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Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza

Gina Vidal Marcilio Pompeu


Ana Carla Pinheiro Freitas

Gestão
das águas
Dignidade Humana e Sustentabilidade por
meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor.
www.lumenjuris.com.br

Editor
João Luiz da Silva Almeida

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Editora Lumen Juris


Rio de Janeiro
2018
Copyright © 2018 by Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza
Gina Vidal Marcilio Pompeu
Ana Carla Pinheiro Freitas

Categoria: Direitos Humanos

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Alex Sandro Nunes de Souza

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


não se responsabiliza pelas opiniões
emitidas nesta obra por seu Autor.

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Impresso no Brasil
Printed in Brazil

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação


de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

Gestão das águas : dignidade humana e sustentabilidade por meio do fortale-


cimento das cadeias de valor / Maria Claudia de Souza Antunes, Gina Vidal Mar-
cilio Pompeu, Ana Carla Pinheiro Freitas. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2018.
308 p. : il. fotos ; 23 cm.

Inclui bibliografia.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiço-
amento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financia-
mento 001.

ISBN 978-85-519-0991-1

1. Direito de Águas. 2. Dignidade da Pessoa Humana. 3. Águas - Con-


servação. 4. Desenvolvimento Sustentável. I. Pompeu, Gina Vidal Marcilio.
II. Freitas, Ana Carla Pinheiro. III. Título.

CDD 345

Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927


Breve apresentação dos autores

Ana Carla Pinheiro Freitas


Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2005). Pós-Doutorado em Direito pela UNIFOR (2015). Atualmente é pesqui-
sadora do REPJAL/UNIFOR e professora dos cursos de mestrado e doutorado
na UNIFOR. Tem experiência na área de Psicologia e Direito Constitucional,
Ambiental, Internacional, Psicologia Jurídica e Filosofia do Direito.

Andrés Molina Giménez


Doutor em Direito Ambiental pela Universidade de Alicante, Espanha.
Graduado em Direito pela Universidade de Alicante. Atualmente é professor
titular na Universidade de Alicante. Professor de Direito Administrativo da
Licenciatura em Derecho, da Universidade de Alicante.

Belinda Pereira da Cunha


Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento; Coordenadora do Gru-
po de Pesquisa CNPq Saberes Ambientais - Homenagem a Enrique Leff: Sus-
tentabilidade, Impacto, Gestão e Direitos. Pós-doutorado CAPES Universidade
Autônoma do México, Instituto de Investigaciones Sociales, UNAM. Professo-
ra Associada UFPB. Professora do PPGCJ e do PRODEMA

Cesar Luiz Pasold


Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco-
-Universidade de São Paulo-USP; Pós Doutor em Direito das Relações Sociais pela
Universidade Federal do Paraná-UFPR; Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela
Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC; Mestre em Saúde Pública pela Facul-
dade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo-USP. Docente da Universidade
do Vale do Itajaí. Presidente da Academia Catarinense de Letras Jurídicas Vice

Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida


Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2001). Professora Assistente do Departamento de Direitos Humanos, Difusos e
Coletivos da PUC/SP. Professora de Direito Ambiental na Graduação e na Pós-
-Graduação (Mestrado e Doutorado) e Coordenadora dos Cursos de Especia-
lização em Direito Ambiental e Gestão Estratégica da Sustentabilidade (PUC/
COGEAE/SP). Professora e pesquisadora do Programa de Mestrado - Centro
Universitário Salesiano de São Paulo-UNISAL/Lorena-SP.

Denise Schmitt Siqueira Garcia


Doutora pela Universidade de Alicante na Espanha. Mestre em Derecho
Ambiental y Sostenibilidad pela Universidade de Alicante na Espanha. Mestre
em Ciência Jurídica. Especialista em Direito Processual Civil, Graduada em
Direito. Atualmente é professora do Programa de Pós- graduação stricto sensu
em Ciência Jurídica, de pós graduação lato sensu e da graduação. Coordenadora
de pós graduação lato sensu em Direito Processual Civil da Universidade do
Vale do Itajaí.

Gabriel Real Ferrer


Doutor Honoris Causa pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
Doutorado em Direito pela Universidade de Alicante (1992). Doutorado em
Direito pela Universidade de Alicante (1992). Professor Titular de Direito Am-
biental e Administrativo e Subdiretor do Instituto Universitário da Água e do
Meio Ambiente na mesma Universidade. Consultor do Programa das Nações
Unidas (ONU) para o Meio Ambiente? PNUMA.

Gina Vidal Marcilio Pompeu


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004), com
estágio Pós-Doutoral em Direito pela Universidade de Lisboa, Portugal (2017).
Advogada inscrita na OAB-CE sob o n. 6101. Coordenadora e Professora Titu-
lar do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade
de Fortaleza, Mestrado e Doutorado. Coordenadora do grupo de pesquisas RE-
PJAL, Relações econômicas, Políticas, Jurídicas da América Latina cadastrado
no CNPQ, bem como é lider do CELA, Centro de Estudos Latino-Americano
da Universidade de Fortaleza Email: ginapompeu@unifor.br

Ivanna Pequeno dos Santos


Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza.
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR.
Especialista em Direitos Humanos Fundamentais pela Universidade Regional
do Cariri - URCA. Professora Assistente da Universidade Regional do Cari-
ri. Tem experiência na área de Direito Empresarial, Civil e Ambiental. Atua
principalmente nos seguintes temas: Constitucionalização do direito privado
e direito das águas. Pesquisadora dos grupos de pesquisa: GEDHUF (URCA/
CNPQ) e GEPEDI Ensino e Pesquisa no Direito (UNIFOR/CNPQ).

Jahyra Helena Pequeno dos Santos


Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNI-
FOR. Especialista em Direitos Humanos Fundamentais pela Universidade Re-
gional do Cariri - URCA. Professora Assistente da Universidade Regional do
Cariri - URCA. Tem experiência na área de Direito Constitucional e Teoria
Geral do Direito. Pesquisadora do grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos
Humanos Fundamentais - GEDHUF (URCA/CNPQ) e membro do grupo de
Estudo Ensino e Pesquisa no Direito - GEPEDI (UNIFOR/CNPQ).

Joaquín Melgarejo Moreno


Doutor em Historia pela Universidade de Murcia (1993). Mestre em Ges-
tão Sustentável e Tecnologias da Água (Instituto de Ciências da Água e do
Ambiente da Universidade de Alicante) e Mestre em Tecnologias da Água
(CUJAE, Havana). Na Espanha, é professor Catedrático de História e Institui-
ções Econômicas na Universidade de Alicante -UA. Atualmente é Diretor do
Instituto de Ciências da Água e do Meio Ambiente IUACA, vinculado a Uni-
versidade de Alicante e também Diretor de projetos no INECA, vinculado ao
IUACA. No Brasil, é professor visitante do Programa de Mestrado e Doutorado
em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí- UNIVALI.

José Irivaldo Alves O. Silva


Pós-Doutor em Desenvolvimento Regional. Doutor em Ciências Sociais.
Doutorando em Direito e Desenvolvimento. Pesquisador Produtividade do
CNPq, nível 2. Em estágio Pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em
Direito, no Grupo de Pesquisa em Direito Ambiental e Sociedade de Risco,
na Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Sociologia. Espe-
cialista em Gestão das Organizações Públicas. Especialista em Direito Em-
presarial. É pesquisador com ênfase em conflitos ambientais, meio ambien-
te, sociedade de risco, legislação ambiental, desenvolvimento sustentável,
políticas públicas relacionadas ao acesso à água e saneamento. É membro
atuante em diversos grupos de pesquisa. É membro da rede de pesquisa WA-
TERLAT, http://www.waterlat.org/Members.html#brazil. E-mail: irivaldo.
cdsa@gmail.com ou prof.irivaldo@ufcg.edu.br

Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo


Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza -
UNIFOR (2016-2020). Bolsista CAPES/BRASIL. Pesquisadora dos Grupos
REPJAL e GEPEDI, ambos da Universidade de Fortaleza. Mestre em Direito
Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2014). Especialista em Direito
Processual: Grandes Transformações pela UNISUL (2009). Advogada com ex-
periência em Direito Administrativo (Licitações Públicas e Contratos), Civil,
Ambiental e Trabalhista.

Lucas São Thiago Soares


Advogado. Pós-graduando em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Com-
plexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC).

Luciana Cordeiro de Souza Fernandes


Doutorado (2005) e Mestrado (2001) em Direito pela Pontifícia Universida-
de Católica de São Paulo (PUCSP), área Direitos Difusos-Direito Ambiental;
Especialização em Direito Processual Civil (PUCCAMP - 1991) e em Direito
Penal e Processual Penal (USF - 1999). Professora da Faculdade de Ciências
Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas- UNICAMP. Professora Ple-
na no Programa de Pós Graduação em Ensino e História das Ciências da Terra
(PEHCT) no Instituto de Geociências - UNICAMP. Líder do Grupo de Pesqui-
sa/CNPQ AQUAGEO AMBIENTE LEGAL da FCA/UNICAMP. Parecerista
e Consultora em Direito Ambiental.

Manoelle Brasil Soldati


Doutoranda em Ciência Jurídica, com dupla titulação, pela Universidade do
Vale do Itajaí, na cidade de Itajaí, estado de Santa Catarina, Brasil, e Universi-
dade de Alicante. Pós-graduada em Direito Processual pela Universidade do Sul
de Santa Catarina - UNISUL, Mestre em Ciências Jurídico-empresariais pela
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Juíza de Direito do Tribunal
de Justiça de Santa Catarina.
Marcelo Buzaglo Dantas
Doutor (2012) em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Visiting Scholar do Environmental Law Program da
Pace Law School (White Plains/NY), de janeiro a abril de 2012, tendo sido Bol-
sista do PDSE da CAPES no período. Pós-Doutor (2014-2017) pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Professor
Visitante dos Cursos de Mestrado e Doutorado do Instituto Universitario del
Agua y de las Ciências Ambientales da Universidad de Alicante e da Widener
University Delaware Law School

Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza


Doutora e Mestre em Derecho Ambiental y de la Sostenibilidad; pela Uni-
versidade de Alicante - Espanha. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade
do Vale do Itajaí - Brasil, Graduada em Direito pela Universidade do Vale do
Itajaí - Brasil. Professora Permanente no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Ciência Jurídica, nos cursos de Doutorado e Mestrado e, na Gra-
duação no Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental, Transnacionalidade e
Sustentabilidade. Advogada e Consultora Jurídica.

Priscilla Linhares Albino


Doutoranda em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí. Pós-
-Graduação em Direito Processual Penal (2006) e Direito Ambiental (2010)
pela Universidade do Vale do Itajaí, e especialista em Proteção Jurisdicional
dos Direitos da Criança (2009), pela Universidade Diego Portales, do Chile.
Mestre em Saúde e Meio Ambiente pela Universidade da Região de Joinvil-
le (2009) e mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2014). Atualmente é Promotora de Justiça aposentada do Ministério Público
do Estado de Santa Catarina

Rosangela Souza Bernardo


Mestre em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza-UNIFOR.
Especialista em Direito Constitucional e Direito Processual Constitucional pela
Universidade Estadual do Ceará (2015). Membro do Grupo de Pesquisa Estado,
Política e Constituição (UNIFOR/CNPQ). Advogada (OAB/CE nº 17.198).
XII
Sumário

Apresentação................................................................................................... 1

Desenvolvimento humano e a gestão das águas: análise do


fortalecimento das cadeias de valor............................................................... 7
Gina Vidal Marcilio Pompeu
Rosangela Souza Bernardo

Novo constitucionalismo latino-americano: exemplo de acesso


à água potável.................................................................................................35
Manoelle Brasil Soldati
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza
Cesar Luiz Pasold

O direito fundamental de acesso à água potável no Brasil como


condição para um desenvolvimento sustentável..........................................57
Ana Carla Pinheiro Freitas
Ivanna Pequeno dos Santos
Jahyra Helena Pequeno dos Santos

“Pegada hídrica” e o valor da água: dimensões entre Capitalismo,


Consumismo e Justiça Intergeracional.........................................................75
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza
Priscilla Linhares Albino
Vânia Petermann

Gobernanza del agua y ods 2030 Agua y Sostenibilidad..........................115


Gabriel Real Ferrer

Poluição hídrica e os desafios dos contaminantes emergentes ................135


Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes
Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida
Apresentação

Tales de Mileto, filósofo Pré-Socrático, afirmava que “tudo é água” na de-


fesa de que a matéria básica do cosmos seria esse líquido primordial, do qual
todas as demais derivariam. Zygmunt Bauman, filósofo Pós-Moderno, chama a
contemporaneidade de "modernidade líquida”. Para ele, a "liquidez" serve como
metáfora básica caracterizadora das virtudes e mazelas da atualidade. Seja na
Antiguidade Pré-Socrática ou na Pós-Modernidade, a água sempre esteve e está
presente no cotidiano dos seres humanos, permeando o seu mundo concreto
assim como seu imaginário.
É sobre a água como patrimônio natural, cultural e econômico que tra-
ta o livro Gestão das Águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade por
meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor. Utilizando-se de uma frase
de Shakespeare: “a água corre tranquila quando o rio é fundo”, temos que
os textos apresentados visam verticalizar ou aprofundar as discussões acerca
do tema “água” nas dimensões apontadas, haja vista contribuir para o incre-
mento da proteção deste bem sui generis e favorecer, na medida do possível, a
correnteza do rio que leva a soluções concretas para um dos maiores, se não
for o maior problema da humanidade na complexa sociedade do Século XXI:
a escassez do líquido primordial.
Os artigos que compõem a obra foram desenvolvidos por pesquisadores
vinculados aos Programas de Pós-Graduação stricto sensu em Direito do Bra-
sil e da Espanha. os temas discutidos decorrem, em seu maior número, dos
estudos realizados pelo Grupo de Pesquisa “Direito Ambiental, Transnacio-
nalidade e Sustentabilidade” vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência Jurídica(PPCJ) da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e pelo
Grupo de Pesquisa “Relações Econômicas, Políticas, Socioambientais e Jurí-
dicas na América Latina (REPJAL) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
A contribuição de importantes pesquisadores do tema, catedráticos da Uni-
versidade de Alicante, na Espanha, Professores Doutores Gabriel Real Ferrer,
Joaquín Melgarejo Moreno e Andrés Molina Giménez, vem enriquecer e atu-
alizar o aspecto transnacional e difuso de questões envolvendo a preservação,
o acesso e o uso da água.

1
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza
Gina Vidal Marcilio Pompeu
Ana Carla Pinheiro Freitas

No correr do livro são abordados temas como o fortalecimento das cadeias


de produção rural na América Latina pelo viés da questão hídrica, por Gina
Marcilio Pompeu e Rosângela Souza Bernardo. Ainda no que tange à Améri-
ca Latina, melhor dizendo ao “Novo Constitucionalismo Latino-Americano”,
Manoelle Brasil, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pa-
sold desenvolvem temática acerca da "Justiça Hídrica" por meio do acesso
à água potável e a materialização da democracia de acordo com o modelo
latino-americano emergente, inicialmente vislumbrado nas Constituições do
Equador e da Bolívia.
Em texto de Ivanna Pequeno, Jahyra dos Santos e Carla Pinheiro, a água é
apontada como o ouro emergente, o “ouro azul”, destronando o chamado "ouro
negro" ou petróleo, que reinava como valor soberano até meados do Século XX.
No mesmo texto, o Direito Fundamental de acesso à água potável no Brasil é
abordado como condição imprescindível para o desenvolvimento sustentável,
especialmente no que diz respeito à chamada "crise hídrica” que configura, na
verdade, uma crônica escassez de água que assola a região Nordeste do Brasil
desde o período da Colonização.
O capítulo sobre “pegada hídrica e o valor da água: dimensões entre capi-
talismo, consumismo e justiça intergeracional” de autoria de Maria Cláudia da
Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino e Vânia Petermann, apre-
sentam a conexão com a evolução do capitalismo e o consumismo humano,
seja para aumentar as necessidades de uso de recursos naturais nas cadeias de
produção, desde o início até o final, seja para o acompanhamento humano nas
necessidades de consumir cada vez mais. Destaca-se a responsabilidade do Es-
tado, da Sociedade, das empresas e dos cidadãos pelo uso consciente da água
potável, responsáveis também pela sua (re) geração de modo que as futuras
gerações possam dela desfrutar como Direito Fundamental.
O tema “governança" da água e os objetivos do Desenvolvimento Susten-
tável da ONU, desenvolvido com maestria por Gabriel Real Ferrer, aponta a
necessidade de gestão adequada da água, que envolve a "arte de governar”. O
autor aponta o alcance de desenvolvimento econômico, social e institucional
duradouro, assim como a promoção do equilíbrio entre Estado, sociedade civil
e mercado econômico como objetivos da governança.
A poluição hídrica e os desafios dos contaminantes emergentes na complexa
sociedade contemporânea, configuram o discurso textual de Luciana Cordeiro
de Souza e Consuelo Yatsuda M. Yoshida. As autoras defendem como marco

2
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

inicial da problemática a Primeira Revolução Industrial. Como ápice da conta-


minação por poluentes emergentes tem-se a catástrofe de Mariana, ocorrida em
novembro de 2015. Elas descrevem como a referida catástrofe e suas consequên-
cias configuram a maior ameaça aos recursos hídricos, no Brasil.
Os apontamentos que abordam a pré-história da sustentabilidade até sua
concepção atual, assim como a inserção da água no cenário de proteção
ambiental é tratado no presente livro por Carla Pinheiro e Liane Araújo.
Aponta-se no referido texto a ponte histórica que une o conceito de sus-
tentabilidade, nomeado como Nachhaltigkeit na Alemanha há mais de 400
anos e o “Nosso Futuro Comum”, ou Relatório Brundtland, de 1987 e suas
repercussões até a contemporaneidade.
O mercado da água na Espanha como marco legal e sua respectiva análise
econômica são abordados por Joaquin Melgarejo Moreno e Andrés Molina Gi-
menez. O desenvolvimento do tema traz como premissa a ideia de que a gover-
nança da água deve basear-se em critérios de racionalidade econômica que con-
duzam a uma adequada gestão e preservação dos recursos naturais. Importante
pois, segundo os autores, buscar mecanismo que demonstrem aos consumidores
“sinais de escassez”, que lhes induza a valorizar a água e seu custo efetivo com o
objetivo de balancear as demandas por esse precioso bem.
A questão da água como bem ou mercadoria é abordada por Denise Schmitt
Siqueira Garcia, no sentido de apontar a necessidade de efetiva proteção da
qualidade deste patrimônio tendo em vista se concretizar o direito de acesso
à água potável. Esse desiderato somente tornar-se-á possível se a água for tida
como um bem ambiental, não enquadrável na clássica noção de bem como algo
economicamente quantificável.
Outro importante tema abordado por Welison Araújo Silveira e Belinda
Pereira da Cunha diz respeito à “transposicão das águas do Rio São Francisco”.
Discute-se, mais especificamente, acerca das crises política e ambiental que en-
volvem o tema. Em seu discurso, os autores defendem a efetivação da transposi-
ção como possibilidade de mitigar a escassez de água em Estados específicos do
Nordeste brasileiro. Defendem, ainda, que os impactos negativos não arrolados
no estudo de impacto ambiental, foram identificados a posteriori e que, apesar
deles, a transposição continua sendo mecanismo viável no sentido de possibili-
tar o acesso à água a muitos nordestinos.
O licenciamento ambiental como instrumento de controle é apontado como
importante mecanismo de proteção dos recursos hídricos por Marcelo Buzaglo

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Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza
Gina Vidal Marcilio Pompeu
Ana Carla Pinheiro Freitas

Dantas e Lucas São Thiago Soares. A construção, instalação, ampliação e fun-


cionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais
efetiva ou potencialmente poluidoras ou capazes, sob qualquer forma, de cau-
sar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental, como
bem determina a Lei Complementar n.140/2011. No entanto, segundo os autores,
deve-se estabelecer uma leitura atualizada da referida lei, leitura esta que atenda
às demandas ambientais, econômicas e sociais da complexa realidade brasileira.
A tutela jurídica do "ciclo urbano da água" é introduzida por Talden Farias e
José Irivaldo Alves O. Silva. Os autores destacam que uma abordagem exclusi-
vamente jurídica do ciclo urbano da água não seria suficientemente abrangente
e que o problema da injusta distribuição e, por conseguinte, do injusto acesso
à água deve ser inserida para que se possa refletir a partir de um marco teórico
que transcenda o fenômeno jurídico. Tem-se em vista explicar as dinâmicas
socio-jurídicas que atravessam o referido "ciclo urbano da água".
Com o intuito de atar as duas pontas da apresentação deste livro, não é pos-
sível se furtar de falar da água em forma de literatura, desta vez, de literatura
cantada e cumprir assim, de forma pouco ortodoxa ou de modo poético, o que
determinam as diretrizes do "Desenvolvimento Sustentável" ou do “Nosso Fu-
turo Comum”: pensar global e agir local. Assim como iniciamos a apresentação
com Tales, Bauman e Shakespeare, nomes da seara clássica e global, findamos
com a poesia de Luiz Gonzaga, nome da clássica seara local, mais precisamente
do Nordeste do Brasil. Luiz Gonzaga canta a esperança da chegada da água no
sertão nordestino “quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação” e
quando “o mandacaru florecer na seca”.
Boa leitura a quem se aventurar a percorrer os caminhos da presente obra!

Profa. Dra. Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza


Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduacão Stricto Sensu em Ci-
ência Jurídica da UNIVALI e Líder do Grupo de Pesquisa “Direito Ambiental,
Transnacionalidade e Sustentabilidade"

Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu


Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduacao Stricto Sensu em
Direito da UNIFOR
e Líder do Grupo de Pesquisa REPJAL

4
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Profa. Dra. Ana Carla Pinheiro Freitas


Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Direito da UNIFOR e Coordenadora do Grupo de Estudo “Água, Sustentabili-
dade e Direitos Humanos”, vinculado ao Grupo de Pesquisa REPJAL

Organizadoras

5
Desenvolvimento humano e
a gestão das águas: análise do
fortalecimento das cadeias de valor

Human development and water management: an analysis regarding the


strengthening of value chains.

Gina Vidal Marcilio Pompeu1


Rosangela Souza Bernardo2

Introdução
O objetivo geral exposto neste artigo é identificar de que modo pode-se
fortalecer as cadeias de produção rural na América Latina e analisar sua rela-
ção com as águas. Os objetivos específicos são três: identificar maneiras para
implementar o desenvolvimento sustentável no espaço rural a partir do forta-
lecimento das cadeias de valor nas atividades econômicas primárias e agregar
tecnologia e inovação nos processos produtivos; demonstrar que o desenvol-
vimento sustentável pressupõe o desenvolvimento humano e que o uso ético
das águas nas atividades econômicas pressupõe a capacidade para produzir e
acessar dados relevantes; propor a implementação da política industrial rural
para fortalecer as cadeias de valor das atividades no campo. Para alcançar os
objetivos elencados acima são discutidos o escopo das instituições para o de-

1 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Direito (Direito e


Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (1994) e Doutora em Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco (2004). Coordenadora e Professora do Programa de Pós-Graduação em
Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Mestrado e Doutorado. Consultora
Jurídica da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará. E-mail para contato: ginapompeu@unifor.br
2 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Constitucional
e Direito Processual Constitucional pela Universidade Estadual do Ceará (2015). Mestranda em
Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Advogada. E-mail para contato:
rosangela.bernardo@gmail.com

7
Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

senvolvimento humano, especialmente a responsabilidade social das empresas.


Debate-se a natureza de bem comum das águas e o reflexo dessa característica
na gestão desse bem, importando em responsabilidade pelo destino comunitá-
rio e relevância para o aperfeiçoamento humano. Por fim, indica-se as relações
entre a agricultura familiar e a implementação da política industrial rural para
o fortalecimento das cadeias de valor da economia no setor e os objetivos do de-
senvolvimento sustentável. A metodologia baseia-se no estudo interdisciplinar
entre economia, direito e sociedade. A pesquisa é bibliográfica e documental,
descritiva e exploratória. Também, propõe-se a ofertar soluções para o enfreta-
mento dos problemas identificados.
Sabe-se que o constitucionalismo latino-americano, do final do Século XX
e início do Século XXI, busca conciliar a ordem econômica com a ordem so-
cial. Persiste o discurso uníssono a favor da redução das desigualdades sociais
e regionais e da defesa dos direitos humanos de liberdade, de igualdade e
de fraternidade, porém efetivar direitos previstos nas constituições dirigen-
tes só se fará possível com a orquestração dos anseios e esforços da socieda-
de, das empresas e do Estado em benefício da conciliação entre crescimento
econômico e desenvolvimento humano, que obrigatoriamente perpassa pela
formação do capital humano. Nesse contexto, analisar as condições físicas,
geográficas, climáticas de cada local, assim como compreender as habilidades
e capacidades da população são passos iniciais para a formulação de legislação
e de políticas públicas adequadas.
Vale lembrar que a América Latina é rica em recursos naturais em razão da
quantidade de água presente em seu território. Dessa forma, as atividades agro-
pecuárias se destacam entre as vocações produtivas da Região porque elas utili-
zam intensivamente as águas como insumo produtivo. Nesse viés, cabe destacar
o papel da agricultura familiar e do agronegócio que garantem o abastecimento
nacional e internacional de gêneros alimentícios.
No entanto, a promoção do desenvolvimento alicerçado em bases susten-
táveis constitui desafio para as instituições e para os Estados. Essa visão cor-
responde a implementar atividades econômicas que proporcionem, simultane-
amente, ganhos ambientais e sociais, e o uso racional das águas nas atividades
produtivas empreendidas na Região. O primeiro gargalo para produzir com
base nos critérios éticos da sustentabilidade é o desenvolvimento humano.
Verifica-se, nesse diapasão, que a Região apresenta números inferiores nos
índices de capital humano.

8
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Como consequência desta primeira dificuldade, gera-se outra, que se refe-


re à capacidade para produzir e acessar dados relevantes para induzir novos e
melhores comportamentos produtivos. Boas práticas econômicas e sociais são
geradas a partir de informações que ofereçam análises econômicas e ambientais
pertinentes aos interesses dos empreendedores, da sociedade e das agências de
fomento e incentivo. Assim, cria-se fluxos de informações que permitem gerar
conhecimento e processos que repercutem em novas cadeias de aplicação, ge-
rando dados ainda mais complexos.
Em seguida, observa-se que a produção e o acesso à tecnologia e a processos
inovadores resultam da capacidade de gerar dados. A partir do diagnóstico das
fortalezas e das fraquezas, da realidade ambiental econômica, comercial, huma-
na, educacional, social e produtiva de dado território, pode-se contribuir para a
construção dos meios e processos que promovam a superação das dificuldades
apresentadas, e nesse viés valorizar as potencialidades locais.
Pondera-se para que a América Latina alicerce os processos para implemen-
tar os objetivos do desenvolvimento sustentável nos espaços rurais da Região a
partir do fortalecimento das cadeias de produção rurícola. Assim, deve-se agre-
gar tecnologia aos processos produtivos da atividade primária, os quais repercu-
tirão nas cadeias industriais de transformação e manufatura de tais produtos,
que agora apresentam maior qualidade e, portanto, agregam valor aos produtos.
Ressalta-se que a produção alicerçada em tecnologia, além de oferecer pro-
dutos melhores e com maiores resultados econômicos, deve também ser am-
bientalmente limpa e repercutir na melhoria das condições sociais das comu-
nidades direta e indiretamente influenciadas. Para tanto, necessário é ampliar
as capacidades na Região, e construir valores que permitam o florescimento de
boas práticas e por fim, desenvolvimento humano.
Vale lembrar que a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
- CEPAL - propôs a efetivação da Política Industrial Rural para a implementa-
ção da Agenda 2030 e para a promoção de diversos objetivos ligados ao espaço
rural. A visão desta instituição para o desenvolvimento sustentável do campo
em tal Região congrega, a partir dos critérios da sustentabilidade, o desenvolvi-
mento humano, a inovação tecnológica, a reinvenção de práticas produtivas, o
incremento das instituições, o fortalecimento das cadeias de produção ligadas
às atividades agropecuárias e a construção da indústria rural, haja vista ser
aquela que transforma os produtos das atividades primárias.

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

Nesse sentido, por meio dessa pesquisa, discute-se a relevância dos fatores
humanos para o incremento da produção rural com base na análise das cadeias
de valor, do uso intensivo da tecnologia e do desenvolvimento econômico sus-
tentável. Todos esses debates têm origem nas características ambientais e so-
ciais da América Latina e a produção econômica que apresenta. Nota-se que as
águas são o fio condutor da análise em razão de sua relevância para os processos
econômicos e sua abundância ou de sua escassez na Região.
A análise inicia-se ao apresentar o cenário da relevância das águas para a
América Latina e o desenvolvimento humano, nesse viés, abordam-se aspectos
do desenvolvimento sustentável e da responsabilidade social das empresas e dos
indivíduos para a construção de um futuro melhor e equânime. Em seguida,
debate-se o papel da informação para o desenvolvimento humano e as reper-
cussões para a economia e a sociabilidade. Logo após, relaciona-se a agricultu-
ra familiar e os objetivos do desenvolvimento sustentável. Por fim, são tecidas
considerações sobre o significado dessa atividade para a economia local. Por
fim, apresenta-se a Política Industrial Rural delineada pela CEPAL, Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe e suas relações com todos os ele-
mentos produtivos apontados acima, a saber, o desenvolvimento humano, a tec-
nologia e o fortalecimento das cadeias de valor para o setor e a gestão das águas.

1. A relevância das águas na América Latina para o


desenvolvimento humano
A água é elemento estruturador da vida, no entanto, esse bem é escasso em
razão da sua irregular distribuição na superfície do globo. Em virtude de tal
fenômeno, a América Latina é privilegiada por concentrar elevado percentual
desse fluido3 (ISTAKE; GELAIN, 2014, p. 8). No continente destacam-se a
Bacia Amazônica, a maior do mundo, e a Bacia do Prata, cuja relevância ultra-
passa os limites geográficos da região.
Por outro lado, a ação humana pode tornar o acesso à água doce ainda mais
exíguo, mesmo onde há abundância desse recurso. Portanto, para governar as

3 Segundo as autoras, o Brasil, o Peru e a Colômbia, juntos, detém 21,6% da água doce do globo ao
formar a Bacia Amazônica. Por sua vez, a Bacia do Prata, que se encontra localizada na Argentina,
no Brasil, no Paraguai e no Uruguai, está entre as maiores do mundo.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

águas é necessário que a sociedade adote práticas construídas sob os paradig-


mas da sustentabilidade e que reconheça a água como bem comum.
No que se refere aos princípios da sustentabilidade, as diversas instituições,
especialmente o Estado, as empresas, as universidades e as comunidades locais
devem voltar suas ações para identificar e criar valores de matriz econômica
que importem em ganhos de natureza social e ambiental. A gestão dos recursos
naturais exige a visão, ora apresentada, para a construção de um futuro comu-
nitário melhor e mais justo.
Em razão de sua essencialidade para a vida, a água constitui elemento cen-
tral para alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável. Tais objetivos
foram fixados pela Agenda 2030, de 2017, que se constitui em um plano de
ação global elaborado pela Organização das Nações Unidas a partir do Rela-
tório O Futuro que Queremos, de 2012. O texto reuni 17 objetivos e 169 metas
associadas a eles. O objetivo 6 relaciona-se diretamente às águas destinadas
ao consumo humano. No entanto, outros objetivos possuem íntima ligação
com esse recurso natural.
Nota-se que acessar serviços básicos, direito de todos, inclui o acesso à água
e ao saneamento (meta 1.4) e que reduzir a exposição das pessoas mais vulne-
ráveis à fenômenos extremos, como secas e inundações, envolve a gestão de
águas (meta 1.5). Por sua vez, a irrigação de cultivos incrementa a produtividade
agrícola e exige eficácia no uso da água (meta 2.3). Ademais, garantir o acesso
à água e ao saneamento implica em reduzir a mortalidade infantil (meta 3.1) e
que a falta de acesso à água e ao saneamento adequados afasta número elevado
de meninas da vida escolar, o que contraria as metas 4.1 e 4.2 e gera sobrecarga
relevante para o trabalho doméstico que geralmente é não remunerado, em
oposição à meta 5.4 (LAGUNES, 2017, p. 15).
Ainda, no que se refere às atividades econômicas, a água entra no processo
produtivo como insumo de maneira diversificada e, para que a performance
econômica da sociedade cresça com sustentabilidade, os ganhos advindos dos
múltiplos usos da água devem envolver benefícios econômicos, sociais e am-
bientais. Em síntese, devido as características intrínsecas desse fluido, a tutela
jurídica e a gestão desse bem devem considerá-lo como bem social e cultural,
portador de valor econômico (SANTOS; SANTOS; TASSIGNY, 2017, p. 3).
Do exposto, percebe-se a relevância da água para a vida e para alcançar os
objetivos do desenvolvimento sustentável. Nesse diapasão, a gestão das águas
está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento humano. Por ser bem comum,

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

seu governo implica a necessidade de auto-organização dos usuários (GATTO;


MELO, 2014, p. 101). Essencial, nessa vertente, é incrementar a produção de
dados relevantes e uma postura ética compatível com a fraternidade (MIRAN-
DA, 2016, p. 161 e 163).
Ademais, a gestão das águas suscita considerar que a erradicação da
pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais fazem parte do
desenvolvimento nacional, conforme estabelecido no artigo 3º da Consti-
tuição Federal do Brasil. Para tanto, urge ter em mente que o governo das
águas não deve ficar adstrito ao Poder Público em sua atividade de planeja-
mento e regulação. Cabe aos agentes usuários do líquido, diretos e indiretos,
compor as soluções para o controle da utilização de tal bem em parceria
com o Estado e com as instituições.
Nessa esteira de pensamento, reitera-se que a gestão de bens comuns exige
capacidade de auto-organização dos agentes que pertencem aos grupos de usuá-
rios em razão da possibilidade de atingir-se melhores resultados, comparando-se
a uma regulamentação externa (GATTO; MELO, 2014, p. 101). Por sua vez, o
desenvolvimento sustentável requer a construção de parâmetros éticos adequa-
dos para a responsabilização dos agentes ao longo de toda a cadeia de produção
dos bens e serviços e pelos diversos modos de vida adotados pelas sociedades.
Verifica-se, no caso dos empreendimentos econômicos, que eles também
utilizam a água, porém, numa condição específica, pois geram bens e riquezas
para a sociedade utilizando-se de um bem comum. Para atender aos critérios
éticos da sustentabilidade, a atuação dos empresários deve estar voltada para,
ao aplicar os recursos que detêm, gerar empregos, incorporar novas tecnologias,
produzir bens e serviços e, sobretudo, criar um compromisso que resulte em um
ciclo virtuoso na economia (BRITTO, 2016, p. 32).
O escopo das empresas, para promover as condições para o desenvolvimen-
to da vida com base na responsabilidade individual, reside na adoção de um
conteúdo moral. Realizar essa tarefa consiste em perceber as ligações existentes
entre a empresa e as demais instituições e compartilhar com todos os stakehol-
ders4 o sucesso do empreendimento. Para tanto, os agentes empresariais, além

4 Stakeholders são partes interessadas nas atividades das empresas. Existem diversos grupos deles,
primários e secundários em relevância, porém todos eles influenciam as empresas para que ofereçam
os resultados que anseiam. As empresas se alimentam das informações dos colaboradores e oferecem
respostas aos seus desejos. O diálogo travado permite às corporações antecipar e construir vantagens
competitivas (POMPEU; SANTIAGO, 2012, p. 40-43).

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

dos lucros, devem visar desenvolver uma cultura empresarial comprometida em


apurar e criar valores na sociedade (POMPEU; SANTIAGO, 2012, p. 40-43).
Para tanto, é preciso que a realidade empresarial construa suas relações so-
ciais e adote o ponto de vista dos agentes que influenciam e que são atingidos
por sua atuação. Aponta-se que canais de comunicação adequados viabilizam
às empresas conhecer os interesses, os objetivos e as motivações dos diversos
parceiros. Então forma-se uma rede de relacionamento ético entre os envolvidos
(POMPEU; SANTIAGO, 2012, p. 40-43).
Cabe a cada agente envolvido nos processos produtivos, que são os forne-
cedores, os consumidores, os sócios, os empregados, as agências de fomento e
de regulação e a sociedade, receptáculo último dos fins da atuação empresarial,
contribuir para a construção de valores associados à fraternidade, e aos direitos
difusos. Incorporar esta ética ao sistema produtivo significa absorver as capaci-
dades humanas ao ciclo econômico e reconhecer que as vantagens competitivas
que cada região pode agregar ao sistema precisam ser compartilhadas entre os
povos de maneira racional (MIRANDA, 2016, p. 163).
Cumpre ressaltar que, ao adotar a sustentabilidade ambiental, os Estados
carecem incluir a redução das desigualdades regionais e sociais como princípios
da atividade econômica, conforme apregoa o artigo 170 da Constituição Federal
do Brasil. Caberá às empresas e aos stakeholders orientarem as dinâmicas produ-
tivas para que gerem valores econômicos, sociais e ambientais. Dessa maneira,
a água, como insumo de produção, deve, ao ser utilizada, assegurar a realização
de todos esses aspectos.
Pelo exposto, percebe-se que a gestão das águas não é tema exclusivo da
pauta dos Poderes Públicos, pois compete, também, às empresas e aos usuários
pertencentes às comunidades locais contribuir para o incremento da sustenta-
bilidade a partir da criação e da difusão de valores compatíveis com o consumo
racional. Dessa forma, o conhecimento dos bens comuns e do desenvolvimento
coletivo demanda capacitação e educação em favor da conciliação entre cresci-
mento econômico e desenvolvimento humano.
Nessa línea de raciocínio, dotar valores compatíveis com o consumo racional dos
recursos naturais difere da atitude do homem racional atomizado. A diferença consis-
te no contínuo processo educativo envolvendo os valores da sustentabilidade, capaz de
limitar, em parte, os excessos do individualismo. No entanto, o apelo à responsabilida-
de não deixa de gerar efeitos patológicos, pois o apelo à consciência exterior tende ao
desaparecimento de toda consciência. Mas a única maneira de preservar e promover

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

outras liberdades consiste na renúncia da liberdade da criação (HARDIN, 1968, p. 4


e 12). Então, como todas as atividades econômicas desenvolvidas pelo homem exigem
o uso da água, racionalizar sua utilização implica em gestão responsável.
Verifica-se que, economicamente, diversos países5 da América Latina des-
tacam-se pela produção de commodities6 (CARNEIRO, 2012, p. 7) agrícolas
voltadas para a exportação. Essa atividade utiliza intensivamente a água como
insumo produtivo. Nesse sentido, a agricultura é a responsável por consumir
70% da água doce do planeta (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
PARA A ALIMENTAÇÃO E A AGRICULTURA, 2014, p. 1).
Por outro lado, as atividades industriais, incluindo o setor energético, conso-
mem cerca de 19% da água doce do planeta. Especificamente o setor industrial
de produção de energia consome 15%, enquanto os 4% restantes são destinados
para a indústria pesada e de manufatura. Entretanto, o consumo das pequenas e
médias indústrias não entra nos percentuais apresentados acima. Tal demanda
é contabilizada nas águas que abastecem os sistemas de distribuição municipal,
os quais são destinados, precipuamente, para o consumo doméstico. Por sua
vez, o referido abastecimento urbano utiliza cerca de 10% da água doce total do
globo (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2016, p. 3).
No caso brasileiro, o Nível de Estresse Hídrico7 aumentou de 0,7 para 0,9,
entre os anos de 2007 e 2012, e deve crescer ainda mais. No ano de 2015, a de-
manda por água para o consumo urbano brasileiro foi de 570,2 m³/s, enquanto a
previsão de demanda para o ano de 2025 chega a 630,4 m³/s (BRASIL, 2016b).
Esse aumento da utilização de água doce no Brasil acompanhou o crescimento
do número de estabelecimentos agrícolas que utilizam técnicas de irrigação, que
expandiu em 39%, assim como houve a ampliação da área irrigada destinada à
agricultura, em torno de 42% (BRASIL, 2006, p. 137), e o crescimento das ex-
portações dos produtos agropecuários brasileiros, que registrou um crescimento
de 65% entre os anos de 2008 e 2013 (ISTAKE, GELAIN, 2014, p. 17).

5 Os cinco maiores exportadores de água virtual do mundo são Índia, Argentina, Estados Unidos,
Austrália e Brasil. Ademais, países como Colômbia e Peru, que abrigam parte significativa da Bacia
Amazônica e são exportadores de produtos primários, atuam no mesmo cenário, mesmo que em
menor proporção ((BRASIL É..., 2015, p. 1).
6 De acordo com Carneiro, as commodities se caracterizam por serem produtos indiferenciados, com
baixo processamento industrial e elevado conteúdo de recursos naturais.
7 Segundo a ONU, o indicador Nível de Estresse Hídrico revela a retirada de água doce numa proporção
com os recursos de água doce disponíveis (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2017).

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Os dados apresentados acima revelam que a indústria demanda uma quanti-


dade pequena de água numa escala global. No entanto, requer suprimento aces-
sível, confiável e ambientalmente sustentável para um funcionamento eficiente.
Ademais, o percentual de água utilizado na indústria varia entre os países em pro-
porção direta com a renda da população. Em países com renda menor, a extração
de água gira em torno de 5%, enquanto em países de maior renda, tal percentual
sobe para 40% (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2015, p. 4).
Salienta-se que na indústria, a pureza e a quantidade da água, assim como os
efluentes resultantes do seu uso, dependem, primeiramente, do tipo de ativida-
de e do porte do empreendimento. No entanto, quanto mais pura for a água uti-
lizada nos processos, menor será a quantidade de produtos químicos necessários
para proteger os materiais com os quais a água entrará em contato, provocando
a redução da toxidade dos efluentes e sua reutilização em usos compatíveis com
sua qualidade (MIERZWA, 2002, p. 91-92).
Por outro lado, para reduzir a quantidade e otimizar a qualidade da água no
processo industrial é preciso realizar estudo no local das instalações para per-
ceber os processos industriais desenvolvidos. De maneira geral, cada indústria
descreve seus processos de produção em documentos, porém, muitos aspectos
relevantes sobre o uso da água não se encontram impressos ali, fazendo-se ne-
cessário visitas de campo para perceber e aperfeiçoar as técnicas produtivas a
partir dos objetivos de eficiência no uso das águas (MIERZWA, 2002, p. 77-79).
Dessa forma, percebe-se a relevância das motivações das pessoas envolvidas nas
atividades empresariais para o aprimoramento das tarefas e à utilização racional das
águas. Nas atividades agrícolas a percepção é idêntica. Neste ramo da produção, os
principais problemas relacionados ao uso de água, além da natural necessidade de
elevada quantidade do líquido, relacionam-se aos excessivos níveis de desperdício.
Instalar sistemas de irrigação, que comportam variadas técnicas, a depender
das culturas, da região e da época da produção, mostra-se como solução racio-
nal para reduzir o desperdício nas atividades agrícolas. A irrigação também
representa o aumento da produtividade e do valor que alcança a produção no
mercado, além de diminuir a necessidade de expansão em áreas de mata nativa
(BRASIL, 2016, p. 33).
A eficiência da rega programada decorre da percepção local das necessida-
des das culturas no território e período da produção. Assim, os responsáveis pela
produção devem construir para si motivações fundadas na produção sustentável.
Essa assertiva é válida para todos os setores produtivos, em toda a cadeia.

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

Ademais, a disponibilidade hídrica na região em que as atividades produti-


vas são desenvolvidas interfere diretamente nos resultados do empreendimento
em razão dos processos produtivos criados. Nos territórios que possuem reduzi-
da capacidade hídrica, as atividades se tornam sustentáveis quando produzem
bens e serviços que demandam diminuta quantidade de água. Por outro lado,
mesmo em áreas abundantes em água, para que o uso seja racional, é preciso
assegurar a padronização do uso, que proporcione ganhos econômicos, ambien-
tais (CASTRO, 2016, p. 218-220) e sociais, compartilhados entre as nações.
Nessa seara, percebe-se que produzir alimentos em escala que demanda
quantidade elevada de água, independentemente do local da produção, contra-
ria as possibilidades de aumentar os ganhos ambientais e, portanto, prejudica
os demais aspectos da sustentabilidade. Tal constatação implica em mudança
de consumo e da cultura alimentar do Ocidente. No entanto, para obter tais
resultados, será necessário informar e educar as pessoas e promover valores ins-
titucionais para o consumo responsável baseado na sustentabilidade.
Do exposto, verifica-se que para as produções agrícolas e industriais torna-
rem-se sustentáveis, dependem do acesso às informações econômicas e ambien-
tais relevantes, de tecnologia agregada aos processos de produção e de conduta
ética compatível com os objetivos do desenvolvimento sustentável em todas as
etapas dos processos produtivos. Desenvolver todos esses fatores está associado,
necessariamente, ao desenvolvimento humano.

2. Capacitação humana e gestão das informações


O desenvolvimento humano encontra-se intimamente relacionado com a
capacidade para produzir informações. Enquanto o agir representa a transfor-
mação necessária no íntimo do ser capaz de tornar possível a realização externa
do ato, que é a dimensão do fazer (AQUINO, 2014, p. 33), as informações ofe-
recem as condições para que as devidas transformações íntimas aconteçam e
permitam a realização do ato adequado. Dessa forma, percebe-se que conhecer
significa poder fazer, isto é, realizar os próprios desígnios.
Assim, para construir os objetivos do desenvolvimento sustentável na Amé-
rica Latina, necessário se faz ampliar a capacidade dos Estados e das institui-
ções para a produção de dados relevantes. A Conferência das Nações Unidas
para o Desenvolvimento Sustentável, em 2012, elaborou o documento O Futuro

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

que Queremos. Nele, a percepção da comunidade internacional para o desenvol-


vimento sustentável aponta como estratégia a formação de capacidades (OR-
GANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2012, p. 5).
O desenvolvimento humano depende do direito à informação e do fortale-
cimento de suas capacidades. Tal direito perpassa a geração e o acesso a dados
relevantes e fundamenta as ações indispensáveis para a ampliação das capaci-
dades. A partir da realidade local, associado ao nível de informação disponível,
é possível perceber as oportunidades para construir o desenvolvimento susten-
tável (MIRANDA, 2016, p. 147).
A relação entre a capacidade hídrica e humana da América Latina orienta
as condições para construir os empreendimentos econômicos locais. A elevada
biodiversidade e a abundância de recursos naturais, proveniente da quantidade
de água na Região, sugerem uma diversidade econômica que, no entanto, não
se verifica. A especialização econômica da América Latina é indicada por re-
levante participação no comércio internacional de commodities (CARNEIRO,
2012, p. 29). Isso significa, que a contribuição dos fatores humanos para o incre-
mento da economia é determinante para os resultados obtidos.
A relação entre os índices de desenvolvimento humano encontrados na Região
e os valores alcançados pelo Produto Interno Bruto de alguns países ilustram quan-
to o desenvolvimento humano é relevante para a construção de sociedades mais
justas e igualitárias. Comparando-se Brasil, Argentina, Colômbia e Peru, observa-se
que o desenvolvimento humano é inversamente proporcional aos valores do PIB.
TABELA 01 – Índice de capital humano e os valores em milhões de dólares do
Produto Interno Bruto a preços correntes de mercado e per capita da Argentina,
do Brasil, da Colômbia e do Peru.

PAÍSES PONTUAÇÃO CLASSIFICAÇÃO PIB PIB


MUNDIAL per capita
ARGENTINA 70.70 56ª 632.841.4 14.615.9
BRASIL 64.51 83ª 1.774.722.2 8.542.6
COLÔMBIA 69.58 64ª 292.080.2 6.056.2
PERU 66.31 79ª 189.209.8 6.029.0

Fonte: Informe de Capital Humano 2016. World Economic Forum8 (pág.4-5)


e Anuário Estatístico da América Latina e Caribe 2016. CEPAL (pág. 40).

8 O Fórum Econômico Mundial, comprometido em melhorar o estado do mundo e a organização


internacional para a cooperação público-privada, desenvolveu o Índice de Capital Humano que
quantifica como 130 países estão desenvolvendo e implantando o capital humano, por meio de

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

O Brasil representa o melhor PIB da América Latina, no entanto, apresen-


ta o pior desempenho em capital humano no grupo dos países estudados. A
Argentina, melhor colocada em capital humano, apresenta o segundo melhor
desempenho em PIB no grupo, que, no entanto, é menos de um terço do PIB
brasileiro. A Colômbia, com menos de um sexto do PIB brasileiro, ocupa a
segunda posição em capital humano, enquanto o Peru, que possui PIB inferior
a um oitavo do brasileiro, ocupa a terceira posição entre os quatro Estados. A
disparidade entre o total de pecúnia produzido pelos países e o índice de capital
humano encontrado indica desigual distribuição de renda.
As condições para produzir exigem das sociedades elevado padrão de de-
senvolvimento das capacidades individuais, pois o processo de formação huma-
na possui íntima relação com o processo econômico. Para construir vantagens
competitivas no mercado internacional é preciso considerar os recursos natu-
rais e o capital humano (GONÇALVES, 2005, p. 102-104). Em tal contexto,
as políticas dirigidas pelos Estados revelam-se significativas para a criação de
oportunidades sociais que possam ser compartilhadas.
A justiça social e a equidade somente podem ser alcançadas quando as opor-
tunidades criadas pela sociedade podem ser desfrutadas por expressiva parcela
populacional. Ao Estado cabe atuar com a finalidade de influenciar o acréscimo
na qualidade de vida com reflexos sobre as habilidades produtivas. Assim, ga-
rantir acesso amplo à educação formal e aos equipamentos de saúde, por exem-
plo, permite o florescimento econômico porque qualidade de vida implica em
melhores condições para partilhar os conhecimentos produzidos socialmente
(SEN, 2010, p. 190-191).
A atuação estatal relevante é, portanto, aquela que cria ambiente propício
para a construção de laços econômicos equitativos, os quais viabilizam a incor-
poração dos valores produzidos localmente, voltados para incrementar a vida
dos agentes econômicos envolvidos. O ciclo produtivo enriquece a vida coletiva
quando viabiliza a vida local, isto é, quando realça e dignifica as potencialida-
des humanas e naturais da localidade a que pertencem os sujeitos econômicos.
Conclui-se que o crescimento econômico verificado no Estado brasileiro não
realiza as condições ideais para o incremento da economia de forma equita-
tiva uma vez que o índice de capital humano apresentado não acompanhou

avaliação dos resultados de aprendizagem e emprego, em escala de 0 (pior) a 100 (melhor), entre
cinco grupos etários distintos.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

o crescimento do PIB na mesma proporção, o que se observa ao comparar o


desempenho dos outros três países analisados, os quais ostentam cifras menores
e, no entanto, ocupam posição superior ao Brasil em desenvolvimento humano.
Consequentemente, discute-se a atuação das empresas para fomentar os
meios necessários para atender as exigências sociais de ampliação das capaci-
dades. A busca por lucros não é mais o único foco das empresas socialmente
responsáveis e, nesse contexto, surgem as empresas sociais, que são aquelas que
produzem bens úteis para atender o mercado, administradas por pessoas locais
em benefício das comunidades em que vivem (YUNUS, 2008, p. 101).
Tais firmas não desprezam seus rendimentos, mas são constituídas preci-
puamente para atender demandas de grupos sociais excluídos do mercado e,
que, portanto, permanecem afastados de práticas sociais que favorecem atuação
produtiva e melhor qualificada. Os pilares que compõem essa visão empresarial
se coadunam com a equidade econômica e, consequentemente, incrementam a
necessária ampliação das capacidades.
A produção econômica da América Latina, especializada em produtos indi-
ferenciados, com baixo processamento industrial e elevado conteúdo de recur-
sos naturais não atende aos valores da sustentabilidade, (CARNEIRO, 2012,
p. 7). Para construir uma realidade econômica com tais critérios éticos, isto é,
quando as atividades econômicas proporcionam ganhos sociais e ambientais, é
preciso produzir dados relevantes que propiciem a criação de atitudes produti-
vas sustentáveis e equitativas.
Cumpre ressaltar que, diante do significado da água para a vida, faz-se ne-
cessária a produção de dados e informações sobre o assunto que possam funda-
mentar condutas e decisões das instituições e dos Estados. A produção de dados
estatísticos nacionais sobre as águas é considerada prioridade pela Organização
das Nações Unidas desde 2007, quando desenvolveu o conceito de Contas Eco-
nômicas Ambientais da Água - SCEA-Água com o intuito de facilitar a per-
cepção da interação dos recursos hídricos com outros recursos naturais, assim
como os serviços ecossistêmicos decorrentes do seu uso.
O SCEA-Água é um sistema que normatiza a compilação de dados eco-
nômicos e ambientais ligados ao tema da água. Os resultados obtidos devem
permitir a percepção das interações entre a economia e o meio ambiente e des-
crever as ações e as mudanças quanto aos estoques de ativos ambientais. Cada
Estado deverá produzir suas estatísticas de acordo com os princípios elencados

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

nas Recomendações Internacionais para as Estatísticas da Água – RIEA, de


2010 (LAGUNES, 2017, p. 9-11).
Assim, implementar o SCEA-Água permite produzir informações que subsi-
diem o acompanhamento da implementação dos objetivos do desenvolvimento
sustentável pelos Estados em razão da íntima relação da água com os diversos
objetivos da Agenda 2030 (LAGUNES, 2017, p. 16). Por exemplo, as contas de
água podem indicar se os fluxos monetários que circulam no país são capazes
de custear os serviços de água potável e de saneamento de maneira sustentável.
Sob essa ótica, construir a proposta do SCEA-Água requer mudança nas
motivações dos agentes responsáveis por produzir as estatísticas nacionais, tan-
to dos profissionais responsáveis últimos para tratar e publicar os dados, como
dos diversos agentes que produzem as informações que serão compiladas. E, por
outro lado, dados produzidos com base em distintos paradigmas influenciarão
decisões diferenciadas no seio das instituições, dos Estados e dos variados usuá-
rios dos serviços da água. Instalam-se assim, a partir da renovação das perspec-
tivas pessoais, novas realidades.
Conclui-se que o processo de produção de conhecimento é escasso, porém,
o dado gerado proporciona múltiplos usos. Recomenda-se que a sociedade te-
nha condições para produzir informações, e nesse diapasão tire proveito delas e
multiplique dados. Assim, contribuir para o fortalecimento das cadeias de valor
significa a produção de dados que possam ocasionar impacto em cada realidade
econômica específica, isto é, proporcionar condições para a produção de novos
conhecimentos a partir daqueles anteriormente conquistados.
As informações relevantes que permitirão aos usuários da água contribuí-
rem para a formação das cadeias de valor na agricultura e na indústria deverão
abordar temas de significação estratégica para enfrentar os problemas decorren-
tes do uso inadequado da água nesses dois setores econômicos. Apenas os agen-
tes que vivenciam cada realidade produtiva podem compreender os desafios do
setor e orientar os demais elos da cadeia sobre suas prioridades.
A atitude de geração e troca de informações relevantes precisa envolver
todos os níveis e práticas sociais das instituições. Nos estabelecimentos pro-
dutivos tal exigência resulta no desenvolvimento de efetivos mecanismos de
otimização do uso da água, assim como desenvolve a responsabilidade de
cada agente produtivo pelos resultados da instituição em implementar os
objetivos do desenvolvimento sustentável.

20
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Lembra-se que o fazer humano é orientado por certa ética, portanto, cabe
à sociedade debater e construir práticas que privilegiem o desenvolvimento co-
letivo. Tal empreendimento torna-se viável quando as capacidades humanas
são consideradas relevantes para os processos econômicos. Para tanto, urge a
produção de informações aptas a construção de novas realidades produtivas
num ciclo ininterrupto.

3. Agricultura familiar e os objetivos do


desenvolvimento sustentável
A agricultura familiar é caracterizada por atividades múltiplas, desde o ma-
nejo de diversas culturas agrícolas e o trato de animais diferenciados, à produ-
ção artesanal e o turismo rural. Essa atividade econômica também é marcada
pela preocupação com a reprodução das condições da vida familiar e envolve
interação pessoal com os demais produtores nessa mesma condição.
Ressalta-se que o conceito da Organização das Nações Unidas para a Ali-
mentação e a Agricultura, FAO, para a agricultura familiar inclui as ativida-
des agrícolas baseadas na organização da família e envolve todas as atividades
rurais, isto é, a silvicultura, a pesca, o pastoreio e a agricultura. A segurança
alimentar decorre da variedade alcançada nesse modelo de produção (OR-
GANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E A
AGRICULTURA, 2014, p. 1).
Sabe-se que a agricultura familiar possui características compatíveis com
os princípios éticos da sustentabilidade. Assim, a preocupação com a repro-
dução da família introduz elementos valorativos que criam uma simbiose
entre os produtores e o bioma onde labutam. As tradições culturais são for-
temente influenciadas pelo meio e são repassadas às gerações futuras através
de interações práticas. Amparados por técnicas tradicionais, os agricultores
relacionam-se com o meio ambiente e na sociedade de modo mais harmôni-
co (BERTUZZI, 2012, p. 40).
Nesse viés, a agricultura realizada em bases familiares é compatível com a
Agenda 2030. A meta 2.3 é dobrar a produtividade agrícola e a renda dos pe-
quenos produtores de alimentos, entre eles, os agricultores familiares. A meta
2.3 destaca ainda o trabalho agrícola das mulheres, dos indígenas, dos pastores
e pescadores. Para tanto, a ONU prevê meios, tais como o acesso seguro e igual

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

à terra, aos recursos produtivos e insumo, ao conhecimento, aos serviços finan-


ceiros, aos mercados e oportunidades de agregação de valor e de empregos não
agrícolas. Para esta meta não estão previstos indicadores, cabendo aos Estados,
em parceria com a sociedade, construí-los.
Pondera-se que outra meta, para acabar com a fome e promover a agricultura
sustentável, é aquela de garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos
e implementar práticas agrícolas resilientes. Sabe-se que estas aumentam a pro-
dutividade, contribuem para manter os ecossistemas, fortalecem a capacidade
de adaptação às mudanças no clima e, por fim, melhoram a qualidade da terra
e do solo. Para a meta 2.4 também não estão previstos indicadores particulares.
A agricultura familiar, por suas características, é sistema de produção de
alimentos que preserva a base de recursos naturais envolvida na atividade agrí-
cola, isto é, o clima, a água, o solo e a biodiversidade, além de produzir em
quantidade. No mundo, 90% das fazendas são administradas por um indivíduo
ou uma família e dependem principalmente do trabalho familiar. As explora-
ções agrícolas familiares ocupam cerca de 70% a 80% das terras agrícolas e
produzem cerca de 80% dos alimentos consumidos mundialmente (ORGANI-
ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E A AGRI-
CULTURA, 2014, p. 1).
Nessa esteira de pensamento, a expectativa da ONU em dobrar a produção
de alimentos a partir do trabalho dos pequenos produtores representa, simulta-
neamente, o fortalecimento da agricultura familiar e uma medida para garantir
o funcionamento adequado dos mercados de commodities de alimentos e seus
derivados, com a finalidade de limitar a volatilidade extrema dos preços dos
alimentos, que constitui a meta 2.c.
Para aumentar a capacidade de produção agrícola nos países em desen-
volvimento, a meta 2.a prevê a necessidade de aumento dos investimentos
em infraestrutura rural; a pesquisa em serviços agrícolas, bem como sua
extensão e desenvolvimento de tecnologia e os bancos genéticos de plantas
e animais. Assim, todas essas medidas devem estar associadas à meta 2.3,
isto é, devem ser dirigidas para atender, prioritariamente, as necessidades
dos pequenos produtores.
Implementar a agricultura de maneira sustentável requer a valorização
dos elementos que são determinantes para sua construção, já que as ações
humanas são baseadas em concepções que precedem as ações. Para tanto, é
preciso considerar o desenvolvimento humano como base para a superação

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

dos desafios da sustentabilidade. Sob esse viés, a ampliação de capacidades


torna-se fundamental para alcançar a meta de dobrar a produtividade dos
pequenos produtores rurais.
A agricultura familiar também representa o direito de acesso aos alimentos.
Tal direito compreende os meios para produzi-lo. Essa garantia representa o
direito de contribuir para a melhoria das próprias condições de existência. A
segurança alimentar envolve a capacidade de produzir o volume necessário, a
estabilidade da oferta e o acesso efetivo aos víveres, tudo isso sem comprometer
outras necessidades (CASTRO; DENNY; FILHO et al., 2017, p. 135-136).
Contrariamente ao exposto, o mercado de commodities agrícolas altera as
premissas da segurança alimentar, especialmente quando os produtos são ne-
gociados a partir das instituições financeiras. Ao produzir elevada especulação,
as transações nas bolsas de valores provocam elevados gastos com alimentação
nos países tradicionalmente produtores agrícolas, ao passo que garante preços
mais baixos para os consumidores dos países importadores dos referidos produ-
tos (STAFFEN, 2016, p. 109).
Por sua vez, ao operar com formas diretas de escoamento da produção, a
agricultura familiar garante o abastecimento dos mercados e, simultaneamente,
as condições de subsistência aos próprios produtores e a segurança alimentar,
nos moldes anteriormente apontados.
Ademais, outro aspecto da agricultura familiar que se relaciona aos objetivos
do desenvolvimento sustentável é sua capacidade para fazer parte de redes de
produção. As fazendas familiares são unidades produtivas que integram cadeias
de valor na economia rural e, como tal, consolidam estratégias e potencializam
sua margem produtiva. E quando reunidos em cooperativas, os pequenos agri-
cultores potencializam ainda mais essa característica.
A prática do associativismo amplia as possibilidades de desenvolvimen-
to humano, assim como fortalece as cadeias de valor econômico. Optar por
organizar-se enquanto cooperativa pressupõe o aprimoramento das condições
pessoais dos participantes para o desenvolvimento de projetos comuns e que
geram impacto para o grupo envolvido e para aqueles por eles influenciados.
Em síntese, o associativismo desenvolve características sociais que viabilizam o
compromisso coletivo (AGOSTINI, 2016, p. 86).
Os pequenos agricultores, ao desenvolver práticas associativas em torno das
cooperativas de produção, ampliam sua sociabilidade. A ação cooperativa se
expressa através de práticas que representem ajuda mútua, o fortalecimento da

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

democracia e da participação autônoma e solidária. De maneira voluntária as


pessoas se reúnem para formar uma empresa de propriedade comum em busca
de satisfação econômica, social e cultural (BRITTO, 2016, p. 78).
Tais entidades contribuem para o desenvolvimento rural quando integradas
aos demais elos da cadeia produtiva agregando valor à rede; difundindo boas
práticas; realçando as vantagens desse tipo de sociabilidade para os participan-
tes diretos e suas comunidades; criando oportunidades para o incremento do
papel da entidade na cadeia produtiva e melhorando a renda e aspectos sociais
da vida dos seus membros.
A agricultura familiar, como toda a produção agropecuária, liga-se às metas
e aos objetivos de sustentabilidade no que se refere às águas e ao desenvolvi-
mento humano. Práticas agrícolas sustentáveis devem representar a manuten-
ção da biodiversidade característica da região e realizar ganhos sociais, além dos
econômicos. A produção familiar é capaz de concretizar os aspectos da susten-
tabilidade sem perder suas características elementares e, ainda, fomentar outras
cadeias produtivas, que utilizam maior tecnologia e capital humano qualificado.

4. A política industrial rural e o fortalecimento das


cadeias de valor
O desenvolvimento sustentável na América Latina liga-se ao incremento
da produção rural porque a região contém abundância em recursos naturais e
é tradicional exportadora de commodities agrícolas. Tal prosperidade advirá da
promoção integrada das atividades econômicas do campo e do fortalecimento
das cadeias de valor formadas com base na ética da responsabilidade.
Definir o espaço rural não tem sido tarefa simples, no entanto, não pode
ser confundido com a agricultura. O mundo rurícola reuni diversos setores e
atividades econômicas. É também multifuncional, pois relaciona funções pro-
dutivas, ambientais, ecológicas e sociais. De um modo geral, indica-se a baixa
densidade populacional como característica elementar. Também é marcante
o fato de que não há isolamento absoluto entre os espaços rurais e as áreas
urbanas, pois comumente são criadas redes mercantis, sociais e institucionais
(AGOSTINI, 2016, p. 83).
As cadeias produtivas que podem ser aprimoradas e elaboradas a partir das
atividades desenvolvidas no espaço rural são variadas. A criatividade e a inova-

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

ção produtiva no setor devem surgir a partir da realidade concreta. Os Estado e


as microrregiões devem estudar suas fortalezas e deficiências e traçar estratégias
que possibilitem ultrapassar as resistências e impulsionar novas relações e inte-
rações entre as atividades. Para tanto, esse projeto deve envolver a sociedade de
tal maneira que venha a se sobrepor às metas dos governantes eleitos.
Às atividades agrícolas, devem-se somar as industriais e a prestação de
serviços. Tais áreas precisam ser conectadas a partir do fortalecimento insti-
tucional dos grupos direta e indiretamente influenciados por elas, da Intro-
dução de tecnologia e de inovações de processos produtivos, da valorização
das riquezas e potencialidades naturais e humanas, coordenando todas essas
ações para a substituição das importações a partir do aumento da produção
nacional com valor agregado.
A interdependência entre as atividades agropecuárias e os demais setores da
economia é cumulativa e circular. Em 11 países da América, Argentina, Brasil,
Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Estados Unidos, México, Peru, Uruguai
e Venezuela, verificou-se que 3/4 da produção agrícola são utilizados como in-
sumo em outros setores da economia, enquanto apenas 43% da produção dos
demais setores são convertidos em insumos produtivos (PÉREZ, 2017, p. 81).
A atividade agropecuária reflete nas mais diversas cadeias produtivas e, em
razão de sua demanda intensiva de água, torna-se também relevante para o de-
senvolvimento sustentável. Como as atividades primárias podem ser altamente
intensivas em capital e tecnologia, torna-se imprescindível o desenvolvimento
humano ao longo de todas as cadeias rurais para acompanhar tais inovações
e construir economias sustentáveis. Assim, ilustra-se como os objetivos do de-
senvolvimento sustentável são alcançados por meio da política industrial rural.
Conforme explicitado anteriormente, a meta 2.3 da Agenda 2030 estabelece
a necessidade de dobrar a produção dos pequenos produtores rurais, assim como
recomenda a criação de oportunidades de agregação de valor e de empregos não
agrícolas para atender essa população. Para orientar a concretização dessa meta,
a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL lançou, em
2017, a proposta de uma Política Industrial Rural baseada em estratégias parti-
cipativas para o fortalecimento das cadeias de valor no referido setor.
A política rural industrial é parte da política industrial a ser desenvolvida
pelos Estados, porém destinada a promover a indústria ligada ao espaço rural.
Outra peculiaridade dessa política é que sua implementação se volta para cons-
truir uma mudança estrutural no campo mediante a ampliação das atividades

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

de transformação e de serviços, assim como a integração com setores de maior


dinamismo e intensidade de conhecimento e inovação tecnológica, respeitando
as vocações produtivas locais.
Nesse contexto, o desenvolvimento rural valoriza o território, a moderni-
zação econômica, o desenvolvimento de infraestrutura, a provisão de serviços
públicos no campo, o incremento dos serviços rurais, especialmente os naturais
e os culturais, e a promoção das empresas de caráter rurícola, especialmente as
pequenas e médias empresas e os pequenos produtores rurais.
O fortalecimento das cadeias de valor está estruturado em dois elemen-
tos, o caráter sistêmico e a participação e é alcançado mediante a articula-
ção entre os níveis produtivos da cadeia, a incorporação de novos atores, a
transformação produtiva com o uso intensivo de conhecimento e a melhoria
das condições de vida dos integrantes das cadeias e suas comunidades (PÉ-
REZ, 2017, p. 171-172).
As ações devem estar organizadas em torno de metaobjetivos alicerçados no
desenvolvimento econômico e social. Entre eles, pode-se citar a necessidade de
incrementar a produção nacional de modo que a demanda interna seja atendida
sem a necessidade de importações; incorporar pequenas e médias empresas e
os pequenos produtores rurais à rede de inovações e às oportunidades de agre-
gação de valor e o desenvolvimento de capacidades para a criação de novas
atividades produtivas.
Elemento central no processo de implementação de transformações neces-
sárias são as informações produzidas. É necessária a produção e a divulgação
de estatísticas e dados relevantes para a formação de valores que se adequem às
estratégias traçadas, de acordo com os critérios de sustentabilidade. O caráter
participativo do fortalecimento das cadeias de valor incide desde o momento da
construção das motivações dos agentes em interação no setor.
Assim, os diversos atores devem construir a percepção e a capacidade para
reconhecer as informações preciosas para suas necessidades e produzir dados
para alimentar o circuito produtivo a partir da realidade em que estão inseridos.
As informações são a base para a mudança de atitude indispensável à transfor-
mação e ao incremento da produção rurícola.
Ampliar o consumo interno da produção nacional será possível a partir do
aumento do valor agregado à produção e ao ambiente informacional construí-
do. Pode-se realizar campanhas elucidativas sobre o valor dos produtos nacio-
nais, suas características e relevância para o desenvolvimento dos produtores

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

locais. Em síntese, para consolidar boas práticas de consumo é preciso construir


o ideário correspondente.
Ademais, o desenvolvimento rural também exige apoio e financiamento es-
pecíficos para atender o setor, de acordo com as especificidades e interesses
estratégicos. Tais fatores devem ser coordenados de modo a garantir a utilização
racional dos recursos e ampliar as sinergias das cadeias de valor.
Igualmente, o fortalecimento das cadeias de valor no campo exige o fortale-
cimento institucional, a política de desenvolvimento agropecuário e a política
industrial rural (PÉREZ, 2017, p. 191). Tais grupos de atividades são comple-
mentares e podem interagir agregando valor à cadeia. Para tanto, deve-se valo-
rizar e ampliar os setores que exigem mais tecnologia e informação, elevando,
assim, a condição de toda a cadeia.
Do exposto, percebe-se que o papel do Estado para a ampliação e o forta-
lecimento das cadeias de valor rural é significativa. A intervenção estatal no
capitalismo é relevante para o desenvolvimento e a difusão de inovações em
produtos e processos. Cabe-lhe coordenar e estimular ações estratégicas que
possam orientar a iniciativa privada a elaborar boas práticas de produção e de
consumo. As leis de mercado não são suficientes para realizar as mudanças ne-
cessárias para construir o desenvolvimento (CHOMSKY, 2002, p. 21-22).
A abertura para a economia internacional e a incapacidade para controlar
o capital e o risco tornam a América Latina vulnerável aos desígnios externos.
Tais Estados promovem a riqueza da elite local, mas não promovem o desen-
volvimento da sociedade (CHOMSKY, 2002, p. 18). Para alcançar a transfor-
mação no campo, faz-se necessária a construção de paradigmas inovadores,
baseados no incremento da produção nacional rica em tecnologia, desenvolvida
a partir da realidade local e do fortalecimento das instituições.
A capacidade para enfrentar ações objetivas que podem obscurecer a per-
cepção do alcance de medidas estatais e da atuação empresarial decorre da
maior participação em processos criativos e do incremento da qualidade e quan-
tidade de informações disponíveis. Cabe à sociedade valorizar e cobrar atitu-
des relevantes dessas instituições para construir o desenvolvimento sustentável.
Para tanto, é necessário avançar rumo ao desenvolvimento humano.
Constata-se que a interação entre o homem e a natureza é diversa em cada
região do planeta. Essa condição torna o desenvolvimento sustentável peculiar
para cada agrupamento humano. Porém, quanto aos fatores políticos, a homo-
geneidade é o critério adequado para desenvolver unidade. Construir consensos

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

a partir da pluralidade representa uma decisão consciente (BERCOVICI, 2005,


p. 3 e 6). Assim, cabe à sociedade estimular a construção do perfil das institui-
ções, pois os valores das instituições são construídos coletivamente ao serem
chancelados pelo apreço social dirigido a elas.
Sabe-se que as entidades produtoras rurais incrementam os valores que cir-
culam nos ambientes produtivos. O objetivo precípuo é orientar as ações para
que atendam aos critérios do desenvolvimento sustentável. Assim, será neces-
sário escolher, entre as percepções presentes no campo, aquelas que fortalecem
as cadeias de valor econômico e que repercutem de maneira mais significativa
para a organização social e para a preservação do meio ambiente.
Reitera-se que a água é tema relevante para as cadeias de valor da economia
rural em razão de sua estreita relação com as atividades agropecuárias. Assim,
procura-se considerar o valor da água para as diversas atividades ligadas ao
campo ao elaborar as percepções que se adequem ao uso sustentável deste bem.
Dessa maneira, os resultados obtidos a partir da racionalização de sua utilização
repercutirá nos demais.

