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Categoria: Filosofia do Direito

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Diagramação: Renata Chagas

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Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

F866d
Freire, Phablo
Dogma e discurso / Phablo Freire. – Rio de Janeiro : Lumen
Juris, 2023.
160 p. ; 21 cm.

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-519-2533-1

1. Direito - Filosofia. 2. Sociologia jurídica. 3. Teoria críti-


ca do direito. 4. Análise do discurso. 5. Direito - Linguagem.
I. Título.

CDD 340.1

Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927


Sumário

Prefácio...............................................................................................1

Parte I
1 Pensamento Sistêmico: Funcionalismo e
Emergentismo.................................................................................7

2 O conceito de Direito a partir do paradigma


emergentista..................................................................................25
2.1 Realismo Crítico (RC)............................................................26
2.2 Estratificação e Emergência..................................................32
2.3 Entidades intermediárias e transformação social..............38
2.4 Direito, prática social e o momento discursivo..................55
2.5 Teoria Social do Discurso (TSD) e Realismo
Crítico (RC).............................................................................57
2.6 Discurso e a articulação entre poder, ideologia
e hegemonia.............................................................................66
2.7 O texto na TSD.......................................................................70

Parte II
3 O Dogma.......................................................................................83
3.1 Dogma e Antinomialismo.....................................................93

4 O Discurso Jurídico...................................................................105
4.2 Prática Discursiva Jurídica.................................................. 110

V
4.3 Ordem do Discurso Jurídico e Redes de Ordens
do Discurso............................................................................ 116
4.4 Investimento político ideológico no discurso jurídico,
interpelação dos sujeitos e os poderes causais..................126

5 Poderes Causais do Discurso Jurídico...................................133

Bibliografia.....................................................................................145

VI
Prefácio

Sobre Direito, Sentido e Práticas Sociais

Conheci Phablo Freire em 2018, no contexto da disciplina


“Teoria Contemporânea do Estado e da Sociedade”, por mim
conduzida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Uni-
versidade Católica de Pernambuco. Na ocasião, Phablo com-
parecia aos encontros semanais na condição de aluno especial,
ainda não selecionado para o Doutorado, mas sempre com in-
tensa participação e observações muito pertinentes. Em 2019, ao
se submeter ao processo seletivo, percebi em Phablo uma mente
inquieta com amplo trânsito no contexto das Ciências Sociais,
apontando para caminhos interdisciplinares na condução da sua
proposta de pesquisa. Sua formação – graduação em Direito e
mestrado em Psicologia Social – já indicava uma certa descon-
fiança quanto às abordagens estritamente jurídicas, a sugerir um
necessário olhar externo para o desvelamento dos padrões que
informam a normatividade no Direito.
A análise que resultou na Tese de Doutorado, por mim
orientada e que serviu de base para o presente livro, traz uma
relevante contribuição para a teoria do direito ao propor a com-
preensão do fenômeno jurídico a partir do Realismo Crítico,
vertente filosófica britânica em expansão na contemporaneida-
de. Enquanto alternativa ontológica, o Realismo Crítico procura
dissociar o mundo real, empírico, e o conhecimento que temos
dele. Não se trata da concepção tradicional que aponta para a
compreensão do mundo enquanto linguagem, própria das abor-

1
Phablo Freire

dagens pós-estruturalistas, mas uma proposta expansiva da on-


tologia, ao oferecer a possibilidade de compreensão da realidade
a partir do sentido, no contexto das práticas sociais.
E assim, é no terreno pantanoso e volátil de uma normati-
vidade sob permanente disputa social e múltiplas identidades em
tensão que se move a contribuição de Phablo Freire. Ao contrário
das abordagens dominantes no direito, para as quais o sentido da
norma, tal como uma fotografia, está pronta e acabada para todo
o sempre, Phablo desvenda as perspectivas semióticas inerentes a
uma dinâmica jurídica sempre desafiadora, posto que submetida
a uma miríade de influxos que, ao desaguar no âmbito de uma
hermenêutico social, influenciam a todo instante a construção
do sentido da norma e a compreensão da dogmática jurídica e da
própria realidade.
O livro tem início com uma discussão envolvendo duas ver-
tentes do pensamento sistêmico, o funcionalismo e o emergentis-
mo, abrindo diálogo com Niklas Luhmann, Gunther Teubner e
Roy Bahskar. Na perspectiva luhmanniana, o fenômeno social é
constituído por comunicação e o advento da Modernidade impli-
cou na diferenciação funcional dos sistemas sociais a partir de uma
dinâmica que encerra as comunicações em sistemas específicos,
cognitivamente abertos, mas operacionalmente fechados, caracte-
rizando assim a sua autopoiese. Para o Realismo Crítico, contudo,
a noção de autopoiese dos sistemas a partir da noção de fechamen-
to operacional merece aprofundamento e reflexão crítica, já que
o sentido produzido nos sistemas sociais depende não apenas das
próprias operações intra-sistêmicas, mas também de uma rede de
significados produzidos por sistemas externos de significação.
Em uma segunda parte, a contribuição de Phablo pretende,
com base em Alan Norrie, oferecer uma sistematização sobre a
possibilidade de pensar o direito a partir do Realismo Crítico.
Em diálogo com o modelo surrealista de Luis Alberto Warat,

2
Dogma e Discurso

Phablo vai afirmar com Norrie, que o Direito é uma forma de


prática social, sendo, por isso, uma categoria autônoma e inter-
mediária que não se confunde com outras práticas, ainda que
esteja em relação de conexão com outras categorias sociais por
ele, Direito, pressupostas.
Trata-se como se percebe, de um trabalho de fôlego com
imenso potencial explicativo sobre aspectos subjacentes à dogmá-
tica jurídica, geralmente negligenciados pelo pensamento jurídico
nacional e, por isso, leitura obrigatória para quem deseje se apro-
ximar da percepção do fenômeno jurídico em perspectiva crítica.

Recife, 14 abril de 2023

João Paulo Allain Teixeira


Professor dos Programas de Pós-Graduação
em Direito da UFPE e UNICAP

3
Parte I
1 Pensamento Sistêmico:
Funcionalismo e Emergentismo

A compreensão acerca da relação entre Direito e sociedade


tem mobilizado os pensadores juristas no ocidente desde muito
antes da modernidade. Mais detidamente nos territórios da Filo-
sofia e Teoria do Direito, tais inquietações e debates têm viabili-
zado o desenvolvimento de fecundas teorizações orientadas para
o aperfeiçoamento dos saberes jurídicos. As discussões são do-
minadas por dois posicionamentos distintos,1 de um lado, teorias
analítico-formalistas cujo marco paradigmático é a construção
teórica articulada por Hans Kelsen, dedicadas à ideia de positivi-
dade do Direito2 e uma profunda dissociação entre o fenômeno
jurídico e o social. Por outro lado, temos as teorias sociológicas,
dedicadas, em direção oposta, a perquirir as relações de consti-
tuição e interdependência entre o Direito e a sociedade.
Dentre as abordagens sociológicas, o modelo teórico ini-
cialmente proposto por Niklas Luhmann3 – que considera o
Direito como sistema autopoiético – tem dominado os debates
nesse campo de desenvolvimento teórico no Direito desde a dé-

1 O argumento sobre tal dicotomia foi extraído do prefácio elaborado por José Engrácia
Antunes para a versão portuguesa da obra O Direito como sistema autopoiético de
Gunther Teubner.
2 Voltaremos nessa noção de ideia da positividade do direito, como paradigma ainda
fortemente em curso, quando ventilarmos aspectos das argumentações teóricas de
Luis Alberto Warat.
3 Foram considerados para este texto apenas as obras em suas respectivas versões
publicadas em português: Sociologia do Direito 1 [1983]; Sociologia do Direito II
[1985] e O direito da sociedade [2016].

7
Phablo Freire

cada de 19704 com a publicação de sua obra Rechtssoziologie I.


Dando continuidade à vertente iniciada por Luhmann, o jurista
e sociólogo alemão Gunther Teubner, ressalta a força contribu-
tiva derivada dos embates teóricos entre perspectivas analítico-
-formalistas e sociológicas, sustentando que o pensamento social
aplicado à teorização jurídica é capaz de abalar os sólidos alicer-
ces da Teoria Jurídica Clássica5 ao retirar o pensamento sobre
o Direito dos domínios restritos de juristas e filósofos políticos
e deslocando-o para a teorização e avaliação sujeita a “métodos
rigorosos de pesquisa social histórico-empírica”6, expondo assim
o Direito a um processo reconstrutivo, que se dá sob a luz de teo-
rias sociais. Desse modo, a abordagem luhmanniana não se con-
funde com o que Luhmann chamou de ‘tradicional sociologia do
direito’ que, a seu turno, prestava-se à mera aplicação de méto-
dos empíricos e teorias sociológicas ao fenômeno jurídico, não
correspondendo a uma teorização própria do Direito como um
fenômeno intercambial entre o social e a normatividade, o que
efetivamente passa a ser implementando por meio de sua Teoria

4 Em 1964, Luhmann pulicou seu primeiro trabalho: Funktiones und Folgen Formaler
Organisation, dedicado a analisar os problemas sociais a partir do uso da “Teoria
de Sistemas”. Em 1972, Niklas Luhmann publica Rechtssoziologie I (em português
publicado sob o título de Sociologia do direito I, pela primeira vez no ano de
1983). No mesmo ano, 1972, publica Rechtssoziologie II (em português: Sociologia
do direito II, de 1985) e mais adiante, em 1981, publica a obra Ausdifferenzierung
des Rechts. Beiträge zur Rechtssoziologie und Rechtstheorie (em português: A
diferenciação do direito. Contribuições para a sociologia e a teoria do direito’).
5 Com efeito, no texto consultado, traduzido para o Português, Teubner não faz a
afirmação generalista que emprego aqui. Em lugar de referir-se à Teoria Jurídica
Clássica, Teubner faz menção à Teoria Constitucional. No entanto, o debate sobre
o impacto das Teorias Sociais na Teoria do Direito é por ele desenvolvido em obras,
como O direito como sistema autopoiético e Direito, Sistema e Policontexturalidade.
6 Gunther Teubner, Constitucionalismo social, 2016, p. 129-130.

8
Dogma e Discurso

dos Sistemas Sociais, que postulou o sistema jurídico como um


subsistema do sistema social.7
Considerando assim o paradigma funcionalista-sistêmico,
Teubner define o Direito como “um sistema autopoiético de se-
gundo grau, autonomizando-se em face da sociedade, enquan-
to sistema autopoiético de primeiro grau, graças à constituição
autorreferencial dos seus próprios componentes sistêmicos e à
articulação desses num hiperciclo”.8 Nessa delimitação cons-
truída por Teubner a partir de Luhmann, dois pontos merecem
destaque: as noções de componentes sistêmicos (ou elementos)
e a autorreferência.
Teubner propõe uma concepção alargada9 do que deveriam
ser considerados como componentes sistêmicos necessários à au-
tonomia autorreferencial (ou clausura) do sistema jurídico. Para
ele, “os elementos envolvidos no processo de autorreprodução
não são apenas os elementos do sistema relativos à comunicação10
– os atos jurídicos – mas, verdadeiramente, todos os elementos
pertencentes a esse sistema – estruturas, processos, limites, iden-
tidade, funções, prestações”.11 Assim, o sistema autopoiético ju-
rídico de segundo grau apenas se desenvolve a partir do sistema
autopoiético de primeiro grau (sociedade), quando aquele “pro-
duz” seus próprios elementos diferenciados dos elementos deste
último12. Com isso, a clausura autopoiética do sistema jurídico

7 Niklas Luhmann, O direito da sociedade, 2016, p. 28.


8 Gunther Teubner, O direito como sistema autopoiético, 1989, p. 53.
9 Para Luhmann, o sistema jurídico obteria a clausura ou autonomia a partir da ‘invenção’
do ato jurídico. Noção que é reconstruída por Gunther Teubner, O direito como sistema
autopoiético, 1989, p. 57.
10 Mais adiante retomaremos o debate sobre ‘sistemas de comunicação’.
11 Gunther Teubner, O direito como sistema autopoiético, 1989, p. 55.
12 Ibidem, p. 65.

9
Phablo Freire

apenas ocorre quando o sistema é capaz de produzir seus pró-


prios elementos (estruturas, processos, limites, meio envolvente),
simultaneamente, autoconstituídos e articulados entre si de for-
ma autorreprodutiva (hiperciclo).13
Outro aspecto acrescido por Teubner à teoria autopoiética
do Direito é a noção de autopoiese como processo progressivo a
partir da ideia de gradação entre autorreferência e autopoiese em
razão das dinâmicas de hiperciclos.
Distanciando-se de Luhmann – para quem a classificação
do sistema como autopoiético era uma relação de tudo ou nada14
–, Teubner defende que os processos de aumento cumulativo de
relações circulares (hiperciclo) implicam a gradação das dinâmi-
cas de autorreferencialidade15. Com isso, a clausura autopoiéti-
ca do Direito se realiza apenas quando o hiperciclo alcança uma
terceira e última fase. De acordo com o autor, a primeira fase do
hiperciclo jurídico ocorre quando é identificado o fenômeno do
‘direito socialmente difuso’, marcado pela identidade e confusão
entre os componentes sistêmicos (elementos do sistema jurídico)
e aqueles característicos da comunicação social geral. A segun-
da fase do hiperciclo é caracterizada pela ‘autonomia parcial do
Direito’: quando o discurso jurídico começa a constituir e arti-
cular seus componentes próprios, sem, contudo, gozar de total
autonomia em relação ao ambiente. Pela terceira e última fase, o
Direito realiza a diferenciação funcional sistêmica tornando-se
autopoiético quando seus elementos são desenvolvidos e articu-
lados em hiperciclo.16

13 Ibidem, p. 66.
14 Ibidem, p. 67.
15 Nesse ponto, Teubner apresenta os conceitos de auto-observação, autoconstituição
e autorreprodução. 1989, p. 68.
16 Gunther Teubner, O direito como sistema autopoiético, 1989, p. 77.

10
Dogma e Discurso

Nesses termos, no interior do paradigma funcionalista-sistê-


mico, Teubner delimita uma compreensão do Direito como “um
sistema autopoiético de segundo grau, autonomizando-se em face
da sociedade, enquanto sistema autopoiético de primeiro grau,
graças a constituição autorreferencial dos seus próprios compo-
nentes sistêmicos e à articulação destes num hiperciclo”.17 Essa
apertadíssima síntese apresenta uma compreensão do fenômeno
jurídico desenvolvida a partir da Teoria dos Sistemas Sociais, en-
tretanto, existe outra vertente do pensamento sistêmico assentada
noutro modelo teórico: o paradigma da emergência.
No artigo Luhmann and Emergentism Competing Paradigms
for Social systems theory, publicado em 2007, o professor Dave
Elder-Vass apresenta uma discussão sobre os pontos centrais de
interesse orientadores dos paradigmas funcionalista-sistêmico e
emergentista, ressaltando suas insuficiências e questionando a
possibilidade de superação de um pelo outro. A abordagem emer-
gentista corresponde, segundo Dave Elder-Vass, a uma alterna-
tiva à perspectiva luhmanniana, com raízes no pensamento de
Émile Durkheim e Walter Buckley cuja versão contemporânea é
capitaneada pelos trabalhos de realistas críticos, como Roy Bhas-
kar18 e Margaret Archer19.
Elder-Vass dedica um trecho de seu artigo para explicar de
quais formas ele operacionaliza essa discussão avaliativa entre os
paradigmas (dos Sistemas Sociais), ressaltando serem os concei-
tos usados dentro de um paradigma difíceis de uma tradução pre-
cisa para os termos de outro paradigma, o que limita discussões

17 Ibidem, p. 53.
18 Roy Bhaskar, A realist theory of science, 2008; Roy Bhaskar, Dialectic: The Pulse of
Freedom, 2008; Roy Bhaskar, The possibility of Naturalism: a philosophical critique
of the contemporary Human Sciences, 1979.
19 Margaret Archer, Roy Bhaskar, Andrew Collier, Tony Lawson, Alan Norrie. Critical
realism: Essential Readings, 1998.

11
Phablo Freire

comparativas como a que ele implementa, no entanto, não num


obstáculo a tais debates. Valendo-se de certos aspectos conceituais
de Kuhn, Elder-Vass aponta como o fenômeno da coexistência de
paradigmas, comum nas ciências sociais, pode ser compreendido
e discutido, sobretudo em períodos de transição paradigmática. A
característica decisiva para a sobrevivência de paradigma novo ou
coexistente em relação a seu opositor – ressalta Elder-Vass, citan-
do Kuhn – será sua capacidade de fornecer repostas para novos
problemas que os antigos paradigmas foram incapazes de expli-
car. Além disso, haverá a superação do antigo paradigma quando
o novo for suficiente para apresentar um conjunto de respostas (ou
minimamente respostas parciais) para problemas comuns a am-
bos os paradigmas, sendo tais respostas mais eficientes que o con-
junto oferecido pelo paradigma superado.20
Partindo desse debate tecido por Elder-Vass, neste breve
ensaio introdutório irei expor os aspectos comparativos entre os
paradigmas, por ele pinçados, enfatizando a tensão conceitual
que existe entre os dois paradigmas no tocante às noções de sis-
tema, entidades e eventos, significado, autorreferência e autopoie-
se que levaram o autor a considerar a hipótese da superação do
paradigma funcionalista pelo emergentista. Tal superação, isto é,
a capacidade do emergentismo oferecer melhores respostas para
os problemas de descrição e compreensão dos Sistemas Sociais –
com especial ênfase ao Direito – é, com efeito, o objeto principal
deste breve trabalho.
Elder-Vass assinala como central para sua avaliação a com-
preensão da diferença entre aquilo que se entende por sistema,
respectivamente, em cada uma das abordagens: enquanto para
os funcionalistas os sistemas são compostos por eventos, para os
emergentistas os sistemas são (e são compostos por) entidades. A

20 Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 411-412.

12
Dogma e Discurso

distinção conceitual entre entidades e eventos é, portanto, funda-


mental para acessar as distâncias e incomensurabilidades entre
as abordagens. Outro aspecto importante diz respeito aos pontos
orientadores dos paradigmas: enquanto o paradigma funciona-
lista-sistêmico concentra seu interesse no papel do significado e
da autorreferência no funcionamento dos sistemas sociais, o pa-
radigma emergentista argumenta estar centralmente preocupado
com a questão da causalidade e do reducionosmo.21
Para os emergentistas, os sistemas são entidades, que podem
ser identificadas como coisas, não correspondendo necessaria-
mente a coisas materiais. Desse modo, átomos, células, arvores e
organizações podem ser consideras como entidades. Os sistemas
sociais, para o paradigma emergentista, são identificados como
entidades que, a seu turno, são compostas de partes (sendo es-
sas partes por vezes outras entidades, v.g., os seres humanos que
compõem a sociedade e, noutras vezes, como propriedades de
entidades. De acordo com Elder-Vass, as entidades têm proprie-
dades emergentes (ou poderes causais) que interagem simultanea-
mente codeterminando os eventos.22
As interações entre entidades e entre entidades e partes
(através dos mecanismos e poderes causais) – a saber, as relações
parte-todo – é uma noção central para a produção de repostas do
emergentismo ao seu problema central (causalidade e reducionos-
mo), isso, porque a perspectiva realista crítica do emergentismo
reconstrói a noção de causação de maneira que esta deriva da in-
teração de sistemas com outros sistemas (v.g., o sistema social com
o sistema natural) relevantes em seu ambiente. Dessa forma, os

21 Ibidem, p. 409.
22 Ibidem, p. 413-415.

13
Phablo Freire

eventos que emergem são causados por interações (reais23) entre


poderes causais (propriedades emergentes) das entidades envolvi-
das na interação, não sendo os eventos determinados por um úni-
co mecanismo ou uma única ‘lei’24. Assim, a causação se dá em
razão de uma codeterminação de uma variedade de mecanismos
interativos, atribuíveis a entidades em uma variedade de níveis. Os
poderes causais das entidades não podem ser então adequadamen-
te compreendidos sem uma teorização adequada sobre as relações
(interações) entre o sistema e o seu ambiente.25 Aqui temos um pri-
meiro ponto de distanciamento entre os paradigmas.
Embora os termos sejam os mesmos (sistema e ambiente), a
conceituação a eles atribuída pelo paradigma emergentista é di-
ferente daquela aplicada pelo funcionalista-sistêmico. Luhmann
não apenas descarta a noção de sistemas como entidades, como
também se distancia da noção relação partes-todo26 , substituin-
do-a por sua conceituação de diferenciação funcional (entre sis-
tema e ambiente) em torno da qual elabora uma série de outros
conceitos que são centrais para sua Teoria. Como veremos mais
adiante, as explicações funcionalistas serão consideradas – a par-
tir do paradigma emergentista – como irrealistas, tendo vista sua
não ancoragem no postulado da estratificação inerente ao mode-
lo ontológico realista dialético crítico.

23 O conceito de “real” aqui empregado diz respeito à noção de estratificação da


realidade; um dos pontos centrais da ontologia realista crítica (emergentista), mais
bem abordada em momento posterior desse material.
24 Como no modelo de causação de David Hume.
25 Dave Elder-Vass, op. cit., p. 415-416.
26 Importante destacar que a argumentação desenvolvida por Luhmann para rejeição
da relação partes-todo enfrenta uma forma de conceituação da interação partes-todo
que não é a mesma tratada pelos realistas dialéticos críticos que correspondem à
vertente contemporânea do emergentismo.

14
Dogma e Discurso

Para Luhmann (e antes dele, Parsons), os Sistemas Sociais


podem ser subdivididos em unidades, porém elas não correspon-
dem a entidades. Luhmann defende que os sistemas são compos-
tos por eventos; reivindicando uma temporalização radical para
esse conceito de evento, defendendo os eventos como insuscetí-
veis de duração (sem circularidade causal). Desse modo, os even-
tos de comunicação enquanto unidades fundamentais dos Siste-
mas Sociais possuem nulidade temporal, ou seja, desaparecem à
medida que surgem. Com isso, Luhmann reivindica um modelo
de sistema baseado em eventos, ao passo que para os emergentis-
tas os sistemas são baseados em eventos.27
Considerando os conceitos de entidade e eventos – como a
base para a compreensão da noção de sistema para os dois para-
digmas –, Elder-Vass questiona de quais maneiras um sistema po-
deria sustentar-se como auto-observável e autorreferencial quando
seus elementos constitutivos (eventos) desaparecem de momento
em momento.28 Elder-Vass questiona a plausibilidade da reivin-
dicação de autorreferência dos sistemas baseados em eventos.29 O
autor argumenta que por serem os sistemas (para o funcionalismo)
compostos por eventos, e não por entidades, inexiste uma relação
necessária entre os limites desses eventos (lidas como entidades
no emergentismo) particulares e o sistema; de modo que a base
sistêmica interacional seria analítica, e não ontológica. Por isso, os
eventos ao não corresponderem às entidades podem ser descritos
como um conjunto de fatores interativos que produzem o fenô-

27 Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 418.


28 Ibidem, p. 418-419.
29 Importante frisar que a resposta a tal questionamento, a despeito de ser considerada
como insuficiente por Elder-Vass e pelos realistas críticos, é oferecida pelos
funcionalistas-sistêmicos.

15
Phablo Freire

meno particular de interesse.30 Essa diferenciação entre entidade


e evento é necessária para distinção entre sistemas baseados em
eventos e baseados em entidades e, a partir dela, para o debate so-
bre a plausibilidade da autorreferência nos encaminha para a refle-
xão feita por Elder-Vass acerca da noção de autopoiese.
De acordo com Elder-Vass31, a reivindicação de um sistema
como autopoiético requer, minimamente, duas condições implí-
citas. A primeira diz respeito ao reconhecimento de que os ele-
mentos constitutivos possuem partes de um nível mais baixo32,
distinto, cuja influência não pode ser ignorada sob o pretexto de
viabilização da explicação das dinâmicas de reprodução do sis-
tema, de si mesmo e de seus componentes33. A segunda condição
implícita leva a teoria a considerar que, a despeito do sistema ser
provocado pelas interações com o ambiente externo, ele é capaz
de controlar o impacto dessas provocações quando realiza seu
processo de reprodução.
Elder-Vass considera a reprodução dos sistemas autopoiéticos
como um processo sempre contingente,34 haja vista estarem, os siste-
mas, sempre diante da possibilidade de dissolverem a si mesmos no
ambiente quando perdido o controle sobre as provocações externas,
sendo assim interrompida a autopoiese sistêmica35. A inovação de

30 Dave Elder-Vass, op. cit., p. 418-419.


31 Ibidem, p. 419.
32 Essa noção de ‘nível mais baixo” deve ser compreendida em paralelo com o conceito de
conexão dialética entre distintos elementos, apresentada mais adiante neste trabalho.
33 Cf. Alex Viskovatoff, Foundations of Niklas Luhmann’s Theory of Social Systems,
1999, p.486; Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 419-420.
34 Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 420.
35 A ideia de contingência do processo autopoiético defendida por Elder-Vass também
encontra eco no pensamento de Luhmann. No texto de David Sciulli: An interview
with Niklas Luhmann, é dito: “and production always means a combination of
controllable and uncontrollable causes. The living cell does not find all causes which

16
Dogma e Discurso

Luhmann, segundo Viskovatoff,36 foi aplicar o conceito de autopoie-


se aos sistemas sociais diferenciando-os dos sistemas psíquicos, ao
postular que à medida que estes produzem pensamentos, aqueles
produzem comunicações, operando, ambos os sistemas (psíquicos e
sociais), por meio do significado.
Quanto à relação entre sistemas e autopoiese, de acordo
com Elder-Vass, as descrições emergentistas apresentam algum
grau de proximidade com o funcionalismo37.
A ideia de que os sistemas devem ser reproduzidos ao longo
do tempo e que tal processo reprodutivo demanda teorização (no
funcionalismo abarcada pela noção de autopoiese) é articulada na
tradição emergentista através dos conceitos de morfostase e morfo-
gênese introduzidos por Walter Buckley38. Por meio desses concei-
tos, são viabilizadas as discussões sobre as capacidades internas de
sistemas para qualificar o impacto de fatores causais externos, isto
porque, à medida que sistemas abertos se tornam mais complexos
são desenvolvidos no seu interior processos de mediação cada vez
mais complexos, que articulam a interferência externa e o com-
portamento reprodutivo dos sistemas. Como ressalta Elder-Vass,
Buckley reconheceu a morfostase como um processo contingente
de modo que os sistemas podem falhar ou dissolverem-se no am-
biente, mas podem também se desenvolverem ao longo do tempo.
Tais conceitos (morfostase e morfogênese) introduzidos por Buck-

it needs for continuing life and reproduction (again: production!) within itself. But it
can control (to some extent) the selection of external causes by internal operations.
If this control breaks down (which can happen with “autopoiesis’ but not with
“autopraxis”), the system stops its autopoiesis and dissolves into its environment.”
(1994, p. 41-42)
36 Alex Viskovatoff, Foundations of Niklas Luhmann’s Theory of Social Systems, 1999,
p. 486-487.
37 Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 420.
38 Cf. Walter Buckley, Sociology and modern systems theory, 1967.

17
Phablo Freire

ley na década de 1960, no bojo da tradição emergentista, são essen-


ciais para a vertente contemporânea do emergentismo: o realismo
crítico, em especial no trabalho de Margaret Archer.39 É possível
então admitir que o paradigma emergentista opera com a ideia de
que alguns sistemas, em alguns cenários, possam apresentar apro-
ximações com o modelo autopiético.40
Elder-Vass considera a autopoiese social como um tipo ideal
de comportamento sistêmico, com alguns sistemas apresentando
comportamento mais próximo do tipo ideal em comparação a
outros. Aqueles sistemas que se encontrem demonstrados como
mais próximos do tipo ideal autopoiético podem ser então con-
siderados como quase-autopoiéticos. Entretanto, como reforça o
autor, a alegação da condição quase-autopoiética de um sistema
não pode ocorrer desacompanhada da demonstração de evidên-
cias41 pelas quais os mecanismos de nível inferior e fatores cau-
sais externos estejam sendo negligenciados na reprodução; pas-
sando a ser tais explicações altamente dependentes do contexto
sistêmico, inviabilizando uma generalização teórica referente a
aplicação do conceito42.
A noção de um sistema quase-autopoiético é articulada por
Roy Bhaskar para discutir os processos de produção de conheci-
mento científico43. Tal produção se dá no intercâmbio entre sis-
temas nos quais humanos (cientistas) estão envolvidos como ar-
gumenta Bhaskar. Dadas essas condições tornam-se impossível
a demonstração de um conhecimento passível de emergir ex ni-

39 Cf. Margaret Archer, Realist social theory: The morphogenetic approach, 1995.
40 Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 420-421.
41 No paradigma emergentista, a razão para a negligência seria a demonstração de que
tais fatores externos não teriam impacto sobre a reprodução do sistema.
42 Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 420-421.
43 Roy Bhaskar, Scientific Realism and Human Emancipation, 1986, p. 54-55.

18
Dogma e Discurso

hilo, em absoluto isolamento (clausura) de outros conhecimentos


preexistentes. Para Bhaskar44, o processo de produção de conhe-
cimento científico deve ser concebido como iterativamente de-
pendente de recursos cognitivos previamente existentes, obtidos
do mesmo sistema ou de alguns outros. Dessas dinâmicas deri-
vam objetos transitivos de conhecimento (seu produto: o conheci-
mento); sua transformação é, igualmente, um processo transitivo
de produção; fornecendo, por sua vez, recursos para novas roda-
das de investigação científica: um processo de reprodução de ele-
mentos internos (novos conhecimentos) sempre em uma relação
transitiva. Dinâmica classificada por Bhaskar como de caráter
quase-autopoiético. Há não somente uma conexão indissociável
– uma relação de influência – entre saberes novos e anteriores,
como também uma relação de influência entre a prática dos cien-
tistas e uma gama ampla de fatores externos ao sistema. Elder-
-Vass45 utiliza como exemplos a influência que as instituições de
financiamento de pesquisa operam sobre os cientistas ao condi-
cionarem financiamento a certos problemas a serem pesquisados
(classificada por Elder-Vass como um fator causal externo); outro
exemplo manejado é o conjunto de motivações que mobilizam
diferentes pesquisadores (classificada por Elder-Vass como um
mecanismo de nível mais baixo); por fim, Elder-Vass para um
terceiro grupo de influências, qualificado por Bhaskar como di-
mensão intransitiva do conhecimento46, a saber, o tipo de objeto
sobre os quais se produz o conhecimento (se naturais ou sociais
e o grau de interferência e independência a que tal objeto está
sujeito em relação ao sistema social).

