deficiência

101
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

para que possam exercer a sua cidadania em igualdade de condições com


as demais pessoas.

REFERÊN CIAS

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DEFENSORAS E DEFENSORES


PÚBLICOS - ANADEP. Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça
das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade. Disponível em:
<https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-
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Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível
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York, em 30 de março de 2007. Organização das Nações Unidas - ONU.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
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Jurisdicional, Segundo o Direito Processual Civil Brasileiro. GEN
Jurídico. São Paulo, 2019. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2019
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processual-civil-brasileiro/#_ftnref4>. Acesso em: 02 out. 2020.

103
9 COMO FICOU O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO
CONTINUADA: BPC ap ós a Reform a P revidenciária e a
Lei n° 1 3 .9 8 2 /2 0 2 0

Cristhiane Kulibaba Ishi*


Valéria Mendes Siqueira*

1 IN T R O D U Ç Ã O

Apesar de o Benefício de Prestação Continuada (BPC) destinar-


se tanto ao idoso - com mais de 65 (sessenta e cinco) anos - quanto à
pessoa com deficiência (PcD) que comprove não possuir recurso para
prover a própria subsistência ou de tê-la provida por seus familiares, este
artigo terá com o foco exclusivo a PcD.
N o entanto, antes de saber com o ficou o BPC após a reforma
previdenciária e a publicação da Lei n° 13.982/20201, é necessário
identificar onde este benefício se insere no contexto da Seguridade
Social - composta pelo tripé Previdência Social, Saúde e Assistência

* Secretária-Geral/Diretoria da OAB/PR Subseção de São José dos Pinhais. Membro


consultora da Comissão de advogados representantes da Subseção de São José dos
Pinhais no foro Regional de Pinhais. Membro consultora na Comissão dos Direitos da
Pessoa com deficiência na Subseção de São José dos Pinhais. Membro da Comissão
dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/PR.
* Advogada. Coordenadora no Brasil para Disability and Rehabilitation Profissional
Association (2021 a 2025). Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com
Deficiência da OAB/PR, responsável pelo Centro de Inclusão e Apoio à Pessoa com
Deficiência da OAB/PR. Terapeuta Holística e Coach.
1 A Lei n° 13.982, de 02 de abril de 2020, altera a Lei n° 8.742, de 7 de dezembro de
1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de
vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada
(BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante
o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a
que se refere a Lei n° 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

105
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Social - e a lei que o regula, para então abordar seu objetivo, requisitos
e as recentes alterações para a sua concessão.

2 BPC: o que é?

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 194, caput,


define a Seguridade Social com o um “ conjunto integrado de ações de
iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os
direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” .
A Assistência Social - direito do cidadão e dever do Estado - ,
diferentemente da Previdência Social, é prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição, em respeito ao princípio da
solidariedade social.
Segundo Silva (1997), a Lei n° 7.070/1982, que dispõe sobre
pensão especial, mensal, vitalícia e intransferível aos - à época
denominados - “ portadores da deficiência física” conhecida como
Síndrome da Talidomida, foi a fonte de inspiração do artigo 203 da
Constituição Federal de 1988. Esse artigo prevê a garantia de um salário
mínimo mensal à pessoa PcD que não possa prover seu sustento e cuja
família também não tenha condições para tal, estabelecendo que esse
benefício viria a ser regulamentado.
Essa regulamentação se deu pela Lei n° 8.740/1993, conhecida
com o Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que passou a
disciplinar a Assistência Social, definindo-a com o política de Seguridade
Social não contributiva. Visa promover o mínimo necessário à
manutenção de uma vida digna, garantindo o suprimento das
necessidades básicas do ser humano.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), encontra-se no
bojo da LOAS e consiste na concessão de um salário mínimo mensal à
PcD, desde que comprovada a impossibilidade - dela própria ou de sua
família - para prover a sua subsistência. Não se pode deixar de
mencionar que nos termos da Lei, a família do(a) requerente é aquela

106
composta por seu cônjuge ou companheiro(a), pais e, na ausência de um
deles, madrasta ou padrasto, irmãos(as) solteiros(as), filhos(as) e
enteados(as) solteiros e os(as) menores tutelados(as), desde que vivam
sob o mesmo teto.
O primeiro fato relevante a se esclarecer é que, por se tratar de
um benefício social, ou seja, o(a) beneficiário(a) não é segurado(a) do
Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Por esse motivo, não faz
jus a décimo terceiro salário, contagem por tempo de contribuição e não
dá azo a que seu(s) dependente(s) requeira(m) pensão por morte.
Conforme a redação originária da LOAS, em 1993, para a
concessão do BPC, o(a) beneficiário deveria ser: a) pessoa “ portadora de
deficiência” , ou seja, incapacitada para a prática dos atos da vida diária - de
forma independente - e para o trabalho; b) integrante de família cuja renda
mensal per capita fosse inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
Essa exigência de incapacidade para a vida independente e para
o trabalho gerou a exclusão da PcD do mercado de trabalho, pois a
insegurança quanto à sua permanência no emprego formal, associado ao
receio de não mais preencher os requisitos para obter o BPC - na maioria
das vezes sua única fonte de renda - constitui-se em uma grande barreira
para a busca de sua capacitação profissional. Em decorrência, acentuou-
se em demasia, a visão preconceituosa de que a PcD é incapaz,
ineficiente e improdutiva.
Destaca-se que a definição de PcD, trazida pela LBI, em 2015,
foi inserida no texto da LOAS, em seu artigo 20, § 2°.
Apesar da alteração na LOAS, decorrente da inclusão trazida
pela Lei n° 12.470/2011, no artigo 21-A e seus parágrafos, que permite
à PcD transitar entre receber o BPC, se necessário, e estar inserido no
mercado de trabalho, ainda hoje o maior problema consiste na
insegurança e falta/insuficiência de informação sobre os critérios de
concessão, suspensão e retomada desse benefício.
Sobre esta alteração, Gurgel (2011) afirma que com a nova
previsão da Lei n° 12.470/2011 é permitido o trânsito da PcD da assistência

107
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

social para o trabalho, e vice-versa. No momento em que o(a)


beneficiário(a) assinar um contrato de trabalho, ou tiver uma atividade
empreendedora, autônoma ou cooperativada, será suspenso o BPC.
Todavia, poderá voltar recebê-lo, mediante simples requerimento ao
Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), desde que atenda aos
requisitos constitucionais, expostos anteriormente, quais sejam: falta de
meios para manter a própria subsistência ou tê-la provida pela família, cuja
renda per capita seja igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
Este retorno pode ocorrer a qualquer tempo. Todavia, para ser
dispensado da perícia multiprofissional, o período não deve ultrapassar 2
(dois) anos, prazo estabelecido legalmente para a reavaliação das condições
que deram origem ao BPC. Contudo, o trabalhador PcD que esteja
usufruindo o seguro-desemprego só poderá retomar o benefício assistencial
após o término do recebimento das parcelas do benefício previdenciário.

3 Q U EM TE M D IR E IT O A O BPC?

Conforme referido acima, esse benefício não se destina a todas


as PcD, mas, tão somente àquelas que se enquadrem nos requisitos legais
impostos na LOAS. Ou seja, hoje o PcD não pode ultrapassar a renda per
capita familiar igual ou inferior a H (um quarto) do salário mínimo
vigente à época do requerimento, e deve ser considerada PcD nos termos
da lei. Ainda, a deficiência deve ser de longa duração, ou seja, que
perdure há mais de 2 (dois) anos.
Frise-se que a concessão deste benefício não está vinculada a
qualquer contribuição previdenciária ou a fatores com o idade quando se
trata da PcD, sendo este último um fator relevante de distinção dos
requisitos de concessão do BPC aplicado aos idosos.
Importante ressaltar que, no cômputo da renda per capita da
família do(a) requerente, sogro(a), cunhado(a), netos(as), tios(as),
sobrinhos(as), filhos(as) e irmãos(ãs) casados, e avós, ainda que vivam
sob o mesmo teto do idoso/PcD, não são considerados “ família” , para

108
efeito de obtenção do BPC. Assim, os rendimentos dessas pessoas não
integram o orçamento familiar para efeito de apuração da renda per
capita. (HERMES, 2019).
A concessão do BPC está sujeita, inclusive, à avaliação social.
Após estudo social e visita domiciliar, em regra, realizados por
profissionais dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).
O resultado da avaliação e os demais documentos exigidos são
encaminhados ao INSS, para que, então, o pedido seja ou não deferido.
Caso não haja CRAS no município de residência do(a)
requerente, este(a) deverá ser encaminhado ao município mais próximo
que conte com tal estrutura. E conforme determina a LOAS, o(a)
beneficiário(a) passará por uma revisão a cada 2 (dois anos), a fim de
verificar se existem fatores que podem cessar o benefício, com o o fato
do PcD iniciar em um emprego, e o aumento na renda per capita familiar.
Além disso, estar cadastrado no Cadastro Ú nico para
Programas Sociais do Governo Federal (C A D Ú nico) - instrumento
que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda - , é condição
para ter o benefício deferido.
Todavia, em caso de indeferimento do pedido, o(a) cidadão(ã)
pode, por meio de um processo judicial, comprovar sua miserabilidade,
já que essa condição é relativa, e juntar provas necessárias, ainda que a
renda per capita seja maior do que a estabelecida legalmente.
É possível que o pleito judicial seja realizado pelo(a)
interessado(a) desde que o pedido administrativo tenha sido negado pelo
INSS, ou seja, a negativa na esfera administrativa é condição para
ingressar com a demanda judicial.
O Poder Judiciário tem entendido que a renda não pode ser o
único critério para decidir o direito ao benefício, pois o estado de pobreza
é questão controversa, e existe ampla jurisprudência neste sentido.
Importante mencionar que, para requerer o BPC, a pessoa
interessada deve se dirigir à agência do INSS ou realizar seu pedido, de

109
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

forma online, por meio do site: <https://meu.inss.gov.br/central/#/login?re


directUrl=/>.

4 C O M O FICO U A CO N CESSÃO DO BPC A PÓ S A R E F O R M A


PR E V ID E N C IÁ R IA E A LE I N° 13.982/2020

A reforma da previdência trouxe, em seu projeto, considerações


a respeito do BPC, porém, tal possibilidade foi retirada da proposta da
Emenda 103/2019, e dessa forma os artigos da LOAS permaneceram
inalterados.
Contudo, entre idas e vindas legislativas ocorridas neste ano de
2020, foi aprovada a Lei n° 13.982/2020, publicada em 02 de abril de
2020, que alterou a Lei n° 8.742/1993, para dispor sobre parâmetros
adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para
fins de elegibilidade ao BPC.
As modificações relativas à concessão do BPC trazidas pela Lei
13.982/2020 são:

Até 31/12/2020 a renda per capta pode ser igual ou inferior


a V do salário-mínimo (LOAS art. 20, § 3°, I). Assim, a
partir da publicação desta lei o requisito que exigia que a
renda per capta deveria ser inferior a V do salário mínimo-
passou a permitir que o critério de renda per capita seja
igual a esta fração de V, fixando, no entanto, esta fração
até a data de 31/12/2021.

Resta-nos saber qual critério de renda per capita será utilizado


após esta data limite.
Seguem observações relativas às alterações decorrentes da Lei
n° 13.982/2020:

■ O BPC ou o benefício assistencial no valor de até um salário-


mínimo, concedido à PcD, não será computado para fins de
concessão do BPC a outro idoso ou PcD da mesma família,

110
no cálculo da renda per capita (LOAS artigo 20, § 14). Esta
alteração acrescenta, além do BPC, todos os outros
benefícios previdenciários na renda do grupo familiar, que
não serão computadas para verificar a renda per capita do
requerente do BPC.
■ O BPC será devido a mais de um membro da mesma família
enquanto atendidos os requisitos exigidos na LOAS (artigo
20, § 15). Esta alteração é significativa, pois, anteriormente
não era possível haver duas PcD amparadas pelo BPC
residindo no mesmo domicílio.
■ Possibilita o aumento da renda per capita de H para V
salário-mínimo, durante o período da pandemia do COVID-
19, que ocorrerá através de escalas graduais. Essas escalas
observarão, cumulativamente ou isoladamente, fatores
como: a) grau da deficiência; b) dependência de terceira
pessoa na prática de atos da vida diária; c) circunstâncias
pessoais e ambientais; d) fatores socioeconômicos e
familiares e; e) comprometimento do grupo familiar com
gastos no tratamento de saúde, remédios não
disponibilizados pelo SUS, médicos, fraldas e alimentos
especiais etc., desde que comprovadamente necessários à
preservação da saúde e da vida (LOAS artigo 20-A).
■ Autoriza a antecipação do BPC aos requerentes previstos no
artigo 20 da LOAS, no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais),
por 3 (três) meses, ou até a aplicação, pelo INSS, do
instrumento de avaliação da PcD, ou o que ocorrer primeiro,
em decorrência do estado de calamidade pública originado
pela pandemia do COVID-19 (artigo 3°).
■ Reconhecido o direito da PcD ao BPC, seu valor será devido
a partir da data do requerimento, deduzindo-se os
pagamentos antecipados em decorrência da pandemia do
COVID-19 (artigo 3°, Parágrafo único).

111
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Ainda, a partir do requerimento do BPC, o INSS antecipará o


benefício ao(à) requerente por 3 (três) meses ou até que a perícia ateste
a existência ou não da deficiência e reconheça o direito ao benefício.
Uma vez reconhecido, o INSS pagará ao(à) beneficiário(a) a importância
de um salário-mínimo, acrescido da diferença resultante do pagamento a
menor no período de antecipação dos R$600,00 (seiscentos reais). No
caso da constatação pelo INSS de que o(a) requerente não preenche os
requisitos ao BPC, o valor antecipado não será devolvido por quem se
beneficiou desta antecipação.
Acrescido a isso, o Ministério da Cidadania publicou, no dia 05
de maio de 2020, a Portaria Conjunta n° 3, que estabelece que o Auxílio
Emergencial (“ Corona Voucher” ) e a antecipação de que tratam os
artigos 2° e 3° da Lei n° 13.982/2020, não serão computados para a
composição da renda mensal bruta familiar.
Por fim, quanto às alterações decorrentes da Lei n° 13.982/2020,
a Portaria n° 374 do Ministério da Cidadania, publicado dia 05 de maio
de 2020, estabelece que as alterações oriundas da referida Lei, passam a
viger a partir da data de sua publicação. Deve-se, portanto, observar a
data de entrada do requerimento do BPC.
Vale lembrar, no entanto, que para os benefícios requeridos
antes desta data - 02 de abril de 2020 - , esta Portaria permite que para
os processos pendentes de análise, a data da entrada do benefício possa
ser reafirmada. Ou seja, os benefícios que não tiveram decisão de
concessão ou negação antes de 02 de abril de 2020, a DER seria
considerada a partir desta data, permitindo, entre outras coisas, que a
renda per capita do(a) requerente possa ser igual a H (um quarto) do
salário-mínimo vigente.

112
5 CO N SID ER AÇ Õ E S FINAIS

A LOAS determina basicamente quem tem direito ao BPC, no


valor de um salário mínimo, desde que respeitado os requisitos
constitucionais para a sua concessão, quais sejam: (a) o(a) requerente ser
PcD nos termos da lei; c) não ter condições de prover o seu sustento ou
de tê-lo suprido por sua família e; c) possuir renda mensal familiar per
capita igual ou inferior a H (um quarto) do salário mínimo.
Nos casos, porém, em que houver indeferimento do BPC
requerido administrativamente, o interessado pode entrar com novo pedido,
perante o Poder Judiciário, respeitando-se as condições para isso, já que se
vislumbra uma flexibilização para os critérios utilizados pelo INSS.
Uma nova consideração é a necessidade de o(a) requerente ser
cadastrado no CAD Único, com o condição para receber o benefício.
Conforme demonstrado, a Lei n° 13.982/2020 trouxe alterações
significativas à forma de concessão do BPC, que amplia o número de
pessoas aptas a requerê-lo.
Entre elas, destacam-se as seguintes:

• Benefícios previdenciários de até um salário-mínimo não


serão computados no cálculo da renda per capita para a
concessão do BPC;
• O BPC poderá ser concedido para mais de um membro da
família residente sob o mesmo teto;
• O BPC poderá ser antecipado por até 3 (três) meses no
mesmo valor do auxílio emergencial do Governo Federal
para o enfrentamento da pandemia do COVID-19.

Resta saber com o ficará o critério da renda per capita após 31


de dezembro de 2020. A dúvida consiste em saber se a partir de 1° de
janeiro de 2021 prevalecerá a renda per capita de ^ (meio) salário

113
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

mínimo, possibilidade prevista provisoriamente durante o período da


pandemia do COVID-19, com a inclusão na LOAS do artigo 20 -A , ou
se será mantido o critério da renda igual ou inferior ao 1/4 (um quarto)
do salário mínimo.
Diante disso, espera-se que a análise seja feita de acordo com a
legalidade, mas também com a realidade daquele cidadão, que muitas
vezes dependerá apenas daquele benefício para sobreviver dignamente.

REFERÊN CIAS

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_________ . Lei n° 8.742. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/c


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_________ . Lei n° 13.982. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/c


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114
CARNEIRO, Bruno. Lei n. 13.982/2020: os 7 destaques que merecem a
sua atenção especial. Disponível em: https://www.desmistificando.com.
br/lei-13982-2020-destaques/. Acesso em: 1 out. 2020.

GURGEL, Maria Aparecida. Benefício da Prestação Continuada:


Mudanças da Lei n° 12.470, de 31 de agosto de 2011. Associação de
Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência de Funcionário do Bancos do
Brasil e da Comunidade. Disponível em: <http://www.apabb.org.br/arti
gos/visualizar/Beneficio-da-Prestaco-Continuada-mudancas-da-Lei-no-
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_________ . O Benefício da Prestação Continuada Frente à


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115
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

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Ano 1. São Paulo: Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, 1997.

STRAZZI, ALESSANDRA. Benefício Assistencial de Prestação


Continuada ou “ LO AS” . Disponível em: https://alessandrastrazzi.adv.b
r/direito-previdenciario/loas-beneficio-assistencial-prestacao-
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_________ . Novas Regras do BPC: o que você precisa saber em 2020.


Disponível em: https://www.desmistificando.com.br/novas-regras-bpc/.
Acesso em: 17 set. 2020.

116
1 0 "PROCURO UMA MULHER": r e fle x õ e s so b re
v io lê n c ia con tra m u lh eres com d eficiên cia a partir
do film e "Maudie"

Fatine Conceição Oliveira*


Laureane Marília de Lima Costa*
Mariana Rosa*

1 IN T R O D U Ç Ã O

Em 2020, a plataforma de streaming Netflix disponibilizou em


seu catálogo um filme biográfico da pintora canadense Maudie Lewis
chamado, “ Maudie: Sua Vida e Sua Arte” . O longa retrata diversos
momentos importantes da trajetória da artista, desde situações violentas
alimentadas pelo preconceito face a sua deficiência física, muitas delas
provocadas pelo marido Everett Lewis, com o também a evolução de sua
arte e carreira. Neste capítulo, propomos algumas reflexões sobre o
filme, a partir de uma análise interseccional que visa a compreender o
imbricamento das experiências de deficiência e gênero com o um dos
fatores que evidenciam as vulnerabilidades de mulheres com deficiência.
Cabe ressaltar que o período de exposição deste filme na
referida plataforma, ocorreu durante o isolamento social provocado pela
pandemia da COVID-19. Tal cenário fez emergir sentimentos de medo,
solidão, depressão e ansiedade em grande parte da população. Além da

* Mestranda em Comunicação Social no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de


Filosofia e Ciências Humanas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
integrante do grupo de pesquisa Afetos: Grupo de Pesquisa em Comunicação,
Acessibilidade e Vulnerabilidades.
* Psicóloga clínica, consultora em Saúde e Educação Sexual, mestranda em Educação
pela Universidade Federal de Jataí (UFJ), integrante do Núcleo de Estudos, Pesquisas
e Formação em Educação Sexual da UFJ e do Núcleo de Estudos sobre Deficiência da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
* Jornalista e consultora em Educação Inclusiva.

