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EDITORA LUMEN JURIS


1
RIO DE JANEIRO
1 2021
A trajetória dos fundos de investimento no
Brasil e a respectiva evolução regulamentar

Fernando Schwarz Gaggini1

SUMÁRIO: 1. Os fundos de investimento: aspectos gerais; 2. Desenvolvimento


no Brasil e o panorama regulatório; 2.1. Origens no Brasil; 2.2. O desenvolvi-
mento da indústria nos anos 1990 e pós Plano Real; 2.3. As alterações no con-
ceito de valor mobiliário e o impacto regulatório na indústria de fundos; 2.4. O
episódio da "marcação a mercado"; 2.5. A centralização regulatória pela CVM;
2.6. A recente disciplina no Código Civil; 3. Considerações finais; 4. Bibliografia.

1. Os fundos de investimento: aspectos gerais

Dos primeiros vestígios ao momento atual, já se contam aproximadamente sete


décadas de existência, no Brasil, da figura dos fundos de investimento. Eles repre-
sentam relevante instrumento de investimento coletivo, agregando recursos de uma
ampla diversidade de investidores e, como resultado de tal engenharia, tornaram-se
importantes figuras no cenário econômico, por movimentar elevado montante de
recursos, caracterizando uma das modalidades mais tradicionais para o público in-
vestidor, alcançando desde o pequeno aplicador ao investidor qualificado.
As razões que levaram ao êxito-de tal indústria são várias. De início, cabe mencio-
nar que os fundos de investimento viabilizam um processo de substituição de títulos.
Desta forma, os diversos ativos adquiridos pelo fundo são, na ótica do investidor, subs-
tituídos por cotas, correspondentes a frações ideais do patrimônio do fundo. Logo, o
investimento em cotas de um fundo representa, portanto, um investimento indireto em
uma fração da totalidade de ativos integrantes da carteira de investimentos do fundo.
Deste modo, tal estrutura apresenta uma série de atrativos ao investidor/catista,
dentre os quais podemos apontar: (i) a diversificação de investimentos decorrente do
processo de substituição de títulos, dado que os diversos ativos pertencentes ao fundo
se substituem pela cota, viabilizando um investimento indireto múltiplo, que seria de
considerável complexidade para ser realizado de forma direta e individual (pois envol-
veria diversas operações e custos mais elevados); ademais, a diversificação, já natural
nos fundos de investimento, pode ser multiplicada através do investimento em fundos
de fundos (fundos que aplicam, de forma diversificada, em cotas de outros fundos de

Advogado e professor universitário. Pós-Graduado em Direito Mobiliário (Mercado de Capitais)


pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP.
Contato: fernando.schwarz@uol.com.br.

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Fernando Schwarz Gaggini A trajetória dos fundos de investimento no Brasil e a respectiva evolução regulamentar

