Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
São Paulo
2015
© Desta edição - IBCCRIM
Produção Gráfica, capa e fotografias: Eduardo Mojzka
Tel: (11) 994-141-441 - zuz@zuz.com.br
Diretoria Executiva
Presidente Andre Pires de Andrade Kehdi
Não se pode falar do Projeto Maria, Marias sem antes explicar sua
origem em termos de conteúdo e metodologia e, sobretudo, em
relação a sua proposta central que é a educação feminista em direitos
sob uma perspectiva de igualdade de gênero, antirracista e antissexista
na construção de uma sociedade justa e igualitária.
É bom destacar que este projeto nasceu quando fazia cinco anos de
promulgação da Constituição de 1988, a primeira a ser feita depois
do triste e sombrio período da Ditadura Militar. Durante os trabalhos
da constituinte as mulheres se mobilizaram e conquistaram direitos
que até então não lhes eram reconhecidos. Por isso entendemos ser
necessário o investimento na educação feminista em direitos para que
a população feminina se aproprie dessas conquistas.
O conteúdo e a metodologia
O curso, realizado de abril a outubro ou novembro (por volta de 6
meses), contém atividades semanais, oferece informações sobre a
Constituição Federal, os tratados internacionais de direitos humanos
das mulheres e oferece reflexões sobre o conceito de violência contra
as mulheres, violência de gênero e o ciclo da violência doméstica e
familiar. Traz reflexões e análises sobre todos os artigos da Lei Maria
da Penha. Informa sobre o histórico da lei, suas principais diretrizes,
o conceito de violência doméstica e familiar nas suas diversas formas:
física, psicológica, patrimonial, moral e sexual. Enfatiza como devem
funcionar os serviços públicos, as delegacias de defesa da mulher
e outras delegacias de polícia, a Defensoria Pública, o Ministério
Público, o Judiciário e como deveria ser estruturado o Juizado de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Mostra como criar
condições para formular e analisar as medidas protetivas, como elas
devem ser requeridas e encaminhadas.
A metodologia aplicada parte do princípio da construção coletiva
de conhecimentos e ações, oferecidos pelo conteúdo dos direitos e
da própria Lei Maria da Penha, mas principalmente, nos saberes e
experiências apresentados pelas participantes.
Amelinha Teles
15
Histórias de Marias
17
Histórias de Marias é um livro que teve sua primeira semente plantada na primeira
aula da 7.ª edição do curso Maria, Marias. Uma primeira aula cheia de histórias
emocionantes de Marias que superaram a violência e de Marias que ainda vivem em
situação de violência. Após lágrimas compartilhadas por todos tive uma forte sensação
de que aquelas histórias não poderiam ficar apenas entre os presentes e deveriam ser
compartilhadas. A ideia foi apresentada ao grupo e imediatamente abraçada, sendo
esse livro fruto do trabalho conjunto realizado com as alunas.
Nas próximas páginas você irá encontrar essas histórias e também histórias de outras
Marias. São Marias que estiveram ou estão em situação de violência, Marias que
compartilham a felicidade de poder contar que superaram e que lutam para que outras
Marias não passem pelo que elas passaram. As violências foram várias, dentro e fora
de casa, de conhecidos e de desconhecidos, além da violência estrutural fruto de uma
sociedade desigual.
A escolha do título do livro foi inspirada no nome do curso e sugerido pelas alunas.
Nós entendemos que as histórias aqui contadas não foram apenas vividas por uma
pessoa em particular, e sim que elas contêm histórias de outras tantas Marias que não
tiveram a oportunidade de poder narrar sua própria história, ou por falta de espaço
ou por que a violência acabou por lhes retirar a vida. A esperança surge ao lermos as
histórias aqui narradas por Marias que quase perderam a vida e que hoje podem não só
narrar esses acontecimentos, mas também afirmar que vivem uma vida sem violência.
Aproveito para agradecer a colaboração das alunas do 7.º curso Maria, Marias na
construção do livro e a generosidade de compartilhar suas histórias e as histórias de
outras Marias que cruzaram os seus caminhos.
Boa leitura.
Lá vai Maria, tremendo sem disfarçar, faz tudo sem erro, sem uma
palavra sequer, sem qualquer sorriso ou agrado. Já está acostumada
com a ausência de João, mesmo quando ele está presente, tantos
anos desta mesma maneira, ela não reclama mais, não lembra se um
dia reclamou. Após o jantar, lava a louça correndo, o martírio já vai
começar, umas doses a mais faz João falar e ele não para de falar.