117
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

sobrecarga da saúde pública, devido ao alto índice de contágio pelo vírus,


houve um aumento significativo nos números de violência doméstica
contra mulheres. Para as autoras, mulheres com deficiência, (duas com
deficiência física e uma com deficiência visual) o contato com o longa-
metragem neste momento impulsionou o interesse de apresentar, por
meio de fragmentos da história, as diversas faces da violência sofridas
por mulheres com deficiência.
Ainda no início do filme, Maudie está em um estabelecimento
comercial, ambiente semelhante a uma mercearia, e percebe que um
homem deixa um anúncio no mural, à procura de uma mulher para
assumir os trabalhos domésticos em sua casa. Ela, então, percorre longa
distância a pé até a casa daquele senhor tão necessitado dos préstimos de
uma mulher. Com corpo diminuto, postura invariavelmente cabisbaixa e
um andar claudicante, ao chegar ao local indicado no anúncio, apresenta-
se e mostra-se interessada no trabalho. O homem a olha desconfiado e
reforça: “ procuro uma mulher” . A afirmativa, pronunciada em tom
ríspido, por um corpo masculino, forte e vultuoso evidencia a assimetria
de poder entre ambos, explicitando os estereótipos de gênero e da
deficiência com o as bases da relação que ali se iniciaria.
“Procuro uma mulher” funciona como uma antítese ao que se
pressupõe do corpo de Maudie, o qual é tido como defeituoso, incapaz de
cuidar de si, do outro e de servir ao homem, numa época em que as estruturas
do patriarcado permaneciam pouco questionadas. Segundo Heleieth Saffioti
(2004), o patriarcado "é o regime da dominação-exploração das mulheres
pelos homens" (p. 44) legitimado pela transformação da diferença sexual em
desigualdade política, a qual impregna tanto a sociedade civil quanto o
Estado, conferindo direitos irrestritos aos homens sobre as mulheres
(SAFFIOTI, 2004, p. 44, 54, 55, 57).
A história se passa por volta do final dos anos 1930, quando a
deficiência ainda era definida por um modelo médico, ou seja, os corpos
eram submetidos a avaliações biológicas, que definiriam se deveriam, ou
não sofrer intervenções médicas, como procedimentos de cura ou

118
internações (SIEBERS, 2011, p.25). A partir das contribuições do modelo
social da deficiência, proposto inicialmente por homens com deficiência,
nos anos 1970, a desigualdade à qual as pessoas com deficiência estão
submetidas deixa de ser compreendida com o consequência do
impedimento corporal (lesão), mas sim um produto da relação entre este
corpo com uma sociedade incapaz de atender à diversidade física,
sensorial e intelectual das pessoas. A desigualdade deixa de ser fruto de
imposições genéticas (fenômeno biomédico) e passa a ser uma questão de
injustiça social (fenômeno sociológico) (DINIZ, 2003; 2007).
Por sua vez, nos anos 1990, teóricas feministas - mulheres com
deficiência e mulheres cuidadoras de pessoas com deficiência -
revigoram a tese social da deficiência, ao acrescentar à discussão, os
conceitos de interdependência e cuidado. Defendiam o conceito de
“ corpos temporariamente não-deficientes” , ao invés da dicotomia
deficiente X não-deficiente, ampliando o conceito de deficiência para o
envelhecimento e/ou doenças crônicas e argumentando que a
dependência e a interdependência são inerentes à condição humana.
Assim sendo, afirma-se que a política pública do cuidado promoverá
justiça no campo da deficiência e amenizará a vulnerabilidade de muitas
pessoas com deficiência, uma vez que se observam relações de extrema
desigualdade de poder, com o é o caso das pessoas com deficiência com
alto nível de impedimento corporal (DINIZ, 2003; 2007).
Maudie morava com a tia, após a morte de sua mãe, uma vez
que o irmão vendeu a casa onde vivia. Nesta sequência do filme, observa-
se que a relação familiar é construída com sucessivas agressões
psicológicas realizadas pela tia, o que inclui a negação do direito à
maternidade com o uma expressão da violência a que estava submetida.
Constantemente desacreditada naquele ambiente, ela se mantém
persistente na tentativa de obter um trabalho, mesmo diante do desprezo
do homem, já que considerava aquela oportunidade uma saída possível
à sua condição de vida. Junto a nós, espectadoras da história, instala-se
a percepção de que a escolha que se apresenta à personagem não

119
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

constituiu uma chance de interrupção das experiências de violência


vividas em casa, mas, ao contrário, a sua continuidade, com o se esse
fosse o único destino possível a uma mulher com deficiência.

2 D E SEN V O LVIM E N TO

De acordo com o Fundo de Populações das Nações Unidas


(MSH; UNFPA, 2016), pessoas com deficiência compõem 15% da
população mundial. Entretanto, se realizarmos recorte de gênero,
considerando-se apenas a população feminina mundial, este número sobe
para 19,2%. Por sua vez, no Brasil 23,9% da população têm deficiência,
percentual que sofre alteração de acordo com o marcador gênero
(26,5%), ou seja, uma, em cada quatro brasileiras, tem deficiência,
segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2010). Tais dados podem indicar um processo de
feminização da deficiência; ou seja; a deficiência é um fenômeno mais
frequente entre mulheres que entre homens.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(BRASIL, 2008) admite que meninas e mulheres com deficiência
estão sujeitas a múltiplas formas de discriminação, reconhece seus
direitos sexuais e reprodutivos e responsabiliza os Estados Partes pela
adoção de medidas que assegurem seu pleno desenvolvimento e
empoderamento, garantindo-lhes o exercício e o gozo dos direitos
humanos e liberdades fundamentais.
A despeito disso, meninas e mulheres com deficiência estão
mais vulneráveis a sofrerem violação de direitos, sobretudo, dos direitos
sexuais e reprodutivos (MSH; UNFPA, 2016).
Maudie é recusada para o trabalho doméstico em um primeiro
momento, pois é considerada inapta para cuidar da casa, da limpeza, da
comida, ainda que viesse a se submeter a uma condição análoga à
escrava, posto que o contrato entre o homem e ela pressupunha trabalho
doméstico em troca de moradia e valor módico por semana. Pouco

120
depois, o homem reconsidera a possibilidade, e vai até a casa onde
morava Maudie para buscá-la, percurso que ela faz na carroceria do
carro, juntamente com as bagagens. O homem havia, enfim, buscado as
coisas de que precisava para ter sua casa bem cuidada. A existência de
Maudie é objetificada sem constrangimentos e de modo cada vez mais
intenso, seja na explicitação da hierarquia do cuidado - primeiro o
homem, depois os cachorros, depois as galinhas, depois a mulher com
deficiência - , seja nas violências verbal e física a que é submetida.
Pessoas com deficiência têm três vezes mais probabilidade de
experienciar violência física, emocional ou sexual do que seus pares sem
deficiência, enquanto mulheres com deficiência têm 10 vezes mais chances
de experienciar violência sexual, além de aborto forçado ou, antes dessa
violação, esterilização compulsória (MSH; UNFPA, 2016). No Brasil, o
Atlas da Violência, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA, 2018), aponta que, das pessoas com deficiência que
sofreram violência sexual, 73,7% foram violentadas mais de uma vez,
podendo indicar que a violência é praticada por pessoas próximas.
Além da maior vulnerabilidade das mulheres com deficiência à
violação dos direitos sexuais e reprodutivos, elas também tendem a
permanecer em relacionamentos afetivo-sexuais marcados por violência
por mais tempo do que homens com deficiência e do que mulheres sem
deficiência (SMITH, 2008).
A presença de Maudie invoca o abandono, o descrédito, a
abjeção e o desprezo com o bases razoáveis das relações a serem
estabelecidas com uma mulher com deficiência naquela época. De
acordo com o relatório sobre violência contra mulheres com deficiência
da Rede Internacional de Mulheres com Deficiência (RIMCD, 2011), o
aumento da vulnerabilidade desse grupo deriva da complexa rede de
discriminações que perpassam o gênero (sexismo) e a deficiência
(capacitismo). O sexismo refere-se à inflexível divisão de papéis sociais
de gênero, estabelecendo que comportamentos relacionados à esfera
pública são apropriados para os homens, enquanto comportamentos

121
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

relacionados à esfera privada são apropriados para as mulheres, produz-


se, assim, supremacia do homem sobre a mulher (SOUZA, 2016).
Outro tipo de hierarquização das pessoas se dá a partir do
capacitismo, o qual se baseia na pressuposição e generalização da
incapacidade de ser e de fazer das pessoas com deficiência,
negligenciando o fato de que as pessoas com deficiência podem
desenvolver habilidades não relacionadas à sua incapacidade biológica,
tanto quanto pessoas sem deficiência (MELLO, 2014).
Gênero e deficiência se interseccionam nas categorias
corporeidade, trabalho, maternidade e violência, conforme foi revelado
por pesquisa qualitativa realizada por Gesser, Nuernberg e Toneli (2013)
com mulheres com deficiência física residentes no Brasil. A
compreensão do corpo com deficiência com o desviante dos padrões
valorizados socialmente acarreta vergonha e dificuldade de aceitação do
próprio corpo.
Além disso, o estudo supracitado revelou um sentimento de
frustração nas participantes ao relatarem suas dificuldades tanto em
realizar determinadas tarefas domésticas, quanto o exercício do cuidado
para com os filhos e familiares, atividades consideradas responsabilidade
exclusivamente feminina. Esse sofrimento emocional demonstra com o a
subjetividade das participantes da pesquisa foi afetada pelo desejo de
corresponderem a estes papéis de donas de casa e cuidadoras,
favorecendo a naturalização da violência conjugal e familiar, ainda que
haja cerceamento dos direitos sexuais.
Não há humano sem o cuidado, sem o funcionamento das teias
de interdependência que sustentam a vida. N o entanto, Maudie parece
ser dona de um corpo sistematicamente espoliado de qualquer ideia ou
política de cuidado, de qualquer direito. A composição da personagem,
no filme, parece querer estabelecer os contornos de um corpo que coloca
sob questão, ao mesmo tempo, os conceitos de mulher, de normalidade
e de capacidade. Um corpo que desafia padrões por sua indesejável

122
existência no mundo, o que justificaria sua persistente experiência de
desalento nas relações humanas.
Maudie tem a cabeça, invariavelmente, voltada para o chão, o
que talvez se explique não só pela artrite reumatoide de que a
acompanha, mas também pela ideia de que sua presença só seria tolerada
a partir de uma condição de subalternidade. A o se dirigir a seus
interlocutores, nota-se o movimento dos olhos de Maudie de baixo para
cima, com o gesto que confere ao outro o suposto conforto de se saber
em uma posição superior àquela mulher defeituosa. Erguer os olhos e a
cabeça para alcançar o outro é gesto que marca a inexorável exigência
da submissão de seu corpo às estruturas de poder vigentes.
O contexto social, ao combinar sexismo e capacitismo, produz
desvalorização das mulheres com deficiência, as quais passam a se sentir
inadequadas com o parceiras íntimas, baixam os critérios que esperam
encontrar em um companheiro (a) e estabelecem e/ou mantêm-se em
relacionamentos afetivo-sexuais abusivos, conforme foi encontrado em
entrevistas realizadas por Hassouneh-Phillips (2005), com 37 mulheres
com deficiência física residentes nos Estados Unidos, sendo a maioria
heterossexual. Esse estudo revelou que, além do contexto social de
desvalorização, as mulheres entrevistadas que tiveram relacionamentos
ruins com os pais e/ou foram vítimas de violência na infância estavam
mais propensas a permanecer em relacionamentos íntimos de alto risco.
De que modo se constrói a subjetividade de uma pessoa que tem
sua experiência de vida permanentemente influenciada pelo desprezo e pela
violência? Como a perspectiva do tempo se insere no projeto de vida de
quem conhece o desamparo e o desamor desde a infância? Estas são
perguntas que o filme nos provoca, enlaçado com a realidade das mulheres
com deficiência, sem intenção de oferecer respostas ou conclusões.
Na obra “ O corpo rejeitado” , Susan Wendell (1996), sustenta que
ter algum tipo de imperfeição provoca diversos tipos de opressões
alimentados por enunciados que valorizam determinados tipos de aparência
em nossa sociedade. O corpo diferente da personagem é submetido ao

123
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

abandono e ao desprezo, apesar de manter sua subjetividade ancorada na


possibilidade de recriar o mundo a partir da pintura.

É mais provável que se pense que a ‘ imperfeição’ física


‘ estraga’ uma mulher do que um homem, ao torná-la pouco
atraente em uma cultura onde sua aparência física é um
grande componente do valor da mulher; ter uma perna
danificada provavelmente evoca os significados
metafóricos de ser 'aleijado’ / que incluem desamparo,
dependência e pena. (WENDELL, 1996, p. 43).

A o mesmo tempo, o roteiro do filme nos oferece a surpreendente


e singular experiência de liberdade que Maudie constrói por meio da
expressão artística. Ela pinta postais, paredes, objetos da casa, telas. Pinta
com os dedos e com os pincéis. Pinta em resposta às experiências de
sofrimento: quando o irmão vende sua casa sem acordo prévio, quando o
homem lhe bate no rosto, quando ela precisa matar uma galinha para servir
na refeição. Na encruzilhada das violências que marcam sua existência,
Maudie assume a pintura como um exercício de liberdade.
Enquanto o mundo em que vive a quer submissa, submetida à
ausência de direitos e de afeto, ela faz da arte um exercício íntimo de
insubordinação. Mas não é só isso: quando exposta a situações levadas
ao limite do desrespeito, Maudie sustenta, com firmeza, atitudes
concretas que se interpõem nas relações e preservam sua dignidade.
Agindo assim, ela provoca um deslocamento importante sobre a
compreensão de seu corpo: se o percebem com o dissonante, desafiador
das normas, ela saberá fazê-lo insurgente a seu favor.
Por outro lado, a pesquisa realizada pela autora Karen Rich
(2014) com 19 mulheres com deficiência residentes nos Estados Unidos,
a maioria tendo sido vítima de abuso na infância, trouxe à tona as crenças
que corroboram a permanência em relacionamentos abusivos, a saber: a
deficiência causou o abuso, o agressor está debilitado, o abuso foi
acidental, o abuso era suportável e o agressor era protetor.

124
Muitas mulheres com deficiência, inclusive aquelas
sexualmente ativas ou que contribuíam com a renda familiar, atribuíram
à deficiência a causa da violência, considerando o comportamento dos
agressores uma resposta natural ao estresse de viver com uma mulher
com deficiência. Para elas, nesse sentido, a violência era uma
consequência inevitável da deficiência ao invés de um reflexo do caráter
dos agressores (RICH, 2014).
Outra crença refere-se à compreensão de que o parceiro teria
comportamentos violentos porque estaria debilitado, portanto, caberia à
mulher com deficiência exercer o papel de oferecer o apoio, o cuidado
necessário para fazê-lo melhorar. Há também a crença de que o abuso
foi resultado de um acidente provocado pela ausência de um corpo com
tamanho e força “ normais” , ou seja, se as mulheres com deficiência
tivessem outra estrutura física, os atos de seus agressores não as teriam
prejudicado. Deste modo, sobrepondo a culpa ao próprio impedimento
corporal, e não a intenção do agressor, essas mulheres consideram-se
responsáveis pelo dano a elas causado (RICH, 2014).
Outras mulheres avaliaram os abusos praticados pelos parceiros
com o relativamente inofensivos em comparação com experiências
dolorosas de procedimentos de reabilitação a que já haviam sido
expostas. A o identificarem-se tolerantes às dores físicas, essas mulheres
avaliavam que o abuso experimentado nos relacionamentos não era tão
ruim (RICH, 2014).
N o filme, a autonomia da personagem se constrói em tons muito
próprios, com sua arte se esparramando pelos postais, telas, muros e
janelas da casa onde morava, conquistando a oportunidade de ser notada
por seu talento e sensibilidade, de ser reconhecida por sua capacidade de
trabalho e de ser remunerada de modo a obter sua independência
financeira. A arte torna-se sua resposta mais contundente às estruturas
sexistas, misóginas e capacitistas vigentes.
O cerceamento da autonomia das mulheres com deficiência por
seus parceiros ainda é muito comum. O agressor assume um papel de

125
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

cavalheiro e, com a justificativa de proteção, mascara sua estratégia de


controle. Muitas vezes, amigos e familiares elogiam tal “ devoção” ,
enquanto as mulheres com deficiência permanecem cada vez mais
impossibilitadas de tomar decisões (RICH, 2014).
Tais crenças tanto amenizam a gravidade dos atos dos
agressores, quanto permitem ajustar a identidade das mulheres com
deficiência às noções tradicionais de feminilidade, com o ter um parceiro
romântico e exercer o papel de cuidadora, contribuindo com a
permanência das mulheres com deficiência em namoros e casamentos
abusivos por longos períodos de tempo (RICH, 2014).
O filme sustenta essa narrativa, suavizando as violências
praticadas pelo homem, intercalando suas agressões com atitudes pontuais
de cuidado, e finda com a morte de Maudie após uma declaração de
agradecimento e amor ao marido pelas experiências compartilhadas em sua
vida. Tal desfecho nos provoca inquietações e reflexões sobre a relação
entre a experiência feminina com a deficiência, as noções de sexualidade e
afetividade heteronormativas e, sobretudo, a importância de elaboração de
políticas socioeducativas de prevenção da violência doméstica que
abarquem a realidade das mulheres com deficiência.

3 C O N CLU SÃO

Maudie Lewis faleceu no ano de 1970, período de grandes


transformações realizadas por movimentos feministas, LGBTQIA+,
negro e de pessoas com deficiência que lutavam por justiça social e
igualdades de direitos. Ainda hoje ressoam os avanços obtidos em tal
período, contudo, ainda há elementos importantes a serem descontruídos,
conforme discutidos neste capítulo. Urge, por exemplo, a elaboração de
políticas públicas para saúde, trabalho e educação que compreendam o
cuidado com o uma garantia de justiça social a pessoas com deficiência
com alto nível de impedimento corporal. D o mesmo modo, é importante
observar e buscar formas acessíveis para denúncia de abusos cometidos

126
por familiares, parceiros (as) que se aproveitam das condições de
imobilidade da vítima para mantê-la em cárcere.
Além disso, é importante a desconstrução do conceito de
mulher universal, o qual sugere que todas as mulheres vivenciam o
mesmo tipo de violência provocado por um único tipo de opressão, no
caso, o patriarcado. É necessário considerar os diversos fatores que
atravessam os corpos, tais com o deficiência, raça/etnia, classe e
sexualidade, por exemplo, evidenciando e sustentando as desigualdades
e vulnerabilidades a que estão submetidos. A compreensão
interseccional possibilita observar com o essas categorias estão
imbricadas e, principalmente, de que forma devem ser compostas as
ações de combate a todo tipo de opressão.

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129
PARTE 2
Depoimentos
1 Sexualidade
1.1 EXPERIÊNCIAS DE UMA PESSOA CEGA

Enio Rodrigues da Rosa*

Parece-me que tratar dessas questões sexualidade, sexo,


relacionamentos amorosos, afetivos, essas coisas todas, talvez seja
necessário pensar primeiramente, aquilo que é do que muitos autores,
pesquisadores chamam de uma coisa instintiva, que é inato, que é próprio
de cada ser humano ou da espécie animal. N o caso do ser humano,
especificamente, esses desejos podem se manifestar de várias formas.
Por outro lado, todas essas questões, enquanto produção social,
que guarda relação com questões históricas determinadas, nem sempre
foram vistas da mesma maneira com o são hoje, e foram se modificando
ao longo do tempo. Portanto, em sendo assim, não vejo também grandes
diferenças em relação às pessoas com deficiência de modo geral, e em
particular, no caso da cegueira.
Como seres humanos, todas as pessoas com deficiência têm
seus desejos, seus afetos, necessidades sexuais, sua sexualidade. Isso
tudo se manifesta desde a infância. Crianças cegas por exemplo,
adolescentes, jovens mesmo com outras deficiências, inclusive
intelectual, usuários de cadeiras de rodas, algumas talvez, do ponto de
vista orgânico, biológico, nem tenham condições de que fazer sexo.
Então estamos tratando de uma questão humana. Por que no
caso das pessoas com deficiência, essas particularidades merecem
estudos, análises diferenciadas? Porque ao longo da história, de uma ou
de outra maneira, por inúmeras razões, a humanidade foi tratando essas
pessoas, suas especificidades, sua sexualidade, de forma segregada.
Tende-se a buscar campos específicos, tratando-se as pessoas com
deficiência com o se tivessem um mundo próprio, uma psicologia

* Mestre e especialista em Educação Especial. Pedagogo. Professor da Rede Estadual


de Ensino.