44 Ibidem, p. 54-55.
45 Dave Elder-Vass, op. cit., p. 421.
46 Roy Bhaskar, A realist theory of science, 2008, p. 21.

19
Phablo Freire

O argumento bhaskariano vai na direção de que os siste-


mas de comunicação não podem ser considerados como auto-
poiéticos, haja vista ser a rede de comunicação sempre uma di-
nâmica de conexões transitivas abertas às influências de outros
sistemas. Nesse mesmo sentido, Viskovatoff argumenta que as
comunicações (sistema ou subsistema comunicativo) são, certa-
mente, constituintes elementares de sistemas sociais, entretanto,
considerá-los isoladamente (em clausura) corresponderia a um
erro teórico, dada a impossibilidade de isolar a comunicação
dos atores sociais humanos que as mobilizam47. Desse modo, as
comunicações não seriam capazes de produzirem outras comu-
nicações, mas, sim, os humanos.48 Assim, o funcionamento de
um sistema comunicativo pressupõe a existência de um sistema
psíquico que figura como seu nível mais baixo: relacionados e
irredutíveis entre si.
Como Viskovatoff argumentou, a teoria dos sistemas au-
topoiéticos não foi capaz de explicar satisfatoriamente como as

47 Sobre este ponto, Alex Viskovatoff, em seu artigo Foundations of Niklas Luhmann’s
Theory of Social Systems argumenta (em tradução livre) que “será útil recordar
um dos problemas básicos que Luhmann estava tentando resolver e os meios que
escolheu para resolvê-lo. Essa foi a forma de conceituar os fenômenos sociais como,
em alguma medida, autônomos de atores individuais – e, portanto, descreve esses
fenômenos (comunicativos) como uma entidade emergente ocorrendo em um
“nível superior” do que o das mentes individuais e, portanto, não exigindo uma
referência direta a este último em essas descrições. A forma como o fez foi adotando
(adaptando) a teoria dos sistemas autopoiéticos para fazer uma analogia entre as
mentes individuais (sistemas psíquicos) e os sistemas sociais e argumentar que
da mesma forma que as mentes são “constituídas” por pensamentos, os sistemas
sociais são constituídos por comunicações. Para tornar completa a autonomia dos
sistemas sociais em relação aos sistemas psíquicos, Luhmann adotou a posição
incomum de que o significado, enquanto “mediador” tanto dos pensamentos quanto
das comunicações, não é mais intrínseco às mentes do que é aos sistemas sociais,
desenvolvendo uma definição fenomenológica do significado.” 1999, p. 499-500.
48 Alex Viskovatoff, Foundations of Niklas Luhmann’s Theory of Social Systems,
1999, p. 496.

20
Dogma e Discurso

células biológicas produzem seus elementos, como também não


foi capaz de justificar como isso ocorreria no interior do sistema
social. Isso ocorre porque a comunicação não poderia ser sufi-
cientemente descrita quando desconsiderados processos mentais
dos atores individuais envolvidos.49 A compreensão acerca dos
sistemas sociais de comunicação requer o reconhecimento de ní-
veis subjacentes ao objeto sob análise: o sistema de comunicação
analisado pressupõe comunicações anteriores e outros sistemas
externos de comunicação que lhes são continuamente constitu-
tivos; a comunicação pressupõe o sistema mental que, por sua
vez, infere como suporte o sistema biológico neural. Assim, seria
inapropriado falar em um sistema de comunicação autopoiético
dissociado de um sistema psíquico enquanto substrato indisso-
ciável e outros sistemas que viabilizam a produção de significados
em um nível mais baixo, isto é, na subjacência do sistema.50
Acompanhando então o pensamento emergentista de Bhas-
kar e Viskovatoff, Elder-Vass conclui pela insustentabilidade do
argumento que defende os sistemas de comunicação como auto-
poiéticos. Restando a autopoiese ontologicamente viável apenas
como um tipo ideal, falhando assim enquanto resposta para o
problema central do paradigma emergentista (explicar as rela-
ções entre os poderes causais do todo e suas partes) restando, em
razão disso, o paradigma funcionalista como incapaz de oferecer
respostas às preocupações emergentistas.51
Os problemas relativos à causalidade são secundários para o
paradigma funcionalista, estando a centralidade da teoria luhman-
niana orientada para os problemas do significado e autorreferência.

49 Ibidem, p. 494.
50 Alex Viskovatoff, Foundations of Niklas Luhmann’s Theory of Social Systems, 1999,
p. 486-487
51 Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 424.

21
Phablo Freire

A possibilidade de um sistema de comunicações ser auto-


poieticamente fechado é viável, como argumenta Elder-Vass, uni-
camente, quando a teoria semiótica adotada considera a explica-
ção do significado em relações inteira e estritamente limitadas a
uma rede de outros significados. Entretanto, para os emergentistas
realistas críticos a compreensão dos processos de produção e cir-
culação do significado deve, certamente, considerar relações entre
o significado e uma rede de outros significados, mas, para além
disso, a produção discursiva deve observar as relações do significa-
do discursivamente produzido e seus referentes extradiscursivos.52
Uma vez admitida a relação do significado com seu refe-
rente extradiscursivo, é imperativo considerar também a exis-
tência de relações causais externas determinando a produção do
significado como argumentou Elder-Vass.53 Nesse mesmo senti-
do, Margaret Archer54 defende ser a linguagem acessível apenas
em uma relação referencial com a realidade extralinguística, de
modo que a produção e interação linguística pressupõe a intera-
ção prática com referentes externos.
A teoria dos sistemas no paradigma emergentista realista
crítico, conforme sustentou Elder-Vass, não considera como viá-
veis aquelas explicações sobre significado e autorreferência que
estejam ancoradas em teorias que enclausurem o significado em
redes fechadas. Do contrário, buscam articular perspectivas teó-

52 O artigo de Dave Elder-Vass utilizado neste ensaio faz menção expressa, na


página 426, à teoria semiótica de Charles Sanders Peirce como fundamento para
os desenvolvimentos teóricos de Margaret Archer e Roy Bhaskar. O trabalho de
Elder-Vass é datado de 2007. Em 2016, a obra póstuma de Roy Bhaskar (falecido em
2014) Enlightened Common Sense: The philosophy of critical realism, rediscute essas
bases teóricas semióticas no interior do Realismo Dialético Crítico, reconhecendo
a produção teórica do discurso de Norman Fairclough como a melhor e mais
compatível articulação entre discurso e emergentismo realista crítico.
53 Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 426.
54 Margaret Archer, Being Human: The Problem of Agency, 2004, p. 136.

22
Dogma e Discurso

ricas que viabilizem uma compreensão da produção e circulação


de significados em interações discursivas e extradiscursivas55.
Ao fim de sua avaliação, Elder-Vass conclui pela inadequa-
ção da abordagem luhmanniana para responder os problemas
centrais em ambos os paradigmas e, portanto, insuficiente para
superar o paradigma emergentista. No entanto, os emergentistas
devem apresentar respostas satisfatórias a problemática da au-
torreferência e do significado, tão importantes para o paradigma
funcionalista, e, por algum tempo, negligenciada pelo emergen-
tismo. Tal negligência por um tempo ancorou-se no recurso a
conceitos próprios ao paradigma (v.g., morfostase e morfogênese),
sendo necessário o desenvolvimento de uma resposta emergen-
tista para essas questões.56
Como visto acima, o conceito de Direito desenvolvido a
partir do paradigma funcionalista-sistêmico – inicialmente por
Luhmann, seguido por Teubner – fornece uma gama de recursos
teóricos importantes para abrir o Direito para uma compreensão
de sua relação com o social. No entanto, uma vez consideradas os
apontamentos oriundos da filosofia emergentista realista crítica,
as noções de Direito como sistema autopoiético, autoproduzido e
autorreferenciado por meio de uma clausura gradual produzida
em hiperciclo (sem prejuízo de todo o amplo repertório de con-
ceitos derivados) não são suficientemente aptos para responder
os problemas centrais no interior do seu paradigma originário,
tampouco no paradigma emergentista.

55 Dave Elder-Vass, Luhmann and Emergentism, 2007, p. 426.


56 Ao tempo da escrita de Elder-Vass, o desenvolvimento dessa aproximação entre o
realismo dialético crítico e as teorias discursivas estava em desenvolvimento inicial.
O trabalho de Norman Fairclough, Bob Jessop, Andrew Sayer, publicado em 2002,
intitulado Critical Realism and Semiosis, é mencionado como um promissor campo a
ser desenvolvido. Essa produção de Fairclough, Jessop e Sayer será abordado adiante.

23
Phablo Freire

Como comentado em Dave Elder-Vass, considerando as inco-


mensurabilidades paradigmáticas e a possibilidade de convivência
de paradigmas nas ciências sociais, é esperado que os cientistas
sociais que utilizam o aparato teórico de Luhmann desconsiderem
os apontamentos emergentistas e preservem os usos dos recursos
teóricos funcionalistas. A provocação aqui articulada respeita os
limites paradigmáticos da crítica, considerando que o intercam-
bio analítico se dá por meio de traduções de conceitos, o que é
sempre parcial. A despeito de parecer a este autor suficientemente
razoável a conclusão de que os conceitos no interior do paradigma
funcionalista-sistêmico, ao tratarem do fenômeno jurídico (tanto
em Luhmann quando em Teubner), são insuficientes para descre-
ver certos processos que ocorrem no intermezzo entre o funciona-
mento do Direito e sua relação com o social.
Isso posto, o presente trabalho se filia à perspectiva emer-
gentista como suporte ontológico necessário para desenvolvi-
mento de uma teoria jurídica crítica no campo das Teorias dos
Sistemas Sociais.

24
2 O conceito de Direito a partir
do paradigma emergentista

De acordo com Alan Norrie57, o Direito deve ser compreen-


dido como uma prática histórica que opera através de formas e
mecanismos particulares, reais, efetivos e diferenciados, relacio-
nados (mas irredutíveis) a relações sociais mais amplas; uma for-
ma específica de sociabilidade marcada pelo antinomialismo.
O interesse investigativo de Norrie58 repousa sobre a natu-
reza contraditória do Direito – ou como prefere o autor –, seu
caráter antinomial. Para ele, o cerne do Direito corresponde-
ria a um complexo de relações entre a autoimagem do Direito,
o Direito anunciado pelo formalismo jurídico e as contradições
que o atravessam, desde sua superfície até a subjacência dessa
prática social. Tais contradições não apenas integram as práti-
cas jurídicas, como se configuram como recursos históricos de
sustentação desse modo como o Direito se realiza socialmente.
As contradições, isto é, antinomias, estariam sempre situadas na
relação entre a autoimagem do Direito e sua realidade sociopolíti-
ca. A noção de antinomialismo (ou rede sistêmica de antinomias),
apresentada em Norrie59 diz respeito a essa autocontradição ma-
nifesta através de formas aceitas de raciocínio que estabelecem
um dado padrão de racionalidade jurídica.

57 Alan Norrie, Crime, Reason and History: A Critical Introduction to Criminal Law,
2014; Dialectic and Difference: Dialectical critical realism and the grounds of justice,
2010; Law and the beautiful soul, 2005.
58 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 33.
59 Idem

25
Phablo Freire

Norrie60 ancorou o desenvolvimento de sua teoria crítica na


tradição emergentista realista crítica (doravante chamada ape-
nas de Realismo Crítico e Realismo Dialético Crítico), mirando
a compreensão e superação do antinomialismo (jurídico). Desse
modo, o conceito de Direito por ele desenvolvido se apoia, fun-
damentalmente, nos pressupostos ontológicos que integram o
paradigma Realismo Crítico (RC).

2.1 Realismo Crítico (RC)


Sintetizada na expressão Realismo Crítico (RC), a produção
de Roy Bhaskar atravessou uma série de estágios até chegar ao
ponto em que se encontra ao tempo da escrita deste trabalho.
É possível então dizer que o RC envolve quatro temas: realismo
transcendental; naturalismo crítico; crítica explanatória e o mo-
mento dialético. Sendo necessário pinçarmos alguns traços rele-
vantes de cada um deles.61
O realismo transcendental corresponde à assunção da pre-
missa de que “qualquer teoria do conhecimento pressupõe aquilo
que o mundo deve ser para que o conhecimento seja possível”.62
Tal noção equivale, para o RC, ao aspecto transcendental das for-
mas de produção de conhecimento operadas no ocidente na me-
dida em que isso (a premissa) sempre implica alguma proposição
sobre “o ser”, não limitando-se apenas ao “conhecimento sobre
o ser”. Essa perspectiva se ancora na estratificação ontológica da
realidade, por meio da qual é possível entender que os objetos sob
investigação das ciências (e propriamente do conhecimento hu-

60 Ibidem, p. 39.
61 Neil Curry, Marxismo, pós-marxismo e realismo crítico, 2012.
62 Neil Curry, Marxismo, pós-marxismo e realismo crítico, 2012, p. 103.

26
Dogma e Discurso

mano) existem independentemente da atividade e pensamento


(humanos). A noção de existência independente (derivada da es-
tratificação ontológica da realidade) corresponde à eficácia trans-
factual das estruturas e das coisas que se desdobra na necessida-
de – sustentada pelo RC – de investigação (e distinção) dos do-
mínios do empírico e do actual63 como condição de compreensão
das estruturas profundas que geram os eventos. A sustentação da
eficácia transfactual opera desdobramentos relevantes para o RC
na medida em que tal noção evidencia aquilo que Bhaskar sina-
liza como monovalência ontológica; isto é, uma falha na tradição
filosófica (desde Platão até Hegel) que reduz a realidade ao que se
conhece sobre a realidade, borrando os limites entre o actual e o
empírico. Implicando a superação da monovalência pela ontolo-
gia emergente e estratificada da realidade.64
O desenvolvimento do naturalismo crítico se dá a partir do
argumento da eficácia transfactual, isto é, da teorização acerca da
estratificação da realidade, resultando a rejeição tanto das tenden-
cias individualistas/voluntaristas nas teorias sociais quanto das co-
letivistas/reificacionistas.65 O naturalismo crítico mirou, com efeito,
na superação das disputas dicotômicas entre os hiper-naturalistas

63 As noções de real, actual (sic) e empírico serão explanadas adiante.


64 Cf. Roy Bhaskar e Alan Norrie, Introduction: Dialectic and dialectical critical realism,
1998; Neil Curry, Marxismo, pós-marxismo e realismo crítico, 2012.
65 Na introdução geral de Critical Realism: essential Readings, Roy Bhaskar expõe sua
análise sobre os erros ontológicos das perspectivas voluntaristas e reificacionistas,
nos seguintes termos [em tradução livre]: “enquanto na tradição weberiana os objetos
sociais são vistos como resultado ou constituídos por comportamento humano
intencional ou significativo, tendendo ao voluntarismo, na tradição durkheimiana os
objetos sociais são vistos como possuidores de vida própria, externos e coercivos ao
indivíduo, tendendo à reificação, a concepção realista crítica enfatiza que a sociedade
é tanto (a) uma condição pré-existente e (transcendentalmente e causalmente)
necessária para a agência intencional (atendendo ao insight de Durkheim), mas,
igualmente (b) como existente e persistindo apenas em virtude da agência. Nessa
concepção, então, a sociedade é tanto a condição quanto o resultado da agência

27
Phablo Freire

(positivismo) e os anti-naturalistas (hermenêutica), centrando a


questão no aspecto transcendental da realidade, ocupando-se em
pensar acerca das propriedades ostentadas nas sociedades que são
efetivamente objetos de conhecimento possíveis. No bojo do natura-
lismo crítico, Bhaskar desenvolve o modelo transformacional da ati-
vidade social66, que, a seu turno, resulta numa teoria relacional apta
a produzir importantes reflexos no modelo dialético bhaskariano.67
O argumento bhaskariano que permeia o naturalismo crí-
tico ecoou o conceito de causalidade estrutural de Althusser, por
meio do qual compreendem-se as estruturas sociais como irre-
dutíveis aos seus efeitos, embora, ainda assim, neles presentes. O
aspecto central desse raciocínio implica o fato de que, em suas
práticas, as pessoas não criam/produzem a sociedade, em razão
de ser esta preexistente à ação; elas – as pessoas – apenas a re-
criam/repõem/reproduzem. A despeito de serem as estruturas
sociais um produto da atividade humana, aquelas não são redu-
tíveis a estas. Elas (as estruturas) são dotadas de relativa estabi-
lidade não podendo, em razão disso, ser compreendidas como
propriedades da atividade humana; elas exigem alguma espécie
de status existencial autônomo (da agência humana), de modo
que, dada essa pré-existência das estruturas, a atividade humana
é, a um só tempo, por elas viabilizada e constrangida.68
O terceiro tema no modelo do RC, a crítica explanatória,
deriva das elaborações anteriores e produz relevantes acréscimos

humana e a agência humana não apenas reproduz como transforma a sociedade”


(1998, p. xv-xvi)
66 O conceito do modelo transformacional da atividade social é de grande importância
não apenas para a teoria de Alan Norrie (RDC) como também o é para a Teoria
Social do Discurso de Norman Fairclough, apresentada na seção 1.1.3.
67 Neil Curry, Marxismo, pós-marxismo e realismo crítico, 2012, p. 105.
68 Idem.

28
Dogma e Discurso

no naturalismo, ao apontar a diferença substancial entre os ob-


jetos do conhecimento nas ciências sociais e naturais. Bhaskar
assinala que, diferentemente das ciências naturais, os objetos nas
ciências sociais são dotados de crenças sobre si mesmos, engen-
drando – em razão disto – tanto juízos de valor quanto predeter-
minação de comportamentos. A diferenciação dos objetos opera-
da pela crítica explanatória implica a presença de um momento
normativo implícito na produção do conhecimento nas ciências
sociais, superando assim o hiato, sustentando por Hume, entre
fatos e valores. Desse modo, apreende-se que qualquer julgamen-
to de valor racionalmente orientado é dotado de uma base actual,
pois, do contrário, restaria radicalmente incompleto.69
Com a publicação de Dialectic: The Pulse of Freedom, Bhas-
kar introduz o movimento dialético em seu RC, em um proce-
dimento teórico que o próprio autor chama de “dialetização do
realismo crítico”. De acordo com Curry, Bhaskar buscou de-
monstrar a possibilidade do pensamento e da ação dialéticas fora
da delimitação hegeliana70. A dialética bhaskariana supera então
Hegel ao “englobar quatro momentos em sua dialética que, ti-
picamente, serão ‘defracionados e retotalizados’ (sendo eles): 1)
não-identidade; 2) negatividade; 3) totalidade; e, 4) agência trans-
formativa”. A dialética no RC posiciona como aspecto central o
conceito de ausência, derivado, a seu turno, da crítica operada
pelo realismo transcendental na elaboração da compreensão da
monovalência, a saber, da sua superação pela introdução das no-
ções de estratificação da realidade e de emergência. À medida que
a monovalência opera a redução do real ao actual, a ontologia
emergente demanda a localização da noção de ausência no cen-
tro da positividade. Explico melhor.

69 Idem.
70 Idem.

29
Phablo Freire

Considerada a estratificação da realidade, o não-ser passa a


figurar como condição de possibilidade para o ser. Nesse intervalo,
os conceitos de ausência, emergência e contradição se relacionam
entre si e se articulam com as noções de negatividade, totalidade e
agência transformativa. Ao apontar para a cisão entre o real e o ac-
tual (ontologia emergente/estratificação), isto é, a não-identidade
entre o que existe e o que é empiricamente conhecido (monovalên-
cia), Bhaskar abre caminho para uma compreensão mais complexa
dos processos de causação. A ausência (negatividade) é percebida
como um polo do positivo (emergência), de modo que os conceitos
de emergência e ausência assumem a centralidade (dialética) para
a compreensão dos processos de causação.71
Conforme Sayer, o RC em “sua análise da causação, [...] re-
jeita a visão humeana ‘sucessionista’ que envolve regularidades
entre sequências de eventos”72. A partir da concepção de distin-
ção entre o real e o actual passa a ser introduzido no debate o
conceito de poderes causais, ou seja, a possibilidade de assunção
de existência de entidades não-observáveis a partir da referência
aos efeitos observáveis que, por sua vez, somente podem ser ex-
plicados enquanto produtos de tais entidades (não-observáveis).
Sayer utiliza como exemplo a evidência apontada por linguistas
ao inferirem a existência de uma gramática generativa (entidade
não-observável) a partir do reconhecimento da habilidade das
pessoas para construção de novas sentenças (efeito observável).
Desse modo, poderes causais podem ser ativados ou não ativados
(dada a cisão entre real e actual), quando não ativados são, por
conseguinte, não observáveis, todavia não devem ser considera-
dos como inexistentes em razão de nossa incapacidade de ob-
servação (percepção somente possível em razão da estratificação

71 Roy Bhaskar e Alan Norrie, Introduction: Dialectic and dialectical critical realism, 1998.
72 Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000, p. 12-13

30
Dogma e Discurso

ontológica).73. O que somos capazes de conhecer não se confunde


com o que existe, e aquilo que existe numa condição não-obser-
vável pode ser inferido através de seus efeitos observáveis.
O RC aponta a insuficiência do modelo de causação que
pauta a compreensão dos fenômenos a partir de regularidades de
eventos sempre observáveis, desconsiderando-se todos os poderes
causais não-observáveis que, a despeito de não serem passíveis de
observação, são suficientes para produção de efeitos, sendo esses
satisfatoriamente observáveis. Nesse sentido, como pontua Sayer,
a causação deve ser pautada noutro modelo orientado não por re-
gularidades de eventos, mas na busca pela “identificação de meca-
nismos causais (do modo) como eles operam, e da descoberta de se
eles foram ativados e sob que condições”.74 Tal fenômeno implica,
como afirmam Bhaskar e Norrie, no posicionamento da ausência
(negatividade) no centro da positividade (emergência).75
A acepção da ausência, como polo do positivo, resulta na
impossibilidade de compreensão do positivo em desconsideração
ao que lhe é ausente (seus poderes causais não-observáveis). Tais
premissas posicionam a dialética bhaskariana como recurso cru-
cial para a ontologia da mudança, a saber, para a compreensão da
agência transformativa. Isso ocorre porque tal modelo dialético
se apresenta como ‘grande afrouxador’ (great loosener) ao inserir
o conceito de ausência no processo de causação e evidenciar a
textura aberta dos processos empíricos: a interconexão entre es-
trutura e agência através de entidades intermediárias.76

73 Idem.
74 Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000, p. 13.
75 Roy Bhaskar e Alan Norrie, Introduction: Dialectic and dialectical critical realism, 1998.
76 Cf. Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000; Neil
Curry, Marxismo, pós-marxismo e realismo crítico, 2012.

31
Phablo Freire

2.2 Estratificação e Emergência


Uma das mais significativas contribuições do emergentis-
mo, em sua versão contemporânea realista crítica, é a concepção
da realidade como estratificada. Nos escritos originais de Roy
Bhaskar, os três estratos da realidade são nomeados, como real,
actual e empirical.
Nas traduções para o português no Brasil, não há, ainda,
um consenso sobre quais termos comunicam melhor os concei-
tos instrumentalizados no RC; Viviane de Melo Resende, em seu
livro Análise de discurso crítica e realismo crítico77, fez uma op-
ção por utilizar, respectivamente, os termos potencial, realizado
e empírico. Segundo ela, a escolha do primeiro termo em portu-
guês justificou-se por comunicar melhor a noção de potenciali-
dade dos objetos além de evitar uma possível compreensão equi-
vocada de os demais estratos como ‘menos reais’ que o primeiro.
Para Resende, o uso do termo em português ‘atual’ também não
comunicaria com precisão o que o segundo estrato comunica
teoricamente, daí sua substituição por realizado. Por sua vez, os
termos utilizados por Patrick Baert78 receberam, respectivamen-
te, a seguinte tradução: real, empírico e não-real. Neste trabalho
irei me distanciar dessas traduções e acompanhar o mais próxi-
mo dos termos originais, seguindo o que foi aplicado na tradução
do capítulo de livro Realism and Social Science, de Andrew Sayer,
adaptado no português como Características chave do realismo
crítico na prática: um breve resumo. Nessa tradução de Cynthia
Hamlin com revisão de Eliane da Fonte, foram aplicados respec-
tivamente os termos: real, actual e empírico.

77 Viviane de Melo Resende, Análise de discurso crítica e realismo crítico, 2009, p. 20,
em nota de rodapé.
78 Patrick Baert, O Realismo Crítico e as Ciências Sociais, 1995.

32
Dogma e Discurso

De acordo com Andrew Sayer, “o realismo empírico con-


sidera o mundo como consistindo de objetos atômicos observá-
veis, entre eles eventos e regularidades, como se os objetos não
tivessem estruturas ou poderes e, em particular, nenhuma quali-
dade não-observável”. Noutra perspectiva, a ontologia realística
crítica opera uma distinção da realidade em três estratos: o real,
o actual e o empírico.79
O real, evocado pelo RC, denota duas situações: a primeira
delas implica o argumento de que o real corresponde ao que quer
que exista – seja natural ou social –, independentemente de ser
um objeto empírico apreendido pelo conhecimento humano ou
de termos um conhecimento satisfatório acerca dele. A segunda
situação diz respeito à afirmação de que o real compreende o do-
mínio dos objetos, suas estruturas e poderes, de todas as espécies,
sejam físicos, minerais, biológicos ou sociais, de maneira que es-
ses poderes (causais) figuram junto das estruturas, podendo ser
ou não ativados.80
Para ilustrar a circunstância da ativação ou não dos pode-
res causais e sua independência, Sayer utiliza-se do exemplo dos
trabalhadores que “em virtude de sua compleição física, perso-
nalidade e educação, são capazes de trabalhar”, isto é, eles pos-
suem poderes suficientes – quando combinadas certas estruturas
internas – para realização do trabalho, mesmo quando estejam
desempregados ou desocupados. A ação laboral do trabalhador
quando em inércia corresponde a um poder que se encontra ina-
tivo. O real tem sua existência, a despeito da ativação ou não dos
poderes que lhes são inerentes81.

79 Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000, p. 9.


80 Idem.
81 Idem.

33
Phablo Freire

Enquanto o real refere-se às estruturas e aos poderes (ativa-


dos ou não) dos objetos, o actual diz respeito àquilo que acontece
se e quando tais poderes são ativados. O actual corresponde ao
que é realizado quando os poderes emergem: o produto do traba-
lho latente do trabalhador até então inerte.
De acordo com Resende, um terceiro domínio diz respeito
ao empírico, isto é, àquilo que nossa experiencia humana é capaz
de capturar. “Aquilo que nós efetivamente observamos dos efei-
tos das estruturas, das potencialidades e das realizações”,82 como
ressalta Resende. Nossa habilidade de observar, de compreender,
pode nos dotar de uma noção mais confiante acerca do que exis-
te, mas a existência em si mesma (o que pode existir em termos
de ativação ou não e o que efetivamente emerge pela ativação)
não depende dessa habilidade humana observacional.
Sayer ressalta, como consequência dessa ontologia estrati-
ficada, o reconhecimento da possibilidade de poderes existirem
mesmo quando não exercidos e, ainda quando ativados, não
captados pela observação humana. A estratificação como qua-
lidade ontológica da realidade, de acordo com Resende, implica
reconhecer que nem tudo que poderia acontecer (em razão das
estruturas internas dos objetos) de fato acontece, tendo em vista
a possibilidade de contextos contingenciais bloquearem83 os me-
canismos causais, ou seja, o que é real nem sempre se torna ac-
tual, daí sua necessária distinção. Por sua vez, nem tudo aquilo
que é realizado (actual) em razão dos poderes ativados é necessa-

82 Viviane de Melo Resende, Análise de discurso crítica e realismo crítico, 2009, p. 21.
83 A noção de bloqueio na teoria bhaskariana se relaciona com sua concepção de
causação e emergência, dentro da perspectiva ontológica da estratificação, de modo
que os eventos naturais ou sociais podem ou não ocorrer a depender das condições
de ativação ou bloqueio derivada da articulação entre diferentes mecanismos
generativos concomitantemente.

34
Dogma e Discurso

riamente captado por nossa experiência (empírico), implicando


uma diferenciação entre o actual e o empírico.
Como argumenta Sayer84, a diferenciação entre o real, o ac-
tual e o empírico, constitui na ontologia estratificada um con-
traste com outros realismos assentados em “ontologias achata-
das” que reduzem tudo o que existe àquilo que podemos obser-
var (realismo empírico) ou identificam o que de fato ocorre em
nível de eventos com a totalidade do que é real (actualismo).85
A estratificação ontológica no RC abre espaço para a discus-
são sobre a realidade caracterizada pela emergência, ou seja, a qua-
lidade da realidade através da qual a aglutinação de dois ou mais
aspectos originam novos fenômenos, novos processos, dotados de
propriedades irredutíveis àquelas de seus poderes constituintes.
Sayer menciona o exemplo, na física, da água para evidenciar a
emergência86: como pontua o autor, “as propriedades emergentes
da água [...] são bastante diferentes daquelas de seus elementos
constituintes, o hidrogênio e o oxigênio”. Os fenômenos sociais, a
seu turno, emergem de fenômenos biológicos, que são, por sua vez,
emergência de estratos físicos e químicos da realidade. A “prática
social da conversação depende do estado fisiológico dos agentes,
incluindo os sinais enviados e recebidos em torno de nossas cé-
lulas nervosas, mas a conversação não é redutível a estes proces-
sos fisiológicos”87. Nessa mesma direção, Andrew Collier88 pontua

84 Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000, p. 11.


85 Andrew Collier no ensaio Stratified explanation and Marx’s conception of History,
parte da obra Critical realismo: essencial readings, utiliza o termo como uma vertente
reducionista do realismo empírico. O uso do termo remete a uma noção determinista
em oposição a estratificação da realidade que vai reduzir a causação histórica a um
único mecanismo generativo da realidade social.
86 Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000, p. 11.
87 Idem.
88 Andrew Collier, Stratified explanation and Marx’s conception of history, 1998.

35
Phablo Freire

que as sociedades humanas dependem de certos fatos da biologia


para se realizarem, ao passo que estes últimos, dependem de fatos
químicos para emergirem, não sendo, no entanto, nem a socie-
dade redutível à biologia, nem esta redutível àquela. Há, todavia,
uma relação ontológica entre natureza e sociedade, como afirma
Collier,89 sendo ambos aspectos do real aguardando a descober-
ta e compreensão empírica. A natureza é anterior, independente à
sociedade (e observação humana) e constituída de poderes causais
que são (ou não) ativados continuamente, dos quais emergem pro-
cessos que não são redutíveis às suas causas.
Para o RC, ao passo que a emergência é um traço indisso-
ciável da realidade, a irredutibilidade dos processos emergentes
é uma consequência inerente a abertura operada pela estratifi-
cação. Considerada a emergência e irredutibilidade da realida-
de estratificada, quanto ao mundo social (sociedade) é possível
compreendê-lo enquanto um sistema aberto; considerando o
fato de que um mesmo poder causal pode produzir resultados
diferentes, a realização (ativação) de qualquer mecanismo se dá
por meio da mediação de outros, de maneira que nunca se en-
contram excluídos ou reduzidos um ao outro o que resulta em
uma abertura para a emergência. Um sistema fechado (dotado de
condições de fechamento) seria aquele em que ocorreria a estabi-
lidade de suas condições intrínsecas e a constância de suas con-
dições extrínsecas, o que, por certo, não ocorre nos mecanismos
do mundo social. Por isso, nas sociedades – como sistemas aber-
tos – o mesmo poder causal pode produzir resultados diferentes
e irredutíveis em razão dos modos pelos quais as condições de
fechamento são quebradas.90

89 Ibidem, p. 259.
90 Cf. Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000;
Viviane de Melo Resende, Análise de discurso crítica e realismo crítico, 2009.