investimento); (ii) o investimento realizado via fundos permite também ao cotista ter que para alguns fundos inexiste possibilidade de escolha, tal como ocorre para os
acesso a produtos mais sofisticados que, muitas vezes, seriam inacessíveis individual- fundos de investimento imobiliário e fundos de investimento em participações (que
mente; (iii) destaca-se também que, via fundos, o cotista "terceiriza" a gestão de seus devem adotar a forma de fundo em condomínio fechado 3 ), ao passo que para outras
recursos a entidade profissional do mercado, detentora de maior expertise e conhe- modalidades se admite alternativa, tal como ocorre na Instrução CVM n. 555, que
cimento, para desempenhar a função; (iv) também se pode apontar como ponto de abrange tanto fundos em condomínio aberto quanto fechados\ bem como quanto
atratividade a pouca burocracia, no que envolve tributação e declaração de recursos aos fundos de investimento em direitos creditórios, dado que a Instrução CVM n.
perante o fisco (em especial quando se tratam de fundos com imposto retido na fonte, 356 os admite também como abertos ou fechados 5•
em que podemos citar, como exemplo, o diferencial entre o investimento em fundos No entanto, embora possuam tais atrativos, outros pontos existem que podem
de ações quando comparados ao investimento direto em ações, que demanda maiores ser considerados desvantagens dos fundos em relação a modalidades diversas que
cuidados quanto a recolhimento de tributos e declaração de operações); (v) e, ainda, ca- com eles competem no mercado financeiro. Algumas delas seriam: (i) dado que ad-
racterística muito importante da indústria dos fundos de investimento é a liquidez que ministração dos recursos é realizada por entidades profissionais, em contrapartida
propiciam aos cotistas. Dado que liquidez, nesse contexto, pode ser entendida como o tal situação impõe custos ao fundo, mediante a cobrança de taxas de administração e
grau de facilidade em converter a cota em dinheiro, pode-se afirmar que os fundos de eventualmente de performance (desempenho) ou outras; (ii) a delegação da adminis-
investimento possuem interessantes (e diferentes) estruturas a esse respeito. tração também impõe um limite estratégico ao cotista, que possui posição passiva,
Isso porque, podemos encontrar os fundos "abertos" e os fundos "fechados". dado que não pode escolher os ativos a serem adquiridos pelo fundo; em realidade,
Em matéria de liquidez, os fundos abertos se mostram como mecanismos que facili- sua escolha estratégica de investimentos se limita, de forma genérica, à escolha pelo
tam ao extremo o resgate de recursos pelos cotistas. Essa lógica se justifica pois, nesse fundo em que deseja aplicar, e consequentemente à sua respectiva política de inves-
caso, as cotas não são revendidas em mercado, mas as negociações se dão diretamente timento; (iii) terceira desvantagem que pode ser apontada envolve alguns aspectos
entre fundo e cotista, tanto para realização do investimento quanto do resgate (que tributários que se mostram menos vantajosos aos cotistas que em modalidades alter-
pode ocorrer a qualquer tempo, observadas as disposições constantes do regulamen- nativas de aplicação financeira: a título de exemplo, muitos fundos de investimento
to). Em razão disso, nesses casos tais fundos abertos possuem um capital instável, eis se submetem ao sistema de tributação denominado "come-cotas", gerando uma an-