135
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

própria, uma sociologia própria, criando condições para que hoje ainda
estas questões sejam tratadas com o coisas tão distintas.
Sobre essa questão, tenho um dado interessante: já vivenciei a
sexualidade com o uma pessoa vidente, e constatei que entre as pessoas
que enxergam, há todo um jo g o de sedução, não é?
Costumo brincar dizendo que as pessoas transam pelo olhar,
literalmente se desejam pelo olhar. A o olhar nos olhos de uma pessoa,
você vê a sua alma. É com o se você estivesse penetrando naquela pessoa
pelo olhar, e junto com isso, vem toda uma produção social.
N o meu caso por exemplo, pude ter essa experiência de
enxergar e ver todo esse jo g o de sedução através de um olhar, de uma
nuance, de um piscar de olhos, coisas desse tipo. Entretanto, aos 35 anos,
eu fiquei cego, privado de tudo isso. Evidentemente, passei a enfrentar
algumas situações nas quais precisei reaprender a lidar, a vivenciar e a
fazer determinados encaminhamentos de maneira diferente.
Mas as fantasias que estão na cabeça das pessoas que enxergam,
não são diferentes das que estão nas cabeças das pessoas cegas.
As pessoas cegas que querem demonstrar interesse afetivo por
alguém, chegam de maneira diferente. Utilizam um jo g o de sedução pela
palavra mais mansa, por determinados tipos de sons produzidos e ainda
pelo toque, pelo tato, na medida em que as pessoas se permitem ser
tocadas, acariciadas, enfim, tudo isso faz parte do imaginário, também,
das pessoas cegas.
Tive essas experiências com mulheres cegas, umas muito
positivas, outras nem tanto. O mesmo ocorreu com minhas experiências
enquanto pessoa que enxergava.
Uma das maiores experiências que eu vivenciei e agradeço
muito por isso, foi o fato de ter tido relação, trocas, sexo, com uma pessoa
tetraplégica, que utilizava cadeira de rodas para a sua mobilidade. Nessa
situação, ocorreram todas as dificuldades que você possa imaginar,
inclusive, e talvez o mais interessante, em relação a questões

136
operacionais, uma vez que a pessoa estava numa cadeira de rodas e não
podia sair dela sozinha.
Na medida em que você se isola, num local privado, aquela
relação se dá entre você - cego - e a pessoa que não tem todos os
movimentos e precisa ser ajudada. Cabe a você fazer toda a
movimentação: tirá-la da cadeira, colocá-la na cama, tirar a sua roupa e
depois do ato em si, recomeçar todo aquele processo de volta.
Essas experiências foram extremamente ricas do ponto de vista
da compreensão das relações afetivas e amorosas. Elas precedem tantas
outras coisas que vão acontecendo, que o ato sexual tão somente, se torna
secundário. Todavia, há pessoas com “ instintos mais carnais” , que não
agem ou pensam dessa forma.
Um psicólogo me disse que se pode fazer sexo o dia inteiro, na
medida que se vai jogando sedução, fazendo carícias, dizendo palavras
agradáveis e à noite, acontece o ato de consumação de um processo que
já vinha se insinuando.
O meu namoro com a pessoa tetraplégica, por dois anos, foi
muito significativo, por ter oportunizado um momento divino na minha
vida. Claro, sem querer transformar o relacionamento numa coisa isenta
de problemas. Houve dificuldades que qualquer relacionamento tem:
brigas, enfrentamentos, divergências, disputa de poder na relação. Mas
tudo isso faz parte das relações humanas, independentemente de ser
pessoa com deficiência ou não.
Aos olhos da sociedade, ao mesmo tempo que juntos
despertávamos uma certa curiosidade e admiração (talvez pena mesmo),
também parecia uma coisa meio bizarra, totalmente fora do esquadro,
um cego e uma cadeirante desfilando e convivendo nos espaços sociais,
estudando e militando nos movimentos de defesa dos direitos das
pessoas com deficiência.
Outra questão é a influência da opinião de terceiros nas relações
afetivas. A opinião dos nossos amigos, familiares, enfim, o social
também está nesse processo. Queremos uma parceira que possa ser

137
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

apresentada aos amigos, e deles receber elogios. Isso reforça a ideia de


que, namoro, desejos, escolhas, tudo tem relação com o social.
Obviamente que a prioridade está na busca da parceira ideal, da mais
perfeita, que dê conta de satisfazer os nossos desejos, nossas fantasias,
as nossas vontades.
Um detalhe interessante, também, é a fantasia que algumas
pessoas têm de transar com pessoas com deficiência, sejam elas, por
exemplo, cegas, cadeirantes ou amputadas. Elas são necessárias ou
extremamente importantes numa relação sexual saudável. A grande
questão é compreender, ter clareza da distinção entre o que é fantasia, e
o que é real. Acho que isso é interessante, numa relação sexual entre
quatro paredes, digamos assim, desde que acordado e claro, não se trate
de agressões físicas, ou coisa parecida.
Sobre minhas fantasias, não pude realizar todas, pois há coisas
que são muito particulares e que não consegui explicitar com minhas
parceiras. Quando se começa uma relação, as pessoas entram na vida
uma da outra e passam a perceber os limites de cada um. Então as
fantasias são sublimadas por impossibilidade de realização.
A deficiência em si, acrescentou muito nas minhas relações,
sobretudo pelo modo com o passei ver o mundo e a me ver, diferente de
com o eu era antes, quando enxergava. Evidentemente, continuo sendo o
mesmo Enio, com o mesmo DNA, RG, etc.
Mas conforme estudos, reflexões e, segundo um texto de Denis
Diderot, intitulado “ Carta sobre os Cegos para Uso dos que Veem” , há
uma passagem muito clara, no seguinte sentido: é preciso morrer como
alguém que enxerga, para renascer com o cego.
A cegueira na vida de uma pessoa não é qualquer coisa. Não é
apenas uma barreira ou um obstáculo. Ela traz consigo forças e potenciais
enormes. E para que uma pessoa cega possa dar conta de lidar com o mundo,
com a vida, com as relações sociais, é necessário que haja mudanças em seu
aparato psicológico e em seu sistema nervoso central. Todas essas

138
mudanças, na verdade, alteram a compreensão do mundo, das pessoas e, por
conseguinte, das relações da afetividade e questões de sexualidade.
Portanto, se relacionar com pessoas com deficiência, depois
de cego, com o nas experiências que tive, trazem novos elementos,
outros recursos, e outras perspectivas que são colocadas nessa relação.
Consequentemente, todo aquele jo g o de sedução, que o olhar tinha
antes, desapareceu.
As pessoas cegas tendem a ser “ um pouco conservadoras” , no
sentido de manter o relacionamento. Evidentemente que as minhas
relações hoje, estão num outro patamar, eu diria assim, mas isso não é
apenas porque sou cego, evidentemente. É que, junto com a cegueira,
vieram outras necessidades que eu tive que trabalhar, o meu pensamento,
por exemplo, alargar digamos assim, o campo mais intelectual.
Para descontrair, às vezes digo que, se do ponto de vista físico,
a perda de visão “ escureceu meu mundo” , por um lado do olho, a
cegueira iluminou minha consciência e me abriu novas perspectivas que
antes, apenas com a percepção do olhar, eu não tinha conseguido
alcançar. Evidentemente, tudo isso traz mudanças na vida da gente e
também, nas nossas relações.

139
1.2 VIVÊNCIAS DE UMA PESSOA COM TETRAPLEGIA

Thiago Córdova*

Nasci em uma cidade no interior do Estado Paraná. Com uma


infância típica da década de 1980, vivia em simplicidade. Meu tempo era
exclusivo para a família, escola e amigos, não recordo de ter convivido
com alguém com deficiência, nem mesmo na escola.
N o início dos anos 2000, era um jovem saudável, esportista. Fui
soldado no Exército, iniciei também, minha vida afetiva e sexual, porém,
não sabia que em pouco tempo minha vida viraria do avesso.
Isso aconteceu logo após completar os 19 anos, voltando do
trabalho de bicicleta, fui vítima de atropelamento no trânsito.
Sofri lesões graves na coluna cervical, nas vértebras c5 e c6.
L ogo nos primeiros dias de internamento, soube da realidade nua e crua:
recebi o diagnóstico médico quanto a gravidade da lesão e
irreversibilidade do quadro. Compreendi, ainda no hospital, que não
voltaria a andar, ou seja, que seria uma pessoa com deficiência para o
resto de minha vida.
Considerando a altura da lesão medular nas vértebras da coluna
cervical, perdi os movimentos finos das mãos, dos braços, do tronco, das
pernas e também tive a perda do controle fisiológico, ou seja, com tantas
limitações físicas, me tornei dependente da ajuda de outras pessoas.
Para um jovem que tinha um mundo de sonhos e expectativas
pela frente, isso foi uma imersão completa ao desespero. Passei um
tempo alimentando uma falsa expectativa de que os médicos estavam
errados, que aquela previsão não se aplicaria a mim. Com o passar do
tempo superei a fase de negação, da revolta e comecei a aceitar o que
aconteceu e busquei dar um novo sentido a minha vida.

* Advogado. Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da


Subseção de São José dos Pinhais da OAB/PR.

141
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

A deficiência alterou meus sonhos e projetos de vida, sabia que


para superar as condições adversas e viver com o mínimo de dignidade,
seria necessário enfrentar a vida com as armas que tinha. Para minha
felicidade, pude contar com o apoio de minha família, cada membro
aceitou e compreendeu que certos sacrifícios seriam necessários para me
proporcionar o mínimo de conforto.
N o primeiro ano, todos os membros da família tiveram que
contribuir de alguma forma, com tempo e inúmeras caronas para a
fisioterapia, ou mesmo, de forma financeira, pois foi necessária a
adaptação da casa, aquisição de produtos médicos hospitalares
extremamente caros e não oferecidos pelo SUS. Naquela época contava
apenas com a renda de um salário mínimo para sobreviver.
Foi imprescindível o auxílio dos familiares também, nas
atividades mais simples, que ajudavam na mudança de decúbito, no
banho, para ir ao banheiro, esse auxílio e disposição foi um divisor de
águas em minha vida, porque naquela época, não tinha condições
financeiras para a contratação de serviços de profissionais de cuidadores.
O problema é que cada familiar também tem a própria vida e
obrigações, nesse ponto, a solução se confunde com o problema e
independente do amor e do vínculo de sangue. É difícil estar diariamente
à disposição, o cuidador tem o sentimento de extrema responsabilidade
pela pessoa cuidada e acaba abdicando de momentos individuais de sua
vida, ou seja, acaba se anulando. Foi buscando diminuir o sentimento de
peso, que encontrei alternativas e passei a utilizar as ferramentas
disponíveis, a usar aquilo que a deficiência não atingiu, isto é, minha
capacidade intelectual.
Com a certeza de que poderia dar um rumo totalmente diferente
a minha vida, não ser apenas um estereótipo da pessoa com deficiência,
pobre e inválida, me joguei de cabeça na corrida por um diploma de
ensino superior. Sabia que era necessário estudar, me profissionalizar,
para ter uma renda que pudesse garantir uma vida com menos privações
e com maior conforto.

142
Prestei vestibular e consegui ingressar na faculdade através de
uma bolsa parcial de estudos. Este incentivo foi importante e possibilitou
a seguir com meu propósito. Durante o período acadêmico, as barreiras
arquitetônicas foram superadas, dia após dia. As dificuldades se
apresentavam e sempre de formas diferentes, porém, pude contar com o
companheirismo e a solidariedade dos colegas de classe que me
ajudavam a superá-las.
Recentemente, um amigo de faculdade revelou que no primeiro
dia de aula, enquanto me apresentava à classe e falava sobre o meu
objetivo de ser um advogado, ele disse que pensou: ‘ ’ o quê este cara está
fazendo aqui?” e que logo eu desistiria do curso. Ele me contou que, a
cada semestre que eu concluía, sempre com boas notas, ele foi
percebendo o quanto estava enganado.
Durante a faculdade, essa pessoa acabou sendo uma das que
mais me ajudaram, e no fim, o convívio com a deficiência se tornou uma
grande inspiração e lição de vida. Infelizmente, ele acabou não se
formando por circunstância da vida.
Fui o primeiro aluno da classe a passar no Exame de Ordem. N o
final do quarto ano da Faculdade me dediquei, pois sentia que tinha que
sair à frente e compensar as dificuldades que viriam após o término da
graduação. Uma das maiores preocupações era a de conseguir um
emprego e ter clientes. Não parei de estudar, completei duas pós
graduações e enfrentei e superei as mesmas adversidades da Faculdade,
o que mostra que tudo é possível com dedicação e esforço.
Atualmente tenho uma carreira sólida e me encontrei,
profissionalmente na carreira jurídica e sou realizado e não me limito a
ficar apenas no escritório, viajo e faço audiências, busco alcançar todas
as prerrogativas da profissão.
Porém, com o nem tudo na vida são flores, existem aspectos da
deficiência que são quase insuportáveis, que podem causar grande
desconforto e constrangimento, por exemplo, a perda involuntária das
fezes ou da urina.

143
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

No começo, fui resistente e orgulhoso em aceitar o uso de fraldas


geriátricas, a simples ideia feria a minha dignidade, mas com o tempo,
amadureci o pensamento e passei a aceitar que certas peculiaridades são
próprias da deficiência. Descobri que o uso de fralda me traria maior
conforto e evitaria constrangimentos. Se essa aceitação tivesse ocorrido
logo no início da deficiência, teria me poupado péssimas experiências.
Em determinada ocasião no ano de 2003, tive a perda
involuntária de fezes durante uma sessão de fisioterapia no HC de
Londrina, confesso que foi um dos piores momentos de constrangimento
de minha vida, literalmente tiveram que paralisar as atividades na sala de
fisioterapia para que pudesse me higienizar.
Esta situação se repetiu, inúmeras vezes, e mesmo com o uso da
fralda, existe a possibilidade de se repetir e isso já ocorreu chegando para
uma audiência de conciliação no Fórum. Como não havia tempo de me
higienizar, fui salvo pela ajuda de um colega advogado, que foi solidário
e participou do ato processual. Com a experiência e maturidade, não me
cobro tanto, sei que esse desconforto voltará a bater a minha porta, pois
essa é uma condição gerada pela própria deficiência, sendo o aspecto que
mais incomoda a um cadeirante, por isso, uma alimentação regular e
saudável, com o acompanhamento de um nutricionista é importante para
a qualidade de vida.
E mesmo com todas as adversidades nunca deixei de sonhar que
vou encontrar meu par afetivo, ter minha própria família. Antes de me
tornar pessoa com deficiência, era um homem tímido, mas após tantas
passagens por hospitais, banhos de leito, essa timidez foi dando lugar a
uma pessoa desenvolta.
Após viver quase duas décadas com a deficiência, tive vários
relacionamentos, cada um deles me trouxe uma experiência única.
Conheci pessoas que me amaram incondicionalmente e independente da
deficiência, estavam dispostas a estar ao meu lado, mas por razões
totalmente alheias à deficiência, não deram certo as relações.

144
Também conheci pessoas que criaram a ilusão de que um dia eu
voltaria a andar, mas que, com o passar do tempo, se frustraram e sofriam
por mim. Sempre fui muito sincero sobre a irreversibilidade da
deficiência e sobre minhas limitações, e mesmo assim, algumas parceiras
não acreditavam naquela realidade.
Para mim é comum conhecer alguém por aplicativo de
relacionamento. Costumo colocar a deficiência e fotos, logo no meu perfil
do site. Não considero uma invasão direta à minha privacidade, mas uma
informação importante. E mesmo que algumas pessoas se choquem -
porque isso acontece com certa frequência - , conheço pessoas que
compreendem e se dão uma chance de viver uma experiência nova. Afinal
também faço minhas escolhas e filtro aspectos que não me agradam.
Tento apresentar o homem gentil, sincero e honesto antes do
homem com deficiência, e depois tento passar uma visão ampla sobre o
que esperar de um relacionamento com uma pessoa com deficiência.
Para muitos é um mundo novo, é preciso se ajustar e aprender
sobre a deficiência em si. Uma das perguntas mais frequentes logo no
início, é justamente, sobre a função sexual e a capacidade reprodutora,
pois o sexo é importante para qualquer relacionamento, incluindo a
pessoa com deficiência.
Não trato a questão da sexualidade com o um tabu, no meu caso,
antes mesmo de transar, gosto de falar sobre meus gostos, com o consigo
chegar ao prazer e driblar minhas limitações, mas para isso é necessário
o mínimo de intimidade.
Também sei que algumas parceiras se socorreram a buscar
informações na internet, pois queriam compreender a deficiência, e como
é possível ter uma vida de qualidade. Essas informações são importantes,
reduzem o preconceito e diminuem a insegurança em assumir uma
relação com uma pessoa com deficiência.
Com a ajuda da indústria farmacêutica que desenvolveu o
famoso “ azulzinho” , hoje posso ter ereção, lembrando que a minha
deficiência importou na perda da sensibilidade dos membros inferiores.

145
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Antigamente tinha vergonha de assumir a dependência do medicamento,


porém, hoje não escondo da parceira, pois faz parte de quem eu sou.
Gosto de sexo e não me anulo. Sempre que quero comprar preservativos
ou estimulantes, costumo fazê-lo pela internet, sem envolver meus
familiares. É uma forma de separar minha vida íntima, das outras
necessidades da deficiência.
Sabendo a quantidade de informações, não falo sobre todas no
primeiro encontro, pois acredito ser muitas coisas para absorver de uma
única vez. Prefiro aproveitar o momento falando sobre gostos em
comum, literatura, cinema, gastronomia, viagens. Conto um pouco sobre
a minha vida e vou aos poucos dosando a quantidade de informações.
Afinal, quero um segundo encontro e é preciso ter um mínimo de
intimidade, para se abrir por completo.
Ainda solteiro, vivendo em minha própria casa, sigo em paz e
harmonia com meu corpo. Tenho dias bons e tenho dias ruins, como
qualquer outra pessoa, seja ela com deficiência ou não. Tirei grandes
lições de vida, dos acontecimentos positivos e negativos, fui resiliente e
persistente, ainda tenho um universo de obstáculos para superar e não
posso me dar o luxo ficar lamentando pelas coisas que não posso mudar.
Tenho uma imensurável gratidão pela vida, pela minha família
que me deu as condições necessárias para chegar até aqui, por ter uma
profissão digna e respeitada, também pelos amigos que fiz no caminho e
que se tornaram parte de minha vida. Foram estas condições que me
transformaram e pude deixar de apenas sobreviver, para viver em
plenitude e felicidade.

146
2 Violência
2.1 O BULLYING E O TRAUMA PSICOLÓGICO

Rogério Luis Silva Rosa*

Minha experiência com o bullying está diretamente associada a


muitas das minhas mais nítidas e antigas memórias. Alguns amigos,
mesmo hoje, desconfiam que eu consiga lembrar de acontecidos durante
meus 3 ou 4 anos de idade com tanta clareza. M e entristece um pouco
encarar tal realidade, mas é o que é.
A infância, uma idade que no imaginário popular acaba sendo
idealizada com o um momento da vida no qual não enxergamos maldade,
temos poucas responsabilidades, e podemos viver apenas para aprender
e criar boas lembranças e laços. Tão bom seria se fosse possível para
todos. Às vezes questiono quanto nós, com o adultos, nos apegamos a um
senso de “ nostalgia” que talvez não seja de todo verdadeiro.
A o dizer isso, não tenho intenção de afirmar que nos enganamos
e mentimos sobre o passado. Eu mesmo digo com segurança que tenho
memórias maravilhosas dos meus primeiros anos e também da
adolescência. Entretanto, muitas vezes evitei encarar quão pesadas e
cruéis foram as experiências que sofri.
Nesse sentindo, uma das minhas primeiras lições cruas da vida
foi a capacidade das pessoas para malevolência, expressa na sua
condição mais primal e sem razão de ser.
Relembrando tudo que aconteceu, é até um pouco curiosa a
dualidade tão dispare das minhas vivências, bem com o é evidente onde
elas foram mais intensas e características. Explico.
Desde que me recordo, meus pais sempre tentaram me incluir
no máximo de atividades sociais possíveis - artes marciais desde os 3
anos de idade, participei do Movimento Escoteiro dos 7 aos 23 anos, e

* Advogado. Membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência


da OAB/PR.

149
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

uma série de outros grupos de jovens, além de trabalhos comunitários,


etc. - Sobre esses aspectos, a maioria das lembranças são sinceramente
positivas, e as negativas, nesses contextos, em nada têm relação com o
bullying que enfrentei. Tenho plena certeza que essas ocupações
fortaleceram meu coração e as amizades que construí, literalmente,
salvaram minha vida, mais de uma vez.
Acredito ser importante contextualizar esses pontos, até mesmo
para esclarecer onde o problema do bullying foi mais evidenciado na
minha vida (e certamente na de muitos outros): no ambiente escolar.
Tenho hemiplegia espástica à direita. Nessa condição, causada por
falta de oxigenação durante o parto, tive paralisia parcial dos movimentos
do lado direito do corpo, bem como sequelas na fala, etc. Nessas
circunstâncias, durante minha infância, apesar de intensas e quase diárias
sessões de fisioterapia, ainda tinha o chamado “ pé equino” (tendões
travavam o movimento da perna, causando andar forçado na ponta do pé
direito, não conseguia relaxar os músculos e caminhar em passadas
normais). Também, tinha boa parte do braço direito paralisado, na época.
Tais fatores acabavam chamando a atenção na escola,
desconforto por si só, bastante sofrível.
Diante disso, o meu instinto mais básico desde o início sempre
foi o de tentar esconder (nunca usava bermudas, sempre deixava as mãos
nos bolsos, esse tipo de coisa). Hoje, ao relembrar tudo isso, talvez tenha
sido meu primeiro grande erro de convivência. Explorar o
constrangimento e a vergonha alheia sempre fazem parte do arsenal de
qualquer bullying.
Desde a pré-escola até o fim do ensino médio, pude perceber
que toda a experiência de bullying gira em torno de uma espécie de
espetáculo de demonstração de força e intimidação.
Em absolutamente todos os contextos, em todas as séries e todas
as escolas que passei, o padrão era basicamente o mesmo. Existe
primeiramente apenas 1, às vezes 2 pivôs da situação. São as pessoas que
agitam os demais para fazer o bullying. Geralmente, eram os maiores da

150
turma e costumavam atacar sempre os mais vulneráveis para se
afirmarem perante o grupo, tanto no quesito força, quanto na
popularidade ao sempre adotarem um tom jocoso nas agressões.
Diferente do que muitos imaginam, o bullying não surge
aleatoriamente. Seus perpetradores sempre buscam algo com isso
(instigar medo e ganhar popularidade são os mais comuns) e eles sabem
exatamente que é errado, mesmo na minha época (anos 90) eram comuns
palestras sobre o tema e tentativas de conscientização. Esses esforços
para criar bom senso sobre esse tipo de abuso sempre eram tratados com
deboche pelos agressores.
Minha experiência com o tema ocorreu desde o jardim 2 da pré-
escola até a 8a série do ensino fundamental. Quando cheguei no ensino
médio, estava no auge da condição física e treinado em artes marciais.
Como a covardia é a característica n°1 dos bullies, ninguém se arriscava
realmente. Tentativas não faltaram, mas diante de uma ameaça sincera
de retaliação violenta, todos desistiam, eventualmente.
Como foi algo prolongado por muitos anos, tratar pontualmente
de cada situação individual, acabaria sendo muito extenso. Sendo assim,
prefiro comentar sobre o modus operandi dos bullies, que foi
basicamente o mesmo em todas as ocasiões.
O ponto de partida em quase todos os meus casos de bullying
era uma conversa demonstrando curiosidade sobre a condição de pessoa
com deficiência - PcD. É algo quase com o um início de tentativa de
amizade, por isso é algo realmente maligno. Sobre esse aspecto, é um
dos principais motivos de eu sempre tentar mascarar a deficiência, para
não dar armas ao inimigo. Depois de várias vezes sofrendo por dar
confiança a esse tipo de pessoa, acaba sendo o único passo lógico.
Uma vez descobertas as fraquezas, seja por perguntar
abertamente ou por pura observação, o bully começava a “jogar verde”
para sua plateia, geralmente nos intervalos entre as aulas e
principalmente nas aulas de educação física.