O forte João trabalhou o dia inteiro, se vê no direito de falar, sem
importar com o que Maria sente, seguem as palavras, perdem-se entre
os palavrões, baixaria, todo dia. A lágrima tímida de Maria escorre
pelo seu rosto, ouve tudo em silêncio como no primeiro dia.
Descanso, é o que Maria precisa, sabe que lhe espera um novo dia
com muito para fazer, os olhos se fecham, mesmo com o coração
dolorido. Todas as noites ela encontra seu travesseiro, como seu único
amigo e companheiro, desabafa sem fazer nenhum barulhinho, as
21
lagrimas dizem tudo o que não pode dizer. Tantos anos ouvindo tudo
aquilo, quanto tempo não recebe carinho, acha que já esqueceu seu
sorriso e quem realmente é.
Lá vai Maria para um novo dia, João sai respeitoso para o trabalho,
dá um beijo nas filhas, bate a porta e sai, Maria ele não vê. Prepara
o café como todo dia, recebe o abraço de sua filha Lia, dizendo o
quanto lhe quer bem. Uma lágrima escorre e logo é escondida, abraça
Lia e lhe retribui o carinho, abraça também a Julia, mesmo com os
braços adormecidos. Apaga suas mágoas com aqueles abraços de
braços curtos que a envolve, no rosto renasce o sorriso.
Lá vai Maria, fazendo o que faz todo dia, já não sente o mal que
vive todas as noites para proteger e manter unida sua família. Sorri
novamente para Ana e para Claudinha lhe diz “Bom dia”, que
admiram mais uma vez seu caminhar. Maria acha que a vida é mesmo
assim, que nasceu com uma sina e nada pode fazer, não escolheu, foi
escolhida, nunca amou, apenas viveu o que a vida lhe preparou, assim
vive desde o primeiro dia. Maria, não sabe que pode mudar tudo o
que vive, que não precisa ouvir tudo o que ouve, que é violência o
que sofre e que tudo pode mudar. Suas filhas, seu bem mais precioso,
ainda não entendem, talvez um dia sintam o que a mãe sente sem
reclamar.
Eu sou Maria. A minha infância e começo da vida
adulta eu passei em uma cidade do nordeste brasileiro. Após a morte de minha mãe, eu e minhas três
irmãs fomos morar com o meu pai e sua esposa.
Meu pai era de família militar e nós sentimos na pele toda a sua rigidez e violência. Apanhávamos
muito e por qualquer motivo. Aos 16 anos apanhei novamente, mas dessa vez foi para defender a
minha irmã doente que havia desobedecido a ordem de minha madrasta de não ir a um passeio da
escola. Minha irmã tinha cateteres pelo corpo e eu temi pelo que pudesse acontecer com ela e pela
primeira vez enfrentei o meu pai. Nesse dia passei a minha primeira noite na rua.
23
Quando voltei recebi uma sentença: “Ou eu ou ela!”. O meu pai escolheu
a esposa e eu tive que morar na rua. A rua, um lugar sombrio e inseguro,
como dormir ali? Fui para a rodoviária, fiz uma amiga e nós nos
revezávamos para poder descansar. Sem comida, sem roupa, sem cama.
Nunca roubei, nunca usei drogas. Minhas irmãs passavam por mim e
fingiam não me conhecer. Promessas de ajuda apenas de desconhecidos,
mas como confiar? Onde eles queriam nos levar?
Um dia apareceu um casal e nos ofereceu ajuda e resolvemos tentar a sorte.
Foi nesse dia que conheci o cárcere privado. Trabalhamos costurando saco
de pão e vivíamos cobertas de farinha branca. Para comer apenas pão duro
e feijão preto. Consegui fugir e resgatei a minha amiga com a ajuda de
conhecidos do meu pai. Fomos para as ruas novamente.
Tomávamos água para nos alimentar. Fome, sono, frio, fraqueza. Não
queria passar o meu segundo Natal na rua. Bati em uma porta e recebi uma
ajuda verdadeira. Fui acolhida e passei a ter um teto novamente. No radio
escutei sobre uma seleção. Joana me emprestou uma roupa e sapatos e eu
fui atrás de um sonho. Dois dias depois ligaram para avisar que eu havia
sido selecionada. Nem acreditava que aquilo estava acontecendo comigo.