36
Dogma e Discurso

Em dadas circunstâncias, também é possível identificar,


como assinala Sayer, que “mecanismos causais diferentes podem
produzir o mesmo resultado”91, v.g., o colapso no sistema econô-
mico por causas sociais (greves ou revoluções etc.) ou naturais
(tempesteados, secas, terremos etc.). As regularidades (das cau-
sas) nos sistemas sociais abertos são meramente aproximadas e
temporalmente limitadas e, por vezes, produzidas por esforços
deliberados como o resultado do uso social de instrumentos de
controle como regimes disciplinares nas sociedades modernas
que regulam o início e fim das jornadas de trabalho. Os eventos
como acontecimentos emergentes não são pré-determinados an-
tes de sua ocorrência, uma vez que dependem de condições con-
tingentes; o que implica reconhecer o futuro como aberto, para
usarmos aqui os termos de Sayer. O que contrasta com perspec-
tivas ontológicas que reduzem o mundo a resultado de “padrões
a serem descobertos e registrados através da coleta de dados [...] e
com a busca das regularidades entre estes eventos”.92
A proposição realista-transcendental bhaskariana relativa à
existência independente dos objetos e da eficácia transfactual, das
estruturas e seus poderes causais operou uma profunda modifica-
ção na relação entre ontologia e epistemologia, implicando uma
grande alteração nas condições de produção de conhecimento a
partir da concepção da realidade na qual tais condições operam.
Assim, o realismo crítico anunciado em Bhaskar vai “reclamar a
realidade” (reclaiming reality), implicando a desantropomorfiza-
ção da realidade, quando fixa o reconhecimento de que “toda a
concepção de realidade é contingente, parcial e localmente hu-
manizada” (estratificação e emergência), não sendo a realidade

91 Andrew Sayer, op. cit., p. 14.


92 Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000, p. 15.

37
Phablo Freire

exaurida ou redutível àquilo que somos capazes de dizer (conhe-


cer) sobre ela.93

2.3 Entidades intermediárias e transformação social


Outros aspectos relevantes na ontologia bhaskariana a se-
rem instrumentalizados neste material são os conceitos de en-
tidades intermediárias e de modelo transformacional. Para Roy
Bhaskar94, os poderes causais e os mecanismos generativos da
natureza existem e agem independentemente das condições que
permitem o acesso humano a eles, de modo que devem ser assu-
midos como estruturados e intransitivos, a saber, relativamente
independentes de regularidades de eventos e ações humanas. Os
eventos, por sua vez, ocorrem independentemente das experiên-
cias em que são apreendidos. Estruturas e mecanismos são, por-
tanto, reais e distintos dos eventos que geram. Eventos são, por
fim, reais e distintos das experiencias pelas quais são possíveis
(ou não) de serem apreendidos. São esses, portanto, os domínios
do real, do actual e do empírico sobrepostos na realidade.
O RC posiciona os conceitos de prática social e socieda-
de como centrais na compreensão dos processos dialéticos en-
tre real, actual e empírico e, mais detidamente, a relação entre
a agência humana e as estruturas. Considerando o naturalismo
crítico e, com isso, distanciando-se dos modelos “voluntaris-
tas”, “reificacionistas” e “dialéticos”, Bhaskar propõe seu modelo
transformacional da atividade social95 com base na evidenciação
da existência de entidades mediadoras entre as estruturas e a

93 Cf. Neil Curry, Marxismo, pós-marxismo e realismo crítico, 2012.


94 Roy Bhaskar, Philosophy and scientific realism, 1998.
95 Roy Bhaskar, Societies, 1998, p. 216.

38
Dogma e Discurso

agência humana. De acordo com Bhaskar, as pessoas não criam/


produzem a sociedade, haja vista ser essa uma condição neces-
sária para sua atividade. A sociedade é, portanto, pré-existente à
agência humana; devendo ser compreendia como um conjunto
de estruturas, práticas e convenções que os indivíduos – atra-
vés de sua atividade – reproduzem ou transformam; mas que,
a despeito disso, não existiria de maneira autônoma à atividade
humana (erro da reificação); tampouco poderia ser reduzida a
um produto dela (erro do voluntarismo).96
Ao expor sua concepção dialética de constituição da socie-
dade, Bhaskar argumenta que a reprodução ou transformação
da sociedade pela agência humana, por sua vez, demanda um
repertório de habilidades, competências e hábitos, que são apro-
priados em contextos sociais determinados e necessários. Tais
processos de apropriação é genericamente chamado pelo filóso-
fo de socialização. A sociedade fornece as condições necessárias
para a ação humana intencional, e essa ação humana intencional
é uma condição necessária para a reprodução ou transformação
da sociedade. No entanto, nem a sociedade pode ser reduzida à
agência, nem esta reduzida àquela. Argumento esse que, segun-
do Bhaskar, faz emergir um hiato ontológico na compreensão da
relação entre estrutura e a ação.97
As pessoas em suas práticas sociais desempenham uma
dupla função: não apenas fabricam os produtos sociais consti-
tutivos de sua realidade, mas, com efeito, elaboram também as
condições de sua fabricação, isto é, reproduzem (ou em alguma
medida, transformam) as estruturas que governam sua agência.
Nisso, pode-se inferir serem as estruturas sociais objetos pas-
síveis de transformação; sendo, por conseguinte, relativamente

96 Idem.
97 Idem.

39
Phablo Freire

duradouras. Desse modo, a sociedade é concebida no RC como


um conjunto articulado de estruturas generativas relativamente
independentes e duradouras, ou seja, uma totalidade complexa
aberta; dada sua sujeição à mudança; tanto em seus componentes
quanto em suas inter-relações sociais.98
O modelo transformacional dialético crítico pode ser repre-
sentado na figura abaixo.

Figura 1: Modelo Transformacional da Atividade Social

Fonte: Bhaskar (1998)

De acordo com o modelo transformacional, as estruturas


são, a um só tempo, a condição (sincrônica) e o resultado (dia-
crônico) da ação social. Uma vez que não há estrutura (socieda-
de) sem ação, os recursos e constrangimentos que se operam no
interior dos processos de socialização são, igualmente, produtos
da ação, não sendo, ação ou estruturas, redutíveis uma a outra.99
Quando o RC localiza o modelo transformacional na estra-
tificação da realidade social reivindica uma assimetria entre es-
trutura e ação, lançando ênfase sobre a historicidade dos proces-
sos de mudança social, abrindo espaço para compreensão tanto
dos recursos e constrangimentos que conformam parcialmente

98 Idem.
99 Idem.

40
Dogma e Discurso

a ação quanto das formas de reprodução ou transformação das


estruturas sociais no tempo.100
Segundo Bhaskar101, a assimetria entre estrutura e ação, a
saber, o hiato ontológico identificado na relação entre estrutura e
a ação evidencia a necessidade de um sistema de conceitos me-
diadores, frisa o filósofo, aptos a abranger os poderes emergentes
inerentes à dupla função das práticas sociais. Tal sistema de con-
ceitos daria conta do ponto de contato entre agência e estrutura;
um sistema de entidades intermediárias (mediadoras) constituí-
do pelos conceitos de práticas sociais e posições. Quanto às po-
sições, entendem-se os lugares, funções, regras, tarefas, deveres,
direitos etc. ocupadas, assumidas, preenchidas, desempenhadas
pelos indivíduos, ao passo que as práticas correspondem à arti-
culação de quatro elementos: relações sociais, fenômeno mental,
atividade material e discurso.102
Os conceitos de práticas e posições,103 enquanto entidades inter-
mediárias situadas na estratificação da realidade social, asseguram

100 Idem.
101 Ibidem, p. 220.
102 Idem.
103 o conceito de posições diz respeito a um dos elementos dentro do sistema de conceitos
mediadores no modelo transformacional da atividade social. O conceito teve seu
desenvolvimento teórico realizado, no contexto do Realismo Crítico (RC), pelo
filósofo e psicólogo neozelandês-britânico, Rom Harré. Dentre as obras nas quais
o conceito foi elaborado podemos mencionar Realism rescued (1994), The discursive
mind (1994) e Motives and mechanisms (1985). Destacamos ainda duas importantes
obras para um primeiro contato com o conceito: Positioning Theory: Moral Contexts
of International Action (1998) coletânea de ensaios editada conjuntamente com Luk
Van Langenhove e o breve e assertivo ensaio escrito com Bronwyn Davies, intitulado
Positioning: The Discursive Production of Selves (1990). Em termos das discussões
que travamos neste trabalho podemos dizer que a teoria do posicionamento de Rom
Harré corresponde ao momento mental das práticas, sendo seu conceito de “posições”
instrumentalizado por Bhaskar na sua teorização do modelo transformacional da
sociedade, ao descrever as entidades intermediárias. Bronwyn Davies e Rom Harré,

41
Phablo Freire

que não reste obscurecida a compreensão sobre a relação transfor-


macional emergente entre estrutura e ação104. O modelo transforma-
cional associado a noção de sociedade como sistema aberto viabiliza
a compreensão das dinâmicas de reprodução ou transformação da
estrutura social geradas pelos diversos mecanismos que operam em

em seu ensaio conjunto, publicado em 1990, intitulado Positioning: The discursive


production of selves vão discutir a constituição do self nos processos discursivos e
extradiscursivos. Para eles, as identidades são socialmente produzidas à medida
que uma posição de sujeito incorpora um repertório conceitual e uma localização
dentro da estrutura social para aqueles que fazem uso performático desta posição.
Ao assumir uma posição provida discursivamente, o sujeito vê o mundo a partir
desse ponto de vista disponível nessa posição, isto é, a partir dos recursos discursivos e
extradiscursivos constituídos pelo repertório de crenças (enredos, imagens, metáforas
e conceitos particulares). As identidades sociais (identificação) emergem por meio de
processos de interação social, não como produtos acabados, mas como fenômenos
relativamente fixos, como algo constituído e reconstituído por meio de várias
práticas discursivas das quais participa, ou melhor, nas quais é convocado a se fazer
presente. Como consequência, “aquilo que o sujeito” é é sempre uma questão aberta;
uma resposta mutável dependente das posições disponibilizadas (postas e repostas)
dentro das práticas discursivas e em constante relação com as posições performadas
por outros sujeitos nas interações discursivas. A dinâmica discursiva de constituição
identitária pela performance, diz respeito à internalização dos papéis, ou melhor, dos
repertórios inerentes às posições, pelos sujeitos em suas interações discursivas, nos
seguintes termos: inicia-se com a compreensão e aprendizagem de categorias sociais
que incluem algumas pessoas ao passo que excluem outras, como as categorias de
gênero, raça, classe e outros desdobramentos mais específicos (o trabalho de Davies
e Harré ao evocar os processos de inclusão/exclusão se aproxima sobremaneira das
proposições investigativas de Theo Van Leeuwen, cuja exposição é feita no capítulo II,
quando tratamos do método). Através da internalização desdobram-se processos de
posicionamento de si como resultado do reconhecimento de si enquanto sujeito dotado
dos repertórios inerentes aquelas posições e, invariavelmente, no reconhecimento do
outro como dotado dos repertórios próprios às suas respectivas posições. O sujeito
reconhece a si mesmo como membro de incontáveis subclasses de categorias ao passo
que também percebe a si mesmo como não pertencente a certas categorias e subclasses.
Essas formas de reconhecimento de si implicam o desenvolvimento de senso de pertença
a dadas maneiras de estar no mundo e, a seu turno, o senso de pertença acaba por
desenvolver um sistema moral organizado em torno do pertencimento.
104 Essa é uma das preocupações centrais no emergentismo: a produção de decisões
que não caiam em dinâmicas reducionistas.

42
Dogma e Discurso

simultâneo, viabilizando a compreensão das entidades intermediá-


rias nesse processo, de maneira que, a despeito de ser, a atividade
humana, constrangida pela estrutura, tal restrição é percebida, sem-
pre, como parcial e temporária, determinada por sua historicidade,
abrindo espaço contínuo para a mudança social.
As noções de contradição-antinomia e de práticas sociais –
como entidades intermediárias no modelo transformacional
bhaskariano – ocupam, portanto, a centralidade do pensamento
de Norrie. Estes dois conceitos, e todos aqueles que lhes são ine-
rentemente necessários (tais como contradição e conexão; formas
e mecanismos; real, actual e empírico; sistema aberto e fechamen-
to fictício; irredutibilidade etc.) são articulados para conformar
seu conceito de Direito.
Quando o RC trata das práticas (jurídicas) históricas, faz
referência à noção de entidades intermediárias (mediadoras) da
relação entre a agência humana e as estruturas, isto é, o modelo
transformacional da atividade social que assegura o acesso e a
compreensão das possibilidades de reprodução (ou transforma-
ção) da sociedade (estruturas sociais), em razão dos constran-
gimentos e poderes emergentes embricados na estratificação da
realidade social. As noções de mecanismos, reais, efetivos e dife-
renciados se encontram articuladas entre si e ecoam os aspectos
conceituais da estratificação da realidade social, mais precisa-
mente dos domínios do real, actual e empírico, seus mecanismos
e poderes causais, as noções de ativação e não ativação desses
poderes, irredutibilidade e emergência.
Como prática histórica, o acontecimento jurídico é situa-
do como uma entidade intermediária específica que figura so-
cialmente como ponto de conexão entre as estruturas (seus po-
deres causais e mecanismos) e a agência humana. A aplicação
dos termos forma e mecanismos na elaboração do conceito de
Direito denota a relação dialética entre o real (poderes causais

43
Phablo Freire

ativados ou não) e o actual (aquilo que se realizou efetivamente


quando ativados tais poderes), de modo que a forma jurídica que
se realiza (actual) e que é achada nos eventos jurídicos concretos
historicamente determinados é a reprodução (ou transformação)
do aspecto jurídico que compõe a sociedade a partir da ativação
de mecanismos diversos que operam constrangimentos para que
um dado modelo de sociedade seja reproduzido.
Os termos diferenciados, relacionados e irredutíveis comuni-
cam que as formas jurídicas adquirem algum grau de autorrefe-
rencialidade na reprodução sistêmica, autonomizando-se em rela-
ção a outras práticas (sem, contudo, confundir-se com a noção de
diferenciação sistêmica autopoiética). Isso, porque a emergência da
prática deriva da ativação interativa e conexão dialética de múlti-
plos mecanismos, não operando a prática social jurídico uma in-
teira clausura, haja vista a contínua conexão dialética dos pressu-
postos constitutivos das formas que compõe a especificidade dessa
prática. As práticas jurídicas por se realizarem em sociedade (um
sistema aberto) demandam uma compreensão que considere as re-
lações dialéticas que a Direito (enquanto entidade intermediária)
estabelece com outras espécies de práticas sociais não jurídicas.

Figura 2: Conceito de Direito e a estratificação social

Níveis do social

Mecanismos (estrutura social)


Real

Práticas (jurídicas) históricas


Entidade intermediária

Eventos sociais (formas)


Actual

Com base em Norrie (2005).


44
Dogma e Discurso

Nos termos acima, o Direito é apreendido como uma prá-


tica histórica, isto é, uma entidade intermediária (entre agência
humana e estrutura), operando através de formas e mecanismos,
reais, efetivos e diferenciados, compreendidos em uma perspecti-
va ontológica de estratificação da realidade social, relacionados
(mas irredutíveis) entre si e em relações sociais mais amplas.105
Outro aspecto central na teoria crítica de Norrie diz respeito
à noção de antinomialismo; entretanto, o acesso à profundidade
ontológica do conceito (que em nada se confunde com a noção
clássica de antinomia jurídica) requer uma abordagem prévia de,
minimamente, três articulações conceituais: i) as noções de cone-
xão e contradição dialética e sua relação com a perspectiva de Direi-
to na dialética negativa de Theodor W. Adorno; ii) a relação entre o
formalismo jurídico e o fechamento fictício do Direito e iii) a dinâ-
mica entre formalismo jurídico, autoimagem jurídica e praxiologia.
As noções de conexão e contradição dialética derivam da
articulação entre os conceitos de estratificação, emergência e cau-
sação. Como tratamos a pouco, o RC argumenta que a realidade
é estratificada entre os domínios do real, actual e empírico; de
modo que entre eles há uma relação continente-conteúdo, em
que o domínio do real é mais abrangente que o do actual que, por
sua vez, é maior que o do empírico (vide Quadro 1). O real, como
pontua Sayer, “diz respeito ao “que quer que exista, seja natural
ou social [...] é o reino dos objetos, suas estruturas e poderes”106.
Quando ativados (realizados) tais poderes emergem no domínio
do actual. Sendo, nesse intervalo, que o RC acrescenta a discus-
são sobre a causação dialética crítica, ou seja, a noção de que a
causação deve ser pautada não na busca por regularidades está-

105 Cf. Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005; Roy Bhaskar, Philosophy and
scientific realism, 1998; Roy Bhaskar, Societies, 1998.
106 Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000, p. 9.

45
Phablo Freire

veis e constantes107 de eventos, mas na identificação de mecanis-


mos causais, do modo como eles operam e das condições pelas
quais foram (são) ativados, quais outros mecanismos causais
atuaram (atuam) para ativar ou bloquear a emergência daquilo
que se tornou observável no domínio actual. O modelo dialético
de causação pode ser visto abaixo.

Figura 3: Modelo dialético de causação

Fonte: Sayer (2000)

A inexistência de condições especiais de fechamento (es-


tabilidade como condição intrínseca e constância como condi-
ção extrínseca do objeto) nos mecanismos e poderes causais do
mundo social faz dela (a sociedade) um sistema aberto, no qual
mecanismos podem ser ativados ou bloqueados (não-ativados) a
partir de outros mecanismos que atuam em concomitância e sin-
cronicidade. Os sistemas abertos, segundo Sayer, podem ainda
apresentar condições por meio das quais o “mesmo poder causal
pode produzir resultados diferentes, de acordo com a maneira
pela qual as condições de fechamento são quebradas”108. Por isso,
nos sistemas abertos (como a sociedade), a “causa da ocorrência
de algo não tem nada a ver com o número de vezes em que obser-

107 Condições intrínsecas e extrínsecas esperadas para as regularidades nos sistemas


fechados.
108 Andrew Sayer, Características-chave do Realismo Crítico na prática, 2000, p. 14.

46
Dogma e Discurso

vamos sua ocorrência”109, como se entende no modelo positivista


de causação. Desse modo, o RC postula a noção de emergência
como “situações nas quais a conjunção de duas ou mais caracte-
rísticas ou aspectos dão origem a novos fenômenos, os quais tem
propriedades irredutíveis àquelas de seus constituintes, ainda
que estas últimas sejam necessárias à sua existência”.110 O argu-
mento da emergência nos leva a inferir que em um dado efeito ou
evento, a despeito de sua natureza distinta e irredutível, haverá
uma relação interna de elementos constitutivos, uma conexão
dialética constitutiva, a saber, uma pressuposição essencial acer-
ca de seus mecanismos causais.
Esse é o fundamento nuclear do conceito de conexão dia-
lética, isto é, a ideia de uma relação interna entre os elementos
de um dado efeito ou evento. A conexão dialética corresponde a
uma ligação inerente, molecular entre entidades ou aspectos de
uma totalidade de modo que, a despeito de serem em princípio
distintos e irredutíveis (dada a situação de causação e emergên-
cia), são sincrônica e internamente relacionados, inseparáveis de
tal maneira que um (aspecto ou entidade) pressupõe essencial-
mente o outro.111
Para Norrie, a conexão dialética fornece dois importan-
tes elementos para a análise do fenômeno antinomial: a noção
de relacionalidade e a ideia de totalidades abertas. O primeiro
implica a possibilidade de descobrir as conexões internas entre
os fenômenos aparentemente dispares, v.g., os processos sociais
jurídicos, econômicos e políticos. Enquanto o segundo repousa
no reconhecimento de que os processos emergentes sociais são

109 Ibidem, p. 13.


110 Ibidem, p. 11.
111 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 40.

47
Phablo Freire

dotados de uma textura aberta, na mesma medida em que a so-


ciedade é admitida como sistema aberto112.
A conexão dialética fornece a noção de pressuposição existen-
cial que, de acordo com Norrie, opera uma radical modificação
no modo de compreensão dos fenômenos sociais (com ênfase nos
jurídicos). Isso ocorre porque, através da pressuposição existencial,
o fenômeno (evento) jurídico pode ser compreendido a partir de
suas ligações ontologicamente reais com outros aspectos e entida-
des da realidade social. Dito de outra forma, os aspectos constitu-
tivos do Direito – a despeito de serem irredutíveis e inconfundíveis
com outros aspectos da realidade social – possuem uma conexão
(dialética) sincrônica e inerente com outras dimensões sociais, de
modo que a existência de um (evento jurídico) pressupõe essen-
cialmente a existência de outros eventos não jurídicos.113
Essa perspectiva supera metodologias ideais (irrealistas114)
que insistem, como aponta Norrie, na compreensão do fenômeno
jurídico por meio de análises das relações de coexistência entre o
Direito e outros fenômenos sociais, sustentando a existência de
vínculos empíricos e históricos que separam o evento jurídico de
outros aspectos sociais, negando ligações essenciais constitutivas
na emergência do evento jurídico.115
De acordo com Bhaskar, as contradições dialéticas116 são uma
espécie da categoria mais geral de conexões dialéticas. Contradi-

112 Ibidem, p. 39.


113 Ibidem, p. 40.
114 Os termos irrealismo e irrealista são manejados nos escritos de Bhaskar, em especial,
na obra Critical Realism: essential readings para se referir às perpestivas ditas
realistas que não adotam a estratificação social e reduzem o real com o actual ou
confundem o actual com o empírico.
115 Alan Norrie, op. cit., p. 40.
116 O conceito de contradição dialética adotado neste trabalho é, com efeito, mais
reduzido do que aquele elaborado por Bhaskar em sua obra Dialectic: The Pulse

48
Dogma e Discurso

ções dialéticas reais possuem todas as características das conexões


dialéticas, mas seus elementos se encontram numa relação de opo-
sição, no sentido de que (pelo menos) um de seus aspectos nega
(pelo menos) um dos outros que se encontram na conexão dialé-
tica; sendo a negação total ou parcial, de modo que se anunciam
como elementos ou entidades mutuamente antagônicos e exclu-
dentes. É possível ainda identificar uma espécie mais radical de
contradição dialética em que o elemento da negação excludente é,
necessariamente, o fundamento causal da totalidade.117
Norrie argumenta que as noções de conexão e contradição
dialéticas e sua potencialidade para abordagem de fenômenos
contraditórios são centrais para uma compreensão profunda do
Direito no ocidente, sobretudo nas investigações que enfrentem
as antinomias que emergem na relação entre aquilo que o Direi-
to reivindica ser (sua autoimagem) e aquilo que efetivamente é
(realidade sociopolítica do fenômeno jurídico). No cerne dessa
discussão estão as questões relativas ao formalismo jurídico e fe-
chamento fictício.118
A compreensão dessa noção de Direito, proposta por Norrie,
demanda a exposição das bases filosóficas articuladas pelo autor
para desenvolvimento dos conceitos que integram a teoria. Para a
análise em andamento, dedicaremos atenção a duas noções cen-
trais: o antinomialismo como traço indissociável do Direito e a no-
ção do fenômeno jurídico enquanto prática social (dotada de mo-
mento discursivo). A compreensão da primeira noção exige uma
breve recuperação sobre as aproximações desenvolvidas por Nor-

of Freedom. Seguimos aqui a abordagem simplificada utilizada para o Norrie em


seu livro Law and the beautiful soul para situar o conceito de contradição dialética
dentro de seu RDC.
117 Roy Bhaskar, Dialectic: The Pulse of Freedom, 2008, p. 53.
118 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 40.

49
Phablo Freire

rie entre a visão de Direito, na dialética negativa de Theodor W.


Adorno, e o Realismo Dialético Crítico (RDC), de Roy Bhaskar.119
Em sua dialética negativa, Adorno apresenta três visões so-
bre o Direito que são discutidas e reconstruídas por Norrie; duas
dessas visões, a primeira e a terceira, serão aqui consideradas.
Por meio da primeira visão, Adorno destaca uma tensão irresolú-
vel interna ao fenômeno jurídico relacionada à produção de con-
ceitos. Segundo a visão de Adorno, a lógica na modernidade, em
especial o formalismo jurídico, envolve o que o autor chamou de
lógica de identidade (subsuntiva), por meio da qual os conceitos
são formados em processos sempre inadequados e insuficientes,
pois a dinâmica de produção dos conceitos, sobretudo a fixação
de seus limites, implica um procedimento de supressão. A ten-
tativa de restringir a coisa ao conceito, a busca pela identidade
entre a coisa e o conceito resulta na supressão de certos aspectos
da coisa que não desaparecem com a delimitação do conceito,
mas, do contrário, permanecem como uma contradição ligada
a coisa em razão de seu conceito identitário. Como sustentado
por Adorno, os objetos não entram em seus conceitos sem deixar
restos fora dele, de modo que tais restos comparecem diante dos
conceitos como uma contradição que evidencia a inverdade da
identidade entre os conceitos e as coisas.120
A dialética negativa desvela a tensão irresolúvel inerente aos
conceitos produzidos na modernidade (e no Direito) como a di-
cotomia que deriva desses processos de supressão, haja vista ter o
conceito uma contraditória funcionalidade: explicar a realidade
à medida que ajusta as coisas em conceitos, mas, concomitante-
mente, bloquear um pleno acesso a essa mesma realidade à medi-
da que suprime o conhecimento dos aspectos postos de fora por

119 Idem.
120 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 158.

50
Dogma e Discurso

meio da lógica subsuntiva (identitária); negando com isso parcela


da realidade e, em razão disso, obscurecendo a compreensão so-
bre a realidade (da coisa) em sua complexidade. Tal tensão irreso-
lúvel: a contradição entre a explicação e o bloqueio que os concei-
tos operam na realidade corresponde a um importante aspecto
do conceito de antinomia jurídica.121
Norrie vai apontar uma falha no argumento de Adorno
para, em seguida, desenvolver uma possibilidade de superação/
correção que assume uma importante função em sua teoria. A
tensão irresolúvel dos conceitos seria superada – segundo Ador-
no – por uma constelação de conceitos que, a seu turno, seria ma-
nejada para dar visibilidade aos aspectos negados por conceitos
isolados. A complexidade da constelação seria suficiente para
acessar os aspectos suprimidos da realidade pela lógica de iden-
tidade. No entanto, para Norrie, a noção de constelação corres-
ponde a uma insuficiência na dialética negativa em razão de sua
incapacidade para teorizar e acessar a dimensão profunda das
estruturas e sua participação nesses processos de supressão ocor-
ridos na dinâmica constitutiva dos conceitos122. Tal insuficiência
seria sanada através da adaptação da noção do Direito de Adorno
aos contornos teóricos da ontologia estratificada.
Os aspectos suprimidos da coisa – no processo de produção
dos conceitos – não apenas comparecem diante dela, evidenciando
a inverdade na identidade, como permanecem nas ligações dialé-
ticas existentes entre a coisa e seus aspectos suprimidos. De modo
que a negação produzida através do conceito não é capaz de elimi-
nar a presença desses pressupostos dialéticos constitutivos da coisa;
o que a negação do conceito opera é, apenas, uma contradição dia-
lética (noção proveniente do RC) entre o conceito e a coisa. Assim,

121 Ibidem, p. 169-177.


122 Ibidem, p. 171.

51
Phablo Freire

quando o formalismo jurídico (a dogmática) vai delimitar o que


é o Direito (e o que ele não é), através da produção de abstrações
(formas) jurídicas (separando o fenômeno jurídico de tudo aquilo
que não é jurídico, sob o pretexto de constituição de uma autono-
mia cientifica), produz contradições dialéticas (antinomias) através
da lógica de identidade. Em razão dela (lógica subsuntiva), emerge,
junto à forma jurídica, uma tensão irresolúvel, pois, à medida que
o conceito jurídico explica (para dentro dos territórios jurídicos e
práticas) a coisa, tornando-a instrumentalizável dentro do Direito,
também bloqueia uma compreensão jurídica dessa coisa em sua
profundidade ontológica, ao suprimir certos aspectos através da
fixação dos limites conceituais (pretenso fechamento sistemático),
obscurecendo assim o acesso amplo à realidade.123
Desse modo, a correção na dialética negativa, enquanto se-
gundo aspecto indispensável a compreensão da noção de antino-
mia jurídica, desenvolvida por Norrie, corresponde à compreen-
são da relação entre a tensão irresolúvel, derivados das dinâmicas
de supressão nos conceitos, e a estratificação ontológica da reali-
dade a partir do RC de Roy Bhaskar.
O Direito é, segundo Norrie, gerado a partir de relações
sociais e políticas historicamente situadas como uma expressão
delas. Porém, a imagem apresentada pelos juristas comunica a
natureza do Direito como um complexo de abstrações dotado de
independência e autonomia, racionalmente constituído e desco-
nectado dos demais fenômenos sociais. Um sistema de conceitos
produzidos pela lógica identitária que nega parcela da realidade
inerente às coisas. Teoria e prática jurídicas reivindicam a auto-
nomia da existência do Direito por meio do formalismo jurídico,
isto é, através de um modo de racionalização do fenômeno jurí-

123 Cf. Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p.42; The praxiology of legal
judgement, 1998, p. 546-549.

52
Dogma e Discurso

dico pretensamente capaz de produzir o fechamento do sistema


jurídico a partir da construção de categorias abstratas (conceitos)
aptas a assegurar a especificidade e o funcionamento do Direito
e sua dissociação dos fenômenos sociais.124
De acordo com Norrie, desde as tradições positivistas e
neokantianas, o pensamento jurídico ocidental postulou a con-
cepção de fechamento formal do sistema jurídico como condição
para uma prática estável e constante com vistas a sua legitima-
ção; fechamento esse operado através do conjunto de técnicas e
estratégias retóricas conhecido como formalismo.125
O processo de fechamento diz respeito a um conjunto de re-
invindicações sobre os elementos necessários, específicos e autô-
nomos, racionalmente elaborados (mais detidamente uma alter-
nância de teorias sobre o Direito na história ocidental moderna),
pelos quais o Direito alcançaria a especificidade racionalizada
em relação aos demais âmbitos da realidade social. A possibili-
dade de verter-se em um fenômeno inteiramente dissociado de
outras aspectos sociais em razão da instrumentalidade racional,
um movimento contínuo de racionalização, isto é, a construção
lógico formal de abstrações; formas jurídicas racionalmente pro-
duzidas que adquirem sua independência na elaboração e na prá-
tica dos juristas por meio da interpretação.126
Esse movimento contínuo de racionalização – operado pelo
formalismo para reconstrução dos limites sempre borráveis das
abstrações jurídicas – produz as contradições dialéticas que deixam
marcas observáveis na atuação acadêmica e nas práticas constituti-
vas da ciência jurídica desde a modernidade.127

124 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005.