151
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Os apontamentos são sempre quanto às falhas em realizar


tarefas comuns aos outros, diminuindo e ridicularizando, junto com
comentários sobre a estranheza da aparência (o andar esquisito, a mão
torta, a dificuldade em falar certas palavras, etc). Tendo retorno da
“ plateia” , o abusador se consolidava.
As ofensas verbais eram a ferramenta inicial do bully; ele humilhava
e incentivava os demais a fazerem o mesmo. Quando o terror psicológico não
arrancava mais as mesmas risadas, o abuso passava a ser físico.
Inicialmente os ataques acabam sendo mais para destruir o
moral e autoestima, do que necessariamente violentos. São do tipo:
esconder pertences, jogar coisas, furtar e roubar objetos, passar rasteiras,
empurrões, mexer com a comida e tudo que seja possível para torturar e
enlouquecer. Esse tipo de contexto costuma se arrastar por meses.
Quando essas agressões “ mais sutis” deixam de agradar ao
“ público” , o bullying escala para o estágio final, a violência física em si.
Costuma acontecer quando você está desolado e sem confiança alguma
de receber ajuda ou amparo. Todas as escolas, particulares e tradicionais,
nas quais estive, sempre diminuíam a seriedade da situação e temiam
tomar decisões mais firmes diante dos agressores. Era o mesmo sermão:
chamar os pais, e outras atitudes fracas, que só irritavam o bully e
viravam motivo de piada entre os colegas.
Passei por diversos momentos em que os abusos escalaram para
esse estágio. O que me entristece e enfurece atualmente é saber que
nessas épocas eu era perfeitamente capaz de me defender dessas pessoas,
mas o trauma psicológico alimentado durante meses, e a natureza
pacifista, me deixavam sem ação.
Lembrando disso tudo, mesmo depois de tantos anos passados
desses fatos, ainda lembro dos rostos e nomes de cada bully com quem
convivi, às vezes até melhor do que de amigos que eram próximos. Por
esse motivo, afirmo com toda certeza que nunca perdoei, nem jamais vou
perdoar esses bullies. Eles sabiam quão cruel era o que faziam e todos,
em algum momento, foram alertados por algum tipo de autoridade

152
familiar ou escolar para pararem, e mesmo assim continuaram. Espero
nunca reencontrar nenhum desses sujeitos, pelo bem deles.
Apesar de tudo, toda essa violência acabou despertando algo
positivo em mim. Tenho uma aversão intensa à arrogância e covardia.
Jurei a mim mesmo sempre tratar as pessoas com o máximo de
consideração e gentileza possível, que nunca deixaria de agir ao
presenciar um ato de violência contra alguém mais fraco e que nunca
mais seria humilhado por mais ninguém. Afiei meu espírito e meu corpo
com uma convicção absoluta de sempre fazer ser correto, sincero e
amável com os outros.

153
2.2 O BULLYING E SUAS FACETAS

Gabriel Otávio dos Santos*

Ninguém escolhe ter uma deficiência, isso é fato. Porém, até


chegar ao ponto de ter o poder de assimilar essa realidade, muita dor e
muito sofrimento são vivenciados, por mera ignorância daqueles que
desconhecem a realidade.
Quando eu nasci, em 1987, a cultura da pessoa com deficiência
era algo impensável, e ter um filho com qualquer tipo de deficiência,
penso eu, era uma espécie de tabu.
Entrei na escola em meados de 1990 e naquela época, ninguém
falava na palavra bullying, simplesmente não existia. Acredito que
dificilmente alguém recorria à lei para a resolução de tais questões,
porém, elas existem.
Tanto no sistema educacional, quanto na sociedade em geral, as
pessoas não estão preparadas para conviver com o diferente e isso eu senti.
É fato indiscutível, a Paralisia Cerebral me trouxe muitas
experiências tanto para o bem, com o para o mal. Além de ter de enfrentar
sessões quase que diárias de fisioterapia, a confecção de órteses para
melhorar a “ marcha” , e as cirurgias que vieram, ainda tinha que saber
lidar com o olhar curioso e preconceituoso das pessoas. E devemos
aceitar de uma vez por todas, as pessoas olham, riem do modo como
andamos ou desempenhamos nossas atividades de modo diverso da
maioria. Isso na época tinha o nome de preconceito e o remédio dado
com muito zelo pelos meus pais e irmãos foi: “ encare e supere” .
Foram incontáveis as vezes em que meus professores
reclamaram da minha escrita, do meu desenho e da demora com que
desempenhava as atividades em sala de aula. Realmente “ tiravam sarro”

* Advogado. Secretário da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da


OAB/PR.

155
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

disso, achavam “ frescura” , por eu apoiar de lado uma prova na Faculdade


e demorar para manusear o Vade Mecum. Quantas vezes professores me
acusaram de estar “ colando” ou “ tiraram sarro” em alto e bom som das
minhas perguntas, ou da minha morosidade para copiar a matéria do
quadro-negro.
Quando era pequeno, no pátio, as crianças assim com o eu era,
me excluíam das brincadeiras por medo, mas isso não era bullying.
Agora quando um professor de escola afirma para a sua mãe, que você é
“ retardado” e que deveria estar em uma escola especial, ou quando um
professor universitário não te instrui corretamente para que você atinja o
seu completo potencial por pensar que a sua deficiência e sua dificuldade
é trapaça, isso posso afirmar que é bullying, e dos mais duros, que pode
desmontar e desmoronar a sua autoestima.
Hoje posso afirmar com todas as palavras que o lugar que ocupo
se deve exclusivamente ao apoio da minha família e principalmente da
força de vontade que vem de dentro, e é algo muito mais forte do que
podemos imaginar.
Com toda a certeza o bullying é real e é algo que destrói as pessoas e
somente com um trabalho muito intenso de inclusão real, nós poderemos
mudar essa realidade. Ainda é necessário afirmar que remédios legais
existem para coibir essas atitudes, porém, medidas legais não restauram
o principal que é a autoestima daquele que é ferido.
Ainda, é necessário afirmar que remédios legais existem para
coibir essas atitudes, porém, medidas legais não restauram o principal
que é a autoestima daquele que é ferido.

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2 .3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E PATRIMONIAL

Rita de Cássia Fuentes Luz Suenaga*

Sou filha de pai brasileiro, natural de Minas Gerais e de mãe


boliviana. Quando nasci, foi um momento de euforia para toda a família.
Meus pais já haviam perdido uma filha, no início dos anos 1960, que
nascera e vivera por apenas 15 dias, diante de poucos recursos
financeiros e do parco conhecimento médico sobre lábio leporino. Minha
irmã, com o céu da boca completamente aberto, não sobreviveu e.
passado um ano e meio desse acontecimento, eu cheguei ao mundo.
Superada a alegria de meu nascimento, após três meses, minha
avó paterna percebeu que eu não esboçava reação ao ser estimulada com
brincadeiras ou brinquedos coloridos, o que deixou meus familiares
alertas e apreensivos. Após consultas e exames médicos, veio a
diagnóstico: Catarata Congênita.
A criança sem deficiência geralmente conhece e supre suas
necessidades explorando o espaço em que vive. Já a criança com
deficiência visual tem sua percepção e estrutura mental formada com as
possibilidades de interação e ação sobre o meio e pela oportunidade de
reconhecimento do ambiente. Para aprender, precisa ser livre para
explorar. Deste modo, poderá construir seu sistema de significação,
organizando suas ações no contexto diário, formando assim as noções de
tempo-espaço-causalidade. A descrição do ambiente e a informação
sobre o que acontece ao seu redor contribuem para evitar o susto e a
frustração. O papel da família é fundamental para que o processo ocorra
de forma adequada às necessidades da criança e mantenha um ritmo
sistematizado, organizado e regado a bom senso.

* Advogada com deficiência Visual Baixa Visão. Presidente da Comissão de Pessoas


com Deficiência e Acessibilidade da OAB/MS.

157
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Penso que não tive essa possibilidade, em virtude da ausência


de observação direta de pessoas, objetos e eventos que levam à interação.
Minha qualidade de comunicação, de manuseio e a instalação de rotinas
diárias foi muito prejudicada.
Quando iniciei meus estudos em uma escola particular em
Piracicaba/SP, a professora evitava se dirigir a mim, ignorava-me e
deixava que eu fizesse o que queria, sem se importar com meu
aproveitamento escolar. Logicamente fui reprovada.
Naquela ocasião, início dos anos 1970, as buscas pela inclusão
estavam surgindo entre as pessoas que se uniam e pretendiam o
reconhecimento e a valorização de todas as diversidades. Notaram que
apenas abrir portas não era suficiente, e começaram a perceber e planejar
ações com o objetivo de garantir ambientes que proporcionassem
oportunidades justas.
Todos somos diferentes. A diferença é o que, de certa forma, nos
humaniza. Percebê-la com o valor é um processo que se estabelece em
todas as esferas da vida e que legitimamos individual e socialmente. Essa
ideia já está estabelecida desde a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, apontando que o fundamento da liberdade, da justiça e da paz
no mundo é o reconhecimento da dignidade inerente a todos.
Na minha infância, percebi que meu pai, embora trabalhasse
oito horas diárias, era mais constante no nosso dia a dia. Já minha mãe,
em virtude de ser cabeleireira e pensar que trabalhando poderia prover
todas as nossas necessidades, desconhecia que o mais importante estava
sendo negligenciado e traria fortes consequências no futuro.
Completei o ensino fundamental em escola estadual localizada
a um quarteirão de nossa residência e passei a me deslocar sozinha, a
partir da terceira série, com autonomia e Independência. Sentia-me igual
aos demais da minha idade, porém não era bem assim, pois em meados
dos anos 1970 as pessoas com deficiência eram apenas integradas na
escola, não incluídas na sua concretude, sobretudo com as adequações e
acessibilidades pertinentes a cada especificidades de deficiência, tendo

158
em vista que a pessoa necessitava transformar-se para ser
verdadeiramente incluída na sociedade, quanto mais se aproximasse da
normalidade, mais incluída seria.
Na verdade, a minha própria família me segregava,
inconscientemente. Agia conforme o mandamento social da época, para
que se atingisse êxito era primordial se adequar às normas
preestabelecidas de forma padronizada, do contrário não poderia a ela
pertencer. Muitas foram as expectativas frustradas: aulas de balé, violão,
natação e outras, uma vez que para uma aluna com deficiência, as
adequações e adaptações estavam fora de cogitação. Evidenciava-se,
dessa forma, o preconceito, o descaso, o abandono, o descrédito, o
estigma e a segregação.
Lembro-me com saudades que de forma inconsciente, uma
professora da “Escola Estadual de Primeiro Grau Doutor Prudente de Morais” ,
incluiu-me, permitindo que eu fosse ao quadro-negro copiar o conteúdo no meu
caderno e que através de textos ampliados eu pudesse acompanhar todo o
conteúdo de forma igualitária aos demais alunos sem deficiência.
Na adolescência, isolava-me na leitura de livros da biblioteca de
meu tio e de enciclopédias e revistas solicitadas e ofertadas pelo meu pai.
Este, muitas vezes com a intenção de me proteger, propiciava a minha
exclusão a não permitir a minha participação em atividades escolares como
excursões e festas. Passada a fase da adolescência ao adentrar na fase adulta,
tornei-me uma pessoa insegura, tímida e antissocial.
A escolha da carreira jurídica foi pensada, pois nem todas as
profissões seriam compatíveis com minha deficiência, podendo
acarretar falsas expectativas e acentuar o com plexo de inferioridade.
Concomitante, nesse período, houve namoro, casamento e a conclusão
do curso de Direito. N o início da década de 1990, após namoro de
quatro anos, casei-me com o meu primeiro e único namorado, m oço
educado, inteligente, engenheiro mecânico com futuro promissor. A
realidade, porém, nos mostraria que um diploma não era sinônimo de
ascensão profissional.

159
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Como em todo relacionamento, as diferenças logo se revelam.


As preocupações financeiras, as incertezas do setor econômico e a
dificuldade de emprego na capital paulista onde fixáramos residência,
fez com que a esperança de um futuro melhor, na “ Terra do Sol
Nascente” , levasse meu marido para o Japão, onde trabalhou por quase
dois anos. Em meio a isso, a gravidez do meu primogênito e a distância
angustiante de meus pais falaram mais alto. E, deixando para trás casa
montada e cursos complementares para o aperfeiçoamento profissional,
retornei a casa de meus pais em Corumbá/MS. Saí de lá somente com o
retorno do meu marido, depois de dezessete meses trabalhando no Japão,
o que exigiu nova adaptação na vida conjugal, então com um bebê, já
com quase nove meses de vida.
Pensávamos que meu marido poderia dar continuidade à vida
laboral no Brasil, porém, a escassez de emprego compatível com a sua
formação e a preocupação de prover o sustento da família, as terras
orientais, novamente, foram a luz no fim do túnel para os nossos
problemas. Só que não. Dificuldades de trabalho e um acidente de
trânsito sofrido por meu esposo, fizeram com que retornasse ao Brasil
em oito meses, ocasião em que eu já havia mudado para Piracicaba/SP,
com meu filho.
Nessa fase, começam os desentendimentos porque somente eu
estava trabalhando em escritório de advocacia - que montara com
amigas de faculdade - , enquanto ele permanecia em casa estudando para
concursos públicos, por falta de vaga no mercado de trabalho.
O machismo somado à crescente crise econômica que assolava
o Brasil, favorecia nossas constantes discussões. Sofria ameaças,
humilhações e intimidações - violência psicológica, nesse período,
desconhecida por mim. Entre acertos e desacertos, estudando juntos no
período noturno para concursos públicos, eis que em 1995, meu marido
alcança o tão sonhado emprego na Receita Federal. Nessa época eu
estava grávida do segundo filho. Fomos morar em Marília/SP e voltei a
ser apenas e tão somente dona de casa e mãe, o que ficou registrado na

160
certidão de nascimento do nosso segundo filho. Embora advogada, tive
que aceitar em silêncio tal imposição.
Sempre com o objetivo de progredir e, para a alegria de todos, no
ano 2000, o pai de meus filhos foi aprovado em concurso e iniciou a carreira
de Auditor fiscal em Corumbá/MS, onde passamos a residir, nós e os nossos
três filhos. Como os meninos já estavam em idade escolar, retomei minha
vida profissional. Ficava meio período no escritório de meu pai, também
advogado, onde por dez anos tive a graça de Deus de com ele aprender e
compartilhar processos cíveis, criminais e previdenciários.
Já estabilizados, no ano de 2010, uma promoção de ofício fez
com que a contragosto dos meninos e meu, nos mudássemos para a
Campo Grande/MS. A vida, porém, nos traz surpresas e ao completar
dois anos de nossa mudança, em outubro de 2012, meu marido veio a
falecer, acometido de um tumor em estágio avançado.
Quando fiquei viúva, meus dois filhos mais novos - já
adolescentes - residiam com igo e o mais velho cursava faculdade em
outro Estado. Incentivada por eles, em 2014, retomei a minha profissão,
ingressei em um curso de Pós-Graduação e nos momentos de solidão,
buscava distração em chats da internet.
Nesse período, fiz amizade com um homem que mais tarde viria
a saber que se tratava de um psicopata. Muito carente e sozinha, não
demorou para ser conquistada com sua lábia. Três meses de conversa
virtual foi o bastante para ele vir de Porto Alegre/RS, de mudança para
Campo Grande/MS.
No início tudo transcorreu com tranquilidade, porém,
decorridos dois meses, iniciaram-se as implicâncias com as minhas redes
sociais e amigos homens que faziam parte dela. Estes, aos poucos, foram
sendo excluídos por ele que até minhas senhas já tinha conseguido.
Segundo ele, mulher que ficava em redes sociais era “ vagabunda” .
Mantínhamos um relacionamento discreto sem postagens na
mídia, porém, em dezembro de 2014, os desentendimentos fizeram com
que eu, de todas as formas, tentasse me libertar da opressão e domínio

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CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

exercido por ele. Pensei que uma viagem ao exterior com meus filhos
seria a oportunidade de mandá-lo embora de casa. Alguns
acontecimentos, porém, me impossibilitaram e, no regresso, tomei
coragem e entrei com a medida protetiva, na Casa da Mulher Brasileira.
Foi muito difícil, senti um misto de vergonha e constrangimento
por exercer a advocacia e conhecer alguns delegados, juízes. Apesar
disso, os entraves burocráticos foram imensos. Os atendentes não
acreditavam, encaminhavam-me para psicólogas, desacreditavam que
meu celular estava interceptado.
Todas as ligações que eu fazia eram rastreadas por ele. Em
vários telefonemas que recebia dele eram infindáveis as ameaças, de que:
“ isso não ficará assim” , “ mulher nenhuma nunca me disse não” , “ não sei
lidar com o não de uma mulher, ainda mais de você” . Houve muitas
tentativas de empréstimos no meu nome, sem contar o meu pavor de sair
de casa e encontrá-lo na rua ou onde eu fosse.
Foram muitos meses para superar esse trauma! Mas, graças a
Deus, com a ajuda de familiares e de uma pessoa muito especial,
acreditei no amor novamente e consegui continuar a viver e a ter
esperanças em dias melhores.

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2 .4 DISCRIMINAÇÃO E CONQUISTAS NO ESPORTE

Josiane Maria Poleski*

Me chamo de Josi. Nasci já com perda bilateral profunda, não


ouço nada. Tenho três irmãos, um deles também é surdo, sou a caçula da
família. Todos eles vieram do interior do Paraná (Mallet), devido ao meu
irmão que precisava de escola “ especial” . Sou a única curitibana. Sempre
tive meus estudos sem intérprete/tradutor de Libras (Língua Brasileira
de Sinais), desde o ensino fundamental até a especialização.
Até aos meus 15 anos de idade, aproximadamente, estudava em
duas escolas ao mesmo tempo, sendo uma normal e outra “ especial” . Sou
formada em Administração e concluí duas especializações. Estou
fazendo uma terceira especialização com ênfase na área esportiva.
Quando completei os 18 anos de idade, tinha em mente ser uma
servidora pública na área administrativa. Passei no concurso de um
Conselho Regional, e após passar todas as etapas, fui excluída do
concurso porque uma das atribuições era o atendimento telefônico.
Relutei para não perder a vaga, sugeri que o atendimento telefônico fosse
realizado por outro servidor e eu faria todas as demais atribuições. Foi
um baque para minha vida ao perceber que o mundo pode ser tão cruel
com as pessoas com deficiência.
Alguns meses depois fui admitida em uma empresa privada.
Trabalhei lá por quase seis anos, conciliando estudos, trabalho voluntário
e prática esportiva.
Mas ainda não satisfeita com a vida profissional, buscava/lutava
para passar em concursos, até que um dia passei para uma Instituição
educacional federal. Fiquei muito feliz, mas ao mesmo tempo com

* Servidora pública federal. Graduada em Administração. Especialista em Educação


Bilíngue para Surdos e em Gestão Pública. Cursa M B A em Gestão do Esporte. Possui
domínio avançado de sinais internacionais e Libras (Língua Brasileira de Sinais).

163
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

dúvida, pois tinha uma viagem marcada para minha participação no


Mundial de Futsal de surdos, com o representante do País. Tinha esta
dúvida cruel em aceitar ou não. Tinha uma resposta em mente: caso esta
Instituição aceitasse meu afastamento para participar no Mundial,
aceitaria a admissão, senão, “ cairia fora” . O esporte é minha paixão e
não troco ele por nenhum outro segmento. Não me arrependo até hoje da
minha decisão, pois estou há quase nove anos no serviço público e não
tenho problemas de comunicação e nem de trabalho com os colegas.
Minha caminhada com o atleta surda foi difícil, porque eu tive
que conciliar a vida pessoal com o esporte. O esporte começou através
do incentivo escolar, quando tinha um festival escolar para pessoas com
deficiência da cidade. Houve uma competição de corrida, quando recebi
minha primeira medalha de participação. Ali despertou minha paixão
pelo esporte. Lá se foram quase 29 anos desde a primeira medalha, ainda
a guardo com carinho.
Depois disto, percebi que tinha muita habilidade em praticar
Futsal nas aulas de Educação Física e o professor da escola de surdos
me incentivou a entrar em uma escolinha de futebol, mas abandonei
anos mais tarde, por motivos de discriminação e por me sentir sozinha
durante treinos. Nesta época não tinha acessibilidade e a sociedade
ainda desconhecia a Libras. A comunicação foi difícil, apesar de saber
que o esporte era mais por contato visual, não me sentia bem ao
participar dos treinos.
Descobri, por acaso, em setembro de 2009, quando ocorreram
os Jogos Surdolímpicos, que um atleta brasileiro surdo ganhou uma
medalha inédita de judô para o Brasil. A partir desse momento fiquei
pensando: “ Será que tem outras modalidades, além de Futsal?” Fui
pesquisar e descobri a Confederação Brasileira de Desportos de
Surdos (CBDS). Foi a partir daquele ano que aumentou o número de
surdos praticantes nos esportes do Brasil. Em 2011, a Confederação
manifestou o interesse em competir no Mundial de Futsal, desde
então, estou na Seleção.