Conclusão
A água é um bem essencial para o desenvolvimento da vida no planeta,
sendo utilizada nas mais diversas atividades humanas. É também um bem es-
casso e, como tal, oportuniza a racionalização dos seus usos. Diante desse fato,
a Organização das Nações Unidas estruturou a Agenda 2030 em 17 objetivos
voltados para desenvolver a sustentabilidade entre os Estados signatários. Em
tal documento, as 169 metas traçadas estabelecem inúmeras ligações com o
direito às águas uma vez que esse fluído garante a vida.
Em decorrência disso, percebe-se que realizar os princípios da sustentabili-
dade, isto é, harmonizar os ganhos econômicos, sociais e ambientais nas ativi-
dades humanas representa o resultado do esforço coordenado de ações. Desta-
ca-se o papel dos Estados, das empresas, das universidades e das comunidades
locais como instâncias de elevada responsabilidade para a formação de atitudes
sustentáveis. Assim, esses agentes contribuem para o reconhecimento do valor
econômico, cultural e social das águas e influenciam a sua gestão.
Cumpre lembrar que nas atividades econômicas, as águas entram nos pro-
cessos produtivos como insumos, porém, sua natureza de bem comum não é

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

afastada. Desse modo, cabe aos usuários diretos e indiretos deste bem construir
os princípios éticos que nortearão as ações produtivas, de consumo, de apoio e
fomento ao desenvolvimento, de pesquisa, de formação de recursos humanos,
entre outras ações indispensáveis para a produção de riquezas.
Assim, priorizar o uso sustentável das águas nas atividades econômicas sig-
nifica reconhecer que todas as atividades humanas são frutos de escolhas e que
a realidade produtiva deve ser associada a boas práticas. Dentre elas, nota-se
a orientação para reduzir as desigualdades regionais e sociais, que expressa a
capacidade de produzir vantagens econômicas que representem, simultanea-
mente, ganhos ambientais e sociais.
Em síntese, percebe-se que o desenvolvimento humano representa a eta-
pa básica para realizar os valores da sustentabilidade, o qual encontra-se in-
timamente relacionado ao direito à informação. Dados relevantes orientam
às mudanças necessárias, diante das decisões nos processos humanos. Nesse
sentido, dados de natureza econômica tratados em conjunto com aspectos
ambientais e sociais instigam melhores percepções e, portanto, preparam
decisões mais acertadas.
As condições para produzir riquezas que agreguem maior valor e que possam
alcançar competitividade exigem elevado padrão de desenvolvimento humano.
Para tanto, urge desenvolver a capacidade de produção de dados que revelem
as potencialidades e as fortalezas locais e permitam ampliar as possibilidades
produtivas da sociedade.
Verifica-se que, a sociedade latino-americana não construiu para si as me-
lhores oportunidades de competitividade e agregação de valor e permanece
praticando uma economia voltada para a produção de commodities, que se ca-
racterizam como produtos de baixo processamento industrial, que contém ele-
vado teor de recursos naturais. Tal situação é alimentada por um contexto de
desinformação relevante e, portanto, pelo reduzido desenvolvimento das capa-
cidades. Assim, percebe-se que os processos de mudanças para enfrentar essa
realidade exigem a valorização das pessoas e das riquezas da Região.
Aponta-se que existem práticas econômicas que possibilitam melhores
resultados associados à ética da sustentabilidade. O desenvolvimento na
América Latina, tradicional exportadora de commodities agrícolas, pressu-
põe a valorização das atividades agropecuárias como estratégia para cons-
truir o desenvolvimento sustentável. Em virtude da quantidade elevada de
recursos naturais, proveniente da abundância de recursos hídricos, a região

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Gina Vidal Marcilio Pompeu e Rosangela Souza Bernardo

é vocacionada para tais atividades econômicas, porém, elas devem agregar


tecnologia e valor à produção.
A realidade da produção agrícola e pecuária entre os países da América
Latina é diversa, porém, percebe-se a relevância dos pequenos produtores rurais
e a presença marcante da agricultura praticada em regime familiar. Países como
a Argentina e o Brasil também se destacam no cenário mundial por produzir
o agronegócio em escala, o qual tem crescido e, consequentemente, elevado os
níveis de estresse hídrico na Região. Nesse diapasão, para que tal produção se
torne sustentável é oportuno compreender a interação que há entre elas e os
demais campos econômicos.
A realidade agropecuária da América Latina deve somar seus esforços
para ampliar a cadeia produtiva e desenvolver a indústria rural. Esse ramo
da industrialização é aquele que transforma os produtos desenvolvidos nas
atividades primárias em produtos com maior valor agregado, em razão do
incremento de tecnologia. Assim, haverá o fortalecimento das cadeias de
valor das atividades rurais.
Por fim, percebe-se que o projeto de desenvolvimento da indústria rural sus-
tentável enseja o fortalecimento das instituições e do significado da realidade
local. Na mesma vertente, a discussão amplia a responsabilidade social das em-
presas, das agências de pesquisa e a difusão do conhecimento. Urge redesenhar
o escopo do Estado para a formação de capacidades que desencadeiem o desen-
volvimento humano. Reverbera-se, por fim, sobre a relevância das informações
para a concretização das mudanças almejadas.

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34
Novo constitucionalismo
latino-americano: exemplo
de acesso à água potável

Manoelle Brasil Soldati1


Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza2
Cesar Luiz Pasold3

Introdução
O presente artigo científico tem como escopo apresentar contribuição aos
estudos sobre o acesso à Água Potável, ressaltando o tema sob a perspectiva do
Novo Constitucionalismo Latino Americano. O seu objeto é a Água Potável,

1 Doutoranda em Ciência Jurídica pela UNIVALI, em convênio de dupla titulação/cotutela com o


Instituto Universitário de Águas e Ciências Ambientais da Universidade de Alicante; Mestre em
Ciências Jurídico-Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa-PT; Magistrada
do Estado de Santa Catarina.
2 Doutora e Mestre em "Derecho Ambiental y de la Sostenibilidad" pela Universidade de Alicante -
Espanha. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – Brasil, Graduada em Direito
pela Universidade do Vale do Itajaí - Brasil. Professora Permanente no Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Ciência Jurídica, nos cursos de Doutorado e Mestrado da Universidade do Vale do
Itajaí - UNIVALI. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Direito Ambiental, Transnacionalidade
e Sustentabilidade" cadastrado no CNPq/EDATS/UNIVALI. Membro vitalício à Cadeira n. 11 da
Academia Catarinense de Letras Jurídicas (ACALEJ). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados
Brasileiros (IAB). Advogada e Consultora Jurídica. Email: mclaudia@univali.br.
3 Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco - USP; Pós Doutor em
Direito das Relações Sociais pela UFPR; Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade
Federal de Santa Catarina-UFSC. Mestre em Saúde Pública pela USP. É Consultor de Organizações
nas Áreas Jurídica e Axiológica. Advogado-OAB/SC 943.Docente da Universidade do Vale do
Itajaí-UNIVALI, lecionando as disciplinas: (1) Teoria do Estado e da Constituição e (2) Seminário
de Metodologia da Pesquisa Jurídica, ambas no Curso de Doutorado em Ciência Jurídica. Autor,
entre outras, das Obras: Metodologia da Pesquisa Jurídica: Teoria e Prática. 14 ed.rev.atual.amp.
Florianópolis: Emais, 2018); Função Social do Estado Contemporâneo (4 ed. Itajai: Univali-2013-
ebook, disponível gratuitamente: http://siaiapp28.univali.br/LstFree.aspx Coautor, entre outros, de:
Reflexões sobre Teoria da Constituição e do Estado (Florianópolis: Insular,2013); email: clp@
cesarluizpasold.com.br site: www.conversandocomoprofessor.com.br

35
Manoelle Brasil Soldati, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pasold.

e o seu objetivo é estimular reflexões sobre o direito de Acesso à Água Potável


que a Sociedade e todos os seus integrantes possuem, sem exceção, motivo su-
ficiente para justificar a gestão sustentável da Água. A metodologia empregada
foi, na fase de investigação, o método dedutivo; na fase de tratamento dos da-
dos, o método analítico; e na fase de publicação dos seus resultados- consagrada
no presente Artigo- é também o método dedutivo.
Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do Milênio (ODS), anun-
ciados na nova Agenda4 lançada em setembro de 2015, foi assegurar a disponibili-
dade e gestão sustentável da Água e saneamento para todas e todos (Objetivo 6). A
constatação da indispensabilidade de preservação do Meio Ambiente para a sobre-
vivência da Vida, somada à notoriedade do risco de escassez dos recursos naturais,
notadamente da Água Potável, estimulou os Países a inserirem o Meio Ambiente e
a Água Potável na pauta de suas agendas políticas, sociais e econômicas.
Apurado, recentemente, que em âmbito global, prevê-se que a demanda por
água irá aumentar de forma significativa nas próximas décadas.
Em destaque:

“Além do setor agrícola, que é responsável por 70% das extrações de


água em todo o mundo, são previstos grandes aumentos na demanda
hídrica pelos setores industriais e de produção de energia. A urbanização
acelerada e a expansão dos sistemas urbanos de abastecimento de água e
saneamento também contribuem para a demanda crescente”5.

Apesar de se tratar de assunto longe de estar pacificado, crescem os movi-


mentos e lutas por Justiça Hídrica, especialmente quanto ao acesso e forneci-
mento de agua potável. No cenário mundial, o reconhecimento, pela ONU (em
2010), da Água Potável e Saneamento Básico como Direito Humano Funda-
mental, foi um marco teórico para tal conquista.
Todavia, o descompromisso da maioria dos Estados em relação ao tema decor-
re do fato das Resoluções editadas pela ONU não serem fonte cogente de Direito,
ou seja, não terem caráter obrigatório, sendo apenas recomendações aos Países.

4 Agenda lançada durante a Cúpula de Desenvolvimento Sustentável foi discutida na Assembleia


Geral da ONU, na qual os Estados-membros e a Sociedade civil negociaram suas contribuições.
Disponível em https://nacoesunidas.org/pos2015/ods6/ , acesso em 16/12/2017.
5 Relatório Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos. 2017.
disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002475/247552por.pdf, acesso em 16/12/2017.

36
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Em contrapartida, de forma inovadora, o Novo Constitucionalismo Latino-


-americano, reafirma a ideia de que a Constituição deve refletir os anseios so-
ciais, materializando a Democracia.
Nas palavras de Manuel Aragón Reyes6, “a Constituição não é outra coisa
que a juridificação da democracia, e assim deve ser entendida”. As Constitui-
ções do Equador (2008) e Bolívia (2009) traduzem a fiel vontade constituinte
do povo, estipulando uma engrenagem no relacionamento entre a soberania do
povo, a essência do poder constituinte e a própria Constituição.
Merece, por oportuno, transcrição e destaque a proposição de G. Moares e
W. Junior, nestes termos:

[...] o novo constitucionalismo reivindica o caráter revolucionário do consti-


tucionalismo democrático, dotando-o de mecanismos que possam torná-lo
mais útil para a emancipação e o progresso dos povos, para conceber a Cons-
tituição como mandato direto do poder constituinte e, consequentemente, o
fundamento último da razão de ser do poder constituído7.

O objetivo deste artigo é - com base em objetiva análise da Legislação e com


suporte doutrinário - demonstrar que a construção do Novo Constitucionalis-
mo Latino Americano ergue-se como um paradigma da superação do constitu-
cionalismo clássico8, na busca da suplantação dos velhos problemas por ele não
solucionados, particularmente quanto ao Direito e ao Acesso à Água Potável.

1. Água Potável: Decorrência Lógica Da Dimensão


Social da Sustentabilidade
Em linhas gerais, a ideia de Desenvolvimento Sustentável pretende viabilizar
o desenvolvimento da economia, tecnologia e Sociedades, com a preservação do

6 Tradução nossa: “Es decir, la Constitución no es outra cosa que la juridificación de la democracia, y así debe
ser entendida”. REYES, Manuel Aragón. La Constitución como paradigma. In: CARBONELL, Miguel.
Teoría del neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p.32.
7 MORAES, G., & JÚNIOR, W. (2013). A Construção do Paradigma Ecocêntrico no Novo
Constitucionalismo Democrático dos Países da UNASUL. Revista De Direito Brasileira, 5(3), 42-69.
8 Síntese objetiva sobre características do Constitucionalismo Clássico e o Constitucionalismo Social,
numa perspectiva submetida ao Direito Comparado e ao Direito Internacional, encontra-se em
MANILI, Pablo Luis. Constitucionalismo social.1. ed. Buenos Aires: Astrea, 2016. p.2.

37
Manoelle Brasil Soldati, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pasold.

equilíbrio ecológico. Assim o define a Comissão Mundial do Meio Ambiente,


como sendo aquele desenvolvimento que “atende às necessidades do presente sem
comprometer a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem as suas”9.
Entretanto, o Direito Ambiental, em constante construção e evolução, re-
marca novas ideias e formas de atuação para Sociedades.
Destaque-se aqui a ponderação no sentido de que o “Direito Ambiental teria
surgido com a sagrada missão de conservar a Vida, em todas as suas formas,
através de um equilíbrio entre a ação humana e a capacidade de suporte do
Planeta Terra, preservando a natureza e o meio em que se vive para as presentes
e futuras gerações.”10
A tradicional ideia de Desenvolvimento Sustentável, talvez não seja mais
suficiente aos anseios da modernidade, tanto no que concerne ao manejo na-
tural dos recursos naturais, quanto à própria garantia dos direitos necessários
à dignidade humana.
Nesse sentido, a dimensão social11 do Princípio do Desenvolvimento Sus-
tentável merece destaque e reflexão. Segundo Denise Schimitt Siqueira Gar-
cia, a dimensão social está “intimamente ligada à garantia dos Direitos Sociais,
previstos no artigo 6º da Carta Política Nacional, e da Dignidade da Pessoa
Humana, principio basilar da República Federativa do Brasil”12.

9 Relatório Brundtland, de 1987, conhecido como relatório inovador que trouxe o conceito de
Desenvolvimento Sustentável para o discurso público. Disponível em https://nacoesunidas.org/acao/
meio-ambiente/. Acesso em 09/02/208.
10 SOUZA, Maria Cláudia da Silva Antunes de. Por um novo Modelo de Estado: o Estado de Direito
Ambiental. In: SANTO, Davi do Espírito e PASOLD, Cesar Luiz (orgs.). Reflexões sobre Teoria da
Constituição e do Estado. Florianópolis: Insular, 2013. p. 134.
11 Importa registrar que a doutrina é divergente quanto ao caráter pluridimensional da Sustentabilidade
e as dimensões que a suportam. Esclarece-se que não há a pretensão de aprofundar o estudo deste
relevante Tema nesse artigo, pelo que, seguimos o entendimento majoritário que considera a existência
de três dimensões que apoiam a Sustentabilidade: dimensão ambiental, econômica e social. Contudo,
em homenagem à saudável liberdade na Pesquisa Científica, aqui se admite a possibilidade de
percepção de novas dimensões para a categoria Sustentabilidade, principalmente sob a égide de um
“CONSTITUCIONALISMO ECOLÓGICO EM CONSTRUÇÃO”. Aliás, especificamente quanto
à esta importante espécie de Constitucionalismo, vide: SARLET, Ingo Wolfang et FENSTERSEIFER,
Tiago. Direito Constitucional Ambiental. Constituição. Direitos Fundamentais e Proteção do
Ambiente. 5.ed.rev.atual.amp.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 52 e 53.
12 GARCIA, Denise Schimitt Siqueira. El principio de sostenibilidad y los puertos: a atividade
portuária como garantidora da dimensão economica e social do principio da sustentabilidade. 2011.
451f.Tese- (Doctorado em Derecho Ambiental y Sostenibilidade de la Universidade de Alicanre-UA)
– Universiade de Alicante, Espanha, 2011, pp.210-215.

38
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

O princípio da Dignidade humana remete à noção do mínimo existencial, ou


seja, prestações materiais que a todo ser humano devem ser asseguradas para que,
não apenas sobreviva, mas o faça com dignidade. Nessa linha, o Direito Ambiental
(em sua dimensão sociológica) está intimamente ligado à Dignidade Humana, na
medida em que a existência de um Ambiente ecologicamente equilibrado é pres-
suposto para sua garantia e efetividade. Aliás, Luís Roberto Barroso leciona que a
“dignidade humana é um valor fundamental. Valores sejam políticos ou morais,
ingressam no mundo do Direito, assumindo, usualmente, a forma de princípios.” 13
Juarez Freitas, quanto à dimensão sociológica adiciona que:

[...]abrange na referida dimensão a inclusão dos direitos fundamentais


sociais e a necessidade de existência de mediadas de compensação desti-
nadas a favorecer os mais desfavorecidos mediante ações positivas que te-
nham por finalidade o incremento da equidade intra e intergeracional”14.

E, nesse contexto, insere-se o problemático e precário acesso à Agua Potá-


vel. Sua má distribuição, gestão e proteção afetam e dificultam a garantia da
Dignidade Humana, mas, sua falta de acesso rompe totalmente com qualquer
garantia de Vida.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) o Direito Humano à Água
exige que este recurso natural esteja disponível em quantidade suficiente e aces-
sível para todos sem discriminação, além de ser seguro e de ter boa qualidade15.
Nessa perspectiva, Silva Augusto et al. destacam que as nações devem “res-
peitar (gozo do direito à água), proteger (impedindo que terceiros, como as cor-
porações, interfiram no gozo ao direito à água) e cumprir (adotando as medidas
necessárias para alcançar a plena realização do direito à água)”. 16
Uma lição e advertência contundente de Sarlet e Fensterseifer merece transcrição:

O Direito, e especialmente o Direito constitucional e a Teoria dos Di-


reitos Fundamentais, não podem recusar respostas aos problemas e de-

13 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos


Fundamentais e a Construção do Novo Modelo.5.ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
14 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, pp.58-60.
15 ONUBR - Nações Unidas no Brasil, 2010b.
16 SILVA AUGUSTO, L. G.; GURGEL, I. G.; NETO, H. F.; CÂMARA MELO, C. H.; COSTA, A. M.
O contexto global e nacional frente aos desafios do acesso adequado à água para consumo humano.
Revista Ciência & Saúde Coletiva, v. 17. nº. 6, 1511-1522, mar. 2012, p.1514.

39
Manoelle Brasil Soldati, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pasold.

safios postos pela situação de risco existencial e degradação ambiental


colocadas no horizonte contemporâneo em função (Também!) da assim
chamada crise ambiental”.17

Como consequência de uma construção histórica, reflexo das realidades e


anseios sociais, é que o Direito a Água, limpa e tratada, na condição de recurso
ambiental essencial para digna qualidade de Vida de qualquer ser humano, deve
ser tratado, positivado e garantido nas Cartas Constitucionais de forma expressa.
As experiências inovadoras das Constituições do Equador e Bolívia osten-
tam uma forma arrojada de cuidar do tema, assegurando em seus textos não
apenas a garantia e promoção dos direitos da própria Natureza, como também
o caráter fundamental do fornecimento de Água Potável à população.
Tais Dalla Corte é incisiva:

Somente com a justiça hídrica é que ocorrerá sua (re)apropriação so-


cial. Daí a importância da participação e das mobilizações sociais na
governança da água, apesar de seu defronte cotidiano com as faltas de
espaços para diálogos, de apoio e de financiamentos para serem colo-
cadas em práticas ações ecológicas e científicas, bem como perante as
dificuldades de serem realizadas alterações no modelo econômico (e sua
racionalidade) de desenvolvimento dominante (que é o centro, a causa
do problema), agindo-se, dessa forma, principalmente o Direito, para a
mitigação dos efeitos de seus riscos e danos”18.

2. Movimentos em defesa da água e o novo


constitucionalismo latino-americano
Antes de abordarmos o denominado Novo Constitucionalismo Latino-
-Americano e sua proteção à Água, importante ressaltar, com Anibal Quijano,
que “desde o Iluminismo (século XVIII), consolidou-se a ideia de que a Europa
e os europeus eram o momento e o nível mais alcançado no caminho linear, ao
passo que considerados o centro mundial do capitalismo que colonizou o resto

17 SARLET, Ingo Wolfang et FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. Constituição.


Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente, p. 52.
18 CORTE, Tais Dalla. A (Re) Definição do Direito À Água No Século XXI: Perspectiva sob os
Enfoques da Justiça e da Governança Ambiental. 2015. 604 p. Dissertação. Mestrado em Direito.
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, p. 134.

40
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

do mundo, sendo um modelo a ser seguido19”. Mantida, portanto, essa depen-


dência da cultura jurídica latino-americana ao modelo eurocêntrico de matriz
romano-germânica, bem como a produção capitalista e a Introdução do libera-
lismo individualista, propagam-se normas constitucionais que representavam a
vontade e interesses de setores das elites hegemônicas.
Nada obstante a consagração nas Constituições, dos direitos de igualdade,
independência dos poderes, soberania popular, numa ideia de perfeito Estado de
Direito universal, na prática “as instituições jurídicas são marcadas por controle
centralizado e burocrático do poder oficial; formas de democracia excludente;
sistema representativo clientelista; experiências de participação elitista; e por
ausências históricas das grandes massas populares”20.
Assim, por volta dos anos 60, começam a surgir os movimentos populares,
como forma de resistência às injustiças pregadas, notadamente na luta por suas
necessidades sociais materiais à sobrevivência, diferentemente do que ocorria
na Europa e Estados Unidos da América, onde os movimentos sociais caracte-
rizavam-se mais pela busca de suporte financeiro, integração social, etc.
E é nesta seara que emerge um novo constitucionalismo na região Latino
Americana, notadamente, na Constituição do Equador de 2008 e da Bolívia de
2009, representando uma verdadeira mudança de paradigma e tendo por ideo-
logia o respeito e equilíbrio da Sociedade com a Vida, com a Natureza.
O “Novo Constitucionalismo”, também denominado “constitucionalismo
andino”, insurgente, plurinacional ou transformador, resulta de processos cons-
tituintes com a efetiva participação do povo, fruto de reivindicações sociais. Um
constitucionalismo com feição ecocêntrica, descartando a ideia dominante e
redutora de que o homem é o único sujeito de direitos e obrigações.
Pinheiro, Braun e Franceschi ressaltam:

O novo constitucionalismo tem como preocupação primordial a legi-


timidade popular, a construção democrática e participativa, o envolvi-
mento e comprometimento com as demandas sociais que impulsionaram

19 QUIJANO, Anibal. Colonialidade do Poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de


Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.) Epistemologias do Sul. São Paulo, Cortez, 2010. p. 86.
20 WOLKMER, Antônio Carlos; AUGUSTIN, Sergio; S. WOLKMER, Maria de Fátima. O “novo” direito
à água no constitucionalismo da América Latina. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis,
Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 51-69, jul. 2012. ISSN 1807-1384. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/
index.php/interthesis/article/view/1807-1384.2012v9n1p51/22506, acesso em 12/01/2018.

41
Manoelle Brasil Soldati, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pasold.

os novos textos constitucionais e a redimensão jurídica em favor das


populações historicamente relegadas nas necessidades fundamentais,
fatores que fizerem surgir o movimento chamado de “novo constitucio-
nalismo latino-americamo21

Trata-se de um novo paradigma que rompe com os velhos modelos políti-


cos do direito, notadamente o Constitucional e o Ambiental. Nesse sentido,
as normas constitucionais que regulam o Direito Ambiental nesses Estados,
percorrem por pelo menos três modelos éticos. No primeiro deles, conhecido
como não-antropocentrismo, enquadram-se “correntes que propõem uma alte-
ração ontológica da visão humana da natureza. Entre estas correntes é possível
destacar: a ecologia profunda; o biocentrismo; o ecofeminismo; os direitos dos
animais não-humanos, entre outras”22.
Ainda, nas palavras de Antônio Herman Benjamin23:

Por “não-antropecentrismo”, queremos significar todas as correntes que


criticam ou rejeitam por insuficiência a doutrina antropocêntrica (in-
clusive o antropocentrismo mitigado). É uma visão do mundo informada
por um modelo ecológico de interrelacionameto interno, um rico sistema
de circulação permanente entre o “eu” e o mundo exterior, e que advoga
ser a natureza mais complexa do que a conhecemos e, possivelmente,
mais complexa do que poderemos saber (Teoria do Caos). (...)

E, mais:

Nessa vasta e heterogênea família, incluímos o biocentrismo38 e o eco-


centrismo (ou holismo39). Algumas dessas tendências são comumente
associadas aos movimentos de contracultura, incluindo ainda a teoria

21 PINHEIRO, Anderson Tadeu; BRAUN, Helenice e FRANCESCHI, Ligiane. Novo Constitucionalismo


Latino-Americano: Cidadania E Justiça Comunitária. In WOLKMER, Antônio Carlos, CAOVILLA,
Maria Aparecida Lucca (Orgs). Temas atuais sobre o constitucionalismo latino-americano.
[e-book]. São Leopoldo: Karywa, 2015. Disponível em https://constitucionalismodemocratico.direito.
ufg.br/up/332/o/novo-constitucionalismo2.pdf, pp48-69. Acesso em 12/01/2018.
22 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou
nada disso. In: CARLIN, Volnei Ivo (Org.). Grandes temas de direito administrativo: homenagem
ao professor Paulo Henrique Blasi. Florianópolis: Conceito Editorial; Millennium Editora, 2009. p.
49-68. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/26184, pp.4-5.
23 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Grandes temas de direito administrativo:
homenagem ao professor Paulo Henrique Blasi. pp.16-18.

42
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

dos “direitos dos animais” (“animal liberation”), tendo Peter Singer à sua
frente, o ecofeminismo, a ecologia social e a cosmologia animística dos
povos indígenas Todas essas correntes propõem uma alteração ontológi-
ca na nossa visão da natureza e do nosso relacionamento com ela.

O segundo modelo, conhecido como antropocentrismo-puro24, distancia o


homem do resto do meio ambiente, supervalorizando sua existência, num hu-
manismo exacerbado.
Em terceiro, o antropocentrismo intergeracional ou mitigado ou reforma-
do25, ainda mantem o homem num papel de destaque em relação ao meio am-
biente, no entanto, defende que os serem humanos devem se preocupar com a
questão ambiental, para que as futuras gerações possam desfrutar dos benefícios
da natureza. Este último, presente na atual situação de proteção ambiental na
maioria dos países da América Latina, inclusive o Brasil.
Mas não todos. E exatamente nessa trilha é que o Constitucionalismo de
alguns países andinos, numa feição ecocêntrica, instituído sobre a concepção
de Mundo trazida pelos povos indígenas, ostentando como princípios o reco-
nhecimento dos direitos da natureza (Pachamana) e a cultura do Bem Viver,
emerge como novo marco teórico contra o modelo econômico predatório do
mundo atual, sobressaindo o respeito à natureza, ao meio ambiente e, vale dizer,
o respeito primacial à Vida, notadamente ao acesso à Agua potável.
São Constituições que resgatam a simbiose existente entre a soberania po-
pular e prática dos atos governamentais, valor imanente à Democracia partici-
pativa, e não apenas representativa.
Nessa linha:

A participação dos cidadãos em matérias de políticas públicas de direitos


fundamentais é um dos vetores primaciais em que se assenta a ideologia

24 A professora Robyn Eckersley apud Antonio Herman Benjamin, define antropocentrismo como
sendo: [...] a crença na existência de uma linha divisória, clara e moralmente relevante, entre a
humanidade e o resto da Natureza; que o ser humano é a principal ou única fonte de valor e significado
no mundo e que a Natureza-não humana aí está com o único propósito de servir aos homens”.
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Grandes temas de direito administrativo:
homenagem ao professor Paulo Henrique Blasi. p. 10.
25 Processo que surge pela “cruel necessidade de sobrevivência do planeta, que sofre com o aquecimento
global, com a elevação dos níveis dos oceanos, com o aquecimento do atlântico, com os tsunamis,
furacões e demais catástrofes ambientais”. MIRANDA, Joao Paulo Rocha de. Fundamentos do Direito
Ambiental Aplicado às Ciências Agrárias, Ambientais e Jurídicas. Juina-MT: Amazon, 2009, p.25.

43
Manoelle Brasil Soldati, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pasold.

do Novo Constitucionalismo Democrático latino-americano, o que de-


nota seu viés inclusivo. A oitiva dos setores da sociedade corporifica a
legitimidade da atuação estatal. A função promocional do Direito atrela-
-se aos clamores sociais.26

E também são Constituições que adotam a ideia de que a Natureza também


é sujeito de direitos, e não apenas a natureza como objeto.
Em tal contexto, foi a Constituição do Equador de 2008, que se tornou para-
digmática ao declarar expressamente o Direito da Natureza, bem como o Direto
Humano à Agua, como Direito Fundamental.
No mesmo diapasão, a Constituição da Bolívia de 2009, faz referência em
seu preâmbulo às guerras da Água e ao desafio histórico de construir coleti-
vamente o Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, um
Estado baseado no respeito e na igualdade entre todos, com princípios da sobe-
rania, dignidade, complementariedade, solidariedade, harmonia e equidade na
distribuição e redistribuição do produto social, onde predomine a busca do Bem
Viver, em convivência coletiva com acesso à agua27. Isso porque, foi a famosa
Guerra del Agua, ocorrida em Cochabamba, que iniciou com a revolta da popu-
lação que não podia pagar pelo custo da Água e estava tendo seu fornecimento
interrompido pela concessionária.
Para outros países da América Latina, como Argentina, México, Chi-
le, Colômbia, Paraguai, Venezuela e Nicarágua os movimentos já não se
mostraram tão significativos, posto que suas normas constitucionais ain-
da não preveem e forma expressa o direito fundamental à agua potável.
Apenas a título ilustrativo, na Argentina, no ano de 2002, a população
tentou pressionar o Governo, por intermédio de plebiscito, para que hou-
vesse a rescisão do contrato de concessão de serviço de abastecimento e
tratamento de Água com a empresa Suez, que havia aumentado as tarifas

26 Moraes, G., & Júnior, W. A Construção do Paradigma Ecocêntrico no Novo Constitucionalismo


Democrático dos Países da UNASUL. Revista De Direito Brasileira, ano 3, vol.5, maio-ago/2013, p.53.
27 Preâmbulo da Constituição Boliviana - Tradução nossa: Un Estado basado en el respeto e igualdad
entre todos, con principios de soberanía, dignidad, complementariedad, solidaridad, armonía y equidad
en la distribución y redistribución del producto social, donde predomine la búsqueda del vivir bien; con
respeto a la pluralidad económica, social, jurídica, política y cultural de los habitantes de esta tierra; en
convivencia colectiva con acceso al agua, trabajo, educación, salud y vivienda para todos.

44
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

do serviço em 88% em menos de 10 anos de atuação e nunca prezou pela


qualidade da Água28.
Da mesma forma, no México, “ a sociedade civil, representada por (...)
mais de 400 ativistas, povos nativos, pequenos agricultores e estudantes, reu-
niu-se para lutar pelo (...) direito à água limpa e para resistir à tendência de
controle corporativo”29.
No Chile a população, no ano de 2000, foi contrária a um plebiscito orga-
nizado para questionar sobre a privatização, e mesmo assim, não conseguiram
publicizar o serviço.
No Brasil, merece destaque o movimento denominado Tribunal da Água,
realizado no ano de 1993, em Florianópolis/SC, cuja função primordial era jul-
gar casos de poluição e mau uso dos recursos hídricos.

O Tribunal da Água, tal como foi idealizado e funcionou em Florianópo-


lis, não é um ‘modelo’ mas apenas uma referencia de ação possível. Nas
particularidades do contexto brasileiro, teve um impacto muito positivo.
Contribuiu para a conscientização de uma sociedade em que as refe-
rências ao meio ambiente continuam vagas a e própria noção bastante
imprecisa; mesmo em se tratando de muitos militantes ambientalistas.
Mostrou um caminho a alguns desses militantes e insuflou ânimo, bem
como a outras pessoas, inclusive nas profissões judiciárias (...). Não há
duvida de que, com a experiência adquirida, o Tribunal poderia ser me-
lhorado e alcançar melhor seus objetivos ou incluir outros30.

3 A nova visão da água potável nos


constitucionalimos modermos
A Água é fundamental para manutenção da Vida, humana e do próprio
meio ambiente, e as lutas travadas para sua garantia, inicialmente, centravam-
-se contra governos locais. Assim, pode-se dizer que a origem desse enfrenta-
mento é “ (...) encontrada nas centenas de comunidades do mundo todo onde

28 CORTE, Tais Dalla. A (Re) Definição do Direito À Água No Século XXI: Perspectiva sob os
Enfoques da Justiça e da Governança Ambiental. p.147.
29 BARLOW, Maude. Água Pacto Azul: A crise global da água e a batalha pelo controle da água
potável no mundo. São Paulo: M. books, 2009, p.114.
30 CAUBET, Cristian Guy. O tribunal da água. GEOSUL, Florianópolis, n. 18, ano IX, p. 71-86, 1994, p.71.

45
Manoelle Brasil Soldati, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pasold.

as pessoas lutam para proteger seus suprimentos locais de água da poluição, da


destruição por causa de represas e do roubo”31.
De outro lado, é relevante enfatizar que a Água se relaciona diretamente
com a produção de bens, exercício de atividades profissionais, despertando for-
ças políticas e de mercado que acabam por sobrepor-se à vitalidade da Água
para os seres vivos.
Atualmente, os movimentos na busca da Justiça da Água, acontecem no
mundo todo, em afronta, de um modo geral a sua privatização, ao abandono dos
Governos quanto à sua responsabilidade de encarregar-se dos recursos hídricos
e oferecer agua limpa, potável, ao povo.
E foi fruto desse esforço da população que emergem ao cenário mundial as
Constituições de Equador (2008) e da Bolívia (2009), consideradas marcos da
quebra paradigmática com o moderno e liberal Constitucionalismo moderno.
A Constituição do Equador, em seu preâmbulo anuncia o compromisso,
com o presente e com o futuro, de construir uma nova forma de conivência
cidadã, em diversidade e harmonia com a natureza, para alcançar o buen vivir, e
o sumak kawsay. Construir uma Sociedade que respeita, em todas as dimensões,
a dignidade das pessoas e coletividade32.
O sumak kawsay, nas palavras de Eugenio Raul Zaffaroni,

é uma expressão quíchua que significa viver bem ou viver pleno e cujo
conteúdo não é outra coisa senão a ética-não a moral individual - que
deve reger a ação do Estado e de acordo com o que as pessoas devem
também se relacionam entre si e em especial com a natureza. Não se
trata do tradicional bem comum reduzido ou limitado para os seres hu-

31 BARLOW, Maude. Água Pacto Azul: A crise global da água e a batalha pelo controle da água
potável no mundo. p.110.
32 Preâmbulo da Constituição do Equador - Tradução nossa: PREAMBULO: NOSOTRAS Y
NOSOTROS, el pueblo soberano del Ecuador RECONOCIENDO nuestras raíces milenarias, forjadas por
mujeres y hombres de distintos pueblos, CELEBRANDO a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos
parte y que es vital para nuestra existencia, INVOCANDO el nombre de Dios y reconociendo nuestras
diversas formas de religiosidad y espiritualidad, APELANDO a la sabiduría de todas las culturas que nos
enriquecen como sociedad, COMO HEREDEROS de las luchas sociales de liberación frente a todas las
formas de dominación y colonialismo, Y con un profundo compromiso con el presente y el futuro, Decidimos
construir Una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía con la naturaleza, para
alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay; Una sociedad que respeta, en todas sus dimensiones, la dignidad
de las personas y las colectividades; Un país democrático, comprometido con la integración latinoamericana
-sueño de Bolívar y Alfaro-, la paz y la solidaridad con todos los pueblos de la tierra; y, En ejercicio de nuestra
soberanía, en Ciudad Alfaro, Montecristi, provincia de Manabí, nos damos la presente.

46
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

manos, mas o bem de todos os seres vivos, incluindo os humanos, é


claro, entre os quais exige complementaridade e equilíbrio, não sendo
alcançável individualmente33.

Entre os direitos do Bem Viver, a Constituição Equatoriana de 2008 prevê


expressamente (art.12) que o direito humano à Água é fundamental e irre-
nunciável, e a Água constitui patrimônio nacional estratégico de uso público,
inalienável, imprescritível e essencial para a Vida, Ainda, o artigo 3°, I, atribui
ao Estado, o dever primário de garantir agua para seus habitantes34.
Ainda no tocante à Água, a Constituinte do Equador aprovou quatro pontos
fundamentais: 1- a Água é um direito humano; 2- a Água é um bem nacional es-
tratégico de uso público; 3- a Água é um patrimônio da Sociedade; e, 4- ela é um
componente fundamental da natureza, a mesma que tem direitos próprios a existir
e manter seus ciclos vitais. Ou seja, ultrapassada a ideia de que a Água tem caráter
meramente mercantil, reconhece-a como direito fundamental, mas, principalmen-
te, obriga o Estado a elaborar políticas públicas para tornar efetivo tal direito.
A Bolívia também foi país percursor no reconhecimento da Água como fon-
te de Vida, e direito de todos os seres humanos. No artigo 16, dispõe que toda
pessoa tem direito a Água, e no artigo 20, I, assegura a essas pessoas o direito ao
acesso universal e equitativo aos serviços de Água Potável e saneamento, bem
como proíbe sejam objeto de concessão ou privatização, sujeitando-as ao regime
de licenças e registros, na conformidade da lei 35. Ainda, assegura em seu artigo

33 Tradução nossa do original: El sumak kawsay, que es una expresión quechua que significa buen vivir o
pleno vivir y cuyo contenido no es otra cosa que la ética –no la moral individual- que debe regir la acción del
estado y conforme a la que también deben relacionarse las personas entre sí y en especial con la naturaleza.
No se trata del tradicional bien común reducido o limitado a los humanos, sino del bien de todo lo viviente,
incluyendo por supuesto a los humanos, entre los que exige complementariedad y equilibrio, no siendo
alcanzable individualmente. ZAFFARONI, Eugenio Raul. La naturaleza como persona: Pachamama
y Gaia IN Bolivia: Nueva Constitución Política del Estado. Conceptos elementares para su
desarrollo normativo. Vicepresidencia del Estado Plurinacional: La Paz, Bolivia, 2010, pp.120-121.
34 Art. 12.-El derecho humano al agua es fundamental e irrenunciable. El agua cons-tituye patrimonio
nacional estratégico de uso público, inalienable, imprescriptible, inembargable y esencial para la vida; e
Art. 3.-Son deberes primordiales del Estado: 1.Garantizar sin discriminación alguna el efectivo goce de los
derechos establecidos en la Constitución y en los instrumentos internacionales, en particular la educación,
la salud, la alimentación, la seguridad social y el agua para sus habitantes.
35 Artículo 16. I. Toda persona tiene derecho al agua y a la alimentación e Artículo 20. I. Toda persona tiene
derecho al acceso universal y equitativo a los servicios básicos de agua potable, alcantarillado, electricidad,
gas domiciliario, postal y telecomunicaciones.

47
Manoelle Brasil Soldati, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pasold.

373, I que a água constitui um direito fundamental para a Vida, nos marcos da
soberania do povo.36
Já no ano de 2010, a Bolívia apresentou para a Assembleia Geral da ONU,
por intermédio de seu Embaixador Pablo Sólon37, um pedido de reconheci-
mento expresso da Água como Direito Humano, pelo que veio a ser editada
a Resolução 64/292 pela AG/ONU (2010), sobre o direito humano de acesso à
Água e saneamento, e logo em seguida, a Resolução 15/9 (2010) do Conselho
de Direitos Humanos das Nações Unidas, afirmando que a Água (seu acesso) é
garantia de nível de Vida adequado, saúde e dignidade.
O tratamento jurídico conferido às Águas pela Constituição da Bolívia
(2009) é, sem dúvida, um dos mais evoluídos do mundo. Nesse sentido comenta
William Paiva Marques Junior, que:

a alteração de velhos paradigmas para a preparação da sociedade fun-


dada nos grandes impasses do século XXI, como forma de inclusão
de todos os cidadãos, bem como o viés transcendente aos aspectos
meramente jurídico-ambientais, preocupando-se com questões históri-
cas, sociológicas (utilização balizada pela solidariedade, por exemplo),
internacionais (recursos hídricos em áreas fronteiriças); econômicos,
dentre vários outros38.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88)39,


promulgada e conhecida como Constituição Cidadã, contem um extenso rol
de Direitos e Deveres do Cidadão, mas ainda tenta superar o desafio de suas
concretizações. Isso, no entanto, não é suficiente à efetiva garantia dos direitos,
notadamente do direto de acesso à Água Potável, que antes de se consagrar
direito nos textos constitucionais, trata-se de elemento indispensável à Vida, de

36 El agua constituye un derecho fundamentalísimo para la vida, en el marco de la soberanía del


pueblo. El Estado promoverá el uso y acceso al agua sobre la base de principios de solidaridad,
complementariedad, reciprocidad, equidad, diversidad y sustentabilidad.
37 BARLOW, Maude. Água futuro azul: Como proteger a água potável para o futuro das pessoas e do
planeta para sempre. p.38.
38 MARQUES JÚNIOR, William Paiva. Parâmetros jurídico-constitucionais de gestão dos
recursos hídricos nos países da Unasul: Sistemáticas do Brasil, Equador e Bolívia na legitimidade
do Direito Humano à água potável e ao saneamento básico. In: A sustentabilidade ambiental em
suas múltiplas faces. Organizador Nilton César Flores, São Paulo, Millenium, 2012, p. 113.
39 Doravante identificada, no presente artigo, pela sigla: CRFB/88.

48
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

qualquer ser vivo. Dela dependem todos os seres humanos para viver, que não
sobrevive de três a cinco dias sem Água.
Em todo o mundo, cerca de três em cada dez pessoas — em um total de 2,1
bilhões — não têm acesso a Água Potável em casa, e seis em cada dez — ou
4,5 bilhões — carecem de saneamento seguro, de acordo com novo relatório da
Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF) divulgado em 2017.
Não bastasse isso, todos os anos 361 mil crianças com menos de 5 anos
morrem devido a diarreia. O saneamento deficiente e a Água contaminada
também estão ligados à transmissão de doenças como cólera, disenteria, he-
patite A e febre tifoide40.
No Brasil, não é diferente. Em que pese se tratar de um País que possui
8% da Água doce de toda superfície do planeta e 13% do potencial hídrico do
mundo, ainda tem 45 milhões de brasileiros que não tem acesso à agua potável,
tampouco tratamento de esgoto41.
Por tudo isso, não é difícil acreditar que o motivo de uma futura guerra
mundial seja a água que, a exemplo do petróleo é fonte de riqueza, mas, muito
além disso, é fonte de Vida Digna.
A tutela jurídica da Água no Brasil, como já mencionado, encontra respaldo
em diversos artigos da CRFB/88. Entretanto, antes mesmo de sua publicação,
merece especial destaque, em âmbito infraconstitucional, o Código de Águas
(decreto n° 24.643 de 10 de julho de 1934) que foi o marco legal da normatiza-
ção e disciplina dos recursos hídricos no Brasil. Apesar de ser considerada por
alguns como uma lei completa, posto que já trazia àquela época a previsão do
princípio do poluidor-pagador, ele foi editado com a preocupação única do Go-
verno da época, que geria então um país eminentemente agrícola, e começa a
despertar para sua fase industrial, em regulamentar o aproveitamento industrial
das Águas, sobretudo, da energia hidráulica.
Em 1997, soma-se ao Código de Águas, a Lei 9.433 de 8 de janeiro de 1997,
instituindo a Política Nacional dos Recursos Hídricos (PNRH), com intuito de

40 Informações retiradas do site da ONUBR Nações Unidas do Brasil, disponível em https://


nacoesunidas.org/onu-45-bilhoes-de-pessoas-nao-dispoem-de-saneamento-seguro-no-mundo/.
Acesso em 16/12/2017.
41 TAKEDA, Tatiana de Oliveira. Distribuição desordenada de água pelo Brasil. Âmbito Jurídico. Rio
Grande, XIII, n. 79, ago 2010. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_
link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8144.Acesso em 08/01/2018.

49
Manoelle Brasil Soldati, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pasold.

regulamentar o inciso XIX do artigo 21 da já vigente Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988 que dispõe ser de competência da União “instituir
sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de
outorga de direitos de seu uso”.
Importante lembrar ainda que a implementação do saneamento básico está
diretamente ligada à garantia de Água Potável, mas somente no ano de 2007,
através da edição da Lei n°11.445, de 5 de janeiro de 2007, que o tema foi regula-
mentado no Brasil, definindo o saneamento como um conjunto de serviços, in-
fraestruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de Água Potável.
Como se vê, o reconhecimento do Direito à Água Potável, não tem previsão
expressa. No entanto, em uma interpretação sistêmica, extrai-se do texto da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que dentre os Direitos
Fundamentais por ela agraciados, o Meio Ambiente ecologicamente equilibra-
do (art. 225, CRFB/88) destaca-se por estar intrinsicamente ligado à Dignidade
da Pessoa Humana – princípio da República Federativa do Brasil, disposto no
artigo 1º, III, da CRFB/88 – bem como ao próprio direito Fundamental à Saúde
(art. 6º) e à Vida, (art.5°).
Nesse viés, esclarece Alexandre de Moraes que “direitos e garantias do ser
humano, que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade”, limitando o
poder do ente público, ao mesmo tempo em que estabelece “condições mínimas
de Vida, e desenvolvimento da personalidade humana”42.
Portanto, reconhecer à Água seu status de direito fundamental, nas palavras
de Paulo de Bessa Antunes “é um importante marco na construção de uma
sociedade democrática e participativa e socialmente solidária”43.
E é exatamente frente ao novo enfoque conferido nos movimentos em
favor da Justiça Hídrica que se evidencia necessária uma redefinição do or-
denamento jurídico brasileiro, imediatamente e ainda neste século XXI, con-
dizente com o moderno Constitucionalismo Latino-amerciano, notadamente
quanto ao reconhecimento expresso do Direito à Agua como fundamental, e
sua vinculação a consistentes Políticas Públicas e a ações concretas do Estado
com o fim de garanti-lo.

42 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos art.1º
a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 7.ed. São
Paulo: Atlas, 2006, p. 21.
43 ANTUNES. Paulo de Bessa. Direito ambiental. 5 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p.48.

50
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Conclusão
A Água Potável não é apenas fonte de Vida, mas condição precípua para
uma existência digna. Por isso, ressalta-se a importância e urgência na redefi-
nição do Direito à Água no Brasil, já inserido num século em que o contexto
internacional pressiona nesse sentido e alguns países o consagram de forma
expressa em seus mandamentos constitucionais.
Imprescindível à concretização dos direitos rogados nas lutas sociais, que
sejam estes formalmente consagrados, na Ordem Constitucional, princi-
palmente porque: “O Direito não pode ficar alheio às exigências sociais da
contemporaneidade”44.
Os direitos não são considerados fundamentais porque estão positivados,
mas devem ser positivados porque são fundamentais. Reconhece-los explicita-
mente, sobretudo na Constituição de um país, reporta à ideia de que o Estado
deve se responsabilizar por seu provimento e qualquer ameaça à efetivação des-
se direito pode (e deve) ser afastada, particularmente pela defesa de seus direitos
perante do Poder Judiciário.
Por certo, a sua formalização no Texto Constitucional é apenas um pas-
so da caminhada que se está iniciando, mas evidencia, como nos casos do
Equador e Bolívia, a concretização da voz da Sociedade, e corresponden-
te às necessidades do Século XXI a uma Vida Digna, em clara direção à
emancipação de seu povo. As duas aqui destacadas são Constituições que
denotam preocupação com o acesso a fontes de Água limpa para seu Povo,
marcando o início de novas bases do Constitucionalismo Ecocêntrico a ex-
pandir-se pelo Mundo.
E sob o ponto de vista das Águas, eleva-se o acesso da Água Potável à condi-
ção de Direito Humano, Fundamental e indissociável do Direto à Vida e Digni-
dade Humana. São novos desafios a serem assimilados para alcançarmos a ver-
dadeira concretização do direito que nos pertence e nem sempre nos é acessível.
Uma Constituição corresponderá aos anseios da Sociedade quando, para
muito além de sua transcendência jurídica, seja o resultado de um Projeto Po-
litico de Vida comum, elaborado legitimamente a partir dos anseios e com o
concurso ativo de toda a Cidadania.

44 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1999, p.2.

51
Manoelle Brasil Soldati, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Cesar Luiz Pasold.

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direito.ufg.br/up/332/o/novo-constitucionalismo2.pdf Acesso em 10/01/2018.
Acesso em 12/01/2018.

55
O direito fundamental de acesso à água
potável no Brasil como condição para
um desenvolvimento sustentável

Ana Carla Pinheiro Freitas1


Ivanna Pequeno dos Santos2
Jahyra Helena Pequeno dos Santos3

Introdução
“Ouro azul”, assim tem-se designado a água desde final do Século XX, em
comparação ao petróleo, o “ouro negro”, dada a percepção da sua importância
para a humanidade e a sobrevivência do planeta4. O estudo e a preocupação
com a água foi por muito tempo restrita a especialistas, como hidrólogos, en-
genheiros, meteorologistas, com interesses específicos. Esse quadro, no entan-
to, têm mudado com a apreensão de que o acesso à água limpa tem-se tornado
cada vez mais difícil.
Dentro desse contexto, o presente estudo tem como objetivo defender que
o direito de acesso à água é condição para um desenvolvimento sustentável. O
acesso à água potável é direito fundamental na ordem jurídica brasileira, mesmo
não constando expressamente no art. 6º da Constituição Federal de 1988; e
direito humano, reconhecido formalmente no âmbito internacional, pela As-
sembléia Geral das Nações Unidas (ONU).

1 Doutora em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela PUC-SP. Professora Pesquisadora do
Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza REPJAL/ UNIFOR.
2 Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professora
Assistente da Universidade Regional do Cariri (URCA). E-mail: ivannapequeno@yahoo.com.br
3 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professora Assistente
da Universidade Regional do Cariri (URCA). E-mail: jahyra@oi.com.br
4 O terno ouro azul é empregado pelos autores Maude Barlow e Tony Clarke, na obra Ouro Azul: como
as grandes corporações estão se apoderando da água doce no planeta (2003).

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Ana Carla Pinheiro Freitas, Ivanna Pequeno dos Santos e
Jahyra Helena Pequeno dos Santos

No Texto constitucional de 1988, os direitos à vida, à saúde, ao desenvolvi-


mento sustentável e à cidadania são direitos fundamentais; já o meio ambiente
ecologicamente equilibrado é essencial para obtenção de tais direitos. Nesse
caso, é possível afirmar que água é direito fundamental, devendo o Estado, por-
tanto, dar-lhe cumprimento e proteção, por força da disposição do § 1º do art.
5º do texto constitucional. Diante desse cenário, a ideia de desenvolvimento
sustentável, que concilie modelos socioeconômicos e equilíbrio ecológico se faz
presente em qualquer discussão sobre o direito de acesso à água potável.
A presente pesquisa é fundamentalmente bibliográfica, apoiada na doutrina
dos direitos humanos, fundamentais e direito das águas; tem natureza explo-
ratória e crítica. Sua importância traduz-se perante o quadro de exaustão dos
recursos hídricos e a consequente necessidade de uso sustentável do recurso.
Assim, a princípio, tem-se uma reflexão sobre o direito humano de acesso
à água potável e a crise hídrica, com foco na Região do Nordeste - Brasil; em
seguida, apresenta-se breves diferenças conceituais entre direitos humanos e
fundamentais e, por fim, discorre-se sobre o desenvolvimento sustentável e o
uso sustentável da água.

1. O Direito humano de acesso à água potável


A água é de longe a substância mais abundante na Terra, cobre 70% da
sua superfície, no entanto, a maior quantidade de água no planeta é salgada
(97,5%), imprópria para o consumo e atividades socioeconômicas. As águas
utilizadas para o abastecimento humano, captadas nos rios e lagos, são as cha-
madas águas doces, com baixa concentração de sais minerais, e correspondem a
2,5% das águas do planeta. Destes 2,5%, apenas 0,3% são renováveis, o restante
encontra-se em calotas polares, no gelo e na neve5.
Dependendo do contexto, a água pode ser definida como uma substância
inorgânica natural, desvinculada de qualquer uso, ou como recurso estratégico,
de valor econômico, passível de utilização. Sob qualquer dos enfoques, ressalta-
-se a sua importância. A grosso modo, sustenta-se que o termo “água”, serve
para designar o elemento natural; enquanto a expressão “recursos hídricos” é

5 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito de águas: disciplina jurídica das águas doces. São
Paulo: Atlas, 2001, p. 60.

58
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

empregada quando se faz referência a sua utilização econômica. A legislação, no


entanto, não faz distinção entre os termos.
A existência de problemas relacionados à disponibilidade de água para a hu-
manidade foi apontada formalmente na Conferência Internacional de Água e
Meio Ambiente, em Dublin, Irlanda, em 1992. Naquela ocasião foi estabelecido
alguns princípios para a gestão sustentável das águas, dentre eles destaca-se o re-
conhecimento da água doce como um recurso finito, dotado de valor econômico
e a previsão de seu gerenciamento baseado na participação dos usuários. Esses
princípios, foram referendados posteriormente na ECO-92, no Rio de Janeiro,
com destaque para a Agenda 21, que tratou especificamente dos recursos hídricos
no capítulo 18, nos quais são apresentados ações referentes as águas doces6.
Observa-se, assim, no contexto internacional uma crescente preocupa-
ção com os recursos hídricos, com ênfase nos aspectos de sua qualidade,
acesso à água potável e saneamento. Nesse sentido, destaca-se as manifes-
tações da ONU, por intermédio da Resolução nº 64/292 (A/RES/64/292),
aprovada em 28 de julho de 2010, na 108º Reunião Plenária, que reconhe-
ceu o direito a água potável e ao saneamento como um direito humano
essencial ao pleno desfrute da vida7.
A referida Resolução, reconhece a importância de se dispor de água potável
e saneamento em condições equitativas como componente essencial ao desfrute
de todos os direitos humanos, que são universais, indivisíveis e interdependen-
tes. Por fim, exorta os Estados e as organizações internacionais a fornecerem re-
cursos financeiros, capacitação e transferência de tecnologia, em particular aos
países em desenvolvimento, a fim de intensificar os esforços para proporcionar
a toda a população acesso à água potável e ao saneamento.
Ressalte-se, ainda o papel da Observação Geral nº 15, de 2002, do Comitê
Econômico, Social e Cultural das Nações Unidas, no reconhecimento formal
do acesso à água como um direito humano, universal e indivisível8.
Declara a Observação Geral nº 15, que a água é um recursos natural limita-
do, bem público fundamental para a vida e a saúde, indispensável para a con-

6 TASSIGNY, Monica M.; SANTOS, Ivanna Pequeno; SANTOS, Jahyra Helena P. Água é um sujeito
de direitos? Uma visão ecocêntrica da água. Revista de Direito Ambiental, ano 22, v.85, jan./-mar.,
2017, p.41-59.
7 Ibid., p.47.
8 Ibid., p.48.

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Ana Carla Pinheiro Freitas, Ivanna Pequeno dos Santos e
Jahyra Helena Pequeno dos Santos

dução de uma vida digna. Sua fundamentação constrói-se a partir dos arts. 11 e
12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, relacio-
nando, assim, o direito humano à água com o direito a um nível ou qualidade de
vida adequada e com o direito à saúde. Para o mencionado documento, o direito
humano à água resume-se no direito de todos disporem de água suficiente, sau-
dável, aceitável e acessível, para uso pessoal e doméstico9.
Dentro desse cenário de discussões referentes ao reconhecimento da água
como um direito humano, o Brasil vem produzindo, paulatinamente, legisla-
ções e políticas que buscam valorizar seus recursos hídricos. Com a Consti-
tuição da República de 1988, consagrou-se uma visão da água como bem de
domínio público, integrante do patrimônio ambiental. Repartindo seu domí-
nio entre a União e os Estados, o Texto prevê a implementação da Política
Nacional de Recursos Hídricos, que ocorreu em 1997, com a promulgação da
Lei Federal nº 9.433.
A atual Política Nacional, através de seus fundamentos e objetivos, incorpo-
rou ao arcabouço legal brasileiro conceitos fundamentais, que buscam alcançar
um uso mais racional desse recurso, por meio da hierarquia de prioridade de uso
e de uma gestão descentralizada e participativa. Dentre os seus objetivos esta a
preocupação de assegurar à atual e as futuras gerações a necessária disponibili-
dade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos.
O Brasil, é um país com importante rede hidrográfica, ocupa uma posi-
ção de destaque em relação à água, correspondente a 11,2% da disponibilidade
mundial, no entanto, a distribuição da rede hidrográfica não corresponde à dis-
tribuição espacial da população. De acordo com dados da Secretaria de Recur-
sos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, a região Norte contém 68,5% de
água doce e 6,98% da população do país; a região Centro-Oeste detém 15,7%
de água doce e 6,41% da população; a região Sul possui 6,5% de água doce e
15,5% da população brasileira; o Sudeste, por sua vez, dispõe de 6% de água
doce e 42,65% da população; já o Nordeste, com 3,3% de água doce, concentra
28,91% da população10.
Cerca de 30 milhões de pessoas vivem no chamado Polígono das Secas – que
inclui os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,

9 Ibid., p.48.
10 MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Águas subterrâneas: programa de água subterrânea.
Brasília: MMA, 2011, p.14.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, norte de Minas Gerais e Espírito Santo.


É o semiárido mais populoso do mundo11.
A região sofre longos períodos de estiagem, que costumam reduzir os esto-
que de água disponíveis. Com isso, uma parte considerável da população é obri-
gada a fazer longas caminhadas diárias para buscar água para uso doméstico.
Provavelmente em torno de dois terços dos 3,3 milhões de domicílios rurais no
Nordeste enfrentam essa realidade12.
Os períodos de secas prolongadas resultam em expressivos prejuízos econô-
micos para a região. Há considerável perda agrícola, principalmente de algodão
e milho, por conta da seca. Além das perdas agrícolas, a seca amplia a miséria
e o êxodo rural. Sem falar na “indústria da seca”, fenômeno recorrente a mais
de um século, que consiste no enriquecimento ilícito de pessoas – políticos e
empresários- que se apossam de boa parte dos recursos destinados às obras que
visam reduzir o problema da estiagem.
As peculiaridades geoambientais da Região Nordeste do Brasil, frente às
potencialidades e limitações dos recursos hídricos, torna-se um fator funda-
mental que justifica a pesquisa relacionada ao acesso desse bem limitado e
de valor econômico.
Nessa senda, entende-se que não basta que a população tenha a sua disposi-
ção água doce que lhe permita viver. É necessário que a água seja potável e for-
necida em quantidade suficiente para garantir vida compatível com a dignidade
humana, um dos fundamentos da República brasileira (art. 1º, III, da CF). A
água potável, segundo Portaria n. 1.469, de 29.12.2000, do Ministério da Saúde,
é aquela segura para o consumo humano, dentro de padrões microbiológicos,
físicos e químicos, além de palatável.
Com efeito, como o direito a uma vida digna implica na possibilidade real
de satisfazer uma série de necessidades sócio-econômicas, garantir esse direito
acarreta para o Estado a obrigação de velar pelo acesso igual de todos aos fa-
tores determinantes básicos para a saúde, tais como a água potável, condições
sanitárias adequadas, meio ambiente sano e educação básica.
A dignidade da vida humana está diretamente ligada à disponibilidade e
acesso aos recursos hídricos em qualidade e quantidade suficientes à satisfação

11 AGUIAR, Laura; DELDUQUE, Marcelo; SCHARF, Regina. Como cuidar da nossa água. 4 ed. São
Paulo: BEÎ Comunicação, 2014, p.127.
12 Ibid., p.129.

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Ana Carla Pinheiro Freitas, Ivanna Pequeno dos Santos e
Jahyra Helena Pequeno dos Santos

das necessidades básicas dos seres vivos. O direito de acesso à água tem relação
direta com os direitos fundamentais a vida, a saúde, a um ambiente sadio e ao
desenvolvimento, assumindo inegável contorno de direito fundamental.

2. Direitos humanos e direitos fundamentais


Tomando por parâmetro Robert Alexy, as normas de direito fundamental
são expressas por disposições de direitos fundamentais No caso da constituição
alemã, são os enunciados presentes no texto. Neste ínterim, ressalta o autor
a importância de uma correta fundamentação referida a direitos fundamen-
tais. Essa fundamentação tem importância, principalmente, quando se trata de
diferenciá-la da norma indiretamente estabelecida13.
Segundo Pérez-Luño, a expressão “direitos fundamentais” surgiu dentro do con-
texto político e cultural que levou a criação da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789. A partir de então, tal nomeclatura começou a ser utilizada
como referência aos direitos humanos positivados nas constituições dos estados.14
No Brasil, Ingo Sarlet15 (2007, p. 35-36) ao tratar do tema procedente à dis-
tinção dos termos “direitos fundamentais” e “direitos humanos” assevera que:

[…] direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano


reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de
determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos guardaria
relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas
posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independen-
temente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que,
portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de
tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

Dentro desse contexto, a noção de direitos humanos é mais ampla, tendo


em vista não estar limitada a um determinado ordenamento jurídico. Por outro

13 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 65-76.
14 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de derecho y constitución. Madrid:
Editorial Tecnos, 2005, p. 32.
15 SARLAT, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p.34-36.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

lado, os direitos fundamentais se circunscrevem as legislações nacionais. Os


direitos fundamentais passaram por diversas transformações, culminando na
classificação entre gerações ou dimensões defendidas por Karel Vasak. Assim:

Em 1977 foi apresentado por Karel Vask o famoso “ modelo de três gera-
ções” […]. Conforme esse modelo, nasceram, no século XVIII nas revolu-
ções norte-americana e francesa, os direitos civis e políticos cuja função
principal consiste da proteção do indivíduo contra a arbitrariedade do
Estado. Surgiram depois, com a Revolução Soviética, em 1917, os direitos
econômicos, sociais e culturais, chamados de “segunda geração”. Sua rea-
lização progressiva exige do Estado, sobretudo, a tomada de medidas po-
sitivas. Vasak argumentou que uma terceira geração de direitos humanos
estivesse em processo de formação. Seriam direitos coletivos que só pode-
riam ser realizados através de esforços orquestrados internacionalmente
de todos s atores do sistema internacional. Vasak os chamou de “direitos
de solidariedade” e apresentou uma lista de direitos com potencial de se
transformarem em direitos positivos, entre outros, o direito ao desenvolvi-
mento, o direito a um meio ambiente sadio e o direito à paz16.

O meio ambiente, no qual a água é um dos seus elementos integrantes,


insere-se na terceira geração de direitos. Caracterizada pela solidariedade,
transcende o individual e o coletivo, alcançando as presentes e futuras gera-
ções. Nessa perspectiva, à água apresenta-se como bem difuso de uso comum
da humanidade, cujo direito é transindividual, de natureza indivisível e de
titularidade indeterminada.
A Constituição Federal de 1988, não reconheceu expressamente o direito
fundamental de acesso à água potável, nem tampouco, atribuiu-lhe garantias
para a satisfação das necessidades mínimas elementares a vida. Essa ausência,
entretanto, não descaracteriza a essência da água como bem fundamental e
humano, em compasso com o ethos da sociedade internacional, refletido no
quadro legislativo interno.
Além disso, ressalte-se, que o Texto de 1988, reiterou a classificação da
água como bem público de uso comum do povo, em harmonia com a Lei

16 PETERKE, Sven. Os direitos humanos coletivos e a proteção dos interesses fundamentais da


humanidade: avanços e impasses. IN: FEITOSA, Maria Luiza Alencar Mayer; FRANCO, Fernanda
Cristina Oliveira; PETERKE, Sven; VENTURA, Victor Alencar Mayer Feitosa. Direitos humanos
de solidariedade: avanços e impasses. Curitiba: Appris, 2013, p. 77-78.

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Ana Carla Pinheiro Freitas, Ivanna Pequeno dos Santos e
Jahyra Helena Pequeno dos Santos

9.433/1997, que trata da Política Nacional de Recursos Hídricos. Assim, o uso


da água não pode ser apropriada por uma só pessoa, física ou jurídica, com
exclusão dos outros usuários. O domínio público da água não transforma o
Poder Público Federal e Estadual, em proprietário da água, mas apenas seu
gestor, no interesse de todos17

4. Desenvolvimento sustentável e o acesso à água potável


A conceituação de desenvolvimento engloba várias questões. O seu objetivo
final é a melhoria da qualidade de vida da população. Contudo, esse não é seu
único objetivo. Agregado ao desenvolvimento busca-se justiça social, seguran-
ça, liberdade e a proteção ao meio ambiente.
Nesse sentido, enfatiza-se a diferença entre crescimento econômico e de-
senvolvimento. De acordo com Fábio Nusdeo, enquanto o crescimento econô-
mico se reduz ao crescimento da renda e do Produto Interno Bruto – PIB, sem
implicar em mudanças estruturais mais profundas; o desenvolvimento é mais
complexo, envolve uma gama de indicadores e situações, de forma a conduzir
mudanças estruturais da economia de um país.18
Josaphat Marinho salienta que não é devido estabelecer oposição entre os
termos. Assinala, que o crescimento só se equipara a desenvolvimento quando
une a ampliação da riqueza ao robustecimento da personalidade humana. As-
sim, “o desenvolvimento não é a simples industrialização ou modernização, nem
o aumento da produtividade ou a reforma das estruturas do mercado”. O de-
senvolvimento deve ser um meio para conduzir os homens à sua dignificação.19
Nessa linha, a noção de desenvolvimento sustentável ganhou vigência po-
lítica no Relatório “Nosso Futuro Comum”, conhecido como Relatório Brun-
dtland, aprovado pela Assémbléia das Nações Unidas em 1987. Foi legitimada
politicamente como modelo econômico na Conferência “Rio 92”. Em 2010,
durante a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em

17 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Recursos Hídricos: direito brasileiro e ambiental. São Paulo:
Malheiros, 2002, p.25.
18 NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao direito econômico. 10. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2016, p.304.
19 MARINHO, Josaphat. Sociedade e Estado no Brasil na transição do século. Brasília: Senado Federal,
1995, p.38.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Joanesburgo, África do Sul, estabeleceu-se os três pilares no qual se baseia o


desenvolvimento sustentável: o econômico, o social e o ambiental. Figura 1:

Fonte: PEREIRA, João Victor Inácio. Economia global e gestão. Disponível em:
<http:www.scielo.mec.pt>. Acesso em: 30 jun. 2017.

Em síntese, a dimensão social está ligada a distribuição de renda, com o


escopo de reduzir a distância entre os padrões de vida de abastados e não
abastados; a dimensão econômica é avaliada em termos macrossociais, com
o intuito de promover mudanças estruturais que atuem como estimuladores
do desenvolvimento humano, sem afetar o meio ambiente natural; por fim, a
dimensão ecológica propõe um sistema produtivo que vise soluções ecológicas
e economicamente viáveis por meio do uso de tecnologias limpas e fontes de
energia renováveis.
Ressalte-se, no entanto, a existência de diferentes conceituações na literatu-
ra sobre cada uma das dimensões. Nesse sentido “cabe ao indivíduo atribuir o
sentido útil e desejado para tal categoria em determinado contexto comunica-
tivo, afinal a existência se obtém pela linguagem20.”

20 STAFFEN, Márcio. Hermenêutica e Sustentabilidade. IN: SOUSA, Maria Claudia da Silva


Antunes de; GARCIA, Denise Schmitt Siqueira; ROCONI, Diego Richard. Direito ambiental,

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Ana Carla Pinheiro Freitas, Ivanna Pequeno dos Santos e
Jahyra Helena Pequeno dos Santos

O desenvolvimento sustentável tenta conciliar desenvolvimento econômi-


co e equilíbrio ecológico. Tem como pressuposto a ideia de se construir uma
modernidade ética de inclusão. Enquanto a dinâmica dos processos científicos
e econômicos assentam-se no paradigma que concebe a natureza de forma in-
dependente do homem. A ideia de um desenvolvimento sustentável pressupõe
a reinvenção do capitalismo com novos contornos, dentre eles a preocupação
com o uso dos recursos naturais, como a água21. Nessa senda aduz Leff22:

O discurso da sustentabilidade busca reconciliar os contrários da dialé-


tica do desenvolvimento: o meio ambiente e o crescimento econômico.
Este mecanismo ideológico não significa apenas uma volta de parafuso a
mais da racionalidade econômica, mas opera uma volta e um torcimen-
to da razão; seu intuito não é internalizar as condições ecológicas da
produção, mas proclamar o crescimento econômico como um procssso
sustentável, firmado nos mecanismos da livre mercado como meio eficaz
de assegurar o equilíbrio ecológico e a igualdade social.

Dentro desse contexto, foi aprovada em 2015, a Agenda 2030 para o Desen-
volvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas (ONU). Constitu-
ída por 17 objetivos, desdobrados em 169 metas, tem como objetivo resolver as
necessidades prementes da população. Aborda as dimensões social, econômica
e ambiental do desenvolvimento sustentável.
A Agenda elenca como um dos seus objetivos, assegurar a disponibi-
lidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos. A meta é
alcançar acesso universal e equitativo a água potável e segura para todos
até meados de 2030; melhorar a qualidade da água reduzindo a poluição;
aumentar a eficiência do uso da água com a participação das comunidades
locais e transfronteiriças23.

transnacionalidade e sustentabilidade. 1. ed. Itajaí: UNIVALI, 2013, p. 140-141. Disponível em:


<http://www.univali.br/ppcj/ebook>. Acesso em: 30 jun. 2017.
21 FREITAS, Marcílio de; FREITAS, Marilene Corrêa da Silva. A sustentabilidade como paradigma:
cultura, ciência e cidadania. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
22 LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis,
RJ: Vozes, p. 9
23 NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL-ONUBR. Transformando nosso mundo: a Agenda 20130 para
o desenvolvimento sustentável. Disponível em: <http://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030>.
Acesso em: 03 jan. 2017.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Figura 2 – Os objetivos do Desenvolvimento Sustentável

Fonte: Agenda 2030/ONU Brasil. Disponível em:


<https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030>. Acesso em: 30 jun. 2017.
Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), embora de na-
tureza global e universalmente aplicável, dialogam com ações e políticas
regionais e locais. Para o alcance das metas se faz necessário, dentre outros
desafios: integrar a agenda global com a agenda e os processos nacionais,
regionais e locais; monitorar o progresso por indicadores; envolver os seto-
res da sociedade nas atividades de aquisição de dados, análise e uso. Nesse
sentido, o objetivo 17 resume bem os requisitos para a execução dos ODS:
“reforçar os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o
desenvolvimento sustentável.24”
Ainda nesse cenário, destaca-se os cinco P’s da Agenda: pessoas, no sentido
de erradicar a pobreza e a fome e garantir a dignidade e a igualdada de todos;
prosperidade, garantir vidas prósperas e plenas, em harmonia com a natureza; a
paz, promover sociedades pacíficas, justas e inclusivas; parcerias, implementar a

24 NAÇÕES UNIDAS DO BRASIL-ONUBR. Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para


o desenvolvimento sustentável. Disponível em: <http://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030>.
Acesso em: 03 jan. 2017.

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Ana Carla Pinheiro Freitas, Ivanna Pequeno dos Santos e
Jahyra Helena Pequeno dos Santos

agenda por meio de parcerias sólidas; e planeta, proteger os recursos naturais e


o clima para as gerações futuras25.

5. O uso sustentável da água


A lei nº 9.433/1997, explicita os princípios do desenvolvimento sustentável,
em seu art. 2º, incisos I e II. Assim, são objetivos da Política Nacional de Re-
cursos Hídricos:

Art. 2º (…)
I – assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de
água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;
II – a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o
transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável.

De acordo com Machado26, a Lei nº 9.433/1997 demarca a sustentabilidade


dos recursos hídricos nos seguintes aspectos: disponibilidade de água e utiliza-
ção racional e integrada. A disponibilidade de água deve ser de boa qualidade,
não poluída e equitativa, no sentido de facilitar o acesso de todos, ainda que
em quantidades diferentes. Quanto ao uso racional, este deve ser constatado
nos autos de outorga de uso e nos Planos de Recursos Hídricos. Complementa
o autor, no sentido de que:

A ética da sustentabilidade das águas ganhou respaldo legal, e não deve


ser deixada como enfeite na legislação, podendo, por isso, ser invocado
o Poder Judiciário quando as outorgas, planos e ações inviabilizarem a
disponibilidade hídrica para as presentes e futuras gerações.

A gestão dos recursos hídricos tem por base as diretrizes da transversalidade,


do controle social e do pacto federativo socioambiental. Esses critérios devem ser
observados para a implementação de uso sustentável da água. Podem ser descritos
da seguinte forma: gestão sistematizada, sem dissociação dos aspectos de quan-
tidade e qualidade; adequação da gestão as diversidade físicas, bióticas, demo-
gráficas, sociais e culturais das diversas regiões do país; integração da gestão dos

25 Ibid.
26 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Ob. cit., p. 38-39.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

recursos hídricos coma gestão ambiental; a articulação do planejamento regional,


estadual e nacional e da gestão dos recursos hídricos com os usos do solo.

Essas diretrizes apontam para formas de integração entre as políticas de


gestão dos recursos hídricos com outras afins, nas perspectivas horizon-
tais e verticais:
A primeira refere-se a integração da política dentro da mesma esfera de
poder, ou seja, à articulação intra-governamental das políticas públicas,
em especial aquelas de saneamento básico, de uso, de ocupação e de
conservação do solo, meio ambiente, de energia e de irrigação. A se-
gunda forma de integração consiste na articulação intergovernamental
entre as três esferas de poder (federal, estadual e municipal)27.

Nessa conjuntura, a pegada hídrica tem sido utilizada com a função de ava-
liar a sustentabilidade do uso da água. Consiste em um indicador do seu uso. É
definida como o volume de água doce utilizada para produzir bens e/ou servi-
ços. O termo “pegada” é usado como referência ao fato da humanidade ter-se
apropriado de uma percentagem dos recursos naturais do planeta. Indicador
multidimensional, mostra os volumes de consumo de água por fonte e os vo-
lumes de poluição por tipo de poluição. A sua avaliação é realizada com base
em uma estrutura de cálculo, com variáveis bem definidas e mensuráveis, com
diferentes procedimentos, conforme o objeto de estudo. 28
Essencialmente, “a avaliação de sustentabilidade da pegada hídrica visa
comparar a pegada hídrica humana com o que a Terra pode suportar de modo
sustentável.”29A sustentabilidade pode ser considerada sob diversos pontos de
vista: o geográfico, de um produto, de um produtor ou sob a dimensão de pro-
cesso específico do uso da água. Apresenta-se com as seguintes cores: azul,
quando refere-se ao consumo de água superficial ou subterrânea ao longo de
uma cadeia produtiva; verde, trata do consumo de água de chuva; cinza, quan-
do refere-se a poluição.

27 JACOBI, Pedro Roberto; FRACALANZA, Ana Paula. Comitês de bacias no Brasil: desafios de
fortalecimento da gestão compartilhada e participativa. Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente,
n.11-12, jan./dez. 2005. Editora: UFPR, p.41-49.
28 HOEKSTRA, Arjen Y.; CHAPAGAIN, Ashok K.; ALADAYA, Maite M.; MEKONNEN, Mesfin M.
Manual da Avaliação da Pegada Hídrica: estabelecendo o padrão global. Instituto de Conservação
Ambiental The Nature Conservancy do Brasil e Water Footprint Network, 2011, p.2.
29 Ibid., p. 69

69
Ana Carla Pinheiro Freitas, Ivanna Pequeno dos Santos e
Jahyra Helena Pequeno dos Santos

Tendo como referencial a sustentabilidade geográfica pode-se discutir se a


pegada hídrica da região “X” é sustentável ou não. Para a resposta, deve-se
considerar as demandas ambientais e os padrões de qualidade da água em seu
estado natural. Se os padrões de qualidade da água estiverem comprometidos
e a alocação da água da bacia hidrográfica for considerada injusta, a pegada
hídrica não será sustentável.
Ao considerar a perspectiva de um produto, para saber se sua pegada é sus-
tentável ou não, observa-se as pegadas hídricas dos processos que fizeram parte
do sistema de produção do produto. Igualmente, tomando como referencial o
produtor, a pegada hídrica será considerada sustentável, se a soma das pegadas
hídricas dos produtos elaborados por ele for sustentável. No caso do consumi-
dor, a pegada hídrica é sustentável quando a soma das PHs dos produtos consu-
midos por ele for sustentável; “aqui, observa-se também se a PH do consumidor
é menor ou maior que a cota da cada indivíduo considerando as limitações da
pegada hídrica da humanidade30”.
A sustentabilidade da PH de um produto, produtor, consumidor ou de um pro-
cesso, depende dos contextos geográficos onde estejam localizados. No entanto,
dificilmente a PH deles, considerada separadamente, originará problemas de es-
cassez e poluição em nível global. Os problemas surgem como efeitos cumulativos
de todas as atividades realizadas na área geográfica em estudo. A PH total da área
geográfica “X”, consiste na soma das muitas pegadas menores, cada uma delas
ligada a determinado processo, produto, produtor ou consumidor.
Na avaliação da sustentabilidade da PH de um processo é importante
avaliar a sustentabilidade da PH total na bacia onde o processo é localiza-
do. Em relação a PH de um produto, deve-se partir da sustentabilidade dos
processos envolvidos. E, por, fim, não se pode avaliar as pegadas hídricas
dos produtores ou consumidores sem saber qual é a sustentabilidade dos
produtos produzidos ou consumidos.

