Você está na página 1de 269

O DESCORTINAR DE NOVOS PARADIGMAS

PARA A ADVOCACIA DE FAMÍLIA E


SUCESSÕES
Lorena Guedes Duarte
Gabriel Honorato
Leonardo Girundi
Maria Cristina Santiago
(Coordenação)

O DESCORTINAR DE NOVOS PARADIGMAS


PARA A ADVOCACIA DE FAMÍLIA E
SUCESSÕES

Brasília – DF, 2022


© Ordem dos Advogados do Brasil
Conselho Federal, 2022
Setor de Autarquias Sul - Quadra 5, Lote 1, Bloco M
Brasília – DF CEP: 70070-939

Distribuição: Conselho Federal da OAB – GRE


E-mail: oabeditora@oab.org.br

O Conselho Federal da OAB – por meio da OAB Editora – ressalta que as opiniões emitidas
nesta publicação, em seu inteiro teor, são de responsabilidade dos seus autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – Biblioteca Arx Tourinho)

D448

O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões /


coordenador: Lorena Guedes Duarte, Gabriel Honorato, Leonardo Girundi,
Maria Cristina Santiago – Brasília: OAB Editora, 2022.

PDF (xiii, 246 p.)

ISBN: 978-65-5819-056-1.

1. Direito de família, Brasil, coletânea. 2. Direito das sucessões, Brasil,


coletânea. 3. Advocacia familiar, Brasil. I. Duarte, Lorena Guedes, coord.
II. Honorato, Gabriel, coord. III. Girundi, Leonardo, coord. IV. Santiago,
Maria Cristina, coord. V. Título.

CDDir: 342.16
CDU: 347.6 (81)
Gestão 2022/2025

Diretoria
José Alberto Simonetti Presidente
Rafael de Assis Horn Vice-Presidente
Sayury Silva de Otoni Secretária-Geral
Milena da Gama Fernandes Canto Secretária-Geral Adjunto
Leonardo Pio da Silva Campos Diretor-Tesoureiro

Conselheiros Federais
AC: Alessandro Callil de Castro, Harlem Moreira de Sousa, Helcinkia Albuquerque dos
Santos, Célia da Cruz Barros Cabral Ferreira e Raquel Eline da Silva Albuquerque; AL:
Cláudia Lopes Medeiros, Fernando Antônio Jambo Muniz Falcão, Sérgio Ludmer, Marialba
dos Santos Braga, Marcos Barros Méro Júnior e Rachel Cabus Moreira; AP: Aurilene Uchôa
de Brito, Felipe Sarmento Cordeiro, Sinya Simone Gurgel Juarez e Wiliane da Silva Favacho;
AM: Ezelaide Viegas da Costa Almeida, Gina Carla Sarkis Romeiro, Marco Aurélio de Lima
Choy, Jonny Cleuter Simões Mendonça, Maria Gláucia Barbosa Soares e Ricardo da Cunha
Costa; BA: Luiz Augusto Reis de Azevedo Coutinho, Luiz Viana Queiroz, Marilda Sampaio
de Miranda Santana, Fabrício de Castro Oliveira, Mariana Matos de Oliveira e Silvia
Nascimento Cardoso dos Santos Cerqueira; CE: Ana Vládia Martins Feitosa, Caio Cesar
Vieira Rocha, Hélio das Chagas Leitão Neto, Ana Paula Araújo de Holanda, Cassio Felipe
Goes Pacheco e Katianne Wirna Rodrigues Cruz Aragão; DF: Cristiane Damasceno Leite,
Francisco Queiroz Caputo Neto, Ticiano Figueiredo de Oliveira, José Cardoso Dutra Júnior,
Maria Dionne de Araújo Felipe e Nicole Carvalho Goulart; ES: Jedson Marchesi Maioli,
Márcio Brotto de Barros, Sayury Silva de Otoni, Alessandro Rostagno, Lara Diaz Leal
Gimenes e Luciana Mattar Vilela Nemer; GO: Ariana Garcia do Nascimento Teles, David
Soares da Costa Júnior, Lúcio Flávio Siqueira de Paiva, Arlete Mesquita, Layla Milena
Oliveira Gomes e Roberto Serra da Silva Maia; MA: Ana Karolina Sousa de Carvalho Nunes,
Daniel Blume Pereira de Almeida, Thiago Roberto Morais Diaz, Cacilda Pereira Martins e
Charles Henrique Miguez Dias; MT: Claudia Pereira Braga Negrão, Leonardo Pio da Silva
Campos, Ulisses Rabaneda dos Santos, Ana Carolina Naves Dias Barchet, Mara Yane Barros
Samaniego e Stalyn Paniago Pereira; MS: Andrea Flores, Mansour Elias Karmouche, Ricardo
Souza Pereira, Afeife Mohamad Hajj, Gaya Lehn Schneider Paulino e Giovanna Paliarin
Castellucci; MG: Misabel de Abreu Machado Derzi, Sergio Murilo Diniz Braga, Daniela
Marques Batista Santos de Almeida, Marcelo Tostes de Castro Maia e Nubia Elizabette de
Jesus Paula; PA: Alberto Antonio de Albuquerque Campos, Cristina Silva Alves Lourenço,
Jader Kahwage David, Ana Ialis Baretta e Suena Carvalho Mourão; PB: Marina Motta
Benevides Gadelha, Paulo Antônio Maia e Silva, Rodrigo Azevedo Toscano de Brito, André
Luiz Cavalcanti Cabral, Michelle Ramalho Cardoso e Rebeca Sodré de Melo da Fonseca
Figueiredo; PR: Ana Claudia Piraja Bandeira, José Augusto Araújo de Noronha, Rodrigo
Sanchez Rios, Graciela Iurk Marins e Silvana Cristina de Oliveira Niemczewski; PE: Adriana
Caribé Bezerra Cavalcanti, Bruno de Albuquerque Baptista, Ronnie Preuss Duarte, Ana Lúcia
Bernardo de Almeida Nascimento, Mozart Borba Neves Filho e Yanne Katt Teles Rodrigues;
PI: Carlos Augusto de Oliveira Medeiros Júnior, Élida Fabrícia Oliveira Machado Franklin,
Shaymmon Emanoel Rodrigues de Moura Sousa e Isabella Nogueira Paranaguá de Carvalho
Drumond; RJ: Juliana Hoppner Bumachar Schmidt, Marcelo Fontes Cesar de Oliveira, Paulo
Cesar Salomão Filho, Fernanda Lara Tortima e Marta Cristina de Faria Alves; RN: André
Augusto de Castro, Milena da Gama Fernandes Canto, Olavo Hamilton Ayres Freire de
Andrade, Gabriella de Melo Souza Rodrigues Rebouças Barros, Mariana Iasmim Bezerra
Soares e Síldilon Maia Thomaz do Nascimento; RS: Greice Fonseca Stocker, Rafael Braude
Canterji, Ricardo Ferreira Breier, Mariana Melara Reis, Renato da Costa Figueira e Rosângela
Maria Herzer dos Santos; RO: Alex Souza de Moraes Sarkis, Elton José Assis, Solange
Aparecida da Silva, Fernando da Silva Maia, Julinda da Silva e Maria Eugênia de Oliveira;
RR: Emerson Luis Delgado Gomes, Maria do Rosário Alves Coelho, Thiago Pires de Melo,
Cintia Schulze e Tadeu de Pina Jayme; SC: Maria de Lourdes Bello Zimath, Pedro Miranda
de Oliveira, Rafael de Assis Horn, Gisele Lemos Kravchychyn, Gustavo Pacher e Rejane da
Silva Sanchez; SP: Alberto Zacharias Toron, Carlos José Santos da Silva, Silvia Virginia Silva
de Souza, Alessandra Benedito, Daniela Campos Liborio e Helio Rubens Batista Ribeiro
Costa; SE: America Cardoso Barreto Lima Nejaim, Cristiano Pinheiro Barreto, Fábio Brito
Fraga, Gloria Roberta Moura Menezes Herzfeld, Lilian Jordeline Ferreira de Melo e Lucio
Fábio Nascimento Freitas; TO: Ana Laura Pinto Cordeiro de Miranda Coutinho, Huascar
Mateus Basso Teixeira, José Pinto Quezado, Adwardys de Barros Vinhal, Eunice Ferreira de
Sousa Kuhn e Helia Nara Parente Santos Jacome.

Ex-Presidentes
1. Levi Carneiro (1933/1938) 2. Fernando de Melo Viana (1938/1944) 3. Raul Fernandes
(1944/1948) 4. Augusto Pinto Lima (1948) 5. Odilon de Andrade (1948/1950) 6. Haroldo
Valladão (1950/1952) 7. Attílio Viváqua (1952/1954) 8. Miguel Seabra Fagundes (1954/1956)
9. Nehemias Gueiros (1956/1958) 10. Alcino de Paula Salazar (1958/1960) 11. José Eduardo do
P. Kelly (1960/1962) 12. Carlos Povina Cavalcanti (1962/1965) 13. Themístocles M. Ferreira
(1965) 14. Alberto Barreto de Melo (1965/1967) 15. Samuel Vital Duarte (1967/1969) 16. Laudo
de Almeida Camargo (1969/1971) 17. José Cavalcanti Neves (1971/1973) 18. José Ribeiro de
Castro Filho (1973/1975) 19. Caio Mário da Silva Pereira (1975/1977) 20. Raymundo Faoro
(1977/1979) 21. Eduardo Seabra Fagundes (1979/1981) 22. Membro Honorário Vitalício J.
Bernardo Cabral (1981/1983) 23. Mário Sérgio Duarte Garcia (1983/1985) 24. Hermann Assis
Baeta (1985/1987) 25. Márcio Thomaz Bastos (1987/1989) 26. Ophir Filgueiras Cavalcante
(1989/1991) 27. Membro Honorário Vitalício Marcello Lavenère Machado (1991/1993) 28.
Membro Honorário Vitalício José Roberto Batochio (1993/1995) 29. Ernando Uchoa Lima
(1995/1998) 30. Membro Honorário Vitalício Reginaldo Oscar de Castro (1998/2001) 31.
Rubens Approbato Machado (2001/2004) 32. Membro Honorário Vitalício Roberto Antonio
Busato (2004/2007) 33. Membro Honorário Vitalício Raimundo Cezar Britto Aragão
(2007/2010) 34. Membro Honorário Vitalício Ophir Cavalcante Junior (2010/2013) 35. Membro
Honorário Vitalício Marcus Vinicius Furtado Coêlho (2013/2016) 36. Membro Honorário
Vitalício Claudio Pacheco Prates Lamachia (2016/2019) 37. Membro Honorário Vitalício Felipe
de Santa Cruz Oliveira Scaletsky (2019/2022).

Presidentes Seccionais
AC: Rodrigo Aiache Cordeiro; AL: Vagner Paes Cavalcanti Filho; AP: Auriney Uchôa de Brito; AM:
Jean Cleuter Simões Mendonça; BA: Daniela Lima de Andrade Borges; CE: José Erinaldo Dantas
Filho; DF: Delio Fortes Lins e Silva Junior; ES: Jose Carlos Rizk Filho; GO: Rafael Lara Martins;
MA: Kaio Vyctor Saraiva Cruz; MT: Gisela Alves Cardoso; MS: Luis Claudio Alves Pereira; MG:
Sergio Rodrigues Leonardo; PA: Eduardo Imbiriba de Castro; PB: Harrison Alexandre Targino; PR:
Marilena Indira Winter; PE: Fernando Jardim Ribeiro Lins; PI: Celso Barros Coelho Neto; RJ:
Luciano Bandeira Arantes; RN: Aldo de Medeiros Lima Filho; RS: Leonardo Lamachia; RO: Marcio
Melo Nogueira; RR: Ednaldo Gomes Vidal; SC: Claudia da Silva Prudêncio; SP: Maria Patrícia
Vanzolini Figueiredo; SE: Danniel Alves Costa; TO: Gedeon Batista Pitaluga Júnior.
Coordenação Nacional das Caixas de Assistência dos Advogados – CONCAD
Eduardo Uchôa Athayde Coordenador Nacional
Laura Cristina Lopes de Sousa Coordenadora da Região Norte
Anne Cristine Silva Cabral Coordenadora da Região Nordeste
Gustavo Oliveira Chalfun Coordenador da Região Sudeste
Fabiano Augusto Piazza Baracat Coordenador da Região Sul

Presidentes das Caixas de Assistência dos Advogados


AC: Laura Cristina Lopes de Sousa; AL: Leonardo de Moraes Araújo Lima; AP: Mauro Dias da
Silveira Junior; AM: Alberto Simonetti Cabral Neto; BA: Maurício Silva Leahy; CE: Lucas Asfor
Rocha Lima; DF: Eduardo Uchôa Athayde; ES: Ben Hur Brenner Dan Farina; GO: Jacó Carlos
Silva Coelho; MA: Ivaldo Correia Prado Filho; MT: Itallo Gustavo de Almeida Leite; MS: Marco
Aurélio de Oliveira Rocha; MG: Gustavo Oliveira Chalfun; PA: Silvia Cristina Barros Barbosa
França; PB: Francisco de Assis Almeida; PR: Fabiano Augusto Piazza Baracat; PE: Anne Cristine
Silva Cabral; PI: Talmy Tércio Ribeiro da Silva Júnior; RJ: Marisa Chaves Gaudio; RN: Ricardo
Victor Pinheiro de Lucena; RS: Pedro Zanette Alfonsin; RO: Elton Sadi Fulber; RR: Natália Leitão
Costa; SC: Juliano Mandelli Moreira; SP: Adriana Galvão Moura Abílio; SE: Marília de Almeida
Menezes; TO: Marcello Bruno Farinha das Neves.

Fundo de Integração e Desenvolvimento Assistencial dos Advogados – FIDA


Felipe Sarmento Cordeiro Presidente
Laura Cristina Lopes de Sousa Vice-Presidente
Danniel Alves Costa Secretário
Leonardo Pio da Silva Campos Representante da Diretoria

Membros
Alberto Antônio de Albuquerque Campos; Ezelaide Viegas da Costa Almeida; Élida Fabrícia
Oliveira Machado Franklin; Cláudia da Silva Prudêncio; José Erinaldo Dantas Filho; Eduardo
Uchôa Athayde; Anne Cristine Silva Cabral; Fabiano Augusto Piazza Baracat; Gustavo Oliveira
Chalfun; Afeife Mohamad Hajj; Mariana Melara Reis; Aldo de Medeiros Lima Filho; Harrison
Alexandre Targino; Jacó Carlos Silva Coelho; Natália Leitão Costa.

ESA Nacional
Ronnie Preuss Duarte Diretor-Geral

Diretores (as) das Escolas Superiores de Advocacia da OAB


AC: Emerson Silva Costa; AL: José Marques de Vasconcelos Filho; AM: Carlos Alberto Ramos
Moraes Filho; AP: Verena Lúcia Corecha da Costa; BA: Cinzia Barreto de Carvalho; CE: Eduardo
Pragmácio Filho; DF: Rafael Freitas de Oliveira; ES: Alexandre Zamprogno; GO: Antonia de Lourdes
Batista Chaveiro Martins; MA: Antonio de Moraes Rêgo Gaspar; MT: Giovane Santin; MS: Lauane
Braz Andrekowisk Volpe Camargo; MG: Charles Fernando Vieira da Silva; PA: Alexandre Pereira
Bonna; PB: Diego Cabral Miranda; PR: Marília Pedroso Xavier; PE: Leonardo Moreira Santos; PI:
Thiago Anastácio Carcará; RJ: Sergio Coelho e Silva Pereira; RN: Amanda Oliveira da Câmara
Moreira; RS: Rolf Hanssen Madaleno; RO: Karoline Costa Monteiro; RR: Rozinara Barreto Alves;
SC: Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes; SP: Flávio Murilo Tartuce Silva; SE: Cicero Dantas
de Oliveira; TO: Flávia Malachias Santos Schadong.
Pelo incentivo à difusão do conhecimento, aqui registramos um
merecido agradecimento aos membros da Diretoria do Conselho
Federal da OAB, nomeadamente, Beto Simonetti (Presidente); Rafael
Horn (Vice-presidente); Sayury Otoni (Secretária-Geral); Milena
Gama (Secretária-Geral Adjunta); Leonardo Campos (Diretor-
Tesoureiro). Agradecemos ainda ao Presidente do FIDA, Felipe
Sarmento, por todo o apoio concedido aos coautores desta obra coletiva
dedicada à advocacia.

i
APRESENTAÇÃO

José Alberto Simonetti*

A obra coletiva “O descortinar de novos paradigmas para a


advocacia de Família e Sucessões” aborda temas atuais e relevantes não
só para a advocacia especializada, mas para todos os operadores do
Direito. Coordenado por Lorena Guedes Duarte, Gabriel Honorato,
Leonardo Giundi e Maria Cristina Santiago, integrantes da Comissão
Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB (2019-2022), o livro
é fruto de debates suscitados por advogados e advogadas preocupados
com a adaptação do sistema de justiça à realidade contemporânea.
O leitor tem em mãos uma obra completa, que se propõe a
examinar as repercussões jurídicas da pandemia da COVID-19, da
multiparentalidade, da herança digital, bem como a analisar os
fundamentos de jurisprudências recentes. As reflexões do livro levam em
consideração a ótica constitucional aplicada ao direito privado,
mostrando a importância da eficácia horizontal dos direitos fundamentais
de que trata Konrad Hesse (1998)1. A obra é composta por artigos de
advogados e advogadas atuantes, que juntam o saber da prática forense
e a formação acadêmica de alto nível.
A preocupação com as consequências da pandemia é admirável,
sobretudo, pela coragem de desbravar o que ainda nos é incerto. O
necessário isolamento social, de fato, impactou institutos consagrados do
Direito de Família e Sucessões, como a guarda compartilhada e a união
estável. Por outro lado, reduziu a capacidade contributiva dos responsáveis
ao pagamento de alimentos. O aumento das relações virtuais, ainda,
catalisou a discussão a respeito da herança de ativos digitais.

*
Advogado e Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
1
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

iii
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Para regulamentar essas relações jurídicas “pandêmicas”, o


legislativo aprovou a Lei nº 14.010/2020, que dispõe sobre o Regime
Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) no período da pandemia. O
livro propõe-se, com maestria, a discutir a adequação das disposições do
RJET e o resultado de sua aplicação.
Em suma, o conteúdo da obra é rico e esclarecedor. É um trabalho
fundamental para o desenvolvimento do direito privado no Brasil, tanto por
reconhecer os impactos do período de isolamento social, quanto por
repensar categorias tradicionais do Direito de Família e Sucessões à luz da
proporcionalidade, da razoabilidade e das garantias constitucionais.
Como antecipa o título, o livro descortina novas formas de
pensar as normas jurídicas relacionadas ao Direto de Família e
Sucessões. É um registro da coragem da advocacia de refletir sobre o
agora, confirmando o que afirmou o historiador Reinhart Koselleck
(2014): “há mais do que passado na história” 2. Por isso, é valioso não só
para o tempo presente, pelas reflexões sobre mudanças paradigmáticas
na atualidade, mas também para as próximas gerações, como exemplo
para compreensão dos novos paradigmas que se apresentarem.

Boa leitura!

2
KOSELLECK, R. Estratos do Tempo. Estudos sobre história. Rio de Janeiro:
Contraponto/PUC-Rio, 2014.

iv
PREFÁCIO

Rodrigo Toscano de Brito*

As comissões temáticas do Conselho Federal da Ordem dos


Advogados do Brasil, conforme prevê as normativas que as regulamentam,
têm como uma das suas principais finalidades elaborar trabalhos escritos,
promover pesquisas, seminários e demais eventos que estimulem o estudo,
a discussão e a defesa dos seus temas respectivos.
A Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões
(CEDFS) da OAB Nacional, na gestão 2019-2021, que teve à frente, na
presidência, a advogada Lorena Guedes Duarte, cumpriu essas
finalidades de maneira exitosa, apesar das dificuldades surgidas com o
período pandêmico grave, pelo qual passou o Brasil.
Durante todo o período em que os eventos só puderam ser
realizados de modo virtual, a comissão realizou diversos encontros on line,
escutou a opinião de diversos juristas brasileiros de diferentes escolas, e, ao
final, brindou-nos com uma obra escrita de alta qualidade técnica e de
consulta obrigatória em vista dos temas atuais abordados pelos autores.
De fato, o livro “O descortinar de novos paradigmas para a
advocacia de família e sucessões” perpassa por temas tradicionais, tratando
sobre direito material e processual, e por aqueles que sofreram impactos
significativos, ao longo do período pandêmico, provocados pela COVID-
19, que levou a Organização Mundial da Saúde a declarar o estado de
“Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional”.
Destaca-se da leitura da obra a apresentação de assuntos que
se descortinam por três grandes áreas, quais sejam, o direito
existencial de família, o direito patrimonial de família e as questões

*
Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Professor de Direito Civil da UFPB
e UNIESP nos cursos de graduação e pós-graduação. Advogado. Conselheiro Federal
da OAB. Presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB Nacional. Membro
da diretoria nacional do IBDFAM.

v
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

patrimoniais provenientes do impacto da tecnologia, nomeadamente,


no direito das sucessões.
A obra é iniciada por um capítulo dedicado a uma discussão
processual relevante, tratando sobre as demandas que configuram ações
de estado e atraem as regras diferenciadas previstas sobre o tema no CPC,
de autoria das professoras Fernanda Tartuce e Débora Brandão.
Os institutos da guarda e do direito de convivência tem espaço
especial no livro.
Primeiro, sobre a guarda, destina um capítulo voltado à guarda
alternada e compartilhada com residência alternada, no qual Renata
Nepomuceno e Cysne e Flavia Brandão Maia Perez esclarecem que as
modalidades de guarda compartilhada e de guarda alternada são distintas e
opinam no sentido de que a primeira privilegia os filhos, enquanto a segunda,
os interesses dos pais.
Ainda sobre guarda, e já sob o olhar pandêmico, Maria Cristina
Paiva Santiago, Raíssa Maria Vasconcelos Aranha e Flavia Brandão
Maia Perez, desenvolvem um capítulo destinado à análise dos reflexos
pandêmicos no instituto da guarda compartilhada e tratam sobre as
percepções sentidas à época e as suposições face ao novo contexto social
que se apresentou no período de pandemia.
O direito convivencial dos filhos com seus familiares no
período de pandemia também não fugiu da preocupação dos autores, e a
obra enfrenta a temática ressaltando a importância do combate à prática
de alienação parental em tempos de isolamento social. Nesse passo,
Marília Pedroso Xavier e Maria Regina Zarate Nissel demonstram as
dificuldades e desafios da advocacia familiarista diante desse contexto,
sobretudo em razão dos desafios enfrentados com o fechamento dos
fóruns por determinação dos tribunais.
Sem sair do tema voltado para a alienação parental e violência
psicológica, Venceslau Tavares Costa Filho, Aline Arroxelas Galvão de
Lima e Ana Elizabeth Oliveira De Mariz Dantas, mostram, também em

vi
capítulo específico, as intercessões entre os microssistemas jurídicos de
proteção a crianças, adolescentes e mulheres.
A obra, dentro da sua característica de perpassar por temas
ainda considerados de vanguarda no direito de família e sucessões, traz
um capítulo sobre a multiparentalidade e a adoção, no qual Leonardo
Gomes Girundi discute a possibilidade da manutenção dos vínculos com
a família biológica também na adoção, nos moldes que vem se
desenvolvendo com a multiparentalidade.
Embora os temas estejam dispostos ao final da obra, mas ainda
tratando sobre questões existenciais no direito de família, existem dois
especiais destaques para os capítulos sobre violência doméstica. No
primeiro, Rosangela Maria Carvalho Viana e Anne Caroline Vitoriano
dos Santos tratam sobre a violência contra a mulher no âmbito das
relações familiares mostrando a necessidade do engajamento de métodos
que atuem no aumento da eficácia decorrente da aplicação da Lei Maria
da Penha e, ainda, ressaltam a necessidade das autoridades brasileiras de
tomarem medidas efetivas para com o agressor, contando com o apoio
de equipes multidisciplinares.
Nessa mesma temática da violência doméstica, o último
capítulo do livro se preocupa com a análise da inefetividade, no âmbito
do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, quanto à reparação
civil por danos morais à luz do “Tema 983”, dos recursos repetitivos do
STJ. O tema é desenvolvido por Venceslau Tavares Costa Filho, Camila
Cristiane da Silva e Carolina de Macêdo Ferreira que evidenciam, ao
final, que as garantias trazidas sobretudo pela Lei Maria da Penha não
podem ser consideradas apenas como um texto vazio, uma regra ou uma
norma abstrata, devendo ser concretizadas e legitimadas através de
mecanismos apontados no texto.
Além das questões alusivas ao direito pessoal de família, como
já dito, o livro “O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de
família e sucessões” contém questões atuais e relevantes sobre direito
patrimonial de família.

vii
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Nesse sentido, André Franco Ribeiro Dantas e Dandara de


Azevedo Martins, destacam questões atualizadas em matéria de alimentos,
também com foco nas repercussões pandêmicas. O texto tem um cenário de
discussão relevante ao destacar as questões revisionais de alimentos
enquanto atravessávamos o momento crítico da pandemia, que foram, e
ainda são levadas à apreciação judicial. Ressalta o desafio de se ter, de um
lado, um alimentante com sua capacidade contributiva prejudicada,
considerando o panorama de crise financeira vivenciada não só no Brasil, e,
de outro, um alimentando com suas necessidades majoradas, em face da
permanência dos filhos no lar em razão das medidas restritivas impostas
pelas autoridades públicas. Os autores sugerem uma análise à luz do
trinômio necessidade-possibilidade-razoabilidade.
As questões relativas ao direito patrimonial continuam sendo
exploradas ao longo livro, também com ênfase sobre os pactos de união
estável. Sem embargo, Lorena Guedes Duarte e Karen Maria Silva Lima
trazem conclusões relevantes sobre a necessidade de pedido judicial para
que seja concedida a alteração do regime de bens na união estável e a
operabilidade do efeito ex nunc quanto à mudança de regime de bens.
Destacam também que, apesar das diferenças entre o casamento e a união
estável, é necessária análise conjunta de tais entidades familiares no que
diz respeito à alteração do regime de bens.
Mário Luiz Delgado e Flávia Brandão Maia Perez elegeram as
questões mais atuais e polêmicas sobre partilha de bens para desenvolver
um capítulo próprio sobre o tema. Considerando o regime de comunhão
parcial, fazem uma análise sobre partilha de planos de previdência, do
FGTS e das redes sociais, um dos temas instigantes da atualidade.
Em matéria sucessória, dois capítulos merecem especial
destaque no livro. O primeiro, de Larissa Maria de Moraes Leal, que
suscita temas complexos sobre a irretroatividade da equiparação dos
regimes sucessórios entre os cônjuges e os companheiros, que surgiram
após o julgamento do Supremo Tribunal Federal, do “Tema 809”,
quando se estabeleceu que “é inconstitucional a distinção de regimes

viii
sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do
CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto
nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”.
Igualmente, sobre o tema sucessório, Rodrigo Mazzei traz uma
contribuição destacada para a obra, a respeito da sobrepartilha
prospectiva e retrospectiva, trazendo um diálogo dos arts. 2.021 e 2.022
do CC com o art. 669 do CPC. O texto tem em seu DNA uma
característica rara e própria do autor, que é a facilidade no trânsito entre
o direito material e processual.
Conforme destacamos no início deste prefácio, a obra tem três
grandes temas de interesse. Dois deles, direito existencial de família e
direito patrimonial de família, já apresentados nas linhas iniciais, e, o
terceiro, os impactos que as questões relacionadas à alta tecnologia
podem trazer para o direito sucessório.
Nesse sentido, Maria Goreth Macedo Valadares e Thais
Câmara Maia Fernandes Coelho tratam sobre os desafios
procedimentais na herança digital discutindo questões a respeito das
redes sociais serem objeto de inventário, qual o valor a ser atribuído
ao patrimônio digital, o destino desse patrimônio após a morte do seu
titular, entre outras que valem a leitura do capítulo.
A herança digital é, mais uma vez, tema ressaltado na obra por
Maria Cristina Paiva Santiago e Geysianne Maria Vieira Silva, que
apresentam um estudo sobre a sucessão legítima do patrimônio digital.
A obra, portanto, assim se apresenta, com estes traços marcados
por análises sobre temas tradicionais de direito de família e sucessões e
aqueles que foram impactados pela pandemia da COVID-19, o que
demonstra a preocupação dos coordenadores, Lorena Guedes Duarte,
Gabriel Honorato, Leonardo Girundi e Maria Cristina Santiago, de
produzir um trabalho que pudesse servir, em perspectiva prática e
teórica, à comunidade jurídica.
O objetivo do livro de descortinar novos paradigmas para a
advocacia de família e sucessões foi alcançado com sucesso. A obra é

ix
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

resultado de um trabalho de grande relevo desenvolvido pelos autores,


sob o impulso da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões
da OAB Nacional, durante o triênio 2019-2021, e caracterizado pelo
viés democrático, com a presença de escritos de professores de
diferentes escolas jurídicas do Brasil, que contribuíram com suas
posições de alto nível técnico e, como já dito, fazendo com que a obra
seja de leitura obrigatória entre os estudiosos e operadores do direito de
família e sucessões.

x
SUMÁRIO

DISCUSSÕES SOBRE GUARDA E CONVIVÊNCIA À LUZ DO EQUÍVOCO


ENTRE AÇÕES DE FAMÍLIA E AÇÕES DE ESTADO..................................................... 1
Fernanda Tartuce
Débora Brandão

GUARDA ALTERNADA E GUARDA COMPARTILHADA COM


RESIDÊNCIA ALTERNADA: há diferença?......................................................... 19
Renata Nepomuceno e Cysne
Flavia Brandão Maia Perez

DIREITO/DEVER DE CONVIVÊNCIA: possibilidades ao combate


da prática de alienação parental em tempos de isolamento ........... 37
Marília Pedroso Xavier
Maria Regina Zarate Nissel

ALIENAÇÃO PARENTAL E VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA:


intercessões entre os microssistemas jurídicos de proteção a
crianças, adolescentes e mulheres ................................................................... 51
Venceslau Tavares Costa Filho
Aline Arroxelas Galvão de Lima
Ana Elizabeth Oliveira de Mariz Dantas

MULTIPARENTALIDADE E ADOÇÃO: a (im)possibilidade de


manutenção dos vínculos com a família biológica ......................................... 67
Leonardo Gomes Girundi

xi
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

OS REFLEXOS PANDÊMICOS NO INSTITUTO DA GUARDA


COMPARTILHADA: percepções e suposições face ao novo
contexto social ................................................................................................................ 85
Maria Cristina Paiva Santiago
Raíssa Maria Vasconcelos Aranha
Flavia Brandão Maia Perez

ATUALIDADES EM MATÉRIA DE ALIMENTOS ..............................................103


André Franco Ribeiro Dantas
Dandara de Azevedo Martins

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROJEÇÃO DOS EFEITOS


PATRIMONIAIS DO PACTO DE UNIÃO ESTÁVEL .........................................123
Lorena Guedes Duarte
Karen Maria Silva Lima

O REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS E SUAS QUESTÕES


POLÊMICAS .....................................................................................................................139
Mário Luiz Delgado
Flavia Brandão Maia Perez

NOTAS SOBRE A IRRETROATIVIDADE DA EQUIPARAÇÃO DOS


REGIMES SUCESSÓRIOS ENTRE OS CÔNJUGES E OS
COMPANHEIROS (TEMA 809 DO STF)..............................................................157
Larissa Maria de Moraes Leal

DESAFIOS PROCEDIMENTAIS NA HERANÇA DIGITAL .............................171


Maria Goreth Macedo Valadares
Thais Câmara Maia Fernandes Coelho

xii
HERANÇA DIGITAL E A SUCESSÃO LEGÍTIMA DESSE PATRIMÔNIO ......187
Maria Cristina Paiva Santiago
Geysianne Maria Vieira Silva

SOBREPARTILHA PROSPECTIVA E RETROSPECTIVA: diálogo dos arts.


2.021 e 2.022 do CC com o art. 669 do CPC ............................................................207
Rodrigo Mazzei

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES


FAMILIARES ...................................................................................................................223
Rosangela Maria Carvalho Viana
Anne Caroline Vitoriano dos Santos

A REPARAÇÃO CIVIL POR DANOS MORAIS EM RAZÃO DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER À LUZ DO TEMA 983
DOS RECURSOS REPETITIVOS (RESP 1.643.051): análise de sua
inefetividade no âmbito do Tribunal de Justiça de Pernambuco ............231
Venceslau Tavares Costa Filho
Camila Cristiane da Silva
Carolina de Macêdo Ferreira

xiii
DISCUSSÕES SOBRE GUARDA E CONVIVÊNCIA À LUZ DO
EQUÍVOCO ENTRE AÇÕES DE FAMÍLIA E AÇÕES DE ESTADO

Fernanda Tartuce*
Débora Brandão*

Quais demandas configuram ações de estado e atraem as regras


diferenciadas previstas sobre o tema no Código de Processo Civil? Ações
referentes ao poder familiar – como, por exemplo, demandas em que se
discute “guarda de filhos” – são ações de estado?
As dúvidas são pertinentes: como as ações de estado contam com
regras processuais peculiares, é importante conhecer seu adequado percurso
judicial. Eis um exemplo de consequência prática: na ação em que se discute
a guarda de uma criança caberá citação postal ou a cientificação do
demandado precisará se dar por oficial de justiça? A resposta passa pela
qualificação da demanda como sendo ação de estado ou não.
A Constituição Federal, no artigo 229, dispõe que é dever dos pais
assistir, cuidar e educar seus filhos menores. Trata-se de munus publico
conferido aos genitores, em igualdade de condições; nessa medida,

[...] poder familiar é o direito-dever, pertencente aos


genitores, de criar, educar e representar os filhos menores
não emancipados e seu patrimônio no interesse destes. É
exclusivo dos genitores e, na falta deles, somente quem os
adotar ou reconhecer parentalidade socioafetiva poderão
exercê-lo como titulares1.

*
Doutora e Mestre em Direito Processual pela USP. Professora do programa de
Mestrado, Coordenadora e professora em cursos de especialização na Escola Paulista
de Direito (EPD). Advogada e mediadora.
*
Pós-Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, Espanha.
Doutora e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Professora, advogada e mediadora.
1
BRANDÃO, Débora. Poder familiar. In: _______. Curso de direito civil
constitucional. Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2020.

1
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Como se nota, o poder familiar deve ser exercido em virtude da


relação parental; assim, independentemente de estado civil dos genitores,
ambos possuem o direito-dever de exercer o poder familiar. Por essa
razão, há impropriedade técnica no caput do art. 1.631 do Código Civil
ao dispor que o poder familiar compete aos pais durante o casamento e a
união estável; na realidade, ele compete aos genitores enquanto os filhos
forem menores e não emancipados2.
Por serem titulares do poder familiar, os genitores recebem do
Estado, por meio da lei, uma série de atribuições – que são direitos-
deveres – a fim de zelarem pelo pleno desenvolvimento da criança e do
adolescente para que possam se tornar cidadãos autônomos.
Os direitos-deveres decorrem do poder familiar e não da guarda,
razão pela qual os genitores podem e devem tomar decisões em conjunto,
“independentemente da forma de guarda exercida por eles, unilateral ou
compartilhada, quando o relacionamento conjugal não mais existe”3.
Se os atributos estabelecidos no artigo 1.634 do Código Civil
não forem cumpridos, os genitores poderão responder civil e
criminalmente por ações e/ou omissões em relação aos seus filhos.
O que se objetiva discutir é o exercício da guarda, disposto no
artigo 1.634, II do Código Civil; o artigo 1.632 do mesmo Código é
explícito ao afirmar que qualquer rompimento da relação entre os
genitores não enseja alteração no direito de ter os filhos em suas
companhias. Ainda que nunca tenham tido qualquer relação amorosa,
genitores possuem o direito de ter seus filhos junto a si; afinal., a guarda
é a companhia física do seu filho, decorrente do poder familiar, e
configura uma das atribuições decorrentes do exercício desse poder4.
A Constituição Federal, no artigo 227, consagra o princípio da
convivência familiar, diretriz reiterada pelo Estatuto da Criança e do

2
BRANDÃO, 2020.
3
Ibid., 2020.
4
Ibid., 2020.

2
Adolescente; se os genitores não residem na mesma casa, a convivência
entre eles e seus filhos deve ser assegurada:

A principiologia introduzida a partir de 1988 impõe outra


interpretação à guarda porque, se ela é companhia física,
atributo do poder familiar, cuja titularidade é de ambos,
não é possível e nem aceitável a permanência de um
genitor-visitador, devendo a lei e os atos revelarem o
exercício da coparentalidade responsável, assegurada a
convivência familiar, verdadeiramente. A antiga visão,
que em parte permanece até hoje, acerca da guarda deve
ser revisitada5.

Como se nota, o conceito de guarda unilateral e guarda


compartilhada devem ser revisitados, conforme concluem Débora Brandão
e Rodrigo de Lima Vaz Sampaio (2021), no artigo acima mencionado.
Poder familiar é o direito-dever titularizado pelos genitores e
guarda é atributo deste direito-dever; portanto, é de rigor conviver para
educar, cuidar e criar os filhos, tendo ambos os genitores estes direitos-
deveres, de ordinário. Somente em caso de perda ou suspensão do poder
familiar é que haverá supressão ou diminuição de tais atributos:

Tecnicamente, entende-se que, para os casos regulares em


que a guarda é compartilhada, deveria haver apenas
estabelecimento de regras para o exercício da convivência,
se necessário fosse. Isto porque os genitores
estabeleceriam, assim como é a vida cotidiana, quem
realizaria as atividades com a prole, conforme o melhor
interesse. Direito de visitas somente deveria ser
estabelecido nos casos em que a guarda fosse unilateral,
como medida excepcionalíssima6.

5
BRANDÃO, Débora; SAMPAIO, Rodrigo de Lima Vaz. Poder familiar e guarda:
redefinição histórico-dogmática dos institutos. In: ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu
Torezam; JUNQUEIRA, Michelle Asato (org.). Estatuto da Criança e do
Adolescente após 30 Anos: Narrativas, Ressignificados e Projeções. Londrina: Editora
Thoth, 2021. v. 2, p. 89-108.
6
Ibid., 2021.

3
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Inúmeras demandas têm sido propostas em virtude da confusão


existente em torno destas categorias jurídicas; por conta disso, há
equívocos processuais, como tratar ação para discussão de guarda e
regulamentação do exercício da convivência como ações de estado,
como se demonstrará adiante.
Para o entendimento das ações de estado, é necessário
compreender a abrangência do estado civil de uma pessoa, que é composto
pelo estado individual ou físico, o estado familiar e o estado político.
O estado individual diz respeito à idade, no que concerne à
maioridade ou não, ao gênero e a todos os elementos que possam
influenciar na capacidade civil da pessoa. O estado familiar – e esse nos
interessa de perto – aponta a situação da pessoa em relação à família,
como o parentesco e a conjugalidade, ou seja, se é filho, mãe, marido,
mulher, casado, solteiro, separado, divorciado ou viúvo. Já o estado
político contextualiza a pessoa natural dentro da sociedade, em relação
ao Estado, como sendo natural, naturalizada, estrangeira; a somatória
desses estados é que, tecnicamente, compõe o estado civil7.
Maria Helena Diniz (2011) arremata o estudo do estado civil
explicando que ele “recebe proteção jurídica de ações de estado, que têm
por escopo criar, modificar ou extinguir um estado, constituindo um
novo, sendo por isso, personalíssimas, intransmissíveis e imprescritíveis,
requerendo a intervenção estatal”8.
Neste sentido, pode-se afirmar que as ações de estado se
prestam a tutelar o estado civil, que é uma das dimensões dos direitos de
personalidade.
No clássico Vocabulário Jurídico, De Plácido e Silva ([2019])
se refere conjuntamente a dois tipos de demandas:

7
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil.
28. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 241-243.
8
Ibid., p. 244.

4
As ações de estado e de capacidade são aquelas que
tendem a estabelecer ou modificar o estado ou a
capacidade de uma pessoa. São ações personalíssimas, e,
entre outras, podem ser anotadas as ações:
a) de investigação da paternidade ou da maternidade;
b) de separação;
c) de anulação de casamento ou de sua nulidade;
d) de revogação da adoção;
e) de interdição e seu levantamento9.

Como se nota, a clássica definição enfoca o aspecto constitutivo


inerente às demandas em que se discutem estados ligados à filiação e ao
fim de casamentos.
Na mesma linha se manifesta Silvio de Salvo Venosa (2013),
para quem as ações de estado têm por finalidade criar, modificar ou
extinguir um estado, conferindo um novo à pessoa”10.
Como se nota, é comum encontrar autores que exemplificam
tais demandas apontando conflitos sobre o fim da união entre casais;
entretanto, é importante estabelecer a diferença entre ações de estado e
demandas que versam sobre o exercício do estado de família, apontada
por Silvio de Salvo Venosa (2013):

As ações de estado puras não se confundem com as que


visam ao exercício do estado de família. A ação de
alimentos, por exemplo, exercita o direito do estado de
filiação ou conjugal, mas não é uma ação de estado. Assim
também as ações de guarda e regulamentação de visitas de
filhos. Também não são ações de estado as de mera
retificação do registro civil11.

9
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
Disponível em: https://bookshelf.vitalsource.com/#/books/9788530957353/. Acesso em:
21 nov. 2019.
10
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 170.
11
“As denominadas ações de Estado são aquelas nas quais a pretensão é de obtenção
de um pronunciamento judicial sobre o estado de família de uma pessoa. Podem ser
positivas, para se obter um estado de família diverso do atual, ou negativas, para excluir
determinado estado. Por exemplo, as ações de investigação de paternidade e negatória
de filiação. Desse modo, as ações de estado são todas as que buscam proteger o estado

5
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Assim, impõe-se a seguinte questão: demandas em que se


discute o exercício do poder familiar – como as relativas à guarda e à
convivência familiar (“visita”) – são ações de estado?
A resposta é positiva para Gelson Amaro de Souza e Felipe
Teló, para quem ações de estado são aquelas que envolvem o estado
familiar ou de cidadania do indivíduo, dizendo respeito, por exemplo, à
capacidade, ao estado civil, à filiação e ao poder familiar12.
Para aprofundar a análise, há que se enfrentar a conceituação de
ação de estado. Conforme os conceitos doutrinários acima destacados, essas
ações visam a adquirir, modificar ou extinguir um direito relacionado ao
estado civil da pessoa, especialmente no que concerne ao estado familiar.
Portanto, é forçoso concluir que ações que versam sobre guarda não alteram
o estado familiar da criança ou do adolescente porque disciplinam o
exercício de um atributo do poder familiar, apenas. O poder familiar não é
alterado. Se a discussão fosse sobre a destituição ou suspensão do poder
familiar, seria ação de estado. A mesma lógica deve ser aplicada ao
exercício da convivência familiar, costumeiramente chamada de “direito de
visitas”. Essa afirmação merece esclarecimento porque genitores não
devem ser visitadores, mas cuidadores, convivendo com seus filhos
intensamente, na medida do possível, para poderem educar,
independentemente de vínculo conjugal – já que a relação é meramente
parental, norteada pelo especial interesse da criança e do adolescente e pelo
princípio da parentalidade responsável (art. 227 e 226, § 7º, CF).
No Código de Processo Civil de 1973, ao buscar a expressão
“ações de estado”, o leitor encontrava regras sobre Ministério Público,

de família de forma positiva ou negativa. Podem controverter a relação filial, conjugal


ou de parentesco em geral” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 13.
ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 170).
12
TELÓ, Felipe Garcia; SOUZA, Gelson Amaro de. Coisa julgada em relação a
terceiros nas ações de estado: artigo 472 do Código de Processo Civil. Encontro de
Iniciação Científica, Ribeirão Preto, v. 6, n. 6, 2010. Disponível em:
http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/2404/1929.
Acesso em: 23 nov. 2019.

6
competência, citação, suspensão, procedimento sumário, depoimento,
exibição, testemunho, coisa julgada e primeiras declarações no inventário13.
Ao procurar a expressão “ações de estado” no CPC/2015, são
encontradas apenas duas referências em locais diversos da legislação: em
uma regra sobre citação14 e em um dispositivo sobre depoimento pessoal15.
Carlos Augusto de Assis, ao explicar as exceções à regra de citação
postal, menciona que a previsão do art. 247, I do CPC sobre “ações de
estado (i.e., estado familiar ou político da pessoa, como separação,
investigação de paternidade)” justifica-se porque, estando presentes
“direitos indisponíveis, o legislador quis cercar o ato de maior segurança,
atribuindo ao oficial de justiça a realização da citação16”, a fim de que não
paire dúvida sobre a realização do ato de comunicação processual.
A observância da regra é importante a ponto de sua ausência
ensejar nulidade processual. Eis um exemplo: em ação de divórcio
cumulada com pedidos de guarda e alimentos houve citação postal
seguida de revelia. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve a
nulidade absoluta decretada na instância de origem, dada a expressa
vedação do CPC quanto a tal forma de citação em causas sobre estado da
pessoa, entendendo ser necessária a renovação do ato citatório por oficial

13
As regras se encontravam no CPC/1973, respectivamente, nos arts. 82, 222, 265, 275,
347, 363, 405, 406, 414, 472 e 993.
14
CPC, art. 247. A citação será feita pelo correio para qualquer comarca do país, exceto:
I - nas ações de estado, observado o disposto no art. 695, § 3º. Segundo este último
dispositivo (inserido no capitulo referente às ações de família), “a citação será feita na
pessoa do réu”.
15
CPC, art. 388. A parte não é obrigada a depor sobre fatos: I - criminosos ou torpes
que lhe forem imputados; II - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar
sigilo; III - acerca dos quais não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge,
de seu companheiro ou de parente em grau sucessível; IV - que coloquem em perigo a
vida do depoente ou das pessoas referidas no inciso III. Parágrafo único. Esta
disposição não se aplica às ações de estado e de família.
16
ASSIS, Carlos Augusto de. Comentário ao art. 247. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério
et al. (org.). Código de Processo Civil anotado. São Paulo ; Curitiba: AASP ; OAB-PR,
2019. p. 462.

7
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

de justiça17. Nesse caso, o mencionado Tribunal manteve a nulidade do


processo acertadamente porque a ação de divórcio é, tipicamente, ação
de estado, uma vez que sua procedência altera o estado civil, em sua
dimensão familiar, de casado para divorciado.
Como apontado, a outra regra processual diferenciada, estabelecida
no artigo 388, diz respeito à instrução probatória em ações de estado18.
Tal previsão sobre depoimento pessoal “trata das hipóteses, não
taxativas, em que o direito ao silêncio pode ser exercido de forma
legítima pelo depoente, evitando-se a aplicação da pena de confissão19”.
Nos casos indicados pelo referido artigo do CPC, a parte pode
silenciar – exceção feita aos casos elencados no parágrafo único, em que
a demanda verse sobre ações de estado e em ações de família, o que
demonstra haver diferença entre tais tipos de demanda: nesses casos o
depoente precisará se manifestar.
Quais seriam as ações de família mencionadas pelo Código?
Segundo o artigo 693 do CPC/201520, as previsões específicas

17
Na ementa do acórdão há menção a uma decisão do Superior Tribunal de Justiça
proferida sob a vigência do CPC/1973: “Segundo dispõe o art. 222 do código de
processo civil, é vedada a citação pela via postal em ações de estado da pessoa, sendo
de rigor, portanto, o cumprimento da comissão por meio de oficial de justiça" (STJ.
AGRG na CR 9.518/ex, Rel. Min. Francisco falcão, corte especial, j. 16-9-2015)”
(TJSC; AI 2015.036977-3; São Miguel do Oeste; Câmara Especial Regional de
Chapecó; Rel. Des. Subst. Luiz Felipe Schuch; DJSC 22 mar. 2016, p. 749).
18
CPC, art. 388. A parte não é obrigada a depor sobre fatos: I - criminosos ou torpes
que lhe forem imputados; II - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar
sigilo; III - acerca dos quais não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge,
de seu companheiro ou de parente em grau sucessível; IV - que coloquem em perigo a
vida do depoente ou das pessoas referidas no inciso III. Parágrafo único. Esta
disposição não se aplica às ações de estado e de família.
19
MEDEIROS NETO, Elias Marques de. Comentário ao art. 388. In: BUENO, Cassio
Scarpinella (coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva,
2017. v. 2, t. 1, p. 278.
20
Art. 693. As normas deste Capítulo aplicam-se aos processos contenciosos de divórcio,
separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação.
Parágrafo único. A ação de alimentos e a que versar sobre interesse de criança ou de

8
são aplicáveis aos processos litigiosos de divórcio, separação,
reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação.
De acordo com o Enunciado 72 do Fórum Permanente dos
Processualistas Civis, o rol previsto em tal dispositivo não é exaustivo,
“sendo aplicáveis os dispositivos previstos no Capítulo X a outras ações
de caráter contencioso envolvendo o Direito de Família”. No mesmo
sentido, o Enunciado 19 do IBDFAM dispôs que “o rol do art. 693 do
Novo CPC é meramente exemplificativo, e não taxativo”.
Assim, as demandas relativas à nulidade do casamento, por
exemplo, também são suscetíveis à incidência das regras do Código21.
No entanto, o próprio dispositivo processual, em seu parágrafo
único, excepciona a ação de alimentos e as relativas à criança e
adolescente, que possuem procedimentos previstos em legislação
específica, Lei n. 5.678/98 e Lei n. 8.069/91, respectivamente. A razão
do tratamento legal diferenciado deve-se ao fato de que tais diplomas
possuem regras mais benéficas em virtude da matéria que disciplinam
porque cuidam do direito à vida de pessoas em estado de vulnerabilidade,
observando-se, inclusive, o mandamento constitucional de proteção
integral à criança e ao adolescente (art. 227, da CF).
Explicitado o conceito de ações de família, é necessário retomar
a discussão sobre o parágrafo único do artigo 388 do CPC que, na parte
final, obriga a parte a depor quando a matéria a ser julgada disser respeito
a ação de estado ou ação de família.
Para Zulmar Duarte (2018), a diferenciação referente a casos
criminosos/torpes é inconstitucional: como o direito de não
autoincriminação tem previsão constitucional, não pode ser afastado por

adolescente observarão o procedimento previsto em legislação específica, aplicando-


se, no que couber, as disposições deste Capítulo.
21
TARTUCE, Fernanda. Processo civil no Direito de Família: teoria e prática. 4. ed.
São Paulo: Método, 2019. p. 87.

9
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

disposição infraconstitucional22. Assim, seria a parte obrigada a depor, em


hipotética situação de ação de investigação de maternidade na qual houve
troca de bebês? Parece que o legislador processual de 2015 equivocou-se ao
tratar dessa matéria porque, ao excepcionar as ações de estado e as ações de
família – lembre-se: as litigiosas – impõe o depoimento da parte. O resultado
prático, provavelmente, será o silêncio da parte.
Avançando nas reflexões sobre as ações de estado, questiona-se
se o CPC seria excessivamente cuidadoso em relação a elas.
Ao ponto, vale lembrar a lição da Ministra Nancy Andrighi:

o formalismo ínsito às questões e ações de estado não é


um fim em si mesmo, mas, ao revés, justifica-se pela
fragilidade e relevância dos direitos da personalidade e
da dignidade da pessoa humana, que devem ser
integralmente tutelados pelo Estado 23.

A matéria envolvida, o estado de pessoa, é um dos temas mais


sensíveis do Direito Civil e merece a proteção do Estado em razão do seu
conteúdo. Também do ponto de vista processual, ou seja, quando o tema
é submetido ao Poder Judiciário, o devido processo legal deve ser
obstinadamente assegurado pelas partes, sobretudo a julgadora: afinal, a
falta de citação pessoal nulifica o processo e a falta de defesa não enseja
a incidência dos efeitos da revelia.
O exemplo mais evidente de ação de estado é a demanda em que se
discute filiação. Como bem explica Silvio de Salvo Venosa (2013),

22
DUARTE, Zulmar. Seção V - Da Confissão - arts. 389 a 395. In: GAJARDONI,
Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; DUARTE,
Zulmar. (org.). Processo de Conhecimento e Cumprimento de Sentença:
comentários ao CPC de 2015. 2. ed. Rio de Janeiro ; São Paulo: Forense ; Método,
2018. v. 2, p. 327.
23
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). REsp 1.698.717/MS. Proc.
2015/0116501-1. Relatora: Min. Nancy Andrighi, 5 de junho de 2018. DJE, 7 jun.
2018, p. 1010.

10
A filiação é, destarte, um estado, o status familiae, tal
como concebido pelo antigo direito. Todas as ações que
visam a seu reconhecimento, modificação ou negação são,
portanto, ações de estado. O termo filiação exprime a
relação entre o filho e seus pais, aqueles que o geraram ou
o adotaram24.

Por ser vista como ação de estado personalíssima, a cumulação


de demandas sobre o fim da união (casamento ou união estável do casal)
com pedidos de reconhecimento de filiação25 (de um dos filhos quanto
ao genitor) não vem encontrando guarida nos tribunais. No entanto, se o
interesse é de reconhecimento de estado de filiação e, portanto, direito
de personalidade, levando-se em conta o princípio da proteção integral
da criança e do adolescente e, se o fim do vínculo matrimonial é,
indubitavelmente, ação de estado, em sua dimensão imbricada no estado
familiar do casal, a solução deveria ser revista. Ambas as causas de pedir
são fundamentadas em estado familiar e, portanto, tutelam direito de
personalidade de todas.
Outros clássicos exemplos de ações de estado são aquelas em
que se discutem fim de casamento26 e de união estável27.

24
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 228.
25
Eis uma decisão que exemplifica esse entendimento: “A ação que visa desconstituir
a paternidade é ação de estado, sendo direito personalíssimo da filha e do genitor e não
pode ser cumulada com o pedido de divórcio, pois não há identidade de partes e de
objeto, devendo a questão ser discutida na via própria. (...) (RIO GRANDE DO SUL
(Estado). Tribunal de Justiça do Estado (7. Câmara Cível). AC 0269011-
35.2017.8.21.7000/Rosário do Sul. Relator: Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos
Chaves, 28 de fevereiro de 2018. DJERS, 7 mar. 2018).
26
“A ação de divórcio, na modulação que hodiernamente lhe é conferida pelo legislador
constitucional, tem objeto volvido à resolução do vínculo matrimonial e regulação dos
efeitos derivados da dissolução do casamento, estando a competência para processá-la
e julgá-la, por se qualificar como ação de estado, afeta ao Juízo de Família (Lei nº
11.697/2008, artigo 27)” (DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios (1. Turma Cível). Ac. 111.1220. Proc 0717.65.4.942017-8070000.
Relator: Des. Teófilo Caetano, 25 de julho de 2018; DJDFTe, 1º ago. 2018).
27
“A ação de reconhecimento de união estável é uma ação de estado, ou seja, visa
alterar a situação jurídica dos conviventes, gerando implicações jurídicas, inclusive, no

11
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Alguma dúvida pode haver, contudo, quando não ficar clara a


natureza do pedido por conta de uma peculiar indicação do nome da ação.
Como praxe, quem questiona o vínculo parental costuma
promover “ação negatória de paternidade”, “ação de anulação de registro
civil” e, na forma cumulada, “ação negatória de paternidade cumulada
com anulação de registro civil”. Contudo, as pretensões de negar
paternidade e anular registro civil possuem objetivos diversos, embora o
segundo possa decorrer do primeiro. Qual é o adequado cabimento de
cada pedido28?
Embora a doutrina não tenha sido pródiga na diferenciação, o
assunto ganhou espaço no plano jurisprudencial.
Em julgados antigos a diferenciação soava rigorosa e o critério
para determinar o cabimento de uma ou outra medida era a causa de pedir
relatada no caso: havendo alegação de vício de consentimento ou erro na
efetivação do registro, reputava-se adequado o pleito de anulação de
registro – mas se o objetivo era questionar ou negar a paternidade
imputada antes da efetivação do registro, reputava-se adequado
promover ação investigatória/negatória de paternidade29.
Como o passar do tempo a distinção foi se esmaecendo;
atualmente muitas demandas vêm nominadas com a indicação de um ou
outro pleito em casos que seriam, segundo os critérios apontados,
diversos dos adequados.
Tecnicamente faz mais sentido o simples apontamento da
investigação de paternidade como causa de pedir: a mudança do nome
no registro civil, afinal, é um efeito do reconhecimento da parentalidade,
não merecendo destaque por não se tratar de pedido autônomo30.

regime patrimonial do casal (art. 1.725 do Código Civil)” (DISTRITO FEDERAL.


Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (7. Turma Cível). Ac. 121.2031.
Proc 07030.36-07.2018.8.07.0002. Relatora: Desª Gislene Pinheiro, 23 de outubro de
2019. DJDFTe, 4 nov. 2019).
28
TARTUCE, 2019, p. 441.
29
Ibid., p. 441.
30
Ibid., p. 443.

12
Vale lembrar que, dependendo do foco da demanda, pode haver
consequências diferenciadas em fatores processuais importantes – como,
por exemplo, a determinação da competência.
Eis um exemplo: proposta na capital paulista uma “ação
retificatória de registro de nascimento”, houve conflito de competência
entre uma Vara especializada de Registros Públicos e uma Vara de
Família e Sucessões. O autor, marido da genitora, pretendia a retificação
da paternidade reconhecida há mais de 30 anos com fundamento em
falsidade. Como bem entendeu a Câmara Especial do Tribunal, a
demanda versa sobre estado de filiação e configura ação de estado,
matéria de competência da Vara de Família31.
Também são reconhecidas como ações de estado as que
envolvem mudanças de sexo e nacionalidade32, assim como as ações de
adoção33 e de “interdição”34 (para nomeação de curador, denominada, a
partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência, ação de curatela).

31
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado (Câmara Especial). Ac.
11015096. CC 0007327-06.2017.8.26.0000. Relator: Des. Alves Braga Junior, 27 de
novembro de 2017. DJESP, 1º fev. 2018, p. 3087.
32
“As ações de estado, segundo repertório doutrinário, consiste em pretensões que estão
diretamente ligadas ao direito de personalidade e dignidade humana, como por exemplo
a alteração de nome, de sexo, de nacionalidade. 4. No caso vertente, denota-se que a
pretensão da parte autora não está atrelada apenas a alteração formal de seu nome,
porquanto há nítido conflito de interesses dos genitores da criança; por esse último
motivo, revela que a questão de fundo a ser dirimida é de estado, o que atrai o processo
para Vara de Família” (DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal
e Territórios (1. Câmara Cível). Ac. 112.9773. Proc 07088.81-26.2018.8.07.0000.
Relatora: Desª Leila Arlanch, 10 de outubro de 2018; DJDFTe, 19 out. 2018).
33
“(...) a ação de adoção é ação de estado, de caráter constitutivo, conferindo a posição
de filho ao adotado” (VENOSA, 2013, p. 284).
34
APELAÇÃO CÍVEL. PESSOAS NATURAIS. CAPACIDADE. Curatela.
Interdição. Curatela. Direito indisponível. Ação de estado. Inteligência da Lei nº
13.416/15 (estatuto da pessoa com deficiência). Sentença proferida em compasso com
a prova dos autos (...) (RIO GRANDE DO SUL (Estado). Tribunal de Justiça do Estado
(7. Câmara Cível). APL 0210159-47.2019.8.21.7000/São Leopoldo. Proc
70082382508. Relatora: Desª Sandra Brisolara Medeiros, 25 de setembro de 2019.
DJERS, 1º out. 2019).