164
Tive uma longa trajetória com a Seleção Brasileira que não
com eçou recentemente, mas sim em 2011, na Suécia. Fomos para o
Mundial desta modalidade e gênero e ficamos em 11° lugar - na
verdade, último lugar. Seis jogos, seis derrotas por goleada, incluindo
uma por 23 a 0 para a Rússia, que seria campeã. Isso mesmo, 23 a 0!
Eu particularmente sofri muito por ser capitã da primeira equipe da
Seleção Brasileira de Futsal formada. Às vezes penso que não cumpri
o papel correto naquele campeonato. Eu não estava disposta a passar
por tudo aquilo de novo. Então, iniciei um trabalho diferente,
juntamente com outras meninas que tinham papel fundamental em suas
Associações de Surdos. Foi uma luta diária na CBDS, assim com o em
todo o Surdodesporto.
A partir dali, nos tornamos as principais líderes e deixei de lado
a faixa de capitã. A faixa de capitã é usada para a comunicação com os
árbitros dentro da quadra/campo. Esta não era minha principal função.
Fomos buscar encontrar novos talentos, atletas mais novas.
Com o passar do tempo, me tornei uma líder para conduzir a
equipe dentro e fora da quadra/campo, para que as atletas surdas
pudessem alcançar seus sonhos, quando achassem que era impossível,
devido à limitação financeira, à falta de apoio. Colocava na cabeça delas
que nada é impossível, que pode ser difícil sim, mas há um jeito para as
coisas se tornarem mais fáceis. Incentivava para não desistirem assim,
de repente. Quando tivessem um problema ou vontade de desistir, que
viessem falar com igo antes de tomar uma decisão, para que eu pudesse
explicar que para viver a vida é preciso ser paciente e persistente, se
quisermos alcançar algo.
Passo a passo, fomos conseguindo vencer. Veio o título do Pan-
Americano de 2012. Depois, o bicampeonato no Sul-Americano em
2013 e 2014. Neste último fui capitã. Nos dois anos anteriores não herdei
a faixa de capitã porque trabalhava com o voluntária na CBDS e não
queria gerar conflitos de interesse. Neste período fomos beneficiadas
pelo Programa Bolsa-Atleta federal.

165
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Em 2015 disputamos nosso segundo Mundial, na Tailândia.


Surpreendemos o mundo e ficamos com o vice-campeonato do planeta.
Sim, saímos do último lugar para o segundo. Fui capitã deste vice-
campeonato. E este foi o último ano do benefício do Bolsa-Atleta
recebido por nós, que foi essencial para a preparação da nossa conquista
inédita. O ouro escapou e, nesta época, não sabíamos se foi por falta de
sorte ou da fé, perdendo mais uma vez para Rússia por 3 a 2. Numa
preparação de três anos a gente causou espanto em quase todo o mundo,
que não acreditava em nossa evolução. Recebíamos muitos deboches
durante o evento. Foi incrível essa participação, pois ganhamos o
respeito de todos os países que lá estavam.
Não me senti completa sem este ouro mundial tão sonhado.
Lutei com a equipe, apesar de todas as dificuldades que passamos. A
equipe unida foi fundamental para que o objetivo fosse atingido anos
mais tarde. Não desisti, junto com a equipe brasileira, nosso sonho
depois da Tailândia. Não haveria campeonato internacional de futsal
num espaço de 4 (quatro) anos, mas optamos por disputar o futebol de
campo no Deaflympics 2017, uma espécie de Jogos Olímpicos para
surdos, na Turquia. Fomos bronze, que foi bastante comemorado como
dupla conquista: primeira medalha de modalidade coletiva e primeira
medalha de categoria feminina, na história da CBDS. E era apenas nossa
estreia internacional nos gramados. Tivemos apoio do Governo Federal
com as passagens aéreas.
Havia a esperança de voltar a receber o Bolsa-Atleta, porém, a
contingência federal em 2018 impediu. Para piorar, não fomos
contemplados para categoria surdolímpica nem mesmo para paralímpica
ou olímpica - como um reforço, mesmo tendo resultado obtido no maior
evento poliesportivo mundial de surdos. Não desistimos, fomos buscar
outras alternativas para realizar o sonho. Fizemos “ vaquinhas” , rifas e
conseguimos dois patrocínios pequenos, mas muito importantes.
Ninguém de nós desistiu da preparação para esse Mundial 2019.
Quando uma tinha vontade de desistir, outra ajudava a erguer para que o

166
sonho fosse aquecido ali, e não apagado. Continuamos na luta
mensalmente, até irmos para o nosso terceiro Mundial. Sabíamos que
seria difícil para todos nós, porque iríamos enfrentar seleções com mais
apoio pelos seus Governos Federais e Patrocinadores e muito bem
preparadas. Não tememos!
Exatamente no dia 16 de novembro de 2019 veio a recompensa
para cobrir todos os sacrifícios: a perda dos momentos com familiares e
tudo o que tivemos que deixar de lado para seguir esse sonho. É isso:
bastava acreditar, ter a união da equipe. Mas o principal de todos foi a fé
que cada um de nós tinha. Enfim, vencemos por 4 a 0 a Polônia, campeã
europeia de 2018 e equipe com investimento governamental. E hoje
podemos dizer: "Somos brasileiras, com muito orgulho e com muito
amor!". Somos campeãs do Mundo!
Até hoje, ninguém acredita que fomos conquistar o ouro com
nossos próprios recursos financeiros, por conta própria, devido ao
pouquíssimo apoio financeiro que recebemos.
Neste Mundial, revezamos a faixa de capitão para testar o
emocional de cada uma que recebia esta tarefa. Todas tiveram suas
em oções controladas e cumpriram muito bem este papel. Com o eu
disse antes, o papel de capitão é só conversar com árbitros e tentar
liderar o jo g o dentro da quadra, mas nada de mandar fora da quadra.
Todas sabiam da importância de cumprir seu papel: demonstrar o
comportamento adequado, ter respeito, ter união e fazer se sentir uma
família quando juntas.
Então, acredito que toda a trajetória relatada até aqui foi uma
superação. Acredito que nunca foi sorte, e sim sempre foi Deus. Ele
sempre tem seus planos para cada um de nós. Com o dito, foi com
muita dificuldade. Sem patrocínio, sem bolsa, sem nada. Não somos
nem do programa paralímpico e não tivemos mais apoio do governo
federal desde o fim de 2017. H oje entendo que tudo foi Deus para que
seus planos fossem executados no momento certo e maravilhoso para
Seleção Feminina.

167
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Posso dizer que liderar uma equipe não é nada fácil. V ocê pode
ser atleta, intérprete, coordenador, assistente técnico e tudo mais, ao
mesmo tempo. Multifunções que eu tive que lidar e executar com a
Seleção. V ocê é cobrado o tempo todo para que tudo saia do jeito que a
Torcida/Diretoria quer. Às vezes eles não entendem nem veem o que se
passa por trás da equipe. Enfim, é preciso ter muita paciência e
persistência para conseguir a confiança de todos de que é possível
realizar o sonho de cada um, no tempo certo.
O maior desafio de uma atleta surda no cenário brasileiro atual
é treinar com a equipe devido à falta de apoio financeiro. Diante da
quarentena, fica cada vez mais difícil manter o ritmo de treinos com a
equipe, física e mentalmente. Além disso, também há falta de
reconhecimento por parte das autoridades de governo e falta de apoio
financeiro regularmente dos órgãos públicos e privados. Porém, aos
poucos, estamos quebrando esta barreira já que recentemente os órgãos
públicos estão dando mais atenção aos desportistas surdos.
Há outros obstáculos que uma atleta surda de futebol/futsal
enfrenta, por exemplo, sempre tem que mostrar que sabe jogar sim. Às
vezes sofremos preconceito, mas depois do vice-campeonato de 2015, a
modalidade feminina de Futsal ganhou o respeito da comunidade surda,
que tanto nos criticava em 2011.
O esporte oferece oportunidades para as pessoas com
deficiência, pelo seu bem-estar sim, porém é preciso ter apoio
fundamental dos familiares e dos amigos, para que a vida com qualidade
siga em frente. Só no esporte, perdi a conta de quantas coisas aprendi:
sinais internacionais, cultura das colegas de outras Seleções etc.
Hoje, meu conselho para crianças, adolescentes, enfim, pessoas
com deficiência que querem seguir carreira no esporte, é nunca desistir de
seus sonhos, nada é impossível. Há um jeito para alcançá-lo, tudo em seu
tempo certo. É preciso ter persistência pelo que quer na vida. Se você quer
algo, você pode, você consegue! Para isso, é preciso acreditar em si para
alcançar seus objetivos de vida, seja ela esportiva, pessoal e/ou profissional.

168
3 Família
3.1 ADOÇÃO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA
INTELECTUAL

Anônimo

Olá, eu sou a E., e quero compartilhar com você o relato de


adoção de uma pessoa com deficiência em minha família. Meu esposo
M. e eu casamos muito jovens, ele 19 e eu 17, aos 21 anos já tínhamos
nossos 3 filhos, D. a mais velha, H. o do meio e Dn. a caçula. Durante a
primeira década do casamento morávamos em uma casa de dois
cômodos que alugamos, e com muito sacrifício, conseguimos mudar para
nossa casa própria, ainda com paredes sem reboco, chão bruto, sem
portas nos cômodos, mas felizes com a nossa casa própria.
Aproximadamente após 15 anos de casados, durante este tempo
fomos nos organizando financeiramente e com a estrutura da nossa casa,
porém, ainda não tínhamos trabalho fixo. Meu esposo era um bom pai,
porém, não foi muito presente durante o desenvolvimento dos filhos, e
por conta disso, estes já na adolescência, meu esposo e eu começamos a
ter o desejo de adoção por uma criança pequena, este foi o início da
intenção sobre a adoção.
O perfil que buscávamos então era uma criança de até três anos,
sem deficiência. Foram várias visitas a um abrigo da cidade, sempre
trazíamos alguma criança para passar o final de semana conosco, até que
encontramos a menina que nos chamou a atenção, fizemos todos os
procedimentos, enquanto isso, sempre aos finais de semana, ela ia para
casa ficar conosco. Foi um tempo longo de espera até que desse certo a
adoção, porém, não deu certo o processo. A criança tinha uma irmã mais
velha, e o juiz só liberaria a adoção, se fossem as duas juntas, mas para
nós era inviável adotar duas crianças de uma vez, e por isso, acabou se
encerrando o processo. Depois de algum tempo, soubemos que elas
foram adotadas, mas por famílias diferentes, ou seja, foram afastadas.

171
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Fato é que acabamos nos apegamos muito à criança, e por conta


disso, desistimos de iniciar uma nova tentativa. Continuamos por algum
tempo ainda visitando aquela casa lar, algumas crianças levávamos para
casa no final de semana, inclusive, tinha uma delas que era uma criança
com deficiência motora, esta criança acolhemos várias vezes em nossa
casa, mas já não tínhamos mais a intenção de adotar.
Nisso se passaram os anos, e o ano era precisamente 2006: a
situação da minha família é dos dois filhos mais novos encerrando a
faculdade, e a mais velha D., recém-formada. Porém, o casamento com o
seu desgaste de anos, e os tantos adultérios do meu esposo além do vício
com o álcool. Outra questão que assolava o meu esposo era de constantes
pensamentos suicidas, que ele acabava compartilhando comigo, mas sem
interesse de querer procurar ajuda clínica para ajudar com essa situação, e
cada vez mais se acentuando a questão do alcoolismo.
D. foi trabalhar com o Fonoaudióloga numa Escola de Educação
Especial, numa cidade do interior do Paraná, onde conheceu W., na
época com 5 anos de idade, e morava na casa lar daquela escola. Ele era
a única criança, os demais moradores eram adultos que não tinham mais
família. W. tinha um irmão mais novo, sem deficiência, o qual já havia
sido adotado, mas ele por conta da deficiência, não o fora. W. é um
autista clássico e com deficiência intelectual, devido a sua lesão cerebral
no hemisfério esquerdo, comprometendo todo o desenvolvimento de
linguagem, segundo o relato histórico, aprendeu a andar com cerca de
três anos de idade, ainda não falava, seu desenvolvimento era muito
lento, e uma criança apática, sem reação.
Foi no fim do mês de agosto de 2006, quando D. iniciou seu
trabalho nesta escola e que leu os relatórios de W. sobre sua deficiência
e a respeito do histórico de maus tratos e abandono, sem mesmo vê-lo
ainda sentiu grande empatia pela criança. Com o ele estava com catapora,
apenas quase um mês após o início de seu trabalho neste local, que pode
conhecê-lo pessoalmente, porém, durante este tempo, falou sobre ele
para sua família.

172
Até que por volta do final de setembro W. volta a frequentar a
escola e finalmente D. o conhece, e só se fecha o ciclo de um sentimento
de amor por aquela criança que havia se iniciado. Na época não existia
os recursos de um smartphone para tirar uma foto e enviar para a família,
mas assim que conseguiu, ela pôde nos relatar com o ele era.
D. começou a sentir em seu coração o desejo de adotar W.,
porém, recém-formada, solteira, certamente a justiça não daria chance
para esta adoção. Mas o amor por W. foi crescendo. Eu só o conhecia
por fotos, mas o interesse em conhecê-lo e mesmo poder dar amor para
ele foram aumentando. Pedíamos para a direção da casa lar liberá-lo para
passar algum final de semana conosco, mas sempre era negado, por conta
do autismo e cerca de 400km de distância entre a cidade que D. e W.
estavam e a nossa casa, então só ficávamos na curiosidade.
Dezembro D. saiu de férias e retornou para nossa casa, na época
a tecnologia não era tão avançada e ficamos sem contato dele, porém,
decidi junto com minha outra filha Dn., de irmos conhecê-lo quando D.
voltasse de férias, e assim aconteceu no final de janeiro. W. passou dois
dias conosco no apartamento que D. morava, nenhum momento ele
estranhou, era uma criança apática e nem pegar num copo sabia. O
levamos a um clube da cidade e não sabia, sequer usar o brinquedo do
parquinho, pouco sorriso esboçava.
Na segunda e última noite então, minhas filhas e eu fomos orar
para buscar à direção de Deus na decisão da adoção. Meus filhos já
adultos, com estabilidade financeira e iniciando uma nova etapa o
aproveitar da vida, mas a chegada do W. em nossas vidas nos fez
entender que não tinha sido por acaso que D. havia ido trabalhar numa
cidade longe de casa e eu não hesitei, pois sempre fui muito cuidadosa
com meus filhos, sentia que Deus nos apresentou W. para que ele
pudesse ser amado, ter uma família, algo que nunca havia tido. N o outro
dia, pela manhã então, fui atrás de um advogado e pedi a guarda dele.
Foram apenas dois meses de espera e, no final de março de
2007, recebi a ligação de que a guarda havia sido liberada. Meu esposo

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ainda relutante, com medo de que não desse certo, porém, pintou o quarto
de azul, o preparamos com os móveis para a chegada dele. E meu esposo
e eu fomos buscá-lo. A o chegar na Escola Especial em que ele estudava
e D. trabalhava, a professora de W. relatou que parecia que ele sabia o
que iria acontecer, pois estava muito feliz, irradiante, diferente da
maneira com o costumava ser.
W. ao se deparar com meu esposo agarrou no pescoço dele e
começou a passar a mão em seu rosto, na verdade foi amor à primeira vista
dos dois, não paravam de se olhar! No dia seguinte retornamos para a nossa
cidade, D. pediu demissão da escola e foi junto conosco, não houve
estranheza ou desorganização da parte de W. em nenhum momento.
Foi uma alegria a chegada dele. Tratado com o o bebê da casa,
iniciou-se uma nova dinâmica na família: terapias, cuidados no
desenvolvimento, não tínhamos noção do que era o autismo, não
tínhamos ninguém da família com a deficiência, tudo novidade e
adaptações. Durante muitos anos, eu tive medo da mãe biológica dele
aparecer e o querer de volta. Dizia que sumiria com ele, mas que ela não
sentiria nem o cheiro de W.
Por conta dos cuidados com W., nossa família passou a ser mais
unida, meu esposo abandonou a prática do alcoolismo, esqueceu as
ideias de suicídio e nos aproximamos mais com o casal. M. se realizou na
paternidade e cuida de nosso filho de uma maneira ímpar.
A o longo desses anos, W, apresentou três sérias crises de
desorganização, que exigiu mais do cuidado da família para com ele,
graças a Deus todas elas superadas. Apresenta autoagressão, com
mordidas no braço quando contrariado ou bate a cabeça na parede
quando deseja expressar algo, essas são nossas preocupações. Tem uma
saúde fragilizada, alergias respiratórias e alimentares, exigindo cuidados
também nesta parte.
O ano é 2020, W. está com 18 anos de idade, com 1,80 de altura,
barba no rosto, e ele tem se desenvolvido aos poucos, ainda sua fala é
cheia de balbucios, e alguns deles identificamos com o algumas palavras.

174
Ainda não há controle de esfíncteres, precisa de ajuda para banho,
alimentação, porém, ele já progrediu em muita coisa. Terapias, não vai
mais, apenas na escola especializada para autistas e lá existem alguns
atendimentos extracurriculares. Ele ama a escola. Gosta também da
praia, e em todas as férias fazemos questão de levá-lo, o acalma.
Um dos filhos já se casou, já temos netos, e todos entendem que
W. precisa de cuidados, carinho e de amor. É um jovem feliz, se alimenta
de quase tudo, gosta de ouvir música e anda o dia todo pelo grande
quintal que tem em casa. É o motivo da união da família.
Ainda não sabemos em que ponto ele chegará no seu
desenvolvimento, com o será o amanhã... tem dias que são difíceis, não
dá para enfeitar ou romantizar o autismo, mas é o meu filho, um amor
que não dá para se mensurar e nem dizer que é maior ou menor se
comparado aos demais filhos.
Quando temos um filho biológico não sabemos se terá
deficiência ou não, quais serão suas características específicas e nem
sobre seu comportamento. O filho biológico ou o filho de adoção tem e
nos dá a mesma força do amor
Este é o relato de uma mãe que escolheu amar alguém que
desejava ser amado, uma mãe que tem o amor incondicional por seus
quatro filhos.

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3.2 CUIDANDO DO FILHO COM SÍNDROME DE DOWN

Marinette Costa Navea*

O meu filho F. nasceu em 18 de gosto de 1983. Ele foi esperado


com muita alegria, com a esperança de ser tudo perfeito, que é o que a gente
tem como expectativa, tanto que eu decorei o quartinho dele todo verde.
Chegou o dia! As primeiras horas foram de alegria, mesmo. Em seguida, foi
quebrado por mil perguntas que fiz ao pediatra. Finalmente a confirmação
da Síndrome de Down. Ele entrava no quarto e perguntava se nós tínhamos
algum mestiço do japonês, na família, ...muito misterioso. Eu falei, não,
meu marido é chileno e as crianças são bem amendoadas, porque as outras
duas são muito parecidas com japonesas, tipo você, com os olhinhos bem
puxados... então ele ficava intrigado. Não havia ainda o teste do pezinho,
ou pelo menos, não foi feito nesse caso, claro. Mas F já tinha as
características, como a língua maior do que seria a normal... sim a gente
também já percebe logo, então ele estava meio incrédulo, mas aí ele
confirmou. Então, veio a certeza! Imagina o baque, a dor, a angústia,
tristeza... nossa! A minha e a do pai. A gente evitou receber visitas, não que
não quiséssemos que o vissem, mas porque os vizinhos curiosos, cada um
que vinha, ficava olhando, claro e eu sofria porque a gente estava de
luto...imagine esperar nove meses o seu filho, tudo bonito, tudo enfeitado e
você recebe uma notícia dessas... não tem coração que aguante! Eu me
sentia sozinha, longe dos nossos familiares. As crianças eram muito
pequenas, as irmãs, J. estava com 3 anos, R. tinha 5 para 6 anos por a í .
Uma diferença pequena... Nessa hora, o quê a gente vai fazer? Só nos
restava parar de chorar e partir para a luta. Aí, comecei a procurar um lugar
certo para a estimulação. O tratamento consistia em fisioterapia, terapia
ocupacional, fonoaudiologia, o que foi muito complicado, porque F nasceu
numa época de muita dificuldade financeira, em nossa família, em razão da

* Mãe. Avó. Cuidadora. Dona de casa.