Conclusão
O Brasil não possui, até a presente data, o reconhecimento expresso, afir-
mação ou garantia do direito fundamental de acesso à água potável. Contudo,

30 Ibid., p.71

70
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

o reconhecimento da água como bem de todos e essencial à vida, a saúde e a


dignidade humana é um passo crucial para democratizar seu acesso.
A percepção do acesso à água enquanto direito humano e fundamental
pode ser considerado como um instrumento de pressão para os governos inten-
sificarem seus esforços no sentido de suprimento das necessidades básicas de
água das populações.
O alcance da sustentabilidade está relacionada à distribuição de água potá-
vel, de forma racional e equitativa para as presentes e futuras gerações.
É essencial que haja o progresso nas três dimensões do desenvolvimento
sustentável - a econômica, a social e ambiental, para alcance de uma gestão des-
centralizada dos recursos hídricos, garantindo a todos o acesso à água potável.
Ressalte-se que, a implementação do direito à água dentro de um cenário
de desenvolvimento sustentável exige o reconhecimento de que o direito à
água não é ilimitado, uma vez satisfeitas as necessidades básicas, os usuários
devem pagar tarifas, tendo em vista que se trata de um recurso limitado de
valor econômico.

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71
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Jahyra Helena Pequeno dos Santos

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73
“Pegada hídrica” e o valor
da água: dimensões entre Capitalismo,
Consumismo e Justiça Intergeracional

Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza1


Priscilla Linhares Albino2
Vânia Petermann3

Nadie puede pensar en que se puede tener calidad de vida y un desarrollo


personal adecuado en un entorno natural degradado. Con un aire irrespi-
rable, con ríos pestilentes, con nuestros campos y montañas arrasados y la
fauna desaparecida ¿Quién puede ser feliz? ¿Qué podemos enseñar a nuestros
hijos? (Gabriel Ferrer)

Introdução
Sabe-se que, da mesma medida que o capitalismo evoluiu, o consumismo
dele estreitamente se aproximou, deixando claro à pauta de debates a necessi-

1 Doutora e Mestra em Derecho Ambiental y de la Sostenibilidad pela Universidade de Alicante,


Espanha. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Professora no
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica nos cursos de Doutorado e Mestrado
e no Curso de Direito da Univali. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estado, direito ambiental,
transnacionalidade e sustentabilidade”, cadastrado no CNPq/Edats/Univali. Coordenadora do
Projeto de pesquisa “Possibilidades e limites da avaliação ambiental estratégica no Brasil e impacto
na gestão ambiental portuária”, aprovado pelo CNPq. E-mail: mclaudia@univali.br
2 Doutoranda em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Brasil. Mestre em
Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestre em Saúde e Meio Ambiente
pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), Currículo Lattes http://lattes.cnpq.
br/6111318175172871. E-mail: priscillalbino@gmail.com.
3 Doutoranda em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Brasil, e pela
Universidade da Perugia - Itália; Mestre em Ciências Jurídicas pela UNIVALI - Universidade do Vale
do Itajaí. Juíza de Direito do Juizado da Trindade e UFSC, Foro do Norte da Ilha, Florianópolis, Santa
Catarina, Brasil. Diretora Acadêmico/Pedagógica e Formadora na Academia Judicial do Tribunal de
Justiça de Santa Catarina, Brasil. Currículo Lattes: http:/lattes.cnpq.br/1350146881103761. E-mail:
vaniapetermann@gmail.com.

75
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

dade de trazer à responsabilidade todos nós, atores das cadeias globais do uso
da água potável, e responsáveis pela sua revivificação, de modo que as futuras
gerações possam dela desfrutá-la como Direito Fundamental.
Fruto do método eleito para o presente estudo, cabe registrar a perspectiva
que norteia este trabalho: como hodiernamente maximizar a Justiça Intergera-
cional em prol da água potável em nosso planeta? Para tanto, objetiva-se situar
o leitor num espectro maior, o qual entrelaça o avanço da industrialização e da
tecnologia, quando a Sociedade assumiu um papel mais capitalista e consumis-
ta. Nos bastidores deste novo paradigma Social, este trabalho se debruça em
uma das suas inúmeras consequências para o ambiente, que é o quanto gasta-
mos de água potável para sustentar ciclos de economia e consumo e, sobrema-
neira, o que pode ser feito para a sua proteção como um Direito Fundamental
da humanidade e um dever da geração de hoje em prol daquela do amanhã.
O uso da água potável é um recurso único e extremamente necessário, que
tem passado entre pautas políticas e também econômicas, internas e externas.
As Nações Unidas consideraram 2013 como o “Ano da Água”, e os princípios
enunciados no Relatório Brundtland, da Comissão Mundial sobre o Meio Am-
biente e Desenvolvimento, de 1987, resumem documentos e relatórios, decor-
rentes de encontros anteriores, em prol do Desenvolvimento Sustentável com
responsabilidade ambiental perante as futuras gerações. No Brasil, os protetivos
aos recursos hídricos vão desde a Carta Constitucional até Resoluções da Agên-
cia Nacional de Águas.
No entanto, ainda se localizam no planeta inúmeros exemplos de mau
uso de recursos naturais e uma escassez iminente de água potável, além de
visões de degradação geradas pela poluição e por desastres naturais, fruto
do aquecimento global.
Nesse prumo, buscam-se alternativas factíveis e, assim, informam-se as refe-
rências do texto constitucional brasileiro e normas infraconstitucionais. Ainda,
oferecem-se alguns protetivos internacionais, de forma a ratificar a proteção
ao ambiente, exigindo-se estudos de impacto ambiental para obras e ativida-
des potencialmente causadoras de dano, seu controle e, especialmente, atitudes
conscientes em prol de mudanças e de proteção efetiva da natureza, aqui, em
especial, da água potável.
E, para que se compreenda o que se entende por Sustentabilidade e Desen-
volvimento Sustentável, serão apresentados os seus conceitos, como também a
necessidade de educação à sua efetivação, seja nos bancos escolares, seja pelo

76
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

contato com ela. Fomentando a consciência objetivada pelo estudo, utilizar-se-


-á de conceitos como o da “Pegada Hídrica”, explicando-a em sua compreensão
diante de diversidades locais, tecnológicas e culturais. Adiante, e na mesma linha
de argumentação, informar-se-á o valor da água, explicando-se o conceito de Sus-
tentabilidade Corporativa e como ações que valorizem a manutenção dos ciclos
da água e a sua proteção podem render bons resultados para todos os envolvidos.
Mirando possibilidades em prol de uma Justiça Intergeracional, será destacado o
dever Estatal de proteção aos recursos hídricos, porém, com necessária Governança
e responsabilidades compartilhadas; além do mais, serão ofertadas possíveis solu-
ções a partir da consciência de que uma Sociedade consumista utiliza valores de
água elevadíssimos, além de quantidades indiretas, ou seja, a chamada Água Virtu-
al. Esses dados, devidamente informados, podem ser o start para pequenas atitudes
de cada um dos responsáveis por nova agenda de Governança em uma Sociedade
que parece irreversível como geração consumista e de riscos globalizados.
Por fim, apresentar-se-á uma conclusão a partir da inclusão do homem amo-
roso e intimamente ligado à Terra, ao Universo, cuja designação, cunhada por
Edward Wilson, é a chamada “biofilia”.
Claro, pelo limite de espaço de escrita, não se deseja propor ou espera apre-
sentar aqui uma grande solução e, sim, dar alguma contribuição em prol de um
despertar, de um estilo de viver consciente, reverberando em cada ação uma
Justiça Intergeracional em prol da água potável como um Direito Fundamental.
Por outro lado, cabe informar que, no âmbito do presente ensaio, utilizou-se, na
fase de levantamento de dados, o Método Indutivo4, enquanto na fase de tratamen-
to dos dados empregou-se o Método Cartesiano5, enriquecido pela perspectiva do
Método Histórico oferecida por Paolo Grossi6 e António Manuel Hespanha7.

4 Trata-se da base lógica que corresponde à identificação e colação das diversas partes de um fenômeno
com vistas à obtenção de uma percepção ou conclusão geral. Esta definição foi extraída, na forma de
paráfrase, da leitura de PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: Teoria e Prática.
13a ed. rev. atual. amp. Florianópolis: Conceito Editorial, 2015, p. 97-99.
5 Método proposto por René Descartes e descrito no âmbito da pesquisa em direito em: PASOLD,
Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica, p. 92.
6 Uma síntese das linhas teóricas da sua perspectiva historiográfica se encontra no primeiro capítulo,
intitulado “O ponto e a linha. História do Direito e Direito Positivo na formação do jurista do nosso
tempo” da obra: GROSSI, Paolo. O direito entre poder e ordenamento. Tradução de Arno Dal Ri
Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. 
7 Sua perspectiva historiográfica se encontra na primeira parte de seu manual de História do
Direito, dedicada a pensar o papel dessa disciplina na formação dos juristas, que se confere em:

77
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

No intuito de trabalhar adequadamente com esse instrumental teórico, a


pesquisa também se valeu da técnica da Categoria8 e do Conceito Operacional9
para levantar as Categorias Fundamentais, e da técnica da Pesquisa Bibliográfi-
ca com seus respectivos Fichamentos10, para colher o material histórico-teórico
necessário para a análise dos dados obtidos. Na fase de relatório (que é o pre-
sente ensaio) emprega-se a base lógica Indutiva.

1 Breve delineamento sobre sustentabilidade: como o


capitalismo e o consumismo dialogam?
A Revolução Industrial e a Tecnologia revelaram sobremaneira novo modelo
de utilização dos recursos naturais, agora não mais com efeito de satisfação das
necessidades básicas para a sobrevivência humana, como alimentar-se, vestir-se
e habitar. Como o homem é um ser social, sofreu influências nesses processos,
agregando para sua vida novas necessidades de conforto, acesso à tecnologia,
prazeres de compras de roupas, carros, dentre outros. Está-se diante de tempos
de consumismo, que, a seu turno, não pode ser compreendido sem algumas
ponderações sobre a economia no cenário atual.
Sabidamente, o capitalismo tem deixado cada vez mais um incontável nú-
mero de ações danosas e relacionadas entre si, sendo motivo de desigualdade so-
cial, déficit de democracia, deterioração ambiental, dentre outros. Nesse quadro,
a ideia de capitalismo vem empregada como uma rede mundial de predadores.

HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milénio. Coimbra,


Almedina, 2012. p. 13-90.
8 Compreende-se por Categoria “a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de
uma ideia”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica, p. 27.
9 Conceito Operacional corresponde à proposta de “definição para uma palavra ou expressão com o
desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das ideias que expomos”. PASOLD, Cesar Luiz.
Metodologia da Pesquisa Jurídica, p. 39. Neste trabalho, o Conceito Operacional será informado
na primeira citação da Categoria grafada em letra inicial maiúscula, ou em nota de rodapé ou no
corpo do próprio texto, a depender da lógica argumentatitiva do Artigo. Quando a Categoria estiver
inserida em uma citação, para não macular os direitos autorais do Autor mencionado, a Categoria
não sofrerá grifo inicial com letra maiúscula.
10 Consulta a livros ou repertórios jurídicos, nos termos apresentados por PASOLD, Cesar Luiz.
Metodologia da Pesquisa Jurídica, p. 108. Desta consulta, como ensina o Autor, somam-se os
Fichamentos que facilitam sobremaneira a fase posterior à coleta de dados, que é o presente relatório.

78
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Por isso, Fritjof Capra alerta para a importância de nossos jovens estarem cien-
tes do domínio do sistema financeiro e da corrupção na política.11
Veja-se que, inúmeras vezes, as transnacionais disputam a utilização do
termo Sustentabilidade como marketing de mercado, o que faz com que in-
centivos fiscais sejam a elas concedidos pelos Estados (sob a premissa de gerar
emprego e renda com benefícios ambientais, quando, em verdade, resultados
concretos não são vistos); decorrendo dai, no mais das vezes, consumidores
enganados por essa propaganda.
Para entender essa questão, vale recordar que boa parte dessas empresas
não fala em Sustentabilidade, mas, sim, em Desenvolvimento Sustentável, ter-
mo trazido pelo relatório Brundtland, produzido pela Comissão Brundtland,
nos anos 80, que sintetizou o conceito de Desenvolvimento Sustentável como
“aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer a possibili-
dade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades”. Essa refle-
xão, entretanto, já vinha de longa data registrada em documentos do Clube de
Roma, da Conferência de Estocolmo, do Congresso de Belgrado e da Conferên-
cia de Tbilisi. A Comissão Brundtland proporcionou, no entanto, após gran-
des debates, elementos que adquiriram diversos simpatizantes à causa, mas, ao
mesmo tempo, grandes resistências pelos empecilhos aos interesses econômicos
decorrentes de inúmeras restrições12. De too modo, esta terminologia13, concei-
tualmente ou na prática, tem-se revelado insuficiente para conter os avanços da
modernidade na degradação ambiental.
Cabe agregar, ademais, que o Capitalismo Industrial teve seu advento mar-
cado pela Revolução Industrial, trazendo significativas mudanças sociais, cul-
turais e políticas para a Sociedade, especialmente no que se refere às relações
consumeristas, que passaram a ter como finalidade a obtenção de lucro. Nessa

11 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. Editora: Cultrix. 2002.
Tradução Marcelo Brandão Cipolla, p. 218 e 268.
12 A criação do CNS em Outubro/1985; a morte de Chico Mendes em 22/12/1988; a oficialização da
COIAB em 19/04/1989 são os resultados desse processo que desembocou na Eco-92. (Disponível em:
<http://www.gta.org.br/quem-somos/>. Acesso em: 20 jul. 2017).
13 Adiante será mais bem explicado por que, conforme ensina Capra, o conceito de Desenvolvimento
Sustentável é insuficiente para resolver os problemas ambientais que o mundo enfrenta. Isso, adianta-
se desde logo, porque o Autor trabalha a ideia dos sistemas em teia e assim também para a natureza,
que, via oblíqua, dependerá de mecanismos de autossustentação. In: CAPRA, Fritjof. As Conexões
Ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 218 e 268.

79
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

nova fase do capitalismo, nasceu o neoliberalismo, um dos principais pilares do


pensamento deste modelo econômico que pregava o Estado minimalista.
E, mais recentemente, com a acelerada acumulação de capital desencadeada
pelo processo anterior, chegou-se ao Capitalismo Financeiro que, com a expan-
são de corretoras de valores, bancos e ações em bolsas foi marcado pelas crises
de 1929 e 2008, tendo essa última provocado recessão mundial e estagnação
econômica, sentidas em diferentes escalas até a atualidade.
Em meio a esses cenários, surgiu uma nova forma de organização do co-
mércio, das relações de trabalho e a acumulação de capital, com estímulos
para que os indivíduos adquirissem bens materiais. Ademais, com a evolu-
ção tecnológica, eletrônica, das comunicações e da informática, ocorrida nas
décadas de 50 e 60, houve uma grande contribuição para a prosperidade do
capitalismo, gerando uma transformação na vida das Sociedades e uma signi-
ficativa expansão no mercado consumidor.
O consumo é imprescindível ao cotidiano, praticado para satisfazer as neces-
sidades elementares do dia a dia, como alimentar, beber, vestir e calçar. Contu-
do, migrou-se da satisfação dessas necessidades primordiais para a satisfação dos
desejos, o que ensejou o consumismo desenfreado constatado na atualidade.
A cultura da oferta, segundo Zygmunt Bauman, transformou a “nossa socie-
dade em uma sociedade de consumidores”14, onde se criam, como alerta Lívia
Barbosa, a cada dia, novas necessidades, desejos e exigências, na qual “temos
uma única obrigação e constrangimento: escolher.”15 Aliás, a Autora, ao men-
cionar uma forma de ser “cultura verde”, dá a esta o significado de repensar as
nossas práticas de consumo e olhar para o próximo com a cultura da fraterni-
dade, hoje ausente na Sociedade de consumo. Esta, cabe frisar, tem como base
a promessa de satisfazer os desejos humanos em um grau que nenhuma Socie-
dade do passado pôde alcançar, ou mesmo sonhar. No entanto, o Autor, com
maestria, alerta que a grande promessa da satisfação só permanece sedutora
enquanto o desejo continua insatisfeito; mais importante: quando o cliente não
está “plenamente satisfeito” – ou seja, enquanto não se acredita que os desejos

14 BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Tradução de Eliana


Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p.33.
15 BARBOSA, Lívia. Sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 4. ed. 2014, p. 35.

80
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

que motivaram e colocaram em movimento a busca da satisfação e estimularam


experimentos consumistas tenham sido verdadeira e totalmente realizados.”16
Para Zygmund Bauman, “ainda não começamos a pensar seriamente so-
bre a sustentabilidade dessa nossa sociedade alimentada pelo consumo e pelo
crédito.”17 O tema certamente não existe desde sempre, tampouco nasceu hoje,
e muito menos nasceram todos os direitos ao mesmo tempo. O autor esclarece:
todos têm uma raiz comum situada no mundo moderno. Respondem, sem exce-
ções, a uma cultura individualista e antropocêntrica frente à cultura objetivista
e comunitária própria do Medievo18. Por conta disso, esse é o núcleo central e
necessário para a compreensão do problema e o elemento unificador que conec-
ta todas as expressões sinônimas de Direitos Humanos.
Com esse panorama sucinto, encaminhamo-nos, agora, para uma indaga-
ção, a fim de que se possa, adiante, entrelaçar as ações humanas e o consumis-
mo. Para tanto, mister ingressarmos na tela da Sustentatibilidade.

1.1 O homem como ser integral e integrado à Terra e o


acordo semântico sobre o termo Sustentabilidade

Renomados autores, como John Elkington, registram que Sustentabilidade


“é o princípio que assegura que nossas ações de hoje não limitarão a gama de
opções econômicas, sociais e ambientais para as futuras gerações”.19
Em artigo intitulado La sostenibilidad como guía de acción de la Humanidad,
Gabriel Real Ferrer, professor de Direito Ambiental na Universidad de Alican-
te, na Espanha, define a expressão nos seguintes termos:

A sustentabilidade é, sem lugar a dúvidas, o paradigma da pós-moder-


nidade. Há tempos somos conscientes de que o modelo de produção e

16 BAUMAN, Zigmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução
de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 63, itálico no original.
17 BAUMAN, Zigmunt. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos, p. 26.
18 Idem, p. 22. Para noções mais aprofundadas sobre o sistema jurídico medieval e a civilização medieval,
sugere-se a clássica obra de GROSSI, Paolo. O direito entre poder e ordenamento. Quanto às
estratégias jurídicas da modernidade, indica-se, do mesmo autor: GROSSI, Paolo. Mitologias
jurídicas da modernidade. Tradução de Arno Dal Ri Jr. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
19 ELKINGTON, John. Sustentabilidade, canibais com garfo e faca. Tradução de Laura Prades
Veiga. São Paulo: MBooks, 2012, p. 52.

81
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

consumo imperante em nossa sociedade conduz a um colapso ambiental


e o Direito Ambiental não é outra coisa que a reação frente a essa cer-
teza” (...) Uma sociedade que dê um salto significativo no progresso ci-
vilizatório que deixe para trás ou ao menos minore as grandes chagas da
humanidade que a todos nos devem envergonhar, como a fome, a misé-
ria, a ignorância e a injustiça (...) A sustentabilidade é meta e caminho.
Meta, porque se trata de conseguir uma sociedade capaz de perpetuar-se
indefinidamente no tempo, e caminho, porque na busca desse objetivo
toda decisão, seja pública ou privada, deveria tê-la presente como guia
de ação, como princípio inspirador inescusável.20

Ferrer, de forma interessante, apresenta esse conceito em quatro dimensões:


ambiental, econômica, tecnológica21 e social; todavia, para os fins deste tra-
balho, cabe dar destaque a essa última vertente. Cuida-se de construir uma
Sociedade mais harmônica e integrada, privilegiando desde a proteção da di-
versidade cultural até a garantia real do exercício dos Direitos Humanos.
Em acréscimo, na obra Conexões Ocultas, Fritjof Capra traduz seu pensa-
mento sistêmico para trazer seu conceito de Sustentabilidade –sem o qual não
podemos entender o mundo em que vivemos e escolher os caminhos para seguir
em frente, com os sistemas orientados à sua automanutenção –, desenvolvido a
partir de três dimensões específicas da vida: biológica, cognitiva e social.
Assim, ao mencionar a natureza humana, o Autor desmistifica a ideia carte-
siana de separação de mente e espírito, recorrendo à assertiva da ética animal,
citando Lakoff e Johnson22 no sentido de que “a razão não é uma essência que
nos separa dos outros animais vivos; antes, coloca-nos no mesmo nível deles”.

20 FERRER, Gabriel Real. La sostenibilidad como guía de acción de la Humanidad. In: CHACON, Mario
Peña (Org). El Principio de No Regresión ambiental en Iberoamérica. Tradução nossa, p. 3.
21 Em apertada síntese, a sustentabilidade ambiental, dimensão mais conhecida, foi aquela em torno da
qual se criaram os primeiros consensos mundiais, constituindo um dos Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio, para que não fosse comprometida a possibilidade de manutenção dos ecossistemas
essenciais à manutenção da espécie. A segunda, econômica, consiste em encontrar um modo de
aumentar a geração de riqueza de um modo ambientalmente sustentável, privilegiando os setores
mais “verdes”. A terceira, tecnológica, menos tratada nos manuais de Direito Ambiental, já não
pode mais ser negligenciada diante dos progressos tecnológicos verificados nos últimos anos e que
impactam diretamente a relação do homem com a natureza. In FERRER, Gabriel Real. El Principio de
no Regresión Ambiental a la luz del paradigma de la Sostenibilidad. In: CHACON, Mario Peña (Org).
El Principio de No Regresión ambiental en Iberoamérica. tradução nossa, p. 4-10.
22 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 79.

82
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Com isso, arremata a impossibilidade pós-cartesiana de separar corpo e mente,


e que vinha fulcrada no discurso da diferenciação humana dos animais pelo
raciocínio. Com efeito, diversos estudos com animais demonstram o sofisma
desta diferença entre as espécies, a qual, na verdade, revela apenas que são
“gradativas e evolucionárias”23.
E, apesar dos avanços da ciência em ver o homem como um ser integral e a
comunidade acadêmica apontar para uma totalidade dos sistemas – como anun-
ciou a teoria geral dos sistemas, que se menciona como um plus, surgida com os
trabalhos do biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy, publicados entre 1950 e
1968 – ainda temos a negativa da visão não fragmentada revestida pela “pressão
para que se aceite a doutrina oficial do determinismo genético”. 24 Nesse qua-
dro, quando se pensa como o homem se integra com o ambiente onde vive, com
as outras pessoas, como ele vê o progresso – e os interesses horripilantes por
trás desses sistemas25 –, somente poderemos entendê-los e alcançar solução a
partir de perspectiva macro. Como chegar a este nível? Importa, sobremaneira,
a reflexão em torno do conceito que se tem dado à Sustentabilidade.
Considerando os ensinamentos de Capra, não é o desenvolvimento econô-
mico ou a fatia de mercado que sustenta esse sistema, mas sim a rede da vida,
da qual a nossa sobrevivência depende. Novos paradigmas para estar no mundo;
olhar para o ser e não o ter; olhar para o nosso modelo de desenvolvimento,
para a educação informal das pessoas; ensinar pensamentos sistêmicos na esco-
la (educação formal).
Assim, segundo o Autor, uma comunidade Sustentável é geralmente defini-
da como aquela capaz de satisfazer suas necessidades e aspirações sem reduzir
as probabilidades afins para as próximas gerações. Ela pode ser obtida a partir
do planejamento da vida, da economia, da tecnologia etc. que não interfiram
na habilidade da natureza de sustentação da vida.26
Diante dessas anotações, pode-se aproximar os conceitos de Capra e de
autores como Ferrer e Elkington, trazendo-se o conceito de Sustentabilidade
latente neste estudo, como “ação ou omissão que não interfere na habilidade
da natureza de sustentação da vida”. E, ainda, são tomadas em consideração

23 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 79.
24 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 206.
25 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 207.
26 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável, p. 214.

83
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

nos desígnios de uma atitude Sustentável todas as ações diretas e indiretas,


considerando-se os ciclos em teia sustentados por Capra.
Feitas essas observações, procurando soluções a propor neste estudo, cabe
voltar-se explicitamente à perspectiva hídrica. Para tanto, informar-se-á o sis-
tema jurídico brasileiro – e algumas iniciativas internacionais – para registro
da proteção hídrica sob as lentes nacionais e a procura de responsabilidades
compartilhadas na atitude Sustentável.
Proteção aos recuros hídricos e responsabilidade compartilhada
No Brasil, o bem ambiental, nele incluído a água, é difuso, de uso comum do
povo e indisponível, sendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municí-
pios gestores responsáveis por sua administração e por zelar pela adequada uti-
lização e preservação à coletividade. Devido à soberania do Estado Brasileiro,
os bens ambientais sujeitam-se à interferência do Poder Público, cabendo-lhe
estabelecer regimes jurídicos específicos. Nesse caminho, decisões a respeito
devem assegurar meios de existência digna das futuras gerações, não por al-
truísmo, mas porque Estados Democráticos de Direito, como nosso país, têm
por alicerce documento de Justiça Intergeracional27 por excelência, que são as
Constituições, nas quais se inserem cláusulas sob o prisma da Sustentabilidade
da própria comunidade Intergeracional28.
E, nesse quadro, a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88)
firmou limites e deveres dirigidos a gerações futuras. São exemplos as normas
constitucionais que limitam as reformas em seu texto, denominadas no Brasil
de “cláusulas pétreas” (art. 60) e de interpretação estrita29. Bem por isso, essas
proteções não são apenas para aqueles que estão vivos hoje. Nossas decisões

27 “Justiça intergeracional, equidade intergeracional e solidariedade entre gerações conceituam atitudes


éticas e jurídicas contemporâneas.” TREMMEL, Joerg. Theory of Intergenerational Justice. Reprint
edition. London: Routledge, 2014, p. 19. O Autor emprega as expressões “intergenerational justice”,
“generational justice” e “intergenerational equity” como equivalentes para designar “justiça entre
gerações”. Ainda, a justiça intergeracional, consoante Amaral Júnior (2011, p. 116), “funda-se na
concepção de que a Terra é um bem que os nossos ancestrais nos legaram para ser usado e transmitido
aos que viverão no futuro”. Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/a-justica-intergeracio
nal/96444#ixzz5HMHZbRVw. Acesso em 28 jan. 2018, não paginado.
28 Brasil. Supremo Tribunal Federal, ADPF 101, Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, j. 24/06/2009,
RTJ 224-01, PP-00011.
29 As cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade
de normas constitucionais inferiores. [ADI 815, rel. min. Moreira Alves, j. 28-3-1996, P, DJ de 10-
5-1996.] e Direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da
Constituição (art. 60, § 4º). [Ext 986, rel. min. Eros Grau, j. 15-8-2007, P, DJ de 5-10-2007.]

84
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

são em prol de uma comunidade Intergeracional, o que deve ser considerado


no controle de constitucionalidade das normas, como também nas atitudes de
todos os envolvidos no uso de bens naturais.
Para facilitar o cumprimento das tarefas estatais, o constituinte brasileiro
atribui a titularidade de bens ambientais (inclusive os hídricos) à União e aos
Estados, o que não significa a outorga de seus domínios em sentido estrito. Des-
sa forma, é competência material exclusiva da União a instituição do Sistema
Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, definição de critérios de ou-
torgas de direitos de uso (art. 21, XIX, CRFB30/1988) e a competência privativa
para legislar sobre as águas (art. 22, IV, CRFB/1988).
A partir do tratamento conferido ao tema das águas pela CRFB/1988, deve
ser registrado que, apenas nove anos após a sua promulgação, foi o seu art. 21,
XIX, regulamentado por meio da Lei n. 9.433 de 1997, que institui a Política
Nacional de Recursos Hídricos (PNRH)31. Ressalte-se que o Código de Águas
(Decreto n. 24.643 de 1934) não foi recepcionado pela Carta Magna brasileira
no tocante à propriedade municipal, permanecendo em vigor apenas o que não
conflitasse com a PNRH.
Registre-se, ainda, que, no âmbito infraconstitucional, também se observa o
novo Código Civil, instituído pela Lei n. 10.406 de 2002, que traz nove artigos
– entre 1.288 a 1.296 – os quais abordam a gestão e o uso das águas. Apesar de
ser mais recente do que outros textos sobre o tema, como o outrora Código de
Águas (Decreto n. 24.643 de 1934) e a PNRH, o novo Código Civil trata a água
como tema adaptado ao direito de vizinhança.
Continuando a ordem jurídica decrescente, verifica-se, no Sistema Ju-
rídico Brasileiro, a Resolução n. 357 do Conselho Nacional do Meio Am-
biente (CONAMA), de 200532, que, baseada na PNRH e na Política Na-
cional do Meio Ambiente (PNMA), dispõe sobre a classificação dos corpos
d’água33, diretrizes ambientais para o enquadramento destes e afirma a

30 Neste estudo a sigla CRFB sempre se remete à Constituição da República Federativa do Brasil.
31 Após esta primeira citação, as seguintes levarão apenas a sigla PNRH.
32 Publicada no DOU de 18/03/2005.
33 Segundo a Instrução Normativa n. 4, de 26/06/2000, do Ministério do Meio Ambiente, que aprova
procedimentos administrativos para a emissão de outorga de direitos de uso de recursos hídricos em
corpos d’água da União, corpo d’água ou corpo hídrico é o “curso d’água, reservatório artificial ou
natural, lago, lagoa ou aquífero subterrâneo”.

85
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

água como integrante das preocupações acerca da Sustentabilidade do de-


senvolvimento e alicerce dos princípios da função ecológica da proprieda-
de, prevenção, precaução, poluidor pagador, usuário pagador, integração e
valor intrínseco à natureza34.
No contexto internacional, inúmeros são os tratados, convenções e con-
ferências internacionais35 que foram firmados visando à proteção, distribui-
ção e o acesso de todos os seres humanos a este recurso imprescindível à
sobrevivência36. Destacam-se, em especial no plano externo, as Resoluções
n. 64/292, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em julho de
2010, oportunidade em que foi reconhecida, pela primeira vez, oficialmente,
o direito humano à água potável e ao saneamento como essenciais para a pro-
moção de todos os demais direitos humanos, e n. 15/9, aprovada, no mesmo
ano, pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, cuja diretriz foi
afirmar o direito à água e ao saneamento como parte da legislação interna-
cional, firmando-os como legalmente vinculante aos Estados, haja vista que

34 AMORIM, João Alberto Alves. Direito das águas: o regime jurídico da água doce no direito
internacional e no brasileiro. São Paulo: Lex Editora, 2009, p. 31.
35 Oportuno relembrar, brevemente, alguns dos mais relevantes momentos históricos da construção
internacional ao direito à água: Conferência das Nações Unidades sobre Água, em Mar del
Plata, 1977 (conceito de quantidade mínima necessária de água para satisfazer às necessidades
humanas básicas); Convenção internacional sobre a água e o desenvolvimento sustentável na
Conferência de Dublin, em 1992 (Princípio n. 4 reconhece o direito fundamental de todo o ser
humano ter acesso à água potável e ao saneamento a preço acessível); Conferência das Nações
Unidas sobre o meio ambiente e o desenvolvimento, a Cúpula do Rio, 1992 (reconhecimento
que todas as pessoas têm direito à água potável e à manutenção do abastecimento apropriado
para toda a população do planeta); Cúpula mundial sobre o desenvolvimento sustentável, 2002
(metas para ampliar o acesso a requisitos básicos como a água potável); Comentário geral n. 15,
2002 (orientações para interpretação do direito à água); Projeto de diretrizes para a realização
do direito humano à água potável e ao saneamento, 2005 (projeto de diretrizes para auxiliar
políticas governamentais, agências internacionais que trabalham no setor da água e saneamento).
Catalogação encontrada em: WOLKMER, Maria de Fátima Schumacher. O “novo” direito
humano à água. In: Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das
novas conflituosidades jurídica. WOLKMER, Antonio Carlos; MORATO, Leite José Rubens
(org.). 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 195-198.
36 DANTAS, Marcelo Buzaglo; Schmitt, Guilherme Berger. Os desafios da sustentabilidade ambiental na
gestão dos recursos hídricos: o papel do direito e do poder público no Brasil e na Espanha. Disponível
em: <http://siaiapp28.univali.br/lstfree.aspx?type=ebook&id=4> Acesso em: 29 dez. 2017, p. 15.

86
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

os documentos dão respaldo para considerar a água não apenas um Direito


Fundamental37, mas também Humano38.
Desse modo, todo Estado deve garantir, com base no Comentário Geral n.
15 de 2002 do Comitê das Nações Unidas, os seguintes elementos: a) abaste-
cimento de água suficiente e contínuo para o uso pessoal e doméstico de cada
pessoa; b) água potável de qualidade, saudável e segura, isto é, livre de micro-
-organismos, substâncias químicas e contaminações; c) instalações de água e
serviço culturalmente aceitáveis e apropriadas; d) acesso fácil à água potável,
ou seja, ser fisicamente acessível e estar ao alcance de todos os setores da po-
pulação; e, e) exequibilidade no uso, de modo que nenhum indivíduo deve ser
privado do acesso à água potável por falta de pagamento.39
No relatório de alternativas à globalização econômica de Porto Alegre, em
2002, complementado por ambientalistas do mundo inteiro, há contraposição
ao capitalismo global neoliberal. No documento, certos bens e serviços não
podem ser utilizados como mercadorias ou comercializados, nem patenteados
ou sujeitos a acordos comerciais, com a utilização de “bens de domínio global”.40
Consideradas as premissas supra, podemos destacar a importância do Es-
tado na garantia dos recursos hídricos à satisfação das necessidades huma-
nas, podendo se valer tanto das normas internas, quanto valer-se (e aderir)
a iniciativas internacionais.

37 Mas o que seriam Direitos Fundamentais? Para Ferrajoli, em tradução das Autoras deste trabalho, a
resposta mais fecunda, no âmbito da teoria do direito, é que os identifica com os direitos que estão
adstritos universalmente a todos enquanto pessoas ou enquanto cidadãos ou pessoas com capacidade
de trabalhar, e que são, portanto, indisponíveis e inalienáveis. FERRAJOLI, Luigi. Democracia y
garantismo. Madrid: Editorial Trotta, 2008, p. 42-4.
38 Cabe registrar que autores como o madrilenho Gregório Peces-Barba (tradução igualmente das
Autoras deste trabalho) manifestam sua preferência pela expressão “direitos fundamentais”,
significando a relevância moral de uma ideia que impacta a dignidade humana e seus objetivos de
autonomia moral, e também a relevância jurídica que converte os direitos em norma básica material
do ordenamento, constituindo instrumento necessário para que o individuo desenvolva todas as
suas potencialidades na sociedade. (PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Curso de Derechos
Fundamentales: teoria general. Madrid: Universidad Carlos III, 1995, p. 37).
39 Características do Comentário Geral n. 15/2002 do Comitê das Nações Unidas, encontradas em:
WOLKMER, Maria de Fátima Schumacher, 2012, p. 201 e 202.
40 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. Editora: Cultrix. 2002.
Tradução Marcelo Brandão Cipolla. (acesso livre), p. 232.

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Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

Mas será que o Estado, unicamente, pode sustentar esta garantia? Ademais,
o papel do Estado nesse contexto se limita à normatização hídrica e à fiscaliza-
ção do seu cumprimento se dá pela Sociedade?
Para responder a essa indagação, cabe trazer à baila o que podemos chamar
de responsabilidade compartilhada entre os atores de atitudes de Sustentabili-
dade em prol da água potável como um Direito Fundamental.

1.2 Um paradigma de responsabilidade compartilhada à


proteção dos recursos hídricos

O Estado brasileiro, com efeito, acabou positivando – e assegurando – o uso


do capital natural, dentre eles, os recursos hídricos, fruto de costume agregado
à cultura pátria e mundial, de utilização da natureza como bem intrínseco à
existência humana.
Com o título “O homem e o mundo natural”41, Keith Thomas sintetiza no
frontispício de sua obra a importância atribuída ao problema do reconhecimento
de que há muitos séculos a apropriação terrena pelo homem se deu sem qual-
quer preocupação com as consequências. Ocorreu, com força, no decorrer dos
anos 1500 a 1800. Naquela época, os teólogos ocidentais do início do período
Moderno não viam dificuldades para enxergar a terra e tudo nela existente ao
dispor do homem42. Com efeito, o Jardim do Éden, citado no antigo testamento
(Bíblia, livro do Gênesis), foi preparado para, de forma simplificada, ser o “pa-
raíso” do homem, e o pecado original mudou esta relação. O homem perdeu o
direito de desfrutar do paraíso, cabendo-lhe, então, buscar seu sustento, porém
sem perder o “domínio intacto” 43, haja vista que tudo fora criado para seu uso.
As diferenças das frentes que autorizavam esse sentimento de pertencimen-
to, com efeito, não se sobrepõem à visão geral que prevaleceu teologicamente
e se espalhou pelo mundo ainda que sob outros enfoques. Como visto, seja por
sobrevivência, ou outros, a forma de pertencimento vinculativo seria impensá-
vel por outro modo de ver naquele tempo, tanto que a civilização europeia tinha
este sentimento em sua tradição.

41 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Ed. Companhia de Bolso. 2010, p. 16


42 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Ed. Companhia de Bolso. 2010, p. 22.
43 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Ed. Companhia de Bolso. 2010, p. 23.

88
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Nesse quadro, Thomas alerta que durante este tempo:

Alguns dogmas desde muito estabelecidos sobre lugar do homem na na-


tureza foram descartados, nesse processo. Surgiram novas sensibilidades
em relação aos animais, às plantas, à paisagem. O relacionamento do ho-
mem com outras espécies foi redefinido; e o seu direito a explorar essas
espécies em benefício próprio se viu fortemente contestado.44

No entanto, o Autor informa que, na prática, pouco se denotou. Vale


lembrar, os enunciados de Martinho Lutero e do Papa Leão XII afirmaram,
um em 1530 e outro em 1891, “no sentido de que a propriedade privada se
constituía a diferença essencial entre os homens e os animais”.45 E, adiante,
ainda, apresenta o pensamento de Descartes que afirma a superioridade do
homem sobre a natureza46.
De lá para cá, mudança houve na sensibilidade com relação à natureza e aos
animais, podendo-se sentir, nas linhas dos ambientalistas e das ONGs, movi-
mentos em prol da consciência do mais ser do que ter (no sentido mencionado
de vinculação humana sobre as coisas, como condição de seu senhor).
O tema apresenta o problema da Sociedade atual que convive, não raro,
inconscientemente com este modelo de pertencimento vinculativo de titulari-
dade antropocêntrica. E os meios de educação dificilmente despertam em favor
de uma consciência ambiental, buscando meios de sobrevivência não lesivos aos
animais e à natureza em geral.
Nesse contexto, ao monopolizar a proteção aos direitos ambientais, nota-
damente aqui tratando dos recursos hídricos, o Estado não pode se afastar de
medidas em prol de sua efetiva proteção, as quais não se resumem aos enuncia-
dos, embora deveras importantes, nacionais e internacionais que asseguram ao
homem o direito à água potável como um direito máximo.
Logo, o Estado admite para si a responsabilidade de efetivação desse Di-
reito, iniciando por medidas que assegurem a proteção às fontes de água potá-
vel. Estas medidas perpassam a preocupação transconstitucional47 e envolvem

44 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Ed. Companhia de Bolso. 2010, p. 18.
45 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Ed. Companhia de Bolso. 2010, p. 38 e 39.
46 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Ed. Companhia de Bolso. 2010, p. 41.
47 Transconstitucionalismo, em apertada síntese, identifica os problemas que o Estado não tem
como resolver no âmbito de ordenamentos internos, levando-o a aderir a tratados internacionais

89
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

acordos com países fronteiriços e/ou de onde advêm – ou escoam – as nas-


centes de afluentes, por exemplo; ou, ainda, considerando-se as Sociedades
de risco de Ulrich Beck48, acordos internacionais que possam assegurar que
eventos em determinados espaços não interfiram na harmonia do planeta;
não submissão às corporações e interesses capitalistas em favor de argumentos
de geração de emprego e renda, sem a devida proteção aos recursos hídricos;
conscientização da Sociedade a respeito do valor da água e formas de prote-
ção; apoio às Organizações não Governamentais – ONGs, cujo ativismo equi-
librado se faz importante ferramenta entre a atividade estatal e o capitalismo
versus impactos na Sociedade.
Para tanto, mister remodelar a globalização, não se opondo ao comércio e
investimentos, “desde que estes colaborem para a construção de comunidades
saudáveis, respeitadas e sustentáveis.” 49
Maria Cláudia Da Silva Antunes De Souza e Hilariane Teixeira Ghilard es-
clarecem oportunamente que o referido Desenvolvimento como princípio visa
ao “planejamento adequado e compatível com a sustentabilidade”, o qual, por
sua vez, “seriam ações de progresso para ambos os lados”. Alertam, ainda, a ina-
fastabilidade da importância dos processos de produção agrícola e pecuária, os

ou, espontaneamente, ao diálogo entre Cortes. Ainda, trata de questões entre o direito estatal e
extra estatal. Assim, segundo Marcelo Neves: “O transconstitucionalismo não toma uma única
ordem jurídica ou um tipo determinado de ordem como ponto de partida ou ultima ratio. Rejeita
tanto o estatalismo quanto o internacionalismo, o supranacionalismo, o transnacionalismo e o
localismo como espaço de solução privilegiado dos problemas constitucionais. Aponta, antes, para a
necessidade de construção de “pontes de transição”, da promoção de “conversações constitucionais”,
do fortalecimento de entrelaçamentos constitucionais entre as diversas ordens jurídicas: estatais,
internacionais, transnacionais, supranacionais e locais.” NEVES, Marcelo. (Não) solucionando
problemas constitucionais: transconstitucionalismo além de colisões. Lua Nova, São Paulo, 93:
2014, p. 208. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n93/08.pdf>, acesso em 26 jan. 2018.
48 O Autor afirma a Era dos riscos globais, dentre eles ressalta os ecológicos, químicos, nucleares
e genéticos, produzidos industrialmente, externalizados economicamente, individualizados
juridicamente, legitimados cientificamente e minimizados politicamente. Somou os riscos
econômicos, como as quedas nos mercados financeiros internacionais. Este conjunto de riscos é
responsável por um novo capitalismo, uma nova forma de economia, uma nova forma de ordem
global, uma nova forma de sociedade e uma nova forma de vida pessoal. E, ao mencionar a
globalização dos riscos, propõe que se criem governos e instituições abertas, transparentes, as quais
eficientemente produzam informações ao público e alertem as indústrias, modos de convivência e
enfrentamento dos riscos, ao invés de bani-los. Tradução livre das Autoras. Beck, Ulrich. World risk
society. Cambridge, Polity Press, 1999, p. 2-7 e 108.
49 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. Editora: Cultrix. 2002.
Tradução Marcelo Brandão Cipolla. (acesso livre), p. 232.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

quais abastecem os grandes centros urbanos e as áreas rurais. Isto porque, como
destacam, o desenvolvimento integra a vida cotidiana, porém, pede sempre que
seja “consciente e sustentável”.50
Essa reflexão, entretanto, já constava em documentos do Clube de Roma,
da Conferência de Estocolmo, do Congresso de Belgrado e da Conferência
de Tbilisi. A Comissão Brundtland, mencionada anteriormente, proporcio-
nou, no entanto, após largos debates, material teórico e prático e conquistou
muitos simpatizantes anônimos e famosos, e também muita resistência à
causa ambiental, pelos empecilhos aos interesses econômicos provocados
por diversas restrições51.
A Sustentabilidade, na prática, é termo difícil. De um lado, é compreendido
pelos economistas, com crescimento ilimitado do Produto Interno Bruto – PIB;
por outro, como desejam os ecologistas, com o desenvolvimento multidimensio-
nal da vida, não só das nossas capacidades econômicas, mas também daquelas
culturais e espirituais. Vale lembrar, neste ponto, o preceito de Erich Fromm
em sua célebre obra “Ter ou Ser”, na qual sintetiza a consequência desta atitude
preponderante de egoísmo pelos dirigentes da nossa Sociedade, que acreditam
que as pessoas podem ser motivadas apenas pelo incentivo de vantagens ma-
teriais, ou seja, através de recompensas, e que não reagirão aos apelos da soli-
dariedade e do sacrifício. Portanto, com exceções dos tempos de guerra, estes
apelos raramente são feitos, e as hipóteses de observar os possíveis resultados
perdem-se por completo. Apenas uma estrutura socioeconômica e um quadro
da natureza humana radicalmente diferentes poderiam mostrar outra maneira
de influenciar positivamente as pessoas52.
Nesse contexto, propõe-se o compartilhamento de responsabilidades53,
uma atitude de Governança, quando se poderá buscar otimizar atitudes pri-

50 SOUZA, Maria Cláudia Da Silva Antunes de; GUILARD, Hilariane Teixeira. Revista Jurídica
Unicuritiba. Vol. 2, n. 47. Recursos hídricos, agropecuária e sustentabilidade: desafios para uma
visão ecológica do planeta, p. 93.
51 A criação do CNS em Outubro/1985, a morte de Chico Mendes em 22/12/1988, a oficialização da
COIAB em 19/04/1989 são resultados desse processo, que desembocou na Eco-92. (Disponível em:
<http://www.gta.org.br/quem-somos/> Acesso em: 20 jul. 2017).
52 FROMM, E. Ter ou Ser? 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 78.
53 No Brasil, vale lembrar que a responsabilidade compartilhada está expressamente prevista, a exemplo,
na Política Nacional de Resíduos Sólidos, a qual elencou a reciclagem, a logística reversa e padrões
sustentáveis de produção e consumo. O Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos,
a seu turno, apenas dispõe de informações destinadas ao público, cujo conteúdo se volta mais à

91
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

madas pela Sustentabilidade e, em especial, com o recorte deste estudo, à


proteção dos recursos hídricos.

1.3 “Pegada Hídrica”


A educação ambiental tem por base a alfabetização ecológica, conforme
enunciada por Fritjof Capra, propondo a disseminação de princípios ecoló-
gicos para o entendimento dos problemas ambientais e soluções correspon-
dentes. Com efeito, denota-se como uma das principais ferramentas para a
Sustentabilidade planetária.
Logo, ao lado do desenvolvimento social e econômico, mister serem uti-
lizadas tecnologias em prol de efeitos menos impactantes e uma nova con-
duta da política, pautada por ações éticas de todos os envolvidos, revelando
forma de uma justiça socioambiental. E uma das ferramentas para se chegar
aos fins dessa proposta são as chamadas marcas ou pegadas, aqui, em espe-
cial, a “Pegada Hídrica”.
O termo “Pegada” encontra na língua portuguesa diversos significados54,
aderindo-se melhor à proposta ecológica os sinônimos: cicatriz, rastros, ves-
tígio, indicação.
No princípio da década de 1990, foi criado o termo “Pegada Ecológica” pe-
los pesquisadores americanos William Rees e Mathis Wackernagel55, gerando
posteriormente o termo “Pegada Hídrica” e “Pegada de Carbono”. As formas de
chegar aos índices para cada “Pegada” são diversas, porém, têm em comum a
quantificação dos recursos naturais utilizados pela humanidade em determina-
dos processos, ou seja, desde a primeira fonte de produção até o consumo final.

quantidade, qualidade, eventos críticos de água, planos de recursos hídricos, regulação, fiscalização,
programas de conservação e gestão. (Disponível em: BRASIL. <www3.ana.gob.br>. Acesso em: 28
jan. 2018, não paginado).
54 Como se pode constatar em pesquisas na rede mundial de computadores, valendo citar https://www.
dicionarioinformal.com.br/sinonimos/pegada/. Acesso em: 28 jan. 2018, não paginado.
55 É pública e notória a expressão pelos Autores criada, porém, referências à importância são largamente
encontradas na doutrina, podendo-se citar, por exemplo REYES, Bernardo; WACKERNAGEL,
Mathis; REES, William Rees.  Nuestra huella ecológica: Reduciendo el impacto humano sobre la
Tierra, IEP/Lom Ediciones, Santiago 2001, 207 p. , Polis [En línea], 4 | 2003, Publicado el 20 octubre
2012, consultado el 03 junio 2018. URL : http://journals.openedition.org/polis/7216.

92
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

As “Pegadas” reverberam importante instrumento em benefício de resulta-


dos sustentáveis com mudanças de comportamento humano e também para
iluminar a gestão de decisões em políticas públicas.
Quando se fala, em especial, da “Pegada Hídrica”, que é um dos objetos
deste trabalho, encontramos importante forma de conscientização ainda pouco
utilizada para que os consumidores de água potável (direta e indiretamente)
cuidem mais de suas atitudes. Está-se falando da denominada “Água Virtual”,
termo cunhado já em 1993 por John Anthony Allan, como justamente aquela
que não enxergamos a olho nu. É a quantidade de água gasta para produzir um
bem, produto ou serviço, levando em conta características locais produtoras,
ambientais e tecnológicas56.
E veja-se que sequer pode a “Pegada Hídrica” ter um valor universal, porque
depende muito das condições de cada localidade. Este termômetro vai desde as
condições climáticas e geográficas de cada país, passando pela sua economia,
forma de alimentação (como o vegetarianismo57) e políticas locais de proteção
à água potável, dentre outros.
Importante destacar, para tanto, que muitos países são verdadeiros expor-
tadores de água, como no caso do Brasil. Muita de nossa riqueza, aí incluída a
água potável, é literalmente “exportada” na forma de soja e carne58, por exem-

56 CARMO, R. L.; OJIMA, A. L. R. O.; OJIMA, R.; NASCIMENTO, T. T. Água virtual, escassez e
gestão: O Brasil como grande “exportador” de água. B. v.X, n.1, 2007. p. 83-96.
57 Na nota a seguir é dado exemplo da forma como a produção animal é prejudicial à natureza e aos
recursos hídricos, não solucionando o problema da fome mundial. Falar de vegetarianismo é um tema
ainda árido, porque envolve uma discussão sobre costume, hábito humano de comer animais. Porém,
considerando o aumento populacional terreno e larga produção industrial em países com reservas de
água potável para satisfazer apenas uma parcela da população mundial, essas questões já passam da
“hora” de seriamente serem debatidas e a população, esclarecida.
58 Para falar um pouco de animais e o impacto que geramos na natureza para sustentar uma parcela da
humanidade a um custo de água muito alto, vale registrar as palavras de Sônia Felipe, filósofa com
larga notoriedade na temática: Veja-se “[...] Matamos ao redor do planeta atualmente 70 bilhões
de animais. Nós somos 7 bilhões de humanos. E estes animais mortos servem à dieta de apenas 3,5
bilhões de humanos, mesmo tendo uma média de 30 animais mortos por ano per capita, muitos
brasileiros nunca viram e jamais verão carnes ou queijos nos seus pratos.
Por que fazemos isso aos animais? Porque fomos enganados pela propaganda da proteína
animalizada, no sentido de que é necessário comer 300 gramas de proteína animal por dia, mas há
quem sustente que não necessitamos de aminoácidos animalizados, tem-se uma primeira geração de
veganos do mundo. A decisão de excluir da própria biografia a matança de animais é de cada um.
Nós discriminamos os animais pela mesma razão pela qual discriminamos negros, índios, os
"homeless”, os homossexuais, os transexuais. O que o corpo faz é síntese de certos aminoácidos de
que, no nosso caso, precisamos para reposição de nossos tecidos.

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Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

plo. É importante adicionar, ao consumo local de água, os recursos hídricos


utilizados na produção das mercadorias compradas de outras regiões ou países.
Outro aspecto importante é pensar que a questão envolvendo os recursos hídri-
cos está além da área geográfica da bacia hidrográfica.
A “Pegada Hídrica”, logo, indica o consumo de água doce em metros cúbicos
por ano, utilizado na produção dos bens e serviços que consumimos. Hoekstra
e Huang, no ano de 2002, sintetizaram este conceito, sendo baseado no mesmo
raciocínio da “pegada ecológica”; todavia, em vez da área em hectares, consi-
dera-se o volume de água, geralmente medido em metros cúbicos59. E, nessa
perspectiva, pode servir de instrumento às iniciativas públicas e privadas, assim
como à população em geral, para que entendam o quanto de água é necessário
para a fabricação de produtos ao longo de toda a cadeia produtiva.
Aliás, em interessante abordagem sobre a “Pegada Hídrica”, Valdir La-
mim-Guedes60 esclarece que sua importância reside em reconhecer que os
impactos do consumo humano estão conectados com os sistemas de água
doce, sendo a falta desta última mais bem compreendida no todo das cadeias
de suprimento. Assim, o autor, utilizando-se de mestres como Arjen Y. Ho-

A escola tradicional ainda sustenta a necessidade de proteínas serem ingeridas. Nenhum corpo
animal fabrica proteína, mas sim faz a síntese de aminoácidos.
E uma proteína foi dada de comer ao animal: os grãos, os cereais e plantas. Estes cultivados
neste planeta, sendo que a cada 100 hectares, cerca de 70 a 90% são destinados à digestão dos
animais e de toda essa proteína que é dada aos animais.
30% das áreas mais férteis do planeta são usadas para esta alta tecnologia “meiocida” e de toda
essa proteína que é dada aos animais, quase 100% é desperdiçada pelo próprio metabolismo animal.
Quando comemos a carne bovina para cada 100 gramas de proteína vegetal rica que demos de
comer ao animal (4 gramas –bovina- 12 gramas –porco-17 gramas –frango-; quando bebemos leite,
são 22 gramas e para as galinhas na coleta de ovos ele devolve 23 gramas). [...]”. Palestra proferida
pela filósofa Sônia Felipe explicando seu livro Galactolatria: mau deleite. São José: Ecoânima,
2012. Isso, sem falar na questão ética de matar animais, apesar de não ser aqui o estudo, mas a
oportunidade pede porque é um outro forte argumento em prol da água e da natureza. No congresso
dos neurocientistas reunidos em Cambridge, em 2012, os cientistas fizeram uma declaração pública
de que não há diferença alguma entre o que nós sentimos e que os animais sentem. A única diferença
é que eles não podem expressar a sua dor e o seu favor. Seguindo, portanto, o que os filósofos
animalistas seguem há 40 ou 50 anos, a ONU, em seu relatório de 2010, apontou que não haverá vida
no planeta se seguirmos a dieta animalizada, não há mais rios para irrigar as plantações e hidratar os
animais no mundo.
59 BRASIL, disponível em: <http://www.revistaea.org/pf.php?idartigo=1412>. Acesso em: 28 jan 2018.
60 LAMIN-GUEDES, Valter. A pegada hídrica: conceito e uso em atividades de educação ambiental.
Revista de estudos da água. Disponível em: <http://www.revistaea.org/pf.php?idartigo=1412>.
Acesso em: 28 jan. 2018, não paginado.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

ekstra, destaca que, igualmente para a água doce não podemos olhar de for-
ma fragmentada, como a tudo propõe Capra e explanado no princípio deste
estudo; ao revés, devemos olhar como um todo, assim, podemos compreender
o que falta para que a água doce seja protegida e assegurada como um bem
Fundamental hoje e garantida no amanhã.
Ademais, a “Pegada Hídrica” de um indivíduo ou comunidade pode ser es-
timada multiplicando-se todos os bens e serviços consumidos por seus respecti-
vos conteúdos de “Água Virtual”. E a “Pegada Hídrica” de uma nação consiste
de partes interna e externa, sendo a interna referente ao consumo dos recursos
hídricos dentro do país, enquanto a externa refere-se à apropriação dos recursos
hídricos de outros países61.

1.4 Água potável: valor econômico e


Sustentabilidade Corporativa

Não apenas a “Pegada Hídrica” revela-se um importante argumento para a


consciência humana sobre o dever de tornar-se ator de uma Justiça Intergera-
cional; o próprio valor da água é outro ponto crucial nesta jornada de educação
humana em prol da água potável.

61 Para maiores considerações, sugere-se este estudo, onde são anotados mapas mundiais de “Pegada
Hídrica” ou com a sigla PH, e da “virtual, azul, cinza e verde”, assim classificadas, a depender das
condições que levam aos índices correspondentes. No mesmo trabalho, explica-se que: “Os quatro
principais fatores de determinação da PH de um país são: o volume de consumo (em relação ao
Produto Interno bruto - PIB), o padrão de consumo (por exemplo, alto e baixo consumo de carne),
as condições climáticas (condições de crescimento das culturas agrícolas) e práticas agrícolas (uso
eficiente da água). Na média anual, os norte-americanos têm uma PH de 2.482 m3. Já a média global
é de 1.243 m3  e a do Brasil é de 1.381 m3 (CINTRA, 2011). Cerca de 38% da PH global refere-se a três
países: China, Índia e Estados Unidos. O próximo país no ranking é o Brasil, com uma PH total de
482 Gm3/Ano (HOEKSTRA e MEKONNEN, 2012).
A maioria dos usos de água ocorre na produção agrícola, destacando também um número
significativo de volume de água consumida e poluída nos setores industriais e domésticos (SILVA et
al., 2013). É muito interessante destrinchar o perfil de cada região quanto ao consumo de água; por
este motivo, a PH é formada por três componentes: verde, azul e cinza:
PH verde – refere-se ao consumo de água das chuvas, sendo a maior parte consumida na
produção agrícola;
PH azul - água da superfície e do solo, por exemplo, obtida de poços, processos industriais que
produzem vapor ou na incorporada aos produtos;
PH cinza – definida como o volume de água doce que é necessária para assimilar a carga de
poluentes existentes com base em padrões de qualidade de água no ambiente”.
Disponível em: <http://www.revistaea.org/pf.php?idartigo=1412>. Acesso em: 28 jan. 2018.

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Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

Por exemplo, acaso o Estado contabilizasse o valor da água que está obri-
gado a garantir à Sociedade, quanto seria seu valor verdadeiro? E se colocásse-
mos num balanço de uma empresa o efetivo valor da água para sua atividade,
em quanto estaria quantificada? E os indivíduos, qual valor dariam à água?
Quanto você diria que vale a água, especialmente se ela fosse escassa ou
quando ela faltar em sua vida?
Jorge González González, da Universidad de Alicante, expressa que a água
tem e sempre teve um valor econômico, porém sua significação e conteúdo
social, que reverberam um Direito Humano, podem contrastar com o lucrativo
negócio da água que é um recurso insubstituível.62
Ainda, o Autor espanhol explana que:

El agua es um bien econômico y um derecho al que tienen aceso todos


los pobladores de la tierra, pero el incremento creciente em el consumo
de agua y el ser um recurso limitado obligan a uma racionalidade de
su disponibilidad que garantisse su abastecimento tanto para el consu-
mo humano como para otros usos, además de proteger la calidad de las
aguas y también prevenir las catástrafes naturales.63

Logo, considerar o valor da água apresenta não só o sentido de aplicar na


prática medidas de renovação de recursos hídricos, mas também de evitar ca-
tástrofes naturais, como se vê o degelo polar provocado por mudanças climá-
ticas e doenças propaladas em vias pluviais, ou desastres ambientais em rios
ou mares (caso de Mariana no Brasil e derramamento de petróleo em diversos
pontos do planeta, prejudicando águas e tudo que delas depende).
O Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável –
CEBDS disponibilizou o denominado “Protocolo de Capital Natural”, um guia
mundial para os gestores de negócios identificarem, medirem e atribuírem valor
aos impactos de suas atividades sobre o capital natural.64

62 GONZÁLEZ, González Jorge. El acesso al agua potable como derecho humano: su dimensión
internacional. Editorial Clube Universitário: Alicante, España, 2010, p. 18.
63 GONZÁLEZ, González Jorge. El acesso al agua potable como derecho humano: su dimensión
internacional, p. 18.
64 Disponível em: <http://aquapath-project.eu/calculator-po/country.html>. Acesso em: 28 jan. 2018,
não paginado.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

A respeito do valor dos recursos naturais, Mark R. Tercek e S. Jonathan


Adams teorizam que, efetivamente, “companhias, governos e indivíduos pre-
cisam entender que a natureza não é só maravilhosa, mas também tem valor
econômico. Na verdade, a natureza é a base do bem-estar humano” 65.
Nesse diapasão, surge o conceito de Sustentabilidade Corporativa, ao lado
do conceito de Sustentabilidade, na medida em que “as empresas estão reco-
nhecendo o valor dos recursos e outros desafios ambientais”, sendo as “bases
desta nova forma de pensar a sustentabilidade corporativa estabelecidas em
2005 com o lançamento do pioneiro Avaliação Ecossistêmica do Milênio (The
Millennium Assessment). O estudo traz sólidas evidências que embasam nossa
hipótese de que a natureza é um ativo essencial para os negócios.” 66
Ainda, podemos conceituar a Sustentabilidade Corporativa como
A abordagem de negócios que cria valor de longo prazo para clientes,
funcionários e a sociedade. Isso ocorre por meio de uma estratégia de
longevidade da empresa, que inclui a redução de impactos ambientais, a
contribuição social, a atuação ética e a transparência67.

Logo, inúmeros casos indicam que investir, por exemplo, na proteção das
bacias hidrográficas é a maneira mais barata de administrar riscos de negócios
que precisam da água potável, seja virtual ou para consumo direto.
Menos poluição e menos erosão significam menos risco de interromper
o fornecimento de água [...]. O fundo da água é também uma forma de a
companhia de água e de todos os demais acionistas terem um programa
de ação comum. Motivar o setor privado a conversar com o setor púbico,
algo difícil em qualquer lugar, é um desafio ainda maior em países emer-
gentes, onde ninguém confia nas instituições públicas.68

65 TERCEK, Mark R.; JONATHAN, S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014. p. 49.
66 TERCEK, Mark R.; JONATHAN, S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014. p. 202.
67 Disponível em: <http://welcome.curupira.com/blog/o-que-e-sustentabilidade-corporativa/>. Acesso
em: 28 jan. 2018.
68 TERCEK, Mark R.; JONATHAN S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014. p. 49.

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Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

Claro que colocar, na mesma mesa de diálogos, Estado, corporações, Socie-


dade Civil, ONGs e eventuais cidadãos não pode ser utópico e romantizado a
ponto de acreditar em ações empáticas imediatas. Obviamente que as diferen-
ças aparecerão. Para conversar com pessoas de diferentes opiniões acerca da
questão ambientalista, mister profundo respeito e utilizar parâmetros aceitáveis
e com base em dados reais, concretos.
Quanto a novos paradigmas de Governança, a passagem para renovados modelos
instituticionais em direção a uma inclusiva, diversa e ecológica sociedade planetária
é descrita no Relatório do Global Scenario Group69, intitulado “Great Transition: The
Promise and Lure of the Times Ahead”, ensaio que descreve as raízes históricas, a
dinâmica atual, os perigos futuros e os caminhos alternativos para o desenvolvimento
mundial. A rota sugerida é uma “grande transição”, que envolve novas estratégias e
agentes para uma mudança de valores por uma nova agenda global. Em síntese:

A transição de governança consiste em construir instituições para avan-


çar no novo paradigma de sustentabilidade por meio de formas de asso-
ciação entre as partes intervenientes e sistemas a nível local, nacional
e global. Mesmo que as estruturas específicas devam ser adaptadas e
debatidas, cabe esperar a proliferação de novas formas de participação
que complementem e desafiem o sistema tradicional governamental. No
novo paradigma, o Estado se encontra imerso na sociedade civil e a na-
ção inserida na sociedade planetária. O mercado é uma instituição so-
cial a ser controlado pela sociedades nas áreas da ecologia e da equidade,
e não apenas da geração de riquezas70.

69 O grupo originou-se em 1995 a partir de uma convocação do Instituto Tellus e do Instituto do


Meio Ambiente de Estocolmo para envolver um grupo internacional diversificado no exame das
perspectivas para o desenvolvimento mundial no século XIX. “Great transition” é o terceiro livro
de uma trilogia iniciada em 1997 com a obra “Branch Points”, que introduziu o cenário de atuação
do grupo, e foi sucedido pelo livro “Bendinge the Curve”, no ano seguinte, que analisou os riscos
a longo prazo e perspectivas para suntentabilidade no futuro dentro da concepção convencional
de desenvolvimento. As the third in a trilogy, Great Transition builds on the ear- lier Branch Points
(Gallopín et al., 1997), which introduced the GSG’s scenario O grupo de acadêmicos que participou
da publicação é composto por: Paul Raskin, Tariq Banuri, Gilberto Gallopín, Pablo Gutman, Al
Hammond, Robert Kates, Rob Swart. Os estudos desenvolvidos pelo grupo serviram de modelo para
diversas iniciativas regionais e nacionais nos anos seguintes. Mais informações podem ser acessadas
no site institucional: <The Great Transition Initiative. Disponível em: http://www.gsg.org. Acesso
em 28 març 2018.
70 Tradução do original pelas Autoras (2002, p. 62): "The governance transition is about building
institutions to advance the new sustainability paradigm through partnerships between diverse
stakeholders and polities at local, national and global levels. While specific structures will remain

98
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Este é um chamado para setores-chave da Sociedade, mas sobretudo o Poder


Público, entenderem a natureza e a gravidade do desafio, e o tamanho da opor-
tunidade de revisar seus métodos de ação, buscando pensar e materializar um
direito coletivo ao futuro, orientado por um novo paradigma de Governança.
Para a construção de uma Sociedade global, entretanto, esses esforços precisam
estar articulados com um direito transnacional, cujo fundamento não se baseia
nas soberanias nacionais, ainda que se apoie nelas. É necessário desbordar o
âmbito dos ordenamentos nacionais, aportando soluções que visem a todos, não
importando onde se encontrem ou onde nasceram71.
Para estabelecer a possibilidade de unir esforços entre os atores de políticas
hídricas, pode-se mencionar algumas práticas localizadas na obra Capital Natu-
ral72, como o caso de Quito, Equador. Necessitava-se garantir água de qualidade
para uma população em crescimento exponencial. Em vez de discutir com os
fazendeiros pobres, acusando-os de não utilizar os procedimentos corretos de
preservação, foi investido o dinheiro para auxiliá-los, formando uma coopera-
ção com toda a comunidade para resolver a situação, transformando-a em uma
questão em que todos os lados ganhavam.
Ainda, pode-se tratar neste destaque da biodiversidade. A melhor opção é
certamente proteger as florestas tropicais. Porém, elas são localizadas em países
subdesenvolvidos, como o Brasil e a Indonésia. A maior causa de desmatamento
é o avanço da agricultura, para suprir o mercado internacional crescente, vez
que a pobreza vem diminuindo e há uma camada muito maior da população na
classe média. Dessa forma, os problemas vêm sendo enfrentados com uma abor-
dagem de cooperação entre as grandes empresas internacionais, que se compro-

a matter of adaptation and debate, a proliferation of new forms of participation can be expected to
complement and challenge the traditional governmental system. In the new paradigm, the state is
embedded in civil society and the nation is embedded in planetary society. The market is a social
institution to be harnessed by society for ecology and equity, not simply wealth generation. The
individual is the locus of a web of social relationships, not simply an atom of pain and pleasure.”
71 FERRER, Gabriel Real. El Principio de no Regresión Ambiental a la luz del paradigma de la
Sostenibilidad. In: CHACON, Mario Peña (Org). El Principio de No Regresión ambiental
en Iberoamérica. Gland (Suiza): Universidad de Costa Rica: Unión Internacional para la
Conservación de la Naturaleza (UICN). Comisión Mundial de Derecho Ambiental, 2015. 330
p. Disponível em: <https://portals.iucn.org/library/sites/library/files/documents/EPLP-084.pdf>.
Acesso em: 7 fev. 2017, p. 4.
72 TERCEK, Mark R.; JONATHAN S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014. P. 49.

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Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

metem a deixar de comprar de produtores que não respeitam as práticas ade-


quadas de agricultura, melhorando sua imagem perante o mercado consumidor.
É necessário, tão logo, unir-se aos maiores poluidores e causadores de estragos
ao ambiente (conglomerados industriais) para alcançar soluções efetivas.
Neste contexto de alguns problemas ambientais apontados, os autores in-
formam volumes de água consumidos pelos americanos (uma piscina olímpica
por ano por cabeça!): para produzir 1 litro de Coca-Cola, são necessários
212 litros de água. Outra atitude sugerida na obra se refere à necessidade de
proteção das águas: precisamos pensar bem sobre a infraestrutura necessária
para nos proteger dos fenômenos climáticos extremos. A infraestrutura cinza
dos quebra-mares, diques e comportas é importante, mas ilhas, recifes e áreas
alagadiças também precisam ser protegidos e urgentemente restaurados73. As-
sim, perguntar como se pode mudar a maneira de pensar de algumas pessoas é
uma perspectiva que merece ser mais bem explorada, tanto para o Estado em
suas ações e benefícios que concede ao setor privado, quando a este próprio,
valendo registrar que:

Para que as empresas possam deixar grandes pegadas e influenciar


o mercado é preciso tomar decisões melhores e entender que o va-
lor da natureza tem potencial para gerar ganhos reais de conserva-
ção. Não é possível provar que essa postura funciona porque ainda
é cedo. Mas já é hora de experimentar e ser muito cuidadoso com
relação aos resultados.74

Assim, quer-se dizer que a mudança depende de desenvolver negócios e


metas sustentáveis, identificando formas de valorização dos recursos naturais,
incluindo neles a “Pegada Hídrica” e informando a todos os envolvidos na ca-
deia de consumo sobre os índices. A inserção em embalagens, por exemplo, e
etiquetas, da “Pegada Hídrica” e do valor da água utilizado na produção de bens
de consumo seria uma forma de indicar ao consumidor o que ele está consu-

73 TERCEK, Mark R.; JONATHAN S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014., p. 169.
74 TERCEK, Mark R.; JONATHAN S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014. p. 194.

100
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

mindo. Por certo, muitos ficarão surpresos ao saber o volume de “Água Virtual”
embutido em suas vestes e seus alimentos.
E será que empregando também o valor à água, Estado e empresas não terão
um incentivo a mais para proteger este valioso bem que é a água potável e sem
o qual não teremos futuras gerações? Ora, se

O planeta tem limites, estamos nos aproximando deles e, em alguns lu-


gares, já o ultrapassamos. Todo agricultor sabe que não se deve comer
a semente do milho, e todo banqueiro sabe que não se deve gastar o
principal. E é exatamente isso que estamos fazendo.75

Assim, além de uma consciência em prol da natureza, da água da qual


depende a vida na Terra, investir na natureza “é inspirador e absolutamente
otimista. [...] Outra boa notícia: o investimento na natureza faz as pessoas mu-
darem a maneira de olhar para ela.”76
Por isso, cabe a conclamação da resiliência como modo de enfrentar o des-
caso humano à natureza, demonstrando que pequenas ações podem levar a
grandes mudanças. Se cada um de nós principiar com o cuidado de valorar cada
gota de água gasta no que consumimos ou naquilo que produzimos, certamente
veremos mudanças e estaremos produzindo a Justiça Intergeracional.
E, some-se a isso, a capacidade humana de amar. “Tire as pessoas, em es-
pecial os jovens, da cidade e dê a elas uma oportunidade de entrar em contato
com a natureza a experiência prática e a ciência moderna garante que será uma
vivência transformadora”. 77
Nesse sentido, adentra-se, ainda, como argumento de proteção (e Justiça
Intergeracional), na água potável como Direito Fundamental, na esfera da amo-
rabilidade, porque aprender a amar a Terra é, talvez, um dos mais fortes argu-
mentos para protegê-la.

75 TERCEK, Mark R.; JONATHAN S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014. p. 222.
76 TERCEK, Mark R.; JONATHAN S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014. p. 223.
77 TERCEK, Mark R.; JONATHAN S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014, p. 216/7.

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Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

2. Legado deste Tempo: o amor pela Terra (biofilia)


A doutrina de Edis Milaré bem alerta que os “estilos de civilização estão sob
julgamento”, e a mudança de comportamentos não “se processará de cima; de-
verá consolidar-se a partir de baixo, assim como as grandes massas são formadas
de pequeninas moléculas unidas por um princípio ou força agregadora.”. Explica
o Autor que “os nossos ethos individuais e sociais, políticos e administrativos,
técnicos e empresariais” devem se construir sob a pauta de um estilo ou siste-
ma de vida e de atitudes de “amor, que de nós merece o planeta Terra”, "nossa
casa”. O sentimento de amorabilidade à Terra como nosso lar foi cunhado por
Edward Wilson utilizando a terminologia “biofilia”. A respeito, David W. Orr,
em obra coordenada por Fritjof Capra, esclarece que a terminologia “biofilia”,
que se popularizou em obra com igual nome, significa a afinidade desenvolvida
pela humanidade com a vida, a terra, a água, o solo e o lugar. E nela (“biofilia”)
reside a esperança de direcionarmos nossa inteligência para um mundo melhor
pela afeição aos nossos filhos, ao nosso lugar.78
Nesse caminho, as atitudes de ética ambiental, as quais merecem mais do
que o amparo da lei, e a educação ambiental sugerem importante papel na efeti-
vação da população como verdadeiro agente de proteção ao Ambiente. Acerca
das aulas sobre meio ambiente, vale destacar que “toda educação é educação
ambiental”, “com a qual por inclusão ou exclusão ensinamos aos jovens que
somos parte integral ou separada do mundo natural.” 79
A aprendizagem no contexto, assim, revela-se importante meio de propor-
cionar uma educação integral, sistêmica e, por via consequente, de amor à ter-
ra, com sentimento de pertencimento, assumindo posturas de liderança em prol
do seu lugar. Aprender ao ar livre é uma forma especial de compreender todos
os sistemas não lineares. Integrar a comunidade, as famílias, as escolas, enfim,
envolver a todos.80 A educação, assim, não é para os alunos, é para todos, e
quantos mais forem trazidos à comunidade acadêmica, mais interação e inte-

78 CAPRA, Fritjof. Alfabetização ecológica: a educação das crianças para um mundo sustentável. São
Paulo: Cultrix. 2006, p. 09.
79 CAPRA, Fritjof. Alfabetização ecológica: a educação das crianças para um mundo sustentável. São
Paulo: Cultrix. 2006, p. 11.
80 CAPRA, Fritjof. Alfabetização ecológica: a educação das crianças para um mundo sustentável. São
Paulo: Cultrix. 2006, p. 179/99.