que entradas e saídas de recursos são ocorrências constantes e reiteradas. tecipação do recolhimento de tributos, o que inexiste em outras modalidades con-
Logo, nessa situação inexiste um mercado secundário de cotas, destinado a re~ correntes, tal como o CDB (Certificado de Depósito Bancário), em se pensando em
venda e negociação. Tal característica, se por um lado assegura ampla liquidez ao fundos destinados a investimentos mais conservadores, como os referenciados ou de
cotistas (caracterizando aspecto positivo ao investidor), por outro gera considerável renda fixa; o mesmo se dá quanto ao investimento direto em ações, que possui alguns
incerteza quanto aos recursos disponíveis ao fundo, que em momentos de stress pode benefícios tributários para negociações mensais até determinado valor 6 •
se ver na iminência de honrar volumosos resgates, o que pode impactar consideravel-
mente nas estratégias de investimento.
Já os fundos fechados, em matéria de negociação de cotas e liquidez, possuem 3 Em relação aos fundos de investimento imobiliário, dispõe o art. 2° da Lei n. 8.668/93: ''Art. 2° O
uma dinâmica bem diferente, se assemelhando bastante à situação, por exemplo, das Fundo será constituído sob a forma de condomínio fechado, proibido o resgate de quotas, com prazo
companhias abertas. Isso porque, nessa hipótese, o fundo realiza a captação de recur- de duração determinado ou indeterminado". Quanto aos fundos de investimento em participação,
dispõe a Instrução CVM n. 578: "Art. 5° O FIP, constituído sob a forma de condomínio fechado,
sos mediante a oferta de cotas aos investidores, mas não permite o constante resgate é uma comunhão de recursos destinada à aquisição de ações, bônus de subscrição, debêntures
direto das cotas, tal como em relação aos fundos abertos. Portanto, diante da impos- simples, outros títulos e valores mobiliários conversíveis ou permutáveis em ações de emissão
sibilidade de resgate a qualquer tempo perante o fundo2, cabe ao cotista, para con- de companhias, abertas ou fechadas, bem como títulos e valores mobiliários representativos de
verter suas cotas em dinheiro, revender a terceiros, o que pode dificultar tal objetivo. participação em sociedades limitadas, que deve participar do processo decisório da sociedade
investida, com efetiva influência na definição de sua política estratégica e na sua gestão".
Assim, se as cotas forem comercializadas em mercado organizado, maior a probabili-
dade de negociação, mas ainda assim sujeito à existência de investidores interessados 4 Nesse sentido, o artigo 4º da Instrução CVM n. 555: ''Art. 4° O fundo pode ser constituído sob a
forma de condomínio aberto, em que os cotistas podem solicitar o resgate de suas cotas conforme
em adquirir o ativo. Portanto, existe uma maior incerteza quanto à negociação de tais estabelecido em seu regulamento, ou fechado, em que as cotas somente são resgatadas ao término do
ativos, e ampla variação quanto à sua liquidez. Por fim, note-se que a adoção de tais prazo de duração do fundo".
estruturas de negociação varia conforme cada tipo de fundo, tendo, como exemplo, 5 Vide Instrução CVM n. 356: ''Art. 3° Os fundos regulados por esta instrução terão as seguintes
características: I - serão constituídos na forma de condomínio aberto ou fechado; [...]".
6 Embora, pela diversidade de regras tributárias em relação aos fundos, também existem casos em
2 Dado que o resgate, para fundos em condomínio fechado, se dá ao término do fundo. que a tributação de fundos, para o cotista, é mais vantajosa, como se dá atualmente em relação