125 Ibidem, p. 42.
126 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 42.
127 Idem.

53
Phablo Freire

Nas sociedades de profundos conflitos históricos, esse Di-


reito produzido pelo formalismo jurídico e seu complexo de re-
presentações ideais (abstrações) só pode ser mantido se todos os
conflitos que sustentam a contradição dialética foram excluídos
pela negação (desde a lógica subsuntiva na formação dos concei-
tos jurídicos até estratégias política e ideologicamente investidas,
conforme trataremos mais adiante). Pensemos nessa situação a
partir das assimetrias de poder presentes nas relações econômi-
cas e sociais que fundam diversas categorias abstratas do Direito
(em vários ramos como, v.g., o direito penal e civil) para logo em
seguida ter tais fundamentos negados (excluídos) de seus limites
constitutivos, como se as assimetrias sociais nas abstrações ju-
rídicas do direito penal e civil não mantivessem (antes e depois
de sua elaboração racional) qualquer relação (dialética) com os
fenômenos sociais assimétricos nas experiencias sociais tratadas
como de direito civil ou penal. Uma visão ampla das sociedades
e dos problemas que chegam aos Tribunais é (deve ser) excluída
da técnica de produção (normativa) de sentidos que o Direito se
propõe para realizar aquilo que chama de “resolução de confli-
tos”, isso, porque a adesão às perspectivas mais amplas e profun-
das causaria uma fratura no sistema pretensamente fechado e,
por conseguinte, uma reconstrução das categorias abstratas pau-
tada na inclusão do excluído, no reconhecimento e na resolução
das contradições dialéticas, isto é, no desvelamento de conteúdos
subjacentes às formas jurídicas que lhes dão sustentação (cone-
xão dialética e pressuposição existencial) ao mesmo tempo que
são retoricamente negados.128
A integridade lógica do sistema, depende, portanto, dessa
negação das circunstâncias sociais mais profundas – que não
apenas constituem as formas jurídicas de maneira implícita,

128 Alan Norrie, The praxiology of legal judgement, 1998, p. 546-549.

54
Dogma e Discurso

não-observável, como estão presentes nos efeitos observáveis


inerentes às abstrações – por meio de processos de descontex-
tualização retórica; dinâmicas de manipulação de sentidos nas
reconstruções das formas individualistas do Direito.129

2.4 Direito, prática social e o momento discursivo


O Direito é uma prática social que se realiza socialmente e
desdobra seus efeitos através de formas constrangidas por me-
canismos particulares, reais, actuais e diferenciados, relacionados
dialeticamente às relações não jurídicas mais amplas, internali-
zando seus elementos, sem, contudo, ser reduzido a nenhuma
dessas práticas externas ao Direito. Tal perspectiva, segundo
Alan Norrie, se ancora no modelo ontológico de estratificação
da realidade, correspondendo o Direito, portanto, a uma espécie
de entidade intermediária, situada entre as estruturas e a agência
humana. Desde a modernidade, as qualidades particulares que
compõem essa modalidade de prática social são, precisamente,
os traços do antinomialismo que, a seu turno, diz respeito à con-
tradição (dialética) inerente a todas as formas jurídicas: as ten-
sões irresolúveis que as formas jurídicas carregam internamente.
Para Bhaskar, a sociedade não existe independentemente
da atividade humana, tampouco é um mero produto dela130. Ao
passo que a sociedade dispõe as condições para a ação huma-
na, constrangendo-a, sua existência somente é possível em razão
dessa mesma agência: a sociedade existe na ação humana. A ação
humana, por sua vez, sempre se emerge através de alternadas

129 Alan Norrie, op. cit., p. 43.


130 Roy Bhaskar, Societies, 1998, p. 216.

55
Phablo Freire

práticas (e posições)131, todas elas internalizando dialeticamente


aspectos das demais, não sendo reduzidas uma as outras. Esse
aspecto da estratificação social, como assinala Bhaskar,132 evi-
dencia a importância e necessidade da compreensão dos modos
como as práticas operam na reprodução (ou transformação) da
sociedade; por essa razão a apreensão de uma dada prática impli-
ca o interesse relacional com as demais práticas.133
É nesse aspecto comunicacional de intercâmbio entre as
práticas – inerente ao modelo transformacional bhaskariano –,
que a Teoria Social do Discurso de Norman Fairclough compa-
rece enquanto importante recurso teórico-metodológico para
acesso do fenômeno jurídico e de seus efeitos constitutivos na
reprodução (ou transformação social). Portanto, passo agora a
apresentar as noções centrais na perspectiva fairclouguiana para,
em seguida, aproximá-las do conceito de Direito e da teorização
de Luis Alberto Warat.
Como argumentarei, a opção pela inserção das noções de
dogma e estereotipação, a partir de Warat no paradigma realísti-
co crítico (por meio dos ajustes e cuidados necessários), cumpri-
rá o papel de assinalar uma teorização jurídica latino-americana
que enfrentou o Direito como fenômeno de linguagem e, mais
precisamente, o papel da construção das formas jurídicas (dog-
mas, segundo Warat) na estereotipação do discurso jurídico e, por
conseguinte, para reprodução desse modelo de sociedade que ex-
perimentamos na contemporaneidade.

131 Vide a exposição abaixo sobre posições a partir de Rom Harré.


132 Roy Bhaskar, op. cit., p. 217.
133 Ibidem, p. 221.

56
Dogma e Discurso

2.5 Teoria Social do Discurso (TSD) e


Realismo Crítico (RC)
Para Norman Fairclough, o termo discurso corresponde a lin-
guagem como uma forma de prática social.134 Tal noção comunica
três relevantes implicações, quais sejam: em primeiro lugar, a lin-
guagem é concebida como parte da sociedade, não como algo de
alguma maneira a ela externa; existe uma conexão dialética entre
aquilo que se entende por sociedade e aquilo que se admite como
linguagem.135 Em um segundo momento, essa linguagem é apreen-
dida como processo social; o que nos encaminha para a terceira
implicação, por meio da qual a linguagem – enquanto processo
social – é socialmente condicionado, isto é, elementos linguísticos
e não linguísticos da sociedade operam concomitantemente.
A Teoria Social do Discurso (TSD) considera que entre a lin-
guagem e a sociedade não há uma relação de exterioridade, mas,
antes, uma relação dialética em que os fenômenos sociais são, em
parte, linguísticos. Dizer que os fenômenos linguísticos são so-
ciais nos leva à compreensão das questões envolvendo os usos da
linguagem no cotidiano, isso ocorre porque: quando as pessoas
falam, ouvem, escrevem ou leem, elas o fazem de uma maneira
socialmente determinada, ou seja, através de certos constrangi-
mentos previamente conformados e, ao agirem, produzem efeitos
sociais por meio desses usos da linguagem que são capazes de rea-
lizar. Mesmo quando acreditam estarem agindo de modo cons-
ciente, exteriores e fora do alcance de influências sociais, usam a
linguagem de modos determinados, em alguma medida, fixados

134 Norman Fairclough, Language and power, 2013, p. 18-19.


135 A noção de conexão dialética entre discurso (na perspectiva de Fairclough) e sociedade
(na perspectiva de Bhaskar) foi objeto de debate entre ambos os autores em suas obras.
Esse debate será trazido à baila dessas discussões no capítulo “discurso jurídico.

57
Phablo Freire

por convenções sociais. Ainda assim, esses usos da linguagem não


são inteiramente determinados pelas estruturas sociais, tendo em
vista que também são capazes de produzir efeitos suficientes para
manter (ou modificar) essas relações sociais estruturadas.136
Ao conceber o discurso como o uso da linguagem na prática
social, Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough inscrevem o con-
ceito de discurso no interior do modelo transformacional do RC
bhaskariano.137 De maneira tal que esse uso da linguagem não diz
respeito a uma atividade puramente individual, tampouco a um
reflexo inflexível de certos determinantes. O discurso como prática
social situa esse uso da linguagem como uma entidade interme-
diária na relação entre a agência humana e as estruturas sociais;
implicando alguns desdobramentos conceituais: i) o discurso cor-
responde a um modo de ação: uma forma pela qual as pessoas po-
dem agir sobre o mundo e sobre os outros; também corresponde
a “um modo de representação. Trata-se de uma visão do uso da
linguagem que se tornou familiar”; ii) enquanto entidade interme-
diária o discurso é, dialeticamente, constituído e constituinte das
estruturas sociais e da agência, pois ao passo que o discurso é cons-
tituído “moldado e restringido pela estrutura social no sentido
mais amplo em todos os níveis: pela classe e por outras relações so-
ciais em um nível societário, pelas relações específicas instituições
particulares”138, também é constitutivo das estruturas sociais ao

136 A TSD fairclouguiana passou, ao longo dos anos, por alterações na articulação de
elementos teóricos internos e, em alguma medida, no ajuste de sua ontologia. Após a
obra Discourse in late modernity: rethinking Critical Discourse Analysis, posicionamento
da TSD no RC é organizado por ele e Lilie Chouliaraki, no entanto, é mantida uma
articulação de conceitos produzidos antes dessa transição, com os devidos ajustes, tendo
em vista certas incompatibilidades com o paradigma emergentista.
137 Cf. Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007.
Veja também Norman Fairclough, Bob Jessop, Andrew Sayer. Critical realism and
semiosis, 2002.
138 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 91.

58
Dogma e Discurso

contribuir “para constituição de todas as dimensões da estrutura


social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas
próprias normas e convenções, como também relações, identida-
des e instituições que lhes são subjacentes”.139
Sobre os efeitos constitutivos do discurso (ou em termos
realísticos críticos, seus poderes causais), Fairclough ressalta
três aspectos importantes. O primeiro deles diz respeito ao fato
de o discurso contribuir “para a construção do que variavelmen-
te é referido como ‘identidades sociais’ e ‘posições do sujeito’140,
para os ‘sujeitos’ sociais e os tipos de ‘eu’141. Em segundo lugar,
o discurso contribui para constituição das relações sociais. E,
por fim, em um terceiro momento, o discurso “contribui para
construção de sistemas de conhecimento e crença”. A TSD rela-
ciona essas três funções discursivas ao conceito de significados
do discurso, a saber, as dimensões de sentido que coexistem e
integrarem em todo discurso.142

139 Idem.
140 Conforme já apresentado em nota anterior, o conceito de posições diz respeito
a um dos elementos dentro do sistema de conceitos mediadores no modelo
transformacional da atividade social. O conceito teve seu desenvolvimento
teórico realizado, no contexto do Realismo Crítico (RC), pelo filósofo e psicólogo
neozelandês-britânico, Rom Harré. Dentre as obras nas quais o conceito foi
elaborado podemos mencionar Realism rescued (1994), The discursive mind (1994)
e Motives and mechanisms (1985). Destacamos ainda duas importantes obras
para um primeiro contato com o conceito: Positioning Theory: Moral Contexts of
International Action (1998) coletânea de ensaios editada conjuntamente com Luk
Van Langenhove e o breve e assertivo ensaio escrito com Bronwyn Davies, intitulado
Positioning: The Discursive Production of Selves (1990).
141 A discussão sobre os selfs também pode ser acessada nos escritos de Rom Harré
em sua Teoria de Posicionamento (positioning theory). O debate sobre a relação da
linguagem e sua relação constitutiva do self também é tecido por Margaret Archer
em sua obra Being Human: The Problem of Agency, inclusive, articulando um diálogo
em diversos pontos com Rom Harré.
142 Norman Fairclough, op. cit., p. 91.

59
Phablo Freire

Assim, para Fairclough, o discurso “é uma prática, não ape-


nas de representação do mundo, mas de significação do mundo,
constituindo e construído o mundo em significado”.143 Buscando
a apreensão analítica do discurso, Fairclough propõe a concep-
ção tridimensional do discurso (Figura 4), reunindo três tradições
analíticas necessárias a compreensão da prática discursiva como
entidade intermediária.

Figura 4: Concepção tridimensional do discurso

Com base em Fairclough (2001, p. 101)

A TSD se propõe a viabilizar a compreensão da prática dis-


cursiva (os processos de produção dos discursos) enquanto um
momento (uma parte irredutível) dessas práticas sociais. Tal es-
quema relacional se encontra ilustrado na figura 4 acima.144 Em
sua obra postumamente publicada, Bhaskar assinalou a impor-
tância da teorização e investigação do discurso – no contexto
específico da TSD – para aprofundamento ontológico realístico

143 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 91.


144 Ibidem, p. 100-101.

60
Dogma e Discurso

crítico da compreensão da realidade social e de sua relação cons-


tituída e constitutiva com o discurso.145
O conceito de texto ocupa – para a TAD – a centralidade na
compreensão das práticas discursivas. Como é possível perceber
na figura 4, a noção de texto corresponde ao ponto de emergência
do discurso (produzido pelas práticas discursivas) na realidade
social e, como apontarei, corresponde, por razão de sua emergên-
cia, ao material empírico privilegiado nas investigações em TSD/
ADC, de maneira que sua conceituação será cuidadosamente
apresentada mais adiante.
Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough sublinham a im-
portância da compreensão do lugar e função do discurso nas aná-
lises das práticas sociais ao argumentarem que qualquer prática
articula diversos elementos da vida. Tais elementos serão por eles
chamados de momentos; o discurso é assim um desses momentos
(elementos) dialeticamente articulados nas práticas. Dizer que
a articulação entre os momentos da prática é dialética, implica
pensar cada um desses momentos como internalizando os de-
mais momentos, sem, contudo, reduzirem-se a eles.146
As práticas sociais são parcialmente discursivas, isto é, o
discurso está nelas imbricado como um de seus momentos ir-
redutíveis, figurando de três maneiras: como modos de intera-
gir, como modos de representar e como formas de identificar(-
-se). Como modo de interação, o discurso assume a qualidade
de recurso manejado pelas pessoas em suas interações para (re)
produção da vida social (cf. modelo transformacional). Quando
dizemos que o discurso figura nas práticas como representações,
na segunda maneira pela qual figura nas práticas, afirmamos que

145 Roy Bhaskar, Enlightened Common Sense: The philosophy of critical realism, 2016,
p. 102.
146 Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 37.

61
Phablo Freire

os modos de representar o mundo são discursivamente produzi-


dos, difundidos e consumidos. Representar aqui diz respeito à
prática de tornar familiar aspectos do mundo até então estra-
nhos; tal processo que guarda estreita relação com as condições
de reprodução ou transformação das relações de dominação nas
sociedades. Isso implica dizer que as representações nas práticas
discursivas podem sustentar ou contribuir para a superação de
relações assimétricas de poder.147
Os modos de representar e de interagir são articulados so-
cialmente a partir dos modos como os atores sociais identificam-
-se. As entidades intermediárias são continuamente prenhes de
novas formas sociais, novos modos de identificação, interação e
representação, o que faz do momento discursivo, enquanto ponto
de contato entre estruturas e ação (práticas), um importante as-
pecto da compreensão das dinâmicas de reprodução (ou trans-
formação) das sociedades.148
A relação dialética entre interação, representações, identifi-
cação se opera socialmente também com relações de poder e pro-
cessos ideológicos, o que nos remete a possibilidades investiga-
tivas das qualidades generativas e poderes emergentes (causais)
das práticas discursivas. No entanto, como ressaltam Choulia-
raki e Fairclough, embora a prática discursiva seja um momento
das práticas sociais, nem toda interação (prática) é discursiva.149
A práticas sociais envolvem atividade material, relações sociais,
fenômenos mentais e discurso.150 As pessoas podem interagir, v.g.,

147 Idem.
148 Cf. Norman Fairclough, Bob Jessop, Andrew Sayer. Critical realism and semiosis, 2002;
Roy Bhaskar, Enlightened Common Sense: The philosophy of critical realism, 2016.
149 Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 38.
150 Cf. Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p.
21-38; Viviane Ramalho e Viviane de Melo Resende, Análise do discurso (para)

62
Dogma e Discurso

em processos cognitivos em seus pensamentos, podem agir num


campo de alcance restrito a si mesmas ao limparem uma casa,
trocarem um móvel de lugar – uma atividade material – ou de
alguma outra forma em que seja possível dizer estar ausente o
uso da linguagem. Mas, de uma maneira predominante, as ações
e interações envolvem central e substancialmente o uso da lin-
guagem (discurso).
É possível ainda abordar esse argumento da seguinte for-
ma: o discurso corresponde ao momento semiótico das práticas
sociais, incluindo aqui a linguagem verbal (escrita, falada e em
articulação com outras semióticas, como a música no canto);
não verbal (expressões faciais, movimento corporal, gestos etc.)
e imagens visuais (fotografias, filmes); algumas interações po-
dem se dar sem que a linguagem esteja em uso. No entanto, uma
percepção mais abrangente do que corresponde esse momento
semiótico, como os usos da linguagem verbal, não verbal, assim
como dos recursos imagéticos, situa melhor a compreensão acer-
ca do alcance desse conceito de discurso.151
As práticas sociais são, de acordo com Chouliaraki e Fair-
clough, modos habituais particulares, atreladas ao tempo e lugar,
pelos quais as pessoas aplicam recursos (materiais ou simbólicos)
para agir em conjunto em suas realidades.152 Tais práticas corres-
pondem a pontos de conexão entre as estruturas abstratas, seus
mecanismos e eventos concretos (como um texto no discurso e
um ato de violência na interação social). A sociedade e as pes-
soas vivem suas vidas através das práticas sociais. Nos termos

crítica: o texto como material de pesquisa, 2011, p. 16; Alex Viskovatoff, Foundations
of Niklas Luhmann’s Theory of Social Systems, 1999; Norman Fairclough, Bob Jessop
e Andrew Sayer. Critical realism and semiosis, 2002.
151 Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 38.
152 Ibidem, p. 21.

63
Phablo Freire

de Bhaskar, em seu modelo transformacional, as práticas sociais


correspondem às entidades intermediárias identificadas entre a
estrutura e a agência.153 A partir da perspectiva da ADC, essas
entidades intermediárias articulam continuamente ação, rela-
ções sociais, sistemas de crença, valores, processos mentais, o
mundo material e discurso154
Como pontuam Ramalho e Resende, “esses elementos man-
têm entre si constantes relações dialéticas de articulação e in-
ternalização, sem se reduziram a um, tornando-se ‘momentos’
da prática”.155 Portanto, ao analisarmos o momento semiótico da
prática social, isto é, o discurso, estamos diante de contínuos pro-
cessos de articulação e internalização desse momento semiótico
com outros momentos da prática. É preciso ainda ressaltar que
o discurso possui momentos internos que também se encontram
dialeticamente articulados; são eles os gêneros, discursos e estilos
constituindo as ordens do discurso.156
As práticas discursivas no cotidiano são conformadas por
meio dessas maneiras relativamente estáveis de agir e interagir
(gêneros); representar (discursos) e identificar a si e aos outros
(estilos). Esses modos de (inter)agir, representar e identificar(-se)
estabilizam-se pelos usos reiterados, mas estão continuamente
sujeitos a alterações, ajustes e transformações na sua reprodução
cotidiana; elas internalizam não apenas aspectos uns dos outros
(modos de identificar podem articular e internalizar modos de
representar e interagir sem, contudo, reduzir-se ou confundir-se
com estes e vice-versa) como aspectos de momentos internos de

153 Roy Bhaskar, Philosophy and scientific realism, 1998.


154 Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse op. cit., p. 28-38.
155 Viviane Ramalho e Viviane de Melo Resende, Análise do discurso (para) crítica,
2011, p. 43.
156 Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 23-24.

64
Dogma e Discurso

outros discursos (um discurso oficial estatal, seus gêneros, discur-


sos e estilos, pode articular e até internalizar gêneros, discursos e
estilos de outros discursos, v.g., um discurso religioso cristão).157
Dois conceitos distintos e interligados são aqui apresenta-
dos: ordens do discurso e redes de ordens do discurso. Pelo pri-
meiro, precisamos entender as articulações e internalizações
dialeticamente possíveis e relativamente estabilizadas entre os
momentos internos de um discurso (gênero, discursos e estilo) ao
posso que; pelo segundo, referimo-nos a dinamicidade potencial
entre diferentes discursos que socialmente são produzidos e cir-
culam, estabelecendo possibilidades de articulação e internali-
zação, uma vez que os discursos não se encontram socialmente
fechados ou dissociados do caráter dinâmico transformacional
das práticas sociais.158
As articulações entre gêneros, discursos e estilos oriundos de
diferentes ordens do discurso contribuem, conforme Ramalho e
Resende, “para a construção de significados”159, isto é, a emer-
gência de significados outros, distintos daqueles que apenas se-
riam reproduzidos na relação estrutura-agência; de maneira que
a potencialidade de articulação desses elementos na tensão entre
as ordens de discurso é desdobramento tanto do aspecto criativo
na produção de eventos discursivos (agência) quanto dos cons-
trangimentos operados pelas estruturas social e semiótica. Tais
possibilidades de emergência de novos significados se situam no
cerne das tensões sociais que resultam a reprodução ou trans-
formação da sociedade, ou seja, o bojo das lutas hegemônicas; as

157 Idem.
158 Cf. Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p.
61-63; Roy Bhaskar, Enlightened Common Sense: The philosophy of critical realism,
2016, p. 102-104.
159 Viviane Ramalho e Viviane de Melo Resende, op. cit., p. 48.

65
Phablo Freire

disputas sociais pelos modos como o poder é distribuído social-


mente e como tais distribuições se estabilizam.160

2.6 Discurso e a articulação entre poder,


ideologia e hegemonia
Quando a tridimensionalidade do discurso é anunciada, de-
mandando a combinação das tradições teórico-analíticas (análises
linguísticas do texto, análises macrossociológicas das estruturas e
microssocológicas das entidades intermediárias), dispara a necessi-
dade analítica de uma articulação dos conceitos de discurso, poder,
ideologia e hegemonia. Tal movimento epistemológico se assenta
nas bases ontológicas da TSD/ADC, isto é, na premissa crítica ex-
planatória161 dessas análises que, a seu turno, centram os interesses
investigativos no desvelamento da relação entre os efeitos do discurso
e as lutas hegemônicas (como ambos se constituem reciprocamen-
te); a busca pelas conexões e relações causais inscritas nas relações
assimétricas de poder que se acham subjacentes ao discurso.162
Buscando elucidar os modos como o discurso se relaciona
com a manutenção ou transformação das relações sociais marca-
das pela assimetria de poder, Fairclough situa o conceito em uma
interface com as noções de ideologia e hegemonia, valendo-se,
respectivamente, das teorizações de Althusser e Gramsci, com
algumas restrições.163

160 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 91-92.


161 Sobre a natureza crítica da análise em ADC no contexto ontológico do RC vide Lilie
Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 59-65.
162 Viviane Ramalho e Viviane de Melo Resende, Análise do discurso (para) crítica,
2011, p. 11.
163 Norman Fairclough, op. cit., p. 116.

66
Dogma e Discurso

Partindo de Louis Althusser, Fairclough destaca três impor-


tantes asserções sobre ideologia para, em seguida, formatar um con-
ceito compatível às premissas da TSD/ADC. A primeira asserção
considera a ideologia como dotada de existência material inscrita
nas práticas das instituições. Viabilizando assim investigações das
práticas discursivas como formas materiais de ideologia. Através da
segunda, admite a ideologia como forma de interpelação dos sujeitos;
o que leva à percepção de um dos mais relevantes efeitos discursivos,
qual seja: a constituição das subjetividades em razão da interpelação
ideológica das práticas. Finalmente, a terceira asserção considera os
aparelhos ideológicos do Estado como, a um só tempo, locais e mar-
cos delimitadores de luta hegemônicas; o que nos leva ao reconhe-
cimento de que as disputas de poder e suas formas temporárias de
estabilização ocorrem no discurso e subjacente a ele, por meio dos
investimentos ideológicos nele observáveis.164
A despeito da crítica ao trabalho de Althusser165, Fairclough
elabora, com base nas citadas asserções, uma noção própria de
ideologia como “significações/construções da realidade166 [...] que
são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das
práticas discursivas e que contribuem para a produção, a repro-
dução ou transformação das relações de dominação”. Fairclough
ainda entende que os usos da linguagem (discurso) são ideológi-

164 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 116.


165 De acordo com Norman Fairclough a teoria de Althusser possui limitações
reconhecidas amplamente. Dentre elas ressalta aquela relativa ao que chama de
contradição não-resolvida entre a visão de dominação como imposição unilateral e
reprodução de uma ideologia dominante e sua concepção de ideologia como cimento
social universal que, segundo Fairclough obscurece a noção de luta hegemônica e
transformação social.
166 No momento de elaboração de sua noção de ideologia, Fairclough identifica
a “realidade” com o mundo físico, as relações sociais e as identidades sociais,
excluindo, portanto, a dimensão de linguagem dos significados ideológicos, isso
ocorre porque, para o autor, a ideologia investe a linguagem em lugar de constituí-la.

67
Phablo Freire

cos na medida em que servem em circunstâncias determinadas


para estabelecer ou manter relações assimétricas de poder. Des-
dobrando assim a percepção de que nem todo discurso é neces-
sariamente investido ideologicamente.167
Outro aspecto chave nos apontamentos fairclouguianos
para as análises da relação entre discurso e ideologia diz respei-
to às possíveis “localizações” das ideologias na estratificação da
realidade, mais especificamente se a ideologia é uma propriedade
das estruturas (operando através dos constrangimentos do siste-
ma semiótico) ou uma propriedade dos eventos discursivos (si-
tuada nos textos). Para Fairclough, uma vez que a ênfase da ADC
recai sobre as entidades intermediárias e as relações dialéticas
entre elas, as estruturas e a agência tornam-se viáveis as discus-
sões sobre ambas as posições, de modo que a ideologia seria uma
propriedade de ambas, tanto presente nas estruturas (ou seja, or-
dens do discurso) quanto em eventos (textos).168
Uma última observação acerca dos investimentos ideológicos
diz respeito aos níveis do texto em que é possível discutir as mar-
cas de ideologia. Para alguns, como argumenta Fairclough, tais
marcas estariam nos sentidos, mais precisamente nos sentidos das
palavras. A despeito de serem os sentidos das palavras importantes
aspectos semânticos da investigação dos investimentos ideológi-
cos, não são os únicos. Além deles, é possível apontar as pressupo-
sições, as metáforas e a coerência como espaço para investigação
das formas169 de investimento ideológico no discurso.170

167 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 117.


168 Ibidem, p. 118.
169 Para uma discussão mais detalhada sobre essas (e outras) categorias da ADC a fim
de uma investigação dos processos de investimento ideológico no discurso vide
Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001.
170 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 119.

68
Dogma e Discurso

Para teorizar a relação entre a mudança discursiva nos con-


textos das relações de poder, Fairclough se utiliza também do
conceito de hegemonia desenvolvido por Antonio Gramsci;171
por meio do qual se apreende a hegemonia como uma forma de
exercício do poder entre classes sociais, alcançado menos pelo uso
da força ou violência e mais pela configuração de alianças e in-
tegrações entre as forças sociais. Alianças essas nunca atingidas,
senão de maneira parcial e temporariamente, como um equilí-
brio instável entre as forças sociais. Desse modo, a hegemonia
diz respeito a um locus de constantes disputas acerca dos termos
pelos quais tais alianças podem ser mantidas ou rompidas. Daí
a percepção das relações de poder como luta hegemônica, isto é,
formas de controle social sempre parcialmente estáveis, sempre
abertas a possibilidade de transformação.172
Fairclough localiza a concepção de luta hegemônica como
articulação, desarticulação e rearticulação de elementos em rela-
ções dialéticas entre as estruturas e eventos discursivos particu-
lares. Considerando a noção de ordens de discurso como a “face-
ta discursiva do equilíbrio contraditório e instável que constitui
uma hegemonia” de modo que as ordens de discurso, por estarem
situadas como entidades intermediárias, encontram-se em cons-
tante processos de articulação e rearticulação, correspondendo,
figurando, por conseguinte, como locus privilegiado das dispu-
tas de poder, a saber, da luta hegemônica.173e174

171 Ibidem, p. 122-123.


172 Outros teóricos além de Gramsci teorizaram sobre a noção de hegemonia, cito aqui
Enerto Lachau e Chantal Mouffe como importantes referencias nos debates sobre
o tema.
173 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 123.
174 Não me detive muito neste tópico sobre quais teorias de poder julgo mais apropriadas
para estudos dentro do paradigma emergentista, mas ressalto aqui a importância
das teorias decoloniais desde os trabalhos de Anibal Quijano, Walter Mignolo,

69
Phablo Freire

2.7 O texto na TSD


Segundo Ruth Wodak, a ADC se dedica a investigações
sobre o uso da linguagem em contextos envolvendo os modos
como o poder se assenta socialmente conformando assimetrias
nas interações, a saber, os modos como elas (as assimetrias) são
legitimadas discursivamente.175 Por essa razão, as análises pro-
duzidas nesse campo não podem se limitar às investigações que
se fechem em textos concretos, limitando a compreensão desses
processos. É preciso buscar entendimento sobre o funcionamen-
to social da linguagem na dinâmica das lutas hegemônicas. Isso
posto, a TSD/ADC adota duas posturas no tocante a seu papel
crítico: a primeira rejeita o manejo de teorias e subsequentes
análises linguísticas que, limitadas por análises exclusivamente
textuais, tornam-se incapazes de operar a crítica sobre o texto,
deixando escapar a tridimensionalidade discursiva. Com a se-
gunda postura: exige que a crítica social produzida nesse campo
adote como ponto de partida as análises linguistas situadas, isto
é, textualmente orientadas.176
A premissa de que o discurso é estruturado por estratégias
de dominação, como argumenta Wodak, exige a articulação da
noção de prática discursiva enquanto dinâmicas de produção,
estratégias de circulação e interpretação (consumo) histórica do
discurso,177 dos modos pelos quais esta entidade intermediária (a
prática social e seu momento semiótico) é situada no tempo e no

Nelson Maldonato-Torres, Cesar Augusto Baldi, João Paulo Allain Teixeira, entre
tantos outros.
175 Ruth Wodak, Do que trata a ACD – um resumo de sua história, conceitos importantes
e seus desenvolvimentos, 2004, p. 225.
176 Cf. Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001; Viviane Ramalho e Viviane
de Melo Resende, Análise do discurso (para) crítica, 2011.
177 Ruth Wodak, Do que trata a ACD, 2004, p. 225.

70
Dogma e Discurso

espaço social, as maneiras pelas quais ela reproduz a sociedade e


suas assimetrias, bloqueando outras formas de emergência, bem
como as formas de mudança discursivas sempre latentes – mes-
mo quando não ativadas – nas convenções sociais. A razão de ser
da TSD/ADC repousa na possibilidade de identificar esses pro-
cessos de sedimentação das assimetrias, suas instabilidades e as
formas de oposição, as disputas pelo poder inscritas nas intera-
ções cujos efeitos são observáveis a partir do texto.
Por essa razão, os conceitos de poder, ideologia e história
são indispensáveis para a instrumentalização da TSD (e ADC),
assim como é central a compreensão do conceito de texto nesse
campo de investigações.178
O conceito de texto veiculado na ADC é o produto da ela-
boração conceitual no diálogo entre tradições analíticas distin-
tas. De acordo com Tiphaine Samoyault, Julia Kristeva partiu
da obra de Mikhail Bakhtin para cunhar a noção de texto como
um mosaico de citações; uma concepção de que o texto corres-
ponderia a um processo de absorção e transformação de outros
textos anteriores.179 A ideia, como pontua Samoyault, acaba sen-
do abstrata e deliberadamente a-histórica, o que a torna pouco
utilizável em análises críticas. Por essa razão, Philippe Sollers re-
constrói o conceito, afirmando ser o texto uma “junção de vários
textos dos quais ele é ao mesmo tempo a releitura, a acentuação,
a condensação, o deslocamento e a profundidade”.180
Conforme Ramalho e Resende, no quadro teórico da TSD/
ADC, o texto figura como “evento discursivo ligado a práticas so-
ciais”; logo, aquilo que estamos chamando de texto corresponde à
“parte discursiva empírica de eventos sociais”. Tais asserções im-

178 Idem.
179 Tiphaine Samoyault, A intertextualidade, 2008, p. 16.
180 Tiphaine Samoyault, A intertextualidade, 2008, p. 17.