102
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

gração haverá, maiores lideranças surgirão e maior será o índice de participação


social na tomada de decisões cotidianas ou eventuais.
Não só o Estado, assim, é chamado à responsabilidade de proteção ao am-
biente Sustentável, como também as empresas, principais utilizadoras dos re-
cursos naturais e com efeitos sobre eles. Ademais, como toda a Sociedade tem
direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, ela tem o dever também de
atuar em sua defesa. A obra de Capra faz lembrar as perguntas que Kant for-
mulava para entender seu tempo, empregadas por Edgar Morin ao falar sobre
o “futuro da humanidade”, com algumas passagens de sua memorável “Cabeça
bem feita”81 e cujas respostas este estudo propõe.
Kant perguntava:
- O que podemos saber? Veja-se a importância da educação formal e infor-
mal; se boa parte da população mundial não tem acesso aos estudos em escolas,
poderia ser educada por outras formas. Mas há manipulação dos meios de co-
municação, pagos pela ideia de progresso ligada à economia, levando as pessoas
a julgamentos morais e éticos baseados em entendimentos equivocados.
- No que podemos acreditar? Vale aqui uma citação de George Orwell, mesmo
que escrita há mais de século, no sentido de que "Num tempo de engano universal,
dizer a verdade é um ato revolucionário". Pode-se acreditar em várias coisas, grosso
modo, que o homem é bom por natureza e o mundo o corrompe (Rousseau) ou que
já nasce mau (Hobbes). O importante é que se tenha condições de distinção; cons-
ciência sobre tudo o que acontece; quais interesses estão em jogo, desde o que co-
memos para sobreviver ao que consumimos muitas vezes compulsivamente; como
procedemos aos nossos julgamentos; como reagimos ao que vivemos; as necessida-
des da natureza; por qual motivo ingerimos determinados alimentos; qual nossa
participação no ciclo de sistemas interessados em manter determinados processos
que minguam profundamente de transparência em seus meios e fins.
- O que podemos fazer? Praticar atitudes em prol da “compreensão dos prin-
cípios da organização, comuns a todos os sistemas vivos, que os ecossistemas
desenvolveram para sustentar a teia da vida” 82, lembrando que há seis princí-

81 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=V3t7UFTpDHE>. Acesso em: 20 jul. 2017.


MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução: Eloá
Jacobina. 23ª ed., Bertrand Brasil: 2017.
82 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. Editora: Cultrix. 2002.
Tradução Marcelo Brandão Cipolla. (acesso livre), p.238

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Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

pios da ecologia que dizem respeito diretamente à sustentação da vida: redes,


ciclos, energia solar, alianças (parcerias), diversidade e equilíbrio dinâmico83.
Ganham valor fundamental, aqui, ações em favor da alfabetização ecológica
defendida por Capra, para que sejam compreendidos e aplicados os princípios
de organização que os ecossistemas desenvolveram para sustentar a vida; este é
o primeiro passo para a Sustentabilidade84. Pode-se conectar o pensamento de
Capra em prol da educação com Paulo Freire:

O homem não pode participar ativamente na história, na sociedade, na


transformação da realidade se não for ajudado a tomar consciência da
realidade e da sua própria capacidade de transformar [...] Ninguém luta
contra forças que não entende, cuja importância não meça, cujas formas
de contorno não discirna; [...] Isto é verdade se, se refere às forças sociais
[...] A realidade não pode ser modificada senão quando o homem desco-
bre que é modificável e que ele o pode fazer.85

Somente os modelos de educação difundidos pela escola e pela família já


não mais davam conta da realidade social atual, entretanto, não havia conhe-
cimento, credibilidade e amadurecimento das propostas para preencher as lacu-
nas existentes. Logo, a educação informal deve ocorrer fora da escola, conforme
alerta Capra, valendo lembrar os espaços além da mídia, como nas organizações
sociais, nos movimentos não governamentais (ONGs) e outras entidades filan-
trópicas atuantes na área social. A manipulação dos conceitos fragmentários
e reducionistas exsurge como condão para abrir os olhos dos jovens que têm,
agora, com os meios tecnológicos, consciência e condições para mudar os rumos
da política, que é o problema chave para a mudança, provendo não um marco
zero de Sustentabilidade no mundo, porém trabalhando com o que já se possui
para transformar a ideia de economia em desenvolvimento, para compreender
que o planeta está ai para ser vivido, não consumido, e que receba de nós as
condições para seguir dentro de um sistema planetário que tem condições de

83 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. Editora: Cultrix. 2002.
Tradução Marcelo Brandão Cipolla. (acesso livre), p. 238.
84 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. Editora: Cultrix. 2002.
Tradução Marcelo Brandão Cipolla. (acesso livre), p. 241.
85 FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1996, p. 56.

104
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

se auto reabilitar, de se prover, de permitir que a existência humana por mais


tempo se mantenha por suas gerações.
E, por fim, a quarta pergunta: - o que podemos esperar? Capra, neste
ponto, acredita que há como reverter este quadro, finalizando sua obra com
emblemática menção a Václav Havel, que deu origem ao nome da obra Co-
nexões Ocultas:

O tipo de esperança sobre a qual penso frequentemente, compreenden-


do-a acima de tudo como um estado da mente, não como um estado do
mundo. Ou, nós temos a esperança dentro de nós ou não temos; ela é
uma dimensão da alma, e não depende essencialmente de uma deter-
minada observação do mundo ou de uma avaliação e uma situação...
[A esperança] não é a convicção de que as coisas vão dar certo, mas a
certeza de que as coisas têm sentido, como quer que venham terminar.86

Nesse contexto, tem-se que o crescimento é uma propriedade da vida, po-


rém não é linear, e sim qualitativo, e, portanto, a opção por este crescimento
pode ser o caminho para o futuro da humanidade e do universo que habita,
protegendo-se a capacidade de nossa casa, o Planeta Terra, de manter-se vivo
para que possamos – e as futuras gerações – nele habitar dignamente, usufruin-
do com respeito do que o Universo nos agracia todos os dias.

Conclusão
No presente estudo pode-se apresentar a conexão com a evolução do capitalis-
mo e o consumismo humano, seja para aumentar as necessidades de uso de recursos
naturais nas cadeias de produção, desde o início até o final, seja para o acompa-
nhamento humano nas necessidades de consumir cada vez mais. As necessidades
de vida passam do comer, habitar, vestir, mover-se, para ter conforto, luxo, até a
substituição e sentimentos de vida para a satisfação do simples comprar.
Observou-se que, frente a esse visual, surgiu uma nova forma de organi-
zação do comércio, das relações de trabalho e a acumulação de capital, com
estímulos para que os indivíduos adquirissem bens materiais. Ademais, com a
evolução tecnológica, eletrônica, das comunicações e da informática, ocorrida

86 CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. Editora: Cultrix. 2002.
Tradução Marcelo Brandão Cipolla. (acesso livre), p. 273.

105
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

nas décadas de 50 e 60, houve uma grande contribuição para a prosperidade do


capitalismo, gerando uma transformação na vida das Sociedades e uma signi-
ficativa expansão no mercado consumidor. No entanto, viu-se, na mesma Era,
uma degradação ambiental forte em todos os cantos do planeta.
Buscou-se, portanto, apresentar um acordo semântico a respeito de Susten-
tabilidade como sendo, em resumo, a ação ou omissão que não interfere na
habilidade da natureza de sustentação da vida.
Apresentou-se a responsabilidade do Estado, da Sociedade, das empresas e
dos cidadãos pelo uso consciente da água potável, responsáveis também pela
sua (re) geração de modo que as futuras gerações possam dela desfrutar como
Direito Fundamental.
Verificamos a proteção brasileira aos recursos hídricos, considerando-se
como Direito Fundamental e cláusula pétrea da nossa Constituição, cuja inter-
pretação deve ser restrita e sem abertura de exceções, sob pena de infringir o
compromisso do Estado Democrático de Direito em garantir às futuras gerações
o que lhes é de Direito. Ou seja, desfrutar do que desfrutamos (e do que nossos
antepassados desfrutaram), já de forma degradada, e cujo dever de recomposi-
ção herdamos de uma Sociedade consumista e capitalista.
Ainda, analisou-se o conteúdo transconstitucional a respeito do tema, dis-
posto em tratados e convenções internacionais, que culminam em colocar a
água como Direito Humano e Fundamental, valor indissociável de proteção
interna e externa (dos Estados) de modo absoluto e urgente.
Nessa linha, apresentamos conceito de “Pegada Hídrica” e o valor da água,
como instrumentos de conscientização humana de que vale a pena – e não é
apenas utopia – investir na natureza e contabilizar os custos da água em cada
bem que consumimos. Nesse processo, pode-se ver que a água a ser contabiliza-
da não se revela apenas naquela que escorre das torneiras de nossos lares, mas
toda aquela empregada a partir do plantio de grãos, por exemplo, para sustentar
animais que alimentam o homem, e que, por sua vez, são deixados em locais de
devastação onde poderiam estar nascentes, árvores e matas nativas. Ainda que,
muitas vezes, países como o Brasil, ricos em recursos de água doce, exportam
água potável para outros, sem considerar esse custo (imenso à pátria e aos seus
cidadãos) e sem políticas públicas de manejo aptas à consideração da natureza
em sua força de recomposição.
Observamos, também, em patamar internacional, várias ações, como as das
Nações Unidas que consideraram 2013 o “Ano da Água”, para chamar a aten-

106
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

ção sobre a temática. Ainda, o relatório Brundtland, produzido pela Comissão


Brundtland, nos anos 80, que sintetizou o conceito de Desenvolvimento Sus-
tentável como “aquele que atende as necessidades do presente sem comprometer
a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades”
Porém, ao que estamos hoje vendo em termos de escassez hídrica no mundo,
as perspectivas não são boas. E, assim, urge reverter os quadros atuais onde
prepondera, sabidamente, a falsa ideia de que se desenvolver economicamente
países a todo custo irá resolver a miséria mundial.
O sentimento de pertença ao planeta, agora, não vem mais daquele em
sentido bíblico, do Jardim do Éden, mas transcende em direção ao conceito
de “biofilia”, representado pelo amor à Terra, ao Universo a que pertence-
mos e pelo cuidado em não usar e dispor de tudo sem sopesar consequências
para todos os lados.
O Estado, por certo, nos ideais do capitalismo, positivou em ordenamento
o apoderamento humano da natureza, cabendo-lhe, via corolária, a proteção.
Mas o Estado sozinho, em tempo de riscos globais, não dá mais conta dessa va-
zão protetiva, sendo mister trazer à baila os atores de consumo direto e indireto
do capital de que a natureza dispõe. O que, assim, chamamos de responsabi-
lidade compartilhada entre os atores de atitudes de Sustentabilidade Hídrica.
Para tanto, necessário remodelar a globalização, não se opondo ao comércio
e investimentos, sem radicalizações, mas exigindo a colaboração de todos os en-
volvidos na construção de comunidades saudáveis, respeitadas e Sustentáveis.
A seu turno, as corporações exercem, e devem exercer, importante papel na
consecução de uma economia verde, desinteressada neste rótulo apenas para a
obtenção de lucros.
Um planejamento adequado e compatível com a Sustentabilidade represen-
taria ações de progresso para ambos os lados.
Pudemos compreender também as propostas em prol de uma educação am-
biental e vimos que não apenas a “Pegada Hídrica” se revela um importante
argumento para consciência humana sobre o dever de tornar-se ator de uma
Justiça Intergeracional, mas o próprio valor inestimável da água é outro ponto
crucial nesta jornada de educação humana em favor da água potável.
Nesse diapasão, surge o conceito de Sustentabilidade Corporativa, ao lado
do conceito de Sustentabilidade, na medida em que “as empresas estão reco-
nhecendo o valor dos recursos e outros desafios ambientais”, sendo as “bases
desta nova forma de pensar a sustentabilidade corporativa estabelecidas em

107
Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza, Priscilla Linhares Albino, Vânia Petermann

2005 com o lançamento do pioneiro Avaliação Ecossistêmica do Milênio (The


Millennium Assessment). O estudo traz sólidas evidências que embasam nossa
hipótese de que a natureza é um ativo essencial para os negócios.” 87
Por isso, cabe a conclamação da resiliência como modo de enfrentar o descaso
humano à natureza, demonstrando que pequenas ações podem levar a grandes
mudanças. Se cada um de nós principiar com o cuidado de valorar cada gota de
água gasta no que consumimos ou naquilo que produzimos, certamente veremos
mudanças e estaremos produzindo a Justiça Intergeracional, podendo olhar a nos-
sos filhos e dizer-lhes: busco fazer minha parte, faça a sua! Façamos a nossa!
Nesse caminho, as atitudes de ética ambiental, as quais merecem mais do
que o amparo da lei, e a educação ambiental sugerem importante papel na efe-
tivação da população como agente de proteção ao Ambiente. A aprendizagem
no contexto, assim, se revela importante meio de proporcionar uma educação
integral, sistêmica e, por via consequente, de amor à terra, com sentimento de
pertencimento, assumindo posturas de liderança em prol do seu lugar. Aprender
ao ar livre é uma forma especial de compreender todos os sistemas não linea-
res. Integrar a comunidade, as famílias, as escolas, enfim, envolver a todos.88
A educação, assim, não é para os alunos, é para todos, e quantos mais forem
trazidos à comunidade acadêmica, mais interação e integração haverá, maiores
lideranças surgirão e maior será o índice de participação social na tomada de
decisões cotidianas ou eventuais.
Não apenas o Estado, assim, é chamado à responsabilidade de proteção ao
Ambiente Sustentável, como também as empresas, principais utilizadoras dos
recursos naturais e com efeitos sobre eles. Ademais, como toda a Sociedade tem
direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, ela tem o dever, também, de
atuar em sua defesa.
Nesse contexto, o crescimento é uma propriedade da vida, porém não é
linear, e sim qualitativo, e, portanto, a opção por este crescimento pode ser o
caminho para o futuro da humanidade e do universo que habitamos, protegen-
do-se a capacidade de nossa casa, o Planeta Terra, de manter-se vivo para que

87 TERCEK, Mark R.; JONATHAN S. Adams. Capital Natural: como as empresas e a Sociedade
podem prosperar ao investir no meio ambiente. Tradução Vera Caputo. São Paulo: Alaúde
Editorial. 2014. P. 202.
88 CAPRA, Fritjof. Alfabetização ecológica: a educação das crianças para um mundo sustentável. São
Paulo: Cultrix. 2006, p. 179/99.

108
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

possamos – e as futuras gerações – nele habitar dignamente, usufruindo com


respeito do que o Universo nos agracia todos os dias.
Desenvolver a cultura do saber e do fazer passa invariavelmente pela di-
mensão do coletivo. Só assim será possível substituir a erosão da sociedade pela
difusão do medo por uma política de coesão Social alicerçada em propósitos
coletivos. A consciência atitudinal e a preservação do Meio Ambiente são um
binômio inseparável no caminho para o desenvolvimento humano.

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89 O grupo originou-se em 1995 a partir de uma convocação do Instituto Tellus e do Instituto do


Meio Ambiente de Estocolmo para envolver um grupo internacional diversificado no exame das
perspectivas para o desenvolvimento mundial no século XXI. “Great transition” é o terceiro livro
de uma trilogia iniciada em 1997 com a obra “Branch Points”, que introduziu o cenário de atuação
do grupo, e foi sucedido pelo livro “Bendinge the Curve”, no ano seguinte, que analisou os riscos
a longo prazo e perspectivas para sustentabilidade no futuro dentro da concepção convencional
de desenvolvimento. As the third in a trilogy, Great Transition builds on the ear- lier Branch Points
(Gallopín et al., 1997), which introduced the GSG’s scenario O grupo de acadêmicos que participou
da publicação é composto por: Paul Raskin, Tariq Banuri, Gilberto Gallopín, Pablo Gutman, Al
Hammond, Robert Kates, Rob Swart. Os estudos desenvolvidos pelo grupo serviram de modelo para
diversas iniciativas regionais e nacionais nos anos seguintes. Mais informações podem ser acessadas
no site institucional: The Great Transition Initiative. Disponível em: <http://www.gsg.org>. Acesso
em: 28 mar. 2018.

112
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

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113
Gobernanza del agua y ods 2030
Agua y Sostenibilidad

Gabriel Real Ferrer

Introducción
Reiterando diversas alertas anteriores, provenientes de varias
organizaciones internacionales, el World Water Council1 advirtió en 2012 que
“las sociedades actuales enfrentan una crisis en el manejo del agua, misma
que podría caracterizarse como una crisis de gobernanza”. En efecto, dado
que el agua es un recurso escaso y necesario, las crecientes tensiones entre
disponibilidad y demanda agravan las disfunciones de algunos modelos de
gestión que únicamente pueden ser satisfactoriamente resueltas mejorando sus
procesos de gobernanza. Incluso en entornos geográficos y jurídico-políticos,
como en España, donde, debido a su secular escasez, tradicionalmente esta
materia ha sido bien abordada, considerándose ejemplar en muchos aspectos2,
es necesario re-considerar sistemáticamente la arquitectura, métodos y
procedimientos de nuestro modelo de gobernanza de cara a asegurar el justo
y suficiente acceso a sus distintos demandantes.
Esta consideración general se refuerza significativamente si pensamos que
este recurso esencial no sólo debe atender las necesidades directas de sus
usuarios, sino que su adecuada gestión es capital para garantizar la sostenibilidad
del Planeta, objetivo global que la Comunidad Internacional ha marcado como
eje insoslayable de todas la políticas públicas. En España y en la gran mayoría
de países se han venido suscribiendo los distintos compromisos internacionales

1 http://www.worldwatercouncil.org/
2 Relativo a España en general, véase el documento del Ministerio de Agricultura, Alimentación y
Medio Ambiente “Sistema Español de Gobernanza del Agua. 2000 años planificando y gestionando
los recursos hídricos con eficacia y seguridad”, disponible en http://www.mapama.gob.es/es/agua/
temas/sistema-espaniol-gestion-agua/
Igualmente puede verse BERGA CASAFONT, Luis, “La gobernanza del agua en España”,
Revista de Obras Públicas, nº 3.507, febrero 2010.

115
Gabriel Real Ferrer

que indican esta dirección y que se sintetizan en los Objetivos de Desarrollo


Sostenible 2015-2030 adoptados el 25 de septiembre de 2015 en la Cumbre de
Naciones Unidas de Nueva York con la presencia de 193 países.
A la satisfacción de las necesidades locales se suman, pues, la responsabilidad
con el Planeta y los compromisos internacionales como objetivos directos que
debe satisfacer una adecuada gestión de agua para lo que resulta imprescindible
su adecuada gobernanza.

II. Concepto Operativo

1. Gobernanza
Ampliando su anterior y escueta definición, como “arte o manera de
gobernar”, modernizándola y precisando mejor su significado, desde su 22ª
edición, en 2001, el diccionario de la Real Academia Española define la
gobernanza como:

“Arte o manera de gobernar que se propone como objetivo el


logro de un desarrollo económico, social e institucional duradero,
promoviendo un sano equilibrio entre el Estado, la sociedad civil y el
mercado de la economía.”

La frecuente utilización del término en las últimas décadas ha propiciado


numerosas definiciones que, en lo sustancial, hacen referencia a un modo
“distinto” de gobernar en el que se abre paso a la participación de múltiples
actores que antes eran totalmente ajenos a la formulación y/o ejecución de las
acciones políticas. Por lo demás y como se verá, existe una gran coincidencia en
los principios que deben inspirar estos nuevos modos de gobernar.
En un interesante estudio realizado bajo los auspicios de la Organización
Latinoamericana y del Caribe de Entidades Fiscalizadoras Superiores
(OLACEFS), titulado “Fundamentos conceptuales sobre la gobernanza”3, se
incluye una tabla denominada “Comparativo de las definiciones de Buena

3 Fundamentos conceptuales sobre la gobernanza, OLACEFS, 2017, disponible en http://www.olacefs.


com/wp-content/uploads/2017/02/11.Fundamentos-conceptuales-sobre-la-Gobernanza.pdf

116
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Gobernanza promovidas por la ONU, el PNUD, la Comisión Europea, el FMI,


la OCDE, el Banco Mundial y la IFAC” que nos da idea de lo que decimos:

117
Gabriel Real Ferrer

En el mismo estudio se hace referencia a una cuestión digna de ser destacada.


La estrecha relación entre las que denominan “Entidades de Fiscalización
Superior” y la buena gobernanza. En nuestro entorno tales “Entidades” se
corresponderían con las instituciones orientadas al control y rendimiento
de cuentas, como los Tribunales de Cuentas, a la transparencia o al control
de legalidad. El control de estas instituciones sobre la buena marcha de las
administraciones públicas, siempre que tales entidades estén imbuidas de esta
cultura, sería determinante para asegurar una mejor gobernanza.

118
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

En el referido trabajo se incluye el siguiente cuadro sobre los “Elementos de


gestión pública que se pueden fortalecer a través de la fiscalización superior”4

En todo modelo de gobernanza deben preverse modelos de control externo


y superior que permitan corregir malas prácticas y estimulen la adopción de
modos de gestión compatibles con esta nueva cultura pública.

2. Gobernanza del agua


La gobernanza del agua no supone más que aplicar los principios y formas de
esta nueva forma de gobierno al sector del agua. Dada su extrema complejidad,
que implica, entre otros, aspectos geográficos, tecnológicos, sociales y
económicos, es lógico que desde múltiples instituciones internacionales se haya

4 Donde: ANAO es Oficina Nacional de Auditoría de Australia; TCU, Tribunal de Cuentas de la


Unión de Brasil y OCDE, Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económicos.

119
Gabriel Real Ferrer

intentado facilitar elementos que contribuyan a su mejora. A través de acciones


como Water Governance Initiative5, la OCDE ha sido especialmente activa
diseñando tanto un “Marco” como un “Ciclo” en la gobernanza del agua.
El “Marco de gobernanza multinivel de la OCDE: Mind the Gaps, Bridge the
Gaps" pretende identificar las principales brechas de gobernanza que, en mayor
o menor medida, puedan identificarse en cualquier país para poder evaluarlas y
planificar y promover actuaciones tendentes a superarlas.

Por su parte, la noción de “Ciclo” y su representación gráfica pretende


contribuir a mejorar la implementación y seguimiento de las mejoras acometidas.

5 http://www.oecd.org/cfe/regional-policy/water-governance-initiative.htm

120
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Dado que, esencialmente, la gobernanza es una nueva forma de entender


las relaciones de poder y la tarea de administrar, suscribimos como concepto de
gobernanza del agua esa nueva forma de gobierno que

“… propone integrar la complejidad técnica, ambiental y social de


la gestión del agua mediante la inclusión de más actores y saberes en
el proceso político de toma de decisiones, además de fomentar una
mayor coordinación vertical entre las Administraciones a diferentes
niveles y horizontal entre los departamentos sectoriales de una misma
Administración pública”.6

Entendemos como factores esenciales de esta definición la ampliación de


los actores llamados a participar en la definición y ejecución de las políticas y
el sostenido esfuerzo en la coordinación, aspectos que, dada la complejidad del

6 BALLESTER, Alba y LA CALLE, Abel, “Gobernanza del Agua. Participación pública en la


Planificación Hidrológica”, Cuadernos Prácticos, Observatorio de Políticas de Agua (OPPA),
Fundación Nueva Cultura del Agua, Zaragoza, 2015, páginas 4 y 5. Disponible en https://fnca.eu/
images/documentos/DOCUMENTOS/201450121_Gu%C3%ADa_Gobernanza_del_Agua.pdf

121
Gabriel Real Ferrer

sector y los diferentes intereses presentes, resultan sin duda inexcusables para
que pueda hablarse de un nuevo modelo de gestión de los intereses públicos.

3. Principios en la Gobernanza del Agua

1. Antecedentes
La gobernanza, como nueva cultura en la gestión de lo público, se
fundamenta más en los principios que deben inspirar las acciones que deben
realizarse para transformar aquellas estructuras y prácticas que pretendemos
mejorar, que en normas o reglas que difícilmente podrían adaptarse a muy
diversas realidades jurídico-políticas.
En este sentido se han realizado múltiples esfuerzos por identificar y definir
aquellos principios que, en el ámbito del agua, deben inspirar los cambios a
introducir para alcanzar los niveles de buena gobernanza a los que se aspira.
Estos intentos arrancan con la “Declaración de Dublín sobre el agua y el
desarrollo sostenible” con la que se concluyó la Conferencia Internacional sobre
el Agua y el Medio Ambiente (CIAMA), mantenida en la ciudad de Dublín
entre el 20 y el 31 de enero de 1992, una reunión técnica previa a la Conferencia
de las Naciones Unidas sobre el Medio Ambiente y Desarrollo (CNUMAD)
que se desarrolló en Rio de Janeiro en junio de 1992.
La Declaración de Dublín, tras llamar la atención sobre las negativas
tendencias entonces existentes, formulaba diversas recomendaciones, en
parte acogidas por la posterior CNUMAD, que debía inspirarse en los
siguientes principios:

Principio Nº 1 – El agua dulce es un recurso finito y vulnerable, esencial


para sostener la vida, el desarrollo y el medio ambiente
Principio Nº 2 – El aprovechamiento y la gestión del agua debe inspirarse
en un planteamiento basado en la participación de los usuarios, los
planificadores y los responsables de las decisiones a todos los niveles.
Principio Nº 3 – La mujer desempeña un papel fundamental en el
abastecimiento, la gestión y la protección del agua.
Principio Nº 4 – El agua tiene un valor económico en todos sus diversos
usos en competencia a los que se destina y debería reconocérsele como
un bien económico.

122
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

A este inicial intento por definir los principios que deben regir la gobernanza
del agua siguieron muchos otros, como “Principles of good governance at different
water governance levels”7 o los contenidos en “User´s Guide for Assessing Water
Governance”8; sin embargo son los propuestos por la OCDE en 2015 los que han
tenido un mayor seguimiento y aceptación.

2. Principios de la OCDE
Con el visto bueno de Consejo Ministerial de la OCDE de 4 de junio de
2015, este organismo ha publicado un documento9 en el que se establece un
listado de doce principios a aplicar en materia de gobernanza del agua que, hoy
por hoy, podemos considerar como la más completa, avanzada y ajustada a las
necesidades de progreso del sector.
Como dice el propio documento, los principios que enuncian “tienen la
intención de contribuir a la creación de políticas públicas tangibles y orientadas
a la obtención de resultados, en base a tres dimensiones de la gobernanza del
agua que mutuamente se refuerzan y complementan:

* La efectividad se refiere a la contribución de la gobernanza en definir


las metas y objetivos sostenibles y claros de las políticas del agua en todos
los órdenes de gobierno, en la implementación de dichos objetivos de
política, y en la consecución de las metas esperadas.

7 Documento presentado al workshop celebrado en marzo de 2011, en Delft (Holanda), organizado por
el International Hydrological Programme (IHP) de la UNESCO. Disponible en https://www.unesco.
nl/sites/default/files/dossier/water_governance.pdg_.pdf
8 Presentado por el PNUD en 2013 en colaboración con diversas instituciones, disponible en http://
www.undp.org/content/undp/en/home/librarypage/democratic-governance/oslo_governance_
centre/user-s-guide-on-assessing-water-governance.html
9 El documento, titulado “Principios de Gobernanza del Agua de la OCDE” fue aprobado por la
Junta Directiva de Gobernanza Pública y Desarrollo Territorial a propuesta de la Iniciativa de
Gobernanza del Agua en forma de Declaración. Fue suscrita por 65 organizaciones, nacionales e
internacionales, de los sectores público y privado, así como del tercer sector, comprometiéndose
a incorporarlos en sus actividades y prácticas. Acuamed, las Confederaciones Hidrográficas del
Segura y del Jucar, Aeas (Asociación Española de Abastecimiento de Agua y Saneamiento) y
Aecid (Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarrollo) fueron las entidades
españolas que suscribieron el documento en el que también colaboró el Ministerio de Agricultura,
Alimentación y Medio Ambiente.
Disponible en https://www.oecd.org/cfe/regional-policy/OECD-Principles-Water-spanish.pdf

123
Gabriel Real Ferrer

* La eficiencia está relacionada con la contribución de la gobernanza en


maximizar los beneficios de la gestión sostenible del agua y el bienestar,
al menor costo para la sociedad.
* La confianza y participación están relacionadas a la contribución de
la gobernanza en la creación de confianza entre la población, y en
garantizar la inclusión de los actores a través de legitimidad democrática
y equidad para la sociedad en general.”

Los principios se articulan en torno a estos tres ejes fundamentales


destinando cuatro de ellos a cada uno de estos ejes.
El documento aclara que los principios se aplican al ciclo general de políticas
del agua y que, como tales principios, no distinguen entre funciones de gestión
del agua (p.ej. suministro de agua potable, saneamiento, protección contra
inundaciones, calidad del agua, cantidad de agua, y aguas pluviales); usos del agua
(p.ej. doméstico, industrial, agricultura, energético y medio ambiental), y propiedad
de la gestión del agua, recursos y bienes (p.ej. público, privado, mixto).
Los principios pretenden introducir mejoras en distintos ámbitos de acción en
los que, naturalmente, las realidades nacionales presentan marcadas diferencias, sin
embargo, su consideración y aplicación pueden sin duda contribuir a mejorar cualquier
sistema de gestión, orientado las políticas hacia la nueva cultura de participación y co-
responsabilidad que pretende la gobernanza del agua. A continuación se presentan
tales principios organizados en los tres ejes a los que antes hacíamos alusión.

2.1 Eficacia

En torno a la eficacia en la gobernanza se proponen los siguientes principios:

Principio 1. Asignar y distinguir claramente los roles y responsabilidades


para el diseño de políticas del agua, la implementación de políticas, la
gestión operativa y la regulación, e impulsar la coordinación entre las
autoridades competentes.
En este sentido, los marcos legales e institucionales deben:
a) Especificar la asignación de roles y responsabilidades en temas de
agua entre todos los órdenes de gobierno e instituciones relacionadas
con el agua:
-Formulación de políticas, particularmente el establecimiento de
prioridades y la planificación estratégica;

124
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

-Implementación de políticas, especialmente de financiamiento y


presupuestarias, datos e información, involucramiento de las partes
interesadas, desarrollo de capacidades y evaluación;
-Gestión operativa, en particular la prestación de servicios, operación e
inversión en infraestructura; y
-Regulación y aplicación, especialmente en el establecimiento de tarifas,
estándares, otorgamiento de concesiones, monitoreo y supervisión,
control y auditorías, y gestión de conflictos.
b) Ayudar a identificar y resolver las brechas, solapamientos y
conflictos a través de una cooperación eficaz en y entre todos los
órdenes de gobierno.

Principio 2. Gestionar el agua a la(s) escala(s) apropiada(s) dentro


del sistema integrado de gobernanza por cuenca para así poder
reflejar las condiciones locales, e impulsar la coordinación entre las
diferentes escalas.
En este sentido, las prácticas y herramientas de gestión del agua deben:
a) Responder a objetivos ambientales, económicos y sociales a largo plazo
con el propósito de hacer el mejor uso de los recursos hídricos a través
de la prevención de riesgos y la gestión integrada de recursos hídricos;
b) Fomentar una gestión sólida del ciclo hidrológico desde la captación
y distribución de agua dulce hasta los vertidos de agua residuales y los
flujos de retorno;
c) Promover estrategias de adaptación y mitigación, programas y medidas
de acción basados en mandatos claros y coherentes, mediante planes de
gestión de cuenca que sean consistentes con las políticas nacionales y las
condiciones locales;
d) Promover la cooperación multinivel entre los usuarios, los actores y
los órdenes de gobierno para la gestión de los recursos hídricos; y,
e) Mejorar la cooperación ribereña del uso de recursos hídricos
transfronterizos.

Principio 3. Fomentar la coherencia de políticas a través de la


coordinación transversal eficaz, especialmente entre políticas de agua y
medio ambiente, salud, energía, agricultura, industria, y planeamiento y
ordenación del territorio, a través de:
a) Fomentar los mecanismos de coordinación para facilitar las políticas
coherentes entre ministerios, agencias públicas y órdenes de gobierno,
incluyendo los planes intersectoriales;

125
Gabriel Real Ferrer

b) Impulsar la gestión coordinada del uso, protección y mejora de la


calidad de los recursos hídricos, teniendo en cuenta las políticas que
afectan la disponibilidad, calidad y demanda del agua (p.ej. agricultura,
forestal, minera, energética, pesquera, transportes, recreativa y
navegación) así como la prevención de riesgos;
c) Identificar, evaluar y superar las barreras a la coherencia de las
políticas mediante prácticas, políticas y regulaciones dentro y fuera del
sector del agua, mediante el monitoreo, informes y análisis; y
d) Proporcionar incentivos y regulaciones para mitigar los conflictos
entre las estrategias sectoriales, alineando estas estrategias con las
necesidades de la gestión del agua y encontrando soluciones que se
ajusten a la gobernanza y las normas locales.

Principio 4. Adaptar el nivel de capacidad de las autoridades responsables


a la complejidad de los desafíos del agua que deben afrontar, y a la serie
de competencias necesarias para llevar a cabo sus funciones, a través de:
a) Identificar y abordar las brechas de capacidades existentes para la
implementación de una gestión integrada de los recursos hídricos,
particularmente para la planeación, formulación de normas, gestión de
proyectos, financiación, presupuestos, recolección de datos y monitoreo,
y la gestión y evaluación de riesgos;
b) Adecuación del nivel de capacidad técnica, financiera e institucional de
los sistemas de gobernanza del agua con el tipo de problemas y necesidades;
c) Fomentar la asignación, adaptable y evolutiva de competencias a la
demostración de la capacidad, cuando proceda;
d) Promover la contratación de funcionarios públicos y profesionales del
agua utilizando procesos transparentes y en base al mérito, que sean
independientes de los ciclos políticos; y
e) Promover la formación y capacitación de los profesionales del agua
para fortalecer las capacitaciones de las instituciones del agua así como
de los actores en general, e impulsar la cooperación y el intercambio de
conocimiento.

2.2 Eficiencia
Principio 5. Producir, actualizar, y compartir de manera oportuna datos
e información consistentes, comparables y relevantes relativos al tema
del agua, y utilizarlos para guiar, evaluar y mejorar las políticas del agua,
a través de:

126
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

a) Definir los requisitos para la producción y utilización de metodologías


rentables y sostenibles destinadas al intercambio de información y datos
del agua, y cuestiones afines, de alta calidad, p.ej. el estado de los recursos
hídricos, el financiamiento del agua, las necesidades ambientales, las
características socio-económicas y el mapeo institucional;
b) Impulsar la coordinación eficaz y el intercambio de experiencias
entre las organizaciones y agencias que producen datos relacionados
con el agua, entre productores y usuarios de datos, y entre los órdenes
de gobierno;
c) Promover el involucramiento de las partes interesadas en el diseño e
implementación de sistemas de información sobre el agua, y proporcionar
orientación sobre cómo esa información debe ser compartida para
impulsar la transparencia, confianza y comparabilidad (p.ej. bancos de
datos, informes, mapas, diagramas, observatorios);
d) Fomentar el diseño de sistemas de información armónicos y consistentes
a escala de cuenca, incluso en el caso de aguas transfronterizas, para
impulsar la confianza mutua, reciprocidad y comparabilidad en el marco
de acuerdos entre países ribereños; y
e) La revisión de la recolección, intercambio, y difusión de datos para identificar
superposiciones y sinergias y rastrear la sobrecarga de datos innecesarios.

Principio 6. Asegurar que los marcos de gobernanza ayuden a movilizar


las finanzas del agua y a asignar los recursos financieros de manera
eficiente, transparente y oportuna, a través de:
a) Promover disposiciones de gobernanza que ayuden a las instituciones
del agua en todos los órdenes de gobierno a recaudar los ingresos
necesarios para cumplir sus mandatos mediante la creación de principios
tales como el que contamina paga y el usuario paga, y también a través
de pagos por servicios ambientales;
b) Realizar estudios sectoriales y una planeación estratégica financiera
para evaluar las necesidades operacionales y de inversión a corto,
mediano y largo plazo, y adoptar las medidas necesarias que contribuyan
a asegurar la disponibilidad y sostenibilidad de dicho financiamiento;
c) La adopción de prácticas sólidas y transparentes para la elaboración
de presupuestos y contabilidad, que proporcionen una imagen clara de
las actividades del agua y cualquier obligación contingente asociada,
incluyendo la inversión en infraestructura, y la alineación de planes
estratégicos plurianuales a los presupuestos anuales y a las prioridades a
mediano plazo de los gobiernos;

127
Gabriel Real Ferrer

d) La adopción de mecanismos que fomenten la asignación eficiente y


transparente de los fondos públicos relativos al agua (p.ej. a través de
contratos sociales, hojas de puntuación, y auditorías); y
e) Reducir al mínimo las cargas administrativas innecesarias relacionadas
con el gasto público preservando las garantías fiduciarias y fiscales.

Principio 7. Asegurar que los marcos regulatorios sólidos de gestión del


agua sean implementados y aplicados de manera eficaz en pos del interés
público, a través de:
a) Asegurar un marco legal e institucional comprensible, coherente
y predecible que establezca las reglas, normas y directrices para la
consecución de resultados de las políticas del agua, y fomentar la
planificación integrada a largo plazo;
b) Asegurar que las funciones regulatorias clave se lleven a cabo en
todos los organismos públicos, instituciones especializadas y órdenes de
gobierno, y que la autoridades regulatorias estén dotadas de los recursos
necesarios;
c) Asegurar que las normas, instituciones y procesos estén bien
coordinados, sean transparentes, no discriminatorios, participativos y
fáciles de comprender y aplicar;
d) Fomentar el uso de herramientas de regulación (mecanismos de consulta
y evaluación) para impulsar la calidad de los procesos de regulación y
poner los resultados a disposición del público, según proceda;
e) Establecer reglas de aplicación, procedimientos, incentivos y
herramientas claros y transparentes (incluyendo incentivos y sanciones)
para promover el cumplimiento y la consecución de los objetivos
regulatorios de manera rentable; y
f) Asegurar que los recursos eficaces puedan reclamarse a través de un
acceso no discriminatorio a la justicia, teniendo en cuenta la gama de
opciones según corresponda.

Principio 8. Promover la adopción e implementación de prácticas de


gobernanza del agua innovadoras entre las autoridades competentes, los
órdenes de gobierno y los actores relevantes, a través de:
a) Fomentar la experimentación y pruebas piloto sobre la gobernanza del
agua, aprovechando la experiencia adquirida de los logros y fracasos y
ampliando las prácticas que puedan replicarse;
b) Promover el aprendizaje social para facilitar el diálogo y la creación
de consenso, por ejemplo, a través de las plataformas de redes, redes

128
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

sociales, Tecnologías de la Información y Comunicación (TICs) y la


interfaz de uso fácil (p. ej. mapas digitales, Big Data, datos inteligentes,
y datos abiertos), y otros medios;
c) Promover formas innovadoras para cooperar, aunar recursos y
capacidades, construir sinergias entre sectores buscando mayor
eficiencia, especialmente a través de la gobernanza metropolitana,
colaboración intermunicipal, colaboraciones urbano-rurales, y contratos
basados en el desempeño; y
d) Promover una sólida interfaz científico-normativa para contribuir a una
mejor gobernanza del agua y reducir la brecha entre los descubrimientos
científicos y las prácticas de gobernanza del agua.

2.3 Confianza y participación


Principio 9. Incorporar prácticas de integridad y transparencia en todas
las políticas del agua, instituciones del agua y marcos de gobernanza del
agua para una mayor rendición de cuentas y confianza en la toma de
decisiones, a través de:
a) Promover marcos legales e institucionales que obligan a quienes
toman las decisiones y a los actores a rendir cuentas, como el derecho a
la información y a la investigación de las cuestiones relativas al agua y al
cumplimiento de la ley por parte de autoridades independientes;
b) Fomentar normas, códigos de conducta o cartas de integridad
y transparencia en contextos nacionales o locales y monitorear su
implementación;
c) Establecer mecanismos claros de control y rendición de cuentas para
un diseño e implementación de políticas de agua transparente;
d) Diagnosticar y mapear regularmente generadores de corrupción
existentes o potenciales y los riesgos en todas las instituciones relacionadas
con el agua en los diferentes niveles, incluyendo la adjudicación de
contratos públicos; y
e) La adopción de enfoques multi-actores, herramientas especializadas y
planes de acción para identificar y abordar las brechas de transparencia
e integridad del agua y (p.ej. pactos/escaneos de integridad, análisis de
riesgos, testigos sociales).

Principio 10. Promover el involucramiento de las partes interesadas


para que coadyuven de manera informada y orientada a resultados en el
diseño e implementación de políticas del agua, a través de:

129
Gabriel Real Ferrer

a) Realizar un mapeo de los actores públicos, privados, y sin fines de


lucro que tengan interés en el resultado o que sean susceptibles a ser
afectados por las decisiones relacionadas con el agua, así como sus
responsabilidades, motivaciones fundamentales, e interacciones;
b) Prestar especial atención a las categorías subrepresentadas (jóvenes,
mujeres, población indígena, usuarios domésticos), emergentes
(promotores inmobiliarios, inversionistas institucionales) y otros actores
e instituciones relacionados con el agua;
c) Definir la línea de toma de decisiones y el uso previsto de las aportaciones
de los actores, y mitigar los desequilibrios de poder y los riesgos de la
captura de consulta por parte de los sobrerrepresentados o categorías
excesivamente vocales, así como entre voces expertas e inexpertas;
d) Fomentar el desarrollo de capacidades de los actores relevantes así
como la información precisa, oportuna y fiable, según proceda;
e) Evaluar el proceso y los resultados del involucramiento de las partes
interesadas para aprender, ajustar, y mejorar en consecuencia, incluyendo
la evaluación de los costos y beneficios de los procesos de participación;
f) La promoción de marcos jurídicos e institucionales, estructuras
de organización y autoridades responsables que sean propicios al
involucramiento de las partes interesadas, teniendo en cuenta las
circunstancias, necesidades, y capacidades locales; y
g) Personalizar el tipo y nivel de involucramiento de las partes interesadas
a las necesidades y mantener el proceso flexible para adaptarse a las
circunstancias cambiantes.

Principio 11. Fomentar marcos de gobernanza del agua que ayuden a


gestionar los arbitrajes entre usuarios del agua, áreas rurales y urbanas, y
generaciones, a través de:
a) Fomentar la participación no discriminatoria en la toma de decisiones
entre los grupos vulnerables, especialmente las personas que habitan en
zonas remotas;
b) Autorizar a las autoridades locales y usuarios a identificar y superar
las barreras para el acceso a los recursos y servicios de agua de calidad,
y promover la cooperación rural-urbana incluso mediante una mayor
cooperación entre las instituciones de agua y planificadores territoriales;
c) Promover el debate público sobre los riesgos y costos asociados a
“demasiada agua”, “muy poca agua” y “agua demasiado contaminada”
para concientizar, y crear consenso sobre quién paga qué, y contribuir a
una mejor asequibilidad y sostenibilidad ahora y en el futuro; y

130
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

d) Fomentar la evaluación basada en la evidencia de las consecuencias


distributivas de las políticas relacionadas con el agua en los ciudadanos,
usuarios de agua y lugares para guiar la toma de decisiones.

Principio 12. Promover el monitoreo y evaluación habitual de las políticas de


agua y de la gobernanza del agua cuando proceda, compartir los resultados
con el público y realizar ajustes cuando sea necesario, a través de:
a) Promover que las instituciones especializadas en monitoreo y
evaluación, estén dotadas de la suficiente capacidad, del apropiado grado
de independencia y recursos, así como de los instrumentos necesarios;
b) Desarrollar mecanismos fiables de monitoreo e información para
guiar eficazmente la toma de decisiones;
c) Evaluar en qué medida las políticas del agua cumplen con los resultados
y si los marcos de gobernanza del agua son adecuados para su finalidad; y
d) Fomentar el intercambio oportuno y transparente de los resultados de
la evaluación y adaptar las estrategias a medida que la nueva información
esté disponible.

3. Agua y Objetivos de Desarrollo Sostenible 2015-2030


Los Objetivos de Desarrollo Sostenible 2015-2030, que vienen a sustituir y
ampliar los Objetivos del Milenio 2000-2015, promovidos por Naciones Unidas
y suscritos por la práctica totalidad de los países del Planeta constituyen la guía
de acción que se ha marcado la Humanidad para los próximos años como único
camino para detener y revertir el proceso de deterioro, no sólo ambiental, sino
también social, que pone en peligro la digna supervivencia de la especie10.
En sus 17 objetivos se contemplan los más graves riesgos colectivos que
enfrentamos entre los que no podía faltar la necesidad de disponer de agua. Los
Objetivos, que se desagregan en 169 metas, son los siguientes:

Objetivo 1. Poner fin a la pobreza en todas sus formas y en todo el mundo


Objetivo 2. Poner fin al hambre, lograr la seguridad alimentaria y la
mejora de la nutrición y promover la agricultura sostenible

10 Para mayor información, véase el documento “Memoria del Secretario General sobre la labor de
la Organización” (Asamblea General. Documentos Oficiales. Septuagésimo período de sesiones.
Suplemento núm. 1; A/70/1) Disponible en http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/70/1

131
Gabriel Real Ferrer

Objetivo 3. Garantizar una vida sana y promover el bienestar de todos a


todas las edades
Objetivo 4. Garantizar una educación inclusiva y equitativa de calidad y
promover oportunidades de aprendizaje permanente para todos
Objetivo 5. Lograr la igualdad de género y empoderar a todas las mujeres
y las niñas
Objetivo 6. Garantizar la disponibilidad y la gestión sostenible del agua
y el saneamiento para todos
Objetivo 7. Garantizar el acceso a una energía asequible, fiable, sostenible
y moderna para todos
Objetivo 8. Promover el crecimiento económico sostenido, inclusivo y
sostenible, el empleo pleno y productivo y el trabajo decente para todos
Objetivo 9. Construir infraestructuras resilientes, promover la
industrialización inclusiva y sostenible y fomentar la innovación
Objetivo 10. Reducir la desigualdad en los países y entre ellos
Objetivo 11. Lograr que las ciudades y los asentamientos humanos sean
inclusivos, seguros, resilientes y sostenibles
Objetivo 12. Garantizar modalidades de consumo y producción sostenibles
Objetivo 13. Adoptar medidas urgentes para combatir el cambio
climático y sus efectos
Objetivo 14. Conservar y utilizar sosteniblemente los océanos, los mares
y los recursos marinos para el desarrollo sostenible
Objetivo 15. Proteger, restablecer y promover el uso sostenible de los
ecosistemas terrestres, gestionar sosteniblemente los bosques, luchar
contra la desertificación, detener e invertir la degradación de las tierras
y detener la pérdida de biodiversidad
Objetivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para el desarrollo
sostenible, facilitar el acceso a la justicia para todos y construir a todos
los niveles instituciones eficaces e inclusivas que rindan cuentas
Objetivo 17. Fortalecer los medios de implementación y revitalizar la
Alianza Mundial para el Desarrollo Sostenible
El Objetivo 611 es el que pone el foco en asegurar la disponibilidad de agua y
saneamiento para todos, para lo que establece las siguientes metas12:

11 Al respecto, véase el documento “Seguimiento en Materia de Agua y Saneamiento en la Agenda


2030 para el Desarrollo Sostenible. Una introducción”, en www.unwater.org/sdgs/en/
12 Las metas se distinguen según se identifiquen por números o por letras. Las primeras tienen que ver sobre
los resultados concretos a alcanzar, las segundas sobre los medios de implementación de los objetivos.

132
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

6.1 De aquí a 2030, lograr el acceso universal y equitativo al agua potable


a un precio asequible para todos
6.2 De aquí a 2030, lograr el acceso a servicios de saneamiento e higiene
adecuados y equitativos para todos y poner fin a la defecación al aire
libre, prestando especial atención a las necesidades de las mujeres y las
niñas y las personas en situaciones de vulnerabilidad
6.3 De aquí a 2030, mejorar la calidad del agua reduciendo la
contaminación, eliminando el vertimiento y minimizando la emisión
de productos químicos y materiales peligrosos, reduciendo a la mitad el
porcentaje de aguas residuales sin tratar y aumentando considerablemente
el reciclado y la reutilización sin riesgos a nivel mundial
6.4 De aquí a 2030, aumentar considerablemente el uso eficiente de los
recursos hídricos en todos los sectores y asegurar la sostenibilidad de
la extracción y el abastecimiento de agua dulce para hacer frente a la
escasez de agua y reducir considerablemente el número de personas que
sufren falta de agua
6.5 De aquí a 2030, implementar la gestión integrada de los recursos
hídricos a todos los niveles, incluso mediante la cooperación
transfronteriza, según proceda
6.6 De aquí a 2020, proteger y restablecer los ecosistemas relacionados
con el agua, incluidos los bosques, las montañas, los humedales, los ríos,
los acuíferos y los lagos
6.a De aquí a 2030, ampliar la cooperación internacional y el apoyo
prestado a los países en desarrollo para la creación de capacidad en
actividades y programas relativos al agua y el saneamiento, como los de
captación de agua, desalinización, uso eficiente de los recursos hídricos,
tratamiento de aguas residuales, reciclado y tecnologías de reutilización
6.b Apoyar y fortalecer la participación de las comunidades locales en la
mejora de la gestión del agua y el saneamiento

Cierto es que afortunadamente en nuestro entorno la mayor parte de las


metas propuestas han sido alcanzadas, pero hay algunas que debemos reforzar
(6.a Cooperación internacional) o en las que queda camino por recorrer (6.6
Restablecer los ecosistemas relacionados con el agua) o, en otro orden de cosas,
debemos progresar en la universalización del saneamiento y en la reutilización
de las aguas residuales, entendidas como recurso.13 La consecución de estos

13 En esta línea se orienta el Informe Mundial sobre el Desarrollo de los Recursos Hídricos de Naciones
Unidas, 2017 que no en vano se titula “Las Aguas residuales. El recurso desaprovechado”. Un

133
Gabriel Real Ferrer

propósitos deben apoyarse en la innovación que, por ejemplo, en el ámbito


europeo, impulsa la Asociación Europea para la Innovación en materia de agua
(AEI Agua) que a finales de septiembre de este mismo año (2017) celebró su 4ª
Conferencia en Oporto14.
En materia de gobernanza, se alude en las Metas del Objetivo 6 a “…
implementar la gestión integrada de los recursos hídricos a todos los niveles,…”
(6.5) o a “Apoyar y fortalecer la participación de las comunidades locales en la
mejora de la gestión del agua y el saneamiento” (6.b) pero en los ODS también
se encuentran otras metas relacionadas con la gobernanza en general que son
de directa aplicación a la del agua. Así, en el Objetivo 16 “Promover sociedades
justas, pacíficas e inclusivas” se incluyen las metas 6 y 7 que dicen:

16.6 Crear a todos los niveles instituciones eficaces y transparentes que


rindan cuentas
16.7 Garantizar la adopción en todos los niveles de decisiones inclusivas,
participativas y representativas que respondan a las necesidades

También debería ser un objetivo en nuestros deseos de mejora de la


gobernanza del agua reducir las posibilidades de que “… la corrupción y el
soborno en todas sus formas” (Meta 16.5) tengan cabida en nuestro modelo
de gestión. La mejora, pues, de nuestra gobernanza del agua es un compromiso
que hemos adquirido frente a la Comunidad Internacional y frente a las
futuras generaciones.

resumen ejecutivo en http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002475/247552s.pdf


14 Véase “La innovación, fuente de nuevas ideas para la gestión del Agua en la Unión Europea”. Revista
Medio Ambiente para los Europeos, 21/09/2017. Disponible en https://ec.europa.eu/environment/efe/
themes/water-marine-and-coast/innovation-fount-new-ideas-eu-water-management_es

134
Poluição hídrica e os desafios dos
contaminantes emergentes

Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes1


Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida2

Introdução
Houve um tempo em que os homens se serviam da água direto da fonte. A
água era límpida, cristalina e pura. A história conta que as civilizações foram
formadas próximas aos cursos d’água. Guerras ocorreram e ainda ocorrem em
razão do domínio da água. Entretanto, a qualidade da água dos dias atuais deixa
a desejar.
As águas doces correm para o mar, neste encontro tudo o que é carreado
pela força dos rios alcança os oceanos. E o homem, hodiernamente, quase

1 Professora de Direito da Faculdade de Ciências Aplicadas – FCA/UNICAMP e do Programa de


Pós Graduação em Ensino e História das Ciências da Terra (PEHCT) do Instituto de Geociências
da UNICAMP. Doutora e Mestre em Direito Ambiental pela PUCSP. Associada fundadora
da APRODAB. Titular da Comissão Estadual de Logística, Infraestrutura e Desenvolvimento
Sustentável da OABSP. Advogada e Consultora Ambiental. Autora das obras “Águas e sua proteção”
e “Águas Subterrâneas e a legislação brasileira”, ambos pela Editora Juruá, e dos livros infantis de
educação ambiental para água: “Clara: uma gotinha d’água”, “Clara e a reciclagem” e “Clara e as
águas invisíveis”. Contato: luciana.fernandes@fca.unicamp.br
2 Professora do Departamento de Direitos Difusos e Coletivos da Faculdade de Direito da PUC/SP e
do Núcleo de Pesquisa em Direitos Difusos e Coletivos do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Direito da PUC/SP. Coordenadora da Especialização em “Direito Ambiental e Gestão Estratégica
da Sustentabilidade” (PUC/COGEAE/SP). Professora e pesquisadora do Programa de Mestrado
"Concretização dos Direitos Sociais, Difusos e Coletivos" do Centro Universitário Salesiano de
São Paulo-UNISAL/Lorena-SP. Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Desembargadora
Federal (TRF 3ª Região) e membro da Diretoria da Escola de Magistrados da Justiça Federal da
3ª Região (EMAG). Associada fundadora da APRODAB. Publicações: “Tutela dos Direitos
Difusos e Coletivos”(autora); “Recursos Hídricos: aspectos éticos, jurídicos, econômicos e
socioambientais”;"Temas Fundamentais de Direitos Difusos e Coletivos - Desafios e Perspectivas";
"Política Nacional, Gestão e Gerenciamento de Resíduos Sólidos"; "Direito Minerário e Direito
Ambiental: Fundamentos e Tendências; “Finanças sustentáveis e a responsabilidade socioambiental
das instituições financeiras” (co-coordenadora e coautora).Contato: cyoshida@trf3.jus.br

135
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

não encontra fontes potáveis de água, a qualidade da água doce se perdeu e


os mares do planeta estão comprometidos com a poluição e a contaminação
decorrentes deste descuidado.
Diversas são as atividades antrópicas a afetar a água, seu equilíbrio e vida
nela presente. Na linha do tempo, a Revolução Industrial pode ser apontada
como ponto de partida para este descuidar ambiental, pela proliferação da po-
luição e da contaminação da água no planeta Terra.
No Brasil a situação não é diferente, detentor de aproximadamente 13% da
água doce em estado líquido, padece pela falta de segurança hídrica, pois ape-
sar desta riqueza e de todo conhecimento técnico, científico e legal existente,
não zela por seu potencial ambiental. O Poder político, por vezes, apresenta o
meio ambiente como um entrave para o crescimento econômico, posto que a
expressão “desenvolvimento sustentável” se tornou palavra da moda, acrescida
a discursos por alguns representantes do povo. Porém, ações efetivas e contun-
dentes para mudança de paradigmas, para transformar o cenário do líquido da
vida como bem fundamental, ainda são insipientes.
Exemplo disto ocorreu em novembro de 2015, na cidade de Mariana – MG,
onde o rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração matou um
importante rio que atravessa os estados de Minas Gerais e Espírito Santo até
alcançar o mar, colecionando uma enormidade de impactos negativos para a
natureza, para o ser humano e para a economia brasileira.

O rompimento da barragem de rejeitos da Samarco em 05 de novem-


bro de 2015 - que destruiu o distrito mineiro de Bento Rodrigues - é o
maior desastre do gênero da história mundial nos últimos 100 anos. Se
for considerado o volume de rejeitos despejados - 50 a 60 milhões de
metros cúbicos - o acidente em Mariana (MG) equivale, praticamente,
à soma dos outros dois maiores acontecimentos do tipo já registrados
no mundo - ambos nas Filipinas, um em 1982, com 28 milhões de m³;
e outro em 1992, com 32,2 milhões de m³ de lama. Os dados estão
presentes em estudo da Bowker Associates - consultoria de gestão de
riscos relativos à construção pesada, nos Estados Unidos - em parceria
com o geofísico David Chambers3.

3 Noelle Oliveira. http://www.capitalnews.com.br/nacional/desastre-em-mariana-e-o-maior-acidente-


mundial-com-barragens-em-100-anos/287041, acesso em 05/02/2018.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Neste previsível acidente podemos destacar toda sorte de danos e impactos


ambientais, à vida, à água, ao solo, à fauna, à flora, ao patrimônio cultural, à
economia, ao turismo, ao trabalho, às futuras gerações e assim por diante. Os
números desta tragédia socioambiental foram divulgados pelo Portal Brasil4

Seiscentos e sessenta e três quilômetros de rios e córregos foram atin-


gidos; 1.469 hectares de vegetação, comprometidos; 207 de 251 edifica-
ções acabaram soterradas apenas no distrito de Bento Rodrigues. Esses
são apenas alguns números do impacto, ainda por ser calculado, do de-
sastre, já considerado a maior catástrofe ambiental da história do país.
A enxurrada de rejeitos rapidamente se espalhou pela região, deixou
mais de 600 famílias desabrigadas e chegou até os córregos próximos.
Até o momento, foram confirmadas as mortes de 17 pessoas.
Em questão de horas, a lama chegou ao rio Doce, cuja bacia é a maior da
região Sudeste do País - a área total de 82.646 quilômetros quadrados é
equivalente a duas vezes o Estado do Rio de Janeiro.
O aumento da turbidez da água, e não uma suposta contaminação, pro-
vocou a morte de milhares de peixes e outros animais. De acordo com o
Ibama, das mais de 80 espécies de peixes apontadas como nativas antes
da tragédia, 11 são classificadas como ameaçadas de extinção e 12 exis-
tiam apenas lá.
O fornecimento de água para os moradores de cidades abastecidas pelos
rios da região, como Governador Valadares, em Minas Gerais, teve que
ser temporariamente interrompido, sendo retomado dias depois, quando
laudos de órgãos técnicos do governo descartaram a contaminação da
água por materiais tóxicos.
A lama avançou pelo rio com grande velocidade, chegando ao Espírito
Santo em menos de cinco dias. No dia 21, alcançou o mar em Linhares
– blocos de contenção foram posicionados na foz do rio para controlar o
impacto ambiental da chegada da lama ao mar.

E enquanto finalizávamos este texto, nos deparamos com mais uma ocor-
rência de poluição hídrica de grandes proporções, onde o descaso e a insusten-
tabilidade ambiental são novamente evidenciados:

4 PORTAL BRASIL. Disponível em http://www.brasil.gov.br/meio-ambiente/2015/12/entenda-o-


acidente-de-mariana-e-suas-consequencias-para-o-meio-ambiente, acesso em 05/02/2018.

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Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

Nesta quinta-feira (22/02/18), um laudo do Instituto Evandro Chagas


confirmou a contaminação em diversas áreas de Barcarena provocada
pelo vazamento das barragens de rejeitos de bauxita da Hydro Alunorte.
(...) Segundo o Ibama, em 2009, o vazamento colocou a população local
em risco e gerou mortandade de peixes e destruição significativa da bio-
diversidade. O órgão aplicou três autos de infração à empresa Alumia do
Norte do Brasil (Alunorte) em decorrência de poluição pelo lançamento
de bauxita no rio Murucupi.(...)Desde 2006 o Ministério Público Federal
exige que a Albras e a Hydro Alunorte, ao lado de outras quatro mine-
radoras do polo industrial de Barcarena, forneçam "em caráter emer-
gencial" dois litros diários de água potável por morador e "indenizem os
danos ambientais e à população afetada pela contaminação"5.

Na maioria das vezes, para a imprensa e a população em geral, apenas houve


mais um grave acidente ambiental. Embora saiba das consequências nefastas
para o meio ambiente, suas águas, o solo, a fauna e a flora, para a vida das
presentes e futuras gerações, a maioria ainda desconhece que água contendo
resíduos destes e de outros produtos pode chegar às nossas torneiras.
Vale anotar que qualquer que seja a poluição hídrica, as consequências
advindas perpassam as normas técnicas de qualidade da água. E sobre estes
aspectos pretendemos apresentar diversos dados, com foco predominante na
qualidade das águas doces do Brasil e fazer um alerta para a presença dos cha-
mados contaminantes emergentes presentes após tratamento convencional da
água que nos é servida.

2. Poluição da água
A Política Nacional de Meio Ambiente – Lei 6938/1981, conceitua poluição
com sendo a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta
ou indiretamente, prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; afetem desfavoravel-
mente a biota; afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; lan-
cem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.

5 G1. PA-Belém. 23/02/2018. Hydro Alunorte, acusada de vazamento de rejeitos, já foi multada em
2009 por esse crime. Disponível em https://g1.globo.com/pa/para/noticia/hydro-alunorte-acusada-
de-vazamento-de-rejeitos-ja-foi-multada-em-2009-por-esse-crime.ghtml. Acesso em 23/02/2018

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Como visto, a imprensa tem noticiado muitos casos de danos ambientais,


notadamente à água e ao solo, diversas destas notícias são relacionadas à ocor-
rência de acidentes, derramamentos pontuais de produtos químicos tóxicos, po-
luentes capazes de contaminar a água, tornando-a inservível.
De acordo com Armando Henrique Dias Cabral6, a poluição da água apre-
senta aspectos de:

Toxidez de numerosos compostos sintéticos, que alteram profundamen-


te as funções vitais dos organismos aquáticos, podendo afetar a mul-
tiplicação celular, a reprodução etc.; radioatividade, que causa graves
danos, inclusive alterações genéticas nos organismos aquáticos e no ho-
mem que os consumir; biodegradabilidade nula ou insuficiente, que
se caracteriza por substâncias resistentes à ação dos organismos que as
decompõem; como não são eliminadas (ou são eliminadas muito lenta-
mente) do meio receptor pela autodepuração, seu teor pode sofrer um
rápido aumento; eutroficação, que é a devida ao enriquecimento exces-
sivo das águas por sais nutritivos, p. ex., nitratos, fosfatos, oriundos de
detergentes, decorrentes de terras agrícolas ou de despejos industriais e
urbanos; degradação das qualidades organolíticas das águas, pois os
dejetos despejados dão à água gosto e cheiro desagradável, o que vem a
repercutir nas qualidades alimentares dos organismos aquáticos, como,
p. ex., os peixes, que se podem tornar inconsumíveis; temperatura, uma
vez que os dejetos de águas quentes oriundas de esgotos e de câmaras de
resfriamento industrial modificam o regime térmico das águas, afetando
a fauna e a flora aquática. (grifamos)

Entretanto, temos que

O principal fator de poluição dos recursos hídricos resulta de lançamen-


tos de resíduos provenientes de atividades industriais, comerciais ou resi-
denciais, consistentes de substâncias orgânicas ou minerais, naturais ou
sintéticas, algumas das quais são mais ou menos biodegradáveis e outras
tóxicas para a flora e a fauna aquáticas, assim como para o homem7.

Complementando, destacamos fato corriqueiro que pouco ou nunca é ma-


téria jornalística, que se refere ao derramamento contínuo, dia após dia, gota

6 Armando Henrique Dias Cabral, Proteção ambiental e seus instrumentos jurídicos, p. 3 e 4.


7 Luciana Cordeiro de Souza, Águas e sua Proteção, p. 56.

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Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

por gota, até encharcar o solo alcançando lençol freático e aquífero a poluir
as aguas subterrâneas.

As águas subterrâneas sofrem constantes riscos de contaminação, pois,


a cada dia mais ouvimos falar sobre vazamentos, derramamentos de pro-
dutos tóxicos, ou seja, fontes pontuais de contaminação, mas não aten-
tamos para problemas mais graves que caracterizam riscos sérios tanto
à água como à vida. Trata-se de fontes contínuas de poluição das águas
subterrâneas, e os técnicos têm buscado informações sobre essas fontes
que estão a comprometer a qualidade de nossos recursos hídricos subter-
râneos. São essas as principais fontes de contaminação das águas sub-
terrâneas: postos de gasolina, aterros/lixões, suinocultura, cemitérios,
agricultura, atividades minerárias, etc.8

Para exemplificar a citação acima, há um caso que pouco frequentou a im-


prensa, ocorrido na cidade de São Paulo, na zona sul – Jurubatuba - a conta-
minação do Sistema Aquífero Cristalino por organoclorados, que necessitou de
tamponamento de todos os poços contaminados. Esta ocorrência é considerada
como a maior área contaminada do planeta.

Em função das altas concentrações de contaminantes (solventes halo-


genados) e da confirmação de que as plumas de contaminação extrapo-
lavam a área da empresa (Gillete), atingindo camadas mais profundas
dos aquíferos existentes na área, a CETESB decidiu emergencialmente
realizar a amostragem e análises químicas das águas subterrâneas em
poços de abastecimento localizados na vizinhança.
(...)
Paralelamente às ações de controle emergenciais, a CETESB – desde
os instantes iniciais da detecção do problema – iniciou as atividades de
gerenciamento das áreas contaminadas, iniciando o processo de identi-
ficação das fontes prioritárias que possam ter causado a contaminação,
atividade de vital importância no desenvolvimento de ações de geren-
ciamento regionais.9

A presença destes contaminantes na água pode levar a morte, a depender


das concentrações, tempo de exposição e imunidade do indivíduo, pois muitos

8 Luciana Cordeiro de Souza, Águas subterrâneas e a legislação brasileira, p. 82.


9 CETESB. Disponível em http://areascontaminadas.cetesb.sp.gov.br/jurubatuba/, acesso em 05/02/18.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

contaminantes continuam presentes na água, mesmo após tratamento conven-


cional realizado pela concessionária de água. Por isso, os chamados “contami-
nantes emergentes” presentes nos corpos hídricos do país devem ser discutidos.

3. Contaminantes emergentes: os novos poluentes


Estamos expostos diuturnamente a toda sorte de agentes externos agresso-
res, o ser humano é parte do todo - natureza -, e toda vez que a agride, sofre
consequências. O descuidado com a água e com o solo, o uso e o descarte inde-
vido de produtos químicos tóxicos e a ignorância sobre os efeitos de produtos do
dia-a-dia, está a comprometer a saúde das presentes e futuras gerações.

"O ser humano, por mais que finja o contrário, é parte da natureza.
Será que ele conseguirá escapar de uma poluição que agora está tão
amplamente disseminada pelo mundo?", indagou a bióloga e naturalis-
ta americana Rachel Carson em sua obra máxima Primavera Silenciosa,
que deflagraria, da década de 1960 em diante, uma revolução nos mo-
vimentos ambientalistas mundiais. O algoz era o DDT (sigla de diclo-
rodifeniltricloroetano). Surgido nos anos pós-Segunda Guerra Mundial,
o inseticida foi amplamente empregado em vários países do mundo, in-
cluindo o Brasil, para conter a expansão de epidemias de malária e tifo.
A nocividade do pesticida DDT, porém, não se restringia aos mosquitos
vetores de doenças ou a pragas do campo. Seus efeitos tóxicos atingiam
toda forma de vida, principalmente pássaros e predadores naturais das
pestes. Pulverizado indiscriminadamente no ambiente, sobretudo em
plantações agrícolas, o produto contaminava solo, ar e água. O DDT e
outros venenos encontravam na água seu principal meio de transporte, o
que representava risco sem precedentes para a população e todos os ani-
mais expostos aos recursos hídricos e ao ambiente contaminado. Por ser
a água um solvente universal, tais poluentes tinham passe livre na na-
tureza, facilmente migrando de um lugar para outro. Conforme alertou
Carson, a fabricação dessas substâncias químicas totalmente estranhas
à natureza tornou complexo o processo de purificação da água e aumen-
tou os perigos para quem consumia dela (CARSON; RACHEL, 1962)10.

10 Vanessa Barbosa dos Reis Oliveira, Poluição hídrica: a ameaça dos desreguladores endócrinos à
saúde ambiental, p. 2.

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Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

A Especialista em Direito Ambiental pela PUC/COGEAE/SP, Vanessa Bar-


bosa Oliveira, em monografia sobre o tema, laureada com o Prêmio Vladimir
Garcia Magalhães de 2017 (15º Congresso Brasileiro da APRODAB) aponta
para o fato de que

Na década de 1990, os pesquisadores Theo Colborn, Dianne Dumanoski


e Pete Myears reuniram, pela primeira vez, todas as pesquisas, evidências
e teorias que apontavam para a ameaça dos disruptores endócrinos para
o meio ambiente e saúde dos seres vivos. Eles lançariam, em 1996, o
livro Nosso Futuro Roubado (do título em inglês Our Stolen Future), que
explicava a ameaça potencial dessas substâncias para a vida como um
todo e sua relação com uma indústria em plena ascensão. De acordo
com a publicação, entre 1940 e 1982, a produção de materiais sintéticos
aumentou cerca de 350 vezes, e bilhões de quilos de produtos químicos
sintéticos foram despejados no meio ambiente, expondo os seres huma-
nos, animais selvagens e todo o sistema planetário a inúmeros compostos
nunca antes encontrados aqui11.

Para corroborar essas assertivas, pesquisa realizada pelo professor Wilson F.


Jardim, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), contribuiu para
verificar a dimensão do problema, ao estudar a presença de cafeína na água.
Alerta o professor:

A escassez e o risco de racionamento não são os únicos problemas que


parte dos brasileiros enfrenta em relação à água. O crescimento das cida-
des e o consequente adensamento populacional, aliados ao saneamento
precário e a novos hábitos de consumo, têm contribuído para lançar nos
mananciais (rios, lagos e depósitos subterrâneos) centenas de substâncias
conhecidas como contaminantes emergentes (CE) resultantes das ativi-
dades humanas. Estamos falando de fármacos prescritos ou não, drogas
ilícitas, nanomateriais, produtos de higiene pessoal, repelentes de inseto,
protetores solares, produtos de cloração e ozonização de águas, microrga-
nismos, hormônios naturais e sintéticos, entre outros”, enumera. “Uma
série de novas e de velhas substâncias que fazem parte da nossa rotina
diária.” (...). Segundo Jardim, a cafeína encontrada nos mananciais é
quase toda oriunda do esgoto doméstico, porque é a bebida mais consu-
mida no mundo depois da água. “Altas concentrações num manancial

11 Idem

142
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

indicam que ele recebe altas cargas de esgoto sanitário”, explica. “Nas
águas de abastecimento, uma desinfecção efetiva remove os indícios da
contaminação fecal, mas a cafeína é um composto resiliente e, por isso,
é uma impressão digital química. Podemos dizer que onde existe cafeí-
na, embora nas concentrações encontradas ela não seja tóxica, há uma
grande variedade de outros compostos que não são monitorados, mas
que podem trazer algum impacto à saúde humana.” (...) constatou-se que
os mananciais de superfície (rios e lagos) no Brasil apresentam concen-
trações de cafeína da ordem de mil a 10 mil vezes maiores do que aquelas
encontradas na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e no Japão12.

Nesta esteira, a tese de doutorado de Locatelli13, orientado por Jardim, iden-


tificou a presença de antibióticos e drogas ilícitas nas águas da Bacia do Rio
Atibaia, manancial que abastece a cidade de Campinas. Sobre a presença de
antibióticos nas águas, Jardim alerta para a automedicação e o consumo exa-
cerbado desse tipo de medicamento “como as principais causas dessa contami-
nação que apresenta como risco maior o desenvolvimento de “superbactérias”,
microrganismos muito resistentes à ação desses antibióticos”.
Salienta ainda o professor, sobre os contaminantes emergentes relacionados
a problemas hormonais em animais e seres humanos:

Durante a década de 1990, houve uma redução na população de jacarés


que habitava os pântanos da Flórida, nos Estados Unidos. Ao investigar
o problema, cientistas perceberam que os machos da espécie tinham pê-
nis menores do que o normal, além de apresentar baixos índices do hor-
mônio masculino testosterona. Os estudos verificaram que as mudanças
hormonais que estavam alterando o fenótipo dos animais e prejudicando
sua reprodução foram desencadeadas por pesticidas clorados empregados
em plantações naquela região.
Esses produtos químicos eram aplicados de acordo com a legislação
norte-americana, a qual estabelecia limites máximos baseados em sua
toxicidade, mas não considerava a alteração hormonal que eles provoca-
vam, simplesmente porque os efeitos não eram conhecidos. Assim como
os pântanos da Flórida, corpos d’água de vários pontos do planeta estão

12 REVISTA FAPESP. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2015/04/10/contaminacao-


emergente/, acesso em 20/04/2016.
13 Marco A. F. Locatelli. Avaliação da presença de antibióticos e drogas ilícitas na bacia do Rio Atibaia, passim.

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Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

sendo contaminados com diferentes coquetéis que podem conter prin-


cípios ativos de medicamentos, componentes de plásticos, hormônios
naturais e artificiais, antibióticos, defensivos agrícolas e muitos outros
em quantidades e proporções diversas e com efeitos desconhecidos para
os animais aquáticos e também para pessoas que consomem essas águas.
Em algumas dessas áreas, meninas estão menstruando cada vez mais
cedo e, nos homens, o número de espermatozóides despencou nos últi-
mos 50 anos. Esses são alguns problemas cujos motivos ninguém conse-
guiu explicar até agora e que podem estar relacionados a produtos pre-
sentes na água que bagunçam o ciclo hormonal14.