13
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Quanto à ação para nomeação de curador, houve discussão


interessante sobre competência no contexto de uma “ação de interdição
c/c pedido de aplicação de medidas de proteção a pessoa idosa que o
Ministério Público do Estado de São Paulo move em face da
Municipalidade de Itapeva e de uma idosa”. Segundo decisão do
Tribunal paulista, “a interdição é medida protetiva de natureza civil e é
ação de estado, de competência absoluta da Vara da Família”35.
Merece destaque outro caso interessante apreciado pelo TJCE.
Proposta pela genitora de um dependente químico uma “ação de
obrigação de fazer c/c pedido de internação compulsória de toxicômano
maior de idade”36, foi suscitado um conflito negativo de competência
entre as varas da Fazenda Pública e de Família.
Feita a distribuição, o magistrado oficiante perante a 1ª vara da
Fazenda Pública da Comarca de Fortaleza declinou da competência por
entender que versava o feito sobre a "capacidade da pessoa e seu estado"
e determinou a redistribuição do feito para uma das varas de família.
Chegando ao juízo da 6ª Vara de Família, foi deferido liminarmente o

35
SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado (8. Câmara de Direito Público).
Ac. 12883988/Itapeva. AI 2161694-80.2019.8.26.0000. Relator: Des. Antonio Celso
Faria, 16 de setembro de 2019, DJESP, 19 set. 2019, p. 3054. Eis outra decisão em
sentido similar: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. Ação pela qual se pretende a
interdição e internação compulsória de pessoa viciada em drogas. Fundamento da ação
no art. 4º, II, do Código Civil, caracterizando ação de estado. Competência especial das
varas de família, nos termos do art. 37, II, a, do Código Judiciário do Estado de São
Paulo. Necessidade de prova pericial complexa, nomeação de curador especial à lide e
atuação do Ministério Público como custos legis, descaracterizando o conceito de ação
de menor complexidade. Impossibilidade de aplicação do rito sumaríssimo. Conflito
conhecido para declarar a competência da 3ª Vara Cível de Birigui. (SÃO PAULO
(Estado). Tribunal de Justiça do Estado (Câmara Especial). Ac. 11791973/Birigui. CC
0016662-15.2018.8.26.0000. Relator: Des. Fernando Torres Garcia, 3 de setembro de
2018. DJESP, 11 out. 2018, p. 2951).
36
Segunda consta no acórdão, a genitora do dependente químico propôs a demanda contra
o Município de Fortaleza requerendo a internação compulsória em clínica especializada na
recuperação de drogados porque o filho se recusava a se submeter espontaneamente a
qualquer tipo de tratamento que possibilitasse “a libertação do vício que o tem escravizado,
com consequências maléficas para si próprio e para toda a sua família”.

14
pedido de tutela antecipada para que fosse providenciada imediatamente
a internação compulsória, às expensas do município de Fortaleza, sob
pena de multa diária no valor de R$ 1.000,00 (hum mil reais).
Posteriormente, contudo, adveio decisão sobre a incompetência do juízo
familiar ante a inexistência da ação de estado, "vez que não há interdição
solicitada", entendendo-se então que se tratava de demanda relacionada
à proteção da saúde do toxicômano.
Novamente redistribuído, o processo chegou na 10ª Vara da
Fazenda Pública e o magistrado titular suscitou o conflito negativo de
competência, firmando entendimento que o feito deveria tramitar perante
a 1ª Vara da Fazenda Pública, para a qual foi o processo distribuído
inicialmente (ante a ausência de óbice para que assim ocorresse, ainda
que com a possibilidade de figurar no pólo ativo eventual incapaz).
Ao apreciar o caso, entendeu o TJCE que a lide “versa sobre o
direito à saúde e não sobre o estado ou a capacidade do dependente
químico”, atraindo a competência do juízo que recebeu o feito
originariamente via distribuição37.
Trata-se de outro assunto extremamente sensível e que dialoga
diretamente com as ações de estado.
Caso se entenda que a pessoa precisa de internação compulsória
porque perdeu completamente a capacidade para exercício dos atos da
vida civil, não tendo qualquer discernimento e contato com o mundo real,
por não ser capaz de concatenar ideias e saber quem é, poderá ser o caso
de ação de curatela. A fixação dos limites desta deverá ser expressamente
apontado na sentença, uma vez que não há mais na legislação pessoa
maior de 16 anos absolutamente incapaz – o que se pode discutir
doutrinariamente em outro momento.

37
CEARÁ (Estado). Tribunal de Justiça do Estado (2. Câmara de Direito Público); CC
0000288-13.2017.8.06.0000. Relatora: Desª. Maria Nailde Pinheiro Nogueira. DJCE,
26 jul. 2018, p. 29.

15
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Quando se fixa o entendimento de que a internação compulsória


tem o objetivo exclusivo de propiciar acesso a tratamento de saúde,
esquecendo-se de que a pessoa doente precisa exercer os atos da vida
civil (v.g., continua recebendo citações e continua devedora em todas as
suas obrigações), parece que a tutela estatal não é completa porque a
simples internação não resolve o problema daquela pessoa de modo
integral: ela apenas é vista como uma pessoa drogadita e os demais
aspectos de sua dimensão civil restam desconsiderados.
Essas considerações são feitas apenas para demonstrar quão
importante é a compreensão do conceito de ação de estado e os impactos
jurídicos que ele produz.

CONCLUSÕES

A confusão conceitual, por parte da doutrina e da lei, existente


entre poder familiar e guarda tem feito com que os aplicadores do direito
se equivoquem diante de sensíveis situações.
A guarda é atributo do poder familiar e ambos os genitores dela
são titulares, o que leva à forçosa conclusão de que a guarda, de
ordinário, só poderia ser compartilhada. A convivência, portanto, precisa
ser revisitada. Não se pode mais admitir um genitor visitador. A
convivência deve ser estreita por ser direito decorrente da guarda. O
exercício é que deve ser disciplinado, regulamentado. Apenas em casos
excepcionais é que deveria ser admitida guarda unilateral e, assim,
convivência com alguma limitação.
Procurou-se trazer a lume o conceito de ação de estado, com
amparo na doutrina clássica, a fim de demonstrar que ele se pauta pela
tutela do estado civil da pessoa humana, em sua dimensão familiar, e
integra direito de personalidade.
A ação de guarda e a ação de regulamentação de convivência
(visitas) não versam sobre estado de pessoa; isto ocorreria se a discussão
fosse a respeito de perda do poder familiar, mas o exercício deste não.

16
Também é oportuno consignar que algumas ações de família,
descritas exemplificativamente no artigo 693 do Código de Processo
Civil, podem ser classificadas como ações de estado, especialmente
as ações litigiosas de divórcio, separação (para quem sustenta sua
existência na legislação) e as ações que discutem a condição de filho,
ou seja, parentalidade.
As ações de reconhecimento e extinção de união estável não
podem ser classificadas como ações de estado porque a legislação ainda
não reconheceu o estado civil de companheiro ou companheira.
No entanto, a legislação processual civil determina a citação
pessoal nos casos de ações de família por conta da importância social e
jurídica da matéria envolvida, uma vez que a família é a base da
sociedade brasileira e tem especial proteção do Estado, conforme o caput
do artigo 226 da Constituição Federal.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Carlos Augusto de. Comentário ao art. 247. In: CRUZ E TUCCI,
José Rogério et al. (org.). Código de Processo Civil anotado. São
Paulo: AASP/OAB-PR, 2019.

BRANDÃO, Débora. Poder familiar. In: ________. Curso de direito


civil constitucional: Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2020.

BRANDÃO, Débora; SAMPAIO, Rodrigo de Lima Vaz. Poder familiar


e guarda: redefinição histórico-dogmática dos institutos. In:
ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezam; JUNQUEIRA, Michelle
Asato (org.). Estatuto da Criança e do Adolescente após 30 Anos:
Narrativas, Ressignificados e Projeções. Londrina: Editora Thoth, 2021.
v. 2, p. 89-108.

17
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do


direito civil. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

DUARTE, Zulmar. Art. In: GAJARDONI, Fernando da Fonseca;


DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos; DUARTE, Zulmar.
(org.). Processo de Conhecimento e Cumprimento de Sentença:
comentários ao CPC de 2015. 2. ed. Rio de Janeiro ; São Paulo: Forense;
Método, 2018. v. 2.

MEDEIROS NETO, Elias Marques de. Comentário ao art. 388. In:


BUENO, Cassio Scarpinella (coord.). Comentários ao Código de
Processo Civil, parte 1. São Paulo: Saraiva, 2017. v. 2.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2014. Disponível em: https://bookshelf.vitalsource.com/#/boo
ks/9788530957353/. Acesso em: 21 nov. 2019.

TARTUCE, Fernanda. Processo civil no Direito de Família: teoria e


prática. 4. ed. São Paulo: Método, 2019.

TELÓ, Felipe Garcia; SOUZA, Gelson Amaro de. Coisa julgada em


relação a terceiros nas ações de estado: artigo 472 do Código de Processo
Civil. Encontro de Iniciação Científica, Ribeirão Preto, v. 6, n. 6, 2010.
Disponível em: http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC
/article/view/2404/1929. Acesso em: 23 nov. 2019.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 13. ed. São Paulo:
Atlas, 2013.

18
GUARDA ALTERNADA E GUARDA COMPARTILHADA
COM RESIDÊNCIA ALTERNADA: há diferença?

Renata Nepomuceno e Cysne*


Flavia Brandão Maia Perez*

“Eu moro com a minha mãe


Mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua, não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar

Já morei em tanta casa


Que nem me lembro mais
Eu moro com meus pais”1

A Constituição Federal promulgada em 1988 é considerada um


marco na alteração das dinâmicas familiares, pois, entre outras
conquistas, garante a expressão da diversidade da sociedade brasileira –
com disposição expressa da igualdade formal entre homem e mulher –,
reconhece a criança e o adolescente como sujeitos de direito e prioriza o
melhor interesse deles. Essas previsões repercutiram em novas
normativas e aplicações principiológicas do Direito das Famílias.
Se, antes da Carta Magna, pensar em família significava
casamento entre homem e mulher, filhos biológicos e proteção
patrimonial, atualmente, com a pluralidade familiar, novos arranjos e
organizações surgem a cada dia e desafia os operadores do Direito das
Famílias a enxergarem e aplicarem as normas de forma a atender os
princípios constitucionais e os tratados internacionais dos quais o Brasil

*
Advogada especializada em Direito de Família e Sucessões. Presidente da Comissão de
Relações Governamentais e Institucionais do IBDFAM, Gestão 2018/2020 e 2021/2023.
*
Advogada especializada em direito constitucional e em Direito de Família e
Sucessões. Presidente do IBDFAM/ES 2018/2020 e 2021/2023. Vice-Presidente da
Comissão Especial de Família e Sucessões da OAB 2019/2021. Mestranda pela
Universidade de Vila Velha/ES.
1
Canção “Pais e Filhos”, da banda Legião Urbana (1989).

19
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

é signatário, e não mais a se submeterem a enquadramentos rígidos e


distantes da realidade.
A alteração do papel da mulher na sociedade, com maior
participação no mercado de trabalho, a evolução da ciência, que permitiu
a contracepção de forma mais segura, o direito da mulher ao voto e a ser
votada, além da possibilidade do divórcio repercutiram nas organizações
e arranjos familiares.
O papel de pai exclusivamente provedor, e o da mãe
exclusivamente cuidadora cedem pouco a pouco espaço para uma nova
dinâmica de convivência paterno-materno-filial. Essas mudanças, ainda
tão prematuras, demandam reflexões sobre modelos ideais de guarda e
convivência de famílias binucleares ou multinucleares.
Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2019) aponta que o casamento civil continua a ser uma forma
significativa de constituição de família e que o divórcio tem ampla
aceitação pela sociedade, tendo sido registrados em cartórios 1.024.676
casamentos e 383.286 divórcios no ano de 20192.
Diante desse novo panorama, houve, no ordenamento pátrio, no
que concerne ao Direito das Famílias, grandes alterações em um curto
período. A necessidade de se entender a complexidade dessas mudanças
indicam que as famílias com filhos são as que merecem maior atenção.
Os pais devem ter autonomia para a organização de arranjos de
guarda e convivência filial a considerar o caso concreto, desde que
atendidos os melhores interesses dos filhos e que não fiquem apenas
submetidos a conceitos preconcebidos os quais podem não se adequar a
sua dinâmica familiar.
A hierarquia imposta pela família patriarcal que destinava o
poder decisório sobre a família, a mulher e os filhos ao pater familias
ganha novos contornos com a promulgação da Carta Magna de 1988, que

2
Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2019_v
46_informativo.pdf. Acesso em: 17 jul. 2021.

20
traz em seus preceitos a família democrática. O que era pátrio poder
passa a ser poder familiar, como marco da igualdade conjugal e a criança
e o adolescente passam a ser respeitados como sujeitos de direitos. Uma
profunda ressignificação das relações familiares.
A autoridade parental constitui-se em direito-dever dos pais
pautado no exercício dos direitos fundamentais dos filhos. Trata-se de
conjunto de responsabilidades de caráter patrimonial e existencial
atribuídas a ambos os pais com relação a seus filhos, decorrente do
vínculo de parentalidade3.
As mudanças decorrentes da Constituição Federal e
implementadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente determinam
que qualquer decisão que envolva direito da criança e do adolescente
deve ser aplicada sob o enfoque do melhor interesse destes e deve ser a
diretriz para o exercício da autoridade parental (XAVIER et al., 2019)4,
em pleno atendimento ao art. 227 da Constituição Federal5 e do art. 3.1
da Convenção sobre os Direitos da Criança (Decreto 99.710/1990)6.
A ausência de uma definição detalhada do que seria o melhor
interesse da criança e do adolescente importam em uma leitura dos preceitos
vigentes na sociedade à época em que norma constitucional for aplicada.

3
Art. 1.630: “Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”.
4
XAVIER, Marília et al. Guarda e Autoridade Parental por um regime diferenciador.
In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; DADALTO, Luciana (org.). Autoridade
Parental: dilemas e desafios contemporâneos. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019.
5
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e
ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
6
“Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou
privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos
legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”.

21
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Os artigos 1.5797, 1.6328 e 16349 do Código Civil Brasileiro


(CC), em suma, dispõem que a dissolução da sociedade conjugal ou da
união estável em nada altera o poder parental (autoridade parental). O
conceito de autoridade parental não é consectário do instituto da guarda,
pois compete a ambos os pais o exercício do poder familiar,
independente do regime de guarda.
A guarda é um dos atributos da autoridade parental, e sua
principal função está na atuação direta no processo de formação dos
filhos10. No Brasil, estão previstas duas modalidades: compartilhada e
unilateral, sendo a guarda compartilhada a regra. Este artigo busca
diferenciar as modalidades de guarda compartilhada e alternada sob a
perspectiva do regime de convivência alternada.
Os mesmos valores que nortearam a Constituição Federal de 1988,
com enfoque na dignidade humana, igualdade e liberdade, também
permearam as relações humanas e é possível verificar a ruptura do padrão

7
“O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos.
Parágrafo único. Novo casamento de qualquer dos pais, ou de ambos, não poderá
importar restrições aos direitos e deveres previstos neste artigo”.
8
“A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as
relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem
em sua companhia os segundos”.
9
“Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno
exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação
e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou
negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V - conceder-lhes ou negar-lhes
consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município; VI -
nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe
sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII - representá-los
judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-
los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII
- reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; IX - exigir que lhes prestem obediência,
respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”.
10
A principal função desse instituto é cumprir o dever de assistência e cuidado,
provimento material e moral e, sobretudo, a atuação direta e fundamental no processo
de formação dos filhos, ou seja, uma verdadeira função protetiva e promocional, em
todos os aspectos (PEREIRA, 2018).

22
familiar vigente na sociedade brasileira. O princípio da igualdade entre
homens e mulheres refletiu diretamente nas relações conjugais e a guarda
dos filhos passa a ser possível para qualquer um dos pais, desvencilhando-
se da análise de culpa pelo fim do casamento vigente até então11.
O ingresso em massa das mulheres no mercado de trabalho
exigiu maior participação do homem na criação e na educação dos filhos;
assim, o pai deixa de ser mero provedor e passa a construir relações mais
consistentes de afeto e de cuidado para com os filhos.
As famílias constituídas pela união estável e de relacionamentos
eventuais entre os genitores também ganham um crescente espaço na
sociedade brasileira. A legitimação da busca da felicidade e da família
fundada no afeto e na igualdade de gênero, e não mais em valores
patrimoniais e religiosos, faz com que o número de divórcios e
dissoluções de uniões estáveis cresça a cada dia – afinal, não há mais
obrigatoriedade de permanência em um relacionamento que não atenda
aos anseios de felicidade de seus integrantes.
O Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 também
representa um marco na ruptura da busca do culpado pelo fim da
relação conjugal, uma vez que preconiza que o melhor interesse do
menor e a prioridade absoluta das crianças e dos adolescentes é que
devem ser o objetivo.
Essas transformações sociais geraram uma reflexão sobre as
diferenças entre as relações amorosas e as relações parentais, isto é, a

11
Art. 326 do Código Civil Brasileiro de 1916: “Sendo o desquite judicial, ficarão os
filhos menores com o cônjuge inocente. § 1º Se ambos forem culpados, a mãe terá
direito de conservar em sua companhia as filhas, enquanto menores, e os filhos até a
idade de seis anos. § 2º Os filhos maiores de seis anos serão entregues à guarda do pai”.
Lei do Divórcio – Lei nº 6.515/77 - Art 9º: “No caso de dissolução da sociedade
conjugal pela separação judicial consensual (art. 4º), observar-se-á o que os cônjuges
acordarem sobre a guarda dos filhos.” Art 10 - “Na separação judicial fundada no
‘caput’ do art. 5º, os filhos menores ficarão com o cônjuge que a e não houver dado
causa. § 1º - Se pela separação judicial forem responsáveis ambos os cônjuges; os filhos
menores ficarão em poder da mãe, salvo se o juiz verificar que de tal solução possa
advir prejuízo de ordem moral para eles.”

23
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

relação da qual a criança provém (seja afetiva, registral ou biológica) e a


relação dos pais com os filhos. A primeira se dissolve; a segunda, em
regra, se mantém.
A partir da nova sistemática familiar, o modelo de guarda
predominantemente unilateral, sendo em sua maioria materna, deixa de
atender aos anseios sociais e ao melhor interesse das crianças e
adolescentes. No ano de 2008, foi disciplinada, pela primeira vez, a
guarda compartilhada definida como a “responsabilização conjunta e o
exercício dos direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o
mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”12.
A ausência de obrigatoriedade na fixação da guarda
compartilhada, uma vez que a lei dispunha que deveria ser deferida
“sempre que possível”13, resultou em uma baixa aplicação nos casos
concretos, e a ausência de diálogo entre o par parental se transformou em
uma barreira quase que intransponível.
Ainda que a autoridade parental do não guardião se mantenha
intacta, seja na família de formação nuclear, binuclear ou multinuclear,
e independa do regime de guarda, a precária convivência reservada
àquele que não detém a guarda dos filhos resulta em seu afastamento das
responsabilidades de caráter existencial deles.
Diante da baixa fixação judicial do compartilhamento de
guarda e da necessidade de se resguardar a convivência filial com o par
parental, foi sancionada a Lei nº 13.058 de 2014, conhecida como a Lei
da Guarda Compartilhada, que sanou a dúvida quanto à aplicação

12
Lei 11.698/2008, Art. 1583: “A guarda será unilateral ou compartilhada. §1º
Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que
o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta
e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto,
concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”.
13
Lei 11.698/2008, Art. 1.584: “A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: (...)
§ 2o Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será
aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”.

24
preferencial dessa modalidade de guarda, que independe inclusive do
consenso entre os pais.
Com intuito de equilibrar a convivência do par parental com os
filhos e igualar a responsabilidade dos pais de criarem e educarem os
filhos menores, a regra constante da Lei da Guarda Compartilhada é de
que essa modalidade somente não será aplicada quando expressamente
um dos pais manifestar que não deseja ou não pode exercê-la, ou quando
houver a destituição14 ou suspensão15 do poder familiar de um deles.
Segundo dados do Censo 2020, a aplicação da guarda
compartilhada passou de 7,5% no ano de 2014, para 20,9% no ano de
201716. Apesar de crescentes, os números ainda são tímidos se
considerada a legislação em vigor, o que revela a complexidade das
relações familiares e a falta de verdadeiro entendimento dos benefícios
para os filhos.
Segundo Renata Multedo (2017, p. 155), os benefícios da Lei
ultrapassam o campo jurídico e agem como força modificadora do
comportamento dos pais em relação aos filhos, conscientizando e
responsabilizando aqueles quanto à criação e à tutela destes. Trata-se
da democratização do arranjo familiar, em sintonia com a nova
axiologia constitucional.

14
Art. 1637 do CC: “Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres
a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum
parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela
segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar.
Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe
condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos
de prisão.”
15
Art. 1638 do CC: “Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I – castigar imoderadamente o filho
II – deixar o filho em abandono
III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes
IV – incidir, reiteradamente, mas faltas previstas no artigo anterior.”
16
Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-
de-noticias/noticias/22866-casamentos-que-terminam-em-divorcio-duram-em-media-
14-anos-no-pais. Acesso em: 17 jul. 2021.

25
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Cumpre ressaltar que, embora a lei da guarda compartilhada


disponha que deve ser fixada a cidade base de moradia, com fundamento
no melhor interesse dos filhos17, o entendimento jurisprudencial
predominante é de estipulação da moradia de referência, o que nem
sempre é o indicado, pois fortalece um entendimento de que há uma
relação de poder, hierarquia e de preferência entre o par parental, que vai
de encontro à igualdade que se almeja alcançar.
A previsão legal de que na guarda compartilhada a cidade base de
moradia do filho será aquela que melhor atender seus interesses demonstra
o intuito do legislador de estabelecer essa modalidade de guarda, mesmo
quando os pais residirem em cidades distintas. Tem-se, portanto, que, ao
contrário do decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do
RESP 1.605.477/RS18, os limites geográficos não devem ser impedimento
insuperável para a fixação da guarda compartilhada.
Ponto ainda de resistência diz respeito a regulamentação da guarda
compartilhada com estabelecimento da convivência de forma alternada.
Ao tratar da guarda compartilhada, o parâmetro da convivência
estabelecido pelo legislador é o do equilíbrio de tempo do convívio dos

17
Art. 1.583: “A guarda será unilateral ou compartilhada. [...] § 3º Na guarda
compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor
atender aos interesses dos filhos.”
18
“RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. GUARDA
COMPARTILHADA. CONSENSO. DESNECESSIDADE. LIMITES GEOGRÁFICOS.
IMPLEMENTAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. MELHOR INTERESSE DOS MENORES.
SÚMULA Nº 7/STJ. 1. A implementação da guarda compartilhada não se sujeita à
transigência dos genitores. 2. As peculiaridades do caso concreto inviabilizam a
implementação da guarda compartilhada, tais como a dificuldade geográfica e a realização
do princípio do melhor interesse dos menores, que obstaculizam, a princípio, sua efetivação.
3. Às partes é concedida a possibilidade de demonstrar a existência de impedimento
insuperável ao exercício da guarda compartilhada, como por exemplo, limites geográficos.
Precedentes. 4. A verificação da procedência dos argumentos expendidos no recurso
especial exigiria, por parte desta Corte, o reexame de matéria fática, o que é vedado pela
Súmula nº 7 deste Tribunal. 5. Recurso especial não provido.” (BRASIL. Superior Tribunal
de Justiça (3. Turma). REsp 1605477/RS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 21 de
junho de 2016, DJe 27 jun. 2016).

26
filhos com os pais19, a fim de propiciar a coparticipação e a
corresponsabilização parental.
A fixação dos períodos de convivência impõe desafios, pois não
há uma fórmula pronta que pode ser aplicada a todas as famílias. Para
isso, o legislador estabeleceu a possibilidade de o juiz recorrer à
orientação técnico-profissional ou de equipe multidisciplinar20, que deve
estar atenta às circunstâncias do caso concreto, como a idade do filho e
a aplicação prática da rotina familiar. Segundo a valiosa lição de Pietro
Perlingieri (2002, p. 259):

O papel primário na satisfação da necessidade-direito à


educação é portanto do casal. As intervenções, entre as
quais assume um significado aquela do juiz, em via
subsidiária, são orientadas a facilitar o normal andamento
da família e a eliminar, por outro lado, os obstáculos, os
abusos, os desvios21.

Após a entrada em vigor da Lei da Guarda Compartilhada,


houve diversidade de interpretações jurisprudenciais e doutrinárias e
uma série de confusão de conceitos, tanto que na VII Jornada de Direito
Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal no ano de 2017, 5
(cinco) enunciados foram aprovados para orientar a aplicação da lei. Os
enunciados esclarecem que o equilíbrio da convivência não significa
divisão matemática do tempo ou livre convívio22; da mesma forma, não

19
Art. 1.583: “A guarda será unilateral ou compartilhada. [...] § 2º Na guarda compartilhada,
o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com
o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.”
20
Art. 1.584: “A guarda será unilateral ou compartilhada, poderá ser: [...] § 3º Para
estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda
compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá
basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, que deverá
visar à divisão equilibrada do tempo com o pai e com a mãe.”
21
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Tradução: Maria Cristina de Cicco.
3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
22
Enunciado 603: “A distribuição do tempo de convívio na guarda compartilhada deve
atender precipuamente ao melhor interesse dos filhos, não devendo a divisão de forma

27
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

implicam em alternância de guarda23; que há necessidade de fixação do


regime de convivência quando estipulada a guarda compartilhada24; que
deve haver proporcionalidade entre o par parental na divisão do tempo e
nos cuidados com os filhos25; e que o compartilhamento da guarda não
isenta a obrigação alimentar26.
Na guarda compartilhada, a participação no cotidiano dos filhos
é garantida ao par parental, que terá os mesmos direitos e as obrigações
divididas de modo equilibrado, mesmo após a ruptura da vida comum27.
Se, perante um caso concreto, não for possível estabelecer a
convivência física de forma equilibrada, deve-se buscar mecanismos de
aproximação paterno-materno-filial. Para isso, a tecnologia tem sido bastante
utilizada para encurtar o distanciamento e proporcionar formas criativas de
interação. Deve-se buscar equilíbrio no estabelecimento da convivência.
Durante determinado período, o costume imposto pelos
tribunais limitou a convivência de um dos pais a quinzenalmente passar
o final de semana com os filhos, momento em que realmente o termo

equilibrada, a que alude o § 2 do art. 1.583 do Código Civil, representar convivência


livre ou, ao contrário, repartição de tempo matematicamente igualitária entre os pais.”
23
Enunciado 604: “A divisão, de forma equilibrada, do tempo de convívio dos filhos
com a mãe e com o pai, imposta na guarda compartilhada pelo § 2° do art. 1.583 do
Código Civil, não deve ser confundida com a imposição do tempo previsto pelo
instituto da guarda alternada, pois esta não implica apenas a divisão do tempo de
permanência dos filhos com os pais, mas também o exercício exclusivo da guarda pelo
genitor que se encontra na companhia do filho.”
24
Enunciado 605: “A guarda compartilhada não exclui a fixação do regime de convivência.”
25
Enunciado 606: “O tempo de convívio com os filhos ‘de forma equilibrada com a
mãe e com o pai’ deve ser entendido como divisão proporcional de tempo, de forma
que cada genitor possa se ocupar dos cuidados pertinentes ao filho, em razão das
peculiaridades da vida privada de cada um.”
26
Enunciado 607: “A guarda compartilhada não implica ausência de pagamento de
pensão alimentícia.”
27
Os fundamentos da guarda compartilhada são de ordem constitucional e psicológica,
visando basicamente garantir o interesse da prole. Significa mais prerrogativas aos pais,
fazendo com que estejam presentes de forma mais intensa na vida dos filhos. A participação
no processo de desenvolvimento integral leva à pluralização das responsabilidades,
estabelecendo verdadeira democratização de sentimentos (DIAS, 2016).

28
“visita” era bastante adequado por tratar de tempo insuficiente para
exercer a parentalidade de maneira efetiva. Posteriormente,
acrescentaram-se um ou dois dias durante a semana. Essa rotina, muitas
vezes, implica em um desequilíbrio na relação familiar.
No entanto, o judiciário pouco a pouco vem sendo convocado a
homologar acordos em que famílias funcionais optam por um regime de
convivência alternado, o que aponta para um novo padrão de
comportamento social, o qual deve ser estimulado e aplicado, pois a
paternidade e a maternidade são funções exercidas e, quanto maior o
período de convívio, mais esses papéis se fortalecem.
Pode haver a fixação da guarda compartilhada e se estabelecer
a convivência alternada, na qual os filhos passarão determinado lapso de
dias em companhia de apenas um dos pais, e, sequencialmente, ficarão
igual período com o outro. Há um revezamento entre os pais da custódia
física dos filhos, sendo respeitado o regime de guarda.
Ao definir a modalidade de convivência, deve-se analisar critérios
de acordo com as circunstâncias específicas do caso concreto – entre eles, o
estágio de desenvolvimento da criança e/ou adolescente e a rotina familiar,
tendo sempre como norte e limite o melhor interesse dos menores, conforme
bem delineado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal28.

28
A título de exemplo: “[...] 2. Em que pese o modelo de guarda compartilhada
comumente aplicado, eleger apenas um dos lares como o de referência, na análise do
caso concreto, é possível que essa dinâmica seja atenuada a fim de possibilitar a
alternância de residências, desde que conjugada com o melhor interesse do filho, em
especial, quando for possível presumir que o menor esteja em avançado estágio de
desenvolvimento psicomotor, pela sua idade por exemplo, houver acordo de vontades
entre os genitores e não se apurar desarrazoada alternância de lares, tanto no tempo
como no espaço geográfico. 3. Não obstante o acordo proposto pelas partes prever
como lar de referência o materno, mas adotando o revezamento semanal da custódia
física da prole, releva considerar que tais proposições decorrem das circunstâncias
específicas do caso concreto, em que as residências maternas e paternas são próximas
entre si e da escola e o atual estágio de desenvolvimento da adolescente em questão,
não descaracterizando a guarda compartilhada, de modo que merece prestígio o
consenso estabelecido entre os genitores na regulamentação da guarda da filha comum,
uma vez respeitado o melhor interesse da menor. 4. Agravo de instrumento

29
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Deve-se ponderar a participação de crianças e adolescentes na


construção de um regime de convivência a fim de respeitá-los como
pessoas em condição de desenvolvimento, dotadas de autonomia e
capacidade para discernir e praticar atos de regência de suas vidas29.
Quanto maior a autonomia dos filhos, isto é, o grau de
maturidade e desenvolvimento psicofísicos, mais deve ser valorada sua
opinião no estabelecimento do regime de convivência. No entanto, deve-
se ter atenção para não colocar o poder decisório sobre a criança, mas,
sim, garantir condições de fornecer mecanismos para que se proceda uma
escuta atenta e especializada para trilhar as decisões judiciais. Segundo
lição de Rodrigo da Cunha Pereira, o menor deve ser tratado como pessoa
em formação, sujeito de direito e não um objeto de negociação
(PEREIRA, 2018, p. 348)30.

provido” (DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios


(6. Turma Cível). Acórdão n. 1188360. 07090637520198070000. Relator: Alfeu
Machado. 25 de julho de 2019, DJE, 1º ago. 2019).
“[...] Embora o modelo de guarda compartilhada comumente aplicado eleger apenas
um dos lares como o de referência, nada impede que, na análise do caso concreto, tal
dinâmica seja modificada, a fim de possibilitar a alternância de residências e, por
conseguinte, ampliar a convivência do menor com ambos os genitores e suas
respectivas famílias. 3. O estudo psicossocial configura uma importante prova técnica
apta, em regra, a fundamentar o convencimento do julgador a respeito da lide posta em
debate. [...]” (DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios (1. Turma Cível). Acórdão n. 1076692. 20160710075144APC. Relator:
Simone Lucindo, 21 de fevereiro de 2018, DJE, 27 fev. 2018. p. 429-438).
29
Art. 12 da Convenção sobre os Direitos das Crianças de 1989: “1. Os Estados Partes
devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o
direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a
ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da
criança. [...] Para tanto, a criança deve ter a oportunidade de ser ouvida em todos os
processos judiciais ou administrativos que a afetem, seja diretamente, seja por
intermédio de um representante ou de um órgão apropriado, em conformidade com as
regras processuais da legislação nacional”.
30
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Guarda Compartilhada – Vantagens e Desvantagens.
Duas Residências? In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha; DIAS, Maria Berenice (org.).
Famílias e Sucessões: Polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM,
2018. p. 347-367.

30
A convivência deve ser estabelecida sempre com vistas a proteger
e a atender o melhor interesse das crianças e dos adolescentes.
Preferencialmente, devem ser detalhados os períodos que o filho passará
com cada um dos pais, regime de férias, aniversários dos filhos e dos pais,
feriados, datas comemorativas, responsabilidades que cada um dos pais terá
na administração da rotina. Detalhes que podem evitar futuros litígios.
Certo é que a pluralidade das famílias não está somente no modo
como elas se constituem, mas também na forma como os seus integrantes
se organizam e administram o dia a dia. Partir da premissa de que
determinado regime de convivência é mais benéfico do que o outro, em
respeito apenas a padrões preestabelecidos, sem se considerarem as
peculiaridades do caso concreto, é um erro e pode estimular a
disfuncionalidade daquela família. O que deve ser combatida é a hierarquia
entre o par parental e a disputa pelos filhos como se objetos fossem.
Segundo Glicia Brazil, faltam estudos sobre as implicações da
alternância de convivência sob a perspectiva das famílias brasileiras,
bem como há carência de estudos que demonstrem as consequências na
fase adulta de pessoas que foram envolvidas no litígio dos pais na
infância (BRAZIL, 2019, p. 50-51)31.
A alternância de casas, com divisão equilibrada do tempo, tem
sido fixada em vários países, como em Portugal e na Suécia, onde
estudos apontam que essa modalidade de convivência possibilita um
melhor desenvolvimento das crianças. Na Austrália e na Nova Zelândia,
estudos indicam que a divisão igualitária do tempo gera nas crianças
menor sensação de perda do que os que estão submetidos a guarda
unilateral ou a guarda compartilhada sem a divisão proporcional do
tempo de convívio (DELGADO, 2018)32.

31
BRAZIL, Glicia Barbosa de Mattos. Quais os efeitos psicológicos, para as crianças,
na fixação de duas casas? Revista IBDFAM: Família e Sucessões, Belo Horizonte, v.
33, p. 49-71, maio/jun. 2019.
32
DELGADO, Mario Luis. Guarda alternada ou guarda compartilhada com duas
residências? Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 23 dez. 2018. Disponível em:

31
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Partir do princípio de que a alternância de convivência é maléfica


pela ausência de rotina desconsidera o próprio significado da palavra
“rotina”, que é algo construído pelos costumes habituais, ou seja, pouco a
pouco. As famílias são assim: construídas dia após dia. Os benefícios que
a convivência alternada pode proporcionar vão depender de caso a caso,
mas é necessária a reflexão de que qualquer hierarquia entre o par parental
deve ser afastada e que o estabelecimento de um lar de referência não
encontra abrigo legal e reforça antigos padrões de poder.
Para a criança e o adolescente, ter duas casas pode ser muito
melhor do que ter uma e ser “visita” na outra. Valorar um dos
componentes do par parental, em detrimento do outro, é uma afronta a
princípios constitucionais e, geralmente, não atende aos interesses dos
menores envolvidos.
A guarda compartilhada não se confunde com a guarda
alternada, assim como ambas as modalidades de guarda não se
confundem com o regime de convivência.
A guarda alternada representa o exercício alternado de duas
guardas unilaterais que se revezam entre si por períodos pré-
determinados, normalmente compatíveis com o tempo de convivência
que também é alternado. Conrado Paulino da Rosa (2015, p. 59) explica:
“Esse modelo de guarda, tanto a jurídica como a material, é atribuído a
um e a outro dos genitores, o que implica alternância no período de
tempo preestabelecido a cada um deles, exerce de forma exclusiva a
totalidade dos direitos-deveres que integram o poder parental”33.
A guarda alternada não encontra previsão no ordenamento
jurídico brasileiro e, por não privilegiar a coparticipação parental nas
decisões em prol dos filhos, assemelha-se à modalidade unilateral. A
alternância de convivência por períodos pré-determinados sem que haja

https://www.conjur.com.br/2018-dez-23/processo-familiar-guarda-alternada-ou-
guarda-compartilhada-duas-residencias. Acesso em: 29 out. 2019.
33
ROSA, Conrado Paulino. Nova Lei da Guarda Compartilhada. São Paulo: Saraiva, 2015.

32
uma corresponsabilização é regime que, geralmente, não atende aos
interesses dos filhos e, sim, dos pais, que buscam um exercício egoísta
da parentalidade, sem atendimento à concepção de igualdade e da
correlação dos sujeitos na formação da família democrática.
Levando-se em consideração esses aspectos, temos de forma
uma clara que a família é o local primário das relações pessoais e o
Direito de Família deve acompanhar a evolução da sociedade. Partir da
premissa de que o regime de convivência alternado, até hoje pouco
experimentado pela sociedade brasileira, é prejudicial e deve ser evitado
é uma interpretação imediatista e fundada no engessamento dos
conceitos até então vigentes.
Historicamente, no Brasil, as famílias binucleares são recentes e
ainda buscam fórmulas que se ajustem às mudanças sociais e culturais que
ocorreram em curto espaço de tempo. Os ordenamentos da proteção da
criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento e da busca por
atender seus melhores interesses devem nortear as decisões judiciais e
devem ser interpretados de acordo com o contexto social e cultural vigente.
As modalidades de guarda compartilhada e de guarda alternada
são extremamente distintas. A primeira diz respeito à coparticipação e
corresponsabilização do par parental na administração da rotina e dos
cuidados com os filhos; enquanto a segunda implica em um revezamento
dessas funções por períodos preestabelecidos. A primeira comporta a
convivência alternada; na segunda, a alternância de convivência é um
requisito. A fixação da primeira é a recomendada pelo sistema jurídico
brasileiro; já a segunda não encontra abrigo legal no Brasil. A primeira
privilegia os filhos, enquanto a segunda, os interesses dos pais.
A parentalidade não se dissolve pelo fim do relacionamento entre
os genitores; ela é continuada e o duplo referencial deve ser ao máximo
preservado para que a criança e o adolescente encontrem ambiente propício
para os seus bons desenvolvimentos. A alternância de convivência tem

33
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

encontrado abrigo em diversas famílias e deve ser considerado como


possibilidade sempre que atender aos interesses dos filhos.

REFERÊNCIAS

BRAZIL, Glicia Barbosa de Mattos. Quais os efeitos psicológicos, para


as crianças, na fixação de duas casas? Revista IBDFAM: Família e
Sucessões, Belo Horizonte, v. 33, p. 49-71, maio/jun. 2019.

DELGADO, Mario Luiz. Guarda alternada ou guarda compartilhada


com duas residências? Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 23 dez.
2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018- dez- 23/process
o-familiar-guarda-alternada-ou-guarda-compartilhada-duas-residencias.
Acesso em: 29 out. 2019.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.


Sistema de Estatísticas Vitais. Disponível em: https://www.ibge.gov.b
r/estatisticas/sociais/populacao/9110-estatisticas-do-registro-
civil.html?edicao=22856&t=destaques. Acesso em: 07 out. 2019.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Guarda Compartilhada – Vantagens e


Desvantagens. Duas Residências? In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha;
DIAS, Maria Berenice (org.). Famílias e Sucessões: Polêmicas,
tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 347-367.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Tradução: Maria


Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

34
ROSA, Conrado Paulino. Nova Lei da Guarda Compartilhada. São
Paulo: Saraiva, 2015.

XAVIER, Marília et al. Guarda e Autoridade Parental por um regime


diferenciador. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; DADALTO,
Luciana (org.). Autoridade Parental: dilemas e desafios
contemporâneos. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019.

35
DIREITO/DEVER DE CONVIVÊNCIA: possibilidades ao
combate da prática de alienação parental em tempos
de isolamento

Marília Pedroso Xavier*


Maria Regina Zarate Nissel*

A recente pandemia da Covid-19 alterou radicalmente a vida em


todo o mundo e trouxe significativos impactos para a vida em sociedade.
Para além da notória crise experimentada no campo da saúde pública, é
fato que o impacto na economia também foi brutal. Tudo isso redundou
em significativas mudanças no campo do comportamento social, no
estabelecimento de novas rotinas e, em última análise, no repensar de
algumas dinâmicas familiares.
Sem dúvida, o próprio ineditismo da questão pandêmica trouxe
especial desafio para toda a comunidade jurídica. De dia para noite, sem
aviso prévio, doutrina e jurisprudência se viram intimadas a oferecer
respostas rápidas, idôneas e efetivas para solucionar novos dilemas no
campo do Direito de Família1.
Um ponto inequívoco que chamou atenção nesse período foi o
protagonismo da advocacia familiarista. Diante do verdadeiro caos que
se instalou, escritórios de advocacia foram verdadeiramente
chacoalhados em meados de março e abril de 2020 com o intuito de
aplacar a angústia dos clientes e trazer orientações mais precisas de como

*
Advogada. Professora da Faculdade de Direito da UFPR. Doutora em Direito Civil pela USP.
*
Advogada. Especialista em Direito Civil. Membro da Comissão Especial de Direito
da Família e Sucessões do Conselho Federal da OAB.
1
SIMÃO, José Fernando. Direito de Família em tempos de pandemia: hora de escolhas
trágicas. Uma reflexão de 7 de abril de 2020. In: NEVARES, Ana Luiza Maia;
XAVIER, Marília Pedroso; MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus:
impactos no Direito de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 3-9.

37
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

se daria a partir dali o exercício do direito/dever de guarda e da


convivência parental.
As dúvidas mais recorrentes eram: i) as decisões judiciais e
acordos homologados sobre guarda e visitação deveriam ser fielmente
cumpridas mesmo com o isolamento social e a obrigatoriedade de
quarentena?; ii) havendo necessidade de alteração da regra de convivência
familiar até então vigente isso poderia ser combinado entre os pais ou
deveria ser informado e homologado em juízo?; iii) o convívio presencial
poderia ser substituído pelo virtual sem importar descumprimento de
direito/dever de visita?; iv) o direito de visita dos avós, disciplinado pelo
artigo 1.589, parágrafo único, deveria ser mantido mesmo nesse contexto
excepcional da Covid-19; entre tantos outros.
Como pode-se verificar, o dilema jurídico girava em torno de duas
premissas centrais: de um lado o exercício regular do direito/dever de
convivência parental e, de outro, o princípio do melhor interesse da criança
e do adolescente. Neste novo contexto pandêmico, questiona-se se: ao
privilegiar a saúde física do menor e do adolescente, restringindo o convívio
com o(a) pai/mãe não se estaria afrontando diretamente a saúde psíquica e
o bom desenvolvimento psicossocial do menor? Por certo, dar uma resposta
jurídica adequada nesses casos não é nada simples.
Lamentavelmente, os desafios não pararam aí. Foram muitas as
notícias que davam conta do aumento da violência doméstica contra a
mulher. Em 2020, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos diz
ter sofrido algum tipo de violência ou agressão no Brasil no período
pandêmico2. Some-se a isso a sobrecarga feminina de trabalho nesse
período, cumulando a profissão com as tarefas domésticas e maternas.
Como bem afirma Viviane Girardi (2020), no Brasil, quando foi
acentuado o isolamento social obrigatório, "pularam sobre a mesa antigos

2
"Violência Doméstica: pandemia tornou o lar ambiente ainda mais hostil". Agência
Brasil – Radioagência Nacional. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radi
oagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2021-06/violencia-domestica-pandemia-
tornou-o-lar-ambiente-ainda-mais-hostil. Acesso em: 25 jul. 2021.

38
problemas que dizem respeito à vida privada e às desigualdades nas relações
privadas" (dentro e fora do lar)3. Em relação aos temas afetos ao exercício
da parentalidade, a autora afirma que o risco de contaminação dos filhos
trouxe consigo a exposição da fragilidade da autoridade parental de pais
separados, do abuso de direito praticado por muitos pais e mães no sentido
de privar exageradamente e de forma desarrazoada a convivência com o
outro. Desse modo, a advocacia familiarista tem se deparado diariamente
com problemas antigos no contexto parental que foram agravados por essa
crise sanitária sem precedentes no Brasil.
Neste cenário extremo, é fato que questões ainda não superadas
da conjugalidade encontrarão um ambiente extremamente fértil para
agravar problemas da parentalidade, ocasionando, por vezes, rupturas de
vínculo afetivo que deixarão marcas indeléveis em todos os envolvidos.
O leitmotiv do presente texto é analisar quais os caminhos que a
advocacia familiarista poderá se valer durante esse tormentoso momento.
Sem qualquer pretensão de esgotar o tema, pretende-se contribuir com o
debate apresentando algumas soluções criativas colhidas das fontes
doutrinária, jurisprudencial e, em especial, da prática forense.
O momento atual demanda soluções que podem ser construídas
à luz dos princípios constitucionais reitores4, amparados em argumentos
substanciais obtidos pelas heteroreferências5, que impedem que o direito
se isole em argumentos meramente formais, dissociados do fim social.

3
GIRARDI, Viviane. Isolamento social e o impacto sobre as mulheres e sobre o direito
de convivência. In: NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso;
MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus: impactos no Direito de Família e
Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 225.
4
“Estes servem precipuamente de princípios retores, capazes de subordinar e validar
qualquer regra infraconstitucional de direito privado”. NEVES, Gustavo Kloh Muller.
Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil-constitucional. In: RAMOS,
Carmen Lucia Silveira et al. (org.). Diálogos sobre direito civil: construindo a
racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 19.
5
LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 525.

39
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Entretanto, com os fóruns fechados e, com a maioria dos


Núcleos Integrados de Apoio Psicossocial das Varas de Família com
atendimentos presenciais suspensos, emergem as seguintes perguntas:
como constatar a efetiva ocorrência de práticas de alienação parental?
Como avaliar a ocorrência de comportamentos nocivos e evitar prejuízos
aos menores?
No sentido de facilitar a compreensão de diferentes situações
experimentadas pelas partes e seus procuradores, elegeu-se três diferentes
momentos processuais: (i) famílias que tinham tinham conflitos parentais
latentes (judicializados ou não) nos quais as sementes da alienação parental
já estavam plantados e que, a partir de uma radicalização desvirtuada do
argumento pandêmico, privaram o outro pai/mãe do convívio com o(s)
filho(s); (ii) pais e mães que já haviam judicializado discussões de guarda e
convivência e que, em meados de março de 2020, quando aguardavam a
elaboração de estudo ou lado psicossocial tiveram a causa suspensa em
razão do fechamento das unidades judiciárias; e (iii) pais e mães que se
valiam dos Núcleos Integrados de Apoio Psicossocial das Varas de Família
para a realização das chamadas visitas assistidas ou supervisionadas.
Como ponto de início para oferecer caminhos rumo a um
desenvolvimento saudável para toda a família, percebe-se a importância um
olhar do sistema jurídico para heteroreferências, aceitando argumentos e
contribuições substanciais de outras ciências, com vistas a oferecer
respostas às questões urgentes que afligem o Poder Judiciário nesses temas.
Nesse sentido, o papel dos referidos Núcleos se faz
absolutamente fundamental. Isso porque o diálogo frutífero entabulado
com profissionais da psicologia e do serviço social faz com que se torne
visível a chamada lide sociológica, a qual envolve as causas subjacentes
do conflito e as reais questões, interesses e sentimentos nutridos pelas
partes e que motivaram a lide processual. É assim que se chega de forma
verdadeira na raiz do problema é que o juízo poderá melhor aquilatar as
efetivas soluções. Também, nota-se que para além de municiar futuras
decisões a serem proferidas pelos magistrados, os Núcleos sempre foram

40
o local adequado para viabilizar uma convivência mínima e segura diante
de delicados embates jurídicos. Da mesma forma, se prestavam ao nobre
papel de tentativa de reconstrução de laços afetivos.
Assim sendo, entende-se que o fechamento dos Núcleos jamais
deveria ter ocorrido e que a pronta reabertura já deveria ter sido
concretizada. Não é demais lembrar que o Estatuto da Criança e do
Adolescente preconiza que seus destinatários possuem proteção integral
e prioridade absoluta.
Considerando o panorama atual de interrupção de atividades
presenciais dos Núcleos já soma mais de ano e que não há nenhuma
perspectiva concreta em termos de definição de data para a retomada, oferece-
se algumas soluções para os três momentos processuais acima descritos.
Em primeiro lugar, sugere-se que a mediação seja buscada pelos
pais e mães quando instaurado o conflito acerca do exercício da
convivência. Para além do objetivo de pactuar um acordo que contemple
o interesse de todos os envolvidos, a mediação possui como inegáveis
benefícios um olhar mais profundo para a lide sociológica e o
restabelecimento do diálogo entre as partes. Com isso, percebe-se a
tendência de empoderamento dos envolvidos e do cumprimento
espontâneo da solução que foi democraticamente construída. É oportuna
a reflexão de Rose Meireles quando afirma que, na atualidade, os
processos judiciais estão caminhando a passos de cágados e que não se
pode esquecer que o acesso à justiça não se resume ao Poder Judiciário6.
Porém, quando o desgaste dos ânimos não permitir uma
autocomposição, uma alternativa que pode se mostrar adequada é o
estabelecimento de um regime de convivência análogo ao regime
estabelecido para férias. Assim, em vez dos deslocamentos serem quase
que diários revezando a permanência na residência do pai e da mãe, a

6
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Um convite aos métodos consensuais de resolução
de conflitos. In: NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso;
MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus: impactos no Direito de Família e
Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 33-41.

41
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

ideia é que a alternância de lares se dê em períodos mais longos (semanal


ou quinzenal, a depender da idade do menor e demais circunstâncias
específicas do caso concreto). Assim, o risco de contágio também é
mitigado7. Não é demais lembrar que tais alternativas só fazem sentido
se todos os envolvidos efetivamente seguirem os protocolos de
enfrentamento à Covid-19.
Em meio a essas discussões, ganhou relevo o chamado
"convívio virtual". Por meio do advento de tantas tecnologias que
possibilitam interação em tempo real, uma opção de contato parental
seria a realização de ligações de vídeo pelo celular, tablet ou computador.
Embora pareça uma ferramenta válida para possibilitar esse contato ao
vivo, é certo que não substituem o convívio presencial. Igualmente é
necessário frisar que tais interações são mais rápidas do que o tempo
estipulado em acordo ou decisão judicial de convivência. Seria
impensável obrigar pais e filhos a ficar diante das telas por horas a fio
sob pena de descumprimento de visitas. Como explica Marcos Ehrhardt
Júnior (2020), é necessário ter bom senso e estabelecer limites na
quantidade e na duração das ligações para que essa via represente
efetivamente algo benéfico e proveitoso8.
Para bem ilustrar o cenário jurisprudencial afeto a reviravoltas
e polêmicas sobre esse tema, toma-se o caso narrado por Joyceane
Menezes e Ana Monica Amorim (2020):

7
MOURA, Líbera Copetti de; COLOMBO, Maici Barboza dos Santos. Exercício do
direito à convivência familiar em situações extremas: princípio do melhor interesse da
criança e colisão de direitos fundamentais. In: NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER,
Marília Pedroso; MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus: impactos no
Direito de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 211.
8
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Como a utilização da tecnologia impacta nas relações
familiares em tempos de pandemia da COVID-19? In: NEVARES, Ana Luiza Maia;
XAVIER, Marília Pedroso; MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus:
impactos no Direito de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 158.

42
Decisão originária da 3ª Vara de Família e Sucessões da
Comarca de Curitiba, assinada pela Juíza Fernanda Maria
Zerbeto Assis Monteiro, acolheu o pedido da mãe em ver
suspensa a convivência paterna com o filho, por um prazo
de trinta dias ou pelo período de vigência do isolamento
social naquela cidade. Alegou a requerente que as visitas
se realizavam em locais públicos como shopping centers e
praças, ampliando os riscos de contaminação da criança e
da sua avó, pessoa enquadrada no grupo de risco, com
quem reside. Para evitar ruptura total da convivência,
determinou que fosse realizada pelos meios virtuais.
O pai agravou de instrumento, reafirmando que mudou toda
a sua rotina para atender as recomendações das autoridades
e que desenvolve suas atividades laborais em sistema de
home office. O relator, desembargador Rogério Etzel, da 12ª
Câmara Cível, reformou a decisão do juízo a quo que,
segundo ele, impôs severa alteração ao regime de
convivência sem sopesar a realidade de cada um dos
genitores e dos respectivos lares. Sustentou que o convívio
da criança com o pai, na residência deste, não traria nenhum
perigo e assim, decidiu que no período pandêmico a criança
passaria quinze dias com o pai e quinze dias com a mãe9.

A decisão do Tribunal de Justiça do Paraná acima narrada


parece bastante acertada. Diante de adaptação de rotina feita pelo pai
com o objetivo de mitigar riscos de contágio e viabilizar o convívio com
o filho, não haveria qualquer razão para simplesmente substituir a
interação presencial pela virtual.
É preciso que fique claro que a convivência física só deve ser
radicalmente suspensa em casos extremos que não deixem outra saída
intermediária e ponderada. Como defendem Eliza Cerutti e Renara Santa
Maria (2020), as decisões desse tema devem sempre priorizar o melhor
interesse da criança buscando readequação em vez de suspensão. Nas
palavras das autoras, “a convivência familiar integra o núcleo essencial

9
MENEZES, Joyceane Bezerra de; AMORIM, Ana Mônica Anselmo de.Os impactos do
COVID-19 no Direito de Família e a fratura do diálogo e da empatia. In: NEVARES, Ana
Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso; MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus:
impactos no Direito de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 181.

43
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

dos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227, da Constituição


Federal) e só poderá admitir relativização em circunstâncias excepcionais,
nas quais o prejuízo à saúde se mostre iminente e não potencial”.
Em relação aos casos de pais e mães que já haviam judicializado
discussões de guarda e convivência e que, em meados de março de 2020,
quando aguardavam a elaboração de estudo ou lado psicossocial tiveram a
causa suspensa, bem como dos que se valiam dos Núcleos Integrados de
Apoio Psicossocial das Varas de Família para a realização das chamadas
visitas assistidas ou supervisionadas, os efeitos são ainda mais nefastos.
Frise-se que o fechamento dos Núcleos representa, por vezes, a
interrupção de fundamental trabalho de reconstrução de laços afetivos.
Chega-se ao ponto de haver o risco de perda de objeto de muitas causas
em que os adolescentes já estavam próximos de atingir a maioridade e
que quando as atividades retornarem já serão plenamente capazes.
Como bem afirma Sandro Kozikoski (2020), acerca da
necessidade de fazer fluir a marcha processual apesar da suspensão de
muitas atividades administrativas e jurisdicionais, “o período
excepcional exige, em igual medida, soluções que até então não eram
sequer cogitadas”10. Nesse sentido, a advocacia se vê forçada a recorrer
a soluções privadas e particulares para contornar esse óbice. Logo,
devem os procuradores pleitear que o juízo nomeie um profissional da
iniciativa privada para que realize todos os expedientes necessários no
campo da psicologia e do estudo social, fazendo com que possa ser
proferida decisão judicial em ato contínuo. Também, é possível requerer
que as visitas assistidas ou supervisionadas igualmente sejam realizadas
em espaços terapêuticos idôneos e profissionais da iniciativa privada.
O consagrado direito de acesso à Justiça e à proteção integral ao
menor exige garantias processuais, dentre elas, a de que o processo que

10
KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. Audiências cíveis postergadas: Coleta da prova oral em
cartório de notas em tempos de covid-19. Migalhas, 22 maio 2020. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/depeso/327459/audiencias-civeis-postergadas--coleta-da-
prova-oral-em-cartorio-de-notas-em-tempos-de-covid-19. Acesso em: 25 jul. 2021.

44
envolve crianças e adolescentes deve ter seu curso regular, apesar das
situações excepcionais impostas pela pandemia.
Como já defendido, o exercício da convivência ou do direito de
visitas deve ser afetado somente em situações efetivamente
excepcionais. A suspensão ou a interrupção só se justifica em casos em
que seja a única possibilidade para preservar o bem jurídico maior, tais
como iminente prejuízo concreto à saúde do menor ou dos seus genitores,
ou ainda, de circunstância imposta pelo lockdown, quando a circulação
de pessoas esteja totalmente limitada.
Desprovido de consenso prévio familiar e/ou de decisão
judicial, eventual restrição ao direito de convivência ou das visitas é ato
unilateral, verdadeiro abuso de direito por parte do guardião. Assim
sendo, em razão dos manifestos prejuízos que pode acarretar ao pleno
desenvolvimento dos menores e ao exercício pleno e saudável da
situação parental, poderá implicar a prática de alienação parental.
É dever de todos prezar pelos valores elencados na Carta
Magna. Não se mostra necessário criar novas regras para disciplinar
essas situações excepcionais, mesmo porque, o direito posto já oferece
possibilidades para a proteção integral da criança e do adolescente. Além
do próprio Estatuto, as formulações deônticas de todo o sistema já foram
apontadas na Constituição Federal de 1988, dentre eles, o artigo 22711
elenca os valores específicos para a proteção dos menores, os quais,
como preceitua a lei processual civil12, devem ser considerados por todos
aqueles que, de alguma forma, participam do processo.
Contudo, ainda que as situações excepcionais impostas pela
pandemia, prima facie, possam ser tuteladas pelo ordenamento vigente,

11
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente
e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
12
“Art. 5º: Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de
acordo com a boa-fé".