Trabalhei muito, viajei e logo consegui o meu próprio canto.
Um dia escutei uma conversa proibida entre João e sua mãe. O homem por
quem me apaixonei mudou completamente. Eu já estava grávida de nosso
primeiro filho quando comecei a apanhar. Ele me espancava, humilhava e
inventava histórias. Tive que largar o emprego. Vivia trancada em casa e
nem na janela eu podia ir. A minha alegria morreu, eu morri por dentro.
Queria morrer, pois já estava morta por dentro. Pedi para ele cravar a faca
que segurava em meu peito. Ele não teve coragem e resolveu fugir para São
Paulo e me largou sozinha com o nosso filho.
25
Em São Paulo reconstruí a minha vida e tive mais três filhos. Casei
novamente e estou casada há 20 anos. Voltei a estudar e estou concluindo
a faculdade em Serviço Social. Voltei a ser uma pessoa alegre e hoje posso
dizer que vivo uma vida sem violência.
Eu sou mais
uma das tantas
Marias existentes
no Brasil...
27
Tive uma criação muito severa. Sou a filha caçula de uma família
numerosa, sou a 11.ª, e nem por isso fui poupada das agruras de uma
criação bastante machista, onde ouvia minha mãe dizer várias vezes
para nós, filhas mulheres, que as outras mães deveriam segurar suas
éguas, porque os cavalos dela, que no caso são meus cinco irmãos
homens, estavam soltos. E com esse pensamento cruel fui educada,
ouvindo que só namoraria um homem e esse seria para sempre o meu
marido, pai dos meus filhos e meu total provedor. Assim fui criada
dentro de uma Igreja Evangélica, e sabendo que somente a morte
poderia pôr fim a meu futuro matrimônio.
oferta para comprar à vista. Meu filho tinha feito uma avaliação
na imobiliária em que trabalhava e disseram que se ela pedisse
160 mil reais, que era para comprarmos correndo, porque o imóvel
está localizado no centro de São Paulo. Resolvi perguntar quanto o
advogado tinha oferecido e ela respondeu 35 mil reais, mas que para
mim ela daria um desconto. Fiquei surpresa com o preço e então eu
lhe disse que em cinco anos em São Paulo, da maneira que cheguei
e trabalhando como uma desvairada, eu havia conseguido juntar
apenas 12 mil reais e que poderia dar de entrada no apartamento e
pagar o restante como um aluguel. Ela parou, pensou por um tempo
e perguntou ao filho o que ele achava, e ele disse: “Você é quem
sabe. O que fizer está feito!” Então ela concordou e dois dias depois,
uma segunda-feira, fiz a transferência do valor para conta dela, e
na terça-feira fomos ao Cartório passar o contrato de venda para o
nome do meu filho. Conseguimos quitar o apartamento em dois anos,
trabalhando eu e os meus filhos em dois empregos, sem ter sábado,
domingo e feriados. Eu agradeço a DEUS, que creio que tocou no
coração dessa senhora e me proporcionou esse grande bem que é
poder ter o meu próprio imóvel comprado e pago com o meu próprio
suor e ajuda dos meus filhos.
Tudo o que eu passei com o meu ex-marido não tinha ainda sido
nomeado por mim até o ano de 2012, época em que fiz o curso de
Promotoras Legais Populares (PLPs). Nesse ano me vi descobrindo
o quanto fui uma mulher em situação de violência doméstica desde
o nascimento. Foi difícil me desfazer de todos os preceitos e amarras
deterministas e machistas sobre a figura feminina na sociedade, e que
eram predominantes em minha vida e me mantinham acorrentada e
submissa a toda sorte de maus tratos por serem tão naturalizados e
disseminados. Diante disso, fui me empoderando de mim mesma e de
todos os direitos que me foram negados durante a minha existência.
Assim, o curso de PLPs contribuiu para que eu conseguisse trilhar um
novo caminho, onde eu me sinto Mulher e dona do meu destino. E
hoje, após o curso Maria, Marias, posso dizer que saio de mais essa
jornada da minha vida com muito mais conhecimento e sabedoria para
lidar com a violência doméstica e poder, com sabedoria, ajudar toda
mulher vítima de violência, e dessa maneira jamais permitir nenhum
tipo de violência contra mim ou contra mulheres que estejam dentro
do meu contexto social, ou que venham a cruzar o meu caminho.