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A par da existência de tais aspectos "negativos", podemos afirmar que os pontos 2.2. O desenvolvimento da indústria
atrativos se destacaram e levaram a um amplo crescimento da indústria de fundos no nos anos 1990 e pós Plano Real
Brasil, tornando-se categoria de ampla relevância econômica.
Ademais, aspecto de grande vantagem usufruída pelos fundos, no campo tri- A década de 1990, no Brasil, mostrou-se bastante relevante para o setor de fun-
butário, é o tratamento fiscal da carteira do fundo. Isso porque, a isenção de imposto dos de investimento, por diferentes razões. No plano regulatório, logo no início da
de renda quanto aos rendimentos e ganhos auferidos pelas carteiras dos fundos lhes década o Conselho Monetário Nacional estabeleceu uma competência concorrente
trouxe diferencial competitivo considerável, que os torna estratégicos, especialmente entre o Banco Central e a CVM 8, de modo que o setor de fundos passaria a vivenciar
em comparativo a sociedades de investimento (que seriam potenciais concorrentes uma duplicidade regulatória, que perduraria pelo resto da década.
diretos em matéria de investimento coletivo, mas que, por serem pessoas jurídicas, No aspecto econômico, a década se iniciou com o Brasil vivenciando um ce-
possuem tratamento distinto). A somatória de tais aspectos, portanto, levou a uma nário de inflação descontrolada, inóspito aos investimentos, e logo no início do ano
ampla adesão, pelo mercado, da figura dos fundos. de 1990, o Plano Collor, que dentre suas medidas impôs um bloqueio a diversas apli-
cações financeiras (no episódio que ficou conhecido como "confisco da poupança"),
representou duro golpe ao setor de investimentos no Brasil, trazendo enorme insegu-
2. Desenvolvimento no Brasil e o panorama regulatório
rança jurídica para os investidores.
Passados alguns anos, as mudanças políticas levaram a que, em 1994, fosse cria-
2.1. Origens no Brasil do o Plano Real, propondo uma ampla reforma econômica, bem como inserindo uma
nova moeda, o Real. O período pós Plano Real gerou uma mudança substancial na
A indústria de fundos de investimento tem suas origens na Inglaterra, em me- economia brasileira. A maior estabilidade conquistada, bem como o controle infla-
ados do século XIX. No Brasil, por sua vez, as primeiras notícias da existência de cionário, após anos de inflação disparada, levou a uma mudança no comportamento
fundos datam da metade do século XX, sendo que o caso mais famoso é o do fundo da população, bem como dos investidores. O temor inflacionário foi, pouco a pouco,
Crescinco, constituído na década de 1950. perdendo espaço na mente da população, e a busca por novas modalidades de inves-
Ao final da referida década, a Portaria n. 309/1959, do Ministério da Fazenda, pre- timento se tornou tendência no mercado.
viu a constituição de fundos em conta de participação ou em condomínio. Ainda nesse Nesse novo contexto, a indústria de fundos de investimento encontrou cenário
estágio inicial, conforme observado por Eizirik, Gaal, Parente e Henriques, tais atividades propício a seu desenvolvimento. A título de exemplo, em um intervalo de cinco anos,
eram disciplinadas por normas da SUMOC - Superintendência da Moeda e do Crédito?. após a criação do Plano Real, o salto de crescimento no setor foi notável. Conforme
Em 1965, a Lei n. 4.728 disciplinou, em dois artigos (49 e 50), as sociedades de observamos em obra anterior9, se ao final de 1994 os fundos possuíam patrimônio de
investimento e os fundos de investimento. Relembre-se que, embora sejam ambas es- quarenta e oito bilhões de reais, em 1999, já alcançavam patrimônio de cento e seten-
pécies de entidades de investimento coletivo, as sociedades de investimento adotam ta e cinco bilhões de reais, distribuídos em aproximados 2600 fundos.
forma societária, ao passo que os fundos, conforme previsão já constante daquela Ademais, além do crescimento, o período pós Plano Real, na segunda metade
norma, adotam característica condominial (sendo que o início do artigo 50 fala em da década, também ajudou a aprimorar as regras relacionadas ao setor. As suces-
"fundos em condomínios de títulos ou valores mobiliários"). Em matéria de órgãos sivas crises econômicas ocorridas em 1997 ("crise asiática - tigres asiáticos"), 1998
reguladores, note-se que, sendo referida lei de 1965, já se encontrava na esfera regula- ("Rússia") e 1999 ("Brasil e o episódio da desvalorização cambial"), que atingiram
tória do Banco Central do Brasil e do Conselho Monetário Nacional, criados, ambos, consideravelmente o Brasil, ensinaram, entre outros aspectos, sobre a necessidade de
no ano anterior pela Lei n. 4.595/64. Cabe lembrar, ainda, que o surgimento da CVM aumento de transparência quanto ao risco do investimento em fundos, bem como
se daria somente em 1976, pela Lei n. 6.385, absorvendo algumas funções até então sobre a importância da segregação patrimonial entre fundos e administradores10 •
cabíveis ao Banco Central e relacionadas ao mercado de valores mobiliários. Embora,
em matéria de fundos de investimento, a atuação do Banco Central se estenderia 8 Conforme observado por Florinda Figueiredo Borges, tal decisão se deu através da Resolução CMN
ainda por muito tempo após, indo até o início do século XXI. n. 1.787, de 1991. (BORGES, Florinda Figueiredo. Os fundos de investimento - reflexões sobre a
natureza jurídica. ln: FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes (coord.). Direito societário
contemporâneo I. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 52).
aos fundos de investimento imobiliário, em que os rendimentos pagos aos cotistas são isentos, em 9 GAGGINI, Fernando Schwarz. Fundos de investimento no direito brasileiro. São Paulo: Leud, 2001, p. 23.
oposição ao aluguel direto de imóveis, que se submete a tributação.
10 Conforme observamos em obra anterior: "Após a desvalorização cambial ocorrida no início de 1999
7 EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariadna B; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado no Brasil, que revelou alguns problemas na relação entre fundos e seus administradores, os órgãos
de capitais - regime jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.77.