45
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

na prática são várias as dificuldades enfrentadas pela advocacia


familiarista em tempos de pandemia. Não são raros os relatos de casos
em que a dependência da realização de relatórios e estudos psicossociais
tenha acarretado a paralisação total do processo durante a pandemia. Isso
porque, as visitas supervisionadas, a retomada da convivência igualitária
ou, a própria decisão sobre a guarda compartilhada, depende do parecer
a ser emitido pelos núcleos de apoio psicossocial das varas de família, os
quais encontram-se, como já bem explanado, fechados em muitos
Estados por determinação dos Tribunais.
Merecem especial preocupação as lides que versam sobre
quadros extremamente avançados de alienação parental e de implantação
de falsas memórias nas quais os menores estão, aos arrepios da lei, sob a
égide exclusiva do(a) genitor(a) alienador(a). Aqui, o fechamento dos
fóruns equivale, na prática, à própria negativa de prestação jurisdicional.
Assim, diante da necessidade da criança e do adolescente, da
urgência do caso, bem como, do dever do Estado em cumprir sua função,
mostra-se totalmente possível e razoável que o Juízo seja instado a nomear
um perito, com capacitação para função, a fim de que em menor tempo
possível e, sem danos, a satisfação do direito do menor seja alcançada.
O art. 300 e seguintes da Lei 13.105/2015 disciplinam as
medidas de urgência que podem ser determinadas, assim como, o art. 536
autoriza o magistrado a conceder as medidas necessárias à satisfação da
obrigação de fazer já determinada. Assim, não sendo possível a execução
de alguma medida por conta do fechamento dos fóruns e dos Núcleos de
Apoio das Varas de Família, dispõe a advocacia de meios possíveis para
desempenhar o seu papel protagonista, em busca da satisfação dos
direitos e da proteção integral da criança e do adolescente.
Como bem alertou a psicóloga Glícia Brazil (2020), "a função
do Poder Judiciário é regular a família disfuncional, colocar os pais no
lugar de corresponsáveis pelo filho e dar à criança a chance de ser

46
criança, de ser poupada do litígio dos pais, sendo a ela garantido o acesso
ao outro ente familiar que tem menos convívio"13.
Toda crise traz consigo novas possibilidades, ao tempo que pode
representar rupturas importantes. Quando se trata de pessoas em formação,
o ideal é que os genitores dialoguem, com vistas a estabelecer o melhor
modelo de convivência com seus filhos. Os laços de afetos são estimulados
pelo convívio e sentimento de pertença aos núcleos familiares de cada
genitor, fator essencial à dignidade humana. Contudo, quando isso não se
mostra possível, cabe à advocacia cumprir sua função social, buscando
novas possibilidades, de forma criativa e responsável, com vistas a
contribuir para uma sociedade mais justa e fraterna.

REFERÊNCIAS

AMBROZIO VAZ, Carolina Ribeiro; SHINE, Sidney. Atuação do


Psicólogo Judiciário durante a pandemia: um relato de experiência.
Cadernos de Psicologias. Curitiba, n. 1, 2020. Disponível
em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/atuacao-do-psicologo-
judiciario-durante-a-pandemia-um-relato-de-experiencia. Acesso em: 17
jul. 2021.

BRAZIL, Glícia. Efeitos do convívio virtual para o vínculo de afeto dos


vulneráveis. In: NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso;
MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus: impactos no Direito
de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 243-256.

CERUTTI, Eliza; SANTA MARIA, Renata. Como viabilizar o


atendimento do melhor interesse da criança em face da readequação ou

13
BRAZIL, Glícia. Efeitos do convívio virtual para o vínculo de afeto dos vulneráveis.
In: NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso; MARZAGÃO, Silvia
Felipe (coord.). Coronavírus: impactos no Direito de Família e Sucessões. Indaiatuba,
SP: Foco, 2020. p. 255.

47
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

da suspensão do regime de convivência durante a pandemia? In: LEAL,


Larissa Maria de Moraes Leal; DUARTE, Lorena Guedes (org.).
Impactos da pandemia Covid-19 no direito de família e das
sucessões. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2020. p. 29-41.

EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Como a utilização da tecnologia


impacta nas relações familiares em tempos de pandemia da COVID-19?
In: NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso;
MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus: impactos no Direito
de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 151-159.

GIRARDI, Viviane. Isolamento social e o impacto sobre as mulheres e


sobre o direito de convivência. In: NEVARES, Ana Luiza Maia;
XAVIER, Marília Pedroso; MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.).
Coronavírus: impactos no Direito de Família e Sucessões. Indaiatuba,
SP: Foco, 2020. p. 225-241.

KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. Audiências cíveis postergadas: Coleta da


prova oral em cartório de notas em tempos de covid-19. Migalhas.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/327459/audiencia
s-civeis-postergadas--coleta-da-prova-oral-em-cartorio-de-notas-em-
tempos-de-covid-19. Acesso em: 25 jul. 2021.

LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Martins


Fontes, 2016.

MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Um convite aos métodos


consensuais de resolução de conflitos. In: NEVARES, Ana Luiza
Maia; XAVIER, Marília Pedroso; MARZAGÃO, Silvia Felipe
(coord.). Coronavírus: impactos no Direito de Família e Sucessões.
Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 33-42.

48
MENEZES, Joyceane Bezerra de; AMORIM, Ana Mônica Anselmo
de. Os impactos do COVID-19 no Direito de Família e a fratura do
diálogo e da empatia. In: NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER,
Marília Pedroso; MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus:
impactos no Direito de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco,
2020. p. 173-199.

MOURA, Líbera Copetti de; COLOMBO, Maici Barboza dos Santos.


Exercício do direito à convivência familiar em situações extremas: princípio
do melhor interesse da criança e colisão de direitos fundamentais. In:
NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso; MARZAGÃO,
Silvia Felipe (coord.). Coronavírus: impactos no Direito de Família e
Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 201-211.

NEVES, Gustavo Kloh Muller. Os princípios entre a teoria geral do


direito e o direito civil-constitucional. In: RAMOS, Carmen Lucia
Silveira et al. (org.). Diálogos sobre direito civil: construindo a
racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

RÉGIS, Mário Luiz Delgado. As propostas legislativas para enfrentar a


pandemia e o legado do vírus para o futuro do Direito de Família e das
Sucessões. In: NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso;
MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus: impactos no Direito
de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 11-23.

SIMÃO, José Fernando. Direito de Família em tempos de pandemia:


hora de escolhas trágicas. Uma reflexão de 7 de abril de 2020. In:
NEVARES, Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso;
MARZAGÃO, Silvia Felipe (coord.). Coronavírus: impactos no Direito
de Família e Sucessões. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 3-9.

49
ALIENAÇÃO PARENTAL E VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA:
intercessões entre os microssistemas jurídicos de
proteção a crianças, adolescentes e mulheres

Venceslau Tavares Costa Filho*


Aline Arroxelas Galvão de Lima*
Ana Elizabeth Oliveira de Mariz Dantas*

Já não se pode mais afirmar (se é que isto já foi possível) que as
relações familiares devem ser consideradas como estritamente privadas.
Principalmente a partir das revoluções liberais europeias, na primeira
metade do século XIX, constata-se uma tendência até o momento
intocada: o Estado passou a participar da esfera familiar.
A concepção atual da entidade familiar, seja ela em qual
figuração for (multiparental, monoparental, tradicional, homoafetiva,
reconstituída, etc.)1, está alicerçada nas ideias de afetividade e
solidariedade, e encontra proteção constitucional expressa, como base
da sociedade (art. 226 da Constituição Federal). Revestindo-se de
“natureza socioafetiva”, nas palavras de Paulo Lôbo (2008, p. 7), o
modelo de família consagrado na Constituição de 1988 é o “da família
instrumental no lugar da família-instituição”. Tendo sido superadas as
tradicionais concepções da família enquanto instituição a serviço da
sociedade, a lógica é inversa: é o Estado e a sociedade que servem à

*
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da
Universidade de Pernambuco (UPE) e da FAFIRE. Advogado.
*
Promotora de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. Especialização em Direitos
Humanos, Educação e Justiça Restaurativa pela Fundação Joaquim Nabuco/EIPP.
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco.
*
Advogada. Especialização em Direito Processual Civil - UNISUL - Universidade do Sul de
Santa Catarina. Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco.
1
Em 2019, apenas 42,9% das famílias brasileiras eram constituídas por casais
heterossexuais com filhos, conforme pesquisas disponíveis no site
http://www.pelasfamilias.com.br/. Acesso em: 21 maio 2021.

51
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

proteção das relações familiares, resguardando prioritariamente a


dignidade das pessoas humanas.
Contudo, parece-nos que esta é uma concepção extremamente
individualista do direito de família, que considera o indivíduo como
última fonte de justificação da proteção assegurada a comunidade
familiar (COSTA FILHO, 2018). Afirmar a família como “base da
sociedade” termina por ser uma homenagem platônica, posto que a
proteção jurídica efetiva é deferida ao indivíduo. Pois, as fontes jurídicas
superiores dirigem-se apenas aos indivíduos, a exemplo das diversas
declarações de direitos que paulatinamente se convertem no único
critério de legitimidade jurídica (BROSSE, 2011, p. 2-3).
Ademais, a introdução do afeto como chave de interpretação do
conceito de família não deixa de ser paradoxal. Enquanto para as camadas
sociais mais abastadas o afeto viabiliza a proteção patrimonial ao atrair a
incidência das regras pertinentes de direito de família e das sucessões; para
os desfavorecidos “o afeto se manifesta pela ausência, pois é o abandono
familiar uma das hipóteses de destituição do poder familiar, que é acionada
e que aciona o dispositivo do assinalamento e da diluição da pena”
(CAVICHIOLI, 2019, p. 202). O abandono insere-se justamente entre as
formas de violência (ou de negação do “afeto”) que se pretende analisar.
As violências no contexto da família assumem, pois, caráter
inegável de interesse público, e ensejam a intervenção estatal nessas
relações, com o objetivo de proteção especial dos elos mais vulneráveis.
De acordo com Carmem Luz Méndez (1995), é necessário diferenciar as
violências entre o casal em relação às violências familiares, considerando
se tratarem de dois sistemas relacionais distintos: o sistema casal, que
pressupõe uma relação voluntária e de igualdade, e o sistema família, que
invoca diferenças na distribuição do poder. Esta indiferenciação
normalmente termina por transformar a criança em uma extensão
narcísica dos pais, que ameaça a integridade psíquica dos filhos,
“resultando em um verdadeiro ‘incesto emocional’, que se manifesta
normalmente em uma busca de autoafirmação e de satisfação de

52
interesses estritamente individuais dos pais em detrimento das
necessidades dos filhos” (COSTA FILHO, 2011, p. 159).
A violência parental surge da assimetria de relações entre
genitores e filhos, provocando uma atuação protetiva estatal em relação
a esses últimos, na qualidade de pessoas em desenvolvimento (LAGE,
2019; SILVA, 2002). Essa proteção especial, como se sabe, está
fundamentada na doutrina da proteção integral, albergada
constitucionalmente (art. 227 da Constituição Federal), e enseja, em
decorrência, uma maior ingerência do Estado nas relações familiares,
ainda que na perspectiva dos princípios da responsabilidade parental e
da prevalência da família (Constituição Federal, art. 226, §§ 5º, 7º e 8º e
Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 100, incisos IX e X).
A partir dessa concepção, reconhece-se que o poder familiar
transformou-se em um autêntico poder-dever, um munus público,
voltado para a proteção da dignidade e do desenvolvimento sadio 2 da
prole, e se desconecta de forma independente da relação entre
genitores, norteado pela perspectiva do princípio do melhor interesse
do infante3, cujas relações filiais/parentais precisam ser preservadas 4.
A alienação parental é entendida, assim, como um exercício abusivo
da autoridade parental (SCHMIDT, 2020).
A Lei 12.318/2010 estabelece como ato de alienação parental

2
O adjetivo deve aqui ser entendido em sentido amplo: nas dimensões física, psíquica
e emocional do ser humano.
3
O princípio de melhor interesse da criança, cuja origem histórica remonta ao instituto do
parens patrie do direito anglosaxão, já era previsto no Código de Menores, ali entretanto
aplicável unicamente a crianças e adolescentes inseridos na chamada situação irregular.
Com a adoção da doutrina da proteção integral no direito brasileiro, e a ratificação, pelo
país, da Convenção internacional sobre os Direitos da Criança (Decreto 99.710/90), o
princípio "ganhou amplitude, aplicando-se a todo público infanto-juvenil, inclusive e
principalmente nos litígios de natureza familiar" (AMIN, 2010, p. 27).
4
Veja-se: art. 9º, item 3 da Convenção dos Direitos da Criança, art. 229 da Constituição
Federal, art. 1.632 do Código Civil e arts. 21 e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

53
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

a interferência na formação psicológica da criança ou do


adolescente promovida ou induzida por um dos genitores,
pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente
sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie
genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à
manutenção de vínculos com este.

Ainda que a redação do dispositivo, a nosso entender, não tenha


sido das mais felizes do ponto de vista da clareza, parece-nos evidente,
pela compreensão do diploma legal, que o legislador entendeu que a
alienação parental é uma forma de violência dentro das relações
familiares5. Qualquer dúvida a respeito foi expurgada pelo advento da
Lei 13.431/2017, que definiu e classificou as formas de violência contra
crianças e adolescentes, consignando expressamente como violência
psicológica o ato de alienação parental (art. 4º, inciso II, “b”).
Mas é claro que não é apenas a prole que se afigura como vítima
nos atos de alienação parental, mas também a mãe ou pai cujas relações
afetivas e de convivência familiar são negativamente afetadas ou mesmo
inviabilizadas. Nessa visão, e com a finalidade de se cotejar as
respectivas sistemáticas de proteção, é possível fazer um recorte
interseccional entre a alienação parental e a violência contra a mulher.
Sabe-se que, desde o Brasil colônia, as mulheres são vítimas das
mais diversas violências, dentre elas, a física e a psicológica, praticadas
sob a tutela do Estado. Portugal instaurou no Brasil Colônia suas normas
culturais, políticas, religiosas, jurídicas, com intuito de disciplinar sua
colônia e transformá-la em modelo. Para tal, fez uso das Ordenações
Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, esta última, responsável pelo
ordenamento jurídico na colônia brasileira do século XVI a XIX, que
impunha sobretudo às mulheres sanções severas. A severidade das

5
Embora não caiba no escopo deste trabalho aprofundar a problemática científica acerca da
Síndrome da Alienação Parental (SAP), definida pelo psiquiatra norte-americano Richard
Gardner, é preciso consignar que há movimentos de pesquisadores de vários países que
questionam os critérios e a conformação da síndrome no campo da psiquiatria, sobretudo
nos casos de abuso sexual infantil (SOUSA; AMENDOLA, 2012).

54
sanções contribuía psicologicamente para as mulheres, sejam esposas,
filhas, irmãs, entenderem como “legítima” sua submissão ao homem
(MELLO; PAIVA, 2020).
Merece destaque o Código Criminal brasileiro de 1830 que (em
uma falsa ideia de avanço à proteção das mulheres) revogou o “direito”
de o marido matar sua esposa. Todavia, implementou atenuante ao
homem no caso de homicídio motivado por adultério, o que acabou por
“legitimar a continuidade dos assassinatos de mulheres consideradas
infiéis”, como defende Barsted e Hermann (1955). No mesmo sentido de
manter a submissão feminina, o Código Civil de 1916 dispôs no art. 233
sobre a perda da capacidade civil plena com o casamento ao conceder ao
marido a competência para: representar a família, administrar os bens
comuns e particulares da família, decidir quanto ao domicílio da família,
determinar sobre a profissão da mulher, assim como a prover a mantença
da família6 (MELLO; PAIVA, 2020).
Como se pode observar, a violência contra as mulheres tem
profundas raízes históricas e culturais em nossa sociedade, com
rebatimentos diversos nos campos da proteção aos vulneráveis, uma vez
que ligada intrinsecamente às formas de violência contra os infantes,
mesmo porque o “sentimento de infância como uma etapa da vida
diferenciada e merecedora de atenção, proteção, cuidados, é um
sentimento recente” (FERRARI, 2002, p. 45), e que somente a partir da
segunda metade do século XX é que o problema da violência específica
contra crianças e adolescentes passou a engajar a consciência pública e
ensejar um olhar que ultrapassasse uma visão meramente caritativa.
Desse modo, evidencia-se que a violência praticada contra
mulheres e aquela voltada contra os infantes têm características
semelhantes e imbricadas, como manifestações da cultura patriarcal

6
Muita sucinta a alteração a esse dispositivo através do Decreto-Lei 4.121 de 1962, que
suprimiu o inciso IV do art. 233, do Código de Beviláqua, alterando seu caput para a
seguinte redação: “O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a
colaboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251)”.

55
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

vigente em nossa sociedade, como aponta Heleieth Saffioti (1989, p. 17).


Lembra a autora, ainda, que nas relações de poder entre diversas
categorias sociais "subalternas" no Brasil, o último lugar na hierarquia é
ocupado "pela mulher negra, pobre e criança”.
Sabe-se que, como fenômeno social histórico-cultural, complexo e
de múltiplos desdobramentos, a violência deve ser considerada também sob
o aspecto de sua polissemia (MINAYO; SOUZA, 1998; TEIXEIRA, 2016).
Em uma visão geral, a violência envolve atos contrários à liberdade e/ou à
integridade de alguém, muito embora seu conceito varie no tempo e no espaço
e de acordo com diferentes grupos e padrões culturais vigentes (PAVIANI,
2016). Uma nota comum ao conceito de violência, contudo, pode residir nas
ideias de dominação e força (ARENDT, 2016; CHAUI, 2018).
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), o conceito de
violência é:
uso intencional da força física ou do poder real ou em
ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra
um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha
qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano
psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação
(KRUG et al., 2002, p. 5).

Não há dúvidas de que a violência psicológica, em qualquer de


suas facetas, provoque sérios danos à integridade psíquica da vítima. Em
se tratando de crianças e adolescentes, diversas pesquisas atestam o
impacto negativo em seu desenvolvimento saudável (SCODELARIO,
2002; ABRANCHES; ASSIS, 2011).
Acertada a Lei 13.431/2017, pois, ao enquadrar a alienação
parental como ato de violência psicológica, pois é a dimensão íntima do
sujeito, sua integridade psíquica e emocional, que é afetada diretamente.
De acordo com Flávio Schmidt (2020), a referida norma contempla a
violência psicológica em três diferentes áreas de abrangência, a saber: no
meio social, na relação familiar e como conduta criminosa; inserindo-se
a alienação parental, evidentemente, no segundo âmbito citado.

56
De acordo com o art. 3º da Lei 12.318/2010,

a prática de ato de alienação parental fere direito fundamental


da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável,
prejudica a realização de afeto nas relações com genitor e com
o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o
adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à
autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda.

Decompondo-se a norma, identifica-se que a alienação parental


abrange, do ponto de vista do direito positivo, quatro aspectos: a) lesão ao
direito fundamental da criança ou do adolescente à convivência
familiar saudável: o direito à convivência familiar e comunitária está
erigido ao patamar de direito fundamental constitucional (art. 227, caput), e
sua garantia está expressa em diversos artigos do Estatuto da Criança e do
Adolescente (art. 4º, art. 16, V, art. 19, art. 100, caput), bem como na
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças (art. 9º).
Fundamenta-se no reconhecimento da necessidade humana de vinculação
(WINNICOTT, 1985; BOWLBY, 2002), tanto no ambiente intrafamiliar
como no meio social em que o infante desenvolve sua socialização e
reconhecimento (HONNETH, 2003). Desse princípio decorre, por
exemplo, a excepcionalidade e a necessidade de decisão judicial
fundamentada em caso de afastamento da criança do convívio familiar (art.
101, §2º do Estatuto); b) prejuízo ao afeto nas relações familiares: a
afetividade, como já destacado, tornou-se o elo primordial a configurar as
relações familiares, que são constituídas de forma correlacional, em feixes
recíprocos de cuidados e vinculação afetiva, que propiciam e sustentam o
desenvolvimento do ser humano. Prejudicar a construção do afeto familiar
implica periclitar diversos eixos da construção do ser, sendo a família, como
consignado na Constituição (art. 226), a base da sociedade; c) configuração
de abuso moral: ao identificar a alienação parental como forma de abuso
moral, o legislador deixou clara a ilicitude da conduta, dando azo, para além
das consequências jurídicas expressas na lei (art. 6º), a pretensão de

57
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

compensação financeira por dano moral, por parte da(s) parte(s) ofendida(s)
(LAGE, 2019); d) descumprimento dos deveres inerentes à autoridade
parental ou decorrentes de tutela ou guarda: esse aspecto nos remete
inevitavelmente aos desdobramentos jurídicos do descumprimento do poder
parental, e das responsabilidades advindas da guarda e da tutela,
especialmente quanto à possibilidade de suspensão ou destituição desses
munus, cujo regime jurídico se encontra tanto no Código Civil (arts. 1.583,
1.584, 1.589 e 1.630 a 1.638) quanto no Estatuto da Criança e do
Adolescente (arts. 22, 24, 38, 129, incisos VIII a X, 157, 164, 169, parágrafo
único). Ainda, observa-se que a Lei 12.318/2010 prevê a possibilidade da
autoridade judiciária alterar a guarda e mesmo suspender a autoridade
parental (art. 6º, incisos V e VII), em ação autônoma ou incidental em que
se verifique a ocorrência de alienação parental.
A análise conjunta desses aspectos leva-nos a algumas conclusões.
De início, destacamos que a alienação parental, por si só, não é
crime, pois inexiste tipo penal específico que descreva a conduta e a ela
comine sanções de natureza penal (SILVA; COSTA FILHO, 2018).
Aliás, o Projeto de Lei n. 4.488/2016, que objetivava acrescentar
parágrafos e incisos ao art. 3º da Lei 12.318/2010, a fim de definir a
alienação parental como crime, sequer chegou a ser votado, haja vista ter
sido retirado de pauta a pedido do autor.
Nada obstante, os atos praticados dentro de seu escopo, como
desdobramentos da violência psicológica a que nos referimos, podem,
seguindo o princípio da tipicidade penal, configurar condutas
penalmente típicas – extrapolando, portanto, do escopo da alienação
parental propriamente dita (instituto de direito civil) e migrando para o
campo das condutas criminais, como na hipótese (eis um exemplo
infelizmente comum nos feitos em que alegada a alienação parental) do
tipo do art. 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente7, como também

7
Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a
vexame ou a constrangimento: Pena – detenção de seis meses a dois anos.

58
nos tipos de constrangimento ilegal e ameaça (arts. 146 e 147 do Código
Penal), além dos crimes contra a honra (arts. 138 a 140 do Código Penal)
e denunciação caluniosa (art. 337 do Código Penal). É nesse sentido que
o art. 4º da Lei 13.431/2017, ao classificar as formas de violência contra
crianças e adolescentes, estampa a ressalva “sem prejuízo da tipificação
das condutas criminosas”.
Em segundo lugar – e eis aqui a interseccionalidade a que se
propõe o presente artigo – muito embora a Lei 12.318/2010 posicione a
alienação parental, expressamente, como violação de direitos das
crianças e adolescentes, é certo que não apenas os infantes são vítimas,
mas seguramente, também, o genitor ou a genitora afetado pela conduta
alienante. Com efeito, os quatro aspectos acima ressaltados apontam para
violações reflexas de direito: enquanto ferem direitos dos infantes, os
atos de alienação parental ao mesmo tempo pressupõem ofensas a
direitos de detentor(a) de poder parental, tutela ou guarda.
No caso específico do ato de alienação parental praticado em
detrimento da relação da prole com a(s) genitora(s), surge a necessidade
de se avaliar essa violência no âmbito protetivo da Lei 11.340/2006, uma
vez que a violência psicológica também é prevista no escopo da Lei
Maria da Penha (art. 7º, inciso II).
Como dito, a alienação parental não se trata de ofensa apenas à
criança e/ou adolescente, mas também às mães, que – ao se verem
ameaçadas de serem privadas da convivência com seus filhos – sofrem
violência psicológica, como prevista na Lei Maria da Penha.
É importante destacar que não é incomum atribuir às mulheres
vítimas de violência doméstica o título de alienadoras, quando
denunciam abusos sofridos contra elas ou mesmo seus filhos e filhas,
acusadas de simularem uma falsa denúncia. Com receio de serem
privadas do convívio com sua prole, muitas vezes se calam e deixam de
fazer as denúncias.
Atribuir às mulheres que denunciam os abusos sofridos na vida
familiar o título de alienadora, é condená-la ao silêncio e perpetuação da

59
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

sua submissão à figura masculina que é supervalorizada em detrimento


à feminina, caracterizando, também, a violência de gênero.
Visando proteger os vulneráveis, a legislação veda violência
psicológica contra as crianças e adolescentes, mas também, às mulheres.
Não eventualmente os danos ocasionados pela violência psicológica
sofrida pela mulher ao ser privada do convívio com seus filhos,
fragilizam-na, o que faz com acredite que sua convivência será danosa
para seus filhos.
Os filhos que presenciam esta forma de violência
provavelmente ficarão marcados pelo resto de suas vidas, tornando-se
adultos fragilizados.
A violência psicológica perpassa, portanto, ambos esses
sistemas protetivos: aquele voltado às crianças e adolescentes (Estatuto
da Criança e do Adolescente e Lei 13.431/2017), bem assim o destinado
à proteção das mulheres em situação de violência (Lei 11.340/2006).
Ambos os sistemas preveem institutos e mecanismos específicos (e
algumas vezes comuns) para a proteção desses vulneráveis, que se aliam
às previsões consignadas no art. 6º da Lei 12.318/2010, que enumera as
providências que o Juízo pode determinar, em ação autônoma ou
incidental, quando constatados atos típicos de alienação parental.
Assim, por um lado, ocorrido o ato de alienação parental –
portanto, violência psicológica – as consequências para esse
microssistema serão múltiplas e transversais, atrelando o previsto no art.
6º da Lei 12.318/2010 com as possíveis providências protetivas
elencadas no art. 21 da Lei 13.431/2017, em campos de atuação que
podem ser paralelos ou cumulativos. Por outro lado, essas medidas de
proteção precisam ser correlacionadas com aquelas enunciadas nos arts.
101, 129 e 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Mais além: se caso ensejar a demonstração de que a alienação
parental praticada pelo homem atinja não apenas a criança ou
adolescente, como também, por via reflexa, a genitora mulher, há que
se invocar os mecanismos indicados pela Lei 11.340/2006 para coibir

60
a violência doméstica e familiar contra a mulher, cujos arts. 22 a 24
permitem a concessão de medidas protetivas de urgência tanto em
favor da ofendida (em suas dimensões pessoal e patrimonial) quanto
com relação à prole8.
Essa é, aliás, uma das características mais notáveis dos sistemas
de proteção aos vulneráveis: a sobreposição e a articulação dos
mecanismos legais de garantia de direitos, com o objetivo de aumentar a
efetividade das estratégias protetivas. Por isso é que o parágrafo único
do art. 6º da Lei 13.431/2017 ressalta expressamente essa interrelação
com o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Maria da Penha9.
Em conclusão, entende-se que os atos de alienação parental
merecem ser analisados dentro desse universo protetivo ampliado
voltado aos vulneráveis, sejam crianças e adolescentes (destinatários
primários), sejam as mulheres vítimas desse tipo de violência
psicológica, ainda que de forma indireta. Essa visão enseja, portanto, que
o aplicador do Direito articule diferentes institutos, normas e esferas de
proteção, mantendo como diretrizes, contudo, o princípio do melhor
interesse da criança e do adolescente, por força do art. 227 da
Constituição Federal, assim como os princípios consignados no art. 100
do Estatuto da Criança e do Adolescente, que não excluem, mas antes
complementam, o sistema protetivo à mulher vítima de violência.

REFERÊNCIAS

ABRANCHES, Cecy Dunshee; ASSIS, Simone Gonçalves de. A


(in)visibilidade da violência psicológica na infância e adolescência no
contexto familiar. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27,

8
É bem verdade que, na prática, as medidas protetivas concedidas às mulheres nem
sempre são extensivas aos seus filhos e filhas.
9
Convém lembrar que o art. 40 da Lei Maria da Penha prevê que "as obrigações
previstas nesta Lei não excluem outras decorrentes dos princípios por ela adotados".

61
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

n. 5, maio 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=s


ci_arttext&pid=S0102- 311X2011000500003. Acesso em: 21 maio 2021.

AMIN, Andréa Rodrigues. Princípio orientadores do direito da criança e


do adolescente. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade.
Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e
práticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 19-30.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 7. ed. Tradução: André de


Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2016.

BARSTED, Leila L.; HERMANN, Jaqueline. O judiciário e a violência


contra a mulher: a ordem legal e a (des) ordem familiar. Rio de Janeiro:
Cepia, 1955.

BOWLBY, John. Apego: a natureza do vínculo. São Paulo: Martins,


Fontes, 2002. v. 1.

BROSSE, Arnould Bethery de La. Entre amour et droit: la lien conjugal


dans la pensée juridique moderne (XVIe-XXIe siècles). Paris: L.G.D.J., 2011.

CAVICHIOLI, Rafael de Sampaio. Duas famílias, duas leis. 2019. 269


f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em
Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2019.

CHAUI, Marilena. Sobre a violência. 1. ed, 1. reimp. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2018. v. 5. (coleção Escritos de Marilena Chauí).

COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Função social da autoridade


parental: algumas considerações. Scientia Una, Olinda, n. 12, p. 157-
166, maio 2011. Disponível em: http://www.focca.com.br/pdf/revista/re
vista_cientifica_12.pdf. Acesso em: 25 jun. 2021.

62
COSTA FILHO, Venceslau Tavares. O direito de família é o cárcere do
amor? In: SILVA, Regina Beatriz Tavares da; BASSET, Úrsula Cristina
(org.). Família e Pessoa: uma questão de princípios. São Paulo: YK,
2018. p. 717-734.

FERRARI, Dalka Chaves de Almeida. Visão histórica da infância e a


questão da violência. In: ________.; VECINA, Tereza C. C. O fim do
silêncio na violência familiar: teoria e prática. São Paulo: Ágora, 2002.
p. 23-46.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos


conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

KRUG, Etienne G. et al. (Eds.). World report on violence and health.


Geneva: World Health Organization, 2002. Disponível em:
https://opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-
violencia-saude.pdf. Acesso em: 6 jul. 2020.

LAGE, Juliana de Souza Gomes. Dano moral e alienação parental. In:


TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; DADALTO, Luciana. Autoridade
parental: dilemas e desafios contemporâneos. Indaiatuba: Editora Foco,
2019. p. 141-154.

LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.

MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Direito fundamental à


convivência familiar. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo
Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos
teóricos e práticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 67-79.

MELLO, Adriana Ramos de; PAIVA, Lívia de Meira Lima. A Lei Maria da
Penha na prática. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

63
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

MÉNDEZ, Carmen Luz. Violencia en la pareja. In: CODDOU, Fernando


et al. Violencia en sus distintos ambitos de expresion. Santiago:
Dolmen Ediciones S.A, 1995. p. 23-38.

MINAYO, Maria Cecília de Souza e SOUZA, Edinilsa Ramos de. Violência


e saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva. História,
Ciências, Saúde. v. 4, n. 3, p. 513-531, nov. 1997/fev. 1998.

PAVIANI, Jayme. Conceitos e formas de violência. In: MODENA, Maura


Regina (org.). Conceitos e formas de violência. Caxias do Sul,
RS: Educs, 2016. Disponível em: https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/e
book-conceitos-formas_3.pdf. Acesso em: 23 jun. 2021.

RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A arte de governar crianças: a


história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no
Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. A síndrome do pequeno poder. In:


AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo.
Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu
Editora, 1989.

SCHMIDT, Flávio. Lei do depoimento especial anotada e


interpretada. Leme: JH Mizuno, 2020.

SCODELARIO, Arlete Salgueiro. A família abusiva. In: FERRARI,


Dalka C. A.; VECINA, Tereza C. C. O fim do silêncio na violência
familiar: teoria e prática. São Paulo: Ágora, 2002. p. 95-106.

SILVA, Maria Amélia de Sousa e. Violência contra crianças - quebrando


o pacto do silêncio. In: FERRARI, Dalka C. A.; VECINA, Tereza C. C.

64
O fim do silêncio na violência familiar: teoria e prática. São Paulo:
Ágora, 2002. p. 73-93.

SILVA, Regina Beatriz Tavares da; COSTA FILHO, Venceslau


Tavares. Alienação parental não passou a ser crime, pois inexiste
tipificação. Consultor Jurídico, 17 abr. 2018. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2018-abr-17/opiniao-alienacao-parental-
nao-passou-crime. Acesso em: 25 jun. 2021.

SOUSA, Analicia Martins de; AMENDOLA, Marcia Ferreira. Falsas


denúncias de abuso sexual infantil e Síndrome da Alienação Parental
(SAP): distinções e reflexões necessárias. In: BRITO, Leila Maria
Torraca de (org.). Escuta de crianças e adolescentes: reflexões,
sentidos e práticas. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Rio de
Janeiro, 2012. p. 87-118.

TEIXEIRA, Paulo André Souza. Violência escolar: angústias, desafios e


(possíveis) alternativas. In: VILLACHAN-LYRA, Pompéia; CHAVES,
Emmanuelle C.; CARMO, Jurema Ingrid Brito do (org.). Escola que
protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. Recife:
MXM Gráfica e Editora, 2016.

WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo. 6. ed. Rio de Janeiro:


Zahar, 1985.

65
MULTIPARENTALIDADE E ADOÇÃO: a (im)possibilidade
de manutenção dos vínculos com a família biológica

Leonardo Gomes Girundi*

O Direito de Família sempre foi muito dinâmico. As pessoas nunca


consultaram a lei para escolher como viver. Mas, o advento da Constituição
da República de 1988, abriu novas possibilidades e novas interpretações.
A Constituição Federal de 88, manteve a família como base da
sociedade, mas acrescentou a possibilidade de novos modelos familiares
apresentados no artigo 226. Este fato, que é um divisor de águas, somado a
alguns princípios subjetivos, alterou completamente o Direito de Família
Brasileiro. Tais princípios, como o da dignidade da pessoa humana, que, en
passant, é o arrimo para perfeita interpretação da Constituição de 1988, os
princípios do melhor interesse e da proteção integral da criança (art. 227,
CF), cumulados geraram novas visões e julgamentos.
Assim vejamos, Alexandre de Moraes, em sua obra “Direito
Constitucional”, conceitua dignidade como:

Um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se


manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão
ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um
mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve
assegurar de modo que, somente excepcionalmente, possam
ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais,
mas sempre sem menosprezar a necessária estima que
merecem todas as pessoas enquanto seres humanos e a busca
ao Direito à Felicidade.

Para o doutrinador Rolf Madaleno (2018, p. 96):

*
Presidente da Comissão de Direito de Família da OAB/MG, Gestão 2019/2021.
Membro Consultivo da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB
Nacional, Gestão 2019/2021. Mestrando em Direito, Universitat de Girona, Espanha.

67
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

A dignidade humana é princípio fundamental na Constituição


Federal de 1988, conforme artigo 1º, inciso III. Quando cuida
do Direito de Família, a Carta Federal consigna no artigo 226,
§ 7º, que o planejamento familiar está assentado no princípio
da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.
Já no artigo 227, prescreve ser dever da família, da sociedade
e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda a forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão, pois que são as garantias e os fundamentos
mínimos de uma vida tutelada sob o signo da dignidade da
pessoa, merecendo especial proteção até pelo fato de o menor
estar formando a sua personalidade durante o estágio de seu
crescimento e desenvolvimento físico e mental.

Com o nascimento de novos modelos familiares, novos vínculos


têm sido formados, e estes, são capazes e suficientes para o nascimento
do afeto. Assim é o caso da parentalidade socioafetiva que por sua
importância nasceu, gerando consigo o conflito de importância ou
relevância sobre a parentalidade biológica e a sua parentalidade plúrima,
ou multiparentalidade. Inicialmente, com a simples substituição de um
pai biológico, pelo pai socioafetivo e posteriormente, pela inclusão de
novo pai. Mantendo assim, não somente o nome, mas o vínculo e todos
os demais direitos e obrigações com o pai biológico.
Buscando-se o melhor interesse e a proteção integral e
prioritária da criança, já temos sentenças permitindo a adoção por avós1
(adoção avoenga), o que a lei, expressamente, proíbe2 ou até mesmo a

1
RECURSO ESPECIAL. ADOÇÃO DE MENOR PLEITEADA PELA AVÓ
PATERNA E SEU COMPANHEIRO (AVÔ POR AFINIDADE). MITIGAÇÃO DA
VEDAÇÃO PREVISTA NO §1º DO ARTIGO 42 DO ECA. POSSIBILIDADE. REsp
1587477 / SC - RECURSO ESPECIAL 2016/0051218-8 - Relator(a) Ministro LUIS
FELIPE SALOMÃO.
2
“Art. 42. [...] § 1º Não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando.”
(BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).

68
adoção com diferença de idade, entre o adotando para o adotado3,
inferior a 16 anos, o que também é, expressamente, proibido4.
Temas antes rígidos, pela própria característica da lei, com o
Direito de Família mínimo, (menor intervenção estatal) tem sido
relativizados, ou como preferem alguns doutrinadores, flexibilizados,
com a exata observância dos novos, mas já consagrados, princípios que
regem a família brasileira do século 21.
Este é o cenário que trataremos. Antes, com a Adoção se
rompia, completamente e obrigatoriamente, o vínculo com a família
biológica, mas, com a multiparentalidade, novas portas foram abertas. A
pergunta natural é: seria possível flexibilização das normas de
rompimento dos vínculos com a família biológica inclusive para adoção?
Presente em vários povos diferentes, com inúmeros registros
históricos, a Adoção, existe desde a antiguidade. A retirada de Moises
das águas do Rio Nilo, retratada, de forma única e belíssima, no Afresco
de Rafael (1519), no Vaticano, universaliza o tema de uma passagem
bíblica. Instituto detalhadamente inscrito no Código de Hamurabi (1728
- 1686 a.C), disciplinada em 8 artigos, inclusive prevendo punições
severas, quase que draconianas, para aqueles que desafiassem a
autoridade dos pais adotivos tais como cortar a língua e arrancar os olhos.
Ganhou destaque no nosso Código Civil de 1916, apesar das limitações
determinando a idade superior a 50 anos para o adotando, não existência
de filhos e diferença de pelo menos 18 anos entre adotando e adotado.
Com a Constituição de 88, todos os filhos se tornaram iguais. Detentores
dos mesmos direitos e obrigações. Desde a Lei 12.010/2009, a adoção de
crianças e adolescentes no Brasil passou a ser regida pelo Estatuto da

3
DIREITO DE FAMÍLIA. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. ADOÇÃO. MAIOR. ART.
42, § 3º, DO ECA (LEI Nº 8.069/1990). IDADE. DIFERENÇA MÍNIMA.
FLEXIBILIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. SOCIOAFETIVIDADE. INSTRUÇÃO
PROBATÓRIA. IMPRESCINDIBILIDADE. RESP No 1.785.754 - RS (2018/0322826-6)
- RELATOR - STJ- MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA.
4
“Art. 42... § 3º O adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o
adotando.” (BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).

69
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Criança e do Adolescente, trazendo regras específicas, tornando o


instituto mais célere, sensível e próximo do ideal.
Adoção é a inclusão de uma pessoa no seio de uma nova família,
denominada substituta e diferente da família natural, de forma
irretratável, gerando novos vínculos de filiação, com todos e os mesmos
direitos dos demais filhos, desvinculando de todos os laços com os pais
e demais parentes biológicos.

Adoção, nesse sentido, é forma de colocação em família


substituta, sendo medida excepcional e irrevogável, à qual
se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de
manutenção da criança ou adolescente na família natural
ou extensa (aquela que se estende para além da unidade
pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes
próximos com os quais a criança ou adolescente convive e
mantém vínculos de afinidade e afetividade - artigo 25
parágrafo único) (ROSA, 2021, p. 462).

Com regras claras, uma delas, para o objetivo do nosso trabalho,


ganha destaque, é descrita no artigo 41 do ECA:

Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado,


com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios,
desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes,
salvo os impedimentos matrimoniais. (BRASIL. Lei nº
8.069, de 13 de julho de 1990, grifo nosso).

Assim, o vínculo com os pais biológicos é rompido,


obrigatoriamente, para que seja possível a adoção. A lei não deixa
possibilidade de outra interpretação. Com o desligamento é extinto o
Poder Familiar.

A perda do poder familiar pune os pais pela infringência


dos deveres mais importantes que têm para com os filhos,
sendo averbada à margem do assento de nascimento da
criança ou adolescente a sentença que decretar a perda ou

70
suspensão do poder familiar. (SHIKICIMA, 2005, p. 123
apud MADALENO, 2018, p. 848).

Madaleno (2018) deixa claro sobre a extinção do Poder


Familiar:

A adoção é causa de extinção do poder familiar em


relação aos pais biológicos, mas os pais precisam
concordar com a renúncia ao seu poder familiar, salvo
tenham deles sido destituídos, criando com a adoção um
novo liame de poder familiar entre o adotante e o adotado,
se for menor. (MADALENO, 2018, p. 918, grifo nosso).

Já, Rodrigo da Cunha Pereira (2021, p. 747), afirma:

Para que se faça a adoção, é necessário que os pais


biológicos sejam destituídos de seu lugar jurídico de pais.
Em outras palavras, para que novo pai/mãe entre na
certidão de nascimento do adotando, é necessário que os
genitores sejam retirados do lugar de pais registrais, ou
seja, sejam destituídos de sua autoridade parental, que a lei
chama de poder familiar (art. 155 a 163 do ECA). Esta é a
visão mais comum e tradicional sobre a adoção.

Interessante salientar que a legislação é omissa sobre a


possibilidade de restituição do Poder Familiar, mas sendo estes, um dos
efeitos da paternidade, abordar o tema se torna relevante pensando no
caso de Multiparentalidade. Lembrando que a extinção do Poder
Familiar muitas vezes é uma punição imposta, a pior das sanções, aos
pais por seu comportamento inadequado. Sendo assim, a restituição
apareceria como um suposto perdão as falhas passadas, mesmo não
sendo este objetivo principal ou único.
Sendo assim, diante de toda exposição, a adoção, pressupõe o
rompimento de todos os vínculos com a família biológica.
Mas, como relatado na introdução, alguns artigos da Lei nº
8.069, de 13 de julho de 1990 (ECA) com suas alterações, tem sido

71
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

flexibilizadas, para se atender os princípios da dignidade da pessoa


humana, e os princípios do melhor interesse e da proteção integral da
criança e do adolescente, estes constantes na lei citada, mas,
principalmente, na Constituição Federal de 1988.
Os julgamentos têm mostrado uma nova realidade, onde é
mais importante o bem estar da pessoa, família, criança e do
adolescente à interpretação restritiva e literal do texto legal. Assim,
deve a criança e o adolescente serem o centro das atenções, em
detrimento dos demais interessados, valorizando-se o afeto, o melhor
interesse e a proteção integral destes.
Há muito consagrado, a afetividade, se transformou em direito
fundamental e igualou a filiação biológica e a filiação socioafetiva5. Assim, a
paternidade socioafetiva, nos dizeres de Maria Berenice Dias (2021):

A filiação que resulta da posse do estado de filho constitui


uma das modalidades de parentesco civil de “outra
origem”, previstas na lei (CC 1.593): origem afetiva. A
filiação socioafetiva corresponde à verdade construída
pela convivência e assegura o direito à filiação. Como
afirma Rodrigo da Cunha Pereira, a socioafetividade e a
multiparentalidade quebraram o paradigma jurídico de que
só se pode ter um pai e uma mãe. A construção desses
conceitos tem origem doutrinária, a partir da observação
dos costumes, que é a principal fonte do Direito. (DIAS,
2021, p. 232).

Assim, a paternidade socioafetiva, é caracterizada pela


convivência de pais com filhos, sem o elo biológico. O reconhecimento
da paternidade ou da maternidade socioafetiva produz todos os efeitos
pessoais e patrimoniais que lhes são inerentes6.

5
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual.
Salvador: JusPodivm, 2021.
6
IBDFAM - Enunciado 06: Do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva
decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental. IBDFAM -
Enunciado 33: O reconhecimento da filiação socioafetiva ou da multiparentalidade gera
efeitos jurídicos sucessórios, sendo certo que O filho faz jus às heranças, assim como

72
Nascida com os novos modelos de família trazidas pela
Constituição Federal de 88, geralmente, a multiparentalidade, se dá
devido a constituições de novos vínculos conjugais. Modelo denominado
pelo doutrinador Conrado Paulino da Rosa, como família mosaico, com
a reunião dos “meus, os seus e os nossos filhos”. Onde o padrasto ou a
madrasta assumem funções e adquirem afeto não mais diferenciando se
são ou não filhos biológicos.
Também muito utilizada nos casos de reprodução assistida que
contam com a participação de mais de duas pessoas no processo
reprodutivo. Material genético de pessoas distintas da gestação.
Rodrigo da Cunha Pereira (2021, p. 75), expressamente declara:
“Pode se dar também nos processos judiciais de adoção” e ainda define que:

A multiparentalidade, ou seja, a dupla


maternidade/paternidade tornou-se uma realidade jurídica,
impulsionada pela dinâmica da vida e pela compreensão
de que paternidade e maternidade são funções exercidas. É
a força dos fatos e dos costumes como uma das mais
importantes fontes do Direito, que autoriza esta nova
categoria jurídica. Daí o desenvolvimento da teoria da
paternidade socioafetiva que, se não coincide com a
paternidade biológica e registral, pode se somar a ela.
(PEREIRA, 2021, p. 75).

O Supremo Tribunal Federal se posicionou favorável à


multiparentalidade com repercussão geral (RE 898060/2016 39), Tese 622,
STF: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não
impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na
origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
De acordo com meu professor Vial-Dumas (2019), da
Universidade de Girona, na Espanha:

os genitores, de forma recíproca, bem como dos respectivos | ascendentes e parentes,


tanto por direito próprio como por representação.

73
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Não existe uma família única. Dizemos a terceiros estranhos


que um tio, um primo ou um cunhado fazem parte da nossa
família; no entanto, usamos a mesma palavra para designar os
membros de nossa família nuclear, excluindo desse conceito os
mesmos parentes que designamos anteriormente como família.
Daí a ambiguidade histórica do termo, já que a família designa
não apenas uma, mas múltiplas realidades plurais.7 (VIAL-
DUMAS, 2019, tradução livre).8

Antes dos princípios que hoje vigoram, também escreveu assim


sobre a família, Virgílio de Sá Pereira (1959, p. 89-90):

A família é um fato natural. Não na cria o homem, mas a


natureza. (...) O legislador não cria a família, como o
jardineiro não cria a primavera. Fenômeno natural, ela
antecede necessariamente ao casamento, que é um
fenômeno legal, e também por ser um fenômeno natural é
que ela excede à moldura em que o legislador a enquadra”.
(...) “De tudo que acabo de dizer-vos, uma verdade resulta:
soberano não é o legislador, soberana é a vida. Onde a
fórmula legislativa não traduz outra cousa que a convenção
dos homens, a vontade do legislador impera sem contraste.
Onde porém ela procura regulamentar um fenômeno
natural, ou o legislador se submete às injunções da natureza,
ou a natureza lhe põe em cheque a vontade. A família é um
fato natural, o casamento é uma convenção social.

7
“La etimología de família es incierta. Algunos filólogos derivan la palabra del osco
famel; también se alude a famulus que podría provenir del indoeuropeo dhe-mo-s que
designa al esclavo que habita en el mismo hogar o a aquellos que pertenecen a la casa.
En cualquier caso, como se aprecia en la nota siguiente, la palabra sirve para designar
tanto realidades que hoy llamaríamos patrimoniales como también personales. Para
un panorama general de esta discusión filológica” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 15-18).
8
“Familia no hay una sola. Decimos ante terceros extraños que un tío, una prima o un
cuñado son parte de nuestra familia; no obstante, utilizamos la misma palabra para
designar a los miembros de nuestra familia nuclear, excluyendo de este concepto a esos
mismos parientes que antes hemos designado como familia. De ahí la histórica ambigüedad
del término, pues familia designa no solo una, sino múltiples realidades plurales.”

74
O STJ9, em 2019, já se manifestou pelo direito a coexistência
de relações filiais ou a denominada multiplicidade parental,
compreendida como expressão de uma realidade social. Devendo,
sempre, ser observado o melhor interesse do menor.
Por tudo isso, já está consagrada a possibilidade de
reconhecimento da multiparentalidade.
De acordo com o Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais,
Epaminondas Costa, os institutos da multiparentalidade e do restabelecimento
do vínculo biológico não poderão se valer no caso da adoção:

[...] é inconcebível que a presente situação seja resolvida


por meio do instituto da adoção, o qual se destina a
estabelecer a relação de parentesco entre pessoas
desvinculadas biologicamente. Portanto, a adoção como
filho, de alguém que a natureza atribua tal condição,
geraria o estado de perplexidade. (COSTA, 2006, p. 10).

Por outro lado, Maria Berenice Dias (2016, p. 507) dispõe que:

Gerando a adoção vínculo de filiação socioafetiva, a


declaração da paternidade biológica, de um modo geral, não
surte efeitos registrais, a impedir benefícios de caráter
econômico. No entanto, cada vez com maior frequência é
reconhecida a multiparentalidade, de modo a se reconhecer o
estabelecimento da dupla filiação: a biológica e a adotiva.

Rodrigo da Cunha Pereira (2021), em seu livro, Direito das


Famílias, também deixa claro a possibilidade da multiparentalidade
também em processos de adoção, mas quando há consenso entre os pais
biológicos e adotantes.

Entretanto, com as novas concepções de que paternidade e


maternidade podem ser conjuntas, ou seja, é possível que

9
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.608.005/SC. Proc.
2016/0160766-4. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino.

75
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

alguém tenha mais de um pai, mais de uma mãe, o que tem


se chamado de multiparentalidade, ou pluriparentalidade.
Neste caso é possível a adoção sem a destituição do poder
familiar, quando há consenso entre os pais biológicos e
pais adotantes. (PEREIRA, 2021, p. 747).

Trazendo novas abordagens, a Professora Fernanda Trentin e


Vívian Carla Lamberti Pasini (2015), observam que:

A ação de destituição do poder familiar somente é aplicada


em situações excepcionais, contudo, em alguns casos, a
família consegue adquirir condições para recuperar a prole e
pretende a revisão do julgado. Apesar da falta de previsão
legal e dos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais
divergentes sobre o assunto [...] desde que os pais
demonstrem que foram cessadas as causas que levaram à
destituição, que a criança ou adolescente não tenha sido
adotada e que a medida atenda o melhor interesse dos filhos,
de modo a garantir-lhes o direito de serem criados e educados
na sua família biológica. (TRENTIN; PASINI, 2015).

De forma interessante, neste novo contexto, observando os


novos modelos familiares, permitindo que a criança inclua em seu
registro de nascimento, o nome de 02 (duas) mães, o Tribunal de Justiça
de Sergipe10, citando o RE de nº 898.060/SC, que firmou a Tese de
Repercussão Geral (Tema 662) onde foi reconhecida a
multiparentalidade.
Nos mesmos autos, a Procuradoria de Justiça, na pessoa de,
Ernesto Anízio Azevedo Melo, manifestou:

Considerando que o interesse do menor é, na verdade, o


bem maior da presente questão, e, obviamente, tendo em
vista que ficou constatado, através de manifestação das
partes, de que no registro civil do menor não terá nenhum

10
SERGIPE (Estado). Tribunal de Justiça do Estado (2. Câmara Cível). Apelação Cível
nº 201800818610. Proc. 0000589-92.2016.8.25.0055. Relator: José dos Anjos, 1º de
outubro de 2019.

76
decréscimo acerca de sua filiação, mas sim, em face do
novo posicionamento jurisprudencial acerca da matéria,
o acréscimo com os nomes dos apelados, o órgão
Promotorial nada tem a obstacularizar acerca do que foi
apurado nesta audiência, mesmo porque, foi, inclusive,
assegurado aos pais biológicos a permanência dos seus
nomes no citado registro, inclusive assegurado o direito
de visitas ao mencionado menor, observando-se, na sua
essência, o clima de urbanidade entre os interessados 11.

De acordo com o relator, Des. José dos Anjos:

...não me parece que a total exclusão do nome da mãe


biológica da vida da criança possa ser considerada a
medida que melhor preserva a criança, notadamente
quando esse é o entendimento da Corte Suprema.
Não há, ressalte-se, como prever como se dará a formação do
vínculo afetivo entre a Sra. Armanda Manuela e seu filho, no
entanto, na hipótese inversa, fácil afirmar que mantido o
alijamento da apelante da vida criança, dificilmente mãe
biológica e filho conseguirão resgatar a relação materno-filial,
embasada no relevante vínculo afetivo, de fundamental
importância na vida da criança.
Assim, em observância às novas diretrizes do direito de
família, e sua constante e consequente evolução, e, mais
ainda, segundo a orientação do STF, no RE nº
898.060/SC, reconhecido como repercussão geral, é que
entendo que deve ser acolhido o pleito da apelante,
afirmado na audiência alhures informada, em
concordância com os próprios pais adotivos e o parecer
ministerial, sobre a pertinência da manutenção do nome
da mãe biológica nos assentos registrais do menor
adotado, conjuntamente com o nome dos pais adotivos.
Ressalto, por oportuno, que os efeitos jurídicos da adoção
multiparental são os mesmos da adoção regulada pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, de forma que a
única novidade caracteriza-se pela formação ou manutenção
de mais um vínculo, além do habitual. Noutro prisma, inexiste
proibição pela Lei de Registros Publicos (nº 6.015/73) quanto
à múltipla filiação no assento do adotado.

11
SERGIPE, 2019.

77
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

[...} Por todo o exposto, conheço do presente recurso para


lhe dar parcial provimento para manter os termos da
sentença de 1º grau, mesmo que por outros fundamentos,
no entanto, sem prejuízo e exclusão dos dados referentes
à filiação biológica materna já existente, dos assentos
registrais do menor, os quais deverão permanecer
conjuntamente com o nome dos pais adotivos 12.

Somados a estes aspectos, não podemos desconsiderar o direito


garantido pelo artigo 48, do ECA, do adotado buscar informações e
identidades dos seus pais biológicos, nem tampouco, o direito individual ao
pleno conhecimento de sua origem genética. Fortalecendo, assim, a
manutenção ou o restabelecimento dos vínculos biológicos. Por óbvio, este
reconhecimento, não poderia afetar ou diminuir, os direitos e garantidas
relacionadas à própria adoção. Bem como, o conhecimento das informações
dos biológicos, também não gera, automaticamente, efeitos de vínculo legal.
Necessário e importante destacar o pensam os Tribunais
brasileiros sobre o tema:

APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. NOVA RELAÇÃO


PARENTAL. EXTINÇÃO DO ANTERIOR PODER
FAMILIAR EXISTENTE. RESTABELECIMENTO DO
VÍNCULO BIOLÓGICO. FINS EXCLUSIVAMENTE
PATRIMONIAIS. IMPOSSIBILIDADE. RE 890.060/SC.
REPERCUSSÃO GERAL. MELHOR INTERESSE.
PLURIPARENTALIDADE. DIREITO À HERANÇA.
ILEGITIMIDADE AD CAUSAM. (Acórdão 1168795,
07117396720188070020, Relator: ANA CANTARINO,
8ª Turma Cível, data de julgamento: 30/4/2019, publicado
no DJE: 13/5/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada).

APELAÇÃO CÍVEL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE. PERDA DO PODER FAMILIAR.
ENTREGA DA MENOR PELA MÃE BIOLÓGICA.
PEDIDO DE ADOÇÃO. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO
INTEGRAL E DO SUPERIOR INTERESSE DO
MENOR. SENTENÇA MANTIDA. (Acórdão 1199941,

12
SERGIPE, 2019.

78
00018984720178070013, Relator: ROBERTO FREITAS,
1ª Turma Cível, data de julgamento: 4/9/2019, publicado
no PJe: 18/9/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada).

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA.


RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
POST MORTEM. POSSE DO ESTADO DE FILHO.
MANIFESTAÇÃO EXPRESSA DE VONTADE.
DESNECESSIDADE. MULTIPARENTALIDADE.
POSSIBILIDADE. SENTENÇA REFORMADA. (Acórdão
1197798, 07312812020178070016, Relator: LEILA
ARLANCH, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 21/8/2019,
publicado no DJE: 3/9/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada).

APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE


PATERNIDADE REGISTRAL. FALSA
REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE.
DESCONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO. MELHOR
INTERESSE DO MENOR. ANÁLISE CASUÍSTICA.
IMPOSIÇÃO DA DUPLA PARENTALIDADE EM
ANTAGONISMO ÀS VONTADES DOS
ENVOLVIDOS/GENITORES.
MULTIPARENTALIDADE. AFASTADA. (Acórdão
1181854, 20150610057123APC, Relator: CESAR
LOYOLA, , Relator Designado: SANDOVAL
OLIVEIRA 2ª TURMA CÍVEL, data de julgamento:
5/6/2019, publicado no DJE: 1/7/2019. Pág.: 290/292).

(...) A paternidade biológica declarada em registro público


não impede o reconhecimento do vínculo de filiação
concomitante baseado na origem socioafetiva, com os
efeitos jurídicos próprios, como desdobramento do
sobreprincípio da dignidade humana, na sua dimensão de
tutela da felicidade e realização pessoal dos indivíduos a
partir de suas próprias configurações existenciais. 2. “A
omissão do legislador brasileiro quanto ao reconhecimento
dos mais diversos arranjos familiares não pode servir de
escusa para a negativa de proteção a situações de
pluriparentalidade.” (TJDF 20161410019827 – Segredo de
Justiça 0001877-05.2016.8.07.0014, Relator: Getúlio de
Moraes Oliveira, Data de Julgamento: 07/12/2016, 7ª
Turma Cível, pub. 24/01/2017).

79
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

a adoção multiparental (Processo 0034634-


20.2013.8.17.0001 - juiz Clicério Bezerra e Silva - PE), no
sentido de acrescentar ao registro de nascimento de menor
adotado, o nome de seu genitor biológico (e de seus avós
paternos), inclusive com a inserção do seu patronímico,
mantendo-se a paternidade adotiva e registral constituída
(ALVES et al., 2014).

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ADOÇÃO –


SENTENÇA QUE DEFERIU O PLEITO AUTORAL E
DESTITUIU O PODER FAMILIAR DOS GENITORES
- PLEITO DA GENITORA BIOLÓGICA DE MANTER
SEU NOME NO ASSENTO REGISTRAL DO MENOR
– POSSIBILIDADE - MULTIPARENTALIDADE
RECONHECIDA – TESE DE REPERCUSSÃO GERAL
FIXADA PELO SUPREMO TRIBUNAL, NO
JULGAMENTO DO RE Nº 898.060 – PRESERVAÇÃO
DO VÍNCULO BIOLÓGICO MATERNO
CONCOMITANTE COM O RECONHECIMENTO DO
VÍNCULO SOCIOAFETIVO – MANUTENÇÃO DO
LIAME AFETIVO MATERNO-FILIAL -
OBSERVÂNCIA DO MELHOR INTERESSE E DA
PROTEÇÃO INTEGRAL - SENTENÇA MANTIDA
POR OUTROS FUNDAMENTOS - RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO PARCIALMENTE -
DECISÃO UNÂNIME. (Apelação Cível nº
201800818610 nº único 0000589-92.2016.8.25.0055 - 2ª
CÂMARA CÍVEL, Tribunal de Justiça de Sergipe -
Relator (a): José dos Anjos - Julgado em 01/10/2019).
(TJ-SE - AC: 00005899220168250055, Relator: José
dos Anjos, Data de Julgamento: 01/10/2019, 2ª
CÂMARA CÍVEL).