Em um trabalho realizado no Cena/USP15 verificou-se a feminização de


sapos no Brasil. Torres fez extensa revisão bibliográfica, listando inúmeros
trabalhos que atestaram a feminização de peixes pela presença de hormônios
(17α-etinilestradiol, 17β-estradiol, testosterona, progesterona, estriol e estrona)
na água. O estudo apontou para o fato de que atualmente cerca de 15 mil
substâncias diferentes são utilizadas nos produtos farmacêuticos do mundo e
que estudos sobre esta problemática tiveram início em 1970, resultando na de-
tecção de alguns destes compostos em efluentes de Estações de Tratamento de
Esgotos (ETE) nos Estados Unidos. Tais compostos no meio ambiente podem
comprometer a qualidade dos recursos hídricos, da biodiversidade e do equilí-
brio dos ecossistemas aquáticos. Nos estudos listados pela autora, destacam-se
alguns medicamentos, como os estrógenos e progestógenos, considerados CE,
porém ainda não foi possível determinar seus efeitos na saúde humana. Por fim,
conclui que no Rio Piracicaba, objeto do seu estudo, as taxas destes hormônios
encontravam-se elevadas.
Em outro estudo deste importante Centro de Pesquisa da USP, constatou-se
a presença de contaminantes na foz do rio Tietê, quando suas águas parecem
refletir somente beleza e pureza.

Pesquisa feita pelo Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Uni-


versidade de São Paulo (Cena/USP) indica que, com graus diferentes

14 FAPESP. Disponível em http://www.planetauniversitario.com/index.php?option=com_content&vie


w=article&id=17109:contaminantes-emergentes-na-agua&catid=56:ciia-e-tecnologia&Itemid=75,
acesso em 20/02/2018.
15 Nadia Hortense Torres. Determinação de hormônios e antimicrobiano no Rio Piracicaba e teste de
toxidade aura com Daphia magna, passim.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

de intensidade e toxicidade, uma grande quantidade de metais pe-


sados nocivos à saúde humana – como cobre, cobalto, cromo, zinco,
níquel e chumbo – também está presente em diversos pontos da bacia
do Tietê. O estudo, que avaliou sedimentos coletados em 12 pontos
diferentes, da nascente à foz, mostra que os pontos críticos, onde a
concentração dos metais é mais evidente, estão nas proximidades do
reservatório de Pirapora, na região de Anhembi e no reservatório de
Nova Avanhandava. “A principal causa da contaminação é o esgo-
to doméstico; em seguida aparecem resíduos agrícolas e dejetos in-
dustriais”, avalia Jefferson Mortatti, que coordenou o levantamento.
Segundo ele, toda a cadeia alimentar é afetada. Em seres humanos,
esses metais podem provocar dermatites, alterações no sistema ner-
voso e nos pulmões e redução de fertilidade16.

A estes dados anotamos que, além da feminização, foram detectadas no Rio


Paraíba do Sul17 outros efeitos na fauna aquática, como deformações, mutações
genéticas e carcinomas em peixes.
Corroborando, a pesquisadora Gisela de Aragão Umbuzeiro18 da UNI-
CAMP, em pesquisa recente, afirma que “Mesmo em pequenas concentrações,
os corantes, muito utilizados pelas indústrias têxteis e de alimentos, entre ou-
tras, já causam efeitos adversos, como a morte e o atraso na regeneração de
organismos aquáticos”:

A pesquisadora destaca que o problema da contaminação da água por


corantes ocorre principalmente em nações emergentes como Brasil, Índia
e China, onde os tecidos são tingidos. “Os países ricos compram o tecido
pronto. É aqui, onde a produção está concentrada, que parte das subs-
tâncias utilizadas para dar cor às roupas vai para os rios e córregos. Estou
falando da indústria têxtil, por causa do grande volume de água utilizado
pelo setor na fase de produção. Entretanto, outros segmentos, como o ali-
mentício e o de cosmético, também fazem uso de corantes” (...)

16 REVISTA FAPESP. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2010/10/27/metais-pesados-no-


tiet%C3%AA/, acesso em 02/02/2018.
17 FGV - EAESP. Disponível em http://www.gvces.com.br/peixes-do-rio-paraiba-tem-deformacoes?locale=pt-
br, acesso em 02/02/2018.
18 ECODEBATE. Disponível em https://www.ecodebate.com.br/2012/06/28/pesquisadores-avaliam-
impactos-provocados-pela-presenca-de-corantes-em-rios-e-corregos-do-estado-de-sao-paulo, acesso
em 02/02/2018.

145
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

Os sistemas atualmente utilizados no processo de tratamento de efluen-


tes das indústrias não foram desenhados para remover esses compostos.
Normalmente, o que se faz é filtrar e/ou tratar os efluentes biologica-
mente e finalmente adicionar cloro para então lançá-los nos mananciais.
“Isso não é suficiente. Ainda que, em alguns casos, a cloração faça com
que a cor desapareça parcialmente da água, os contaminantes persistem.
Ademais, tal procedimento pode gerar outros tipos de compostos ainda
mais tóxicos do que os presentes originalmente nos efluentes”, alerta.

Apenas a título ilustrativo, listamos acima exemplos de poluição e con-


taminação aos corpos hídricos superficiais, apresentando alguns de seus
efeitos ao equilíbrio ecológico, notadamente, seus impactos à fauna aquáti-
ca. A maior parte desses dados técnicos foi obtida em estudos e pesquisas
científicas financiadas pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de
São Paulo-FAPESP e não em notícias jornalísticas. É a ciência a serviço do
meio ambiente. No entanto, não são somente as águas superficiais a sofrer
impactos, as águas subterrâneas também padecem sob os efeitos da polui-
ção, como vimos com o caso de Jurubatuba em São Paulo. Nesta esteira, o
pesquisador da USP, Prof. Hirata, alerta para a importância das águas sub-
terrâneas usadas para abastecimento em diversas regiões do país, bem como
para o cuidado no licenciamento de atividades econômicas em áreas sobre
os mananciais subterrâneos:

O desafio do gerenciamento das águas subterrâneas, que representam


98% da água doce do planeta, tem outras particularidades em zonas
urbanas, onde pode ser um recurso crucial. Segundo o geólogo Ricardo
Hirata, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, 75% dos municípios
paulistas são abastecidos, em parte ou completamente, por essas águas.
Isso inclui cidades importantes do estado, com destaque para Ribeirão
Preto, onde elas servem a 100% dos mais de 600 mil habitantes. Na
escala nacional, outras cidades completamente abastecidas por águas
subterrâneas são Juazeiro do Norte, no Ceará, Santarém, no Pará, e
Uberaba, em Minas Gerais. (...) Um problema causado pelas cidades
é a contaminação dos aquíferos por nitrato, devido a vazamentos no
sistema de esgotos. Como a descontaminação é cara, os poços afetados
acabam abandonados.
Outro tipo de poluição importante vem da indústria, como a causada
pelos solventes organoclorados. “São produtos tóxicos e carcinogênicos.”

146
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

A poluição impede o uso da água subterrânea numa região onde a de-


manda é forte, alerta Reginaldo Bertolo do Cepas-IGc/USP19.

Em fevereiro de 2016, pesquisadores do Instituto APLYSIA, em conjunto


com especialistas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e do
Governo do Estado do Espírito Santo, por meio da Companhia Espírito
Santense de Saneamento (Cesan) e do Instituto Estadual de Meio Ambien-
te e Recursos Hídricos (Iema), iniciaram um projeto científico, pioneiro no
Brasil, que tem como metas começar, em dois anos, a identificar e analisar
quais poluentes, em especial os novos contaminantes, estão impactando a
qualidade da água, a quantidade desses produtos e os principais efeitos para
a vida aquática e humana20.
A primeira reunião técnica ocorreu em 01/02/2016 tendo como palestrante
principal o renomado professor, doutor e pesquisador do Instituto de Avaliação
Ambiental e Estudos Hídricos de Barcelona (IDAEA-CSIC), na Espanha, Damià
Barceló, um dos mais prestigiados especialistas em proteção da água no mundo.
Em sua palestra "Qualidade da água em tempos de escassez" trouxe as
experiências européias exitosas e os desafios no tema. Segundo o professor,
a cada dia surgem poluentes novos que a legislação não abrange: remédios,
produtos de higiene pessoal, pesticidas modernos, teflon, itens que, em
grande quantidade, como já é sabido na Europa, causam problemas endó-
crinos em peixes, masculinizam fêmeas e feminilizam machos. A Fluoxetina
diminui a libido e impacta a reprodução de várias espécies, outros medica-
mentos geram mudança no comportamento. Identificar e controlar esses
novos poluentes químicos é um desafio,
Para a idealizadora e Diretora Presidente do Instituto APLYSIA, a bióloga
Drª. Tatiana Heid Furley, se os efeitos nos peixes já são notórios, é bem provável
que os impactos na espécie humana também existam e sejam significativos. “Há
similaridades entre os efeitos observados nos peixes e nos humanos, por isso os
peixes são bons indicadores não só sobre a qualidade da água em si, mas tam-
bém sobre a relação de efeito do consumo daquela água por pessoas".

19 REVISTA FAPESP. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/12/29/danca-da-chuva/,


acesso 05/02/2018.
20 INSTITUTO APLYSIA. Contaminação da água com poluentes emergentes é foco de novo estudo
no Brasil. Disponível em: http://www.aplysia.com.br/pt/noticias/19-contaminacao-da-agua-com-
poluentes-emergentes-e-foco-de-novo-estudo-do-instituto-aplysia/, acesso em 22/02/2018.

147
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

Essa observação evidencia muito bem a relevância do princípio da precaução


no campo da proteção preventiva da qualidade do meio ambiente e da saúde
humana e animal. Este princípio aplica-se adequadamente a situações de ris-
co incerto, quando não há certeza e provas científicas quanto à ocorrência de
dano e/ou da necessidade de adoção de medidas de proteção e/ou do nexo de
causalidade, mas se trata de atividades ou produtos potencialmente perigosos.
O objetivo piloto do projeto de pesquisa é responder a quatro questões: 1)
Existe a presença de contaminantes emergentes no recurso hídrico? Quais e
em que quantidades? 2) Quais os efeitos ambientais desses poluentes? Qual o
nível de toxicidade para algas e crustáceos? Está mudando o comportamento,
inclusive reprodutivo, dos peixes? 3) Qual o tratamento mais eficiente para as
características ambientais do Brasil? A água mais quente do clima tropical cos-
tuma acelerar o metabolismo, em que velocidade as espécies estão sentindo o
efeito desses contaminantes? Qual o prognóstico se não for feito o tratamento?
4) Trabalhar a questão das políticas públicas, junto com os poderes públicos,
para adequar a gestão de resíduos.
Estão entre as metas iniciais elaborar o projeto, buscar recursos para as pes-
quisas e buscar mais parceiros. A relevância e a inovação da pesquisa entre nós
é destacada pela pesquisadora: quase não existem dados sobre os efeitos dos
contaminantes emergentes sobre as espécies tropicais. A proposta é a aproxi-
mação com o avançado modelo europeu, e adequá-lo para a nossa realidade.
“Vamos começar praticamente do zero".

4. Da Portaria nº 2914/2011 do Ministério da Saúde


A Portaria do Ministério da Saúde n.º 2914, de 12/12/2011, dispõe sobre os
procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo
humano e seu padrão de potabilidade.
Esta Portaria determina no artigo 27 os padrões de qualidade da água a ser
servida para a população pelas concessionárias, ao disciplinar que a água potá-
vel deve estar em conformidade com padrão microbiológico, conforme disposto
no seu Anexo I e em demais disposições.
No controle da qualidade da água, quando forem detectadas amostras com
resultado positivo para coliformes totais, mesmo em ensaios presuntivos, ações
corretivas devem ser adotadas e novas amostras devem ser coletadas em dias

148
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

imediatamente sucessivos até que revelem resultados satisfatórios. E nos siste-


mas de distribuição, as novas amostras devem incluir no mínimo uma recoleta
no ponto onde foi constatado o resultado positivo para coliformes totais e duas
amostras extras, sendo uma à montante e outra à jusante do local da recoleta.
Para verificação do percentual mensal das amostras com resultados positi-
vos de coliformes totais, as recoletas não devem ser consideradas no cálculo. O
resultado negativo para coliformes totais das recoletas não anula o resultado
originalmente positivo no cálculo dos percentuais de amostras com resultado
positivo. Na proporção de amostras com resultado positivo admitidas mensal-
mente para coliformes totais no sistema de distribuição, expressa no Anexo I a
esta Portaria, não são tolerados resultados positivos que ocorram em recoleta,
nos termos do § 1º do mencionado artigo 27.
Quando o padrão microbiológico estabelecido no Anexo I a esta Portaria
for violado, os responsáveis pelos sistemas e soluções alternativas coletivas de
abastecimento de água para consumo humano devem informar à autoridade de
saúde pública as medidas corretivas tomadas. Quando houver interpretação du-
vidosa nas reações típicas dos ensaios analíticos na determinação de coliformes
totais e Escherichia coli, deve-se fazer a recoleta.
Já o artigo 28 refere-se à determinação de bactérias heterotróficas que deve
ser realizada como um dos parâmetros para avaliar a integridade do sistema de
distribuição (reservatório e rede). Sendo que no artigo 29 recomenda-se a in-
clusão de monitoramento de vírus entéricos no(s) ponto(s) de captação de água
proveniente(s) de manancial(is) superficial(is) de abastecimento, com o objetivo
de subsidiar estudos de avaliação de risco microbiológico.
O artigo 30 visa a garantia da qualidade microbiológica da água, em com-
plementação às exigências relativas aos indicadores microbiológicos, deve ser
atendido o padrão de turbidez expresso no Anexo II e devem ser observadas as
demais exigências contidas nesta Portaria.
Os sistemas de abastecimento e soluções alternativas coletivas de abasteci-
mento de água que utilizam mananciais superficiais devem realizar monitora-
mento mensal de Escherichia coli no(s) ponto(s) de captação de água, e os artigos
seguintes discorrem sobre os casos em que, detectada a presença de Escherichia
coli, devem ser feitas outras análises, bem como sobre a cloração de mananciais
superficiais e subterrâneos.
A água potável deve estar em conformidade com o padrão de substâncias
químicas que representam risco à saúde e cianotoxinas, expressos nos Anexos

149
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

VII e VIII e demais disposições desta Portaria. Como também a água potável
deve estar em conformidade com o padrão organoléptico de potabilidade ex-
presso no Anexo X a esta Portaria. Recomenda-se que, no sistema de distribui-
ção, o pH da água seja mantido na faixa de 6,0 a 9,5.
De acordo com esta síntese da Portaria, além do atendimento aos pontos
destacados, nos Anexos é que são encontrados os padrões para o tratamento
que conferirá potabilidade à água.
Entretanto, alerta Jardim,

Mesmo atendendo aos requisitos do Ministério da Saúde, a qualidade


da água distribuída a 40 milhões brasileiros, moradores de 20 capitais,
ainda precisa melhorar muito, revela pesquisa realizada em mananciais
e na água que sai das torneiras pelo Instituto Nacional de Ciências e
Tecnologias Analíticas Avançadas (INCTAA), sediado do Instituto de
Química (IQ) da Unicamp. A principal preocupação, de acordo com o
pesquisador Wilson Jardim, são os chamados interferentes endócrinos,
substâncias que afetam o sistema hormonal de seres humanos e animais.
De acordo com Jardim, hoje existem cerca de 800 substâncias do tipo
que são consideradas “contaminantes emergentes” da água – isto é, que
aparecem no líquido, mas não são controladas por leis ou regulamentos.
“A Portaria [2914, do Ministério da Saúde, que normatiza a qualidade da
água potável] é muito estática, e a nossa vida é dinâmica, nossa socie-
dade é dinâmica”, disse Jardim ao Jornal da Unicamp. “A cada ano, são
mais de mil novos compostos registrados. Trinta anos atrás, as pessoas
usavam três produtos de higiene quando acordavam, antes de sair de
casa. Hoje são dez, em média”21.

Por fim, para ilustrar o cenário da presença de CE na água tratada, Montag-


ner et al.22, em pesquisa desenvolvida na UNICAMP, destacam que em amos-
tras de água tratada do Brasil foram investigadas 124 contaminnates de dife-
rentes classes incluindo subprodutos de processos de desinfecção, hormônios,
fármacos, cafeína, produtos de higiene pessoal, drogas ilícitas, compostos de uso
industrial e pesticidas. Deste total de compostos, aproximadametne 455 foram

21 Carlos Orsi. Água de 20 capitais tem ‘contaminantes emergentes’. Jornal da UNICAMP. Ed n. 576,
de 23 a 29/09/2013, p. 3.
22 Montagner et al. Contaminantes emergentes em matrizes aquáticas do Brasil: cenário atual e
aspectos analíticos, ecotoxicológicos e regulatórios, p. 1098.

150
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

quantificados em pelo menos uma amostra em concentrações acima dos limites


de quantificação dos métodos analíticos empregados.

5. Bioindicadores dos contaminantes emergentes,


padrão de qualidade da água potável e técnicas
de purificação da água23
Nos estudos desenvolvidos por Joyce Schiavini e demais coautores, a osmose
reversa, a oxidação química, o carvão ativado e a ozonólise são métodos de lim-
peza dos poluentes invisíveis. Em algumas empresas de saneamento, a osmose
reversa já é usada para remover outros tipos de poluentes. O desafío é levar
essas formas de limpeza à maioria das estações. Podem ser mencionados outros
métodos, como a microfiltração e os processos oxidativos, usados no mundo
em realidade bem distinta da nossa. O desafío é levar essas formas de limpeza
à maioria de estações.
A partir dos estudos de Koh et al., (2008), defendem que a constante des-
carga e persistência dos estrogênios esteróides, excretados a partir do corpo, em
grandes quantidades, e que podem chegar ao ambiente aquático em concentra-
ções de até ng/L, exige que a atenção seja focada em sua remoção ou desativa-
ção endócrinas, no tratamento de esgoto.
Concluem ainda os autores, que os processos de tratamento físico-quí-
mico podem servir como etapas anteriores ao tratamento biológico, e pro-
duzir uma queda adicional de hormônios no efluente de águas residuais,
reduzindo-os a níveis muito baixos, no entanto requerem otimização dos
seus custos e praticabilidade.
Os processos oxidativos são aplicados no tratamento de águas subterrâneas,
redução de excesso de lodo biológico de ETE, e compostos orgânicos voláteis.
O número de aplicação desses processos em tratamento de água tem aumen-
tado devido à oportunidade de remoção dos precursores dos subprodutos de
desinfecção, remoção de micropoluentes (fármacos, desreguladores endócrinos
e biotoxinas) e inativação de micro-organismos patogênicos resistentes. Esses

23 Baseadas em SCHIAVINI, Joyce de Araujo et al. Desreguladores Endócrinos no Meio Ambiente e o Uso
de Potenciais Bioindicadores. Revista Eletrônica TECCEN, Vassouras, v. 4, n. 3, p. 33-48, set./dez., 2011

151
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

processos podem ser acompanhados de outros, sejam biológicos ou físico-quími-


cos, a fim de obter melhor desempenho e eficiência do tratamento.
Segundo Jardim, “Os métodos utilizados pelas estações de tratamento de
água brasileiras são em geral seculares. Eles não incorporaram novas tecnolo-
gias, como a oxidação avançada, a osmose inversa e a ultrafiltração”24.

Conclusão
A água é um elemento que pode ser veículo da vida e da morte, a depender
do “cuidado” para com este bem ambiental essencial à sadia qualidade de vida no
planeta, não sujeita à dominialidade particular nem público-estatal, tratando-se
de bem difuso, patrimônio e bem de uso comum de todos, indistintamente25 26.
Inúmeros e incontáveis são os casos de poluição e contaminação das águas
doces superficiais e subterrâneas em nosso país, diuturnamente ocorrem aci-
dentes pontuais e contínuos que comprometem a disponibilidade e a qualidade
hídrica em diversas localidades.
Causa estranheza o fato dos disruptores endócrinos serem claramente reco-
nhecidos, em estudos e pesquisas, como substâncias que interferem no funciona-
mento do sistema endócrino dos homens e animais, causando malefícios à saúde
humana, animal e ao ambiente em geral; e, em contrapartida, constatar-se a pre-
ocupação, abaixo das expectativas e das necessidades, em relação às iniciativas
do poder público, de diferentes instâncias, em alterar a legislação, para melhor
regular e restringir o uso dessas diversas substâncias.
Outro descompasso preocupante: enquanto se tem o crescimento, ao longo
do tempo, do uso de desreguladores endócrinos, os processos de tratamentos
dos efluentes contaminados com tais substâncias são ainda incipientes e pouco
aplicáveis, pelo alto custo e baixa eficiência de alguns dos processos; os de maior

24 FAPESP. Disponível em http://www.planetauniversitario.com/index.php?option=com_content&vie


w=article&id=17109:contaminantes-emergentes-na-agua&catid=56:ciia-e-tecnologia&Itemid=75,
acesso em 20/02/2018
25 Baseadas em SCHIAVINI, Joyce de Araujo et al. Desreguladores Endócrinos no Meio Ambiente e o
Uso de Potenciais Bioindicadores. Revista Eletrônica TECCEN, Vassouras, v. 4, n. 3, p. 33-48, set./
dez., 2011
26 Ver a respeito, entre outros, YOSHIDA, Consuelo Y.M.. Água: bem privado, bem público ou bem
difuso? Implicações jurídicas, econômico-financeiras e sócio-ambientais. In: Recursos Hídricos:
aspectos éticos, jurídicos, econômicos e socioambientais. Campinas: Alínea, 2007, v. 1

152
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

eficiência são de custo mais elevado, o que inviabiliza, do ponto de vistas eco-
nômico, sua implantação em curto prazo.
Apesar da ampla utilização dos bioindicadores para detecção destas subs-
tâncias, pouco deles têm resposta direta e precisa aos disruptores endócrinos,
cabendo estudos mais aprofundados para aperfeiçoar e selecionar espécies mais
eficientes no processo de indicação de alterações de qualidade ambiental.
Por fim, urge que a Portaria analisada seja revista27 e que os CE sejam
contemplados no tratamento da água servida à população brasileira, visan-
do o cumprimento do ditame constitucional que assegura “sadia qualidade
de vida” a todos.

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27 Há um Grupo de Trabalho discutindo a revisão desta Portaria, contemplando os CE no tratamento


da água a ser servida para a população. Vide informações: http://wbonanca.com.br/wp-content/
uploads/2015/05/Revis%C3%A3o-da-Portaria-de-Potabilidade-da-%C3%81gua-para-Consumo-
Humano.pdf e http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr4/dados-da-atuacao/projetos/qualidade-
da-agua/eventos/reuniao-publica-projetos-qualidade-da-agua-e-conexao-agua-03-05-17/revisao-da-
portaria-ms-2-914-2011

153
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

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Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

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156
Apontamentos acerca da pré-história
e da história da sustentabilidade, do
desenvolvimento sustentável e da inserção
da água no cenário da proteção ambiental

Ana Carla Pinheiro Freitas1.


Liane Maria Santiago Cavalcante Araújo2.

Introdução
Sustentabilidade, pela etimologia da palavra, configura característica ou
condição de um processo ou sistema que permite a sua permanência, em certo
nível e por um determinado lapso temporal. Como tal, a sustentabilidade da
natureza como Nachhaltigkeit, já havia sido concebida há mais de 400 anos,
na Alemanha. Já o conceito de desenvolvimento sustentável em sua concep-
ção contemporânea, sedimentou-se no âmbito internacional com o Relatório
Brundtland, também chamado “nosso futuro comum”, em 1987. Definiu-se por
desenvolvimento sustentável a responsabilidade do ser humano pelo meio am-
biente em que vive, tendo em vista a capacidade das futuras gerações de usu-
fruir igualmente de um ecosistema ecologicamente equilibrado. O desenvolvi-
mento sustentável (DS) tornou-se princípio e foi recepcionado pela maioria das
Constituições e pela Legislação infraconstitucional do mundo ocidental. O DS
se “equilibra" em um tripé que leva em conta, especialmente, aspectos econômi-
cos, sociais e ambientais que devem ser levados em consideração por ocasião da
tomada de decisão sobre empreendimentos ou rumos a serem tomados por toda
conduta humana, tendo em vista o bem-estar da coletividade.
A água é patrimônio natural por excelência, sendo inquestionável a ne-
cessidade de mecanismos de ordem jurídica, social e econômica para a sua

1 Doutora em Direito pela PUC-SP e Professora Pesquisadora do REPJAL/UNIFOR.


2 Doutoranda em Direito pela UNIFOR. Pesquisadora do REPJAL/UNIFOR.

157
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

preservação. Daí a necessidade de se estabelecer no presente texto, um lia-


me necessário entre sustentabilidade, desenvolvimento sustentável e acesso
à água, como possibilidade de manutenção do referido bem dentro de pata-
mares de sustentabilidade.
O presente texto abordará, de início, o que se chama “pré-história” da sus-
tentabilidade e do desenvolvimento sustentável. Tema pouco abordado, mas
imprescindível a uma efetiva compreensão do status quo dos chamados bens
ambientais, como a água, por exemplo. Em seguida, abordar-se-á, a história da
sustentabilidade em um viés atualizado com as tendências do mundo globaliza-
do. E, por fim, será introduzida a crise hídrica dentro da seara da sustentabili-
dade e do desenvolvimento sustentável.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento do presente texto é a bi-
bliográfica, analítica e dedutiva.

1. Um rápido panorama acerca da "pré-história”


da sustentabilidade e do desenvolvimento e do
desenvolvimento sustentável.
O ideal de “sustentabilidade” repousa na máxima do “pensar global, agir lo-
cal”. Em termos etimológicos, a expressão advém do vocábulo latino sustentare
e possui um sentido ativo e passivo. Em uma acepção ecológica, sustentabilida-
de consiste em ação, ou seja, na postura a ser adotada para que o ecossistema
não entre em decadência (incluindo seus elementos biótipos como fauna, flora,
microorganismos, etc. e abióticos), que pode ser traduzido em procedimentos a
serem realizados para manter um bioma vivo (proteção adequada; presença de
nutrientes capazes de prover sua conservação: condições de autofortalecimento
do sistema ambiental, para prosperar e coevoluir). No sentido passivo corres-
ponde à não implementação de empreendimentos que possam vir a lesar o meio
ambiente, mesmo diante de certeza científica sobre a uma efetiva lesão, como
reza o princípio da precaução (pode-se citar como exemplo a transposição das
águas do Rio São Francisco, que entre outros prejuízos ao papel ecológico do rio
tem-se a possibilidade de assoreamento do mesmo).
No Brasil, o caput do art. 225 da Constituição Federal de 1988 adota ambas
as acepções, uma vez que garante a todos o "meio ambiente ecologicamente
equilibrado” (BRASIL, 1988). Com efeito, para o referido equilíbrio, necessária

158
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

se faz a coexistência do sentido ativo (reparação) e passivo (prevenção) tendo


em vista a sustentabilidade.
Muitos atribuem a origem do termo "sustentabilidade" como decorreria de
reuniões realizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), a partir da
década de 1970, quando surge a preocupação com a necessidade de limitação
do crescimento globalizado, em decorrência da crise do modelo capitalista prati-
cado pelas nações do mundo. O que poucos sabem diz respeito ao que podemos
chamar de pré-história do termo, já que a “sustentabilidade” possui uma história
pouco conhecida de mais de 400 (quatrocentos) anos.
A referência primeira ao conceito em questão foi originada na silvicultura,
ou seja, no manejo das florestas, em 1560, na Alemanha, mais especificamente
na Província da Saxônia. Em virtude da preocupação com a utilização racio-
nal das florestas, concebeu-se, àquela época, a possibilidade de regeneração e
manutenção permanente deste precioso bem jurídico da humanidade. Foi neste
período que a palavra alemã Nachhaltigkeit, traduzida para o português como
"sustentabilidade", foi originada (BETIOL et al., 2012). 
Em 1664, na Grã Bretanha, verifica-se grande crescimento populacional,
a necessidade de construção de novas habitações, com o aumento da geração
de energia no âmbito residencial e industrial, além da construção de navios
para a marinha. Em Londres, é publicado o Livro Sylva, de John Evelyn, vol-
tado para o manejo e cultivo de florestas, com discussões vinculadas às ques-
tões sociais e econômicas e um apelo urgente pertinente aos interesses das
gerações futuras em termos de disponibilidade de recursos naturais (FEIL;
STRASBURG; SCHREIBER, 2016).
No ano de 1669, na França, é publicada a “portaria do desmatamento”, de
Jean Baptiste Colbert, voltada para a gestão de suprimentos e da madeira das
florestas, considerando o decréscimo do número de navios da marinha france-
sa. Neste mesmo país, em 1683, o cientista francês Bernard de Boyer de Fon-
tenelle defende o surgimento do progresso necessário e limitado, com esteio na
nova ciência e tecnologia (FEIL; STRASBURG; SCHREIBER, 2016).
Contudo, foi na Saxônia, em 1713, que a expressão “sustentabilidade” seria
utilizada com um caráter estratégico, pela primeira vez, pelo Capitão Hans Carl
von Carlowitz, responsável pela criação do primeiro tratado sobre a sustenta-
bilidade das florestas. Foi Carlowitz que escreveu a obra intitulada Silvivulture
Oeconomica (Anweisung zur wilden Baumzucht), apresentando o conceito iné-
dito de nachhaltend ou nachhaltig, ou seja, sustentável, com foco nos pilares

159
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

de ecologia/natureza, do econômico e da ética social (FEIL; STRASBURG;


SCHREIBER, 2016).
Escrito em latim (língua científica da época), Carlowitz recomendava em
sua obra o uso sustentável da madeira e alertava à população acerca da possi-
bilidade de ruína do negócio e do lucro, na Saxônia, diante do mau uso desse
recurso natural (por sua utilização indiscriminada em minas de prata e indús-
trias de fusão). Sua inspiração surge em face da rápida devastação florestal da
Europa, da publicação de Evelyn e da “portaria do desmatamento”, de Colbert.
No que diz respeito ao reaproveitamento de energia em habitações e indús-
trias, aponta, como alternativas de eficiência no consumo, a substituição da
madeira pelo fóssil e o reflorestamento. A partir de então, os poderes locais
passaram a incentivar o replantio das árvores nas áreas desflorestadas (FEIL;
STRASBURG; SCHREIBER, 2016).

Na primeira metade do século XVIII, a ideia de nachhaltigkeit (rendi-


mento sustentado) alcançou a Dinamarca, Noruega, Rússia e a França
(GROBER, 2007). No século XVIII, início da era industrial, na Ingla-
terra, houve a migração do carvão vegetal para o carvão mineral, em
função da escassez de florestas (MEADOWS et al., 1992). Essa indus-
trialização provocou uma vasta degradação ambiental com a exploração
de matéria prima em escala global (BOYDEN, 1997) e um aumento da
diferença entre sociedades pobres e ricas, do crescimento populacional e
do consumo (MEBRATU, 1998; PISANI, 2006) (FEIL; STRASBURG;
SCHREIBER, 2016, p. 11).

Com a revolução industrial – ainda no século XVIII, ganha destaque o


progresso humano voltado para a questão econômica e social. A lógica pre-
dominante passa a considerar aceitável e até mesmo necessária a devastação
ambiental realizada para fins de transformação de bens naturais em bens de
consumo. Nesse momento histórico de grande desenvolvimento econômico e
dispersão social, a obra que marcou os limites do crescimento causados pela
escassez de recursos foi a teoria Malthusiana, de Thomas Robert Malthus, de
1789, focada na produção de alimentos e no aumento da população. Em 1798, os
efeitos maléficos da revolução industrial passam a ser observados e destacados:
desemprego, pobreza e doenças (FEIL; STRASBURG; SCHREIBER, 2016). O
que hoje nomeamos de "crise ecológica" não despontava ainda como tal, ante as
demais crises antes referidas.

160
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Na civilização Ocidental, entre 1750 e 1900, a ligação do progresso com a


ciência foi então consolidada, com o reconhecimento da ciência enquanto o
caminho do domínio do homem sobre a natureza. A regulação do progresso
ocorreu durante o século XIX, com foco em uma melhor qualidade de vida
por intermédio do desenvolvimento científico e tecnológico. Nesse panorama,
vislumbra-se uma aceitação praticamente universal acerca do progresso sem li-
mites da humanidade, entre meados do século XVIII até o final do século XIX
(FEIL; STRASBURG; SCHREIBER, 2016).
A partir da segunda metade do século XX, verifica-se melhora dos padrões de vida,
em nível global. Por outro lado, torna-se evidente o impacto ambiental da atividade
humana. Crescimento e desenvolvimento entram em pauta sob uma nova perspec-
tiva: seus pressupostos básicos são revisitados em virtude da expansão industrial e
comercial observada e das externalidades negativas observadas e experienciadas.
Como resposta, surgem medidas corretivas nas práticas industriais, tais como a
legislação da fumaça proveniente de fornos, da utilização dos recursos não reno-
váveis, e da eficiência energética (FEIL; STRASBURG; SCHREIBER, 2016).
Entre as publicações científicas que vieram revelar os impactos
ambientais causados pelas atividades humanas, em meados de 1960, destaca-se
Silent Spring, de autoria de Rachel Carson, em 1962. A obra aborda a utilização
de inseticidas e pesticidas indiscriminadamente, criticando as consequências
desse uso para a água, solo, ar e vida humana, animal e vegetal.

2. Apontamentos acerca da história da sustentabilidade e


do desenvolvimento sustentável
Foi na década de 1960 que as ideias de desenvolvimento (voltadas para a
exploração de recursos) e conservação (focada nos recursos naturais) deixaram
de ser consideradas conflitantes, em virtude de uma fusão entre as ideias de
progresso, crescimento e desenvolvimento, o que resultou em uma nova pers-
pectiva para o desenvolvimento sustentável (FEIL; STRASBURG; SCHREI-
BER, 2016). Contudo,

As bases conceituais do desenvolvimento foram consolidadas no início


da década de 1970, tais como: a sociedade ser estável e indefinidamente
sustentável para melhorar a condição humana (GOLDSMITH et al.,
1972); trazer uma estabilidade ecológica e econômica a longo prazo,

161
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

capaz de satisfazer as condições básicas da humanidade; a abrangência


do aspecto ambiental, social e econômico (MEADOWS, 2004) (FEIL;
STRASBURG; SCHREIBER, 2016, p. 13).

Em 1970, foi criado o Clube de Roma, responsável pela elaboração de


relatório pautado nos limites do crescimento, que motivou discussões im-
portantes nos meios científicos, empresarial e social. A Organização das
Nações Unidas (ONU) ocupou-se então do tema em apreço e realizou a
“Primeira Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente”, de 05
a 16 de junho de 1972, ocasião na qual foi criado o Programa das Nações
Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).
Com ênfase na ideia de sustentabilidade, o evento foi realizado em Estocol-
mo com o escopo de comprovar a compatibilidade entre o crescimento eco-
nômico e a industrialização não causadora de danos ambientais. Fruto dessas
discussões, surge no mesmo ano o livro The Limits to Growth, De Dennis L.
Meadows. O livro aponta os resultados de uma investigação acerca da indus-
trialização, da velocidade do crescimento da população, da desnutrição gene-
ralizada, do esgotamento dos recursos naturais não renováveis e da degradação
ambiental. A obra enfatiza a importância dos limites sobre atividades como a
destinação de resíduos, as emissões de gases e o uso dos recursos naturais, em
prol da sustentabilidade. Isto porque, nas década de 1960 e 1970, passa-se a
conceber o aspecto prejudicial da ação humana não só para o meio ambiente,
mas também para a estabilidade econômica e a própria segurança do planeta
(FEIL; STRASBURG; SCHREIBER, 2016).
Contudo, somente nas décadas de 1980 e 90 se dá a popularização do termo
“desenvolvimento sustentável” (DS), que passa a ser largamente utilizado em
debates sobre o tema da manutenção da economia, da sociedade e do meio
ambiente em padrões saudáveis. O conceito de DS inspira-se, a esta altura, nos
temas da equidade social e das necessidades humanas básicas (FEIL; STRAS-
BURG; SCHREIBER, 2016).

Para Redclift (2006), na década de 1980 ressurgiram a economia de mer-


cado e as políticas neoliberais, nas quais a mensuração da sustentabilidade
está associada, indicando o rumo para a política ambiental. Dessa forma,
a sustentabilidade foi cada vez mais separada do aspecto ambiental (ou
ecológico) e relacionada com questões mais amplas de equidade, de gover-
nança e justiça social (FEIL; STRASBURG; SCHREIBER, 2016, p. 13).

162
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

A expressão apareceu, pela primeira vez, no cenário mundial, em 1987, via


Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Comissão de
Brundland). Daí em diante, vem sendo utilizada frequentemente nos círculos
políticos (FEIL; STRASBURG; SCHREIBER, 2016). A Comissão de Brun-
dland ficou conhecida como “Uma agenda global para a mudança”. A ocasião
reuniu dezenas de especialistas e de disciplinas para a confecção de um tra-
balho interdisciplinar, que culminou na elaboração de documento intitulado
“Nosso futuro comum” (Our Common Future), também conhecido como Re-
latório Brundland, em homenagem à Primeira-ministra norueguesa Gro Har-
lem Brundland (BETIOL et al., 2012). O documento tem como tema central a
necessidade e os interesses do homem, a segurança do patrimônio natural em
prol das futuras gerações, a realocação de recursos com foco no crescimento
econômico das nações mais pobres, de forma que todos possam reunir as neces-
sidades básicas de sobrevivência (FEIL; STRASBURG; SCHREIBER, 2016).
No relatório, a ONU enfatiza a importância de limites no uso de recursos
naturais e conceitua o desenvolvimento sustentável como “aquele que satisfaz
as necessidades presentes sem comprometer o suprimento das gerações futuras”
(BETIOL et al., 2012, p. 15), reforçando os conceitos apresentados anterior-
mente pelo Clube de Roma, no estudo “Os Limites do Crescimento”, realizado
junto ao Massachusetts Institute of Technology (MIT) (BETIOL et al., 2012).
Na década de 1990, constata-se uma enorme expansão da qualidade e do
volume de legislações ambientais e de acordos internacionais versando sobre
alterações ambientais, impulsionando a mudança da política global (FEIL;
STRASBURG; SCHREIBER, 2016). De 03 a 14 de julho de 1992, a Assem-
bleia das Nações Unidas deu continuidade às discussões na Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), co-
nhecida como Eco-92 ou Rio-92, realizada no Rio de Janeiro (BETIOL et al.,
2012). O evento propõe a conciliação do desenvolvimento socioeconômico
com a proteção e conservação do meio ambiente, tendo como referência o
conceito de DS apresentado pela Comissão de Brundland (FEIL; STRAS-
BURG; SCHREIBER, 2016). Trata-se da “Cúpula da Terra”, responsável pela
elaboração da “Agenda 21: Programa de Ação Global” e da “Carta do Rio de
Janeiro” (BETIOL et al., 2012).
A Agenda 21 destaca o papel dos governos para as mudanças nos padrões
insustentáveis, através de políticas de aquisições e, em seu capítulo 28, traz
uma importante inovação, ao referir-se ao poder público local como ator

163
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

chave para a implementação das referidas políticas (BETIOL et al., 2012). É


considerada uma referência mundial no quesito implantação de programas
e políticas no âmbito dos governos e das empresas (FEIL; STRASBURG;
SCHREIBER, 2016).
A “Carta do Rio de Janeiro”, por sua vez, reforça a necessidade de novos
modelos de gestão de territórios e de relacionamento entre espécie humana e
natureza (BETIOL et al., 2012), estabelecendo acordos internacionais voltados
para o respeito e a proteção dos interesses e da integridade da ecologia e do
desenvolvimento global, com foco na gestão ambiental e no DS (FEIL; STRAS-
BURG; SCHREIBER, 2016).

Para Hofer (2009), a Rio 92 estabelece uma série de iniciativas para


promover a aceitação da ideia de DS. Na percepção de Ríos-Osório et
al. (2013), na Rio 92 houve um esforço para reconhecer e compartilhar
as responsabilidades, com o intuito de alterar as tendências dos impactos
negativos sobre os recursos naturais (FEIL; STRASBURG; SCHREI-
BER, 2016, p. 14).

Avançando na linha do tempo, em 1995, o termo “consumo sustentável” é


apresentado pela Oslo Ministerial Roundtable Conference on Sustainable Produc-
tion and Consumption:

[...] “uso de bens e serviços que atendem às necessidades básicas e trazem


uma melhor qualidade de vida, enquanto minimizam o uso de recursos
naturais, materiais tóxicos e emissões de poluentes através do ciclo de
vida, de forma a não pôr em perigo as necessidades das futuras gerações”.
(BETIOL et al., 2012, p. 17).

No Brasil, quatro anos depois, em 1999, verifica-se o lançamento da Agenda


Ambiental na Administração Pública, conhecida como A3P, voltada para a
gestão socioambiental no governo (BETIOL et al., 2012).
No século XXI, em 2002, foi realizada a Conferência Mundial sobre Desen-
volvimento Sustentável (Rio+10), em Johanesburgo, na África do Sul, que ori-
ginou o lançamento da Agenda 21 Brasileira, incluindo o objetivo de “produção
e consumo sustentáveis contra a cultura do desperdício” (BETIOL et al., 2012,
p. 18). Trata-se da maior conferência mundial sobre o tema Gestão Ambiental
e DS que, com grande esforço, logra êxito em definir uma base de formação de

164
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

três pilares essenciais (o social, o econômico e o ambiental) para o DS, intitu-


lada triplebottom line, e cuja meta primordial consiste na aniquilação da pobreza
(FEIL; STRASBURG; SCHREIBER, 2016).
Dois anos depois, dá-se o lançamento da Campanha Procura+(Sustainable
Procurement Campaign), pelo ICLEI Europa, com o objetivo de apoiar autorida-
des públicas na implementação de compras públicas sustentáveis. Os primei-
ros governos europeus a aderirem à Campanha foram Kolding (Dinamarca),
Gothenburg (Suécia) e Zurich (Suíça) (BETIOL et al., 2012, p. 18). Ainda no
cenário internacional, no ano de 2007, Brasil e Mercosul decidem aderir ao
Processo de Marrakech, lançado em 2003 pela ONU, comprometendo-se a ela-
borar seu Plano Nacional de Produção e Consumo Sustentáveis. Neste mesmo
ano, foi criado pelo ICLEI o projeto “Fomentando Compras Públicas Sustentá-
veis no Brasil”, com os Estados de Minas Gerais e São Paulo e o Município de
São Paulo, primeiros governos comprometidos com a concretização da metodo-
logia da Campanha Procura+ no Brasil (BETIOL et al., 2012).
Com a ideia de aproveitar os esforços de combate à crise global para esti-
mular um novo ciclo de desenvolvimento, e pautado em um sistema econô-
mico sustentável, o PNUMA anunciou então o Green Economy Initiative, no
ano de 2008. Em 2011, mais um passo importante é dado: é criado o Plano
de Ação de Produção e Consumo Sustentáveis (PPCS), pelo Ministério do
Meio Ambiente (MMA), no Brasil. O PPCS veio concentrar sua atenção nas
ações pertinentes à promoção do consumo consciente, versando sobre ações
governamentais, tanto do setor produtivo quanto da sociedade como um todo
(BETIOL et al., 2012).
A relevância do debate proposto resta demonstrada pela contínua discussão
promovida acerca do assunto. Com efeito, no ano de 2012, foi realizado um
novo encontro de autoridades, intitulado Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável (CNUDS), também conhecida como Rio+20.
Como destaque, emergiram as questões do consumo, governança global, sus-
tentabilidade urbana e economia verde (BETIOL et al., 2012).
Enquanto isso, no Brasil, a Conferência Nacional do Meio Ambiente (CNMA)
já está em sua quarta edição, tendo sido realizada a I CNMA em 2003, sobre
“Fortalecimento do Sistema Nacional do Meio Ambiente”; a II CNMA, em 2005,
com foco na “Gestão Integrada das Políticas Ambientais e Uso dos Recursos Na-
turais”; a III CNMA, em 2008, voltada para o debate das “Mudanças Climáticas”;
e, por fim, a IV CNMA, em 2013, versando sobre “Resíduos Sólidos”. Em 2015,

165
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

por sua vez, aconteceram a Conferência sobre Florestas, Clima e Biodiversidade


(Lições Aprendidas e Perspectivas da Cooperação Brasil-Alemanha) e o Seminá-
rio Internacional de Gestão da Água em Situação de Escassez.
Para Fernandes (2016, p. 53),

[...] problemas como a carência da educação ambiental, desaparecimento


de espécies, doenças evitáveis, stress hídrico global, superaquecimento,
pauperização, entre outros, que fizeram com que a questão ambiental ocu-
passe lugar de destaque nos debates internacionais e também, conforme
já mencionado, houve a consagração da proteção do meio ambiente no
patamar constitucional da grande maioria dos Estados do ocidente.

Mais recentemente, em 2017, a preocupação com o tema sustentabilidade


chamou a atenção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que
apresentou a Campanha da Fraternidade com o tema “Fraternidade: biomas
brasileiros e defesa da vida”. Inspirado no Livro do Gênesis (2,15), o lema divul-
gado é “Cultivar e guardar a criação”. O Ministério do Meio Ambiente realizou
Cerimônia em apoio a esta Campanha no dia 15 de março de 2017. 
Para Fritjof Capra (2015, p. 238), a sustentabilidade consiste em um “proces-
so dinâmico de coevolução”, e não estático. Segundo o autor, as definições de
sustentabilidade funcionam como “admoestações morais de grande importân-
cia” (CAPRA, 2015, p. 50). Destaca o referido autor a necessidade do desenvol-
vimento da "ecologia profunda”: o homem é parte da natureza.

3. Sustentabilidade e crise hídrica: uma pequena


introdução a uma grande problemática
Eventos internacionais e atores ambientais discutem a crise ambiental den-
tro de uma concepção transnacional, diante da realidade da apropriação desi-
gual de bens naturais por algumas empresas privadas atuantes em âmbito global
(SCHONARDIE; NOSCHANG, 2014). Nessa perspectiva, e considerando os
limites ambientais do desenvolvimento e o panorama histórico da sustentabi-
lidade apresentado linhas acima, o debate acerca da crise da água ganha es-
pecial enfoque no início do século XXI, haja vista a redução da água potável
e o aumento da demanda e da degradação de rios e fontes (SCHONARDIE;
NOSCHANG, 2014).

166
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Com a expansão do perímetro urbano, em níveis globais, o processo de


impermeabilização do solo se intensifica e diminui a regular oferta de água.
De outro lado, a não proteção de áreas de banhados e mananciais e o uso
de produtos químicos na indústria, cujos rejeitos acessam leitos de rios, antes
do devido tratamento químico de purificação, aumentam a contaminação das
águas e prejudicam as coletividades, sejam elas locais ou regionais, e alcançam,
muitas vezes, os limites territoriais de mais de um Estado (SCHONARDIE;
NOSCHANG, 2014).
A despeito das evoluções evidenciadas no cenário da sustentabilidade, o
contexto atual da globalização favorece um comércio livre voltado para a ex-
ploração e comercialização do meio ambiente e, mais especificamente, da água
(BORGES; ARIZO, 2017). Assim, determinados grupos empresariais vêm ocu-
pando espaço territorial de forma estratégica e globalizada, o que ocasiona a
multiplicação dos usos dos recursos naturais, em descompasso com o limite da
capacidade de renovação dos ecossistemas, caracterizado pela degradação pro-
gressiva dos recursos hídricos (SCHONARDIE; NOSCHANG, 2014).
Por esse motivo, os mecanismos de apropriação da água verificados no con-
texto da mercantilização capitalista representam, simultaneamente, fonte e ce-
nário de conflitos sociais e ambientais. Com isso, ganha relevância o estudo das
atividades de controle, alocação e administração da água no planeta (BOR-
GES; ARIZO, 2017).
Ocorre que, o foco na produção do lucro não pode ignorar a natureza da
água enquanto bem público e direito fundamental imprescindível à dignidade e
ao bem estar do ser humano e das demais espécies que com ele convivem nesse
planeta (SCHONARDIE; NOSCHANG, 2014).
Essencial à sadia qualidade de vida, a água foi definida pela Organização
das Nações Unidas como uma necessidade humana, podendo ser satisfeita por
entes públicos ou privados. Logo, sua distribuição e comercialização devem ser
estimuladas pela comunidade internacional, nacional, regional e local, em aten-
ção às relações para além das fronteiras, mormente diante da crise hídrica e
do impacto da globalização sobre as políticas dessa natureza (SCHONARDIE;
NOSCHANG, 2014).
Neste diapasão, a água constitui propriedade comum e necessita de um
efetivo controle regulatório estatal. Assim, ao tratar das relações transnacio-
nais, o presente texto aborda o cenário regulatório brasileiro e a sua relação
com outros Estados, de modo a possibilitar que problemas tratados de forma

167
Luciana Cordeiro de Souza-Fernandes, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida

singular possam vir a ser analisados por uma ótica plural, mais inclusiva e
solidária, com foco nas presentes e futuras gerações. Para tanto, a discussão
aborda uma decisão paradigmática proferida pela Corte Internacional de Di-
reitos Humanos, a fim de averiguar se a Justiça Internacional oportuniza, de
fato, por intermédio de seus julgados, um sentido real e profundo de humani-
dade (BORGES; ARIZO, 2017).

Conclusão
Os apontamentos acerca da pré-história dos conceitos de “sustentabilidade"
e de “desenvolvimento sustentável” serviram para demonstrar a importância
do tema e a Introdução da temática bem antes do que se tem notícia, ao tratar
da concepção de sustentabilidade e desenvolvimento sustentável na atualidade.
Há 400 anos já havia uma preocupação acadêmica, social, jurídica e até eco-
nômica com a preservação do meio , mesmo que de forma acanhada diante dos
grandes problemas sociais trazidos pela Revolução Industrial e pelo despertar
da ciência e tecnologia.
A preocupação com a sustentabilidade e com o desenvolvimento susten-
tável em sua magnitude social, econômica e jurídica contemporânea foi efe-
tivamente introduzida nos anos de 1970, com a Convenção de Estocolmo
e com os demais Documentos Internacionais, dentre os quais se destacam
o Relatório Brundtland, ou “o nosso futuro comum” e a Convenção do Rio
de 1992, seguida da Rio+10 e Rio+20. Na seara atual, a preocupação com o
meio ambiente se potencializa e ganha atenção do mundo e das comunidades
locais: pensar global, agir local.
A sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável tendo como objeto a
crise hídrica e impõe na atualidade, nas perspectivas mundial e local, no nosso
presente e futuro comuns. O tema do acesso à "água potável para as presentes e
futuras gerações" exige o envolvimento de toda a sociedade, de todos e de cada
um. A pré-história do desenvolvimento sustentável marca um lento caminho
até se chegar à sustentabilidade na atualidade, que se desenvolveu muito rapi-
damente, com suas convenções, princípios e regras. É necessário que a manu-
tenção e promoção do acesso à água nos âmbitos, social, econômico e jurídico
se dê da forma mais adequada e na velocidade da sede de cada um.

168
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Referências

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público e empresarial para uma economia verde e inclusiva. São Paulo: Pro-
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e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da
UNIVALI, Itajaí, v.12, n.1, 1º quadrimestre de 2017. Disponível em: www.uni-
vali.br/direitoepolitica - ISSN 1980-7791

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponí-


vel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompi-
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FERNANDES, Rodrigo. Sustentabilidade ambiental como direito fundamen-


tal: uma análise de sua acepção formal e material. Sustentabilidade meio
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Empório do Direito, 2016.

SCHONARDIE, Elenise Felzke. NOSCHANG, Patrícia Grazziotin. Responsa-


bilidade das empresas transnacionais na apropriação da água. Revista Direito
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ucs.br/etc/revistas/index.php/direitoambiental/article/view/3685/2108 . Acesso
em 17 jun 2017.

169
Mercados del agua en españa. Marco
legal y análisis económico

Joaquín Melgarejo Moreno1


Andrés Molina Giménez2

Introducción
La gobernanza del agua debe basarse en criterios de racionalidad económica
que conduzcan a una adecuada gestión y a la preservación de los recursos
naturales. Se trata de buscar mecanismos que trasladen a los consumidores
“señales de escasez”, que les induzca a valorar el agua por su coste efectivo con
la finalidad de moderar las demandas. Una política de precios puede contribuir
significativamente a la valoración del recurso y, como resultado de ello, ser un
estímulo eficaz para el ahorro de agua, mientras que la gratuidad es más bien
un estímulo al despilfarro. El papel que puede desempeñar la introducción de
pautas de comportamiento asociadas al “mercado” puede ser muy relevante ya
que, en principio, el mercado permite percibir señales inequívocas de la escasez
real que tiene el recurso.
Las crecientes demandas de agua, incluidas las medioambientales, han
puesto de manifiesto su valor económico y la necesidad de que el agua sea
asignada a unos usos eficientes. El mercado puede ser un mecanismo eficaz
para introducir racionalidad económica. Sin embrago, hay quien argumenta,
por el contrario, que un mercado de aguas podría tener impactos indeseados
sobre terceros, sean éstos otros usuarios o el medioambiente. Se insiste,
además, en que el mecanismo de precios no es capaz de reflejar algunos valores
sociales que son más cualitativos que cuantitativos (tales como el paisaje, las
tradiciones o la equidad).

1 Catedrático de Historia e Instituciones Económicas


Universidad de Alicante
2 Profesor titular de Derecho Adminsitrativo.
Universidad de Alicante

171
Joaquín Melgarejo Moreno, Andrés Molina Giménez

En cualquier caso, la creciente escasez de agua está forzando un cambio


en la concepción sobre este recurso, y también de los modelos existentes para
gestionarlo. La política hidráulica debe jugar un papel instrumental, orientado a
la provisión de un conjunto de servicios que o bien son esenciales para la vida,
o bien tienen un carácter estratégico para la economía.
El origen de los modernos mercados del agua ha sido similar en todos los
lugares donde se han establecido (Chile, California, Texas, Australia…). En
todos estos modelos la asignación de derechos de agua y el registro de sus
usos ha sido el resultado de complejos procesos históricos y de cambiantes
necesidades sociales.
La situación de España no difiere sustancialmente. Las rigideces del modelo
concesional tradicional han hecho casi imposible una reasignación eficaz de
los caudales previamente adjudicados para paliar situaciones temporales,
y resulta a su vez muy difícil para promover una reasignación estructural.
Son necesarios procedimientos de naturaleza expropiatoria o revisiones de
oficio de concesiones existentes, lo que conlleva grandes cargas burocráticas
(procedimiento de revocación de concesiones, recursos, litigiosidad
jurisdiccional, etc), conflictividad social (los usuarios se revelan frente a estas
medidas) y consecuencias económicas adversas (al privar a personas de su
medio de producción). En definitiva, estos procesos de reasignación de agua
son siempre conflictivos y en todo caso lentos, lo que no permite su utilización
como un mecanismo eficaz para reaccionar de manera rápida a los problemas
de desabastecimiento que puedan producirse.
Para superar estas rigideces se incorporan a la Ley de Aguas española de
1985 los llamados “contratos de cesión” y los “centros de intercambio” de
derechos de agua, como instrumentos que pretenden la creación de un mercado
regulado de aguas. En el primer caso, los contratos de cesión presuponen
un modelo bilateral de reasignación de agua, con intervención ex post de la
Administración hidráulica; en el segundo, se configura un modelo triangular
en el que la Administración asume la iniciativa de adquirir agua en concurso
público, para luego ofrecerla a terceros.
En este trabajo analizaremos con detalle el devenir de estos instrumentos,
así como las experiencias previas de mercados históricos asistemáticos que
han venido produciéndose en nuestro país, siempre como respuesta a las
rigideces del sistema demanial-concesional, o a la tradicional vinculación
del agua a la tierra.

172
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

2. Los mercados del agua en españa antes de la ley de


46/1999. El caso particular de canarias
Los mercados del agua no son un mecanismo nuevo ni desconocido
en nuestra historia hidráulica. En España han existido mercados de agua
organizados y regulados, algunos desde hace siglos. En el caso de los regadíos
deficitarios del sureste peninsular, la transformación del agua en propiedad
independiente, separada de la tierra, facilitó su desarrollo en el pasado (Gil
Olcina, 1993). La segregación agua-tierra fue un fenómeno posterior a la
conquista cristiana y supuso una copiosa fuente de ingresos procedentes de
la transmisión del turno de riego mediante arrendamiento, venta privada o
subasta (López Ortiz y Melgarejo, 2007).
Esta disociación tiende a desaparecer durante el Siglo XX. La Administración
hidráulica pretendió en diversas ocasiones rescatar del dominio privado las aguas
que estaban disociadas de la tierra, vinculando a la tierra la propiedad del agua.
Esta estrategia se articuló mediante la adquisición del agua a través del rescate
voluntario o la expropiación. Las medidas legislativas fueron claramente en
esa dirección, aunque a lo largo del Siglo, y hasta fechas recientes, pervivieron
situaciones de mercado basadas en dicha separación jurídica en muchos lugares
de nuestro país, sobre todo en el arco mediterráneo (Melgarejo, 1988).
Sin duda el caso más complejo y atractivo, que además ha llegado hasta
la actualidad, es el que se produce en Canarias, donde el agua, su transporte,
distribución y asignación es competencia básicamente privada, y funciona el
mercado. La separación del agua de su adscripción a la tierra y, por ende, la
génesis de un mercado del agua en las Islas guardó relación con la explotación
de la caña de azúcar.
El cultivo intensivo del cañaveral agota los suelos, de modo que, una vez
finalizado el ciclo productivo, la tierra queda largo tiempo en barbecho. En
consecuencia, si el agua permanecía adscrita a una determinada superficie de
tierra, el propietario de ambos recursos no podía optimizar la asignación del
primero durante el período de barbecho, debiendo entonces vender el uso de su
derecho de agua a los plantadores que carecían de ella.
Como demuestra Macías (2000), quiénes invirtieron en la “saca de aguas” y
carecían de tierras para su riego debían vender el agua para remunerar el capital
invertido. Ahora bien, las elevadas rentas que proporcionaba el azúcar sugieren

173
Joaquín Melgarejo Moreno, Andrés Molina Giménez

que los inversores en la “saca de aguas” preferirían maximizar los beneficios


de esta inversión irrigando cañas de su pertenencia. Para ello debían adquirir
las tierras de los colonos con derecho a agua pero sin capital con el fin de
materializar su derecho.
La organización jurídica de la explotación privada de los acuíferos canarios se
basa en la figura de la “comunidad de aguas”. Las comunidades o heredamientos de
aguas constituyen agrupaciones de propietarios, que más tarde se transformaron
en sociedades por acciones (Ley de 27 de diciembre de 1956).
Existen dos modalidades de mercados del agua en las Islas: de acciones y de
agua, ambos gestionados por la iniciativa privada (Ariño y Sastre, 1999, 2001).
El mercado de acciones consiste en la libre transacción de participaciones de las
comunidades de aguas, heredamientos y comunidades de regantes, de tal manera
que se compran y venden acciones de propiedad de estas comunidades, lo que da
derecho a volúmenes de agua como si de una bolsa se tratara. El mercado de agua
consiste en la compraventa directa de caudales o volúmenes de agua, a través de
“intermediarios” o “corredores”, que tienen como misión comprar, distribuir y
vender agua. El pago se realiza al intermediario y éste, previo descuento de una
comisión, le entrega el dinero al propietario de los caudales.
La administración pública municipal se somete a estas reglas del mercado,
si bien en épocas de escasez puede expropiar o requisar el agua para el
abastecimiento urgente de la población. Otra modalidad de mercado es el
institucional, que se inició en 1960 por el Cabildo Insular de Tenerife mediante
la creación de un organismo propio, llamado BALNORTE y en la actualidad
BALTEN (Balsas de Tenerife), que compra agua en invierno y la vende en
verano con el fin de incidir en el mercado; para ello explota y mantiene balsas de
regulación para regadío de las que es titular. Por último, también son frecuentes
los arrendamientos temporales de aguas, normalmente por períodos anuales o
por temporadas de riego de los cultivos.
En ocasiones, tanto los oferentes del agua como los dueños de las
infraestructuras actúan en régimen de monopolio u oligopolio pudiendo detraer
gran parte de las ventajas generadas por el mercado en beneficio propio. La
falta de transparencia o la existencia de posiciones privilegiadas por parte de
algunos operadores perturban el funcionamiento del mercado y facilitan un
reparto desigual de las ganancias derivadas del intercambio.
Naturalmente, esta realidad tan diferente de la que se observa en la España
peninsular ha dado lugar a una legislación propia para este territorio. Hasta 1987,

174
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

la legislación civil, mercantil y administrativa aplicable a los aprovechamientos


de agua subterránea en Canarias era la Ley de 27 de diciembre de 1956 sobre
Heredamientos de Aguas en el Archipiélago Canario, y la Ley de 24 de
diciembre de 1962 sobre Aprovechamiento de Aguas y Auxilio de los mismos
en Canarias. La Ley actualmente vigente es de 26 de junio de 1990, y en ella
destaca un extenso régimen transitorio que, partiendo del reconocimiento del
dominio público hidráulico básico de las aguas, respeta la posibilidad de que
las comunidades y heredamientos mantengan la propiedad privada del agua
(Disposiciones 2ª y 3ª). Gracias a ello el mercado del agua continuará hasta
al menos dentro de setenta y cinco años. La Ley también introduce una cierta
intervención administrativa en materia de planificación y control de estos
mercados (Dominguez Vila, 1996).

3. Los mercados del agua en la españa peninsular


tras la reforma de la ley de aguas de 1999 y sus
sucesivas adaptaciones

3.3. Marco jurídico común.


La reforma de la Ley de Aguas de 1985 (TRLA), producida el 13 de
diciembre de 1999, modificó sustancialmente el sistema de explotación de
las aguas en España, introduciendo criterios de racionalidad económica.
Esta reforma incorpora al ordenamiento jurídico español unos instrumentos
absolutamente novedosas, los contratos de cesión de derechos de agua y los
centros de intercambio, y con ellos, un verdadero mercado del agua (López
Pellicer, 2001).
Con ello el legislador pretende flexibilizar el régimen concesional de acceso
al recurso, que vincula el agua al uso y lugar (principalmente a la tierra)
inicialmente concedido. La reasignación de los caudales previamente asignados
por las Confederaciones hidrográficas puede realizarse a través de procedimientos
de revisión concesional, que deben basarse en razones de interés general o en
la necesidad de adecuar los aprovechamientos a la planificación hidrológica
(entre otras causas). Esto permite a la Administración hidráulica, en el plano
teórico, reasignar recursos a usos preferentes como el abastecimiento humano.
El problema radica en que este tipo de procedimientos son extraordinariamente

175
Joaquín Melgarejo Moreno, Andrés Molina Giménez

complejos, encierran una elevada litigiosidad potencial (con posible suspensión


cautelar), y generan el derecho a una compensación económica. Estos factores
conducen a su ineficacia práctica como mecanismo de intervención general
(Melgarejo y Molina, 2017).
Para superar estas limitaciones el contrato de cesión de derechos de
aprovechamiento permite a dos concesionarios o usuarios de agua con título
legal de aprovechamiento llegar a un acuerdo por el que se entregan recursos
a cambio de un precio pactado. El alcance subjetivo de estos contratos es
particularmente amplio, ya que pueden participar tanto los concesionarios
de agua como los titulares de otros derechos sobre el agua de origen legal. A
partir del Real Decreto Ley 15/2005 y sus sucesivas prórrogas, también pueden
participar en estas cesiones los titulares de derechos adscritos a zonas regables
de iniciativa pública (80% de los recursos superficiales), y los que disponen de
títulos derivados del régimen de reforma y desarrollo agrario (otorgados por el
Instituto de Colonización y el IRYDA). También quedan incluidos los titulares
de otros derechos derivados de leyes especiales, como los del Trasvase Tajo-
Segura (SCRATS y MCT).
Los contratos de cesión son también posibles con relación a las aguas
reutilizadas, tal como prevé el Real Decreto 1620/2007, de 7 de diciembre, por
el que se establece el régimen jurídico de la reutilización de las aguas depuradas;
por consiguiente, pueden participar los titulares de concesiones o autorizaciones
complementarias de reutilización. Los concesionarios de aguas desaladas
participan también en el marco del régimen general en los contratos de cesión.
La Confederación Hidrográfica competente debe autorizar el contrato
suscrito entre los usuarios para que éste pueda tener efectos. Es preciso para
ello que se cumplan las condiciones establecidas en la Ley de Aguas: las
cesiones sólo pueden realizarse a titulares de igual o superior rango, los predios
a regar con menor dotación, o a los que se renuncia a regar, deben quedar
identificados. Por otra parte, debe demostrarse la no afectación negativa al
régimen de explotación de los recursos en la cuenca, a los derechos de terceros,
a los caudales medioambientales, y al estado o conservación de los ecosistemas
acuáticos, entre otros aspectos. Como puede apreciarse, existe un elevado
nivel de discrecionalidad por parte de la Administración para interpretar estas
condiciones y autorizar o denegar el contrato (Melgarejo y Molina, 2005).
El modelo de los centros de intercambio de derechos de agua (bancos del
agua), también recogido en el TRLA tras la reforma de 1999, tiene una gran

176
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

potencialidad, pero no ha sido utilizado de manera importante; de hecho, sólo


han existido algunas experiencias con fines ambientales (detracción de caudales
de uso agrario para redotar espacios ambientales y zonas húmedas en mala
situación) y para abastecimiento urbano. El Real Decreto Ley 9/2006, de sequía,
reforzó los objetivos ambientales (creación de reservas) y de abastecimiento
(previo convenio) de los centros de intercambio.
Con este instrumento se configura un sistema triangular en el que la
Administración lleva la iniciativa realizando ofertas públicas de adquisición
de agua a un precio determinado, que una vez adquirida pone a disposición
de terceros (Montilla et al., 2017). Los condicionantes formales pasan en este
caso por una solicitud previa al Ministerio competente para que acuerde su
constitución, tras lo cuál se precisa la autorización del Centro por parte del
Consejo de Ministros. Tras ello, el organismo de cuenca realizará las ofertas
públicas de adquisición y las cesiones correspondientes, con determinación
de las condiciones de calidad, volúmenes, importes máximos y mínimos
ofertados, condiciones y formas de pago, plazos, criterios de adquisición
y adjudicación, destino potencial de los caudales solicitados, tiempo de
utilización, etc. Todo ello bajo procedimientos que garanticen la publicidad
y libre concurrencia competitiva.
El TRLA exige justificar expresamente la creación de un centro de
intercambio, lo que supone un cierto límite para su utilización. Establece al
efecto una serie de supuestos habilitantes que deben concurrir. No obstante,
los motivos son particularmente amplios, por lo que el campo decisional
es extenso: “cuando lo exija la disponibilidad del recurso”; “para garantizar
su explotación racional”; “recursos sobreexplotados o en riesgo de estarlo”;
“sequías extraordinarias, estados de necesidad o concurrencia de situaciones
anómalas o excepcionales”.

3.2. Cesiones entre diferentes demarcaciones hidrográficas

El régimen jurídico del contrato de cesión hubo de ser modificado a los pocos
años de su aprobación para permitir una utilización más generalizada del mismo.
La modificación, que afectaba al régimen de utilización de las infraestructuras
de conexión intercuencas, tuvo durante mucho tiempo carácter temporal y
excepcional, por haberse articulado a través del Real Decreto Ley 15/2005, cuya

177
Joaquín Melgarejo Moreno, Andrés Molina Giménez

vigencia hubo de ser prorrogada anualmente mientras permanecieran las causas


de extraordinaria y urgente necesidad que lo motivaron.
Conforme al TRLA, en su versión inicial, las cesiones temporales de
derechos de aprovechamiento entre demarcaciones hidrográficas estaban
sujetas a reserva de Ley (Plan hidrológico nacional o Ley singular reguladora
del Trasvase), y sólo podían ser autorizadas mediante resolución del Ministro
Medio Ambiente. El silencio administrativo, en caso de ausencia de resolución
dentro del plazo establecido, era desestimatorio. Los Reales Decretos Ley
15/2005 y 14/2009, sin embargo, modificaron este régimen al permitir que las
infraestructuras del Trasvase Tajo Segura y del Trasvase Negratín-Almanzora
pudieran ser utilizadas para realizar estos intercambios con mayor flexibilidad.
El Memorandum del Tajo-Segura, gracias a su incorporación a la Ley 21/2013
de 9 de diciembre, de evaluación ambiental (LEA), terminó por flexibilizar este
régimen de forma permanente. Desaparece definitivamente la reserva de Ley
para autorizar cesiones entre demarcaciones, y se rebaja el rango competencial
decisorio al nivel de la Dirección General del Agua. Junto a ello, la autorización
de uso de las infraestructuras de interconexión queda subsumida en la que
autoriza la cesión. El silencio administrativo, sin embargo, se mantiene en un
sentido desestimatorio. Además, las cesiones deben respetar las normas de
explotación de la legislación que regula cada Trasvase (Melgarejo et al., 2014).
Esta reforma está en plena sintonía con las modificaciones efectuadas
al régimen de explotación de alguno de los trasvases existentes,
particularmente el Tajo-Segura, con lo que es lícito pensar que las cesiones
intercuencas puedan convertirse en la alternativa a la posible limitación de
las aguas trasvasables al amparo de las nuevas reglas de explotación y de sus
eventuales modificaciones (Navarro, 2015).
Es importante puntualizar que, según el Tribunal Supremo (Sentencia de
26 de junio de 2015), es imprescindible diferenciar, en términos jurídicos,
entre lo que es una cesión de derechos de uso del agua entre demarcaciones
hidrográficas diferentes y lo que es propiamente un trasvase, ya que los límites
y condicionantes que operan en cada caso no son equiparables. Los contratos
de cesión no son en ningún caso un trasvase pese a movilizar caudales
entre demarcaciones diferentes, y por tanto no están sujetas a reserva de ley
(Navarro, 2008, 2010, 2016).

178
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

El esquema normativo que facilita la movilización de caudales entre


demarcaciones es también aplicable a los centros de intercambio de derechos de
agua, por lo que su utilización presenta mayores oportunidades en la actualidad.

4. Experiencias de mercados en cuencas deficitarias


tras la ley de 1999
Los condicionantes naturales, históricos e institucionales que operan sobre
el mercado del agua en España lo convierten en un mecanismo con muchas
restricciones. Pese a ello, pueden destacarse algunas experiencias de interés.
Uno de los primeros contratos que se produjo tras la incorporación de
los mercados del agua en 1999 fue el realizado entre La Mancomunidad del
Sorbe (Guadalajara, Alcalá de Henares, ...) y la Comunidad de Regantes
Canal de Henares, que compró por 2 millones de euros 20 hm 3 anuales.
(El País, 11 de agosto de 2002). La duración del contrato era por diez años.
Cabe señalar que solo en 2002 y en 2005 se hicieron transferencias de agua
efectivas, por volúmenes de 4 hm 3 y 14 hm 3, respectivamente (Palomo-
Hierro y Gómez-Limón, 2016).
Otro de los contratos de cesión iniciales fue el celebrado en febrero de 2007
entre la Comunidad de Regantes de Pago de la Vega de Serón en Almería
(cedente) y Aguas de Almanzora SA (cesionario). Se trataba también de un
contrato para movilizar aguas dentro de la misma Demarcación, ya que ambas
Comunidades pertenecen a las Cuencas Mediterráneas Andaluzas. El precio
de la operación fue de 0,15 €/m3, por un volumen total de 0,9 hm3 (Palomo-
Hierro y Gómez-Limón, 2016).
En el ámbito de la Confederación Hidrográfica del Segura (CHS), esta
Institución llegó a autorizar 54 cesiones de derechos dentro de la Demarcación
del río Segura entre los años 2000 y 2008, con un volumen total de 19,01
hm3. Se trataba de agua del regadío para el regadío. El parámetro elegido para
fijar la compensación económica fue la tarifa que se aplicaba a los regadíos
dependientes del trasvase Tajo-Segura: 0,17 €/ m3 (SCRATS, Memoria 2009).
También en esta demarcación, aunque con destino al abastecimiento urbano, la
entidad gestora de este servicio en fase de alta (MCT) realizó en mayo de 2006,
en plena situación de emergencia por sequía, un contrato con regantes de los
municipios de Hellín (Albacete) y Moratalla (Murcia) por el que se adquirieron

179
Joaquín Melgarejo Moreno, Andrés Molina Giménez

1,2 hm3 a cambio de una compensación de 0,30 €/m3. El acuerdo supuso dejar de
regar unas 300 hectáreas de arroz, y la compensación económica a los regantes
ascendió a 360.000 euros (CEMCT 14/7/2006)
El Real Decreto Ley 15/2005, como ya se ha indicado, abrió la puerta a la
utilización de las infraestructuras de conexión intercuencas, dando un nuevo
impulso al mercado. Gracias a este nuevo marco legal, en 2006 se autorizó una
transferencia de 1,08 hm3 de agua a través del Trasvase Negratín-Almanzora,
desde el bajo Guadalquivir, a Aguas de Almanzora SA, sociedad constituida
para explotar los recursos hídricos del trasvase para el riego de 17 comunidades
de regantes del norte de Almería (Gil Meseguer y Gómez Espín, 2017). A este
contrato siguieron otros sucesivos. El precio estimado fue de 0,18 €/m3 (Palomo
Hierro y Gómez Limón, 2016).
En el ámbito de la cuenca del río Segura, durante el trienio 2006-2008, se
hizo imprescindible la constitución por parte de la MCT de reservas estratégicas
anuales en la cabecera del Tajo, lo que se articuló mediante contratos de cesión
de derechos con la Comunidad de Regantes del Canal de las Aves (Aranjuez)
por un volumen total de 108 hm3. En concreto, en 2006, firmaron contratos
de cesión de derechos de agua por un montante de 35,5 hm³ y un importe de
10,2 millones de euros, como se observa en la tabla 1. En las dos anualidades
siguientes se realizaron operaciones similares.
Tabla 1. Contratos de cesión intercuencas entre la MCT y la CR. Canal de las Aves

Comprador Cedente Año hidrológico Volumen en Precio Compensación


origen (hm3) (€/m3) (euros)
MCT C.R Canal 2005-2006 35,52 0,2885 10.247.520
de las Aves
2006-2007 36,03 0,2364 8.517.492
2007-2008 36,94 0,3130 11.562.220

Fuente: MCT. Elaboración propia

En el sector del regadío, el SCRATS firmó cuatro convenios entre 2006 y


2009 con la CR del Canal de Estremera. El volumen objeto de cesión fue de
31,05 hm3. La CR de Estremera, de Castilla La Mancha, renunciaba a utilizar
la totalidad de su concesión durante el período establecido en cada uno de los
contratos de cesión, durante los cuales llevó a cabo la mejora y modernización
de toda la zona regable (Claver, 2013). La compensación económica acordada,

180
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

el primer año, fue de 0,1855 €/m3, valor que fue incrementándose en una cuantía
igual al 50% del valor del IPC de cada año, con excepción del cuarto contrato,
en el que no se realizó actualización alguna de la compensación, y en el que el
precio fue de 0,192 €/m3.
Los resultados económicos de estos contratos ponen de manifiesto
importantes ganancias de eficiencia (rentas privadas de los operadores) como
consecuencia del mercado, las cuales podrían compensar los potenciales efectos
ambientales y sociales negativos de estas operaciones. Puede afirmarse que los
mercados de agua permitieron incrementar el valor del agua, ya que los recursos
hídricos se transfieren de usos de menor valor a otros de mayor valor (Calatrava
y Gómez Limón, 2016).
En claro contraste con estas experiencias, desarrolladas en el anterior
ciclo de sequía que afectó al Sudeste de España, encontramos que en la actual
sequía que se viene produciendo desde 2015 no se han ofrecido caudales
significativos procedentes de cesiones intercuencas. Ni los regantes (SCRATS)
ni los abastecimientos (MCT) han podido hacer uso de este mecanismo
mitigador de la sequía de manera significativa, pese a tener contratos de cesión
en tramitación; es decir, en espera de aprobación por parte de la Dirección
General del Agua y de la CHS. Así, por ejemplo, el SCRATS tiene acuerdos
con titulares de derechos en la cuenca del Tajo: CR de Estremera (6,5 hm³ en
origen), con la CR La Poveda (1,416 hm³ en origen) y con HECOP SL (1,0 hm³
en origen), que no ha podido materializar. En la tabla 2 se puede apreciar el
claro contraste entre el florecimiento de estos contratos en durante la sequía
que se inició en 2005, y la pobre utilización en la actual sequía iniciada en 2015.
Tabla 2. Contratos de cesión entre regantes de la DHT y DHS.