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2.3. As alterações no conceito de valor mobiliário No caso, em maio de 2002, decisão conjunta dos órgãos reguladores determi-
e o impacto regulatório na indústria de fundos nou aos fundos de investimento modificar a sua sistemática de precificação dos ati-
vos, adotando a prática denominada marcação a mercado. Não obstante a decisão
Com o objetivo de incluir alguns tipos de ativos financeiros no rol de valores mo- tenha justificativa técnica, visando maior transparência (para representar a realidade
biliários, e por consequência submeter seus emissores à regulação da CVM, em 1998, dos preços dos ativos no mercado e evitar distorções nas negociações de cotas) e re-
a Medida Provisória n. 1.637 promoveu considerável alteração no conceito jurídico de dução de risco sistêmico, seu impacto prático acarretou em mudanças abruptas de
valor mobiliário. Abandonando a técnica de listagem pontual de valores mobiliários, valor das cotas dos fundos (mesmo nos mais conservadores, em razão de disparida-
constante do texto original da Lei n. 6.385/76, a referida medida provisória inseriu em des entre o valor de mercado dos ativos e o valor até então contabilizado), assustando
nossa legislação conceito mais aberto, caracterizando a figura do contrato de investi- investidores e, por consequência, gerando grande desgaste à imagem do setor.
mento coletivo. Tal texto deu margem a discussões se as cotas de fundos de investimen- Tal cenário foi ainda mais complicado em razão de ter ocorrido em conturbado
to (matéria objeto, à época, de dúplice regulação por Banco Central e CVM) passariam ano eleitoral, com as consequentes dúvidas e incertezas quanto ao futuro econômico
a ser caracterizadas como valores mobiliários, o que levaria a impactos regulatórios e político no Brasil.
consideráveis, por aumento da competência da CVM 11 • No entanto, no aspecto prático, Como decorrência dessa crise, o setor de fundos de investimento vivenciou
apesar da criação de um novo conceito pela referida medida provisória, e dos debates grande movimento de retirada de recursos pelos investidores, que se prolongou ao
decorrentes, no que tange à regulação dos fundos nada mudaria até o início da próxima longo dos meses que se seguiram, sendo os recursos transferidos para outros ativos
década, mantida a duplicidade regulatória exercida por Banco Central e CVM. De fato, concorrentes, como poupança e CDB, entre outros, sendo que somente tempos de-
somente em 2001 nova mudança legislativa viria a aclarar a questão da competência na pois o setor viria a se recuperar plenamente de tal episódio.
matéria de fundos, em aspecto que será tratado mais à frente.
2.5. A centralização regulatória pela CVM
2.4. O episódio da "marcação a mercado"
Apesar das discussões surgidas após a Medida Provisória n. 1.637/98, quanto a
Nova ocorrência que viria a afetar bruscamente o setor de fundos de inves- possível extensão da competência da CVM em relação aos fundos de investimento,
timento ocorreu no ano de 2002, quando do episódio que ficou conhecido como a o fato é que, na prática, iniciou-se o século XXI com o mesmo cenário de duplicida-
"crise da marcação a mercado". de regulatória. Nesse contexto, e utilizando de uma terminologia genérica, o Banco
Central mantinha-se regulando o setor de fundos de renda fixa (tendo por norma
principal, à época, a Circular n. 2.616/95), ao passo que a CVM regulava os fundos
de renda variável (tendo por norma principal, à época, a Instrução CVM n. 302/99).
reguladores trataram de expressar esta autonomia patrimonial de forma exaustiva, visando com isto Mas eis que, a par da modificação já constante da referida medida provisória,
não permitir que eventuais prejuízos obtidos pelos fundos venham a afetar a estabilidade financeira a plena definição quanto à questão da competência só se daria através de nova le-
das instituições administradoras, e nem possibilitar a ocorrência de fenômeno inverso, ou seja, que gislação, que eliminaria qualquer dúvida a respeito. Assim, com o advento da Lei
uma administradora que esteja com problemas financeiros utilize o patrimônio do fundo de forma
ilícita ou fraudulenta na defesa de seus interesses, prejudicando os catistas". ln GAGGlNl, Fernando
n. 10.303, de 31 de outubro de 2001, se promoveu substancial reforma na legislação
Schwarz. Fundos de investimento no direito brasileiro. São Paulo: Leud, 2001, p. 50. societária e do mercado de valores mobiliários, e a questão da competência foi escla-
11 Nesse sentido, tome-se como exemplo o artigo de José Eduardo Carneiro Queiroz, datado de 1999, recida. Isto porque, a Lei n. 10.303 alterou o rol de valores mobiliários constantes da
em que sustentava entendimento de que as cotas de fundos estariam enquadradas como valores Lei n. 6.385/76, e inseriu menção expressa às cotas, no inciso V do artigo 2°, contem-
mobiliários, em decorrência do texto da Medida Provisória n. 1.637/98, passando a competência plando "as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de
sobre tal matéria integralmente para a CVM. Nesse sentido: ''.A partir da classificação dos contratos investimento em quaisquer ativos". Dessa forma, norma expressa passava a listar as
de investimento como valores mobiliários, resta claro que ativos como as quotas dos fundos de
investimento financeiro e os derivativos também se encaixam nessa definição. Como resultado da cotas de fundos como valores mobiliários, deixando evidente a competência da CVM
alteração do conceito de valor mobiliário, a CVM teve a sua competência alargada para uma série de para regular integralmente o referido setor.
segmentos do Mercado de Capitais que antes ou estavam sujeitos à fiscalização do BACEN, ou não Embora a Lei n. 10.303 seja de outubro de 2001, seguiu-se o prazo de vacatio le-
se submetiam a nenhum órgão regulador, como é o exemplo dos chamados contratos de boi gordo,
gis, e em sequência um trâmite de transição entre os órgãos, sendo que, durante o ano
motivadores dessa inovação legislativa". ln QUEIROZ, José Eduardo Carneiro. O Conceito de Valor
Mobiliário e a Competência da Comissão de Valores Mobiliários e do Banco Central do Brasil. de 2002, Banco Central e CVM estipularam providências para efetivar as mudanças
ln: MOSQUERA, Roberto Quiroga (coord.). Aspectos atuais do direito do mercado financeiro e de estabelecidas na nova legislação, publicando decisões conjuntas, criando grupos de
capitais. São Paulo: Dialética, 1999, p. 134. trabalho para estabelecer procedimentos etc.