Superior Tribunal de Justiça - RECURSO ESPECIAL Nº


1.608.005 - SC (2016/0160766-4) RELATOR:
MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO
RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
DE SANTA CATARINA RECORRIDO: D K
RECORRIDO: J C ADVOGADO: DEFENSORIA
PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA
INTERES. : M B C EMENTA RECURSO ESPECIAL.
DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO HOMOAFETIVA.
REPRODUÇÃO ASSISTIDA. DUPLA PATERNIDADE
OU ADOÇÃO UNILATERAL. DESLIGAMENTO DOS

80
VÍNCULOS COM DOADOR DO MATERIAL
FECUNDANTE. CONCEITO LEGAL DE PARENTESCO
E FILIAÇÃO. PRECEDENTE DA SUPREMA CORTE
ADMITINDO A MULTIPARENTALIDADE.
EXTRAJUDICICIALIZAÇÃO DA EFETIVIDADE DO
DIREITO DECLARADO PELO PRECEDENTE
VINCULANTE DO STF ATENDIDO PELO CNJ.
MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA.
POSSIBILIDADE DE REGISTRO SIMULTÂNEO DO
PAI BIOLÓGICO E DO PAI SOCIOAFETIVO NO
ASSENTO DE NASCIMENTO. CONCREÇÃO DO
PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA.

Por tudo isso, no novo Direito de Família mínimo, os


aspectos subjetivos e sentimentais são muito importantes. E, apesar
da nossa legislação não citar nem uma vez a palavra amor, o afeto,
assumiu papel de destaque.
Não podemos também olvidar que os princípios da dignidade
da pessoa humana, somados aos princípios de melhor interesse e
proteção integral do menor, nos levam a concluir ser possível a
relativização ou flexibilização da legislação, em favor do menor, para
que seja possível, não somente a manutenção, mas também para
restabelecer os vínculos biológicos, desde que não seja, em detrimento
do vínculo adotivo já sentenciado.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Casamento religioso autônomo: resgate


histórico. Revista Juris Plenun, Caxias do Sul, v. 10, n. 59, p. 17-22,
set. 2014.

BÍBLIA SAGRADA, versões – Nova Versão Internacional e Almeida


Revista e Atualizada. [201-?].

81
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

BOUZON, E. “O Código de Hammürabi”: introdução, tradução e


comentários. Petrópolis: Vozes, 1976.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.608.005


- SC (2016/0160766-4). Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

COSTA, Dilvanir José da. A Família nas Constituições. Revista de


Informação Legislativa, Brasília, v. 43, n. 169, p. 13-19, jan./mar. 2006.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/92305.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6. ed. São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev.
ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2021.

DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e


Territórios (7. Turma Cível). Acórdão 20161410019827. Segredo de
Justiça 0001877-05.2016.8.07.0014. Relator: Getúlio de Moraes
Oliveira, Data de Julgamento: 07/12/2016. DJe, 24/01/2017.

________. ________ (2. Turma Cível). Acórdão 1181854.


20150610057123APC. Relator: Sandoval Oliveira, 5 de junho de 2019.
DJe, 1º jul. 2019. p. 290-292.

________. ________ (7. Turma Cível). Acórdão 1197798.


07312812020178070016. Relator: Leila Arlanch, 21 de agosto de 2019.
DJe, 3 set. 2019.

________. ________ (1. Turma Cível). Acórdão 1199941.


00018984720178070013. Relator: Roberto Freitas, 4 de setembro de
2019. DJe, 18 set. 2019.

82
________. ________ (8. Turma Cível). Acórdão 1168795.
07117396720188070020. Relator: Ana Cantarino, 30 de abril de 2019.
DJe, 13 maio 2019.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das


famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de


Família. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 6.

MADALENO, Rolf. Direito de Família. 8. ed. rev. atual. e ampl. Rio


de Janeiro: Forense, 2018.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33. ed. São Paulo.


Atlas, 2017.

PEREIRA, Virgílio de Sá. Lições de Direito de Família. 2. ed. Rio de


Janeiro: Freitas Bastos, 1959.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias; prefácio Edson


Fachin. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores


do Direito de Família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de família. Rio de Janeiro:


Freitas Bastos, 1956.

PERNAMBUCO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado. Processo


0034634-20.2013.8.17.0001. Relator: Juiz Clicério Bezerra e Silva.

83
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

ROSA, Conrado Paulino. Direito de Família Contemporâneo. 8. ed.


rev., ampl. e atual. Salvador; JusPodivm, 2021.

SERGIPE (Estado). Tribunal de Justiça do Estado (2. Câmara Cível).


Apelação Cível nº 201800818610. Proc. 0000589-92.2016.8.25.0055.
Relator: José dos Anjos, 1º de outubro de 2019.

SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os


direitos fundamentais nas relacões entre particulares. São Paulo:
Malheiros, 2011.

TALCIANI, Hernán Corral. Claves para entender el Derecho de Familia


contemporáneo. Revista Chilena de Derecho, Santiago, v. 29, n. 1, p.
25-34, 2002.

TRENTIN, Fernanda; PASINI, Viviam Carla Lamberti.


Restabelecimento do poder familiar: reintegração a família natural.
Interfaces Científicas - Direito, Aracajú, v. 4, n. 1, p. 65-74,
out. 2015. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/index.php/direit
o/article/view/2321/1427. Acesso em: 17 fev. 2019.

VENOSA, Sílvio de Salvo. A família conjugal. In: PEREIRA, Rodrigo


da Cunha (coord.). Tratado de direito das famílias. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2015. p. 133-190.

VIAL-DUMAS, Manuel. La família nuclear ante el derecho. Uma


retrospectiva de su formación y definición jurídica em la tradición
jurídica occidental, Revista Chilena de Derecho, Santiago, v. 46, n. 2,
p. 555-578, 2019.

84
OS REFLEXOS PANDÊMICOS NO INSTITUTO DA
GUARDA COMPARTILHADA: percepções e suposições
face ao novo contexto social

Maria Cristina Paiva Santiago*


Raíssa Maria Vasconcelos Aranha*
Flavia Brandão Maia Perez*

Na atualidade, pela constitucionalização do Direito das


Famílias, é uníssono o entendimento de que a família é um género de
múltiplas espécies, possuindo várias formas distintas, livre de limitações
biológicas ou preconceitos sociais antes impostos, sem perder a sua
essência, que é o amor. Não se pode estabelecer, em tempos modernos,
uma forma dura e rígida para este conceito, afinal o amor não tem forma
e não deve ser limitado pelo direito.
Nesta senda, com o advento da constituição federal de 1988,
passou-se a tutelar, no Brasil, uma multiplicidade de formas de entidades
familiares, alargando o conceito que em tempos remotos era utilizado,
passando a reconhecer e proteger todas as formas de família. Superou-se
assim a fase pré-constitucional em que só se atribuía o status de família
àquela advinda do casamento, seguindo uma tendência dos tempos
hodiernos em que desconsidera o Estado e a igreja como instâncias
necessárias de legitimação das famílias, conforme leciona o professor
Guilherme de Oliveira (2001, p. 336):

*
Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Professora
dos cursos de graduação e pós-graduação do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE).
Advogada sócia/fundadora do escritório Santiago & Rangel Advogados.
*
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa. Pós-Graduanda em
Direito Civil Processo Civil pela ESA-PB. Membro do IBDFAM-PB.
*
Advogada pós graduada em direito constitucional e em Direito de Família e
Sucessões. Presidente do IBDFAM/ES 2018/2020 e 2021/2023. Vice Presidente da
Comissão Especial de Família e Sucessões da OAB 2019/2021. Mestranda pela
Universidade de Vila Velha/ES.

85
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Desde então tem se tornado mais nítido a perda do valor do


Estado e da igreja como instância legitimadora da comunhão
de vida e nota-se uma crescente rejeição das tabelas de valores
e dos deveres conjugais predeterminados por qualquer
entidade externa aos conviventes.

Portanto, para que seja considerada entidade familiar, não é


mais necessário que o Estado ou uma autoridade religiosa chancele a
união, conferindo-lhe legitimidade, basta que se esteja diante de um
núcleo capaz de promover o estabelecimento do ser humano como
sujeito, pautado no afeto e na vontade de constituir família.
Embora existam variadas formas de entidade familiar, existe, entre
elas, um ponto de convergência: Todas provocam o surgimento de uma
gama de obrigações e direitos para os detentores do poder familiar,
conceituado como o plexo de direitos exercem face os seus filhos enquanto
menores e incapazes (GANGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2018, p. 44).
Neste sentido, dispõe o caput do artigo 1.634 do Código Civil,
que compete aos pais, independentemente da sua situação conjugal, o
pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:

I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda


unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III -
conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV
- conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao
exterior; V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para
mudarem sua residência permanente para outro Município;
VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento
autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o
sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII -
representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16
(dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa
idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o
consentimento; [...] (BRASIL, 2002).

Os pais possuem o direito e o dever de exercerem a guarda de


sua prole de maneira unilateral ou compartilhada, a depender das
circunstâncias do caso concreto, que são previamente analisadas pelos

86
magistrados, havendo um rol extensivo de modelos institucionais de
guardas na legislação, a fim de que preservem o melhor interesse do
menor e a igualdade de gênero entre os genitores.
Contudo, apesar da pluralidade nas modalidades de guarda, o
direito brasileiro estabeleceu como regra, pela Lei 13.058/2014, a
guarda compartilhada, no intento de promover o melhor interesse do
menor. Esse modelo de guarda consiste em preservar, apesar do término
da relação conjugal, o exercício em comum do poder familiar,
permitindo que os pais possam continuar educando e participando
ativamente vida de sua prole, exercendo conjuntamente a autoridade
parental, mesmo que rompida a relação conjugal.
Para Maria Berenice Dias, conforme citado por Gonçalves
(2016), a guarda compartilhada significa a corresponsabilidade de ambos
os pais no desenvolvimento da prole e caracteriza um avanço, pois retira
da guarda a ideia de posse e propicia a continuidade da relação com os
filhos. Nada mais é, em palavras simples, a convivência dividida,
conforme o melhor interesse do menor, dos filhos com seus pais
separados. E, a solidariedade, é um princípio regente nestes casos de
dupla custódia. Como Waldyr Grisard Filho (2016, p. 163, grifo nosso)
bem leciona:

A custódia legal refere-se a um acordo no qual os pais


dividem as responsabilidades e as principais decisões
relativas aos filhos, inclusive a instrução, a educação
religiosa, os problemas de saúde e, às vezes, o local de
residência. A custódia física, ou custódia partilhada, é uma
nova forma de família na qual os pais divorciados partilham
a educação dos filhos em lares separados. A essência do
acordo da guarda compartilhada reflete o compromisso dos
pais de manter dois lares para seus filhos e de continuar
a cooperar um com o outro na tomada de decisões.

A guarda compartilhada revaloriza o papel da necessidade de


uma paternidade presente, garantindo o desenvolvimento afetivo entre

87
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

pais e filhos, que por diversas vezes é rompido com a dissolução familiar.
Nem sempre por vontade dos pais, mas por reflexos de toda conjuntura
envolvida. Neste sentido, Zygmunt Bauman (2000, p. 4) traz em seus
escritos uma destacável reflexão, in verbis:

A modernidade líquida em que vivemos traz consigo uma


misteriosa fragilidade dos laços humanos – um amor
líquido. A segurança inspirada por essa condição estimula
desejos conflitantes de estreitar esses laços e ao mesmo
tempo mantê-los frouxos.

Não raramente, os pais se distanciam dos seus filhos por


fraquejarem na disputa pela convivência. O termo da paternidade já se
encontra tão banalizado, de maneira que é constante observamos
situações em que os filhos crescem e se desenvolvem com a total
ausência do seu genitor. A guarda compartilhada tem o condão de
superar a disputa pela culpa do divórcio. Para Grisard Filho (2016, p.
181), a guarda compartilhada como modelo obrigatório, deve-se ao
déficit do poder familiar exercido pelo genitor não guardião em razão da
concepção social, verdadeiro senso comum de que todas as decisões que
digam respeito aos filhos cabem apenas ao genitor que possui sua guarda,
quando, em verdade, o direito civil brasileiro, desde o código de 1916, já
previa que o rompimento da sociedade conjugal não interferia no
exercício do poder familiar por ambos os pais em relação aos filhos.
É conveniente frisar que, na hipótese de não haver consenso
para estabelecer a modalidade de guarda que será adotada, ficará imposta
por determinação judicial, de maneira flexível, sempre disponível para
mudanças e adaptações, bem como, fixada unicamente na condição de
ambos serem aptos a exercer o poder familiar. Desta forma, compreende
a legislação cível:
Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada,
poderá ser:

88
I. requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer
deles, em – ação autônoma de separação, de divórcio, de
dissolução de união estável ou em medida cautelar;
II. decretada pelo juiz, em atenção a necessidades
específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo
necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.
(BRASIL, 2002, grifo nosso).

Ademais, não há necessidade de ser definida a casa de um dos pais


como referência para o lar oficial, pode existir um consenso também na
maneira de distribuição do tempo e de fixação do logradouro. O magistrado
estabelecerá as responsabilidades de cada um e o período de convivência
justo, definindo sob a regência da lei 1584, §3° do Código Civil, para que a
sentença não ultrapasse a necessária igualdade entre os pais.
É imperioso pontuar que a guarda compartilhada não é a única
forma de guarda presente no ordenamento jurídico brasileiro. O código
civil contempla, em geral, quatro modalidades de guarda, de fácil
distinção, sendo elas: Unilateral ou Exclusiva, Alternada e Nidação.
Contudo, com advento da Lei 13.058/2014, fez-se a modalidade
compartilhada preferível em nosso sistema por diversos, Gangliano e
Pamplona Filho (2018, p. 608, grifo nosso) explicam:

As vantagens, como já ficou claro acima, são manifestas,


mormente em se levando em conta não existir a danosa
“exclusividade” típica da guarda unilateral, com
resultado positivo na dimensão psíquica da criança ou
do adolescente que passa a sofrer em menor escala o
devastador efeito do fim da relação de afeto que unia os
seus genitores.

As modalidades de guarda estão para tutelar o melhor interesse


do menor, isso pois, independentemente da situação conjugal dos
genitores, eles possuem o direito e dever de convivência com seus filhos,
e a legislação, por sua vez, compreende que a realidade fática dos casos
é uma eterna variável. Dessa forma, ainda que se tenha a guarda

89
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

compartilhada como regra, ela nunca deve ser vista como única opção,
podendo, inclusive, ser alterada a que fora definida.
Contudo, não há dúvidas que, após a publicação da Lei
13.058/2014, que reafirma a aplicação do instituto da guarda
compartilhada, tal modalidade tornou-se meio de proteção ao melhor
interesse do menor, salvo raríssimas exceções. Fundamentada no caráter
indissolúvel do elo familiar, possibilita aos pais, como figuras do casal
parental, a continuarem exercendo suas responsabilidades inerentes ao
caráter paterno-filial, promovendo um melhor desenvolvimento às
crianças e adolescentes. Acerca do tema, leciona Grissard Filho (2016,
p. 136) leciona que:

É uma convocação aos pais para “pensar de forma


conjugada no bem-estar dos filhos, para que possam os
menores usufruir harmonicamente da família que possuem,
tanto a materna, quanto a paterna, sob a premissa de que toda
criança ou adolescente tem o direito de ter amplamente
assegurada a convivência familiar, conforme linhas mestras
vertidas pelo art. 19 do ECA”. Não há, portanto, tutela única
de uma ou de outra parte; há tão somente a salvaguarda do
direito da criança ou do adolescente.

É sabido que os casais parentais, que nada mais são do que os pais
que possuem filhos em comum e optaram pela vida em separação,
constituindo assim uma família post pactum finitum, na maioria das vezes,
não possuem uma convivência sadia e amigável, pois a ruptura dos laços
conjugais alcança as esferas psíquicas do afeto e suscita um sentimento
falho de entrega pessoal, acarretando uma série de desavenças particulares,
onde pouco importam nas decisões a favor do menor, afinal, a legislação já
superou há muito tempo o peso da “culpa“ nos divórcios.
Em virtude desse peso tão significativo das emoções, a busca
pelo judiciário torna-se muitas vezes a única opção viável. Assim, as
varas e magistrados especializados seguirão com a análise da aplicação
ou não do instituto da guarda compartilhada, que tem como alicerce de

90
sua aplicação a proteção integral e o melhor interesse do menor, em
adequação ao direito da convivência.
Como é de conhecimento comum, o ambiente familiar,
conforme assevera o Art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente,
deverá assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, dentre eles, o direito à saúde. Ademais, o art. 5º,
também do ECA, ordena que:

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de


qualquer forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei
qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais. (BRASIL, 1990, grifo nosso).

Neste sentido, deve-se sempre considerar os riscos à saúde do


menor no momento de convivência com seus genitores e demais familiares.
Como regra, o deslocamento do menor não enseja nenhum risco à
sua saúde, contudo, a situação não é absoluta. Os cuidados, mesmo que
pequenos, nos revezamentos de horários, sempre existiram e foram
adequados à realidade de cada criança. Como por exemplo, a exigência do
uso de cadeirinhas no translado com os pais para os menores de 4 anos,
conforme resta previsto na Resolução CONTRAN nº 277 de 28/05/2008.
Trata-se de detalhes, mas que sempre exigiram um zelo por cada
ser em si, com suas peculiaridades e necessidades próprias. Afinal, não há
como afirmar que uma criança com diabetes terá a mesma saúde que as
demais, deverão atentar-se a sua dieta que deverá ser seguida e elaborada de
uma maneira especial. Todas essas exceções devem ser acordadas pelos
responsáveis e tomadas em face do que melhor resguarde o menor.
Na data de 20 de março de 2020, o Congresso Nacional editou
o Decreto Legislativo de nº 6, que tem por objetivo declarar
expressamente o estado de calamidade pública ocasionado pela
pandemia do vírus Sars-CoV-2. Assim, como era de se esperar, a
pandemia provocou diversos efeitos nas variadas esferas da sociedade,

91
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

promovendo alterações desde a seara negocial até a forma de


convivência entre amigos e familiares, pois os mais puros gestos como
abraços e beijos se tornaram os principais vetores para transmissão do
vírus. E a distância, por sua vez, tornou-se uma prova de amor e cuidado.
Neste cenário, inaugura-se uma nova realidade, em que o mero
deslocamento e o contato com as pessoas, passou a representar um risco
indelével à saúde do menor, pois a transmissibilidade aguda do vírus faz
com o que simples contato com um infectado promova o contágio. Por isso,
o contexto social transformou-se drasticamente e apoiou-se na crença de não
superlotar os hospitais, recorrendo ao isolamento quase que imediato.
O vírus do COVID-19, apesar de conhecido e vivido há mais de
um ano, prossegue em mutação, dificultando os estudos e diagnósticos
certos. É, ainda, uma incógnita e, a cada dia, desenvolve-se em diversas
formas diferentes, não havendo como garantir que apenas um grupo X
de pessoas sofrerão riscos, ou que um grupo Y permanecerá seguro e
assintomático. Recentemente, sua nova variante foi acusada por notícias
gerais de atingir crianças e adolescentes, ocasionando um verdadeiro
impacto social, principalmente naqueles que usavam o risco em idosos
como desculpas para descuido e descaso.
José Fernandes Simão (2020), em artigo publicado no Instituto
Brasil de Direito de Família (IBDFAM), assegura crer na existência de
três realidades distintas, sendo relevante, para o presente artigo, apenas
duas delas: A primeira, existente antes do dia 13 de março de 2020, em
que denomina de realidade A, na crença de que esta realidade era pautada
por um sonho de abundância e felicidade perpétuas, em que o adjetivo
incurável tinha sido riscado do Dicionário.
Como também, acredita na existência de uma realidade B, após
a edição do decreto de número 6, qualificada como temporária, fugaz,
mas consistente. A realidade B seria, em outras palavras, a crise
pandêmica em que o mundo ainda se encontra e a necessidade de uma
nova adaptação. Para o autor, o jogo na realidade B é de muita exigência,
principalmente para o direito de família, veja-se:

92
Admitindo, então, que estamos na Realidade B, que nossas
crenças inabaláveis ruíram e que esse novo mundo exige do
Direito, em especial l do Direito de Família, uma nova
concepção e novos paradigmas, vamos a duas questões
jurídicas pontuais: convivência com crianças e adolescentes
e a prestação alimentar. (SIMÃO, 2020, grifo nosso).

A convivência, como uma questão jurídica pontual sofreu


substancialmente os influxos desta pandemia, uma vez que o mero
deslocamento passou a representar uma exposição de risco à saúde do
menor, assim, dando ênfase à necessidade de releitura da guarda
compartilhada, em que as visitas se tornam, dessa vez, segundo plano, tendo
em vista os riscos desnecessários e totalmente evitáveis. Colocando, dessa
forma, em confronto os princípios constitucionais defendidos pelo
ordenamento jurídico brasileiro e com força normativa, como o da proteção
integral, melhor interesse do menor e a convivência paterno-filial.
Diante desses fatos, eclodiu nos tribunais pátrios o debate
acerca de qual seria a solução mais adequada para a manutenção da
convivência paterno-filial sem que se ponha em xeque a saúde do menor,
uma vez que o alvoroço e a preocupação trouxeram à tona novas
desavenças nas figuras dos casais parentais, que buscam, nesse cenário,
a aplicação urgente da guara unilateral.
Várias decisões estão sendo tomadas acerca do assunto, contudo,
como sempre ocorreu no direito das famílias, as decisões proferidas
possuem caráter próprio e são dotadas de múltiplas nuances, na medida
em que cada circunstância tem sua exceção e particularidade. Destarte, ao
ser instado a pronunciar-se, o Poder Judiciário, a partir da análise do caso
concreto, tem se manifestado pela relativização do modelo de guarda
adotado, fornecendo novos arranjos em razão da pandemia.
Neste sentido, uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, ao fundamentar-se nos princípios da proteção integral e do melhor
interesse do menor, previstos no artigo 227 da Constituição Federal, que
cabe ao magistrado, preservar os interesses da criança/adolescente,

93
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

alterando a guarda, quando verificar indícios de que sua manutenção com o


guardião não seria capaz de assegurar-lhe, em maior plenitude, tais direitos.
Desta forma, frente a um caso em que a genitora, guardiã, no tocante à
convivência do requerente com o filho, não admitia sequer conversa por
ligação de vídeo, sob justificativa relacionada ao risco de contágio pelo
COVID-19, o referido Juízo decidiu pelo cumprimento, por parte da
genitora, do acordado, especialmente o regime de visitas estabelecido e, pela
viabilização do contato do autor com o filho mediante ligações telefônicas
e vídeo- chamadas, por três vezes na semana. Veja-se parte do julgado:

É de conhecimento geral que, em algumas hipóteses, o


exercício do direito de visitas tem sido suspenso
temporariamente por decisões judiciais. Contudo,
sempre em atenção às particularidades de cada caso.
Há pouco, o desembargador José Rubens Queiroz [...]
suspendeu o direito de visitas do pai que havia retornando
da Colômbia e insistia em manter o convívio com a filha
que era portadora de problemas respiratórios graves. Aqui,
não vejo motivos reais, conforme acima dito e muito
bem ponderado pelo il. Promotor de Justiça, a amparar
a suspensão à convivência cuidadosa e vigilante entre pai
e filho, respeitado, neste sentido, o regime de visitas fixado
por ambos os genitores. (BRASIL, 2020, grifo nosso).

Além disso, pontuou a magistrada na decisão retro-mencionada, que


se faz imperioso ressaltar que o direito à convivência não é absoluto e diante
da atual situação deve-se considerar a proteção integral do menor e os riscos
inerentes ao COVID-19, na consciência de que cada caso é único e deve ser
analisado mediante suas especificidades, havendo casos que não se faz
necessário a suspensão das visitas, já que há uma pluralidade de diferenças.
Há momentos, por exemplo, em que os Estados retornam suas atividades
cotidianas prévias à pandemia, sendo reflexo da queda dos números de casos
e da ocupação dos leitos, como há lapsos temporais em que Estados
necessitam decretar novamente o lockdown ou medidas restritivas.

94
Por outro lado, em entendimento contrário ao supracitado,
outro magistrado, do Tribunal de Justiça de Goiás, diante de situações
fáticas contrárias, decidiu de maneira oposta. No caso em questão, a
requerente, genitora, solicitou o isolamento da menor e a proibição de
que a mesma tivesse contato com o pai, anexando, para tanto, aos autos,
documentos que comprovaram que a mesma foi acometida por
problema de saúde que afetou seu pulmão, e deveria ser mantida em
isolamento total. Diante disso, o magistrado decidiu fundamentando-se
no fato de que todas as medidas tomadas pelo poder público são no
sentido de impedir, ou ao menos minimizar, a propagação do vírus, não
podendo este querer equilibrar o direito de convivência avoengo com a
saúde da coletividade e a vida de cada indivíduo pois, como fundamente
em sua decisão, estes sempre prevalecerão:

Assim, frente a atual situação de calamidade pública que se


abeira, mostra-se plausível a suspensão da convivência
conferida ao pai pelo período de 30 (trinta) dias, enquanto a
menor se recupera dos problemas de saúde, medida
adequada em face ao pandemônio que se instalou. Ressalvo
que não se está aqui a ilidir o direito do
requerido/genitor, mas apenas suspendê-lo
provisoriamente, inclusive para seu bem, devendo por
certo também procurar seguir as recomendações de
saúde pública emitidas pelos órgãos de saúde pública [...]
pelo que DEFIRO o pedido liminar de evento 115 e, assim,
SUSPENDO, por 30 (trinta) dias, a convivência paterna
com a menor. Guarda e convivência familiar. Suspensão.
Possibilidade. COVID 19. (BRASIL, 2020, grifo nosso).

Frise-se que as decisões explanadas estão em conformidade


com a realidade B, citada por José Fernandes Simão (2020): temporárias
e adaptadas à nova realidade. Ademais, note-se que, entre as duas, o
conteúdo material é embasado nos mesmos princípios e condições que
permeiam o direito de família, a saber, o melhor interesse do menor e a
proteção integral. Ainda assim, para o autor, nesse momento de

95
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

pandemia e confinamento, surgem algumas questões que desafiam o


modelo tradicional, veja-se:

A primeira é a seguinte: deve-se suspender provisoriamente


o sistema de deslocamento das crianças em tempos de
pandemia mantendo-as apenas com a mãe, pois com ela já
residem. A resposta é positiva. Isso, evidentemente, gera
prejuízos para o pai e para os filhos por força de uma
redução temporária de convívio. Sim, é verdade, mas são
tempos de escolhas trágicas (SIMÃO, 2020).

Além disso, o autor defende que, o jogo na realidade B é de


perde-perde, o que pode ser compensado de futuro. O pai alijado,
provisória e momentaneamente, do convívio físico com os filhos, pode,
nas férias, ficar mais tempo com eles como forma de “matar as saudades”
e recuperar parte do tempo perdido (SIMÃO, 2020).

Pode-se, ainda, seguir a sugestão de João Aguirre, nesse


momento de suspensão de aulas presenciais e de ensino
à distância. Permitir às crianças que residam 15 dias
com o pai e 15 dias com a mãe, já que boa parte das
pessoas se encontra em home office. Isso tem duas
vantagens: a criança convive com pai e mãe e não fica
afastada de nenhum deles por período longo, o
deslocamento se dará duas vezes por mês apenas (o que
o confinamento permite), e ajuda pai e mãe a produzirem
em home office, pois terão 15 dias do mês sem a
preocupação com os cuidados que os filhos exigem.
(SIMÃO, 2020, grifo nosso).

Diante dessa conjuntura fática, José Fernando Simão não crê


apenas na existência dessas duas questões. Para o professor, a solução
depende do bom-senso e do caso concreto, trazendo infinitos
questionamentos. E em verdade, não há como opor-se a tal
entendimento. Afinal, a aplicação da guarda compartilhada, desde antes
da crise pandêmica, nunca foi absoluta ou imutável (SIMÃO, 2020).

96
Diante deste cenário mundial, que conturbou substancialmente
a vida das famílias brasileira, o ordenamento jurídico está apenas
atentando-se às necessidades que cada demanda retém. Veja-se o que
compreende Alves (2020, grifo nosso):

Diante da pandemia do Covid-19, a justiça brasileira tem


prestado jurisdição otimizante, extraindo de sua
profícua atividade o melhor rendimento possível, útil e
imediato à efetividade dos direitos de proteção da família.
Decisões recentes quebram paradigmas, excecionam
regras burocratizantes do processo, interpretam o
direito desafiado pela atual realidade vivenciada. Luiz
Guilherme Marinoni tem afirmado, em lições
permanentes, que o juiz deve “extrair da Constituição os
elementos que lhe permitem decidir de modo a fazer
valer o conteúdo do direito do seu tempo.

Paradigmas vêm sendo quebrados, é fato, mas a conjuntura não


exigiria menos. A quebra de paradigmas encontra-se, por exemplo, na
mutação da guarda compartilhada para guarda unilateral, sem razões
justas à perda do poder familiar, apenas em virtude da pandemia.
Entretanto, Alves (2020), ao afirmar que o juiz deve extrair da
Constituição os elementos que lhe permitem decidir, arremata a
constância dos mandamentos axiológicos prezados. Ou seja, apesar dos
paradigmas rompidos, o direito do menor sempre estará resguardado nas
proporções dos seus melhores interesses, a fim de fazer cumprir-se as
proteções garantidas pela carta magna.
Insta pontuar que o Congresso Nacional Também não esteve
alheio a esta discussão. A Senadora pelo Mato Grosso do Sul, Soraya
Thronicke, apresentou o Projeto de Lei nº 1.627 que tratou do regime
jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito de
Família e das Sucessões no período da pandemia causada pelo coronavírus.
Os artigos 6° e 7° do referido projeto de lei traziam a seguinte previsão:

97
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Art. 6º O regime de convivência de crianças e adolescentes,


qualquer que seja a modalidade de guarda, poderá ser
suspenso temporariamente, de comum acordo entre os pais
ou a critério do Juiz, para que sejam cumpridas as
determinações emanadas das autoridades públicas
impositivas de isolamento social ou quarentena.
§ 1º Na hipótese de que trata o caput, será assegurada a
convivência do genitor não guardião ou não residente por
meios virtuais.
§ 2º Durante o período de suspensão das atividades
escolares, poderá ser aplicado o mesmo regime previsto
paras as férias.
Art. 7º O direito de visita dos avós idosos ou em condição
de vulnerabilidade, ou demais parentes nas mesmas
condições, será exercido, durante o período da pandemia,
exclusivamente por meios virtuais (BRASIL. 2020).

Conforme pôde ser observado, o Projeto de Lei mencionado


visava dar um arrimo legal ao juiz na hora de decidir pela suspensão das
visitas, arbitrando que pode o magistrado, analisando a situação do
município e do Estado, conceder ou não a suspensão das visitas,
entretanto, o projeto encontra-se arquivado em virtude da desistência
autoral. Tratou-se, portanto, de uma previsão que tem como fonte o
princípio da proteção integral e, por esta razão, ainda que o Projeto não
tenha sido aprovado, poderá ser aplicado tendo em vista os mandamentos
axiológicos supracitados.
Outro ponto que reteu atenção no PL 1627 ocorreu em virtude
da tentativa de se estabelecer, durante o período de pandemia, que o
genitor que não reside com a prole e os demais parentes, possuísse o
direito de manter a convivência com os filhos menores por via de
instrumentos digitais. Tratando-se, portanto, de uma alternativa
minimamente viável para que a prole não perdesse o contato com seus
parentes mais próximos.
Face ao exposto, conclui-se que a posição dos tribunais
nacionais, doutrina e órgãos legislativos, apesar de incertas, seguem o
mesmo norte: a imperiosa necessidade de análise do caso concreto para

98
que se chegue a uma decisão justa, que promova o melhor interesse do
menor, utilizando os recursos proporcionados pelos meios digitais, para
que se minimize os drásticos efeitos do vírus na vida em sociedade e
assegure a proteção e particularidades de cada família, devendo haver
uma indiscutível flexibilização das decisões nos próximos dias, face ao
avanço e eficácia das vacinações.

REFERÊNCIAS

ALVES, Jones Figueirêdo. Em proteção da família, a dispensa das


regras ordinárias. Conjur, 31 maio 2020. Disponível em: http://www.ib
dfam.org.br/artigos/1464/Em+prote%C3%A7%C3%A3o+da+fam%C3
%ADlia%2C+a+dispensa+das+regras+ordin%C3%A1rias. Acesso em:
25 jul. 2021.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, [2021].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Con
stituicao.html. Acesso em: 24 jul. 2021.

________. Decreto Legislativo nº 6, de 2020. Reconhece, para os fins do


art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência
do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente
da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março
de 2020. Brasília, DF: Presidência da República, [2021].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6- 20
20.htm#:~:text=DECRETO%20LEGISLATIVO%20N%C2%BA%206
%2C%20DE,Art. Acesso em: 25 jul. 2021.

________. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e


do Adolescente. Brasília, DF: Presidência da República,

99
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

[2020]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L80


69Compilado.htm. Acesso em: 25 jul. 2020.

________. Lei nº 10.406, 10 de janeiro de 2002. Código Civil


Brasileiro. Brasília, DF: Presidência da República, [2021].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.
htm. Acesso em: 25 jul. 2021.

________. Lei nº 11.698, de 13 de junho de 2008. Altera os arts. 1.583 e


1.584 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, para
instituir e disciplinar a guarda compartilhada. Brasília, DF: Presidência
da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_0
3/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11698.htm. Acesso em: 25 jul. 2020.

________. Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014. Altera os arts.


1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002
(Código Civil), para estabelecer o significado da expressão “guarda
compartilhada” e dispor sobre sua aplicação. Brasília, DF: Presidência
da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil
_03/_Ato2011- 2014/2014/Lei/L13058.htm. Acesso em: 24 jul. 2020.

________. Senado Federal. Projeto de Lei n° 1627, de 2020. Dispõe


sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas
de Direito de Família e das Sucessões no período da pandemia causada
pelo coronavírus Sars-CoV-2 (CoVid-19). Retirada pelo autor em 05 de
maio de 2020. Brasília, DF: Senado Federal, [2020].

DIAS, Maria Berenice. A família homoafetiva e seus direitos. 2010.


Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2
_639)45a_familia_homoafetiva_e_seus_direitos.pdf. Acesso em: 15
jul. 2020.

100
________. Guarda compartilhada, uma novidade bem-vinda! 2010.
Disponível em: https://mariaberenice.com.br/artigos.php?cat=576&sub
cat=&termobusca=&ordem=&pagin a=4#anc. Acesso em: 15 jul. 2020.

FACHIN, Luiz Edson. A família fora de lugar. Gazeta do Povo. 2009.


Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida- e- cidadania/a- fam
ilia-fora-de-lugar-bfcl55usbob11k6sfboncg1fy/. Acesso em: 15 jul. 2020.

FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito


Civil. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2019.

GANGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Pablo. Novo Curso


de Direito Civil – Direito de Família. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

GOIÁS (Estado). Tribunal de Justiça do Estado Ação de divórcio


litigioso c/c Guarda, n° 5187940.14.2018.8.09.09.0051. Relator:
Wilson Ferreira Ribeiro, 16 de abril de 2020.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de


Família. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda Compartilhada: um novo modelo de


responsabilidade parental. 8. ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 2016.

LÔBO, Paulo. Direito Civil – Famílias. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

MINAS GERAIS (Estado). Tribunal de Justiça do Estado. Ação de


modificação de guarda. Relatora: Aline Cristina Modesto da Silva, 1°
de maio de 2020.

OLIVEIRA, Guilherme de. Temas de Direito da família. 2. ed.


Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

101
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

SIMÃO, José Fernando. Direito de família em tempos de pandemia: hora


de escolhas trágicas. Uma reflexão de 7 de abril de 2020. IBDFAM, 7
abr. 2020. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/1405/Direi
to+de+fam%C3%ADlia+em+tempos+de+pandemia%3A+hora+de+esc
olhas+tr%C3%A1gicas.+Uma+reflex%C3%A3o+de+7+de+abril+de+2
020. Acesso em: 1º jun. 2020.

SINESP. Aconteceu no SINESP. 09 fev. 2021. Notícias. Disponível em:


https://www.sinesp.org.br/noticias/aconteceu-no-sinesp/11554-medico-
alerta-para-novas-variantes-que-atingem-mais-as-criancas. Acesso em:
10 fev. 2021.

102
ATUALIDADES EM MATÉRIA DE ALIMENTOS

André Franco Ribeiro Dantas*


Dandara de Azevedo Martins*

Não de hoje tem-se a clara percepção de que o Direito de


Família é aquele ramo do Direito Civil que mais se aproxima e tem
relação direta com a própria vida cotidiana. Todos os momentos da
existência humana, desde a concepção, nascimento, desenvolvimento e
até mesmo após o último suspiro do corpo físico, lá está a tutela jurídica
da família em ação.
A dinâmica das relações familiares, por sua vez, leva o Direito
Familista a um constante aperfeiçoamento e adequação, de sorte a se
ajustar ao tempo e espaço dessas modificações, atendendo, da maneira
mais consentânea possível, às diversas formações de família.
Esse é um cenário cuja percepção geral sempre foi aquela na qual
as mudanças ocorriam numa velocidade bastante considerável, bastando ter
em mente aquelas consolidadas desde a promulgação da Constituição
Federal de 1988, até os dias atuais, pouco mais de 30 (trinta) anos depois.
Da tutela das famílias homoafetivas, passando pela facilitação e
desburocratização do Divórcio, menor interferência estatal nos assuntos do
núcleo familiar, reconhecimento do vínculo socioafetivo e da
multiparentalidade, rechace às formas de violência doméstica e familiar
contra a mulher, inclusive aquela de ordem patrimonial, até a flexibilização
de requisitos formais relativos à adoção, são exemplos de mudanças que
ressignificaram, em curto espaço de tempo, o Direito de Família.

*
Advogado. Especialista em Direito Civil. Professor de Direito de Família e Sucessões.
Membro da Comissão Nacional de Direito de Família e Sucessões do Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil.
*
Advogada. Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Universidade
Anhanguera.

103
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Sobreveio, então, as obrigatórias mudanças sociais decorrentes


da pandemia do novo coronavírus, dentre as quais medidas
governamentais de isolamento e distanciamento social, levando a um
sem número de novas e compulsórias práticas, atingindo tanto a
economia quanto à dinâmica das famílias.
Em razão das medidas de restrição, diversos segmentos da
economia foram forçados a interromper suas atividades ou reduzi-las
drasticamente, com consequente redução da capacidade contributiva
daqueles responsáveis pelo amparo material de outros seres humanos.
Por sua vez, os lares se viram diante de uma nova realidade,
cuja convivência diuturna acabou despertando cenários que já se
desenhavam antes mesmo da pandemia, levando, infelizmente, a um
aumento no número de rupturas de relacionamentos, sendo algo
percebido, inclusive, mundialmente.
Noutra senda, integrantes dos grupos que estão propensos às
formas mais severas da doença e que vivenciam relações jurídicas
familiares, sobretudo no campo da convivência paterno/materno-filial,
se viram diante de maiores restrições ao exercício das obrigações
correspondentes, o que igualmente vem gerando debates judiciais que
descabam no tema doravante abordado.
Esse novo cenário fez com que a sociedade se deparasse com
um “novo Direito de Família”, cujas repercussões, naturalmente, se
deram em toda a sua extensão. Entretanto, o presente artigo tem por
objetivo tratar de aspectos exclusivamente relacionados ao tema
“Alimentos”, trazendo à lume algumas inquietações importantes
decorrentes do atual retrato social.
O estudo, qualitativo e de raciocínio indutivo1, sem pretensão
alguma de esgotar os temas, lançará luz sobre a revisão do direito e da
obrigação alimentar e a nova demanda de suspensão parcial dos

1
MARCONI, Mariana de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de
metodologia científica. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

104
alimentos; os alimentos compensatórios e ressarcitórios; e, por fim, o
cumprimento dos alimentos, a prisão civil e a cumulação de técnicas, a
tudo sendo somado um atualizado aparato doutrinário, normativo e
jurisprudencial, fomentando e contribuindo para o debate.
Como dito, ante a necessária aplicação das medidas de isolamento
social, inúmeros setores da economia têm sofrido severas e negativas
consequências financeiras, de cujos resultados experimentados até hoje tem
se destacado o comprometimento da renda de milhares de profissionais.
Muito embora trate-se de um cenário temporário, vez que o
distanciamento social terá termo num futuro próximo, ao que se espera,
notadamente quanto aos alimentos, muito provavelmente, permanecerão
sendo afetados por período mais delongado diante do arrefecimento da
economia, que vem caminhando a passos curtos e lentos até sua
recuperação plena.
Diante da necessidade da sociedade se amoldar à nova e
dificultosa realidade, cujos reflexos se prolongarão a tempo incerto, seria
o momento ideal para romper com a cultura do litígio, utilizando-se dos
métodos consensuais de resolução de conflitos. Inclusive muito se
discute sobre a possibilidade dos acordos de revisão poderem ser feitos
sem intervenção judicial.
A esse respeito, o Código de Processo Civil, em seu artigo 9112,
não deixa mais dúvidas sobre a possibilidade e viabilidade, à medida que
dá força executiva lato sensu ao referido pacto, desde que devidamente
visado pelas partes, seus Advogados, Defensores ou representante do
Ministério Público.
Contudo, apesar dos avanços experimentados ao longo dos
últimos anos nesse sentido, a cultura do litígio ainda é predominante em

2
Art. 911. Na execução fundada em título executivo extrajudicial que contenha
obrigação alimentar, o juiz mandará citar o executado para, em 3 (três) dias, efetuar o
pagamento das parcelas anteriores ao início da execução e das que se vencerem no seu
curso, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de fazê-lo.

105
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

nosso País, o que explica, mas não justifica, a enxurrada de ações


alimentares no período da pandemia.
Buscando fomentar um novo modelo mental nas partes alusivo
à autocomposição, engajando igualmente todos aqueles de diretamente
circundam o processo, a Lei de Ritos foi enfática ao pontuar em seu
artigo 6943, que todos os esforços devem ser realizados “para a solução
consensual da controvérsia”. A esse respeito, vale o abalizado
comentário de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Neri:

No que diz respeito à solução consensual da controvérsia, o


Estatuto das Famílias faz ligeira distinção em seu art. 146 que
merece ser comentada: a conciliação, isto é, a procura de um
acordo entre as partes, deve sempre ser buscada, e deve ser
sempre sugerida a prática da mediação, a reconexão e a
pacificação da relação existente entre as pessoas envolvidas.
Esse dispositivo deixa entrever que as situações de cunho
patrimonial e/ou obrigacional podem e devem ser submetidas à
tentativa de conciliação, enquanto aquelas de cunho emocional,
ligados à relação familiar existente entre as partes, devem ser
objeto da mediação, que pode ser tentada quando o aspecto
emocional envolvido não permitir a solução da controvérsia4.

Pois bem. O novo cenário, aos pagadores e beneficiários de


pensão alimentícia, trouxe consigo questionamentos e discussões acerca
do destino prático da obrigação, lançando ao judiciário o desafio de
adequar os alimentos à realidade, diametralmente oposta, em que
comumente se encontram os litigantes.
Isto porque, na esmagadora maioria dos dissensos revisionais
de alimentos agora levados à apreciação judicial tem-se, de um lado, um
alimentante com sua capacidade contributiva prejudicada face o atual

3
Art. 694. Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução
consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras
áreas de conhecimento para a mediação e conciliação.
4
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil
Comentado. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2019.

106
panorama de crise financeira vivenciada mundialmente e, de outro, um
alimentando com suas necessidades majoradas, especialmente com
relação àquelas diretamente atreladas, naturalmente, à permanência deste
no lar em razão das medidas de restrição.
O notório embate de direitos entre os litigantes, nestes casos,
somente é possível de solução após a reavaliação pormenorizada – e com
notas extras de sensibilidade – do trinômio necessidade-possibilidade-
razoabilidade, que estriba toda e qualquer obrigação alimentar, sempre
adotando como parâmetro o impacto real e comprovado decorrente dos
efeitos da pandemia, sobretudo quanto à demonstração de modificação
efetiva da capacidade do alimentante de gerar renda, em consonância
com o que já preconizam os artigos 1.699, do Código Civil e 15, da Lei
Federal nº 5.478/68 (Lei de Alimentos)5.
Há dizer que se deve também ponderar qual o favorecido da
prestação alimentar, isto porque, normalmente, nas demandas revisionais
para redução dos alimentos devidos à prole, nem mesmo o desemprego
comprovado do alimentante tem o condão de, por si só, reduzi-los, face
a obrigação incondicional de sustento dos filhos.
Nesse ínterim, vale destacar o entendimento firmado pelo
Superior Tribunal de Justiça no sentido de que “a ocorrência de
desemprego do alimentante não é motivo suficiente, por si, para justificar
o inadimplemento da obrigação alimentar, devendo tal circunstância ser
examinada em ação revisional ou exoneratória de alimentos”6.

5
Art. 1.699. Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de
quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz,
conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo.
Art. 15. A decisão judicial sobre alimentos não transita em julgado e pode a qualquer
tempo ser revista, em face da modificação da situação financeira dos interessados.
6
PROCESSUAL CIVIL. HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PRISÃO
CIVIL. WRIT UTILIZADO COMO SUCEDÂNEO DE RECURSO CABÍVEL.
IMPOSSIBILIDADE. AFERIÇÃO DA POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA
ORDEM DE OFÍCIO. INSTRUÇÃO DEFICIENTE DO WRIT E AUSÊNCIA DE
PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. IMPOSSIBILIDADE DE AFERIÇÃO DA
ILEGALIDADE APONTADA. CONSTATAÇÃO DA CAPACIDADE FINANCEIRA

107
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

De tudo que restou dito, em havendo necessidade de entregar


o conflito alimentar às mãos do judiciário, especificamente nesse
período de pandemia, toda e qualquer reformulação da obrigação
alimentícia, seja através de acordo ou decisão judicial, deve balizar-se
pelo suprimento das necessidades básicas do alimentando pelo meio
que se mostre mais razoável ao responsável pela obrigação, a fim de
evitar o inadimplemento futuro.
Nesse sentido, diante do cenário excepcional, ainda que
implementadas em caráter provisório e temporário, algumas
alternativas podem e devem ter atenção especial quando da resolução
do conflito neste período, são elas a viabilidade da prestação in natura
e o aproveitamento de reservas financeiras do alimentante para o
cumprimento da obrigação, para somente em último caso exigir de
outros parentes.
Noutro quadrante, diante de um contexto histórico inimaginável
até os primeiros meses do ano de 2020, tornou-se imperativo raciocinar o
Direito de Família sob novas perspectivas, dando ensejo à uma necessária
e responsável pró-atividade interpretativa do sistema existente.

DO ALIMENTANTE. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ESTREITA DO WRIT.


PRECEDENTES. DESEMPREGO, POR SI, NÃO É SUFICIENTES PARA
JUSTIFICAR O INADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR.
PRECEDENTES. INADIMPLEMENTO DAS TRÊS PARCELAS ANTERIORES AO
AJUIZAMENTO DA EXECUÇÃO E DAS QUE VENCERAM NO CURSO DA AÇÃO.
INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 309 DO STJ. FATOS INDICATIVOS DA DESÍDIA E
DA OMISSÃO EM RELAÇÃO AO BEM ESTAR DO ALIMENTADO. HABEAS
CORPUS DENEGADO. [...] O STJ já consolidou o entendimento de que a ocorrência de
desemprego do alimentante não é motivo suficiente, por si, para justificar o inadimplemento
da obrigação alimentar, devendo tal circunstância ser examinada em ação revisional ou
exoneratória de alimentos. 5. O decreto de prisão proveniente da execução de alimentos na
qual se visa o recebimento integral das três parcelas anteriores ao ajuizamento da ação e das
que vencerem no seu curso não será ela ilegal. Inteligência da Súmula nº 309 do STJ e
precedentes. 6. A existência de fatos indicativos da omissão e da desídia do paciente em
relação a obrigação alimentar do filho, da qual tinha plena ciência antes de sumir e deixá-lo
desamparado por 5 (cinco) anos, não pode ser chancelada pelo Poder Judiciário. 7. Habeas
corpus denegado. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). HC 465.321/SP.
Relator: Min. Moura Ribeiro, 9 de outubro de 2018, DJe, 18 out. 2018).

108
O professor José Fernando Simão, em artigo veiculado no sítio
eletrônico do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), vai
abordar essa nova realidade de forma brilhante:

O dia 13 de março de 2020 foi, para o Brasil, o último dia


de uma antiga realidade que vou chamar de Realidade A.
A Realidade A era pautada por um sonho, vivíamos um
sonho de abundância e felicidade perpétuas em que o
adjetivo INCURÁVEL tinha sido riscado do Dicionário.

Na realidade A, o direito de família era o da filosofia dos


estetas: belo e fantasioso. Cheio de glamour e de premissas
frágeis. Na época de abundância, em que o homo sapiens
sapiens se sente eterno, há muito espaço para a filosofia e
pela busca da felicidade em um mundo hedonista.

Segue afirmando:

Em 13 de março vivemos o último dia daquela Belle


Époque. A realidade A acabou e começou a B, que é
temporária, fugaz, mas persiste. O homo sapiens sapiens
percebe que, antes de ser feliz, ele precisa sobreviver e a
pandemia mostra que a simples sobrevivência deixa de ser
óbvia. O ser humano se vê, repentinamente, em contato
com sua animalidade por conta da inevitabilidade da
disseminação de uma doença mortalmente perigosa7.

Fruto dessa percepção foi o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº


2947/2020, de autoria da Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS),
mentalmente gestado por uma legião de estudiosos do Direito de Família
e das Sucessões de diversas Regiões do País.

7
SIMÃO, José Fernando. Direito de família em tempos de pandemia: hora de escolhas
trágicas. Uma reflexão de 7 de abril de 2020. IBDFAM, 7 abr. 2020.
Disponível em: https://www.ibdfam.org.br/artigos/1405/Direito+de+fam%C3%ADlia
+em+tempos+de+pandemia%3A+hora+de+escolhas+trágicas.+Uma+reflexão+de+7+
de+abril+de+2020#_ftn9. Acesso em: 23 ago. 2020.

109
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Referido PLS, intitulado de “Regime Jurídico Emergencial e


Transitório das Relações Jurídicas de Direito de Família e das Sucessões
no Período da Pandemia do Coronavírus SARS-CoV2 (Covid-19).”, traz
em seu projetado artigo 7º, o seguinte:

Art. 7º Nas ações de revisão de alimentos que tenham


como causa de pedir redução da capacidade econômico-
financeira do alimentante decorrente da pandemia, poderá
o juiz suspender parcialmente o pagamento dos alimentos,
reduzindo seu valor por período determinado,
estabelecendo um cronograma para o pagamento das
diferenças, conforme as circunstâncias do caso concreto.
Parágrafo único. Findo o prazo determinado no caput, a
pensão alimentícia será automaticamente restabelecida tal
como fixada previamente à ação de revisão.

Muito embora cuide o texto de ações revisionais de alimentos,


fica claro que aí a intenção legislativa – com considerável acerto – é a da
criação, através desse sistema transitório, de uma demanda para
suspensão parcial da obrigação alimentar, o que combina perfeitamente
com tudo que restou dito nas linhas introdutórias.
Além disso, equaliza os interesses dos envolvidos, dando
segurança, sobretudo, para aquele que recebe a prestação, pois diante de
um contexto desfavorável que impõe a modificação dos alimentos, sabe,
ao menos, que num termo certo, voltará à percepção do valor integral,
afinal a redução se dá, no caso, “por período determinado”, sendo
“automaticamente restabelecida”, frise-se.
Ademais, soma em favor do beneficiário o fato de que as
diferenças mensais entre o valor originário da obrigação e aquele doravante
reduzido, deverão ser oportunamente restituídas ao alimentando, já que é
exigência legal a implementação de um cronograma para seu pagamento.
Assim, ainda que o PLS permaneça estacionado nos
escaninhos do Senado Federal, é o tempo de aproveitar a sugestão

110
legislativa e passar a adotá-la de lege ferenda, com a salvaguarda das
chamadas “realidades B e C”.
Não apenas as buscas por maiores informações a respeito8, mas o
número de Divórcios em si aumentou durante a pandemia. Em razão das
inúmeras alterações na dinâmica familiar, aqueles núcleos onde o clima de
beligerância já era marca frequente acabaram por não resistir, tendo
sucumbido às agruras decorrentes do isolamento e distanciamento social9.
E esse contexto traz consigo a questão alusiva à correta e pronta
distribuição patrimonial, a conhecida partilha de bens, muitas vezes
efetivada somente após anos de tormentosa tramitação processual,
deixando em prejuízo, até aí, aquele que não ficou na posse e
administração de bens em quantidade equitativa e razoável ao outro,
levando-o, por vezes, a uma composição injusta e indigna.
Quando da edição da Lei de Alimentos (Lei 5.478/68), época em
que o regime legal ou supletivo do casamento era o da comunhão universal
de bens, o p. único do seu artigo 4º, foi pioneiro a prever a prestação aqui
debatida, distinguindo-a dos alimentos legais ou legítimos, a saber:

Se se tratar de alimentos provisórios pedidos pelo cônjuge,


casado pelo regime da comunhão universal de bens, o juiz
determinará igualmente que seja entregue ao credor,
mensalmente, parte da renda líquida dos bens comuns,
administrados pelo devedor.

8
SIMONINI, Andressa; ANJOS, Jéssica; DETLINGER, Jennifer; PASCHOAL,
Mariana. Pandemia do divórcio: a procura por advogados aumentou 177% em escritório
brasileiro durante a quarentena. Pais e Filhos, 1º jun. 2020. Disponível em:
https://paisefilhos.uol.com.br/familia/pandemia-do-divorcio-a-procura-por-
advogados-aumentou-177-no-brasil-durante-a-quarentena/. Acesso em: 23 ago. 2020.
9
SANTIAGO, Tatiana; REIS, Vivian. SP tem aumento de divórcios e queda no número
de casamentos em junho. G1, São Paulo, 23 jul. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/23/sp-tem-aumento-de-divorcios-
em-junho-pela-1a-vez-desde-2017-casamentos-cairam-50percent.ghtml. Acesso em:
23 ago. 2020.

111
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Sem descer ao debate acerca dos regimes de bens, fica clara que
a finalidade teleológica da norma é a de que os frutos dos bens comuns,
administrados apenas por um dos consortes, possam beneficiar o outro
de forma igualitária, enquanto pendente a partilha, através da “renda
líquida”, que equivaleria aos atuais “alimentos compensatórios”,
também conhecidos como “ressarcitórios”.
Rodrigo da Cunha Pereira (2018), Presidente Nacional do
IBDFAM, assim obtempera sobre o tema “alimentos ressarcitórios”:

É a parcela devida por um dos cônjuges ou conviventes ao


outro, no bojo da ação de partilha, como forma de
compensar as perdas econômico-financeiras sofridas pelo
fato de que aquele se encontra na propriedade e
administração isolada dos bens comuns, auferindo frutos
sem nada repassar ao outro. Durante o processo de
divórcio ou dissolução de união estável, antes de realizada
a partilha, o cônjuge ou companheiro que se encontra na
administração dos bens comuns, deve pagar ao outro o
correspondente à sua meação. Ou seja, os alimentos
ressarcitório tem fundamento no direito à meação,
natureza de antecipação da meação, não se tratando de um
instituto com intuito alimentar assistencial 10.

A respeito dos “alimentos compensatórios”, por sua vez, aduz o


renomado doutrinador11:

A pensão alimentícia compensatória, ou alimentos


compensatórios, é uma das formas de compensar o
desequilíbrio econômico-financeiro decorrente do
divórcio ou da dissolução da união estável,
independentemente do regime de bens entre eles. Tal
forma de pensionamento não está atrelada,
obrigatoriamente, à clássica equação aritmética
necessidade/possibilidade. O quantum alimentar, o
fundamento e objetivo da pensão compensatória é

10
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões:
Ilustrado. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
11
Ibid., 2018.

112
proporcionar e equiparar o padrão socioeconômico a
ambos os divorciados ou ex-companheiros. O caso
clássico a justificar este tipo de pensionamento é o do
cônjuge/companheiro, historicamente a mulher, parte
economicamente mais fraca, que, por acordo ainda que
tácito, passou sua vida dando o suporte doméstico para a
educação e criação dos filhos, com isso possibilitando que
o outro cônjuge se desenvolvesse profissionalmente. É
também uma forma de se atribuir um conteúdo econômico
ao desvalorizado trabalho doméstico. [...]
A pensão alimentícia compensatória se difere da pensão
alimentícia comum, em razão da sua natureza reparatória
e compensatória de diferenças que vão além da natureza
assistencial da pensão alimentícia comum. O seu
fundamento e a sua natureza é a de reparar o desequilíbrio
econômico entre os ex-cônjuges, ou ex-companheiros,
para que se dissolvam as desvantagens e desigualdades
socioeconômicas instaladas em razão do fim da
conjugalidade. A pensão pode ter dupla natureza jurídica,
que demonstra tanto a necessidade alimentar tradicional
quanto na indenizatória no sentido reparatório das
desigualdades dos padrões de vida dos ex-cônjuges.

Em reforço, vale citar a doutrina de Cristiano Chaves e Nelson


Rosenvald (2017):

Embora reconhecendo que os alimentos fixados entre os


cônjuges, após a dissolução nupcial, tendem,
fundamentalmente, à manutenção do alimentando, com
fundamento no comando constitucional da igualdade entre
o homem e a mulher, autorizadas vozes passaram a
propagar a possibilidade de fixação de alimentos
compensatórios, com o fito de equilibrar os perversos
efeitos decorrentes da ruptura da conjugalidade,
diminuindo as perdas do padrão de vida social e
econômico de um dos consortes.
Defende-se, então, a possibilidade de fixação do
pensionamento em perspectiva compensatória sempre que
a dissolução do casamento atinge, sobremaneira, o padrão
social e econômico de um dos cônjuges sem afetar o outro.
Especialmente, naquelas relações afetivas que se
prolongaram por muitos anos, com uma história de

113
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

cooperação recíproca. Nessas circunstâncias, advindo o


divórcio, após longos anos de relacionamento, o
patrimônio comum será partilhado, a depender do regime
de bens, e o cônjuge que precisar poderá fazer jus aos
alimentos para a sua subsistência. Todavia, considerando
que um dos cônjuges tem um rendimento mensal mínimo,
absolutamente discrepante do padrão que mantinha
anteriormente, pode se justificar a fixação dos alimentos
em valor compensatório12.
[...] Para nós, o fundamento que pode servir para a
admissibilidade excepcional dos alimentos compensatórios é
a boa-fé objetiva, quando o comportamento do outro, durante
a convivência, gerou uma justa expectativa de manutenção
mesmo no caso de uma dissolução. Dessa maneira, para evitar
a frustração da justa expectativa despertada pelo
comportamento recíproco, seria possível defender os
alimentos em perspectiva compensatória, fixados em valor
proporcional ao padrão de vida mantido anteriormente.
E mais: a prestação alimentícia compensatória tem a
função basilar de equiparar a disparidade gerada no status
econômico e social do ex-cônjuge pelo divórcio. Se o
desequilíbrio não foi ocasionado pela dissolução conjugal,
não há que se falar em alimentos compensatórios. É o caso
da diminuição de padrão social gerada em ambos os
cônjuges por conta da necessidade de se manter com novas
despesas dali por diante.