Año hidrológico Cedente Cesionario Volúmen Precio €/m3 Compensación


Hm3
2005-06 CR Estremera SCRATS 31,05 0,185562 5.761.700
2006-07 CR Estremera SCRATS 31,05 0,188067 5.839.480
2007-08 CR Estremera SCRATS 31,05 0,19016 5.962.097
2008-09 CR Estremera SCRATS 31,05 0,19016 5.962.097
2013-14 CR Estremera SCRATS 5,560 0,06 333.600
2014-15 CR Estremera SCRATS 7,7 0,06 462.000
2013-14 CR La Poveda SCRATS 1,4 0,06 84.000
2014-15 CR La Poveda SCRATS 1,4 0,06 84.000

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Joaquín Melgarejo Moreno, Andrés Molina Giménez

2015-16 Sociedad HE- SCRATS 1 0,085 85.000


COP, SL
2015-16 CR La Poveda SCRATS 1,4 0,085 120.360
2015-16 CR Estremera SCRATS 8,5 0,085 722.500
2016-2017* CR Estremera SCRATS 6,5 0,085
2016-2017* Sociedad HE- SCRATS 1 0,085
COP SL.
2016-2017* CR La Poveda SCRATS 1,4 0,085

*Todavía no se han autorizado por la Dirección General del Agua del MAPAMA
(septiembre 2017).

Fuente: CHS y SCRATS. Elaboración propia.

El Real Decreto-ley 10/2017, de 9 de junio, que constituye el último “decreto


de sequía”, circunscribe de hecho la utilización de los contratos de cesión a
la transferencia temporal de derechos en el interior de cada demarcación
hidrográfica: “se podrán celebrar contratos de cesión de derechos, entre concesionarios
y titulares de derechos de una misma cuenca tomando como referencia los volúmenes
concedidos y no los utilizados en los últimos 5 años”. Esta decisión gubernativa
dificulta ciertamente la utilización de los contratos de cesión inter-cuencas.
Debido a lo anterior, los contratos de cesión dentro de la misma demarcación
han tenido mayor recorrido, aunque siguen siendo modestos. Cabe mencionar,
por ejemplo, el contrato de cesión de derechos en 2016 y 2017 entre regantes
dentro de la Demarcación del Segura, llevado a cabo entre la CR Riegos de
Levante Margen Derecha del Segura CRLMD) y el SCRATS (SCRATS,
Memoria 2017). Los detalles de las experiencias desarrolladas pueden verse en
la siguiente tabla.
Tabla 3. Contratos de cesión entre regantes dentro de la DHS

Año Cedente Cesionario Volumen Precio Compensación


hidrológico hm3 €/m3 €
2011-12 CCRR de CR Pulpí 2 0,20
Sangonera y (Almería)
Campotéjar
2013-14 CR Campo- SCRATS 1,2 0,06 72.000
téjar
2013-14 CR RLMD SCRATS 4 0,06 240.000

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

2013-14 Junta Ha- CCRR Águi- 5 0,16 800.000


cendados las y Mazarrón
Huerta de
Murcia
2014-15 Junta Ha- CCRR Águi- 5 0,16 800.000
cendados las y Mazarrón
Huerta de
Murcia
2015-16 CR RLMD SCRATS 4 0,10 344.000
2016-17* CR RLMD SCRATS 4 0,10 344.000

*Todavía no se ha autorizado por la CHS (septiembre de 2017)


Fuente: CHS y SCRATS. Elaboración própria
Por último, cabe mencionar que entre julio y agosto de 2017 la MCT
(abastecimiento urbano) ha llegado a acuerdos de cesión temporal de derechos
con los ayuntamientos de Hellín (Albacete), Abarán (Murcia) y con el
Heredamiento de Aguas de Alguazas (Murcia). Los volúmenes objeto de los
contratos ascienden a 2; 0,4 y 4,25 hm3, respectivamente. La compensación
económica a abonar por la MCT en los tres casos es de 0,18 €/m3.

Conclusiones
Tras analizar los distintos tipos de mercados del agua que en España se han
producido, parece que el contexto en el que estos instrumentos de reasignación
temporal del recurso deben situarse es aquel que viene marcado por la escasez
estructural de agua, de ahí que la mayor parte de los contratos de cesión y los
mercados históricos se hayan producido principalmente en el sureste de España
y en las islas Canarias.
Se trata de mecanismos que albergan un gran potencial para una gestión
eficiente y sostenible de los recursos hídricos. Pese a ello, su desarrollo ha sido
relativamente escaso. Los intercambios se han realizado mayoritariamente
mediante la figura de los contratos de cesión y, en menor medida, mediante los
centros de intercambio, realizándose la mayor parte de ellos en circunstancias
de sequía y entre usuarios del sector agrario.
Los mercados de agua solo han estado realmente activos durante períodos
de sequía extrema, como el ocurrido entre los años 2006-2008; en momentos
de “normalidad” hidrológica, el número de operaciones se ha reducido al
mínimo. Sin embargo, en la actual sequía 2015-2017, pese a su gravedad, las

183
Joaquín Melgarejo Moreno, Andrés Molina Giménez

transacciones han sido menores de lo esperado, y ello ha tenido que ver con
limitaciones burocráticas y administrativas. Un instrumento que en principio
estaba pensado para mitigar las sequías en cuencas deficitarias, se ha visto
reducido a pequeños intercambios dentro de la misma cuenca, con lo que su
papel como corrector de situaciones de grave escasez ha quedado en entredicho.
La aplicación práctica de los mercados de agua no siempre ha conducido
a asignaciones eficientes del recurso. Los factores de ineficiencia dependen,
entre otras cuestiones, del tipo de mercado, de la naturaleza de los derechos
de propiedad, del marco regulatorio de los intercambios y del ámbito
espacial del mercado. Incluso con un marco jurídico adecuado, se pueden
producir ineficiencias en las transacciones debido a las profundas divisiones
de carácter político y territorial, que en ocasiones dificultan su desarrollo.
Así, se observa cómo en la actual sequía, que sufre especialmente la cuenca
del Segura, se ha dificultado la llegada de agua de otras cuencas a través de
la cesión temporal de derechos.
En suma, aunque la Ley 46/1999, de Reforma de la Ley de Aguas, surgió
para flexibilizar el modelo demanial-concesional, y reasignar recursos a través
del mercado, sobre todo en momentos de sequía, su alcance ha sido muy
limitado, ya que los volúmenes efectivamente intercambiados han sido escasos.
La mayoría de las “ventas” de agua se han concentrado en la severa sequía
que tuvo lugar en el periodo 2005-2008, mientras que en la actual de 2015-
2017, han sido menores y circunscritos a intercambios internos dentro de cada
demarcación hidrográfica.

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SCRATS: http://www.scrats.es/memorias-e-informes.html

ACRÓNIMOS

ATS (Acueducto Tajo-Segura)

CEMCT (Actas del Comité Ejecutivo de la MCT)

186
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

CHS (Confederación Hidrográfica del Segura)

CIDUAs (Centros de Intercambio de Derechos al Uso del Agua)

CRLMD (Riegos de Levante Margen Derecha del Segura)

DGA (Dirección General del Agua)

DHS (Demarcación Hidrográfica del Tajo)

DHT (Demarcación Hidrográfica del Tajo)

IRYDA (Instituto de Reforma y Desarrollo Agrario)

SCRATS (Sindicato Central de Regantes del Acueducto Tajo-Segura)

STS (Sentencia del Tribunal Supremo)

TRLA. (Real Decreto Legislativo 1/2001, de 20 de julio, por el que se aprueba


el texto refundido de la Ley de Aguas).

187
Água: bem ou mercadoria?

Denise Schmitt Siqueira Garcia1

Introdução
Não restam dúvidas que a água doce é essencial para humanidade, eis que
indispensável para manutenção da vida no planeta. É um recurso renovável,
mas relativamente escasso em algumas regiões do planeta. No Brasil mesmo
tendo-a em abundância existe um mau uso caracterizado tanto pelo uso exces-
sivo, quanto pelo uso inadequado, ou inescrupuloso, o que leva à degradação
desse recurso. Assim a pesquisa aqui desenvolvida traz a tona essa discussão tão
importante, atual e essencial para sobrevida na terra.
O presente artigo tem como objeto e como objetivo geral ANALISAR se
a água deve ser considerada um bem ou uma mercadoria. E os objetivos es-
pecíficos são VERIFICAR a necessidade da proteção da qualidade da água;
ANALISAR quem tem o direito do acesso à água; IDENTIFICAR o que é
bem ambiental, e por fim, DISCUTIR os conceitos de bem e mercadoria para
concluir qual o tratamento que deve ser dado para a água.
Portanto tem como problema central: A água deve ser considerada um bem
ou uma mercadoria?
Para tanto o presente artigo vem dividido em quatro partes. A primeira traz
uma análise acerca da necessidade da proteção da qualidade da água; a segun-
da a abordagem a ser feita é sobre o direito do acesso a água; a terceira é uma
verificação do que é um bem ambiental e a quarta e última adentra no tema

1 Doutora pela Universidade de Alicante na Espanha. Professora do Programa de Pós-Graduação


Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI – PPCJ. Mestre em Direito Ambiental pela
Universidade de Alicante – Espanha. Mestre em Ciência Jurídica. Especialista em Direito Processual
Civil. Professora no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica, nos cursos de
Doutorado e Mestrado em Ciência Jurídica, e na Graduação no Curso de Direito da Universidade
do Vale do Itajaí – UNIVALI. Membro do Instituto dos Advogados de Santa Catarina. Membro da
Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros. Membgro do Instituto de
Advogados do Brasil. Advogada. E-mail: denisegarcia@univali.br.

189
Denise Schmitt Siqueira Garcia

central da pesquisa que é analisar se a água deve ser tratada como um bem ou
uma mercadoria.
A metodologia utilizada na fase de Investigação foi o método indutivo; na
fase de Tratamento dos Dados foi utilizado o método Cartesiano e, no relatório
da pesquisa, foi empregada a base lógica indutiva.2
Serão acionadas as técnicas do referente3, da categoria4, dos conceitos ope-
racionais5, da pesquisa bibliográfica6 e do fichamento7.
Nesse contexto que se revela a relevância social e científica desta pesquisa
como modo de se analisar qual o tratamento deve ser dado para a água. Se ela
deve ser considerada um bem ou uma mercadoria.
Em linhas gerais é nesse universo que é desenvolvida a pesquisa, res-
tando assim caracterizada sua relevância social, bem como contribuição à
Ciência Jurídica.
Na metodologia foi utilizado o método indutivo na fase de investigação;
na fase de tratamento de dados o método cartesiano e no relatório da pes-
quisa foi empregada base indutiva. Foram também acionadas as técnicas do

2 PASOLD, Cesar Luis. Prática da Pesquisa Jurídica e metodologia da pesquisa jurídica.


Florianópolis: OAB/SCEditora, 2007.
3 "explicitação prévia do motivo, objetivo e produto desejado, delimitado o alcance temático e de
abordagem para uma atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa".PASOLD,Cesar Luiz.
Prática da Pesquisa Jurídica, cit..especialmente p. 241.
4 “palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia".PASOLD,Cesar Luiz.
Prática da Pesquisa Jurídica, cit..especialmente p. 229.
5 “definição estabelecida ou proposta para uma palavra ou expressão, com o propósito de que tal
definição seja aceita para os efeitos das idéias expostas”. PASOLD,Cesar Luiz. Prática da Pesquisa
Jurídica, cit..especialmente p. 229.
6 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais”.PASOLD,Cesar
Luiz. Prática da Pesquisa Jurídica, cit.. especialmente p. 240.
7 “Técnica que tem como principal utilidade otimizar a leitura na Pesquisa Científica, mediante
a reunião de elementos selecionados pelo Pesquisador que registra e/ou resume e/ou reflete e/ou
analisa de maneira sucinta, uma Obra, um Ensaio, uma Tese ou Dissertação, um Artigo ou uma aula,
segundo Referente previamente estabelecido”. PASOLD,Cesar Luiz. Prática da Pesquisa Jurídica,
cit.. especialmente p. 233.

190
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

referente8, da categoria9, dos conceitos operacionais10, da pesquisa biblio-


gráfica11 e do fichamento12.

1. Da necessidade da proteção da qualidade da água


A água é a mais abundante substância simples da biosfera, existindo de for-
ma líquida (doce ou salgada), sólida (doce) e vapor (doce).
A água, termo feminino de etimologia latina – acqua, é conceituada como
substância (H20) líquida e incolor, insípida e inodora, essencial para a vida
da maior parte dos organismos vivos, além de excelente solvente para muitas
outras substâncias.13
Existe um vocabulário técnico hídrico para identificação dos tipos de água
existentes, o qual se passa a exemplificar:

Quanto ao uso predominante (sistemas de classes de qualidade): (i)


águas doces: águas com salinidade igual ou inferior a 0,5%; (ii) águas
salobras: águas com salinidade igual ou inferior a 0,5% e 30%; (iii) águas
salinas: águas com salinidade igual ou superior a 30%.

8 "explicitação prévia do motivo, objetivo e produto desejado, delimitado o alcance temático e de


abordagem para uma atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa". PASOLD, Cesar Luis.
Prática da Pesquisa Jurídica e metodologia da pesquisa jurídica. Florianópolis: OAB/SC Editora,
2007, p. 241.
9 “palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia". PASOLD, Cesar Luis.
Prática da Pesquisa Jurídica e metodologia da pesquisa jurídica, p. 229.
10 “definição estabelecida ou proposta para uma palavra ou expressão, com o propósito de que tal
definição seja aceita para os efeitos das idéias expostas”. PASOLD, Cesar Luis. Prática da Pesquisa
Jurídica e metodologia da pesquisa jurídica, p. 229.
11 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais”. PASOLD, Cesar
Luis. Prática da Pesquisa Jurídica e metodologia da pesquisa jurídica, p. 240.
12 “Técnica que tem como principal utilidade otimizar a leitura na Pesquisa Científica, mediante
a reunião de elementos selecionados pelo Pesquisador que registra e/ou resume e/ou reflete e/ou
analisa de maneira sucinta, uma Obra, um Ensaio, uma Tese ou Dissertação, um Artigo ou uma aula,
segundo Referente previamente estabelecido”. PASOLD, Cesar Luis. Prática da Pesquisa Jurídica e
metodologia da pesquisa jurídica, p. 233.
13 D’ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Água juridicamente sustentável. São Paulo: Revista dos
Tribunais. 2010. p. 28.

191
Denise Schmitt Siqueira Garcia

Quanto à localização: (i) águas subterrâneas: as águas que correm natu-


ralmente ou artificialmente no subsolo; (ii) águas superficiais: água que
se escoa ou se acumula na superfície do solo.
Quanto à potabilidade: ‘água potável é a água para consumo humano,
cujos parâmetros microbiológicos, físicos, químicos e radioativos aten-
dam ao padrão de potabilidade e que não oferece riscos à saúde.14

“A água, líquido transparente em seu estado de pureza, é um elemento na-


tural imprescindível à vida no planeta. Além do mais, trata-se de um recurso
multifuncional, servindo ao abastecimento humano, à agropecuária, à geração
de energia, ao transporte, à recreação e a tantos outros usos”.15
Classificam-se ainda as águas em internas ou interiores (os rios, lagos, mares
interiores, o mar territorial, os portos, canais16 e ancoradouros17, as baías18, gol-
fos e estuários) e externas (as águas contíguas e o alto-mar).19
“Perto de 97% das águas são salgadas e constituem os oceanos e mares;
2,5% localizam-se, como sólido (gelo), nas calotas polares e nas geleiras; o resto
(0,72%) estão nos rios, lagos, etc; e uma ínfima quantidade na atmosfera”.20

Da água doce existente no mundo são utilizados 73% na agricultura,


21% na indústria e 6% como água potável. A água utilizada na agricul-
tura é grandemente desperdiçada, pois quase 60% de seu volume total se

14 D’ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Água juridicamente sustentável. São Paulo: Revista dos
Tribunais. 2010. p. 28.
15 PES, João Hélio Ferreira. Água potável e a teoria dos bens fundamentais de Luigi Ferrajoli. http://
www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=da6cb383f8f9e58f. Consultado em 05 de março de 2018.
16 Parte navegável de via marítima ou a passagem estreita, cavada por processo natural ou artificial,
separando dois trechos de costa, ilhas, rochedos, etc., com largura ainda suficiente para permitir a
navegação. In: LEAL, Abinael Morais. Dicionário de termos náuticos, marítimos e portuários.
São Paulo: Aduanerias, 1992. p. 83.
17 Lugar destinado ao estacionamento do navio no porto marítimo, fluvial ou lacustre, desde que
a embarcação possa ancorar com segurança. O ancoradouro deve ser protegido do vento e do
movimento das águas, pelo aspecto apropriado de um ponto da costa, ou pelas edificações contruídas
especialmente para permitir a ancoragem. Diz-se também, fundeadouro. In: LEAL, Abinael Morais.
Dicionário de termos náuticos, marítimos e portuários. p. 83.
18 Acidente geográfico ou qualquer lugar côncavo do litoral onde se possa aportar. É de grande
significação na organização e instalação de um porto. In: LEAL, Abinael Morais. Dicionário de
termos náuticos, marítimos e portuários.. p. 83.
19 SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007.p. 119.
20 SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 119.

192
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

perde antes de atingir a planta. A água dita potável é de qualidade muito


precária, pois nos países pobres chamados de terceiro mundo, mais de
80% das doenças e mais de um terço da taxa de mortalidade são em
decorrência da má qualidade da água utilizada pela população para o
atendimento de suas diversas necessidades.21

Com o aumento da população mundial, o desmatamento e o mau uso dos


recursos naturais, iniciou-se uma nova era, na qual a água, antes considerada
um recurso ilimitado, é entendida como um bem escasso. Essa realidade já é
bem evidente no mundo todo, ante a escassez cada vez maior da água.

O Brasil ocupa uma posição de destaque em relação à água, correspon-


dente a 12% da disponibilidade mundial, ou seja, 180 mil m3/s, em rela-
ção a 1,5 milhões de m3/s. Se forem consideradas as razões provenien-
tes de território estrangeiro – Bacia Amazônica, Uruguai e Paraguai -,
a vazão brasileira alcança o índice de 18% da disponibilidade hídrica
mundial. Todavia, a distribuição da rede hidrográfica do Brasil não cor-
responde à distribuição espacial da sua população.22

Embora o Brasil seja um país com essa importante rede hidrográfica ainda
existem muitas disparidades, ou seja, algumas regiões com excesso de uso e ou-
tras com parcos acessos. “Daí surge a importância da gestão de recursos hídri-
cos, tanto no âmbito do planejamento como no controle de seu uso, com vistas
não apenas a garantir o acesso à água a toda população, como para organizar os
diversos tipos de usos desse recurso por seus usuários”.23
Os graves problemas que afetam as águas em todo o mundo levaram a co-
munidade internacional a firmarem princípios para a utilização sustentada das
águas e para a sua conservação para as futuras gerações.
Os princípios ora referidos foram estabelecidos pela Conferência Internacio-
nal sobre Água e Desenvolvimento, realizada em Dublim, Irlanda, no ano de
1992. Os princípios são os seguintes:

1) A água é um recurso finito e vulnerável, essencial para a manuten-


ção da vida, do desenvolvimento e do meio ambiente;

21 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. Rio de janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006. p.687.
22 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Editora Atlas, 2009. p. 185.
23 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Editora Atlas, 2009. p. 185.

193
Denise Schmitt Siqueira Garcia

O desenvolvimento e a administração da água devem estar baseados


em uma abordagem participativa, envolvendo os usuários, planejadores
e elaboradores de políticas públicas em todos os níveis;
A mulher desempenha um papel central na administração, na proteção
e na provisão da água;
A água tem valor econômico e todos os seus usos e deve ser reconhecida
como um bem econômico.24

Ocorrerá em Brasília, nos dias 18 a 23 de março de 2018 o 8º Fórum Mun-


dial da água, organizado pelo conselho Mundial da água. Esse fórum ocorre a
cada três anos e já ocorreu em: Daegu-Coréia do Sul (2015); Marselha – França
(2012); Istambul – Turquia (2009); Cidade do México-México (2006); Kyoto-
-Japão (2003); Haia – Holanda (2000) e Marakesh – Marrocos (1997).25
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reparte o domí-
nio da água entre a União e os Estados. São da União os lagos, rios e qualquer
corrente de água em terras de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado,
sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou
dele provenham (artigo 20, inciso III26 da CRFB), assim como o mar territorial
(artigo 20, inciso IV da CRFB27), os potenciais de energia hidráulica (artigos
20, inciso VIII28 e 17629 todos CRFB) e os depósitos de águas correntes de obras

24 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. p.689-690.


25 BRASIL. Fórum Mundial da água. www.agenciabrasilia.df.gov.br. Consultado em 02 de março de 2018.
26 Art. 20. São bens da União (Emenda Constitucional nº 46/2005)
III – Os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem
mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou
dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais.
27 Art. 20. (...) IV – a ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas;
as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede dos Municípios, exceto
aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no artigo 26, II.
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
II – as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob
domínio da União, Municípios ou terceiros.
28 Art. 20. VIII – os potenciais de energia hidráulica.
29 Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia
hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento,
e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. (Emenda
Constitucional nº 6/1995).

194
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

da União (artigo 26, inciso I do CRFB30), como são os açudes construídos nas
regiões assoladas pela seca.31
São dos Estados as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes
e em depósito, essas águas desde que tenham nascente e foz no seu território,
salvo os que estiverem nas condições referidas no artigo 20, inciso III da CRFB,
como de domínio da União.
No campo internacional quatro são os textos sobre a proteção das águas
continentais que são destacados:

La Carta del Agua del Consejo de Europa (1968)


El Plan de acción de la Coferencia de las Naciones Unidas sobre el Agua,
celebrada en Mar del Plata (Argentina) (1977)
El Convenio de Helsinki de 17 de marzo de 1992 sobre protección y sus
de los cursos de aguas transfronteirizos y sus lagos internacionales
El Convenio de Ramsar de 1971 sobre proteccion de humedales.
Los dos últimos tienen un objeto más preciso que los primeros, de ca-
rácter más global, y que pueden claficarse de soft law, aunque de ellos
cabe deducir ya algunos principios fundamentales sobre la ordenación
jurídica del agua, que se reflejará en la legislación nacionales. Son éstos:
El caráter de bien común del agua y el consiguiento deber de todos de
usarla adecadamente y no despediciarla.
La consideración de las cuencas hidrográficas como unidad básica de
gestión de las aguas superficiales y subterráneas.
La plaificación como instrumento indispensable para una política de ad-
ministración racional de los recursos a corto y largo plazo.
La participación de los usuarios en la planificación y administración de
los recursos hídricos.
La elaboración de leyes generales de aguas que den a éstas un tratamien-
to jurídico unitario”. 32

30 Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:


I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso,
na forma da lei, as decorrentes de obras da União.
31 SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 121.
32 ALENZA GARCIA, José Francisco. Manual de derecho ambiental. Madrid: centro de Estúdios
Políticos y constitucionales, 2001. p. 270.

195
Denise Schmitt Siqueira Garcia

Essas discussões internacionais sobre a água são indispensáveis para que


possamos ‘lutar’ por sua proteção e pelo seu bom uso com a finalidade de pro-
porcionar seu alcance para todos os seres vivos do planeta.

Segundo Clarissa Ferreira Macedo D’Isep33:


A crise da água foi denunciada em inúmeras reuniões, conferências,
congressos e fóruns, resultando igualmente em várias cartas, declara-
ções, resoluções e projetos e, por conseguinte, na criação de grupos de
estudos, parcerias, agências e associações, fazendo dos anos 70, em espe-
cial os 80, a ‘década internacional da água potável e saneamento’, logo a
década da água; nos anos 90, foi criado o ‘Dia Mundial da água’ – o dia
22 de março; no ano de 2002, na Conferência de Joanesburgo, a água foi
considerada ‘chave para o desenvolvimento sustentável’; o ano de 2003
foi o ‘Ano Internacional da Água’; no ano de 2004, a água se torna o
tema da Campanha da Fraternidade da CNBB: ‘Água, fonte de vida’.
Assim, a água se consagra como um tema mundial.

Como visto acima, a discussão sobre a água há muito tempo já é tema de


debates internacionais eis que a crise da escassez da água que existe é presente
e não pode ser desconsiderada.

2. Direito ao acesso a água


Diante do quadro apresentado acima, um dos maiores desafios para as pró-
ximas décadas é, sem sombra de dúvidas, a crise global da água. Os recursos
hídricos os quais já são escassos têm sua disponibilidade reduzida em razão da
poluição ambiental, do efeito estufa, da destruição da cobertura vegetal, do au-
mento da população mundial, do desperdício, da inação do ser humano, das leis
e dos planos de gestão.34
Este recurso ambiental é tão importante que o Programa das Nações Unidas
do Meio Ambiente – PNUMA ao apresentar os objetivos do desenvolvimento

33 D’ISEP, Clarissa Ferreira Macedo. Água juridicamente sustentável. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010. p. 81.
34 SANTIN, Janaína Rigo. CORTE, Thaís Dalla. O direito das águas subterrâneas. No Brasil, no
MERCOSUL e na União Europeia, Um estudo comparado. Santa Maria: Ed. Da UFSM, 2013. p. 22.

196
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

sustentável35 apresentou como objetivo 06: assegurar a disponibilidade e gestão


sustentável da água e saneamento para todos e todas.
O marco histórico que determina o modelo predatório da utilização das
águas foi a Revolução Industrial do Século XVIII.
O direito ao acesso à água pode ser entendido como um desdobramento
do direito à vida, ultrapassando a categoria de direito fundamental de terceira
geração, podendo ser classificado como de primeira geração.
A água, portanto, apesar das discussões sobre o tema, é reconhecida
como um direito humano, uma vez que é componente essencial à vida e ao
meio ambiente.

Assim, em que pese à importância da água para a vida e, muitas vezes,


a dificuldade de se distinguir o que são direito fundamentais de direitos
humanos, o acesso a esse bem vem sendo considerado um direito huma-
no fundamental ( ou seja, reúnem-se os dois conceitos em uma única
nomenclatura) no direito brasileiro.36

35 Trata-se de 17 objetivos, todos ligados ao desenvolvimento sustentável e 169 metas para serem
acalcados a nível mundial até 2030. Objetivo 01. Acabar com a pobreza em todas as suas formas,
em todos os lugares; Objetivo 02. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria
da nutrição e promover a agricultura sustentável; Objetivo 3. Assegurar uma vida saudável e
promover o bem-estar para todos, em todas as idades; Objetivo 4. Assegurar a educação inclusiva e
equidade e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem, ao longo da vida para todos;
Objetivo 5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas; Objetivo
6.  Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos;Objetivo
7. Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos;
Objetivo 8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego
pleno e produtivo e trabalho decente para todos;Objetivo 9. Construir infraestruturas resilientes,
promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação; Objetivo 10. Reduzir
a desigualdade dentro dos países e entre eles; Objetivo 11. Tornar as cidades e os assentamentos
humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis; Objetivo 12. Assegurar padrões de
produção e de consumo sustentáveis; Objetivo 13. Tomar medidas urgentes para combater a
mudança do clima e seus impactos; Objetivo 14. Conservação e uso sustentável dos oceanos,
dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável; Objetivo 15. Proteger,
recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável
as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de
biodiversidade;Objetivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento
sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes,
responsáveis e inclusivas em todos os níveis;Objetivo 17. Fortalecer os meios de implementação
e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável. (https://nacoesunidas.org/
pos2015/agenda2030/. Consultado em 27 de fevereiro de 2017).
36 SANTIN, Janaína Rigo. CORTE, Thaís Dalla. O direito das águas subterrâneas. No Brasil, no
MERCOSUL e na União Europeia, Um estudo comparado. Santa Maria: Ed. Da UFSM, 2013. p. 33.

197
Denise Schmitt Siqueira Garcia

Adentrando-se na Legislação brasileira sobre ás águas, destaca-se o Decreto


n. 24643/193437, o Código de Águas, a titularidade da propriedade das águas
era dividida em:

a) águas públicas (dominiais ou de uso comum do povo, listados no art. 2º);


b) águas comuns as (de domínio público, bens sem dono, de correntes
não navegáveis, conforme o art. 7º);
c) águas particulares (nascentes e todas as águas situadas em terrenos
particulares, quando não se enquadrem como públicas ou comuns, nos
termos do art. 8º);

Contudo, conforme Frederico Amado38, com a promulgação da Constitui-


ção Federativa do Brasil de 1988, houve uma publicização das águas, conforme
se infere:

Destarte, muitos dispositivos do Código de Águas não foram recepcio-


nados pela Constituição Federal de 1988. Demais disso, a Lei 9.433/1997,
que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, pontifica que a
água é bem de domínio público, expressão que deve ser interpretada em
sentido estrito, conforme a Constituição, como bem público de uso co-
mum do povo, da União, Estados ou Distrito Federal, a depender.
Esse processo de publicização das águas decorrente de sua escassez, es-
pecificamente das águas doces, em virtude do desperdício natural e da
poluição irracional das correntes de águas, sendo estratégico para o Es-
tado brasileiro converter as águas em bens públicos, visando uma tutela
mais rígida para preservar os interesses nacionais(...).

Conforme previsto na Carta Magna de 1988 no seu art. 21, o Sistema Nacio-
nal de Recursos Hídricos deveria ser criado e sendo assim foi promulgada a Lei
9.43339, de 8 de janeiro de 1997, a qual instituiu a Política Nacional de Recursos
Hídricos, que regulamentou o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal,
criando o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

37 BRASIL, Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934. Disponível em http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/decreto/d24643.htm
38 AMADO, Frederico Augusto Di Trindade. Direito Ambiental Esquematizado. São Paulo:
MÉTODO, 2011. p. 212.
39 BRASIL, Lei n. 9433, de 8 de Janeiro de 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/LEIS/L9433.htm.

198
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Essa legislação determina que o Conselho Nacional de Recursos Hídricos


deve promover a articulação dos planejamentos nacional, regionais, estaduais e
dos setores usuários elaborados pelas entidades que integram o Sistema Nacio-
nal de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
“Essa lei fundamenta-se no fato de ser a água um bem de domínio público,
ser um recurso natural limitado, dotado de valor econômico, que, em situação
de escassez, seu uso deve ser prioritariamente o consumo humano e matar a
sede de animais”.40
Ser a água considerada de domínio público traz algumas consequências,
quais sejam:

Necessidade de autorização do Poder Público para as derivações, lança-


mentos de efluentes para diluição e qualquer atividade que implique a
alteração do regime hídrico, consubstanciada na outorga do direito de
uso de recursos hídricos, observadas as condições estabelecidas na legis-
lação ambiental e nos processos de licenciamento ambiental;
Sujeição dos usuários á fiscalização e à aplicação de penalidades, quando
infringirem as normas relativas ao uso à proteção da água.41

Portanto, a água constitui um recurso ambiental, sujeitando-se à proteção


estabelecida no artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil,
que impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender o meio am-
biente e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
A Lei 9433/97 atendendo ao disposto na Constituição da República Fe-
derativa do Brasil, demarca concretamente a sustentabilidade dos recursos
hídricos em três aspectos: disponibilidade de água, utilização racional e uti-
lização integrada.
Disponibilidade de água de boa qualidade, isto é, não poluída, para as ge-
rações presentes e futuras. A utilização racional e integrada significa dizer que
a água deve ser disponibilizada de forma equânime e que facilite o acesso de
todos a este bem, ainda que em quantidade diferente. Os institutos jurídicos

40 SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 131.
41 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Editora Atlas, 2009.
p. 191/192.

199
Denise Schmitt Siqueira Garcia

hão de ser aplicados no sentido de evitar o monopólio das águas, seja por órgãos
públicos, seja por particulares.42
Desta forma essa lei traz como objetivos: a) assegurar à atual e às futuras
gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade ade-
quados aos respectivos usos; b) a utilização racional e integrada dos recursos
hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sus-
tentável; c) a preservação e a defesa contra os eventos hidrológicos críticos de
origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais.
Para discussão do tema que se propõe esse artigo faz-se necessário uma aná-
lise do que seja bem ambiental.

3. Bem ambiental
Bem ambiental podem ser tanto bens materiais ou corpóreos (águas, rios,
florestas) ou imateriais ou incorpóreos ( paisagem, ambiente de trabalho, etc).
No Brasil há autores que dizem que o bem ambiental é espécie de bem pú-
blico de uso geral do povo, mas a maioria defende ser um bem difuso, cuja
titularidade é transindividual e que não se enquadra mais na dicotomia traçada
pelo Código Civil de bens públicos e privados.

(...) O artigo 225 da Constituição, ao estabelecer a existência jurídica de


um bem que se estrutura como sendo de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, configura uma nova realidade jurídica, disci-
plinando bem que não é nem público nem, muito menos, particular.43

A autora entende ser um bem difuso eis que visa assegurar um interesse
transindividual e transgeracional de natureza indivisível e de que sejam titula-
res todos e cada um.

Ao estabelecer a existência de um bem que tem duas características es-


pecíficas, a saber, ser essencial à sadia qualidade de vida e de uso comum
do povo, a Constituição de 1988 formulou inovação verdadeiramente

42 MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 18 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
p. 469
43 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 14 ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 183.

200
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

revolucionária, no sentido de criar um terceiro gênero de bem que, em


face de sua natureza jurídica, não se confunde com os bens públicos e
muito menos com os bens privados.44

Uma característica do bem ambiental é a de que as pessoas não se atrelam


por meio do instituto da propriedade.

Há que se considerar, porém que,


(...) ao fazer-se a distinção entre bem público e bem de natureza difusa,
não se colocam em xeque o princípio da legalidade e o poder-dever de a
administração agir conforme os ditames legais e em benefício da coleti-
vidade. Concede-se, efetivamente, em nosso ordenamento jurídico posi-
tivado, uma terceira categoria de bem, que é o difuso, cuja titularidade
difere daquela do bem público.45

Assim, os bens ambientais não integram, por via de conseqüência, o patri-


mônio do Estado, sendo para este bens indisponíveis, portanto o Estado não
atua jamais como proprietário desses bens, mas simples ‘administrador’ de um
patrimônio que pertence à coletividade no presente, e que deve ser transferido
às futuras gerações.

4. Bem ou mercadoria?
Adentra-se agora no tema central da problemática levantada que é saber se
a água deve ser tratada como bem ou como mercadoria.
Prefacialmente deve-se colacionar que mercadoria é o resultado da transfor-
mação da matéria prima, que seriam os bens da natureza, em bens de consumo.
Seria, por exemplo, o caso da madeira que pode ser usada na construção de
casas e móveis.
No caso da água, esta mesmo depois de sofrer tratamento químico ou de in-
cidir sobre ela qualquer outra forma de força de trabalho, não sofre modificação

44 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 14 ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 155.
45 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 14 ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. p. 188.

201
Denise Schmitt Siqueira Garcia

não podendo ser considerada como mercadoria eis que é bem ambiental vital a
sobrevida das pessoas no planeta.
A água potável, por ser um bem ambiental indispensável a manutenção da
vida, deve ser gerida como um bem difuso que visa assegurar interesses transin-
dividuais e transgeracionais de natureza indivisível de que sejam titulares todos
e cada um. Admitir a água como mercadoria, posta à venda, significa dizer que
somente detentores de capital poderiam ter acesso.
Com o passar dos anos após a promulgação da Constituição Federal de
1988 e, evoluindo-se o estudo acerca das águas, esta passou a ser vista como
direito fundamental.
Acerca do caráter fundamental que o Direito ao Acesso à Água possui, as-
severa Daniel Henrique de Souza Lyra46:

Alguns direitos fundamentais positivados estão diretamente ligados ao


direito de acesso à água. Em sendo um fundamental direito, está umbili-
calmente ligado ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado
e à moradia, além de ter uma íntima relação com a dignidade da pessoa
humana, fundamento maior de nossa Constituição.

A autora Bonissoni47 vai mais além, pois, entende que o direito ao acesso
à água está intimamente ligado ao direito à vida, ultrapassando a categoria de
direito fundamental de terceira geração podendo também ser classificado como
de primeira geração.
E ainda:

O bem fundamental água é classificado por Luigi Ferrajoli como bem


social, tendo em vista este ser objeto de direitos fundamentais so-
ciais, relacionados à subsistência, à saúde e a serviços públicos essen-
ciais de abastecimento.48

46 LYRA, Daniel Henrique de Souza. Direito De Acesso à Água Subterrânea: A Constituição


Federal e os Direitos Fundamentais. Disponível em: http://aguassubterraneas.abas.org/asubte
rraneas/article/download/28246/18365. Acesso em Fev. 2016. p. 14
47 BONISSONI, Natammy. O acesso à água potável como um instrumento para o alcance da
sustentabilidade. 1ª ed – Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 71.
48 BONISSONI, Natammy. O acesso à água potável como um instrumento para o alcance da
sustentabilidade. 1ª ed – Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 81.

202
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Vê-se, portanto, que “o direito à água é refletido em todo sistema jurídico ao


se manifestar como um princípio universal de Direito Humano Fundamental
à vida”49, porquanto os doutrinadores que dissertam acerca deste assunto são
quase que unânimes ao afirmar o caráter de direito fundamental que o Acesso
à Água possui, dada sua importância para a manutenção da vida humana.

Conforme pode ser percebido, existe uma estreita correlação entre direi-
tos e bens, tanto fundamentais como patrimoniais. Conforme Ferrajoli
bens patrimoniais são aqueles disponíveis no mercado através de atos
de disposição e de troca. Por outro lado, são denominados bens fun-
damentais, os bens cuja acessibilidade é garantida a todos e a cada um
dos indivíduos, porque são objeto de outros direitos fundamentais que,
igualmente, se subtraem à lógica do mercado, como o ar, a água e outros
bens do patrimônio ecológico da humanidade, incluindo-se ainda órgão
do corpo humano, os fármacos considerados ‘essenciais’ e similares. 50

A água deve ser tratada com bem fundamental porque sua acessibilidade
deve ser garantida a todos e a cada um por ser objeto de tantos outros direitos
fundamentais e que por isso, não são submetidos à lógica de mercado tal como
acontece com as mercadorias.
Nessa seara há que se distinguir o que sejam direitos fundamentais e
bens fundamentais.
Os direitos fundamentais são indisponíveis e essa indisponibilidade é con-
ceitual, lógica, portanto inviolável, ligada à natureza de generalidade e abstra-
ção das normas que estabelecem direitos fundamentais.
Já os bens fundamentais possuem uma indisponibilidade somente jurídica, e,
portanto, passível de violação, tendo em vista que os bens fundamentais de fato,
são sempre materialmente disponíveis. Pode-se dizer que os bens fundamentais
são objeto de direitos fundamentais.

49 BONISSONI, Natammy. O acesso à água potável como um instrumento para o alcance da


sustentabilidade. 1ª ed – Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 72.
50 CADERMATORI, Daniela Mesquita Leutchuk de. CADERMATORI, Sergio Urquhart de. A água
potável como um bem e um direito humano fundamental: proposta teórica de políticas públicas.
In. Desenvolvimento sustentável e meio ambiente: estudos e perspectivas / organizadores José
Baltazar Salgueirinho Osório de Andrade Guerra ... [et al.] – Florianópolis: Consórcio Projeto
REGSA, 2014. p.7.

203
Denise Schmitt Siqueira Garcia

Ferrajoli51 traz uma divisão dos bens fundamentais:


a)Bens fundamentais personalíssimos que são ligados aos direitos vitais das
pessoas e, portanto indisponíveis, invioláveis, inalienáveis e intangíveis;
b)Bens fundamentais comuns que são ligados a bens do patrimônio ecológi-
co (biodiversidade), como a água potável, o ar, o clima.
c)Bens fundamentais sociais que tem como objeto os direitos sociais. Seriam
os direitos sociais à subsistência e à saúde, garantidos pela obrigação da sua
prestação: como a água, alimentos bascos e os medicamentos essenciais. Esses
direitos sociais devem ser garantidos para que o direito à vida vá além do direito
de não ser morto e abranja o direito de viver com dignidade.52
Verifica-se que a água deve ser considerada como um bem fundamental so-
cial e comum, pois é objeto de direitos sociais, relacionados à subsistência, à
saúde e a serviços públicos essenciais de abastecimento. Inclusive existe uma
emenda constitucional para incluir a água no rol dos direitos sociais no artigo
6º da CRFB e porque deve ser garantido a todos.53

Advirta-se que as garantias dos bens comuns e dos bens sociais requerem
instituições públicas voltadas à sua prestação. É claro que estas garan-
tias não podem limitar-se apenas às garantias dos direitos respectivos,
exigindo-se também, o desenvolvimento de complexos aparatos admi-

51 FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Debate com L. Baccelli, M.
Bovero, R. Guastini, M. Jori, A. Pintore, E. Vitale Y D. Zolo, Traducción de A. Perfecto Ibañez el allí.
Madrid: Trotta, 2001.
52 Sugere-se bibliografia da autora relacionada ao tema: GARCIA, Denise Schmitt Siqueira. Uma
nova perspectiva para o Direito Ambiental: o direito ao ambiente como direito fundamental da
pessoa humana. Interesse Público (Impresso), v. 18, p. 95-110, 2016; GARCIA, Denise Schmitt
Siqueira. A NECESSIDADE DO ALCANCE DO MÍNIMO EXISTENCIAL ECOLÓGICO
PARA GARANTIA DA DIMENSÃO SOCIAL DA SUSTENTABILIDADE. Revista Direito à
Sustentabilidade - RDS, v. 1, p. 139-155, 2014; GARCIA, Denise Schmitt Siqueira; BENDLIN,
S. L.. Dimensão social do Princípio da Sustentabilidade frente ao artigo 6º da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Revista Eletrônica Direito e Política, v. 6, p. 419-441, 2011.
53 Trata-se da proposta de emenda à constituição PEC 258/2016, que dá nova redação ao artigo 6º
da Constituição Federal, para introduzir o direito humano ao acesso à terra e à água como direito
fundamental. Apresentação feita por Paulo Pimenta do PT/RS em 04 de agosto de 2016. (BRASIL.
PEC 258/16. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2093044.
Consultado em 27 de fevereiro de 2018).

204
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

nistrativos voltados a funções específicas de tutela dos bens comuns e de


distribuição ope legis (por força de lei) dos bens sociais.54

Diante da realidade apresentada de ser a água um bem fundamental comum


e social o espanhol Pedro Arrojo Agudo55 propõe um serviço público eficiente e
bem capacitado com condições de garantir a prestação da água como direito e
a sustentabilidade econômica como organismo operador.
Referido autor traz diferentes classes de consumo: a) Água como direito
humano; b) Água como direito do cidadão; c) Água como negócio.
Como direito humano seria a mínima para sobrevivência que de acordo
com a ONU seria 30 litros de água potável por dia para cada pessoa. Essa
quantidade seria fornecida gratuitamente pelo serviço público. Como direito
cidadão, sugere a colocação de um hidrômetro em cada casa, sendo que os
primeiros trinta litros gratuitos e os 100 litros seguintes pagos de acordo com
o que a comunidade considera razoável para poder financiar o serviço que
está sendo oferecido. Os próximos litros seriam pagos de forma dobrada com
a finalidade de financiar o serviço básico daqueles que não podem pagar.
Como negócio a água teria um valor de matéria-prima geradora de riquezas e,
consequentemente, ser sobrado de modo a sustentar as duas primeiras classes
de prestação de serviço.
O que se observa é que a água é um bem fundamental e elemento físico
indispensável para manutenção de todas as vidas do planeta. Desta forma deve
ser garantida pelo menos dentro do mínimo existencial. Assim, a proposta apre-
sentada pelo espanhol Pedro Arrojo Agudo preencheria essa necessidade e ao
mesmo tempo evitaria o desperdício e o mau uso desse recurso natural. Fica cla-
ro que a água não pode ser tratada como mercadoria, eis que essa especificação
violaria o direito a vida.

54 CADERMATORI, Daniela Mesquita Leutchuk de. CADERMATORI, Sergio Urquhart de. A água
potável como um bem e um direito humano fundamental: proposta teórica de políticas públicas.
In. Desenvolvimento sustentável e meio ambiente: estudos e perspectivas / organizadores José
Baltazar Salgueirinho Osório de Andrade Guerra ... [et al.] – Florianópolis : Consórcio Projeto
REGSA, 2014. p. 9.
55 AGUDO, Pedro Arrojo. Crisis global del água: valores y derechos en juego. https://www.fnca.
eu/guia-nueva-cultura-del-agua/images/documents/Patrimonio/Crisis_global_del_agua.pdf.
Consultado em 01 de março de 2018.

205
Denise Schmitt Siqueira Garcia

Conclusão
Verificou-se que a preocupação com a proteção da água já remonta algum
tempo, pois já é consagrado que este bem é finito, tanto que em várias regiões
no Brasil está-se deparando com crises graves de falta de água, realidade que a
Europa já enfrente há bastante tempo e por isso já possui procedimentos muito
mais eficientes para proteção desse recurso natural.
O Brasil possui uma Política Nacional e de Gerenciamento de recursos hí-
dricos, que organiza as formas de proteção dos recursos hídricos contra a po-
luição que está regulamentada pela Lei 9.433 de 08 de janeiro de 1997. Essa lei
determina que o Conselho Nacional de Recursos Hídricos deve promover a
articulação dos planejamentos nacional, regionais, estaduais e dos setores usuá-
rios elaborados pelas entidades que integram o Sistema Nacional de Gerencia-
mento de Recursos Hídricos. Esse conselho não possui competência executiva
a qual pertence a Agência Nacional de Águas – ANA.
O conceito a ser adotado de bem ambiental é de que este é um bem difuso
cuja titularidade é transindividual e que não se enquadra na dicotomia entre
público e privado. Assim, o Estado não atua jamais como proprietário desses
bens, mas simples ‘administrador’ de um patrimônio que pertence à coletivida-
de no presente, e que deve ser transferido às futuras gerações.
Pode-se concluir que o direito ao acesso a água potável realmente é um
direito fundamental, visto que intimamente ligado ao direito à vida e a saúde.
Desse modo, nada mais óbvio que o correlacionar com o principio da dignidade
humana, já que um leva a fruição do outro. A vida é o bem mais precioso que
o homem possui e todos os elementos que a tornam possível são igualmente
preciosos e devem ser protegidos.
A água, porém, deve ser considerada como um bem fundamental eis que
possui uma indisponibilidade somente jurídica e, portanto, passível de viola-
ção, tendo em vista que os bens fundamentais de fato, são sempre material-
mente disponíveis. Pode-se dizer que os bens fundamentais são objeto dos
direito fundamentais.
O que deve ficar bem claro é que a água não pode ser tratada como merca-
doria, primeiro porque ela não preenche os requisitos para o conceito dessa ca-
tegoria, segundo porque seria dizer que somente aqueles que possuem condições
financeiras poderiam ter esse acesso. Isso seria uma violação ao direito a vida.

206
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

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Santa Maria: Ed. Da UFSM, 2013.

209
Transposição do Rio São Francisco:
entre a crise ambiental e Política

Welison Araújo Silveira1


Belinda Pereira da Cunha2

Introdução
O presente artigo destaca os aspectos jurídicos da transposição do rio São
Francisco, dialogando com conceitos do direito ambiental, fazendo uma liga-
ção entre a crise ambiental, na qual se insere a crise hídrica e a crise política.
Aborda ainda a questão da seca como fenômeno da crise ambiental e a relação
do homem com a natureza, de forma a manter o desenvolvimento sustentável
sob aspecto socioambiental. Aborda a ênfase do problema definido pelo ques-
tionamento da falta de transparência e efetividade da participação popular no
projeto da transposição ante os impactos socioambientais apresentados, pelos
impactos não arrolados nos estudos de impacto ambiental mas já identificados,
pelo estudo do problema da seca no Nordeste e a transposição como proposta
de sua mitigação.

1 Mestre em Direito Econômico pela UFPB, integrante do Grupo de Pesquisa CNPq "Saberes
Ambientais - Homenagem a Enrique Leff: Sustentabilidade, Impacto, Gestão e Direitos", professor
de Pós-graduação. Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2006).
Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Administrativo e Direito Público.
2 Professora Associada UFPB. Professora do PPGCJ e do PRODEMA - Mestrado e Doutorado em
Meio Ambiente e Desenvolvimento; Coordenadora do Grupo de Pesquisa CNPq &quot;Saberes
Ambientais - Homenagem a Enrique Leff: Sustentabilidade, Impacto, Gestão e Direitos&quot;.
Pós-doutorado CAPES Universidade Autônoma do México, Instituto de Investigaciones Sociales,
UNAM. Autora de Livros, artigos, palestrante, consultora e assessora científica. Lançou em co-
autoria com Leff pela EDUCS, ebook divulgado em ACADEMICS.EDU &quot;Ohar Jurídico em
saberes Ambientais&quot;; Organizadora &quot;Direito Agrário Ambiental&quot; pela UFRPE,
2016. Organizadora da obra &quot;CRISE AMBIENTAL&quot;, entre outros, além de capítulos
em livros e periódicos estrangeiros. Integra conselhos editoriais e científicos nos temas do Direito,
Desenvolvimento e Meio Ambiente. Orientadora de Mestrado e Doutorado.

211
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

Para uma melhor compreensão e investigação do tema sob enfoque, foi uti-
lizada uma pesquisa teórica dogmática, através de um procedimento metodo-
lógico dedutivo, dessa forma busca-se apresentar conceitos relevantes para a
pesquisa partindo de um aspecto geral para o específico.
Apesar do tema ser de extrema atualidade, tendo em vista o andamento das
obras do Projeto de Integração das Bacias Hidrográficas do rio São Francisco
(PISF) em estágio avançado, seu objeto específico possui poucas obras na área
jurídica, necessitando de complementação de pesquisas acadêmicas e artigos
científicos de diversas áreas, o que não nos impediu que fossem colhidas as
ideias deixadas pelos doutrinadores citados na bibliografia, quando se referem
aos fundamentos específicos do assunto ora estudado, possuindo natureza in-
terdisciplinar, tendo em vista que engloba várias áreas do conhecimento, tais
como o direito constitucional, direito administrativo, o direito econômico, di-
reito civil, direito ambiental, economia, geografia, e as ciências ambientais de
modo geral, além de relação com outas ciências sociais, como a sociologia, por
exemplo.
O trabalho analisa a transposição do rio São Francisco como problemática
política e os efeitos jurídicos através de análise de ações judiciais acerca da
matéria, sob enfoque das fundamentações utilizadas, a tramitação processual e
as decisões que permeiam o assunto e suas implicações para o prosseguimento
da obra.

1. A crise política e os reflexos jurídicos da transposição


do Rio São Francisco
o Brasil, notoriamente, não nasceu República, uma vez que a primeira forma
de governo adotada foi a monarquia. Sobre o tema, Medeiros (2000) leciona
que a Constituição de 1891, em suma, previu dois pontos de extrema impor-
tância: a Federação e a República. Em 1945, com o final da II Grande Guerra
Mundial, começaram no Brasil movimentos pela redemocratização. Segundo
Medeiros (2000), em outubro deste mesmo ano Getúlio Vargas foi deposto, em
2.12.1945, foi eleita a Assembleia Constituinte e em 2.2.1946 a Constituinte foi
instalada. Ainda segundo o autor, a Assembleia Constituinte buscava, apenas,
restaurar a república federativa democrática, como era em 1891 e 1934 e que

212
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

foi conspurcada pela Carta Política de 1937. A Constituição de 1946, de certa


forma, devolveu ao Brasil o princípio democrático.
A Constituição de 1967, "outorgada" em 24 de janeiro de1967, no governo
do Marechal Arthur da Costa e Silva, oriunda do Golpe Militar de 1964, nova-
mente pendeu na direção do autoritarismo que, apesar de afirmar a existência
dos três poderes evidencia, no fundo, a existência de somente um, o poder exe-
cutivo, centralizando-o (MEDEIROS, 2000).
O regime democrático foi restabelecido no Brasil, após anos de ditadura
militar, resultado de muita luta popular e amadurecimento político, foi consoli-
dado pela constituição federal em 1988, que ficou conhecida como constituição
cidadã. A nova Constituição efetivou, no nosso país, a tão sonhada democracia
participativa, fundada no princípio da soberania popular e no Estado Demo-
crático de Direito. A Constituição de 1988 assegurou o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a igualdade e a justiça que têm como funda-
mento a cidadania e a dignidade da pessoa humana e, como objetivo, construir
uma sociedade livre, justa e solidária, eliminando a marginalização e reduzindo
as desigualdades sociais, conforme manifestado por Saule Junior (1998, p. 61).
Segundo o autor, a participação popular propicia uma nova relação entre os
cidadãos e o Estado, fazendo surgir uma cidadania ativa, consciente, que se
transforma no elemento essencial para a defesa do meio ambiente, dos interes-
ses difusos e coletivos e de todos os mecanismos para a administração de um
estado.
A Constituição Federal brasileira de 1988 trouxe alguns mecanismos que
colocavam em prática a democracia representativa, como o plebiscito, o refe-
rendo e a iniciativa popular, todos esses três elencados nos incisos I, II e III do
artigo 14 da constituição3. Além deles, a audiência pública (prevista no inciso
II, § 2º do Artigo 58 da Carta Magna4), que também funciona com a finalidade

3 CF/88.Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto,
com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa
popular.
4 CF/88. Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias,
constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que
resultar sua criação.
[...]
§ 2º Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe:
[...]
II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil;

213
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

de promover um diálogo entre a sociedade civil e as autoridades estatais quan-


do em um processo decisório de grande relevância para a sociedade. Temos, a
exemplo, o art. 105, que trata de participação dos trabalhadores e empregado-
res nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou
previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação; o art. 37, § 3°6, que
estabelece que a lei disciplinará as formas de participação do usuário na ad-
ministração pública direta e indireta, regulando especialmente a disciplina da
representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou
função na administração pública. Este preceito, por óbvio, inclui as tomadas de
decisão que o Poder Público efetiva nas ações relacionadas ao Meio Ambiente
(MILARÉ, 2001, p.1126).
No Campo legislativo, diversas leis preveem que o cidadão é parte legítima
para exercer o direito de cidadania, auxiliando o Estado no alcance de sua fina-
lidade: o bem comum. Temos visto várias menções às audiências públicas como
na Lei 9.472/96, na Lei 9.478/97 e na Lei 8.666/93, que, no seu artigo 397, prevê
que, em casos de grande vulto na licitação ou contrato, seja feita, obrigatoria-
mente, uma audiência pública.
O conceito de cidadão e de cidadania vem adquirindo particularidades que
não se esgotam na compreensão de cidadão como aquele que participa dos ne-
gócios da cidade. (BARACHO JUNIOR, 2000, p. 155). A participação do ci-
dadão no poder surge como uma característica da democracia e configura-se
pela tomada de posição concreta na gestão dos negócios da cidade, isto é, no
exercício do poder.
A participação popular só pode existir com a pessoa privada (individual
ou associadamente), exercendo o poder de criar norma jurídica estatal, que é

5 CF/88. Art. 10. É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados
dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de
discussão e deliberação.
6 CF/88. Art. 37. § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública
direta e indireta, regulando especialmente:
7 Art. 39.  Sempre que o valor estimado para uma licitação ou para um conjunto de licitações
simultâneas ou sucessivas for superior a 100 (cem) vezes o limite previsto no art. 23, inciso I, alínea
"c" desta Lei, o processo licitatório será iniciado, obrigatoriamente, com uma audiência pública
concedida pela autoridade responsável com antecedência mínima de 15 (quinze) dias úteis da data
prevista para a publicação do edital, e divulgada, com a antecedência mínima de 10 (dez) dias úteis
de sua realização, pelos mesmos meios previstos para a publicidade da licitação, à qual terão acesso e
direito a todas as informações pertinentes e a se manifestar todos os interessados.

214
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

norma imputável à autoria e ao dever de acatamento de toda a coletividade.


“Ou seja, pessoa privada agindo na formação da vontade normativa do Estado”,
como afirma Brito citado por Saule Junior, (1998, p.40).
A parceria formada entre Estado e particulares (indivíduo e coletividade)
para a tomada conjunta de decisões é que configura o tão almejado Estado
Democrático Participativo. De acordo com Canotilho (1999, p. 282), em pri-
meiro lugar, o princípio democrático acolhe os mais importantes postulados
da teoria democrática: órgãos representativos, eleições periódicas, pluralismo
partidário, separação de poderes. Em segundo lugar, o princípio democrático
implica democracia participativa, isto é, estruturação de processos que ofere-
çam aos cidadãos efetivas possibilidades de aprender a democracia, participar
nos processos de decisão, exercer controle crítico na divergência de opiniões,
produzir inputs políticos democráticos. O princípio da participação ocorre em
quatro momentos determinados pela Constituição de 1988 e reafirmados por
legislações infraconstitucionais, conforme leciona Machado (2011).
A participação pode ocorrer na formação das decisões administrativas
ambientais, quando estas dependem não só do Estado, mas sim de conselhos
compostos pela sociedade civil e de organizações não-governamentais, com di-
reito a voto. A participação ocorre também nos recursos administrativos e nos
julgamentos administrativos, através dos quais a sociedade reivindica do Estado
a revisão dos seus atos irregulares.
As associações de defesa do meio ambiente sempre reclamaram a Introdu-
ção do referendo de iniciativa popular em nível local, com o fim de levar os po-
deres locais a instaurar um debate democrático sobre as opções de ordenamento
do meio ambiente de um município. Essa reivindicação choca-se com a posição
dos eleitos locais, inquietos de serem despojados de seus poderes (MACHADO,
2011, p. 80).
A possibilidade de participação nas ações judiciais ambientais, de organiza-
ções não-governamentais, de sociedades civis e órgãos de classe garantiu-lhes o
direito de, diante do Poder Judiciário, agir em defesa do meio ambiente, pois se
trata de um interesse difuso e coletivo.
A obra da transposição do rio São Francisco além de ser alvo de diversas
ações judiciais sempre foi um ponto chave em disputas eleitorais entre lados
opostos sobre a visão da transposição. Durante um tempo a pressão política da
bancada dos Estados contrários a transposição conseguiu fazer que o projeto fi-
casse fora das promessas políticas. No entanto, o anseio popular e o agravamen-

215
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

to da crise hídrica conseguiram mobilizar apoio político para retirar o projeto


do papel e iniciar as obras.
De um lado, defensores lembram que a quantidade de água disponível por
habitante no semiárido nordestino é menos da metade do que a ONU estabele-
ce como mínima para a vida humana. Além disso, a escassez já ameaça cidades
de médio e grande porte (a exemplo de Fortaleza-CE, Campina Grande, Mon-
teiro na Paraíba, dentre outras) a entrar em colapso hídrico (uma espécie de
apagão de águas). Já os críticos acham que o maior problema da região é o mau
uso da água existente e apontam diversos erros no projeto proposto, e utilizam
o discurso da falta garantias de que a transposição resolveria o problema da seca
na região Nordeste, ou ainda que outras regiões do país passam por problemas
ambientais e que carecem de igual atenção do Estado. O elevado custo da obra
chama a atenção dos críticos, somado ao fato de sucessivos aumentos da previ-
são inicial de custo.
Se a transposição será solução para a questão socioeconômica do Nordeste,
porque regiões que estão ao longo da Bacia do São Francisco, em seu leito ori-
ginal, ainda convivem com condições precárias de desenvolvimento, e ainda
sofrem com os efeitos da seca? Da forma como cidades e povoados que se situam
nas proximidades do leito original do rio São Francisco sofrem com os efeitos
da seca, assim também aquelas cidades que se encontram nas proximidades dos
canais artificiais e dos novos reservatórios, não tem nenhuma garantia que não
mais sofreram com a crise hídrica após a conclusão das obras.
Outro ponto de debate é quanto a ameaça do fornecimento de energia da
Região Nordeste, que tem aproximadamente 90% de sua produção nas hidre-
létricas na Bacia do São Francisco. No entanto, os defensores contra-argumen-
tam que a parcela de água transposta é correspondente ao volume de água que
entra em estágio de evaporação nos reservatórios das hidrelétricas. As críticas
sempre existiram, desde quando o projeto era apenas uma ideia precária nascida
na era imperial, até a inauguração de parte da obra e sua quase conclusão final.
As preocupações legítimas em torno da preocupação com o meio ambiente e
com os impactos da obra muitas vezes serviram de subterfúgios para ocultar os
interesses individuais por comprometer pessoais que lucram com a chamada
indústria da seca, que utilizaram distorções maldosas para conferir um ar de
desconfiança ao alcance da obra.
Há também o posicionamento daqueles que não são contrários a obra, mas
reivindicam que igual investimento empenhado para a transposição seja reali-

216
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

zado com a revitalização do rio. E ainda existem os críticos da falta de sinergia


entre os governos municipais e Estaduais quanto a política de gestão das águas
e déficit no investimento em obras de saneamento básico, coleta de resíduos e
adutoras para melhor distribuição da água.
A transposição foi promessa de campanha de Fernando Henrique Cardoso
em 1994, mas ao longo de seu governo (1995-2002), apesar de grandes investi-
mentos em fases preliminares (projetos e licenciamento), não conseguiu apoio
político para tocar a obra. Naquele momento o Nordeste enfrentava grave crise
hídrica e o país vivia o risco de um apagão elétrico. As alegações fantasiosas
e sem qualquer respaldo técnico de que a transposição poderia comprometer o
fornecimento de energia elétrica para a região Nordeste tiveram força para não
deixar o projeto sair do papel.
A medida que a obra da transposição avança, aumentam a quantidade de
ações judiciais e recomendações dos Órgãos de controle. A dimensão da obra
implica no envolvimento de bilhões de reais e também em inúmeros escândalos
e denúncias de superfaturamento, desvio de recursos públicos, e outras irregu-
laridades ao longo das obras analisadas pelo Ministério Público Federal (MPF),
Tribunal de Contas da União (TCU), além de outras tantas ações ajuizadas por
cidadãos e entidades da sociedade civil organizada.
A obra teve início em 2007, com um orçamento inicial previsto em 4,7 bi-
lhões, sendo a obra mais cara do Programa de Aceleração e Crescimento –
PAC, segundo informações oficiais publicadas pelo Governo Federal. Com pre-
visão inicial de entrega da obra para o ano de 2010 (o eixo Norte) e 2012 (o eixo
Leste), no entanto, por falta de planejamento, excesso de burocracia, escândalos
de corrupção, pois além da Operação Vidas Secas, não há difusão de mais nada
a obra ainda não foi completamente entregue e já está orçada em mais de 8,2
Bilhões de reais.
A Procuradoria da República em Pernambuco apura indícios de superfatu-
ramento no Eixo Leste e de descontrole no pagamento de aditivos contratuais,
dentre os quais estão o 34/2008, e o 29/2008. O primeiro teve reajuste de 14,6%
do valor inicial, que passou de R$ 235,5 milhões para R$ 269,9 milhões. O au-
mento contratual do segundo foi de 21% (de R$ 250,9 milhões para R$ 303,6
milhões). Os problemas foram apontados por uma auditoria do TCU e remetida
ao MPF.
 Há investigações em outros Estados. No Ceará, apura-se, com base em re-
latório de fiscalização do TCU, aditivos feitos pelo Ministério da Integração

217
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

em contratos do Eixo Norte, e ainda sobre instalação de trechos do Eixão das


Águas, projeto do governo estadual que escoa as águas da transposição em áreas
indígenas, que, de acordo com a Procuradoria da República, o estudo de impac-
to ambiental não considerou a existência da terra indígena Tapeba.
 As primeiras ações sobre a transposição foram propostas ainda em 2005,
antes mesmo do início das obras. Em julgamento de Reclamação constitucional
(RCL 3074/2005), O STF reconheceu sua competência originária para proces-
sos em que contendam Estados-membros ou órgãos seus, de um lado, e a União
ou autarquia federal, de outro, acerca do Projeto de Integração do Rio São Fran-
cisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Nesse sentido, todas
as ações que versam sobre essa matéria passam a ser objeto de competência da
Suprema Corte.
Os inquéritos apuram desde fraudes em licitações até a remoção de índios
de locais por onde passam as obras, não cumprimento das condicionantes do
licenciamento ambiental além de falhas na construção da obra que ensejam
em responsabilidade civil e criminal das empreiteiras e até mesmo do Governo
Federal, além de irregularidades que repercutem no âmbito da improbidade ad-
ministrativa e no plano ambiental. Para efeito de pesquisa, iremos abordar algu-
mas ações judiciais que tramitam ou já tiveram decisão de mérito em relação a
transposição do rio São Francisco.
Ação Civil Pública (ACP) é uma demanda coletiva que tem por finalidade
a tutela dos direitos coletivos, tem previsão legal com lastro constitucional no
inciso III do artigo 1298, secundariamente na Lei 7.347 /859. Há ainda previsão
expressa pelas Cortes brasileiras nas seguintes Súmulas 10: 643 STF; 3299 STJ.
A Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) e o Código de Defesa do Consu-

8 Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: III - promover o inquérito civil e a ação
civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos;
9 Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I - o Ministério Público; II - a
Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia,
empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades
institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência
ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
10 Súmula 643 STF-O Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública cujo
fundamento seja a ilegalidade de reajuste de mensalidades escolares. Súmula3299 STJ - O Ministério
Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público.

218
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

midor11 se complementam e criam um único e eficiente sistema de defesa dos


direitos difusos e coletivos em juízo.
Possuem legitimidade para propor ACP o Ministério Público (Estadual e
Federal), União, Estados, Distrito Federal e municípios, e entidades e órgãos da
Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídi-
ca, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por
este código, e ainda as associações legalmente constituídas há pelo menos um
ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos
coletivos.
O Ministério Público Federal no Estado da Bahia, pelo Ministério Público
Estadual, OAB/BA, e associações e organizações civis de interesse público, em
30/09/2005 impetraram a ACP nº 2005.33.00.020557-7 que tem por objetivo
anular/revogar a licença ambiental (200/2005) fornecida pelo IBAMA para a
liberação da obra e também objetiva a realização de um novo estudo de im-
pacto ambiental conforme as diretrizes e adequações sugeridas pelo Comitê da
Bacia do São Francisco. A Ação tramitou perante a 14ª Vara Federal da Seção
judiciária de Salvador e mesmo após a concessão de liminar o processo foi reme-
tido ao STF por entender pela incompetência da justiça de primeira instância
apreciar a matéria por entender haver litispendência em ações já julgadas por
aquela corte, apesar do que dispõe o Art. 2º da Lei 7.347 /85, as ACP deverão
ser propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência
funcional para processar e julgar a causa.
Os autores da ACP alegam que existem lacunas e omissões no licencia-
mento ambiental que precisam ser melhor esclarecidos, a exemplo na omissão
da efetivação dos estudos que seriam necessários para verificar os impactos na
flora, fauna e ainda a insuficiência de apreciação dos impactos do projeto sobre

11 Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:
I - o Ministério Público,
II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;
III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade
jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;
IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins
institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização
assemblear. § 1º O requisito da pré- constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas
nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou
característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido. (grifos nosso)

219
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

as populações indígenas e outras comunidades tradicionais que se encontram


ao longo da Bacia do São Francisco.
Serve de base para as argumentações dos propositores da ACP um Parecer
técnico emitido pelo IBAMA (031/2005) que atesta a necessidade de comple-
mentações ao Estudo de Impacto Ambiental apresentado por haver concentra-
do seu campo de análise sobre as áreas de incidência do projeto e não toda a
Bacia do São Francisco, sendo insuficientes os dados para análise dos impactos
gerado com a obra. Consta ainda a reclamação de que não foram observados
as inúmeras complementações e indicações dos órgãos técnicos ambientais es-
taduais, conforme exigência da Resolução 01/86 do CONAMA, o que gerou
a edição de Recomendações por parte das 4ª e 6ª Câmara da Procuradoria da
República, bem como na abertura de procedimento administrativo para apurar
a responsabilidade e probidade de autoridades responsáveis pela aprovação do
licenciamento da obra no âmbito do Ministério Público Federal do Distrito
Federal.
Já a acp 2005.38.00.002238-0 foi proposta em 21.1.2005 pelo Ministério Pú-
blico Estadual e pelo Estado de Minas Gerais contra o Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e processada
perante a 12ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais, foi admitido o
ingresso da União Federal como litisconsorte passivo.
Requereu-se, na ocasião do ajuizamento, a suspensão da audiência pública
designada pelo IBAMA para o dia 25.01.05, em Belo Horizonte, onde seria
discutido o EIA/RIMA referente ao projeto referido, além do impedimento de
designação de outras audiências públicas para o mesmo fim, bem como da con-
clusão do procedimento de licenciamento ambiental, enquanto não proferido
julgamento de mérito da ação.
Foi concedida liminar para suspender a audiência pública do dia 25.01.05,
mas essa decisão teve seus efeitos suspensos pelo Tribunal Regional Federal
(TRF) da 1ª Região (Suspensão de Segurança nº 2005.01.00.003751-9). No
mesmo sentido decidiu o Presidente do Supremo Tribunal ao apreciar a liminar
requerida na RCL 3074 (art. 13, VIII, do RISTF), onde, como visto, foi afirma-
da a competência do Tribunal para julgar o caso. Daí a determinação do envio
dessa ação civil pública ao Tribunal e sua autuação como ACO 857.
Em 24.1.2005 o Ministério Público Federal ajuizou ACP 2005.3800.002537-
2 contra a União Federal e o IBAMA, distribuída por dependência à 12ª Vara

220
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, na qual também se


apontam vícios na elaboração do EIA/RIMA pelo IBAMA.
No exame da liminar pleiteada, o Juízo a quo julgou prejudicado o pedido de
suspensão da audiência pública marcada para o dia 25.1.05, e determinou a ma-
nifestação dos requeridos sobre os pedidos de anulação das audiências realiza-
das, de suspensão das ocorridas e de vedação de novas audiências, assim como
sobre o pedido de sobrestamento do procedimento de licenciamento ambiental
do projeto até a decisão de mérito da ação.
Comunicado o deferimento da liminar na RCL 3074, alegou o autor que seus
efeitos não seriam aplicáveis no caso, pois ausente a participação de Estado-
-membro na causa. Sem se manifestar sobre essa questão, o Juízo a quo deter-
minou a remessa do feito ao Supremo Tribunal Federal, que foi autuado como
ACO 858, daí afirmar que (f. 74):

[...] não há qualquer possibilidade de se alegar a invasão da competência


do STF, vez que seu autor, Ministério Público Federal, não pretende a
tutela de interesse meramente afeto ao Estado de Minas Gerais, tendo
inclusive pleiteado não só a suspensão da audiência pública designada
para Belo Horizonte como também a anulação daquelas já realizadas em
outros Estados e a vedação de que novas sejam marcadas, em quaisquer
praças, até o deslinde final do feito.