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crise que o país atravessava, o que levou ao desemprego do meu marido. Eu


batalhava sozinha, mas felizmente, esta situação de desemprego durou
apenas um mês, aí começamos a procurar um lugar pra ele fazer a “ fono” e
o levamos também a um neurologista, que nos atendeu com muita
habilidade: falou que F seria um menino muito bonito e se mostrou super
animado, coisa rara de se ver, agiu diferente da maioria dos médicos que te
derrubam, eles não têm a menor generosidade, eles não demonstram
sensibilidade diante uma mãe que tem um filho com uma deficiência. É
muito complicado. Então começou a fazer a estimulação, mas durou pouco
porque surgiu uma gripe eu o levei ao hospital e aí, não saí mais de lá,
porque ele estava com pneumonia. Aí começou a minha luta no hospital.
Era um mês em casa, dois no hospital, depois era uma semana em casa,
depois no hospital, até que ficou direto no hospital, quando descobriram que
ele tinha um sopro no coração, uma válvula mal formada, também, o que o
levou à necessidade de uma cirurgia cardíaca. Nesse momento, tivemos que
enfrentar, também, a burocracia do plano de saúde, que não cobria cirurgia
por doença congênita, passando então a ser internado como paciente do
serviço público de saúde. Isto nos deixou muito preocupados com o tipo de
atendimento que poderia ser dispensado a ele. Mas foi a maior surpresa! O
IC em São Paulo e o acompanhamento do cardiologista, foram decisivos e
da melhor qualidade. Veio a internação, só que eu não podia ficar junto com
o meu bebê... ele tinha nesse momento, pouco mais de dois meses. Olha o
sofrimento de uma mãe que ia para casa e só podia visitá-lo às 3:00 da tarde,
uma vez por semana, e por uma hora, mais ou menos. Me lembro de um
dia, quando eu cheguei em casa, as meninas estavam brincando no quarto
com os brinquedinhos, R, maiorzinha, com uma foto do F no colo, como se
fosse um bebezinho, assim ...o embalando. Nossa, isso daí doeu muito.
Sabia que elas também sofriam, entendi que sofriam muito, apesar de não
saberem, exatamente, o que estava acontecendo... sobre a síndrome de
Down. Então eu conversei com um psicólogo sobre como abordar esse
assunto, como é que eu deveria agir... ele me orientou a aguardar porque
elas mesmas perguntariam. Então nas conversas eu dizia que F, o irmão, ia

178
precisar de muita ajuda delas, que eu tinha que cuidar bastante, porque ele
tinha um probleminha. Então foi assim, tanto que, quando eu fazia os
exercícios nele, elas também passaram a fazer nas bonecas delas. Daí
chegou um dia e, ainda muito pequenas, elas perguntaram o quê ele tinha,
porque já haviam percebido uma diferença, então eu expliquei.
Durante a internação, logo foi necessário fazer um cateterismo.
Ele já estava com quase um ano... N o dia de seu aniversário, levei as
meninas para vê-lo. Não faltaram o bolo e as b e x ig a s . Ele estava todo
entubado, aí foi a coisa mais incrível quando ele viu as meninas: ele riu!
Ele que era sério, fechado, quando viu as meninas, acredite, ele as
reconheceu e riu para elas. Ah, meu coração parecia querer explodir de
emoção! Hoje temos essa lembrança muito forte de sua passagem pelo
hospital, que faz parte de sua história de vida. Depois do aniversário,
uma semana mais ou menos, eu recebi a notícia de que estava marcada a
cirurgia cardíaca dele, para o dia seguinte. Aí quase tive um troço.
Ficamos todos na expectativa de um resultado que não tardou a nos trazer
nova esperança: deu tudo certo! Eu fiquei mais de uma semana sem vê-
lo porque não tinha condições e só ia lá, pra receber o boletim médico.
Uma semana após a cirurgia, F recebeu alta. Nossa vinda para casa, todos
reunidos, era gratificante, mas outras questões começaram a minar nossa
convivência: tínhamos que administrar a curiosidade e o preconceito dos
vizinhos! Aliás, isso ainda é uma coisa inevitável não somente em
relação ao F, mas também às pessoas que são diferentes.
Passado esse período do pós-operatório, nossa vida familiar deu
uma guinada. Meu marido conseguiu novo emprego e nos mudamos para
Campinas. Lá, F foi colocado numa escola regular, onde ficou durante
dois anos convivendo com crianças ditas normais. Isto foi muito positivo
para o seu desenvolvimento. Em casa, lhe era dado o mesmo tratamento
recebido pelas irmãs. Assim a estimulação se fazia presente, na forma
com o os três eram criados, sem diferenciação. Mais tarde encontrei uma
Associação de Pais de filhos com Síndrome de Down, o quê foi muito
importante, tanto para F, com o para nós pais, pois é onde esses pais

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recebem apoio, orientação e dão oportunidade a seus filhos de conviver


socialmente, uns com os outros. Crianças que se tornam jovens / adultos,
de forma o mais normal possível, com independência e autonomia.
Obviamente, ninguém quer ter um filho com deficiência, mas meu filho
é maravilhoso eu o adoro e hoje em dia F tem uma vida sim, bem normal,
ele sabe escolher a roupa dele, fica sozinho em casa quando há uma
necessidade, inclusive ele tem a chave da casa. Trabalha em um
supermercado e, quando preciso chegar em casa depois dele, quando às
vezes acontece de eu ir no médico à tarde, por exemplo, e de repente ele
chega antes de mim, ele entra tranca a porta principal, abre a outra da
cozinha, se cuida e prepara lanche para ele. Quando eu chego, ele está lá
deitado, descansando. Eu sei que quem tem um filho com síndrome de
Down, tem que trabalhar muito para poder fazer essa pessoa se integrar
na sociedade e se sentir acolhida, sem nenhum constrangimento. Então é
um conselho que eu dou para as mães. Participe de grupos específicos.
N o Facebook tem uma página das mães que têm filhos com deficiência,
onde podem pedir ajuda, orientação, e receber também, a atenção de
todos... todo mundo dá uma palavrinha de carinho, encorajamento... eu
acho que nós temos que fazer isso mesmo, porque quando F nasceu, eu
era sozinha e sofria muito por não ter com quem desabafar, conversar,
me sentia meio perdida. Apesar disso eu e o meu marido levantamos a
cabeça e fomos buscar orientação e atendimento profissionais, até que F.
chegou no ponto em que está. Graças a Deus F já é um adulto saudável,
com habilidade artística e tem seu próprio ateliê de pintura, onde passa
horas dando vida às cores, as quais sabe mesclá-las, de forma
surpreendente com sua criatividade. Mas nós passamos por muitas
dificuldades, não restam dúvidas. Quando pequenininhos, as mães se
preparem. É difícil, às vezes eles são internados por qualquer problema
de saúde, os quais se tornam maiores, por ser essa pessoa que ainda
temos que estar atentas e interpretar toda a situação pela observação, pelo
conhecimento das suas reações e, justamente por isso, você sofre, fica
mais apreensiva. Mas é preciso ensinar, ele aprende, entende...aí, de

180
repente, ele sabe se comportar adequadamente, e também a respeitar as
pessoas. A gente tem que falar além do que está em livros, mas o que
entendemos ser o melhor para eles, nas diversas situações: dizer NÃO,
dói, mas é necessário, caramba, com o aos outros filhos, também. Eu
tinha que falar, me doía tanto ...mas se a gente não fizer isso, com o quê
se diz normal, senão, vira aí dono da vida, ainda mais sendo uma pessoa
com deficiência, você também tem que por limites, para não ficar um
coitado ou chamando atenção, não é mesmo? Daí ser muito importante
procurar educar com o é o certo, mas sem insistir: ensina, ele aprende,
entende, e aí, de repente, sim, ele vai saber, inclusive, se comportar
socialmente, respeitar as pessoas, cuidar do que é seu, ter certa
responsabilidade de acordo com as suas possibilidades intelectuais. Ele
adora festas, encontrar seus amigos...quando ele vai às festas, em casa
dos amigos, vai sozinho. A gente o deixa à porta e depois vai buscá-lo à
meia-noite, que é o horário combinado. O F. nunca foi rejeitado em lugar
algum. Ele já teve uma namoradinha, então a situação é muito legal
porque eles cresceram juntos, as crianças se tornaram jovens, aí chega
aquela idade em que o namorico entre eles é inevitável. Eles se
apaixonam com intensidade. Quando ele começou a namorar, a gente
percebeu crescer o sentimento, a paixão.... é com o qualquer
adolescente...não tem diferença dos “ normais” ... eles sentem amor, raiva
desprezo... eu sei porque eu convivo com meu filho, já sei quando ele
não gosta das coisas... eu sei quando ele não quer, mas olha, não teve
jeito... até que um dia, ele mesmo acabou o namoro porque ela se jogou
no pescoço de outro garoto do grupo. Ele ficou muito bravo, muito bravo
mesmo e, até hoje, são apenas amigos. Em alguns aniversários dele, aqui
em casa, cheguei a ver os dois dançando juntos, mas assim, como
amigos, ela solta, ele também, nada mais que isso. Com o é bonito de ver
esse sentimento entre eles!
Hoje, já adulto, eu penso muito no futuro. Minha maior
preocupação é porque eu já sou uma mãe idosa e tudo pode acontecer...
aí eu penso em depois que eu for, quem vai cuidar dele? Quem é que vai

181
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se preocupar com o médico, porque ele faz checkup cardiológico, todo


a n o . eu já tenho anotado na caderneta, as coisas que devem ser feitas,
para não esquecerem os cuidados para com ele. Um dia eu falei: vocês
vão achar as orientações, o período que tem que fazer atendimento
médico, não quero jamais que isso não aconteça na minha ausência. Não
quero que F apareça mal vestido, despenteado, cabelo grande ou barba
mal feita. Ele tem a Independência dele mas a gente tem que estar
também olhando, observando, esses fatos que preocupam a mãe, não
todas as mães que eu conheço, me preocupa que isso possa acontecer na
minha ausência, foi o que eu pedi, inclusive, pra não esquecerem de
cortar as unhas dele, que ele não consegue fazer. Ele faz tudo: tomar
banho, lavar a cabeça, se cuida então, mas esse cortar as unhas, ele não
consegue eu não deixo nunca de prestar atenção nisso.
Felizmente, ele tem noção de que, na minha falta, ele precisará
ficar com alguém que cuide dele, e já fez a sua escolha. Disse que quer
ficar com a irmã J. hoje casada e com três filhos. Graças a Deus eles se
dão muito bem e a família dela é apaixonada por ele.

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Felipe Guillermo Costa Navea (Natural de São Paulo - Pessoa com Síndrome
de Down)

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3.3 PERDA DE VISÃO POR NEGLIGÊNCIA

Valéria Mendes Siqueira*

Fui diagnosticada com retinose pigmentar, aos 3 anos de idade.


A partir daí, o oftalmologista sugeriu aos meus pais que me internassem
no Instituto Paranaense dos Cegos para eu me acostumar com a vida que
iria levar. Inconformados com o primeiro diagnóstico e com a sugestão
de internação, meus pais não aceitaram a indicação do oftalmologista e
sempre estudei em colégios regulares de ensino. Da mesma forma, meus
pais buscaram o melhor oftalmologista em retina na época, quando
passei a fazer o tratamento em Copacabana, no Rio de Janeiro/RJ.
Durante o tratamento, fiz parte de uma pesquisa inovadora.
Tomei injeções dos 3 aos 15 anos, a cada seis meses, por quinze dias
seguidos, o que fez com que a degeneração da minha retina ficasse
estacionada no período entre meus 15 anos até 25 anos, quando
engravidei, e a doença voltou a progredir.
Algumas lembranças de criança e de adolescente me remetem
ao que hoje chamamos de bullying. Eu frequentemente era chamada de
“ quatro olhos” , “ ceguinha” , “ fundo de garrafa” , etc., o que me fez ser
uma adolescente muito agressiva. Era comum eu bater naqueles que me
xingavam. Sempre fui a melhor aluna da escola em todos os níveis,
porque fui autodidata em todas as matérias, já que era muito difícil copiar
do quadro-negro figuras geométricas, expressões matemáticas repletas
de símbolos e mesmo escrita corrida na velocidade das outras pessoas.
Creio que meus pais, durante a minha “ aborrescência” ,
sofreram bastante porque eu sempre deixei claro que se um dia ficasse
cega de verdade, já que essa era uma sentença que pesava sobre mim

* Advogada. Coordenadora no Brasil para Disability and Rehabilitation Profissional


Association (2021 a 2025). Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com
Deficiência da OAB/PR, responsável pelo Centro de Inclusão e Apoio à Pessoa com
Deficiência da OAB/PR. Terapeuta Holística e Coach.

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CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

todos os dias, desde os meus 3 anos, eu me mataria. E sabe o pior? Eu


faria isso mesmo se tivesse ficado cega naquela fase da adolescência.
Acho que, por causa da baixa visão, tive poucas amigas de
verdade e isso me fez criar vínculos ainda mais fortes com algumas
pessoas que, junto com meus pais, foram realmente importantes na
minha vida (meu irmão, minha bisavó materna, minha avó e tia paterna,
meu tio surdo irmão do meu pai, o padre da igreja São Judas Tadeu).
Também, pela baixa visão e por ter bem poucas amigas, criei
vínculos profundos com meus animais de estimação, sendo estes muitas
vezes, os únicos amigos que uma criança com deficiência consegue ter
durante a infância.
Minha trajetória e relação com o trabalho se iniciaram aos meus
14 anos, trabalhando no escritório de contabilidade do meu pai.
Creio que esta fase foi singular na minha vida e me preparou
para todo o restante em que fiquei de fato cega, pois, apesar da baixa
visão que tive, meu pai jamais me isentou das obrigações que me foram
atribuídas.
Lembro de quando eu não conseguia ler as letrinhas minúsculas
e coloridas de um formulário que teria que preencher, ele datilografava
um, com o orientação, para eu saber o que cada campo pedia, e exigia que
eu fizesse o mesmo com os das demais empresas que eu era responsável
(18 empresas). Da mesma forma, quando as anotações a serem lançadas
vinham apagadas, pois, se usava carbono para transcrever os dados em
todas as vias da nota fiscal, ele fazia minha mãe ditar - após o horário do
trabalho meu e dela - todos os dados que tinham que constar nos livros
de entrada, saída, controle de estoque, etc. Com estes dados eu realizava
o lançamento e emitia as guias de recolhimento de impostos e taxas
estaduais e municipais.
Na área pessoal não era diferente. Quem sabe o que é uma RAIS
sabe que se informa até a “ alma” do empregado da empresa. Este
formulário exige todos os dados de todos os empregados, de todos os
meses do ano e de todo e qualquer verba recebida por ele. E com o foi

186
dito anteriormente, meu pai preenchia um formulário para eu saber o que
era requerido em cada campo, e eu preenchia todos os demais, das 18
empresas que eu era responsável.
Isso, na minha concepção, foi fundamental para toda a minha
vida, porque aprendi a fazer tudo o que posso fazer dentro da adaptação
necessária e a não transferir essa tarefa a terceira pessoa. Facilitou muito,
inclusive, o estudo do Direito, na graduação, pois quando entrei na
faculdade já estava cega, mas totalmente adaptada às necessidades que
teria desde o primeiro dia de aula.
Apesar de ter baixa visão, sempre fui vaidosa e assim tive meu
primeiro contato com a massagem modeladora. Mal sabia eu que a minha
vaidade me levaria a conhecer uma técnica que, mais tarde, sustentaria a
mim e a minha filha, sendo o meio pelo qual iniciei uma trilha de
conhecimento acrescido de paixão pelas terapias holísticas.
Quanto a minha formação em Direito, antes de qualquer coisa,
aprendi a transformar livros e xerox em documentos acessíveis através de
scanner e de um programa específico que transformava a imagem em texto
de Word e, assim, tive acesso a todo material necessário ao meu estudo.
Também os professores da graduação não tiveram que fazer
qualquer adaptação as suas aulas, a não ser me fornecer a prova em
arquivo Word para que eu respondesse junto com meus colegas na sala
de aula, situação que fez com que muitos professores só descobrissem a
minha deficiência quando eu requeria a prova adaptada.
Durante a faculdade de Direito, também tive poucos amigos e
para dizer a verdade acho que tinha mais colegas que não gostavam de
mim na turma do que o contrário. Meu pai sempre me dizia que quando
chegávamos pela manhã na faculdade, além de algumas pessoas ficarem
totalmente mudas para não me cumprimentar ou falar comigo, havia
carteiras e cadeiras espalhadas pelo caminho que eu teria de fazer para
chegar até o local aonde eu sentava. Além de que, é claro, eram raros os
convites para sair para um barzinho ou baladinha com meus colegas de
turma. Mas, dentre os poucos colegas que fiz, tenho a alegria de trabalhar

187
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com um deles até hoje e de ter umas três colegas que ainda mantenho o
contato e tenho muito carinho.
Voltando para a minha graduação em Direito, o fato de eu
digitar rapidamente me facilitou anotar tudo o que meus professores
passavam em sala de aula. Então não fiz uso de gravadores ou de outros
métodos que exigissem esforço maior, fora daquele período,
possibilitando assim, que eu trabalhasse com o massoterapeuta no contra
turno, à tarde, sendo esta a principal forma com a qual sustento a mim e
a minha filha, até os dias atuais.
Faço questão de dizer que sou eu quem sustenta a mim e a
minha filha porque este é outro período importante da minha história.
Como já disse, logo que engravidei o meu problema de visão voltou a
progredir e trouxe uma catarata de presente com o nascimento da minha
filha. Quando ela tinha 1,2 anos fiz cirurgia de catarata nos dois olhos.
Costumo dizer que entrei enxergando no hospital e sai de lá guiada pela
ausência da visão que antes da cirurgia era consideravelmente razoável.
Usava 5,5 graus e 6 graus nos óculos, o que me permitia andar sem
qualquer auxílio de pessoa ou de bengala, ler letras em tamanho normal
e até letrinhas da Bíblia, e levar uma vida pessoal e profissional dentro
dos padrões considerados normais para a sociedade.
Hoje sei que jamais deveria ter feito aquela cirurgia que me fez
entrar enxergando no hospital e sair dele guiada, pois, com a doença
degenerativa que eu tinha, a cirurgia de catarata representava um risco
enorme de ficar cega. Entretanto, além de não ter tido essa informação
antes de fazer a cirurgia, o grupo dos médicos que me operaram garantiu
que não havia risco algum.
Com a nova realidade de pessoa praticamente cega, meu ex-
marido e pai da minha filha foi embora e em seguida constituiu nova
família, ignorando absolutamente qualquer necessidade da própria filha
que temos em comum.
Então, neste período fiquei cega, fui abandonada e descobri que
já era traída há certo tempo. Não estava trabalhando, as parcelas do

188
seguro-desemprego haviam terminado e eu não tinha dinheiro para
absolutamente nada e ainda tinha a minha filhinha de apenas 1,2 anos
para criar.
Confesso que de fato, só me dei conta desta realidade, no dia
em que tive de limpar e desligar a geladeira da minha casa. Não havia
nada para colocar nela, bem com o também não havia nada nos armários,
e sequer, um shampoo eu tinha em casa. Com o eu morava de favor em
uma casa no terreno dos meus pais, naquele período em que eu iniciava
um processo de reabilitação, eu comia na casa deles, tomava meu banho
lá e dependia deles para me auxiliarem com toda a logística minha e da
minha filha (escola, médico, etc.).
Neste início lembro de três passagens singulares que marcaram
a minha vida de “ cega fresca” :
1. Quando eu, no cantinho da sala dos meus pais, bem na ponta
da mesa de imbuia que eles tinham, segurando minha filha no colo e
chorando, perguntei se eles já tinham contado para o meu irmão, que
morava na época em New York, se ele já estava sabendo que a irmã dele
tinha ficado uma inválida, que não servia para mais nada na vida;
2. Quando estava caminhando, lentamente, passo a passo, para
o local aonde eu estava iniciando a minha reabilitação, sozinha, por
imposição minha, sem bengala, porque eu tinha vergonha de haver me
tornado “ uma mulher cega” , então caí de joelhos sobre um monte de
areia no meio da calçada, bem no centro da cidade, e na frente de um
rapaz que gargalhou e pior, caminhou longas duas ruas, rindo de mim.
Digo longas porque pareciam nunca acabar, rindo desesperadamente da
minha condição de pessoa cega, sem mobilidade, andando suja,
lentamente e chorando. Naquele dia e por conta deste episódio, peguei a
bengala pela primeira vez e decidi que aprenderia a andar com ela para
jamais passar por aquilo novamente; e
3. Quando tive que limpar e desligar a minha geladeira por não
ter nada para por dentro dela. Lembro de que depois que limpei tudo, fui
me abaixando até ficar prostrada no chão chorando, muito,

189
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desesperadamente, por bastante tempo, porque não sabia o que seria de


mim e da minha filha dali em diante. Depois de chorar tudo o que podia,
decidi me por em pé e lutar por nós duas, custasse o que custasse, doesse
o que doesse.
Enfim, o início da minha cegueira foi uma fase muito difícil, me
sentia impotente, humilhada e com uma responsabilidade enorme que era
a criação de uma filha. Mas com o auxílio dos meus pais, eu consegui
retomar minha independência e autonomia, através da mobilidade com a
bengala e do trabalho de massoterapeuta.
Quanto ao trabalho de advogada, infelizmente constatei que
ainda existe muita discriminação às pessoas com deficiência e que apesar
desta classe profissional jurar defender os direitos de todos, falta colocar
em prática o juramento que faz.
Da minha parte, enquanto eu viver e Deus me permitir, jamais
deixarei de lutar pelos ideais de inclusão, dignidade, respeito e amor
fraterno! E apesar de tantas coisas que já vivi, posso dizer que levo no
meu coração muito amor pelas pessoas que junto com igo trilharam esta
caminhada!
Gratidão!