E muitos casos da prática quotidiana acabam reclamando


parcela tanto compensatória quanto ressarcitória, à medida que a
administração exclusiva por parte de um cônjuge/companheiro gera ao
outro não apenas o desequilíbrio econômico-financeiro e decréscimo no
padrão de vida, como também o direito à distribuição imediata dos frutos
dos bens comuns pendentes de partilha, não sendo estranho à análise
jurisprudencial13.

12
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil.
Famílias. 9. ed. Salvador: JusPodivm. 2017. v. 6, p. 734-736.
13
PROCESSUAL CIVIL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. SEPARAÇÃO JUDICIAL.
PENSÃO ALIMENTÍCIA. BINÔMIO NECESSIDADE/POSSIBILIDADE. ART. 1.694
DO CC/2002. TERMO FINAL. ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS (PRESTAÇÃO

114
Em matéria de alimentos, um dos principais pontos de
discussão e, dentre eles, o mais delicado, tem sido o rumo das ações de
cobrança de alimentos que, como se sabe, decorre do descumprimento
da obrigação alimentar.
De início, importante salientar que o Código de Processo Civil
de 2015, diferentemente do regramento processual anterior (estampado
em seus conhecidos artigos 732 e 733), não trouxe ritos diversos para o
cumprimento dos alimentos atuais e pretéritos, mas apenas técnicas de
cobrança, as quais envolvem desde as medidas de expropriação
patrimonial até a coerção pessoal, sendo certo raciocinar que quem pode
“o mais”, poderia “o menos”.

COMPENSATÓRIA). POSSIBILIDADE. EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO


DOS CÔNJUGES. JULGAMENTO EXTRA PETITA NÃO CONFIGURADO.
VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC NÃO DEMONSTRADA. (...) 5. Os chamados
alimentos compensatórios, ou prestação compensatória, não têm por finalidade suprir as
necessidades de subsistência do credor, tal como ocorre com a pensão alimentícia regulada
pelo art. 1.694 do CC/2002, senão corrigir ou atenuar grave desequilíbrio econômico-
financeiro ou abrupta alteração do padrão de vida do cônjuge desprovido de bens e de meação.
6. Os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem, em regra, ser fixados com termo certo,
assegurando-se ao alimentando tempo hábil para sua inserção, recolocação ou progressão no
mercado de trabalho, que lhe possibilite manter, pelas próprias forças, o status social similar
ao período do relacionamento. 7. O Tribunal estadual, com fundamento em ampla cognição
fático-probatória, assentou que a recorrida, nada obstante ser pessoa jovem e com instrução de
nível superior, não possui plenas condições de imediata inserção no mercado de trabalho, além
de o rompimento do vínculo conjugal ter-lhe ocasionado nítido desequilíbrio econômico-
financeiro. 8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido
para fixar o termo final da obrigação alimentar. (STJ – Resp: 1290313 AL 2011/0236970-2,
Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 12/11/2013, T4 –
QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe, 7 nov. 2014). No mesmo sentido: Agravo de
Instrumento, Nº 70082790585, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em: 30-10-2019; TJ-RJ - AI:
00104305520138190000 RJ 0010430-55.2013.8.19.0000, Relator: DES. FLAVIA
ROMANO DE REZENDE, Data de Julgamento: 31/07/2013, VIGÉSIMA CAMARA
CIVEL, Data de Publicação: 19/11/2013; TJ-PE - AI: 3930738 PE, Relator: Roberto da Silva
Maia, Data de Julgamento: 11/05/2016, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 23/05/2016; TJ-
MG - AI: 10382140004526001 MG, Relator: Afrânio Vilela, Data de Julgamento:
03/06/2014, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 11/06/2014).

115
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Quanto à prisão civil do devedor de alimentos, a regra prevista


no § 4º do artigo 528, da Lei de Ritos14 é de que o cumprimento da prisão
deverá ser em regime fechado, contudo, decorrência das medidas de
contenção à disseminação do coronavírus, fora promovida a
flexibilização desta regra, admitindo-se a conversão do regime para
domiciliar, conforme texto expresso da Recomendação nº 62, do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ)15_16.
É cediço, por sua vez, que a constrição de liberdade é de ordem
coercitiva, visando impingir ao devedor de alimentar pagar aquele débito
mais atual, por que necessário à subsistência imediata do indivíduo.
Contudo, a partir do momento que se admite a prisão domiciliar
como uma possibilidade, ainda que momentânea, a medida perde sua
finalidade precípua, que é o poder de coerção fielmente garantido pela
prisão em regime fechado. Ademais, guardadas as devidas proporções,
toda a população está submetida (talvez hoje em menor dimensão) ao
referido confinamento, em razão da COVID-19.
Some-se à ineficácia natural do regime domiciliar o fato de que,
caso mantida a prisão nestes termos, após o período de isolamento social,
não poderia o juiz restabelecer o decreto prisional, desta vez em regime
fechado, por já ter o executado cumprido o tempo de “encarceramento”,
de modo a favorecer e até estimular os devedores contumazes no período
mais crítico aos alimentandos.

14
Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação
alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do
exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o
débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. (...)
§ 4º A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos
presos comuns.
15
[...] Art. 6º Recomendar aos magistrados com competência cível que considerem a
colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução
dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus.
16
A sua vigência foi prorrogada até 31 de dezembro de 2021, através da Recomendação
nº 91, de 15 de março de 2021.

116
Desse modo, de forma absolutamente excepcional em razão do
contexto instalado, seria possível a suspensão do cumprimento da pena
de prisão, já que o regime domiciliar não tem força coercitiva suficiente
para levar o devedor a adimplir o débito alimentar, sendo esse o
posicionamento adotado, ainda em meados de 2020, pelo c. Superior
Tribunal de Justiça (STJ)17.
Nesta senda, suspendendo a execução da prisão civil, é natural
que outras medidas para efetivação da decisão que fixou alimentos sejam
postas em cena, inclusive por força do que preconiza o artigo 139, IV,
do Código de Processo Civil18, pena do feito dormitar por tempo
incalculável, afinal quando será possível, novamente, o cumprimento da
prisão civil em regime fechado?
Vale aqui, em reforço, aduzir o que a Lei Federal
14.010/2020, conhecida como “Lei da Pandemia” ou “RJET”, em seu
artigo 15, dispôs:

17
HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. DEVEDOR DE ALIMENTOS. PEDIDO DE
SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA POR PRISÃO DOMICILIAR. SUPERAÇÃO DO
ÓBICE PREVISTO NA SÚMULA N.º 691/STF. RECOMENDAÇÃO N.º 62/2020 DO
CNJ. PANDEMIA DO CORONOVÍRUS (COVID 19). SITUAÇÃO EXCEPCIONAL A
AUTORIZAR A CONCESSÃO DA ORDEM. SUSPENSÃO DO CUMPRIMENTO DA
PRISÃO CIVIL. [...] 3. Considerando a gravidade do atual momento, em face da pandemia
provocada pelo coronavírus (Covid-19), a exigir medidas para contenção do contágio, foi
deferida parcialmente a liminar para assegurar ao paciente, o direito à prisão domiciliar, em
atenção à Recomendação CNJ nº 62/2020. 4. Esta Terceira Turma do STJ, porém,
recentemente, analisando pela primeira vez a questão em colegiado, concluiu que a melhor
alternativa, no momento, é apenas a suspensão da execução das prisões civis por dívidas
alimentares durante o período da pandemia, cujas condições serão estipuladas na origem
pelos juízos da execução da prisão civil, inclusive com relação à duração, levando em conta
as determinações do Governo Federal e dos Estados quanto à decretação do fim da
pandemia (HC n.º 574.495/SP). 5. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA. (STJ
– HC: 580261 MG 2020/0109941-8, Relator: Ministro PAULO DE TARSO
SANSEVERINO, Data de Julgamento: 02/06/2020, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de
Publicação: DJe, 8 jun. 2020).
18
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,
incumbindo-lhe: [...] IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas,
mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem
judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

117
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Art. 15. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por


dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da
Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de
Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob
a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das
respectivas obrigações.

O disposto enaltece a possibilidade de adoção de medidas de


expropriação patrimonial enquanto pendente o sobrestamento da ordem
de constrição de liberdade. Ora, se com a prisão domiciliar seria possível
a adoção de técnicas de coerção, imagine diante da suspensão da ordem.
Nessa linha, o c. STJ acabou por firmar entendimento
exatamente na linha de raciocínio desenvolvida pelos autores, ou seja,
sobrestamento facultativo da ordem de prisão em regime domiciliar e
adoção simultânea e excepcional de meios processuais para tentativa de
expropriação patrimonial do devedor, verbis:

(...) Dessa forma, considerando que os alimentos são


indispensáveis à subsistência do alimentando, possuindo
caráter imediato, deve-se permitir, ao menos enquanto
perdurar a suspensão de todas as ordens de prisão civil em
decorrência da pandemia da Covid-19, a adoção de atos de
constrição no patrimônio do devedor, sem que haja a
conversão do rito. 4. Recurso especial desprovido. (STJ -
REsp: 1914052 DF 2020/0346218-5, Relator: Ministro
MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento:
22/06/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação:
DJe 28 jun. 2021).

Não se olvide da necessidade de atenção para coibir eventual


uso indevido das determinações de sobrestamento de ordem prisional em
regime fechado, sobretudo por aqueles devedores contumazes,
oportunistas e imbuídos de má-fé19.

19
HABEAS CORPUS. PRISÃO POR DÍVIDA ALIMENTAR. RESOLUÇÃO Nº 62
DO CNJ. RELAXAMENTO DA SEGREGAÇÃO EM RAZÃO DA PANDEMIA
COVID-19. NÃO CABIMENTO. Caso em que o paciente pede revogação do decreto

118
Em conclusão, uma nova realidade se instalou e com isso
mudanças significativas da sociedade se implementaram. O Direito
de Família se repaginou e merece do operador um olhar mais
cuidadoso e peculiar.
A primeira e grande demanda decorrente do cenário intra-
pandemia foi aquela alusiva à necessária revisão das obrigações
alimentares, em que os responsáveis tiveram seu orçamento mitigado,
sem contudo esquecer o beneficiário.
Para esse contexto de alteração na capacidade contributiva e/ou
na necessidade alimentar, constata-se que as disposições do Código Civil
vigente são suficientes, demandando apenas maior sensibilidade dos
atores envolvidos, sobretudo na busca pela autocomposição extrajudicial
e se valendo dos mecanismos processuais previstos nesse quadrante
(artigo 911, CPC).
Pensando no bem-estar dos envolvidos e a significativa redução
de prejuízo ao alimentando, sugere-se, de lege ferenda, a efetivação da
demanda de suspensão provisória e parcial da obrigação alimentar com
pagamento posterior e parcelado das diferenças, previsto no PLS
2947/20, que segue sem tramitação efetiva no Senado Federal.
Noutro turno, como consequência de um aumento considerável
no número de Divórcios, a pandemia ressaltou preocupações de ordem
patrimonial e maior justeza e eficácia das partilhas de bens, trazendo ao
debate, com mais altivez, a aplicação prática dos alimentos

prisional por dívida alimentar, lançando mão, de forma absolutamente genérica, da


Resolução nº 62 do CNJ e das medidas de contenção para disseminação da COVID-19.
Inexistência de qualquer justificativa concreta e particular, a flexibilizar ordem de
prisão, restando nítida a intenção de locupletamento pessoal do paciente, em razão da
pandemia, sem sinalizar pagamento dos alimentos que deve ao filho menor, frente ao
qual se mostra devedor contumaz. Ausência de ilegalidade na decisão atacada que, no
caso concreto, não constatou hipótese para seguir a “orientação” (e não determinação),
contida na Recomendação nº 62 do CNJ. DENEGARAM A ORDEM. (RIO GRANDE
DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado (8. Câmara Cível). Habeas Corpus Cível Nº
70084154228. Relator: Rui Portanova, 28 de maio de 2020).

119
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

compensatórios e ressarcitórios como forma de redução de desigualdades


fomentadas pelo cenário atual.
Por fim, verificou-se possível a adoção de técnicas de
expropriação de bens em demandas onde se postula o adimplemento
de alimentos atuais e cujas ordens de prisão civil foram,
justificadamente, sobrestadas, tendo em mira que o regime domiciliar
nada tem de força coercitiva.

REFERÊNCIAS

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito


Civil. Famílias. 9. ed. Salvador: JusPodivm. 2017. v. 6.

MARCONI, Mariana de Andrade; LAKATOS, Eva Maria.


Fundamentos de metodologia científica. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo


Civil Comentado. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2019.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e


Sucessões: Ilustrado. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

SANTIAGO, Tatiana; REIS, Vivian. SP tem aumento de divórcios e


queda no número de casamentos em junho. G1, São Paulo, 23 jul. 2020.
Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao- paulo/noticia/2020/07/23/s
p-tem-aumento-de-divorcios-em-junho-pela-1a-vez-desde-2017-
casamentos-cairam-50percent.ghtml. Acesso em: 23 ago. 2020.

SIMÃO, José Fernando. Direito de família em tempos de pandemia: hora


de escolhas trágicas. Uma reflexão de 7 de abril de 2020. IBDFAM, 7 abr.
2020. Disponível em: https://www.ibdfam.org.br/artigos/1405/Direito+de
+fam%C3%ADlia+em+tempos+de+pandemia%3A+hora+de+escolhas+tr

120
ágicas.+Uma+reflexão+de+7+de+abril+de+2020#_ftn9. Acesso em: 23
ago. 2020.

SIMONINI, Andressa; ANJOS, Jéssica; DETLINGER, Jennifer;


PASCHOAL, Mariana. Pandemia do divórcio: a procura por
advogados aumentou 177% em escritório brasileiro durante a
quarentena. Disponível em: https://paisefilhos.uol.com.br/familia/pande
mia-do-divorcio-a-procura-por-advogados-aumentou-177-no-brasil-
durante-a-quarentena/. Acesso em: 23 ago. 2020.

121
CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROJEÇÃO DOS EFEITOS
PATRIMONIAIS DO PACTO DE UNIÃO ESTÁVEL

Lorena Guedes Duarte*


Karen Maria Silva Lima*

O amparo constitucional disposto no art. 226 da Constituição


Federal (CF/88) confere especial proteção do Estado às famílias e/ou
entidades familiares e estabelece algumas diretrizes e normas protetivas
que lhes são pertinentes. Também na seara normativa, merece destaque
o disposto no art. 1.513, §7° do Código Civil, por estabelecer que “é
defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na
comunhão de vida instituída pela família”.
Desse conjunto normativo é possível extrair o princípio da
liberdade familiar, que materializa a autonomia da vontade dos membros
da família para fins de constituição e manutenção das entidades
familiares e vai além, compreendendo também a facilitação quanto à
dissolução das uniões. Nesse sentido, conceitua Paulo Lôbo:

O princípio da liberdade familiar diz respeito ao livre


poder de escolha ou autonomia de constituição, realização
ou extinção de entidade familiar, sem imposição ou
restrições externas de parentes, da sociedade ou do
legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio
familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição
dos modelos educacionais, dos valores culturais e
religiosos; à livre formação dos filhos, desde que
respeitadas suas dignidades como pessoas humanas; à

*
Advogada. Mestre em Direito Processual Civil (UNICAP). Doutoranda em Direito Civil
(UFPE). Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões do Conselho
Federal da OAB (2019-2021). 1ª Secretária do Instituto de Juristas Brasileiras (IJB).
*
Advogada. Mestre em Direito Civil e Graduada pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Membro da Comissão de Direito de Família da OAB de Pernambuco.

123
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

liberdade de agir, assentada no respeito à integridade


física, mental e moral1.

A liberdade familiar também tem o condão e viabilizar novas


configurações familiares no direito, retirando o protagonismo isolado do
casamento no tocante à conformação jurídica capaz de integrar o
conceito de família. Esse cenário normativo sugere a ideia de que o
conceito jurídico de família teria abraçado a realidade social, conferindo
novo relevo à tutela das pessoas que compõem o núcleo familiar.
Com efeito, a noção de família que se tem atualmente é vista
por meio de uma ressignificação dinâmica da estrutura familiar, em que
“novos valores, princípios, quebras de paradigmas estão entre as tantas
conquistas rupturas da família contemporânea”2.
No entanto, o reconhecimento jurídico de que determinada
composição de pessoas conformaria uma família deve ensejar, por óbvio,
novas repercussões patrimoniais e existenciais relevantes. Seja para garantir
o pleno desenvolvimento das personalidades dos seus entes, seja para
projetar segurança jurídica no meio social, ao menos em alguma medida.
Nesse cenário, merece especial atenção a figura da união
estável, porquanto sua conformação é essencialmente fática, o que pode
dificultar a projeção e a aferição dos seus efeitos não só entre os
conviventes, mas perante a sociedade.
Além do já mencionado amplo amparo constitucional, a união
estável conta ainda com regulação nas Leis n° 8.971/94 e n° 9.278/96, nos
artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, além de outras normas esparsas.
Cuida-se do alicerce normativo que confere proteção, mas também
determina algumas balizas para fins de configuração da espécie familiar.

1
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. v. 5, p. 66.
2
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. A família Eudemonista do século XXI. In:
CONGRESSO DO IBDFAM, 8., 2012, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2012, p. 93.

124
Por vezes é dificultoso determinar o início da união estável,
tratando-se de entidade familiar revelada a partir de uma conformação
eminentemente fática, mas sobre a qual o direito atribuiu efeitos jurídicos.
Em razão disso, faz-se necessária a estipulação de parâmetros minimamente
objetivos para que o instituto não ameace a segurança jurídica.
Para fins de configuração jurídica da união estável, é necessário
que se verifique na relação entre duas pessoas, de maneira concomitante:
publicidade, continuidade, durabilidade e intuito de constituição de família.
Esses são apenas os elementos mínimos que consubstanciam o suporte
fático da união estável, cuja presença se faz necessária para conferir os
direitos e deveres dela decorrentes em caso de juridicização (a entrada do
fato no mundo jurídico). Disso impõe concluir que a conformação de uma
união estável prescinde da declaração escrita dos conviventes.
Conforme dispõem as Resoluções n° 35 de 2007 e n° 37 de
2014, ambas do Conselho Nacional de Justiça, as partes que se declaram
em união estável contam com a faculdade de formalizarem a relação
mediante escritura pública. No entanto, cumpre destacar que não estão
obrigadas a fazê-lo, pois não há qualquer exigência normativa, tratando-
se de ato meramente declaratório e não constitutivo da relação. Com
efeito, repita-se que basta a reunião dos elementos constitutivos acima já
elencados para que a relação seja reconhecida pelo direito enquanto
entidade familiar e goze de proteção constitucional.
Todavia, tratando-se de família estruturada pela convivência, os
desafios realmente surgirão quando a relação não formalizada tiver fim
– por escolha ou por óbito de uma das partes – ou quando não houver
concordância quanto à natureza do relacionamento havido entre elas.
Em verdade, é imprescindível considerar que o marco inicial
para produção dos efeitos jurídicos da união estável – especialmente os
patrimoniais – não deverá ser o do início da relação, mas aquele a partir
de quando os conviventes tiverem reunido os elementos característicos
da entidade familiar, a exemplo da duração e da ostentação pública.

125
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Nesta senda, oportunamente esclarece Regina Beatriz Tavares


da Silva sobre o início dos efeitos da união estável diante dos requisitos
previstos em lei:

Se a lei não estabelece prazo, não deixa de prever que a


relação deve ser duradoura, isto é inegável. Assim, não são
alguns dias, tampouco alguns meses que possam
configurar uma união estável, por mais encurtamento do
tempo que esteja consolidado hoje na sociedade
tecnológica em que vivemos. [...] Mas, não é por isso que
alguns meses de relacionamento afetivo possa conferir a
uma união a estabilidade que o próprio nome do instituto
leva. [...] É preciso preencher os requisitos do 1.723 do
Código Civil, inclusive o da durabilidade, embora sem um
prazo previsto em lei, para que uma união estável inicie a
produção dos seus efeitos, única forma de amenizar o erro
legislativo de não prever o início dos e oferecer alguma
segurança jurídica ao instituto em tela. Assim, os efeitos
patrimoniais da união estável não podem ter início antes
do preenchimento do requisito da durabilidade3.

A relevância da referida delimitação temporal se verifica


notadamente no judiciário, pois as questões patrimoniais representam
grande parte das demandas contenciosas que versam sobre o
reconhecimento e dissolução da união estável. Não deixam de ser
marcantes as repercussões de alimentos, sucessórias e previdenciárias,
por exemplo, mas sempre guardam especial destaque aquelas de cunho
majoritariamente patrimonial.
É notória a crescente disseminação dos contratos de união estável,
que não só constituem meios de declaração da situação fática dos
companheiros, mas também instrumentalizam suas próprias regras de

3
TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. A frouxidão dos requisitos da união estável
e a equiparação de seus efeitos aos do casamento no direito brasileiro. In: TAVARES
DA SILVA, Regina Beatriz; CORREIA, Atalá; SOLAVAGIONE, Alicia Garcia de.
(coord.). Tratado da união de fato = tratado de la unión de hecho. 1. ed. São Paulo:
Almedina, 2021. p. 438-439.

126
convivência, a conferir maior segurança jurídica. Com efeito, verifica-se no
Direito brasileiro a reiteração de “pactos familiares que atendam às
necessidades e os interesses de cada casal/grupo familiar ao longo do
tempo”4, o que poderá levar ao caos no judiciário no quesito uniformização.
O reconhecimento jurídico da união estável enquanto entidade
familiar pressupõe, assim como nas demais relações jurídicas, a capacidade
de produzir os efeitos entre as partes e também perante terceiros. As
repercussões jurídicas podem ser de natureza pessoal ou patrimonial: são
pessoais aquelas estabelecidas no art. 1.724 do código civil, tais como
lealdade, respeito, assistência mútua entre os conviventes; além de guarda,
sustento e educação dos filhos. Já as patrimoniais recaem sobre o regime de
bens e também confere impacto direto na sucessão.
Dito isso, opta-se por concentrar o presente ensaio em alguns
dos efeitos patrimoniais que se verificam na união estável, destacando as
peculiaridades que demandam mais atenção na hipótese de haver pacto
firmado entre os conviventes.
No que concerne à esfera patrimonial, no silêncio dos
conviventes, o art. 1.725 do código civil prevê como regra o regime da
comunhão parcial de bens (art. 1.658). O dispositivo é relevante, pois, se
aplicada a regra geral, – a de comunhão parcial – os bens adquiridos
onerosamente pelos companheiros durante a união estável podem vir a
ser partilhados em caso de dissolução da relação, ressalvadas as exceções
dispostas no art. 1.659 do CC/02. Todavia, é possível afastar a incidência
absoluta do dispositivo porque os companheiros podem comprovar que
a aquisição dos bens se deu a partir de recursos acumulados antes da
união estável (por sub-rogação, como exemplo).
O mesmo dispositivo que estabelece a regra geral para as
relações patrimoniais da união estável também confere aos conviventes

4
CARVALHO, Dimitre Braga Soares de. Contratos familiares: cada família pode criar
seu próprio Direito de Família. São Paulo: IBDFAM, 2020. Disponível em:
https://ibdfam.org.br/artigos/1498/Contratos+familiares:+cada+fam%C3%ADlia+pode+cr
iar+seu+pr%C3%B3prio+Direito+de+Fam%C3%ADlia. Acesso em: 27 maio 2021.

127
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

a faculdade de estipularem regime diverso ou até mesmo híbrido,


estabelecendo a (in)comunicabilidade seletiva em face de bens
específicos por meio de contrato. Todavia, cumpre pontuar que a lei não
prevê nenhuma exigência além de que o pacto de regime de bens (ou de
convivência) se dê por escrito, não impondo sequer escritura pública5.
Saliente-se, no entanto, que o início da comunicação dos bens
entre os envolvidos deve se dar após o preenchimento do suporte fático
que enseja a formação da união estável, a partir de quando a entidade
passa a ser efetivamente reconhecida pelo direito enquanto família.
O contrato de união estável firmado entre os conviventes
consubstancia a prevalência da autonomia da vontade no seio das relações
familiares e teria como único ou principal objetivo a regulação patrimonial
daquela entidade familiar. Sobre o instrumento, pondera Rolf Madaleno:

Pela via do contrato de convivência, os integrantes de uma


união estável promovem a autorregulamentação do seu
relacionamento, no plano econômico e existencial, e a
contratação escrita do relacionamento de união estável não
representa a validade indiscutível da convivência estável,
porque o documento escrito pelos conviventes está
condicionado à correspondência fática da entidade familiar
e dos pressupostos de reconhecimento (CC, art. 1.723),
ausentes os impedimentos previstos para o casamento (CC,
art. 1.521), porque não pode constituir uma união estável
quem não pode casar, com as ressalvas do § 1° do artigo
1.723 do Código Civil6.

Diante desse cenário normativo, considerando sobretudo a


natureza essencialmente fática da união estável, uma questão se põe à
análise: a projeção temporal dos efeitos jurídicos do pacto patrimonial

5
Não custa lembrar dos pressupostos de validade dos negócios jurídicos dispostos no
art. 104 do CC: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou
determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.
6
MADALENO, Rolf. Direito de Família. 8. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2018. p. 473.

128
que venha a ser firmado entre os conviventes deverá ser ex tunc ou ex
nunc? Em outras palavras: é possível se falar em retroatividade do pacto
patrimonial em face da união estável?
Dito isso, impõe trazer as considerações de Maria Berenice Dias:

O contrato obrigatoriamente terá efeito retroativo, em


relação à existência da união estável, o que não retroage é
o regime de bens quando é eleito outro regime que não seja
o da comunhão parcial de bens. Não há possibilidade de
ser atribuído efeito retroativo a regime de bens mais
restritivo, por afrontar direitos já adquiridos. Ou seja, sem
contrato, o regime é da comunhão parcial. Descabido
eleger o regime de separação, desde o início da união. A
não ser que se promova prévia partilha de bens7.

Pode-se dizer, em outras palavras, que o pacto declaratório de


união estável firmado pelos conviventes teria o condão de fazer retroagir
efeitos patrimoniais a ela pertinentes – mas tão somente se estiverem em
conformidade com a regra geral da comunhão parcial de bens.
Curioso notar então que se o pacto de união estável estipular
regime diverso da comunhão parcial, seus efeitos patrimoniais seriam
verdadeiramente mistos: em parte ex tunc, a incidir o regime da
comunhão parcial de bens sobre aqueles adquiridos no lapso temporal
entre o início da união e até a data em que foi firmado o pacto
patrimonial; e, de outro lado, efeitos ex nunc sobre os bens que venham
a integrar a esfera patrimonial dos conviventes a partir do pacto firmado.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça já se posicionou
pela ilicitude da retroatividade dos efeitos restritivos pactuados em
face da esfera patrimonial dos conviventes 8. No entanto, é possível

7
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual.
Salvador: JusPodivm, 2021. p. 615.
8
No acórdão do RESP nº 1.575.794- RS (2015/0321586-0) assim o STJ fundamentou:
“Toda e qualquer alteração relativamente ao regime de bens que rege a vida conjugal,
seja no casamento, seja na união estável, não tem efeito retroativo. Ou seja, o
estabelecimento de um regime de bens projeta-se sempre para o futuro”. Cf. também o

129
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

visualizar decisões em sentido contrário 9, e também há na doutrina


vertentes dissonantes, que defendem a retroatividade do pacto
patrimonial firmado no curso da união estável, a exemplo de
Francisco Cahali (2002)10 e Silvio de Salvo Venosa (2017)11.

REsp 1.845.416-MS, cujo trecho segue destacado: “Dessa premissa decorre a


conclusão de que não é possível a celebração de escritura pública modificativa do
regime de bens da união estável com eficácia retroativa”.
9
Nesse sentido de admissão de validade de cláusulas de retroatividade em contratos de
convivência, reconhecendo a prevalência da vontade dos companheiros ante a ausência
de elemento incontestável de vício de consentimento: “AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE
UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. CONTRATO DE CONVIVÊNCIA
INTERCORRENTE FIRMADO QUASE 3 (TRÊS) ANOS APÓS O INÍCIO DA
UNIÃO. PREVISÃO CONTRATUAL DE RETROATIVIDADE DO REGIME DE
SEPARAÇÃO ABSOLUTA DE BENS. EFEITO EX TUNC DAS DISPOSIÇÕES
PATRIMONIAIS. POSSIBILIDADE. O contrato de convivência pode ser celebrado
antes e durante a união estável. Iniciada essa sem convenção do regime patrimonial, o
regime de bens incidente, de forma imediata, é o da comunhão parcial (art. 1.725, CC).
Realizado pacto intercorrente, esse tem a capacidade de produzir efeitos de ordem
patrimonial tanto a partir da sua celebração quanto em relação a momento pretérito à
sua assinatura, dependendo de exame o caso concreto. A cláusula que prevê a
retroatividade dos efeitos patrimoniais do pacto só deve ser declarada nula quando
houver elemento incontestável que demonstre vício de consentimento, quando viole
disposição expressa e absoluta de lei ou quando esteja em desconformidade com os
princípios e preceitos básicos do direito, gerando enriquecimento sem causa, ensejando
fraude contra credores ou trazendo prejuízo diverso a terceiros e outras irregularidades.
(TJ-SC - AC: 20150264978 Capital - Norte da Ilha 2015.026497-8, Relator: Maria do
Rocio Luz Santa Ritta, Data de Julgamento: 18/08/2015, Terceira Câmara de Direito
Civil).” Nesse mesmo teor, Cf. também: TJMT - AGV nº 0084376-09.2018.8.11.0000,
2ª Câmara de Direito Privado, Julgado em 20/07/2019 e publicado em 28/03/2019.
10
Conforme registro de Rolf Madaleno: Para Francisco Cahali, impedir aos
companheiros, com livre-disposição sobre seus bens preexistentes ou futuros, de
estipularem suas relações patrimoniais seria projetar restrições à capacidade dos
conviventes, e lhes impor uma limitação contrária à capacidade civil e ao exercício da
propriedade, ato inconstitucional, diante dos artigos 5º, incisos XXII, XXIII, e 170, inciso
III, da Carta Política de 1988. (CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na
união estável. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 82 apud MADALENO, Rolf. Direito de
Família. 8. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 473).
11
Afirma o autor: “Pode ser firmado antes e durante a convivência, bem como pode ser
alterado no curso da união entre os companheiros, aspecto que fá-lo diferir grandemente
dos princípios do pacto antenupcial. Esse contrato representa o instrumento pelo qual
os sujeitos dessa relação regulamentam sua situação de fato. Nada impede, também,

130
A exemplo, o TJMG já se posicionou pela legalidade da
estipulação de cláusula de retroatividade dos efeitos patrimoniais12,
privilegiando a autonomia da vontade e entendendo que esta só deve ser
declarada nula quando houver elemento incontestável que demonstre
vício de consentimento, ou ainda se violar algum preceito expresso de
lei ou princípio básico do direito. Resta claro que os direitos de terceiros
devem seguir salvaguardados nesses casos.
É no mesmo sentido que caminha o Projeto de Lei do Senado,
n° 470 de 2013 – Estatuto das Famílias –, no qual há expressa previsão
de que, na união estável, a escolha do regime de bens não terá efeito
retroativo (art. 64, §2°), operando-se ex nunc.
Fica o alerta, mas daí surge outra questão: uma vez admitida a
projeção de efeitos patrimoniais – ainda que ex nunc – àqueles pactos
firmados no curso da união estável, estar-se-ia concedendo a possibilidade
de alteração do regime de bens por mera autonomia da vontade? Ou seja,
sem submeter a mudança patrimonial à autorização judicial?

que seja concluído pelos interessados para atingir situações pretéritas, como definir a
propriedade de um bem adquirido anteriormente pelo casal.” (VENOSA, Sílvio de
Salvo. Família. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 410).
12
Nesse sentido, temos: “EMENTA: RECURSO DE AGRAVO INTERNO OPOSTO
NO RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DISSOLUÇÃO DE UNIÃO
ESTÁVEL - PARTILHA DE BENS - CONTRATO DE CONVIVÊNCIA -
NULIDADE - NÃO OCORRÊNCIA - VALIDADE MANTIDA - PATRIMÔNIO
ARRECADADO - DIVISÃO - OBEDIÊNCIA AO PACTUADO - RECURSO
PARCIALMENTE PROVIDO - AGRAVO INTERNO - DESPROVIDO. Os requisitos
de validade para a realização do contrato de convivência estão estampados na regra do
Art. 1.725 do CC, inexistindo qualquer obrigação quanto a sua formalização por
escritura pública. A cláusula que prevê a retroatividade dos efeitos patrimoniais do
pacto só deve ser declarada nula quando houver elemento incontestável que demonstre
vício de consentimento, quando viole disposição expressa e absoluta de lei ou quando
esteja em desconformidade com os princípios e preceitos básicos do direito. Tendo as
partes celebrado o contrato de convivência e não pairando qualquer vício sobre este, é
de ser aplicado o mesmo quanto a todos os pontos estabelecidos, dentre eles, os efeitos
patrimoniais. (MATO GROSSO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado (2. Câmara de
Direito Privado). AGV: 00843760920188110000/MT. Relator: Maria Helena
Gargaglione Póvoas, 20 de março de 2019. DJeMT, 28 mar. 2019).”

131
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Neste ponto, cumpre traçar um paralelo importante com a


instituição do casamento. É que, na constância da união conjugal, a
modificação do regime de bens depende de petição em juízo, sendo
necessário que haja motivação relevante para obter a concessão judicial,
inclusive condicionada à preservação dos direitos de terceiros13.
De logo, cumpre registrar que o presente ensaio não pretende
traçar um comparativo entre as uniões conjugais e estáveis, tampouco deseja
esgotar suas semelhanças e diferenças, sobretudo no que concerne às
exigências formais – presentes no casamento e ausentes na união estável.
No entanto, deve-se observar que, no aspecto patrimonial, as normas
brasileiras em muito aproximam esses institutos. Na mesma linha seguem
os Tribunais pátrios, em cujos julgados habitualmente há equiparação dos
efeitos patrimoniais que recaem sobre cônjuges e conviventes14.
Em face de um cenário forçadamente comparativo, a coerência
do sistema normativo está sujeita ao judiciário, mas conta também com
a condução da doutrina, cujo papel fundamental é o de elucidar e propor
soluções para as questões que surgirão em cada caso. Daí a relevância da
presente abordagem15.

13
Assim determina o código civil, ao dispor para os cônjuges: “Art. 1.639. É lícito aos
nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes
aprouver. § 1º O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do
casamento. § 2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização
judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões
invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.”
14
É possível depreender tal tendência à equiparação dos institutos pelo posicionamento
do Supremo Tribunal Federal definido nos autos do RE n° 878.694/MG no tocante
sucessório, ao entender pela inconstitucionalidade da distinção de regimes sucessórios
entre cônjuges e companheiros, e pela aplicação do regime estabelecido no artigo .829
do Código Civil em ambos os casos.
15
As questões não se encerram por aí. Apesar de não compreender propriamente o
objeto deste artigo, merecem análise também aquelas uniões estáveis nas quais haja
conviventes maiores de 70 (setenta) anos. Em atenção ao disposto no inciso II do art.
1.641, que obriga o regime da separação de bens no casamento, o STJ, tem se
posicionado quanto a aplicação desta imposição de separação obrigatória também aos
conviventes. É o que se extrai do julgamento do REsp 1.689.152, Rel. Min. Luis
Salomão, 4ª T, DJe 22 nov. 2017: “às uniões estáveis é aplicável a mesma regra,

132
O fato é que, na constância do matrimônio, a legislação afasta o
cabimento da alteração do regime patrimonial por mero desejo dos
cônjuges, condicionando ao exame judicial e restringindo as
possibilidades aos casos nos quais evidenciem a necessidade de
formação de esferas patrimoniais distintas. Na hipótese, dever-se-á
demonstrar, por exemplo, a finalidade de assegurar obrigações
individuais de um dos cônjuges; receio de constrição indevida em face
do patrimônio particular; divergência entre os cônjuges no que se refere
à administração patrimonial, entre outras questões.
Todavia, a despeito da previsão normativa constante no art.
1.639, §2°, em recente julgado, o STJ lançou um tom mais flexível, pelo
qual a Min. Nancy Andrighi ponderou, in verbis:

A melhor interpretação que se pode conferir ao §2º do


artigo 1.639 do Código Civil (CC) é aquela no sentido de
não se exigir dos cônjuges justificativas ou provas
exageradas, desconectadas da realidade que emerge dos
autos, sobretudo diante do fato de a decisão que concede a
modificação do regime de bens operar efeitos ex nunc16.

Mesmo sob essa perspectiva, há de se destacar que os efeitos


jurídicos são projetados inter partes (os próprios cônjuges) a partir da
decisão judicial que venha modificar o regime patrimonial. Todavia,
perante terceiros, os efeitos jurídicos da decisão dependem da
publicidade do ato, sendo necessário o registro da alteração do regime de
bens17. Com isso, a norma pretende resguardar direitos, mas, em verdade,

impondo-se seja observado o regime da separação obrigatória, sendo o homem maior


de sessenta anos ou a mulher maior de cinquenta.”. Precedente recentemente reiterado
no julgado do REsp 1918395-RS 2021/0024132-8 Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze,
DJe 17 maio 2021.
16
Cf. RESP 1.904.498/SP.
17
Via de regra, essa averbação deve ser feita no registro civil e de imóvel, podendo ser
também no registro público de empresas mercantis se algum dos cônjuges for empresário.

133
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

sabe-se que eventuais fraudes contra terceiros dificilmente são


detectadas na prática.
Quando se permite que os conviventes firmem contrato particular
modificando o regime de bens no curso da união estável sem que o
instrumento seja submetido ao Judiciário, ou ao menos torne-se público,
abre-se uma enorme janela para lesar direito de terceiro. A solução
disponível no nosso ordenamento seria a de propor que sejam aplicadas às
uniões estáveis as normas gerais dos Regimes de Bens dispostas no CC/02,
aí incluído o art. 1.639, que condiciona a alteração à apreciação judicial18.
Com igual preocupação, a 9ª Câmara de Direito Privado TJSP
decidiu pela nulidade de contrato de reconhecimento de união estável
que estabelecia regime da separação de bens. O fundamento do acórdão
centrou no fato de que os companheiros não observaram o disposto no
art. 1.639, § 2º do CC, que exige a autorização judicial para a alteração
da regência patrimonial19.
Já no âmbito extrajudicial, convém trazer o teor de uma consulta
formulada pelo Tabelião de Notas da Capital de SP ao TJSP, pela qual
restou suscitada dúvida quanto a pedido de retificação em relação ao
regime de bens escolhido em Escritura Pública de Declaração de União
Estável. O decisum fora firmado no caso após colheita da manifestação
do Colégio Notarial do Brasil Seção São Paulo e do Ministério Público
estadual, adotando o seguinte posicionamento:

Por todo o exposto, à vista do parecer do Ministério Público,


acolho a dúvida do Senhor Titular e indefiro o pedido de
alteração do regime de bens da união estável na via
extrajudicial ou mesmo diante desta via administrativa,

18
No mesmo sentido opina a Professora Regina Beatriz Tavares da Silva em seu livro
Curso de Direito Civil, volume 2, em coautoria com Washington de Barros Monteiro.
Disponível em: https://www.reginabeatriz.com.br/post/tjsp-decide-que-
mudan%C3%A7a-de-regime-de-bens-na-uni%C3%A3o-est%C3%A1vel-necessita-
de-autoriza%C3%A7%C3%A3o-judicial.
19
Acórdão de relatoria do Desembargador Rogério Murillo Pereira Cimino na Apelação
Cível nº 1019978-36.2016.8.26.0114 do TJSP.

134
junto deste Juízo Corregedor Permanente, uma vez que o
requerimento demanda a análise na via judicial pertinente20.

Sucede que o nosso sistema normativo conta com artifícios que


permitem mudarmos essa perspectiva limitante. Dito isso, propomos
uma interpretação teleológica do art. 1.639 §2° do CC, que conduz à
conclusão de que a exigência de autorização judicial para modificação
do regime de bens do casamento pretende conferir segurança jurídica aos
efeitos produzidos tanto entre as partes, e quanto perante terceiros. Desse
modo, acreditamos que resultado similar haveria de ser alcançado na via
extrajudicial, dada a essencial publicidade dos atos nela praticados.
Diante disso, importa questionar se o afastamento da via
extrajudicial ainda seria pertinente na atualidade. Ora, se preservada a
publicidade dos atos e adotado procedimento adequado, porque haveria
de ser negada a alteração do regime de bens pela via extrajudicial?
Portanto, aqui deixamos a reflexão sobre a viabilidade de flexibilizar a
norma contida no art. art. 1.639 §2°. Na hipótese, a validade estaria
adstrita não mais à forma, mas apenas a eventual vício de consentimento,
preservando a finalidade da norma.
Em conclusão, considerando o corpus normativo vigente, bem
como a construção jurisprudencial sobre o tema, parece-nos mais
ponderado defender que (ainda) há necessidade de petição em juízo para
que seja concedida a alteração do regime de bens no curso das uniões
estáveis, tal como se dá naquelas conjugais. No entanto, merece reflexão
a possibilidade de viabilizar a extrajudicialização no que concerne à
alteração dos regimes patrimoniais não apenas em caso de união estável,
mas também no de casamento.
Já no tocante à projeção dos efeitos, importa considerar que
devam operar ex nunc sobretudo porque os dispositivos que versam sobre
os regimes de bens já dispõem de mecanismos para estabelecer exceções

20
Consulta formulada no processo n° 1006520-18.2021.8.26.0100. DJeSP, 26 maio 2021.

135
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

e reequilibrar a conformação da esfera patrimonial dos cônjuges e


conviventes. Desse modo, ter-se-ia atendida a coerência do sistema
normativo, bem como garantida a preservação de direitos das partes
envolvidas e de terceiros.
Resta evidente, portanto, que apesar das diferenças entre os
institutos, com o fito de guardar coerência sistemática no ordenamento
brasileiro, é imperiosa a necessidade de análise conjunta das entidades
familiares do casamento e da união estável no tocante à alteração do
regime de bens.
O fato é que, na concepção da família contemporânea deve-se
considerar o imperativo de liberdade familiar, que impõe o respeito às
diferenças e às particularidades, a conferir mais autonomia na criação
das regras que regem cada grupo afetivo. Ao Estado, portanto, só
competirá a proteção jurídica das famílias igualmente legitimadas social
e juridicamente, atendendo-se o comando constitucional do art. 226.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. A família Eudemonista do século XXI.


In: CONGRESSO DO IBDFAM, 8., 2012, Belo Horizonte. Anais [...].
Belo Horizonte: IBDFAM, 2012, p. 88-95.

CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência na união estável.


São Paulo: Saraiva, 2002.

CARVALHO, Dimitre Braga Soares de. Contratos familiares: cada


família pode criar seu próprio Direito de Família. São Paulo: IBDFAM,
2020. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1498/Contratos+fam
iliares:+cada+fam%C3%ADlia+pode+criar+seu+pr%C3%B3prio+Dire
ito+de+Fam%C3%ADlia. Acesso em: 27 maio 2021.

136
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev.
Ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2021.

LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 8. ed. São Paulo: Saraiva


Educação, 2018. v. 5.

MADALENO, Rolf. Direito de Família. 8. ed. rev. atual. e ampl. Rio


de Janeiro: Forense, 2018.

MONTEIRO, Washington de Barros; TAVARES DA SILVA, Regina


Beatriz. Curso de Direito Civil: direito de família. São Paulo: Saraiva.
2021. v. 2.

TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. A frouxidão dos requisitos da


união estável e a equiparação de seus efeitos aos do casamento no direito
brasileiro. In: TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz; CORREIA,
Atalá; SOLAVAGIONE, Alicia Garcia de. (coord.). Tratado da união
de fato = tratado de la unión de hecho. 1. ed. São Paulo: Almedina,
2021. p. 419-450.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Família. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

137
O REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS E SUAS
QUESTÕES POLÊMICAS

Mário Luiz Delgado*


Flavia Brandão Maia Perez*

Quando duas pessoas decidem viver juntas, seja pelo


casamento, seja pela união estável, uma das decisões que devem tomar
diz respeito ao regime de bens que irão adotar ao longo da união.
Embora a legislação permita a escolha entre comunhão
universal, comunhão total, separação total e participação final nos
aquestos patrimoniais, dados estatísticos demonstram que o mais
utilizado é da comunhão parcial.
Além de ser o mais escolhido, é o que pode gerar mais
discussões judiciais no momento de um divórcio ou dissolução de união
estável face a suas múltiplas variações de regras.
Algumas discussões levam ao judiciário questões polêmicas
acerca de bens adquiridos ao longo da união e sua partilha. Por isso,
decidimos, neste artigo, trazer o posicionamento da doutrina e da
jurisprudência, com predominância nas decisões dos Superiores
Tribunais sobre alguns pontos. Mesmo sabendo que são entendimentos
fechados, certamente, os apontamentos ajudarão a criar um entendimento
crítico sobre as questões.
O regime de bens é o bloco de regras e princípios que
disciplinam direitos e obrigações patrimoniais das pessoas que compõem
uma entidade familiar, configurando o “estatuto patrimonial” dos
conviventes, ou seja, o regramento das questões atinentes aos bens, com

*
Advogado. Doutor em direito pela USP. Mestre em Direito Comparado pela PUC-SP.
Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM.
*
Advogada especializada em Direito Constitucional e em Direito de Família e
Sucessões. Presidente do IBDFAM/ES. Vice-Presidente da Comissão Especial de
Família e Sucessões da OAB.

139
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

início após o casamento ou a união estável e vigência, exclusivamente,


enquanto perdurar a comunhão de vidas1. Ou ainda: “um conjunto de
normas que prescrevem os princípios aplicáveis à sociedade conjugal, do
ponto de vista dos seus interesses patrimoniais. Disciplinam, em seu
âmbito, a propriedade, a administração, o gozo e a disponibilidade dos
bens e obrigações que os cônjuges podem ou não assumir”2.
São regras dispositivas das relações pecuniárias dos cônjuges
durante a convivência matrimonial, abrangendo, também, a disciplina
dos direitos de terceiros que contratam com o casal, daqueles que se
tornam seus credores, e os direitos que caberão a cada cônjuge a partir
do dia em que dissolver-se o casamento ou encerrada a convivência3.

Efetivamente, com o casamento ou com a união estável,


passa a vigorar um estatuto econômico-financeiro da
família. A opção de regência patrimonial realizada pelo
casal gera direitos e deveres de ordem econômica que
repercutem até o fim do relacionamento, especialmente no
que toca à comunicação ou não de bens adquiridos durante
a convivência. Infelizmente, uma família, notadamente um
par conjugal, não se constrói apenas com afeto,
destacando-se, ao lado dos vínculos afetivos, um eixo
patrimonial, responsável pela satisfação e manutenção das
necessidades familiares materiais.

1
Tanto o casamento como a união estável estabelecem uma comunhão plena de vidas
(CC/2002: Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na
igualdade de direitos e deveres dos cônjuges).
2
Vide, por todos: MADALENO, Rolf. Do regime de bens entre os cônjuges. In: DIAS,
Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha-Brasil (org.). Direito de Família e o
novo Código civil. Belo Horizonte: Del Rey ; IBDFAM, 2002. p. 156-157.
3
Regime de bens é o estatuto que disciplina os interesses econômicos, ativos e passivos,
de um casamento, regulamentando as consequências em relação aos próprios nubentes
e a terceiros, desde a celebração até a dissolução do casamento, em vida ou por morte.
Complexo de regras aplicáveis aos efeitos econômicos de um matrimônio. Ou seja, é
“o estatuto patrimonial dos cônjuges” e compreende “as relações patrimoniais entre os
cônjuges e entre terceiros e a sociedade conjugal” (FARIAS, Cristiano Chaves de;
ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 3. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011. p. 272).

140
O Código Civil dispõe sobre as diversas espécies de regimes de
bens, com disposições gerais sobre sua instituição e o respectivo
regramento, bem como sobre seus efeitos na administração e na
orientação da partilha ao dissolver-se a sociedade conjugal.
Pela sistemática do Código Civil de 1916, na sua redação
original, eram quatro os regimes de bens nominados ou típicos, previstos
nos artigos 256 a 311: comunhão universal, comunhão parcial, separação
(convencional ou obrigatória) e dotal.
No Código Civil de 2002, a matéria aparece tratada nos artigos
1.639 a 1.688, permanecendo os três regimes tradicionais: comunhão
universal, em que se comunicam todos os bens, havidos antes ou depois
do casamento (mesmo transmitidos por doação ou herança); comunhão
parcial, em que somente se comunicam os bens adquiridos onerosamente
durante o casamento; e separação de bens, convencional ou obrigatória,
em que os cônjuges permanecem com a propriedade exclusiva dos bens
adquiridos a qualquer tempo. Ao lado desses, surge, com o advento do
CC/2002, o regime da participação final nos aquestos, como forma
híbrida de separação de bens, durante o casamento, e de comunhão
parcial, ao dissolver-se a sociedade conjugal.
Deve-se aludir, por fim, aos chamados regimes atípicos ou
regimes híbridos não tipificados. O art. 1.639 do CCB é expresso quando
dispõe ser “lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento,
estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”. A autonomia
privada na definição do regime patrimonial aplicável pode ser exercida,
ainda com mais ênfase, nos contratos de convivência em união estável.
A regra do art. 1.639 veicula o princípio da liberdade
convencional, um dos princípios norteadores do regime de bens, também
chamado princípio da liberdade das convenções antenupciais, pelo qual os
futuros cônjuges estipulam as regras que lhes forem mais convenientes na

141
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

regência e administração de seus bens, presentes, passados e futuros4.


Podem os nubentes ou os companheiros pactuar, inclusive, a composição
de um regime de bens diferente daqueles legalmente fixados, bem como
misturar as regras existentes no Código Civil para compor um regime
personalizado às suas necessidades e pretensões. E o limite a essa livre
escolha, observa Fabiana Domingues Cardoso (2010), “é o respeito às leis,
aos bons costumes, às regras de ordem pública, bem como a natureza e aos
preceitos do casamento”5. Segundo a autora, “os nubentes possuem a
liberdade para o casamento e para a escolha das regras que serão aplicadas
ao patrimônio do casal, porém dentro dos limites impostos pela legislação”6.
Finalmente, as disposições gerais sobre regimes de bens
previstas no CC/2002 são aplicáveis a todos os casos, inclusive para os
casamentos celebrados anteriormente a 11 de janeiro de 2003.
O regime legal, aplicável por presunção volitiva do casal, na
falta de convenção em contrário, e quando não haja motivo para o regime
da separação obrigatória, continua sendo o da comunhão parcial de bens.
A opção por outro regime se faz antes do casamento, por escritura
pública de pacto antenupcial ou durante a união estável por meio do
contrato de convivência.
No regime legal da comunhão parcial de bens, podem-se formar
e coexistir, em regra, três patrimônios distintos: o pessoal do marido, o
pessoal da mulher e o comum. Mesmo bens adquiridos durante o
casamento poderão integrar um acervo de bens pertencente
exclusivamente ao marido ou exclusivamente à mulher. Nem todos os
bens de aquisição contemporânea à convivência pertencerão a ambos os
cônjuges, devendo-se observar as exceções legais.

4
Como observa Fabiana Domingues Cardoso, “hodiernamente, a doutrina majoritária
consagra três princípios primordiais ao regime matrimonial, são eles: o da variedade de
regimes, o da liberdade convencional e, por fim, o da mutabilidade controlada” (p. 46).
(CARDOSO, Fabiana Domingues. Regime de bens e pacto antenupcial. Rio de
Janeiro ; São Paulo: Forense ; Método, 2010).
5
CARDOSO, op. cit., p. 47.
6
Ibid., p. 52.

142
A presunção de comunhão, nessas situações, é sempre relativa,
devendo “ceder, portanto, diante de prova em contrário, de modo a
compatibilizá-la com as hipóteses em que o legislador, de modo expresso
e taxativo, afastou a comunhão. Em outras palavras, cabe ao intérprete
harmonizar a ampla comunicabilidade enunciada no art. 1.660 com as
previsões dos incisos do art. 1.659 do Código Civil”7.
Se houver patrimônio em comum, decorre daí o “direito de
meação”, consistente no direito, quando da dissolução da união, à metade
de tudo o que foi adquirido na sociedade do casamento, observadas as
exceções próprias de cada um dos regimes. Para que se possa apurar se
existe meação e qual o monte mor partilhável quando da dissolução de
uma união regrada pelo regime da comunhão parcial de bens, é preciso
analisar a causa do negócio jurídico de aquisição de cada bem.

7
TEPEDINO, Gustavo. Contratos de Direito de Família. In: PEREIRA, Rodrigo da
Cunha (org.). Tratado de Direito de Família. 2. ed. Belo Horizonte: IBDFAM, 2002.
p. 500. Destaca o professor Antônio Junqueira de Azevedo que “a presunção de que os
bens [...] são fruto do trabalho e da colaboração comum [...] não é aí a absoluta (iuris
et de iure) e sim a relativa (iuris tantum), representando consolidação do que a
jurisprudência dominante vinha decidindo. A regra geral é a de que as presunções legais
admitem contraprova; sua finalidade é inverter o ônus da prova, atendendo ao quod
plerum que fit, no interesse daquele em favor do qual ela foi instituída. Normalmente,
as presunções não ‘congelam’ artificialmente a realidade e admitem a produção de
prova contrária ao fato presumido. Esse é, aliás, o espírito do processo civil moderno,
pautado pela amplitude dos meios de prova (art. 332 do Código de Processo Civil). [...]
A regra permanece, pois, a mesma: ausente previsão legal quanto ao caráter absoluto
ou relativo da presunção, ela é relativa” (AZEVEDO, Antônio Junqueira de.
Incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge no regime da
comunhão parcial dos Códigos Civis de 1916 e 2002. Extensão da incomunicabilidade
aos bens móveis ou imóveis sub-rogados. Incomunicabilidade de bem imóvel adquirido
durante a união estável anterior ao casamento, por ser relativa à presunção do art. 5º da
Lei nº 9.276/96. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de
direito privado. Rio de Janeiro: Saraiva, 2009. p. 510-511).

143
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Tratando sobre o regime legal de comunhão parcial de bens, o


legislador foi claríssimo quando estabeleceu quais bens entrariam na
comunhão8 e os que dela estariam excluídos9.
Atenção redobrada é exigida do intérprete tanto quanto aos bens
que, não obstante adquiridos na constância do casamento ou da união
estável, encontram-se excluídos da comunhão, como em relação àqueles
que passarão a integrar a comunhão, muito embora originados de bens
anteriores ao início da convivência. Nesse último caso, situam-se as
benfeitorias em bens particulares e os frutos dos bens particulares de
cada cônjuge/companheiro, percebidos na constância do casamento ou
da união estável. Já no primeiro caso, encontram-se excluídos da
comunhão, entre outros, os bens que sobrevierem, na constância da
convivência, por sucessão e os sub-rogados em seu lugar, os bens de uso
pessoal, os livros e os instrumentos de profissão e os proventos do
trabalho pessoal de cada um.

8
“Art. 1.660. Entram na comunhão:
I - os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em
nome de um dos cônjuges;
II - os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou
despesa anterior;
III - os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges;
IV - as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge;
V - os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na
constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.”
9
“Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância
do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em
sub-rogação dos bens particulares;
III - as obrigações anteriores ao casamento;
IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;
V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.”

144
Especificamente sobre os bens havidos por sucessão e os seus
sub-rogados, explica Paulo Lôbo que a “sucessão referida na lei é a
hereditária, em virtude da morte de quem derivou o bem. Pode ter sido
na condição de herdeiro ou de legatário, com ou sem testamento. Os bens
integrarão a comunhão (apenas) se o testador estipular cláusula de
comunicabilidade”.
Já a sub-rogação do bem se dá

quando é substituído por outro, na titularidade do domínio. Na


hipótese do bem adquirido por doação ou sucessão, o cônjuge
o vende a terceiro e com os valores pecuniários recebidos
adquire outro bem, que substituirá o primeiro em seu
patrimônio particular. A relação de pertinência não é com
determinado bem, mas com a origem do valor patrimonial.
Da mesma forma, permanecem no domínio particular do
cônjuge os bens adquiridos em sub-rogação aos bens que já
estavam em seu domínio e posse antes do casamento. A sub-
rogação pode derivar de venda ou permuta10.

Os bens sub-rogados, ou seja, aqueles que se substituíram aos bens


recebidos por sucessão ou doação, devem ser analisados quanto à causa ou
origem do valor patrimonial utilizado em cada aquisição. Se o cônjuge ou
companheiro herdou, por exemplo, cotas de capital social de determinada
sociedade ou cotas de um fundo de investimento qualquer e as aliena a
terceiros, adquirindo, com o produto da alienação, outros bens (por
exemplo, cotas de outros fundos ou subscrição de capital social de outras
sociedades), estes permanecem no patrimônio particular. Se recebeu um
imóvel em doação e utiliza esse bem na subscrição do capital social de
sociedade que mantém com o outro cônjuge, as cotas proporcionalmente
originadas a partir dessa subscrição excluídas estarão da comunhão, eis que
sub-rogadas no bem objeto da doação. Se recebeu valores em pecúnia e,
com eles, adquiriu imóveis ou ações, também estes novos bens, conquanto
adquiridos durante o casamento, ficam fora da comunhão.

10
LÔBO, Paulo. Direito civil: sucessões. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. v. 6, p. 286-287.

145
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Pouco importa que os bens adquiridos tenham ou não a mesma


natureza daqueles alienados, eis que a relação de pertinência, repita-se,
não se dá com o bem, mas com a origem dos valores utilizados na
aquisição. Os novos bens, resume Maximiliano, “ficarão como os
primeiros: inalienáveis ou incomunicáveis; é nisto que consiste a sub-
rogação de ônus ou gravame consignado no ato de última vontade”11.
Há bens que são especialmente controvertidos nas partilhas
conjugais na comunhão parcial de bens. A partilha de cotas sociais em
relação à sociedade constituída durante o casamento/união estável é tema
sempre espinhoso, fonte de diversos equívocos que precisam ser esclarecidos.
O primeiro deles é que não existe direito à divisão das quotas
do sócio separado. O ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio (e seus
herdeiros) não poderá participar da sociedade como consequência do
resultado da partilha, que lhes conferirá não mais que o direito ao
equivalente pecuniário de sua participação nas quotas ou à percepção
dos lucros que ao sócio divorciado ou separado tocariam e que seriam
distribuídos a cada ano, se positivo o resultado social. Àquelas pessoas
não outorgou o Código Civil o direito de votar, de fiscalizar a gestão
da sociedade, mas somente direito semelhante ao que assegurou ao
credor do sócio (art. 1.026), ou seja, concorrer aos lucros e postular a
liquidação da quota.
O art. 1.027 do CC/2002 esclarece que, se um dos cônjuges for
sócio de uma sociedade de pessoas, seu ex-consorte, havendo dissolução
da sociedade conjugal, só se tornará titular das quotas que lhe couberem
(ou vierem a caber) em partilha se os demais sócios anuírem. Em razão
da affectio societatis, nem o ex-consorte nem o ex-companheiro poderão
ingressar no quadro societário, pois ninguém é obrigado a se tornar sócio
de alguém contra a sua vontade. Os sócios remanescentes não estão
compelidos a receber, no quadro societário, pessoa que lhes é estranha.