A Ação Cautelar Nº 2004.33.00.024189-5, preparatória de Ação Civil Públi-


ca, proposta em 21.10.2004 pelas entidades integrantes do Fórum Permanente
de Defesa do São Francisco contra a União Federal e o IBAMA, distribuída à
14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado da Bahia, apresentou pedido
de liminar para suspensão imediata do processo de licenciamento ambiental e
de licitação para a contratação de serviços de consultoria especializada sobre
o gerenciamento e de apoio técnico para a primeira etapa de implantação do
projeto, ou, se ocorrida esta, pela sua invalidação. O pedido foi deferido em
6.12.04, tendo sido suspenso pelo Presidente do TRF da 1ª Região na Suspensão
de Segurança 2004.01.00.058339-1/BA, para que fosse dada continuidade às
fases do projeto que não resultassem em execução de obra ou não afetassem o
meio ambiente.
Foi, então, ajuizada em 5.1.2005 a ACP 2005.33.00.000008-0 pelo Minis-
tério Público Federal, pelo Ministério Público do Estado da Bahia e pelas enti-
dades subscritoras da ação cautelar descrita acima, contra a União, o IBAMA

221
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

e a ANA, onde se sustenta, dentre questões de natureza social e ambiental, a


existência de falhas na elaboração do EIA/RIMA. Ao decidir pelo indeferimen-
to do pedido liminar nesta ação, afirmou o Juiz Federal da 14ª Vara do Estado
da Bahia que “à exceção do requerimento dirigido em face da ANA, que perde
relevância, diante do pleito de desistência formulado pela parte autora no que
se refere à autarquia em apreço, a pretensão liminar agora posta não difere, em
essência, da que já havia sido outrora formulada”
Com efeito, a decisão do órgão que afastou a existência do perigo da demora
seja na realização de estudos de viabilização técnica e de impacto ambiental,
seja na realização de audiências públicas, seja no início do procedimento de
licenciamento ambiental, considerando que todos integram fase preliminar, não
cabendo, consoante demonstrado acima, reabrir aqui tal discussão.
Interposto agravo de instrumento (2005.01.00.062286-0/BA), concedeu-se
liminarmente efeito suspensivo ao recurso, apenas para preservar os efeitos da
liminar deferida em 1º grau, até decisão do Ministro Relator no STF, devendo
os autos principais serem encaminhados, com urgência ao STF. O pedido de
suspensão dessa liminar, protocolado pela União no Superior Tribunal de Justi-
ça, foi indeferido. Daí a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal e a sua
autuação como AC 981 (ação cautelar) e ACO 820 (ação civil pública) - tendo
sido os autos do AI 2005.01.00.062286-0/BA apensados aos da AC 981.
A ACP nº 2001.33.00.005779-0, proposta pelo Centro de Recursos Ambien-
tais do Estado da Bahia (CRA) contra o IBAMA, teve liminar deferida para
suspender a realização das audiências públicas anunciadas para os dias 9.4.01 e
10.04.01, em Salvador e Juazeiro, respectivamente. Foi cassada ante a extinção
da ação sem julgamento do mérito (ACO 820).
A apelação interposta foi provida parcialmente pelo TRF da 1ª Região em
27.2.2004, para manter a suspensão da realização das audiências referidas en-
quanto não fossem prestados esclarecimentos e efetuadas as complementações
requeridas pelo CRA. Transitada em julgado a decisão, baixaram os autos à
origem (10ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado da Bahia), onde foi
arquivada em 27.5.2005.
As Ações Civis Públicas 2004.85.00.006515-6 e 2005.85.00.000162-6, am-
bas propostas pela Ordem dos Advogados do Brasil - Seção de Sergipe, sendo
a primeira (n º 2004.6515-6) proposta em 22.11.04, contra a União Federal
(Ministério da Integração Social e Ministério do Meio Ambiente – Conselho
Nacional de Recursos Hídricos), com a inclusão do Ministério Público Federal

222
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

como litisconsorte ativo e a segunda (nº 2005.162-6) ajuizada em 24.1.05, em


face da União Federal, do IBAMA e da ANA.
Alegou-se, em suma, que o Conselho Nacional de Recursos Hídricos não
poderia deliberar e aprovar Resolução sobre o Projeto de Integração sem a ma-
nifestação de sua Câmara Técnica e que o EIA/RIMA apresentado pelo Minis-
tério da Integração Nacional estaria viciado, além de o projeto estar em anda-
mento sem outorga do direito de uso de água pela Agência Nacional de Águas.
Reunidas essas ações com as de número 2004.85.006036-5, 2005.85.00.158-
4 e 2005.85.00.159-6 devido à conexão observada pelo Juízo da 3ª Vara Federal
da Seção Judiciária do Estado de Sergipe, foi determinada a suspensão no an-
damento de todas as ações, exceto o da ACP 2005.162-6, a qual teve o pedido
de liminar deferido, tendo esta decisão sido cassada pelo TRF da 5ª Região na
Suspensão de Liminar nº 3623-SE, onde foi reconhecida a competência do Su-
premo Tribunal Federal para julgar a causa e remetido os autos a este Tribunal,
onde foram autuados como ACO 869.
Também distribuída à 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Ser-
gipe, a Ação Civil Pública nº 2005.85.00.005326-2 – ajuizada pelo Ministério
Público Federal e pelo Ministério Público do Estado de Sergipe - foi objeto de
Reclamação da União Federal e da Agência Nacional de Águas a este Tribunal
(RCL 4024), tendo sido o pedido de liminar deferido pelo Presidente do STF
(art. 13, VIII, do RISTF), para a suspender o andamento da ação até o julga-
mento de mérito da Reclamação.
Consta, ainda, a existência de vários processos de natureza coletiva acerca
da transposição das águas do Rio São Francisco. Na Seção Judiciária Federal de
Salvador-Bahia, consta o processo nº. 1994.0008485-4, ação civil pública, autor
Ministério Público Federal versus IBAMA e outros; proc. 2.001.33.00.005779-
0, ação civil pública, autor Centro de Estudos Ambientais do Estado da Bahia
(CRA), versus IBAMA. Além destes processos existem várias notícias de ou-
tras ações, iminentes ou já propostas. O Ministério Público Federal analisa o in-
gresso de uma ação na justiça para impedir uma decisão do Conselho Nacional
de Recursos Hídricos (CNRH) sobre o projeto de transposição antes que seja
dada uma solução para o conflito de uso de águas da Bacia do São Francisco
e antes que a decisão do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco
(CBHSF) seja, devidamente, analisada pela área técnica do órgão. O CBHSF
decidiu que a água do Rio São Francisco só pode ser utilizada fora da bacia para
consumo humano e animal. Uma ação contra a reunião do CNRH foi ajuizada

223
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

na 3ª Vara da Justiça Federal em Sergipe pela OAB, Ministério Público e a


CUT daquele Estado.
Em Minas Gerais também existem ações judiciais e procedimentos dos Ór-
gãos de controle para apurar irregularidades na obra da transposição. Sobretudo
pelo papel de fiscalização que o Estado exerce sobre o andamento das obras,
já que politicamente eram contrários a obra sem uma efetivação do plano de
revitalização da Bacia do São Francisco. 
No âmbito nacional o Ministério Público, por força de decisão judicial apura
a conduta do Ministério da Integração Nacional que inabilitou os dois primei-
ros consórcios vencedores do certame público por critérios técnicos e declarou
o terceiro colocado, o consórcio Emsa-Siton, como vencedor. Primeiro colocado
na concorrência, o consórcio formado pela Passarelli, Construção e PB Enge-
nharia entrou com ação judicial para suspender o processo.
Em decisão do Desembargador Souza Prudente do 1º Tribunal Regional
Federal-TRF, concedeu-se liminar suspendendo provisoriamente a licitação por
se entender, em linhas gerais, que a concorrente atendeu às especificações do
edital e não merecia ser inabilitada, e que teria, satisfatoriamente, comprovado
sua capacidade.
A maior concorrência pública na área hídrica do país, o Eixo Norte atraiu
seis empresas para a disputa. O consórcio Emsa-Siton, vencedor da licitação,
apresentou um orçamento de R$ 517,92 milhões, mas uma renegociação com o
governo reduziu o valor a R$ 516,84 milhões, no entanto, a diferença de preços
entre a primeira e a terceira proposta, de R$ 75 milhões, quase 25% do valor.
A referida concorrência já havia sido alvo de outro problema quando a empresa
vencedora do primeiro certame (Mendes Júnior) abandonou o contrato após
aparecer em escândalos de corrupção ligadas à operação lava-jato.
Em sua argumentação, o grupo de consórcio que apresentou a melhor pro-
posta aduziu que a exigência pela comprovação de experiência em instalar es-
tação elevatória com mais de uma motobomba não estava no primeiro edital,
sendo acrescentado apenas para o último edital. No entanto, apesar disso, apre-
sentou comprovação de experiência em instalação de motobomba em estação
hidroelétrica. O que foi contestado pelo Ministério da Integração no julgamen-
to das propostas, afirmando que a proposta mais vantajosa não significa a mais
adequada e que a experiência de instalar uma série de motobombas de pequeno
porte não oferece expertise para a instalação, manutenção, transporte, opera-

224
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

ção de uma motobomba de grande porte como necessária para a conclusão das
obras do trecho Norte da transposição.
As obras do eixo norte da transposição do Rio São Francisco tiveram a lici-
tação suspensa por ordem do Tribunal Regional Federal da 1ª Região-TRF-1. O
motivo foi uma ação movida pelo consórcio formado pelas construtoras Passa-
relli, Construcap CCPS Engenharia e Comércio e PB Construções Ltda, que se
sentiram prejudicadas pela sua exclusão da licitação da obra.
A Advocacia-Geral da União então moveu uma ação no Supremo Tribunal
Federal pedindo a suspensão da decisão do TRF-1, que paralisou, em abril, o
procedimento licitatório para a escolha do consórcio que vai concluir as obras,
sob alegação de que a decisão de suspender os trabalhos oferece risco de grave
lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas e destaca que a sus-
pensão do processo licitatório.
A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, deferiu
a Suspensão de Segurança (SS-5183) para cassar os efeitos da decisão proferida
por desembargador do TRF-1, que havia determinado a paralisação da licitação
para as obras do Eixo Norte do projeto de transposição do rio São Francisco.
A suspensão de segurança foi ajuizada pela União, visando suspender a decisão
do relator do caso no TRF-1 por meio da qual antecipou os efeitos da tutela re-
cursal para determinar a suspensão do procedimento licitatório conduzido pelo
Ministério da Integração Nacional.
A Ministra Cármen Lúcia considerou que a manutenção dos efeitos da de-
cisão expõe a risco de lesão à ordem econômica, pois o prejuízo desencadeado
pela paralisação do certame e consequente descontinuidade das obras supera
significativamente eventual vantagem da proposta oferecida pelas empreiteiras.
Qualquer contrato com a administração pública deve guardar os preceitos
da legalidade e publicidade, sobretudo em se tratando de uma obra de relevante
interesse público como é o caso da transposição do São Francisco, devendo
ainda atender à preservação do meio ambiente e às condicionantes do licencia-
mento ambiental.Sendo uma obra de transferências de águas deve buscar o am-
paro legal e realizar diversas pesquisas e estudos para a viabilização do projeto
e a concessão da Licença Ambiental. Devido à grande quantidade de impactos
ambientais, a obra precisa de um minucioso estudo de impacto ambiental. Cabe
lembrar que, em caso de conflitos em que o meio ambiente está em jogo, a regra
basilar é de que seja feita uma interpretação favorável à proteção ambiental.

225
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

Assim, após entregue o estudo, muitos críticos alegaram que o governo federal
deixou de lado certos fatores que poderiam afetar o meio ambiente
A Constituição brasileira de 1988, em seu art. 22, IV, estabelece que com-
pete privativamente à União legislar sobre as águas. Estabelece ainda em seu
art. 43 que a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeco-
nômico e social, visando a seu desenvolvimento e a redução das desigualdades
regionais e estabeleça como prioridade para o desenvolvimento econômico e
social dos rios e das massas de água represadas ou represáveis nas regiões de bai-
xa renda, sujeitas a secas periódicas, estabelecendo estratégias para o combate à
seca exaustiva e a migração forçada devido aos problemas expostos.
Mesmo com as ações judiciais, o IBAMA concedeu a Licença Ambiental
ao Ministério da Integração Nacional. Muitos impetraram ações alegando por
exemplo: inúmeros fatores omissos ou falhas pelo EIA, não considerando o im-
pacto ambiental, sócio e econômico; não terem sido estudadas outras alternati-
vas para o projeto; desrespeito a Política Nacional de Recursos Hídricos; a falta
de autorização do Congresso Nacional para a realização do Projeto, já que há
aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas, de acordo com o ar-
tigo 231, § 3º da Constituição Brasileira; algumas imprecisões técnicas quanto
aos recursos hídricos da bacia do rio São Francisco; concessão de licença am-
biental apesar das falhas e omissões do EIA.
A parte contraria, respondeu que estas alegações não eram cabíveis. Isso por
fim, acarretou o julgamento sem extinção de mérito dessas ações. Foi alegado
que todos os estudos realizados seguiram a resolução do CONAMA 01/86 e,
portanto, a realização do projeto poderia ser continuada.
Com a não realização de audiências públicas, controvérsia nos estudos apre-
sentados, o TRF acatou o pedido do MPF em suspender as obras já iniciadas.
Nessa época, a Diretoria do Comitê da bacia Hidrográfica do rio São Francisco
reiterou sua resistência ao projeto publicando a seguinte nota:

“A Diretoria Colegiada do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São


Francisco, reunida em Brasília, reitera a sua posição contrária ao Projeto
de Transposição e lamenta que o Governo Federal esteja dando início
às obras sem aguardar o exame de mérito das diversas ações que trami-
tam no Supremo Tribunal Federal além de atropelar o diálogo prome-
tido pelo próprio Presidente da República e que foi interrompido pela
ânsia de executar o projeto a qualquer custo, inclusive valendo-se do
Exército Brasileiro para criar um fato consumado quanto ao início da

226
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

transposição. A direção do CBHSF aproveita a oportunidade para ma-


nifestar, dentro da lei, sua solidariedade à população e às entidades da
sociedade civil que estão acampadas em Cabrobó, como último gesto de
pleno exercício da cidadania que resta àqueles que discordam do projeto
e cujos argumentos e reivindicações não foram, até o momento, devida-
mente considerados pelo Governo Federal.”

Apesar de toda resistência ao projeto, em 2007, como falado acima, o STF


revogou a liminar concedida pelo TRF, dando continuação ao projeto. Todas as
liminares foram cassadas e hoje, ainda existem processos que tramitam no STF
sem resolução final. A decisão da continuação do projeto resta incontroverso e
traz ainda muitos debates políticos e jurídicos que deixam em dúvida a eficácia
do projeto e o respeito ao meio ambiente, de acordo com os princípios desen-
volvidos no ECO 92, e outros órgãos que visam o desenvolvimento sustentável.
Em 19/12/2007 o Supremo Tribunal Federal – STF, apesar dos questiona-
mentos envolvendo o licenciamento ambiental deste projeto, não concedeu o
pedido de liminar requerido pelo Ministério Público Federal na Ação Cível
Originária – ACO nº 876 da relatoria do Ministro José Antônio Dias Toffoli,
que apontava muitas falhas, omissões e os impactos reais do projeto sobre as
comunidades afetadas e seu patrimônio imaterial: a possibilidade de desertifica-
ção, a salinização dos solos e das águas entre outros aspectos já relatados. Infe-
lizmente, naquela ocasião, as informações incompletas repassadas pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente – IBAMA contribuíram para a decisão adotada,
afirmando que o projeto não atingiria as terras indígenas. Em 11/10/2017 foi re-
conhecida a incompetência do Supremo Tribunal Federal para julgar a matéria
e determinada a remessa dos autos das 12 (doze) ações cíveis originárias (ACO
787, ACO 820, ACO 857, ACO 870, ACO 872, ACO 873, ACO 876, ACO
886, ACO 996, ACO 1.003, ACO 1.052, ACO 2.862), que tratam sobre a ma-
téria, para a 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Sergipe.
Atualmente as irregularidades também se encontram questionadas na
Ação Popular – ACO nº 996 apresentada por 170 cidadãos ribeirinhos do
Rio São Francisco, também sob a relatoria do Ministro Toffoli, na Ação
Direta de Inconstitucionalidade – ADI n° 4113/DF, cujo relator é o Ministro
Celso de Mello, onde também foi reconhecida a incompetência d Supremo
Tribunal Federal para julgar a matéria e determinada a remessa a Justiça
Federal do Estado de Sergipe.

227
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

Na condição de fiscal da lei e no sentido de investigar atos do Governo


Federal e demais órgãos envolvidos direta e indiretamente com a transpo-
sição do rio São Francisco, o Ministério Público Federal instaurou diversos
procedimentos para acompanhar as ações das entidades públicas e a execu-
ção da obra por parte das empreiteiras. O Ministério Público é a instituição
permanente e essencial à jurisdição do Estado, a quem compete a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis. Cabe ainda ao Ministério Público, zelar pelo efetivo respeito
dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegu-
rados na Constituição e promover as medidas necessárias para garanti-los, nos
termos do art. 127 da Constituição Federal.
Considerando que os problemas ambientais eventualmente identificados nas
obras da transposição do rio São Francisco também são considerados problemas
de saúde pública, uma vez que o meio ambiente ecologicamente equilibrado e
sua proteção é essencial à sadia qualidade de vida, conforme entendimento já
consolidado da Organização Mundial de Saúde (OMS)12. A proteção ao meio
ambiente é o princípio que deve nortear todas as relações sociais, inclusive as
econômicas, e, em especial, as voltadas à exploração dos recursos naturais. De-
vendo toda atividade econômica respeitar o meio ambiente, assegurando a to-
dos uma existência digna (Conforme previsão do art. 170, VI, CF/88).
Na Paraíba, foi instaurado um Inquérito Civil, de número
1.24.004.000005/2017-61, sob coordenação da Procuradora Federal Janaína
Andrade de Sousa, pertencente a 4ª Câmara temática-Meio Ambiente e Pa-
trimônio Cultural. Tal procedimento visa acompanhar as ações de execução
da obra da transposição no Eixo Leste, Meta 3L, no tocante aos aspectos am-
bientais e sanitários além da obediência às regras de segurança da obras de
infraestrutura, em atenção à Lei federal 12.334/2010, que estabelece a Política
Nacional de Segurança de Barragens destinadas à acumulação de água para
quaisquer usos, à disposição final ou temporária de rejeitos e à acumulação de
resíduos industriais e cria o Sistema Nacional de Informações sobre Seguran-
ça de Barragens. Esse trecho compreende aproximadamente 34 quilômetros,

12 “Saúde ambiental é o campo de atuação da saúde pública que se ocupa de forma de vida, das
substâncias e das condições em torno do ser humano, que podem exercer alguma influência sobre a
sua saúde e o seu bem-estar” (Brasil-MS, 1999)

228
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

situados entre o reservatório Barro Branco no município de Custódia (PE), e o


reservatório Poções, na cidade de Monteiro (PB). Etapa já concluída.
Houve uma intensificação dos trabalhos nesse trecho da obra em razão da
situação de extrema seca que assolava a região do Cariri do Estado paraibano
e da região metropolitana de Campina Grande (PB), compostas por 21 cidades
além de Campina Grande, que é a segunda cidade mais populosa do Estado,
todas abastecidas pelo açude de Boqueirão (Epitácio Pessoa). O objetivo deste
procedimento não se confunde outras ações de fiscalização já instauradas no
âmbito do Ministério Público Estadual da Paraíba, e visa, além de acompanhar
o andamento das obras no trecho 3L, também acompanhar o andamento das
obras complementares de esgotamento sanitário, sob responsabilidade da FU-
NASA e da prefeitura de Monteiro/PB, e de obras complementares de combate
à seca, de responsabilidade do DNOCS.
Grande celeuma ainda foi causada na Paraíba em tema correlato à transpo-
sição do rio São Francisco em relação à decisão do Governo do Estado em pôr
fim ao racionamento de água na cidade de Campina Grande após a chegada
das águas da transposição com a conclusão do Eixo Leste e o abastecimento do
açude Epitácio Pessoa em Boqueirão-PB.
A Defensoria Pública da Paraíba ingressou com uma Ação Civil Pública,
que tramitou perante a 2ª Vara da Fazenda, contra o Governo do Estado, CA-
GEPA, contra o fim do racionamento de água. A Defensoria Pública entendia
que o fim do racionamento não podia se dar de forma prematura, sem que
houvesse garantia de abastecimento de água para a população sem prejudicar o
abastecimento do açude de Boqueirão, até que fosse alcançado níveis de confiá-
veis de volume hídrico, incluindo a fiscalização e combate ao furto e desperdício
de água. Em caso de dívida, deve prevalecer o bem ambiental protegido.
No entanto, o Tribunal de Justiça da Paraíba liberou o governo do Estado
para encerrar o racionamento em Campina Grande e outras 18 cidades aten-
didas com água do Açude Epitácio Pessoa (Boqueirão), reformando o posicio-
namento da juíza da 2ª Vara da Fazenda Pública, Ana Carmem Pereira Jordão.
O Tribunal atendeu os argumentos do agravo de instrumento impetrado pela
Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa), e que o juízo estadual era
incompetente para julgar o caso. Determinou-se que os autos da ação movida
pela Defensoria Pública da Paraíba fossem encaminhados para o Ministério
Público Federal- MPF, e apontou a inobservância da necessidade de formação
de litisconsórcio passivo necessário com a citação da União, ANA, Codevasf e

229
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

Ibama, diante do interesse jurídico dos entes federais, além do interesse do Mi-
nistério Público Federal de integrar o pólo ativo da ação, e ainda que a Agência
Nacional de Águas - ANA, enquanto gestora dos recursos hídricos, autorizou o
aumento da captação de água e o consequente fim do racionamento.
Por sua vez, o Ministério Público Federal de Campina Grande, através
do Inquérito Civil nº 1.24.001.000217/2017-79, ajuizou Ação Civil Pública Nº
0809088-57.2017.4.05.0000 em que reiterou o pedido formulado pela Defenso-
ria Pública Estadual da Paraíba para impedir o fim do racionamento. Em que
pese em primeiro grau o juiz da 2ª Vara Federal haver concedido liminar deter-
minando o retorno do racionamento de água em Campina Grande e as cidades
abastecidas pelo açude Epitácio Pessoa, em Boqueirão, bem como, a proibição
da autorização para uso agrícola das águas do reservatório. O Tribunal Regional
Federal da 5ª Região concedeu uma liminar suspendo a decisão que impedia o
fim do racionamento de água em Campina Grande e 18 cidades. Consta tam-
bém a instauração de procedimento (Nº 1.24.001.000238/2016-11 no âmbito da
Procuradoria da República de Campina Grande (PB), que apura as ações dos
Governos Federal, Estadual e municipais em relação à questão hídrica
No âmbito dos procedimentos, foram constatados problemas de execução
da obra, descontinuidade do serviço, identificação de ligações clandestinas de
esgotos, atraso no andamento de obras complementares, assoreamento do rio
Paraíba, extração de areia clandestino e construção de poços artesianos no leito
desse rio, além da identificação de plantios nas áreas destinadas às matas cilia-
res, desvio e canalização do leito do rio.
Uma das grandes preocupações do MPF se dava em relação a rede coletora
de esgoto na cidade de Monteiro, onde foi identificado a necessidade de interli-
gação dos esgotos domiciliares à rede de esgoto pública. A fim de evitar a con-
taminação, através do despejo clandestino de esgoto nas águas do rio Paraíba,
que serve de veículo de transporte das águas da transposição para o açude de
Poções e ao açude de Boqueirão. Preocupa também o andamento das obras de
revitalização do rio Paraíba, sendo considerado imprescindível para o perfeito
escoamento das águas da transposição. Em vários trechos pode-se observar a
ausência de preservação das matas ciliares e o assoreamento do rio Paraíba,
sobretudo no trecho entre Monteiro e o açude Poções, bem como a falta de
revitalização do trecho do rio compreendido a jusante da barragem do açude de
Camalaú. Tal constatação põe em risco a transposição em razão da possibili-
dade de erosão e do grande volume de água que percorrerá esses trechos do rio

230
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Paraíba, podendo acarretar no carreamento de material erodido para o interior


das barragens ao longo do rio.
Para investigar tais condições o MPF solicitou dos órgãos ambientais uma
avaliação rigorosa da situação do leito do rio Paraíba e de suas margens. Aos
órgãos responsáveis, uma análise da situação das barragens particulares ao
longo do rio Paraíba, a fim de identificar as suas capacidades de suportar o vo-
lume de águas da transposição. O MPF entende que somente após a conclusão
das obras de saneamento na cidade de Monteiro e da execução das ligações
domiciliares é que deveria haver a liberação do fluxo de água da transposição
do rio São Francisco para o rio Paraíba. E que a liberação do fluxo de água do
açude Camalaú para o açude Boqueirão somente fosse liberado após a devida
revitalização do rio Paraíba.
Nesse sentido, o MPF, através da Procuradora responsável pelo ICP acima
identificado, resolveu emitir Recomendação aos órgãos responsáveis pela execu-
ção das obras da transposição no Eixo Leste, Meta 3L, com base no que dispõe
o art. 6º, XX da Lei Complementar 75/9313 e art. 27, parágrafo único, inciso IV
ad Lei 8.625/199314, visando à melhoria dos serviços públicos de grande relevân-
cia, velando pelos interesses e direitos difusos. À Secretaria de Recursos Hídri-
cos e Infraestrutura do Estado e à empresa responsável pela execução da obra
foi recomendado que observassem às normas ambientais e de infraestrutura
na execução das obras complementares da transposição, evitando assim, risco
de desastres nas barragens, erosão e assoreamento do leito dos rios. À Agência
Nacional de Águas- ANA, e à SRI-MIN, que promovessem a fiscalização da
obra do “rasgo” na Barragem de Poções, e se o mesmo estava previsto no pro-
jeto aprovado. À AESA- Agência Estadual de Águas da Paraíba, que adotasse
as providências normativas e legais necessárias para a desobstrução do Açude
Aurimendes, para evitar a contaminação do lençol freático de Monteiro-PB.
Ao DNOCS, que adotasse providências em atenção à Lei de segurança hídrica

13 Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:   XX - expedir recomendações, visando à melhoria


dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens
cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis.
14 Art. 27. Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições
Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito: IV - promover audiências públicas
e emitir relatórios, anual ou especiais, e recomendações dirigidas aos órgãos e entidades mencionadas
no caput deste artigo, requisitando ao destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como
resposta por escrito.

231
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

nas barragens (Lei 12.334/2010). Ao Ministério da Integração Nacional, através


da Secretaria de infraestrutura hídrica (SRI-MIN), que realizasse fiscalização
técnica das obras de saneamento na cidade de Monteiro e da execução das liga-
ções domiciliares, antes da liberação do fluxo de água do açude Camalaú para o
açude Boqueirão. Bem como fiscalizasse as obras complementares da transpo-
sição nesse trecho, em especial, se as intervenções de recuperação e adequação
das barragens de Poções e Camalaú foram adotadas.

Conclusão
A prevenção de danos socioambientais e a apuração da Responsabilidade Ci-
vil adquirem importância para proteção ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado para garantia das gerações futuras, assim como preconiza o texto constitu-
cional, com o escopo de reduzir, reparar e minimizar os danos ambientais.
Apesar da proposta do PISF ser a utilização da água para diversos fins, até
o momento de entrega parcial da obra, o abastecimento de água está garanti-
do apenas para dessendentação dos animais e consumo humano. É importan-
te frisar, no entanto, que o Projeto vai garantir água para uma infraestrutura
de reservação e distribuição já existente, formada por açudes, rios e aduto-
ras. Além disso, atuará no sentido de complementar soluções e programas
governamentais (municipais, estaduais ou federais) de distribuição de água.
O Projeto não é uma solução isolada: vem somar e dar maior estrutura aos
compromissos e ações já existentes de combate aos efeitos da seca e da má
distribuição de água no Semiárido.
O Nordeste enfrenta um sério problemas de intermitência de chuvas e ele-
vadas temperaturas, o que ocasiona o esvaziamento dos reservatórios e evasão
da população para os grandes centros urbanos. Com isso, o problema da seca
acaba que gerando um problema de conotação social, que é a migração de tra-
balhadores do campo para as cidades, para viver em condições difíceis, muitas
vezes sub-humanas, à marginalização da sociedade.
À proporção que foram contextualizados historicamente eventos de seca
no Nordeste, clarificou-se a ação espasmódica dos governos contra os impactos
do fenômeno. As providencias (raras exceções) jamais enfrentaram o extremo
subdesenvolvimento. Na maioria nem foram ações, mas tímidas reações à seca
(SARMENTO, 2005).

232
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

O volume de recursos empregados na obra da transposição gera uma re-


flexão de que ações de caráter preventivo, educativo e soluções sustentáveis
poderiam substituir investimentos de tal monta. É preciso ainda compreender
que a transposição por si só não é solução para a seca, e nem para isso se
propõe. Seu principal escopo é minimizar a intermitência de chuvas que aca-
bam gerando o esvaziamento dos reservatórios já existentes. É preciso inves-
timentos na pesquisa e na tecnologia, a exemplo de outros países que passam
por situações climáticas extremas, mas que conseguem obter bons resultados
fazendo esse tipo de investimento.
A sustentabilidade hídrica sustentada pela transposição é o ponto mais re-
forçado que baliza e justifica toda a movimentação política em torno da obra,
seja por volume de recursos, seja por fortalecimento de instituições, ou por ver-
dadeiras batalhas de interesses na casa legislativa. Perceber a sustentabilidade
hídrica para o Nordeste, sobretudo para os Estados de Pernambuco, Paraíba,
Rio Grande do Norte e Ceará é perceber o óbvio. O que indaga é quando
deveria ser realizada a obra, quanto deveria ser gasto e quanto seria o volume
suficiente para suprir a necessidade do povo beneficiado sem comprometer os
Estados doadores (SARMENTO, 2005, p. 72).
Após todo o exposto, conclui-se que a obra é de extrema importância para
a região do nordeste brasileiro, principalmente no que consiste na execução
do objetivo principal, que é mitigar os efeitos da seca através de um sistema
de canais para canalizar água de um rio perene para bacias antes abastecidas
unicamente pelas águas das chuvas.
Esta dissertação não pretende esgotar todos os temas relacionados a trans-
posição do rio São Francisco, mas trazer à reflexão temas como o amplo debate
com a população através de maior transparência e outros meios de garantir
voz à população, não apenas de maneira protocolar, mas que efetivamente seus
anseios e reclames sejam parâmetro para a execução de obras desse porte. O
resultado dos estudos, pesquisas bibliográficas e empíricas levaram ao resultado
final desse trabalho, que representa o ponto de vista do autor sustentado por
outros estudos científicos, aliados a aplicação da legislação e à doutrina jurídica,
muito embora existam outros estudos de áreas diversas do conhecimento que
confrontem o pensamento formado pelo autor, no entanto, cumpre ressaltar
que o encanto das ciências jurídicas é o poder de interpretação de fatos sob
fundamentos jurídicos consolidados e sua aplicação na sociedade. Dessa forma,
pensamentos e trabalhos técnicos que, porventura, confrontem com o pensa-

233
Welison Araújo Silveira, Belinda Pereira da Cunha

mento do autor podem existir e merecem um debate de argumentações teóricas


e comprovações empíricas.

Referências

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
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235
Instrumentos de proteção dos
recursos hídricos: parte I

Marcelo Buzaglo Dantas1


Lucas São Thiago Soares2

Introdução
A garantia ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, seja para as pre-
sentes, seja para as futuras gerações, é direito constitucional incontestável, e
como tal, merece não apenas atenção e cuidados, mas instrumentos que visem
a, de fato, assegurar a sua implementação, nos termos do que dispõe o art. 225,
caput, da CF/883.
Especialmente naquilo que se refere aos recursos hídricos, apesar da apa-
rente abundância, o histórico de mau uso faz com que dispensar-lhes maiores
cuidados seja uma atitude não apenas desejável, mas imprescindível por parte
da sociedade e do Poder Público.
Dentre os mais variados fatores que contribuem para problemas como a es-
cassez, vivenciados na atualidade, podemos citar como exemplo o crescimento
acelerado e desordenado dos centros urbanos, desacompanhado dos necessá-
rios planejamentos e investimentos para suprir a demanda populacional; o uso
desmedido dos recursos; os desperdícios; e, ainda, os diversos casos de poluição
que se veem no dia-a-dia das cidades. O fato é: a situação das águas é frágil e
merece observância.

1 Advogado. Mestre e Doutor em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Pós-Doutor e Docente
Permanente do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Ciência Jurídica da
UNIVALI. Professor Visitante da Universidad de Alicante (Espanha) e da Widener University –
Delaware Law School (EUA).
2 Advogado. Pós-graduando em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Complexo de Ensino Superior
de Santa Catarina (CESUSC).
3 Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-
lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

237
Marcelo Buzaglo Dantas, Lucas São Thiago Soares

Por conta disso, o legislador vem criando ao longo dos anos uma série de
mecanismos legais com o objetivo de incentivar, coagir e assegurar a preserva-
ção e o equilíbrio ambiental das águas, os quais, em maior ou menor medida,
entendemos de grande relevância comentar.
Para isso, optamos por bem em dividir a exposição em duas diferentes eta-
pas. Na primeira delas, objeto do presente trabalho, analisaremos instrumentos
de caráter material, notadamente o Licenciamento Ambiental, as Áreas de Pre-
servação Permanente e a Outorga de uso d’água.
Em outro trabalho, a ser desenvolvido futuramente, trataremos dos instru-
mentos de comando e controle que se consubstanciam nas tutelas civil, penal e
administrativa do meio-ambiente.
Dito isso, passa-se, então, à análise dos aludidos instrumentos materiais, um a um.

a. Licenciamento Ambiental

O licenciamento ambiental é um importante instrumento de controle das


atividades humanas, caracterizando-se, via de regra, como um procedimento
que antecede a implantação e operação de quaisquer atividades imbuídas de
potencial poluidor, inclusive aquelas que se relacionam com o uso e/ou interfe-
rência em recursos hídricos.
De acordo com a CF/88, entre os deveres atribuídos ao Poder Público está o
de “exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente
causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de im-
pacto ambiental, a que se dará publicidade” (art. 225, IV). Essa é justamente a
base constitucional para a exigência do licenciamento de atividades produtivas
potencialmente causadoras de degradação ambiental.
No ponto, vê-se que, curiosamente, o licenciamento ambiental não foi ex-
pressamente consagrado pelo texto constitucional, mas apenas uma de suas
modalidades (que pode ou não ser exigida), qual seja, o Estudo Prévio de Im-
pacto Ambiental (EIA).4
Contudo, a Lei n. 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente –
LPNMA), que foi recepcionada pela CF/88, estabelece em seu art. 9o, IV, como
instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, “o licenciamento e a

4 v. DANTAS, Marcelo Buzaglo. SOUZA, Lucas Dantas Evaristo. Considerações acerca do licenciamento
ambiental: evolução histórica e perspectivas futuras, p. 177-199.

238
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras” (inciso IV), além


da “avaliação de impactos ambientais” (III). Além disso, a mais recente LC n.
140/11, notadamente responsável pela organização das competências em maté-
ria de fiscalização e licenciamento ambiental, também aproveitou para contem-
plar o instrumento, conceituando-o como sendo um procedimento adminis-
trativo que se destina a “licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores
de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob
qualquer forma, de causar degradação ambiental” (art. 2o, I). Deste modo, toda
e qualquer atividade potencialmente causadora de poluição ou degradação am-
biental, está sujeita ao licenciamento. Isto, aliás, é o que deflui do disposto no
art. 10, caput, da LPNMA, já na nova redação dada pela LC n. 140/11:

A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimen-


tos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencial-
mente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação
ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental.

O procedimento, por sua vez, diferentemente do que acontece com os li-


cenciamentos tradicionais, foi dividido em fases, cujos prazos, contudo, não
poderão exceder aqueles previstos no art. 14, caput, §§, da Resolução CONA-
MA n. 237/1997.
Acresça-se que, como bem adverte Daniel Roberto Fink, não é toda e qual-
quer atividade “que demanda licença ambiental; somente aquelas que tenham
potencial de causar poluição ou degradação ambiental, ou ainda aquelas que
utilizam recursos naturais”5.
Diga-se, aliás, que o rol das atividades passíveis de licenciamento ambiental,
por sua vez, encontra referência no Anexo I da Resolução CONAMA n. 237/97.
Vale lembrar que não se trata, propriamente, de um rol taxativo, mas sim de
uma espécie de instrumento “norteador” daquilo que merece passar pelo crivo
e controle da Administração Pública, cabendo aos Estados e Municípios, con-
siderando as suas peculiaridades, legislar de acordo com o seu interesse local.
Abstraindo-se adentrar, propriamente, no detalhamento de pontos negati-
vos como a morosidade que não raras vezes assola o instituto, e a insegurança
jurídica provocada pela ausência de uniformização do tema, de vez que, até que

5 Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental, p. 4.

239
Marcelo Buzaglo Dantas, Lucas São Thiago Soares

seja aprovada a Lei Geral do Licenciamento, o licenciamento permanece sendo


regulado por resoluções do CONAMA, é fato incontroverso que o processo
de licenciamento ambiental é instrumento de significativa importância para o
controle e a manutenção do equilíbrio ecológico, especialmente dos recursos
hídricos, que, muito embora se mostrem elementos de imensurável importância
para a coletividade, sofrem com os danos causados pela exploração e o cresci-
mento desordenado dos centros urbanos.
Saliente-se que não se quer com isso defender o “impacto zero”, ou que os
crescimentos urbano e econômico seriam os grandes “vilões” em detrimento da
defesa do meio ambiente. É de se dizer que “impactos” não se confundem com
“danos”. Todas as atividades geram algum tipo de impacto, não sendo papel do
Poder Público de impedi-los. Ao contrário, e do que se dessume da prática, por
vezes, demonstrar, o licenciamento ambiental não se trata de um entrave ao
desenvolvimento, mas sim de um instrumento que busca justamente compati-
bilizar o desenvolvimento econômico com a proteção ambiental.6
É justamente nesse sentido que se posiciona Daniel Roberto Fink, quando,
ao tratar do tema licenciamento ambiental, assevera que:

seu escopo maior é conciliar o desenvolvimento econômico com a


preservação do meio ambiente, ambos de vital importância para a
vida da população. Esse procedimento, portanto, não é um impe-
dimento ao direito constitucional de liberdade empresarial e à pro-
priedade privada, mas, sim, um limitador e condicionador, a fim de
que se impeça que o exercício ilimitado de um direito atinja outros
também muito importantes7.

Adotando esse ensinamento como premissa, caberá ao órgão ambiental


competente a avaliação dos respectivos processos, deliberando, harmonizando
e controlando todos os impactos que porventura decorram da atividade subme-
tida ao licenciamento, em cada uma das respectivas etapas.

6 Sobre o tema, v. DANTAS, Marcelo Buzaglo. Direito Ambiental de conflitos, p. 46-64 e 180 e ss.
______. A influência do Direito Ambiental sobre alguns institutos clássicos do Direito Civil, p. 335-352.
7 Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental, p. 3. Daí Édis Milaré afirmar, com acerto, que “o
licenciamento constitui importante instrumento de gestão do ambiente, na medida em que, por
meio dele, a Administração Pública busca exercer o necessário controle sobre as atividades humanas
que interferem nas condições ambientais, de forma a compatibilizar o desenvolvimento econômico
com a preservação do equilíbrio ecológico” (Direito do Ambiente, p. 511).

240
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

De grande relevância para a proteção dos elementos hídricos é justamen-


te o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Regido pela Resolução CONAMA
n. 001/86 (que por sua vez também estabelece os critérios básicos e diretrizes
gerais para o RIMA - Relatório de impacto Ambiental), é justamente esse o
instrumento preventivo que visa a aferir os possíveis impactos que poderão ser
causados na hipótese de que seja concedido o auto autorizativo à atividade em
questão, razão pela qual, via de regra, deverá ser apresentado ao órgão licencia-
dor antes da expedição da Licença Prévia (LAP).
É bem verdade que, como já dito acima, nem todas as atividades estão sujei-
tas à elaboração do EIA. Como é sabido, trata-se de um estudo mais complexo,
demorado e oneroso. Para tanto, faz-se necessário que a atividade seja poten-
cialmente causadora de significativa degradação.
Para Paulo Affonso Leme Machado, “significativa degradação” consiste
justamente no “contrário de insignificante, podendo-se entender como uma
agressão ambiental provável que possa causar dano sensível, ainda que não seja
excepcional ou excessivo”8.
Veja-se, portanto, que, partindo-se da premissa indicada acima, o EIA deve-
rá mecanizar a conciliação entre os direitos ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado e ao desenvolvimento econômico, não se prestando, portanto, a ser
um entrave ao objetivo almejado (concessão da licença ambiental).
O processo de licenciamento ambiental, portanto, é instrumento imprescin-
dível na luta pela preservação ambiental e a promoção do crescimento sustentá-
vel. Mostra-se, então, um mecanismo que visa a garantir o princípio fundamen-
tal ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Existem ainda outros instrumentos que, de igual modo, contribuem signifi-
cativamente para a preservação ambiental, especialmente de elementos hídri-
cos, como é o caso das áreas de preservação permanente, instituto ao qual se
dedica o tópico seguinte.

b. Áreas de Preservação Permanente


A- Conceito

É inegável a importância das matas e florestas para a manutenção do equi-


líbrio ambiental. A necessidade dessa especial proteção já vem sendo há muito

8 Direito Ambiental Brasileiro, p. 203

241
Marcelo Buzaglo Dantas, Lucas São Thiago Soares

retratada pela evolução da legislação ambiental, culminando com a edição de


uma das mais aguardadas leis do ordenamento ambiental, qual seja, a Lei Fe-
deral n. 12.651/2012 (Novo Código Florestal), regramento que ora nos orienta
para a análise da disciplina das áreas de preservação permanente, especialmen-
te aquelas instituídas para fins de proteção dos recursos hídricos.
A legislação em vigor define a área de preservação permanente como aquela
“protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de
preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodi-
versidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o
bem estar das populações humanas” (art. 3º, II).
Ponto de grande controvérsia, especialmente para o regime de proteção dos
recursos hídricos, é justamente a manutenção da passagem “coberta ou não por
vegetação nativa”, já presente no ordenamento anterior, de vez que inserida no
Código Florestal de 1965 através da Medida Provisória n. 2.166-67.
Na concepção de Édis Milaré, a manutenção desse trecho denota a inten-
ção do legislador em dar proteção não apenas as florestas e demais formas de
vegetação natural, mas aos próprios locais ou às formações geográficas em que
as respectivas áreas estão inseridas, ou seja, considerando uma espécie de ação
recíproca e sinérgica entre a cobertura vegetal (e sua preservação) e a manuten-
ção das características do domínio em que ela ocorre9.
Essa interpretação faz parecer que a intenção do legislador não foi de conce-
der proteção apenas à vegetação situada, por exemplo, às margens de um curso
d’água, mas sim a todo o “ecossistema” ali formado, incluindo a vegetação, o
elemento hídrico e a área em seu entorno.
Entretanto, justamente nesse ponto há que se fazer uma pequena ressalva. O
mesmo diploma legal é também muito claro quando, ao longo da Seção II (que
trata das consequências jurídicas da caracterização de uma área como APP),
refere-se a todo tempo à “vegetação”, do que se poderia facilmente inferir que a
proteção se destinaria, propriamente, à vegetação ali existente, e não à locali-
dade em si, fato que por certo dá margem a discussões.
Em nosso juízo, a saída para esse dilema encontra solução na própria
redação da norma. É que, não obstante a clareza do art. 3º, II, citado alhu-
res, a expressão “com a função ambiental”, é ponto de extrema importância

9 Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário.

242
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

para a compreensão, interpretação e caracterização dessa espécie de área


especialmente protegida.
A passagem expressamente inserida no texto da norma parece-nos condicio-
nar a manutenção da respectiva faixa de proteção apenas para aqueles casos em
que o elemento hídrico desempenhe a sua respectiva função ambiental. Ou seja,
mesmo nos casos em que não se observa a existência de qualquer vegetação,
caso a área ainda detenha uma função ambiental a exercer, merece ser mantida
a APP. Na mesma linha de raciocínio, mas em situação contrária, poder-se-ia
dizer que, para os casos em que não se evidencie o exercício de qualquer função
ambiental, não haveria que se falar na manutenção de APP.
Neste sentido, assim se manifesta Paulo de Bessa Antunes:

O conceito legal de APP se divide em dois grandes elementos forma-


dores: (i) área sob proteção legal, a qual se subdivide em (a) coberta ou
(ii) não por vegetação nativa e (ii) com a função ambiental de preser-
vação dos (a) recursos hídricos, (b) a paisagem, (c) estabilidade geoló-
gica, (d) biodiversidade, (e) facilitar o fluxo gênico de flora e fauna, (f)
proteger o solo e (g) assegurar o bem-estar das populações humanas.
Não é necessário que se reafirme que o conceito é amplíssimo e que o
intérprete, na sua aplicação, não deve ampliá-lo, dadas as enormes re-
percussões sociais e que daí podem advir. Os artigos 4º e 6º da Lei ora
comentada estabelecem dois grandes grupos de APPs, o constituído
por (i) áreas criadas por força da própria lei e (ii) o constituído por ato
do Poder Público. Porém, se faz necessário alertar o leitor para o fato de
que tanto em um, como em outro grupo, é imperioso que as condições
constitutivas das APPs, tal como estabelecidas pelo incido II do artigo
3º, se encontrem presentes. Os pressupostos anteriormente referidos
se constituem em matéria de legalidade e devem estar presentes
na área para que ela possa ser declarada como de preservação per-
manente. É o que se chama função ambiental desempenhada pela
área. O raciocínio ora desenvolvido encontra amparo na Lei de Intro-
dução ao Direito Brasileiro, que determina ao aplicador da lei levar em
consideração os fins sociais da norma. No caso ora examinado, o fim
social da norma, em meu ponto de vista, somente pode ser enten-
dido como a proteção das áreas que efetivamente desempenhem as
funções ambientais tipificadas na lei. Importante autor brasileiro,
o professor Paulo Affonso Leme Machado, ao examinar as Áreas de
Preservação Permanente, não realça a questão da existência de fun-

243
Marcelo Buzaglo Dantas, Lucas São Thiago Soares

ção ambiental, limitando-se a reconhecer que qualquer área que esteja


localizada nos termos da legislação deve ser reconhecida como de pre-
servação permanente, tese da qual ouso discordar10

Para materializar a aplicação dessa forma de interpretação, é de se cola-


cionar, por exemplo, situação problema apresentada por Guilherme Purvin de
Figueiredo, senão vejamos:

Tome-se, como exemplo, as avenidas marginais aos rios nas grandes


cidades ou os bairros situados em regiões íngremes. À luz do Código
Florestal, são de preservação permanente as margens desses rios, o
topo de morros – caso da Avenida Paulista, em São Paulo – e as
encostas de morros com inclinação igual ou superior a 45º - caso de
algumas ruas no Bairro da Pompéia, também em São Paulo. Seria,
porém, rematado despropósito pretender a demolição da infraestru-
tura urbana existente nessas áreas11.

Assim, respeitados os entendimentos em contrário, parece-nos mais acer-


tado dizer que as Áreas de Preservação Permanente são aquelas previstas no
rol do art. 4º do Código Florestas, mas desde que, efetivamente, possuam uma
função ambiental a desempenhar, definição que adotamos como premissa para
o desenvolvimento do próximo tópico.

B- Espécies

As modalidades de áreas de preservação permanente, considerando o orde-


namento jurídico em vigor, encontram respaldo no art. 4º do Código Florestal.
Todas aquelas hipóteses arroladas no aludido no dispositivo são objeto de pro-
teção, pelo simples fato de ali estarem.
Considerando a temática ora abordada (instrumentos de proteção das águas,
reservamo-nos à análise das espécies de APP que visam à tutela de elementos
hídricos (art. 4º, I); lagos e lagoas naturais (art. 4º, II); reservatórios d’agua arti-
ficiais (art. 4º, III); nascentes e olhos d’agua perenes (art. 4º, IV)12.

10 Comentários ao novo código florestal: de acordo com a Lei 12.727/12, p. 65-66.


11 A propriedade no Direito Ambiental, p. 226-227.
12 Sobre o tema, ver ADIN n. 4.903, julgada em 06/03/2018, ocasião em que, por maioria de votos, o
Supremo Tribunal Federal – STF firmou interpretação no sentido de que os entornos de nascentes e

244
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Pois bem. Na esteira do que já dispunha a alínea “a” do art. 2º da Lei n.


4.771/65, o novo Código estabeleceu, em seu inciso “I”, como sendo de preserva-
ção permanente, “as faixas marginais de qualquer curso d’agua natural, perene
e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular...”,
estabelecendo as larguras das faixas protetivas nas cinco alíneas seguintes.
Diga-se que esse foi um ponto de grande preocupação quando do advento
do novo diploma, uma vez que se antevia grande possibilidade de redução dos
limites da área protegida estabelecidos no regramento anterior (o que acabou
não acontecendo de forma expressa).
Em verdade, a diminuição dos limites de proteção acabou se dando por vias
transversas, na medida em que, muito embora as metragens não tenham sido
alteradas, o parâmetro de medição da largura da faixa marginal sofreu modifi-
cações, na medida em que a dicção do art. 2º, alínea “a” da Lei 4.771/65 (antigo
Código Florestal) previa o distanciamento contado a partir do “nível mais alto”
do curso d’água, enquanto o regramento superveniente trouxe consigo o con-
ceito de “borda da calha do leito regular” (art. 3º, XIX, da Lei 12.651/2012).
Para Paulo de Bessa Antunes, ainda que não tenha havido expressa modifi-
cação nos limites dispostos “em metros”, parece claro que, na realidade, a dimi-
nuição se deu de forma indireta, na medida em que a medição passa a contar do
leito regular, e não mais pelo seu nível mais alto13.
Muito embora a comparação fria entre o antigo e o novo regramento nos
remetam a uma ideia de razoabilidade na alteração (com o que, particularmen-
te, concordamos), a nova dicção dá margem para uma série de interpretações e
discussões doutrinárias.
Para Leonardo Papp, por exemplo, não obstante a Lei 12.651/12 adote meto-
dologia que visa justamente a impedir interpretações extremadas, não se pode
deixar de assinalar que essa não teve o condão de ser absolutamente objetiva e
insuscetível a gerar divergências. Exemplo disso é que o Código em vigor optou
por adotar um critério universal para todo o território brasileiro, sem conside-
rar que a dinâmica dos cursos d’água pode variar significativamente, seja em

olhos d’água intermitentes configuram Área de Preservação Permanente - APP. Vencido o Ministro
Gilmar Mendes e, em parte, os Ministros Marco Aurélio de Mello e Carmen Lúcia. Disponível em:
www.stf.jus.br.
13 Comentários ao novo código florestal: de acordo com a Lei 12.727/12.

245
Marcelo Buzaglo Dantas, Lucas São Thiago Soares

relação a suas próprias características (profundidade, vazão, trajeto) seja no que


tange à localização geográfica14.
Em razão disso, o autor conclui que qualquer que fosse o critério inflexível
previsto pela legislação federal (nível mais alto, cheia sazonal, leito regular, etc.)
muito provavelmente (talvez inevitavelmente) ele se aplicaria de modo adequa-
do a alguns cursos d’água, mas se revelaria problemático em relação a outros15.
O que parece, portanto, é que a generalidade utilizada pelo legislador
para o trato da matéria acabou enfraquecendo, de alguma forma, um dos
principais objetivos dessa espécie desse instrumento, qual seja, o de tutelar
os recursos hídricos.
Os incisos II e III do art. 4º, por sua vez, na mesma linha do que já estabele-
cia o regramento anterior, estabelecem como sendo de preservação permanente
as áreas no entorno de lagos e lagoas naturais e reservatórios d’água artificiais.
Todavia, diferentemente do que se dava no ordenamento de 1965, em que as
metragens de afastamento eram reguladas pelas revogadas Resoluções CONA-
MA ns. 302 e 303, ambas de 2003, o tema passou a ser amplamente disciplinado
pela letra do código.
Veja-se que o assunto, que era antes tratado de forma conjunta pela alínea
“b” do art. 2º da Lei 4.771/65, ganha maior atenção, sendo subdividido nos inci-
sos II (lagos e lagoas naturais) e III (reservatórios artificiais) do art. 4o do novo
Código, o que por certo demonstra uma maior atenção ao trato da matéria, que
por sua vez reflete um aumento na preocupação com os recursos hídricos.
Especialmente no que toca aos lagos e lagoas, vale destacar que foram esta-
belecidos limites de proteção diferenciados para as cada uma das áreas de entor-
no, especialmente aquelas onde são desenvolvidas atividades agrossivilpastoris,
de ecoturismo ou de turismo rural, a saber: a) 5 metros para imóveis com área
de até 1 módulo fiscal (I); b) 8 metros para imóveis com área de 1 a 2 módulos
fiscais (II); c) 15 metros para imóveis com áreas de 2 a 4 módulos fiscais (III); d)
30 metros para imóveis com área superior a 4 módulos fiscais (IV), inteligência
do art. 61-A do mesmo diploma.
Ato contínuo, o art. IV do Código estabelece que são também APPs as áreas
situadas no entorno de nascentes e olhos d’agua perenes, em um raio mínimo
de 50 metros, qualquer que seja a situação topográfica. Vale destacar que, na

14 Comentários ao novo código florestal brasileiro: Lei n. 12.651/12, p. 91.


15 Comentários ao novo código florestal brasileiro: Lei n. 12.651/12, p. 92-93.

246
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

medida em que se optou por consignar a expressão “perenes”, o que se fez a


partir da Lei 12.727/12, o legislador admitiu expressamente que apenas dá en-
sejo à formação de APP aquele curso d’água contínuo, que não sofre qualquer
interrupção ao longo do tempo.
Vale dizer que, ainda que as espécies de áreas de especial proteção acima ci-
tadas sejam imprescindíveis para a preservação dos elementos hídricos, existem
algumas hipóteses que autorizam a intervenção nas mesmas.
É que na linha do que já previa o antigo diploma, Lei n. 4.771/65, a dicção do
art. 8º, do Novo Código Florestal arrolou expressamente 03 hipóteses em que
se permitirá a intervenção/supressão da vegetação, na medida em que assevera
que “a intervenção ou supressão de vegetação nativa em Área de Preservação
Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, interesse so-
cial ou de baixo impacto ambiental previstas nessa lei”.
Além delas, possível também é a redução dos limites de proteçãoo nas hipó-
teses de áreas rurais e urbanas consolidadas (respectivamente, arts. 61-A e ss. e
64-65, do novo Código).

C- Outorga de Uso

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que as águas de lagos, rios e as


subterrâneas constituem bens da União (art. 20, III e 26, I), cabendo ao Poder
Público, portanto, a responsabilidade pela sua administração e autorização para
quaisquer tipos de intervenções e/ou uso.
A Lei Federal n. 9.433/1997, responsável pela instituição da Política Na-
cional dos Recursos Hídricos – PNRH, criou uma série de mecanismos para
dar suporte a esse modelo de gestão, notadamente os Planos de Recursos Hí-
dricos, a classificação dos corpos d’agua, a cobrança pelo uso de recursos hí-
dricos, o sistema de informações sobre recursos hídricos e, por fim, a outorga
de direitos de uso16.
A outorga de direitos de uso, instrumento ao qual é dedicado o presente
tópico, possui previsão no art. 5º, III da PNRH. O ato nada mais é do que a con-
cessão, por parte do Estado, de determinada disponibilidade hídrica a terceiros,
com finalidade preestabelecida e prazo determinado.

16 Direito do Ambiente, p. 903.

247
Marcelo Buzaglo Dantas, Lucas São Thiago Soares

É que como bem se sabe, as águas são caracterizadas por serem bens de
uso comum do povo (art. 99, I, do Código Civil), destinando-se, portanto, ao
benefício de todos os cidadãos. Esse fato faz com que o Estado tenha que regrar
a exploração dessa espécie de recurso, sempre buscando viabilizar que todos
consigam usufrui-lo de maneira igualitária.
Quer nos parecer seja esse um dos grandes motivos que fazem com o que o
instrumento da outorga não se confunda com uma autorização tradicional, ou
seja, a sua concessão não se vincula apenas à discricionariedade administrativa,
mas sim ao objetivo precípuo de garantir a disponibilidade hídrica a todos que
dela necessitam, respeitada a sua efetiva disponibilidade. Se assim não fosse, a
outorga não seria sempre concedida com limite e prazo determinado.
Nesse viés, Maria Luiza Machado Granzieira externa o seguinte posiciona-
mento:

Os efeitos jurídicos da outorga, independentemente do nome que se


venha a fixar, matizam-se ora de autorização, ora de concessão, em
função da finalidade, ficando claro que os instrumentos clássicos legais
de outorga, em face da própria natureza das águas, não comportam
um enquadramento rígido nos institutos clássicos do Direito Adminis-
trativo (...). Mais útil seria denominar o instituto simplesmente como
‘outorga de direito de uso de recursos hídricos’, sem a preocupação de
enquadrá-la em institutos outros que, de resto, já ensejam uma concei-
tuação tormentosa. 17

Tanto é assim que, repita-se, o ato jamais poderá ser concedido em caráter
definitivo, devendo obedecer o prazo máximo de 35 anos18.
Resta claro, portanto, que o regime da outorga de direitos de uso possui
como grande objetivo assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos
da água, garantido a todos o efetivo exercício dos direitos de acesso ao recurso,
respeitadas as respectivas disponibilidades.
Para isso, o art. 12 da mesma Lei n. 9.433/97 aproveita para cotejar algumas
atividades que dependem da concessão de outorga para o seu exercício, quais sejam:

17 Outorga de direito de uso de água: aspectos legais, pp. 162 e 164.


18 Lei 9.433/1997, art. 16

248
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

I - derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de


água para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de
processo produtivo;
II - extração de água de aqüífero subterrâneo para consumo final ou
insumo de processo produtivo;
III - lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos
ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou
disposição final;
IV - aproveitamento dos potenciais hidrelétricos;
V - outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da
água existente em um corpo de água

Ao passo em que os incisos I a IV tratam de espécies de uso específicas,


nota-se que o legislador não se dignou a exaurir as atividades passíveis de outor-
ga, manifestando através do inciso V o caráter exemplificativo do art. 12. Ou
seja, qualquer tipo de uso que alguma forma interfira no regime hídrico estará
condicionado, pois, à obtenção de outorga de uso.
É bem verdade que, de acordo com o §1º do mesmo art. 12, existem algumas
exceções, que por sua vez merecem ser destacadas. É o que se extrai do dispo-
sitivo, in verbis:

§1º Independem de outorga pelo Poder Público, conforme definido em


regulamento:
I- O uso de recursos hídricos para satisfação das necessidades de peque-
nos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural.
II- As derivações, captações e lançamentos considerados insignificantes;
III- As acumulações de volumes de água consideradas insignificantes

É de se salientar que os limites dessas isenções deverá ser objeto de aná-


lise e regulação pelos Planos de Bacia Hidrográfica, ocasião em que, con-
forme bem pondera Édis Milaré, deve-se levar em consideração algumas
questões, senão vejamos:

Sob o ponto de vista social, deve ser preservado o abastecimento de


populações carentes, porquanto indispensável à sobrevivência dessas
mesmas comunidades. Há um princípio constitucional que resguarda o
direito à vida, no art. 5º, caput, da Lei maior. Neste sentido, “a Agên-
cia Nacional de Águas e as correspondentes agências estaduais deverão

249
Marcelo Buzaglo Dantas, Lucas São Thiago Soares

deixar bem claro esse aspecto ao concederem direitos de exploração. O


ideal é que nada se cobre nessas situações, considerando tais volumes de
água insignificantes”.19

Ou seja, muito embora não haja expressa isenção da outorga por parte dos
consumidores carentes, deve-se analisar a situação com viés social, de modo a
enquadrar o consumo no inciso II, do §1º, do art. 12, ou seja, tratando os volu-
mes da água dispensados nessa ocasião como insignificantes.
Por fim, na linha do exposto acima, fica claro que a concessão da outorga
não gera direito adquirido, tratando-se, por conseguinte, de espécie de instru-
mento autorizativo que pode, a qualquer tempo, ser suspenso (parcial ou total-
mente), ou até extinto, de vez que a suspensão pode se dar de forma definitiva,
conforme se depreende da redação do art. 15, da Lei 9.433/97, senão vejamos:

Art. 15. A outorga de direito de uso de recursos hídricos poderá ser


suspensa parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado,
nas seguintes circunstâncias:
I - não cumprimento pelo outorgado dos termos da outorga;
II - ausência de uso por três anos consecutivos;
III - necessidade premente de água para atender a situações de calamida-
de, inclusive as decorrentes de condições climáticas adversas;
IV - necessidade de se prevenir ou reverter grave degradação ambiental;
V - necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo,
para os quais não se disponha de fontes alternativas;
VI - necessidade de serem mantidas as características de navegabilidade
do corpo de água.

A leitura do dispositivo corrobora todas as características colocadas ao lon-


go do presente tópico. Nota-se, portanto, que a outorga de uso é plenamente
passível de suspensão e/ou revogação, de vez que, repita-se, não se configura
como espécie de direito adquirido.
Sempre que se estiver diante de situação em que a concessão da outorga
vier a prejudicar o interesse coletivo, comprometendo assim os usos prioritários,
será, portanto, revogável.

19 Direito do Ambiente, p. 908.

250
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Referências

ANTUNES. Paulo de Bessa. Comentários ao novo código florestal: de acordo


com a Lei 12.727/12. São Paulo: Atlas, 2013

DAWALIBI, Marcelo, FINK, Daniel Roberto e ALONSO JUNIOR, Hamilton.


Aspectos Jurídicos do Licenciamento Ambiental. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002.

DANTAS, Marcelo Buzaglo. Direito Ambiental de conflitos. 2a ed. Rio de


Janeiro: Lumen Juris, 2017.

______. SÉGUIN, Elida. AHMED, Flávio (Coords). O Direito Ambiental na


Atualidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

______. SOUZA, Maria Cláudia da Silva Antunes; AGRELLI, Vanusa Murta


(Orgs.). O Novo Em Direito Ambiental – Estudos dos especialistas do Instituto
dos Advogados Brasileiros sobre temas atuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

FIGUEIREDO. Guilherme José Purvin. A propriedade no Direito Ambiental.


4. ed. Ver. Atual. e ampl. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais. 2010.

MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 19ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2011.

MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 8. Ed.


Revista dos Tribunais. São Paulo, 2013.

PAPP. Leonardo. Comentários ao novo código florestal brasileiro: Lei n. 12.651/12.


Campinas: Millennium Editora, 2012.

251
A tutela jurídica do
ciclo urbano da água:
elementos introdutórios

Talden Farias1
José Irivaldo Alves O. Silva2

Introdução
Diante das crises vivenciadas atualmente no cenário nacional e internacional, o
acesso à água e ao esgoto tratado são das mais graves, na medida em que falta acesso
a esses dois serviços essenciais, atingido de forma desigual diferentes camadas da po-
pulação, principalmente as mais vulneráveis, numa expressão clara de desigualdade
social. Há uma patente irregular distribuição da água e dos serviços de esgotamento
sanitário, mesmo que esses sejam essenciais à vida, sendo direitos fundamentais, não
cumpridos pelo poder público. Outra questão que é preciso ser verificada é a regulação
da água, ainda bastante frágil, talvez em decorrência de deficiências dos órgãos fisca-
lizadores e da necessidade de uma discussão mais profunda no Direito Ambiental.
O problema que ensejou o presente ensaio parte da necessidade de se tute-
lar a água no âmbito do seu ciclo urbano, o que preocupa bastante, na medida
em que os países, incluindo-se o Brasil, são essencialmente urbanos, e há um
aumento da demanda por água para consumo domestico e industrial, sendo es-
sencial que se cuide para que as águas dos mananciais municipais, estaduais ou
federais, bem como as águas da chuva e do subsolo sejam utilizados da melhor
forma possível. Portanto, tem-se aí um sistema complexo interligado que inclui

1 Advogado. Doutor em Recursos Naturais. Doutor em Direito das Cidades. Professor do Programa de
Pós-graduação em Ciências Jurídicas da UFPB. Doutorado sanduíche pela Universidade de Paris 1/
Pantheón-Sorbonne (CAPES-COFECUB)
e-mail: taldenfarias@gmail.com
2 Professor do Curso de Gestão Pública da UFCG. Doutor em Ciências Sociais. Doutorando em
Ciências Jurídicas. Pós-Doutor em Desenvolvimento Regional. Pós-doutorando em Direito
Ambiental pela UFSC

253
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

cuidados com o solo, com as florestas, com a pureza do ar, entre outros fatores,
que poderão se refletir na qualidade da água e, consequente acesso à ela. O
objetivo do trabalho é justamente descrever o ciclo urbano da água, abordando
de que forma ocorre a tutela jurídica do mesmo.
Talvez abordar exclusivamente como ocorre a tutela jurídica do ciclo urbano
da água não seja suficiente para se problematizar acerca de uma injusta distri-
buição e, por conseguinte, injusto acesso à água, sendo fundamental refletir a
partir de um marco teórico que transcenda o fenômeno jurídico como forma de
buscar explicar as dinâmicas sociojurídicas que atravessam esse ciclo.
Dessa forma, a hipótese aqui estabelecida diz respeito à existência de um baixo
grau de regulação do ciclo urbano da água, o que favoreceria a condução à escassez
ou, até mesmo, uma distribuição injusta da água. Quanto ao esgotamento, a lógica
é parecida, às vezes tem-se a água, mas não se possui o esgoto, ou tem-se a água e o
esgoto, mas o mesmo não é tratado, enfim, um leque de possibilidades que apontam
para uma ineficiência da ação do Estado na implementação de políticas públicas.
Para se ter uma ideia, muitas cidades do nordeste semiárido, norte de Minas
Gerais, até mesmo São Paulo, passam ou já passaram pelos efeitos do racionamen-
to da água ou de interrupções no abastecimento e, certamente, os efeitos não são
sentidos de modo uniforme nas cidades considerando-se estratos da sociedade, por
exemplo, por bairros, por renda, ou por atividade econômica, enfim, os efeitos da
falta de acesso ou escassez de saneamento básico são sentidos de modo diferenciado.
É preciso levar em consideração que há um processo muito forte de descons-
trução de um sistema público de fornecimento de água e saneamento, inclusive
como contrapartida para concessão de empréstimos nacionais e internacionais,
como é o caso da Companhia de Água e Esgotos (CEDAE) do Rio de Janeiro,
além do caso do lançamento de ações da SABESP (Companhia de Saneamento
Básico do Estado de São Paulo) na bolsa de valores, ambas numa lógica especí-
fica de mercado. Como estratégia metodológica foi utilizada a pesquisa biblio-
gráfica e documental aliada à análise de dados secundários sobre o saneamento
básico, no caso, o abastecimento de água e o esgotamento sanitário.

2. Explicitando o ciclo urbano da água


A água é essencial para a sobrevivência das inúmeras formas de vida na Ter-
ra. Inclusive, sabe-se que as agências espaciais quando estão em busca de vida

254
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

em outros planetas começam com a procura da existência de água, pois haven-


do água tem-se uma das condições essenciais para que organismos possam se
desenvolver. Ultimamente, tem-se pensado consideravelmente na existência e
conservação de água potável nas décadas que se seguem, inclusive na fabricação
de água, principalmente, porque há um processo de mudanças climáticas con-
solidado que avança e que vem alterando a temperatura da Terra, tendo como
efeito visível a escassez de água, a mudança nos ciclos chuvosos, o esvaziamento
de reservatórios e a desertificação.
Por outro lado, tem-se um processo intenso de urbanização, transformando
a paisagem de rural para urbana, com médias e grandes cidades necessitando
cada vez mais de água, principalmente para o fornecimento às indústrias e à
agricultura de exportação3, bem como existindo a exigência de um crescimento
econômico cada vez maior que deveria importar-se com as condições de esto-
que de recursos naturais para fazer face ao consumo e aos usos múltiplos da
população desses centros, principalmente, de água. Fato é que estudos apontam
para a modificação do ciclo da água nos espaços urbanos, causado, especial-
mente, pelo crescimento dos mesmos4, atrevendo-se até mencionar a falta de
planejamento das gestões públicas, que fica patente quando da necessidade de
racionamento de água sem a existência de uma alternativa.
Swyngedouw et al (2016) aponta que há uma crescente utilização dos reser-
vatórios subterrâneos de água para diversos fins, sem a preocupação da respecti-
va recarga. Parece que esse cenário também atinge espaços urbanos, por exem-
plo, na medida em que qualquer pessoa perfura poços, sem nenhum tipo de
fiscalização, a revelia de um planejamento conectado com uma possível recarga
dos mananciais, sendo possível esperar um colapso desse sistema do subsolo. É
comum se constatar em diversas regiões brasileiras, nas cidades de pequeno e
médio porte, cidadãos e empresas perfurando poços sem autorização legal, sem
nenhum estudo prévio sobre o impacto dessas intervenções, bem como sem
uma avaliação séria por parte dos órgãos reguladores sobre o prejuízo causado

3 ECHAID, J. El derecho humano al agua potable y los tratados de protección recíproca de inversio-
nes. Tese (Doutorado en Derecho) - Facultad de Derecho, Universidad de Buenos Aires. Buenos
Aires, p. 406, 2013.
4 Swyngedouw, E.; CASTRO, J. E. Agua urbana: una perspectiva ecológico-política. In WATERLAT-
GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water
Cycle and Essential Public Services –Vol. 3, N7, 2016.

255
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

no lençol freático, podendo inclusive submeter as pessoas à contaminação com


a ingestão da água desses poços.
Isso diz respeito ao ciclo urbano da água, ou de forma mais técnica, ao ciclo
hidrológico que ocorre na zona urbana, englobando os processos que se efeti-
vam para a água chegar em seu destinatário final, tratando-se de uma matéria
complexa em sua essência visto que é de se questionar se nas cidades ao se fazer
uma obra se pensa/planeja no impacto que se causa a esse processo da natureza
que, certamente, é alterado pela ação humana. É importante refletir sobre a
proteção das nascentes de água que, geralmente, estão localizadas fora do am-
biente urbano, e que formam reservatórios, rios, riachos, dos quais se extrai a
água necessária ao abastecimento da demanda urbana.
Portanto, acredita-se que uma premissa deva ser estabelecida aqui, para
que haja uma proteção ao ciclo urbano da água, que é preciso pensar além
dos limites territoriais das cidades, e cuidar da proteção das nascentes para
poder cuida da água que abastece os centros urbanos. Veja-se a complexi-
dade desse processo que desafia a divisão de atribuições administrativas
previstas na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional. Isso
deve ser estendido aos reservatórios em forma de represas, que dependem da
água de rios e da chuva.
Assim é pertinente refletir-se a partir da abordagem de Britto et al5, defen-
dendo que há uma escassez socialmente construída, na medida em que existem
interesses hegemônicos que podem passar pela mercantilização da água, por
um certo racismo nessa distribuição no qual se prioriza mais o abastecimento
e o saneamento de áreas nobres e turísticas de uma cidade. Esse enfoque pro-
blematiza sobremaneira o modo de distribuição da água e do saneamento nas
zonas urbanas do país. Isso entra em colisão com os fundamentos preconizados
no diploma legal conhecido como Estatuto das Cidades (Lei n. 10.257/2001)
que estabelece a necessidade premente de se ter uma política urbana que tenha
como centralidade a função social das cidades, incluindo nessa categoria o sa-
neamento, o abastecimento de água, a preservação do ambiente natural e dos
recursos naturais. Dessa forma está descrito nessa lei:

5 BRITTO, A. L.; FORMIGA-JOHNSSON, R. M.;CARNEIRO, P. R. F. Abastecimento público e


escassez hidrossocial na metrópole do Rio de Janeiro. In Ambiente & Sociedade, São Paulo v. XIX,
n. 1, p. 185-208 n jan.-mar. 2016.

256
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvi-


mento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante
as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito
à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura
urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para
as presentes e futuras gerações;
(…)
XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural
e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico
e arqueológico;
(…)
XVII - estímulo à utilização, nos parcelamentos do solo e nas edificações
urbanas, de sistemas operacionais, padrões construtivos e aportes tecno-
lógicos que objetivem a redução de impactos ambientais e a economia
de recursos naturais.        (Incluído pela Lei nº 12.836, de 2013)
XVIII - tratamento prioritário às obras e edificações de infraestrutura
de energia, telecomunicações, abastecimento de água e saneamento. 
(Incluído pela Lei nº 13.116, de 2015)

Portanto, há um conjunto de diretrizes que atuam na proteção da água e do


seu entorno, pois é preciso compreender que a água compõe um sistema e está
num sistema, cuja complexidade é a tônica, sendo necessário que se analise
de forma transdisciplinar o fenômeno, de modo a pensar na vegetação, solo, e
outros de forma integrada. Desse modo, a preservação desse todo e das partes
é cuidar do meio ambiente e, certamente, beneficiar a preservação do ciclo
urbano da água nas cidades. Porém, é preciso ir além e pensar como isso tem
impacto diferenciado nas populações que compões as cidades.
Segundo Swyngedouw6, a circulaçaÞo da aìgua faz parte do processo de cir-
culação de dinheiro e capital, e outros serviços de bens urbanos, compondo
a economia política que estrutura relações de poder, interferindo diretamen-
te numa suposta forma e coerência do espaço urbano. Partindo dessa ideia,
mecanismos de exclusão do acesso à água, ao saneamento básico, poderia ter

6 Swyngedouw, E.; CASTRO, J. E. Agua urbana: una perspectiva ecológico-política. In WATERLAT-


GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water
Cycle and Essential Public Services –Vol. 3, N7, 2016; Swyngedouw, E. Social Power and the
Urbanisation of Water. Flows of Power. Oxford: Oxford University Press, 2004.

257
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

explicação através da exclusão hidrossocial, ou pelo menos ser uma chave de


análise social, sócio-técnica, jurídica, enfim, a partir daí novos mecanismos de
decisão, de regulação e de participação poderiam ser pensados. A abordagem
hidrossocial vê a circulaçaÞo da aìgua como um processo fiìsico e social combi-
nado, como um fluxo hibridizado, em que a natureza e a sociedade se fundem
de maneira inseparaìvel7, dando uma noção mais holística do fenômeno.
De acordo com essa abordagem, o acesso ou a falta (ou exclusão) em rela-
ção à água, inclusive ao esgotamento sanitário, são construídos historicamente
dentro de um ciclo hidrossocial, portanto, não estão dados, tanto o acesso como
a exclusão seriam hidrossociais, ou seja, populações ou comunidades pobres
com menor capacidade de entendimento e de defesa de seus direitos são mais
facilmente atingidos por essa escassez hidrossocial8. Dessa forma não haveria
um mero ciclo urbano da água, mas um ciclo hidrossocial da água. Porém é
importante destacar que há um conceito mais utilizado para ciclo da água na
gestão dos recursos hídricos que diz respeito ao movimento e troca da água na
Terra9, em processos complexos que acabam por integrar, aí no meio urbano,
elementos hidrológicos, hídricos, abastecimento, distribuição, uso do recurso,
tratamento e reutilização.
Então é perceptível que no contexto urbano é muito complexa a análise e,
certamente, a regulação. Segundo Peña-Guzmán10, o ciclo urbano da água con-
ta atualmente com “inclusioìn del servicio de prestacioìn de agua y los usos que
se le da en aìreas urbanas, como suministro de agua potable, drenaje de agua de
lluvia y residuales, y manejo y tratamiento de las aguas”. Portanto, são diversas
as variáveis, inclusive a demanda por um aparato técnico forte, erigindo daí a
preocupação dessa constatação que é justamente até que ponto o ordenamento
jurídico, conjugado com o aparato estatal, está preparado para tal desiderato.

7 Swyngedouw, E. Social Power and the Urbanisation of Water. Flows of Power. Oxford: Oxford
University Press, 2004.
8 BRITTO, A. L.; FORMIGA-JOHNSSON, R. M.;CARNEIRO, P. R. F. Abastecimento público e
escassez hidrossocial na metrópole do Rio de Janeiro. In Ambiente & Sociedade, São Paulo v. XIX,
n. 1, p. 185-208 n jan.-mar. 2016.
9 Peña-Guzmán, C. A; PRATS, D.; MELGAREJO, J. El ciclo urbano del agua en Bogotá, Colombia:
estado actual y desafíos para la sostenibilidad. In Tecnología y Ciencias del Agua, vol. VII, núm. 6,
noviembre-diciembre de 2016, pp. 57-71.
10 Peña-Guzmán, C. A; PRATS, D.; MELGAREJO, J. El ciclo urbano del agua en Bogotá, Colombia:
estado actual y desafíos para la sostenibilidad. In Tecnología y Ciencias del Agua, vol. VII, núm. 6,
noviembre-diciembre de 2016, pp. 57-71, p. 57.