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E assim, finalmente a CVM foi assumindo a disciplina integral do setor, recep- Ainda, em consonância ao cenário regulatório instituído pela Lei n. 10.303, o
cionando os fundos anteriormente regulados pelo Banco Central. Através da Ins- parágrafo 2° do artigo 1.368-C afirma competir à Comissão de Valores Mobiliários
trução CVM n. 409, de 2004, criou a norma principal que disciplinaria o setor de disciplinar tal matéria, sendo ainda que estabelece que o registro do regulamento do
fundos a partir de então, englobando tanto os antigos fundos que já estavam sob sua fundo junto à CVM é condição suficiente para garantir a sua publicidade e a oponi-
disciplina, quanto outros, tais como fundos de renda fixa, cambial, dívida externa, bilidade de efeitos em relação a terceiros15 •
multimercado etc., não obstante a existência de outras normas da própria CVM para Assim, com a inserção de tais regras no Código Civil, os fundos de investimen-
disciplinar tipos específicos de fundos não abrangidos por tal normativo. to ganharam uma base legal mais sólida, com consequente aumento da segurança
Passada uma década12, a Instrução CVM n. 409 veio a ser sucedida pela Instru- jurídica para o setor.
ção CVM n. 555, de 2014 (com entrada em vigor em 2015), que assumiu a posição de
norma principal da matéria, sendo atualmente a regra de referência, em nível infra
legal, para disciplinar a constituição, a administração, o funcionamento e a divulga-
3. Considerações finais
ção de informações dos fundos de investimenta13. A disciplina da matéria no Código Civil, ainda que tardia, evidencia a grande
relevância dos fundos de investimento no cenário econômico nacional.
2.6. A recente disciplina no Código Civil
Trata-se de setor que observou exponencial crescimento, tanto do ponto de vis-
ta de importância no mercado, como em expansão de produtos, com graus diversos
Após décadas de esparsas menções em lei a respeito da figura dos fundos, as-
pecto que gerava potenciais discussões e dúvidas, dado que a maioria das normas de sofisticação e complexidade.
O crescimento de sua participação, no mercado, se observa pelo aumento da
relacionadas eram em nível infra legal, em 2019 a Lei da Liberdade Econômica (Lei
indústria ao longo de 20 anos: de um patrimônio de cento e setenta e cinco bilhões de
n. 13.874) inseriu, no Código Civil, capítulo próprio destinado a tratar da figura dos
reais, no final do século XX (1999), alcançou, em 2019, a marca de cinco trilhões de
fundos de investimento (artigos 1.368-C a 1.368-F), e assim estabelecer, em nível de
reais, o que, segundo informações divulgadas pela ANBIMA, colocaria o Brasil em
lei, algumas regras e características aplicáveis ao instituto.
10° lugar dentre as maiores indústrias de fundos de investimento do planeta 16 •
A lacuna legal anteriormente existente deu margem a várias dúvidas e debates.
Quanto aos produtos disponíveis, nota-se que o setor se sofisticou, e diversos
Dentre tais debates, destaquem-se as constantes discussões a respeito da natureza dos
fundos inovadores passaram a conviver com as figuras mais tradicionais, todos hoje
fundos, existindo corrente de entendimento que defendia se tratarem de sociedades,
sob a disciplina da CVM, conforme o cenário regulatório instituído no início do sé-
em contraposição a corrente diversa que defendia a teoria condominial, além de ou-
tras proposições existentes. A esse respeito, inclusive, afirmamos, em obra anterior14, culo, e reafirmado pela recente disciplina da matéria no Código Civil.
Assim, convivem hoje, sob a regulação da CVM, tanto as espécies de fundos
que o fundo seria "uma forma de condomínio de natureza especial, com regras pró-
tradicionais, como os fundos de renda fixa, fundos de ações, fundos cambiais e fun-
prias e específicas, distintas das descritas no Código Civil". Sobre esse tema, agora,
dos multimercados, regulados pela Instrução CVM n. 555, como também espécies
o Código Civil, em seu artigo 1.368-C, passou a estabelecer expressamente que "o
fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de mais sofisticadas, e possuidoras de regulamentação específica, como os fundos de in-
condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e vestimento em direitos creditórios, fundos de investimento em participações, fundos
direitos de qualquer natureza", bem como, por sua natureza especial, dispôs o pará- de investimento em empresas emergentes e fundos de investimento imobiliário, entre
grafo primeiro do referido artigo determinação de que não se aplicam aos fundos as outros mais que integram o setor.
disposições constantes do próprio código em relação ao condomínio em geral.