11
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Borsoi, 1952. v. 2, p. 180.

146
Em resumo, após a separação, dissolução de união estável ou o
divórcio do sócio, a sua quota social permanece íntegra, não havendo que
se falar em partilha ou divisão de participações societárias. O consorte
que não era sócio torna-se, meramente, um credor do sócio (e não da
sociedade) pela metade do equivalente pecuniário das quotas.
O segundo ponto é que qualquer direito atribuível à
companheira do sócio, inclusive no tocante à comunicação dos frutos das
participações societárias, cessa a partir da data da separação de fato –
portanto, jamais o valor das quotas na data atual ou na data em que
decretada a partilha, pois qualquer valorização do capital social ocorrida
após a separação não integrou o patrimônio do casal.
A questão foi examinada pelo STJ, no REsp nº 1.595.775/AP,
onde restou decidido que o valor a ser considerado, como o da expressão
patrimonial das quotas, para fins de partilha, seria o do montante do
capital social integralizado na data da separação de fato12. Com
efeito, é a data da dissolução fática da comunhão de bens que deve
constituir o marco para monetarização dos haveres do
cônjuge/companheiro que se retira da sociedade conjugal. A extinção da
união estável pela separação de fato tem como efeito direto e imediato a
resolução da sub-sociedade que se formou entre os companheiros no que
toca às quotas. Dessa forma, em relação ao companheiro não-sócio, a
resolução ou liquidação da sociedade ocorre no momento da separação
de fato, postergando-se, exclusivamente, o pagamento dos haveres para

12
“[...] O valor do capital social integralizado de determinada empresa é parâmetro
adequado para a partilha especialmente quando a separação de fato do casal, ocasião
em que finda o regime de bens, ocorre em momento muito próximo à sua constituição
.6. Ausência de necessidade de realização de balanço contábil referente a apenas um
mês para aferir o valor real a ser partilhado, já que o percentual de participação do
recorrido em tão curto período de tempo não justificaria a alteração do critério adotado
pelo Tribunal de origem, à luz das provas constantes dos autos, insindicáveis no
presente momento processual” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma).
REsp 1595775/AP. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 9 de agosto de 2016.
DJe, 16 ago. 2016).

147
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

a ocasião seguinte da partilha. Extinto o regime de bens, não há mais


sub-sociedade alguma entre os companheiros.
No art. 1.031 do Código Civil, o legislador foi muito claro
quando elegeu a data em que a sociedade “termina” como aquela em que
se dará a apuração dos haveres. Não só no art. 1.031, quando determina
que “nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o
valor da sua quota, liquidar-se-á com base na situação patrimonial da
sociedade, à data da resolução”, mas igualmente no art.1.672, quando
disciplina a apuração dos aqüestos com base no patrimônio existente “à
época da dissolução da sociedade conjugal”.
Ao ocupar-se da ação de dissolução parcial de sociedade, o
Código de Processo Civil igualmente dispôs sobre a possibilidade de o
cônjuge/companheiro do sócio, cujo relacionamento terminou, “requerer
a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da
quota social titulada por este sócio” (CPC/2015, art. 600, parágrafo
único). E o legislador processual de 2015 foi taxativo quando decretou,
no art. 604, que “para apuração dos haveres, o juiz: I - fixará a data da
resolução da sociedade”, bem como no art. 606, cuja dicção ordena que,
em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de
apuração de haveres, “o valor patrimonial apurado em balanço de
determinação, tomando-se por referência a data da resolução”13.
Em outras palavras, constitui comando categórico da lei
adjetiva que a apuração do valor das participações sociais, salvo previsão
diversa em contrato social ou estatuto, tem que ser feita com base na data
da resolução da sociedade. E tais regras, conforme se infere da redação
do parágrafo único do art. 600 do CPC/2015, são aplicáveis outrossim às
situações em que o cônjuge ou companheiro do sócio se retira da
sociedade conjugal pela separação de fato ou dissolução da união estável.

13
“Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de
apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-
se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e
intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.”

148
A “resolução” da sociedade conjugal ou da união estável não se
dá por ocasião da partilha dos bens comuns, mas no momento em que
cessada a convivência. Com a separação de fato, o cônjuge/companheiro
se retira, não meramente da sociedade conjugal, mas também da sub-
sociedade formada com o consorte em relação à empresa da qual só um
deles integrava o quadro social. As duas sociedades se extinguem na data
da separação de fato e é esta a data em que se devem apurar os haveres.
Entender o contrário, ou seja, apurar o valor das quotas no
momento efetivo da partilha, que venha a ocorrer decorrido considerável
lapso temporal, além de profundamente injusto em relação àquele que se
manteve à frente da sociedade, nos casos em que a empresa cresceu e se
desenvolveu às custas de sua exclusiva labuta, é passível, por outro lado,
de ocasionar grave risco ao cônjuge/companheiro não-sócio que, se
permanecer atrelado à sociedade, pode vir a ser chamado a responder por
prejuízos futuros, decorrentes de fatos verificados muito tempo após o
término da sociedade conjugal ou da união estável.
Vale dizer, cria-se um precedente perigoso, onde o ex-
companheiro, que não componha a sociedade, mas que tenha direito de
meação sobre a expressão econômica das quotas, estaria sujeito, também,
aos prejuízos que a empresa experimentasse por conta da má
administração dos sócios. E a consequência desse entendimento seria um
permanente e incorrigível desequilíbrio na partilha14. Isso porque, caso o
valor das quotas, apurado na ocasião da partilha, seja superior ao valor
da data da separação, haverá um enriquecimento sem causa do ex-
companheiro não-sócio, que não contribuiu nem teve qualquer
participação no incremento das atividades da sociedade depois de
dissolvido o vínculo. No entanto, se houver um decréscimo no valor das
quotas, o enriquecimento sem causa seria do ex-companheiro que

14
Infringindo-se, assim, o art. 2.017 do Código Civil: “No partilhar os bens, observar-
se-á, quanto ao seu valor, natureza e qualidade, a maior igualdade possível”.

149
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

participa da sociedade, pois este dividiria os prejuízos com aquele que


nada colaborou para o insucesso da empresa.
Por isso, o companheiro não-sócio, depois de terminada a
sociedade conjugal, não pode participar do acréscimo nem do eventual
decréscimo do valor das quotas havidos consecutivamente à separação
de fato, sob pena de enriquecimento indevido de um dos ex-cônjuges, o
que afrontaria o art. 884 do Código Civil15. Demais disto, considerar o
valor atual das quotas prolongaria o regime de bens para além do fim da
relação conjugal.
Ponto de acentuada discussão se refere aos planos de
previdência privada complementar: o Plano Gerador de Benefício
Livre (PGBL), cujo caráter previdenciário é mais acentuado; e o Vida
Gerador de Benefício Livre (VGBL), que tem caráter misto,
previdenciário e securitário.
Recentemente, especialmente após as mudanças provocadas pela
reforma da previdência social, que, cada dia, afasta e torna mais distante o
recebimento de uma digna aposentadoria para os seus contribuintes, muitas
pessoas passaram a optar pela previdência complementar.
Nos planos de previdência privada, é possível escolher o valor da
contribuição e a periodicidade em que ela será feita, podendo o valor ser
resgatado a qualquer momento se houver desistência, sem a necessidade de
se aguardar o período para recebimento apenas como pensão mensal.
Não são raros os casais que optam por esse tipo de investimento
pensando no futuro, como um planejamento patrimonial financeiro – seja
como forma de renda complementar na aposentadoria ou até mesmo
como aplicação para uso especifico futuro, seja em nome individual de
cada um ou em nome de apenas um. No entanto, mesmo havendo certa
unanimidade na doutrina acerca do tema, no momento da ruptura da vida

15
“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado
a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”

150
em comum, o tema se torna controvertido quando se discute sua
comunicabilidade ou não.
Flávio Tartuce, citando José Fernando Simão16 sobre a
comunicabilidade da previdência, afirma que “antes de se atingir a idade
estabelecida no plano, a previdência privada não passa de aplicação
financeira como qualquer outra. Não há pensão antes desse momento e,
portanto, não há incomunicabilidade. Isso porque, sequer há certeza de
que, ao final do plano, efetivamente os valores se converterão em renda
ou serão sacados pelo seu titular. Trata-se de opção dos cônjuges o
investimento na previdência privada, fundos de ações, ou de renda fixa”.
Rolf Madaleno já possui o entendimento de que se deve
considerar a previdência privada, independentemente do seu tipo, como
bem particular, excluído de eventual partilha de bens, “Tratando-se os
fundos de previdência privada de uma espécie de pensão por morte ou
aposentaria e tendo exatamente essa função de segurança futura, sendo
construídos mediante periódicas contribuições, usualmente mensais, não
podem ser necessariamente considerados como bens comunicáveis, como
pensa uma vertente doutrinária e jurisprudencial, dizendo que esses
investimentos não passam de uma aplicação financeira. Um ativo
construído em longo prazo delineia com suficiente segurança, e reiterada
demonstração de propósitos, que se trata de uma efetiva previdência
privada, poupada mês a mês, e não de um dissimulado investimento criado
para ludibriar direitos hereditários ou para fraudar alguma meação” 17.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso
Especial nº 1.698.774-RS, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, firmou
entendimento de que a natureza securitária e previdenciária
complementar de cada um dos tipos, PGBL e VGBL, devem ter
entendimentos distintos. A previdência privada aberta entra na partilha,

16
TARTUCE, Flavia. Direito Civil: Direito de Família. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2021. p. 204.
17
MADALENO, Rolf; MADALENO, Ana Carolina Carpes; MADALENO, Rafael.
Fraude no Direito de Família e Sucessões. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 319.

151
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

mas dependerá do momento em que se encontra o plano – ou seja, se


estiver ainda no período das contribuições em que os valores podem ser
resgatados a qualquer tempo, haverá a partilha. Entretanto, se já estiver
no período do usufruto, ou seja, no período de recebimento da renda
mensal vitalícia ou por período determinado, deverá ser excluída da
partilha por ser considerada bem particular do beneficiário.
Há ainda que se ter em mente a previdência fechada, visto que são
fundos contratados por uma empresa para seus funcionários, não sendo tais
valores, portanto, passíveis de partilha, conforme o art. 1.659, VII, do
Código Civil. Considerando o regime da comunhão parcial de bens, uma
vez que os fundos de pensão são regidos pelo equilíbrio financeiro, não pode
o beneficiário sacar valores antes do início do prazo de conversão em
pensionamento mensal; os fundos, desta forma, deixam de possuir natureza
de investimento, como permitido pela previdência aberta.
Outro ponto que merece destaque diz respeito aos valores
depositados na previdência privada e sua origem. Quando se tratam de
valores advindos do trabalho de cada cônjuge/companheiro ou de venda de
bem comum, por exemplo, a partilha deverá ser feita de forma equânime.
Entretanto, havendo valores considerados personalíssimos – por
exemplo, ações indenizatórias específicas –, ou valores advindos por
sub-rogação ou doação, esses deverão ser excluídos no valor final de uma
partilha e pertencerão apenas àquele que o recebeu ao longo da união.
Em decisão recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao
decidir sobre o tema no Agravo de Instrumento (AI 2082439-
05.2021.8.26.0000 SP 2082439- 5.2021.8.26.0000), entendeu que
Previdência privada – como VGBL – assume feição de seguro de vida
para fins de herança, não devendo os valores nela alocados ser
considerados como aplicação financeira18.

18
“Agravo de instrumento. Ação de inventário. Decisão agravada reconsidera decisão
anterior que havia determinado expedição à instituição financeira para viabilizar o
depósito em juízo de numerário de VGBL atribuído à genitora do falecido, dada a
indicação feita por este àquela como sendo uma das beneficiárias de tal montante, e

152
Assim, no momento de eventual partilha pelo fim do casamento
ou união estável, pelo divórcio ou dissolução, considerando-se o regime
de bens da comunhão parcial, torna-se importantíssimo entender sobre o
tipo de previdência privada, a composição dos valores depositados ali
existente e se passível de partilha ou não, em conformidade,
principalmente, com as mais recentes decisões dos Tribunais Superiores.
Quando há a possibilidade de comunicabilidade dos valores
existentes no FGTS, a discussão reside na possibilidade ou não de se
partilhar os valores ali existentes ou até mesmo se já sacados e utilizados
ao longo da união.
Não há mais qualquer dúvida de que, uma vez havido o saque
do FGTS, o valor passa a integrar o patrimônio comum do casal e, em
caso de eventual divórcio ou dissolução da união estável, o valor deverá
ser partilhado, assim como todo e qualquer bem adquirido com o valor,
ainda que em nome de apenas um. Entretanto, se o valor ainda estiver
em depósito, por existir o vínculo empregatício de um ou ambos, o
entendimento não é o mesmo e a polêmica se instala.

passa a autorizar que o levantamento de tal quantia, correspondente a 50% do VGBL


total, seja realizado pelo genitor do de cujus, único beneficiário apontado ainda
remanescente vivo, tendo em vista que a genitora foi pré-morta ao filho aplicador do
VGBL. Inconformismo dos sobrinhos do de cujus e netos da avó indicada beneficiária,
alegando, em síntese, que a avó, mesmo pré-morta, deveria ser destinatária (via espólio
respectivo) do VGBL na proporção a que indicada como beneficiária. 1. Valores
relativos a plano de previdência privada (VGBL) que não estão sujeitos à partilha, pois
assumem natureza securitária e não são considerados herança, devendo ser distribuídos
aos beneficiários indicados. Inexistindo, por ato entre vivos ou de última vontade,
pedido de substituição de beneficiário indicado a destinatário de numerário de VGBL
e que seja pré-morto ao proponente do VGBL, caberá ao beneficiário indicado
remanescente, ainda vivo, receber a sua quota mais absorver a quota do beneficiário
indicado pré-morto ao proponente. Óbito do beneficiário indicado anterior ao
proponente que torna ineficaz a cláusula de sua indicação. Pedido de aplicação da
chamada de vocação hereditária de beneficiário pré-morto, para receber o produto da
indenização securitária, que não procede. Aplicação dos artigos 789, 791, 792 e 794 do
Código Civil de 2002. 2. Recurso desprovido” (TJ-SP - AI: 20824390520218260000
SP 2082439-05.2021.8.26.0000, Relator: Piva Rodrigues, Data de Julgamento:
02/06/2021, 9ª Câmara de Direito Privado. DJeSP, 2 jun. 2021).

153
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Para dirimir dúvidas, já decidiu o STJ (Recurso Especial


1.399.199-RS, Relator Min. Luís Felipe Salomão) que “deve ser
reconhecido o direito à meação dos valores do FGTS auferidos durante
a constância do casamento, ainda que o saque daqueles valores não seja
realizado imediatamente à separação do casal”.
Com isso, permite-se dizer que, dentre os valores depositados
no FGTS, mesmo já rompida a união, o ex-cônjuge ou companheiro tem
direito à metade dos depositados durante a época em que existia a vida
em comum, pois são considerados frutos civis do trabalho.
Seguindo, surgem as questões relacionadas às redes sociais e
domínios de internet. Cada dia mais, estamos diante de um mundo digital
que influencia pessoas, seja através do entretenimento, seja através de
negócios, com criações de perfis pessoais ou mesmo comerciais.
O tema é muito novo e vem, cada vez mais, sendo necessário
posicionamento da doutrina e jurisprudência diante do aumento
considerável de perfis sociais, vez que não há lei específica sobre o tema,
o que aflige as pessoas, em especial, quando no momento de um divórcio
ou dissolução de união estável.
Além das redes sociais mais conhecidas, como Instagram,
Facebook, Twitter e Youtube, não se pode deixar de pensar e considerar
os domínios de internet, conhecidos como sites, que podem ser trabalhos
digitais lucrativos.
É através dos perfis das redes sociais e também dos sites que
seus criadores se comunicam, divulgam seus conteúdos os quais podem,
a partir de um determinado número ou através da exploração da página,
ser monetizados e tornarem-se lucrativos, e muitos passam a viver
economicamente dessa atividade.
A controvérsia reside no entendimento de que tipo de bem são
considerados o perfil social e o site de uma pessoa: intangível,
personalíssimo – e, portanto, pessoal –, ou apenas um patrimônio como
qualquer bem móvel ou imóvel.

154
Sendo considerados como simples patrimônios e tendo sido
criados ao longo da sociedade conjugal ou da convivência estável,
considerando-se o regime da comunhão parcial de bens, entrarão na
divisão exatamente como outros bens móveis e imóveis.
Por fim, vemos, pois, que a união entre duas pessoas, seja pelo
casamento, seja pela união estável, vai muito além da simples troca
afetiva e dos planos pessoais. A união implica também na existência de
uma vida patrimonial que será construída e administrada ao longo do
tempo por ambos ou, não raras vezes, apenas por um.
Ter conhecimento sobre o regime de bens escolhido e qual a sua
extensão, quais os direitos individuais e quais os direitos comuns sobre
o patrimônio construído é de suma importância para se evitarem conflitos
emocionais e prejuízos financeiros quando de um eventual divórcio ou
dissolução, especialmente se tratando de bens que possuem tratamento
controvertido na legislação e na jurisprudência.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Incomunicabilidade dos proventos


do trabalho pessoal de cada cônjuge no regime da comunhão parcial dos
Códigos Civis de 1916 e 2002. Extensão da incomunicabilidade aos bens
móveis ou imóveis sub-rogados. Incomunicabilidade de bem imóvel
adquirido durante a união estável anterior ao casamento, por ser relativa
a presunção do art. 5º da Lei nº 9.276/96. In: AZEVEDO, Antônio
Junqueira de. Novos estudos e pareceres de direito privado. Rio de
Janeiro: Saraiva, 2009.

CARDOSO, Fabiana Domingues. Regime de bens e pacto antenupcial.


Rio de Janeiro ; São Paulo: Forense ; Método, 2010.

155
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das


Famílias. 3. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.
271-273.

LÔBO, Paulo. Direito civil: sucessões. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. v. 6.

MADALENO, Rolf. Do regime de bens entre os cônjuges. In: DIAS,


Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha-Brasil (org.). Direito de
Família e o novo Código civil. Belo Horizonte: Del Rey : IBDFAM,
2002.

MADALENO, Rolf; MADALENO, Ana Carolina Carpes;


MADALENO, Rafael. Fraude no Direito de Família e Sucessões. 1.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Borsoi,


1952. v. 2.

TARTUCE, Flavia. Direito Civil: Direito de Família. 16. ed. Rio de


Janeiro: Forense, 2021.

TEPEDINO, Gustavo. Contratos de Direito de Família. In: PEREIRA,


Rodrigo da Cunha (org.). Tratado de Direito de Família. 2. ed. Belo
Horizonte: IBDFAM, 2002.

156
NOTAS SOBRE A IRRETROATIVIDADE DA
EQUIPARAÇÃO DOS REGIMES SUCESSÓRIOS ENTRE OS
CÔNJUGES E OS COMPANHEIROS (TEMA 809 DO STF)

Larissa Maria de Moraes Leal*

Em recente julgado – RESP n. 1.904.374-DF, o Superior


Tribunal de Justiça decidiu questão atinente aos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade da distinção, originária do Código Civil, dos
regimes sucessórios aplicáveis entre cônjuges e companheiros.

TEMA: 809 – Validade de dispositivos do Código Civil


que atribuem direitos sucessórios distintos ao cônjuge e ao
companheiro.

EMENTA: DIREITO DAS DUCESSÕES. RECURSO


EXTRAORDIÁRIO. DISPOSITIVOS DO CÓDIGO
CIVIL QUE PREVEEM DIREITOS DISTINTOS AO
CÔNJUGE E AO COMPANHEIRO. ATRIBUIÇÃO DE
REPERCUSSÃO GERAL.
1.Possui caráter constitucional a controvérsia acerca da
validade do art. 1.790 do Código Civil, que prevê ao
companheiro direitos sucessórios distintos daqueles
outorgados ao cônjuge pelo art. 1.829 do mesmo Código.
2. Questão de relevância social e jurídica que ultrapassa os
interesses subjetivos da causa.
3. Repercussão geral reconhecida.

O Tema 809 aplica-se, igualmente, às partilhas extrajudiciais


em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública.
A referida inconstitucionalidade, declarada pelo STF – Supremo
Tribunal Federal, no contexto do julgamento do RE 878.694/MG com

*
Doutora em Direito Privado pela UFPE – Universidade Federal de Pernambuco.
Professora de Direito Civil dos Cursos de Gradução e Pós-graduação da Faculdade de
Direito do Recife-UFPE. Advogada.

157
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

repercussão geral reconhecida – Tema 809 –, em que foram confrontadas as


disposições constantes dos artigos 1.790 e 1829, do Código Civil, ocorreu
no sentido de igualar os mencionados regimes sucessórios, restando
determinado que deve ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto
nas de união estável o regime do art. 1879 do CC/2002.
Julgada a questão, se os argumentos de comparação entre os
regimes sucessórios aventados e a decisão de equiparação rumo à norma
prevista para os cônjuges não encontraram pacificação na doutrina, tanto
menos há ressonância assentada quanto aos efeitos, especialmente
temporais, que deve ter essa equiparação nas ações que versam sobre o
tema e estão sujeitas à aplicação da jurisprudência referida.
A imposição de modulação temporal na aplicação do Tema 809
impôs-se diante da amplitude dos efeitos da equiparação dos regimes
sucessórios no casamento e na união estável, em razão da amplitude
abarcada pela jurisprudência posta.
O problema aqui enfrentado, qual seja, a irretroatividade da
equiparação feita pelo STF – Supremo Tribunal Federal, não
abrangerá as tensões do debate acalorado que persiste na doutrina
brasileira sobre o sistema de precedentes judiciais constante do
Código de Processo Civil de 2015.
A locução persistência do debate se faz obrigatória, porquanto
seja o histórico dos precedentes no Brasil anterior ao CPC de 2015,
sempre na busca pela uniformização de nossa jurisprudência em busca
de maior segurança jurídica, agregando celeridade e efetividade ao
processo por meio de decisões isonômicas.
Ainda que afastada a discussão, convém deixar posto que

o debate sobre precedentes que acontece em todo o país,


com muitos ainda se demonstrando contrários à ideia de
um sistema que acreditam que não prima pela estabilidade
e pela segurança jurídica, mas sim que interfere
diretamente na atividade criativa do magistrado. A
temática dos precedentes está no bojo de um discussão

158
onde de um lado se encontra a busca por um direito
previsível e no outro a busca por um direito que não se
perde no tempo e está em constante evolução1.

Portanto, ainda que afastemos a discussão sobre os precedentes,


reconhecemos que a temática da interpretação judicial, que em última
instância irá encontrar-se com o sistema de precedentes, por emanar do
magistrado, distingue-se da jurisprudência.
Considerando que a jurisprudência é a colheita do trabalho
constante e uniforme de juízes, podemos inferir que ela existe apenas
porque o magistrado interpreta as leis ao aplica-las. “A interpretação
judicial deve subordinar-se à regra de hermenêutica do art. 5º da Lei de
Introdução ao Código Civil, sem despreza dos recursos que a ciência
fornece ao bom entendimento do direito”2.
Para melhor compressão do caso posto em comento, convém
trazer a Ementa do Julgado no STJ – Superior Tribunal de Justiça – que
foi norteada pela tese fixada no Tema 809 – STF, inclusive quanto ao seu
ponto mais nevrálgico, qual seja, a modulação temporal de seus efeitos:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.904.374 - DF


(2020/0143768-8)
RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI
EMENTA CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DAS
SUCESSÕES. OMISSÕES. INOCORRÊNCIA.
QUESTÕES DECIDIDAS PELO ACÓRDÃO
RECORRIDO. QUESTÃO CONSTITUCIONAL QUE
DEVE SER EXAMINADA EM RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. DECLARAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE. EFEITO EX TUNC
COMO REGRA. MODULAÇÃO TEMPORAL DE
EFEITOS E EFICÁCIA EX NUNC COMO EXCEÇÃO.
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DA MODULAÇÃO

1
RESENDE, Maria do Socorro Moreira de. Precedente Judicial e Segurança Jurídica à Luz
do Novo Código de Processo Civil Brasileiro. In: MAGALHÃES, Joseli Lima (coord.). O
processo e os Impasses da Legalidade. Teresina: EDUFPI, 2018. p. 584-585.
2
TENORIO, Oscar. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1955. p. 173.

159
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

DE EFEITOS. NECESSIDADE. TEMA 809/STF.


APLICABILIDADE AOS PROCESSOS EM QUE NÃO
TENHA HAVIDO TRÂNSITO EM JULGADO DA
SENTENÇA DE PARTILHA. TUTELA DA CONFIANÇA
E PREVISIBILIDADE DAS RELAÇÕES PROCESSUAIS
FINALIZADAS SOB A ÉGIDE DO ART. 1.790 DO
CC/2002. PRÉ-EXISTÊNCIA DE DECISÃO
EXCLUINDO HERDEIRO DA SUCESSÃO À LUZ DO
DISPOSITIVO POSTERIORMENTE DECLARADO
INCONSTITUCIONAL. IRRELEVÂNCIA. AÇÃO DE
INVENTÁRIO SEM SENTENÇA DE PARTILHA E SEM
TRÂNSITO EM JULGADO. EQUIPARAÇÃO COM
DECISÃO PROFERIDA NO CURSO DO INVENTÁRIO.
IMPOSSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE.
POSSIBILIDADE DE ARGUIÇÃO EM IMPUGNAÇÃO
AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA QUE IMPLICA
NA POSSIBILIDADE DE SEU EXAME NA FASE DE
CONHECIMENTO. 1- Ação proposta em 03/02/2004.
Recurso especial interposto em 25/11/2019 e atribuído à
Relatora em 07/10/2020. 2- Os propósitos recursais consistem
em definir: (i) se o acórdão recorrido possui omissões
relevantes; (ii) se a tese fixada pelo Supremo Tribunal
Federal por ocasião do julgamento do tema 809, segundo
a qual “é inconstitucional a distinção de regimes
sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no
art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas
hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o
regime do art. 1.829 do CC/2002”, deve ser aplicada ao
inventário em que a exclusão da concorrência entre
herdeiros ocorreu em decisão anterior à tese. 3- Inexiste
omissão quando o acórdão recorrido enfrenta amplamente a
questão controvertida, ainda que contrariamente aos
interesses da parte recorrente, bem como inexiste omissão
quando a questão que se alega deveria ter sido enfrentada
possui natureza constitucional e não houve a interposição de
recurso extraordinário pela parte. 4- Considerando que a lei
incompatível com o texto constitucional padece do vício de
nulidade, a declaração de sua inconstitucionalidade, de
regra, produz efeito ex tunc, ressalvadas as hipóteses em
que, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal,
houver a modulação temporal dos efeitos, que é
excepcional. 5- Da excepcionalidade da modulação decorre
a necessidade de que o intérprete seja restritivo, a fim de evitar
inadequado acréscimo de conteúdo sobre aquilo que o

160
intérprete autêntico pretendeu proteger e salvaguardar. 6- Ao
declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002
(tema 809), o Supremo Tribunal Federal modulou
temporalmente a aplicação da tese para apenas “os
processos judiciais em que ainda não tenha havido
trânsito em julgado da sentença de partilha”, de modo a
tutelar a confiança e a conferir previsibilidade às relações
finalizadas sob as regras antigas (ou seja, às ações de
inventário concluídas nas quais foi aplicado o art. 1.790
do CC/2002). 7- Aplica-se a tese fixada no tema 809/STF às
ações de inventário em que ainda não foi proferida a sentença
de partilha, ainda que tenha havido, no curso do processo, a
prolação de decisão que, aplicando o art. 1.790 do CC/2002,
excluiu herdeiro da sucessão e que a ela deverá retornar após
a declaração de inconstitucionalidade e a consequente
aplicação do art. 1.829 do CC/2002. 8- Não são equiparáveis,
para os fins da aplicação do tema 809/STF, as sentenças de
partilha transitadas em julgado e as decisões que,
incidentalmente, versam sobre bens pertencentes ao espólio,
uma vez que a inconstitucionalidade de lei, enquanto questão
de ordem pública, é matéria suscetível de arguição em
impugnação ao cumprimento de sentença e que, com muito
mais razão, pode ser examinada na fase de conhecimento. 9-
Recurso especial conhecido e desprovido. (grifo nosso).

O apontamento do objeto de estudo, valiosa que é para o diálogo


científico, ganha aqui maior relevância porque a temática proposta está
delimitada ao tratamento dos efeitos da modulação temporal constante do
Tema 809 do Supremo Tribunal Federal e sua aplicação pelo Superior
Tribunal de Justiça.
A abordagem será feita a partir do retorno às bases da
positivação dos preceitos relativos à formação, vigência e eficácia das
leis no Brasil e dos efeitos pretendidos da prestação jurisdicional.
A partir dessa premissa, passemos a considerar as disposições
constantes da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, antes
denominada Lei de Introdução ao Código Civil.
Com efeito, a modulação excepcional determinada pelo
Supremo Tribunal Federal no Tema 809 tem fonte primeira – ainda que

161
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

esta não tenha aparecido no julgamento –, na determinação do art. 5º da


LINDB: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem comum”.
Também a lei carrega, ou deveria carregar, comandos que
evidenciam os fins sociais. A propósito dessa caraterística necessária das
leis, vale trazer a opinião de Oscar Tenório (1955), proferida ainda na
metade do século XX:

Manifestam-se os fins sociais da lei, a título de exemplo, na


evolução processada no âmbito da regulação da família,
denotando a preocupação do legislador, em certa medida, de
não deixar de fora dos raios de sua proteção os que estavam,
até ontem, desamparados. Manifestam-se os seus fins sociais
na preservação das famílias – outrora tidas como naturais –
fenômeno que se opera ao mesmo tempo que as Constituições
destacam a regra que a família está sob a tutela do Estado.
Enquanto por um lado, a Constituição Federal põe sob a tutela
do poder público a família constituída pelo casamento
indissolúvel; por outro, levada por considerações dos fins
sociais da lei, ampara os ilegítimos, colocando-os na mesma
linha de direito dos legítimos3.
Restabeleceu-se neste ponto a fórmula da Revolução Francesa,
cujos ideais conduziram ao princípio da igualdade sucessória
dos legítimos e dos naturais os quais foram abandonados, em
parte, pelo Código Civil francês. O cálculo egoísta de uma
burguesia (transcrevemos as palavras de RIPERT), que não
queria que o chefe da família fosse perturbado pelas
reclamações dos bastardos, explicava o recuo.

A questão dos estados subjetivos, sua prova e os limites de


investigação e decisão pelo Judiciário não podem ser reféns de processos
puramente mentais através dos quais o julgador forma a sua convicção4.
Essa questão está, também, na base do comando legal que
determina ao julgador que esteja atento às exigências do bem comum.

3
TENORIO, 1955, p. 161.
4
Sobre essa questão, vide TRINDADE, Cláudia Sofia Alves. A Prova de Estados
Subjetivos no Processo Civil. Coimbra: Almedina, 2016.

162
Temos, então, a obrigação de um olhar dos juízes que vá mais adiante e
seja mais abrangente que a querela contida na ação como primeiro ponto
de equilíbrio imposto às decisões.
É necessário lembrar que o art. 5º da Lei de Introdução, ao tratar
de bem comum, não o faz com o caráter que historicamente corresponde
a uma exigência feita ao legislador. O direito positivo brasileiro optou
por um caminho mais seguro, impondo aos juízes a missão de observar,
em suas decisões, as exigências do bem comum, sem determinação
mínima de seu sentido5.
O reconhecimento de que o direito é uma força específica da
sociedade traz consigo, em uma visão naturalista, “alguma coisa de
peculiar à natureza humana, um resultado da convicção que
espontaneamente se forma sobre os melhores meios para atingir os fins
sociais”6. E continua Eduardo Espinola (1977):

Um dos maiores serviços prestados à ciência do direito


pela escola de SAVIGNY foi inquestionavelmente sua
vigorosa oposição à teoria dominante no século de
ROUSSEAU, segundo o qual o direito não era mais do que
a soma das leis editadas, o produto do arbítrio do
legislador; quanto ao povo, o direito a priori lhe era
estranho, sendo-lhe, porém, aplicado e imposto. A escola
histórica considera o direito como sendo originariamente o
produto imediato da atividade do espírito do povo7.

Também as exigências do bem comum constituem o conjunto de


interesses da coletividade, sendo uma norma hermenêutica e também base do
direito, utilidade coletiva que dá suporte à viabilidade e aplicação das normas.
Cabe o alerta:

5
TENORIO, 1955, p. 162-163.
6
ESPINOLA, Eduardo. Sistema do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora
Rio, 1977. p. 38-39.
7
ESPINOLA, 1977, p. 39.

163
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

As dificuldades que podem surgir na determinação das


fronteiras dos fins sociais da lei e do bem comum não
justificam o entrosamento dos dois conceitos. Diferem: não
são sucessivos. Querer considera-los como dois momentos do
direito positivo, seria admitir que o intérprete do art. 5º teria
de sujeitar a lei, no processo de interpretação, ao critério dos
fins sociais e, a seguir, ao do bem comum.
O fim do direito é, no sistema brasileiro, social, porque
assim determina o legislador8.

Ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código


Civil, o STF não promoveu, e não deveria ter promovido, uma unificação
da ordem jurídica imediata e que pudesse garantir os resultados
pretendidos no julgamento a todos os casos que envolvem as tensões
entre os regimes sucessórios aqui tratados.
Tal unificação é repelida gravemente pela ordem jurídica, que
se torna cada vez mais complexa e com a ‘manutenção dos espaços de
Direito Privado como um ambiente com princípios e valores autônomos,
recognoscível como um dado intrínseco a seu próprio sistema”9.
Não é por outra razão que transborde à complexidade do sistema
jurídico que o julgador, movido que deve ser pelos fins sociais a que a
lei se dirige e às exigências do bem comum, pode decidir questões como
as ora trazidas sem ocupar-se, atenciosamente, com a modulação dos
efeitos da decisão.
Esse argumento consta do voto da Relatora do RESP n.
1.904.374-DF, Ministra Fátima Nancy Andrighi:

(...) Todavia, é conhecida a lição e o entendimento que


conferem eficácia prospectiva (efeito ex nunc) às decisões
que declaram a inconstitucionalidade de lei, fundando-se
em razões de diversas ordens – proteção à boa-fé, tutela da
confiança, previsibilidade, pragmatismo e

8
TENORIO, 1955, p. 172-173.
9
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto
epistemológico, constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2019. p. 225.

164
consequencialismo jurídico são algumas delas. A partir
desses ideais é que se concebeu a denominada modulação
temporal dos efeitos da decisão que declara a
inconstitucionalidade.
14) Não se pode perder de vista, entretanto, que a
retroatividade é a regra e que a modulação de efeitos é a
exceção. Nesse sentido, leciona Teresa Arruda Alvim:

Importante consignar, todavia, que a utilização


indevida da modulação, transformando-a em regra,
quando, na verdade, é exceção, pode ensejar mais
insegurança jurídica e estimular a edição de leis
inconstitucionais. A excepcionalidade desse
instituto exige fundamentação qualificada. Trata-se
de instituto que deve ser excepcionalmente usado,
tanto no ambiente do controle concentrado, quanto
no da alteração de precedentes/jurisprudência
firme, sendo este último o objeto principal deste
estudo. À época de sua concepção, foi visto como
algo tão excepcional que o quórum para modular
era (é) maior do que o exigido para a própria
declaração de inconstitucionalidade. (ALVIM,
Teresa Arruda. Modulação: na alteração da
jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 27).

15) Diante desse cenário, é correto afirmar que as


interpretações subsequentes da modulação de efeitos devem
ser restritivas, a fim de que não haja inadequado acréscimo
de conteúdo exatamente aquilo que o intérprete autêntico
pretendeu, em caráter excepcional, proteger e salvaguardar.

Entendeu, portanto, o Supremo Tribunal Federal, que impôs-se


a exceção às regras constitucional e processual que conferem eficácia
retroativa às decisões que a inconstitucionalidade de leis. Assim
pronunciou-se o Ministro Barroso, também citado pela Relatora:

A lógica do raciocínio é irrefutável. Se a Constituição é a


lei suprema, admitir a aplicação de uma lei com ela
incompatível é violar sua supremacia. Se uma lei
inconstitucional puder reger dada situação e produzir

165
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

efeitos regulares e válidos, isso representaria a negativa de


vigência da Constituição naquele mesmo período, em
relação àquela matéria. A teoria constitucional não poderia
conviver com essa contradição sem sacrificar o postulado
sobre o qual se assenta.
Daí por que a inconstitucionalidade deve ser tida como
uma forma de nulidade, conceito que denuncia o vício de
origem e a impossibilidade de convalidação do ato.
Corolário natural da teoria da nulidade é que a decisão que
reconhece a inconstitucionalidade tem caráter declaratório
– e não constitutivo – limitando-se a reconhecer uma
situação preexistente. Como consequência, seus efeitos se
produzem retroativamente, colhendo a lei desde o
momento de sua entrada no mundo jurídico. Disso resulta
que, como regra, não serão admitidos efeitos válidos à lei
inconstitucional, devendo todas as relações jurídicas
constituídas com base nela voltar ao status quo ante.
(BARROSO, Luís Roberto. Controle de
constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2009. p. 16).

Ressaltou a relatora, Ministra Fátima Nancy Andrighi, que, desde a


reforma promovida pela Lei 11.232 de 2005, as declarações supervenientes
de inconstitucionalidade de leis no âmbito do Supremo Tribunal Federal
tornam inexigíveis todas as decisões/sentenças nelas baseadas, sendo matéria
suscetível de ser arguida na impugnação ao cumprimento de sentença, ou
seja, após e somente após o trânsito em julgado.
Assim, o Juízo deve deixar de aplicar a lei declarada
inconstitucional antes da sentença de partilha, marco temporal
determinado pelo Supremo Tribunal Federal para modular os efeitos da
tese fixada no julgamento do tema 809.
O efeito modulador, previsto na lei 9.868, de 1999, que dispõe
sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e
da ação declaratória de constitucionalidade no Supremo Tribunal
Federal, atribui ao Tribunal, em seu art. 27, a faculdade de restringir o
efeito da aplicação da decisão, determinando o termo inicial da sua

166
aplicabilidade, levando em consideração razões de segurança jurídica e
excepcional interesse social.
A lei acima focada não fez menção ao texto da Lei de
Introdução que, com décadas de antecedência, fixou razões de
julgamento e bases hermenêuticas mais hígidas e já conhecidas pela
doutrina e pela jurisprudência nacional. O limite de decidir e a obrigação
de modular os efeitos da decisão, concluímos, são anteriores no
ordenamento jurídico brasileiro e passaram apenas por uma repetição
feita pelo legislador, fruto do empobrecimento da técnica legislativa que
tem ocorrido no Brasil a partir das últimas décadas do século XX.
A ideia geral, ou presunção, é de que seria mais justo e adequado
que decisões sobre constitucionalidade produzissem efeitos retroativos em
todas as situações jurídicas. Mas essa presunção de justiça e adequação não
decorre de processo lógico que alcance todas as nuances envolvidas no
controle de constitucionalidade, quer seja concentrado, quer seja difuso.
Não obstante, no âmbito das relações de família levadas a Juízo,
uma das características mais aparentes é o volume de ações, a
diversidade dos interesses, sobretudo em demandas novas ainda não
previstas em lei, e a gravidade peculiar que se pode colher em casos de
declaração de inconstitucionalidade.
A dinâmica das relações de família, sua complexidade e
características próprias de regulação nos levam a concluir que, neste
campo específico do direito, a regra parece inversa: impõe-se a
modulação, sob pena de ocorrer uma inversão das próprias razões que
estão presentes no comando geral de retroatividade: proteção à boa-fé,
tutela da confiança, previsibilidade, pragmatismo e consequencialismo
jurídico, citados pela Relatora do Recurso Especial que reafirmou a
modulação constante do Tema 809 do Supremo Tribunal Federal.
Ocorre, nas relações de família, a complexidade cultural e
normativa sobre a qual nos alertou Eduardo Espínola10:

10
ESPINOLA, 1977, p. 30.

167
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Nas sociedades civis nem tôdas as normas, que se destinam a


regular a conduta humana, são normas jurídicas. O indivíduo,
ao nascer, encontra-se logo no círculo da Família, cuja
influência na formação de seu caráter é muitas vêzes decisiva
para toda sua conduta futura. Aí, como depois em suas
primeiras relações com indivíduos estranhos, recebe
impressões, aceita princípios de ordem religiosa, moral, e até
puramente artística, que ordinariàmente constituem motivos
tão poderosos na determinação de seus atos, como as próprias
regras jurídicas.

Além do comando geral de retroatividade, lembremos dos fins


sociais a que a lei se dirige e as exigências do bem comum, que devem
coexistir nas decisões proferidas.
Ainda que um artigo de lei seja repelido por
inconstitucionalidade e outro seja trazido para suprir a sua lacuna, ao
tomar essa decisão, o julgador está em pleno gozo de suas funções de
aplicar a lei e, portanto, não pode perder de vista, sobremaneira quando
está julgando com ânimo de repercussão geral, as consequências da
amplitude temporal de sua decisão.
Esse não é um argumento incontroverso. Há quem defenda, a
propósito de uma classificação ou hierarquização estanque das normas que a
Constituição e, portanto, o controle de constitucionalidade, estão acima dos
comandos legais da Lei de Introdução, dado que esta é lei ordinária federal.
Talvez aos defensores dessa linha de raciocínio escape a
consideração de que o controle de inconstitucionalidade se dá no âmbito
de uma ação que foi levada a Juízo. Portanto, há julgamento. E se há
julgamento, está presente a necessidade inafastável de atendimento dos
fins sociais da lei e das exigências do bem comum.
A partir dessa perspectiva que a Terceira Turma do Superior
Tribunal de Justiça, analisando e aplicando a modulação dos efeitos do Tema
809 da repercussão geral estabeleceu que a tese fixada pelo Supremo Tribunal
Federal deve ser aplicada às ações de inventário em que ainda não foi
proferida sentença, ainda que tenha havido, em seu curso, decisão que tenha
excluído companheira ou companheiro da sucessão.

168
REFERÊNCIAS

ESPINOLA, Eduardo. Sistema do Direito Civil Brasileiro. Rio de


Janeiro: Editora Rio, 1977.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Liberdade Testamentária de


Conviventes em União Estável, à Luz do Código Civil e de Decisões do
STF. Revista Nacional de Direito de Família e das Sucessões, Brasília,
v. 8, n. 45, p. 29-41, nov./dez. 2021.

RESENDE, Maria do Socorro Moreira de. Precedente Judicial e


Segurança Jurídica à Luz do Novo Código de Processo Civil Brasileiro.
In: MAGALHÃES, Joseli Lima (coord.). O processo e os Impasses da
Legalidade. Teresina: EDUFPI, 2018. p. 581-608.

RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Direito Civil Contemporâneo:


estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2019.

TENORIO, Oscar. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Rio


de Janeiro: Borsoi, 1955.

TRINDADE, Cláudia Sofia Alves. A Prova de Estados Subjetivos no


Processo Civil. Coimbra: Almedina, 2016.

169
DESAFIOS PROCEDIMENTAIS NA HERANÇA DIGITAL

Maria Goreth Macedo Valadares*


Thais Câmara Maia Fernandes Coelho*

1 INTRODUÇÃO

O direito das sucessões é o ramo do direito responsável pelo


cuidado da sucessão causa mortis e acompanha o homem desde sempre,
já que a morte é inerente ao ser humano. No entanto, embora as regras
atinentes ao tema tenham sofrido inúmeras alterações ao longo dos anos,
fato é que a interferência de outras ciências tem afetado sobremaneira o
direito das sucessões e colocado em xeque as regras até então vigentes.
É o que acontece, por exemplo, com o tema central do presente
artigo: herança digital. O uso da tecnologia invadiu a vida de todas as
pessoas, seja no campo profissional, seja no pessoal. E o uso e acesso a
esse universo tecnológico tem provocado discussões na seara sucessória
não apenas sobre o que poderia ser considerado patrimônio, como
também sobre o futuro desses bens, além dos aspectos processuais de
uma eventual sucessão.
Poderiam ou deveriam as redes sociais ser objeto de um
inventário? Se sim, qual o valor a ser atribuído a esse patrimônio digital?
A vida hoje é digital, não resta dúvida. Significativa parte de nossas vidas
está armazenada nas “nuvens” e pode ter valor econômico. Qual o futuro
desses bens quando da morte de seu titular? São eles passíveis de serem
inventariados? Se sim, qual o procedimento a ser adotado? Seria possível

*
Doutora e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Professora da PUC Minas e
do IBMEC. Vice-Presidente da Comissão de Sucessões da OAB/MG e Vice-Presidente
do IBDFAM/MG.
*
Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Professora de Direito de Família e
Sucessões no UNI/BH e UNA. Presidente da Comissão de Direito das Sucessões da
OAB/MG. Membro da Comissão Especial de Família e Sucessões da OAB Nacional.

171
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

fazer uso das regras hoje existentes ou seriam necessárias alterações?


Podem as plataformas virtuais negar a transmissibilidade dos bens
digitais no âmbito sucessório? Essas são apenas umas das indagações
que os profissionais da área começam a se deparar e que colocam em
dúvida a eficácia das normas até então vigentes.

2 HERANÇA DIGITAL: um breve conceito

Questão que se coloca de forma tormentosa e que vem


ganhando o cenário jurídico é a herança digital, definida de acordo com
o arquivado Projeto de Lei nº 4.847, de 2012 como todo conteúdo
intangível do falecido, que seria possível guardar ou acumular em espaço
virtual, incluindo-se senhas, perfis de rede social, contas da internet ou
qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido1.
No entanto, a transmissão e permissão do gerenciamento da
herança digital aos herdeiros do falecido pode ferir os direitos da
personalidade do falecido. Isso sem contar que o acesso a algumas
plataformas poderia, além de ferir a personalidade do falecido, infringir,
também, direitos de terceiros, que de uma forma ou de outra estivessem
envolvidos com o de cujus2.
Mas a questão é ainda mais delicada quando parte significativa
dos acervos digitais de uma pessoa estão ligados à sua esfera íntima,
sendo, ou pelo menos deveriam, ser protegidos pelo direito à intimidade

1
“Nesse contexto, os chamados bens digitais (digital assets) surgiram no rasto da
popularização das redes sociais, correios eletrônicos, livros digitais, criptomoedas,
serviços de streaming, nuvens de armazenamento de dados etc, causando grande
confusão quanto à natureza jurídica para fins sucessórios, notadamente por
demandarem do operador do direito sensível esforço para a definição de direitos dos
sucessores ante a imperiosa necessidade de proteção à privacidade e à intimidade do
titular desses bens.” (MARTINS; FALEIROS JÚNIOR, 2019, p. 465).
2
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) traz importantes contribuições para a
proteção dos dados pessoais, protegendo a privacidade de bens existenciais, no entanto,
não menciona expressamente a proteção de dados da pessoa falecida.

172
e à privacidade. Gabriel Honorato de Carvalho e Adriano Marteleto
Godinho (2019, p. 177) demonstram que “não poderia ser diferente,
enquanto a vida de um sujeito tenha se esvaído por qualquer que seja o
motivo, toda a sua história, sua honra, sua boa fama, sua imagem, sua
intimidade e, de um modo geral, sua vida privada e seu patrimônio
devem ser respeitados.”
Analisando tal problemática, uma forma seria separar o acervo
virtual de dados com valor existencial e o acervo de dados com valor
patrimonial, delimitando em geral para a transmissão da ordem de vocação
hereditária para esse último, caso não tenha sido feito nenhuma disposição
de vontade anterior, considerando se tratar de bens personalíssimos.

Evidencia-se que na hipótese do evento morte, não se pode


tratar da imediata substituição de titularidade do
patrimônio digital sem afetar ou até violar a dignidade e
igualmente os direitos da personalidade do autor da
herança, em particular os seus direitos à intimidade e à
privacidade. Notabiliza-se, dessa forma, que a
interpretação sistemática é a modalidade exegética
particularmente ideal para a composição de pautas de
solução jurisdicional no âmbito do direito digital, tomando
como nexo nuclear as disposições da CF/88 (LGL\1988\3)
para a composição de constelações urdidas a partir do
panteão normativo, doutrinário e jurisprudencial que toca
o tema. (SARLET, 2018, p. 40).

Sendo assim, Bruno Zampier (2017) classifica em três classes a


natureza jurídica dos bens digitais, são eles: I) bens digitais patrimoniais, II)
bens digitais existenciais; e III) bens digitais patrimoniais-existenciais.
Assim, bens digitais como e-mails, fotos, textos não publicados,
conversas privadas em chats ou WhatsApp, estão amparadas pelo direito
fundamental à privacidade, não podendo automaticamente serem
transferidos esse acervo para o espólio do falecido, mesmo possuindo um
valor econômico, considerando serem direitos essenciais e personalíssimos.

173
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

E isso é muito relevante porque se de um lado alguns bens


digitais podem ter apenas valor sentimental, de outro podem ter valor
econômico e permitir, inclusive, que os herdeiros possam explorá-los
após a morte de seu titular.

A digitalização dos bens, a toda evidência, resultou em


grandes quantidades de riquezas, tanto pessoais como
comerciais, sendo armazenadas on-line, em dispositivos
digitais e na nuvem. Como esses ativos são
frequentemente difundidos nas diversas redes sociais,
contas de e-mail e plataformas de streaming, há desafios
potenciais para gerenciar e transferir a sua titularidade
(GONÇALVES, 2019, p. 23).

A conta do apresentador Gugu Liberato, por exemplo, teve


aumentado de sobremaneira o número de seguidores após seu óbito, o
que poderia fazer com que a família quisesse manter tal conta com
alguma finalidade econômica, como patrocínios e o uso de sua imagem,
por exemplo3.

3 ASPECTOS PROCESSUAIS DA HERANÇA DIGITAL

O inventário pode ser judicial ou extrajudicial, a depender da


existência ou não de herdeiros menores ou incapazes, tendo o inventário

3
“Torna-se cada vez mais cotidiana a existência de perfis de pessoas falecidas nas redes
sociais, o que adquire ainda mais expressividade quando tais contas se encontravam
vinculadas a determinada celebridade. Não é incomum que essas páginas recebam um
número maior de acessos e seguidores após a morte do titular, como no caso do Gugu
Liberato, incrementando o valor econômico agregado ao perfil. (....) Apesar de a
manutenção da conta da pessoa falecida em uma rede social parecer, num primeiro
momento, uma atitude mórbida e, destarte, rechaçável, deve-se sopesar que a
exploração econômica desse perfil, dentro dos limites bem definidos, além de ajudar a
manter viva a história do de cujus, pode render frutos mensais necessários para a
subsistência dos herdeiros dependentes, especialmente quando a plataforma social foi
a principal fonte de renda do morto, como já ocorre de forma bastante significativa no
Brasil.” (HONORATO; GODINHO, 2019, p. 172).

174
extrajudicial regulamentação específica na Resolução nº35/2007 do
CNJ. O inventário depende de atuação do interessado, estando previstos
os procedimentos nos artigos 610 e ss do CPC. Assim, pode requerer o
inventário aquele que estiver na posse e administração da herança, no
prazo de dois meses.
Mas no caso de um patrimônio digital, considerando que não há
que se falar em posse física dos bens, quem poderia requerer a abertura
do inventário? Nesse ponto, pode-se observar quem foi legitimado
através de um testamento digital para essa função, ou mesmo, através de
um testamento ordinário. A vontade do autor da herança deve ser
observada e cumprida, na medida que não viole nenhum direito de
terceiro. Nesse sentido, Livia Teixeira Leal (2019, p. 237), analisa:

Além disso, deve ser conferida ao usuário a possibilidade


de deixar disposições de vontade em vida, inclusive por
meio de testamento, a respeito do destino e administração
de conteúdo disposto na rede, como manifestação de sua
autonomia existencial, devendo seu desejo ser respeitado
após a sua morte.
A análise do tratamento do conteúdo disposto na rede após
a morte do usuário, portanto, não deve estar restrita ao
aspecto patrimonial, devendo-se ir além do paradigma da
herança digital. A complexidade e a riqueza das
possibilidades constantes na rede demandam a
consideração das situações jurídicas existenciais que se
constituem nesse contexto e que merecem tutela jurídica
mesmo após a morte do usuário.

A importância de um planejamento sucessório dispondo sobre essa


escolha é enorme e evitaria litígios futuros entre familiares, pois deixaria de
forma clara e preventiva, quem teria a administração desse patrimônio
virtual durante o processo de inventário e quem seriam os beneficiados
desse acervo digital. O próprio ordenamento jurídico reconhece a

175
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

possibilidade de validade de disposições testamentárias de caráter não


patrimonial, ainda que o testador somente a elas tenha se manifestado4.
Caso o autor da herança não tenha se precavido com a feitura
do testamento, possuem legitimidade concorrente para requerer o
inventário: o cônjuge ou companheiro sobrevivente; o herdeiro; o
legatário; o testamenteiro; o cessionário do herdeiro ou do legatário; o
credor do herdeiro, do legatário ou do autor da herança; o Ministério
Público, havendo herdeiros incapazes; a Fazenda Pública, quando tiver
interesse; o administrador judicial da falência do herdeiro, do legatário,
do autor da herança ou do cônjuge e companheiro supérstite.
Uma vez proposto o processo de inventário, o próximo passo
seria a nomeação de um inventariante, seguindo a ordem de preferência
do art. 617 do CPC, que pode também ser relativizada, a depender do
caso específico. Como salientado, é possível em um testamento, ou outro
documento preventivo a escolha antecipada pelo autor da herança do
inventariante, mesmo que não esteja entre as pessoas elencadas na lei.
Da mesma forma que é possível a escolha do testamenteiro que irá
cumprir as disposições testamentárias, pode-se escolher um
inventariante, podendo até ser estipulada remuneração dessa função
previamente pelo autor da herança. No caso de divergência do
inventariante entre os herdeiros, caberia o Juiz nomear um inventariante
dativo, devendo ter expertise em patrimônio digital.
Após o cumprimento do compromisso, o inventariante
nomeado deverá apresentar as primeiras declarações no prazo de 20 dias,
descrevendo todo o patrimônio do de cujus, inclusive as suas dívidas.
Nesse ponto, o inventariante teria acesso aos ativos, senhas e contas

4
Art. 1.857 do CC/2002: Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade
dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.
§ 1º A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.
§ 2º São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o
testador somente a elas se tenha limitado.

176
digitais desde a sua nomeação? Essa é uma das celeumas que em breve
começarão a surgir no Judiciário.
Sendo a resposta num sentido positivo, o juiz determinará
especificadamente no termo de compromisso do inventariante que o
acesso teria apenas a função de identificar os bens digitais de conteúdo
econômico, sendo o inventariante responsável civil e criminalmente pelo
uso indevido dos bens digitais em que não há caráter econômico. Como
exemplo, podem ser citadas as milhas aéreas, itens pagos em plataforma
digital, os bitcoins, softwares, marcas, e-books, ferramentas de games e
outros conteúdos sem natureza íntima e personalíssima.
Mas caso o autor da herança tenha feito um testamento digital
dispondo de conteúdo de natureza jurídica patrimonial e existencial,
como proceder? Nesse sentido, Livia Teixeira Leal (2019, p. 237)
argumenta:

Caso a página ou conta esteja vinculada à exploração de


determinada atividade econômica, ou seja, vinculada a
transações financeiras, é admissível o tratamento baseado
na transferência patrimonial, em decorrência do caráter de
tal aplicação. Já as contas que se refiram a conteúdos
privados, como e-mails ou aplicativos de conversas
privadas, não devem ser devassadas como regra, na
medida em que há um interesse na tutela da privacidade da
pessoa falecida, que se opera mesmo em face dos
familiares. Apenas em situações excepcionalíssimas, em
que outro interesse existencial se coloque em situação de
preponderância, é que seria possível autorizar o acesso a
esses conteúdos privados.

Se o conteúdo das declarações de vontade dispuser do acesso as


redes de Instagram e Youtube, por exemplo, que são bens sensíveis e
econômicos, a disposição testamentária deve ser respeitada, no limite da
legítima e dos direitos de terceiros envolvidos.
As primeiras declarações representam o momento em que o
inventariante irá descrever todo o patrimônio do de cujus, incluindo

177
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

nessa esfera o conteúdo digital. Caso o prazo não seja cumprido, poderá
ser hipótese de remoção do inventariante. No entanto, sabe-se que
quando se trata de patrimônio que tenham ativos digitais, o prazo de 20
(vinte) dias5, muitas vezes pode ser insuficiente para averiguação de todo
conteúdo virtual pelo inventariante, podendo ser solicitado ao juiz uma
dilação para verificação de todos os bens digitais, considerando a demora
na resposta e os termos de uso de cada provedor6.
Considerando que a temática é nova e a precificação dos ativos
digitais dependem do valor real do mercado no momento do falecimento,
cabe ao inventariante apresentar os bens digitais com conteúdo
econômico e seus valores. E aí outra tormentosa questão surgirá diante
de um caso concreto: como fazer essa avaliação? Quais os critérios a
serem utilizados? Qual o profissional apto a valorar tais bens?
Se houver divergência em relação aos valores dos ativos
digitais, não podendo ser resolvido pela prova documental, a
controvérsia será remetida as vias ordinárias para apuração dos valores,
devendo o caso ser submetido a uma perícia – e aí como salientado
acima, a definição do profissional competente será de suma importância,
já que não se trata de uma perícia contábil rotineira. Nesse caso, havendo
divergência entre os herdeiros sobre a precificação de tais bens, poderá
ocorrer a suspensão do inventário dessa parte controversa7.

5
Art. 620 do CPC: Dentro de 20 (vinte) dias contados da data em que prestou o
compromisso, o inventariante fará as primeiras declarações, das quais se lavrará termo
circunstanciado, assinado pelo juiz, pelo escrivão e pelo inventariante, no qual serão
exarados: (...)
6
Art. 139 do CPC: O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,
incumbindo-lhe: (...)
VI - dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova,
adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela
do direito; (...)
7
Art. 612 do CPC: O juiz decidirá todas as questões de direito desde que os fatos
relevantes estejam provados por documento, só remetendo para as vias ordinárias as
questões que dependerem de outras provas.