258
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

É importante explicitar o que efetivamente significa ciclo urbano da água.


É preocupante pensar, e muitos usuários não refletem sobre isso, como a água
chega nas residências, indústrias e outras dependências, a questão que incomo-
da é certamente a isonomia no acesso a esse serviço, quantidade e qualidade,
tema que pode ser objeto de estudos que envolvam a ecologia política. Desse
modo, compartilha-se da abordagem de Swyngedouw11, no que se refere à ne-
cessidade de se fazer uma leitura a partir da ecologia política sobre as mudanças
urbanas, daí entra a questão do ciclo da água, uma vez que ao longo dos anos o
meio ambiente foi modificado com o crescimento e as transformações provoca-
das pelo meio urbano, que se metamorfosea cada vez mais, porém, implicando
num aumento de demanda, inclusive de água12.
No quadro 1 colocam-se algumas observações feitas por Swyngedouw13 que
merecem ser levadas em conta nesse processo do olhar da ecologia política e da
hidrossocialidade face o ciclo da água em território considerado urbano:

11 Swyngedouw, E.; CASTRO, J. E. Agua urbana: una perspectiva ecológico-política. In WATERLAT-


GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water
Cycle and Essential Public Services –Vol. 3, N7, 2016.
12 PUJOL, D. S.; MARCH, H. ¿Qué sostenibilidad hídrica? Una interpretación crítica del descenso
reciente del consumo doméstico de agua en Barcelona. In WATERLAT-GOBACIT Network
Working Papers Thematic Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water Cycle and Essential
Public Services – Vol. 1 N. 2, 2014.
13 Swyngedouw, E.; CASTRO, J. E. Agua urbana: una perspectiva ecológico-política. In WATERLAT-
GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water
Cycle and Essential Public Services –Vol. 3, N7, 2016.

259
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

Quadro 1 - argumentos que devem ser levados em consideração na análise


jurídico-ambiental do ciclo urbano da água

os processos de mudança socioambiental A transformação ambiental não é indepen-


transformam tanto os ambientes sociais dente das lutas de classe, gênero, étnica e
como os físicos e produzem ambientes so- outras; as perspectivas ecológico-políticas
ciais e físicos com qualidades novas e dis- também buscam questionar os processos
tintas. Os meio ambientes são construções concretos de reconstrução e reformulação
a partir de combinações sócio-físicas que ambiental e argumentam que a sustentabili-
são produzidas ativa e historicamente, tan- dade é alcançada através de um processo de
to em termos de seu conteúdo social, como re-construção sócio-ambiental controlada
de suas qualidades físico-ambientais; e organizada democraticamente. O progra-
ma político de Ecologia Política, portanto, é
aumentar o conteúdo democrático dos pro-
cessos de construção socioambiental, identi-
ficando as estratégias através das quais uma
distribuição mais equitativa do poder social
poderia ser alcançada e uma maior incluindo
a produção ambiental.
os meio ambientes produzidos são resulta- As perspectivas ecológico-políticas também
do historicamente específicos de proces- buscam questionar os processos concretos de
sos socioambientais; reconstrução e reformulação ambiental e ar-
gumentam que a sustentabilidade é alcançada
através de um processo de re-construção so-
cioambiental controlada e organizada demo-
craticamente. O programa político de Ecolo-
gia Política, portanto, é aumentar o conteúdo
democrático dos processos de construção so-
cioambiental, identificando as estratégias atra-
vés das quais uma distribuição mais equitativa
do poder social poderia ser alcançada e uma
maior incluindo a produção ambiental;
É importante ter em mente como estão as Todos os processos sócio-espaciais também
relações sociais de poder nas mais diversas são, invariavelmente, baseados na transfor-
esferas da sociedade, pois isso será definidor mação ou metabolismo de componentes físi-
nas transformações socioambientais. São es- cos, químicos e biológicos;
sas geometrias de poder e os atores sociais
que as realizam, que finalmente decidem
quem terá acesso ou controle, e quem será
excluído desse acesso e controle, sobre recur-
sos e outros componentes do meio ambiente;

260
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Para a ecologia política é importante saber Estes metabolismos produzem uma série de
quem ganha e quem perde, o que é extra- condições sociais e ambientais que têm efei-
mente útil para os atores políticos em po- tos habilitantes e incapacitantes. De fato,
sição de decisão e legisladores no momento esses ambientes produzidos costumam in-
de transformar em lei determinada política corporar tendências contraditórias. Embora
e propor mecanismos de regulação com a as qualidades ambientais (sociais e físicas)
intenção de dar acesso igualitário; possam ser melhoradas em alguns lugares e
para algumas pessoas, muitas vezes essas me-
lhorias levam à deterioração das qualidades e
condições sociais e físicas de outros lugares;
As perspectivas ecológico-políticas procu- Os processos de mudança socioambiental, por-
ram decifrar a natureza das relações sociais tanto, nunca são socialmente ou ecologicamen-
que se desenvolvem entre indivíduos e gru- te neutros. Isso causa condições em que deter-
pos sociais e como estes, por sua vez, são minadas trajetórias particulares do processo de
mediados e estruturados por processos de mudança socioambiental minam a estabilidade
mudança ecológica; e a coerência de alguns grupos e lugares sociais,
enquanto podem melhorar a sustentabilidade
de outros grupos e lugares. Em resumo, o estudo
ecológico-político do processo de urbanização
revela a natureza intrinsecamente contraditória
do processo de mudança socioambiental e evi-
dencia os inevitáveis ​​conflitos (ou deslocamen-
tos no tempo e no espaço) gerados pela mudan-
ça socioambiental
Comunga-se da preocupação do autor em relação às necessidades crescentes
da população no meio urbano o que, inevitavelmente, exigirá um processo cres-
cente de transformação socioambiental cada vez mais forte, para poder suportar
a pressão das mudanças urbanas contemporâneas Swyngedouw14. É importante
destacar que o processo de urbanização contínuo na história provocou mu-
danças em relação ao ciclo da água, considerando que a compreensão de que
o ciclo urbano da água nada mais é do que a circulação da água em território
classificado como urbano, tem-se uma complexidade considerável com diversas
maneira de captação, represamento e reutilização da água.
Os estudos de Swyngedouw15 vem problematizar essencialmente a transfor-
mação do ciclo urbano da água, que tem sido modificado ao longo da história

14 Swyngedouw, E.; CASTRO, J. E. Agua urbana: una perspectiva ecológico-política. In WATERLAT-


GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water
Cycle and Essential Public Services –Vol. 3, N7, 2016.
15 Swyngedouw, E.; CASTRO, J. E. Agua urbana: una perspectiva ecológico-política. In WATERLAT-
GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water
Cycle and Essential Public Services –Vol. 3, N7, 2016.

261
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

para satisfazer as necessidades da crescente população e produção, agrícola e


industrial, o mesmo traz uma questão que é a modificação dos lençóis freáticos,
que estão secando e sendo contaminados o que pode inviabilizar o fornecimen-
to de água potável nessas regiões, e isso está acontecendo em Telaviv, Londres,
Atenas. Nesse processo, poderia ser incluída por exemplo a obra da transposi-
ção do São Francisco, e outras, feitas para o abastecimento urbano, principal-
mente para que não houvesse um colapso na produção das médias e grandes
cidades, pelo menos é isso que se construiu com a ativação do Eixo Leste da
obra. Tucci16 (2008, p. 99) já enfatizava que essas águas urbanas se constituíam
num grande problema em virtude do seguinte:

1 Falta de tratamento de esgoto: grande parte das cidades da região


não possui tratamento de esgoto, lançando os efluentes na rede
de esgotamento pluvial, que escoa pelos rios urbanos (maioria das
cidades brasileiras);
2 outras cidades optaram por implantar as redes de esgotamento
sanitário (muitas vezes sem tratamento), mas não implementam
a rede de drenagem urbana, sofrendo frequêntes inundações com
o aumento da impermeabilização;
3 ocupação do leito de inundação ribeirinha, sofrendo frequêntes
inundações;
4 Impermeabiliza~ção e canalização dos rios urbanos com aumen-
to da vazão de cheia (sete vezes) e sua freqüência; aumento da
carga de resíduos sólidos e da qualidade da água pluvial sobre os
rios próximos das áreas urbanas;
5 deterioração da qualidade da água por falta de tratamento
dos efluentes tem criado potenciais riscos ao abastecimento
da população em vários cenários, e o mais crítico tem sido a
ocupação das áreas de contribuição de reservatórios de abaste-
cimento urbano que, eutrofizados, podem produzir riscos à saúde
da população.

16 TUCCI, C. E. M. Águas urbanas. In Estudos Avançados 22 (63), 2008.

262
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Esse é um quadro ruim para quem? Quem efetivamente sofre com um sis-
tema de saneamento básico injusto? Essa é uma questão a ser respondida, mas
com base nos estudos realizados no campo sócio-jurídico é preciso avançar no
sentido de compreender o ciclo urbano da água como sendo um ciclo hidrosso-
cial, no qual o poder e outros fatos moldam seus caminhos pela urbe. Isso pode
apontar que a água potável não é para todos e que o ordenamento jurídico é
incapaz de proteger ou reaver o direito fundamental à água, não a enxergando
como algo isolado mas que compõe um sistema que tem que ser protegido em
sua integralidade.
Na figura 1 fica exposta a complexidade do ciclo urbano da água, sendo
necessário órgãos técnicos administrativos, reguladores e judiciais capacitados
para analisar e tutelar o direito fundamental ao saneamento, uma vez que o
Brasil se ressente da ausência de uma órgão que regule o saneamento, tem-se a
Agência Nacional de Águas (ANA), porém, não se tem uma agência de regu-
lação do saneamento.

Figura 1 - Demonstração do processo de captação de água até o seu


devido tratamento após consumo
Fonte: ADRA, Portugal, http://www.adra.pt/content/index.php?action=detailfo&rec=1976&t
=Ciclo-urbano-da-agua

3 Como está posto juridicamente no Brasil e a tutela em si


A legislação brasileira posiciona o abastecimento de água17 potável den-
tro do conceito de saneamento básico e público, conforme a Lei Federal n.
11.445/2007, Lei de Diretrizes Nacionais para o Saneamento Baìsico (LDNSB),
que estrutura a Política Nacional de Saneamento Básico (PNSB), e seu de-

17 é importante deixar claro que “abastecimento de água” é diferente de “recursos hídricos”, que dizem
respeito aos corpos d’água que fornecem água para o abastecimento e são regulados pela Política
Nacional de Recursos Hídricos, com lei própria, Lei n. 9.433/97.

263
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

creto de regulamentação (Decreto n. 7.217/2010) no art. 2, estão postos como


princípios fundamentais, o que concede uma relevância substancial à mesma,
os seguintes: (i) abastecimento de água potável; (ii) coleta e tratamento do es-
gotamento sanitário; (iii) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas; e (iv)
limpeza e manejo de resíduos sólidos urbanos (coleta e disposição final do lixo).
Portanto, de acordo com o art. 3 da mesma lei, saneamento básico é:

I - (…)conjunto de serviços, infra-estruturas e instalações operacionais de:


a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infra-
-estruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água
potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos instru-
mentos de medição;
b) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades, infra-estruturas e
instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e disposição
final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o
seu lançamento final no meio ambiente;
c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: conjunto de atividades,
infra-estruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, trans-
bordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e do lixo originário
da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas;
d) drenagem e manejo das águas pluviais, limpeza e fiscalização pre-
ventiva das respectivas redes urbanas: conjunto de atividades, infra-
estruturas e instalações operacionais de drenagem urbana de águas
pluviais, de transporte, detenção ou retenção para o amortecimento
de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais
drenadas nas áreas urbanas;  [GRIFO NOSSO]

Apesar de não se ter esse categoria “ciclo urbano da água” na legislação bra-
sileira, o que chega mais próximo é a Resolução do Conama n. 303/2002, que
define a categoria jurídica “área urbana consolidada”18, como sendo,

18 A Lei n . 13.645/2017 detalha mais que seria essa “área urbana consolidada”, art. 16C (…)
§ 2o  Para os fins desta Lei, considera-se área urbana consolidada aquela: 
I - incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica; 
II - com sistema viário implantado e vias de circulação pavimentadas; 
III - organizada em quadras e lotes predominantemente edificados; 
IV - de uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais,
comerciais, industriais, institucionais, mistas ou voltadas à prestação de serviços; e 
V - com a presença de, no mínimo, três dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana
implantados: 

264
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

XIII - aìrea urbana consolidada: aquela que atende aos seguintes criteìrios:
a) definiçaÞo legal pelo poder puìblico;
b) existência de, no miìnimo, quatro dos seguintes equipamentos de
infra-estrutura urbana:
1. malha viaìria com canalizaçaÞo de aìguas pluviais,
2. rede de abastecimento de aìgua;
3. rede de esgoto;
4. distribuiçaÞo de energia eleìtrica e iluminaçaÞo puìblica;
5. recolhimento de resiìduos soìlidos urbanos;
6. tratamento de resiìduos soìlidos urbanos; e
c) densidade demograìfica superior a cinco mil habitantes por km2.

Desse modo, tem-se um elemento para instruir a tutela jurídica do ciclo


urbano da água, compreendendo, inicialmente, o que significa para o ordena-
mento jurídico a área urbana, em que a mesma é objeto de uma Política Urbana
que prevê requisitos específicos mínimos para se conceder qualidade de vida
para quem reside nas cidades.
É importante destacar que estão incluídos como itens essenciais para essas
áreas urbanas o abastecimento de água potável e o esgotamento sanitária, que
deixou de ser a instalação de uma mera rede, como preconizava a resolução do
CONAMA supra, para ser um sistemas mais complexo, como dispões a legis-
lação “constituído pelas atividades, infra-estruturas e instalações operacionais
de coleta, transporte, tratamento e disposição final adequados dos esgotos sani-
tários, desde as ligações prediais até o seu lançamento final no meio ambiente”
(Lei n. 11.445/2007, art. 3, I, b).
Dessa forma, o esgotamento sanitário estabelece uma série de etapas que
compõe a PNSB, não sendo o simples ato de receber as águas utilizadas e lança-
-las em tubulações e depois no meio ambiente, implica em tratamento adequado
pelo Poder Público, implicando, também, adequações dos usuários do sistema. É
uma atividade complexa que necessita de uma forte regulação.

a) drenagem de águas pluviais; 


b) esgotamento sanitário; 
c) abastecimento de água potável; 
d) distribuição de energia elétrica; e 
e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos. 

265
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

Quanto à PNSB, ela está umbilicalmente ligada à Política Nacional de Re-


cursos Hídricos (PNRH) de 1997, a lei n. 9.43319, uma vez que os três artigos
iniciais desse último diploma legal estabelecem princípios fundamentais dessa
política que não podem ser desconsiderados em nenhuma hipótese por outras
políticas relacionados, como é o caso da PNSB, uma vez que tanto o acesso à
água como ao saneamento são considerado direitos humanos, portanto, funda-
mentais para a dignidade humana, cabendo as gestões públicas sua concreti-
zação. Para que isso ocorra, defende-se aqui a necessidade de se tutelar o ciclo
urbano da água como algo único e interligado, desde o manancial até o descarte
ou reaproveitamento das águas utilizadas.
Essa é uma questão que não é negociável, sem água e esgotamento tratado
não há como se falar em qualidade de vida, num “bem viver”, que já foi perdi-
do, ou nunca constituído em alguns territórios no mundo, ou que está sendo

19 Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:


I - a água é um bem de domínio público;
II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;
III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a
dessedentação de animais;
IV - a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;
V - a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos
Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos;
VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder
Público, dos usuários e das comunidades.
Art. 2º São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos:
I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de
qualidade adequados aos respectivos usos;
II - a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com
vistas ao desenvolvimento sustentável;
III - a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do
uso inadequado dos recursos naturais.
IV - incentivar e promover a captação, a preservação e o aproveitamento de águas pluviais.                       
Art. 3º Constituem diretrizes gerais de ação para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos:
I - a gestão sistemática dos recursos hídricos, sem dissociação dos aspectos de quantidade e qualidade;
II - a adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas,
econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do País;
III - a integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental;
IV - a articulação do planejamento de recursos hídricos com o dos setores usuários e com os
planejamentos regional, estadual e nacional;
V - a articulação da gestão de recursos hídricos com a do uso do solo;
VI - a integração da gestão das bacias hidrográficas com a dos sistemas estuarinos e zonas costeiras.
Art. 4º A União articular-se-á com os Estados tendo em vista o gerenciamento dos recursos hídricos
de interesse comum.

266
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

dissolvida com a falta de acesso à água, ou o acesso à uma água de qualidade


duvidosa, e aos serviços sanitários. É importante destacar que no contexto de
uma política urbana mais ampla o direto à cidade é um fundamento erigido
pela Lei n. 10.257/2001, que só se consubstanciará como tal se houver acesso à
água tratada e a todo o equipamento sanitário que, inclusive, possa oferecer o
tratamento e, daí, essa água possa ser reutilizada.
Nos dias atuais, numa sociedade complexa20 e extremamente urbani-
zada, não seria admissível pensar em bem-estar nas cidades sem o acesso
à água, juntamente com o uso racional da mesma, a presença de uma rede
de esgoto com o correspondente tratamento e reuso dessas águas, evitando-
-se o desperdício. Frise-se ainda que a Carta Magna de 1988, no art. 225,
parágrafo primeiro, menciona que para se concretizar o direito fundamen-
tal ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é necessário: “preservar e
restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico
das espécies e ecossistemas” [GRIFO NOSSO]; portanto preocupar-se com
a preservação das nascentes é imperativo para que todo o processo de “pro-
dução” da água, naturalmente, seja preservado e haja um impacto positivo
nas cidades. Lembre-se ainda do que está estabelecido no art. 182 da mesma
Constituição Federal (CF), uma política de desenvolvimento urbano, cuja
compreensão deve ser alarga considerando as condições para o cumprimen-
to das funções sociais das cidades.
Nesse planejamento deve entrar a observância da legislação quanto às Áre-
as de Preservação Permanente (APPs)21, seja urbana ou não, no sentido de

20 LEITE, J. R. M. (Coord.). Manual de Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2015.


21 Lei 12.651/2012, Art. 4o  Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas,
para os efeitos desta Lei:
I - as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros,
desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;
b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de
largura;
c) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros
de largura;
d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos)
metros de largura;
e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos)
metros;
II - as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com largura mínima de:

267
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

preservar, repisando, as nascentes, os reservatórios de água, sendo importante


asseverar que é preciso manter a floresta “em pé” para que haja água para con-
sumo animal e vegetal, para consumo daqueles que moram nas cidades. Um
instrumento relevante para esse planejamento integrado nas cidades é o plano
diretor, no qual é imprescindível que haja a previsão acerca da água, do solo e
da vegetação, de modo a adotar um modelo de desenvolvimento sustentável
que proporcione a preservação dos cursos de água e a garantia que haverá a
constituição de uma política de saneamento local ou regional, embora se separe
a gestão urbana da ambiental nesses documentos, os mesmos devem considerar
uma política urbana alargada que tenha um eixo ambiental forte22, num verda-
deira processo de ecologização.
Dessa forma, ao criar o conceito de APP o legislador quis resguardar dire-
tamente a flora, a fauna, os recursos hídricos e os valores estéticos, de maneira
a garantir o equilíbrio do meio ambiente e a consequente manutenção da vida
humana e da qualidade de vida do homem em sociedade, deixando determina-
das áreas a salvo do desenvolvimento econômico e da degradação, posto que as
florestas e demais formas de vegetação guardam íntima relação com os elemen-
tos naturais citados23. O Superior Tribunal de Justiça já consagrou a importân-
cia ecológica das APPs:

1. Trata-se, originariamente, de Ação Civil Pública ambiental movi-


da pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul contra
proprietários de 54 casas de veraneio ("ranchos"), bar e restaurante
construídos em Área de Preservação Permanente - APP, um con-

a) 100 (cem) metros, em zonas rurais, exceto para o corpo d’água com até 20 (vinte) hectares de
superfície, cuja faixa marginal será de 50 (cinquenta) metros;
b) 30 (trinta) metros, em zonas urbanas;
III - as áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento
de cursos d’água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento; (Incluído pela
Lei nº 12.727, de 2012).
IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, qualquer que seja sua situação
topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros; (Redação dada pela Lei nº 12.727, de 2012).
(…)
22 NAZARETH, P. A. Planos diretores e instrumentos de gestão urbana e ambiental no Estado do Rio
de Janeiro. In Rev. Serv. Público Brasília 69 (1) 211-240 jan/mar 2018.
23 FARIAS, T., CORREIA, A. F. Considerações a respeito da edificação urbana às margens de rios: a
lei 12.651/2012 (novo código florestal) e a competência legislativa municipal. In FERREIRA, O. A.
V. A., GRAU NETO, W. Temas polêmicos do Novo Código Florestal. São Paulo: Migalhas, 2016.

268
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

junto de aproximadamente 60 lotes e com extensão de quase um


quilômetro e meio de ocupação da margem esquerda do Rio Ivinhe-
ma, curso de água com mais de 200 metros de largura. Pediu-se a
desocupação da APP, a demolição das construções, o reflorestamento
da região afetada e o pagamento de indenização, além da emissão de
ordem cominatória de proibição de novas intervenções. A sentença
de procedência parcial foi reformada pelo Tribunal de Justiça, com
decretação de improcedência do pedido.
ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE CILIAR 2. Primigênio e
mais categórico instrumento de expressão e densificação da "efetividade"
do "direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado", a Área de
Preservação Permanente ciliar (= APP ripária, ripícola ou ribeirinha),
pelo seu prestígio ético e indubitável mérito ecológico, corporifica ver-
dadeira trincheira inicial e última - a bandeira mais reluzente, por assim
dizer - do comando maior de "preservar e restaurar as funções ecológicas
essenciais", prescrito no art. 225, caput e § 1º, I, da Constituição Federal.
3. Aferrada às margens de rios, córregos, riachos, nascentes, charcos,
lagos, lagoas e estuários, intenta a APP ciliar assegurar, a um só tem-
po, a integridade físico-química da água, a estabilização do leito hídri-
co e do solo da bacia, a mitigação dos efeitos nocivos das enchentes, a
barragem e filtragem de detritos, sedimentos e poluentes, a absorção de
nutrientes pelo sistema radicular, o esplendor da paisagem e a própria
sobrevivência da flora ribeirinha e fauna. Essas funções multifacetárias e
insubstituíveis elevam-na ao status de peça fundamental na formação de
corredores ecológicos, elos de conexão da biodiversidade, genuínas veias
bióticas do meio ambiente. Objetivamente falando, a vegetação ripária
exerce tarefas de proteção assemelhadas às da pele em relação ao corpo
humano: faltando uma ou outra, a vida até pode continuar por algum
tempo, mas, no cerne, muito além de trivial mutilação do sentimento
de plenitude e do belo do organismo, o que sobra não passa de um ser
majestoso em estado de agonia terminal.
4. Compreensível que, com base nessa ratio ético-ambiental, o legislador
caucione a APP ripária de maneira quase absoluta, colocando-a no ápice
do complexo e numeroso panteão dos espaços protegidos, ao prevê-la na
forma de superfície intocável, elemento cardeal e estruturante no es-
quema maior do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por tudo
isso, a APP ciliar qualifica- se como território non aedificandi. Não po-
deria ser diferente, hostil que se acha à exploração econômica direta,
desmatamento ou ocupação humana (com as ressalvas previstas em lei,

269
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

de caráter totalmente excepcional e em numerus clausus, v.g., utilidade


pública, interesse social, intervenção de baixo impacto).
5. Causa dano ecológico in re ipsa, presunção legal definitiva que dispen-
sa produção de prova técnica de lesividade específica, quem, fora das
exceções legais, desmata, ocupa ou explora APP, ou impede sua regene-
ração, comportamento de que emerge obrigação propter rem de restaurar
na sua plenitude e indenizar o meio ambiente degradado e terceiros afe-
tados, sob regime de responsabilidade civil objetiva.
Precedentes do STJ
(...)
(REsp 1245149/MS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TUR-
MA, julgado em 09/10/2012, DJe 13/06/2013)

A partir dessas considerações, um ponto que se questiona é: de quem seria


a responsabilidade de gerir todo esse sistema? A legislação pátria trouxe uma
responsabilidade nova aos municípios24 que é justamente cuidar para que os
munícipes tenham verdadeiramente saneamento básico, o que, no caso brasi-
leiro, é preocupante pelos problemas financeiros corriqueiros para a realização
das ações necessárias para que o mesmo ocorra, o que não isenta a União, os
estados e o distrito federal de suas responsabilidades. O problema fiscal dos mu-
nicípios é conhecido há décadas e que está longe de ser superado, o que faz os
mesmos se socorrerem constantemente dos recursos federais, seja via linhas de
crédito em bancos públicos, seja por meio de emendas parlamentares.
O que parece é que a solução de se submeter a um dos entes subnacio-
nais a organização do abastecimento de água e o esgotamento sanitário, ou
seja, o saneamento básico, é caro, é dispendioso, porém necessário, e talvez
a solução seja regional25, considerando os interesses comuns entre diversos

24 Quintslr, S.; BRITTO, A. L. Desigualdades no acesso à agua e ao saneamento: impasses da política


pública na metrópole fluminense. In WATERLAT-GOBACIT Network Working Papers Thematic
Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water Cycle and Essential Public Services – Vol. 1 N2,
2014.
25 Lei n. 13.089/2015, art. 1o  Esta Lei, denominada Estatuto da Metrópole, estabelece diretrizes
gerais para o planejamento, a gestão e a execução das funções públicas de interesse comum em
regiões metropolitanas e em aglomerações urbanas instituídas pelos Estados, normas gerais sobre o
plano de desenvolvimento urbano integrado e outros instrumentos de governança interfederativa,
e critérios para o apoio da União a ações que envolvam governança interfederativa no campo do
desenvolvimento urbano, com base nos incisos XX do art. 21, IX do art. 23 e I do art. 24, no § 3º do
art. 25 e no art. 182 da Constituição Federal.

270
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

aglomerados urbanos, sem contar o vácuo legal deixado acerca da regulação


dos serviços de esgoto tratado.
Porém, é destacado o reforço da responsabilidade municipal, quais sejam:
(i) elaborar e aprovar a Política Municipal de Saneamento Básico, através
da qual será definido o modelo jurídico-institucional, as funções de gestão
dos serviços públicos de saneamento e estabelecida a garantia do atendi-
mento essencial à saúde pública, aos direitos e deveres dos usuários, e ainda
a instância de controle social da gestão dos serviços; (ii) elaborar e aprovar
o Plano Municipal de Saneamento Básico, cujo conteúdo é definido na Lei;
(iii) constituir a entidade reguladora e fiscalizadora dos serviços públicos de
saneamento básico ou definir a qual entidade existente será delegada essa
função; (iv) definir a entidade responsável pelo controle social dos serviços,
que pode ocorrer através da criação de um conselho espeífico (Conselho
Municipal de Saneamento Básico) ou de conselho existente, como o
conselho municipal da cidade ou de meio ambiente. Acredita-se que a
maior parte dos municípios da federação não tem condições de cumprir
essas responsabilidade de forma isolada. Apenas São Paulo e Distrito Fe-
deral tem níveis de coleta e tratamento compatíveis com a expansão da rede
de água. Chama atenção os estados do Norte e Nordeste que continuam
sendo aqueles que mais sofrem com o baixo nível do serviço de saneamento
básico, a despeito de investimentos realizados nos anos anteriores. Lem-
brando que esses dados não são precisos no que se refere à qualidade de água
recebida pelos usuários.
Entretanto, é importante mencionar que os estados da região Sul padecem
de níveis de coleta, tratamento e perdas ainda preocupantes. Essa situação
foge dos parâmetros estipulados tanto na lei da PNRH como na lei da PNSB,
afrontado diretamente seus princípios basilares. Isso levanta questionamentos
acerca da regulação dos serviços relacionados diretamente ao saneamento bá-
sico, cujas responsabilidades não se encontram claras. A despeito da baixa ex-
tensão dos serviços no Paraná e Rio Grande do Sul, este último em profunda
crise fiscal, essa diferenciação tem endereço certo no Norte e Nordeste, o que
fere fundamentos da República, previstos no art. 3 da constituição Federal de
1988, que estabelece a obrigação de erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais, o que parece que não foi atingido
em pleno século 21, 29 anos depois de promulgada a Carta Magna. Isso, ao

271
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

que parece, denuncia a fragilidade do sistema de saneamento e da regulação.


A lei n. 11.445/2007 tem um dispositivo que se traduz num importante ins-
trumento de gestão, cuja a existência deve ser cobrada, fiscalizada, que é a
obrigatoriedade dos titulares do serviço elaborar os planos de saneamento bá-
sico. Esses planos são essenciais, uma vez que estabelecem metas e disposições
acerca do saneamento local.
Entretanto, o Tribunal de Contas da União tem constatado irregularidades
em convênios que tratam do repasse de recursos para se fazer o Plano Municipal
de Saneamento Básico (PLAMSAB), como, à guisa de exemplo, constatou-se
que no acórdão n. 002.953/2017-0 houve o bloqueio do repasse de recursos da
Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) para 100 municípios do Piauí que es-
tavam na iminência de fazer seu PLAMSAB, e como se verificou nos dados do
Gráfico 1, o Piauí é um dos piores estados em termos de saneamento básico. Os
diplomas legais aqui citados deixam claro a responsabilidade do gestor público
em relação a essas ações essenciais, desde a captação da água até o tratamento
das águas residuárias, ou seja, as águas descartadas depois do uso por exemplo,
e nessa seara o Brasil avançou muito pouco. Essa responsabilização do gestor
pode redundar em crime de improbidade, em processo administrativo e, até
mesmo, em crime ambiental.
Esses dados problematizam a responsabilidade jurídica dos gestores. O
Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257 de 2001 estabelece o plano diretor como
instrumento importante (art. 4, inc. III, a) e que ele deverá prever em seu
texto o plano de recursos hídricos da cidade (Art. 42, VI, parágrafo segundo).
Embora se saiba que a constituição federal só obriga a existência de plano
diretor nos municípios com mais de 20 mil habitantes (CF/1988, art. 182, pa-
rágrafo primeiro), recomenda-se que todo município tenha seu plano diretor
para planejar seu presente e futuro, destacando-se a inovação do Estatuto da
Metrópole (Lei n. 13.089/2015) que estabelece um Plano de Desenvolvimento
Integrado entre os municípios que formação a região, instituindo um modelo
de governança compartilhada.
Para além do jurídico, para se avaliar a tutela jurídica do ciclo urbano da
água é necessário verificar o que a PNSB menciona em relação aos entes federa-
dos. Já se asseverou o plus que legislação trouxe responsabilizando os municípios
em relação ao saneamento local, entretanto a União também possui sua respon-
sabilidade, não só orçamentária, mas em relação à construção e institucionali-

272
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

zação do PLANSAB, cuja responsabilidade ficou sob a regência do Ministério


das Cidades, e que fora finalizado em 201326, contendo:

a) os objetivos e metas nacionais e regionalizadas, de curto, meìdio e lon-


go prazos, para a universalizaçaÞo dos serviços de saneamento baìsico e
o alcance de niìveis crescentes de saneamento baìsico no territoìrio na-
cional, observando a compatibilidade com os demais planos e poliìticas
puìblicas da UniaÞo;
b) as diretrizes e orientaçoÞes para o equacionamento dos condicio-
nantes de natureza poliìtico- institucional, legal e juriìdica, econômico-
financeira, administrativa, cultural e tecnoloìgica com impacto na
consecuçaÞo das metas e objetivos estabelecidos;
c) a proposiçaÞo de programas, projetos e açoÞes necessaìrios para atin-
gir os objetivos e as metas da Poliìtica Federal de Saneamento Baìsico,
com identificaçaÞo das respectivas fontes de financiamento;
d) as diretrizes para o planejamento das açoÞes de saneamento baìsico
em aìreas de especial interesse turiìstico;
e) os procedimentos para a avaliaçaÞo sistemaìtica da eficiência e eficaì-
cia das açoÞes executadas.

Esses são parâmetros a serem verificados pelos órgãos de controle internos


e externos, como controladorias e os tribunais de contas, levando-se em con-
sideração aspectos relacionados aos princípios da legalidade, moralidade, pu-
blicidade, eficiência, impessoalidade e motivação (CF, art. 37), e que demanda
além de especialistas na área jurídica, profissionais da área contábil, ambiental
e hídrica que podem elaborar pareceres e laudos que irão instruir os processos,
dando mais fundamentos. Além desses órgãos é imperiosa a ação do Ministério
Público na fiscalização e acompanhamento, monitoramento, dessas obras de sa-
neamento, especialmente relacionadas ao ciclo urbano da água, vide Quadro 2,
pois a partir dessa atuação pode-se ter a formulação de inquéritos civis, denún-
cias quando houver a prática de crime e a provocação de órgãos administrativos
chamando-os à responsabilidade.
É importante destacar que no plano internacional, dois marcos referenciais,
aprovados no âmbito da OrganizaçaÞo das NaçoÞes Unidas e estreitamente rela-
cionados ao Plansab, merecem registro: (i) os Objetivos de Desenvolvimento do

26 http://www.mma.gov.br/port/conama/processos/AECBF8E2/ Plansab_Versao_Conselhos_
Nacionais_020520131.pdf

273
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

Milênio, firmado pelo Brasil e outros 190 paiìses, em setembro de 2000, prevendo,
entre outras metas, a reduçaÞo em 50%, ateì 2015, da parcela da populaçaÞo que
naÞo tinha acesso aÌ aìgua potaìvel e ao esgotamento sanitaìrio no ano de 1990
(como visto no Gráfico 1 não foi atingido, e certamente não será atingido mesmo
com o adiamento para 2030); (ii) a ResoluçaÞo A/RES/64/292, da Assembleia
Geral das NaçoÞes Unidas, de 28 de julho de 2010, apoiada por 122 naçoÞes,
com 41 abstençoÞes e nenhum voto contraìrio, com forte suporte da diplomacia
brasileira, e que trata dos direitos aÌ aìgua e ao esgotamento sanitaìrio, afirma ser
o acesso aÌ aìgua limpa e segura e ao esgotamento sanitaìrio adequado um direito
humano, essencial para o pleno gozo da vida e de outros direitos humanos. Es-
sas recomendações e resoluções nacionais e internacionais devem ser levadas em
consideração quando da tutela jurídica do ciclo urbano da água, isso em íntima
ligação com a proteção aos recursos hídricos, dos chamados corpos de água, seja
de um lago, rio, mar, reservatório, poços, em que a água é estocada.
A despeito da atuação do Ministério Público foram selecionados aleatoriamente
alguns estados da federação, sendo feitas consultas processuais acerca de informa-
ções sobre a atuação ministerial na proteção jurídica do ciclo urbano da água. Veri-
fica-se que essa atuação tem crescido, entretanto, há dificuldade, e mesmo ausência
de informações sobre a atuação administrativa e judicial. Chama atenção o ende-
reço eletrônico do Ministério Público do Estado do Amazonas que se apresentou
como sendo o site que menos informações possuía dentro dos que foram verificados.
É importante destacar que não significa dizer que não haja atuação, mas apenas as
inferências foram feitas a partir de informações disponibilizadas nos sites.
Quadro 2 - Breve panorama da atuação do Ministério Público nos Estados.

MINISTÉRIO PÚBLICO Tem atuado fortemente no monitoramento e na propositura


FEDERAL DA PARAÍBA de ações referentes às obras da transposição do São Francis-
co, incluindo aí o saneamento básico nas cidades a serem
atendidas pela água, bem como em relação ao racionamento
na cidade de Campina Grande.
MINISTÉRIO PÚBLICO Esse instituiu como coordenação de Urbanismo e Meio Am-
DE SÃO PAULO biente que cuida das diversas bacias hidrográficas do estado,
o que significa ser uma tutela até preventiva em relação ao
ciclo urbano da água. Atua nas matérias relacionadas à água,
saneamento, fauna, flora, resíduos, entre outros setores rele-
vantes. Destaque-se ação civil pública ambiental impetrada
por esse obrigando a empresa de saneamento de São Paulo a
não lançar esgoto sem tratamento em mananciais, ou seja, a
necessidade de cumprir o que preceitua a LDNSB

274
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

MINISTÉRIO PÚBLICO Possui um Núcleo de Apoio ao Meio Ambiente, que possui


DO RIO DE JANEIRO um Grupo de Apoio Especial ao Meio Ambiente, e em 2017
ajuizou ação para proteger e descontingenciar o Fundo de
Apoio aos Recursos Hídricos, que visa justamente implemen-
tar ações nessa área, e que o governo fluminense desejava
usar esses recursos em outras áreas. Em 17/10/2017, houve a
homologação de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)
assinado com governo do Estado para garantir, dentre outras
medidas, o descontingenciamento do Fundo Estadual de Re-
cursos Hídricos (FUNDRHI). Pelo acordo homologado pela
16ª Vara de Fazenda Pública da Capital, o governo estadual
assume o compromisso de não reter as receitas do fundo e
de observar a legislação que o rege. Por lei, a arrecadação
do FUNDRHI compete ao Instituto Estadual do Ambiente
(INEA), a quem caberá a gestão para uso exclusivo na prote-
ção dos recursos hídricos do Estado, em consonância com os
Planos de Bacia desenvolvidos pelos Comitês de Bacia Hidro-
gráfica e suas respectivas agências delegatárias.  
MINISTÉRIO PÚBLICO Tem uma atuação eminentemente ligado à educação e cons-
DO ESTADO DE SANTA cientização, ressalte-se o acompanhamento da formulação
CATARINA e tramitação das propostas de Planos Municipais de Sanea-
mento Básico, inclusive apresentando no site como anda essa
tramitação em cada município do Estado. É interessante veri-
ficar no Gráfico 1 que a situação do Estado de Santa Catarina
não é confortável em relação ao saneamento básico. Avançou
em acesso à água, porém, em tratamento e esgotos precisa
melhorar substancialmente, pesar de ter uma lei estadual de
saneamento básico desde 2005.
MINISTÉRIO PÚBLICO Possui como umas das áreas de atuação o MEIO AMBIENTE
DE MATO GROSSO E ORDEM URBANÍSTICA. Não dispões de outras informa-
ções no endereço eletrônico na internet.
MINISTÉRIO PÚBLICO Tem um Centro de Apoio Operacional das Promotorias de
DO ESTADO DO Justiça Especializadas na Defesa do Meio Ambiente, Patrimô-
AMAZONAS nio Histórico e da Ordem Urbanística (CAO-MAPH-URB).
Chama atenção a falta de informações ao cidadão sobre a tu-
tela do ciclo urbano da água no Amazonas.

Fonte: os endereços eletrônicos de cada ministério público mencionado no quadro.


A tutela jurídica do ciclo urbano da água, no caso brasileiro, rege-se pelos
diplomas legais apresentados e também pelos documentos legais dos órgãos
administrativos envolvidos como o Ministério das Cidades, a FUNASA, a
Agência Nacional de Águas (ANA) e, especialmente, os Planos Municipais
de Saneamento Básicos, além dos planos diretores, esses últimos essenciais
para o balizamento da análise jurídico-administrativa das ações referentes

275
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

à proteção do ciclo urbano da água. Entretanto em termos de planejamento


urbano, a peça legislativa mais importante é justamente os Planos Diretores
nos municípios, como já mencionado.
Esse documento é fundamental para a regulação do ciclo urbano da água,
uma vez que ele vai delinear os princípios e fundamentos, bem como soluções
para a preservação do ciclo da água nas cidades, isso em consonância com o Es-
tatuto das cidades (EC). Para se ter uma ideia da extensão das responsabilidade
municipal em realizar a tutela jurídica do ciclo urbano da água, fez-se a coleta
dos planos diretores das principais cidades brasileira em termos populacionais,
de forma aleatória e confeccionou-se o quadro abaixo que ilustra bem o que se
está discutindo aqui.
Quadro 3 - Amostra da abordagem do ciclo urbano da água em Plano Diretores
em grandes aglomerados urbanos brasileiros.

MANAUS O texto da Lei Complementar n. 2 de 2014, busca pela leitura realizada


responsabilizar o município na proteção dos corpos d’água no território
municipal, bem como todo o seu trajeto, seja para o consumo, seja para
outra finalidade. Entretanto, percebe-se que por ser uma capital rodeada
por importantes mananciais não deixa clara qual vai ser a política urbana
em face da água, principalmente deixando muito co campo princiológi-
co, relegando o pragmatismo a segundo plano, inclusive sendo lacunas no
que se refere às ação em relação ao reuso da água.
SALVADOR O Plano Diretor dessa capital tem um seção exclusiva acerca das águas
urbanas, além de dispositivos claros acerca do que ela abrange, águas
subterrâneas, a drenagem e manejo de águas pluviais, bem como a ne-
cessidade do reuso de águas. Importante verificar, que no texto da lei
de 2016 n. 9.069, ficou estabelecida a proteção do ciclo urbano da água,
tanto em termos dos cursos de água como do bastecimento, uma vez que
o titular da Política de Recurso Hídricos local é o município mesmo. Esse
documento buscou entrelaçar diversas políticas, a de Recursos Hídricos,
Política do Solo, de Saneamento, de Conservação das matas com a for-
mação de unidades de conservação.
RECIFE A Lei n. 17.511 de 2008 define qual será a responsabilidade dos agentes
municipais em relação à água, entretanto, interliga isso com a necessida-
de de cuidar e tratar dos esgotos, bem como enfatiza a imperiosa neces-
sidade de reutilizar as águas. Trata-se de um conjunto de intenções, de
fundamentos que deverão ser executados pelo gestor municipal. Chamou
a atenção a ênfase na reutilização da águas servidas, daquelas utilizadas
pelo consumidor domésticos, além do que é descartado pelas indústrias.
Recife tem plus a mais, pois assim como Manaus, está entrecortada de
rios e isso deve redobrar os cuidados na regulação do ciclo urbano da
água, principalmente no que se refere ao tratamento de esgotos.

276
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

SÃO PAULO A Lei n. 16.050 de 2014 insere a proteção aos mananciais superficiais e
subterrâneos como política de desenvolvimento urbano. Insere num con-
texto de interligação o abastecimento de água, o tratamento de esgoto
e resíduos sólidos, sendo objetivos estratégicos da política de desenvol-
vimento urbano. Apesar de ter consolidado um texto que visa instalar
uma política integrada no campo hídrico e de saneamento básico, não
fica claro no texto, assim como ficou em Salvador, a necessidade de se
prover formas de reuso da água e tecnologia de tratamento dessa água,
principalmente em se tratando da maior cidade do país.
BELO A Lei n. 7.166 de 1996 estabelece, entre outras questões, a neces-
sidade de Licenciamento Ambiental junto ao Conselho de Meio
HORIZONTE Ambiente de obras que provoquem intervenção em corpos de água.
Além disso, pode-se dizer que foi tímida, comparativamente com as
demais, em relação ao ciclo urbano da água, principalmente no que
se refere ao reaproveitamento, ao reuso da água, seja da chuva seja
daquela utilizada pelo usuário doméstico e industrial. Ao que pare-
ce, mitigou o escopo de atuação do município em relação à tutela
do ciclo urbano da água, porém isso não isenta a responsabilidade
da municipalidade.
GOIÂNIA Lei Complementar 171 de 2007, ela trata do planejamento urbano,
diferente da lei de Belo Horizonte ela trata do planejamento urbano,
não apenas do parcelamento do solo, mas dá um cunho mais amplo a
essa questão. Diferencialmente, a água está inserida numa estratégia
de sustentabilidade sócio-ambiental. Insere num programa de Gestão
Ambiental esgotamento sanitaìrio, abastecimento de aìgua, drenagem
urbana, gerenciamento dos resiìduos soìlidos, poluiçaÞo ambiental,
com vistas aÌ articulaçaÞo e qualificaçaÞo das açoÞes e reduçaÞo dos
custos operacionais no âmbito das bacias hidrograìficas. Dispõe sobre
o saneamento, o abastecimento, bem como a necessidade de reutiliza-
ção da água para fins potáveis. Propõe a formulação de instrumento
legal que obrigue os proprietários de imóveis a instalar estruturas que
reaproveitem a água. A água e o saneamento estão incluídos numa es-
tratégia sócio-ambiental.
PORTO Lei Complementar n. 434 de 1999, classificada como o Plano Diretor
ALEGRE de Desenvolvimento Urbano Ambiental, a água, o solo e o subsolo
são considerados patrimônio natural, o que possibilita a tutela ju-
rídica dos mesmos pelo Poder Público, o saneamento e a proteção
estão agrupados para preservação do ciclo urbano da água, embora
não esteja implícito, não menciona nenhuma ação ou princípio para
a reutilização da água.

Fonte: Consulta realizada aos textos dos Planos Diretor disponibilizados


nos sites dos respectivos poderes públicos.
O art. 182 da Constituição Federal de 1988 determina que a política
de desenvolvimento urbano seja executada pelo Poder Público municipal

277
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

e que tenha como objetivos a ordenação do pleno desenvolvimento das


funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes.
Dessa forma, o município ganhou amplas atribuições a partir desse coman-
do constitucional, significando dizer que o planejamento urbano deverá
ser feito por esse ente cuja expertise, o preparo em relação a profissionais e
infraestrutura é duvidoso.
Entretanto, buscando entender como esse comando constitucional está posto
nos planos diretores foram escolhidos 7 município de grande porte, consideradas
metrópoles, somando uma população de 22.355,38027, o que representa quase 11%
da população brasileira, além de serem regiões onde o ciclo urbano da água é bas-
tante problemático. Tem-se aí um quadro extremamente complexo.
Como se verificou no quadro 3, a coleta de dados nos planos diretores dessas
metrópoles acentua a responsabilidade e a técnica necessárias para que essas
possam preservar o ciclo urbano da água, considerando os obstáculos ineren-
tes à atividade e ao aumento da demanda, a tutela jurídica do ciclo urbano
da água, desde a captação até o descarte, após tratamento, quando possui, no
solo ou num corpo de água é bastante complexa e demanda desses municípios
equipamentos, pessoal, bem como atualização constante para racionalizar cada
vez mais o uso e descarte da água, sendo necessário processos administrativos
ágeis, transparentes, bem como um apoio jurídico atualizado com as questões
de saneamento e meio ambiente. O quadro 3 apresenta um pequeno extrato do
que está posto nos planos diretores desses municípios apresentados, mas deve-se
destacar o protagonismo que o saneamento e recursos hídricos tomaram como
tema importante nesses documentos, falta concretizar. Alguns problemas que
podem ser elencados em relação ao saneamento e aos recursos hídricos, que tem
relação direta com o ciclo urbano da água:

1. Para o tratamento dos efluentes, pelo que se apresentou em ter-


mos de dados em 2017 no Atlas que a ANA publicou, há uma
necessidade premente no aumento dos beneficiários do esgota-
mento sanitário, entretanto, é maior ainda quando se menciona
a questão do tratamento da água e o que se observa é justamente
uma concentração das estações de tratamento em regiões mais

27 IBGE. Síntese de indicadores sociais : uma análise das condições de vida da população brasileira :
2017 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro : IBGE, 2017.

278
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

próximas das grandes cidades, cuja serviço ainda é deficitário, e o


tratamento quase inexistente no interior do país28;
2. 65 milhões de pessoas no Brasil não possui rede coletora de esgo-
tos29, o que exige um cuidado maior por parte dos órgãos fiscali-
zadores no sentido de ingressar com ações de obrigação de fazer,
para que sejam aplicados recursos nessas ações básicas;
3. O Brasil possui uma malha de água subterrânea muito extensa, o
que é um privilégio, mas uma grande responsabilidade em relação
aos municípios e estados para que haja fiscalização a contento no
sentido de regular a perfuração muitas vezes indiscriminada de
poços artesianos ou outras formas de captação (vide Mapa 1);

28 BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – SNSA. Sistema
Nacional de Informações sobre Saneamento: Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2015.
Brasília: SNSA/MCIDADES, 2017.
29 BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – SNSA. Sistema
Nacional de Informações sobre Saneamento: Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2015.
Brasília: SNSA/MCIDADES, 2017.

279
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

Mapa 1 - representação da cobertura de água subterrânea no Brasil

Fonte: CPRM - Serviço Geológico do Brasil - http://siagasweb.cprm.gov.br/layout/


visualizar_mapa.php
Boa parte dessa faixa azul no Mapa 1 representa o ciclo urbano da água
que tem seu destino certo para o subsolo, devendo os municípios protegerem as
áreas de preservação permanente, facilitar o escoamento das água de chuva e
outras águas, proteger a conservação do solo para uma maior absorção da água
e consequente recarga. Portanto, não se trata de uma operação simples;
4) Superar a má distribuição dos benefícios do saneamento básico no
Brasil, como foi apresentado no Gráfico 1, faz parte dessa tutela jurídica
do ciclo urbano da água, e quem deve fazer são os órgãos administrativos,
que exercem o poder de polícia administrativa, bem como os órgãos que

280
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

fiscalizam o cumprimento e o controle dos orçamentos como os Tribunais


de Contas, além dos órgãos que atuam junto ao judiciário também como o
Ministério Público e a Defensoria Pública;

Fonte: Secretaria Nacional de Saneamento, Ministério das Cidades, 2017.


5) Conforme planilha de dados do Ministério das Cidades, na Se-
cretaria Nacional de Saneamento Básico, apenas 30% dos municípios bra-
sileiros possuem o Plano Municipal de Saneamento Básico, o que é muito
sintomático e grave, uma vez que isso significa dizer que a maioria absoluta
dos municípios brasileiros não possui o documento básico para preservação
do ciclo urbano da água, suscitando o questionamento: o que está faltando?
de quem é a falha? é um problema de gestão ou de tutela jurídica do ciclo
urbano da água? No Mapa 2 tem a real situação no Brasil acerca da confec-
ção dos Planos Municipais de Saneamento: Mapa 2 - Panorama dos Planos
Municipais de Saneamento no Brasil

281
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

6) Assim como classificou e discorreu Silva et al30 o controle judicial


das políticas públicas é uma realidade necessária, e no caso do saneamen-
to, consequentemente o ciclo urbano da água, faz parte da Política Nacional
de Desenvolvimento Urbano, coordenada no âmbito federal pelo Ministério
das Cidades, podendo os conflitos originados das inexecuções de planos e
planejamentos da gestão pública passar pelo crivo do judiciário, o que não
significa que haverá bom termo em tempo razoável, uma vez que a celeridade
do Judiciário é outro problema.
Desse modo a tutela jurídica do ciclo urbano da água não pode se restringir
aos diplomas legais que especificam a questão da água, porém, é necessária a
proteção do solo, das florestas, da vegetação das margens dos corpos d’água,
um verdadeiro conjunto complexo de normas que auxiliarão na formulação das
ações e decisões dos juízes, por exemplo, bem como o gestor para compreender
que esses patrimônios da natureza estão interligados.
Entretanto, um problema, um desafio na verdade, é harmonizar as diversas
esferas administrativas, a competência do município em planejar, a prestação
de serviço que pode ser exercida diretamente pelo titular ou delegada a entes
privados ou públicos, a regulação que será delegada a uma agência municipal
ou estadual. No município ter-se-á a necessidade de analisar um sistema de nor-
mas, a partir do Plano Diretor, legislação estadual acerca dos recursos hídricos,
tudo pautado sob a orientação da legislação federal que constitui a PNRH e a
PNSB, além da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
Assiste razão D’Isep31 quando se refere à água como sendo um propulsor de
um peculiar diálogo de fontes, uma vez que não se trata de um bem isolado, mas
de algo que se relaciona com ar, solo, fauna e flora, podendo haver uma aplica-
ção subsidiária, formando um microssistema hídrico normativo.
Portanto, é fundamental se ter em mente que na tutela jurídica do ciclo ur-
bano da água não se está protegendo apenas a água, mesmo sendo o grande bem
a água que é fonte de vida, mas também o direito à saúde através de água limpa,

30 SILVA, J. I. A. O.; CUNHA, B. P. da; GOMES, I. R. F D.. Políticas públicas ambientales: legalización
y activismo judicial para el desarrollo sostenible. Revista de la Facultad de Derecho (2° época), [S.l.],
n. 42, p. 161-187, jun. 2017. ISSN 2301-0665. Disponible en: <http://revista.fder.edu.uy/index.php/
rfd/article/view/574>. Fecha de acceso: 15 ene. 2018 doi:10.22187/rfd201718.
31 D`ISEP, C. F. M. Água Juridicamente sustentável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

282
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

de sua reutilização, do tratamento dos esgotos, sendo sua poluição um verda-


deiro dano ambiental, devendo ser aplicado os princípios do direito ambiental32.
Segundo D’Isep33 “a água se afigura como um verdadeiro catalisador de direi-
tos, uma vez que é ela que concretizará o direito à vida, à dignidade, ao lazer, ao
desenvolvimento, entre muitos outros”. Daí tem-se diversos subsídios para a tutela
do ciclo urbano da água. Desse modo, a tutela jurídica da água urbana e seu ciclo
é fundamental para a preservação da vida e geração de desenvolvimento.
Existem gargalos que não são objeto desse artigo, como, por exemplo, a ti-
tularidade do serviço, seja o de fornecimento da água, seja o de esgoto e trata-
mento do mesmo, segundo Swyngedouw et al34 historicamente essa titularidade
foi marcada por idas e vindas entre público e privado, sendo importante refletir
sobre isso, principalmente em relação a suas repercussões no que se refere à
regulação dos serviços, uma vez que se prega a eficiência da mesma, porém, não
é o que se constata.
Ademais, diante desse sistema jurídico complexo para a proteção do ciclo ur-
bano da água é importante lembrar que podem existir diversos casos num con-
texto de escassez de água, em que o sistema de proteção desse ciclo deve ser mais
rígido, e outro de abundância de água, cujo sistema deve se comportar de maneira
a catalisar o potencial de todo o excedente de água, tendo como diretriz a finitude
desse recurso. Outro panorama é se na cidade passa um rio, ou não, a questão das
águas subterrâneas, e D’Isep35 arremata afirmando o seguinte:

proteger a água requer a construção da cartografia hidro jurídica, qual


seja, a proteção do ciclo hidrológico em toda a sua extensão e formas,
vez que, a água se revela plural (líquida, gasosa, vapor, água subterrânea,
super ciais, ...). Daí o desafio jurídico de regrar a proteção da água em
sua integralidade.

32 é o caso da tragédia em Mariana, no Estado de Minas Gerais, em que os rejeitos da mineração


poluíram os rios que forneciam água para as cidades, isso causou um dano ao ciclo urbano da água.
33 D`ISEP, C. F. M. Água Juridicamente sustentável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 71
34 Swyngedouw, E.; CASTRO, J. E. Agua urbana: una perspectiva ecológico-política. In WATERLAT-
GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water
Cycle and Essential Public Services – Vol. 3, N.7, 2016.
35 D`ISEP, C. F. M. O rio e a cidade: o o diálogo jurídico entre o plano hídrico e o plano diretor. In Rev.
Bras. Polít. Públicas (Online), Brasília, v. 6, no 3, 2016 p. 359-370, p. 354.

283
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

Nesse contexto o ciclo da água deve ocupar um espaço relevante diante da


sua importância essencial e como foi demonstrado aqui, os planos diretores de
algumas das cidades mais populosas do país já colocam-no num protagonismo
relevante. Porém, assiste razão a D’Isep36 quando afirma a necessidade de, dian-
te de questões relacionadas com a água nas cidades, abandonar o pensamento
linear e adotar um pensamento complexo na tutela do ciclo urbano da água.
Ainda é preciso equalizar esse processo de acesso à água advinda desse ciclo
urbano que muitas vezes não chega ao consumidor final, verdadeiro titular do
direito humano à água, principalmente se ele for de camadas menos abastadas
da sociedade latino americana (BOELENS, 2008).
Quando se pensa nessa complexidade é preocupante verificar que se tem um
planeta coberto em sua maior parte por água, 70% da cobertura da Terra, cerca
de 2,5% dessa água é doce, e apenas 1% é de fácil acesso (FAO, 2014). Isso torna
o panorama pior, pois as cidades crescem e elas impactam diretamente nesse
ciclo da água (PEREIRA et al, 2017), daí a importância de adotar mecanismos
transparentes e que incluam setores e camadas da população no sentido de
regular, monitorar e tutelar esse ciclo.
Para se ter uma ideia as cidades influenciam o ciclo hidrológico de várias
maneiras, por exemplo: extraindo grandes quantidades de água de fontes de
superfície e de águas subterrâneas; descarga de águas residuais não tratadas em
corpos aquáticos; e ampliando superfícies impermeáveis, dificultando a recar-
ga de águas subterrâneas e riscos agravantes37. Isso tudo precisa ser regulado,
bem como as transferências de volumes de água de um manancial para outro,
a extração de água de mananciais por carros “pipa”, que é o caso de regiões
semiáridas como a do Nordeste do Brasil.

36 D`ISEP, C. F. M. O rio e a cidade: o o diálogo jurídico entre o plano hídrico e o plano diretor. In
Rev. Bras. Polít. Públicas (Online), Brasília, v. 6, no 3, 2016 p. 359-370; D`ISEP, C. F. M. Água
Juridicamente sustentável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
37 PEREIRA, J. C.; FREITAS, M. R. Cities and Water Security in the Anthropocene: Research
Challenges and Opportunities for International Relations In Contexto Internacional vol. 39(3)
Sep/Dec 2017.

284
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Observando esse panorama, tem-se a necessidade de verificar o impacto


que determinadas obras podem causar na permeabilidade do solo, podendo
prejudicar a recarga dos lençóis freáticos, monitorar a perfuração de poços e
outros modos de extração da água subterrânea, a descarga dos esgotos resi-
denciais e industriais em rios e outros corpos d’água, isso envolve legislação
referente ao solo, às unidades de conservação, à Política Ambiental, à Política
de Recursos Hídricos, à Política de Saneamento. Daí se pode ter como hipó-
tese, inclusive para ser trabalhada em outra oportunidade, o prejuízo causado
pelas cidades na impermeabilização do solo, o que provoca grandes enchentes,
o transbordamento dos rios, uma vez que as construções foram realizadas em
áreas de preservação permanente, nas margens de rios, ou muito próximo, o
desabamento das encostas dos morros, em virtude das construções realizadas
com o beneplácito das autoridades constituídas, o que induz a pensar acerca
da inexistência de uma Política Urbana e uma Política de Habitação con-
dizente com a necessidade de alocar um grande contingente de pessoas em
áreas de risco. Algumas fotos ilustram a falta de regulação do ciclo da água
nas cidades brasileiras:

285
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

Foto 1 - Ponto de alagamento em Guarulhos, Estado de São Paulo

Fonte: https://noticias.uol.com.br/album/2012/03/15/chuvas-pelo-brasil.htm

Foto 2 - Alagamento em Natal, Estado do Rio Grande do Norte

Fonte: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2017/01/emparn-registra-chuvas-
-em-39-municipios-do-rn-no-fim-de-semana.html
Portanto, para deixar claro, faz parte do escopo da regulação do ciclo ur-
bano da água: a captação (reservatórios, barragens, rios, poços, entre outros),
a drenagem da água das chuvas, a coleta do descarte residencial e industrial, o

286
Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

tratamento desse descarte ou resíduos, e a forma de descarte dessa água que foi
usada, se será reutilizada ou mesmo lançada em corpos de água para retornar ao
ciclo. Os problemas vistos nas Fotos 1 e 2 faz parte da drenagem da água. Dessa
forma no quadro 4 apresentam-se as normas que se relacionam com a tutela
jurídica do ciclo urbano da água.
Quadro 4 - Demonstração do microssistema hídrico para que haja a
tutela do ciclo urbano da água

Política Nacional do Meio Esse diploma legal é a base para uma análise inicial da tutela
Ambiente - Lei n. 6.938 ambiental e por conseguinte do ciclo urbano da água. Nela
de 1981 a racionalização da água é princípio da Política Nacional do
Meio ambiente e a água, seja ela subterrânea ou superficial é
considerada recurso ambiental, isso já possibilita a tutela da
água em seu ciclo urbano.
Política Urbana - Lei n. 10 Prevê os cuidados necessários com o solo quando do seu par-
257 de 2001 celamento, do seu uso em geral para edificações, elencando as
obras de saneamento e abastecimento de água como sanea-
mento. O ciclo urbano da água deve necessariamente está in-
serido nessa política urbana, tendo o uso do solo como o acesso
e uso da água estão intimamente ligados, sendo necessários
cuidados específicos com o solo para permitir o correto esco-
amento da agua, permitindo a recarga das águas do subsolo.

287
Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

Política Nacional do Meio Esse diploma legal é a base para uma análise inicial da tutela
Ambiente - Lei n. 6.938 ambiental e por conseguinte do ciclo urbano da água. Nela
de 1981 a racionalização da água é princípio da Política Nacional do
Meio ambiente e a água, seja ela subterrânea ou superficial é
considerada recurso ambiental, isso já possibilita a tutela da
água em seu ciclo urbano.
RESOLUÇAÞO No 420 Art. 3. A proteçaÞo do solo deve ser realizada de maneira pre-
de 2009, do Conselho Na- ventiva, a fim de garantir a manutençaÞo da sua funcionalida-
cional de Meio Ambiente de ou, de maneira corretiva, visando restaurar sua qualidade
(CONAMA) ou recuperaì-la de forma compatiìvel com os usos previstos.

Paraìgrafo uìnico. SaÞo funçoÞes principais do solo:

I - servir como meio baìsico para a sustentaçaÞo da vida e de


habitat para pessoas, animais, plantas e outros organismos vi-
vos;

II - manter o ciclo da aìgua e dos nutrientes;

III - servir como meio para a produçaÞo de alimentos e outros


bens primaìrios de consumo;

IV - agir como filtro natural, tampaÞo e meio de adsorçaÞo,


degradaçaÞo e transformaçaÞo de substâncias quiìmicas e or-
ganismos;

V - proteger as aìguas superficiais e subterrâneas;

VI - servir como fonte de informaçaÞo quanto ao patrimônio


natural, histoìrico e cultural;

VII - constituir fonte de recursos minerais; e

VIII - servir como meio baìsico para a ocupaçaÞo territorial,


praìticas recreacionais e propiciar outros usos puìblicos e
econômicos.
Política Nacional de Re- Essas lei disciplinará a matéria referente aos recursos hídricos,
cursos Hídricos, Lei n. tendo relação direta com o ciclo urbano, então no que se re-
9433 de 1997 fere ao princípios do Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos e a proteção dos corpos d’água essa lei pode
ser aplicada. Também será disciplinado por esse diploma legal
o Conselho Nacional de Recursos Hídricos. É interessante ve-
rificar que essa lei disciplina a regulação dos recursos hídricos
antes de chegar à cidade e na cidade, disciplinando o uso de
água, bem como a outorga, ou autorização, da retirada da água
de corpos de água, como rios, reservatórios, entre outros.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

Política Nacional do Meio Esse diploma legal é a base para uma análise inicial da tutela
Ambiente - Lei n. 6.938 ambiental e por conseguinte do ciclo urbano da água. Nela
de 1981 a racionalização da água é princípio da Política Nacional do
Meio ambiente e a água, seja ela subterrânea ou superficial é
considerada recurso ambiental, isso já possibilita a tutela da
água em seu ciclo urbano.
Lei de Diretrizes Nacio- Essa lei lidará essencial de fenômenos que ocorrem diretamen-
nais para o Saneamento te nas cidades, o abastecimento de água, o esgotamento sanitá-
Básico, Lei n. 11.445 de rio, a drenagem e a limpeza urbana e manejo de resíduos. Esse
2007. diploma legal precisa está dialogando, em sua execução, com
as demais leis, especialmente a Política Nacional de Recursos
Hídricos.
Sistema Nacional de Uni- Essa lei cuida da preservação de espaços, seja no solo ou água,
dades de Conservação, de modo a cuidar dos organismos lá, existentes fauna e flora,
Lei n. 9.985 de 2000. além do próprio solo e água. Além disso, regula o acesso a esses
recursos, bem como à água no interior dessas unidades, uma
vez que ela é considerada um recurso ambiental. Dessa forma,
vê-se que é fundamental uma atuação sistêmica com as demais
leis que tratam da água em termos de uso, de acesso para o
consumo humano, ou lazer.
Código Florestal, Lei n. Essa traz diversos dispositivos que incluem a água, destacando-
12.651 de 2012 -se a obrigatoriedade de proteção e recomposição das Áreas de
Preservação Permanente (APP), o que conserva as margens
dos rios evitando seu assoreamento. Destaca o caráter público
das águas nas florestas, em forma de nascentes, olhos d’água,
enfim, de qualquer corpo d’água que esteja nas áreas de mata,
que, na verdade, beneficia às cidades diretamente, por isso é
fundamental o diálogo dessa lei num sistema de proteção da
água, pois o solo, e outros organismos e estruturas são fun-
damentais para a preservação dos cursos de água tendo um
impacto positivo no ciclo urbano da água.
Código de Mineração, Esse decreto é o marca regulatório da atividade minerária bra-
Decreto-Lei 227 de 1967 sileira, entretanto, está tramitando no Congresso Nacional
uma proposta de novo marco legal. O que está vigente cuida
de regular também o uso das águas na área de mineração, bem
como proteger os corpos d’água subterrâneos e superficiais, o
que é substancialmente importante para as comunidades urba-
nas que se aproveitam do ciclo da água.
Política Nacional de Re- Esse marco legal veio disciplinar a disposição e todo o resíduo
síduos Sólidos, Lei n. sólidos produzido na vida em sociedade, especialmente nas
12.305 de 2010 cidades. Sua execução é polêmica no âmbito dos municípios,
pois boa parte deles ainda não tem o local apropriado para dis-
posição dos resíduos, o que pode causar, inclusive, a contami-
nação do solo e dos corpos d’água subterrâneos e superficiais.

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Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

Política Nacional do Meio Esse diploma legal é a base para uma análise inicial da tutela
Ambiente - Lei n. 6.938 ambiental e por conseguinte do ciclo urbano da água. Nela
de 1981 a racionalização da água é princípio da Política Nacional do
Meio ambiente e a água, seja ela subterrânea ou superficial é
considerada recurso ambiental, isso já possibilita a tutela da
água em seu ciclo urbano.
Decreto n. 4.297, de 10 de Esse decreto institui um instrumento essencial à Política Na-
julho de 2002 cional de Meio Ambiente, e que coloca a obrigatoriedade de
se planejar os limites de atuação do homem sobre o meio am-
biente, incluindo os recursos hídricos, devendo-se planejar as
ações para a necessária preservação dos recursos ambientais,
dentre eles a água.
Lei n. 9.605, de 12 de fe- Essa lei institui ps crimes ambientais, dentre eles está aquele
vereiro de 1998 que macula as espécies da fauna dos corpos d’água, porém,
entende-se que a penalização é tímida para a extensão do
dano, por exemplo, ao rio, que é um verdadeiro organismo
vivo, pulsante e que terá um impacto direto no ciclo da água,
inclusive no meio urbano. Causar a interrupção do abasteci-
mento de água nas cidades por meio de alguma ação poluido-
ra é crime. Na esfera penal, infelizmente, a punição é deveras
tímida para a magnitude da ação que, em muitos casos, é um
desastre ambiental.
Lei 9.795, de 1999 – Lei Essa lei estabelece diretrizes para uma ação planejada na edu-
de Educação Ambiental cação que capacita as atuações gerações e as vindouras sobre a
importância do meio ambiente e dos recursos naturais que ele
gera, como a água.
CONAMA, Resolução n. Essa resolução é fundamental para compreender os elementos
303, de 2002 tuteláveis no meio ambiente que tem impacto direto sobre as
águas que fluem pelas cidades.
CONAMA, Resolu- Essa resolução regulamenta o licenciamento da construção de
ção n. 335, de 2008 cemitérios, que vai impactar diretamente nas águas subterrâ-
neas, sendo necessário a regulação da construção desses espa-
ços para que não contamine esses corpos d’água, prejudicando
o ciclo da água.
CONAMA, Resolu- Essa norma é pertinente ao uso das águas subterrâneas, ditan-
ção n. 396, de 2008 do parâmetros de qualidade para que não haja contaminação,
orientando os órgãos de fiscalização ambiental.

Código de Águas Mine- Esse decreto estabelece o regramento para extração de águas
rais, Decreto n. 7.841, de subterrâneas classificadas como minerais, desde a mera pes-
1945 quisa para verificação de viabilidade, até a lavra, que é a ex-
ploração com fins comerciais. Também dá parâmetro para que
haja uma fiscalização à contendo por parte do Poder Público.

Fonte: Consulta à legislação atualizada no site www.planalto.gov.br.

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Gestão das águas: Dignidade Humana e Sustentabilidade
por meio do Fortalecimento das Cadeias de Valor

O quadro 4 demonstra a existência de um microssistema normativo para


regular os recursos hídricos e o ciclo urbano da água, sendo contraproducente
o tratamento isolado dos problemas, não se devendo agir como um aplicador
ordinário da lei que verifica o fato e a norma, mas se trata de uma subsunção
complexa, que envolve diversas variáveis e que possui impactos relativamente
controlados ou, na magnitude de desastres, que não se tem um controle e uma
medida da extensão dos danos.
Prieur38 coloca que o meio ambiente em sua faceta científica apresenta in-
certezas que são encobertas pelas supostas certezas jurídicas, que poderiam ser
traduzidas nessas normas aqui mostrada no quadro 4 como sendo o produto da
tentativa de se dar uma segurança jurídica num contexto de pós-modernidade,
de uma sociedade reflexiva e de risco, na qual a efemeridade é quem acaba
regendo as vidas, o que torna a regulação através do direito ambiental mais
exigente e, mesmo assim, imprecisa.
Isso corrobora com as constatações de D’Isep39, uma vez que ela menciona
a existência de um complexo sistema hidronormativo, diferenciando a água de
qualquer outro elemento do meio ambiente, tornando a tutela hídrica muito
específica, especial, complexa, colocando isso que se propõe como um Direito
Hídrico (Direito das Águas) como inovador na medida em que está baseado
nas funções da água e da importância que tem para o homem e o ecossistema.

Conclusão
No presente texto teve-se a pretensão de estabelecer parâmetros para se pen-
sar a tutela jurídica do ciclo urbano da água e, dessa forma, chega-se a um ponto
que o jurista, ou mesmo o gestor público, terá que ter um olhar menos linear e
mais complexo do fluxo da água do meio urbano, desde a captação, até o des-
carte das águas, e essa complexidade aumenta, certamente, proporcionalmente
à extensão do seu perímetro urbano.

38 PRIEUR, M. Incertitude juridique, incertitude scientifique et protection de l’environment. In


PRIEUR, M. Incertitude juridique, incertitude scientifique. Limoges: Pulim, 2000, p. 9-15.
39 D`ISEP, C. F. M. O rio e a cidade: o o diálogo jurídico entre o plano hídrico e o plano diretor. In
Rev. Bras. Polít. Públicas (Online), Brasília, v. 6, no 3, 2016 p. 359-370; D`ISEP, C. F. M. Água
Juridicamente sustentável. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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Talden Farias, José Irivaldo Alves O. Silva

Demonstrou-se relevante ser levado em consideração numa Política de De-


senvolvimento Urbano um olhar problematizador, uma vez que a distribuição
da água passa por relações de poder e tem sido impactada diretamente pela dife-
renciação de classes sociais, constatando-se água em bairros mais destacados na
sociedade local, enquanto aqueles mais desprovidos de recursos tem problemas
com água de forma potencializada, e que o estado da água, suas condições,
acesso e uso tem aspectos diferenciados na sociedade, cuja compreensão não é
dada na totalidade pelo ordenamento jurídico, que acaba sendo limitado para
apreensão da complexidade desse sistema.
A tutela jurídica do ciclo urbano da água passa pela compreensão da exten-
são dessa questão, pela existência de um microssistema hidronormativo, pela
atuação contextualizada de órgãos de fiscalização nas esferas administrativas
e judiciais, bem como pela participação dos diversos setores da sociedade na
formulação de políticas, bem como no seu redirecionamento. Entende-se que
além de um sistema normativo, deve-se ter órgãos preparados para atuar nessa
questão hídrica dado sua importância estratégica da vida na Terra, já começa-se
a verificar a atuação, por exemplo, do Ministério Público, que tem uma relevân-
cia considerável nessa tutela.
Porém, compreende-se que a tutela jurídica poderá ser a ultima ratio na me-
dida em que as cidades possuam Planos Diretores efetivamente exequíveis, o
que ainda está distante de acontecer, uma vez que faltam diversas cidades que
não cumpriram esse requisito, tão pouco os plano locais de saneamento, o que
dificulta, não impossibilita, mas como conduzir um avião sem instrumentos
para navegar, é preciso ter planejamento urbano efetivamente executado. Isso
é mais relevante ainda, quando se pensa nos recursos hídricos subterrâneos e
superficiais que circulam pelas cidades e que, muitas vezes, não há fiscalização
quanto ao uso dos mesmos, principalmente, um país com riqueza de água num
contexto de escassez mundial.

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294
Tales de Mileto afirmava que “tudo é água”, na defesa de que a ma-
téria básica do cosmos seria o líquido primordial do qual tudo o
mais derivaria. Já Zygmunt Bauman chama a contemporaneidade
de ‘“modernidade líquida”. A liquidez serve como metáfora carac-
terizadora das virtudes e mazelas que nos rodeiam. Seja na Anti-
guidade ou na Pós-Modernidade a água sempre esteve presente
no cotidiano dos seres humanos permeando o mundo concreto
assim como o seu imaginário.
A presença do tema “água” potencializa-se à medida que sua es-
cassez se impõe no cenário mundial. Nesse viés os textos que
compõem a presente obra têm o intuito de expor o problema e
propor soluções para a falta de água de várias perspectivas. Dada
a abrangência dos assuntos abordados, tem-se que o livro espelha
a multi-trans- e interdisciplinaridade que o tema enseja. Serve
como fonte de informação e de instigação à construção de novas
soluções para o problema. Converge para o interesse de profissio-
nais do Direito, assim como das demais ciências afins. É indicado a
pessoas comprometidas com a relação entre a gestão das águas e o
desenvolvimento humano, por meio do fortalecimento das várias
cadeias de valor propostas na obra.

ISBN 978-85-519-0991-1

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