190
3 .4 VIVER COMO ESPOSA, MULHER E CUIDADORA

Izildinha Aparecida de Paula Gomiero*

Desde pequena aprendi a conviver com a deficiência, visto que


meu pai possuía uma deficiência e então sempre convivemos com a
dificuldade e o preconceito que isso ocasionava. Foi aí também que
aprendi o valor que existia no amor pois, mesmo com todas as
dificuldades, minha mãe sempre esteve ao lado de meu pai, que
suplantava com vontade, todo preconceito contra suas limitações e falta
de oportunidade em relação a empregos e à forma que pudesse ganhar a
vida. Nunca deixou de trabalhar e tentar ser o provedor da casa.
Cresci e casei com um homem que prometia fazer com que eu
esquecesse tudo que já havia passado e que me sinalizava um futuro feliz.
L ogo após nosso casamento, fiquei grávida e tive meu primeiro filho, em
uma gestação problemática.
Pouco tempo depois, estava eu frente ao problema do alcoolismo:
meu marido iniciou um aprofundamento no vício da bebida e isto
permaneceu por longos sete anos. Chegou a um momento em que eu não
mais queria conviver com isso. Deixei, então, bem claro para ele e propus
que procurássemos ajuda. O único ponto bom que havia com relação à
bebedeira de meu marido, se isso é possível, é que ele não era violento.
Após ter atingido a sobriedade, iniciou todo no processo para
crescimento na sua vida pessoal e profissional. Diria que se esforçou até
demais, deixando às vezes de lado, a convivência familiar para poder ter
crescimento pessoal e profissional. Quando tudo parecia que estava se
encaminhando para que pudéssemos ter uma vida tranquila e feliz, de
repente surgiu em nosso caminho uma doença incurável, a esclerose
múltipla, que no decorrer do tempo começou a cobrar o seu preço.

*Mãe. Avó. Dona de casa. Ativista social. Natural de São Paulo/SP. Esposa de Wilson
Roberto Gomiero.

191
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Primeiro fez com que ele se afastasse do serviço e passasse um


período recebendo auxílio-doença do INSS, consequentemente, toda a
nossa renda familiar sofresse uma enorme perda. Esse fato levou meu
filho, na época com 14 anos de idade, a procurar um emprego para ajudar
no sustento da casa e propiciar sua formação escolar. Também eu, que
desde que casamos não mais trabalhava, passei a trabalhar para
podermos manter ao menos nossas necessidades atendidas.
A o final de anos, finalmente, ele teve sua aposentadoria por
invalidez concedida pelo INSS. Não que isto tenha melhorado muito,
mas ao menos tínhamos segurança quanto a ter esse rendimento.
Tão logo começou sua doença, nós havíamos comprado uma
casa velha e ele aproveitou para reformá-la e deixá-la em boas condições.
Também aprendeu a virar-se na cozinha, nas atividades domésticas e
supria assim a falta que eu fazia em casa, por estar trabalhando e não
termos, à época, com o contratar uma empregada para tais serviços.
Embora com dificuldades, éramos felizes.
Em 2000, novamente tivemos problemas de saúde com ele. Em
um primeiro momento achávamos que era devido à esclerose múltipla.
Porém, com a evolução de seus problemas, viemos a descobrir que tinha um
tumor medular, o que exigiu que passasse por uma cirurgia de coluna, com
mais de 10 horas de duração e que alterou todo seu comportamento físico.
Após dois anos, sofreu uma queda e teve que passar por outra cirurgia, a
qual resultou numa lesão medular na altura de C3.
O que já era complicado ficou cada vez mais difícil. Além de
ter perdido toda a sensibilidade do corpo do pescoço para baixo na
primeira cirurgia, agora apresentava paralisia na perna esquerda pela
lesão, amortecimento e perda de força na perna direita pela esclerose,
perda de movimento dos braços esquerdo pela lesão e amortecimento e
perda de força do braço direito pela esclerose.
Com isso, ele passou a depender de auxílio para quase tudo,
desde alimentação, banho, até algumas outras necessidades. Como
conseguia ficar em pé por pouco tempo, com o auxílio de uma pessoa

192
ainda dava alguns passos e conseguia ir ao banheiro. Dormíamos juntos
na nossa cama de casal.
Com a evolução do quadro, tivemos que comprar uma cama
hospitalar para tornar mais fácil sua movimentação. Ele também passou
a utilizar uma cadeira de rodas e tivermos que providenciar uma cadeira
de banho. Começou também a ficar difícil retirá-lo da cama para colocá-
lo na cadeira de rodas e de banho, então, lançamos mão de um guincho,
Desde 2000, estávamos nos envolvendo no Terceiro Setor, trabalhando
nas associações de pacientes para poder aprender a utilizar os serviços
públicos que temos direito e também começar a atuar para ter mais
direitos. Como eu já havia parado de trabalhar, definitivamente, por ter
que tomar conta das suas necessidades no dia a dia, passei então a
acompanhá-lo em toda essa rotina de associações, conselhos de direitos,
reuniões com políticos, viagens para intercâmbio com outros pacientes e
também para palestras sobre esclerose múltipla.
A partir de 2010, começamos a nos envolver com doenças raras
o que, no final, nos levou a participar, digo ele, a participar do Conselho
Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, o CONADE, em
Brasília, o que fazia com que tivéssemos que viajar a cada dois meses.
Daí passamos a conviver com todos os problemas da
acessibilidade no Brasil, desde a questão do transporte terrestre,
transporte aéreo, hospedagem e até mesmo a falta de acessibilidade para
utilização de banheiros, o que ocorre até na própria Secretaria Nacional
da Pessoa com Deficiente, em Brasília.
Parece-me que o meu marido está tão concentrado na sua
participação nos conselhos, nas discussões, às vezes dá impressão de que
ele não está atento às necessidades que não são atendidas para as pessoas
com deficiência. E isso me causa revolta, pois acredito que o nosso
trabalho não está sendo visto e levado a sério com o deveria.
Sempre digo a ele que, muito do que ele conseguiu e muito do
que nós temos, deveu-se a inúmeras vezes que tive que me humilhar para
pedir favores, para fazer valer os direitos que não deveriam necessitar

193
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

nem mesmo de ser pedidos. Tenho a impressão de que as pessoas adoram


escutar os dramas e posar de benfeitores quando atendem às
necessidades que na verdade são direitos.
Por diversas vezes tenho dito que, invés de ficarmos brigando por
uma enormidade de direitos, deveríamos brigar - com todas as nossas forças
- para atendimento de direitos básicos. Temos muitos direitos mas temos
uma quantidade muito maior de desrespeito a esses direitos.
Nós nunca passamos por uma situação de violência contra nós,
mas neste tempo todo que caminhamos neste mundo das pessoas com
deficiência, cansamos de ver casos de famílias que agridem seus
deficientes, que se utilizam deles, para conseguir vantagens e inúmeros
outros casos.
Bem, alterando esse assunto, para nossa vivência com o casal,
posso dizer que até 2000 tínhamos uma vida absolutamente normal.
Porém, após 2002, em virtude da quantidade enorme de remédios que ele
toma para poder suplantar as dores neuropáticas que o afligem durante
quase todo dia, e também em função da lesão medular e da perda de
sensibilidade ocasionado, ele não tem mais nenhuma atividade sexual, e
isto resulta que hoje persiste muito mais a questão do carinho,
cumplicidade e respeito que temos um pelo outro.

194
3.5 ENCARANDO A MATERNIDADE E O AUTISMO

Samantha Tisserant Siqueira dos Santos*

O autismo chegou na minha vida há quase 6 (seis) anos. Minha


filha faz aniversário em outubro e no mês seguinte, em novembro, faz
aniversário de diagnóstico. É aniversário porque realmente é um marco
na minha vida, uma virada de página. E que virada!
Deixei parcialmente o meu trabalho e me dediquei a ela. Surgiu
o desespero do inesperado, do futuro incerto, do luto pela idealização da
filha que não existia e em seguida, a esperança por ver a evolução pelas
terapias e o sonho de uma melhora significativa.
Quando olho para trás, eu me canso só de me lembrar. Foram
tantas terapias, milhares de quilômetros rodados, atravessando a cidade
pela luta de ver uma filha independente.
A minha pequena é considerada autista moderada, embora
discorde da nomenclatura, pois há aspectos “ leves” no quadro dela.
Entretanto, com quase 8 anos completos, ainda não consegue se socializar
com crianças e não consegue dialogar, embora seja muito carinhosa e a filha
mais perfeita dentro da sua imperfeição. Ela tem comportamentos diferentes
e estereotipados, então, é muito comum olhares estranhos quando estamos
em um ambiente público. Tais olhares já me causaram dor, hoje são pessoas
invisíveis aos meus olhos e não me afeto mais.
Parece que com o tempo, nesses longos anos que só foram 6
(seis), mas que parecem no mínimo uns 10 (dez), o pai e mãe de crianças
com deficiência criam uma verdadeira casca, uma armadura. Eu me sinto
assim, cascuda, pois foram tantas crises enfrentadas, choros, preconceito
do mundo, negativa de matrículas nas escolas, reuniões infindáveis com
terapeutas e professores, além de terapias incessantes que se você não se

* Advogada. Membro da Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência da


OAB/PR.

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CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

proteger, você cai. E ficar caída para uma mãe de autista não é uma
possibilidade. Se cair, temos que nos levantar rápido. E não foram poucas
as vezes que caí e me levantei. Eu também passei por choros (e muitos!) e
terapias. Procurei me procurar, meditei, fui encontrar eu mesma.
M esmo com as dificuldades, a minha filha só me faz evoluir
com o ser humano. Eu sei o quanto é ser feliz com o pouco. Ser feliz por
ela conseguir imitar um gesto, uma palavra nova, uma habilidade.
Enxergo que cada pessoa é única e que não existe perfeição e que temos
que aceitar todas as pessoas com o são.
E mesmo após os 6 (seis) anos do aniversário do diagnóstico,
esses longos anos que demoraram tanto a passar, eu me sinto bem e feliz,
mesmo ela não tendo evoluído como o idealizado por mim lá no com eço
do diagnóstico.
É que hoje eu vivo o hoje! Não penso no que passou nem muito
no que vai ser. A ansiedade lá do início me paralisava. Quando chegava
perto do aniversário dela, sempre me perguntava se um dia ela
conseguiria me perguntar algo ou manter um diálogo e me dava uma
grande tristeza.... E tudo que eu esperava um dia, está acontecendo, mas
muito, muito lentamente e somente com a motivação da existência da
vida dela é que eu sigo na persistência.
Hoje, fruto da quarentena e pela realização de um sonho, estou
esperando uma bebê. Não a idealizo, apenas a amo e a aceito. A vida me
ensinou a não idealizar e sim ACEITAR e AM AR, pois somente com o
A M O R é que tudo faz sentido. Não penso se será autista ou não. Apenas
vivo o hoje, vendo minha barriga crescer e passar apenas tranquilidade
para esse ser que está no meu ventre. Estou verdadeiramente curtindo
essa fase, sem me “ PREocupar” com o que será. Aliás, ela está se
mexendo nesse exato momento, já deixo registrado.
A lgo que me ajuda muito é que eu tenho uma rede de apoio de
14 (quatorze) mães de crianças e adolescentes com autismo. Eles são de
diferentes jeitos, cada um do seu, porque afinal, somos únicos. Elas me
dão força para continuar na luta, são mais família do que família, são

196
mais irmãs do que irmã pelo simples fato de que passamos pelo mesmo
caminho, as mesmas dores e superações. E uma ajuda a outra, numa linda
rede de apoio e laços de afeto.
Se eu fosse dar uma dica para uma mãe que recebeu o
diagnóstico hoje é: viva o hoje, procure pessoas com o você e cultive uma
rede de apoio. Isso está sendo muito importante nessa pandemia que
vivemos, pois obviamente tudo bagunçou. As terapias e escola
suspenderam e a mãe atípica acrescentou mais duas funções: ser
professora e terapeuta.
E é muito mais fácil superar juntos do que isoladamente. Essa
rede de apoio vem para isso. Quando uma cai, várias mãos se estendem.
É como disse, o AM O R vence tudo. Parece clichê, mas não é, é
a mais pura verdade. Hoje eu ainda continuo sem saber se minha filha
vai atingir a plena independência, mas até lá, estarei com ela, feliz e a
incentivando, vivendo o hoje e dando-lhe muito amor.

197
3 .6 DE REPENTE... AUTISTA

Sandra Mara Aparecida do Prado*

Vida tranquila, estabilizada, emprego dos sonhos, filha na


faculdade, acabara de me separar, estava mesmo precisando de novos
desafios e Deus enviou. Engravidei, mesmo tomando todos os cuidados.
Quando Deus quer, Ele quer!
Fiquei feliz da vida. Sempre tive a intenção de ter mais filhos.
Meu sonho era ter um menino, pra servir o Exército e parecia adivinhar
que era o meu menino a caminho. Gravidez de risco, 9 meses de repouso,
muitos problemas, mas ele veio ao mundo, dei-lhe o nome de G.P.P.N.,
em homenagem ao meu pai.
Apesar de ter nascido enorme e super forte, aos 11 meses tomei
o primeiro susto: G. esteve 11 dias hospitalizado, com pneumonia e a
partir de então, o quadro de problemas pulmonares foi repetitivo e tive
que sair do meu emprego dos sonhos pra cuidar de sua saúde.
Um ano após, assim que ele se recuperou, voltei ao trabalho. A
vida seguia, mas G. sempre com problemas de saúde. Aos 4 anos de
idade, resolvemos colocá-lo na creche. Tudo parecia estar bem, ele foi
feliz da vida, mas no segundo dia, fui buscá-lo e ele estava em estado de
choque. Fiquei horrorizada diante da situação que o encontrei, todo sujo,
havia feito as necessidades fisiológicas nas calças e estava sem voz de
tanto chorar. Levei-o ao pediatra e ele o afastou da creche por 6 meses.
G. ficou catatônico sem reação, mas não sabíamos o que houve.
Voltei à creche implorei, fui ao MP (Ministério Público) para saber o que

* Coach em TEA (Transtorno do Espectro Autista). Aluna de A BA (Análise do


Comportamento Aplicada). Cursando Psicopedagogia Mãe e avó de autista.

199
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

houve, mas ninguém falou e as sequelas foram irreversíveis até hoje. G.


parou de comer, não levava sequer a colher à boca.
Fui levando por mais um tempo assim até que saiu a vaga dele
no SESC Batel, que era bem próximo ao meu trabalho. G. retornou à
creche e mais uma vez teve que sair. Ele não se alimentava e então a
Direção ficou com medo e não quis que ele ficasse ali. Ele acabou indo
mais uma vez para o SESC Portão, mas também sem muitos avanços,
era tudo muito difícil.
Em 2006, por orientação médica, mudamos para uma casa, para
que ele criasse imunidade. O médico estava certo, fez muito bem para G.
No início do ano letivo de 2007, começou na primeira série, não
deu uma semana de aula e todos os dias me ligavam da escola para ir
buscá-lo, e o descreviam com o uma criança que eu não conhecia: batia,
mordia, voltou a fazer as necessidades fisiológicas nas calças. Eu achava
que estava sendo vítima de bullying.
Ele foi encaminhado para avaliação e tivemos o privilégio de
um Centro de Referência estar dando suporte à rede da Secretaria de
Educação de Araucária, e aceitaram avaliar G.. O resultado saiu em uma
semana e foi na antessala da Secretaria de Educação que ouvi a primeira
vez na vida, a palavra AUTISMO.
Eu estava cursando Pedagogia para abrir uma escolinha com
umas amigas, pois havia parado de trabalhar para cuidar do meu filho e
foi na faculdade que entrei no Google pra pesquisar, e meu mundo caiu.
Li as piores barbaridade sobre autismo, mas vi ali muitas pautas
que meu filho tinha. Meu luto felizmente durou pouco, chorei tudo a que
tinha direito por 2 dias apenas e resolvi ir em busca de qualidade de vida
para o meu filho.
Comecei a pesquisar tudo sobre autismo e as possibilidades,
estudei muito, e passava noites em claro traduzindo textos que eu

200
encontrava na internet, porque naquela época, não tínhamos informações
de qualidade. Foi então que resolvi criar uma associação de pais, com a
ajuda de uma psicóloga do grupo de pais.
Em 2009 fundamos a Associação Kasa dos Autistas (AK A),
hoje referência em Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Participamos da criação de leis municipais, damos assessoramento às
famílias que solicitam ajuda.
Depois de passar 2 anos em busca do que não tínhamos nem na
saúde e nem na educação, resolvi eu mesma ser o apoio que meu filho
precisava. Especializei-me, aprendi sobre protocolos internacional de
intervenção e eu mesma fui todos os terapeutas que pude para ele. Não
tinha plano de saúde e no SUS não existia, e ainda não existe,
atendimento específico e de qualidade para as pessoas com autismo.
Meu filho teve um desenvolvimento fantástico, passou em
primeiro lugar na Universidade Positivo, mas infelizmente ainda não está
na faculdade porque não podemos pagar.
Hoje eu vivo em função do TEA, estou fazendo Faculdade de
Psicopedagogia com bolsa gratuita, que conquistei com a minha nota do
Enem. Faço formação em A B A 1 e TEA, quero ser analista do
comportamento para poder ajudar as famílias com o diagnóstico do TEA.
Tenho o sonho de construir um Centro de Referência em TEA, aqui na
minha cidade e estou trabalhando para isso.
Hoj e temos mais um diagnóstico na família: meu único neto é autista.
Não foi fácil, não romantizo o autismo, não é benção, não é
carma, praga, não sou super-mãe, “ mãe azul” , nada disso. Passamos por
momentos desesperadores, alienação parental. A família nos desprezou,
meu filho sofreu bullying, rejeição, exclusão, passei dias ajoelhada ao pé

1 ABA - Applied Behavior Analysis ou Análise do Comportamento Aplicada é uma terapia


que intervém em múltiplos comportamentos da pessoa diagnosticada com TEA.

201
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

da sua cama pedindo a Deus forças. Mas com toda certeza, esse foi o
maior ensinamento da minha vida, colocar-me no lugar do outro me fez
ser um ser humano infinitamente melhor. Sei que não é fácil e muitas
mães não conseguem, devido a falta de apoio. O índice de suicídio entre
as mães de filhos com autismo é altíssimo, esse é o motivo da minha luta:
ser em prol de “ quem cuida” . A falta de atendimento às famílias
especificamente às mães, também é uma violência, somos invisíveis.
Não foi fácil, nem tudo são rosas, mas as que eu pude colher
fizeram a diferença na minha vida.
Am o meu filho incondicionalmente, muito além do TEA.
Essa é a minha história.

202
3.7 CONHECENDO A DEFICIÊNCIA VISUAL - BAIXA VISÃO

Adriana Maria Kaiser Tamarozi*

Esta história é sobre minha filha L. nascida em 2000, quando eu


era apenas uma garota de 16 anos e morava com minha mãe adotiva, que
já tinha 65 anos. Com 13 anos, perdi meu pai adotivo e me senti muito
sozinha. Pouco depois, conheci meu primeiro namorado e acabei
engravidando. M e vi muito assustada. O pai da L. 9 anos mais velho, não
tinha família na cidade, morava sozinho e trabalhava. Uma pessoa com
pouca cultura e estudo. Também se sentia perdido, mas com o já
frequentava a minha casa, fomos juntos contar para minha mãe. Ela ficou
brava, preocupada e decepcionada, não gostou da notícia, mas baseada
de maneira pragmática no catolicismo mais antigo e em moldes
moralistas, orientou (exigiu) que nos casássemos.
Na gestação não tive problema diagnosticado ou observado. Logo
que ela nasceu o obstetra viu que seus olhos não pareciam normais. Aquele
momento foi o mais desesperador que eu já havia passado, impossível
explicar. Fiquei sem entender e questionava o que estava acontecendo, mas
ninguém me respondia. Nessa hora entendi que todas as expectativas
anteriores se romperam. Costumamos idealizar o bebê e como ele será. Me
dei conta de que um filho nunca é uma projeção fiel dos nossos desejos.
Então nesse momento o que fica é frustração e decepção.
Eles a levaram para examinar e, quando voltaram, o médico
disse que ela tinha alguma enfermidade nos olhos, mas ainda não sabia
qual. Suas córneas eram bem opacas, esbranquiçadas. Eu chorava muito,
pois me dei conta de que ela talvez não enxergaria. Muito triste eu me
perguntava: por que com igo? Por que tinha que ter uma criança com um
problema de saúde? Como eu iria fazer? De fato, haveria um tratamento?

* Psicóloga Clínica. Especialista em Psicologia Analítica.