178
Para se evitar um litígio, surge a importância de se fazer uma
análise econômica de todo o patrimônio digital que irá compor o
espólio, uma vez que devem ser computados os bens corpóreos e os
incorpóreos, inclusive para resguardar e calcular a legítima no caso de
disposições testamentárias, ou das devidas colações. A legítima é
limitada a 50% (cinquenta por cento) dos bens da herança em favor
dos herdeiros necessários. Não podendo nesse caso ocorrer uma
flexibilização, mesmo sabendo de uma necessidade de sua revisão
com uma reforma legislativa nesse sentido.
Após as primeiras declarações, inicia-se a fase das citações e
intimações, onde o juiz mandará citar para os termos do inventário e da
partilha, o cônjuge, o companheiro, os herdeiros, os legatários, bem
como determina a intimação da Fazenda Pública, do Ministério
Público, se houver herdeiro incapaz ou ausente, e o testamenteiro, se
houver testamento.
Conforme ensinamentos de Gustavo Tepedino, Ana Luisa
Nevares e Rose Melo Vencelau Meireles (2020), a não citação do
testamenteiro nos autos causa a nulidade no inventário, considerando que
lhe cabe fiscalizar o cumprimento das disposições testamentárias, e para
tanto, ingressar no inventário. Nessa mesma linha, será declarada nula a
partilha, quando um dos herdeiros não for citado e foi excluído da partilha.
Finalizadas as citações, será aberta vista às partes, em prazo
comum de 15 dias para manifestarem sobre as primeiras declarações.
Esse é um momento importante no inventário, onde os interessados terão
a oportunidade de arguir erros, omissões e sonegações de bens, reclamar
a nomeação do inventariante, e contestar a qualidade de um ou outro
herdeiro. Em se tratando de patrimônio inventariado com grande acervo
digital, essa fase processual é de suma relevância na qual os interessados
terão a oportunidade de clarear, questionar, indicar e precificar os bens a
serem inventariados.
Também nessa fase, o juiz poderá remeter a discussão de alguns
pontos controversos para ação própria, em especial quando demandar

179
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

dilação probatória, que não a documental. Assim, por exemplo,


divergência na precificação de ativos digitais, do que deve ou não se
considerado como acervo digital, o foco sai do juízo do inventário.
E é nesse mesmo período estabelecido no artigo 627 do CPC,
que o herdeiro será obrigado a colacionar os bens que recebeu, e se não
os possuir, trazer o valor atual8.
Um exemplo ilustrativo, seria o pai que tinha seis filhos, e dois
anos antes do falecimento doou ao filho caçula 180 mil milhas em
Programas de Fidelidade. Nesse caso, as milhas recebidas deverão ser
objeto de colação, já que compõem o acervo digital do falecido.
O herdeiro deve manifestar sobre a doação do acervo digital
recebido em vida, sob pena de responder por sonegação. Caso o
herdeiro não mais possua o patrimônio digital a ser colacionado, pode
imputar ao seu quinhão hereditário o valor dos bens digitais no
momento da abertura da sucessão.
Todavia, se a matéria exigir dilação probatória diversa da
documental9, como por exemplo, relativo a divergência de cálculo do
valor atual dos bens digitais doados anteriormente, o juiz remeterá as

8
Art. 639 do CPC: No prazo estabelecido no art. 627, o herdeiro obrigado à colação
conferirá por termo nos autos ou por petição à qual o termo se reportará os bens que
recebeu ou, se já não os possuir, trar-lhes-á o valor.
Parágrafo único. Os bens a serem conferidos na partilha, assim como as acessões e as
benfeitorias que o donatário fez, calcular-se-ão pelo valor que tiverem ao tempo da
abertura da sucessão.
9
Art. 641 do CPC: Se o herdeiro negar o recebimento dos bens ou a obrigação de os
conferir, o juiz, ouvidas as partes no prazo comum de 15 (quinze) dias, decidirá à vista
das alegações e das provas produzidas.
§ 1º Declarada improcedente a oposição, se o herdeiro, no prazo improrrogável de 15
(quinze) dias, não proceder à conferência, o juiz mandará sequestrar-lhe, para serem
inventariados e partilhados, os bens sujeitos à colação ou imputar ao seu quinhão
hereditário o valor deles, se já não os possuir.
§ 2º Se a matéria exigir dilação probatória diversa da documental, o juiz remeterá as
partes às vias ordinárias, não podendo o herdeiro receber o seu quinhão hereditário,
enquanto pender a demanda, sem prestar caução correspondente ao valor dos bens sobre
os quais versar a conferência.

180
partes às vias ordinárias, não podendo o herdeiro receber o seu quinhão
hereditário, enquanto pender a demanda, sem prestar caução
correspondente ao valor dos bens sobre os quais versa a conferência.
Outro ponto relevante, diz respeito ao ITCD, imposto de
transmissão causa mortis e/ou doação, devido pelos herdeiros em razão
do falecimento do autor da herança. O imposto é de competência
estadual, cuja alíquota máxima é de 8% (oito por cento). Aos herdeiros
incumbe o dever de pagar o imposto, cujo valor é calculado pela
Secretaria da Fazenda Estadual, que por sua vez, tem critérios próprios
de avaliação dos bens, o que pode ser impugnado pelos herdeiros em
caso de discordância.
Com certeza, essa é a fase mais complexa do patrimônio digital,
considerando ainda que não existe uma legislação tributária específica
para cálculos desses ativos digitais post mortem. De acordo com o
Glossário sobre ITCD10 referente ao estado de Minas Gerais, nas
perguntas frequentes sobre a incidência do imposto, está:

1) Quais as hipóteses de incidência na transmissão


por causa mortis?
R: As hipóteses de incidência são as transmissões
hereditárias ou testamentárias de:
I - bens imóveis situados em território do Estado e
respectivos direitos;
II - bens móveis, inclusive semoventes, direitos, títulos e
créditos, e direitos a eles relativos, quando:
a) o inventário ou o arrolamento judicial ou extrajudicial
se processar neste Estado; ou
b) o herdeiro ou legatário for domiciliado no Estado, se
o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou
teve o seu inventário processado no exterior.

10
DÚVIDAS Frequentes - Orientação DOLT/SUTRI nº 002/2006. Secretaria de Estado
de Fazenda. Empresas. Disponível em: http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_t
ributaria/orientacao/orientacao_002_2006.html#incidencia. Acesso em: 13 set. 2020.

181
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Percebe-se a lacuna com relação a tributação de bens digitais


quando do falecimento e, enquanto não se tem um posicionamento
legislativo sobre a tributação brasileira na era digital, fica essa grande
espaço sem definição e com inúmeros questionamentos cujas respostas
estão longe de uma pacificação, inclusive sobre o direito de tributação.
Importante salientar que o STF já retirou de pauta em março de
11
2020 , três casos de incidência do imposto sobre bens virtuais. E o
Tribunal de Justiça de São Paulo já se manifestou a respeito da herança
digital, no que diz respeito as milhas de passagens aéreas.

Nos Tribunais brasileiros, já foi reconhecida a


possibilidade de transferência das milhas em caso de morte
do titular. Na decisão do processo 1025172-
30.2014.8.26.0100, do Tribunal de Justiça de São Paulo, a
magistrada entendeu que as milhas têm natureza
patrimonial e, por isso, ao negar seu reconhecimento como
parte da herança do titular, a companhia aérea obteria
vantagem excessiva, caracterizando enriquecimento ilícito
(GONÇALVES, 2019, p. 24).

Pela decisão acima do TJSP, o caminho seria a tributação das


milhas. Considerando toda essa era tecnológica, pode ocorrer que o
patrimônio do autor da herança seja composto em sua maioria ou mesmo
em sua totalidade de acervo exclusivamente digital.
E aqui um ponto extremamente importante se relaciona ao tema
em questão: como calcular o valor de um bem cujo conteúdo é
exclusivamente digital? Teriam todos os perfis de Instagram, por
exemplo, o mesmo valor? Haveria tributação apenas e tão somente se os
herdeiros demonstrassem interesse na manutenção da conta?

11
CORREIA NETO, Celso de Barros. O STF vai definir como o Brasil deve tributar
os bens virtuais? Revista Consultor Jurídico, 21 mar. 2020. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2020-mar-21/observatorio-constitucional-stf-definir-
brasil-tributar-bens-virtuais. Acesso em: 13 set. 2020.

182
Nesse ponto seria mais factível precificar através de uma
avaliação econômica o valor de determinado ativo virtual. Lembrando
que essa análise econômica muda de forma rápida com o tempo e
depende inclusive de quem é o seu titular, já que para um “blogueiro”
uma conta no Instagram pode ter um valor completamente diferente de
uma pessoa que não trabalha com a imagem.
Antes da partilha, poderão os credores do espólio requerer ao
juízo do inventário o pagamento das dívidas vencidas e exigíveis. Pode
o credor receber um ativo digital para pagamento do seu crédito? A
princípio não há nada que impeça a separação dos bens digitais para
pagamento dos credores.
O juiz poderá, em decisão fundamentada, deferir
antecipadamente a qualquer dos herdeiros o exercício dos direitos de usar
e de fruir de determinado bem virtual, com a condição de que, ao término
do processo de inventário, tal bem integre a cota desse herdeiro, cabendo
a este, desde o deferimento, todos os ônus e bônus decorrentes do
exercício daqueles direitos12.
A finalização do processo de inventário se efetiva quando
ocorre o pagamento do imposto de transmissão (ITCD), que deverá ser
calculado também do ativo virtual, como já salientado. Dessa forma,
cabe ao legislativo suprir de forma imediata essa lacuna.
Como se percebe, o tema apresenta uma série de
questionamentos ainda sem resposta e que vão demandar uma atuação
conjunta da doutrina, do Legislativo e do Judiciário para buscar soluções
que atendam às mudanças trazidas pela era digital, cujo caminho não tem
volta, já que cada vez mais nos deparamos com bens até então

12
Art. 647, parágrafo único do CPC: O juiz poderá, em decisão fundamentada, deferir
antecipadamente a qualquer dos herdeiros o exercício dos direitos de usar e de fruir de
determinado bem, com a condição de que, ao término do inventário, tal bem integre a
cota desse herdeiro, cabendo a este, desde o deferimento, todos os ônus e bônus
decorrentes do exercício daqueles direitos.

183
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

inimagináveis. O futuro que nos espera é tecnológico e respostas


precisam ser dadas!

4 CONCLUSÃO

a) O mundo tecnológico trouxe inúmeros desafios a diversas


áreas do conhecimento, inclusive ao direito sucessório. O conceito de
herança digital passou a permear as discussões dos estudiosos do direito
e colocou em xeque a estabilidade até então existente sobre os bens
passíveis de serem transmitidos com a morte.
b) Os bens digitais possuem natureza jurídica patrimonial e
existencial. Os bens digitais de caráter personalíssimo, não devem ser
automaticamente transferidos para o espólio do falecido, mesmo
possuindo um valor econômico.
c) Partindo-se da premissa de que a herança digital é um bem
com valor econômico e, por isso, transmitido em razão da morte aos
herdeiros do falecido, deve ser levado a inventário, bem como ser objeto
de tributação. No entanto, a questão se coloca, por ora, de forma
tormentosa, já que não há uma predefinição do que seria inventariado e,
muito menos, como calcular seu valor.
d) Assim, a grande celeuma a ser enfrentada não diz respeito
apenas à inventariança dos bens que compõem a herança digital, mas em
especial a avaliação desse patrimônio a fim de ser calculado o valor do
imposto devido pelos herdeiros ao fisco estadual. A questão é nova e
incipiente, ainda muito carente de estudos e, em especial, de regramento
legal sobre o inventário e o cálculo do ITCD.

REFERÊNCIAS

CORREIA NETO, Celso de Barros. O STF vai definir como o Brasil


deve tributar os bens virtuais? Revista Consultor Jurídico, 21 mar.
2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-21/observa

184
torio-constitucional-stf-definir-brasil-tributar-bens-virtuais. Acesso em:
13 set. 2020.

DÚVIDAS Frequentes - Orientação DOLT/SUTRI nº 002/2006.


Secretaria de Estado de Fazenda. Empresas. Disponível em:
http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/orientaca
o/orientacao_002_2006.html#incidencia. Acesso em: 13 set. 2020.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de


Direito Civil: sucessões. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

GONÇALVEZ, Thatiane Rabelo. Novos bens: a realidade dos bens


imateriais no direito privado. Revista de Direito Privado, São Paulo, v.
100, p. 19-37, jul./ago. 2019.

HONORATO, Gabriel; GODINHO, Adriano Marteleto. Planejamento


Sucessório e testamento digital: a proteção dinâmica do patrimônio virtual.
In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (coord.) A arquitetura do planejamento
sucessório. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 171-190.

LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais. Indaiatuba, SP:


Editora Foco Jurídico, 2017.

LEAL, Lívia Teixeira. Tratamento jurídico do conteúdo disposto na


internet após a morte do usuário e a denominada herança digital. In:
TEIXEIRA, Daniele Chaves (coord.) A arquitetura do planejamento
sucessório. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 223-237.

MARTINS, Guilherme Magalhães; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de


Moura. O Planejamento sucessório da herança digital. In: TEIXEIRA,
Daniele Chaves (coord.) A arquitetura do planejamento sucessório. 2.
ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 465-481.

185
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

SARLET, Gabrielle Bezerra Sales. Notas sobre a identidade digital e o


problema da herança digital: uma análise jurídica acerca dos limites da
proteção póstuma dos direitos da personalidade na internet no
ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito Civil
Contemporâneo, São Paulo, v. 17, p. 33-59, out./dez. 2018.

TARTUCE, Flávio. Herança digital e sucessão legítima - primeiras


reflexões. Migalhas, nº 4.947, 26 set. 2018. Família e sucessões.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-
sucessoes/288109/heranca-digital-e-sucessao-legitima-primeiras-
reflexoes. Acesso em: 15 set. 2020.

TEPEDINO, Gustavo, NEVARES, Ana Luisa, MEIRELES, Rose Melo


Vencelau. Fundamentos do Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

186
HERANÇA DIGITAL E A SUCESSÃO LEGÍTIMA DESSE
PATRIMÔNIO

Maria Cristina Paiva Santiago*


Geysianne Maria Vieira Silva*

Não é de hoje que as interações humanas existem no formato


virtual. Mas com a pandemia da Covid-19, não se nega que essa realidade
foi ainda mais antecipada, afinal, as transformações digitais não dizem
respeito apenas à tecnologia, mas também às pessoas. A sociedade tem
refletido mudanças de comportamento nos hábitos de consumo,
comunicação, trabalho, aprendizado e por isso, produzem, acumulam e
valoram conteúdos virtuais, que hoje são sujeitos a conflito patrimonial.
E sendo o judiciário a medida de que a sociedade está em franca
modificação, uma vez ser este o primeiro questionado sobre os novos
desafios jurídicos existenciais, e requisitado a apresentar soluções às
novas temáticas, é pelo que importa discutir essa novidade sucessória,
que é a tutela da transmissibilidade da chamada herança digital,
independentemente de testamento ou outro documento.
Como se sabe, a Saisine é o princípio norteador do ramo e uma
vez consagrada no art. 1.784 do Código Civil brasileiro, estabelece que
a transmissão dos bens aos herdeiros deve ocorrer de forma imediata e
automática na data da morte. O fato é que quando visto sob a ótica da
herança digital, tem impedida a sua prestação nas relações sucessórias
legítimas por confrontar direito extrapatrimonial.
À vista disso e atinente ao ponto de que ainda não há legislação
relacionada à matéria e nem mesmo o Código Civil foi capaz de refletir

*
Doutora e Mestre em Direito. Professora da Graduação e Pós-graduação do Centro
Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). Presidente do IBDFAM-PB. Membro da
Comissão Especial de Família e Sucessões do CFOAB.
*
Bacharela em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). Discente do
curso de Administração da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

187
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

em seus institutos maior coerência com a sociedade contemporânea, eis


que surge o questionamento: como se dá a sucessão dos bens digitais?
O passo a passo investigativo para responder o questionamento
consiste numa revisão bibliográfica, com dados secundários baseados em
livros técnicos, artigos científicos, monografias, legislação e
jurisprudências especializadas na temática, constituindo uma pesquisa
descritiva, que confere o detalhamento das influências, correntes,
distinções entre os bens economicamente aferíveis, o embate entre searas
distintas do direito onde os efeitos não são congruentes para um resultado
imediato e efetivo, estabelecendo então correlações a partir do método
dedutivo e da abordagem qualitativa.
Importa indicar que a pesquisa contará com o desenvolvimento de
três objetivos específicos. O primeiro deles, visa compreender a
constitucionalização do direito civil com enfoque no direito sucessório, ante
a crescente influência da Constituição no direito civil brasileiro, legislação
essa que já não se faz suficiente para preservar a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, é que o processo de interlocução civil-constitucional
vem ilustrar a necessidade da interpretação desse instituto privado a partir dos
preceitos e fundamentos de validade da Constituição Federal de 1988 a fim
de que possa irradiar respostas mais compatíveis com as atuais situações
jurídicas existenciais, pois, como ensina Gustavo Tepedino:

Constitucionalização do direito civil, em uma palavra, não é


apenas um adjetivo para colorir a dogmática forjada pela
Escola da Exegese, que pode ser a cada momento purificada
ou atualizada, mas uma alteração profunda da ordem pública,
a partir da substituição de valores que permeiam o direito
civil, no âmbito do qual a pessoa humana passa a ter
prioridade absoluta (TEPEDINO, 2003, p. 127).

Em outros moldes, é a superação da dicotomia entre o direito


público e privado, a partir da submissão do direito civil aos valores
constitucionais, como: a dignidade da pessoa humana, a boa-fé objetiva,
a função social, a igualdade, a liberdade, para que se congregue uma

188
análise sistêmica e refinada capaz de tutelar uma realidade que dispensa
a rigidez, a patrimonialização e a autossuficiência de um Código que ao
longo da história manteve uma atuação autônoma, sem a intromissão do
Estado e distante da lei maior.
A evolução desse conceito teve início com o constitucionalismo
moderno na Europa ao fim do século XVIII. Nesse tempo, o Código Civil
era o diretor das relações privadas e, portanto, proporcionava um
ambiente para o exercício da autonomia da vontade privada, enquanto
que a Carta Política apenas regulava as relações entre os cidadãos e o
Estado. Até que no século XX, passa-se para o segundo momento dessa
evolução com a chamada publicização do direito, quando houve a
intervenção estatal na seara legislativa infraconstitucional e, então, a
redução dessa rigidez.
Mas, saliente-se que isso não implica o entendimento de que as
matérias de interesse particular, por coexistirem em normativas distintas,
estejam sujeitas à regulamentação exclusiva de ordem pública. Ao
contrário, trata-se de uma nova integração, onde o texto constitucional
naturalmente define princípios que antes eram reservados ao direito dos
particulares. Ora, “o mais privado dos direitos, o direito civil, está
inserido essencialmente na Constituição de 1988 (atividade negocial,
família, sucessões, propriedade). Se fosse esse o critério, então inexistiria
direito privado” (LÔBO, 1999, p. 101).
Sem dúvidas, o atual entender sobre o significado de
constitucionalização, contempla o terceiro momento dessa evolução e
apresenta agora a Carta Magna como instrumento normativo central, para que
dela sejam extraídos os fundamentos de validade indispensáveis ao exercício
da autonomia privada e capazes de melhor regular a ordem econômica e
social, reconhecendo como pilar da República Federativa do Brasil, o
protagonismo da dignidade da pessoa humana e não mais do patrimônio.
Os reflexos dessa interlocução normativa são variados e de suma
importância, inclusive para o direito sucessório, porque, em que pese a
constitucionalização seja um processo de integração que acontece

189
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

tardiamente, porquanto não alcançar plenamente todos os setores do


direito privado, é bem sabido que “quando uma Constituição introduz uma
garantia tem por finalidade proteger uma categoria de pessoas, o que
redunda em contenção do legislador infraconstitucional e na imposição de
respeito a esses direitos por parte de todos” (LÔBO, 2021, p. 41).
O direito das sucessões é aquele responsável por regular a
transmissão de bens e direitos após a morte de um indivíduo, autor de
uma herança, constituindo uma prática que só passou a ser efetiva com a
supervalorização da religião e com a instituição da ideia de família que
já não acompanha o perfil social das famílias contemporâneas, tornando-
o ainda enrijecido diante da relevância e das transformações ocorridas
nos pilares de sua estrutura: família e propriedade, que descompassam
com tratamento legal existente.
Na Constituição Federal, consigne-se que este também só tem
previsão expressa em dois dispositivos do Art. 5º, a saber, os incisos XXX
e XXXI que, respectivamente, assegura, o direito do herdeiro à herança; e
faculta optar por lei mais favorável quando tratar-se da sucessão de bens de
estrangeiro situados no Brasil, em benefício do cônjuge ou filhos brasileiros.
Naturalmente, o que impende observar é que mesmo pela necessidade de o
direito sucessório se adequar à nova sociedade, ainda assim não dispõe de
tantas alternativas para exercer a própria autonomia.
Com a constitucionalização, a dignidade da pessoa humana,
tornou-se uma expressão fundamental, basilar releitura de todo Direito,
dos objetivos da República, e demais princípios, seguida da convivência
familiar, “caracterizada pela relação diária de afeto entre pessoas que
compõem o grupo familiar, devido, ou não, a laços de parentesco”
(SILVA, 2019, p. 25), da solidariedade, da propriedade e da função
social, que, conjuntamente, orientam a superação do individualismo
jurídico e a prevalência dos interesses sociais.
A partir dessa relação, é possível destacar então que embora ainda
não existam critérios para a aplicação dessas garantias constitucionais, o
apego único aos requisitos básicos do direito sucessório já não se faz mais

190
tão congruente para com o Estado Democrático de Direito, e por isso é que
os valores constitucionais consistem em ferramentas jurídicas adequadas
para inspirar respostas às situações que ainda não tenham o amparo
normativo e por isso conflitem com os limites das legislações existentes,
como é o caso da herança digital com sua dupla feição entre os direitos
patrimoniais e extrapatrimoniais.
Com efeito, eis que surge a necessidade de fazer uma relação
direta com o que seja a herança digital e a ideia de nova sucessão por ela
trazida, comparada aos moldes tradicionais, evidenciando os bens que a
integram com a indispensável diferenciação patrimonial e existencial,
para então discutir a dupla feição a eles inerentes conquanto a afetação
simultânea aos direitos patrimoniais e extrapatrimoniais, no que diz
respeito a possibilidade de transmissão automática aos herdeiros,
consistindo no segundo objetivo especifico do presente estudo.
Afinal, tradicionalmente, tem-se estudado e compreendido a
herança como sendo um complexo de relações jurídicas de uma pessoa,
suscetível de avaliação econômica, com natureza de bem imóvel, que se
forma após o falecimento do sujeito titular desse conjunto de bens
corpóreos, incorpóreos, ativos e passivos. Mas um aspecto notável tem
se destacado dessa conjuntura.
A ideia de que a herança deve ser necessariamente material e
aferível economicamente, vem sendo vencida e com a dinâmica
capitalista do mercado de consumo, a precificação de bens imateriais
torna-se cada vez mais valorizada. Pessoas a nível mundial têm sido
muito afetas à migração do ambiente analógico para o digital e
habitualmente produzem, armazenam e adquirem conteúdos variados,
como: e-books, músicas, fotos, vídeos, moedas eletrônicas, milhas
aéreas, jogos etc., que ao serem inseridos nesse ambiente, as tornam
titulares desses dados que já motivam conflitos sucessórios.
O fato é que essas ações já são tão difundidas e
instrumentalizadas, que por serem capazes de oportunizar a
profissionalização de um indivíduo, até a imediata repercussão

191
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

econômica nos mais diversos lugares do mundo, se tem entendido


que “o novo direito global deve tratar de um ‘indivíduo planetário’,
de um ‘corpo distribuído no espaço” (RODATÀ, 2003, p. 10),
chamado herança digital, cujas características despertam a onda de
uma nova sucessão.
Inobstante o direito sucessório trazer as regras e princípios no
que tange ao tratamento da transmissão do patrimônio físico do falecido
e a necessária partilha pautada no critério da proximidade, onde de todo
o patrimônio, diz-se que cinquenta por cento será legitima e obedecerá a
ordem da vocação hereditária (ascendentes, descendentes, cônjuge,
companheiro) e a outra metade seja a quota disponível transferível via
testamento ou codicilo a quem quiser, saiba que essa regra não alcança o
acúmulo de bens no espaço cibernético.
O art. 1.784 do Código Civil, traz pelo princípio da Saisine, a
transmissão automática dos bens do falecido aos herdeiros legítimos e
testamentários, e embora não haja indicativos seguros do inverso, note
que o legislador também não obstaculizou à inclusão desses bens digitais
no bolo sucessórios, razão pela qual deduz-se positiva que a sucessão
desse patrimônio também ocorra nas mesmas modalidades existentes –
legitima e testamentaria – só não nas mesmas condições pela natureza
dos bens que o compõe, mas satisfazendo, pois, a garantia prevista na
Constituição Federal do direito de herança assegurado pelo art. 5º, XXX,
intrinsicamente ligado ao direto de propriedade, afinal de nada
adiantaria, ter a propriedade sem a transferência.
Lívia Leal (2019, p. 230) afirma que “os arquivos constantes na
rede constituiriam bens incorpóreos que agregariam valor econômico ao
titular, razão pela qual deveriam ser transferidos aos herdeiros após a
morte do usuário”, no entanto o que se discute é se estaria a herança digital
dentro desse patrimônio sucessível, afinal não se trata de um debate onde
todas as respostas se dão pelo tratamento estritamente patrimonial ou pela
transferência de titularidade de determinado conteúdo.

192
Se sobressai dessa modalidade de herança, a existência de uma
dupla feição de direitos, uma vez que com a virtualização desse contexto
humano e da valorização dos bens imateriais, alguns bens digitais
denominados existenciais, conseguem transcender as características de
ser aferível monetariamente e invadir a seara da privacidade, seja do
falecido ou de terceiros que com ele se expuseram, confrontando, pois,
um direito da personalidade, irrenunciável e intrasferível, conforme
previsão do art. 11 do Código Civil.
Nesses termos, é certo que “a respeito da tutela post mortem dos
direitos da personalidade, os parágrafos únicos dos arts. 12 e 20 do
Código Civil de 2002 preveem os legitimados para pleitear tal proteção”
(LEAL, 2018, p. 11), mas ainda que a propriedade ultrapasse o tempo, e
suceda-se aos herdeiros com a morte do proprietário, saliente-se que é a
morte, a medida da personalidade civil da pessoa humana, momento,
portanto, em que se encerrará a personalidade.
Zampier Lacerda (2017, p. 74), ensinam que os bens digitais são
“bens incorpóreos, os quais são progressivamente inseridos na Internet
por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que lhe
trazem alguma utilidade”, e para a herança digital, fundamentam-se em
duas classificações: o de valor econômico e o de aspecto
sentimental/existencial. Ou seja, vídeos, músicas, bibliotecas digitais,
moedas virtuais, milhas aéreas, jogos on-line, são bens com
características patrimoniais e que, inquestionavelmente, poderão ser
transmitidos aos herdeiros imediatamente quando do falecimento do
usuário, em pura aplicação da Saisine, como bem assegura Lívia Leal
(2019) e, respectivamente, Thamires Nascimento (2017):

[...] os conteúdos com caráter patrimonial, como dados


vinculados a transações financeiras, senhas de acesso e
aplicações de bancos, etc., ou mesmo a exploração
econômica dos atributos da personalidade, por estarem
contidos na esfera da patrimonialidade, poderiam ser

193
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

transferidos aos herdeiros que passarão a ser os


administradores de tal patrimônio” (LEAL, 2019, p. 234).

[...] não há questionamento em relação aos ativos digitais


que possuem valor econômico, de fato são passiveis de
serem transmitido em razão da mortis causa no momento
da morte do proprietário, ou seja, são imediatamente
transmitidos com a abertura da sucessão e incorporam o
objeto da herança” (NASCIMENTO, 2017, p. 47).

Por outro lado, fotos, mensagens enviadas por e-mail, inbox nas
mídias sociais, senhas ou as próprias redes sociais, são dotados de valor
sentimental, e se referem ao aspecto existencial do falecido, que como
certifica Meireles (2009, p. 143), “como a herança refere-se ao acervo
patrimonial do de cujos, as situações existenciais, ressalvadas as situações
dúplices em alguns aspectos, não vão integrar o conceito de herança”.
Ainda que todos os bens digitais sejam integrantes do ativo
digital, é certo pensar que o direito de propriedade que recai sobre esses
bens também deveria gozar dos mesmos efeitos jurídicos da
propriedade tradicional, mas não é o que acontece. No caso desses bens
existenciais, embora algumas plataformas permitam ao usuário uma
opção de definir o que deverá acontecer com o seu perfil depois da sua
morte, o tratamento propriamente dito desse trânsito de transferência de
dados tem que estar muito bem fundado em bases legais.
Sob outra miragem, já se entende que necessário seria que o
próprio falecido outorgasse autorização em um testamento, esclarecendo
o consentimento para o tratamento de seus dados pessoais, atentando-se
ao fato de que, em reciprocidade, “as disposições testamentárias devem
observar os termos de uso dos provedores e os interesses juridicamente
tuteláveis de terceiros” (LEAL, 2019, p. 235). Como no Brasil não há
uma cultura do testamento, a ausência de planejamento diante de
tamanha lacuna legislativa é o que causa dificuldades para a solução do
tema no que tange a transmissibilidade desses bens independente de
testamento ou outro documento.

194
Afinal, sobre a Saisine, a concepção de Correia (2016, p. 46) é
de que “não mudou e não pode ser mudado o direito de transmitir a
herdeiros bens acumulados em vida, bem como direitos e deveres”, e
como nenhuma lei civil brasileira foi capaz de regulamentar o tema, tem-
se buscado interpretar o direito posto, isto é, as bases tradicionais a partir
de uma nova realidade que em virtude das lacunas legislativas exigem
do legislador uma atuação acolhedora e não uma ruptura do que já existe
para a criação de novos cenários. Por isso, ainda que a forma de
aproximar esse tema, dentro do que já temos legislado se verifique com
a tentativa de conciliar o direito de personalidade do falecido com o
interesse da família e da coletividade, algumas correntes de
entendimento sugerem caminhos diversos.
Nesses termos, é que o terceiro objetivo específico busca
analisar o estado da arte da transmissibilidade da herança digital na
jurisprudência brasileira, dada a ciência de que o ordenamento pátrio
necessita de uma uniformização legal.
Consigne-se que desde o ano 2012 o Congresso Nacional tem
recebido propostas que especulam a regulação da matéria, mas todas
restaram infrutíferas. Nem mesmo o Marco Civil da Internet Lei nº
12.965/2014 que regula o uso desta no país ou Lei de Proteção de Dados
Pessoais brasileira (LGPD) de nº 13.709/2018 que trata o acesso e
proteção de dados, foram capazes de balizar a hipótese de falecimento
do autor da conta.
Mesmo assim, observa-se que a temática caminha para sua
normatização, isso porque, atualmente se encontra em tramitação dois
Projetos de Lei. O primeiro é o de nº 5.820/2019,12 que busca alterar o
art. 1.881 do Código Civil, incluindo um §4º cujo fim é dispensar a
presença das testemunhas para a validade da herança digital que deverá
entender-se como sendo vídeos, fotos, livros, senhas de redes sociais, e
outros elementos armazenados exclusivamente na rede mundial de
computadores, em nuvem, o codicilo em vídeo (BRASIL, 2019, p. 3).

195
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

O segundo Projeto de Lei em trâmite é o de n° 6.468/2019, e


pretende estabelecer a transmissão de todos os conteúdos de contas ou
arquivos digitais de titularidade do autor da herança, aos herdeiros, a
partir da inclusão de um parágrafo único no art. 1.788 do Código Civil.
De todo o apresentado, observa-se que, não obstante existir uma
tentativa de aproximar a herança digital com aquilo que já temos legislado,
conciliando o direito de personalidade do falecido com o interesse da família
e da coletividade, Gabriel Honorato e Lívia Leal (2020, p. 4) bem destacam
existirem correntes de entendimento que sugerem diferentes caminhos a
serem trilhados pela jurisprudência. Por essa razão, é importante apontá-las,
antes de tecer comentários sobre o estado da arte dessa temática nos
precedentes jurisprudenciais brasileiros.
Uma primeira corrente majoritária, a qual também se afiliam as
autoras, é aquela fundada no art. 5º, inciso X da Constituição Federal que
preconiza serem “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1998),
defende que por existirem bens que dizem respeito somente a existência
daquela pessoa, como as conversas nos aplicativos de mensagens, senhas
e e-mails por exemplo, a transmissão desse conteúdo existencial viola
frontalmente os direitos fundamentais da liberdade e da privacidade, do
morto e dos terceiros que com ele interagiram, razão pela qual deve
compreender a regra geral sucessória.
A segunda corrente entende que, salvo disposição diversa em
testamento ou codicilo, tudo será transmitido. Trata-se da sucessão
irrestrita a todos os herdeiros, de maneira automática, sem a necessária
distinção sobre o que seja conteúdo corpóreo ou incorpóreo, sequer
patrimoniais ou existenciais, pois aqui tudo que for passível de aferição
econômica, é sujeito de transmissão, numa espécie de extensão dos
direitos da personalidade para após a morte, tornando favorável também
a sucessão de bens pessoais.

196
A terceira corrente é a aclamada pelas plataformas digitais que
entendem prudente a impossibilidade de transmissão de qualquer bem
digital, seja ele de conteúdo patrimonial ou existencial, uma vez que os
contratos firmados com os usuários dessas plataformas, consideram-se
de caráter personalíssimos, logo, intransferível, incapaz de assegurar a
transferência do direito a titularidade, uma vez que os possuidores em
vida, adquirem tão somente o direito de uso daquela plataforma.
No que concerne aos casos já judicializado, QUEIROZ (2013),
traz o da jornalista Juliana Ribeiro Campos, o que primeiro ilustra o tema
em apreço e nos remete ao ano de 2013 quando, após o seu falecimento,
sua genitora entrou com uma ação contra o Facebook na 1ª Vara do
Juizado Central de Campo Grande – RS, requerendo a exclusão do perfil
de sua filha falecida, sob o argumento de que os contatos dessa filha
continuavam a postar fotos, músicas e mensagens, transformando o perfil
em um muro de lamentações que só aumentava a sua dor pela perda. Em
decisão, a juíza competente para o deslinde do caso desconsiderou os
termos de uso da plataforma e decidiu liminarmente em favor da autora.
Posteriormente, Faccineto (2016) publica que a Associação
Brasileira de Defesa do Consumidor, a PROTESTE, foi vencedora em
uma ação coletiva movida contra a companhia aérea TAM, em virtude
dos danos que vinham sendo suportados pelos usuários de programas de
fidelidade da empresa, cujos benefícios de uso eram rechaçados pelas
recorrentes alterações contratuais que restringiam aqueles direitos. Entre
outros pontos, um dos pleitos autorais foi de que, regulado o direito de
uso e a mantença desses benefícios e pontos acumulados, que houvesse
a sua transmissão aos herdeiros, uma vez falecido o seu titular.
Feita a necessária distinção entre os bens digitais, restou consignado
que as milhagens desse programa de fidelidade têm caráter estritamente
patrimonial e não podendo beneficiar o fornecedor em detrimento do
falecimento do titular sob o risco de restar constituído enriquecimento ilícito,
será possível a sua inclusão no bolo sucessório e sua posterior transmissão
aos moldes comumente regulados pelo direito sucessório.

197
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Ribeiro (2019) ainda destaca que o caso sofreu desdobramento


recursal da lide, mas teve sua procedência mantida por todos os
fundamentos já proferidos em sede de primeiro grau, uma vez que
concluiu pela ilegitimidade de cláusula impeditiva da transmissão com
relação a esse bem digital de caráter patrimonial, cabendo a ele o
cabimento da transmissibilidade, em inteira consonância com as regras
sucessórias vigentes.
Ignácio (2018) afirma que no ano de 2017, uma mãe pleiteou na
justiça de Pompeu – Minas Gerais, o acesso aos dados de uma conta
virtual de sua filha falecida, vinculada ao telefone celular. Em decisão, o
magistrado indeferiu o pedido sob o fundamento de que violaria o sigilo
da correspondência e das comunicações telegráfica, sobretudo dos dados
de terceiros que com ele interagiram.
Já em março de 2021, o TJ-SP (2021) julgou totalmente
improcedente em sede de primeiro e segundo grau de jurisdição,
concernente a uma ação ajuizada contra o Facebook pela genitora de uma
menina falecida, requerendo a reabertura de seu perfil de rede social e
uma indenização por danos morais oriundos da exclusão da página,
fundado no fato de que ante o luto pela perda, utilizar o perfil, interagir
com outras pessoas que dele faziam parte, e rememorar fatos da vividos
pela falecida a fazia sentir-se bem a superar a tragédia. A alegação do
adverso foi que quando a jovem aderiu aos termos da plataforma, fez a
opção pela exclusão da conta.
Ou seja, além de incorporar a concepção da terceira corrente
abordada, conquanto o direito de uso daquela rede quando aderiu aos
termos de serviço plataforma, a exclusão do perfil decorreu da
manifestação de última vontade da própria usuária, registre-se, a partir de
outro documento que não o testamento, que inegavelmente expressou
impraticabilidade de acesso e gerenciamento do conteúdo após o seu óbito.
Nesse interim, não há dúvidas de que a herança digital é um
tema da atualidade, cujo tratamento nasce eivado de inseguranças
jurídicas, afinal, é certo que além do espaço legislativo, “no judiciário

198
brasileiro, há pouca jurisprudência a respeito do assunto” (Constantino;
Brum, 2020, p. 16), suficiente apenas para permitir vislumbrar que a
peculiar distinção entre cada conteúdo armazenado virtualmente é que
deve ser levado em consideração, mormente quando não se tem
disposição testamentária.
Assim sendo, rememore que no início do presente trabalho de
pesquisa, constatou-se uma novidade jurídica. Com avanço da tecnologia, o
advento da internet e a pandemia, as relações virtuais foram ainda mais
acentuadas e o que nesse ambiente passou a ser armazenado, embora isento
de regulamentação, é também passível de conflito sucessório.
Diante disso, é prudente dizer que o objetivo geral da pesquisa foi
atendido, uma vez que da análise da possibilidade de transmissão legitima dos
ativos digitais armazenados em meio virtual, identificou-se que só é possível
estabelecer a sucessão legítima sobre os bens digitais quando houver um
fracionamento do patrimônio digital em bem de natureza patrimonial, caso
em que sempre haverá a transmissão imediata; e existencial quando houver
consentimento, em vida, pelo usuário, e não haja violação à personalidade do
falecido ou de terceiros que com ele interagiram.
Percebeu-se que o tratamento pela lógica da sucessão
patrimonial, ocorre tão quanto a transmissão comum prevista na
normativa civil. Não há nova modalidade além das já existentes, a saber:
legítima e testamentária. Mas, o que não se ignora é que a sua sucessão
legítima, independentemente de testamento ou outro documento, embora
possível, não se dá plenamente nas mesmas condições regulamentadas,
em virtude da natureza dos bens que a compõe, sendo prudente
diferenciar os conteúdos patrimoniais e personalíssimos.
Compreendeu-se também que com o limbo legislativo e a
constitucionalização, o ordenamento jurídico civil tem buscado se
integrar e pautar-se em valores, como o respeito à dignidade da pessoa
humana, à informação, à liberdade de expressão, à privacidade, porque,
embora também não existam critérios para a aplicação dessas garantias

199
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

constitucionais, hoje, o apego único aos requisitos do direito sucessório


não é mais suficiente.
Por isso que interpretá-lo em consonância aos princípios
fundamentais, é uma premissa que não deve ser desconsiderada, pois a
tendência é corresponder a nova dinâmica jurídico-social brasileira, sem
tanta rigidez, deixando de tornar o tema restrito a patrimonialização,
passando a observá-lo para além da herança digital, pois, parafraseando
o sociólogo Zygmunt Bauman, vivemos “entre uma etapa em que
tínhamos certezas e outra em que a velha forma de atuar já não funciona”
(QUEROL, 2016).
A análise do estado da arte na jurisprudência brasileira com relação
a sua transmissibilidade demonstrou através dos julgados e correntes
aplicadas que embora não haja elementos legais proibitivos para a inclusão
desses bens digitais no bolo sucessório, algumas demandas acabam por
arriscar o acesso dos herdeiros a esses ativos e até mesmo a competência
dos juízos para os julgamentos dessas demandas, sustentando uma
insegurança jurídica e o desestimulo a utilização dessa nova sucessão.
A globalização e a internet mudaram o mundo, muito mais do
que qualquer outro fator histórico que conheçamos. Mas o fato é que a
velocidade com que essas mudanças ocorrem, gerando relevantes
reflexos jurídicos patrimoniais e extrapatrimoniais, não permitem que o
ordenamento jurídico brasileiro acompanhe em tempo real.
Nessa conjuntura, tendo a pesquisa partido da hipótese de que é
possível que haja a aplicação tradicional da Saisine a um cenário específico
dentro da herança digital, diante dos apontamentos enfrentados e do embate
entre diferentes esferas do direito que não congregam os mesmos efeitos
jurídicos, é certa a percepção por sua confirmação.
A metodologia proposta atendeu bem às delimitações da pesquisa
e pôde detalhar a relação entre variáveis na situação que é a distinção de
bens economicamente aferíveis e o embate entre searas distintas do direito
cujos efeitos não são congruentes para um resultado imediato e efetivo.

200
Relativamente aos dados secundários coletados, a fim de indicar
respostas úteis e de maior relevância à pesquisa descritiva e qualitativa,
algumas limitações foram encontradas especialmente pela grande
abrangência de vertentes abordadas com uma só temática e pela ausência de
informações sobre as relações que demandam tratamento de bens digitais
dúplices, isto é, bens, simultaneamente, patrimoniais e existenciais.
Embora o assunto já venha sendo debatido nos meios acadêmicos
e as circunstâncias expostas tendam, a não esgotar o conteúdo, mas sim a
aclarar suas características, para que se preste como alternativa de
fundamentação às demandas judiciais que discutam o tratamento mais
viável para os bens digitais sem testamento ou outro documento, enquanto
o espaço normativo perdurar, e em virtude da indisponibilidade de
determinadas informações, se recomenda promover o debate sobre o
tratamento sucessório atribuídos aos bens digitais de natureza dúplice.

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, [2021].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitu
icaocompilado.htm. Acesso em: 30 mar. 2021.

________. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.


Brasília: Presidência da República, [2021]. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406compilada.ht
m. Acesso em: 30 mar. 2021.

________. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 5820, de 2019. Dá


nova redação ao art. 1.881 da Lei nº 10.406, de 2002, que institui o
Código Civil. Brasília: Câmara dos Deputados, [2021]. Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/140239.
Acesso em: 30 maio 2021.

201
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

________. ________. Projeto de Lei nº 5.820 de 2019. Dá nova redação


ao art. 1.881 da Lei nº 10.406, de 2002, que institui o Código Civil.
Brasília: Câmara dos Deputados, [2021]. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codte
or=1829027&filename=PL+5820/2019. Acesso em: 6 maio 2021.

________. Senado Federal. Projeto de Lei n. 6468, de 2019. Altera o


art. 1.788 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o
Código Civil, para dispor sobre a sucessão dos bens e contas digitais do
autor da herança. Brasília: Senado Federal, [2021]. Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/- /materia/140239.
Acesso em: 7 maio 2021.

CARVALHO, Gabriel Honorato de; LEAL, Livia Teixeira. Propostas


para a regulação da herança digital no direito brasileiro. In: EHRHARDT
Márcos Júnior; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo. (coord.).
Direito Civil e Tecnologia. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020. ISBN
978-65-5518-036-7.

CONSTANTINO, Gabrielle; DE OLIVEIRA BRUM, André Luiz. A


herança digital e sua transmissão post mortem. Revista Eletrônica da
ESA/RO, Porto Velho, out. 2020. Disponível em: https://www.revistae
sa.oab- ro.org.br/gerenciador/data/uploads/2020/10/Gabrielle-Constanti
no_André-L.-de-Oliveira-Brum.pdf. Acesso em: 5 maio 2021.

CORREIA, Janaína Gonçalves. Herança Digital: Sucessão de bens


digitais na ausência de testamento. Juris Rationis, Natal, ano 9, v. 2,
p. 46- 55, 2017. Disponível em: https://repositorio.unp.br/index.php/ju
ris/article/view/1552/924. Acesso em: 3 dez. 2020.

EXCLUSÃO de perfil de filha falecida em rede social não gera dever de


indenizar. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 16 mar. 2021.

202
Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Notícias/Noticia?codigoNotícia
=63570. Acesso em: 5 maio 2021.

HONORATO, Gabriel; LEAL, Livia Teixeira. Exploração econômica


de perfis de pessoas falecidas: reflexões jurídicas a partir do caso Gugu
Liberato. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo
Horizonte, v. 23, p. 155- 173, jan./mar. 2020. DOI: 10.33242/rbdc.202
0.01.008.

IGNACIO, Laura. Justiça recebe os primeiros casos sobre herança digital.


Blog Bella Martinez, 26 set. 2018. Disponível em:
https://blog.bellamartinez.com.br/2018/09/26/justica-recebe-os-primeiros-
casos-sobre-heranca-digital-este-trecho-e-parte-de-conteudo-que-pode-ser-
compartilhado-utilizando-o-link-httpswww-valor-com-
brlegislacao5854319justica-recebe-os-prim/. Acesso em: 6 maio 2021.

LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais. Indaiatuba:


Editora Foco Jurídico. 2017.

LEAL, Livia Teixeira. Internet e morte do usuário: a necessária superação


do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil -
RBDCilvil, Belo Horizonte, v. 16, p. 181-197, abr./jun. 2018.

________. Tratamento jurídico do conteúdo disposto na Internet após a


morte do usuário e a denominada herança digital. In: TEIXEIRA,
Daniele Chaves (coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. 2.
ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019. t. 1, p. 223-238.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista


de Informação Legislativa. Brasília, n. 141, p. 99-109, jan./mar. 1999.

________. Direito Civil: parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. v. 1.

203
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

________. Direito Civil: sucessões. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. v. 1.

MEIRELES, Rose Melo Venceslau. Autonomia privada e dignidade


humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito


administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.

NASCIMENTO, Thamires Oliveira. Herança Digital: o direito da


sucessão do acervo digital. 2017. Disponível em: https://repositorio.ufp
e.br/bitstream/123456789/21969/1/Heran%C3%A7a%20Digital.%20O
%20direito%20da%20sucess%C3%A3o%20do%20acervo%20digital.p
df. Acesso em: 5 dez. 2020.

PROTESTE, ganha na justiça ação contra TAM por limitações no uso de


milhagem. Proteste, 24 mar. 2016. Disponível em: www.proteste.org.b
r/seus-direitos/direito-do-consumidor/noticia/proteste-ganha-na-justica-
acao-contra-tam-por-limitacoes-no-uso-de-milhagem. Acesso em: 5
mar. 2021.

QUEIROZ, Tatiane. Mãe pede na Justiça que Facebook exclua perfil de


filha morta em MS. G1, Mato Grosso do Sul, 26 abr. 2013. Disponível
em: https://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2013/04/mae-
pede-na-justica-que-facebook-exclua-perfil-de-filha-falecida-em-
ms.html. Acesso em: 25 mar. 2021.

QUEROL, Ricardo de. Zygmunt Bauman: “As redes sociais são uma
armadilha”. 30 dez. 2015. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/201
5/12/30/cultura//1451504427_675885.html. Acesso em: 0 maio 2021.

RODATÀ, Stefano. Globalização e o Direito. Palestra proferida em


2003, no Rio de Janeiro. Tradução Myriam de Filippis. Disponível em:

204
http://pt.scribd.com/document/128137902/RODATA-STEFANO-
Globalização-e-o-Direito. Acesso em: 12 mar. 2021.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das sucessões. 10. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2017. v. 6.

TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do Direito Civil: perspectivas


interpretativas diante do novo código. In: FIUZA, César; NAVES, Bruno
Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de; (coord.). Direito
Civil: Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. v. 2.

SILVA, Matheus Bione Martins da. Flexibilização do direito das


sucessões à luz dos princípios constitucionais. Recife, 2019.
Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/36958.
Acesso em: 30 mar. 2021.

VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo; SILVEIRA, Sabrina


Bicalho. A herança digital: considerações sobre a possibilidade de
extensão da personalidade civil post mortem. Revista dos Tribunais,
São Paulo, n. 986, dez. 2017. Disponível em: https://dspace.almg.gov.b
r/retrieve/119430/Cl%c3%a1udia%20Mara%20de%20Almeida%20Ra
belo%20Viegas%20.pdf. Acesso em: 15 dez. 2020.

205
SOBREPARTILHA PROSPECTIVA E RETROSPECTIVA:
diálogo dos arts. 2.021 e 2.022 do CC com o art. 669 do CPC*

Rodrigo Mazzei**

A sobrepartilha sucessória está regulada no CPC em vigor nos


arts. 669 e 670, não se notando grande mudança nos dispositivos em
relação à codificação de 1973 (arts. 1.040 e 1.041). O assunto também
está tratado nos arts. 2.021 e 2.022 do Código Civil (CC).
Ainda que não se vislumbre áreas de conflito entre dois os
diplomas, o posicionamento topográfico é distinto, uma vez que o CPC
encaixa a sobrepartilha na Seção X (Disposições Comuns a Todas as
Seções) do Capítulo VI (Do Inventário e Da Partilha), considerando-a,
assim, como instituto comum a qualquer modalidade de inventário, ao
passo que o CC trata do assunto no trecho específico sobre partilha
(Capítulo V, do Título IV - Do Inventário e Da partilha).
De um modo geral, notadamente na prática forense, a
concepção de sobrepartilha está atrelada a uma dimensão voltada ao
direito material, no sentido de propiciar nova distribuição de bens e/ou
direitos do espólio1 que não foram objeto de partilha anterior ocorrida
em inventário causa mortis já encerrado.

*
O estudo está vinculado ao grupo de pesquisa "Núcleo de Estudos em Processo e
Tratamento de Conflitos” – NEAPI, vinculado à Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), cadastrado no Diretório Nacional de Grupos de Pesquisa do CNPq no
endereço: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7007047907532311#identificacao. O
grupo é membro fundador da “ProcNet – Rede Internacional de Pesquisa sobre Justiça
Civil e Processo Contemporâneo” (http://laprocon.ufes.br/rede-de-pesquisa).
**
Doutor (FADISP); Professor da UFES (graduação e PPGDir) e da FUCAPE. Advogado.
1
Embora os artigos 669-670 do CPC e 2.021-2.022 do CC só façam alusão a “bens”,
em aparente sentido fechado, nada impede que o patrimônio objeto de sobrepartilha
tenha natureza mais fluida, incluindo-se, portanto, outros direitos que não são
propriamente bens, como é o caso dos direitos decorrentes da apuração de determinados
lucros de operação societária e/ou de participações no sentido.

207
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

A sobrepartilha sob o aspecto processual se notabiliza como


novo processo sucessório, ainda que com feições de inventário
suplementar, que é impulsionado (e justificado) pela arrecadação de
bens e/ou direitos que não foram alcançados pelo desfecho do inventário
já encerrado, consoante se infere do texto do art. 670 do CPC2. Com tal
enfoque, a sobrepartilha não é apenas uma nova partilha, configurando-
se, na verdade, como figura que ensejará a instauração de procedimento
que contempla todas as fases do inventário sucessório, cujo desfecho
dependerá da liquidação e do posicionamento jurídico dos interessados
na sucessão. Tanto é assim que haverá na sobrepartilha a necessidade de
designação de inventariante (que poderá ser pessoa diversa da do
inventário original), consoante parágrafo único do art. 669 do CPC e
parte final do art. 2.021 do CC.
Ademais, a sobrepartilha não pode ficar ilhada nos arts. 669-
670 do CPC e 2.021-2.022 do CC, pois há situações outras que a
autorizam e não estão alcançadas pelos citados dispositivos. Em
exemplo, o art. 650 do CPC prevê que, se um dos interessados for
nascituro, o quinhão que lhe cabe será reservado em poder do
inventariante até o seu nascimento. Nada impede que a partilha se efetue
antes da data prevista para o nascimento, de modo que o quinhão
correspondente ficará reservado com o inventariante, aguardando-se que
o desfecho fático. Caso o nascituro não sobreviva, mister se fará que o
quinhão antes reservado seja redistribuído, dando ensejo à sobrepartilha3.
De outra banda, deve-se dizer que sobrepartilha não é figura
exclusivamente voltada aos herdeiros, pois, em exemplo, a localização

2
Com tal norte, é possível que situação semelhante à sobrepartilha ocorra em hipótese
de herdeiro universal, sendo que, em tal caso, não será propriamente partilha, mas
adjudicação (sobreadjudicação, caso queira se aproveitar a da nomenclatura utilizada
no artigo em comento).
3
No sentido: ARAÚJO, Luciano Vianna. In: BUENO Cassio Scarpinella (coord.).
Comentários ao Código de Processo Civil. (arts. 539-925). São Paulo: Saraiva, 2017.
v. 2, p. 257.

208
de bens não arrolados no inventário poderá beneficiar o
cônjuge/companheiro sobrevivente em caso de verificação daqueles que
se submeteram ao regime de comunhão patrimonial em vida, reservando-
se a meação ao supérstite.
Na realidade, a sobrepartilha cria nova arrecadação, originando
também nova liquidação (ato que é anterior à própria noção de partilha),
de modo que, se o inventário primitivo teve desfecho negativo (=
insolvência do espólio), a sua arrecadação terá que primeiro atender aos
credores que não tiveram suas dívidas satisfeitas. Trata-se de
interpretação que pode ser extraída da parte inicial do art. 647 do CPC e
do art. 1.796 do CC, pois a partilha somente se justifica depois de pagas
as dívidas que vinculam o espólio.
Portanto, caberá a sobrepartilha em qualquer situação em que se
vislumbrar a existência de bens e/ou direitos que não foram arrecadados
e que, de alguma forma, estão atraídos pela sucessão4, sendo equivocado
imaginar que apenas os herdeiros serão os seus beneficiários.
No tocante às hipóteses legais que ensejam a sobrepartilha,
salienta-se que, apesar de o art. 669 do CPC não seguir a ordem
sequenciada dos arts. 2.021 e 2.022 do CC, não há discrepância no quanto
ao texto das duas codificações, a saber: (a) bens situados em lugar
remoto da sede do juízo onde se processa o inventário (arts. 669, IV,
do CPC e 2.021 do CC); (b) bens litigiosos, assim como os de liquidação
difícil ou morosa (arts. 669, III, do /CPC e 2.021 do CC); (c) bens
sonegados (arts. 669, I, do CPC e 2.022 do CC); (d) bens da herança
descobertos após a partilha (arts. 669, II, do CPC e 2.022 do CC).
A ordem adotada no presente estudo segue a sequência definida
no CC (bem mais didática que a inserida no CPC), que faz a depuração

4
Semelhante: ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken de; ALVIM, Eduardo Arruda.
Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2012, p.
1.518. Na jurisprudência: STJ, 3ª Turma, AgRg no REsp 1.151.143/RJ, j. 04/09/2012,
DJ, 10 set. 2012.

209
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

em dois grandes grupos, sendo esses: (1) aferição da sobrepartilha no


curso do inventário (art. 2.021 do CC), tendo esta, portanto, análise
prospectiva (com encaixe nas plataformas dos incisos III e IV do art.
669 do CPC); (2) invocação da sobre partilha depois de encerrado o
inventário (art. 2.022 do CC), fato que aloca o exame quanto à
sobrepartilha com olhar retrospectivo (situações que possuem aderência
aos incisos I e II do art. 669 do CPC)5.
Usando o art. 2.021 do CC como bússola (e conjugando-o com
os incisos III e IV do art. 669 do CPC), as principais hipóteses em que a
sobrepartilha será analisada em plano prospectivo, ou seja, no âmbito
de inventário ainda em curso, envolve a presença de patrimônio: (a) em
situação remota do lugar do inventário (b) litigioso e/ou (c) de
morosa ou difícil liquidação.
Como primeira nota acerca da sobrepartilha prospectiva,
frisa-se que sua análise decorre de elemento temporal, pois nos casos
listados – em regra – o deslocamento de pontuais questões para fora do
processo sucessório parte da análise potencial de que essas – pela sua
própria natureza – poderão retardar demasiadamente a cadência
procedimental do inventário, colocando-a em xeque, diante do
afastamento da determinação contida na parte final do art. 611 do CPC.
Por outra perspectiva, mas ainda seguindo-se as hipóteses acima
destacadas, a sobrepartilha prospectiva restará autorizada também pela

5
Sobre a sistematização utilizada (sobrepartilha prospectiva e sobrepartilha retrospectiva),
confira-se: MAZZEI, Rodrigo. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 610 a 673.
São Paulo: Saraiva, 2020. v. 12.

210
incerteza quanto à arrecadação dos bens e/ou direitos, tendo em vista a
situação peculiar em que se encontram6-7.
Dessa forma, o art. 2.021 do CC autoriza que a arrecadação de
determinados bens e/ou direitos não seja efetuada no inventário já
instaurado, a fim de que este não perca sua velocidade processual e/ou
eficiência. O patrimônio não arrecadado no inventário em curso é, então,
projetado para inventário suplementar, que possui autonomia relativa
em relação ao primitivo (art. 670 do CPC).

6
José Fernando Simão se refere aos bens alcançados pelo art. 2.021 do CC como os
“problemáticos” e que “não devem impedir a partilha dos demais bens, pois a celeridade
interessa aos herdeiros e reduz o risco de litígios” (Código Civil Comentado. Rio de
Janeiro: Forense, 2019, p. 1.552). Direto no assunto, Silvio Venosa aduz que: “Muito
útil, pois, essa possibilidade legal que permite que não se retarde a partilha dos bens
incontroversos e de fácil divisão” (Código Civil Interpretado. 4. ed. São Paulo: Atlas,
2019, p. 1.723). Parecendo concordar, confira-se: TEPEDINO, Gustavo; NEVARES,
Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do direito civil:
Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 7, p. 274.
7
Quando se projeta bem de arrecadação incerta à sobrepartilha, busca-se evitar que seja
atribuído desde logo ao quinhão de um (ou alguns) herdeiro(s), que pode(m) depois vir
a perdê-lo no processo que o tem por objeto material, o que poderia abrir discussão
sobre a necessidade de, em atenção ao princípio da igualdade da partilha, exigir dos
demais herdeiros a indenização em virtude da evicção (art. 2.024 do CC). De toda sorte,
ainda que com dificuldades da avaliação (pela falta de elementos exatos para seu
dimensionamento em muitas vezes), não se pode descartar que tais bens possam ser
alocados no quinhão de um ou mais herdeiros, desde que estes assumam expressamente
o risco por tal opção. Próximo: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 982-1.045. Rio de Janeiro: Forense,
1977. v. 14, p. 302; e LUCCA, Rodrigo Ramina. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim
et al. (coord.). Breves comentários ao novo código de processo civil. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.744. Assim procedendo, para que os efeitos do art.
2.024 do CC não se voltem contra os demais interessados, é fundamental que se lance
convenção acerca da modulação da evicção, hipótese permitida pelo art. 448 da lei civil
que prevê que as partes podem, “por cláusula expressa, reforçar, diminuir ou excluir a
responsabilidade pela evicção”. No mesmo sentido: CARNEIRO, Paulo Cezar
Pinheiro. Inventário e partilha judicial e extrajudicial. Rio de Janeiro: Forense,
2019. p. 231-232.