71
Phablo Freire

plicam a ideia de que o texto carrega consigo traços tanto da agên-


cia individual quanto do social, equivalendo assim a um fragmen-
to da entidade intermediária que entendemos como discurso; o
texto é, nesses termos, o material empírico de acesso ao discurso.181
Na esteira dessa acepção, é possível pensar o texto como
qualquer instância da linguagem em uso. Dessa forma, a noção de
texto na TSD/ADC ultrapassa o sentido estrito (ventilado no senso
comum) de textos como produções escritas, de modo que a noção
não se circunscreve à manifestação da linguagem escrita ou oral;
o texto abarca outros sistemas semióticos, como imagéticos, ou
multimodais que, por sua vez, mobilizam distintas modalidades
semióticas, como a linguagem gestual, visual e sonora.182
O conceito de texto como parte discursiva empírica de even-
tos sociais se ancora na visão funcionalista da linguagem, por
meio da qual a TSD/ADC pode compreender o uso da linguagem
como recurso de que se valem as pessoas em suas vidas cotidia-
nas para mediar suas relações sociais, para agir sobre o mundo
e sobre outras pessoas, bem como para representar este mundo
no qual se situam; por conseguinte, a linguagem figura também
como resultado, como produto, desse uso social. Essa compreen-
são funcionalista do uso da linguagem – instrumentalizada pela
TSD/ADC –, fornece meios para a investigação dos traços dessas
ações materiais através do texto. Daí sua condição como princi-
pal material empírico por meio do qual são acessados aspectos da
agência e, para além dela, dialeticamente, níveis mais profundos
da realidade social.183

181 Viviane Ramalho e Viviane de Melo Resende, Análise do discurso (para) crítica,
2011, p. 22.
182 Ibidem, p. 14-15.
183 Ibidem, p. 22.

72
Dogma e Discurso

Ainda sobre a noção de texto e sua relação com as tradi-


ções analíticas articuladas na TSD/ADC, Fairclough propõe uma
divisão dos tópicos analíticos entre análise textual e análise da
prática discursiva. A primeira parte do procedimento em ADC, a
análise textual, é denominada “descrição”, ao passo que a segun-
da parte, a análise da prática discursiva/social, é tratada como
“interpretação”. A despeito de ser uma estratégia metodológica
necessária, a distinção entre categorias mais orientadas para a
análise textual e outras mais direcionadas aos sentidos nas práti-
cas sociais é, no dizer de Fairclough, “ilusória, porque ao analisar
textos sempre se examinam simultaneamente questões de forma
e questões de significado”, isto é, sempre que em ADC nos socor-
remos de categorias oriundas da linguística em articulação com
categorias das ciências sociais críticas (CSC); procedemos uma
decisão metodológica que considera, epistemologicamente, os
dois aspectos como indissociáveis e inscritos simultaneamente
na tridimensionalidade analítica do discurso.184
As práticas discursivas dizem respeito aos processos de pro-
dução, distribuição e consumo de textos, variando a natureza de
tais processos a depender dos tipos de discurso nos quais se ope-
ram e dos fatores sociais a eles combinados dialeticamente.185 Os
textos são produzidos de formas especificas em contextos sociais
específicos. As qualidades que determinam uma reportagem de-
rivam de práticas específicas realizadas nos contextos jornalísti-
cos situados historicamente.
A produção de textos envolve rotinas complexas, de natu-
reza geralmente coletiva, implementadas por grupos cujos inte-
grantes participam com práticas distintas em distintos estágios
da produção (v.g., a produção de um texto jornalístico escrito de-

184 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 101-102.


185 Ibidem, p. 106-107.

73
Phablo Freire

manda a investigação de fontes, cobertura de eventos, coleta de


depoimentos, práticas fotográficas, transformação das fontes em
textos escritos, por vezes acompanhados de textos imagéticos,
novas transformações, formatação do local e modo como a ‘no-
tícia’ será distribuída).186 Assim como as complexas rotinas ado-
tadas para a produção de uma notícia, podemos admitir como
rotinas altamente complexas aquelas que se implementam para
a produção dos textos jurídicos, por exemplo uma sentença no
âmbito de produção das instituições jurídicas.
Quando trata sobre a distribuição dos textos, Fairclough se
refere aos modos como os textos chegam até seus destinatários:
os consumidores de textos.187 Considerada a multiplicidade de
formas que um texto pode assumir, muitas podem ser as estraté-
gias de distribuição. Para Fairclough, as distribuições podem ser
simples ou complexas. As distribuições simples geralmente se re-
lacionam ao contexto imediato em que os textos são produzidos,
por exemplo uma “conversa casual” (texto oral): ela é entregue
aos destinatários no momento em que é produzida. De outra for-
ma, ocorre com as distribuições complexas de textos produzidos
em domínios institucionais, como os textos jornalísticos, políti-
cos ou jurídicos. Diferentemente de uma conversa casual, um tex-
to institucional demandará rotinas também para a sua distribui-
ção; geralmente já antecipadas no seu processo de produção.188
O consumo de um texto diz respeito ao modo como ele é
absorvido interpretativamente pelo destinatário. Assim, textos
são consumidos de modos diferentes quando observados os dife-
rentes recursos interpretativos disponíveis aos destinatários. Uma
notícia jornalística sobre ‘uma operação policial em uma favela’

186 Idem.
187 Ibidem, p. 108.
188 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 108.

74
Dogma e Discurso

será consumida (interpretada) de modo específico quando aces-


sada por um cidadão alheio ao contexto da abordagem, de outro
modo por um policial e, de uma terceira forma, quando inter-
pretada por um morador da comunidade onde ocorreu a ação
estatal. Além do consumo distinto em razão dos distintos recur-
sos disponíveis aos sujeitos, haverá também uma predisposição
a modos diferentes de consumo em relação a distintos tipos de
textos, por exemplo: receitas culinárias não são lidas com o rigor
normativo que uma decisão judicial exige, embora ambas sejam
prescritivas.189 Uma intimação judicial não é lida como um tex-
to humorístico, elas serão interpretadas por seus consumidores
de modos diferentes em razão do que se sabe previamente sobre
suas naturezas textuais específicas.
Não há, portanto, como compreender a noção de texto para
a TSD/ADC sem antes considerar os processos de produção, dis-
tribuição e consumo dos quais emergem esses textos.
De acordo com Fairclough, “os processos de produção e in-
terpretação são socialmente restringidos num sentido amplo”190,
o que implica dizer que os recursos interpretativos disponíveis
aos destinatários (repertórios191, normas e convenções interio-

189 Ibidem, p. 107-108.


190 Fairclough utiliza a palavra “restringir”, que na lexicalização do RC seria equivalente
a “constranger”, ou seja, quando estivermos lendo na TSD sobre as restrições a
que estão sujeitos os discurso, estamos falando dos constrangimentos da estrutura
semiótica (em relação dialética com outras estruturas não semióticas). Discurso e
mudança social, 2001, p. 109.
191 A despeito de não utilizarmos essa categoria na presente pesquisa, o conceito de
repertório desenvolvido por Jan Blommaert merece uma breve menção. Os recursos
disponíveis para determinado ator social irão constranger o campo de ação possível
para esse ator. De maneira que o acesso a esses recursos não se dá de maneira
uniforme entre pessoas numa mesma sociedade. Os repertórios permitem que as
pessoas utilizem certos recursos linguísticos de forma mais ou menos apropriada
em determinados contextos, mas nem todos acumulam os mesmos repertórios, logo,
não haverá simetria nas condições de ação dos atores sociais. Os usuários da língua

75
Phablo Freire

rizados nas dinâmicas de socialização) operam como constran-


gimentos que circunscrevem as possibilidades de consumo. Da
mesma forma que as ordens de discurso e convenções de produ-
ção orientam a produção e distribuição dos textos.
De acordo com os postulados da TSD, a crítica explanatória
dessas restrições através da investigação descritiva das marcas
observáveis nos textos é um aspecto fundamental derivado da
tridimensionalidade do discurso, viabilizando discussões sobre
as conexões “entre a natureza dos processos discursivos [produ-
ção, distribuição e consumo de textos] em instâncias particulares
e a natureza das práticas sociais de que fazem parte”192.
Considerando o conceito de texto, Fairclough recupera
a noção de intertextualidade, em Kristeva, para reposicioná-la
(como categoria analítica) na empreita da compreensão das prá-
ticas discursivas. A intertextualidade é “a propriedade que tem os
textos de ser cheios de fragmentos de outros textos”. O mosaico
de citações que ecoa nos textos permanecendo como conjunto
de vestígios da historicidade que qualquer texto carrega consigo;
textos podem ser delimitados por recortes explícitos de fragmen-
tos de textos passados ou podem articulá-los implicitamente.
Um texto pode assimilar, contradizer ou ecoar outros.193

têm repertórios contendo diferentes conjuntos de variedades, e esses repertórios


são o material com o qual eles se comunicam; eles determinarão o que as pessoas
podem fazer com a linguagem. As pessoas, consequentemente, não são inteiramente
“livres” quando se comunicam, são constrangidas pelo alcance e estrutura de seus
repertórios, e a distribuição de elementos dos repertórios em qualquer sociedade
é desigual. Tal desigualdade de repertórios exige que usemos um pano de fundo
sociolinguístico para a análise do discurso, porque o que as pessoas realmente
produzem como discurso será condicionado por sua formação sociolinguística.
Discourse: a critical introduction. 2005, p. 13-37.
192 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 109.
193 Ibidem, p. 114.

76
Dogma e Discurso

Portanto, a intertextualidade como recurso analítico das práti-


cas discursivas pode ser observada, em termos de produção, quando
recuperamos a historicidade presente no texto, à medida que um
texto se torna acréscimo a cadeias de comunicação anteriores. Em
termos de distribuição a intertextualidade, contribui para identificar
as redes parcialmente estáveis pelas quais os textos se movimentam,
as formas de transformação das entregas que se tornam predizíeis
(v.g., um texto político geralmente se torna um texto jornalístico e, a
depender do contexto político, um texto jurídico será transformado
em texto jornalístico e este último em conversação); em termos de
consumo (interpretação), a intertextualidade acentua o fato de que
um texto nunca é apenas um “texto em si mesmo”, nunca detém em
si todos os sentidos necessários à sua compreensão, demandando
outros textos para seu adequado consumo.194
A intertextualidade, enquanto categoria analítica, se con-
verte em uma estratégia de acesso ao aspecto linguístico da his-
toricidade que se encontra inscrita no texto. Para Fairclough, “a
inserção da história em um texto [...] quer dizer que o texto ab-
sorve e é construído de textos do passado”,195 de modo que “o
texto responde, reacentua e retrabalha textos passados e, assim
fazendo, ajuda a fazer histórias e contribui para processos de mu-
dança mais amplos, antecipando e tentando moldar textos”.196 E
mais, reproduz formas sociais assimétricas ao ecoar textos, es-
tendendo-os historicamente sem questioná-los ou, ainda, rea-
firmando a legitimidade dos arranjos que eles carregam. Dessa
percepção emerge a relação pontuada por Fairclough entre inter-
textualidade e hegemonia.197

194 Idem.
195 Ibidem, p. 134.
196 Idem.
197 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 135.

77
Phablo Freire

A potencialidade intertextual para produção de novos tex-


tos, reproduzindo ou alterando as lutas hegemônicas inscritos
nos textos que responde, reacentua e retrabalha, não é algo que
esteja inteiramente à disposição dos agentes sociais. A produção
textual sofre constrangimentos estruturais e em razão disso, é
encontrada parcialmente condicionada em sua realização, estan-
do, entretanto, também parcialmente aberta a desvios, recons-
truções e giros198 . A historicidade que constitui os textos permite
que eles figurem socialmente como importantes recursos consti-
tutivos para reprodução ou transformação. Todavia, “a teoria da
intertextualidade não pode ela própria explicar essas limitações
sociais [...] ela precisa ser combinada com uma teoria de relações
de poder e de como elas moldam (e são moldadas por) estruturas
e práticas sociais”.199
A capacidade dos textos serem constituídos por elementos
de outros textos, materializa-se de maneiras distintas, o que im-
plica formas diferentes de análise, como pontua Fairclough ao
diferenciar a intertextualidade manifesta da intertextualidade
constitutiva ou como chamará o autor, interdiscursividade.200 A
diferença reside nos modos como o texto que se analisa responde,
ressoa e retrabalha seus anteriores. Na intertextualidade mani-
festa “outros textos estão explicitamente presentes no texto sob
análise: eles estão ‘manifestamente’ marcados ou sugeridos por
traços na superfície do texto”; de outro modo, na interdiscursivi-
dade (ou intertextualidade constitutiva) “um texto pode ‘incor-
porar’ outro texto sem que o último esteja explicitamente sugeri-

198 A expressão giro aqui empregada diz respeito aos processos decoloniais de
desprendimento epistêmico: giro decolonial.
199 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 135.
200 Ibidem, p. 136.

78
Dogma e Discurso

do [...] o texto [...] é a configuração de convenções discursivas que


entram em sua produção”201.
Destarte, ressaltamos aqui a relevância da estratégia tridi-
mensional na TSD/ADC de incorporação das diferentes tradi-
ções analíticas como forma não apenas de combinação dessas
teorias, que elucidem as relações entre a intertextualidade (e in-
terdiscursividade) dos textos e as lutas hegemonias, como tam-
bém de possibilidade para discussão sobre poderes causais, que
do texto emergem em razão desses processos.
A TSD/ADC por meio da tridimensionalidade do discurso
estende a noção de poderes causais da RC ao texto, estabelecendo
a premissa de que os textos operam efeitos causais, ou seja, cons-
tituem o social, acarretando a reprodução ou mudança social. A
TSD/ADC dispensa especial atenção a compreensão dessas re-
lações causais entre sociedade e linguagem. De modo a apontar
como efeitos causais de textos as mudanças por eles produzidas
no conhecimento social (e em razão dele, no sistema de crenças e
identidades); nas ações, nas relações sociais e no mundo material
(possibilitando comportamentos individuais ou coletivos, desde
padrões de consumo a guerras)202.
A relação de conexão dialética entre discurso e sociedade,
em especial no tocante aos efeitos causais dos quais são dotados
os textos, abre a percepção para o reconhecimento de práticas
discursivas contextualizadas como “mecanismos capazes de ati-
var ou bloquear poderes causais”; figurando, v.g., dentre tais me-
canismos as seleções de determinados textos para interpretação
intertextual de eventos, implicando a legitimação (reprodução ou
transformação) de modos particulares de relações sociais.203

201 Idem.
202 Viviane de Melo Resende, Análise de discurso crítica e realismo crítico, 2009, p. 23-24.
203 Ibidem, p. 24.

79
Parte II
3 O Dogma

A noção de texto jurídico deriva da ideia de que as práticas


discursivas jurídicas produzem seus eventos concretos (textos)
com alguma diferenciação204 em relação aos eventos produzidos
nas demais práticas. A prática discursiva jurídica enquanto mo-
mento semiótico da prática social jurídica produz, faz circular
e viabiliza o consumo de textos jurídicos, os quais, a seu turno,
contêm conceitos diferenciados por uma forma específica de nor-
matividade: a normatividade jurídica. Chamarei tais conceitos
de dogmas, instrumentalizando aspectos da teoria produzida por
Luis Alberto Warat, conforme argumento que passo a expor.
A teoria crítica do Direito como linguagem postulada por
Warat possui pontos de divergência em relação à teorização de-
senvolvida por Alan Norrie, sobretudo no tocante a ancoragem
ontológica realista crítica e seu debate acerca dos efeitos causais
do Direito enquanto entidade intermediária e espécie de socia-
lização. No entanto, é possível identificar pontos relevantes de
convergência entre os dois pensadores, de maneira que minha
articulação do conceito de dogma como produto das práticas dis-
cursivas jurídicas resulta da aproximação desses três campos: a
TSD oferecida por Nornam Fairclough, a teoria realista crítica
delineada por Alan Norrie e as provocações epistemológicas de
Luis Alberto Warat. A seção a seguir será dedicada às aproxima-
ções entre Warat e Norrie, para localizar a noção de dogma no
bojo da ontologia realista crítica.

204 Estou aqui fazendo referência à ideia de quase-autopoiese ventilada por Bhaskar e
a produção de conhecimento nas ciências sociais.

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Phablo Freire

Antes de tratar dos pontos de convergência entre as des-


crições e os interesses produzidos por Luis Alberto Warat (e seu
surrealismo205) e Alan Norrie (em seu realismo dialético crítico),
grifarei os aspectos nos quais os autores se distanciam; impli-
cando dizer que os usos teóricos que articularei neste trabalho
não correspondem a uma mera justaposição, mas, antes, uma
reconstrução crítica de aspectos teóricos específicos, ensaiando
uma contribuição para a teoria crítica do Direito no interior da
ontologia realista dialética crítica bhaskariana.
Luis Alberto Warat classifica seu pensamento como surrealis-
ta ; ele assim procede ao fixar distinções entre sua forma de pensar
206

epistemologicamente o Direito e aquelas manejadas no jusnatu-


ralismo, positivismo e realismo jurídicos. Assim, antes de expor o
que seria – para Warat – o surrealismo, vejamos como o autor com-
preendia as mais preeminentes correntes teóricas no Direito.207
Em apertada síntese, Warat defendia que “as correntes do
direito natural, do positivismo jurídico e do realismo jurídico208

205 Cf. Luis Alberto Warat, Manifesto do Surrealismo Jurídico, 1988; A pureza do
poder: uma análise crítica da teoria jurídica, 1983; O direito e sua linguagem, 1995;
Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade, 2002;
Manifesto do Surrealismo Jurídico, 1988.
206 As menções a André Breton feitas por Warat ao longo da obra “Manifesto do
surrealismo jurídico”, evidenciam a influência do autor francês de “Manifestes du
surréalisme”. O surrealismo de Breton apregoa uma crença na realidade superior
de formas associativas de compreensão da realidade rejeitadas pela racionalidade
moderna; advoga a onipotência do sonho como forma de pensamento ativa no
mundo: uma forma de automatismo psíquico como modo de desmitificar a realidade
mistificada no ocidente. É possível perceber forte influência do surrealismo na
produção de Warat.
207 Luis Alberto Warat, Manifesto do Surrealismo Jurídico, 1988.
208 O realismo de que trata Warat não apenas é distinto do Realismo Crítico bhaskariano
como é igualmente criticado por este último, ao considerar as demais perspectivas
ditas ‘realistas’ como irrealistas, valendo-se para tanto do critério teórico da
estratificação da realidade.

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Dogma e Discurso

poderiam ser vistas como propostas filosóficas reducionistas, na


medida em que cada uma delas privilegia uma das funções da
filosofia do Direito em detrimento das demais”209. Tais funções,
segundo Warat, seriam: a deontologia, a ontologia e a fenome-
nologia. A primeira “trata de esclarecer os valores supremos aos
quais se vincula o Direito”210; a segunda “estuda o ser e a natureza
fundamental do Direito, procurando responder à pergunta sobre
sua essência”211, ao passo que a última corresponderia ao “aspec-
to da Filosofia do Direito que tem como função pensar o Direito
enquanto ação na realidade social [...] o terreno dos comporta-
mentos efetivos dos homens que vivem em sociedade, de seus
interesses opostos, das ações e reações”.212
Desse modo, “o jusnaturalismo monstra preocupações predo-
minantemente deontológicas, o positivismo jurídico preocupações
ontológicas e o realismo jurídico preocupações fenomenológicas”.213
A avaliação de Warat também se dirige às limitações epistemoló-
gicas que cada uma das correntes (a partir de seus muitos teóricos)
acabam por enfrentar. Senão vejamos: “o pensamento jusnaturalista
[...] postula a existência de um direito natural, transcendente, essen-
cialmente justo e intuitivamente compreendido [cujos] atributos,
porém não podem ser empiricamente verificados, e, portanto, não
se pode determinar sua verdade”.214 “O jusnaturalismo, segundo
Kelsen, faz-nos crer que existem normas que não precisam ser esta-

209 Luis Alberto Warat, Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, 2004, p. 69.
210 Ibidem, p. 66.
211 Ibidem, p. 67.
212 Ibidem, p. 68.
213 Ibidem, p. 59.
214 Ibidem, p. 65.

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Phablo Freire

belecidas por um ato qualquer. Elas espontaneamente valem, ou se


fazem imediatamente válidas”.215
Esse aspecto de imanência postulado pelo jusnaturalismo
para as normas jurídicas foi questionado pelos positivistas e,
dentre eles por Kelsen que, como aponta Warat, foi considerado
entre os juristas como “o mais importante e influente filósofo do
Direito do nosso século”216e217. Kelsen, como frisa Warat, estava
menos preocupado em descrever o que seria a ciência jurídica do
que propriamente o Direito através da formulação de um concei-
to. Considerando o positivismo em Kelsen e para além dele, “o
positivismo jurídico orienta-se claramente no sentido de carac-
terizar cientificamente o conceito de Direito. Assim, o Direito é
apresentado como um sistema de normas que dão sentido jurí-
dico às ações sociais”.218 Warat assevera que “a teoria positivista
centra-se no desenvolvimento de uma ciência formal fundada na
redução dos comportamentos sociais, que são apreendidos tão
somente nos limites já estabelecidos por uma estrutura norma-
tiva previamente estabelecida”,219 o que para Warat corresponde
a um reducionismo do acontecimento jurídico que desdobra im-
plicações ideológicas severas.
Para essa corrente, a ênfase recai sobre a tomada do “Direito
em seus vínculos com a realidade social, inclusive participando
efetivamente de suas transformações”. Os realistas, como aponta
Warat, negam “que as normas jurídicas possibilitem uma previ-
são das infinitas consequências jurídicas, os realistas chegam a
demonstrar um exagerado ceticismo em face das ditas normas

215 Ibidem, p. 73.


216 Warat realiza sua obra e posicionamento, predominantemente, a partir do século XX.
217 Luis Alberto Warat, Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, 2004, p. 70.
218 Ibidem, p. 71.
219 Ibidem, p. 77.

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Dogma e Discurso

gerais. Negando-lhe todo valor”. Isso, porque, para eles, as nor-


mas gerais corresponderiam a um conjunto de enunciados meta-
físicos, servindo tão somente às funções retóricas de justificação
das decisões dos juízes.220
Segundo Warat, “positivismo e jusnaturalismo são, efetiva-
mente, duas formas análogas de tornar legíveis os textos legais atra-
vés de expressivas construções racionais”221, de maneira que aproxi-
ma as duas correntes ao dirigir-lhes a crítica. As funções sociais da
dogmática no direito positivo se aproxima em muito da doutrina
jusnaturalista, pois ambas recorrem “à construção de um sistema
ideal de controle e legitima-o. Os pressupostos ideológicos da dog-
mática não confessos, são coincidentes com os do jusnaturalismo”.222
Sobre o realismo jurídico, Warat questiona os limites do que
a corrente entende por Direito, na medida em que “o Direito pro-
duzido pelos juízes na aplicação das leis gerais”223 é a totalidade
do fenômeno jurídico; para os realistas “o Direito é o que os juízes
dizem ser”. Segundo Warat, a tentativa de estabelecimento de uma
ciência jurídica em bases empíricas que limita “as sentenças judi-
ciais [como] únicos enunciados que satisfariam a exigência dessa
ciência”224, acabaria por excluir da compreensão jurídica toda uma
complexidade social que além de integrar o Direito, viabiliza sua
sustentação, inclusive por meio de estratégias ideológicas.
Ultrapassando todas essas perspectivas, Warat vai buscar um
outro fundamento para sua defesa epistemológica do Direito; sus-
tentando ser o direito um fenômeno de linguagem que não pode

220 Ibidem, p. 68.


221 Ibidem, p. 77.
222 Luis Alberto Warat, Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da
modernidade, 2002, p. 24.
223 Luis Alberto Warat, op.cit., p. 68.
224 Luis Alberto Warat, Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, 2004, p. 69.

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Phablo Freire

ser compreendido exclusivamente dentro dos limites da linguís-


tica e, menos ainda, a partir da racionalidade instrumental mo-
derna.225 Para Warat, a realidade do Direito não estaria na decisão
judicial, mas sim na norma que, a seu turno, deveria ser admitida
enquanto fenômeno de linguagem apenas compreensível a partir
de uma outra forma de racionalidade: o surrealismo.226
A ciência jurídica (com ênfase na dogmática como seu mé-
todo), segundo Warat, ancorar-se-ia na possibilidade do discurso
jurídico como clausura das condições de conhecimento do fenô-
meno jurídico, limitando as formas de saber e garantindo a re-
-produção institucional de subjetividades (sujeitos aptos a repro-
duzir o modelo jurídico vigente)227. A racionalidade moderna e o
formalismo jurídico inseriram na vida cotidiana, como denuncia
Warat, uma cisão entre o que é racional e o que não é228. Tal sepa-
ração posiciona o que é produto da racionalidade em um polo de
legitimidade, ao passo que tudo o que esteja fora dessa formata-
ção é percebido como ilegítimo e menos humano: a própria gama
de sentimentos que integram a realidade social e nos ajudaria
a compreender as contradições jurídicas é excluída desse lugar
legítimo. A realidade racionalmente constituída reduz a expe-
riência e aliena as formas humanas de acesso as possibilidades
concretas de alteração social e correções no fenômeno jurídico.
Como defende Warat, é preciso uma racionalidade surrealista
para promoção da saída de tais limites alienantes229. O surrealis-

225 Luis Alberto Warat, Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da
modernidade, 2002, p. 19.
226 Cf. Luis Alberto Warat, Manifesto do Surrealismo Jurídico, 1988; O direito e
sua linguagem, 1995; Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da
modernidade, 2002.
227 Luis Alberto Warat, Manifesto do Surrealismo Jurídico, 1988, p. 35.
228 Ibidem, p. 14.
229 Ibidem, p. 16.

88
Dogma e Discurso

mo convoca então as artes e a lógica do sonho (enquanto metáfo-


ra para a poesia em movimento) como estratégia de ruptura com
a solidez formal da realidade constituída dentro dos limites dos
saberes jurídicos na modernidade. “O surrealismo convida a ter
outra atitude frente ao saber [...] uma proposta de uma imagina-
ção democrática, inventiva, cheia de incertezas. Uma imagina-
ção que nunca fica a serviço da relação saber-poder”.230
Para Warat, o Direito se realiza através da linguagem, por
meio da incidência de outros fenômenos situados para além da
linguagem, como a ideologia, a política e as relações de poder.
O Direito não corresponde, para ele, a um complexo metafísi-
co de prescrições (jusnaturalismo), tampouco a um conjunto de
normas racionalmente ordenadas (positivismo), também não se
resume àquilo que os juízes dizem ser (realismo). O Direito é o
produto de significados enclausurados por processos ideológicos,
que asseguram a reprodução da sociedade e de suas assimetrias,
de modo que o acesso e a compreensão dessa “realidade” deman-
da artifícios surreais, que impliquem novas estratégias de ruptu-
ra com as técnicas tradicionais de produção de conhecimento.231
O debate waratiano é, sobretudo, uma discussão sobre epis-
temologia do Direito. Sobre as condições de compreensão das
fissuras entre a casca autorreferenciada do Direito (como objeto
abstrato do conhecimento, racionalmente fechado em si mes-
mo) e tudo aquilo que se afirma não ser o Direito, mas achado
em seu interior, incrustrado em suas estruturas, visível através
de suas frestas. Trata-se de um debate sobre suas contradições
fundantes. Como buscamos tangenciar, a discussão surrealista
em Warat se aproxima daquilo que poderia ser admitido como

230 Ibidem, p. 22-23.


231 Luis Alberto Warat, Manifesto do Surrealismo Jurídico, 1988.

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Phablo Freire

um esforço inicial de uma provocação ontológica232 necessária


para seus apontamentos epistemológicos, o que nos levaria a re-
conhecer um distanciamento entre seu pensamento e as bases
ontológicas manejadas por Norrie.
Assim, a crítica epistemológica waratiana, à medida que
se distancia dos limites positivistas e se desvia das reduções do
realismo jurídico, deixa certas lacunas (sobretudo ontológicas),
o que nos instiga a pensar estreitamentos entre os ecos teóricos
ouvidos a partir dos realismos de Warat e as proposições feitas
por Norrie; o que passo a tratar a seguir.
Quatro aspectos centrais na delimitação conceitual do Di-
reito em Norrie233 podem ter seus ecos ouvidos nas proposições
waratianas, quais sejam: i) o Direito como uma forma de prática
social; ii) a relação dialética como constitutiva do Direito; iii) o
fechamento fictício como contradição dialética.
Em relação a concepção do Direito como uma forma de prá-
tica social: Norrie sustenta que o Direito corresponde a uma forma
específica de sociabilidade enraizada em relações sociais mais am-
plas, que lhes são subjacentes.234 De modo que a compreensão do
fenômeno jurídico demandaria a busca pela historicidade dessas
relações, uma procura pautada por uma ontologia de profundidade
que viabilize o acesso às estruturas e relações sociais que lhes dão
sustentação e que são por ele reproduzidas. As formas jurídicas

232 Utilizamos aqui a expressão “provocação ontológica” em razão de não haver, nos
textos waratianos, uma discussão profunda sobre uma ontologia a partir da qual
filie suas proposições, a despeito de afirmar explicitamente a rejeição às bases
ontológicas do jusnaturalismo, positivismo e realismo jurídicos. Warat flerta com
o surrealismo, mas não chega a travar uma discussão satisfatória sobre qual seria
a “realidade” na qual sua epistemologia seria aplicável.
233 Cf. Alan Norrie, The praxiology of legal judgement, 1998; Law and the beautiful
soul, 2005.
234 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 32.

90
Dogma e Discurso

aparecem tão somente como fenômenos superficiais que precisam


ser explicados em sua conexão com relações sociais distintas do
fenômeno jurídico e mais amplas.235 Por sua vez, em seus aponta-
mentos, Warat assinala a necessidade da acepção do “fenômeno
jurídico em seu sentido mais amplo como acontecimento humano,
social, moral, político e histórico”236, uma vez que o “sistema jurí-
dico [...] só pode ser devidamente pensado no espaço mais amplo
da sociedade, onde a moral e a política não sejam relegadas ao pla-
no da subjetividade ou da irracionalidade”.237
No tocante à relação dialética como constitutiva do Direito: a
noção de conexão dialética corresponde, em Norrie, ao pressuposto
ontológico de conceito de Direito como prática. Dizer que o Direito
é constituído em relações dialéticas implica pensar que o ele – en-
quanto prática social – é uma entidade (intermediária) autônoma e
inconfundível com outras formas de práticas, porém, seus elemen-
tos internos estariam em uma relação sincrônica e inseparável com
elementos de outras entidades, de tal maneira que o Direito pressu-
põe essencialmente outras entidades.238 Um aspecto importante da
noção de relação dialética é a irredutibilidade das entidades, pois,
como ressalta Norrie, a despeito de sincrônica e conjunturalmen-
te relacionados, as entidades não podem ser reduzidas umas as
outras239. Por sua vez, Warat chama a atenção para o fato de que o
discurso jurídico “supõe um conjunto de relações extralinguísticas
no qual está inscrito”240. Evocando assim algo próximo ao conceito
de conexão dialética entre o Direito e as dimensões sociais exter-

235 Ibidem, p. 11.


236 Luis Alberto Warat, Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, 2004, p. 52.
237 Idem.
238 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 40.
239 Idem.
240 Luis Alberto Warat, O direito e sua linguagem, 1995, p. 83.