12 Cabendo observar que, nesse período, o setor de fundos de investimento vivenciou nova grande
crise, em 2008, decorrente dos efeitos da chamada "crise do subprime", surgida no mercado norte- 15 Em linhas gerais, além da caracterização do fundo e de sua competência regulatória, o Código Civil
americano e que afetou diversos outros países. Tal crise, embora não tenha sido específica do setor também apresentou algumas disposições a respeito do regulamento, dispôs sobre a responsabilidade
de fundos, acabou tendo considerável impacto no setor. E novo cenário desafiador se apresenta dos fundos, cotistas e prestadores de serviço, regulou a possibilidade de insolvência do fundo, entre
agora, em 2020, diante das consequências da pandemia do Coronavírus. outros aspectos que não serão tratados aqui, pois fogem ao escopo deste trabalho, de oferecer uma
13 Com a ressalva de que, embora seja a Instrução n. 555 a norma principal relativa a fundos de investimento, visão panorâmica sobre o setor de fundos de investimento no Brasil.
ela convive com outras normas da própria CVM destinadas a regular tipos específicos de fundos. 16 https://www. an bima .com. br /pt_br /noticias/industria-de-fundos-ale anc a-r-5- t rilhoe s-de-
14 GAGGINI, Fernando Schwarz. Fundos de investimento no direito brasileiro. São Paulo: Leud, 2001, p. 53. patrimonio-liquido.htm