211
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Assim, não há extinção do espólio quando ocorrer a sobrepartilha


prospectiva8, pois ainda há (potencial) patrimônio em condomínio, muito
embora não tenha sido levado para o ventre o inventário original, fato que
este que justifica a designação de inventariante para administração e adoção
das medidas atinentes à arrecadação dos bens e/ou direitos que foram
excluídos dos trilhos do inventário primitivo (art. 669, parágrafo único, do
CPC e art. 2.021, parte final, do CC).
A parte final do art. 2.021 do CC pode gerar a impressão de que
a sobrepartilha prospectiva somente pode ser adotada mediante
consenso dos interessados, em que prevalecerá a vontade da maioria.9
Tal interpretação, porém, não prospera, pois o art. 2.021 contempla
técnica processual de organização, para que não ocorra perda de cadência
no inventário sucessório (tal qual se extrai também do texto do art. 612
do CPC10). Assim, a sobrepartilha prospectiva poderá ser adotada não
apenas por meio de ato convencional da maioria dos interessados11, mas
também por decisão judicial, como técnica processual atrelada à
organização do inventário sucessório.
A breve dinâmica traçada é indicativa de que a sobrepartilha
prospectiva é assunto também afeto às primeiras declarações (art. 620).
Vislumbrando a aplicação do art. 2.021 do CC, o inventariante deverá

8
No sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4ª Turma). REsp 977.365/BA, 26
de fevereiro de 2008. DJ, 10 mar. 2008.
9
Parece ser esta a posição de Euclides de Oliveira (Código Civil Comentado. São
Paulo: Atlas, 2004. v. 20, p. 227). Note-se que a redação do parágrafo único do art. 669
esclarece que a decisão por maioria se refere à designação do inventariante, não estando
atrelada à adoção (ou não) da sobrepartilha.
10
Sobre as aproximações da sobrepartilha prospectiva com a técnica prevista no art. 612 do
CPC, confira-se: MAZZEI, 2020.
11
Próximo: CARNEIRO, 2019, p. 230; VENOSA, 2019, p. 1.723; e DIAS, Maria Berenice.
Manual das Sucessões. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 611. Não se trata,
todavia, de “mero interesse dos herdeiros”, como defende: ARAÚJO, Luciano Vianna. In:
BUENO, Cassio Scarpinella (coord.). Comentários ao Código de Processo Civil: arts.
539-925. São Paulo: Saraiva, 2017. v. 2, p. 257, 292. Há de ficar configurada concretamente
situação que justifica o fatiamento do inventário, pois a sobrepartilha prospectiva é uma
técnica que quebra, de certa maneira, a unicidade sucessória.

212
trazer o tema – se possível – logo nas primeiras declarações, pois tal
postura permitirá o conhecimento e a manifestação por parte dos
interessados, fato que pode dar ensejo até mesmo à deliberação conjunta
destes na depuração de bens que não deverão ser arrecadados no
inventário original. Mesmo nos casos em que não for possível colher a
posição consensual dos interessados, as informações e a discussão
quanto à questão permitirão que o juiz decida sobre o tema caso isso se
torne necessário. Sem prejuízo, a sobrepartilha prospectiva poderá ser
adotada no curso do inventário, fixando-se seu limite, em regra, ao se
analisar e debater as últimas declarações (art. 636), oportunidade em que
a medida poderá ser defendida, por exemplo, pelo inventariante.
Quando se tratar de controvérsia interna, isto é, que envolva
aqueles que participam do inventário, a aplicação do art. 2.021 do CC
merece cuidado especial, pois há espaço para que seja efetuada a reserva
de bens respectiva ao dimensionamento patrimonial da pendenga,
reserva esta que deverá ser mantida até que o litígio caseiro seja resolvido
(em nova plataforma – vias ordinárias). No ponto, o CPC trata de
algumas hipóteses, a saber: (a) debate sobre inclusão de herdeiro (art.
627, III), (b) preterição de interessado (art. 628), (c) controvérsia sobre a
colação (art. 641) e (d) dívidas com credores (art. 643). Nas situações
listadas, o inventariante promoverá a reserva de bens, seguindo-se com
os demais atos para o desfecho do inventário causa mortis. Havendo
decisão final favorável ao espólio, os bens reservados perdem a sua
afetação, submetendo-se à sobrepartilha12.
O litígio interno acaba por desenhar forma diferenciada de
sobrepartilha prospectiva, pois há a arrecadação do bem (diferente das
outras situações tratadas no art. 2.021 do CC), mas a entrega deste fica
suspensa até que ocorra desfecho do assunto nas vias ordinárias. De
toda sorte, com a reserva de bens (que garante o debate interno), há
destrancamento do fluxo do inventário sucessório. Os bens reservados

12
Próximo: ARAÚJO, 2017, p. 292.

213
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

restarão em posse do inventariante, a fim de que, debelado o conflito


(ainda que posteriormente ao desfecho do inventário), seja o patrimônio
destinado a quem de direito. A reserva de bens é, pois, uma forma
estratégica de permitir a continuidade do inventário causa mortis nas
demais áreas, sendo, com todo respeito, incompreensível (já que
contrário à ideia da técnica) paralisar o processo sucessório se há bem
afetado e na posse do inventariante para garantir o resultado útil da
controvérsia. Dessa forma, feita a garantia (reserva de bens) o inventário
causa mortis deve retomar seu curso normal. Ao final, sedimentando-se
a decisão sobre a controvérsia, o inventariante entregará os bens
reservados ao postulante caso seu pedido seja julgado procedente, mas,
em razão inversa, se não for este o resultado, o patrimônio reservado
voltará ao espólio para que ocorra a sobrepartilha13.
A compreensão da sobrepartilha na moldagem prospectiva
permite dimensionar a figura como técnica processual em prol da
celeridade e organização procedimental. Com outras palavras, a
sobrepartilha em tal contexto não é uma figura acidental, mas sim como
técnica de caráter estratégico14, estando vinculada à organização
processual do inventário causa mortis15.

13
No caso de litígio sobre bem instaurado junto a terceiro (aquele que não participa do
inventário) não será necessário efetuar qualquer tipo de reserva interna ao inventário.
Na verdade, a partir da incerteza de que o bem fará parte do acervo da herança e/ou da
presumível demora para que a controvérsia seja definida no seu ambiente próprio
(provável ação judicial), o bem litigioso não deve ser arrecadado no primeiro momento,
devendo ser alvo de sobrepartilha, como indicado no art. 2.021 do CC. Caso o litígio
contra personagem externo seja julgado favorável ao espólio em data posterior ao
desfecho do processo sucessório, aplicar-se-á o comando do art. 670 do CPC, ou seja,
o bem dará ensejo a inventário suplementar (tratado na lei como sobrepartilha). Se o
resultado for negativo, não haverá sobrepartilha.
14
Como destaca Rodrigo Ramina Lucca: “Permite-se que bens conhecidos e facilmente
partilhados assim o sejam rapidamente, deixando aqueles de difícil divisão para um
momento posterior” (WAMBIER, 2016, p. 1.743).
15
Dessa forma, os interessados na herança devem aquilatar a viabilidade de que
determinadas questões que envolvem a arrecadação patrimonial e/o conflitos sejam
resolvidas internamente (ou não) ao inventário causa mortis, pois a opção influenciará no

214
A constatação fica mais clara quando a sobrepartilha
prospectiva é contrastada às disposições cravadas em normas
fundamentais, dentre as quais se destacam o art. 4º (que trabalha com a
duração razoável do processo) e o art. 8º (ao determinar que as normas
processuais serão aplicadas com a luz do farol da eficiência). Diante da
variedade de questões que envolvem a arrecadação e liquidação da
herança, decorrente do policentrismo que marca o inventário causa
mortis, é fundamental que se utilize a sobrepartilha como técnica
processual de organização, pois seu manejo adequado permitirá que o
inventário sucessório tenha desfecho mais eficiente e célere16.
Depreende-se das linhas anteriores que a sobrepartilha
prospectiva – anunciada nos incisos III e IV do art. 669 do CPC - possui
diálogo inconteste com o art. 2.021 do CC e que, quando realizada
adequadamente, traz benefícios ao procedimento e, via reflexa, aos
interessados, benefícios esses que estão em consonância com princípios
basilares previstos no diploma processual. Faz-se necessário consignar, por
oportuno, aspectos essenciais à compreensão da outra espécie de
sobrepartilha tratada neste estudo, qual seja, a sobrepartilha retrospectiva.

seu desfecho. Considerando as possibilidades da sobrepartilha prospectiva, haveria


esforço concentrado para o desfecho no ventre do inventário acerca dos temas
patrimoniais nucleares e/ou de resolução mais simplificada, ao passo que questões
duvidosas (tais como arrecadação de créditos de improvável ou difícil recebimento) e/ou
de litígio extremamente agudo (por exemplo, debate com terceiro acerca da titularidade
de determinado bem) sejam projetadas para fora do inventário causa mortis. Como a
aceleração processual e o desfecho do inventário são de interesse geral, há fértil terreno
para que sejam efetuadas convenções processuais envolvendo a sobrepartilha.
16
As matrizes do just in time (JIT), no sentido de que há boa cadência temporal entre o
início e o desfecho da produção, estão ligadas à organização de sequência de atos em que
deve ser eliminado o tempo improdutivo. Tal visão merece ser adotada nos processos
judiciais, notadamente quando estes carregam complexidades internas como ocorre no
inventário causa mortis. Sobre a aplicação do JIT no plano processual, confira-se:
MAZZEI, Rodrigo. Aspectos panorâmicos do ‘tempo’ na ‘realização do direito’. In:
SILVA, Bruno Freire e; MAZZEI, Rodrigo (coord.). Reforma do Judiciário: análise
interdisciplinar do primeiro ano de vigência. Curitiba: Juruá, 2006. p. 523-524.

215
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

O art. 669, em seus incisos I e II, comunica-se com o art. 2.022 do


CC, ao prever que serão objeto de sobrepartilha: (a) os bens sonegados; e
(b) os bens da herança que se tiver ciência após a partilha.
A depuração do art. 2.022 da codificação civil nas partes
destacadas se faz necessária, diante das influências que projeta na
sobrepartilha. Com efeito, em relação aos bens sonegados, há diálogo
com o art. 1.992 do CC, que descreve não só a conduta que caracteriza a
sonegação, quanto ao âmbito dos bens que alcança (incluindo os bens
sujeitos à colação) e a sanção respectiva. No que se refere aos bens da
herança “descobertos após a partilha”, esses devem ser entendidos como
aqueles cuja ciência ocorra após a partilha (arts. 2.022 do CC).
O momento temporal indica que a sobrepartilha retrospectiva
é uma solução residual, diante da evidente impossibilidade de
retificação ordinária da arrecadação pelo inventariante, que se dá sempre
antes da partilha, isto é, o desfecho final do inventário (art. 636, parte
final, do CPC). Como se percebe do quadro, a sobrepartilha
retrospectiva envolve a localização (descoberta) de bens e/ou de
direitos que deveriam ter sido alvo de arrecadação sucessória
originalmente, sendo necessário que de instaure novo processo em razão
do inventário primitivo já ter findado.
Assim, há quadro de desconhecimento acerca da existência de
material que deveria ter sido arrecadado, situação que ocasionou omissão
patrimonial na liquidação da herança, e, sequencialmente, na partilha ou
adjudicação respectiva. Logo, a sobrepartilha retrospectiva é
acidental, diferente do que ocorre na sobrepartilha prospectiva em que
há uma (possível) projeção da sua ocorrência.
É possível se inferir do estudo ora apresentado que a sobrepartilha
pode ser analisada tanto pelo prisma material – com enfoque nos bens e
direitos pendentes de distribuição, uma vez que não foram objeto da partilha
ocorrida no inventário causa mortis já encerrado –, quanto pelo aspecto
processual – traduzindo-se em figura que ensejará a instauração de
procedimento que contempla todas as fases do inventário sucessório.

216
Objetivou-se demonstrar, ainda, que o estudo da sobrepartilha
deve se dar de modo simbiótico, ou seja, de forma dialógica, combinando
o disposto no Código Civil com o previsto no Código de Processo Civil.
Nesse ponto, verifica-se que há correspondência irrefutável entre os
textos dos arts. 2.021 e 2.022 do CC com o art. 669 do CPC, de tal sorte
que a leitura conjunta dos dispositivos se revela de caráter fundamental
à boa compreensão do instituto.
Todavia, não basta apenas constatar o que salta aos olhos. Para
uma interpretação mais aprofundada, que favoreça, inclusive, a prática
forense, é preciso reconhecer aspectos inerentes da sobrepartilha.
Primeiramente, verifica-se que as suas hipóteses não se limitam apenas às
contempladas pelos dispositivos supramencionados, cabendo, na verdade,
em todas as situações em que haja pendência de arrecadação de bens e/ou
direitos que, de alguma forma, estão atraídos pela sucessão. Ademais, vê-
se que não se destina apenas aos herdeiros, mas a todos os interessados.
Acrescenta-se que o exame satisfatório da sobrepartilha leva ao
entendimento de que as principais hipóteses previstas no ordenamento
jurídico contemplam duas espécies: (a) a sobrepartilha prospectiva, ou
seja, a determinada no bojo de inventário ainda em curso (incisos III e
IV do art. 669 do CPC e art. 1.021 do CPC); e (b) a sobrepartilha
retrospectiva, ou seja, a que enseja novo processo em razão de o
inventário primitivo já ter se encerrado (incisos I e II e art. 2.022 do CC).
Malgrado as diferenças entre as hipóteses mencionadas, que
englobam, inclusive, o elemento temporal, conclui-se que a sobrepartilha
– em sentido amplo – beneficia os interessados na sucessão, seja porque
propicia um processo mais célere e eficiente, seja porque salvaguarda
bens/direitos sucessórios. Desse modo, compreender as nuances do
instituto em comento se revela fundamental para a boa aplicação do
Direito Sucessório.
Em arremate, com as devidas adaptações, as regras aplicáveis à
sobrepartilha podem ser perfeitamente transportadas para o âmbito das
partilhas que envolvem o Direito de Família. Isso porque, conforme dita

217
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

o parágrafo único do art. 731 do CPC, as disposições sobre a partilha


sucessória são aplicáveis no divórcio e na extinção da união estável, caso
ocorra litígio entre as partes. Com tal quadro, sendo a sobrepartilha uma
figura atrelada à “partilha”, há transporte dos arts. 2.021- 2022 do CC e
arts. 669-670 do CPC para o Direito de Família.

REFERÊNCIAS

ABELHA, Marcelo. Manual de Direito Processual Civil. 6. ed. Rio de


Janeiro: Forense, 2016.

ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken de; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários


ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2012.

ANTONINI, Mauro. In: PELUSO, Cezar. Código Civil Comentado. 7.


ed. Barueri: Manole, 2013.

ARAÚJO, Fábio Caldas de. Curso de Processo Civil. Procedimentos


Especiais. São Paulo: Malheiros, 2018. t. 3.

ARAÚJO, Luciano Vianna. In: BUENO Cassio Scarpinella (coord.).


Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 539-925). São Paulo:
Saraiva, 2017. v. 2.

BARROS, Hamilton de Moraes. Comentários ao Código de Processo


Civil: arts. 946-1.102. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. 9.

CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Inventário e partilha judicial e


extrajudicial. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das sucessões: inventário e


partilha. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

218
DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 5. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2018.

FISCHMANN, Gerson. Comentários ao Código de Processo Civil.


São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 14.

GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Processo de conhecimento e


cumprimento de sentença: comentários ao CPC 2015. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2018. v. 2.

GOMES, Orlando. Sucessões. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

LUCCA, Rodrigo Ramina. In: WAMBIER Teresa Arruda Alvim et al.


(coord.) Breves comentários ao novo código de processo civil. 3. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

MAZZEI, Rodrigo. Aspectos panorâmicos do ‘tempo’ na ‘realização do


direito. In: SILVA, Bruno Freire; MAZZEI, Rodrigo (coord.). Reforma
do Judiciário: análise interdisciplinar do primeiro ano de vigência.
Curitiba: Juruá, 2006.

________. Algumas notas sobre a sonegação de bens como hipótese de


remoção do inventariante. In: SALLES, Priscila (org.). Temas atuais em
famílias e sucessões. Belo Horizonte: OAB/MG, 2021. v. 2.

________. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 610 a 673.


São Paulo: Saraiva, 2020. v. 12.

MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões. 4. ed. Rio de Janeiro:


Freitas Bastos, 1958. v. 3.

219
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz;


MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil


comentado. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

OLIVEIRA, Euclides de. Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas,


2004. v. 20.

OLIVEIRA, Euclides de; AMORIM, Sebastião. Inventário e partilha:


teoria e prática. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao


Código de Processo Civil: arts. 982-1.045. Rio de Janeiro: Forense,
1977. v. 14.

SILVA, Clóvis do Couto e. Comentários ao Código de Processo Civil.


São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 11, t. 1.

SILVA, Ricardo Alexandre da; LAMY, Eduardo. Comentários ao


Código de Processo Civil: arts. 539-673. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2017. v. 9.

SIMÃO, José Fernando. Código Civil Interpretado. 4. ed. São Paulo:


Atlas, 2019.

TEPEDINO, Gustavo; Nevares, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose


Melo Vencelau. Fundamentos do direito civil: Direito das sucessões.
Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 8.

220
TOMÁS, Patrícia Mara dos Santos. In: MACHADO, Costa (org.).
Código Civil Interpretado. 3. ed. Barueri: Manole, 2010.

VENOSA, Silvio. Código Civil Interpretado. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2019.

221
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DAS
RELAÇÕES FAMILIARES

Rosangela Maria Carvalho Viana*


Anne Caroline Vitoriano dos Santos*

Os atos de violência baseados no gênero estavam presentes na


maior parte do contexto histórico, nos mais diferentes regimes políticos
econômicos brasileiros. A tipificação da violência doméstica familiar
contra a mulher se tornou pauta de debate com mais afinco após mais de
dezenove anos de luta da cearense, farmacêutica bioquímica, Maria da
Penha Maia Fernandes, vítima de diversas agressões e de tentativas de
homicídio pelo marido.
Desde então, a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da
Penha, agravou o rigor das punições aos agressores de mulheres no
âmbito doméstico familiar, objetivando, prioritariamente, à proteção às
mulheres vítimas de “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que
lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, dano moral
ou patrimonial”. Salienta ainda, que estas cinco formas de agressão, na
maior parte dos casos, ocorrem em consonância umas com as outras,
constituindo-se como atos graves de violação aos Direitos Humanos.
O ciclo de violência é repetitivo e, na maior parte dos casos, não
acontece uma única vez, este é derivado do medo e da tensão vivida
constantemente pelas vítimas no convívio com os agressores. O aumento
da tensão acontece em iminente proximidade à violência, que se
concretiza e é precedida do arrependimento, do comportamento
carinhoso do agressor, levando a vítima ao sentimento de voltar a viver
em lua de mel e repensar sobre a denúncia.

*
Pós-Graduada em planejamento regional pela Universidade Federal Ceará (UFC) -
CETRED.
*
Graduanda em Direito no Centro Universitário Christus. Estagiária em Direito.

223
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Segundo a pedagoga Jussara Barros:

Um dos grandes fatores que favorecem a violência física,


como os espancamentos, é a personalidade desestruturada
para um convívio familiar do agressor, que não sabe lidar
com pequenas frustrações que essas relações causam no
decorrer do cotidiano.

Hodiernamente, vivenciamos um contexto atípico de reclusão,


por consequência da pandemia mundial, esta proporcionada pela doença
infecciosa Coronavírus (COVID-19). Em razão disso, a maior parte da
população brasileira, nos diferentes estados, esteve em isolamento social,
mantendo-se em convivência restrita por um maior período. Dessa
forma, sendo indispensável o aprimoramento de discussões específicas
acerca da completude e abrangência do arcabouço jurídico presente no
ordenamento brasileiro, destacando-se a necessidade de medidas mais
eficazes para efetivá-lo.
Factualmente, demonstrou-se, mediante recente boletim
intitulado “Violência doméstica em tempos de Covid-19”, trazido à tona
pelo Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), o aumento dos
números de casos de violência doméstica e familiar contra mulheres no
contexto pandêmico. Dessa forma, observou-se, comumente, o uso da
violência para resoluções de conflitos familiares ou conjugais, por
parceiros abusivos, tornando-os agressores.
Apesar disso, a elevação dos números de casos de violência
doméstica não está diretamente ligada ao aumento da quantificação de
denúncias, visto que muitas vítimas são impossibilitadas de acessar os
órgãos e meios viáveis à sua proteção, em razão de estarem reclusas do
convívio social ao qual costumeiramente estão inseridas.
Além disso, os familiares ou amigos, na maior parte dos casos,
perdem o contato direto com as vítimas, dificultando ainda mais o auxílio
na denúncia ou na percepção de que algo possa estar acontecendo. Este
afastamento, provocado pelo agressor, interfere até nos dados oficiais do

224
Estado, visto que há preponderância da deficiência na chegada de
denúncias e a consequente desproporção entre os números de boletins de
ocorrência e os casos factuais.
Nesse contexto, é visível que, o arcabouço legal brasileiro se
demonstra suficiente para o enfrentamento da violência doméstica, como
salientado pela Senadora e presidente da Comissão Permanente Mista de
Combate à Violência contra a Mulher, Zenaide Maia, “a Lei Maria da
Penha é uma grande conquista das mulheres brasileiras e vem,
consequentemente, salvando muitas vidas”, destacando referida Lei
como uma das três melhores do mundo no enfrentamento à violência
contra a mulher, abrangendo em seu escopo o maior número de
manifestações de violência doméstica e familiar.
Apesar disso, a real eficácia na efetivação das medidas de
proteção à mulher, ainda se constitui um desafio, visto que a dificultosa
chegada de denúncias, demonstra-se como empecilho para a proteção
destas vítimas. Fato sustentado pelas falácias instituídas na sociedade,
em razão do sentimento de não ser responsável pelo cuidado às mulheres
que sofrem com os impactos da violência vivida no dia a dia. Esse
sentimento é enraizado nas condutas de muitos que poderiam agregar
como agentes de denúncia aos órgãos de proteção.
Consoante a isto, a criminologia aborda o conceito de
revitimização da mulher ou vitimização secundária, ou seja, para além do
sofrimento causado pelo agressor, há também o descrédito da palavra da
vítima, quando atendida pelos agentes do gênero masculino que estão
responsáveis pelo primeiro contato de atendimento da mulher com os
possíveis auxiliadores e operadores do direito, além da explanação do caso
para a efetivação da denúncia. O despreparo e a deficiência na capacitação
destes profissionais é fator preponderante para a não concretização do
boletim de ocorrência, e para o não acolhimento efetivo da vítima, podendo,
em razão disso, haver continuidade desta na relação abusiva instituída.
Ademais, é notável, em exemplos diários, casos de mulheres
vítimas de violência doméstica que conseguem efetivar a denúncia,

225
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

porém, acabam sofrendo novamente a (as) violência (s) por parte do


mesmo agressor denunciado, sendo, em muitos casos, agressões ainda
mais intensas, em razão deste tentar se vingar da vítima que o denunciou.
Instrumentos para coibir e prevenir a violência doméstica
familiar, como as medidas protetivas de urgência, dividem-se,
legalmente, em dois tipos, as que possuem viés proibitivo, para que o
agressor não pratique determinadas condutas consideradas de
periculosidade à vítima, e as que amparam e auxiliam à mulher e seus
dependentes, como elucida o professor Dr. Sergio Ricardo de Souza,

As medidas protetivas de urgência são um dos principais


mecanismos de amparo às mulheres previstos na Lei Maria da
Penha, com o objetivo de garantir a integridade psicológica,
física, moral e patrimonial, para que a vítima possa agir ao optar
por buscar a proteção estatal e jurisdicional.

Entretanto, a eficácia da fiscalização destinada ao cumprimento


das medidas protetivas se apresenta mais dificultosa, em razão da
elevação dos obstáculos que este trouxe à vida em sociedade. Convém
salientar, com o decréscimo no acesso aos transportes públicos, com as
restrições de locomoção em algumas cidades, ocasiões de cárcere
privado ou até os danos patrimoniais provocados pelos parceiros
abusivos, estes previstos nas formas de violência doméstica e familiar
que a Lei Maria da Penha tipifica.
Apesar do esforço empenhado pelas autoridades e órgãos de
defesa às mulheres, para o cumprimento efetivo destas medidas protetivas
e para o auxílio às vítimas, os órgãos de fiscalização aos potenciais
agressores ainda não conseguem efetivar e garantir o cumprimento do total
afastamento, a proteção e o amparo a todas às vítimas de violência
doméstica. Apesar do significativo avanço ao longo dos anos, a
comunicação entre as vítimas e os órgãos governamentais ainda é
dificultosa, tendo se agravado no contexto de isolamento social vivido.

226
Cabe salientar, que a existência da Patrulha Maria da Penha,
desenvolvida pela Brigada Militar do Rio Grande do Sul, tornou-se um
importante meio fiscalizador da efetiva realização das medidas protetivas
no estado e de resguardar de maneira mais contundente as mulheres vítimas
de violência. Este meio proporcionou, só no primeiro semestre de 2020, a
visitação de 5.039 mulheres e a criação de um número especificamente
destinado à denúncia do descumprimento da medida protetiva pelo agressor,
tornando o sistema mais eficaz de acompanhamento deste mecanismo
protetivo. Ademais, só no primeiro bimestre de 2021 o número de
atendimentos registrou um aumento de 98,7% em comparação ao ano de
2020, ao todo 8.668 mulheres atendidas, somando-se ao todo o número de
18 mil atendimentos ao longo dos anos.
Além disso, é notável o sentimento de posse e machismo
enraizado na sociedade e, principalmente, nos agressores que coabitam
com as vítimas de violência doméstica, sendo, então, inegável a
importância do Poder Público no desenvolvimento de formas eficientes
à proteção e ao cumprimento da Lei 11.340/2006, como amparado pelo
Art. 3º, § 1º da referida Lei. Ademais, o desenvolvimento de Políticas
Públicas para a ressocialização do agressor, por meio de equipes
multidisciplinares, estas compostas por assistentes sociais e psicólogos,
resguardando o princípio da ressocialização tratado no Direito Penal.
Consoante a isto, também é dever da família e da sociedade criar as
condições necessárias para a efetivação dos direitos assegurados às
mulheres, fato previsto pelo Art. 3º da referida Lei supramencionada.
O Projeto de Lei (PL) nº 2013/2020, que tramitou na Câmara dos
Deputados, estabelecia medidas emergenciais de proteção à mulher vítima
de violência doméstica durante a pandemia Coronavírus (COVID-19),
possuindo a finalidade de acrescentar à Lei 13.340/2006 medidas protetivas
excepcionais. Dessa forma, referido PL dispõe, por exemplo, em seu § 1º,
de medida já prevista pelo Art. 22. inc. II da referida Lei. Porém, prevê
obrigação ao Poder Público em destinar recursos extraordinários
emergenciais para assegurar o funcionamento de casas-abrigo e dos Centros

227
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

de Atendimento Integral e Multidisciplinares para Mulheres, garantindo o


efetivo cumprimento do que se estabelece no Art. 23, inc. I da Lei Maria da
Penha, constituindo-se, assim, como outra medida de garantir a eficácia no
cumprimento desta Lei em período pandêmico. Referido Projeto de Lei foi
apensado ao Projeto de Lei (PL) nº 1444/2020, que possui a mesma Ementa,
alterando, contudo, a Lei 11.340/2006, estando, na presente data,
aguardando apreciação pelo Senado Federal.
Destarte, apreende-se, então, a necessidade do engajamento de
métodos que atuem no aumento da eficácia decorrente da aplicação da Lei
Maria da Penha, visto que, sua finalidade é a proteção das mulheres que
diariamente estão sujeitas a situações que as colocam em perigo e/ou grave
ameaça, infringindo os Direitos Humanos que estas possuem. Destacando-
se o dever de organização social e mantença da saudável relação em
sociedade ao qual o ordenamento jurídico possui como fim último.
Em contrapartida, faz-se necessário que as autoridades do país
tenham medidas efetivas para com o agressor, contando com equipes
multidisciplinares de acompanhamento ao agressor, no ímpeto que este
não reincida na violência contra a mulher.

REFERÊNCIAS

A ORIGEM DA LEI MARIA DA PENHA. Jus Brasil, 2009. Disponível


em: https://tj-sc.jusbrasil.com.br/noticias/973411/saiba-mais-sobre-a-
origem- da- lei- maria- da- penha- 2#:~:text=Em%207%20de%20agost
o%20de,a%20opress%C3%A3o%20e%20a%20viol%C3%AAncia.
Acesso em: 27 jun. 2020.

CARDOSO, Bruno. Violência contra a mulher: o que são as medidas


protetivas de urgência? Jus Brasil, 2018. Disponível em:
https://brunonc.jusbrasil.com.br/artigos/544108267/violencia-contra-a-
mulher-o-que-sao-as-medidas-protetivas-de-urgencia. Acesso em: 27
jun. 2020.

228
COMISSÃO lança relatório sobre os 12 anos da Lei Maria da Penha.
Senado Notícias, 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/n
oticias/audios/2020/05/observatorio-aponta-aumento-da-violencia-
contra-mulheres-na-pandemia. Acesso em: 27 jun. 2020.

INSTITUTO MARIA DA PENHA. Instituto Maria da Penha, Mitos


da violência doméstica. Disponível em: https://www.institutomariadap
enha.org.br/violencia-domestica/o-que-e-violencia-domestica.html.
Acesso em: 27 jun. 2020.

PATRULHAS Maria da Penha passam a atuar em 38 novas cidades do


RS. G1, 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-
sul/noticia/2020/04/06/patrulhas-maria-da-penha-passam-a-atuar-em-
38-novas-cidades-do-rs.ghtml. Acesso em: 27 jun. 2020.

PATRULHA Maria da Penha: número de atendimentos tem salto de 98,7%.


Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2021.
Disponível em: http://www.rj.gov.br/NoticiaDetalhe.aspx?id_noticia=126
24&pl=patrulha-maria-da-penha:-n%C3%BAmero-de-atendimentos-tem-
salto-de-98,7%. Acesso em: 17 maio 2021.

REVITIMIZAÇÃO da mulher na atualidade. Canal Ciências


Criminais, 2019. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/
revitimizacao-da-mulher-na-atualidade/. Acesso em: 27 jun. 2020.

SOUZA, Sérgio Ricardo de. A Lei Maria da Penha Comentada: sob a


perspectiva dos direitos humanos. 4. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2013.

229
A REPARAÇÃO CIVIL POR DANOS MORAIS EM RAZÃO DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
À LUZ DO TEMA 983 DOS RECURSOS REPETITIVOS (RESP
1.643.051): análise de sua inefetividade no âmbito do
Tribunal de Justiça de Pernambuco

Venceslau Tavares Costa Filho*


Camila Cristiane da Silva*
Carolina de Macêdo Ferreira*

Pode-se dizer que a desaprovação social a violência doméstica


e familiar contra a mulher é significativa atualmente. Isto se verificou
paralelamente a uma redefinição do papel da mulher, bem como a
ascensão de uma série de direitos e garantias fundamentais, que devem
partir da percepção concreta da vulnerabilidade das mulheres vítimas de
violência doméstica e familiar, que vêm sendo menosprezadas há tanto
tempo e lutam diariamente por sua valorização.
Neste sentido, criou-se a Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da
Penha) para agregar ao ordenamento jurídico pátrio a proteção daquelas
que vivem situações de violência que acontecem no âmbito de sua
unidade doméstica, ou seja, em sua própria residência, em contexto
familiar, independente de consanguinidade, e em quaisquer relações que
hajam afeto, sem a necessidade de coabitação. Em vez de ser o espaço
de realização dos afetos e da proteção (um “ninho”), o ambiente
doméstico é um lugar inseguro para diversas mulheres.

*
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da
Universidade de Pernambuco (UPE) e da FAFIRE. E- mail: venceslautavares@yahoo.com.br.
*
Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE), pesquisadora voluntária
PIBIC 2019-2020 (CNPq - UPE). E-mail: camilacristianesilva02@gmail.com.
*
Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE), pesquisadora
bolsista PIBIC 2019-2020 (CNPq - UPE). E-mail: carolinamacedoferreira@gmail.com.

231
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Na realidade, para além de questões criminais, a Lei Maria da


Penha também regula aspectos civis (ou patrimoniais) da violência
doméstica e familiar, vez que é imperioso garantir esses aspectos em prol
do ideal de justiça e da igualdade de gênero. Neste contexto, faz-se
necessário analisar a efetividade da reparação civil em tais casos, posto
que não é suficiente a sua previsão em legislação específica (como o
Código de Processo Penal e a Lei Maria da Penha), bem como não é
suficiente entendimento do Superior Tribunal de Justiça ratificando a
possibilidade de oportunizar a devida reparação. Como restará
demonstrado, existe verdadeiro abismo entre o direito legislado e o
direito efetivamente aplicado nos casos de violência doméstica no
âmbito do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Destarte, não existe dúvida de que, em se tratando de questões
envolvendo mulheres (principalmente quando se trata de violência contra
elas no âmbito familiar), é fundamental tratar a temática sob a
perspectiva de gênero.
Assim, para compreender o julgamento através desta percepção,
deve-se observar, inicialmente, o próprio termo “gênero”. O conceito é
desenvolvido a partir dos padrões socioculturais, ligados, certamente, a
aprendizados que passam de geração em geração, podendo ser mantido,
recriado ou reproduzido, tratando-se, portanto, da relação socialmente
construída entre homens e mulheres1.
Quando vislumbrada essa questão, reconhece-se que a noção
relacional entre homem e mulher, na sociedade brasileira, está em
desequilíbrio: o homem seria um ser “superior” e privilegiado em face à
mulher, mesmo que as garantias legislativas digam o contrário e que elas

1
“Género se entiende como el conjunto de características específicas culturales que
identifican el comportamiento social de mujeres y hombres y las relaciones entre ellos.
Por tanto, el género no se refiere simplemente a mujeres u hombres, sino a la relación
entre ellos y la manera en que se construyen socialmente.” MEDINA, Graciela. Juzgar
con Perspectiva de Género: “¿Porque juzgar con Perspectiva de Género? Y ¿Cómo
Juzgar con Perspectiva de Género?”. Revista Justitia Familiae, Lima, v. 1, p. 19, 2018.

232
busquem a igualdade entre tais gêneros. Tal desigualdade já era
reconhecida na exposição de motivos da Lei Maria da Penha, de modo a
constatar que a violência intrafamiliar reflete “dinâmicas de poder e
afeto”, em um “sistema de dominação” que reputa “natural uma
desigualdade socialmente construída”2. É o próprio direito positivado na
Lei Maria da Penha, portanto, que se pauta na percepção da
hierarquização de tais relações, a despeito das variadas motivações do
agente para a causação dos danos3.
Além disso, cabe salientar que o julgamento com perspectiva de
gênero, aqui defendido, não se dá no sentido de favorecer um exame da
situação por meio da inserção da mulher na realidade masculina. Muito
pelo contrário, deve-se adequar às realidades sociais do homem e da
mulher e saber averiguar com excelência a relação entre eles.
Nesta toada, cabe aos magistrados, diante de situações de
violência doméstica e familiar contra a mulher, enxergarem a
essencialidade de vincular seus entendimentos à noção de gênero, em
todos os seus atos processuais, principalmente em relação a produção de
provas e sua valoração. Caso contrário, não alcançarão o ideal de justiça
e igualdade entre as partes, por não colocarem no centro da análise todas
as circunstâncias sociais, econômicas e psicológicas.
Um desses atos, por exemplo, é a inversão do ônus da prova,
tendo em vista a situação de vulnerabilidade feminina subentendida nos
casos de violência, e, em muitos casos, a hipossuficiência. Obviamente,
qualquer meio aqui elencado não visa encerrar as possibilidades de
atuação pelo magistrado. Pelo contrário, cabe a cada um deles, dentro de
sua competência e nos limites de sua jurisdição, viabilizar um melhor
julgamento para todas as mulheres, compreendendo seu papel

2
Cf: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/EXPMOTIV/SM
P/2004/16.htm. Acesso em: 19 jun. 2021.
3
PRANDO; BORGES, 2020.

233
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

desamparado nos mais diversos casos e garantindo os direitos previstos


na legislação, desde os fundamentais até os mais específicos.
Na verdade, julgar com perspectiva de gênero é muito mais do
que reconhecer o que é a figura feminina ou entender ao que se refere
gênero. É demonstrar à sociedade que as mais diversas atitudes tomadas
contra as mulheres não são mais toleradas e que essas atitudes devem ser
punidas e as vítimas reparadas. Isso ocorrerá por meio de entendimentos
judiciais dos Tribunais quanto à temática, bem como na obrigação de
todo o quadro de funcionários atuar em favor desse ideal, a fim de buscar
maior equidade entre os homens e as mulheres.
Um dos pontos a fundamentar esta percepção é o conteúdo
trazido pelo REsp 1.643.051-MS, que foi julgado sob o rito dos recursos
repetitivos (tema 983), em que foram colocados em destaque dois
pontos: a) se há ou não a possibilidade de fixação de valor mínimo para
indenização de dano moral sem que tenha sido especificada a quantia; b)
se essa fixação necessita ou não de instrução probatória específica.
Assim, de acordo com o Superior Tribunal de Justiça, há, sim,
possibilidade de condenação do agente ao pagamento de indenização por
danos morais, após pedido expresso na denúncia ou ao longo do processo,
realizado pelo Ministério Público ou pela vítima. Contudo, não há
necessidade de especificação do valor no pedido de condenação a
indenização por danos morais. Isso porque, o fato do magistrado fixar um
valor mínimo a ser pago como indenização pelos danos morais sofridos pela
vítima não fere o direito ao contraditório do réu, já que terá havido pedido
expresso do Ministério Público ou da vítima, e o réu teria previsibilidade, a
qual afastaria um possível julgamento surpresa, situação essa
expressamente vedada tanto no Processo Civil, quanto no Processo Penal.
Já em relação ao segundo ponto destacado, a tese firmada
esclarece que a condenação a indenização por danos morais prescinde de
prova. Isso se daria porque a violência doméstica envolve intimamente
crimes contra a vida, liberdade, segurança e imagem da vítima, ou seja,

234
questões que violam direitos da personalidade, decorrendo da própria
conduta criminosa a consequência danosa que enseja a reparação civil.
Dessa forma, não seria razoável a exigência de instrução
probatória específica para mensurar um dano psíquico, pois, caso assim
fosse, a consequente dilação probatória, provocaria violação do próprio
subsistema de proteção à mulher, firmado, sobretudo, em 2006 com o
artigo 1º da Lei Maria da Penha, e em 2008 com a reforma do Código de
Processo Penal, especialmente com a nova redação do art. 387, IV.
Ainda é importante evidenciar que a conduta criminal, em si,
permanece necessitando de instrução probatória, uma vez que a estrutura
do processo penal brasileiro é fundada no princípio da presunção de
inocência, em que o onus probandi pertence à acusação. Assim, não se
justifica falar em violação do devido processo legal, posto que a
imputação criminosa, da qual o dano moral decorre, foi comprovada por
uma instrução probatória exigida pelo ordenamento jurídico brasileiro.
O que há nesta questão, portanto, é o dano moral in re ipsa, ou
seja, o dano moral está implícito na violência doméstica e, por isso, não
careceria de prova específica. Além disso, o Recurso Especial trouxe
como argumento, para afastar essa necessidade de comprovação
específica, outros julgamentos do próprio Tribunal Superior em que,
mesmo sem haver comprovação de grave desprezo a pessoa humana, a
condenação a indenização por danos morais dispensa instrução
probatória específica: inscrição indevida em cadastro de devedores;
interrupção do fornecimento de água como forma de compelir
pagamento; atraso de voo e extravio de bagagem.
Outrossim, uma das finalidades de não se exigir instrução
probatória específica para a fixação do dano moral à mulher vítima de
violência doméstica também está umbilicalmente conectada com a
necessidade de o sistema jurídico buscar o afastamento da revitimização
e da possibilidade de uma violência institucional.
Portanto, tal julgamento parece solucionar um grave aspecto da
violência doméstica e familiar contra a mulher, pois favorece o ambiente para

235
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

as mulheres vítimas de violência, além de esclarecer a questão dos danos


morais em tais casos. Entretanto, quando verificada sua influência e
reprodução perante o Tribunal de Justiça de Pernambuco, a realidade é outra.
Foram analisados 60 acórdãos pertencentes a 1ª e 3ª Câmara
Criminal do Recife; julgamentos estes realizados entre Março de 2018 e
Outubro de 2019 e que, de maneira sucinta, merecem destaque quanto
aos resultados.
Na 1ª Câmara, apenas um acórdão tratava dos danos morais.
Neste acórdão, não se observou o enfrentamento ao precedente do STJ,
principalmente em relação ao fato de ser desnecessária a produção de
prova específica para os danos sofridos pela vítima de violência doméstica
– posto que presumidos. Fato este que aponta para um desrespeito aos
direitos dessa mulher vítima, bem como a não menção à natureza histórica
e social desse tipo de violência, imprescindível para a análise de
perspectiva de gênero. Contudo, o desembargador-relator reconhece que
há, historicamente, uma banalização dos direitos à integridade física e
moral da vítima de violência doméstica, demonstrando como a intenção
da perspectiva de gênero está presente na decisão.
Em contrapartida, na 3ª Câmara Criminal, onde foram
encontrados três acórdãos sobre o tema, a perspectiva de gênero pouco é
trabalhada nos votos, não existindo quaisquer referências sobre as
origens e os impactos desta violência para a vida da mulher vítima e toda
a sociedade, ficando restrito a considerar a palavra da vítima como de
total credibilidade.
Junto a isso, cabe ressaltar a diferença de composição entre as duas
câmaras estudadas: enquanto a 1ª Câmara é composta por três
desembargadores homens, a 3ª tem em sua composição uma
desembargadora (a única mulher ocupando este cargo atualmente no
Tribunal de Justiça de Pernambuco) e dois desembargadores. Isto traz
algumas questões a reflexão. Uma delas se revela na própria extensão das
decisões, que revelam uma maior preocupação em realizar fundamentações
e levar em conta as nuances que se tem ao julgar uma questão de violência

236
doméstica. Os acórdãos da 1ª Câmara são concisos, com a média de 05
folhas por julgamento; já os acórdãos da 3ª Câmara são mais extensos,
sobretudo os que têm como relatora a referida desembargadora.
Numa perspectiva quantitativa, dos 60 acórdãos que abordavam o
crime de violência doméstica contra a mulher, apenas quatro analisaram a
questão da reparação civil por danos morais a vítima de violência doméstica
e familiar, e destes quatro apenas um manteve a indenização, porém de
maneira omissa. Dos outros 03 acórdãos, dois trouxeram como argumento
para o afastamento da reparação, o fato de não ter havido pedido expresso
do Ministério Público ou da vítima, além da ausência de instrução
probatória específica, o que impossibilitou a ampla defesa do réu. Por
último, e mais problemático, houve a decisão pelo afastamento da reparação
civil, mesmo com o reconhecimento de que houve pedido expresso do
ministério público, faltando apenas a especificação do quantum
indenizatório4, questão especificamente enfrentada no recurso especial
analisado tratando do afastamento dessa obrigatoriedade.
Certamente, é inaceitável a ausência de pedido de fixação da
reparação civil pelo Ministério Público, visto que o ordenamento jurídico
brasileiro estabelece a obrigatoriedade da atuação dessa Instituição nos
casos de violência doméstica, posto que a natureza da ação é pública
incondicionada, inclusive para casos de lesão corporal leve. Isso, pois, a Lei
Maria da Penha tem sua criação fundamentada na busca pela cessação ou,
pelo menos, a enérgica redução dessa triste realidade de violência.
Nesse sentido, considerando que “cabe à família, à sociedade e
ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício
dos direitos enunciados” na Lei Maria da Penha (art. 3º, § 2º), o
Ministério Público poderia se escusar sobre os danos sofridos pela
mulher e não solicitar a reparação civil? Não é o que se pode extrair do

4
PERNAMBUCO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado. APL: 496623-2 PE (3ª
Câmara Criminal). Relatora: Daisy Maria de Andrade Costa Pereira, 7 de março de
2018. DJPE, 28 mar. 2018.

237
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

que afirma o conselheiro nacional do Ministério Público, Valter


Shuenquener de Araújo (2018):

Entre a Polícia investigativa e o Poder Judiciário é que está


o Ministério Público; e justamente porque é o titular
exclusivo da ação penal pública, caberá a ele perseguir
vigorosamente os culpados, em nome de todas as mulheres
vitimadas que através da sua voz clamam por justiça5.

É importante ter em mente que a intenção da lei era que


houvesse atuação, tanto de juízes, quanto de promotores, com
perspectiva de gênero, e com, no mínimo, empatia e consideração pela
figura feminina. Dessa maneira, já seria o suficiente para inferir a
necessidade de atuação do Ministério Público na defesa dos direitos e
dos interesses das mulheres vítimas. Contudo, é impossível ignorar a
disposição de que o Ministério Público seja parte nas causas criminais,
significando, portanto, que essa instituição não está imparcial quanto ao
processo, mas deve atuar na acusação e, portanto, em defesa dos direitos
das mulheres. Consequentemente, fundamentado na Lei Maria da Penha,
o promotor de justiça deve agir de modo a cumprir as medidas que
considerar importante para a atender as necessidades da ofendida. Nessa
situação, o que o Ministério Público considera como interesse da mulher
vítima de violência doméstica e familiar não é a total reparação dos danos
por elas suportados, vez que se omite na formulação do pedido de
condenação a indenização por danos morais.
A falha atuação com perspectiva de gênero do Ministério
Público não se deu apenas sobre os danos morais, já reveladora de uma
violação aos direitos da mulher que foi vítima de violência doméstica,
mas também da ausência de pedir o agravante para a situação.

5
ARAÚJO, Valter Shuenquener de. Prefácio. In: CONSELHO NACIONAL DO
MINISTÉRIO PÚBLICO. Violência contra a mulher: um olhar do Ministério Público
brasileiro. Brasília: CNMP, 2018. p. 6. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/
publicacoes/11464-violencia-contra-a-mulher. Acesso em: 9 set. 2020.

238
Felizmente, mesmo diante dessa carência, o magistrado de primeiro grau
reconhecia a circunstância agravante, questão que também se repete de
maneira semelhante na fixação de danos morais. Dessa forma, menciona
Ela Wiecko V. Castilho (2013):

Isso parece não estar acontecendo, conforme evidenciado


em estudo que analisou 36 processos judiciais de
homicídios de mulheres, com violência doméstica e
familiar, ocorridos no Distrito Federal, entre 2006 e 2011,
e julgados após a promulgação da Lei Maria da Penha.
Verificou-se que em 86% dos casos o Ministério Público
não pediu a agravante do art. 61, f do Código Penal
(violência contra a mulher na forma da lei específica).
Curiosamente, em parte dos casos, a agravante não
solicitada pelo Ministério Público foi aplicada pelo juiz,
pois há entendimento doutrinário de que o juiz pode fazê-
lo, bastando a narrativa implícita na denúncia.

Apesar da obrigatoriedade, há muito já se traçaram debates na


doutrina sobre o direito da mulher em receber indenização por danos
morais, independentemente de dilação probatória específica. Exemplo
disso é o que aduz Regina Beatriz Tavares da Silva (2019), citando lições
de Carlos Alberto Bittar:

Na busca de uma conceituação jurídica do dano moral que


torne sua análise independente de sentimentos ou
sensações, a inspiração provém de Carlos Alberto Bittar,
enquadrando-o como dano que resulta de uma ofensa ao
direito da personalidade, como a vida, a honra, a
integridade física e psíquica e a liberdade, entre outros.
Com essa visão jurídica de dano moral, se tornam
inadequadas maiores investigações de ordem psicológicas
ou psíquicas de natureza extremamente subjetiva, cabendo
a demonstração da violação ao direito da personalidade
para que se aplique a denominada “responsabilização
decorrente da violação” já citada anteriormente6.

6
Tradução livre.

239
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Além da doutrina, cabe mencionar que, também há muito,


existem dispositivos legais que garantem às mulheres vítimas de
violência doméstica a indenização por danos morais nessas situações,
sejam eles na legislação brasileira, como a própria Lei Maria da Penha e
o Código de Processo Penal, como também disposições das Convenções
Internacionais que o Brasil participa, como é o caso da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos “Convenção de Belém do Pará”.
Apesar da redação do art. 9º, §4º da Lei Maria da Penha decorrer
de uma atualização de 2019, este dispositivo veio corroborar o que o
ordenamento já previa, conforme descrito no art. 5º da mesma lei;
reafirmando a posição pela possibilidade da reparação por danos morais,
bem como exigindo um atendimento articulado entre todas as áreas, a
buscar a efetivação de todos os direitos das vítimas.
Inclusive no Código de Processo Penal, em seu artigo 387, IV,
é possível identificar que existe uma obrigação imposta ao juiz em fixar
o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração.
Além desses, cabe mencionar o que aborda o artigo 7º da
Convenção Interamericana de Direitos Humanos, Convenção Belém do
Pará, impondo como um dos deveres dos Estados:

Os Estados Partes condenam todas as formas de violência


contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios
apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir,
punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em:
estabelecer mecanismos judiciais e administrativos
necessários para assegurar que a mulher sujeitada a
violência tenha efetivo acesso a restituição, reparação do
dano e outros meios de compensação justos e eficazes.

Decerto, cabe afirmar que a referida função segue em relação


não só da própria reparação da vítima, mas também a busca de
desestimular a prática do delito, uma vez que apenas as sanções penais
não se mostram suficientes para tal inibição.

240
Ainda no que tange às falhas processuais, como já bem posto
anteriormente, é bastante louvável que todo julgamento tenha consigo uma
perspectiva de gênero em seu âmago para equilibrar a relação entre as partes
e resultar numa decisão de conteúdo exemplar, demonstrando à sociedade
que a violência contra mulher já não tem espaço em nossa realidade.
Entretanto, em todos os casos analisados, verificou-se a
deficiência na aplicação de tal perspectiva no âmbito do Tribunal de
Justiça de Pernambuco, principalmente no julgamento que concluiu pelo
indeferimento da concessão de indenização por danos morais mesmo
diante da comprovação da prática de violência contra a mulher, em
desacordo evidente com o precedente obrigatório firmado no âmbito do
Superior Tribunal de Justiça.
Não se pode ignorar que, em alguns momentos, é possível
observar um ensaio de julgamento com perspectiva de gênero; afinal, a
Lei Maria da Penha em todo o seu texto demonstra um posicionamento
em favor da figura feminina, obviamente, diante da realidade vivida pela
mulher. Contudo, o que se observa na maioria dos julgados é uma
verdadeira “cegueira de gênero” (gender-blind), que parece ignorar o
dado fático das relações assimétricas de gênero7. Dessa forma, toda a luta
por uma igualdade entre os gêneros retorna à estaca zero quando não
vislumbrada a realidade feminina, o que culmina, consequentemente,
numa ruptura com a necessidade de mostrar ao povo como estes casos
estão sendo repudiados pelo próprio judiciário e como não existe mais
espaço para eles em nossa sociedade.
E as críticas não cessam por aí, ainda cabe salientar como os
Juizados Especiais instituídos com a vigência da Lei Maria da Penha
também implicam na irregularidade de diversos julgamentos,
principalmente quando posto em foco esse tema da indenização por
danos morais.

7
PRANDO; BORGES, 2020.

241
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Na realidade, esses Juizados têm competência unificada, ou seja,


eles têm a atribuição de julgar as questões cíveis e criminais8. Tal
concentração de competências repete-se no âmbito do Tribunal de Justiça
de Pernambuco, nos termos da alínea “a” do inciso II do art. 77 do
Regimento Interno do Tribunal de Justiça de Pernambuco9. Entretanto,
conjecturada a cultura penalista de só atuar dentro das paredes da
legislação e considerando o enquadramento rígido das condutas a fatos
típicos, observa-se como isto influencia fortemente as decisões do campo
privado, que têm consigo a autonomia privada, de modo que termina por
limitar a proteção da mulher apenas em relação às situações de violência
classificadas no âmbito estrito da tipicidade, ignorando as diversas formas
de violência que se encontram para além de tais limites estritos. Tal forma
de raciocinar termina por violar o próprio espírito da Lei Maria da Penha
que fez opção por um rol exemplificativo de situações de violência
doméstica e familiar contra a mulher em seu art. 7º, como é possível inferir
da leitura do caput: “São formas de violência doméstica e familiar contra
a mulher, entre outras: (…)”.
Dessa forma, por viverem sempre limitados às disposições
legais, na maioria das vezes, os magistrados não têm sensibilidade o
suficiente para encarar a questão dentro da liberdade permitida do campo
cível, por isso decidem afastando a indenização, porque supostamente a
lei processualista só se refere a danos patrimoniais, não podendo abrir
brechas para acatar também os danos morais.

8
Lei Maria da Penha: Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser
criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o
processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência
doméstica e familiar contra a mulher.
9
Art. 77. Compete às 1ª, 2ª, 3ª e 4ª Câmaras Criminais: II - julgar: a) os recursos contra
decisões de juízes e tribunais do primeiro grau, inclusive dos Conselhos de Justiça
Militar, bem como das decisões dos juízes da infância e da juventude em processos de
apuração de ato infracional praticado por adolescente e das decisões dos juízes das varas
de violência doméstica e familiar contra a mulher quando houver matéria penal
cumulativa com matéria cível.

242
Posto isso, é inaceitável como após 14 anos de vigência da Lei
Maria da Penha as mulheres ainda não têm total garantia para seus
direitos e ainda vivem numa realidade de total insegurança,
independentemente do âmbito, seja ele social ou judicial, as agressões
diárias que sofrem são inúmeras e não parecem ter prazo certo e próximo
para se findar.
Como relatado, essa unificação das competências resulta em
evidente prejuízo para a garantia dos direitos das vítimas, pois envolve
toda a organização judiciária. Nos julgamentos, foi possível perceber um
afastamento tanto da perspectiva de gênero, a qual ficou restrita a breves
considerações sobre a valoração da palavra da vítima, quanto o
“desleixo” em relação à afetação dos danos morais, questão
essencialmente civil que foge da sensibilidade do julgador criminal.
Além da dificuldade da efetivação desses direitos, no âmbito
dos julgamentos, a situação ainda piora quando verificada a atuação do
Ministério Público, em que, assim como os julgadores, os promotores
envolvidos na causa estão vinculados ao raciocínio criminal,
desconsiderando em sua função os direitos que as vítimas têm aos danos
morais sofridos, posto que não houve, em sua maioria, a formalização do
pedido de reparação a que essas mulheres tinham direito.
E, por meio de todas essas considerações, é que se nota como a
mulher continua sendo posta nas margens da dignidade social, sofrendo
os mais diversos tipos de agressões, que até mesmo são levemente
legitimados pelos próprios magistrados e dos demais profissionais do
direito, visto que:

este cenário de ineficiência do poder judiciário cria um


cenário favorável a violência doméstica e familiar contra a
mulher ao passar ao público a mensagem de que não
existem reais evidências da vontade e da ação do Estado
para prevenir, punir e reprimir estes atos em nome da
sociedade civil (COSTA FILHO, 2019).

243
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

Dessa forma, é imprescindível explicitar todas essas


circunstâncias em favor unicamente das mulheres que, mesmo
protegidas nos últimos 14 anos pela Lei Maria da Penha, ainda lutam
fortemente por sobrevivência no âmbito sociocultural, devendo,
principalmente os juristas, apoiá-las e se juntar ao movimento para que
todos os seus direitos sejam garantidos, tanto no âmbito judicial, como
em qualquer outro que a possa interessar. Não existe mais um espaço de
dúvidas e construções legislativas, o que aqui se tenta evidenciar é que
tais garantias não podem ser mais consideradas como apenas um texto,
uma regra ou norma abstrata; tais garantias são questões de
sobrevivência e precisam ser concretizadas e legitimadas.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Valter Shuenquener de. Prefácio. In: CONSELHO


NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Violência contra a
mulher: um olhar do Ministério Público brasileiro. Conselho Nacional
do Ministério Público. Brasília: CNMP, 2018. Disponível em:
https://www.cnmp.mp.br/portal/publicacoes/11464-violencia-contra-a-
mulher. Acesso em: 9 set. 2020.

BASSET, Ursula C. Nuevos desafíos en la discriminación contra la


mujer en el derecho privado contemporáneo. In: DEL CARPIO
RODRÍGUEZ, Columba Maria del Socorro Melania (coord.). Derecho
de Familia y Personas: Familia, Mujer, Niñez y Violencia. Arequipa:
Editorial UNSA. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Seção). REsp: 1643051 MS


2016/0325967-4. Relator: Min. Rogerio Schietti Cruz, 28 de fevereiro de
2018, DJe, 8 mar. 2018.

244
CAMBI, Eduardo Augusto Salomão; DENORA, Emmanuella Magro.
Lei Maria da Penha: tutela diferenciada dos direitos das mulheres em
situação de violência doméstica e familiar. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 133, p. 219-255, 2017.

CASTILHO, Ela Wiecko V. de. A Lei Maria da Penha e o Ministério


Público. 2013. Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br
/a-lei-maria-da-penha-e-o-ministerio-publico-por-ela-wiecko-v-de-
castilho/. Acesso em: 19 jul. 2021.

COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Anotações críticas a adequação


procedimental da lei brasileira de violência doméstica e familiar contra
a mulher. In: DEL CARPIO RODRÍGUEZ, Columba Maria del Socorro
Melania (coord.). Derecho de Familia y Personas: Familia, Mujer,
Niñez y Violencia. Arequipa: Editorial UNSA. 2019.

MEDINA, Graciela. Juzgar con Perspectiva de Género: “¿Porque juzgar


con Perspectiva de Género? Y ¿Cómo Juzgar con Perspectiva de
Género?”. Revista Justitia Familiae, Lima, v. 1. 2018.

PERNAMBUCO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado (3ª Câmara


Criminal). APL: 487246-6/PE, Relator: Eudes dos Prazeres França, 27
de fevereiro de 2019. DJEPE, 19 mar. 2019.

________. ________ (3ª Câmara Criminal). APL: 496623-2 PE.


Relatora: Daisy Maria de Andrade Costa Pereira, 7 de março de 2018.
DJEPE, 28 mar. 2018.

________. ________ (1ª Câmara Criminal). APL: 0504898-6 PE.


Relator: Fausto Campos, 2 de abril de 2019. DJEPE, 23 abr. 2019.

245
O descortinar de novos paradigmas para a advocacia de família e sucessões

________. ________ (3ª Câmara Criminal). APL: 517881-6 PE.


Relatora: Daisy Maria de Andrade Costa Pereira, 2 de janeiro de 2019.
DJEPE, 10 jan. 2019.

PRANDO, Camila Cardoso de Mello; BORGES, Maria Paula


Benjamim. Concepções genderizadas na análise de deferimento das
Medidas Protetivas de Urgência (MPUs). Revista Direito GV, v. 16, n.
1 (2020). São Paulo: GV. Revista online. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-
24322020000100200&lang=pt. Acesso em: 29 abr. 2021.

RICOLFI, Miriam Florencia. Violencia a la Mujer. Daños y Función


preventiva. In: RODRÍGUEZ, Columba Maria del Socorro Melania del
Carpio (coord.). Derecho de Familia y Personas: Familia, Mujer, Niñez
y Violencia. Arequipa: Editorial UNSA. 2019.

SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Daños a la mujer y su Reparación en


el Derecho Brasileño. In: RODRÍGUEZ, Columba Maria del Socorro
Melania del Carpio (coord.). Derecho de Familia y Personas: Familia,
Mujer, Niñez y Violencia. Arequipa: Editorial UNSA. 2019.

246

Você também pode gostar