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Phablo Freire

nas a ele; Warat segue para distinguir, a seu modo, a relacionalidade


de irredutibilidade, quando pontua ser necessário “salientar que tal
pressuposto [relação com os âmbitos da ética e política] não implica
uma forma de reduzir o Direito ao plano da moral ou político, mas
sim garantir os vínculos necessários”.241
A respeito do fechamento fictício do sistema jurídico como
contradição dialética: Norrie dedica especial atenção em razão
de ser este o aspecto central de sua teoria. A contradição dialética
enquanto fenômeno ontologicamente profundo, acessível através
da conexão dialética, é o que sustenta a noção de antinomias jurí-
dicas.242 A construção dos dogmas jurídicos, das formas abstratas
no Direito teriam seu processo concluído quando do fechamento
sistêmico, a saber, quando o dogma é inteiramente desconectado
da realidade social que o origina (do acontecimento social ou da
lei) e tomado como um recurso abstrato, ahistórico e atemporal, à
disposição dos operadores do Direito. O processo de rompimento
retórico da interconexão fundamental entre as relações sociais de
base e o dogma constituído corresponde, para Norrie, à contradi-
ção dialética inscrita nas formas jurídicas; procedimento derivado
da lógica identitária constitutiva dos conceitos (jurídicos) que car-
rega consigo a tensão irresolúvel de explicar e bloquear, simulta-
neamente, o acesso ao conhecimento sobre as coisas.243
O Direito é um produto de relações sociais e políticas mais
amplas e não pode ser outra coisa senão uma expressão de tais
relações. No entanto, o formalismo jurídico reivindica a negação
de tais conexões, colocando essas entidades fora dos limites do
que “é o Direito”. Ainda de acordo com Norrie, tal fechamento
nunca é plenamente concluído, pois, em razão da conexão dialé-

241 Luis Alberto Warat, Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, 2004, p. 54.
242 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 41.
243 Idem.

92
Dogma e Discurso

tica que é inerente ao fenômeno jurídico enquanto prática social,


os elementos negados sempre comparecem às bordas limitantes
da exclusão.244 Daí a discrepância entre a realidade do Direito
e a sua forma, isto é, o antinomialismo jurídico. A despeito de
inexistir na obra waratiana qualquer menção aos delineamentos
ontológicos da contradição dialéticas, o processo de fechamen-
to fictício do dogma é algo que chama, em diversas passagens,
sua atenção: “a montagem mítica [dogmática] que impregna o
discurso jurídico ocidental [...] produz um campo simbólico,
um eco de representações e idéias (sic) que serve para dissimu-
lar conflitos e antagonismos que se desenvolvem fora da cena
linguística”,245 isso, porque “eles [conflitos/contradições] existem
na história e são negados por um conhecimento convertido em
uma potência independente, abstrata, [...] as chamadas ciências
jurídicas”.246 Por fim, Warat entende o formalismo jurídico e seu
pretenso fechamento como “constitutivo de múltiplos efeitos má-
gicos e fortes mecanismos de ritualização, que contribuem para a
ocultação e clausura das técnicas de manipulação social”.247

3.1 Dogma e Antinomialismo


De acordo com Warat, “comumente, no pensamento jurídico,
quando se menciona a ciência do direito, faz-se referência à dog-
mática jurídica [sendo] este o conceito tradicional”.248 A função da

244 Ibidem, p. 42.


245 Luis Alberto Warat, Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da
modernidade, 2002, p. 58.
246 Idem.
247 Ibidem, p. 57.
248 Luis Alberto Warat, Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da
modernidade, 2002, p. 15.

93
Phablo Freire

dogmática na produção científica do Direito consiste em fornecer


as condições necessárias à integração do sistema, por meio de um
processo de estruturação lógico-formal que resultaria num sistema
organizado através de “conceitos, noções, princípios, aforismas e
instituições com as quais se pretende completá-lo e fechá-lo”. Essa
tarefa construtiva que assume a dogmática é realizada por meio da
adoção do método técnico-jurídico ou lógico-abstrato que se im-
plementa através de “operações próprias” ordenadas em três eta-
pas distintas.249 Essas três etapas corresponderiam, de acordo com
Warat, ao formalismo jurídico implementado por meio de “ope-
rações de análise e síntese, [técnicas] de dedução e indução que
dariam como resultado uma série de conceitos e princípios por
meio dos quais se obteria uma interpretação clara das regras legais
integrantes do sistema positivo”.
A crítica waratiana recai precisamente sobre esse intervalo
operacional. Segundo Warat, tais operações anunciadas como ri-
gorosos critérios lógico-formais em lugar de constituir o objeto
da ciência jurídica e seu fechamento sistêmico – a saber, a pre-
tensa configuração de um conhecimento descritivo situados nos
limites de uma sistematicidade formalmente fechada –, estaria
constituindo um discurso persuasivo, política e ideologicamente
investido.250 O formalismo jurídico (como veremos adiante: as
etapas do método dogmático) corresponderiam a “mecanismos
de ritualização que contribuem para a ocultação e clausura das
técnicas de manipulação social”. Por essa razão, estava Warat in-
teressado em desvelar os modos como tais ocultamentos se ope-
ravam na prática discursiva de produção, circulação e consumo
dos dogmas jurídicos.251

249 Ibidem, p. 16.


250 Ibidem, p. 57.
251 Idem.

94
Dogma e Discurso

Os investimentos políticos e ideológicos252 impregnados reto-


ricamente no discurso jurídico devem ser analisados, conforme
Warat, através de recursos metodológicos capazes de dar conta dos
modos como se inscrevem silenciosamente no discurso tais conteú-
dos não jurídicos. De modo que “a análise das verdades jurídicas
exige a explicitação das relações de força que formam o domínio
de conhecimento e sujeitos como efeitos de poder e do próprio
conhecimento”.253 O que nos leva diretamente às análises de discurso
capazes de desvelar os modos e estratégias pelas quais essas etapas
do método dogmático convertem persuasão em descrição.
Quando tratarmos das etapas do método dogmático ana-
lisado em Warat, pensaremos nelas como estratégia de análise
articulada em conjunto com a ADC, portanto, utilizaremos a
expressão modos de operacionalização dogmática, ao nos referi-
mos a essas etapas, tendo em vista que, na esteira do pensamento
waratiano, estaremos nos referindo não ao que o formalismo ju-
rídico anuncia, mas ao que ele efetivamente produz no interior
do discurso jurídico, em termos de operacionalização intertex-
tual de significados das palavras – a manipulação do significado-
-potencial e as dinâmicas de lexicalização.254
A dogmática jurídica se implementa através de três etapas,
a saber, três modos de operacionalização dogmática. A primeira
delas “compreende a época da conceitualização dos textos legais”.
Nesse momento conceitos são elaborados com a intenção de
constituírem e pertenceram a este campo de conhecimento que
se chamará de ciência jurídica. Nessa etapa sustenta-se uma per-

252 Vide o debate sobre a teoria social do discurso de Norman Fairclough no próximo
capítulo.
253 Luis Alberto Warat, Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, 2004, p. 28.
254 Luis Alberto Warat, Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da
modernidade, 2002, p. 17.

95
Phablo Freire

cepção de que tais conceitos são “extraídos” das leis e das fontes
do Direito. Há, portanto, um forte traço do formalismo quando
anuncia esta etapa metodológica restrita a reprodução e explica-
ção dos conteúdos postos no direito vigente. “Essa instância me-
todológica identifica o significado do termo com o conceito refe-
rencial, o que conduz ao estabelecimento de um conteúdo exato
para a lei”, isto é, busca-se nesse momento o enclausuramento do
significado-potencial, através de sua estabilidade. Desdobrando
assim a ideia ilusória de “um conteúdo exato para a lei”, qual
seja, “o conceito que seria então uma categoria conceitual estável,
indiscutível, com significação fechada”.255
Após a fixação do significado-potencial nos conceitos, a dog-
mática avança para a segunda etapa, considerada por Warat como
o núcleo do formalismo jurídico. No segundo modo de operaciona-
lização dogmático ocorre a fixação dos dogmas através da “elabo-
ração de preposições, categorias e princípios obtidos a partir dos
conceitos jurídicos, extraídos dos textos legais”.256 O dogma cor-
responde às frases nas quais conceitos são articulados. Frases como
“o casamento indissolúvel” e “os contratos devem ser cumpridos”
são utilizadas por Warat257 como exemplos dessa articulação entre
conceitos que constituem um dogma. Norrie, ao tratar sobre es-
ses conceitos ficticiamente fechados pelo formalismo, utiliza como
exemplo a figura abstrata do “sujeito de direitos”.258
Por meio do dogma temos um conceito (casamento, contra-
to, coisa julgada, ato jurídico perfeito, direito adquirido) articula-
do com outro conceito ou com alguma forma de adjetivação que
resulta uma espécie de comportamento específico (indissolubili-

255 Idem.
256 Ibidem, p. 18.
257 Idem.
258 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 42.

96
Dogma e Discurso

dade, adimplência, respeito), fixando uma relação esperada que é


inscrita em uma frase (os casamentos podem ser dissolvidos; os
contratos devem ser adimplidos; deve-se respeito à coisa julgada
etc.). Os dogmas, como postula Warat, “ordenam teoricamente
o funcionamento do conjunto das normas legais vigentes”259, re-
duzindo comportamentos esperados para as categorias intelec-
tuais lógica e formalmente produzidas. Como veremos a frente,
os dogmas, na perspectiva waratiana, correspondem a “diretrizes
retóricas ou estereótipos”.
Por fim, a terceira etapa diz respeito à sistematização ou ao
fechamento do sistema. Os dogmas estabelecidos são postos em
correlações coesas. São fixadas séries de interações conceituais
entre os dogmas, plasmando uma ideia de unidade, de autor-
referência e clausura. Dessa noção de unidade e continuidade
desdobram-se os traços de universalidade e invariabilidade que
sustentam a ideia de aplicabilidade desses mesmos dogmas para
resolução dos problemas. Esse estágio da dogmática corresponde
à “constituição de uma disciplina específica, objeto de conheci-
mento, um sistema”. O terceiro modo de operacionalização dog-
mática resulta em uma “teoria geral do direito”.260
A dogmática incide, portanto, sobre as palavras, produzin-
do a partir delas conceitos desenvolvidos no interior da prática
discursiva jurídica organizados em frases. É necessário também
considerar os modos de operacionalização dogmática como não
encadeados em uma sequência rígida. Isso ocorre porque é pos-
sível que identifiquemos – nas práticas jurídicas – a reconstru-
ção de um conceito já fixado e inserido no sistema; ao passo que
também podemos verificar a reconstrução de dogmas e novos

259 Luis Alberto Warat, Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da
modernidade, 2002, p. 18.
260 Ibidem, p. 19.

97
Phablo Freire

processos de pretenso fechamento (exclusão e enclausuramento


das condições sociais ditas externas ao Direito).
Finalmente, para que possamos situar os modos de operação
dogmática na perspectiva fairclouguiana das práticas discursivas,
precisamos ressaltar que as relações de ocultamento e fechamen-
to não se dão entre processos dissociados. Não se trata, v.g., de
conteúdos jurídicos justapostos a conteúdos políticos retórica e
ideologicamente ocultados; precisamos retomar a noção de pres-
suposição essencial das conexões dialéticas para compreender que
a prática jurídica em seu momento semiótico (discursivo) inter-
naliza (por meio dos modos de operação dogmáticos) elementos
de outras dimensões da realidade social. Há uma relação interna
e um aspecto de irredutibilidade, implicando relações negadas
após o retórico fechamento lógico-formal, correspondendo, con-
forme Norrie, aos processos de contradição dialética; as antino-
mias jurídicas que somente podem ser desveladas e compreen-
dias através da elucidação acerca das reivindicações que o Direito
faz sobre os limites epistemológicos de seus objetos formais, de-
marcando “o que ele é” e “o que não é”. Dessa tentativa de nega-
ção do nexo, sempre presente entre as relações sociais amplas e
o Direito (dado o processo de produção dos dogmas seguida da
clausura), emergem as tensões irresolúveis que marcam o modo
como a prática jurídica reproduz (ou transforma) a sociedade.261
Uma vez delimitados os modos de operacionalização dog-
mática, avançaremos para discutir a relação entre os conceitos
de dogma, texto e intertextualidade. A compreensão da noção
waratiana de dogma passa, necessariamente, por sua acepção de
estereótipo ou de palavras estereotipadas.
O dogma, como dito a pouco, corresponde às frases nas
quais conceitos são articulados; conceitos jurídicos, por sua vez,

261 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 41.

98
Dogma e Discurso

dizem respeito a formas de representação intelectual e abstrata


de objetos ou eventos do mundo que, uma vez representadas,
passam a integrar o campo (de interesse) normativo do Direito.
A operação de produção de conceitos se situa no campo das rela-
ções entre palavras e significados. Construir uma representação
intelectual e abstrata de uma entidade do mundo – e em segui-
da enclausurá-la dentro dos domínios do Direito na tentativa de
ruptura com o referente externo aos limites do jurídico – implica
escolhas que determinam os usos de certas palavras para expres-
sar determinados significados.
Tanto as escolhas que implicam a construção do conceito
quanto aquelas escolhas para racionalizar a pretensa clausura
(dissociação entre o significante jurídico com o referente externo
ao Direito) importam aqui para compreensão dos modos como
o estereótipo (ou investimento político e ideológico) se opera na
produção do dogma.
Um estereótipo, para Warat, é um tipo de palavra cujo processo
de significação não busca a redução de significados possíveis (um-
-para-um), tampouco mantem as relações convencionalmente ad-
mitidas de muitos-para-um; no estereótipo a relação entre a palavra
e seu significado-potencial é borrada e deslocada para um campo
conotativo em que o intervalo de possibilidades se torna ampla-
mente instável.262 Isto é, um espaço cujos significados – em lugar
de comunicar sentidos literais – se apoiam em sentidos demasiada-
mente figurativos, resultando em uma total instabilidade significa-
tiva: uma “anemia significativa”263 como sugere Warat. Os dogmas,
para ele, podem ser configurados não apenas por palavras estereo-
tipadas, mas, com efeito, por expressões estereotipadas que acabam
por constituir definições persuasivas ou, dito ainda de outra forma,

262 Luis Alberto Warat, O direito e sua linguagem, 1995, p. 70.


263 Idem.

99
Phablo Freire

por expressões cujo significado mais do que “interpretado”264 tem


seu significado-potencial, total ou parcialmente, configurado pelo
intérprete, a despeito da ilusória afirmação de uma existência prévia
desse significado contextualmente elaborado.
Segundo Warat, “os estereótipos são palavras que apresentam
uma carga conotativa provocadora de associações tão fortes que a
simples evocação de seus significantes motiva comportamentos ou
determinadas opiniões”265 (v.g., democracia, justiça, legítima defesa,
violência). Isso, porque o estereótipo é “um termo que tem eficácia
comunicativa a partir da força conotativa”. Ele serve não como refe-
rência para uma entidade ou objeto do mundo, mas para deixar um
intervalo de significado aberto ao preenchimento persuasivo con-
textual. Virginia Colares pontua que o estereótipo jurídico designa
“opiniões generalizadas pelos operadores do direito”, um conjunto
impreciso de generalizações, imprecisas e pouco rigorosas. O uso
desses “estereótipos jurídicos camuflam – sob a suposta aparência
de uma descrição objetiva, especializada, legitimada, práticas de
manipulação, criação de consenso e manutenção da hegemonia”.266
Propomos pensar a noção de estereótipo aproximando-a
do conceito de investimento ideológico (elemento teórico apro-
fundado mais adiante), já que, no dizer de Warat a dinâmica de
“estereotipação de um conceito é produto de um longo processo
de persuasão, de uma somatória de discursos e definições per-
suasivas que provocam a total dependência de um termo estereo-
tipado a uma relação evocativa ideologicamente determinada”,267

264 A interpretação aqui faz menção às práticas de produção de decisões judiciais


pelos magistrados.
265 Luis Alberto Warat, O direito e sua linguagem, 1995, p. 71.
266 Virgínia Colares, Análise Crítica do Discurso Jurídico: o caso da vasectomia,
2011, p. 17.
267 Luis Alberto Warat, op. cit., p. 72.

100
Dogma e Discurso

processo que se inscreve nos modos de operacionalização dogmá-


tica mais precisamente em seu terceiro modo (etapa), sendo ne-
cessário operar a ancoragem desses conceitos construídos (ou re-
construídos) em um complexo de outros conceitos preexistentes,
não apenas aproximando uns dos outros, mas dando-lhes uma
noção de coesão e autorreferência através da intertextualidade.
Para que um conceito articulado dentro de um dogma seja
inteligível juridicamente ele precisa ecoar diversos padrões for-
mais anteriores; por exemplo, é necessário saber de qual ramo do
direito o dogma se origina e para onde ele se dirige, tais traços pre-
cisam estar presentes na textualidade do dogma. É preciso saber
quais comandos coercitivos ele carrega, quais exceções ele com-
porta. Aspectos que não precisam estar inscritos em sua super-
fície textual, mas devem, necessariamente, ser acessíveis através
da intertextualidade. Um dogma é sempre um texto que absorve
textos passados, sempre responde, reacentua e retrabalha outros
dogmas que lhes são anteriores (o dogma que informa que ‘os ca-
samentos podem ser dissolvidos’ pressupõe a compreensão do que
é ‘casamento’, do que seja ‘dissolução’ e da história de ‘indissolubi-
lidade dos casamentos’ como um dogma antecedente que lhe dota
de sentido histórico. Todas essas relações estão intertextualmente
dispostas em referências implícitas no texto jurídico).
Assim como não há Direito sem dogma, não há dogma fora
da intertextualidade. De modo que os estereótipos, a despeito de
caracterizados pela presença de uma carga conotativa (que de-
manda a construção contextual de seu significado-potencial),
ainda assim carecem desse mesmo traço intertextual, ele (o dog-
ma estereotipado) precisa ecoar a pertença a um dado ramo, pre-
cisa ecoar outros padrões dogmáticos anteriores, do contrário
seria rejeitado enquanto recurso integrante do sistema.
Proponho ainda pensar o estereótipo como produzido dis-
cursivamente a partir de dinâmicas interdiscursivas pelas quais

101
Phablo Freire

o investimento ideológico opera, sobretudo quando acessamos


os aspectos que se encontram negados na subjacência do dogma,
isso ocorre porque a interdiscursividade no discurso jurídico diz
respeito, precisamente, às dinâmicas dialéticas de constituição
discursiva a partir dos processos de internalização e irredutibi-
lidade com momentos (gêneros/discursos/estilos) de outros dis-
cursos não jurídicos que figuram como constitutivos e se fazem
continuamente presentes, a despeito de negados pelo formalismo.
O intervalo aberto de significação inerente ao estereótipo,
segundo Warat, e sua contínua configuração contextual de signi-
ficado-potencial convertem o dogma em “instância ideológica da
significação”,268 pois, ao passo que “provoca uma ficção de uma
realidade [lógico-formal] congelada”, abre caminho para o “con-
trole social ao fornecer modelos de estruturas estáveis (a abstração
do dogma enquanto elemento do sistema fechado) do mundo, ope-
rando como forma significativa independente das relações sociais
(descoladas de seus referentes não jurídicos). Assim, os interpretes
autorizados, nos casos concretos em que decidem, uma vez dian-
te de dogmas estereotipados (considerada a noção de dogmas como
objetos de conhecimento formais, descolados da realidade social da
qual se originaram e situados racionalmente dentro de um sistema
fechado) podem produzir o campo de significado-potencial sem
quaisquer critérios de conexão histórica ou social, apenas justifican-
do retoricamente suas escolhas de significação e atribuindo ao pró-
prio sistema as razões de tais escolhas (buscando a produção de uma
autorrefencialidade). Movimento este – de produção e consumo dis-
cursivo – que nos possibilita compreender por quais estratégias o
discurso jurídico é (pode ser) investido política e ideologicamente.
O estereótipo no dogma permite o controle social quando
fornece as possibilidades de atribuição de significados contex-

268 Luis Alberto Warat, O direito e sua linguagem, 1995, p. 72.

102
Dogma e Discurso

tualmente em razão do significado de base, do conceito (que in-


tegra o dogma) ser ausente ou borrada. Esse processo é negado,
retoricamente e, em seu lugar, afirmada a validade do sistema
fechado que, supostamente, não realiza tais operações criativas,
pois estaria sempre remetendo-se a uma textualidade inteira-
mente anterior. Essa negação dos investimentos ideológicos no
manejo de dogmas estereotipados corresponde a uma das facetas
antinominiais na noção waratiana do dogma.269
Outro aspecto antinominial do dogma diz respeito à ideia
de fechamento que ele carrega (terceiro modo de operacionali-
zação dogmática); quando finalizada a operação constitutiva do
dogma e desdobrada sua inserção em uma continuidade formal
de conceitos descolados da realidade social, supostamente uni-
versais, ahistóricos e atemporais, tem-se a noção ostentada pelo
formalismo jurídico de ruptura entre o dogma (significante jurí-
dico) e a realidade social (seu referente social/extrajurídico) que
lhe dera origem. Isso, porque uma vez configurados os concei-
tos (palavras), ordenados em enunciados dogmáticos (frases) e
sistematicamente conectados com uma rede de enunciados an-
teriores, passaria a ter uma existência racionalmente autônoma
dissociada da dinâmica instável da sociedade. Para dogmática de
tradição positivista, o dogma racional e formalmente produzido
não é passível de ser confundido com a realidade social.
Eis a contradição dialética que nega na entidade os elemen-
tos que lhes foram inerentemente internalizados em seu processo
de emergência, a despeito de ter, com efeito, uma existência rela-
cional diferenciada e irredutível.
O Direito é uma prática social diferenciada (relacionada,
mas irredutível a) de outras práticas pelo antinomialismo, o que
leva a pensar os conceitos jurídicos como marcados por dois

269 Luis Alberto Warat, O direito e sua linguagem, 1995, p. 72.

103
Phablo Freire

processos: em primeiro lugar, os conceitos que integram esse


campo de conhecimento carregam tensões irresolúveis (ao tem-
po em que buscam explicar os fenômenos no interior da prática
jurídica, bloqueiam a compreensão da realidade jurídica em sua
amplitude em relação com aspectos não jurídicos ao obscurecer
retoricamente as conexões existentes entre ela – a realidade ju-
rídica – e as dinâmicas sociais históricas); em segundo lugar, a
negação dessas tensões irresolúveis imbricadas nos conceitos pro-
duz uma contradição dialética pela invisibilidade gerada acerca
dos níveis mais baixos – subjacentes – nos conceitos jurídicos,
enquanto partes indissociáveis dessa prática; já que são condicio-
nantes não apenas de sua emergência como também de sua per-
manência ou alteração históricas. Essa entidade intermediária: o
Direito, situada entre as estruturas (e seus mecanismos e poderes
generativos) e a agência contribui para a reprodução (ou trans-
formação) da sociedade e sua parcela contributiva, seus poderes
causais podem ser acessados através do dogma (conceito jurídico
e conceitos jurídicos em rede de conceitos), mais precisamente
através dos processos inerentes à prática discursiva jurídica (pro-
dução, circulação e consumo dos textos jurídicos) por meio dos
quais o dogma se encontra sempre em movimento.
Reconhecer a emergência de um intervalo antinominial no
dogma implica reconhecer o dogma (e toda a intertextualidade
e interdiscursividade jurídicas) como um locus de lutas hegemô-
nicas. Disputas que podem ser acessadas e discutidas a partir da
intertextualidade (e interdiscursividade) que tece o dogma; dos
investimentos político e ideológicos que conformam sua produ-
ção, distribuição e consumo.270

270 Luis Alberto Warat, O direito e sua linguagem, 1995, p.83; Alan Norrie, Law and
the beautiful soul, 2005, p.40-41; Norman Fairclough, Discurso e mudança social,
2001, p. 91.

104
4 O Discurso Jurídico

O reconhecimento do Direito como discurso271 estabelece im-


portantes premissas epistemológicas para a compreensão da prática
social a partir da qual emerge o fenômeno jurídico. Nesses termos,
o discurso jurídico é compreendido como o momento semiótico de
uma entidade intermedia (prática social jurídica) que opera através
de formas e mecanismos particulares, reais, efetivos e diferenciados,
relacionados (mas irredutíveis) a relações sociais mais amplas.272
Essa noção de discurso jurídico desloca a acepção do Direito
como um sistema autopoiético (possível de realizar a clausura de
seus elementos) para uma compreensão realista crítica, que o situa

271 O reconhecimento do Direito como discurso já corresponde, no Brasil, a uma tradição


de quase três décadas (considerando o ano de escrita dessa obra, 2023) através de
estudos que investigam o fenômeno jurídico a partir de sua interface dialética com a
linguagem. Já no início da década de 1990, Virginia Colares buscou compreender os
modos pelos quais os textos jurídicos eram produzidos nas práticas discursivas jurídicas,
através da ênfase sobre as transformações que incidiam sobre a textualidade no Direito
(em suas mais diversas modalidades: textos orais e escritos), desde as audiências de
instrução e julgamento até a prolação das sentenças no contexto da Justiça Estadual
Pernambucana. Pautada na premissa da tridimensionalidade do discurso jurídico, as
pesquisas conduzidas por Colares articulavam (e articulam até a presente data), por
meio da ADC, análises do discurso em sua perspectiva tridimensional. Cf. Virgínia
Colares, Linguagem e direito, 2010; Virgínia Colares, Análise Crítica do Discurso
Jurídico: o caso da vasectomia, 2011; Virgínia Colares, Análise crítica do discurso
jurídico: os modos de operação da ideologia, 2013; Virgínia Colares, Análise Crítica do
Discurso Jurídico (ACDJ): o caso Genelva e a (im)procedência da mudança de nome, 2014;
Malcolm Coulthard, Virgínia Colares e Rui SOUSA-SILVA, Linguagem & Direito: os
eixos temáticos, 2015; Virgínia Colares, Linguagem & direito: caminhos para linguística,
2016; Fernanda Frizzo Bragato, Virgínia Colares, Indícios de descolonialidade na Análise
Crítica do Discurso na ADPF 186/DF, 2017; Rogério Roberto Gonçalves de Abreu,
Discurso jurídico e religiosidade no Supremo Tribunal Federal: análise crítica de discurso
jurídico (ACDJ) sobre a fundamentação de decisões do STF. 2021.
272 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005.

105
Phablo Freire

como entidade disposta em relações dialéticas amplas. O que signi-


fica dizer que a emergência da entidade jurídica (prática social jurí-
dica) se opera por meio da ativação dos poderes causais de múltiplas
outras entidades a partir das quais diferencia-se o Direito, tornando-
-se distinto, porém, a um só tempo, inseparável – interna, sincrônica
e conjunturalmente – dessas relações que lhes são constitutivas. Os
elementos internos da prática jurídica pressupõem essencialmente
outros elementos não jurídicos que lhes são externos.
Não se trata, como ressalta Norrie, de uma relação entre as-
pectos de uma entidade (jurídica) e outra de natureza distinta (mo-
ral, política, linguagem etc.); não se trata de uma coexistência.273 A
relação dialética ou o aspecto ontológico da relacionalidade, im-
plica a compreensão de que os aspectos internos que constituem
o Direito existem em conexões sociais reais e necessárias com
outros domínios. Uma percepção que aponta para a superação de
clássicas dicotomias (formal-informal, jurídico-moral etc.), que
separam “o que é o Direito” daquilo “que não é Direito”: reinvin-
dicações feitas pelas teorias analítico-formalistas (que em modelos
teóricos distintos informam a dogmática) e, em alguma medida,
teorias sistêmicas irrealistas274. Como argumenta Norrie, a adesão
à perspectiva que assume a relacionalidade social real – as ligações
internamente dialéticas –, possibilita uma ruptura com a separa-
ção dogmática entre forma e substância, e rejeita a negação opera-
da dentro do Direito de tudo aquilo que lhe constitui e subjaz.275
Isso, porque, uma vez compreendido o Direito como um desdo-

273 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 40.
274 Aplico aqui o termo irrealista ventilado por Bhaskar para referir-me aos
desenvolvimentos teóricos no paradigma funcionalista que desconsidera a
nestratificação da realidade e, por conseguinte, acaba por assumir compromissos
irrealistas para justificação dos pontos lacunosos em suas teorias, como Gunther
Teubner e Niklas Luhmann.
275 Alan Norrie, op.cit., p. 40.

106
Dogma e Discurso

bramento e expressão de relações sociais e políticas mais amplas,


não se teoriza um inteiro descolamento dessas bases, uma disso-
ciação de fundamentos, senão, tão somente, no plano das ficções
abstratas retoricamente configuradas pelo formalismo jurídico.276
O discurso jurídico como momento semiótico da prática so-
cial jurídica inscreve as investigações sobre tais acontecimentos
sociais no plano ontológico mais amplo, ao situar o discurso ju-
rídico (momento dessa entidade intermediária: domínio do real)
entre a atividade particular (eventos textuais concretos: domínio
do actual) e as estruturas, seus mecanismos e poderes causais.277
Como se pode observar na figura 5, abaixo.

Figura 5: Concepção tridimensional do discurso jurídico

Com base em Norrie (2005); Fairclough (2001); Bhaskar (2016)

276 Ibidem, p. 41.


277 Vide discussão desenvolvida por Bhaskar sobre a ontologia realista crítica do
discurso enquanto elemento semiótico das práticas sociais em Enlightened Common
Sense: The philosophy of critical realism, 2016, p. 100-101.

107
Phablo Freire

O discurso jurídico é então admitido como a linguagem em


uso nessa prática social (jurídica). Portanto, considerando os pos-
tulados de Chouliaraki e Fairclough, esse uso da linguagem não
é restrito à atividade puramente individual (eventos discursivos
concretos: textos/dogmas), tampouco está restrito a um desdobra-
mento impassível das estruturas.278 Essa noção de discurso jurídico
como o momento semiótico desta entidade intermediária (práti-
ca social jurídica) se ancora no modelo transformacional realista
crítico279, gerando duas importantes implicações conceituais: i) o
discurso jurídico é um modo de ação, uma forma por meio da qual
as pessoas são capazes de agir sobre o mundo e, particularmente,
sobre os outros; ii) o discurso jurídico é, dialeticamente, considera-
do como constituído e constituinte da sociedade: à medida que é
constituído, moldado e constrangido (sua emergência) pelas estru-
turas (semióticas e sociais “no sentido amplo e em todos os níveis:
pela classe e por outras relações sociais”280), também é constitutivo
da agência que a seu turno opera a reprodução das estruturas. En-
quanto constitutivo, “o discurso [jurídico] contribui para a cons-
tituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou
indiretamente, o moldam e o restringem”.281e282 Sobre essa dimen-
são constitutiva do discurso jurídico, a saber, seus poderes causais,
tratarei mais detidamente na seção seguinte.
Como pontuou Bhaskar, uma teorização sobre o uso da lin-
guagem deve pressupor não apenas os processos constitutivos dis-

278 Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 19-25.
279 Roy Bhaskar, Societies, 1998, p. 206-257.
280 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 91.
281 Ibidem..
282 Cf. Roy Bhaskar, Enlightened Common Sense, 2016, p. 102-106; Lilie Chouliaraki e
Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 21-61; Alan Norrie, Law
and the beautiful soul, 2005, p. 19-32.