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Fernando Schwarz Gaggini

4. Bibliografia
Notas sobre o regime jurídico
BORGES. Florinda Figueiredo. Os fundos de investimento - reflexões sobre a na- dos fundos de investimento
tureza jurídica. ln: FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes (coord.) Direito
societário contemporâneo I. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
Milena Donato Oliva1
EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariadna B; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus de
Pablo Renteria 2
Freitas. Mercado de capitais - regime jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
SUMÁRIO: 1. Introdução: origem e evolução normativa; 2. Oportunidade
GAGGINI, Fernando Schwarz. Fundos de investimento no direito brasileiro. São desperdiçada: os fundos de investimento privados; 3. A disciplina do Código
Paulo: Leud, 2001. Civil; 4. Estrutura do fundo de investimento; 5. Responsabilidade dos presta-
dores de serviços do fundo de investimento; 6. Conclusão: a importância da
MORI, Rogério; TAVARES, Guilherme; BUENO, Túlio. A crise da marcação a mer- adequada qualificação do fundo de investimento; 7. Bibliografia.
cado em 2002: uma perspectiva histórica. Revista de economia e administração, v. 5,
n. 3, p. 263-278, 2006.

QUEIROZ, José Eduardo Carneiro. O Conceito de Valor Mobiliário e a Competência 1. Introdução: origem e evolução normativa
da Comissão de Valores Mobiliários e do Banco Central do Brasil. ln: MOSQUERA,
Roberto Quiroga (coord.). Aspectos atuais do direito do mercado financeiro e de ca- Os fundos de investimento são usualmente retratados como veículos de investi-
pitais. São Paulo: Dialética, 1999. mento, destinados a reunir os recursos de investidores sob os cuidados de um gestor pro-
fissional, que, em conformidade com o regulamento aprovado, se encarrega de aplicá-los
em determinados ativos, com vistas a proporcionar rendimento ao capital investido.
Cuida-se de importante instrumento de intermediação financeira, responsável
por facilitar o encontro entre poupadores e tomadores de recursos, que se desenvol-
veu extraordinariamente no Brasil, tornando-se das mais importantes indústrias no
cenário internacional. Os fundos contribuem para a formação da poupança privada e
o direcionamento de recursos para as mais variadas atividades econômicas.
Entre as razões comumente apontadas para o seu sucesso, destacam-se os be-
nefícios que resultam da expertise do gestor profissional, o melhor gerenciamento de
riscos por meio da diversificação da carteira do fundo em diferentes modalidades de
investimento e, ainda, os ganhos de escala proporcionados ao cotista, que tem acesso
a instrumentos financeiros em condições que dificilmente lograria obter sozinho. 3

Professora de Direito Civil e de Direito do Consumidor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


- UERJ. Mestre e Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UER).
Sócia Fundadora do Escritório Gustavo Tepedino Advogados.
2 Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Mestre
e Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre em direito
internacional pela Universidade Paris II - Panthéon-Assas. Ex-diretor da Comissão de Valores
Mobiliários. Sócio Fundador do Escritório Renteria Advogados.
3 Cf. VEIGA, Alexandre Brandão da. Fundos de Investimento Mobiliário e Imobiliário, Coimbra:
Almedina, 1999, p. 20.

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