Sinto-me fortalecida para continuar a batalha no enfrentamento da
violência contra mulheres e todas as minorias.
O que tenho a dizer a vocês é que eu tive que ter muita sabedoria
para conseguir viver com esse homem violento. O meu modelo de
educação não me fez ver outra opção a não ser aguentar até o fim.
Não acho certo, nos dias de hoje, uma mulher, mesmo que tenha
quatro filhos, ser obrigada a sofrer calada para não destruir um
casamento ou por medo de ficar sozinha e perder o rumo da educação
dos filhos. Vi o filho de algumas mulheres que se separaram irem para
a criminalidade e era disso que eu tinha medo. Acreditava que para
os meus filhos era bom com ele e pior sem ele. Meus filhos nunca me
decepcionaram em nenhum aspecto, pois o que aprendi com a minha
mãe foi suficiente para dar uma boa formação, principalmente moral.
Meus quatro filhos são a razão da minha vida.
“A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante,
chore, dance, ria e viva intensamente antes que a cortina se feche e a
peça termine sem aplausos” (Charles Chaplin)
41
No dia 09 de janeiro
de 1982, aos 20 anos
de idade me casei com
José,
a princípio um rapaz trabalhador e dedicado à família e a tudo o
que fazia. Porém, já no início de namoro José se apresentava muito
ciumento e eu não gostava daquele controle que tinha comigo, mas
pensava que talvez fosse por ele ser quase oito anos mais velho do
que eu.
Sofri anos de angústia com seu desprezo e sem saber nem mesmo
onde ele passava a noite jogando. Pensava em me separar de José.
Mas como me separar? Para onde iria com as crianças? Assim,
fiquei muitos anos suportando tudo calada, pois não tinha ninguém
com quem eu pudesse contar para ajudar a olhar as crianças para eu
trabalhar e dar um basta naquela situação.
43
Assim Maria viveu por anos, gerou dois filhos, que frequentemente
viam seu pai José agarrando sua mãe aos berros, enquanto Maria aos
prantos tentava esconder.
José bebia, e bebia mais e mais, já não trabalhava, pois não aguentava
mais viver em uma terra que nada se colhia, um lugar onde morria o
gado, e nada crescia por causa do forte sol, sempre lhes faltavam água
e muitas vezes o alimento do dia. Desesperado José bebia, e bebia
mais e mais, e ao beber se vingava da vida quebrando tudo o que
via pela frente, a casa já não tinha móveis inteiros, um só copo para
revezar entre os irmãos, tudo ele quebrava, e cada vez mais perdia.
Não ligava mais para Maria, nem para seus filhos, e se estivessem
em casa na hora da euforia, jogavam-lhes os pedaços da mobília
que estavam espalhados no chão. Seus filhos choravam e Maria
não aguentava mais, ameaçou deixar-lhe, contudo ameaças ouvia:
“Se fizeres isto mulher, te quebrarei todinha”. Maria, com medo,
aguentava mais esse sofrimento, essa frustração.
Seguiu sua vida, criou seus meninos, e deu espaço para os seus
sentimentos e seu coração, Maria conheceu o Antônio, tão
encantador, trabalhador, não bebia, um exemplo para seus filhos e
além de bonitão. Antônio logo mudou-se para casa de Maria, não se
entendia bem com seus filhos, mas tentava fazer amizades suprindo as
suas necessidades, comprando-lhes com presentes e agrados: “Maria,
você não precisa mais trabalhar, eu serei sua provisão!”. Com ele
Maria teve mais um filho, a razão da vida de Antônio, o “Toninho”,
bebê risonho, criança que representava o início de sua nova vida.
Com o passar do tempo, Antônio não era mais como no primeiro dia,
seus galanteios foram diminuindo, seus horários de trabalho sempre
eram estendidos sem qualquer explicação. Se Maria conversava
com a vizinha Dora, ele já reclamava “que tanto assunto era esse pra
conversar”, se assistia à televisão “que falta de coisa para se fazer, a
casa está suja, levanta já do sofá”, Maria não podia sair na rua “vai
se encontrar com outros homens, vai? pra quê se arrumar assim”,
nem a consulta médica ela ia mais. Maria perdeu toda sua vaidade,
novamente sua valentia, tudo era motivo para reclamar e Maria já
enfraquecida se calou.