108
Dogma e Discurso

cursivos como também aqueles extradiscursivos, tendo em vista


estar o significado em contínua relação dialética com os referentes
externos ao discurso no mundo concreto.283 Com isso, precisamos
pensar a emergência da prática social jurídica (e seu discurso) não
apenas como efeito observável das restrições ativadas de uma única
estrutura (a semiótica), mas, certamente, de múltiplos constrangi-
mentos. Chouliaraki e Fairclough ressaltaram que o discurso é um
dos momentos da prática social, emergindo dialeticamente com a
atividade material (as plataformas nas quais são achados os tex-
tos, como as vozes, os papéis, aparelhos eletrônicos, tintas etc.), as
relações e interações sociais (instituições e relações de poder) e os
fenômenos mentais (crenças, valores, desejo).284 Dessa forma, o dis-
curso jurídico emerge em relação dialética com outros momentos
da prática jurídica internalizando aspectos desses outros momen-
tos sem, contudo, reduzir-se e confundir-se a eles, continuamente
em uma dinâmica relacional de internalização e irredutibilidade
aos outros momentos.285
Quando buscamos compreender as práticas sociais jurídicas
precisamos entendê-las como parcialmente discursivas na medi-
da em que seu momento semiótico é encontrado dialeticamente
relacionado – internalizando sem, contudo, reduzir-se – a outros
momentos. Por isso, o texto jurídico nunca estará em referência
apenas a outros textos jurídicos, mas sempre também com as re-
lações sociais mais amplas que os originam.
Um importante aspecto da prática social jurídica é apontado
ainda por Norrie quando a ela o autor se refere como uma forma
de sociabilidade historicamente constituída.286 Norrie argumenta

283 Roy Bhaskar, Enlightened Common Sense, 2016, p. 104.


284 Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 61.
285 Ibidem, p. 37.
286 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, p. 88.

109
Phablo Freire

que o antinomialismo presente nos dogmas287 (as tensões irresolú-


veis derivadas da negação da presença nos conceitos jurídicos de
conexões dialéticas com relações sociais históricas) opera como
efeitos causais constitutivos de subjetividades, ou seja, a prática
jurídica (e seu antinomialismo) deriva formas de socializações.
A noção de prática social jurídica como uma forma de socia-
bilidade será detalhada na próxima seção, quando for apresenta-
do a noção de prática discursiva jurídica enquanto processo de
produção, circulação e consumo dos discursos jurídicos.

4.2 Prática Discursiva Jurídica


A noção de prática discursiva jurídica corresponde aos pro-
cessos de produção, circulação e consumo de textos. Muitas são
as práticas discursivas e elas oscilam suas características em ra-
zão dos muitos discursos que circulam socialmente. A produção,
a circulação e o consumo de textos se realizam de formas dife-
renciadas em contextos sociais específicos. Desse modo, a emer-
gência de um texto jurídico (o evento empírico do discurso jurídi-
co) está dialeticamente relacionada com os outros momentos do
discurso jurídico (materialidade, interações e relações de poder,
fenômenos mentais) assim como o discurso jurídico relacionado
(em processos de internalização e irredutibilidade) com outros
discursos e práticas sociais não-jurídicas.288
A produção de textos jurídicos envolve rotinas complexas,
dinâmicas coletivas distribuídas e implicadas na performance de

287 O argumento de Alan Norrie não se utiliza do recurso conceitual do “dogma”


como aqui ventilamos, em lugar dele, é utilizado apenas “conceitos jurídicos”.
Como argumentei acima, considero no campo da teoria jurídica uma proximidade
considerável entre a noção de conceito jurídico e dogma.
288 Cf. Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 106-108.

110
Dogma e Discurso

distintos papéis (posições289), nos quais se engajam grupos nos


diferentes estágios de produção. Tal qual o texto jornalístico –
acima mencionado – que, por sua vez, demanda uma série de
práticas que antecedem sua finalização (investigação de fontes,
cobertura de eventos, depoimentos, produção de outros textos
não escritos ou orais como fotografias, textos jornalísticos ante-
riores por meio dos quais o texto em questão intertextualmente
emerge), o texto jurídico como materialidade do discurso jurídi-
co emerge de uma complexidade de eventos. Senão vejamos.290
Para que um problema seja discutido no âmbito dos Tri-
bunais é preciso que algo na relação social esteja em dissenso
ou desacordo. É preciso falarmos de uma relação social de atrito
para que se inicie a produção de um texto jurídico. Esse dissen-
so é levado aos Tribunais por meio de alguma estratégia. Pro-
priamente essa relação chega às pessoas que performam posições
sociais especificas que lhes diferenciam na interação das pes-
soas comuns que integram o dissenso original da relação social
externa à prática social jurídica. Uma vez integrada as práticas
jurídicas, o desacordo social para ser transformado interdiscursi-
vamente para o interior da rede de conceitos jurídicos, por meio
dessas interações (o cidadão, advogados, servidores públicos
auxiliares da justiça, magistrados) que se desdobram especifi-
camente na prática jurídica. Geralmente quando um problema
social é traduzido e ajustado em termos de legítimo/ilegítimo (ou
correto/errado, lícito/ilícito etc,) no interior da prática jurídica
sua distribuição ocorre apenas quando efetivamente concluído
seu processo de produção. No entanto, nem sempre ocorre dessa

289 Na teoria do posicionamento de Rom Harré, existe uma diferenciação entre posições
e papéis, essa distinção integra o interesse do modelo transformacional do Realismo
Dialético Crítico.
290 Cf. Norman Fairclough, op. cit., p. 106-108.

111
Phablo Freire

forma. Quando um dado dissenso social opera intensa pressão


a inferência social291, levando a sociedade (total ou parcialmen-
te) a se interessar pelo resultado dessa prática discursiva jurídi-
ca provocando uma distribuição precoce do texto jurídico que é
consumido por outras práticas discursivas (como a jornalística,
acadêmica e as conversações) antes mesmo da finalização de seu
processo de produção. Observamos isso quando um julgamento
de grande repercussão social recebe “cobertura jornalística” re-
corrente antes de seu término, intercambiando os conceitos jurí-
dicos para conceitos jornalísticos e, por vezes, do senso comum
para potencializar o consumo desses textos jornalísticos. Com
isso identificamos como a interdiscursividade (intertextualida-
de constitutiva entre diferentes discursos) opera a emergência de
diferentes textos enquanto eventos materiais de diferentes práti-
cas. Importante ressaltar que não ocasionalmente os dissensos
sociais, com intensa pressão a inferência social, correspondem a
pontos socialmente visíveis de lutas hegemônicas.292
Quando tratou da circulação (distribuição) dos textos, Fair-
clough se referiu as maneiras como os textos chegam aos desti-
natários. Os textos jurídicos interessam, sempre, aos envolvidos
diretos nas práticas nas quais são produzidos, mas também aos
envolvidos indiretos, a sociedade total ou parcialmente percebi-
da. Os textos jurídicos circulam, isto é, chegam aos destinatários
diretos e indiretos através das estratégias de circulação internas a

291 A expressão pressão a inferência aqui aplicado é uma menção a um dos conceitos
internos da teoria das representações sociais de Serge Moscovici. Temos aqui um
ponto importante e potencial de conexão entre a TSD, manejada no interior do
RC, e os debates sobre produção do senso comum na perspectiva realística crítica
e seu diálogo com outra vertente. Em outro trabalho, discuto como a teoria do
senso comum de Moscovici – nos territórios do construcionísmo – pode iluminar
a compreensão de como o discurso circula para produção dos saberes coletivos
pensados na ontologia realística critica.
292 Cf. Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 106-108.

112
Dogma e Discurso

própria prática – por meio de suas muitas modalizações (o texto


escrito de uma decisão pode se tornar parte de uma conversação
entre juízes e promotores e entre advogados e partes, como tam-
bém integrar, posteriormente, uma campanha visual, em cartazes,
sobre esse entendimento novo circulando nas instituições judi-
ciárias) – assim como por estratégias externas a prática quando
interdiscursivamente são apropriados por outras práticas, consti-
tuindo outros textos por meio de seus poderes causais; quando o
texto de uma decisão chega aos destinatários indiretos por meio de
notícias, conversações e até como peças de entretenimento, como
filmes, anedotas em redes sociais ou encenações artísticas.293
O consumo dos textos, como argumenta Fairclough, cor-
responde às formas como os destinatários absorvem um dado
texto, como ele será incorporado às práticas nas quais esses des-
tinatários estão engajados. Os textos são, desse modo, consumi-
dos de maneiras diferentes na medida em que distintas são as
condições de consumo, isto é, os recursos interpretativos à dis-
posição desses destinatários. Uma decisão judicial que nega o
direito indígena à terra e reconhece direito ao garimpo clandes-
tino para extrair recursos dessa mesma terra será absorvida, ou
seja, incorporada à experiência desses destinatários de maneiras
diferentes, em razão dos diversos lugares em que estão posicio-
nados na realidade social.294 Outro ainda será o modo como des-
tinatários indiretos – cidadãos que acreditam não ter qualquer
relação com esse dissenso – recebem esse texto jurídico através
de dinâmicas interdiscursivas de transformação por meio de
uma notícia. O consumo dos textos jurídicos se dará de modos

293 Cf. Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 106-108.


294 Sobre esse aspecto relacional entre posicionamento e consumo dos textos e entre
essa dinâmica e a configuração discursiva das identidades é importante articular
Fairclough, Bhaskar e Harré. Proposta de um trabalho ainda em desenvolvimento.

113
Phablo Freire

distintos determinados pelos elementos das práticas sociais nas


quais os destinatários estarão implicados, dos recursos interpre-
tativos disponíveis a eles para a leitura do mundo que os cerca.295
As práticas nas quais um texto é produzido também envolvem
esse texto de certa predisposição interpretativa, o que ocorre, v.g.,
quando somos informados que iremos ouvir uma anedota (mes-
mo quando ela ventila a ironia sobre uma decisão jurídica). Nes-
se caso, ao saber que seremos expostos a um texto humorístico,
temos a predisposição a recebê-lo de maneira menos normativa e
mais leve do que receberíamos um texto judicial. De outro modo,
quando somos informados que iremos receber um texto religio-
so; para o qual geralmente dedicamos mais reverência que a um
texto artístico ou humorístico, sobretudo quando os destinatários
performam posições internas à prática social da qual emergiu o
texto. As predisposições são, com efeito, recursos interpretativos
e elementos não-discursivos situados na interface entre o aspecto
mental, as interações e as relações de poder nas práticas, todas
elas dialeticamente constituídas e constituintes do discurso (que
se materializa nos eventos textuais).
Quando um texto jurídico (contendo dogmas) circula e é in-
terdiscursivamente transformado em textos de outros discursos
(o dogma convertido em expressão do senso comum – por vezes
contendo erros e imprecisões ou desinformação, emergindo em
um texto jornalístico ou em conversações) esses textos jurídicos
não apenas operam efeitos causais (constitutivos) em aspectos
semióticos de outras práticas não-jurídicas como propriamente
aspectos não semióticos. O Consumo de textos jurídicos (consi-
derada a capacidade interpretativa dos consumidores), em razão
de sua circulação, produz efeitos causais nos modos como as inte-
rações se dão, no modo como as identificações se (re)produzem,

295 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 106-108.

114
Dogma e Discurso

pois os textos jurídicos estão sempre impregnados de sentidos


de legitimidade e ilegitimidade. Os textos jurídicos adjetivam
sujeitos, grupos e práticas, tornando-os estimados ou estigmati-
zados, desejáveis ou inaceitáveis, legítimos ou recrimináveis. Os
textos jurídicos constituem dialeticamente textos em outros dis-
cursos, afetando momentos não discursivos dessas outras práti-
cas. Assim como o discurso jurídico internaliza sem reduzir-se
aos outros discursos que lhe constituem interdiscursivamente,
ele também constitui dialeticamente outras práticas sociais por
meio dos processos de relacionalidade e irredutibilidade das en-
tidades intermediárias (práticas sociais).
A emergência do discurso jurídico (em eventos concretos
como textos jurídicos) deriva dialeticamente da interação entre
identidades especificas (posições de sujeitos) performando pa-
péis específicos no interior da prática social, ou seja, dos elemen-
tos discursivos e não-discursivos que compõe a prática jurídica
(as posições e identidades, as interações, as relações de poder, os
aspectos mentais, a materialidade e o discurso), o que nos leva
a entender melhor o que Norrie diz ao se referir à pratica social
jurídica como uma forma de sociabilização, ou seja, um espaço
de onde emergem modos de ser, subjetividades.296
Isso implica dizer que o Direito não constitui a si mesmo en-
quanto uma prática social diferenciada, relacionada e irredutível
sem constituir também aspectos de outras práticas, subjetivida-
des – que mais adiante trataremos como identidades (e modos de
identificar-se), modos de interação e sistemas representacionais.
O que nos leva a outro aspecto conceitual na TSD, as discussões
sobre ordem do discurso e redes de ordens do discurso.

296 Alan Norrie, Between structure and difference: Law’s relationality, 1998, p. 723-726.

115
Phablo Freire

4.3 Ordem do Discurso Jurídico e


Redes de Ordens do Discurso
Através do seu modelo transformacional, Bhaskar postula a
existência de um hiato ontológico entre a sociedade a agência das
pessoas; isso ocorre porque ao tempo em que a sociedade – como
complexo de estruturas – fornece as condições necessárias para
a ação humana intencional, essa mesma agência é condição ne-
cessária para a existência da sociedade, uma vez que a sociedade
está presente na ação humana. Nem a agência humana pode ser
reduzida ou identificada com as estruturas sociais, tampouco a so-
ciedade pode ser reduzida às ações humanas intencionais, em uma
explicação que busque reconstruir um a partir do outro. Existe, se-
gundo Bhaskar, portanto, um hiato ontológico entre uma e outra:
as entidades intermediárias, ou seja, as práticas sociais conectando
uma a outra em processos de reprodução (ou transformação).297
Ancorados na ontologia realista critica, Chouliaraki e Fair-
clough postulam os conceitos de ordem do discurso e redes de or-
dens de discurso para descreverem a relação entre as práticas dis-
cursivas (de onde emerge o discurso) e as estruturas semióticas; de
maneira que uma ordem do discurso – enquanto estrutura semió-
tica em uma dada prática social – possibilita e constrange a ação
intencional que emerge nas práticas e materializa-se em eventos.298
A noção de ordem do discurso, de acordo com Chouliaraki
e Fairclough não pode ser entendida apenas como uma estrutu-
ração semiótica. Os autores propõem uma compreensão a partir
do que chamam de dupla estruturação299, pois, à medida que re-

297 Roy Bhaskar, Societies, 1998, p.217: Enlightened Common Sense, 2016, p. 100-101.
298 Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 63:151.
299 Ibidem, p. 151.

116
Dogma e Discurso

conhecem a estrutura semiótica suficiente para operar os cons-


trangimentos internos a linguagem em uma prática especifica,
postulam também um outro nível dialeticamente admitido de
estruturação em que os constrangimentos estruturais que ope-
ram sobre a prática não se dão apenas na linguagem, mas a extra-
vasam ao internalizarem na linguagem o social e vice-versa. Por
isso, uma ordem do discurso corresponde a uma categoria teórica
que é, a um só tempo, social e semiótica.300
Chouliaraki e Fairclough então postulam que ao observarmos
uma prática identificaremos certos modos relativamente estabiliza-
dos de representar, interagir e identificar(-se), maneiras sociodiscursi-
vamente estabilizadas que operam como recurso e constrangimento
para a agência individual. Os autores chamam esses modos relativa-
mente estabilizados de momentos internos às ordens de discurso.301
A noção de ordem do discurso e seu dinamismo conectam-
-se à ideia realista crítica de entidades abertas e à relação entre o
discurso e as demais dimensões da prática social. Como também
nos leva a pensar as relações dialéticas constitutivas e irredutíveis
entre diferentes práticas sociais (e seus respectivos momentos se-
mióticos como diferentes discursos derivados de suas próprias
práticas discursivas). Tal dinamismo traduz as formas como o
interdiscurso se opera na configuração e emergência de novos
textos no interior de discursos.
O poder causal de uma dada prática discursiva é identifi-
cado então com a ordem do discurso e seus momentos internos.
Fairclough organiza a dinamicidade de uma ordem do discur-
so a partir de três significados: identificacional, relacional e re-
presentacional. O primeiro deles, o significado identificacional,
“relaciona-se aos modos pelos quais as identidades sociais são es-

300 Ibidem, p. 114-119.


301 Ibidem, p. 151-152.

117
Phablo Freire

tabelecidas no discurso”; o significado relacional diz respeito ao


modo como “relações sociais entre os participantes do discurso
são representadas e negociadas”, por fim, o último significado, o
representacional, corresponde aos “modos pelos quais os textos
significam o mundo e seus processos”.302
Os três significados correspondentes aos momentos inter-
nos de uma dada ordem do discurso e podem ser também chama-
dos de estilos (modos relativamente estabilizados de identificar),
discursos (modos relativamente estabilizados de representar) e
gêneros (modos relativamente estabilizados de interagir).303 Tais
significados estabilizam-se pelos usos reiterados na agência até
assumirem formas de constrangimentos autônomos estruturais
que necessitam, reiteradamente, que a agência humana os utilize
como recursos para seguirem emergindo socialmente.
Quanto a esses momentos internos na ordem do discurso,
a partir dos quais emerge o discurso jurídico – sobre os estilos
(modos de identificar), quando diante dos textos jurídicos, pode-
mos nos indagar: Quem são os sujeitos representados nos textos
jurídicos? Como estão sendo apresentados? Como as escolhas
lexicais e não-lexicais são mobilizadas para delinear quem os
sujeitos são na superfície do discurso jurídico? Quais aspectos
nesses modos de representar os atores partem de pressuposi-
ções socialmente naturalizadas de aspectos externos ao Direi-
to e silenciados no texto?304 No tocante aos gêneros (modos de

302 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 92: Viviane Ramalho e
Viviane de Melo Resende, Análise do discurso (para) crítica, 2011, p. 49-50.
303 Essa classificação é utilizada por Ramalho e Resende a partir de uma adaptação
realizada pelas autoras para os trabalhos de Fairclough (Discurso e mudança social),
Chouliaraki e Fairclough (Discourse in late modernity). Por julgar apropriado para
o desenvolvimento feito neste trabalho, reproduzo essa opção teórica.
304 Sheyla Canuto e Virgínia Colares, no estudo intitulado “A representação da mulher
no sistema jurídico penal: um estudo de caso a partir das análises das expressões

118
Dogma e Discurso

interagir), precisamos questionar os modos como as interações


aparecem na superfície dos textos jurídicos, considerando que o
discurso emerge da sociedade e a sociedade é assimetricamente
disposta. Quais assimetrias sociais tem seus ecos sentidos nos
textos jurídicos e como tais modos discursivos de interação estão
a serviço da reprodução (ou transformação) desses modos sociais
relativamente estáveis de interação? Tratarei agora dos discursos
(modos de representar aspectos do mundo).
Os constrangimentos operados pelo discurso jurídico (mais
precisamente os estilos e os gêneros internos à ordem do discurso
jurídico) contribuem para a constituição de identidades sociais
e interações. Uma vez consideradas em suas relações dialéticas
entre os momentos semióticos e não-semióticos das práticas so-
ciais, a linguagem é capaz de operar efeitos causais na sociedade,
ao passo que é também constrangida por essa mesma sociedade.
Sendo assim, quando tratamos de modos relativamente estabili-
zados de identificar achados na superfície dos textos jurídicos (a
autoridade que deixa marcas textuais dessa identidade perfor-
mada), estamos falando de identidades enquanto momentos ex-
tradiscursivos performados na prática social jurídica, tais perfor-

referenciais” realizam o mapeamento dos modos como termos zombeteiros,


desrespeitosas e o uso da ironia são manejados para delinear na decisão uma
imagem que desfavoreça a vítima. A análise do discurso pormenorizada no caso,
concluiu pela hipótese inicial de que no caso de estupro julgado contra a mulher,
a fundamentação – a despeito dos fatos presentes no processo – volta-se mais para
o comportamento da vítima, julgando-a, do que para a condutado acusado. Outro
caso que ilustra os modos de constituição dos atores sociais no discurso pode ser
identificado na obra “Análise de discurso (para a) Crítica” de Viviane Ramalho e
Viviane de Melo Resende. Em um dado ponto da obra, as pesquisadoras expõem
como um texto jornalístico constrói – através de uma série de artifícios linguísticos
– a imagem de um indivíduo em situação de rua, romantizando sua condição,
esvaziando a responsabilidade do estado na intervenção em tais situações e
deslocando os aspectos jurídicos de responsabilidade exclusivamente para a própria
pessoa em situação de rua.

119
Phablo Freire

mances reiteradas constrangem a emergência de marcas textuais.


Isso também se pode dizer dos modos relativamente estabiliza-
dos de interação que, a seu turno, espelham interações concretas
(como a autoridade trata o cidadão na interação social concreta
e como esse momento extradiscursivo deixa marcas textuais). A
interação social e identificação como momentos extradiscursivos
da prática não existem sem significado, de modo que o momento
semiótico está presente em todas (ou quase todas) as dimensões
das práticas sociais, o que não seria diferente no Direito.
O que precisamos ressaltar aqui é a funcionalidade das
representações jurídicas (discursos como modos relativamente
estabilizados de representar aspectos do mundo) enquanto ele-
mento mediador entre as identidades e as interações no interior
da prática discursiva jurídica.
Conforme postulado por Fairclough, um dos significados
(poderes causais) do discurso é a potencialidade para fixação de
sistemas de conhecimento e crenças.305 Esses modos de representar
aspectos do mundo correspondem a formas de tornar familiar
certos aspectos da realidade, isto é, trazer para o interior da prá-
tica jurídica aspectos que até então lhe eram externos e estra-
nhos, configurando-os em conceitos para em seguida posicioná-
-los em uma lógica de sistema.306 Tal funcionalidade é o que, com
efeito, diferencia o Direito de outras práticas: o desenvolvimento
de um sistema de conceitos normativos (dogmas) orientado para

305 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 91.


306 No paradigma sistêmico-funcionalista esse processo – dentro da lógica de autopoiese
– seria equivalente às dinâmicas de acoplamento estrutural e evolução aquisitiva.
Pelo primeiro, entendem-se os processos de fechamento operacional e abertura
cognitiva entre o sistema fechado e seu ambiente, de modo que aquele ajusta seu
código às irritações do ambiente produzindo os processos de evolução aquisitiva
quando o sistema se torna capaz de reagir ao ambiente incorporando às provocações
ao seu próprio código operativo.

120
Dogma e Discurso

regular interações jurídicas (no interior da prática jurídica) e ex-


trajurídicas (nas relações sociais).
Os estilos, o gênero e os discursos como momentos da ordem
do discurso jurídico preservam suas especificidades (os modos
de identificar-se não se confundem com os modos de interagir,
tampouco com os modos de representar), entretanto, a relação
entre eles, no interior da ordem do discurso jurídica é dialética,
de modo que cada um desses momentos internaliza traços do
outro de forma a nunca se dissolverem ou serem reduzidos um
ao outro. Portanto, os conceitos jurídicos (modos relativamente
estabilizados de representar aspectos do mundo) internalizam
traços dos modos de interagir e identificar-se e, estes últimos, as-
similam do sistema de representação traços em sua reprodução,
preservando sua irredutibilidade.307
A ordem do discurso jurídico e seus momentos internos ope-
ram na prática social jurídica tanto como recursos sincrônicos
para a ação humana, moldando-a e constrangendo-a, como tam-
bém enquanto produto diacrônico da ação. Isso implica pensar o
funcionamento da prática discursiva jurídica como em contínua
abertura: mantendo seu potencial para significar (reproduzindo
as três formas de significação) através dos recursos internos a en-
tidade intermediária como também aberta às relações dinâmicas
irredutíveis com outras ordens do discurso próprias a outras prá-
ticas, ou seja, a ordem do discurso jurídica se encontra continua-
mente imbricada em redes de ordens do discurso.308
Esse aspecto relacional entre a ordem do discurso jurídico
(modos relativamente estabilizados de interagir, identificar-se e
representar) e outras ordens do discurso abre um importante in-

307 Cf. Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 37.
308 Cf. Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 151-154.

121
Phablo Freire

tervalo para compreensão da prática social jurídica como forma


de sociabilização. Se não, vejamos.
Na busca por formas de investigar os modos como os gêneros
figuram nos textos, Fairclough desenvolveu a categoria analítica
estrutura genérica para mapear através das marcas deixadas na
superfície dos textos os modos relativamente estáveis de agir e de
relacionar discursivamente.309 Mais especificamente essa investi-
gação busca os propósitos da atividade. Esses modos de interação
“implicam atividades especificas, ligadas a práticas particulares
[uma vez que] cada atividade social possui propósitos específicos,
ou ‘escopos intencionais’”.310 Ao manejar essa categoria, uma in-
vestigação buscará responder perguntas como: o que as pessoas
estão fazendo discursivamente? Quais propósitos movem sua ati-
vidade? Como esses movimentos retóricos participam de proces-
sos de reprodução/transformação das relações de poder?
Ainda de acordo com Fairclough, investigações sobre gêne-
ros devem buscar identificar os modos de encenação, isto é, as
estratégias retóricas e como elas se encontram estruturadas pela
prática, haja vista que quanto mais ritualizada for uma atividade
(como é o caso das práticas discursivas jurídicas), mais relaciona-
dos estarão os gêneros com os constrangimentos estruturais.311
Sobre os modos de interação (e encenação retórica) e os es-
copos intencionais nas relações jurídicas (sobretudo as levadas
aos Tribunais) é preciso ressaltar o fato de serem interações in-
tensamente ritualizadas, isso, porque os comportamentos pos-
síveis de serem realizados (e, por isso, esperados entre os par-
ticipantes) são institucionalizados por meio de regras e normas

309 Norman Fairclough, Analysing discourse. 2003, p. 70.


310 Viviane Ramalho e Viviane de Melo Resende, Análise do discurso (para) crítica,
2011, p. 126.
311 Norman Fairclough, Analysing discourse. 2003, p. 72.

122
Dogma e Discurso

jurídicas (fixadas no CPC, v.g., sem prejuízo de outros diplomas,


como a própria Constituição), que, a seu turno, cristalizam o que
se pretende (propósitos) com a atuação processual e com o modo
pelo qual se pode realizar tais propósitos.
Temos aqui uma faceta do formalismo jurídico, aquela vol-
tada para os modos de interação processuais e seus escopos. As-
sim como no discurso jornalístico, o propósito central é informar
e formar a opinião pública, a despeito de qual venha ser, concre-
tamente, a informação e o que se forma com ela. De modo apro-
ximado, temos no discurso jurídico alguns propósitos que podem
ser observados em toda interação processual jurídica, mas que
jamais estarão desacompanhados de escopos extrajurídicos, tal
qual o escopo de informar (e formar) jamais poderia se realizar
desacompanhado de uma “informação específica”.
No interior da prática jurídica existe um propósito prévio e
abstrato atribuído a esse Ator Social que realiza a jurisdição: o Es-
tado. Tal propósito corresponde à promessa de prestar a atividade
de dizer o direito, de modo imparcial, em relação aos interesses
das partes que buscam a prestação e, com isso, unicamente, apli-
car a lei aos casos concretos. No entanto, concomitante as pre-
visões abstratas e prévias que delimitam esse propósito, existem
os propósitos extrajurídicos dos atores concretamente envolvidos
nessa interação, tanto as chamadas autoridades, Juízes, Promo-
tores, Defensores e Advogados, quanto os cidadãos comuns.
As prescrições contidas na lei não são capazes de impedir
que os textos sejam cheios de outros textos. A lei é incapaz de (de)
limitar a produção do texto jurídico como restrita a intertextua-
lidade exclusivamente derivada dos elementos internos à ordem
do discurso jurídico. As prescrições jurídicas não podem impe-
dir que outros discursos sejam articulados e internalizados pelo
discurso jurídico ou sejam inscritos na superfície do texto jurídi-
co (e em sua subjacência), a despeito de suas vedações formais.

123
Phablo Freire

As múltiplas formas de representar, interagir e identificar(-se) no


mundo podem ocorrer nos processos de produção do texto jurí-
dico e podem ocorrer de modos explícitos e implícitos. Quando a
ocorrência de discursos extrajurídicos se opera de modo implíci-
to, temos o correspondente ao interdiscurso como recurso consti-
tutivo dos textos jurídicos. Por isso, é necessário reconhecer que,
a despeito dos escopos formais (propósitos inerentes ao gênero)
apontarem para formas especificas de interação, outros propó-
sitos não-jurídicos estarão lá subjacentes aos textos, observáveis
através das marcas deixadas desde a sua superfície.
Ainda sobre essa estabilização parcial de escopos, isto é, mo-
dos de interação na prática jurídica, fixadas pelas normas no to-
cante às relações processuais, é possível dizer que toda interação
jurídica que se realiza em algum processo judicial terá, com al-
gumas variações, os seguintes propósitos: 1) responder a contro-
vérsia e apaziguar a “parcela” jurídica do problema social levada
ao Poder Judiciário; 2) separar: i) a produção dos sentidos sobre
palavras e expressões (como referentes aos fenômenos extraju-
rídicos) necessários à produção da resposta-apaziguamento dos
ii) problemas sociais que originam a controvérsia; construindo
assim os dogmas como conceitos distintos dos acontecimentos
sociais concretos necessários à resposta-apaziguamento312; 3)
convencer (aspecto persuasivo como evidenciou Warat) os con-
sumidores do texto jurídico sobre a natureza de clausura do even-
to jurídico, ou seja, tentar persuadir os consumidores acerca da
ideia do Direito como circunscrito ao primeiro e segundo esco-
pos (modos de interagir), isto é, uma prática restrita a construção
dos dogmas e aplicação decisória. Posicionando, retoricamen-
te, todo o restante da prática fora dessa ideia anunciada sobre o

312 Vide o debate sobre o antinomialismo e a lógica identitária na formação dos


conceitos jurídicos.

124
Dogma e Discurso

Direito (sua reivindicação central desde a modernidade). Como


consequência desse terceiro escopo, juristas (aqueles que perfor-
mam posições especificamente desenvolvidas dentro da prática
social jurídica) e cidadãos (re)-produzem a crença de que tudo
que se diferencia dos dois primeiros escopos corresponde ao que
o Direito não é, ou seja, uma inteira dissociação entre o social e
a prática jurídica.
O que resulta desse terceiro escopo é comumente percebido
como fechamento sistêmico do Direito, mas é apenas um movi-
mento autorreflexivo da prática sobre si mesma, produzindo um
modo de representar sua dinâmica interna negando certos aspec-
tos. Meu argumento é que esse modo de representação da práti-
ca se encontra estreitamente relacionado com os investimentos
político-ideológicos no discurso jurídico.
Não apenas os propósitos (modos de interagir) fixados pelas
normas jurídicas diferem do que se pode observar na dinâmica
das práticas jurídicas, mas, por certo, os modos de identificar-se
e representar no discurso jurídico também se conectam diale-
ticamente com modos não-jurídicos. O formalismo jurídico (sua
racionalidade) nos leva a crer que toda a dinâmica da prática dis-
cursiva jurídica pode ser cientificamente controlada porque ela
toma a parte pelo todo.313 No entanto, a lei não é capaz de im-
pedir que outros modos de identificação, interação e representa-
ção (antecedam e) atravessem as formalidades, integrando-as ou
alterando-as. Por isso, para que o Direito continue sendo o que
afirma ser (conjunto de abstrações inteiramente dissociadas das
relações sociais), para que suas reinvindicações epistemológicas e
validade social sejam preservadas, é preciso obscurecer a presen-

313 Esse aspecto pode ainda ser discutido a partir de um outro parâmetro conceitual,
qual seja, a noção de praxiologia e praxiologia jurídica desenvolvida por Alan Norrie
e Roy Bhaskar.