203
CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

Uma melhora? Uma cura? Sentimentos oscilavam entre esperança e


pessimismo. M e sentia vulnerável e fragilizada.
Ficamos na maternidade por 18 dias seguidos, para conseguir
uma vaga na oftalmologia do Hospital de Clínicas. Os deslocamentos
entre hospitais, para exames e consultas, foram com ambulância do SUS.
Então veio o diagnóstico de Glaucoma Congênito de Ângulo Fechado.
Pensou-se que poderia ser Catarata Congênita, mas vários especialistas
conferiram o diagnóstico.
É uma doença rara e talvez a pior das oculares: atinge o nervo
óptico, fazendo com que a pressão do olho aumente muito. Ela nasceu
com pressão ocular de 40 e o normal na escala é, no máximo, 20. Quando
explicaram sua situação, fiquei desesperada e chorava, não fazia ideia do
que teríamos que enfrentar ou se os olhos dela iriam aguentar. Sentia
muita tristeza, me agarrava na ajuda de alguns amigos e me permitia
rezar, orar e pedir pelo melhor. Confortava suas dores com meu seio,
mesmo quando não tinha fome. Esse vínculo era novo para mim, pois
nunca fui próxima da minha mãe. Era um desafio, me via tendo que
cuidar de um ser indefeso, que precisava de mim mais que tudo.
Com 18 dias L fez sua primeira cirurgia. Foi um procedimento
agressivo, mas diminuiu a pressão de 40 para 10. Com isso, seu olho foi
se restabelecendo e a lesão na córnea retrocedendo. Em alguns meses,
ela recuperou parte da visão do olho direito. O esquerdo, nunca teve
melhora. Em paralelo, levei-a em especialistas particulares para ter
outras opiniões. Todos foram unânimes em dizer que estava sendo
tratada pelos melhores profissionais da América Latina e que o HC era
referência no caso. Um médico renomado me disse: “ mãe, L. não vai
enxergar muito além disso e, provavelmente, vai perder a visão
gradativamente. Indico que a coloque o mais breve possível numa escola
especializada que faça estimulação visual.”
Com 10 meses, ela iniciou os estímulos numa escola para
pessoas com deficiências visuais. Para nossa sorte a instituição ficava a
apenas duas quadras de casa. Lá foi onde, pela primeira vez, entrei em

204
contato de fato, com essa realidade de ter uma filha que mais tarde ficaria
quase totalmente cega.
Tudo era novidade, desconhecido e amedrontador. N o início,
me sentia estranha no meio de outras mães com suas crianças, era um
misto de sentimentos tristes, com pena. Não só dos outros, mas também
de mim mesma, por fazer parte daquela rotina.
Uma das professoras também tinha Glaucoma e foi muito
importante para me mostrar que era possível ser uma pessoa totalmente
capaz, independente e autônoma. Sua mãe era uma pessoa muito a frente:
estimulava, incentivava e foi quem abriu a instituição para que a filha
pudesse trabalhar com crianças e adultos com a mesma deficiência. Foi um
dos maiores exemplos, com quem consegui vislumbrar que seria possível
L. ser quem ela gostaria de ser e fazer o quê gostaria de fazer no futuro.
Essa instituição foi muito importante no aprendizado e estímulo
neurológico, psicomotor e geral. Ela aprendeu diversas coisas básicas,
com o noção espacial, sensorial, percepção de outros sentidos e toda a
alfabetização inicial, aos poucos, com dedicação e cuidado.
Confesso que não foi fácil: morria de medo de que algo
acontecesse, que ela se machucasse. Mas é preciso deixar a criança
experimentar. Só assim ela terá condições de ver até aonde pode ir.
Sempre digo que o limite é a própria pessoa quem faz. Não devem existir
limites pré-estipulados. Mas os pais precisam ser corajosos e ensinar seus
filhos a serem da mesma forma. Caiu, levanta! Se machucou, melhora,
se restabelece. Foram inúmeras as vezes em que chorei calada, porque a
vi tropeçar, cair, bater a cabeça em algum lugar, mas deixei-a construir
sua própria noção de espaço.
Não temos noção do que são capazes, até realmente os
soltarmos com cuidado e então vermos que podem sim, aprender e
superar o que quiserem, mesmo com a limitação visual. É possível!
Os primeiros desafios maiores foram na escola, pois as
professoras do ensino regular não sabiam com o atendê-la e trabalhar com
o que fosse melhor para ela. Às vezes, foi necessário fazer mudança de

205
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sala de professores. Houve professoras do ensino regular que chegaram


a aprender a escrita braille, para poder orientá-la melhor.
Fomos muito afortunadas. Nesta escola ela foi muito bem
cuidada e querida por todos. Isso se estendia a mim também. Lembro
com lágrimas nos olhos que a deixava à porta um pouco insegura, mas
me mantinha firme para que ela ganhasse confiança. Tenho muita sorte,
pois nunca a vi se queixar por ser diferente.
Sua segunda cirurgia foi com 1 ano e meio. Depois disso,
diversos outros procedimentos, cirurgias maiores e menores. Por fim, um
transplante de córnea aos 16 anos. Hoje faz acompanhamento
medicamentoso e sua visão é mínima, enxergando apenas vultos.
Recordo-me de ser uma vitória, cada vez que ela saía de uma
cirurgia e conseguia ver mais coisas, cores com mais nitidez e executar
tarefas básicas de forma mais fácil.
Um ponto crucial é ter que fazer escolhas. Quando existe uma
questão de saúde com o essa, a vida exige que sejam feitas o tempo todo.
Quando chegou a fase do ensino fundamental, vi a necessidade de
colocá-la numa nova instituição que parecia ter mais recursos. De início,
as aulas ocorreram com o prometido, mas com o tempo, fiquei muito
insatisfeita, pois descobri muitas mentiras naquele lugar. Diversas vezes
cobrei seu direito, me prometiam e não cumpriam. Decidi tirá-la de lá e
focar nas escolas tradicionais que oferecessem algum apoio.
Na escola anterior havia um projeto de artes de uma professora
especializada em educação especial, que conseguiu fazer a função que a
instituição não fez.
L. também participou de um projeto de artes “ Ver com as Mãos” .
Esta foi a maior iniciativa j á presenciada e aproveitada como recurso de vida
para ela. Foi fantástico. Promoveu real acessibilidade integrada, autonomia
e capacidade de ser protagonista da sua própria vida.
Hoje, com a tecnologia, a acessibilidade se torna mais factível,
possível. L. consegue estar em constante aprendizado de forma
autônoma com seu computador. Em breve ela vai completar 20 anos, já

206
está adulta, trabalha numa empresa de tecnologia e cursa Letras na
UFPR. Hoje conta com mentores e assessores dentro da Faculdade. Tudo
é passado conforme as normas.
Quando ela nasceu, perguntei a mim mesma: “ por que isso
aconteceu com igo? Por que sou mãe de uma pessoa com deficiência? ”
Hoje minha pergunta modificou e digo: “ e por que não com igo? ”
Se quisermos ver mudança no mundo e uma melhor
conscientização sobre acessibilidade e diferenças é necessário que
comecemos por nós, em assumirmos nossa identidade e
representatividade ativa.
Sempre tentei possibilitar experiências a ela. Pois mostro como
fazer, mas tento não fazer em seu lugar, para que ela aprenda. Hoje trago
principalmente da minha formação e profissão com o psicóloga, que a
mãe suficientemente boa é aquela que solta o seu filho para que ele
desbrave suas reais e possíveis capacidades. Esse é um ponto crucial para
mim, ficamos sim preocupadas, por acharmos que nossos filhos são
vulneráveis ou indefesos, mas a superproteção seria uma forma de
incapacitar e até mesmo “ aleijar” um sujeito que pode ter alguma
condição física limitante, mas que não faz dele um limitado.
Agradeço muito todos os dias a Deus, a força criadora e fonte
de tudo, ter me permitido ser mãe de um ser tão especial, real, feliz,
encantador, batalhador e forte que é a minha filha nesta vida. Eu ensino,
mas digo que aprendo muito mais, por ser mãe dela.

207
3 .8 OS DESAFIOS DA DEFICIÊNCIA NA VIDA DO CASAL

Wilson Roberto Gomiero*

Em 1989 tive uma paralização do meu lado direito do corpo. Fui


ao médico e ele disse: Você tem uma doença desmielinizante e receitou-me
três injeções. Tomei e sumiram todos os sintomas que eu estava sentindo.
Passaram três semanas e novamente fiquei sem os movimentos
no meu lado direito e meu gerente disse o seguinte: Melhor você procurar
um médico neurologista.
Fomos para consulta, eu e minha esposa. Lá chegando, já entrei
perguntando para ele o que estava acontecendo. Comecei a despejar
todas as minhas dúvidas sobre o médico. Ele me respondeu: Calma, nós
vamos fazer uma consulta, eu não sou adivinho. Começou então me
perguntando: as doenças que eu já havia tido, inclusive na minha época
de infância; daí fomos seguindo, com ele querendo saber tudo o que já
havia me ocorrido.
Por volta de uma hora e meia após o começo da consulta, ele me
perguntou se eu tinha algum exame que ele pudesse verificar, apresentei o
exame do liquor. Após a olhar o exame, começou a fazer uma série de testes.
Nessas alturas ele me falou: “ Já tenho oitenta e cinco por cento do
seu diagnóstico feito, porém, gostaria de pedir mais um exame” , Solicitou
uma ressonância magnética e, ao abrir o exame, falou para mim e para
minha esposa: “ pronto já sei o que você tem” . Falei para ele: “ Ótimo, então
conte para mim” . Ele me disse então: “ você tem esclerose múltipla.”
Este é o momento de explicar, de forma bem simples, o que seja
esclerose múltipla: é uma doença que se acredita ser de origem
autoimune. O nosso organismo reage contra algum componente do nosso

* Economista. Conselheiro Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência,


representando a AFAG (Associação dos Familiares e Amigos das Pessoas com Doenças
Graves e Raras) no CONADE. Triplégico, natural de Mogi das Cruzes/SP. Marido de
Izildinha Aparecida de Paula Gomiero.

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CONSCIENTIZAR PARA INCLUIR: Sexualidade, Violência e Família da Pessoa com Deficiência

próprio organismo, causando inflamações que podem comprometer o


funcionamento normal. N o caso da esclerose múltipla, o alvo do ataque
é a bainha de mielina, uma proteção que envolve os neurônios com o se
fosse o encapamento de um fio elétrico.
Neste ataque existe uma agressão fazendo com que os impulsos
nervosos percam muito de sua eficiência para levar comandos do cérebro
para o corpo, bem com o trazer informações para o cérebro. Com isto,
existe a perda de movimentos ou a falta de sensibilidade, em algum
membro ou parte do corpo. É uma doença progressiva que vai evoluindo
na linha de tempo, existindo várias maneiras de se manifestar.
Oitenta e cinco por cento das pessoas que manifestam esclerose
múltipla possuem uma forma mais branda, sendo que, nos restantes
quinze por cento, a agressividade de doença é maior. Quando fui
diagnosticado existiam pouquíssimos tratamentos para, pelo menos,
tentar deter o avanço da doença. Basicamente o tratamento era realizado
através de corticoides.
Durante o final do ano de 1998 e início de 1999, dez anos
depois, comecei a sofrer uma série de surtos, nenhum muito forte, mas o
suficiente para afetar meu senso de equilíbrio.
Em outubro de 1998, meu filho casou e eu entrei na igreja com
minha esposa. Naquele longo caminho até o altar, só me restava uma
dúvida: quem havia chacoalhado o chão na igreja, que estava
balançando, pois durante todo o trajeto da porta da igreja até o altar, eu
sentia que estava havendo um terremoto.
Após o nascimento do meu neto, em abril de 1999, começou para
mim uma nova etapa na vida que eu queria marcar como mais um dos meus
recomeços de vida. Afinal, eu estava começando a acostumar com a
convivência que poderia ter com a esclerose múltipla e agora achava que
meu recomeço seria como avô. Tinha muitos planos sobre o que fazer junto
com meu neto, pois sem dúvida nenhuma, eu teria muito mais tempo para
aproveitar da sua infância. Ensinar a ler, ensinar novas brincadeiras, jogar
bola e fazer todas as peraltices que um avô faz com seu neto.

210
A o final de 1999, comecei a sentir que o meu lado esquerdo
havia começado a ter problemas de sensibilidade, tanto na perna quanto
no braço. Fui ao meu médico neurologista e após a consulta, ele disse
não ser normal aquilo que eu estava sentindo. Ele me acompanhava, bem
ou mal, desde 1989 e tinha absoluta certeza de que a esclerose múltipla
havia desenvolvido seu foco de atividade do lado direito e minha última
ressonância magnética não apresentava nenhum ponto que pudesse
configurar um novo surto que pudesse atingir meu lado esquerdo.
Diversos exames expuseram o que havia de errado comigo:
havia crescido na minha cervical, correndo em paralelo com a medula
espinal, um tumor de 12 centímetros de comprimento. Estava
comprimindo toda a medula, fazendo com que eu tivesse todos aqueles
sintomas incômodos, quais sejam: já estava paralisado do pescoço para
baixo, sem movimento nos braços e pernas, estava com a respiração
muito comprometida e tinha dores que não me deixaram dormir.
Entrei em cirurgia no Hospital de Clínicas (HC) de São Paulo
às 8 da manhã do dia 5 de junho de 2000 e a cirurgia terminou por volta
das 21 do mesmo dia. Fui encaminhado para a UTI do centro cirúrgico.
Fui para o quarto na terça e no domingo, seis dias após a cirurgia, minha
esposa me disse acreditar que logo eu teria alta, ao que respondi: “ vou te
dar de presente do Dias dos Namorados a minha ida para casa” .
Realmente foi o que aconteceu, tive alta no dia 12 pela manhã e à tarde
já me encontrava em casa. Para quem tinha uma previsão de quem sabe,
até um mês de internação após cirurgia, em uma semana fiquei liberado.
Começava então a minha recuperação dentro da minha casa.
Minha esposa havia conseguido uma cama hospitalar que foi colocada
na sala da minha casa, onde eu fiquei durante três meses.
Após três meses fui a uma consulta com o cirurgião e entrei na
sala andando devagar, apoiado pela minha esposa. Escutei a pergunta por
parte dele: “ com o você anda?” Eu respondi a ele: “ C oloco um pé na
frente do outro e ando” . Então ele me disse: “ pelo tipo de cirurgia que te
fiz você não deve ter quase que nenhuma sensibilidade do pescoço para

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baixo” . Respondi a ele: “ realmente não sinto quase nada, mas eu


continuo enxergando muito bem e estou aprendendo que tudo que eu
quero fazer, eu tenho que olhar e fazer comandando pelo olhar” . Ele
prescreveu fisioterapia para readquirir o máximo de autonomia que fosse
possível. Voltei para casa e procurei um serviço de fisioterapia em uma
das faculdades de minha cidade. Passei seis meses fazendo fisioterapia
quatro vezes por semana, alternando com hidroterapia e comecei a andar
apoiado em uma bengala.
Estava renascendo para continuar fazendo o que achava que
deveria fazer. Eu e minha esposa - com outros pacientes de esclerose
múltipla da região onde morávamos - decidimos criar uma entidade para
prestar esclarecimentos e possibilitar o encaminhamento para tratamento
a essas pessoas.
Um dia, ao final de 2001, eu caí sentado tomando um grande
tranco na coluna. Comecei novamente a ficar paralisado, fui encaminhado
para o HC e após ter passado por ressonâncias magnéticas de toda coluna,
foi detectado que havia fraturado a terceira vértebra e teria que fazer uma
nova cirurgia, uma lâminactomia. Esta é uma cirurgia feita de forma
rotineira pelo HC e que tem uma duração média de duas horas.
Fui internado no final do ano e entrei em cirurgia no dia 4 de
janeiro de 2002. Minha esposa ficou acompanhando, próximo ao centro
cirúrgico. Ela percebeu que, após três horas, começou uma
movimentação e ela soube que eu tivera uma parada cardíaca durante a
cirurgia, fora reanimado, e estava indo para a UTI.
Fui descobrir então que, na verdade havia tido uma lesão medular,
o que me tornava mais suscetível a perder movimentos. Esta lesão ocorreu
na região de c3, atingindo a região de saída dos nervos dos braços. Começa
então todo um processo para adaptação às novas condições.
Este período, durante o qual estivemos eu, minha esposa, meus
filhos e meu neto envolvidos quase que diariamente com as atividades
na entidade foram, sem dúvida nenhuma, um período não só de avanço
pessoal com o ser humano. Mas também, porque não, com o profissional,

212
pois passei a entender os grandes problemas que atrapalham a todos que,
no Brasil, procuram trabalhar no terceiro setor.
Um grande dilema de quem entra numa situação com o a que eu
estava entrando agora, é descobrir que a coisa mais importante do mundo
- o tempo - nos é retirado. Tentando explicar de uma forma mais
transparente, quando você se torna dependente de outras pessoas a
satisfação de suas necessidades depende do tempo e disposição delas.
Neste meu início da caminhada para a deficiência, não tinha mais
condições de fazer pequenos reparos ou pequenas manutenções na casa
onde morava. A sala era enorme e havia na mesma, seis pontos com
lâmpada, sendo que uma delas ficava bem sobre a cadeira que eu utilizava
para leitura. Percebi que essa lâmpada já se encontrava em ponto de
queimar, comentei com a minha filha e ela me disse: “ realmente, logo,
logo ela queima” . Depois passou meu genro e comentei que lâmpada iria
queimar. Ele disse: “ não deve durar mais do que duas semanas” . Esperei
um pouco, meu filho passou, comentei com ele: “ cara, esta lâmpada vai
queimar” . Ele mais do que depressa, disse-me: olha, pensei que ela já
tivesse queimado.” Por último passou meu cunhado, chamei-o e disse:
“ por favor, me pega aquela cadeira” . Ele rapidamente pegou. “ Coloque
aqui na minha frente” . Falei em seguida: “ agora pega a lâmpada, sobe na
cadeira e troque para mim, por favor” . Ele então me disse: “ pô compadre,
por que não me pediu direto para trocar a lâmpada?” . Respondi a ele: “ falei
com três e nenhum tomou providência” . Ele me respondeu: “ mas você
pediu o que queria?” Daí aprendi também que não adianta querer que as
pessoas adivinhem o que você deseja, você tem que deixar bem claro o
que quer. Fica, porém, a ressalva de que você somente será atendido no
tempo que essa pessoa se dispuser.
A pessoa a quem eu devo estar vivo e ser quem eu sou hoje é,
sem dúvida nenhuma, a minha parceira de todas as horas, a minha
esposa. Quando a conheci, há 46 anos, não tinha ideia de quanto era
possível amar uma pessoa e ter por parte dela toda correspondência, ou
melhor, muito mais do que eu dei, tenho recebido.

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No início do namoro ficamos um ano juntos e por uma besteira


minha, a perdi. Tive que me esforçar muito para voltarmos a namorar e fazê-
la entender que realmente eu queria compartilhar com ela o restante da
minha vida. Retornamos nosso namoro e após dois anos estávamos casados.
Começava aí então uma nova etapa de sofrimento para minha
esposa. Após o casamento, comecei a apresentar a minha verdadeira face
de alcoólatra, fazendo com que ela, por sete anos, sofresse todas as vezes
que eu não chegava em casa no horário previsto. Muitas vezes a deixava
sozinha com meu filho, durante toda a noite, sem saber se eu estava vivo,
onde estava e com o eu chegaria. Várias vezes cheguei no clarear do dia,
encontrando-a aos prantos, isto quando já não estava por pedir ajuda para
a Polícia ou a familiares.
Quando parei de beber, percebi quanto mal havia causado à
minha esposa e tentei compensar, de todas as formas, aqueles dias em
que a deixei sofrendo sem saber o que fazer. Entretanto, comecei a me
dedicar de forma quase que integral ao meu desenvolvimento
profissional, dedicando muito tempo ao trabalho e nem tanto a minha
esposa e meus filhos. Mesmo assim, vivemos felizes e aproveitávamos
todos os momentos que estávamos juntos.
Com o advento da minha doença, tudo isso com eçou a mudar,
tínhamos mais uma preocupação. Após a cirurgia e com a decadência
física, passei a ter uma dependência muito maior de minha esposa e ter
a noção exata do amor dela por mim. Ela praticamente abandonou sua
vida para se dedicar inteiramente a realizar o meu projeto, que também
é um pouco, o projeto dela. Porém, ela se anulou durante mais de vinte
anos para fazer das minhas vontades, a vontade dela.
Se eu ainda estou vivo hoje, se eu ainda hoje possuo alguma
lucidez e raciocínio, posso dizer - com certeza - que noventa por cento
disso eu devo a minha esposa. Sem ela eu já não estaria neste mundo.
Por mais que eu diga, por mais que eu demonstre, eu nunca terei como
dizer o quanto ela é importante na minha vida e nem quanto eu a amo.
Hoje sinto falta do nosso contato físico, de poder acariciar seu rosto, sua

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pele. Não que eu não possa fazer isso, porém eu não tenho a sensibilidade
do contato. Isto me faz muita falta.
Nos dias de hoje, acordo pela manhã e vivo o resto do dia em
função de tê-la ao meu lado, ajudando-me em tudo, desde minha
alimentação, higiene pessoal, água, até o olhar para meus momentos de
tristezas e desânimo.
Com o evoluir da doença e principalmente em decorrência das
dores neuropáticas, comecei a consumir uma quantidade muito grande
de medicações. Um dos efeitos colaterais dessas medicações é a
impotência sexual, que no meu caso ainda foi agravada pela lesão
medular. Deixamos de ter uma vida ativa sobre esse ponto de vista,
porém, com o sempre dizemos, o importante não é o ato em si, mas todo
o carinho, amor e envolvimento que ainda podemos levar um para o
outro, bem com o respeito entre nós. A falta do contato física é suplantada
por uma carícia, um abraço, uma palavra de amor e no nosso caso, aquele
momento bem nosso, quando ela faz da hora do meu banho, um momento
especial de cuidado e carinho.
Nunca enfrentei episódio de violência, porém, sempre fico um
pouco perturbado quando nos encontramos em algum lugar público e a
pessoa ao me atender não se dirige a mim e sim à minha esposa. Tenho
certeza de que não é só no meu caso, mas na maioria das vezes isso
acontece com as pessoas com deficiência, aparentando que elas não têm
com o expressar a sua vontade, dependendo totalmente da manifestação
de quem as acompanha.
Vem daí aquilo que eu sempre digo: a pessoa com deficiência
física tem que assumir o protagonismo de sua vida, pois só assim
passará a ser respeitado com o cidadão. Não queremos ser incluídos,
queremos ser reconhecidos. Reconhecidos com o pessoas, com o
cidadãos, com o seres humanos.

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NACIONAL
Editora

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