49
outros solteiros. Sua irmã também falou para ele que tinha o desejo de ter uma filha
e perguntou para seu irmão: “Você não tem uma menininha para eu adotar como
minha filha?” Ele respondeu: “Menino é o que não falta. Tenho nove filhos, sendo sete
mulheres e dois homens”. Maria ouve a história e pergunta: “Pai, deixa eu ir morar
com a minha tia?” Ele responde: “Quem sabe é a sua mãe. Ela é quem decide”. Maria
pediu para sua mãe e ela disse: “Vivemos aqui na pobreza e se for melhor pra você,
minha filha, eu deixo”.
Maria começou a se preparar para ir para São Paulo. Apesar de
muito nova, apenas 13 anos, Maria sonhava com uma vida melhor.
Ela queria estudar e chegou a São Paulo em dezembro de 1981.
Foi recebida com muita alegria e a tia falava para todo mundo que
Maria era sua filha. Josefa se desdobrava para agradar a sobrinha.
Apesar da imensa saudade que sentia de sua família, Maria acabou se
apaixonando pela tia e a tia por Maria. No juizado, Josefa conseguiu a
guarda definitiva da sobrinha.
Maria Madalena
Nanci Flor da Silva
Primeiro fazia sexo e usava drogas por prazer, depois se drogava para
fazer sexo e comprar drogas e agora faz qualquer negócio.
Maria conheceu José e com ele teve mais três filhos, mas José não
aguentou o tranco e abandonou Maria no celeiro da vida.
57
Sem eira e nem beira, com muitas drogas e sexo, as crianças foram
abrigadas.
Maria nasceu em
Uberlândia em
1929, sua mãe era lavadeira e seu pai trabalhava na
ferrovia, tinha quatro irmãos e desde criança trabalhava cuidando
dos irmãos e da casa. Com 12 anos conseguiu um emprego em
uma fábrica e passou a sair de casa às 7 horas e só voltava tarde da
noite. Como precisava trabalhar, Maria só pôde estudar até o 4.º ano
primário.
Ela sempre gostou de dançar, adorava os bailes e foi ali que conheceu
um rapaz com pinta de galã, o Dorival. Maria logo se apaixonou e
escolheu sair de casa, pois sua mãe sempre dizia que menina que
namorava é “putinha” e costumava bater por causa disso. Maria foi
acolhida pela mãe de Dorival que apoiou o casal que logo se casaram,
ambos tinham 18 anos. Tiveram cinco filhos e como o companheiro
trabalhava como eletricista eles precisaram mudar muitas vezes em
busca de uma oportunidade de emprego, nessas andanças tentaram
morar no Rio de Janeiro onde tiveram que viver na rua, Maria sofreu
um aborto devido à necessidade que passavam nessa época.
Além de sair para dançar nas casas de baile da cidade, Maria adorava
viajar, sempre que podia viajava para visitar amigos e familiares
em diferentes cidades e estados. Até que um dia realizou um sonho
antigo: ir à Disney! Feito criança, ela guardava com carinho fotos
tiradas ao lado do Mickey. Maria viveu intensamente uma vida de luta
e vitórias.
Até hoje, depois de 21 anos de sua partida, seus filhos, netos e amigos
ainda procuram na lembrança de Maria uma referência de amparo e
orientação em momentos difíceis.
Nasci em Pernambuco.
Fui uma criança que
não era para nascer.
Minha mãe já tinha perdido cinco filhos e teve que se internar para
que eu pudesse vir ao mundo. Eu achava que não era filha dos meus
pais, pois sempre sofri maus tratos. Batiam, prendiam e não me
deixavam participar de nada na escola. Cresci no sítio ajudando os
meus avós a plantar cana, cana que se transformava em dinheiro para
comprar roupas no final do ano.
63
Quando eu tinha nove anos a minha vida acabou! Fui pegar uma
lata de manteiga na casa da minha tia a pedido de minha mãe. Nós
usávamos essa lata para pegar água na cachimba. Entrei na casa de
minha tia e o meu primo me puxou para dentro do quarto, tirou a
minha roupa e me estuprou. Nunca pensei que isso pudesse acontecer.
O meu primo de 15 anos me estuprou e me ameaçou de morte caso eu
contasse alguma coisa para alguém.