125
Phablo Freire

ça desses discursos extrajurídicos no interior do discurso jurídico.


A preservação de sua pretensa natureza de sistema fechado, dis-
sociado do social (seu segundo escopo), demanda a negação des-
ses outros discursos que interdiscursivamente se fazem presentes
(seu terceiro escopo).
Portanto, o segundo e o terceiro propósitos das interações
processuais acabam guardando estreita relação com estratégias
de bloqueio da visibilidade da presença dos discursos extrajurídi-
cos, ocasionando presenças retoricamente tornadas ausentes em
nome da manutenção do formalismo jurídico.

4.4 Investimento político ideológico no


discurso jurídico, interpelação dos sujeitos
e os poderes causais
Ao esmiuçar a dogmática, Warat lançou luz sobre os proces-
sos de produção, circulação e consumo dos conceitos jurídicos,
apontando como a ideologia e a política poderiam estar imbrica-
das no dogma. Neste trabalho, busco posicionar esses apontamen-
tos waratianos – em especial seus conceitos de dogma e dogmática
– na dinâmica das práticas discursivas jurídicas de modo a enca-
minhar a compressão da emergência do dogma enquanto deriva-
ção da ordem do discurso jurídico em redes de ordens do discurso.
Nesse ponto, somos atravessados pela questão dos processos
de negação – operados pela lógica de identidade, como postulou
Norrie –, mas não apenas por ela, certamente, a noção de redes
de ordens do discurso nos leva a vislumbrarmos como os múlti-
plos papéis (posições) das autoridades e cidadãos afetam (operam
efeitos causais n)a performance, mais detidamente, nos modos de
identificar-se e interagir na prática jurídica. Isso ocorre porque no

126
Dogma e Discurso

interior da ordem do discurso jurídico, os gêneros e estilos sofrem


constrangimentos de modos de interação e identificação oriun-
dos de outras práticas, haja vista que os atores sociais são acha-
dos engajados em múltiplas práticas sociais concomitantes. Tudo
isso comparece como substrato de onde emergem esses modos de
representar próprios e diferenciados da prática jurídica, ou seja,
os modos de interagir e identificar(-se) próprios ao Direito estão
continuamente em dinâmicas de internalização e irredutibilidade
com gêneros e estilos de outras ordens de discurso.
Como momento interno à ordem do discurso, os modos de
representar (por meio dos quais emergem conceitos jurídicos/dog-
mas), por sua vez, também internalizam (preservando sua irre-
dutibilidade) aspectos desses modos de interagir e identificar-se,
o que nos leva a considerar o dogma como um produto dessas di-
nâmicas constitutivas dialeticamente consideradas. Um dogma
sempre estará interdiscursivamente conectado a dimensões não-
-jurídicas da prática jurídica em razão da rede de ordens de dis-
curso nas quais o Direito esteja engajado. A questão que se impõe
diz respeito às possibilidades de compreensão sobre as maneiras
como essa mesma prática discursiva jurídica escamoteia e oculta
essas presenças e suas relações constitutivas dialéticas.
A internalização e irredutibilidade entre os momentos in-
ternos da ordem do discurso jurídico são dinâmicas em conexão
dialética (nível mais baixo/subjacência) com outras ordens do
discurso. Um juiz nunca é apenas um juiz, um cidadão perfor-
mará uma ampla rede de papéis para que se encontre nessa po-
sição de “exercício da cidadania”. Haverá sempre outros papéis
(posições)314 que eles assumem em sua performance enquanto
atores sociais.

314 Embora neste trabalho utilize alternadamente os termos “papéis” e “posições” Rom
Harré utiliza apenas “posições” em lugar de papéis.

127
Phablo Freire

Tratando sobre a relação entre o momento discursivo e os


fenômenos mentais (extradiscursivos), Bronwyn Davies e Rom
Harré apontam a força constitutiva (poderes causais) das práti-
cas discursivas para prover as posições de sujeito por meio das
quais um ator social consegue mover-se no mundo. Uma posição
de sujeito corresponde, para esses autores, a um repertório con-
ceitual e uma localização para a pessoa numa teia de relações
estruturais. A pessoa irá interpretar e interagir com o mundo
a partir da posição que é capaz de ocupar; uma posição é então
o resultado de múltiplos e intermináveis processos de interação
discursiva por meio dos quais emerge o sujeito não como um ser
acabado, fechado, mas, sempre como uma entidade aberta. Os
sujeitos são constituídos e reconstituídos por meio de várias prá-
ticas discursivas nas quais se encontrem engajados, por isso uma
mesma pessoa estará posicionada de maneiras diferentes (por
vezes contraditória) em uma dada interação tendo em vista seu
engajamento nessas múltiplas práticas.315 Dessa forma, um juiz
nunca será apenas um juiz; essa posição que deriva da prática
sociodiscursiva jurídica estará relacionada dialeticamente (in-
ternalizando e diferenciando-se sem contudo reduzir-se) com o
pai que emerge da prática discursiva familiar, assim como com
outras posições em interações não tão valorosas (v.g., um racista
numa prática social de racialização, ou machista numa relação
de gênero) que possam emergir de práticas discursivas outras.
O posicionamento corresponde a essa localização e complexo
de repertórios internalizados pelos sujeitos, sendo impossível a
performance de uma dada posição de modo dissociada de todas
as demais que compõem o sujeito, isto porque, os processos de

315 Bronwyn Davies e Rom Harré, Positioning: The Discursive Production of Selves,
1990, p. 46-47.

128
Dogma e Discurso

relacionalidade, internalização e irredutibilidade estão ininter-


ruptamente em curso.
É precisamente nesse intervalo em que se entrecruzam as di-
nâmicas de emergência do dogma no interior do discurso jurídico
– constrangido pela ordem do discurso (e rede de ordens de discur-
so) – que podemos falar de investimento político e ideológico.
Fairclough postula uma noção para ideologia no contexto
teórico do discurso a partir de três asserções: a primeira delas
considera a ideologia como dotada de existência material inscrita
nas práticas sociais das instituições. Viabilizando assim investi-
gações das práticas discursivas como manifestações materiais de
ideologia. Por meio da segunda asserção admite a ideologia como
forma de interpelação dos sujeitos; o que nos leva à percepção de
um dos mais relevantes poderes causais do discurso, qual seja: a
constituição das subjetividades em razão da interpelação ideoló-
gica ocasionada pelos constrangimentos discursivos. Finalmen-
te, a terceira asserção postula os aparelhos ideológicos do Estado
como, a um só tempo, locais e marcos delimitadores de luta he-
gemônicas; o que nos encaminha para o reconhecimento de que
as disputas de poder e suas formas temporárias de estabilização
ocorrem no discurso e subjacente a ele, por meio dos investimen-
tos ideológicos nele observáveis.316
Partindo dessas asserções, Fairclough desenvolve uma noção
própria de ideologia como “significações/construções da realida-
de317 [...] que são construídas em várias dimensões das formas/sen-
tidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção,
a reprodução ou transformação das relações de dominação”. O

316 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 116.


317 Nesse momento de elaboração de sua noção de ideologia, Fairclough identifica
a “realidade” com o mundo físico, as relações sociais e as identidades sociais,
excluindo, portanto, a dimensão de linguagem dos significados ideológicos, pois,
para o autor, a ideologia investe a linguagem em lugar de constituí-la.

129
Phablo Freire

autor entende que os usos da linguagem (discurso) são ideológicos,


na medida em que servem em circunstâncias determinadas para
estabelecer ou manter relações assimétricas de poder. Desdobran-
do assim a percepção de que nem todo discurso é necessariamente
investido ideologicamente e que seu reconhecimento como tal de-
manda evidências providas de investigações científicas.318
Outro aspecto chave nos apontamentos fairclouguianos diz
respeito ao local onde a ideologia poderia estar na estratificação
da realidade, mais especificamente, o autor discute se a ideologia é
uma propriedade das estruturas (operando através dos constran-
gimentos da dupla estruturação: sistema semiótico e sistema social
da linguagem: ordem do discurso) ou uma propriedade dos eventos
discursivos (incrustrada nos textos). Valendo-se do conceito de en-
tidades intermediárias e de suas relações dialéticas com as estru-
turas para emergência dos eventos discursivos (textos), Fairclough
postula a ideologia como uma propriedade de ambas, estando pre-
sente tanto nas estruturas quanto em eventos concretos.319
A prática discursiva jurídica diz respeito à produção, à cir-
culação e ao consumo de textos jurídicos (enquanto materialida-
de do discurso) – mas essas práticas relacionam-se dialeticamen-
te com outras práticas discursivas não-jurídicas; uma conexão
constitutiva que é negada pelo Direito. Tais dinâmicas de nega-
ção, isto é, a produção dos processos antinominiais no fenôme-
no jurídico se operam através dos investimentos ideológicos que
buscam ocultar a presença do investimento político (a emergência
de conteúdos extrajurídicos na textualidade jurídica). O investi-
mento ideológico escamoteia o político fazendo com que o Direito
seja suficiente para reproduzir aspectos específicos de sociedade.
Tomemos como exemplo os eventos históricos em que o Direito

318 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 117.


319 Ibidem, p. 118.

130
Dogma e Discurso

foi instrumentalizado para legitimar a escravidão, a opressão de


mulheres e o extermínio de povos originários. No Brasil, todos
esses processos foram constituídos a partir da legitimação do Di-
reito, contribuindo para emergência de modos extrajurídicos de
interação, identificação e representações de aspectos do mundo,
todos retoricamente compatibilizados com axiomas, como jus-
tiça, igualdade e liberdade: contradições possíveis de existirem
unicamente em razão das dinâmicas de investimento ideológico
operando na prática discursiva jurídica.

131
5 Poderes Causais do Discurso Jurídico

O reconhecimento do Direito como uma forma de discurso


(o momento semiótico da prática social jurídica dialeticamente
relacionada com outros momentos da prática) implica a com-
preensão do discurso jurídico como uma forma de ação, um meio
pelo qual os atores sociais atuam sobre o mundo e, em especial,
sobre os outros, mas é também um modo de representar esse
mundo e as pessoas com as quais os atores interagem. A prática
social jurídica e seu momento semiótico figuram tanto como efei-
to quanto como condição das estruturas. Por um lado, o discurso
jurídico é moldado e constrangido por elas (condição sincrôni-
ca), por outro, é resultado (diacrônico) da agência humana que, a
seu turno, carrega consigo a potencialidade para reprodução (ou
transformação) da sociedade.320
O discurso jurídico possui poderes causais para constituir
não apenas as condições necessárias à sua reprodução como
também à reprodução (parcial) da própria sociedade; emer-
gindo no bojo dessa relação sincrônica-diacrônica como uma
forma específica de sociabilidade. Isso ocorre porque, uma vez
ativados os poderes causais do discurso jurídico, seus efeitos se
estendem não apenas na autorreprodução da prática, mas para
inúmeros níveis na reprodução da sociedade, contribuindo para
constituição das identidades sociais por meio da configuração
de posições de sujeito, elegendo relações sociais e amparando a
(re)produção de sistemas de conhecimento e crenças jurídicos e

320 Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough, Discourse in late modernity, 2007, p. 151-152.

133
Phablo Freire

extrajurídicos.321 A noção de ordem do discurso jurídico, arti-


culada em redes de ordem do discurso (adicionada à percepção
da relação entre momentos discursivos e extradiscursivos entre
diferentes práticas), nos fornece uma compreensão ontologica-
mente profunda dos modos como operam os efeitos causais do
discurso jurídico nesses processos de sociabilidade.
Bronwyn Davies e Rom Harré postulam que a compreen-
são e experiência dos atores sobre sua identidade social, o mun-
do social e seu lugar nele, são constituídas discursivamente.322 A
aquisição ou desenvolvimento das habilidades para interpretar e
interagir com o mundo deriva dos processos de posicionamento,
que se realizam em quatro estágios: i) o aprendizado de catego-
rias nas quais algumas pessoas estão incluídas enquanto outras
excluídas (v.g., o gênero masculino/feminino, pai/mãe ou juiz/
parte); ii) o engajamento em diversas práticas discursivas, por
meio das quais significados são atribuídos as categorias aprendi-
das, desenvolvendo, com isso, enredos e repertórios a partir dos
quais se constituem diferentes posições de sujeito; iii) o posiciona-
mento de si mesmo através do manejo cognitivo desses enredos
e repertórios. Trata-se aqui de posicionar-se imaginativamente
como pertencente a um conjunto de categorias, e não a outras;
iv) o reconhecimento de si mesmo como possuidor das caracte-
rísticas que situam o sujeito como parte de várias subclasses de
categorias, ao mesmo tempo que reconhece também a si mesmo
como não pertencente a outras tantas subclasses de categorias
(v.g., um homem posiciona-se no mundo como homem, mane-
jando os repertórios e enredos nos quais engajou-se por meio
do contato com um conjunto de categorias que significam o ser

321 Cf. Norman Fairclough, Bob Jessop, Andrew Sayer. Critical realism and semiosis,
2002, p. 1-4: Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 91.
322 Bronwyn Davies e Rom Harré, Positioning and personhood, 2003, p. 35.

134
Dogma e Discurso

homem e, ao fazer isso, ele posiciona-se fora do que é ser não-ho-


mem, a mulher ou outra identidade de gênero. Isso também se
dá, em alguma medida, v.g., com profissões e conjunto de profis-
sões e religiões).323 As posições de sujeito correspondem, assim, a
um conglomerado de posições, provisoriamente articuladas, por
vezes contraditórias entre si, derivadas das práticas discursivas
nas quais os atores sociais estejam engajados. Por isso, Davies e
Harré postulam que as identidades sociais emergem da perfor-
mance autorreflexiva (nos quatro estágios acima) dos atores so-
ciais convocados continuamente pelos discursos.324
Nesse mesmo sentido, ao discutir o poder causal das práti-
cas discursivas, Elder-Vass ressalta o senso de pertença como um
importante aspecto dos constrangimentos operados no interior
de práticas325, mobilizando não apenas a configuração das iden-
tidades como os modos específicos de interação. Desse modo, a
normatividade326 de uma dada prática é internalizada pelos sujei-
tos a partir de seu engajamento e reconhecimento autorreflexivo
em certas posições (e não em outras).

323 Bronwyn Davies e Rom Harré, Positioning and personhood, 2003, p. 36-37: Bronwyn
Davies e Rom Harré, Positioning: The Discursive Production of Selves, 1990, p. 47.
324 Bronwyn Davies e Rom Harré, Positioning: The Discursive Production of Selves,
1990, p. 48.
325 O debate realizado por Dave Elder- Vass, em The Causal Power of Discourse,
considera o discurso a partir da perspectiva foucoutiana. Em alguns pontos da
discussão são evidenciadas as insuficiências da teoria do discurso em Foucault
quando pensada uma articulação com o Realismo Dialético Crítico, sobretudo no
tocante ao debate sobre os efeitos causais do discurso. Com efeito, em Enlightened
Common Sense (2016), postumamente publicado por Bhaskar, o debate sobre a
relação do RDC e as teorias do discurso é continuado, e a Teoria Social do Discurso
de Norman Fairclough é sinalizada como a melhor opção – mais compatível – com
os postulados realistas críticos.
326 Elder-Vass utiliza o conceito de círculos normativos para delinear os processos de
constrangimentos operados pelos poderes causais no discurso.

135
Phablo Freire

Como seria uma posição constituída pelos poderes causais


do discurso jurídico? As categorias identitárias juiz, promotor pú-
blico, defensor público, advogado, assistente judicial entre tantas
outras emergem no interior da prática jurídica e são apreendi-
das gradualmente pelos sujeitos. É o engajamento nas práticas
judiciárias que fornece aos atores as habilidades necessárias
para posicionarem a si mesmos como performando a posição de
juiz, promotor ou advogado. A despeito de existirem repertórios
e enredos comuns a todas essas categorias (sistema de conheci-
mento e crenças), aquilo que circunscreve a posição juiz difere
da posição advogado: os enredos se entrecruzam dentro da prá-
tica, relacionam-se e fornecendo sustentação recíproca, mas não
se confundem. Dessa forma, os significados vão sendo atribuí-
dos às categorias e apreendidos pelos atores sociais em seu en-
gajamento na prática (na relação dialética entre os momentos
discursivos e extradiscursivos). À medida que os atores sociais
posicionam a si mesmos (internalizando enredos e repertórios)
e reconhecem a si próprios como pertencentes dessa espécie de
prática, o senso de pertença passa a ser necessário à manutenção
de quem esses atores são (estão sendo). O senso de pertença que o
posicionamento fornece opera o constrangimento para que esses
atores preservem suas posições. Os poderes causais aqui ativados
não são apenas oriundos do discurso jurídico, as ativações que
ocorrem permeiam toda a prática social jurídica (sobretudo, o
momento mental e interações) e, para além dela, outras entidades
pressupostas subjacentes à prática social jurídica.
Para entender os poderes causais do discurso jurídico é pre-
ciso compreender a relação entre a prática e as posições, isto é,
a prática social jurídica (considerados todos os seus momentos)
e os processos de posicionamento, pois ao passo que o discurso
fornece os enredos e repertórios nos quais se engajam autorre-
flexivamente; as posições de sujeitos operam desde o momento

136
Dogma e Discurso

mental sendo internalizadas por outros momentos (materiali-


dade e relações).327
Quando um sujeito performa a posição juiz ele o faz a partir
do lugar em que essa posição é forjada: a prática social jurídica.
Entretanto, seus enredos e repertórios precisam estar numa rela-
ção com a diferença (aquilo que não é), com seus referentes extra-
jurídicos. Só é efetiva a performance da posição juiz quando em
relação com posições que emergem em outras práticas discursivas.
Ele não será juiz performando apenas diante de outros juízes ou
apenas diante das demais posições desenvolvidas dentro da prática
jurídica, ele carece de posições não-jurídicas com as quais perfor-
mará os atos próprios ao enredo e repertório constitutivo do juiz.
A posição juiz demanda relacionalmente um outro conglomerado
de posições: o cidadão comum. A seu turno, esse cidadão comum
é o pai, é o filho, o trabalhador, consumidor, espectador; ele é tudo
isso e outras tantas posições – por vezes contraditórias entre si –,
que se acumulam discursivamente na performance, mas esse cida-
dão quando diante de um problema solucionável apenas por meio
de uma decisão judicial deverá se colocar diante de um juiz e, esse
juiz – para continuar sendo juiz – precisa que cidadãos comuns,
despidos das mesmas atribuições que o configuram juiz estejam
diante dele; em uma interação que só se desdobra dentro da prática

327 O raciocínio aqui aplicado à prática social jurídica (e seu momento semiótico) está
ancorado na noção de entidade intermediária composta por práticas e posições.
Em seu texto Societies, ao tratar do modelo transformacional, Bhaskar afirma
[em tradução livre] que “o sistema mediador (entidades intermediárias) de que
precisamos é o das posições (lugares, funções, regras, tarefas, deveres, direitos
etc.) ocupados (preenchidos, assumidos, promulgados etc.) pelos indivíduos e
das práticas, de modo que as práticas se realizam em razão das posições em que os
indivíduos se engajam (e vice-versa). Chamarei esse sistema de mediação de sistema
de prática-posições” vide também Margaret Archer, Introduction: Realism in the
social sciences, 1998, p. 200-201.

137
Phablo Freire

social jurídica. A posição juiz não se sustenta fora da relação com


outras práticas discursivas.
A posição juiz emerge dentro da prática social jurídica, mas
depende da diferença, pois precisa estar em relações com a posi-
ção cidadão comum, sem a qual não ocorre o reconhecimento de
si mesmo como possuidor das características e habilidades espe-
cificas que o caracterizam juiz (a produção e aplicação do reper-
tório, isto é, do sistema de conhecimento e crenças, do complexo
de conceitos e conceitos em rede que frequentemente é reduzido
à noção de sistema jurídico). Sem a interação não há o manejo
dos enredos e repertórios próprios à prática discursiva jurídica e
que figuram como instrumento de mediação. Por meio dos con-
ceitos jurídicos, a interação é mediada; pela interação (jurídico
discursiva e extradiscursiva), emergem identidades sociais e, atra-
vés dessas dinâmicas, os poderes causais do discurso jurídico ope-
ram a reprodução (ou transformação) de aspectos da sociedade.
Um juiz nunca é apenas um juiz e ele jamais estará disso-
ciado de tantas outras posições de sujeito produzidas nas práti-
cas não-jurídicas, nas quais se encontre engajado e em proces-
so autorreflexivo de reconhecimento. A posição juiz integra um
conglomerado de posições performada em negociação contínua
(por vezes contraditoriamente); para manutenção da identidade
social desse ator em oposição a outras posições com as quais não
se engaja ou se reconhece. A negociação implica o gerenciamen-
to cognitivo (momento mental da prática) das contradições en-
tre as posições que integram o conglomerado. No interior desse
conglomerado de posições de sujeito – que compõe a identidade
social daquele indivíduo que, dentre tantas coisas, também é juiz
–, pode haver posições incompatíveis que passam a ser negocia-
das e ajustadas cognitivamente para performance desses reper-
tórios contraditórios: imaginemos um juiz (posição que emerge
na prática social jurídica) que em níveis mais baixos (subjacência)

138
Dogma e Discurso

de sua entidade social também performa como sujeito-branco-


-racista (posição que emerge nas práticas sociais de racialização)
e precisa julgar uma demanda na qual o autor é um sujeito ne-
gro. Os repertórios e enredos que constituem a posição juiz, em
tese, são incompatíveis com aqueles que sustentam a posição ra-
cista. Para que esse conglomerado contraditório de posições de
sujeito possa seguir sustentando a performance desse indivíduo
(juiz-branco-racista), negociações serão operadas para que cer-
tos aspectos nos repertórios sejam silenciados e outros possam
emergir, significando a performance e orientando os modos de
interação (temos aqui a articulação de mecanismos e seus pode-
res generativos para ativar ou bloquear a emergência).
Quais repertórios e enredos prevalecem na contradição?328
Apenas as dinâmicas materialmente concretas podem nos ajudar
com essa resposta, mas, tendo em vista a contradição entre as po-
sições, a manutenção de ambas exigirá o investimento ideológico
que obscureça a visibilidade acerca dos repertórios e enredos ne-
gligenciados. Consideremos, v.g., quando um juiz-branco-racista
“opta”329 pelos enredos e repertórios abstratos de justiça, a partir
do sistema de conhecimento e crença da prática jurídica, e reco-
nhece o direito do sujeito negro. Interagindo dessa maneira, o
juiz-branco-racista incide em uma contradição com os enredos
e repertórios que orientam uma interação violenta entre raças
(esperada na posição racista). Essa falha na performance racista

328 O debate sobre a prevalência dos repertórios e enredos diz respeito à centralidade
das posições na experiencia dos sujeitos. Trata-se de um debate específico ao qual
me dedico em outra obra: Cidadania e Performance.
329 As aspas no verbo optar devem servir para chamara atenção para o debate sobre a
relação entre agencia e estrutura, mais precisamente, a ideia de controle e liberdade
da agencia e os constrangimentos operados pelos mecanismos e poderes generativos
estruturais; como tratamos aqui de entidades intermediárias, devemos reconhecer
que essa ação de “optar” nem se dá inteiramente no campo da livre individualidade
de escolha, tampouco no circuito determinista fechado de constrangimento.

139
Phablo Freire

não pode estar visível para seus pares (com os quais se reconhece
como pertencente às práticas racistas), por isso, precisará investir
o discurso racista ideologicamente para ocultar os elementos de
justiça (reconhecimento de direitos) que emergiram na perfor-
mance da posição juiz, contradizendo as expectativas de perfor-
mance da posição racista. De outro modo, se na performance da
posição juiz, em razão da posição racista, afasta a expetativa que
deriva dos enredos e repertórios jurídicos e produz sua decisão a
partir dos enredos e repertórios violentos produzidos no interior
da prática racista, precisará estereotipar seu discurso jurídico –
investindo-o ideologicamente – para impedir que seus pares ju-
rídicos (e toda a sociedade) identifiquem em sua performance a
ativação de poderes causais de um discurso não-jurídico.
A contradição entre enredos e repertórios no interior do
conglomerado de posições de sujeitos requer, invariavelmente, o
manejo cognitivo e discursivo de investimentos ideológicos para
que o sujeito continue apto a performar uma variedade de posi-
ções de sujeito contraditórias entre si.
Nesse entreato em que o discurso jurídico emerge ideologica-
mente investido, passa a contribuir para um modo de reprodução do
social que obscurece a compreensão de todos os sujeitos engajados
na rede de práticas. O discurso é internalizado pelos demais momen-
tos e, todos eles, na prática jurídica são dialeticamente constituin-
tes de outras dimensões do social, como postulado por Fairclough,
constituindo identidades sociais, modos de interação e sistemas de
conhecimento e crenças.330 Ao emergir investido por estratégias de
mascaramento e falseamento de seus elementos constitutivos, em
especial os processos de negação das conexões dialéticas entre a
prática jurídica e as relações sociais históricas, como apontado por
Norrie, o discurso jurídico (e dialeticamente a prática em si mesma)

330 Norman Fairclough, Discurso e mudança social, 2001, p. 91.

140
Dogma e Discurso

contribui para a reprodução da sociedade e as assimetrias de poder


que imbricam modos de interagir, modos de identificar a si e aos
outros e sistemas de conhecimento e crenças.
Mais especificamente: O que implica esse processo de nega-
ção na produção dos conceitos jurídicos? Quais poderes causais
esses conceitos parcialmente acessados em razão das dinâmicas
de negação (tensões irresolúveis e contradição dialética) operam
na reprodução (ou transformação) da sociedade?
Se pensarmos a articulação desses conceitos como um re-
pertório jurídico (cada conceito em sua produção individual
considerado em rede de conceitos), continuamente internaliza-
do pelos atores sociais em seu engajamento na prática discursiva
jurídica, precisaremos reconhecer que da internalização dos en-
redos derivará modos de interação igualmente eivados de efeitos
observáveis oriundos dessas contradições dialéticas. Esse sistema
de conhecimento e crenças, uma vez investidos ideologicamente,
produzirá a internalização de modos de interação e identificação
orientados para manutenção dos processos de negação.
Há uma tendência historicamente observável de (re)produção
de uma noção de autonomia dos objetos de conhecimento jurídicos
e dissociação (negação/contradição dialética) entre esse repertório
(sistema de conhecimento e crenças) e outras dimensões da realida-
de social: levando os atores engajados na prática a afirmarem a au-
tonomia das formas jurídicas como um aspecto de suas identidades
e da interação (basta observarmos a fala de algum juiz ao delimitar
‘até onde vai sua competência’ e onde começaria a de um gestor pú-
blico na ‘efetividade’ de alguma política pública ou norma jurídica.
Isso também poderia ser observado quando algum juiz afirma ser a
sociedade algo diferente do Direito, o que o desoneraria de uma res-
ponsabilização ampla na resolução dos problemas sociais). ‘Quem’ o
juiz consegue ser depende das ‘ações’ que ele é autorizado a perfor-
mar pelos enredos e repertórios da prática discursiva jurídica, por

141
Phablo Freire

isso as reivindicações do que o Direito é (e o que ele não é) afetam


dialeticamente as identidades e as interações.
Precisamos ressaltar dois aspectos sobre esse processo his-
tórico de negação. Ocorrem, por certo, dois níveis na produção
desse modo de representação antinominial (que se consubstancia
em uma crença331). Há um primeiro nível, por meio do qual a
negação, que é identificada no interior da prática discursiva (ou
seja, no momento semiótico da prática), é internalizada pelos ou-
tros momentos (internos) na ordem do discurso jurídico. Um mo-
vimento autorreflexivo (que é originalmente representacional,
mas é também interacional e identificacional), por meio do qual
emerge essa crença na autonomia dos conceitos e, conseguinte, a
redução do Direito a um complexo autorreferenciado e fechado
de modos de representar, agir e identificar-se332. Um segundo ní-
vel, mais abaixo, situado na subjacência do discurso jurídico, diz
respeito às relações dialeticamente constitutivas entre a prática
social jurídica e as demais práticas, negadas – de modo incisivo –
pela ideia (crença) de autonomia do Direito (inclusive por teorias
contemporâneas e críticas que incidem na falha irrealista, como
apontado por Bhaskar). Dessa forma, a negação, a contradição
dialética e as tensões irresolúveis não são achadas apenas na su-
perfície do discurso, nos conceitos jurídicos (representações) e
internalizadas nos repertórios e enredos produzidos na prática
discursiva jurídica, mas, por certo, essas dinâmicas emergem
como efeitos observáveis de antinomias mais profundas, aquelas
derivadas da negação dos pressupostos essenciais de outras prá-
ticas como constitutivos da prática social jurídica.

331 Discutida parcialmente por Warat, através de sua noção de Senso Comum Teórico
dos Juristas.
332 Com algumas exceções teóricas que reconhecem a necessidade de posicionar, ao lado
desse sistema de conceitos/normas, a ideia de práticas/interações e as identidades
(autoridades/cidadãos comuns).

142
Dogma e Discurso

Como bem ressaltou Norrie,333 desses processos históricos


de negação emerge essa forma de sociabilidade especificamente
observável no Direito (emergência de posições de sujeito a partir
da prática discursiva jurídica).
Os atores sociais engajados na prática jurídica manejam os
conceitos (que dela emergem) como recurso (repertórios e en-
redos) para performarem nessas interações jurídicas. Enredos e
repertórios fornecem as condições para interação, mediam a re-
lação e reafirmam a diferença que sustenta tais posições, (re)po-
sicionando assim as identidades jurídicas e extrajurídicas (rela-
cionadas e irredutíveis entre si). Se os conceitos que compõem os
repertórios e enredos possuem aspectos negados, o acesso à rea-
lidade por eles mediado é parcialmente possível (restando par-
celas ocultadas), resultando não apenas numa forma de acesso e
compreensão obliterada, como toda a possibilidade de interação.
Os processos de negação (contradição dialética e tensões irreso-
lúveis) não constituem apenas os conceitos jurídicos (dogmas e
rede de dogmas), mas operam poderes causais aptos a modelar e
constranger maneiras imprecisas, incompletas e obscurecidas de
acesso e compreensão da realidade através das interações e iden-
tidades eivadas de antinomialismo.
Esse movimento autorreflexivo de produção da crença na
clausura, obscurece a percepção de todas as dinâmicas (discursi-
vas e extradiscursivas) que compõem a emergência do Direito e,
em razão de sua emergência, a reprodução (ou transformação) da
sociedade se realiza (actual), acompanhada de investimentos que
bloqueiam uma compreensão profunda acerca não apenas dos
problemas sociais que antecedem e atravessam o Direito, mas,
sobretudo, do papel do Direito como entidade intermediária nes-
ses modos antinominiais de reprodução da sociedade.

333 Alan Norrie, Law and the beautiful soul, 2005, capítulo II, p. 19-32.

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