Aos 13 anos fui expulsa de casa. O meu pai disse que eu era uma
vergonha para a família e como eu queria ficar mais na rua do que
em casa, que era para eu viver definitivamente lá e jogou as minhas
roupas no meio da rua. Fiquei atordoada e fui morar em uma casa
de prostituição. Não sei dizer como fui parar nesse lugar, só sei que
passei a morar lá. Não sabia como era, como funcionava, não sabia de
nada. Peguei doença e fui alertada por um dos clientes que disse que
eu precisava me cuidar, pois se passasse para alguém eu podia até ser
morta.
Com 14 anos tive que sair dessa casa, pois um bandido que gostava
de mim veio cumprir a promessa de que iria me matar caso me
encontrasse com outro. Eu não tinha nada com esse homem e não
queria desistir do cabeleireiro com quem eu namorava. Ele saiu da
cadeia e foi me procurar. Comecei a gritar, pessoas apareceram e eu
consegui fugir. Fui morar em outro lugar, em outro bairro, em outra
casa de prostituição.
Nessa nova casa eu também quase morri. Dessa vez um cliente foi
pagar, mas não encontrou a carteira e me acusou de roubo. Ele partiu
para cima de mim e começou a me espancar. Fiquei adormecida com
as pancadas na nuca e com os gritos vieram me acudir. Consegui fugir
para dentro do mato, vomitei sangue. Chamaram a polícia e fomos
para delegacia. O garçom que viu a mulher do homem tirando a
carteira do bolso dele foi depor e esclareceu todo o mal entendido.
Nessa época conheci o meu atual marido. Ele era casado e vivia
dando em cima de mim, me convidava para sair, mas eu não
dava bola. Um dia acabei ficando grávida de outro rapaz. Foi um
desespero, pois eu não podia ter esse bebê, a vida estava muito difícil.
Aconteceu essa tragédia e fui obrigada a tomar o remédio, mas não
tinha nem dinheiro para comprar. Tive que pedir para ele. E foi assim
que fomos morar juntos. Fomos morar juntos por causa de uma
necessidade. Não era o que eu queria, mas fui me apegando. Estamos
a 27 anos casados e foram muitas decepções. Com ele eu tive mais
três filhos.
Nessa época, conheceu uma senhora que estava com um bebê recém-
nascido, que não era dela, e queria que alguém o adotasse. Maria
vendo a situação da criança doente e desnutrida, resolveu pegar para
cuidar até que alguém adotasse, o que nunca aconteceu. Aos 22 anos,
Maria se viu solteira, trabalhando, pagando aluguel e cuidando de um
bebê. A cunhada ajudou-a olhando a menina enquanto Maria ia trabal-
har. Na mesma época conheceu o meu pai, o qual achou estranho uma
moça solteira e virgem criando uma criança sozinha.
Aos 24 anos Maria casou com José e logo ficou grávida de sua
primeira filha. Com a chegada da menina bateu uma vontade em José
de voltar para a Bahia. Maria não queria, mas seguiu o marido já com
o seu segundo filho na barriga. Chagando lá, viram que iriam passar
necessidade e retornaram para São Paulo.
71
Meu pai não permitia que minha mãe tomasse contraceptivos e a cada
ano ela tinha um filho. No total foram 13, 4 mulheres e 9 homens.
O meu pai também era muito violento, batia em minha mãe e bebia
muito. Presenciei muitas vezes minha mãe sendo machucada, e em
uma delas o meu pai chegou a enfiar uma caneta na barriga de minha
mãe que estava grávida. Por sorte não perfurou.
Ela pensou em deixá-lo muitas vezes, mas não sabia como ia cuidar
de tantas crianças e pagar aluguel. Maria nunca deixou de trabalhar
para ajudar no sustento de seus filhos e voltou a morar perto do irmão
para ter alguma ajuda. Um tempo depois, José teve tuberculose e foi
internado em Campos do Jordão. Ela ficou seis meses desamparada e
teve que pedir ajuda da Legião Brasileira de Assistência, no Tatuapé,
e por muito tempo recebeu ajuda de uma pessoa de coração enorme.
Depois de recuperado, meu pai voltou para casa, mas não deixou de
ser violento. Maria nunca se separou, mas não foi por falta de vontade
e sim por causa de seus filhos.
Maria teve que continuar sua batalha sozinha para manter sua família
sempre unida e para criar os 11 filhos menores. Criou seus filhos com
muita garra e determinação e também ajudou a criar três netos. Hoje,
Maria está com 79 anos e cheia de saúde.
Bruna Angotti
Coordenadora do Núcleo de Pesquisas IBCCRIM